Programa de Pós-Graduação em Economia Instituto de
Transcrição
Programa de Pós-Graduação em Economia Instituto de
Programa de Pós-Graduação em Economia Instituto de Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro Iuri Regensteiner O Sistema Inter-Estatal Capitalista Segundo a Escola Francesa da Regulação Rio de Janeiro 2011 Iuri Regensteiner O Sistema Inter-Estatal Capitalista Segundo a Escola Francesa da Regulação Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia, Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciências Econômicas Orientador: Ernani Teixeira Torres Filho Rio de Janeiro 2011 Dedico esta obra a Deus e a meus pais, Pedro Regensteiner e Dina Worcman Regensteiner. AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente aos professores David Kupfer e Fabio Freitas, coordenadores da pós-graduação durante o período de meu mestrado. A Lia Hasenclever, agradeço pelo auxílio a estes na tarefa de acompanhar o progresso dos alunos ao longo do programa. Pelas disciplinas ministradas, agradeço a: Hugo Boff e Getúlio Borges; Fábio Freitas e Matias Vernengo; Frederico Rocha, David Kupfer e João Pondé; Carlos Medeiros, Franklin Serrano e Fernando Cardim; Ernani Torres e Maria da Conceição Tavares; Maria Malta e Ângela Ganem; e, finalmente, a José Luis Fiori. Por indicações bibliográficas, agradeço a: Carlos Medeiros, José Fiori, Ernani Torres, José Francisco Gonçalves (Kiko) e Gilson Secundino. A Roberto Vermulm pela carta de recomendação. Por auxílios na questão da moradia, agradeço a: Luisa Sidoneo, Bruno Learth Soares e Theo Vasconcelos. A Theo Vasconcelos agradeço ainda pelos bons conselhos, dentre eles o de vir ao Rio de Janeiro para fazer mestrado em economia. Agradeço ainda a família e amigos pelo apoio. Agradeço também aos funcionários do Instituto de Economia da UFRJ, que contribuíram grandemente para a elaboração deste trabalho. Por fim, mas não menos importante, agradeço a Ernani Torres pela ótima orientação. Todos os homens morrem, mas nem todos os homens vivem. William Wallace RESUMO Este trabalho tem como objetivo oferecer uma interpretação sobre o que representou a crise mundial de 1970 para o moderno sistema mundial. Para tanto, propõe-se, por um lado, utilizar-se dos instrumentos teóricos oferecidos pelos autores da Escola Francesa da Regulação (escola de pensamento cujo nome original é Teoria da Regulação) e, por outro, trazer e definir formalmente o conceito de Sistema InterEstatal Capitalista (SIC), segundo a forma como especificado pelos autores da área de Relações Internacionais que estudam os chamados sistemas-mundo. Nesse contexto, apresenta-se inicialmente uma teoria alternativa da moeda, na forma como é elaborada por Michel Aglietta e André Orléan, autores regulacionistas. Esta se destaca, basicamente, pela maneira como a teoria marxista é reestruturada, de forma a relegar a segundo plano o postulado ricardiano do valor para, no lugar, inserir a primazia teórica do papel da violência e da mimese. Acredita-se, a partir deste procedimento, ser possível resolver grande parte das contradições teóricas deixadas por Karl Marx aos seus sucessores. Além disso, os resultados obtidos por esta teoria nos permitem dar uma ênfase maior à importância da moeda do que a atribuída atualmente pelas teorias predominantes. Em seguida, passa-se à análise do SIC, propriamente dito, a partir da ótica de seus “ciclos expansivos”. Assim, baseando-se nos estudos dos autores dos sistemas-mundo, empreende-se uma análise histórica de “longos períodos” que se inicia no chamado Longo Século XIII, momento em que é atribuída a gênese deste sistema. Após esta contextualização histórica do objeto, tem-se início um estudo histórico de períodos mais curtos e de tempos mais recentes, com o intuito de compreender em maior detalhe as condições que antecederam o período da década de 1970. Dessa forma, utilizando-se mais instrumentos de análise propostos pelos regulacionistas (a saber, modos de regulação, regime de acumulação e, ainda, uma proposta de enquadramento institucional), dividir-se-á, primeiramente, em intervalos o período a partir de 1870 para, em seguida, aprofundar-nos nas condições predominantes em cada um destes. Assim, a partir de tal procedimento, acredita-se ser possível obter uma nova luz sobre o que realmente representou a crise de 1970 para o SIC. Palavras-chave: Regulação, Teoria da Regulação, Escola Francesa da Regulação, Sistema Inter-Estatal Capitalista, Sistemas-Mundo, Violência da Moeda, Violência, Moeda, Pré-Fordismo, Fordismo. ABSTRACT This paper aims to offer a new light about the real meaning of the 1970’s world crisis to the world modern system. To achieve this goal, we intend, in one hand, to use the theoretical instruments offered by the authors of the French School of Regulation (whose original name is Regulation Theory) and, on the other, to bring and to formally define the concept of the Capitalist Interstate System (CIS), as it is specified by the authors of the International Relations area that take the world-systems as the main object of their studies. In that context, it is initially presented an alternative theory of money, as it is developed by Michel Aglietta and André Orléan, “regulationist” authors. This theory proposes to restructure the Marxist theory in a way to lower to second plane the Ricardian postulate of value. In its place, they give emphasis to the role of violence and mimesis. It is believed that, by following this procedure, to be possible to solve most of the theoretical contradictions left by Karl Marx to his successors. Furthermore, the results obtained by this new theory of money, allow us to give a greater importance to the role of money on the economic theory than the one given by the usual ones. Afterwards, we begin the study of the CIS itself taking as reference the existence of the so called “expansive cicles”. In this way, following the studies of the world-system researchers, it is engaged a historical analysis of “long periods” which begins with the so called Long XIIIth Century, where it is said that this system begins. Then, after this contextualization of the object, we begin another historical study, but this time, the intervals are shorter and more recent. We undertake this procedure with the intention of understanding in greater detail the conditions prior to the 1970’s. This way, with the help of more instruments brought from the authors of the French School of Regulation, such as modes of regulation, accumulation regimes and an institutional framework, the analysis will take place from the 1870’s until nowadays. Thus, with this procedure we believe to be able to offer a new light to the real meaning of the 1970’s world crisis to the CIS. Keywords: Regulation, Regulation Theory, French School of Regulation, Capitalist Interstate System, World-Systems, Violence of Money, Violence, Money, PreFordism, Fordism. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ____________________________________________________________________ 10 1 CAPÍTULO 1: A VIOLÊNCIA DA MOEDA _____________________________________________ 16 1.1 INTRODUÇÃO _________________________________________________________________ 16 1.2 A MOEDA E OS PROCESSOS FUNDADORES DA ORDEM SOCIAL ________________________________ 21 1.2.1 FI: A VIOLÊNCIA ESSENCIAL _______________________________________________________ 27 1.2.2 FII: A VIOLÊNCIA RECÍPROCA ______________________________________________________ 28 1.2.3 FIII: A VIOLÊNCIA FUNDADORA ____________________________________________________ 29 1.3 CENTRALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO __________________________________________________ 30 1.3.1 PARTINDO DA FORMA FIII ________________________________________________________ 33 1.3.2 POLARIZAÇÃO MIMÉTICA ________________________________________________________ 34 1.3.3 O SISTEMA HOMOGÊNEO _______________________________________________________ 35 1.3.4 O SISTEMA FRAGMENTADO ______________________________________________________ 38 1.3.5 O SISTEMA HIERARQUIZADO _____________________________________________________ 40 1.4 AS CRISES MONETÁRIAS _________________________________________________________ 43 1.4.1 A FORMA GERAL DAS CRISES _____________________________________________________ 44 1.4.2 A CRISE EM SI _______________________________________________________________ 45 1.4.3 A CRISE INFLACIONÁRIA _________________________________________________________ 46 1.4.4 A CRISE DEFLACIONÁRIA ________________________________________________________ 49 1.4.5 OBSERVAÇÃO SOBRE AS CRISES MONETÁRIAS __________________________________________ 50 1.5 CONCLUSÃO __________________________________________________________________ 50 2 CAPÍTULO 2: O SISTEMA INTER-ESTATAL CAPITALISTA E A ANÁLISE DE “LONGOS PERÍODOS”_ 52 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 O SISTEMA INTER-ESTATAL CAPITALISTA ______________________________________________ 52 ECONOMIA POLÍTICA DOS SISTEMAS-MUNDO (EPSM) ____________________________________ 54 CICLOS EXPANSIVOS ____________________________________________________________ 57 CICLOS EXPANSIVOS - COMENTÁRIOS _________________________________________________ 60 CONSIDERAÇÕES SOBRE O SIC ______________________________________________________ 61 2.6 CONCLUSÃO __________________________________________________________________ 64 3 CAPÍTULO 3: PRÉ-FORDISMO ____________________________________________________ 68 3.1 INTRODUÇÃO _________________________________________________________________ 68 3.2 ESCOLA FRANCESA DA REGULAÇÃO – CONCEITOS ________________________________________ 69 3.3 OS CICLOS III E IV ______________________________________________________________ 72 3.4 AS ESTRUTURAS SOCIAIS DO PRÉ-FORDISMO ___________________________________________ 74 3.4.1 CONTEXTO__________________________________________________________________ 75 3.4.2 FORMA E REGIME MONETÁRIOS: O PADRÃO OURO ______________________________________ 76 3.4.3 FORMA DA RELAÇÃO SALARIAL: SALÁRIOS FLEXÍVEIS______________________________________ 79 3.4.4 FORMA DA CONCORRÊNCIA: CONCENTRAÇÃO DE CAPITAL; FORMAÇÃO DE TRUSTES, HOLDINGS, ETC; CORRIDA IMPERIALISTA. _____________________________________________________________________ 81 3.4.5 FORMA DE ADESÃO AO REGIME INTERNACIONAL: LIVRE COMÉRCIO E GRANDE FLUXO INTERNACIONAL DE INDIVÍDUOS E CAPITAL ________________________________________________________________ 86 3.4.6 FORMAS DO ESTADO: ESTADO MÍNIMO ______________________________________________ 90 3.5 CONCLUSÃO __________________________________________________________________ 91 4 CAPÍTULO 4: O SIC EM TEMPOS MODERNOS ________________________________________ 93 4.1 O ENTREGUERRAS ______________________________________________________________ 93 4.2 FORDISMO I OU BRETTON WOODS __________________________________________________ 96 4.3 A CRISE DA DÉCADA DE 1970 _____________________________________________________ 102 4.3.1 PRINCIPAIS FATOS ____________________________________________________________ 102 4.3.2 O PETRÓLEO _______________________________________________________________ 103 4.4 FORDISMO II ________________________________________________________________ 107 4.5 CONCLUSÃO _________________________________________________________________ 109 5 CONCLUSÃO _________________________________________________________________ 111 BIBLIOGRAFIA __________________________________________________________________ 116 SIGLAS ________________________________________________________________________ 119 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Representação da Relação Sujeito-Objeto-Rival________________24 Figura 2: Ciclos Expansivos do SIC___________________________________58 Figura 3: O SIC Pós-1870____________________________________________74 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Oposições que Traduzem o Dualismo da Moeda_______________41 Quadro 2: Das Categorias da Teoria Marxista às Categorias da Escola Francesa da Regulação_____________________________________________________71 10 INTRODUÇÃO O dia 15 de agosto de 1971 foi bastante importante para a história da economia mundial. Foi o dia em que os EUA romperam com o padrão dólar-ouro e puseram fim à estrutura de Bretton Woods, que vigorava há mais de 25 anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mais ainda, esta data marcou a ruptura do princípio de promover a integração econômica internacional a partir da fixação da paridade entre a moeda emitida pelo país hegemônico com o ouro. Tal princípio, por sua vez, já vigorava há pelo menos 100 anos, uma vez que, desde antes da Segunda Guerra Mundial, o Reino Unido, que era o país hegemônico da época, instituiu o padrão ouro como o princípio organizador do capitalismo global durante o século XIX. Nestes 100 anos, a economia mundial sofreu profundas transformações. Dessa forma, com o abandono do ouro como referência mundial de valor, o novo sistema, que agora se encontrava mais integrado do que nunca, passou a ter que se organizar sob condições inéditas e adequar as suas estruturas às novas regras que passariam a vigorar. As características gerais destas transformações é um dos objetos principais do presente estudo. No entanto, antes de chegar a elas, é necessária uma investigação de natureza mais teórica. Buscam-se teorias que dêem conta de explicar o significado dos acontecimentos históricos de forma ampla e coerente. Nesse contexto, as teorias escolhidas para atuarem como arcabouços teóricos do presente estudo são: 1- a 11 Teoria da Regulação e 2- as Teorias dos Sistemas-Mundo. A partir destas, acreditase ser possível oferecer nova luz no que se refere às interpretações sobre o significado da ruptura do acordo de Bretton Woods. A Teoria da Regulação foi desenvolvida na França na década de 1970 quando um grupo de economistas, autores de modelos macroeconométricos, que trabalhavam para a administração econômica do país identificaram uma ruptura de certas regularidades econômicas a partir de 1967. Então, inspirados por Michal Kalecki, Nicholas Kaldor e Joan Robinson e, atraídos pela análise de longo prazo das transformações do capitalismo, levam a efeito uma avaliação crítica do poder de explicação das hipóteses marxistas. A abordagem teórica desenvolvida pelos regulacionistas é inovadora. Seus autores propõem rupturas com relação às abordagens existentes na Ciência Econômica. Por um lado, rompem com as teorias predominantes ao rejeitarem o postulado do homem racional como determinante principal do comportamento humano quando deparado às questões de natureza econômica. No lugar, inserem o postulado do homem que deseja. Por outro, rompem com a tradição marxista, bem como com a tradição clássica, ao rejeitarem a primazia do valor como elemento fundamental da coesão social. No lugar, eles inserem as variáveis da violência e da mimese. Uma das conseqüências desse procedimento é a possibilidade de apreciar de forma inédita a importância teórica fundamental que a moeda exerce nas relações econômicas. Uma ressalva que deve ser feita desde já é que, devido à existência de 12 outra linha de pensamento com o mesmo nome, doravante chamaremos a Teoria da Regulação de Escola Francesa da Regulação1. Já as Teorias dos Sistemas-Mundo foram desenvolvidas pelos autores da área de Relações Internacionais. Estes tomam como objeto o moderno sistema mundial. Nesse contexto, o conceito de sistema-mundo os possibilita remontar a história deste sistema desde suas origens no século XII. O sistema-mundo é, basicamente, um conceito que expressa uma unidade de análise mais ampla do que as realidades nacionais. Ele representa o espaço econômico integrado identificado pela existência de alguma característica comum entre seus “países” componentes. Nesse contexto, torna-se possível mostrar como o moderno sistema mundial em que vivemos resulta da expansão de um sistema-mundo específico, a saber, o europeu. Assim, a partir da teoria desenvolvida pelos autores da regulação, buscaremos antes de tudo expor em âmbito teórico como a moeda possui um papel mais relevante do que aquele proposto pelas teorias predominantes. Em seguida, discutiremos as Teorias dos Sistemas-Mundo. Esta última, ainda que destituída dos argumentos teóricos discutidos pelos autores da Ciência Econômica, oferece, através de abordagem distinta, conclusões similares à Escola Francesa da Regulação com relação ao papel diferenciado desempenhado pela moeda no processo histórico de formação do moderno sistema mundial. Isto ocorre uma vez que, na busca dos teóricos dos sistemas-mundo em explicar a dinâmica da consolidação das hegemonias mundiais ocorrida sob a égide do modo de produção capitalista, fica latente a questão referente a como cada país que exerceu a função hegemônica 1 “Um aviso liminar é importante para evitar um mal-entendido que se tornou muito freqüente à medida que os economistas adotaram sem precaução as terminologias anglo-saxônicas. De fato, na literatura internacional, a teoria da regulação diz respeito atualmente às modalidades segundo as quais o Estado delega a gestão de serviços públicos e coletivos a empresas privadas com a premissa de instituir agências administrativas independentes, chamadas de agências reguladoras.” Boyer, 2009, pg. 23. 13 atuou na hora de implementar sua moeda na extensão de sua área de influência. É tarefa do presente trabalho explicitar este alinhamento entre estas duas abordagens teóricas. Neste contexto, ainda que a ruptura do padrão dólar-ouro tenha grande relevância para o presente estudo, a questão relativa à influência da moeda acaba também por assumir papel de destaque. Dessa forma, após as discussões teóricas relacionadas às questões levantadas até aqui, empreenderemos uma análise histórica que utilizará os conceitos apresentados e terá por finalidade identificar o que representou a ruptura de 1971. Esta análise toma como marco inicial a década de 1870 e prossegue até os dias atuais. Assim, podemos dividir o presente trabalho em três partes distintas. Na primeira, constituída pelos capítulos 1 e 2, bem como pelos três primeiros itens do capítulo 3, trazemos as contribuições teóricas relevantes para a compreensão do objeto de estudo aqui proposto, a saber, o Sistema Inter-Estatal Capitalista. Sendo assim, no capítulo 1, exporemos a teoria apresentada por Michel Aglietta e André Orléan, autores filiados à Escola Francesa da Regulação, no que se refere à questão monetária. Ver-se-á que a teoria trazida por estes autores diferem amplamente daquelas predominantes no atual estado da Ciência Econômica. Ainda assim, ao defender suas teses, estes autores confrontam com freqüência os seus resultados com aqueles trazidos pelos autores mais tradicionais do assunto. Nesse contexto, Aglietta & Orléan basicamente partem da premissa de uma limitação na obra de Karl Marx com relação à primazia do postulado do valor. Para Aglietta & Orléan há um elemento que antecede ao valor, a saber, a violência. Dessa forma, 14 efetuada a mudança, os autores reformulam a teoria de Marx para, em seguida, explorar os seus resultados. No segundo capítulo, recorreremos aos autores da área de Relações Internacionais e partiremos do conceito de sistemas-mundo para, apenas então, definir formalmente o Sistema Inter-Estatal Capitalista (SIC) e descrever o processo pelo qual este sistema se expandiu de forma a subjugar os sistemas-mundo alternativos para dentro de suas regras de funcionamento. De fato, de forma exitosa, o SIC se ampliou gradualmente ao longo dos séculos, de modo que, em 1991, com o fim da Guerra Fria e a absorção do bloco comunista pelo capitalista, veio a compreender virtualmente toda a humanidade. Para tanto, será empreendida a abordagem do que os autores da área chamam de análise de longos períodos, na qual se encontra padrões específicos de expansão em períodos de âmbito secular. No terceiro capítulo temos: no item 3.1, uma pequena introdução ao capitulo 3; no item 3.2, mais conceitos elaborados pelos autores da Escola Francesa da Regulação – modo de regulação, regime de acumulação, bem como uma proposta de enquadramento institucional – relevantes para a análise histórica que se seguirá; e, no item 3.3, já tendo em mente os conceitos expostos no item anterior, novas questões relacionadas à discussão apresentada no capítulo 2. Já na segunda parte, constituída pelos capítulos 3 – a partir do item 3.4 – e 4, lançar-nos-emos na tarefa de desvendar o que significou a crise mundial da década de 1970 para o sistema mundial moderno em que vivemos. Assim, deixaremos a análise de longos períodos para nos aventurar em intervalos de tempo com menores escalas de compreensão. Em sua plenitude, o intervalo analisado nesta parte se estende desde a década de 1870, até os dias atuais. Não obstante, tendo em vista 15 os critérios regulacionistas, este intervalo de pouco menos que um século e meio será subdividido em períodos menores de forma a permitir novas dimensões de análise. No que se refere aos cortes destes intervalos menores, teremos como principais referências o lastro das moedas nacionais com o ouro na década de 1870, as duas Grandes Guerras Mundiais e o fim do acordo de Bretton Woods, marcado pela ruptura do padrão dólar-ouro em agosto de 19712. Nesse contexto, no terceiro capítulo trataremos do período que chamaremos de PréFordismo, delimitado pelas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, em que a Inglaterra3, exercendo a liderança do SIC, promove a integração econômica mundial a partir de um conjunto de princípios reguladores. Dentre estes princípios estão o lastro das moedas nacionais com o ouro, bem como o livre comércio. O quarto capítulo repete o procedimento para períodos posteriores à Primeira Guerra Mundial, a saber, o entreguerras, o período entre 1945 e 1971 (aqui chamado de Fordismo I) e o período que vai de 1971 até os dias atuais (aqui chamado de Fordismo II). Finalmente, na terceira parte, uma conclusão finaliza o trabalho. 2 Cabe lembrar que este marco da ruptura monetária de 1971 é apenas um dos marcos de uma crise maior ocorrida no período. Escolhemos este fato como marco de ruptura entre dois períodos devido à metodologia aqui desenvolvida que toma a moeda como variável central no que tange às relações compreendidas no interior do modo de produção capitalista. 3 Ainda que as expressões “Inglaterra”, “Reino Unido” e “Grã-Bretanha” possam representar conceitos diferentes, para fins de simplificação serão aqui tratados como se fossem sinônimos. 16 1 CAPÍTULO 1: A VIOLÊNCIA DA MOEDA Aqui se inicia a primeira parte do trabalho, composta pelos capítulos 1, 2 e parte do 3, onde se aborda e discute as principais correntes teóricas que o darão embasamento. 1.1 Introdução A teoria que será aqui apresentada foi primeiramente desenvolvida por Aglietta & Orléan no livro A Violência da Moeda (19904). Por ser uma das obras seminais da Escola Francesa da Regulação, o seu conteúdo será aqui exposto como se fosse o defendido pelos teóricos desta escola. A moeda é uma instituição bastante delicada nas sociedades modernas. Basicamente, não há indivíduo que não a utilize em suas transações diárias. Mesmo assim, diversos fenômenos a ela associadas não recebem uma explicação clara e adequada de suas verdadeiras causas. As autoridades monetárias, responsáveis por controlar a sua oferta, não possuem sequer uma noção precisa de qual é a melhor medida dos agregados relevantes. Os objetos monetários que circulam num dado momento na esfera econômica não são homogêneos, mas sim possuem diferentes características de risco, de liquidez e até mesmo de emissor. 4 Este é o ano da edição brasileira. A edição francesa é de 1982. 17 Para Aglietta & Orléan, o motivo pelo qual a Ciência Econômica não oferece uma explicação satisfatória para estes fenômenos reside justamente na insuficiência de seus postulados básicos. “Esses postulados recebem o nome de teoria do valor. Essa teoria é um esforço permanente para elaborar uma economia pura obliterando a moeda da lógica da troca. O adjetivo – puro – deve ser entendido em seu sentido estrito. Trata-se de uma tarefa de purificação de tudo o que a moeda traz de desordem, de arbitrário, de luta, de poder, de compromisso convencional, de fé cega; em resumo, de toda vivência social, para elevar-se ao céu resplandecente da teoria. Nesse universo etéreo os atos de troca, contratualmente estabelecidos, são relações entre iguais, fundadas na Razão universal. Elas reconciliam a liberdade individual e o imperativo moral, numa harmonia coletiva que assume a figura do Equilíbrio.” 5 Dessa forma, compreende-se que a reintegração da moeda não ocorra sem dificuldade. Sob este arcabouço teórico se esboçou um conjunto de hipóteses destinadas a mostrar que a moeda nada tem a ver com a troca. A moeda não pode ser reintegrada senão a um nível teórico subordinado, obtido com a introdução de hipóteses ad hoc numa construção que foi concebida para dispensá-la. É por isso que Jacques Attali diz que sob essa teoria, “para falar em moeda é necessário forçar os conceitos como se soca uma mala por demais abarrotada.” 6 “É a razão pela qual a economia monetária tem muita dificuldade em adquirir seus títulos de nobreza. Esse campo exige dos teóricos uma grande flexibilidade para efetuar as contorções intelectuais impostas por suas próprias regras. A moeda é importante, senão, como justificar os intermináveis discursos que lhe são consagrados? Mas ela é neutra porque não pode alterar definitivamente a onipotência da Razão que inspira os sujeitos econômicos. Para conciliar esse delicado dilema, declara-se que a moeda é neutra... a longo prazo. Mas o longo prazo não tem outra definição senão o tempo no termo do qual a moeda é neutra! (...) Há, portanto, um incrível divórcio entre a inquietude suscitada pelas desordens monetárias e o que disso pode afirmar o liberalismo econômico de um ponto de vista doutrinal.” 7 5 Aglietta & Orléan (1990), pg. 27. Meu negrito. Ibid, pg. 9. Prefácio. 7 Ibid, pg. 28. 6 18 Essa lacuna teórica é que desencadeia alguns dos intensos debates políticos que se observa com relação ao papel do Estado na economia. O que está em jogo diz respeito à responsabilidade dos bancos centrais nas perturbações monetárias, à definição de seus objetivos, à implementação dos meios através dos quais eles podem exercer uma influência benéfica sobre a economia do setor privado, etc. Os neokeynesianos, por exemplo, pensam que a eficiência dos mecanismos objetivos da economia pode ser aumentada pela manipulação da demanda autônoma e da taxa de juros. O Estado estaria, portanto, em condições de ter uma ação positiva, através da conduta de suas autoridades monetárias. Uma posição contrastante é a da tradição liberal ortodoxa que vê na moeda a origem de todos os males. Para estes, todos os problemas monetários se resumem na impossibilidade para os proprietários privados de prever os impulsos erráticos da emissão monetária pelo Estado. A concepção do Estado se assemelha à imagem maniqueísta do Leviatã. A debilidade da análise teórica subjacente às exortações antiestatais do monetarismo leva a oscilações vertiginosas dentre seus autores. Tem-se, por exemplo, por um lado, autores que, conduzidos por M. Friedman, defendem que as autoridades do banco central deveriam reinar sem governar; manter fixo o olhar sobre a linha azul de uma progressão constante da massa monetária. Por outro, tem-se autores que, inspirados por F. Hayek, crêem poder dispensar totalmente os bancos centrais, uma vez que a moeda não seria mais do que outra mercadoria qualquer. Assim, estes perguntam: por que então sofrer o arbítrio de uma instituição exorbitante do direito privado, já que se pode confiar nas virtudes do mercado para selecionar as boas moedas privadas? As divergências se encontram também nas questões monetárias internacionais entre os partidários dos câmbios fixos e flexíveis, entre outros. 19 Dessa forma, dizem Aglietta & Orléan, a gravidade e a recorrência dos problemas monetários lançam, portanto, um desafio ao qual a economia política foi incapaz de responder. Essa lacuna não se deve a uma falha da atenção dos economistas, mas se origina das hipóteses fundamentais da economia política. Com efeito, não é possível estabelecer a necessidade da moeda, colocar em evidência sua significação social e suprimir o desconhecimento que sua onipresença suscita, sem rejeitar os postulados sobre os quais é fundada a teoria do valor. Delegar um papel relevante à moeda na própria formação das relações mercantis se torna, sem dúvida, o próximo passo no desenvolvimento das elaborações teóricas. Mais precisamente, é necessário partir do ponto de vista segundo o qual a moeda é o primeiro vínculo social para descobrir a qualidade do que é monetário e deduzir um método geral para analisar os sistemas monetários. Em outras palavras, os autores se propõem, com o objetivo de superar as limitações existentes, a desenvolver nada menos do que uma teoria qualitativa da moeda. Para tanto, pretendem renunciar ao que constitui o pressuposto da economia política desde sua constituição na segunda metade do século XVIII, a saber, a concepção substancial do valor. “Que essa substância seja a utilidade ou o trabalho nada muda no que concerne ao estatuto da moeda. O essencial é um ponto de partida segundo o qual a coerência social já é pressuposta na evidência natural de uma qualidade comum aos objetivos econômicos.” 8 O próprio Marx, embora tenha desenvolvido toda uma problemática que tendesse à ruptura da concepção de valor, não o fez, deixando assim “ambigüidades que permeiam a sua obra e que deram origens a incompreensões e infindáveis 8 Ibid, pg. 31. 20 discussões.” 9. Assim, será proposta uma reinterpretação da teoria marxista da mercadoria que não esbarre nas deficiências da teoria do valor-trabalho. Fica, então, a questão: como esperar partir de um pressuposto tão geral como o valor, mas que implica a moeda como uma conseqüência em vez de suprimi-la? Mais ainda, que hipótese se deve apresentar de forma a não conduzir apenas a idéia de equilíbrio ou de reprodução, mas que incorpore indissoluvelmente a idéia de crise ou de transformação? A solução encontrada consiste em colocar no ponto de partida da sociedade mercantil a violência. Para obter tal resposta foi necessário sair do escopo da Ciência Econômica e se aventurar no âmbito da Antropologia e da Teoria Estruturalista a ela associada. “Assim, o pressuposto que se quer reter é que as relações mercantis se definem por uma violência aquisitiva, isto é, que se transmite aos objetos, cujo processo chamamos de açambarcamento.” 10 A lógica que se procura romper com esse direcionamento teórico não é apenas associada aos postulados do valor e do homem racional, mas se refere também a uma limitação de outra natureza e que é comumente empregado na Ciência Econômica. Trata-se da aplicação do método experimental importado das chamadas hard sciences, como a Física, que consiste basicamente em “formular hipóteses, formalizá-las, efetuar testes empíricos e retomar as hipóteses de base”. 11 O problema da generalização desse procedimento quando aplicada numa ciência predominantemente humana é que, para manipulá-la com praticidade, é necessária 9 Ibid. Ibid, pg. 33, itálico dos autores. 11 Ibid. 10 21 a atribuição de certas suposições no que se refere às respostas de determinados indivíduos (ou, se preferir, agentes) quando deparados a determinadas situações. Daí surge o primado concedido ao sujeito racional na explicação das relações econômicas. “ele [o primado do sujeito racional] leva, em primeiro lugar, a escamotear o problema da coerência social, pois a socialização já é adquirida no princípio de racionalidade, suposto comum a todos os indivíduos. Assim, o campo social se constrói automaticamente como resultado das arbitragens individuais. Conduz também [em segundo lugar] à hipótese reducionista, segundo a qual todas as formas de organização, mesmo as mais complexas, podem ser analisadas como sendo a soma de comportamentos individuais.” 12 E, por fim, ressaltam: “Nosso objetivo é antes de tudo demonstrar que é possível construir um modelo conceitual e teórico das relações econômicas tão rigoroso quanto o do equilíbrio geral, mas que rompe radicalmente com o primado do sujeito racional para substituí-lo pela hipótese da violência social.” 13 1.2 A Moeda e os Processos Fundadores da Ordem Social No que se refere à relação entre a Escola Francesa da Regulação e o Marxismo, o assunto deve ser tratado com um pouco mais de profundidade. Isso porque se, por um lado os regulacionistas se propõem a ser uma ruptura com a teoria desenvolvida por Marx, uma vez que abrem mão da suposição do valor como elemento-chave da coesão social nas relações mercantis, pilar central este da teoria marxista, por outro, eles se apoiam consideravelmente em estruturas teóricas trazidas por Marx. Com relação a essa questão, dizem Aglietta & Orléan (1990): 12 13 Ibid, pg. 34. Ibid, pg. 37. 22 “No estudo das sociedades mercantis, a autonomia aparente das relações econômicas é geralmente considerada como óbvia. Aliás, Marx é o primeiro entre os grandes pensadores dessa disciplina a ter uma consciência clara do problema. Todavia, o ponto de vista a partir do qual ele pôde adquirir essa consciência permaneceu totalmente ininteligível, tanto aos não-marxistas como à maioria dos marxistas.” 14 Os autores dizem que Marx desenvolveu todos os procedimentos para se situar fora do campo teórico definido por Ricardo, mas que, no entanto, ele não o quebra de fato ao inserir as hipóteses do valor como princípio básico de sua teoria. Essa conduta leva, portanto a confusões na interpretação da obra de Marx: “A despeito de todas as indicações que Marx acrescenta sobre a dimensão moral e histórica das necessidades humanas, o valor de uso permanece um enigma, porque ele não é concebido como uma relação social. (...) É por essa razão que ocorre uma modificação conceitual que se torna irremediável entre os sucessores de Marx. Embora a contradição entre valor de uso e valor de troca apareça, teoricamente, antes das contradições referentes ao conceito de trabalho, toda a tradição marxista faz dela uma derivação destas últimas. (...) Essa situação vai marcar de forma indelével o marxismo e explica como ele pode expor-se às críticas. Atribui-se-lhe com facilidade a mais profunda análise do trabalho jamais feita, mas se assinala sua incapacidade em acolher uma análise do desejo. A despeito da pretensão do marxismo em acolher toda a práxis humana, um reducionismo estaria aí perpetuamente vigente, isto porque o desejo humano tem forças que escapam às determinações que o trabalho supõe. Nesse vazio teórico, o individualismo triunfante da sociedade burguesa, em seu apogeu, pôde encontrar sua racionalização, graças à teoria da utilidade-escassez. Pouco tempo depois da publicação da obra fundamental de Marx, o homo oeconomicus eleva-se à condição de respeitabilidade científica na França, graças a L. Walras; na Grã-Bretanha com Jevons; na Áustria sob a pena de Menger.” 15 Para que essas questões sejam superadas e para que seja possível compreender a moeda em sua plenitude, os autores afirmam ser necessário não apenas rejeitar a hipótese do sujeito genericamente idealizado, o agente racional, mas também repensar a significação da relação social elementar, que é a troca mercantil. 14 15 Pg. 44. Ibid, pg. 45. Itálicos dos autores. 23 “Ora, hoje é possível renovar a reflexão sobre o ponto de partida de Marx e, ao mesmo tempo, compreender as razões profundas da esterilidade da assim chamada teoria neoclássica; isto é, levando-se em conta os avanços decisivos da antropologia. A esse respeito, os trabalhos de René Girard [1972, 1978] se destacam pela fecundidade da hipótese que ele formula sobre a relação elementar que caracteriza o desejo humano. A partir dessa hipótese que Girard denomina mimese, é possível criar uma concepção geral do valor de uso. Uma importante conseqüência disso é subtrair a teoria marxista das formas do valor às críticas dos partidários da teoria subjetiva do valor. Com esse procedimento, mostram-se as incompatibilidades dessas críticas com os conhecimentos positivos da moderna antropologia.” 16 Dessa forma, a Escola Francesa da Regulação acredita que Marx se equivocou ao assimilar a teoria do valor como o elemento básico de coesão social das relações mercantis. No entanto, tal equívoco pode ser solucionado ao se retirar do valor a sua posição de destaque e, no lugar, inserir a teoria de René Girard que utiliza a violência como elemento-chave. Assim, é possível não apenas resolver as contradições que permeiam as discussões entre os marxistas desde suas origens, mas também extrair ainda mais do que Marx buscou explicar em suas obras. Para tanto, é necessário definir antes de tudo a hipótese subjacente no que concerne a qual a concepção do sujeito humano que está por trás da lógica fundamental de toda a ordem social. E é nesse ponto que a contribuição da moderna antropologia se torna decisiva. A inovação que será aqui introduzida é que, em lugar do “homem racional”, será inserida a concepção do “homem que deseja”. Dizem Aglietta & Orléan (1990): 16 Ibid, pg. 47. Itálico dos autores, meu negrito. 24 “Se a contradição entre valor de uso e valor de troca é primordial em relação às contradições relativas ao trabalho, é porque o desejo é a relação humana fundamental. Se a concepção subjetiva do valor se engana, é porque ela faz do desejo um simples desejo de objeto, correspondente a um sujeito que nasce na plenitude do ser, e que é, conseqüentemente, livre e independente. A hipótese antropológica de René Girard é completamente diferente. O desejo humano é um desejo do ser porque todo indivíduo padece de uma ausência de ser. Sendo ele próprio o ser, o objeto do desejo só pode ser procurado através de outrem, que se encontra na mesma situação. Conseqüentemente, desejar o ser é imitar o desejo do outro. (...). O verdadeiro sujeito social não é o indivíduo livre da concepção metafísica da subjetividade; é a relação elementar sujeito-objeto-rival.” 17 A estrutura mimética do desejo pode ser representada da seguinte forma. Figura 1: Representação da Relação Sujeito-Objeto-Rival. Elaboração própria. Isto é, o sujeito se confronta com o rival que é detentor do objeto de seu desejo. É essa lógica que dá origem ao que a teoria de Girard denominará rivalidade mimética. 17 Pgs. 54-55, Itálico dos autores, meu negrito. 25 “Essa relação é definida por Marx como a contradição entre o valor de uso e o valor de troca. A contradição, isto é, as duas faces opostas e, entretanto indissociáveis de uma mesma relação, resulta – da perspectiva do sujeito – da posição do rival. O fato é que o rival é ao mesmo tempo modelo e obstáculo. O valor de uso é o produto, enquanto designado pelo rival como objeto do desejo do sujeito. O valor de troca é o obstáculo que o rival coloca diante do desejo de adquirir do sujeito. Compreende-se, então, a significação profunda do caráter assimétrico da troca, do ponto de vista do sujeito.” 18 Esta estruturação teórica se contrapõe àquela desenvolvida por Walras. Sobre isso, dizem os autores: “Walras coloca-se desde o início em uma perspectiva exterior aos dois indivíduos que se relacionam na troca, e portanto elimina, assim, toda a possibilidade de reconstruir teoricamente o processo que tornaria legítima essa visão. Entretanto, o autor quer analisar a troca a partir da própria troca. Assim sendo, esbarra em uma dificuldade que o fascina. O ato da troca lhe aparece como sendo rigorosamente simétrico; nada pode distinguir aqueles dois sujeitos participantes do ato da troca. Reciprocamente, nesse ato, a demanda de um é a oferta do outro. Dessa forma, é totalmente impossível, sobre esta base, definir funções de oferta e procura. Somente aparece a identidade dos produtores e não-produtores de mercadorias, e o próprio ato como puro número, cuja determinação é ininteligível. Uma tal relação, como veremos, é uma relação mimética pura, que René Girard chama de relação de duplos. Ela não exprime a harmonia de uma relação estável; mas é, ao contrário, o paroxismo de uma crise, onde tudo se confunde, onde reina a extrema indeterminação. Portanto, não é surpreendente que Walras não possa determinar a razão de troca, enclausurando-se na análise da troca. Deve introduzir o que Endgeworth fará explicitamente, ou seja: dotar os sujeitos privados do espírito de sujeitos racionais, já providos de seus sistemas de preferências; isto é, voltar-se para a concepção objetal do desejo, da qual mostramos a significação. Pode-se então construir a curva de contratos, e a troca nada mais é do que um simulacro da sociabilidade preexistente nos seus participantes.” 19 Marx, ao contrário, coloca-se na única perspectiva científica legítima para compreender a própria troca, a saber, a dos possuidores privados de mercadorias: 18 19 Ibid, pg. 55. Ibid, pgs. 52-53. 26 “Há, desta vez, dois pontos de vista que não podem ser mantidos simultaneamente, mas, sim, sucessivamente. Quando alguém se coloca na perspectiva de um sujeito particular, o outro aparece de forma distinta, e assim a troca é assimétrica. Mas, quando se põem os óculos do outro, não se encontra mais o ponto de vista do primeiro. ‘O outro’ do segundo não é a situação de onde se partiu. As duas relações assimétricas, que foram sucessivamente consideradas, não se reduzem como por encanto a uma única relação simétrica. Ao contrário, elas se excluem reciprocamente num violento antagonismo. Tal é a estrutura mimética da troca que é o processo elementar de toda a socialização. Porque a rivalidade violenta dos participantes da troca não pode ser expulsa, a não ser engendrando um terceiro termo mediador, radicalmente diferente dos dois protagonistas iniciais, qual seja, a instituição do social. Assim, a troca não pode ser senão uma relação ternária, pois deve, continuamente, expulsar a violência e reafirmar a legitimidade da instituição mediadora.” 20 A instituição mediadora que intermediará as relações mercantis é justamente a moeda. Agora que já foram introduzidas as variáveis da violência e do desejo e relegada a segundo plano a idéia do valor, é possível retornar à teoria de Marx e analisá-la fazendo as devidas ressalvas. Mais precisamente, falaremos da dialética das formas do valor, que agora “poderia perfeitamente chamar-se de dialética das formas de violência.” 21 Trata-se de três etapas que deduzem a gênese da moeda a partir de um ponto de vista lógico. Estas serão enunciadas a seguir: 20 21 Ibid. pg. 53. Itálico dos autores. Ibid, pg. 56, meu itálico. 27 1.2.1 FI: a Violência Essencial “A primeira forma do valor (FI), aquela que confronta o sujeito e o rival com a mercadoria [vide figura 1], é a mais fundamental e a mais difícil de se conceber. Karl Marx a denomina ‘forma simples ou acidental do valor’. (...). No modo de expressão da economia pura, duas mercadorias podem, imediatamente, se comparar uma a outra na seguinte relação: quantidade a do objeto A = quantidade b do objeto B.” 22 A forma FI explica a impossibilidade de uma sociedade de troca baseada no escambo. No entanto, o motivo desta impossibilidade difere entre as duas leituras. Para Marx, a forma FI é a expressão teórica da contradição da mercadoria que se expressa através da tensão existente entre as duas determinações sociais da mercadoria, a saber, o valor de uso e o valor de troca. Já para Girard, a força elementar implícita na relação FI é a da captura: “Cada sujeito procura apropriar-se do desejo do outro, imitando-o. No que é sempre frustrado pelo obstáculo que o outro aí coloca tomando o desejo do primeiro por objeto. Tal processo só pode conduzir a exacerbação recíproca do desejo; e no fim desse processo, cada qual não vê senão seu próprio desejo em face de si mesmo.” 23 De qualquer forma, ambos concordam que “o escambo simétrico e estável, tão caro aos economistas, não existe.” 24 22 Ibid, pgs. 57-58. Ibid, pg. 59. 24 Ibid. 23 28 “O processo de socialização tem, portanto, num primeiro momento, uma Spaltung, uma cisão, que o desejo inscreve naquilo que não poderia ser indicado metaforicamente senão pela expressão do caos; uma indiferenciação que é, no sentido estrito, impensável, porquanto amorfa. A violência do desejo está na origem da relação social elementar. O valor de uso é uma metáfora do desejo de adquirir, isto é, o nome dado à mercadoria através da qual o sujeito visa o modelo-obstáculo.” 25 1.2.2 FII: a Violência Recíproca “Parece que, nem bem estabelecida, a relação de valor se autodestrói, porque é a expressão teórica da violência essencial. No entanto, isso não ocorre. A contradição pode encontrar uma forma social que a suporte. Mas essa forma não provém de um apaziguamento da violência; é uma espécie de transmutação dela. Essa forma estável não pode surgir diretamente. Resulta, paradoxalmente, de uma generalização da relação concorrencial dos duplos. Tal generalização engendra a violência recíproca, que é o segundo grau da lógica do desejo.” 26 A forma FII é, basicamente, a generalização da forma FI, quando inseridos muitos bens com diferentes possuidores. Aquilo que os economistas chamariam de um mercado. E pode ser representado pelas seguintes expressões: b1 de B = c1 de C = ... = z1 de Z = a1 de A; a2 de A = c2 de C = ... = z2 de Z = b2 de B; E assim por diante. Até que finalmente: Az de A = bz de B = ... = zz de Z. O motivo desta seqüência é que o elemento que assumir a última posição da equação é aquele tido como o equivalente. Isto é, aquela que “serve de espelho à expressão de valor de todas as outras mercadorias.” Dizem ainda os autores: 25 26 Ibid. pgs. 59-60. Ibid, pg. 61. 29 “Decorre disso um processo de contágio da relação elementar sujeito-mercadoria-rival. Cada um expõe seu valor de uso, numa seqüência indefinida de formas equivalentes; cada um vê sua mercadoria tomada como equivalente por um número indefinido de vezes. Tal é a forma FII, chamada por Marx de ‘forma valor total ou desdobrada’” 27 Cabe ainda acrescentar que a forma FII apresenta instabilidade. Isso porque há o problema de não haver um consenso estável entre os participantes sobre qual destes exercerá o papel de moeda. Esta é uma situação limite do que mais adiante iremos chamar de fragmentação. Como resultado da concordância entre os envolvidos sobre a questão é que surge a moeda. 1.2.3 FIII: a Violência Fundadora Nesta forma, uma das mercadorias é eleita como o equivalente geral. Como contrapartida, pode-se dizer ela também é expulsa, no sentido em que “um objeto específico é excluído enquanto valor de uso.” “Se A é esse objeto, podem-se escrever as equivalências: b de B = a1 de A; c de C = a2 de A; ...; z de Z = an de A. É a forma FIII do valor ou a “forma dinheiro”, cuja assimetria e, por conseguinte, cuja diferenciação são agora fixados. Os números a1/b, a2/c, ..., an/z são os preços das mercadorias B, C, ..., Z, respectivamente.” 28 27 28 Ibid, pg. 61, Itálico dos autores. Ibid, pg. 63. 30 FIII é, de certa forma, o oposto de FII: se a violência recíproca (FII) expressa a falta de consenso sobre qual bem exercerá o papel de equivalente geral, a fundadora (FIII) representa a escolha de um bem, A, para exercer tal função. 1.3 Centralização e Fragmentação Neste ponto da análise, encontramo-nos completamente afastados de uma visão objetal ou instrumentalista da moeda. Desta forma, esta não pode ser identificada com um objeto particular ou com uma mercadoria, uma vez que estas são apenas suas representações transitórias. Ela pode, no entanto, ser identificada como a articulação dialética das três formas de violência, FI, FII e FIII. Quanto a isso dizem os autores: “Cada uma dessas formas explicita uma modalidade particular de expressão da violência social, a saber, a violência essencial, a violência recíproca e violência unânime ou fundadora. Portanto, a violência não é homogênea e indiferenciada; manifesta-se em níveis de ocorrência qualitativamente distintos, aos quais correspondem leis específicas.” 29 Assim, cada uma das funções da moeda (meio de circulação, reserva de valor e unidade de conta) corresponde a esses diferentes graus de violência mercantil.30 O âmago da questão é: num mundo onde a produção coletiva é assegurada pela propriedade privada, em que cada produtor detém plena liberdade de decisão sobre o que produzir, como que é assegurada uma alocação que satisfaça as necessidades de seus integrantes? Qual o princípio que comanda a socialização dos 29 Ibid, pg. 79. A explicação de como dessas três formas de violência se originam as três funções da moeda pode ser encontrada nas pgs 65-73. 30 31 produtores privados? Como é neutralizado o desejo desvairado de apropriação por parte dos agentes? A forma de compreensão quase universal da solução desse problema consiste em identificar na relação mercantil um princípio cuja lógica é exterior à troca propriamente dita. Esse método lógico está na base de toda teoria do valor. Assim, dizem os autores: “Postula-se sempre nela a existência de uma lei primordial, qual seja, a racionalidade dos agentes econômicos ou o primado do trabalho, que para além da anarquia aparente da produção mercantil impõe-se como um princípio ordenador. Mas, se essa regra permite que a sociabilidade mercantil se constitua, isso não se deve a uma confrontação vitoriosa com a violência, cujas condições de sucesso deveriam, então, ser explicitadas. É a simples conseqüência lógica do primado concedido a priori a essa regra, que faz da separação dos produtores e da violência, daí decorrente, modos subordinados de expressão das forças econômicas. Assim, se elabora uma teoria que explicita precisamente as normas de socialização que essa lei transcendente coloca em movimento. Mas, em suas premissas, ela nega uma dimensão fundamental da realidade, tornando-a marcada pela insignificância. Então, a natureza arbitrária dessa negação conduz a numerosos impasses lógicos, que esse discurso administra de forma medíocre, graças a pseudodialética do ‘normativo’ e do ‘positivo’, do ‘natural’ e do ‘real’.” E, em seguida, acrescentam: “Nossa conceituação difere radicalmente desse método lógico. Não existe na ordem mercantil outra naturalidade a não ser a da violência aquisitiva. Assim, é a análise desta, e não um princípio de coesão exterior às trocas, que permite compreender como a sociedade mercantil se constitui. O conceito de mimese permitiu a análise das formas de violência. Evidenciou-se, então, o seguinte resultado impressionante: se as relações mercantis se estruturam e adquirem uma estabilidade relativa, isso se deve a uma lógica própria, ou seja, a violência mimética. A organização social é tão somente uma expressão particular da violência, a que foi denominada forma FIII. Na ordem econômica, trata-se da instituição monetária.” 31 31 Ibid, pgs. 80-81. Itálicos dos autores. 32 É esta a proposição teórica que dá origem a análise concreta dos sistemas monetários. Nessa lógica, a moeda é simultaneamente o fruto da violência, mas também a regra que se opõe ao conflito, uma vez que assume o papel de mediadora. A esta contradição é dado o nome de ambivalência da relação monetária. Quanto a isso, dizem os autores: “Ao conceito de transcendência, postulado pela economia política para fundar a sociabilidade, propomos o de ambivalência da relação monetária, qual seja como terceiro elemento intermediário nos conflitos, que não suprime a violência mimética, impregnada nas trocas, mas lhe confere uma expressão social.” 32 Desta dicotomia, tem-se que a ordem monetária é fundamentalmente instável. Nesse contexto, é portanto necessário analisar como o sistema monetário coloca em prática essa ambivalência. “Nosso estudo deve mostrar como a instituição da ordem monetária permite uma certa administração dos conflitos, mas também como, indissoluvelmente, ela produz forças violentas, capazes de destruí-la. Pois não há jamais forma absoluta de regulação, mas, ao contrário, sempre formas transitórias, precárias, formas em mutação.” 33 Assim, temos a forma FIII como a referência básica de capacidade reguladora da ordem monetária. À organização monetária baseada nesse molde se dará o nome de sistema homogêneo. Esta é a situação em que as funções de meio de circulação, reserva de valor e unidade de conta são exercidas unicamente por uma moeda central, D. Já o sistema fragmentado seria aquele em que há liberdade para que agentes privados emitam suas próprias moedas. No entanto, este último dificilmente se vê como um retorno a forma FII. De fato, a forma FII, em si, corresponde à situação extrema em que os agentes não atingem um consenso com 32 33 Ibid, pg. 81. Itálicos dos autores. Ibid, pg. 82. 33 relação a qual, ou se há, uma moeda central. Temos então um sistema híbrido, onde predomina a coexistência da moeda central com moedas privadas. A este se dá o nome de sistema hierarquizado. 1.3.1 Partindo da Forma FIII Posto que estamos trabalhando com a forma FIII, a análise da moeda será feita através de um desvendamento regressivo, que vai das qualidades mais evidentes até chegar nos princípios imanentes que a fundamenta. “Enquanto processo de validação social, a moeda aparece primeiramente como princípio de homogeneização, que torna comensuráveis as diversas mercadorias. Ela despoja cada mercadoria de suas características concretas, e assim permite a constituição de uma relação de equivalência: a cada bem, o operador monetário faz corresponder um algarismo puro, seu preço. (...). Na forma FIII a moeda mostra imediatamente suas qualidades de unidade de conta. Mas, uma lógica de equivalência é essencialmente uma lógica violenta, pois designa um processo que nega toda diferença; toda heterogeneidade se torna insignificante. Ela implica uma submissão brutal dos projetos privados às normas centralizadas e necessita, por conseguinte, da existência de processos de integração/exclusão e de medidas coercitivas. Essa forma da regra monetária, que FIII coloca em prática, é a obrigação do pagamento à vista, a coerção da solvabilidade. Nós a denominaremos norma N0.” 34 Temos então que a unidade de conta e a regra do pagamento à vista, denominada norma N0, são as qualidades que primeiro se colocam. A próxima qualidade que deve ser ressaltada é a da moeda como reserva de valor. Isso porque há uma operação fortemente incrustada na sociedade mercantil que as duas qualidades anteriores não abrangem. Esta é o investimento. Nele, há uma questão com relação à intensidade de aplicação da norma N0. A instauração da moeda como reserva de 34 Ibid, pg. 83. Meus negritos. 34 valor permite certo escalonamento no tempo de sua maturação. A função de reserva de valor será representada aqui como a relação {D = M}, isto é, a moeda assumindo o papel de mercadoria. 1.3.2 Polarização Mimética Outro conceito que os autores aqui introduzem é o de polarização mimética. Significa a convergência de todos os desejos sobre um mesmo objeto, como o que ocorre no caso da moeda. Tal conceito tem a ver com a idéia de que os indivíduos, por possuírem uma ausência de ser, acabam por imitar o outro. Sobre isso, dizem os autores: “A mimese designa o estado incompleto do indivíduo, de ausência total de uma ausência referencial qualquer, que conduz o sujeito a desejar o que o outro deseja. Ela desemboca num movimento de imitação, no qual cada agente tenta exorcizar esse vazio ontológico tomando o vizinho como modelo.” 35 O resultado desse processo é nada menos do que a exclusão desse objeto para fora da esfera privada, ou seja, sua institucionalização. Dessa forma, instituída a moeda através de uma autoridade central, esta última passa a exercer o papel de mediador nas relações mercantis: “À relação privada i/j, engendrada por uma troca entre os sujeitos i e j, a soberania monetária substitui a relação assimétrica i/X, que liga os agentes privados ao instituto central X, através da posse da moeda.” 36 35 36 Ibid, pg. 86. Ibid, pg. 88. 35 1.3.3 O Sistema Homogêneo Será denominado sistema homogêneo a organização monetária na qual o financiamento é assegurado exclusiva e diretamente pela instituição central. Formalizando o sistema homogêneo observa-se que cada centro (i) nele é submetido à obrigação de solvência C(i): = ∑ , ℎ (, ℎ). Onde h designa as mercadorias, p o preço estabelecido por i para o bem h e y a oferta líquida de mercadoria h pelo centro i. Temos então que ∑ = 0. Aliás: = − . Onde D(i) designa a quantidade de dinheiro possuída por (i) após as vendas y(i,h) e U(i) suas dívidas diante da instituição central X. Temos então: = ∑ = ∑ = . O balanço diferencial de X se escreve, à data t: Em outras palavras, a instituição central (X) emite a moeda (D) em contrapartida de dívidas (U) emitidas pelos centros i. 36 “Nessas condições, a coerência das decisões privadas é assegurada. Parece que todos os conjuntos possíveis de escolha podem se exprimir em toda a sua liberdade. É a equação monetária que absorve as tensões.” 37 Uma crítica que pode ser feitas a muitas correntes da economia política é que não consideram a economia monetária senão sob essa forma caricatural. Walras, por exemplo, só consegue explicitar com rigor o processo das trocas se supusesse a priori a existência de um agente central fictício, o chamado leiloeiro walrasiano. A propriedade essencial da relação i/X é a de colocar um mediador entre o devedor e o credor; de substituir a relação instável i/j pela relação mediatizada i/X/j. Uma transferência de j para i pode ser representado segundo os seguintes registros contábeis: Assim, na aparência, o sistema homogêneo é aquele cuja natureza é a mais adequada à expressão das solidariedades produtivas. Isso porque, sob essa estrutura, o agente devedor i é protegido das imposições de seu credor j, de sua sede de açambarcamento. O banco central, aceitando o título U(i), transforma a coerção do pagamento a vista. Fazendo isso, ele promove uma dinâmica parcialmente liberada do desejo aquisitivo, que permite a emergência de maior coerência social. No entanto, esta relação não suprime o conflito, mas apenas o transforma. Isto é, os efeitos da mimese aquisitiva ainda persistem. A relação i/X provoca uma polarização 37 Ibid, pg. 90. 37 entre os agentes entesouradores e os agentes deficitários. Ela define diretamente um conflito de interesses onde o que está em jogo é a propriedade social. “Os agentes superavitários vêem aumentar seus encaixes monetários sem que em contrapartida seu poder econômico cresça. Com efeito, a propriedade permanece parcialmente nas mãos de i, enquanto que, segundo eles, esse agente dá provas, através dos déficits recorrentes que sofre, de sua incapacidade para reorganizar sua produção. Ora, por elaboração, toda absorção dos agentes deficitários torna-se impossível, pois não existe nenhuma ligação direta entre o agente superavitário j e o agente deficitário i. O que era a qualidade primordial da relação i/X cria a possibilidade de uma exacerbação infinita dos conflitos sem mecanismo auto-regulador. Para os agentes deficitários a situação não é menos intolerável. Eles têm toda a razão de se queixar de um financiamento cuja insuficiência lhes proíbe reaver sua hegemonia tecnológica e, simultaneamente, suprimir seus déficits. As pressões que X poderia exercer são ressentidas como inadmissíveis; elas os conduziriam diretamente à falência, à supressão de toda sua autonomia.” 38 Dessa forma, fica latente uma incoerência fundamental do sistema homogêneo que é a incapacidade da moeda central de permitir uma circulação dos direitos de propriedade. O banco central atenua este impasse ao instituir uma relação de equivalência vinculando um saldo que aparece na data t e o que aparece na data t + T. Dessa forma, a imposição coercitiva da norma N0 se vê atenuada por um escalonamento no tempo. A relação pode ser representada pela seguinte expressão: ௧ = ் ୲ା் . Do ponto de vista dessa relação, todo engajamento produtivo não é nada mais do que um circuito monetário prospectivo, cujos determinantes são os refluxos de cashflow antecipados para os diferentes períodos futuros. A todo investimento I é associado um tempo T, ao cabo do qual o crédito U(i) é destruído. Esse tempo responde a fórmula de atualização clássica: 38 Ibid, pgs. 96-97, meu itálico. 38 ் = ௧ ௧ . ௧ୀଵ Onde Rt são os rendimentos esperados para o período futuro t e TI condensa a tensão entre a lógica privada de acumulação de capital e a obrigação de seu financiamento. 1.3.4 O Sistema Fragmentado O sistema homogêneo é a expressão da necessidade que a ordem mercantil tem de uma representação central a qual os sujeitos possam se referir. Essa referência tem por tarefa atenuar a influência deletéria da violência e da incerteza. Ao mesmo tempo, tal estrutura apresenta uma inflexibilidade em se adaptar às novas condições. “Essa é uma dualidade própria a toda regra”, dizem os autores, “Ela se exprime na possibilidade sempre renovada de um ‘excesso’ ou de uma ‘insuficiência’ de moeda”. “A fragilidade dessa organização decorre do fato de que ela não oferece nenhum exutório a essa violência privada; toda reivindicação particular não tem outros meios de expressão a não ser tomar a própria moeda como alvo. Todo desejo privado, toda transformação nova vê sua existência depender imediatamente da instituição central. (...). Essa estrutura é essencialmente instável devido à sua incapacidade de oferecer à violência aquisitiva presas profanas, de permitir certas transferências limitadas de propriedade. Ou, dizendo de outra forma, a interdição de uma circulação privada de títulos V(i,j), retidos por j sobre o agente i, mostra-se insustentável. Somos confrontados, através dessa situação, à necessidade das relações i/j na reprodução da relação monetária.” 39 Em outras palavras, o sistema homogêneo, ainda que exerça caráter essencial para a ordem monetária, é por si só, insuficiente para mediar as relações entre os 39 Ibid, pg. 104-5, meu negrito. 39 agentes. Isso porque, em certa medida, há a necessidade por parte dos indivíduos de se relacionar uns aos outros através de moeda privada V(i,j). Dizem ainda os autores: “Essa relação genérica tem propriedades que a diferenciam radicalmente da relação i/X. Ela tem a particularidade de circunscrever rigorosamente os riscos da transação unicamente aos dois agentes i e j. Uma inexata expectativa sobre as condições futuras da produção, aliás, o que é sempre mais provável, não implica dificuldades para toda a ordem monetária. Ela pode se resolver pela absorção de i, não engendrando sedimentação monetária. Assim, o modo privado de gestão pode, sob muitos aspectos, parecer ter melhor desempenho do que o colocado em prática pela relação centralizada. Por um lado, a concentração da violência sobre i e j permitiria estimativas de risco muito mais rigorosas, posto que elas colocam diretamente em jogo suas respectivas autonomias. Por outro lado, a relação i/j é compatível com uma grande diferenciação das normas de financiamento, mais apta a comungar a diversidade das posições econômicas que os centros de produção conhecem.” 40 O ponto fundamental do sistema fragmentado reside na tensão resultante da defasagem entre a obrigação N0 e as condições de financiamento concedidas por j. O problema reside no fato de que a qualquer momento, o emprestador j pode se deparar com uma necessidade imprevista de gastos em moeda D. Devido a essa dependência, um ativo totalmente imobilizado faria os credores potenciais correrem tal risco, que ele seria um obstáculo decisivo à emissão desses créditos e, portanto, ao investimento. 40 Ibid, pg. 105. 40 “Por essa razão, os títulos devem ser negociáveis, vendidos ou comprados. Para tanto, devem ser o objeto de uma avaliação coletiva. Esse procedimento de avaliação, ao qual conduz o sistema fragmentado, é chamado mercado financeiro privado. Dessa maneira, o título V se vê identificado à moeda e será, por essa razão, escrito {V = D}. Essa relação coloca em prática, de forma semelhante ao caso homogêneo e à relação {D = M}, um tempo T de reembolso, o qual permite o desenvolvimento das atividades produtivas. Vê-se surgir no âmago dessa estrutura um dilema entre a liquidez necessária dos títulos, preservando os juros do investidor, e uma certa ‘imobilização’ do risco, protegendo o devedor das oscilações de humor do credor” 41 Assim como o sistema homogêneo, o sistema fragmentado por si só também apresenta instabilidade. Porém, ao contrario do primeiro, a instabilidade contida neste se deve ao fato de que ele não mediatiza suficientemente a violência. A ausência de qualquer procedimento central que regule o financiamento provoca uma exacerbação dos conflitos privados i/j. “Aparece portanto, em flagrante contradição com alguns séculos de economia política, que as relações privadas não engendram, espontaneamente uma coerência social de conjunto. Elas liberam, imediatamente uma conflitualidade devastadora; um firme e infinito propósito pela riqueza. Dessa forma, abandonam a produção à destruição do processo especulativo. Polarização mimética e autovalidação das expectativas são os determinantes concretos desse processo epidêmico, desse contágio social. O desengajamento das autoridades centrais, considerado pelos ultraliberais como fator de otimização, implica, na realidade, uma hipersensibilidade dos agentes econômicos a toda turbulência, a toda descontinuidade conjuntural.” 42 1.3.5 O Sistema Hierarquizado A existência de uma pluralidade de circuitos privados designa um sistema que será chamado de sistema hierarquizado, na medida em que supõe essencialmente uma moeda chamada central. Essa moeda D, hierarquicamente superior, permite a 41 42 Ibid, pg. 106-7, itálicos dos autores, meus negritos. Ibid, pgs. 109-10, itálico dos autores. 41 conversibilidade das moedas secundárias, reduzindo-as todas a um denominador comum. A constante oscilação em uma determinada economia entre os sistemas homogêneo e fragmentado definem o importante conceito da ambivalência da moeda, ponto crucial da teoria. Suas principais características e diferenças podem ser observadas no quadro 1: Propriedades lógicas Sistema homogêneo Sistema fragmentado Definição pela relação i/X i/j A coerção de destruição monetária que a obrigação N0 implica, aí se forma através da forma {U – M} {V – D} A moeda aparece portanto, essencialmente, em sua função de bem social vetor das transferências de propriedade O que domina é então a moeda homogênea D a moeda privada V O financiamento responde tendencialmente à norma T = infinito T=0 O sistema mediatiza a violência excessivamente insuficientemente A crise mimética nele se exprime através da inflação deflação 42 Ela conduz a uma polarização sobre um objeto s indeterminado a moeda central D Essa estrutura formaliza a tendência centralizadora a tendência à fragmentação que atesta o papel da compensação e do emprestador de última instância o papel do açambarcamento para si e do mercado financeiro privado constata-se aí uma exteriorização extrema da regra em relação às relações privadas da troca uma dependência extrema da regra, face às relações privadas de troca que provoca uma indeterminação da norma de financiamento central {D = M} da avaliação dos ativos privados {V = D} Quadro 1: Oposições que Traduzem o Dualismo da Moeda. Fonte: Aglietta & Orléan, 1990, pg. 115. “Essas estruturas, seja pelo fato de mediatizar demais, ou, contrariamente, seja pelo fato de não mediatizar suficientemente a violência aquisitiva, são ambas fortemente instáveis. Uma organização estável deve respeitar a ambivalência inerente à moeda. A estabilidade do conjunto necessita que a relação monetária apareça simultaneamente segundo sua dupla natureza de operador social e de vetor de transferências de propriedade.” 43 “Essa concepção segundo a qual uma moeda pode ter suas propriedades mais ou menos desenvolvidas é um ponto importante de nossa teoria. Num quadro mecanicista, a moeda é ou não é; para nós, ao contrário, ela está sempre em um devir, ou seja, em constante transformação. Ela é um processo de socialização que pode reconhecer diversos níveis de extensão aos quais correspondem formas genéticas qualitativamente distintas.” 44 43 44 Ibid, pg. 113. Ibid, pg. 117. 43 Finalmente, outro conceito que deve ser definido é o de modelo de crescimento. Aqui, este significa a hierarquização das relações sociais codificada pela configuração particular das instituições financeiras. “Essa codificação monetária é um momento importante, na medida em que estabiliza a dominação das relações sociais, que sustentam o modelo.” 45 Dessa forma, temos até este ponto do presente estudo esclarecido os conceitoschave que permeiam a teoria monetária elaborada por Aglietta & Orléan. Mais do que isso, diferentemente das teorias tradicionais, foi possível observar que esta tem como eixo central que o fator de maior relevância no que concerne ao sistema monetário de uma economia é o que diz respeito à questão da ambivalência da relação monetária, isto é, a forma como esse sistema concilia a lógica centralizadora e a lógica fragmentadora. Podemos assim passar para a análise das crises monetárias. 1.4 As Crises Monetárias As crises monetárias podem assumir qualquer um dos lados da ambivalência monetária, centralizadora ou fragmentadora. Ambas podem igualmente desestabilizar o equilíbrio realizado pelo sistema hierarquizado. No entanto, ao contrário do que um exame superficial poderia fazer crer, não há simetria entre esses dois processos. 45 Ibid, pg. 122. 44 “Cada uma dessas dinâmicas desestrutura de uma maneira específica a economia mercantil. Elas estão, uma em relação à outra, na mesma relação lógica que une as formas monetárias antitéticas, ao mesmo tempo semelhantes [na medida em que resultam da polarização mimética] e opostas [evoluções implosivas ou explosivas].” 46 1.4.1 A Forma Geral das Crises As diferenciações monetárias implementadas pelo sistema hierarquizado visam realizar uma sutil arbitragem entre os interesses dos devedores e os dos credores. Trata-se de uma disputa cujo objeto central é a apropriação da produção social. Os devedores querem meios de financiamento suficientemente estáveis que lhes permitam realizar seu ciclo produtivo sem obstáculos. Para eles, a obrigação N0 deve se fazer sentir prioritariamente através da obrigação de destruição das moedas privadas {V – M}. Já os credores tendem a atuar como se os títulos que possuíssem expressassem um direito imediato de apropriação da riqueza social. O respeito dessa qualidade essencial impõe que o crédito possa se transformar em moeda central. Sob esse ponto de vista, a obrigação N0 deve atuar sob sua forma {V – D}. Esta é, portanto, a tensão central que permeia o equilíbrio no sistema monetário. “O conflito se cristaliza sobre a intensidade que a obrigação N0 deve ter; isto é, sobre a definição do horizonte econômico T, que é precisamente a medida desta. Essa é uma variável estrutural que resulta da extensão das diferenciações monetárias e dos fragmentos que elas instauram. De uma maneira geral, quanto mais o sistema hierarquizado é diferenciado, tanto maior é o poder do credor, tanto mais coercitivo será o horizonte econômico.” 47 Em sua essência, a crise é o resultado do desejo exacerbado dos agentes pela riqueza. 46 47 Ibid, pg. 125. Ibid, pg. 126, itálico dos autores. 45 “O desejo é, no sistema hierarquizado, enquadrado por uma dupla convenção: a moeda considerada idêntica à riqueza e à avaliação dos ativos. Retomando as relações {D = M} e {V = D}, mostramos que unicamente a polarização mimética dá um conteúdo a essas representações mistificadoras. Fora do processo social engendrado pela mudança unânime da violência, essas relações aparecem no que elas são: irracionais, sem uma medida comum ao desejo de apropriação que elas pretendem codificar. A crise é esse momento em que os agentes econômicos, procurando se preservar dos efeitos destrutivos da violência, tentam maciçamente realizar as formas de garantia que essas relações refletem. Eles tentam realizar as transações implicadas por essas igualdades e percebem, com estupor, que elas são ilusórias.” 48 A forma como os agentes reagem no momento crítico é que caracteriza qual das formas antitéticas da crise que prevalecerá: se os sujeitos procurarem transformar a moeda D em riqueza, ter-se-á a crise de {M = D}, ou crise inflacionária; ou então, se buscarem imediatamente a quantidade de moeda que lhes dê direito à posse de um título de propriedade, ter-se-á a crise de {V = D}, ou crise deflacionária. 1.4.2 A Crise em Si A crise tem início no momento em que surge um conflito entre um grupo de credores e um de devedores, que não consegue mais se enquadrar no antigo cenário das normas estabelecidas. O banco central é então chamado para tomar partido através de uma atitude, seja ela centralizadora ou fragmentadora. Ele intervém em função dos interesses que representa. Haverá ruptura dos mecanismos auto-reguladores do sistema hierarquizado quando um dos grupos interpretar a atitude do banco central como injusta. Se os agentes que se consideram lesados tentarem fazer valer seus direitos e buscarem no sentido de receber o quantum de riqueza que lhes cabe, então é o momento que a crise adquire sua dinâmica própria. Os autores descrevem esse momento da seguinte forma: 48 Ibid, pg. 130. 46 “Ela [a crise] reaviva todas as rivalidades secundárias que impregnam as relações mercantis, todos os conflitos categoriais, locais, pessoais. Todo o espectro das atitudes humanas pode encontrar lugar para nesse contexto se exprimir, ou seja, da pusilanimidade à megalomania. Todos os comportamentos individuais, segundo formas psicológicas infinitas, se polarizam cada vez mais perigosamente sobre o desejo imediato de possuir riqueza. Essa indiferenciação está no centro da crise; seus determinantes concretos são a convergência mimética e a crise das diferenciações monetárias.” 49 A extensão da crise é indeterminada e pode ser interrompida em diferentes fases, a depender da capacidade das camadas dominantes em reafirmar sua hegemonia em torno de uma nova arbitragem socialmente conhecida. Ao longo da busca desta nova arbitragem, é possível observar oscilações entre as tendências fragmentadora e centralizadora. No entanto, a análise que se segue terá por objeto as formas puras das crises, quando elas são provocadas por um comportamento unilateral do banco central, voltado unicamente para a centralização ou para a fragmentação. 1.4.3 A Crise Inflacionária As dificuldades começam com a proliferação de moedas privadas que exprime o desenvolvimento de tensões no modelo de crescimento. Na análise de inflação pura, supõe-se que o banco central reaja a essas dificuldades monetarizando os saldos deficitários para permitir a extensão do espaço de circulação das moedas privadas. Tal estratégia centralizadora responde às exigências das camadas sociais devedoras. Em tais condições, a crise se desenvolverá na medida em que essa ação estatal não conduzir a uma reabsorção gradual das dificuldades iniciais pela extinção progressiva dos créditos. Dessa forma, até que surja alguma força 49 Ibid, pg. 136. 47 atenuante, a autoridade estatal persistirá nessa tendência inercial à emissão monetária como forma de remediar o conflito. “O recurso sistemático à emissão monetária é a maneira pela qual a antiga hegemonia tenta assegurar a perenidade de seus interesses. Assim operando, a instituição tenta obstaculizar toda transferência de propriedade, e sustentando os setores produtivos, outrora dominantes, que agora se encontram em situação precária; impedindo, por outro lado seu desmantelamento. A questão é então saber como os credores podem fazer valer seus direitos, isto é, como irá se organizar, pouco a pouco, uma tendência fracionante, que se opõe à eutanásia daquele grupo; vale dizer, como o poder monetário central será colocado em questão.” 50 Dessa forma, tem-se como efeito um processo inflacionário generalizado. Cabe dizer, não é o aumento dos preços em si que ameaça diretamente a ordem monetária. De fato, o aumento de preços pode muitas vezes ser benéfico, na medida em que estimula a produção. O que ameaça a ordem estabelecida é, na verdade, a incapacidade das autoridades centrais em controlar este aumento, em fixar um quadro regulado de sua progressão. “O perigo é a anarquia da alta dos preços, cujo combustível é a desestruturação progressiva do aparelho produtivo, outrora criado pela soberania monetária.” 51 A crise inflacionária assume então, gradualmente, proporções cada vez maiores. É através dos preços relativos que os setores de produção se enfrentam. A perda da referência da moeda como unidade de conta dá margem ao fenômeno da ilusão monetária52 e, mais tarde, à indexação53. A partir daí, assiste-se a um embaralhamento do cálculo econômico. Na ausência de uma referência social 50 Ibid, pg. 137. Ibid, pg. 138, itálico dos autores. 52 Ainda que o agente receba um aumento nominal de renda, a alta inflação implica que o poder de compra de seus ganhos seja, na realidade, reduzido. A essa falsa impressão de ganho se dá o nome de ilusão monetária. 53 Correção automática de salários e preços pela taxa de inflação. 51 48 unanimemente admitida, não se sabe mais com precisão se o que se obtém são perdas ou ganhos, e quais as suas dimensões. Na medida em que o processo inflacionário continua, a própria função da moeda como reserva de valor enfraquece. Nessa altura, a economia se encontra em uma nova fase, a saber, o retorno de FII. “A polarização unânime que excluíra a moeda D da comparação com as mercadorias profanas se desfaz. O desalento dos sujeitos decorre do fato de eles se encontrarem diante de uma reverberação infinita das relações recíprocas entre todas as mercadorias. Nessa era de suspeita e de incerteza, cada mercadoria, cada signo, aparece aos olhos dos protagonistas como sendo supostos pretendentes, capazes de satisfazer seus desejos de riqueza. Cada um busca sua própria salvação, onde se esconde esse princípio misterioso, qualquer que seja a fantasia com que ele se disfarce: o ouro, os imóveis, a terra, as fábricas, os bens líquidos, as divisas, etc.” 54 Enfim, o processo especulativo que se segue culmina na eleição/exclusão de um novo objeto (s) para exercer as funções que a antiga moeda deixou de fazer. “Nessa fase, a moeda D é totalmente destruída. A única função pela qual ela desempenhava um papel, qual seja, moeda como meio de circulação se desintegra. A polarização unânime sobre s se exprime, logicamente, como uma recusa direta feita pelos agentes econômicos em aceitar D nas trocas. É o retorno de FI: todos os sujeitos estão numa relação de absoluta simetria.” 55 O desenvolvimento dos fenômenos inflacionários expressa, em sua essência, a relutância de um modelo central a toda recomposição dos poderes econômicos. A emissão monetária é, sob este ponto de vista, o instrumento utilizado por um grupo dominante para dificultar quaisquer modificações nas relações de apropriação. 54 55 Ibid, pg. 144. Ibid, pgs. 153-4, itálicos dos autores. 49 “A inflação é, portanto, a medida exata da inadequação entre uma certa hierarquização da propriedade privada mercantil e um novo modelo de crescimento. (...) [Por outro lado,] identificar a inflação à alta dos preços ou a superemissão monetária lhe confere uma homogeneidade de estrutura que é totalmente superficial. É nessa superficialidade que geralmente se engolfou o pensamento quantitativo.” 56 1.4.4 A Crise Deflacionária “A análise da crise deflacionária não reflete a mesma questão teórica que a da crise inflacionária. A razão disso é simples. Na inflação, é a própria moeda central D que é colocada em questão. (...). Na deflação, a transcendência monetária não é jamais atingida. Assim, o sistema essencial de referências permanece estável: a obrigação N0 e a moeda, em sua função de unidade de conta, continuam a ter uma expressão desprovida de ambigüidade.” 57 Sendo assim, no caso deflacionário a crise não atingirá o nível da moeda central D ser destituída de suas funções. Mesmo assim, seus efeitos não deixam de ser catastróficos. Neste caso, o conflito entre credores e devedores se dá na medida em que os primeiros anseiam por capitalizar seus saldos positivos buscando aumentar seu controle sobre a produção. Então, os efeitos desse fenômeno atuam de forma a aumentar a coerção da norma N0, o que significa também estreitar o horizonte econômico T. Os devedores passam, nesse contexto, a buscar liquidez para pagar suas dívidas, mesmo que para isso eles tenham que reduzir seus preços, ocasionando a deflação. Ao mesmo tempo, os devedores buscarão se livrar das condições hostis da moeda privada que possuem e, dentre outros ativos, procurarão 56 Ibid, pg. 155-6. 57 Ibid, pg. 163. 50 a moeda como forma de reter riqueza. Isso causa a valorização da moeda. Se, por algum motivo, a instituição que emite a moeda central resistir a liberar mais moeda, a crise pode ir assumindo níveis cada vez piores. 1.4.5 Observação sobre as Crises Monetárias “A análise das crises mostra a falência de duas estratégias antagônicas, uma centralizadora, outra fragmentadora. Por caminhos distintos (ܶ → ∞, ܴ( → )ݐ0), ou (ܶ → 0, ܴሺݐሻ )ݎ݁ݑݍ݈ܽݑݍ, elas conduzem ao mesmo resultado, ou seja, à interrupção de toda a produção, em que todos os ativos tem então um valor zero. (...). Podem-se resumir os dois processos antitéticos da crise como a identificação progressiva do sistema hierarquizado a uma das tendências que o constituem: ao sistema homogêneo, no caso de um processo inflacionário, ao sistema fracionado no caso de um processo deflacionário.” 58 1.5 Conclusão A intenção de Michel Aglietta e André Orléan ao desenvolverem esta teoria foi de evidenciar a ambivalência da relação monetária, isto é, a idéia de que os fenômenos monetários devem ser compreendidos antes de tudo pelo seu caráter centralizado ou fragmentado. Para tanto, eles desenvolveram uma teoria coerente e que dialoga com as teorias alternativas. Agletta e Orléan acreditam com isso estar trazendo uma abordagem teórica que “reconciliaria Teoria e História” 59. Como visto, as variáveis da violência e da mimese assumem papel de destaque no que tange à dedução da moeda. Do conceito de mimese surge a relação do sujeito-objeto-rival cuja generalização evidencia a necessidade da exclusão/eleição de determinada mercadoria para exercer a função 58 59 Ibid, pg. 168. Ibid, pg. 170. 51 de moeda. A violência, por sua vez, possui papel importante neste processo na medida em que o açambarcamento (violência aquisitiva) é um resultado lógico decorrente do pressuposto do homem que deseja. Nesse contexto, a moeda, ao agir como mediadora nas relações econômicas, seria como um escape aos impulsos violentos resultantes do desejo aquisitivo. Vale lembrar que a moeda em si não elimina esta violência, mas apenas promove uma transmutação desta que permite, ao menos por certo tempo, o ordenamento das transações comerciais. Este ordenamento está, por sua vez, associado a um modelo de crescimento específico. E é no momento de crise deste modelo que tal ordenamento é questionado e a violência readquire seu caráter explícito até que uma nova ordem seja estabelecida. Estes preceitos, expostos até aqui em âmbito teórico serão testados nos próximos capítulos na esfera da História. Por ora, cabe apenas acrescentar que uma das formas pelas quais é possível observar a violência incrustada no mundo econômico cotidiano é através das condições práticas de execução da norma N0, referente à coerção de solvabilidade. Sob esta ótica, a violência poderia ser medida pela forma como os credores se relacionam com os endividados, através de taxas de juros abusivas, por exemplo, ou então pela forma como são tratados os inadimplentes. A teoria até aqui exposta constitui a primeira parte do livro A Violência da Moeda. Há ainda a segunda, em que os autores efetuam análises históricas utilizando essas teorias. No entanto, estas não serão aqui apresentadas. No lugar disso, a análise histórica que se segue retomará a questão que inspirou o presente trabalho: explicar o que significou a crise da década de 1970. 52 2 CAPÍTULO 2: O SISTEMA INTER-ESTATAL CAPITALISTA E A ANÁLISE DE “LONGOS PERÍODOS” 2.1 O Sistema Inter-Estatal Capitalista Aqui se inicia a análise do chamado Sistema Inter-Estatal Capitalista (SIC). Desde 1991, com o fim da Guerra Fria e a conseqüente absorção do bloco comunista pelo capitalista, o SIC e o Moderno Sistema Mundial passaram a representar basicamente o mesmo conceito. Isso ocorre uma vez que, a partir desta data, o mundo todo passou a compartilhar, ao menos no âmbito econômico, instituições similares. O reconhecimento destas instituições, por sua vez, é uma condição sine qua non para o bom desenvolvimento das relações econômicas. E estas são justamente as instituições que compõem o SIC. Não é de se surpreender que uma destas instituições seja a moeda. Esta é fundamental para o estabelecimento de relações econômicas entre agentes. Assim, se hoje podemos dizer que o SIC e o Moderno Sistema Mundial são conceitos correspondentes, isso é um fenômeno bastante atual. Nesse contexto, a análise que será aqui desenvolvida buscará apresentar o SIC num panorama histórico, remontando de suas origens até os dias atuais. Para tanto, cabe contextualizar um pouco sobre a literatura atual no que se refere a este assunto. Como explicitado na introdução, foi na década de 1970 que, 53 deparados com uma crise de proporções mundiais, a área de Economia Política Internacional, cadeira da área de Relações Internacionais, passou a se questionar com maior ênfase sobre as questões relacionadas à hegemonia. A principal motivação de tal redirecionamento era que vários indicadores da época, como, por exemplo, a derrota norte-americana na Guerra do Vietnã, bem como a crise do dólar, deram a entender que a hegemonia norte-americana estava em declínio e os pesquisadores passaram a buscar compreender o que poderia futuramente suceder a esta. Assim, em seus trabalhos, empreenderam análises históricas tendo o SIC como objeto. E foi nesse contexto que o SIC passou a ser o principal objeto de estudo da cadeira de Economia Política Internacional. Porém, uma crítica que podemos fazer desde já é que, tamanha deve ter sido esta crise, estes autores tomaram a decadência da hegemonia dos EUA praticamente como um pressuposto de suas teses. Dessa forma, ainda que as elaborações teóricas e históricas tenham sido frutíferas, a parte teórica apresentou fraquezas, na medida em que buscavam explicar o que ocorreria após a próxima suposta transição hegemônica, dos EUA para os próximos. Atualmente, aproximadamente quatro décadas mais tarde, podemos observar que a hegemonia norte-americana prevalece, os EUA são ainda a maior potência econômica e bélica do mundo e, mais que isso, o dólar exerce exitosamente as funções essenciais da moeda (meio de circulação, unidade de conta e reserva de valor) nas transações internacionais. Em outras palavras, nada indica que a hegemonia norte-americana esteja ameaçada. 60 60 Ainda que os EUA apresentem déficits crônicos no balanço de pagamentos, isso não apresenta qualquer ameaça, uma vez que eles compensam esses déficits através da emissão de sua moeda para o mundo. 54 Dessa forma, o presente trabalho utilizará a contribuição destes autores no que se refere à análise do SIC. Além destes, uma referência que será bastante utilizada são os artigos de José Luis Fiori, que é quem explicita esta crítica aos autores dos anos 70 e sintetiza a discussão. 2.2 Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM) A Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM) é uma escola de pensamento que pertence à área de Economia Política Internacional (EPI) 61 e que, por sua vez, pertence à área de Relações Internacionais (RI). A EPSM foi fundada na década de 1970 por Immanuel Wallerstein62 e tem outros autores como Giovanni Arrighi63 e, no Brasil, Theotonio dos Santos e André Gunder Frank64. Como o próprio nome já diz, a teoria tem como unidade de análise os chamados sistemas-mundo65. A criação deste conceito está associada à necessidade de uma unidade de análise mais ampla do que as realidades intra-nacionais. Dessa forma, seus autores se propõem a estudar não apenas o estado-nação ou a sociedade nacional, mas sim algo com um escopo um pouco mais abrangente, a saber, algo que fosse definido não pelas fronteiras nacionais propriamente ditas, mas sim pelo espaço das nações que compartilhassem entre si instituições que intermediassem suas relações, pelo menos no âmbito econômico. Em outras palavras, o sistemamundo. 61 Outros autores que se envolvem na discussão sobre a hegemonia são Charles Kindleberger, Robert Gilpin, Robert Keohane e Susan Strange (1970). 62 (1987; 1999). 63 (1997; 2001). 64 Estes dois últimos foram também expoentes da antiga Teoria da Dependência. 65 A depender da situação podem se chamar também economias-mundo ou império-mundo. Mais sobre essa questão pode ser encontrado em Costa (2007). 55 A delimitação de cada sistema-mundo está associada a fatores geográficos, na medida em que, conforme as economias nacionais se expandem, elas tendem a interagir antes – e com maior intensidade – com os seus vizinhos. Esta é uma tendência natural e que pode ser justificada pela viabilidade econômica em interagir com as nações mais próximas. Conforme a tecnologia se desenvolve, sobretudo nas áreas de transporte e comunicação, essa diferença de custos e de tempo de viagem pode se reduzir; no entanto, é provável que sempre exista. Conforme estas relações se consolidam é que surge o ambiente propício para a criação das instituições subjacentes às relações entre os países. De fato, tais relações podem se tornar mais e mais intensas de forma a atingir níveis mais elevados de aproximação, como é o caso, por exemplo, da divisão social da produção, onde cada país passa a se especializar no setor em que possuir melhores condições de produção. Enfim, é da generalização deste processo que se formam os sistemas-mundo. Os sistemas-mundo podem ser unidos por um único poder central. No entanto, o caso europeu, que é o que estudaremos com maior ênfase, nunca apresentou uma autoridade bem-sucedida na tarefa de conquistar o sistema como um todo. E não foi por falta de tentativas. Vide, por exemplo, as guerras napoleônicas. Com efeito, veremos que a existência quase constante de guerras foi um dos fatores característicos do sistema-mundo europeu. A EPSM tem influência das obras de Karl Marx e Fernand Braudel. De fato, uma das idéias centrais que a EPSM extrai destes autores é aquela da análise de longos períodos. Sobre este ponto, enquanto Marx utiliza tal abordagem para estudar a evolução entre os diferentes modos de produção (com maior ênfase na transição do feudalismo para o capitalismo), Braudel efetua uma análise histórica da realidade 56 européia entre os séculos XV e XVIII, culminando numa abordagem que permitiu a autores mais atuais analisar as tendências e padrões deste sistema-mundo. Mais tarde, já no século XXI, é que o professor Fiori66 deu novo fôlego às pesquisas dessa natureza ao fundar a Nova Economia Política do Sistema Mundial (NEPSM), nova escola de pensamento da área de Economia Política Internacional. Esta também estuda as teorias dos sistemas-mundo, embora se diferencie dos primeiros em alguns aspectos. Em primeiro lugar, Wallerstein e Arrighi estudam o capitalismo a partir de uma sucessão de expansões materiais e financeiras enquanto o ponto de partida de Fiori é a forma de expansão do capital e do poder e a convergência desses dois fenômenos. Outro ponto de divergência entre Wallerstein e Arrighi e Fiori é que, enquanto para os dois primeiros o sistema mundial é o ponto de partida e pré-existe ao capitalismo e à modernidade, para Fiori ele é mais um produto da conquista européia que um ponto de partida dado. Mais ainda, para Wallerstein e Arrighi, a necessidade de troca é que teria levado a sociedade européia ao capitalismo, enquanto que, para Fiori, esta explicação que passa apenas pelo mercado é insuficiente. Para este, predomina a idéia de que, não fosse a sua fusão com o “jogo das guerras”, o “jogo das trocas” não teria estímulo para produzir excedente67. Enfim, o presente trabalho se alinha com maior ênfase à perspectiva deste último. É claro, porém, que deve ser levada em consideração a significativa contribuição que os primeiros ofereceram ao estudo do moderno sistema mundial68. 66 (2004, 2007, 2008). Fiori, 2004, pg. 20. 68 Cabe observar que apesar de o professor Fiori ser significativamente contemplado no presente trabalho e ainda que sua obra possua diversas semelhanças com aquelas da Teoria da Regulação (aqui chamada de Escola Francesa da Regulação), isso não significa que ele tenha qualquer filiação com esta escola de pensamento. 67 57 É então sob essa ótica que podemos afirmar que o mundo em que vivemos desde 1991 é a expressão de um sistema-mundo que superou os outros existentes; este é o sistema-mundo europeu. E é a este sistema-mundo que chamaremos de Sistema Inter-Estatal Capitalista, ou SIC. 2.3 Ciclos Expansivos Ao longo de seus estudos, os teóricos dos sistemas-mundo puderam identificar a existência de certos padrões no SIC e que passaram a ser classificados como ciclos expansivos, que foram ocorrendo a partir do século XII. Mais precisamente, segundo Fiori, foram quatro os ciclos expansivos vividos pelo sistema-mundo europeu. Isso não quer dizer, necessariamente, que os períodos que não fazem parte destes ciclos não tenham sido de expansão. No entanto, estes quatro períodos foram dotados de certas características específicas. Como diz o autor: “Nesses ‘momentos históricos’ [os ciclos expansivos], houve primeiro um aumento da ‘pressão competitiva’ dentro do ‘universo’, e depois uma grande ‘explosão’ ou alargamento das suas fronteiras internas e externas. O aumento da ‘pressão competitiva’ foi provocado – quase sempre – pelo expansionismo de uma ou várias ‘potências’ líderes, e envolveu também um aumento do número e da intensidade dos conflitos, entre as outras unidades políticas e econômicas do sistema. E a ‘explosão expansiva’ que se seguiu projetou o poder destas unidades ou ‘potências’ mais competitivas para fora de si mesmas, ampliando as fronteiras do próprio ‘universo’”. 69 Enfim, estes momentos podem ser representados através da seguinte figura (2): 69 Fiori, 2008, pgs. 22-3. 58 Figura 2: Ciclos Expansivos do SIC. Elaboração própria. Com relação à formação do sistema-mundo europeu, diz Fiori: “Como é sabido, na Europa – ao contrário dos impérios asiáticos -, a desintegração do Império Romano e, depois, do império de Carlos Magno provocou uma fragmentação do poder territorial e um desaparecimento quase completo da moeda e da economia de mercado entre os séculos IX e XI. Mas a desintegração política e a atrofia econômica se reverteram nos séculos XII e XIII, quando começaram os processos de centralização do poder territorial e de mercantilização da economia, que culminaram com a formação dos ‘Estados-economias nacionais’ europeus. Essa ‘pré-história’ do ‘sistema mundial moderno’ oferece um ponto de observação privilegiado das relações iniciais entre o poder, o dinheiro e a riqueza que se tornaram a especificidade e a grande força propulsora do ‘milagre europeu’. 70 O primeiro destes períodos, o “Longo Século XIII” (I), ocorreu entre 1150 e 135071. O aumento da pressão competitiva, dentro da Europa, foi provocado pelas invasões mongóis, pelo expansionismo das Cruzadas e pela intensificação das guerras internas na Península Ibérica, no norte da França e na Itália. A explosão expansiva que se seguiu se tornou uma espécie de “Big Bang” do “universo” de que estamos falando, o momento do nascimento do primeiro sistema europeu de guerras e trocas, com suas unidades territoriais soberanas e competitivas, cada uma delas com suas moedas e tributos. 70 2007, pg. 14. Inicialmente, foi Braudel quem identificou o “longo século XVI”. Só mais tarde é que Peter Stufford, em Money and its Use in Medieval Europe, identificou o “longo século XIII”, numa clara referência ao primeiro. 71 59 O segundo período, o “Longo Século XVI” (II), ocorreu entre 1450 e 1650. Desta vez, o aumento da pressão competitiva foi provocado pelo expansionismo do Império Otomano e do Império Habsburgo e pelas guerras da Espanha com a França, os Países Baixos e a Inglaterra. É o momento em que nascem os primeiros Estados europeus, com suas economias nacionais e com uma capacidade bélica muito superior à das unidades soberanas do período anterior. Foi a explosão deste período que expandiu o sistema-mundo para muito além das fronteiras da Europa, uma vez que foi nesse período que as Américas foram colonizadas. Esta expansão foi liderada inicialmente pelas potências ibéricas, seguido pela Holanda, França e Inglaterra. O terceiro período foi o “Longo Século XIX” (III), entre 1790 e 1914. O aumento da pressão competitiva foi provocado pelo expansionismo francês e inglês dentro e fora da Europa, pelo nascimento dos estados americanos e pelo surgimento, depois de 1860, de três potências econômicas – Estados Unidos, Alemanha e Japão – que cresceram rapidamente e revolucionaram a economia capitalista, de forma a modificar significativamente o balanço de forças entre as grandes potências. A explosão expansiva que se seguiu assumiu a forma de uma corrida imperialista entre os mais poderosos, que trouxe a África e a Ásia para dentro das fronteiras coloniais do SIC. Segundo a tese de Fiori, a partir da década de 1970 (IV), a pressão competitiva passou a ser ocasionada em grande medida pela estratégia expansionista e imperial dos EUA, mas também pelo efeito da multiplicação dos Estados independentes dentro do sistema, que já são cerca de duzentos, ocorrida depois da Segunda Guerra Mundial e, finalmente, pelo crescimento vertiginoso do poder e da riqueza dos estados asiáticos, em particular da China. É a partir desta lógica, portanto, que 60 Fiori responde aos autores da EPI e se permite prever uma nova potencial “corrida imperialista” entre os países no futuro. 72 2.4 Ciclos Expansivos – Comentários Há alguns comentários a serem feitos com relação a presente leitura da expansão do SIC sob as abordagens das Teorias dos Sistemas-Mundo, mais especificamente, da EPSM e da NEPSM. Primeiramente, com relação à identificação da existência de ciclos expansivos, tratase de uma inovadora abordagem sobre o SIC com potencial de trazer novas compreensões sobre o atual mundo em que vivemos. Os resultados aqui observados são frutos de diversas gerações de pesquisadores que investigam o assunto. Cada uma delas acrescentando e corrigindo a teoria anterior, conforme as novas observações que o seu período oferece. Temos assim, tomando como referência o presente trabalho, sucessivamente, a teoria do capital de Marx, publicado na segunda metade do século XIX; os estudos de Braudel sobre a formação da civilização européia, desenvolvidos nas primeiras décadas do século XX; os trabalhos dos autores da EPSM, nos anos 70 e, finalmente, a contribuição da NEPSM, escritos já no século XXI. Em segundo lugar, o presente trabalho buscará trazer questionamentos com relação à delimitação de alguns períodos enunciados, mais especificamente dos ciclos III e IV. Estes se referem, em primeiro lugar, aos cortes selecionados para delimitar os períodos e, em segundo lugar, se há realmente a necessidade da separação deste período em dois ciclos expansivos distintos, ou se, pelo contrário, um só daria conta 72 Fiori, 2008, pgs. 23-4. 61 de expressar um significado mais preciso do ocorrido. Outra forma de colocar este segundo questionamento é: seria a ruptura entre dois ciclos expansivos distintos a melhor forma de expressar o que ocorreu no intervalo entre 1914-1970? Não poderia todo o período de 1790 aos dias atuais ser compreendido em um único ciclo? Por quê? Os capítulos seguintes se dedicarão a responder tais questões. 2.5 Considerações sobre o SIC É possível delinear certas tendências históricas que permearam o SIC ao longo dos séculos. Uma delas é a quase constante presença da guerra entre seus estados componentes. Sem embargo, pode-se afirmar seguramente que ao longo de toda a sua existência, os períodos de guerra superaram significativamente àqueles de paz73. Sobre este ponto, Fiori identifica a mesma limitação na obra de Marx do que aquela denunciada por Aglietta & Orléan e que os motivou a reformularem a teoria daquele filósofo do capitalismo. Diz Fiori: 73 “A guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar a batalha é suficientemente conhecida. Portanto, a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário.” T. Hobbes, Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, pg. 77. 62 “Marx, (...) ao falar da ‘acumulação primitiva’74, salienta a importância do ‘poder do Estado e da força concentrada e organizada da sociedade para acelerar o processo de transformação do regime feudal de produção, no regime capitalista’. Mas, ao mesmo tempo, ele afirma que a ‘biografia moderna do capital começa com o comércio e o mercado mundiais’. E isso se explica porque, de fato, a ‘violência do poder’ aparece em seu raciocínio como uma condição histórica e não como uma dimensão teórica relevante da sua teoria do capital. E, mesmo em sua teoria do modo de produção capitalista, não existe espaço relevante para os conceitos de território, de nação e de competição e luta inter-estatal. Por isso, é tão difícil compatibilizar a visão histórica de Marx sobre a ‘origem’ e a ‘acumulação primitiva’ do capital com sua dedução teórica do valor e das leis de acumulação capitalista.” 75 De fato, as análises históricas referentes ao período analisado deixam pouca margem a dúvidas de que a guerra foi um elemento presente na formação dos estados-nacionais europeus e do SIC. Fiori cita um cálculo feito por Evan Luard de que “tenha havido cerca de 1000 guerras em todo o mundo no período entre 1400 e 1984, e 120, envolvendo uma ou mais das Grandes Potências, no período entre 1495 e 1975” 76. Ao investigar o porquê das guerras terem exercido um papel tão proeminente no processo de formação do SIC, Fiori diz: 74 Marx, 1988, cap. 24. Fiori, 2007, pg. 15. 76 Fiori, 2004, pg. 24. 75 63 “Do ponto de vista lógico, portanto, não há como fugir de uma conclusão implacável: a guerra foi a força ou a energia que impeliu e alimentou a expansão territorial das primeiras ‘unidades imperiais’ de que fala Braudel. Além disto, foi ela que criou as primeiras hierarquias de poder entre as unidades que se saíram vitoriosas desta luta, dentro do território europeu. A guerra foi condição básica de sobrevivência de cada uma destas unidades e, ao mesmo tempo, foi a força destrutiva que as aproximou e unificou, integrando-as, primeiro, em várias sub-regiões e, depois, dentro de um mesmo sistema unificado de competição e poder. Por isto, toda e qualquer unidade que se inclua neste sistema e tenha pretensões de ‘não cair’, está sempre obrigada a expandir o seu poder, de forma permanente, porque a guerra é uma possibilidade constante, e um componente essencial do cálculo estratégico de todas as unidades do sistema. Para todas elas existe sempre, no horizonte, uma guerra virtual ou possível, que só pode ser protelada pela conquista e acumulação de mais poder, um caminho que leva, uma vez mais, de volta à guerra. Nesse sentido, apesar do paradoxo aparente, pode-se dizer que a necessidade de expandir o poder para conquistar a paz acaba transformando a paz na justificativa número um da própria guerra. Por outro lado, a presença contínua desta ‘guerra virtual’ atua como estímulo para a mobilização interna e permanente de recursos para a guerra, por parte de cada uma das ‘unidades imperiais’ originárias.” 77 Outra tendência amplamente levada em consideração por Fiori é o papel fundamental exercido pelo Estado em promover os interesses dos grupos capitalistas dentro de seu território. Sem embargo, a Inglaterra, que foi o primeiro país a se industrializar, foi também o primeiro país do sistema-mundo europeu a obter um Estado que “estimulasse” as relações de mercado nos moldes que correspondessem aos interesses desta classe. Em seu trabalho, Fiori destaca a importância da forma como o “jogo das trocas” passou a interagir com o “jogo das guerras”. Com efeito, ele segue a tradição que afirma que, ainda que o comércio tenha existido em todos os tempos, durante a maior parte de sua história sua tendência natural foi a de se manter no nível das necessidades imediatas. Nestes momentos, os indivíduos prezavam mais pela sua subsistência do que pela acumulação propriamente dita. Sob essa lógica, a necessidade do excedente surgiu primeiramente na forma do tributo que os 77 Ibid, pg. 27. 64 camponeses deviam oferecer aos seus senhores. Mais que isso, a generalização do tributo foi, muitas vezes, a força que estimulou a criação das moedas nacionais, uma vez que facilitava a cobrança e o transporte. Mais ainda, a força que impulsionou a necessidade da cobrança de tributos foi, justamente, o financiamento das guerras. Por fim, é sob esse contexto que podemos aceitar a afirmação de que foi a generalização das guerras que ocasionou a generalização do excedente e, mais ainda, a criação das moedas nacionais no SIC. Acredita-se ainda que o motivo que fez o sistema-mundo europeu se destacar dentre os outros existentes no período foi a forma como os territórios se articularam entre si, uma vez que eram espaços geográficos relativamente pequenos, mas altamente competitivos e viviam sob a pressão da “guerra permanente”. 78 79 2.6 Conclusão Ainda que as duas linhas de pensamento advenham de abordagens distintas, é possível observar um expressivo alinhamento da Escola Francesa da Regulação com as Teorias dos Sistemas-Mundo. Primeiramente, no que se refere à violência, fica latente em ambas a significativa presença obtida por essa variável na formação do SIC. De fato, a guerra foi virtualmente a via de regra empregada por esse sistema para resolver seus conflitos. Sem contar que, como visto no item anterior, o próprio Fiori reconhece na obra de Marx a mesma limitação identificada pelos autores da Regulação. Além disso, outra semelhança entre as duas teorias é que, assim como 78 Fiori, 2004; 2008. É daí que vem a afirmação de Braudel, segundo a qual o capitalismo não é a economia de mercado, mas é sim um “antimercado”, uma vez que ele não surge a partir das relações livres de mercado, mas sim a partir de posições monopólicas obtidas pelos Estados através das guerras. Daí vem a célebre frase: enquanto Marx afirmava que para compreender o capitalismo é necessário descer ao porão e ver como o capitalista se relaciona com o proletário, Braudel dizia para subir ao sótão e ver como o banqueiro se relaciona com o príncipe. 79 65 no caso da Escola Francesa da Regulação, a análise histórica empreendida pelos autores das Teorias dos Sistemas-Mundo não observa nenhum padrão referente ao nível ou estilo de racionalidade que fosse inerente ao comportamento humano, como prega o postulado da racionalidade nas teorias predominantes da Ciência Econômica. Já no que se refere à mimese, as Teorias dos Sistemas-Mundo não citam em nenhum momento o caráter mimético das rivalidades do período. No entanto, a relação do “jogo das guerras” com o “jogo das trocas” explicitadas por Fiori, carrega expressivamente este conceito. No período anterior à generalização do excedente, a referência para a quantidade de trabalho que o indivíduo deveria dispor na sua produção era aquela que correspondia à sua subsistência (e a de seus familiares). Após o desenvolvimento da lógica do acúmulo do excedente, essa referência se esvai de forma que se passa a não saber mais quando parar de produzir. Sabe-se apenas que quanto mais, melhor. Sob tais circunstâncias não é de se surpreender que a referência passe a ser o vizinho e superá-lo passe a ser o novo objetivo. E aí está a mimese. Essa nova referência no vizinho corrobora a teoria do casamento da lógica da troca com a lógica da guerra, como exposta pela NEPSM, bem como a da mimese, como exposta pelos regulacionistas. De fato, sob essa nova ótica do excedente, o poder passa a estar intimamente associado à riqueza uma vez que, quanto mais rico o indivíduo, ou a nação, maior será a sua capacidade para comprar armas e contratar homens, de forma que maior será a sua facilidade para subjugar o inimigo. Mais que isso, a instauração dessa lógica de busca insaciável pelo excedente prevalece até os dias de hoje. De fato, a predominância do modo de produção capitalista se caracteriza pela exploração cada vez mais intensiva da mãode-obra. Ao mesmo tempo, esta mão-de-obra se manifesta através de constantes 66 reivindicações por melhores condições de trabalho e por uma parcela maior da produção social. E a única força que é, no longo prazo, capaz de remediar esta contradição é a evolução do progresso técnico, uma vez que permite a obtenção de maior quantidade de produção a partir de uma quantidade menor de mão-de-obra. Dessa forma, o resultado não poderia ser outro senão a exaltação coletiva pelos avanços tecnológicos por serem a válvula de escape das incoerências geradas por esta lógica perversa, uma vez que permitem, ainda que temporariamente, a conciliação das partes envolvidas através do incremento do poder de compra de suas remunerações. Tem-se então que, ainda que os autores das Teorias dos Sistemas-Mundo não mencionem explicitamente a mimese, sua presença pode ser facilmente extraída da estrutura teórica desenvolvida por eles. Vale ainda lembrar que, segundo o que foi apresentado neste capítulo, a própria moeda aparece como um resultado lógico deste processo, na medida em que surge da generalização dos tributos os quais, por sua vez, surgem da generalização das guerras. Em outras palavras, o estudo das Teorias dos Sistemas-Mundo, permite-nos uma interpretação que corrobora a teoria trazida pela Escola Francesa da Regulação de que por trás do advento da moeda, jazem os conceitos de violência e de mimese. Por fim, cabe fazer uma ressalva com relação ao fato de que devemos ser cautelosos ao efetuar comparações entre o período “anterior” e “posterior” ao casamento entre o “jogo das trocas” e o “jogo das guerras”. Afinal, trata-se de um processo que ocorreu de forma lenta e gradual ao longo de séculos de existência do SIC. Se esta mudança foi aqui tratada como se houvesse ocorrido em determinado instante no tempo, foi meramente para fins de simplificação. 67 Nos capítulos seguintes, em que se analisam períodos mais recentes, veremos como os fenômenos monetários estão fortemente associados com as mudanças em outras instituições sociais associadas ao mundo econômico. Procurar-se-á observar se as análises históricas que se seguem corroboram ou não os resultados teóricos obtidos pela Escola Francesa da Regulação com relação à relevância crucial da moeda no mecanismo econômico. 68 3 CAPÍTULO 3: PRÉ-FORDISMO 3.1 Introdução As análises que seguem a partir deste ponto compreenderão escalas menores de tempo em relação ao capítulo anterior. Mais precisamente, será estudada a evolução do SIC, não desde sua “formação” em meados do século XII, mas sim em seus tempos mais atuais, tendo como referência a ascensão da Inglaterra como o seu primeiro hegemon 80 81 82 . A intenção por trás deste procedimento é, além de analisar a crise da década de 1970, responder aos questionamentos levantados no capítulo anterior, a saber: a) qual a melhor forma de representar os ciclos expansivos III e IV83, com relação às suas datas de início e de fim, e b) se não seria mais consistente a existência de apenas um período ao invés de dois. Para tanto, o procedimento que será utilizado é a subdivisão de todo o período em intervalos menores onde cada um deles poderá ser analisado separadamente, de forma a encontrar critérios que possam auxiliar na tarefa. 80 Expressão de origem grega que designa o país que detém a hegemonia do SIC. Até então o SIC sobreviveu sem que houvesse uma unidade específica que coordenasse o sistema. Em sua Teoria da Estabilidade Hegemônica, Arrighi questiona se, no século XVII, a Holanda não teria assumido tal papel. A princípio, o presente trabalho acredita que não, uma vez que a experiência holandesa não atingiu o nível de o país impor exitosamente a sua moeda como referência internacional dentro do SIC. 82 Segundo Teixeira, 1993, pg. 18, “(...) a hegemonia se constitui a partir da afirmação e generalização do padrão de produção e consumo de um dado país, de seu modelo de organização produtiva, de seus métodos de controle e gestão, do formato específico que imprime às relações entre capital e trabalho, bem como do espaço, em termos de papéis e possibilidades, que abre para as economias subordinadas.” 83 Cf. Figura 2. 81 69 Neste ponto, cabe introduzir novos conceitos trazidos pela Escola Francesa da Regulação, a saber, regime de acumulação e modo de regulação. 3.2 Escola Francesa da Regulação – Conceitos Os autores da Escola Francesa da Regulação84 se posicionam com relação à obra de Karl Marx da seguinte forma: eles reconhecem a significativa contribuição que este autor trouxe à compreensão do capitalismo, porém acreditam que, para o nível de análise dos dias atuais, a teoria apresenta certas limitações. Tais limitações, por sua vez, devem-se, em parte, ao fato de que o filósofo elaborou seu pensamento no século XIX, quando o capitalismo ainda se encontrava em seus estágios mais iniciais85 e, em parte, ao fato de o autor não ter rompido com a teoria ricardiana do valor e inserido a violência como variável primordial, de forma a deixar contradições em seu trabalho que permeariam inúmeras discussões entre os seus sucessores. Com relação a isso, diz Boyer: “A contribuição teórica que Marx propõe em O Capital é tratar o capitalismo como modo de produção e atualizar seus fundamentos e sua dinâmica de longo prazo. Os sucessores de Marx buscaram adequar a teoria aos dias de hoje em função de um duplo imperativo: em primeiro lugar, levar em conta as mudanças ocorridas ao longo do século XX; em seguida, e sobretudo, forjar instrumentos para a luta política. Com isso, as análises do capitalismo evoluíram muito, porém, à luz da história econômica do século XX, elas mostraram suas limitações e seu caráter equivocado. Aliás, os instrumentos de análise do capitalismo evoluíram muito, e alguns permitem superar algumas dificuldades encontradas por Marx.” 86 84 Cabe lembrar mais uma vez que o nome original desta escola de pensamento é Teoria da Regulação. No entanto, no presente trabalho o nome foi modificado uma vez que, dentro da Ciência Econômica, existe outra escola de pensamento de natureza distinta desta, porém, com o mesmo nome. 85 Isto é, tendo como referência a Primeira Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra na segunda metade do século XVII. 86 2009, pgs. 55-6, itálico do autor. 70 Neste contexto, os conceitos que serão definidos a seguir partem também destas limitações, mais precisamente da primeira. A limitação, neste caso, encontra-se no fato de que Marx, ao estudar o capitalismo como um modo de produção, compara-o com outros modos de produção (asiático, feudalismo, etc). Mais ainda, através do que ele chama da queda tendencial da taxa de lucro, estipulada como uma lei geral do capitalismo, o autor prevê de antemão como se daria o declínio do capitalismo que seria, por fim, substituído por novos modos de produção, a saber, socialismo e depois, comunismo. No entanto, mais de um século e meio se passou e tal mudança não foi todavia observada. Ao invés disso, o que se observou foi uma impressionante capacidade do modo de produção capitalista em, nos momentos de crise, adaptar-se às novas condições vigentes, de forma a internalizar as necessidades daqueles que emitiam as forças destrutivas. “Por exemplo, os trabalhadores podem lutar para limitar as reduções de salários durante crises industriais, depois reivindicar e conseguir uma indexação de seu salário nominal sobre os preços, ou enfim obter um princípio de participação nos ganhos de produtividade, aos quais eles próprios contribuíram. No sistema conceitual de Marx, isso quer dizer que o valor da força de trabalho não é mais determinado por necessidades sociais invariantes ou, pelo menos, fixado pelos imperativos da reprodução do assalariado.” 87 São justamente estas mudanças nas relações sociais que ocorrem ao longo do modo de produção capitalista que os conceitos de modo de regulação e regime de acumulação buscam expressar. Ainda dentro do modo de produção capitalista, as mudanças nas relações sociais são passíveis de ocorrer em diferentes níveis de profundidade. Nesse contexto, 87 Boyer, 2009, pg. 57. 71 pode-se afirmar que o conceito de regime de acumulação abrange um nível mais abstrato do que o de modo de regulação. Os diferentes níveis de mudanças podem ser ilustrados através do quadro 2: Categorias mais abstratas Relação de produção capital/trabalho Relação mercantil Modo de produção capitalista Leis de acumulação Categorias intermediárias Relação salarial Forma de concorrência Regime monetário Conjunto de formas institucionais Regime de acumulação Modo de regulação Quadro de referência dos comportamentos Variáveis observadas Evolução do salário e da produtividade Formação de preços Crédito, moeda e taxa de juros Quadro 2: Das Categorias da Teoria Marxista às Categorias da Escola Francesa da Regulação. Adaptado de Boyer, 2009, pg. 58. Dessa forma, temos que no modo de produção capitalista podem existir diversos regimes de acumulação, que expressam a estrutura das formas institucionais e, dentro de um regime de acumulação específico, podem existir múltiplos modos de regulação, que, por sua vez, expressam a mudança qualitativa de variáveis mais maleáveis do sistema. As formas institucionais referidas no quadro 2 não são menos do que cinco espécies de relações sociais de naturezas distintas. São elas: 1- forma e regime monetários; 2- forma da relação salarial; 3- forma da concorrência; 4- forma de adesão ao regime internacional e, por fim; 72 5- formas do Estado88. 3.3 Os Ciclos III e IV Voltemos então às questões levantadas no capítulo anterior. Inicialmente, faz-se necessário efetuar algumas ressalvas com relação aos cortes utilizados por Fiori (2008) para delimitar os ciclos. No que se refere ao corte inicial do ciclo III, o ano de 1790, o presente trabalho não se julga apto a fazer maiores críticas com relação a esta escolha. Uma consideração que cabe ser feita é que, se o motivo de tal escolha tiver como referência a Revolução Francesa, cujo início se deu em 1789, então ela soa coerente. O caráter de tal opção é predominantemente político e foge ao escopo da Ciência Econômica, área a qual pertence este trabalho. Dessa forma, para este estudo, o corte inicial a ser utilizado será o ano de 1870. O motivo desta escolha é que, levando em consideração a ênfase que o presente trabalho atribui à questão da moeda, foi a partir desta data que, já sob a hegemonia da Inglaterra, passou-se a adotar em âmbito mundial o padrão ouro como instituição de referência do regime monetário internacional89. De certa forma, pode–se dizer que aí foi a primeira vez na história do SIC em que o regime monetário internacional atingiu um nível tão centralizado. Em outras palavras, o nível inédito de poder obtido pela Inglaterra foi tão grande que a possibilitou interferir em âmbito mundial numa variável central do sistema, a saber, a moeda. 88 Boyer, 2009, pg. 62. É importante ressaltar que não é porque as características aqui apresentadas tenham sido predominantes nos períodos analisados que elas tenham necessariamente ocorrido de forma generalizada em todos os países ou que todos tenham adotado as medidas recomendadas pelo país hegemônico. Por exemplo, não é porque o padrão ouro foi a referência mundial de valor que todos os países aderiram a ele. No entanto, não é por isso que o padrão ouro deixou de ser a referência predominante nas últimas décadas do século XIX e início do século XX. O mesmo se pode dizer com relação ao livre comércio. 89 73 Há outro questionamento que se pode fazer desde já com relação à classificação estipulada por Fiori (2008). Este se refere à inclusão ou não nos ciclos expansivos III e IV do que ele mesmo chama de ondas de descolonização. Trata-se de dois períodos distintos em que nasceram e se multiplicaram os estados nacionais extraeuropeus. Com relação a estes, diz Fiori: “A primeira [onda de descolonização ocorreu] entre 1776 e 1825, quando se independizam as colônias americanas, e a segunda, entre 1945 e 1975, quando as colônias européias da África e da Ásia se transformam em estados nacionais autônomos, processo que se completa, depois de 1991, com a decomposição da União Soviética. Entre 1945 e 1990, foram criados cerca de 100 novos estados e, portanto, a maior parte dos estados que compõe hoje o sistema estatal mundial foi criada depois da II Guerra Mundial e foram quase todas colônias das Grandes Potências européias.” 90 Dessa forma, a questão que se levanta é: por que a primeira onda de descolonização está inserida em um ciclo expansivo e a segunda, ao menos parcialmente, não? Este ponto também diz respeito aos cortes sugeridos por Fiori e será discutido em maior detalhe mais adiante. Enfim, para os devidos fins, o presente trabalho propõe esquematizar o SIC desde a implementação do padrão libra-ouro, em âmbito inter-estatal, com as divisões segundo a figura 3 a seguir: 90 2004, pgs. 39-40. 74 Figura 3: O SIC Pós-1870. Elaboração própria. Daqui pra frente, este trabalho se destinará a justificar as divisões sugeridas na figura 3, tendo como referência as cinco formas institucionais enunciadas. Nesse contexto, o resto deste capítulo se destinará a estudar em maior detalhe o período aqui denominado como “Pré-Fordismo”. 3.4 As Estruturas Sociais do Pré-Fordismo Aqui se inicia a segunda parte do trabalho. Nesta, será elaborada, a partir dos conceitos desenvolvidos na parte anterior, uma análise histórica própria, em que se toma por referência o enquadramento institucional sugerido pelos autores da Escola Francesa da Regulação. Busca-se, a partir deste procedimento, corroborar as conclusões apreciadas até aqui com relação à primazia assumida pela moeda nas relações econômicas. E é sob esse pano de fundo que será possível trazer nova luz sobre o significado da crise mundial de 1970, proposta inicial do trabalho. 75 3.4.1 Contexto Façamos, portanto, uma pequena contextualização do período aqui analisado. Em 1815, têm-se fim as Guerras Napoleônicas. Se no âmbito político essa data simbolizou o início do período hegemônico inglês sobre o SIC, no âmbito econômico, tal vitória marcou a hegemonia do insurgente modo de produção capitalista sobre o mercantilismo do Antigo Regime. Apesar do Antigo Regime francês já conter elementos importantes do modo de produção capitalista, ele ainda não podia ser caracterizado como tal. Isso porque no sistema do Antigo Regime a lógica da política prevalecia sobre a lógica da economia e isso impossibilitava a plena operação da “economia de mercado” propriamente dita. A maior expressão desta limitação é, talvez, o pacto colonial, em que as colônias deveriam vender seus produtos a preços artificialmente baixos para as metrópoles. Estas últimas, por sua vez, conseguiam lucros através da lógica de comprar barato e vender caro. Tal sistema era viabilizado por meios militares que, por sua vez, justificavam-se pela idéia de a metrópole estar também protegendo as colônias de invasões estrangeiras. Assim, a partir deste ano o capitalismo inglês veio a se tornar o modo de produção soberano, uma vez que o exército e o Estado a ele subordinados passaram a não ter mais um adversário em nível mundial que pudesse lhe oferecer resistência. Dessa forma, os países ao redor foram se acomodando como podiam a essa nova realidade. Em outras palavras, o SIC passou a ter um novo hegemon. A partir de então, a Inglaterra vive um período de profundas transformações internas onde adéqua sua estrutura social, ainda profundamente agrária, a uma economia de mercado91. No entanto, é apenas a partir da década de 1870 que diversos países do mundo passam a lastrear as suas moedas nacionais em paridades fixas com o ouro, 91 Mais sobre as mudanças deste período e sobre as transformações inglesas que culminaram nas instituições do período analisado podem ser encontradas em Polanyi (2000). 76 de forma a viabilizar o projeto inglês de implementar o livre mercado pelo mundo. É este período, a partir da década de 1870, que nos interessa por ser o momento anterior à lógica fordista, que passaria a prevalecer mais tarde. 3.4.2 Forma e Regime Monetários: O Padrão Ouro No que se refere à forma e regime monetários, a análise de Frieden (2008) é bastante esclarecedora: “o padrão ouro se tornou o princípio organizador do capitalismo global. [...]. O Reino Unido era praticamente o único país monometálico. A nação se desviou do padrão ouro, temporariamente, apenas uma vez após as Guerras Napoleônicas. Quase todos os outros Estados eram bimetálicos e utilizavam tanto o ouro quanto a prata. Centenas de anos de utilização mista de ouro e prata chegaram abruptamente ao fim na década de 1870. [...] o status da Grã-Bretanha como líder do mercado global atraiu outros países para a utilização do 92 mesmo sistema monetário.” Quando o governo de uma nação adotava o padrão ouro, comprometia-se a trocar a sua moeda por ouro a uma taxa pré-estabelecida. A moeda do país se tornava equivalente ao ouro e podia ser trocada a uma taxa fixa pela de qualquer outro Estado que também tivesse adotado o sistema. E, com a situação na qual as principais moedas do planeta podiam ser diretamente convertidas em ouro a taxas fixas, o mundo industrial compartilhava basicamente de uma moeda internacional. “Sob o padrão ouro, tais taxas para trocas entre a libra e o marco, o franco e o dólar e outras moedas, eram as mesmas por tanto tempo que, como é dito, nas escolas as crianças as sabiam de cor, por serem tão estáveis quanto a tabuada” 93 . A previsibilidade do padrão ouro facilitou o comércio, os empréstimos, os investimentos, a migração e os pagamentos internacionais. Banqueiros e investidores se sentiam seguros com as dívidas sendo pagas em quantidades 92 93 Frieden, 2008, pg. 22. Ibid, pg. 23. 77 equivalentes de ouro e com a obtenção de lucros nas moedas correntes fixadas no metal. No entanto, se por um lado o padrão ouro proporcionava a vantagem de oferecer ao comércio mundial uma referência única de valor, por outro, as contrapartidas referentes às dificuldades de sua manutenção eram imensas e repercutiam com força nas outras instituições da economia. A forma da relação salarial, por exemplo, mostrava-se muitas vezes subordinada a questões referentes às imposições do padrão ouro. O padrão ouro significava integridade financeira por exigir dos governos políticas econômicas que se ajustassem às pressões da economia global. A adesão ao ouro forçava as economias nacionais ao ajuste quando elas gastavam além do que podiam. Se uma nação abrisse um déficit ao importar mais do que exportar, teria que pagar a diferença com o dinheiro – ou seja, com o ouro – do país. Com a saída do ouro, a oferta interna de dinheiro diminuiria, assim como o poder de compra da nação. Isso reduziria a demanda e dificultaria as vendas dos produtores nacionais, que precisariam reduzir os preços e forçar uma queda nos salários. Dessa forma, pelo próprio funcionamento do padrão ouro, o país que gastasse mais do que recebesse estaria fadado a reduzir os preços e salários, a gastar menos e a produzir de forma mais barata. Somente após a queda nos salários e preços é que o sistema reagiria. Isso porque 1- os estrangeiros, ao se depararem com uma situação mais favorável no seu vizinho, passariam a comprar mais produtos dele e 2- os locais 78 passariam a comprar menos bens de fora. Assim, o montante importado diminuiria e as exportações cresceriam, permitindo que a situação inicial se restaurasse94. O padrão ouro agia como um regulador, impondo restrições aos salários e aos preços. Qualquer país no padrão ouro que gastasse mais do que ganhasse (ou pudesse pegar emprestado) seria forçado, pela forma como o sistema operava, a inverter esse quadro; reduzir gastos e salários, de forma a retomar o equilíbrio. Os governos que se comprometessem com o padrão ouro estavam automaticamente privilegiando os laços internacionais em detrimento das necessidades internas, impondo austeridade e cortes de salários a uma população relutante. Isso fez do padrão ouro o teste de fogo dos investidores internacionais: o país disposto a honrar seus compromissos internacionais em detrimento das pressões políticas internas possuía mais credibilidade para receber os investimentos95. Vale ressaltar que não foram todos os países que aderiram ao padrão ouro. Cabia a cada país decidir se estaria disposto a se submeter às rigorosas regras subjacentes à sua implementação. O país que aceitasse os termos seria integrado ao sistema econômico internacional e receberia uma série de benefícios, como, por exemplo, ajuda externa, caso as reservas de ouro se esgotassem. Era como se fosse um clube de cavalheiros, o país que aderisse se tornava membro. Mesmo assim, vários países decidiam não aderir ao sistema, ou então, aderiam, mas por um período relativamente curto. Um dos motivos para a relutância de certos países em aderir ao padrão era que a perda da liberdade em promover flutuações cambiais poderia tornar as exportações demasiado expostas aos preços internacionais, ao passo que 94 Esse mecanismo de ajuste foi elaborado por David Hume e é conhecido como “modelo de fluxo de moedas metálicas”. 95 Ibid, pgs. 34-5. 79 o país que não aderisse poderia apenas efetuar uma desvalorização de sua moeda para fins de atenuar tais efeitos96. 3.4.3 Forma da Relação Salarial: Salários Flexíveis A falta de articulação por parte dos operários era uma das condições do padrão ouro e do sistema clássico liberal, predominante na época. Isso porque a necessidade de reduzir salários nos momentos de desajustes externos era imprescindível para a manutenção do lastro com o metal. A classe operária, por sua vez, ainda que no início do período fosse desorganizada e sem voz política significativa, foi crescendo e se sindicalizando rapidamente, de forma a conseguir participação cada vez maior nos cenários políticos de seus países. Esse movimento se mostrava uma verdadeira ameaça, uma vez que as demandas trabalhistas se chocavam freqüentemente com os pilares do sistema clássico liberal de salários flexíveis e governo mínimo. E, de fato, o aumento de força da classe operária foi um fator significativo, no sentido de esgotar o sistema. O direito a voto por parte dos trabalhadores do sexo masculino no final do séc. XIX e início do séc. XX influenciou o processo. O resultante crescimento dos partidos socialistas, no início do séc. XX, teria sido inimaginável uma geração antes, tanto para capitalistas quanto para trabalhadores. Com o crescimento da população operária nos países industriais, as suas necessidades pareciam cada vez mais incompatíveis no que dizia respeito às características mais importantes das economias abertas e ainda grandemente agrárias do fim do séc. XIX e início do séc. XX, que se encontrava despreparada 96 Ibid, pg. 45. 80 para lidar com um contingente tão grande de indivíduos da classe assalariada. E o mais relevante era que os trabalhadores precisavam de um escudo contra o desemprego. Os produtores agrícolas, outro grande segmento da população, podiam se recolher em suas terras, cultivos e vilarejos em tempos difíceis; podiam produzir o suficiente para comer ou contar com a ajuda de familiares ou vizinhos caso o problema fosse especificamente com suas fazendas. Os trabalhadores das grandes cidades, por sua vez, na falta de emprego, não tinham propriedade e nenhuma forma de produzir o básico para a subsistência, e o caráter impessoal da sociedade urbana reduzia a possibilidade de ajuda por parte dos outros trabalhadores. Tudo o que tinham era uma ajuda mínima, de alívio à pobreza, oferecida por instituições de caridade privadas, ou os vestígios da assistência levada à frente por governos medievais, que era concedida aos muito pobres, às viúvas e aos órfãos97. Ou seja, o auxílio aos desempregados era escasso e limitado. Não havia na época instituições sólidas destinadas a esse fim. Quanto à posição da classe empresarial, apesar da política de auxílio às classes mais pobres ter um lado benéfico, na medida em que trazia estabilidade para o mercado de trabalho local e diminuía as inquietações sociais, ela era muitas vezes combatida, uma vez que a ausência dos benefícios fazia com que os trabalhadores tivessem poucas opções além de aceitar salários reduzidos em tempos difíceis, já que a alternativa seria a fome. De fato, uma vez que os trabalhadores e os programas sociais limitavam o poder das empresas em definir salários, o descontentamento dos capitalistas se manifestava. Quanto mais controle os trabalhadores tinham sobre suas vidas, menos seus salários e condições de trabalho 97 Para citar um exemplo que mostre que houve de fato auxílios por parte do Estado às classes mais pobres em períodos anteriores à crise de 1929, temos a experiência de Speenhamland, descrita por Polanyi (2000), que ocorreu entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do XIX. 81 podiam ser definidos ao bel-prazer da indústria. Os sindicatos tinham o objetivo de fornecer aos trabalhadores ganhos garantidos, o que significa uma redução na flexibilidade dos salários e nas horas trabalhadas98. A sindicalização da classe operária e as ações políticas para reduzir a capacidade do mercado de definir os salários livremente causaram impacto profundo no capitalismo global. Isso ia diretamente de encontro à flexibilidade dos salários, aspecto essencial para o funcionamento da maioria das economias nacionais e para a relação delas com a economia internacional, mediada, por sua vez, pelo padrão ouro. Dentre os que mostravam oposição ao padrão ouro estavam os produtores agrícolas99 e os mineradores que produziam para o mercado mundial. Isso ocorria porque um país que estava sobre o padrão ouro não podia utilizar a desvalorização monetária para proteger os exportadores das quedas de preço de seus produtos. Já aqueles que competiam com os importados tinham uma alternativa fácil: eles poderiam se beneficiar das tarifas alfandegárias para que os bens estrangeiros ficassem menos competitivos100. 3.4.4 Forma da Concorrência: Concentração de Capital; Formação de Trustes, Holdings, etc; corrida imperialista. O período pré-fordista foi marcado por uma forte intensificação da concorrência. No entanto, esta intensificação não foi necessariamente acompanhada de um aumento da quantidade de empresas em cada setor. Esse resultado pode ser considerado um 98 Ibid, pgs. 134-7. Era o caso, por exemplo, dos produtores de café no Brasil. 100 Ibid, pg. 129. 99 82 tanto quanto inesperado. Afinal, dada a grande concentração de capital que se observou no período, poder-se-ia esperar que a diminuição do número de empresas reduzisse o grau de concorrência entre elas. Mas não foi bem isso o que aconteceu. Anteriormente, na economia acentuadamente agrícola, manufatureira e de pequena escala do início do século XIX, o mercado possuía um nível de integração relativamente pouco desenvolvido; consistia basicamente de pequenos mercados locais, cada qual isolado dos demais pelo alto custo dos transportes e supridos pelos produtores locais. As grandes inovações tecnológicas dos períodos anteriores, bem como a implementação dessas tecnologias na esfera produtiva, possibilitaram grande aumento das escalas de produção. Somados a isto, tem-se também evoluções nas formas de gerenciamento da moderna empresa capitalista. Com o desenvolvimento da produção em larga escala, as funções de planejamento se converteram num terreno de assalariados técnicos em produção, de administradores fabris do escalão subalterno. O que se requeria agora era o toque mestre da estratégia industrial orientadora, para fazer ou desfazer alianças, escolher ângulos propícios para o crescimento ou prever o desenrolar de toda a operação. Cada vez mais os grandes empresários se integravam na estratégia das finanças, da concorrência, das vendas, em vez de se voltarem apenas para as frias técnicas da produção. À medida que os canais e as ferrovias penetravam pelas entranhas do mundo e as novas técnicas industriais aumentavam largamente a produção, o caráter provinciano do sistema de mercado se transformou. Os mercados nacionais se mostravam cada vez mais unidos e interligados e os minúsculos semi-monopólios 83 dos fornecedores locais foram invadidos por produtos provindos de grandes fábricas de cidades distantes. E não apenas as novas técnicas de produção davam novo fôlego à produção, mas o ímpeto empreendedor dos homens de negócio em explorar qualquer nova possibilidade de expansão de suas empresas também contribuía com as significativas mudanças na estrutura vigente. O resultado foi uma torrente fenomenal de produção, seguida de profunda transformação da natureza da concorrência. A concorrência se tornara não só mais extensa como também mais dispendiosa. À proporção que cresciam o tamanho da fábrica e a complexidade do equipamento, também aumentavam as despesas fixas da empresa comercial – os juros dos capitais emprestados, a depreciação dos bens de capital, o custo do pessoal administrativo, a renda da terra e as despesas gerais101. Esses custos tendiam a se tornar razoavelmente constantes, a despeito de as vendas serem altas ou não. Diversamente do pagamento de salários à classe trabalhadora, que caía quando se dispensava operários, não havia nenhum modo fácil de reduzir o fluxo contínuo do pagamento dessas despesas fixas. O resultado foi que quanto maior o negócio tanto mais vulnerável se tornara sua condição econômica quando a concorrência intervinha em suas vendas. A efervescência da época – mais o crescimento constante de uma tecnologia que demandava investimentos maciços – foi tornando a concorrência gradativamente mais drástica. Tornando-se gigantes, os negócios começaram a terçar armas, ferrovia contra ferrovia, siderúrgica contra siderúrgica, cada qual desejoso de assegurar a cobertura de suas despesas fixas ganhando para si o máximo que o 101 Esse processo é o que os marxistas chamam de aumento da composição orgânica do capital. (Franco Júnior & Chacon, 1986, pg. 171). 84 mercado pudesse proporcionar-lhe. O resultado final foi o crescimento constante da concorrência encarniçada entre os grandes produtores, em substituição à concorrência local, restrita do mundo de pequenos negócios e de mercados estreitos102. Sob tais circunstâncias, os grandes empresários foram pouco a pouco compreendendo que seria melhor para eles se simplesmente parassem de competir de forma tão selvagem e encontrassem alguma outra saída. Uma das saídas descobertas foi o truste. “Em 1879, Samuel Dodd, advogado da nova Standard Oil Company, teve a brilhante idéia de regular a concorrência suicida que habitualmente arruinava a indústria petrolífera. Nasceu-lhe a idéia da custódia (truste). Os acionistas das companhias que desejassem pertencer ao Standard Oil Trust deviam entregar suas ações ao conselho diretor do novo truste. Dessa forma, desistiriam de exercer o controle de suas companhias, mas receberiam em troca ‘certificados de truste’ (custódia de bens) que lhes davam o direito aos mesmos dividendos de lucros que suas ações lhes proporcionavam. Dessa forma, os diretores da Standard Oil assumiram o controle de todas as companhias associadas, enquanto os antigos acionistas 103 participavam inteiramente dos lucros.” Com o passar dos anos, alguns trustes foram ganhando tanto porte que passaram a ter quantidade de trabalhadores e faturamento similares aos seus governos. Nesse contexto, os países passaram a promulgar leis regulando, limitando e, muitas vezes, até dissolvendo os trustes104. Frente a essa situação, outros artifícios passaram a ser empregados pelos empresários, como, por exemplo, a fusão, isto é, a consolidação de duas companhias para formarem uma terceira mais forte. Outro modo eficiente de limitar a concorrência foi o holding, que consiste em uma companhia central adquirir a parte majoritária das ações de outras e, assim, ter o controle sobre suas empresas subsidiárias. 102 Heilbroner, 1962, pgs. 148-150. Ibid, pg. 151. 104 Nos EUA, o Sherman Antitrust Act foi promulgado em 1890. 103 85 No âmbito inter-estatal, cabe apenas acrescentar que a corrida imperialista promovida pelas potências européias buscava não apenas o acesso a novas fontes de matérias-primas, mas também às populações das novas áreas colonizadas. Estas populações eram consumidores potenciais da produção das empresas dos países centrais. Estas empresas dos países centrais, por sua, vez, frente aos enormes aumentos na escala de produção ocasionados pelas inovações tanto na parte de gestão como na parte das técnicas de produção em si, necessitavam mais do que nunca de novos mercados de consumo para escoar suas mercadorias. Dessa forma, é correto afirmar que, mesmo depois de superadas as “ineficiências de mercado” que era a prática do pacto colonial, o SIC ainda se utilizava amplamente da atuação de seus Estados, e muitas vezes através da violência, para impor suas práticas de mercado. Com relação à violência exercida pelas grandes potências européias no século XIX, diz Oliveira (2003, pg. 191): “Nas áreas de antigas sociedades que apresentavam certo nível de complexidade, como Índia, China, Egito, etc., a missão civilizatória do capital foi exercida de forma agudamente contraditória. As bárbaras formas de dominação locais foram sendo substituídas por novas formas de organização da sociedade por meio de práticas brutais, numa flagrante violação dos próprios primórdios do liberalismo, indicando assim que o capital não hesita em abandonar sua ideologia quando seus interesses estão em jogo.” Outro exemplo da violência exercida pelos interesses do capital no período da hegemonia britânica são os chamados domínios brancos – Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Nessas regiões, as atrasadas e rarefeitas populações indígenas se mostraram incapazes de impedir os avanços da colonização realizada por emigrantes europeus. 86 “A inexistência de expressivas resistências externas permitiu que os colonizadores rapidamente exterminassem os nativos, abrindo assim um verdadeiro vazio social no qual a livre concorrência podia moldar o surgimento de novas sociedades. Dessa forma, emigrantes europeus e capitais ingleses puderam organizar, por meio de pequenas propriedades ou do trabalho assalariado, uma estrutura produtiva que desde suas origens estava voltada para o comércio exterior. Pujantes economias capitalistas exportadoras de matérias-primas e alimentos foram sendo conformadas, e conseqüentemente também nesses domínios a política livre-cambista foi adotada.” 105 3.4.5 Forma de Adesão ao Regime Internacional: Livre Comércio e Grande Fluxo Internacional de Indivíduos e Capital O livre comércio mundial liderado pela Grã-Bretanha surgiu a partir da superação da forma anterior vigente, a saber, o mercantilismo. Os monarcas absolutistas que governaram a Europa e o mundo antes de 1800 se preocupavam com as alianças políticas, a extração colonial e o tamanho e o poder de seus Estados nacionais. Eles controlavam suas economias como parte das vicissitudes das políticas dinásticas, manipulando o comércio por meios militares. A riqueza era vista, na época, predominantemente como um meio para se obter poder. De fato, como exposto anteriormente, a lógica mercantilista não priorizava as relações de livre mercado como forma de alocação de recursos, mas sim as relações de poder. O pacto colonial vigente implicava que as colônias deveriam vender sua produção à metrópole por um preço abaixo do preço de mercado. Como contrapartida, a metrópole utilizava parte das riquezas acumuladas para proteger os subjugados. A revolução industrial inglesa trouxe à tona um sistema muito mais produtivo que o mercantilista. A partir de meados do séc. XVIII, empreendedores britânicos 105 Oliveira, 2003, pg. 191. 87 passaram a introduzir inovações tecnológicas na produção, contratar uma grande quantidade de empregados em fábricas e, finalmente, produzir manufaturados a preços mais baratos que a concorrência em qualquer mercado. Os interesses econômicos criados pela Revolução Industrial inglesa consideravam o mercantilismo irrelevante ou danoso. Contrariamente ao mercantilismo, era do interesse dos fabricantes britânicos eliminar as barreiras comerciais do país. Permitir que estrangeiros vendessem produtos à Grã-Bretanha prometia vários aspectos positivos. Os fabricantes da nação poderiam reduzir seus custos de forma direta, comprando matérias-primas a preços mais baixos, e indireta, uma vez que a importação de comida barata permitia que os donos das fábricas pagassem salários menores sem que houvesse uma redução no padrão de vida dos empregados. Ao mesmo tempo, se os estrangeiros ganhassem mais ao vender para a Grã-Bretanha, teriam condições de comprar mais produtos do país. Os industriais britânicos também se deram conta de que se os estrangeiros pudessem comprar todos os produtos manufaturados que precisassem dos baratos produtores britânicos, aqueles teriam menos necessidade de desenvolver uma indústria própria. Por esses motivos, as classes e as regiões fabris da Grã-Bretanha desenvolveram uma antipatia pelo mercantilismo e um forte desejo pelo livre comércio. À medida que a City de Londres se tornava o centro financeiro mundial, ela adicionava sua influência a outros interessados no livre comércio. Os banqueiros internacionais da Grã-Bretanha tinham um forte motivo para abrir os mercados do país aos estrangeiros. Afinal, os estrangeiros eram seus clientes e o acesso deles ao próspero mercado britânico tornaria mais fácil o pagamento de suas dívidas com Londres. 88 O ápice da discussão sobre o livre comércio no âmbito interno à Grã-Bretanha se deu através das chamadas Corn Laws, taxas impostas à importação de grãos. Tanto os empresários quanto a comunidade financeira defendiam a abolição destas taxas. Os fazendeiros, no entanto, estavam ávidos para manter as restrições à importação de produtos agrícolas, afinal, eram eles que se beneficiavam com tais leis. Eles recorriam aos argumentos da necessidade de auto-suficiência na produção de alimentos, da importância da produção agrícola para o estilo de vida britânico e dos dolorosos ajustes que a enxurrada de grãos imporia. Em 1846, as Corn Laws foram abolidas e, junto com elas, foram-se também os últimos grandes resquícios da prática mercantilista na Grã-Bretanha, bem como as últimas barreiras ao livre comércio que passaria a vigorar no mundo. Quando a Grã-Bretanha, a economia mais importante do mundo, descartou o mercantilismo, os outros países se depararam com novas opções. Os problemas políticos da era mercantil – alianças militares e monopólios – abriram caminho para os grandes debates do século XIX sobre como, e se, os países deveriam participar do mercado global. As décadas seguintes à revogação das Corn Laws foram de crescimento intenso do comércio mundial, sobretudo nos países desenvolvidos106. “Com as novas tecnologias nos meios de transporte (até o fim do séc. XIX, telégrafos, telefones, navios a vapor e ferrovias substituíram cavalos, pombos, mensageiros e barcos a vela) e o triunfo do livre comércio britânico, o mundo dos mercantilismos militarizados nacionais abriu espaço para um mercado verdadeiramente internacional. A velha ordem, defendida com armas em Waterloo, terminou e foi substituída por um novo capitalismo global. A força dominante passou a ser o mercado, não o monarca.” 107 106 107 Frieden, 2008, pgs. 18-20. Ibid, pg. 21. 89 O processo de dispersão do livre comércio pelo mundo foi se dando de forma crescente e gradual. Os produtores e credores favoráveis ao livre comércio encontraram aliados entre os que exportavam matérias-primas e solicitavam empréstimos nos países em desenvolvimento. Os industrialistas e investidores britânicos estabeleceram laços econômicos com os produtores agrícolas brasileiros e egípcios, banqueiros norte-americanos e mineradores australianos. Tais laços eram com freqüência culturais e sociais, como podia ser demonstrado pela difusão da língua inglesa, do futebol, etc. Cada uma das nações que se lançava no comércio mundial logo formava grupos de interesse poderosos, geralmente aliados a grupos influentes no exterior, que faziam pressão para a consolidação da integração comercial. A Grã-Bretanha era o centro da rede de livre comércio sendo, junto com o seu império, responsável por cerca de um terço de todo o comércio internacional. As políticas britânicas eram comprometidas incessantemente com a integração global108. O livre comércio e o padrão ouro estavam intimamente relacionados um com o outro. De fato, a função exercida pelo padrão ouro de ser a referência monetária mundial, ainda que não fosse imprescindível para o comércio internacional, era bastante conveniente, uma vez que facilitava o acesso a mercados, capital e investimentos estrangeiros. É claro que havia a contrapartida de tais vantagens. Os países que adotassem o padrão ouro sofriam as intensas restrições nas opções de políticas governamentais que se deparavam. Cabia a cada Estado decidir se valia a pena se aventurar ou não neste sistema. Não é de se surpreender, portanto, quanto aos 108 Ibid, pg. 63. 90 acirrados enfrentamentos políticos que ocorreram nos diferentes países ao redor dessas questões109. Com relação ao fluxo migratório, houve grande movimentação de trabalhadores entre países no período analisado. Não havia, contudo, um sistema ou uma política global que se aplicasse a todos os países, como ocorria em relação ao comércio e ao capital. Também não havia interesse, tanto por parte dos países que enviava migrantes quanto por parte daqueles que os recebia, em restringir essa movimentação. Os trabalhadores se locomoviam basicamente dos países que pagavam menores salários para aqueles que pagavam maiores. O fluxo de capital também foi intenso e estimulado. De fato, a Grã-Bretanha se consolidou como a “oficina do mundo” ao promover enormes quantias de investimentos internacionais para a construção de ferrovias no exterior110. 3.4.6 Formas do Estado: Estado Mínimo Antes de 1914, salvo algumas exceções, predominou nos países economicamente importantes que se deveria privilegiar os laços econômicos com o exterior em detrimento das questões domésticas. Os compromissos com a economia internacional eram tarefas mais importantes do que o desemprego na indústria ou a aflição dos agricultores. Poucos líderes políticos nestes países acreditavam que os governos deviam fazer algo pelas empresas nacionais, pela falta de trabalho ou pela pobreza. De fato, muitos dos defensores ortodoxos do sistema argumentavam que uma intervenção substancial do Estado nos mercados interferiria no curso natural do padrão ouro. Acreditavam que seguro-desemprego, ajuda a agricultores em apuros 109 110 Ibid, pg. 61. Ibid, pgs. 66-70. 91 e programas sociais extensivos aos pobres impediriam os ajustes exigidos pelo padrão ouro. Tais programas, segundo estes, evitariam que os salários e preços caíssem, como era necessário para manter a economia em equilíbrio. No entanto, os governos eram necessários, uma vez que controlavam as relações financeiras, a moeda e o comércio entre as nações. Os governos também aplicavam o direito de propriedade, interna e externamente, o que era uma forma de garantir aos seus cidadãos os benefícios da economia global. De modo semelhante, as classes governantes, tanto das nações pobres quanto das industrializadas, fizeram o possível para provar sua integridade econômica, mas pouco contribuíram para o gerenciamento da economia interna111. 3.5 Conclusão A experiência do Pré-Fordismo corrobora os resultados obtidos pela Escola Francesa da Regulação com relação à relevância da moeda. De fato, além da instituição relativa à forma e regime monetário (item 3.4.2), que trata justamente das questões relativas à moeda, todas as outras estavam associadas às condições da moeda vigentes. À exceção das instituições associadas às formas de concorrência (item 3.4.4), as outras três formas institucionais (além da própria forma e regime monetários, item 3.4.2) se encontravam firmemente subordinadas aos imperativos das condições monetárias: no que se refere às formas salariais (item 3.4.3), as relações trabalhistas exigiam salários flexíveis que variavam conforme as reservas domésticas de ouro; com relação à forma de adesão ao regime internacional (item 3.4.5), a significativa intensificação das relações comerciais observada no período 111 Ibid, pg. 46. 92 se deveu em grande medida à fixação das taxas de conversão das moedas nacionais com o ouro; já no que diz respeito às formas de Estado (item 3.4.6), o lastro com o ouro implicava a necessidade de privilegiar os laços econômicos externos em detrimento das questões internas, além de inviabilizar o manuseio de certos instrumentos de política monetária, como a taxa de juros de títulos públicos e, é claro, a taxa de câmbio. Já com relação à instituição referente às formas de concorrência, a relação com os imperativos do ouro se dava de modo um pouco mais complexo. De fato, não se pode afirmar que esta instituição estava subordinada às exigências do ouro, como as outras três. No entanto, havia uma relação íntima entre este item e aquele da forma e regime monetários. Isso porque se a condição da concorrência viveu uma grande intensificação, esta se deu devido a um abrupto aumento das oportunidades econômicas, agora em âmbito mundial. E este aumento das oportunidades econômicas é que estava associado com as condições monetárias por via da integração mundial. Em outras palavras, era a intensa integração mundial a grande responsável pelo aumento das oportunidades econômicas e esta integração resultava, por sua vez, das condições exercidas pelas regras do padrão ouro. Temos assim a grande influência exercida pela instituição monetária sobre as outras instituições sociais do período. 93 4 CAPÍTULO 4: O SIC EM TEMPOS MODERNOS 4.1 O Entreguerras O período entre as duas grandes Guerras Mundiais (1914-1945), elas inclusas, não é passível de uma análise das formas institucionais como no período anterior. Isso porque neste intervalo não se observa características estáveis próprias do período, mas sim um quadro de confusão generalizada marcada pela transição lenta e gradual, ainda que nada ordenada, de um regime de acumulação para outro, mais precisamente, do regime de acumulação pré-fordista para o fordista. Com relação a este ponto, diz Teixeira: “Como se sabe, os anos que transcorreram entre as duas grandes guerras foram marcados pela incapacidade da Inglaterra de restabelecer sua hegemonia e, em conseqüência, restaurar a ordem econômica internacional que prevalecera até as vésperas do conflito. A libra – e os bancos ingleses – perdem seu poder de ordenamento sobre os fluxos de capital e comércio e, em decorrência, a própria economia mundial não consegue recobrar o dinamismo que havia alcançado no período anterior, quando era clara e evidente a hegemonia inglesa. A Europa não conseguiu produzir transformações estruturais suficientes para garantir seu dinamismo, e os Estados Unidos, apesar de já serem a maior potência industrial e de terem experimentado um importante processo de mudança estrutural, ainda eram uma economia excessivamente introvertida, de qualquer ponto de vista.” 112 112 1993, pgs. 33-4. 94 Charles Kindleberger (1973), ao analisar o período em um dos textos que inauguram a EPI, conclui que o motivo de tamanha desordem ocorre devido à ausência de um país que exerça o papel de hegemon e organize a estrutura do sistema mundial. De fato, após a Primeira Guerra Mundial (I G. M.), a Inglaterra, ainda que vencedora, encontrava-se não apenas abalada pelas duras perdas de guerra, mas também fortemente endividada em decorrência de vultosos empréstimos que tomaram dos EUA para financiar seus custos bélicos. Os EUA, por sua vez, desde fins do século XIX já possuíam a economia mais próspera. Além disso, seus prejuízos de guerra foram consideravelmente menores e, ainda por cima, eram agora credores dos países europeus. No entanto, não estavam com a disposição para assumir a batuta do SIC, devido aos receios de que defender posições internacionalistas ao invés de protecionistas pudesse comprometer a economia do país. Assim, a lacuna remanescente contribuiu para a desordem observada no período. A Inglaterra ainda buscou exercer o papel de hegemon e restabelecer o padrão libraouro à mesma cotação do pré-guerra, mas a idéia se mostrou um fiasco113. O principal motivo do fracasso é que a força de trabalho se articulava agora através de sindicatos e não estava mais disposta a tolerar reduções salariais quando a situação externa assim exigisse. Mais que isso, a possibilidade de voto por parte desta classe deu margem a mobilizações políticas das mais diversas e extremas, do socialismo ao fascismo. Com relação ao regime de acumulação pré-fordista, suas possibilidades de expansão se encontravam exauridas. Isso porque a grande expansão do período anterior resultou que, após a I G. M., o mundo se encontrasse virtualmente por 113 Um bom trabalho sobre as condições do padrão ouro no período entre guerras pode ser encontrado em Eichengreen (2000), cap. 3. 95 completo integrado ao SIC, sendo Ásia, África e Oceania compostas predominantemente de colônias pertencentes aos países europeus, principalmente Inglaterra e França. Ou seja, não havia mais possibilidade de expansão para o escoamento das mercadorias produzidas pelas empresas européias. Nesse contexto, a expansão do lucro capitalista, principal força propulsora da expansão do SIC (ao menos em tempos de paz) estava ameaçada. A solução para tal problemática foi trazida justamente por Henry Ford, empresário norte-americano da indústria automobilística. A maior invenção atribuída a Ford é a linha de montagem, organização produtiva que viabilizava enormes ganhos de produtividade. No entanto, o que poucos autores ressaltam e que, esta sim, foi a verdadeira inovação de Ford, foi que o empresário buscou administrar um esquema onde seus próprios empregados pudessem obter um exemplar do que produziam. E foi esta a inovação que satisfez as necessidades de expansão do SIC a partir daquele momento, de forma a dar origem a todo um novo regime de acumulação. Em outras palavras, a crise se resolveu na medida em que o crescimento da produção deixou de se focar no contingente populacional dos novos mercados coloniais para se dirigir à insurgente população assalariada que, cada vez mais, reivindicava arduamente por melhores condições de vida. De fato, este novo estilo de produção se conciliou com a crescente articulação dos trabalhadores em sindicatos que agora votavam e lutavam por melhores condições de trabalho e por maior participação na produção social. Dessa forma, a inovação trazida por Ford foi a implementação prática que trouxe novo fôlego à expansão do capitalismo na medida em que ofereceu uma alternativa à expansão do capital, bem como uma solução para a questão da resistência da classe assalariada. E é esta a razão principal pela qual é adequado atribuir o nome de Fordismo ao regime de 96 acumulação que se seguiu à Segunda Guerra Mundial (II G. M.) e que perdura até os dias atuais. 114 Outra observação que cabe ser feita é que, apesar de todo o período do entreguerras ter sido marcado pela transição de regimes de acumulação, o crash da bolsa de Nova Iorque, em outubro de 1929, pode muito bem ser marcado como o momento em que a balança virou de lado. Isso ocorre uma vez que a partir deste momento é que os administradores do sistema foram obrigados a parar para reavaliar a situação que o mundo vivia. De fato, as instituições desenvolvidas no século XIX já não davam mais conta de operar um sistema onde mudanças tão significativas tinham ocorrido. Assim, ao longo da crise que se seguiu ao crash, as medidas que foram sendo adotadas atuaram como o princípio das novas instituições que passariam a vigorar a partir de então. 4.2 Fordismo I ou Bretton Woods Precisou-se de mais uma guerra para esclarecer ao mundo como se daria a nova ordem mundial. Agora sim, os EUA foram os maiores vitoriosos e puderam exercer ampla influência nas novas medidas que seriam tomadas. No entanto, a URSS também saiu vitoriosa e, ainda que menos poderosa que os EUA e devastada pelos 114 É irônica a idéia de que a expansão do modo de produção capitalista se viu limitada pela falta de demanda. De fato, a intuição nos diz que a expansão do processo produtivo deveria ter por objetivo justamente suprir a uma demanda pré-existente pelas mercadorias produzidas. No entanto, a generalização da produção em grandes escalas, resultou precisamente na inversão deste processo, ou seja, as empresas, que já produziam maciçamente, viram-se, a partir de certo momento, sem um mercado consumidor para consumir seus produtos. Nesse contexto, ficou a pergunta: o que fazer então com as enormes estruturas produtivas criadas para suprir as necessidades das pessoas? Assim, foi sob tais condições que, nessa mesma época de crise do Pré-Fordismo, J. M. Keynes (1985, [1936]) escreveu sua mais famosa obra, em que enunciaria o chamado Princípio da Demanda Efetiva, em que explicitaria as condições em que a demanda é que seria o maior determinante da oferta. Enfim, o regime de acumulação que se sucederia estaria destinado a permanentemente encontrar as novas condições (através de estratégias de marketing, etc.) para garantir sempre a necessidade, o desejo, de novos produtos por parte dos consumidores. Tal lógica vigora até os dias atuais. 97 danos da II G. M., mostrava-se como uma potencial resistência à sua hegemonia. Dessa forma, pode-se dizer que, a partir de então, os EUA passaram a liderar o bloco capitalista e a URSS o bloco comunista. No presente trabalho será dada maior atenção ao primeiro. Com relação às medidas organizadoras da nova ordem, diz Frieden: “No início de julho de 1944, cerca de mil representantes de mais de 40 países se reuniram no Mount Washington Hotel, nas montanhas de Bretton Woods, em New Hampshire. Durante três semanas, sobre a liderança de [Harry Dexter] White e [John Maynard] Keynes, as delegações traçaram planos para o FMI e o Banco Mundial – bem como para a ordem financeira e monetária do pós-guerra. O sistema criado em Bretton Woods era único. Nunca existira uma organização como o FMI, à qual os governos membros concordaram em subordinar suas decisões sobre medidas econômicas importantes. Tampouco já havia existido uma organização como o Banco Mundial, que contava com bilhões de dólares a serem emprestados a governos ao redor do mundo.” 115 116 Com relação ao regime monetário internacional, passa a prevalecer o padrão ourodólar, em que apenas a moeda norte-americana permanece lastreada com o metal. Dessa forma, fica assegurada a estabilidade monetária nas transações internacionais, que passam a ter o dólar como referência, ao mesmo tempo em que dota os outros países do bloco capitalista de certa flexibilidade para promover flutuações cambiais com suas moedas nacionais quando suas situações domésticas necessitam de ajustes. 115 2008, pg. 281. Apesar de Keynes, que era inglês, estar também coordenando a conferência, sua presença acabou por simbolizar mais uma formalidade. Quanto a isso diz Frieden: 116 “Keynes ficou decepcionado com a evolução final das instituições de Bretton Woods. (...). Não deveria ser uma surpresa: os norte-americanos e os britânicos queriam instituições que servissem aos seus interesses, mas os britânicos esperavam ser tomadores de empréstimos, e os norte-americanos, emprestadores. (...). Ele também acreditava que um acordo de cooperação internacional estava sendo destruído, uma vez que os norte-americanos modificaram as instituições de Bretton Woods para garantir a predominância dos Estados Unidos.” (Frieden, 2008, pgs. 281-2) 98 No entanto, a idéia era que tais flutuações não ocorressem com grande freqüência, porém, mais nos momentos de necessidade. Quanto a isso, diz Frieden: “A essência do sistema de Bretton Woods – como Keynes e White desejavam – seria a proposta de um meio termo entre a rigidez do padrão ouro e a insegurança do entreguerras. Diferentemente do que ocorrera com o padrão ouro, outros governos além do norte-americano poderiam modificar o valor de suas moedas quando necessário, apesar de essas mudanças freqüentes serem desaprovadas. (...) [A]s taxas de câmbio apresentavam estabilidade suficiente para estimular o comércio e os investimentos internacionais, sofrendo transtornos apenas quando os governos se deparavam com problemas econômicos sérios.” 117 Além disso, para que este sistema funcionasse corretamente, foi necessário implementar também restrições à movimentação internacional de capital de curto prazo. Tal medida foi necessária uma vez que, dessa forma, os países poderiam gerenciar suas políticas monetárias de acordo com suas necessidades de forma a manter o câmbio estável. Em outras palavras, se tais movimentos especulativos fossem liberados, um país que desejasse, por exemplo, reduzir suas taxas de juros para reduzir o desemprego, estaria sujeito a uma fuga massiva de capitais que iria para o país que oferecesse taxas de juros maiores. Justamente para que isso não ocorresse é que se implementaram tais restrições, de forma que os países tivessem mais mobilidade para operar suas políticas domésticas. Assim, o sistema de Bretton Woods pressupunha o controle de capitais por meio de cobranças de taxas ou proibições para as movimentações internacionais de dinheiro com fins especulativos. Já com relação aos investimentos internacionais de longo prazo, como capital e comércio, passou a predominar pela primeira vez a forma de empresas multinacionais, ou investimentos diretos estrangeiros (IDEs). Anteriormente, a 117 2008, pg. 312. 99 principal forma de investimento internacional era o empréstimo estrangeiro. No entanto, após a crise de 1929, ”os empréstimos privados internacionais praticamente desapareceram. Calotes e outros problemas da década de 1930 assustaram banqueiros e mercados de títulos. As oportunidades domésticas passaram a ser atraentes e o controle de capitais de Bretton Woods desestimulava os empréstimos estrangeiros. (...). Antes da Segunda Guerra Mundial, o investidor típico era um banqueiro ou alguém com títulos que emprestava dinheiro a empresas e governos estrangeiros. Na era de Bretton Woods, o investidor típico passou a ser uma empresa construindo fábricas no exterior.” 118 Outros fatores que colaboraram para a proliferação das IDEs foram: 1- o crescimento da produção e consumo em massa em muitas indústrias concedeu vantagens às expansões internacionais por parte das grandes empresas e 2- a adoção de barreiras comerciais fizeram com que as empresas que vendiam para determinados países adotassem alguma medida para não perder seus mercados. No que se refere às outras formas institucionais estudadas pela Escola Francesa da Regulação, Bob Jessop (2002) explica um pouco sobre o referido período. Ele utiliza o conceito de Estado Nacional de Bem-estar Keynesiano (ENBK) 119 . Segundo o autor, cada uma das palavras deste conceito expressa uma dimensão diferente sobre o que representou o período. 118 119 Ibid, pg. 314-5. Do inglês, Keynesian Welfare National State (ou KWNS). 100 “Primeiramente, (...) os ENBKs eram keynesianos na medida em que buscavam assegurar o pleno emprego num contexto em que as economias nacionais se encontravam relativamente fechadas e faziam isso principalmente através de políticas de estímulo à demanda agregada. Os ENBKs buscavam ajustar a demanda efetiva às necessidades de oferta advindas da produção em massa fordista, que, por sua vez, dependia das economias de escala e da plena utilização de meios relativamente inflexíveis de produção. Da mesma forma, (...) com o intuito de assegurar as condições para a reprodução social, os ENBKs eram orientados às políticas de bemestar, na medida em que buscavam regular as barganhas coletivas [entre empresários e sindicatos] dentro dos limites consistentes com o crescimento de pleno emprego, de forma que todos os cidadãos pudessem compartilhar os frutos do crescimento econômico (de forma a contribuir também para a demanda efetiva doméstica). (...). Os ENBKs eram nacionais na medida em que o estado territorial nacional assumia primariamente a responsabilidade por desenvolver e guiar políticas de bem-estar keynesianas em diferentes escalas. Isso reflete a importância mais geral das economias nacionais e dos estados nacionais nos ‘trinta anos gloriosos’ do crescimento do pós-guerra. (...) Por fim, os ENBKs eram estatais na medida em que as instituições estatais (em diferentes níveis) complementavam grandemente as forças de mercado no regime de acumulação fordista e também tinham um papel dominante nas instituições da sociedade civil” 120 Já Andrew Glyn (2006) explica como as condições que predominaram neste período acabaram por gerar por si próprias as condições de sua derrocada. De fato, durante o período do Fordismo I, também chamado de “Anos Dourados” devido ao crescimento econômico significativo notado em diversos países, observou-se um significativo aumento do poder de barganha por parte dos trabalhadores. Este se refletiu em consideráveis aumentos salariais que, por sua vez, foram aos poucos gerando um aumento da pressão inflacionária, na medida em que os empresários procuravam repassar parte desses aumentos para os preços. No âmbito internacional, ocorreu o que Medeiros & Serrano (1999) descrevem como “desenvolvimento a convite” 120 121 . Trata-se de um processo em que, após a II G. M., Pgs. 59-61. Minha tradução e meus itálicos. “No pós-guerra, o acesso ao mercado americano e ao financiamento internacional criou para os países aliados as condições externas para o crescimento acelerado. Assim, podemos caracterizar como ‘desenvolvimento a convite’ a estratégia americana de não apenas permitir, como também em vários casos promover deliberadamente o desenvolvimento econômico dos países aliados nas 121 101 certos países passaram a se desenvolver rapidamente. Tal desenvolvimento ocorreu sob a égide dos EUA, que os auxiliava, seja com ajudas financeiras ou senão abrindo seus amplos mercados internos para as mercadorias daqueles, segundo os interesses estratégicos do hegemon. Foi dessa forma que países como Alemanha e Japão122 se reconstruíram da guerra e, rapidamente, readquiriram o status de países desenvolvidos. No entanto, acrescenta Glyn, tais medidas por parte dos EUA contribuíram para que o hegemon passasse a incorrer em déficits, tanto na balança comercial quanto na de pagamentos. Quanto a estes, dizem Medeiros & Serrano: “Nos anos do pós-guerra, os EUA incorreram em déficits globais em sua balança de pagamentos, pois seus déficits da conta de capital excediam o seu superávit comercial, e na balança de transações correntes (que no imediato pós-guerra são bastante elevados, mas vão se reduzindo progressivamente). Os déficits na conta de capital se devem à grande ajuda externa (econômica e militar) americana aos países estratégicos, em particular à Alemanha e ao Japão e posteriormente à Coréia e Formosa, e à substancial saída de investimento direto dos EUA nos anos 50 e 60.” 123 Com relação às formas de Estado, pode-se dizer que vigorou o modelo de bemestar social. Assim, observou-se um aumento significativo da participação dos estados nas economias nacionais, seja através de obras públicas e empresas estatais, ou então através de uma rede de seguridade social que amortecesse os impactos da forte integração econômica sobre os setores que saíam prejudicados e que auxiliasse os trabalhadores que se encontrassem desempregados ou inválidos. Nesse contexto, os governos muitas vezes se davam ao luxo de incorrerem em déficits fiscais sob o pretexto de promoverem políticas de estímulo à demanda agregada. Nessa situação, para saldar os resultados negativos, os governos se viam obrigados a emitir moeda, de forma a colaborar para o aumento da inflação, ou regiões de maior importância estratégica para o conflito com a URSS” (Medeiros & Serrano, 1999, pg. 133) 122 Sobre a reconstrução do Japão, ver Torres Filho (1983). 123 1999, pg. 132-3. 102 então a se endividar, de forma a reduzir suas autonomias sobre suas políticas domésticas. Assim, é possível observar, de certa forma, como o período do Fordismo I pôde se organizar no sentido de responder exitosamente às necessidades capitalistas do sistema mundial a partir da II G. M., de forma a apresentar taxas significativas de crescimento econômico. Ao mesmo tempo, pode-se compreender como, a partir de certo ponto, tal sistema passou a apresentar novos desequilíbrios que demandavam reformulações urgentes de sua estrutura. Dessa forma, não é de se surpreender que, já ao final da década de 1960, a economia mundial apresentasse grandes desequilíbrios, a saber, níveis de inflação acima do aceitável e que continuavam a crescer; lutas ferozes entre trabalhadores e empresários pelas condições trabalhistas, como foi o caso, por exemplo, das greves de 1968 na França; governos amplamente endividados; e, finalmente, uma situação internacional instável, uma vez que, não apenas países como Alemanha e Japão estavam apresentando níveis de produção e produtividade cada vez mais próximos aos norte-americanos, sugerindo uma potencial sucessão hegemônica, mas também o comunismo soviético se mostrava ainda forte concorrente ao modelo capitalista de produção. E é nesse contexto que irrompe a crise mundial da década de 1970. 4.3 A Crise da Década de 1970 4.3.1 Principais Fatos Os principais fatos referentes à crise mundial da década de 1970 podem talvez ser resumidos da seguinte forma: o fim do lastro dólar-ouro e, conseqüentemente, do 103 sistema de Bretton Woods, em 1971; as duas crises do petróleo, em 1973 e 1979, o contexto de estagflação124 entre os países mais desenvolvidos; e, finalmente, o brusco aumento da taxa de juros dos EUA, em 1979. Com relação a este ponto, diz Teixeira: “Os anos 70 se iniciam sob o signo da crise monetária internacional, a qual se seguem a desvalorização do dólar e a adoção de um sistema de taxas de câmbio flutuantes, e terminam sob o impacto da mudança da política monetária americana revalorizando a sua moeda e abrindo as portas para a recessão mundial. Entre um e outro, o choque do petróleo assinala, no plano do significado, a reviravolta nas tendências de crescimento a longo prazo da economia mundial.” 125 4.3.2 O Petróleo Cabe aqui fazer um parêntesis para contextualizar a importância do petróleo na conjuntura mundial. Isso porque, ao analisar o caráter histórico do papel do petróleo no SIC, é difícil não chamar à atenção a forma brusca como esta matéria-prima, que era de menor importância, passa a assumir posição de destaque tanto na esfera econômica quanto na geopolítica do SIC. Quanto a este ponto, diz Torres Filho (2004): “No final do século XIX, o querosene substituiu o óleo de baleia como principal fonte de iluminação domiciliar em todo o mundo. Com isso, o petróleo passou a integrar definitivamente a moderna cesta de consumo de massas. Desde então, a generalização do uso dos motores a gasolina e a diesel levou o ‘ouro negro’ à posição de principal fonte internacional de energia. O petróleo é hoje responsável pelo funcionamento de praticamente todo o sistema de transporte, tanto em terra quanto no mar e no ar.” 126 124 Coexistência de alta inflação com recessão econômica. 1993, pg. 41. 126 Pg. 1. 125 104 Assim como tantas outras inovações promovidas pelo SIC, foi a guerra que estimulou a adoção deste paradigma tecnológico ao adaptar máquinas e equipamentos, que antes funcionavam a carvão, a terem o petróleo como principal combustível. Com relação a isto, diz Torres Filho: “Tudo começou com um navio militar alemão ameaçando, em julho de 1911, o porto de Agadir no Marrocos francês. O episódio convenceu Churchill de que uma guerra entre a Inglaterra e a Alemanha era um fato iminente. Ao mesmo tempo, tornou patente que, neste caso, a manutenção da liderança inglesa nos mares requereria, a exemplo do que outros países estavam fazendo, a conversão da armada britânica, até então movida a carvão – combustível abundante na Grã-Bretanha – para o petróleo – um produto à época basicamente produzido nos EUA ou em países ‘exóticos’, distantes e politicamente inseguros. Os navios de guerra movidos a petróleo alcançavam maior velocidade e apresentavam substancial economia em termos de espaço e mão-de-obra.” 127 A partir de então, seu uso se generalizou e o petróleo passou a ser utilizado como combustível básico também na esfera econômica. O caráter essencial que o petróleo passou a assumir pode ser observado também pelo fato de que grandes manobras e movimentos das duas Guerras Mundiais foram motivadas por interesses baseados no produto. “A defesa de Paris, em setembro de 1914, foi, por exemplo, feita por tropas francesas deslocadas da cidade até o front por táxis. Na 2ª Guerra, o petróleo passou a ter um valor estratégico ainda maior. (...). O ataque a Pearl Harbor em 1941 foi uma resposta imediata do Japão ao embargo de petróleo imposto pelos Estados Unidos, seu tradicional fornecedor. Com a destruição da frota americana do Pacífico, o Japão ficou livre para tomar os ricos campos de óleo da Indonésia, então colônia holandesa. (...). Do mesmo modo, a invasão da União Soviética e do norte da África pelos alemães visava o controle dos poços do Cáucaso e do Irã. A escassez de petróleo foi um dos grandes fatores que frearam as máquinas de guerra japonesa e alemã, enquanto a abundância do óleo americano abriu caminho para que a vitória dos Aliados pudesse se concretizar mais rapidamente.” 128 127 128 2004, pgs. 1-2. Torres Filho, 2004, pgs. 2-3 105 Assim, tornou-se claro que máquinas e equipamentos movidos a petróleo apresentavam maior desempenho do que aqueles movidos a partir de combustíveis alternativos. Isso fez com que, no decorrer de relativamente poucos anos, o mundo funcionasse, virtualmente, a partir de fontes petrolíferas. “A generalização do uso de carros, aviões, navios e trens, movidos a gasolina ou a diesel, confundiu-se com a reorganização espacial das indústrias e das cidades, permitindo a integração física de uma economia crescentemente urbanizada e internacionalizada. A existência de enormes reservas, aliadas a seu baixo custo de extração e às vantagens econômicas de sua utilização, tornou o ‘ouro negro’ a principal fonte de energia global.” 129 Dessa forma, é possível observar uma mudança imperativa que passaria a vigorar na geopolítica mundial na medida em que os países que possuíssem grandes reservas do produto se encontrariam numa posição econômica e estratégica vantajosa, uma vez que poderiam influenciar as condições sobre as quais o combustível seria oferecido ao resto do mundo para suprir as suas demandas energéticas. Sem contar, é claro, que teriam o produto disponível para suas demandas internas. De fato, a experiência da II G. M. levou os estrategistas americanos a considerarem a importância deste novo elemento na remontagem do sistema de relações internacionais. O petróleo já era então a principal fonte de energia do mundo, superando o carvão, que predominava desde o século XVIII130. Do ponto de vista corporativo, sete foram as empresas que se estabeleceram com maior êxito no setor. Estas operavam o produto em suas mais diversas etapas, 129 130 Ibid, pg. 4. Ibid, pgs. 3 e 6. 106 desde a extração da jazida até a distribuição do produto final. Quanto a isso, diz Regensteiner (1982): “Durante o período que termina em 1950, a história do petróleo se caracteriza pelo estabelecimento do domínio mundial das Sete Irmãs131 que, num contraditório processo de lutas e alianças, repartem os mercados, impõem os níveis de produção, consumo e preços, tanto aos países produtores quanto aos consumidores, e monopolizam todas as etapas de processamento do petróleo, desde a prospecção até a distribuição.” 132 Com o decorrer do período, o caráter monopólico assumido por estas se mantêm, apesar de novos obstáculos. “Ao final deste período que termina em 1970, o mercado petrolífero mundial continua dominado pelas Sete Irmãs, apesar dos golpes sofridos pelo surgimento das companhias independentes, pelas nacionalizações havidas, pelas associações protecionistas constituídas e pela emergência de fontes produtoras fora do controle do cartel, como a URSS.” 133 Enfim, em 1973, as unidades integrantes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) 134, insatisfeitos com os acordos vigentes, nacionalizam as suas reservas e, em outubro do mesmo ano, num autêntico comportamento de cartel, triplicam o preço do produto, contribuindo para a crise mundial ocorrida na década de 1970. O procedimento se repete em 1979 e o preço do barril vai para níveis ainda maiores. 131 O grupo das chamadas “Sete Irmãs” seriam: Jersey (Exxon), Socony-Vacuum (Mobil), Standard of California (Chevron), Texaco, Gulf, Shell e British Petroleum. As cinco primeiras são de origem norteamericanas, a penúltima é de origem anglo-holandesa e a última é de origem inglesa. 132 pg. 60. 133 Regensteiner, 1982, pg 60. 134 Criada em 1960. 107 4.4 Fordismo II Enfim, seja lá qual o critério que determina quando que tal crise chegou ao fim temos que, após o seu término, significativas mudanças haviam ocorrido no presente sistema. Inicialmente, tem-se que, no lugar do padrão dólar-ouro, passa a vigorar o dólar como moeda internacional sem que haja lastro qualquer. Dessa forma, o SIC passa a viver a inédita situação em que as funções da moeda passam a ser exercidas no nível internacional por uma unidade monetária cujas principais características estão sujeitas às vicissitudes da política monetária e dos interesses unilaterais de um único país, os EUA. Estes determinam as variáveis cruciais referentes a esta moeda como, por exemplo, os níveis de emissão e de flutuação cambial. Com relação às relações trabalhistas, pode-se afirmar que o lado assalariado observou perdas significativas com relação ao que vigorou no período anterior. Isso ocorreu na medida em que a crise dos anos anteriores causou um significativo aumento do nível de desemprego que, por sua vez, reduziu consideravelmente o poder de barganha por parte dos trabalhadores. Dessa forma, tem-se que as leis trabalhistas se tornaram mais flexíveis com relação a questões como a facilidade das empresas para contratar e demitir, etc. No que se refere às formas de concorrência, observou-se um aumento significativo da eficiência produtiva. Tal mudança se deveu, em parte, às flexibilizações trabalhistas acima citadas e, em parte, ao grande aumento de produtividade observado no período. De fato, o advento da internet, por exemplo, permitiu avanços inéditos com relação ao acesso à informação, entre outras coisas. Por ora, vale 108 apenas dizer que as possibilidades inovativas dos novos paradigmas tecnológicos ainda não foram plenamente exploradas. A adesão ao regime internacional também progrediu consideravelmente. Observouse a formação de blocos comerciais regionais (Nafta, Mercosul, EU, etc) em que se promovia, no mínimo, a redução das barreiras alfandegárias entre os países integrantes. A depender do bloco, a integração poderia ir aumentando de forma a acordar também livre fluxos de pessoas e capitais. Ademais, o fim da Guerra Fria e, conseqüentemente, do bloco comunista, em 1991, gerou o fim do mundo bipolar. Dessa forma, passou a prevalecer a lógica de um mundo chamado de multipolar. Já quanto às formas de Estado, passou a vigorar novamente a idéia do Estado mínimo. Os déficits fiscais passaram a ser repudiados e as empresas estatais foram privatizadas Deve-se ressaltar, no entanto, que, ainda que tenham sido observadas mudanças nas formas institucionais, a crise da década de 1970 não representou uma alteração do regime de acumulação. Essa afirmação pode ser evidenciada simplesmente pelo fato de que a forma de acumulação que passou a prevalecer após a II G. M., a saber, o escoamento da produção em massa através do consumo dos assalariados, manteve-se. O que mudou foi a forma como os assalariados passaram a se apropriar da sua parte da produção social: se, durante o Fordismo I, a demanda efetiva dos assalariados era mantida através da sustentação de um nível salarial elevado, durante o Fordismo II, tal demanda foi atingida através do estímulo ao crédito para consumo ao público de baixa renda. Trata-se, portanto, de uma mudança no modo de regulação. 109 4.5 Conclusão Tendo como objeto a análise do SIC a partir da década de 1870 sob as estruturas teóricas trazidas tanto pela Escola Francesa da Regulação quanto pelas escolas que estudam os chamados sistemas-mundo (EPSM e NEPSM), pudemos não apenas sugerir uma subdivisão do período em intervalos menores, como também explicar tanto as condições gerais das relações sociais que vigoraram em cada período, como também o que representou cada período quando analisado como etapa de um processo mais amplo que é a ótica do SIC como um processo histórico. Nesse contexto, pudemos qualificar como Pré-Fordismo o regime de acumulação vigente no período 1870-1914 e como Fordismo àquele compreendido no período 1945- dias atuais. Mais ainda, dentro do regime de acumulação Fordista, pudemos distinguir dois modos distintos de regulação, aqui denominados como Fordismos I (1945-1971) e II (1971- dias atuais). Com relação à questão da moeda, coincidência ou não, pôde-se observar que as alterações no regime monetário foram acompanhadas de alterações em outras áreas da esfera econômica, expressa pela outras quatro formas institucionais. Nesse contexto, o Pré-Fordismo se caracteriza pela predominância do padrão ouro na forma como planejado pela Inglaterra; o período do entreguerras está associado à ausência de um padrão estável de regulação monetária em clara correspondência com a ausência de padrões estáveis nas outras instituições associadas à esfera econômica; o Fordismo I está associado ao padrão dólar-ouro e, finalmente, o Fordismo II está associado ao padrão dólar flexível. Esse resultado corrobora mais uma vez as conclusões obtidas pela Escola Francesa da Regulação que reitera o caráter fundamental desempenhado pela moeda nas relações econômicas. É 110 verdade que há certo viés com relação às escolhas das datas de cortes dos períodos e a associação destas com a mudança de variáveis de natureza monetária. Este é o caso, por exemplo, do início do Pré-Fordismo em 1870, bem como da própria ruptura do padrão dólar-ouro, em 1971. Mesmo assim, como foi possível observar, as mudanças ocorreram em âmbito bem mais amplo do que nas variáveis estritamente monetárias. Isso corrobora a teoria regulacionista de que as variáveis de natureza monetária predominam sobre as outras variáveis de natureza econômica. Finalmente, a presente análise permitiu esclarecer que, enquanto o Pré-Fordismo se distinguiu do Fordismo pelos diferentes públicos aos quais eram destinadas as produções em larga escala produzidas pelas grandes empresas sediadas nos países centrais, o Fordismo I se distinguiu do II “apenas” pela forma como a renda era assegurada a esse público consumidor alvo. Mais ainda, podemos afirmar que, enquanto a mudança de regime de acumulação “exigiu” nada menos do que trinta anos, duas guerras mundiais e uma transição hegemônica, a mudança de modo de regulação “exigiu” “apenas” uma reafirmação por parte do hegemon de sua hegemonia. 111 5 CONCLUSÃO Desde a década de 1870, o moderno sistema mundial viveu uma intensificação inédita no nível de integração entre os países dele componentes. Esta integração ocorreu antes de tudo na esfera econômica e a primeira forma em que dois países quaisquer iniciam a interagir no âmbito econômico é através das relações comerciais. Finalmente, a instituição primordial necessária para o estabelecimento de relações comerciais é a moeda. Daí se tem que, para que dois países quaisquer estabeleçam relações comerciais, eles devem antes de tudo estabelecer consenso em como será negociada a instituição monetária. Por tradição, os termos gerais deliberados por esta “negociação” foram obtidos tendo por via de regra a violência. Nesse contexto, a Inglaterra, que devido às suas particularidades históricas foi o primeiro país a obter posição de destaque neste processo, instituiu que a mediação da moeda na relação comercial entre países se daria através do atrelamento das moedas nacionais com o ouro. E, no topo da hierarquia entre as moedas nacionais estaria, é claro, a libra. Resolvida esta questão, foi possível promover de forma coordenada a expansão da integração internacional. O próximo país a obter primazia nas decisões referentes à regulação monetária internacional foi os EUA. Estes estabeleceram, por sua vez, até 1971, o lastro do dólar com o ouro e, a partir de então, um sistema sem lastros tendo o dólar flexível como referência para o sistema monetário internacional. Este último vigora até os dias atuais e, sob esta 112 regulação, observou-se um grau ainda maior de integração do sistema mundial, de forma a, mais uma vez, atingir níveis inéditos. Os novos questionamentos decorrentes destas intensas transformações trouxeram à tona a necessidade de uma unidade de análise mais ampla do que aquela delimitada pelo espaço das economias nacionais. É nesse contexto que surge o conceito de sistemas-mundo, que corresponde basicamente a um conglomerado de países que se identificam por alguma característica em comum, onde há considerável influência de fatores de natureza geográfica. Enfim, a análise dos sistemas-mundo empreendida pelos autores da área de Relações Internacionais, permitiu-nos observar como o mundo que vivemos atualmente resulta da expansão desenfreada de um sistema-mundo específico, a saber, o europeu. Devido a esta particularidade deste sistema-mundo é que o atribuímos o nome de Sistema InterEstatal Capitalista, ou SIC. Por fim, a partir de 1991, com o fim da Guerra Fria e a absorção do bloco comunista pelo capitalista, o SIC passou a conter virtualmente todo o mundo civilizado. Dessa forma, ainda que o aumento da integração mundial tenha trazido grandes benefícios para a humanidade como um todo, uma crítica passível de ser feita diz respeito à inadequação associada ao fato de que um país apenas detém o absoluto controle sobre a moeda que exerce o papel de referência mundial. Isto é, ele pode influenciar livremente a quantidade de moeda emitida, bem como outras variáveis a ela associada, variáveis estas que dizem respeito a todos os envolvidos nas transações internacionais, segundo apenas o seu interesse nacional. Uma possível solução para esse problema seria a criação de uma unidade monetária internacional, dissociada de qualquer nação específica, que fosse regulada por uma entidade composta por representantes de todos os países envolvidos nas transações 113 internacionais, o que, virtualmente, equivale a todos os países, e que deliberaria sobre como esta nova moeda deveria ser administrada. Esta é sugestão que o presente trabalho propõe tendo como base o que foi observado nos capítulos anteriores. O presente trabalho se filia à escola de pensamento que reconhece na obra de Karl Marx um divisor de águas no que se refere à compreensão do capitalismo enquanto modo de produção. No entanto, reconhece também a necessidade de uma expansão ao pensamento do autor, no sentido tanto de superar as limitações deixadas pelo velho barbudo como de abranger as novas realidades observadas neste modo de produção desde a publicação d`O Capital, ocorrida há cerca de um século e meio atrás. É nesse contexto que se recorre à contribuição trazida pelos autores da Escola Francesa da Regulação, que se esforçam justamente no sentido de superar tais limitações. A partir deste posicionamento, os autores regulacionistas desenvolvem uma teoria monetária alternativa às predominantes que se mostra robusta e coerente, ao mesmo tempo em que se prontifica a dialogar com os defensores das teorias alternativas sobre o assunto. A obra de Michel Aglietta & André Orléan, bem como a de Robert Boyer, foram muito úteis para contextualizar esta discussão. No que se refere aos conceitos de modo de regulação e regime de acumulação, bem como ao enquadramento institucional sugerido pelos regulacionistas, estes se mostraram instrumentos adequados para melhor situar as condições vigentes em cada período histórico. Dessa forma, foi possível fazer comparações entre períodos distintos como se fossem objetos iguais, uma vez que, afinal, são iguais na medida em que são períodos históricos. Assim, sendo constante o instrumental de análise para cada período, a comparação se torna viável. Ademais, a partir da análise de 114 dois períodos distintos, mas que se sucedem, é possível também analisar as condições que vigoraram durante o período de transição correspondente. Mais ainda, este período de transição corresponde ao momento da crise do sistema antecedente. E, por conseguinte, o período posterior corresponde ao sistema engendrado por esta. Em suma, sob certo ponto de vista, as crises não são mais do que a divisão entre dois sistemas distintos de regulação. Assim, compreender as mudanças observadas entre dois períodos que se sucedem possui associação com a compreensão da crise que ruiu o período mais antigo. Já com relação aos autores dos sistemas-mundo, este trabalho se esforçou no sentido de retomar as discussões empreendidas entre estes. Estas foram apresentadas conforme o que se mostrou conveniente para elucidar as questões aqui propostas de serem analisadas, sendo a principal delas a de desvendar o que representou a crise da década de 1970. Para tanto, foi necessário, antes de qualquer coisa, definir formalmente o conceito do SIC como a expansão exitosa de um sistema-mundo que, após séculos de existência, acabou, em tempos recentes, por ocupar toda a extensão do mundo civilizado. Assim, mostrou-se possível adotar o SIC como objeto de estudo de forma a conceber os acontecimentos históricos nele ocorridos como peculiaridades concernentes ao presente objeto. O trabalho de síntese das questões relevantes concernentes ao assunto, empreendidas por Fiori, foram, nesse contexto, de grande valia para o estudo. Na análise histórica, um autor cujo trabalho foi de grande utilidade é Jeffry Frieden que, em sua obra Capitalismo Global, enuncia com destreza as condições sob as quais se deu a integração mundial durante o período analisado na segunda parte. Outro autor que merece destaque é Andrew Glyn que, em sua obra Capitalism 115 Unleashed, identificou a ruptura que representou a crise mundial da década de 1970 e que inspirou este trabalho. Com relação aos questionamentos levantados referentes às delimitações dos ciclos III e IV, o presente trabalho sugere apenas que o período 1945-1971 seja incluído no ciclo IV. Dessa forma, o ciclo III se referiria, basicamente, ao período de hegemonia britânica, o ciclo IV ao período de hegemonia norte-americana e o período entre os ciclos III e IV ao período de transição hegemônica onde não houve suficiente estabilidade institucional para que houvesse um ambiente de crescimento econômico. Além disso, esta classificação traria a conveniência de abranger dentro dos ciclos as referidas ondas de descolonização. Cabe ainda apenas atentar para a dificuldade referente à análise de determinado período sendo que ainda estamos nele, como é o caso do ciclo IV. Finalmente, no que se refere à questão inicial do presente trabalho, a saber, o que significou a crise da década de 1970, temos que, segundo a abordagem da Escola Francesa da Regulação, esta crise representou a ruptura de um modo de regulação baseado na manutenção da demanda efetiva através da sustentação de remunerações elevadas para a classe assalariada para outro em que tal demanda passou a ser assegurada através de políticas de crédito para a mesma. Este último é o modo de regulação vigente nos dias atuais. 116 BIBLIOGRAFIA - AGLIETTA, Michel & ORLÉAN, André. A Violência da Moeda. São Paulo: ed. Brasiliense, 1ª ed. 426p. 1990. - ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. - ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly J (Orgs). Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora da UFRJ, 2001. - BOCCHI, João I.. Crises Capitalistas e a Escola Francesa da Regulação. São Paulo: Pesquisa & Debate, vol. 11, n. 1, pp. 26-48, 2000. - BOYER, Robert. Teoria da Regulação. Os Fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade. 156p. 2009. - COSTA, J. D.. Um Debate Teórico entre a Economia Política dos Sistemas-Mundo e a Nova Economia Política do Sistema Mundial. 2007. - EICHENGREEN, Barry J.. A Globalização do Capital: Uma História do Sistema Monetário Internacional. São Paulo: Ed. 34. 2000. - FIORI, José Luís. Formação, Expansão e Limites do Poder Global. In: FIORI, J.L. (Org.). O Poder Americano. Petrópolis: Vozes, 2004. - FIORI, José Luis. Prefácio. In: FIORI, J. L., O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações. Editora Boitempo: São Paulo, 2007. 117 - FIORI, José Luis. O Sistema Interestatal Capitalista no Início do Século XXI. In: FIORI, J. L., SERRANO, F. e MEDEIROS, C. A., O Mito do Colapso do Poder Americano. Editora Record: Rio de Janeiro, 2008. - FRANCO JÚNIOR, Hilário; CHACON, Paulo Pan. História Econômica Geral. São Paulo: Atlas, 1986. - FRIEDEN, Jeffrey A.. Capitalismo global: História Econômica e Política do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 573p. 2008. - GIRARD, René. La Violence et le Sacré. Grasset, 1972. - GIRARD, René, et al. Des Choses Cachées depuis la Fondation du Monde. Grasset, 1978. - GLYN, Andrew. Capitalism Unleashed: finance globalization and welfare. Oxford University Press, 2006. - HALL, P; TAYLOR, R. C. R.. As Três Versões do Neo-institucionalismo. São Paulo: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 58, 2003. - HEILBRONER, Robert L.. A Formação da Sociedade Econômica. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1962. - HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Victor Civita, 1983 [1652]. - JESSOP, Bob. The Future of the Capitalist State. Polity. UK, 2002. - KEYNES, John Maynard. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. 2ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1985 [1936]. - KINDLEBERGER, Charles. The World in Depression 1929-1939. University of California Press: Berkeley, 1973. - MARX, Karl (1988). O Capital. São Paulo: Nova Cultural, v. 1, 1988 [1867]. 118 - MEDEIROS, Carlos A.; SERRANO, Franklin. Padrões Monetários Internacionais e Crescimento. In: FIORI, José L. (org.). Estado e Moedas no Desenvolvimento das Nações. Ed. Vozes, Petrópolis, 1999. - OLIVEIRA, Carlos A. B. de. Processo de Industrialização: do Capitalismo Originário ao Atrasado. São Paulo: Editora UNESP; Campinas, SP: UNICAMP, 2003. 270p. - POLANYI, Karl. A Grande Tranformação: As Origens de Nossa Época. Rio de Janeiro: Ed. Campus. 2ª ed, 2000. - REGENSTEINER, Roberto J.. A Crise Brasileira e a Questão Energética (19741981). 211p. Dissertação (mestrado em economia) – Universidade Nacional Autônoma do México, 1982. - STRANGE, Susan. International Economics and International Relations: A Case of Mutual Neglect. In: Authority and Markets. Palgrave Macmillan, 1970. - TEIXEIRA, Aloisio. O Ajuste Impossível – Um Estudo sobre a Desestruturação da Ordem Econômica Mundial e seu Impacto sobre o Brasil. Tese (Doutoramento em Economia) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1993. - TORRES Filho, Ernani T.. O Mito do Sucesso: Uma Análise da Economia Japonesa no Pós-Guerra (1945 – 1973). Dissertação (Programa de Pós-Graduação do Instituto de Economia Industrial). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1983. - TORRES Filho, Ernani T.. O Papel do Petróleo na Geopolítica Americana. In: FIORI, J. L. (org.). O Poder Americano. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004. - WALLERSTEIN, Immanuel. La crisis como transición. In: AMIM, S., ARRIGHI, G., FRANK, A.G., WALLERSTEIN, Immanuel. Dinámica de la crisis global. México : Siglo veintiuno, 1987. - WALLERSTEIN, Immanuel. El Moderno Sistema Mundial : La agricultura capitalista y los orígenes de la economia-mundo europea en el siglo XVI. México : Siglo ventiuno, 9.ed, 1999. 119 SIGLAS I G. M. – Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918); II G. M. – Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945); ENBK – Estado Nacional de Bem-Estar Keynesiano; EPI – Economia Política Internacional; EPSM – Economia Política dos Sistemas-Mundo; NEPSM – Nova Economia Política do Sistema Mundial; RI – Relações Internacionais; SIC – Sistema Inter-Estatal Capitalista.