Programa de Pós-Graduação em Economia Instituto de

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Programa de Pós-Graduação em Economia Instituto de
Programa de Pós-Graduação em Economia
Instituto de Economia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Iuri Regensteiner
O Sistema Inter-Estatal Capitalista Segundo a Escola
Francesa da Regulação
Rio de Janeiro
2011
Iuri Regensteiner
O Sistema Inter-Estatal Capitalista Segundo a Escola
Francesa da Regulação
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Economia,
Instituto de Economia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Ciências Econômicas
Orientador: Ernani Teixeira Torres Filho
Rio de Janeiro
2011
Dedico esta obra a Deus e a meus pais,
Pedro Regensteiner e Dina Worcman
Regensteiner.
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente aos professores David Kupfer e Fabio Freitas, coordenadores
da pós-graduação durante o período de meu mestrado. A Lia Hasenclever, agradeço
pelo auxílio a estes na tarefa de acompanhar o progresso dos alunos ao longo do
programa.
Pelas disciplinas ministradas, agradeço a: Hugo Boff e Getúlio Borges; Fábio Freitas
e Matias Vernengo; Frederico Rocha, David Kupfer e João Pondé; Carlos Medeiros,
Franklin Serrano e Fernando Cardim; Ernani Torres e Maria da Conceição Tavares;
Maria Malta e Ângela Ganem; e, finalmente, a José Luis Fiori.
Por indicações bibliográficas, agradeço a: Carlos Medeiros, José Fiori, Ernani
Torres, José Francisco Gonçalves (Kiko) e Gilson Secundino. A Roberto Vermulm
pela carta de recomendação.
Por auxílios na questão da moradia, agradeço a: Luisa Sidoneo, Bruno Learth
Soares e Theo Vasconcelos.
A Theo Vasconcelos agradeço ainda pelos bons conselhos, dentre eles o de vir ao
Rio de Janeiro para fazer mestrado em economia.
Agradeço ainda a família e amigos pelo apoio.
Agradeço também aos funcionários do Instituto de Economia da UFRJ, que
contribuíram grandemente para a elaboração deste trabalho.
Por fim, mas não menos importante, agradeço a Ernani Torres pela ótima
orientação.
Todos os homens morrem, mas nem todos os homens vivem.
William Wallace
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo oferecer uma interpretação sobre o que representou
a crise mundial de 1970 para o moderno sistema mundial. Para tanto, propõe-se, por
um lado, utilizar-se dos instrumentos teóricos oferecidos pelos autores da Escola
Francesa da Regulação (escola de pensamento cujo nome original é Teoria da
Regulação) e, por outro, trazer e definir formalmente o conceito de Sistema InterEstatal Capitalista (SIC), segundo a forma como especificado pelos autores da área
de Relações Internacionais que estudam os chamados sistemas-mundo. Nesse
contexto, apresenta-se inicialmente uma teoria alternativa da moeda, na forma como
é elaborada por Michel Aglietta e André Orléan, autores regulacionistas. Esta se
destaca, basicamente, pela maneira como a teoria marxista é reestruturada, de
forma a relegar a segundo plano o postulado ricardiano do valor para, no lugar,
inserir a primazia teórica do papel da violência e da mimese. Acredita-se, a partir
deste procedimento, ser possível resolver grande parte das contradições teóricas
deixadas por Karl Marx aos seus sucessores. Além disso, os resultados obtidos por
esta teoria nos permitem dar uma ênfase maior à importância da moeda do que a
atribuída atualmente pelas teorias predominantes. Em seguida, passa-se à análise
do SIC, propriamente dito, a partir da ótica de seus “ciclos expansivos”. Assim,
baseando-se nos estudos dos autores dos sistemas-mundo, empreende-se uma
análise histórica de “longos períodos” que se inicia no chamado Longo Século XIII,
momento em que é atribuída a gênese deste sistema. Após esta contextualização
histórica do objeto, tem-se início um estudo histórico de períodos mais curtos e de
tempos mais recentes, com o intuito de compreender em maior detalhe as condições
que antecederam o período da década de 1970. Dessa forma, utilizando-se mais
instrumentos de análise propostos pelos regulacionistas (a saber, modos de
regulação, regime de acumulação e, ainda, uma proposta de enquadramento
institucional), dividir-se-á, primeiramente, em intervalos o período a partir de 1870
para, em seguida, aprofundar-nos nas condições predominantes em cada um
destes. Assim, a partir de tal procedimento, acredita-se ser possível obter uma nova
luz sobre o que realmente representou a crise de 1970 para o SIC.
Palavras-chave: Regulação, Teoria da Regulação, Escola Francesa da Regulação,
Sistema Inter-Estatal Capitalista, Sistemas-Mundo, Violência da Moeda, Violência,
Moeda, Pré-Fordismo, Fordismo.
ABSTRACT
This paper aims to offer a new light about the real meaning of the 1970’s world crisis
to the world modern system. To achieve this goal, we intend, in one hand, to use the
theoretical instruments offered by the authors of the French School of Regulation
(whose original name is Regulation Theory) and, on the other, to bring and to
formally define the concept of the Capitalist Interstate System (CIS), as it is specified
by the authors of the International Relations area that take the world-systems as the
main object of their studies. In that context, it is initially presented an alternative
theory of money, as it is developed by Michel Aglietta and André Orléan,
“regulationist” authors. This theory proposes to restructure the Marxist theory in a
way to lower to second plane the Ricardian postulate of value. In its place, they give
emphasis to the role of violence and mimesis. It is believed that, by following this
procedure, to be possible to solve most of the theoretical contradictions left by Karl
Marx to his successors. Furthermore, the results obtained by this new theory of
money, allow us to give a greater importance to the role of money on the economic
theory than the one given by the usual ones. Afterwards, we begin the study of the
CIS itself taking as reference the existence of the so called “expansive cicles”. In this
way, following the studies of the world-system researchers, it is engaged a historical
analysis of “long periods” which begins with the so called Long XIIIth Century, where
it is said that this system begins. Then, after this contextualization of the object, we
begin another historical study, but this time, the intervals are shorter and more
recent. We undertake this procedure with the intention of understanding in greater
detail the conditions prior to the 1970’s. This way, with the help of more instruments
brought from the authors of the French School of Regulation, such as modes of
regulation, accumulation regimes and an institutional framework, the analysis will
take place from the 1870’s until nowadays. Thus, with this procedure we believe to
be able to offer a new light to the real meaning of the 1970’s world crisis to the CIS.
Keywords: Regulation, Regulation Theory, French School of Regulation, Capitalist
Interstate System, World-Systems, Violence of Money, Violence, Money, PreFordism, Fordism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ____________________________________________________________________ 10
1 CAPÍTULO 1: A VIOLÊNCIA DA MOEDA _____________________________________________ 16
1.1 INTRODUÇÃO _________________________________________________________________ 16
1.2 A MOEDA E OS PROCESSOS FUNDADORES DA ORDEM SOCIAL ________________________________ 21
1.2.1 FI: A VIOLÊNCIA ESSENCIAL _______________________________________________________ 27
1.2.2 FII: A VIOLÊNCIA RECÍPROCA ______________________________________________________ 28
1.2.3 FIII: A VIOLÊNCIA FUNDADORA ____________________________________________________ 29
1.3 CENTRALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO __________________________________________________ 30
1.3.1 PARTINDO DA FORMA FIII ________________________________________________________ 33
1.3.2 POLARIZAÇÃO MIMÉTICA ________________________________________________________ 34
1.3.3 O SISTEMA HOMOGÊNEO _______________________________________________________ 35
1.3.4 O SISTEMA FRAGMENTADO ______________________________________________________ 38
1.3.5 O SISTEMA HIERARQUIZADO _____________________________________________________ 40
1.4 AS CRISES MONETÁRIAS _________________________________________________________ 43
1.4.1 A FORMA GERAL DAS CRISES _____________________________________________________ 44
1.4.2 A CRISE EM SI _______________________________________________________________ 45
1.4.3 A CRISE INFLACIONÁRIA _________________________________________________________ 46
1.4.4 A CRISE DEFLACIONÁRIA ________________________________________________________ 49
1.4.5 OBSERVAÇÃO SOBRE AS CRISES MONETÁRIAS __________________________________________ 50
1.5 CONCLUSÃO __________________________________________________________________ 50
2 CAPÍTULO 2: O SISTEMA INTER-ESTATAL CAPITALISTA E A ANÁLISE DE “LONGOS PERÍODOS”_ 52
2.1
2.2
2.3
2.4
2.5
O SISTEMA INTER-ESTATAL CAPITALISTA ______________________________________________ 52
ECONOMIA POLÍTICA DOS SISTEMAS-MUNDO (EPSM) ____________________________________ 54
CICLOS EXPANSIVOS ____________________________________________________________ 57
CICLOS EXPANSIVOS - COMENTÁRIOS _________________________________________________ 60
CONSIDERAÇÕES SOBRE O SIC ______________________________________________________ 61
2.6 CONCLUSÃO __________________________________________________________________ 64
3 CAPÍTULO 3: PRÉ-FORDISMO ____________________________________________________ 68
3.1 INTRODUÇÃO _________________________________________________________________ 68
3.2 ESCOLA FRANCESA DA REGULAÇÃO – CONCEITOS ________________________________________ 69
3.3 OS CICLOS III E IV ______________________________________________________________ 72
3.4 AS ESTRUTURAS SOCIAIS DO PRÉ-FORDISMO ___________________________________________ 74
3.4.1 CONTEXTO__________________________________________________________________ 75
3.4.2 FORMA E REGIME MONETÁRIOS: O PADRÃO OURO ______________________________________ 76
3.4.3 FORMA DA RELAÇÃO SALARIAL: SALÁRIOS FLEXÍVEIS______________________________________ 79
3.4.4 FORMA DA CONCORRÊNCIA: CONCENTRAÇÃO DE CAPITAL; FORMAÇÃO DE TRUSTES, HOLDINGS, ETC; CORRIDA
IMPERIALISTA.
_____________________________________________________________________ 81
3.4.5 FORMA DE ADESÃO AO REGIME INTERNACIONAL: LIVRE COMÉRCIO E GRANDE FLUXO INTERNACIONAL DE
INDIVÍDUOS E CAPITAL ________________________________________________________________ 86
3.4.6 FORMAS DO ESTADO: ESTADO MÍNIMO ______________________________________________ 90
3.5 CONCLUSÃO __________________________________________________________________ 91
4 CAPÍTULO 4: O SIC EM TEMPOS MODERNOS ________________________________________ 93
4.1 O ENTREGUERRAS ______________________________________________________________ 93
4.2 FORDISMO I OU BRETTON WOODS __________________________________________________ 96
4.3 A CRISE DA DÉCADA DE 1970 _____________________________________________________ 102
4.3.1 PRINCIPAIS FATOS ____________________________________________________________ 102
4.3.2 O PETRÓLEO _______________________________________________________________ 103
4.4 FORDISMO II ________________________________________________________________ 107
4.5 CONCLUSÃO _________________________________________________________________ 109
5 CONCLUSÃO _________________________________________________________________ 111
BIBLIOGRAFIA __________________________________________________________________ 116
SIGLAS ________________________________________________________________________ 119
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Representação da Relação Sujeito-Objeto-Rival________________24
Figura 2: Ciclos Expansivos do SIC___________________________________58
Figura 3: O SIC Pós-1870____________________________________________74
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Oposições que Traduzem o Dualismo da Moeda_______________41
Quadro 2: Das Categorias da Teoria Marxista às Categorias da Escola Francesa
da Regulação_____________________________________________________71
10
INTRODUÇÃO
O dia 15 de agosto de 1971 foi bastante importante para a história da economia
mundial. Foi o dia em que os EUA romperam com o padrão dólar-ouro e puseram
fim à estrutura de Bretton Woods, que vigorava há mais de 25 anos, desde o fim da
Segunda Guerra Mundial. Mais ainda, esta data marcou a ruptura do princípio de
promover a integração econômica internacional a partir da fixação da paridade entre
a moeda emitida pelo país hegemônico com o ouro. Tal princípio, por sua vez, já
vigorava há pelo menos 100 anos, uma vez que, desde antes da Segunda Guerra
Mundial, o Reino Unido, que era o país hegemônico da época, instituiu o padrão
ouro como o princípio organizador do capitalismo global durante o século XIX.
Nestes 100 anos, a economia mundial sofreu profundas transformações. Dessa
forma, com o abandono do ouro como referência mundial de valor, o novo sistema,
que agora se encontrava mais integrado do que nunca, passou a ter que se
organizar sob condições inéditas e adequar as suas estruturas às novas regras que
passariam a vigorar. As características gerais destas transformações é um dos
objetos principais do presente estudo.
No entanto, antes de chegar a elas, é necessária uma investigação de natureza
mais teórica. Buscam-se teorias que dêem conta de explicar o significado dos
acontecimentos históricos de forma ampla e coerente. Nesse contexto, as teorias
escolhidas para atuarem como arcabouços teóricos do presente estudo são: 1- a
11
Teoria da Regulação e 2- as Teorias dos Sistemas-Mundo. A partir destas, acreditase ser possível oferecer nova luz no que se refere às interpretações sobre o
significado da ruptura do acordo de Bretton Woods.
A Teoria da Regulação foi desenvolvida na França na década de 1970 quando um
grupo de economistas, autores de modelos macroeconométricos, que trabalhavam
para a administração econômica do país identificaram uma ruptura de certas
regularidades econômicas a partir de 1967. Então, inspirados por Michal Kalecki,
Nicholas Kaldor e Joan Robinson e, atraídos pela análise de longo prazo das
transformações do capitalismo, levam a efeito uma avaliação crítica do poder de
explicação das hipóteses marxistas.
A abordagem teórica desenvolvida pelos regulacionistas é inovadora. Seus autores
propõem rupturas com relação às abordagens existentes na Ciência Econômica. Por
um lado, rompem com as teorias predominantes ao rejeitarem o postulado do
homem racional como determinante principal do comportamento humano quando
deparado às questões de natureza econômica. No lugar, inserem o postulado do
homem que deseja. Por outro, rompem com a tradição marxista, bem como com a
tradição clássica, ao rejeitarem a primazia do valor como elemento fundamental da
coesão social. No lugar, eles inserem as variáveis da violência e da mimese. Uma
das conseqüências desse procedimento é a possibilidade de apreciar de forma
inédita a importância teórica fundamental que a moeda exerce nas relações
econômicas. Uma ressalva que deve ser feita desde já é que, devido à existência de
12
outra linha de pensamento com o mesmo nome, doravante chamaremos a Teoria da
Regulação de Escola Francesa da Regulação1.
Já as Teorias dos Sistemas-Mundo foram desenvolvidas pelos autores da área de
Relações Internacionais. Estes tomam como objeto o moderno sistema mundial.
Nesse contexto, o conceito de sistema-mundo os possibilita remontar a história
deste sistema desde suas origens no século XII. O sistema-mundo é, basicamente,
um conceito que expressa uma unidade de análise mais ampla do que as realidades
nacionais. Ele representa o espaço econômico integrado identificado pela existência
de alguma característica comum entre seus “países” componentes. Nesse contexto,
torna-se possível mostrar como o moderno sistema mundial em que vivemos resulta
da expansão de um sistema-mundo específico, a saber, o europeu.
Assim, a partir da teoria desenvolvida pelos autores da regulação, buscaremos antes
de tudo expor em âmbito teórico como a moeda possui um papel mais relevante do
que aquele proposto pelas teorias predominantes. Em seguida, discutiremos as
Teorias dos Sistemas-Mundo. Esta última, ainda que destituída dos argumentos
teóricos discutidos pelos autores da Ciência Econômica, oferece, através de
abordagem distinta, conclusões similares à Escola Francesa da Regulação com
relação ao papel diferenciado desempenhado pela moeda no processo histórico de
formação do moderno sistema mundial. Isto ocorre uma vez que, na busca dos
teóricos dos sistemas-mundo em explicar a dinâmica da consolidação das
hegemonias mundiais ocorrida sob a égide do modo de produção capitalista, fica
latente a questão referente a como cada país que exerceu a função hegemônica
1
“Um aviso liminar é importante para evitar um mal-entendido que se tornou muito freqüente à
medida que os economistas adotaram sem precaução as terminologias anglo-saxônicas. De fato, na
literatura internacional, a teoria da regulação diz respeito atualmente às modalidades segundo as
quais o Estado delega a gestão de serviços públicos e coletivos a empresas privadas com a premissa
de instituir agências administrativas independentes, chamadas de agências reguladoras.” Boyer,
2009, pg. 23.
13
atuou na hora de implementar sua moeda na extensão de sua área de influência. É
tarefa do presente trabalho explicitar este alinhamento entre estas duas abordagens
teóricas.
Neste contexto, ainda que a ruptura do padrão dólar-ouro tenha grande relevância
para o presente estudo, a questão relativa à influência da moeda acaba também por
assumir papel de destaque.
Dessa forma, após as discussões teóricas relacionadas às questões levantadas até
aqui,
empreenderemos
uma
análise
histórica
que
utilizará
os
conceitos
apresentados e terá por finalidade identificar o que representou a ruptura de 1971.
Esta análise toma como marco inicial a década de 1870 e prossegue até os dias
atuais.
Assim, podemos dividir o presente trabalho em três partes distintas. Na primeira,
constituída pelos capítulos 1 e 2, bem como pelos três primeiros itens do capítulo 3,
trazemos as contribuições teóricas relevantes para a compreensão do objeto de
estudo aqui proposto, a saber, o Sistema Inter-Estatal Capitalista.
Sendo assim, no capítulo 1, exporemos a teoria apresentada por Michel Aglietta e
André Orléan, autores filiados à Escola Francesa da Regulação, no que se refere à
questão monetária. Ver-se-á que a teoria trazida por estes autores diferem
amplamente daquelas predominantes no atual estado da Ciência Econômica. Ainda
assim, ao defender suas teses, estes autores confrontam com freqüência os seus
resultados com aqueles trazidos pelos autores mais tradicionais do assunto. Nesse
contexto, Aglietta & Orléan basicamente partem da premissa de uma limitação na
obra de Karl Marx com relação à primazia do postulado do valor. Para Aglietta &
Orléan há um elemento que antecede ao valor, a saber, a violência. Dessa forma,
14
efetuada a mudança, os autores reformulam a teoria de Marx para, em seguida,
explorar os seus resultados.
No segundo capítulo, recorreremos aos autores da área de Relações Internacionais
e partiremos do conceito de sistemas-mundo para, apenas então, definir
formalmente o Sistema Inter-Estatal Capitalista (SIC) e descrever o processo pelo
qual este sistema se expandiu de forma a subjugar os sistemas-mundo alternativos
para dentro de suas regras de funcionamento. De fato, de forma exitosa, o SIC se
ampliou gradualmente ao longo dos séculos, de modo que, em 1991, com o fim da
Guerra Fria e a absorção do bloco comunista pelo capitalista, veio a compreender
virtualmente toda a humanidade. Para tanto, será empreendida a abordagem do que
os autores da área chamam de análise de longos períodos, na qual se encontra
padrões específicos de expansão em períodos de âmbito secular.
No terceiro capítulo temos: no item 3.1, uma pequena introdução ao capitulo 3; no
item 3.2, mais conceitos elaborados pelos autores da Escola Francesa da
Regulação – modo de regulação, regime de acumulação, bem como uma proposta
de enquadramento institucional – relevantes para a análise histórica que se seguirá;
e, no item 3.3, já tendo em mente os conceitos expostos no item anterior, novas
questões relacionadas à discussão apresentada no capítulo 2.
Já na segunda parte, constituída pelos capítulos 3 – a partir do item 3.4 – e 4,
lançar-nos-emos na tarefa de desvendar o que significou a crise mundial da década
de 1970 para o sistema mundial moderno em que vivemos. Assim, deixaremos a
análise de longos períodos para nos aventurar em intervalos de tempo com menores
escalas de compreensão. Em sua plenitude, o intervalo analisado nesta parte se
estende desde a década de 1870, até os dias atuais. Não obstante, tendo em vista
15
os critérios regulacionistas, este intervalo de pouco menos que um século e meio
será subdividido em períodos menores de forma a permitir novas dimensões de
análise. No que se refere aos cortes destes intervalos menores, teremos como
principais referências o lastro das moedas nacionais com o ouro na década de 1870,
as duas Grandes Guerras Mundiais e o fim do acordo de Bretton Woods, marcado
pela ruptura do padrão dólar-ouro em agosto de 19712.
Nesse contexto, no terceiro capítulo trataremos do período que chamaremos de PréFordismo, delimitado pelas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, em que
a Inglaterra3, exercendo a liderança do SIC, promove a integração econômica
mundial a partir de um conjunto de princípios reguladores. Dentre estes princípios
estão o lastro das moedas nacionais com o ouro, bem como o livre comércio.
O quarto capítulo repete o procedimento para períodos posteriores à Primeira
Guerra Mundial, a saber, o entreguerras, o período entre 1945 e 1971 (aqui
chamado de Fordismo I) e o período que vai de 1971 até os dias atuais (aqui
chamado de Fordismo II).
Finalmente, na terceira parte, uma conclusão finaliza o trabalho.
2
Cabe lembrar que este marco da ruptura monetária de 1971 é apenas um dos marcos de uma crise
maior ocorrida no período. Escolhemos este fato como marco de ruptura entre dois períodos devido à
metodologia aqui desenvolvida que toma a moeda como variável central no que tange às relações
compreendidas no interior do modo de produção capitalista.
3
Ainda que as expressões “Inglaterra”, “Reino Unido” e “Grã-Bretanha” possam representar conceitos
diferentes, para fins de simplificação serão aqui tratados como se fossem sinônimos.
16
1 CAPÍTULO 1:
A VIOLÊNCIA DA MOEDA
Aqui se inicia a primeira parte do trabalho, composta pelos capítulos 1, 2 e parte do
3, onde se aborda e discute as principais correntes teóricas que o darão
embasamento.
1.1 Introdução
A teoria que será aqui apresentada foi primeiramente desenvolvida por Aglietta &
Orléan no livro A Violência da Moeda (19904). Por ser uma das obras seminais da
Escola Francesa da Regulação, o seu conteúdo será aqui exposto como se fosse o
defendido pelos teóricos desta escola.
A moeda é uma instituição bastante delicada nas sociedades modernas.
Basicamente, não há indivíduo que não a utilize em suas transações diárias. Mesmo
assim, diversos fenômenos a ela associadas não recebem uma explicação clara e
adequada de suas verdadeiras causas. As autoridades monetárias, responsáveis
por controlar a sua oferta, não possuem sequer uma noção precisa de qual é a
melhor medida dos agregados relevantes. Os objetos monetários que circulam num
dado momento na esfera econômica não são homogêneos, mas sim possuem
diferentes características de risco, de liquidez e até mesmo de emissor.
4
Este é o ano da edição brasileira. A edição francesa é de 1982.
17
Para Aglietta & Orléan, o motivo pelo qual a Ciência Econômica não oferece uma
explicação satisfatória para estes fenômenos reside justamente na insuficiência de
seus postulados básicos.
“Esses postulados recebem o nome de teoria do valor. Essa teoria é um esforço
permanente para elaborar uma economia pura obliterando a moeda da lógica da troca.
O adjetivo – puro – deve ser entendido em seu sentido estrito. Trata-se de uma tarefa
de purificação de tudo o que a moeda traz de desordem, de arbitrário, de luta, de
poder, de compromisso convencional, de fé cega; em resumo, de toda vivência social,
para elevar-se ao céu resplandecente da teoria. Nesse universo etéreo os atos de
troca, contratualmente estabelecidos, são relações entre iguais, fundadas na Razão
universal. Elas reconciliam a liberdade individual e o imperativo moral, numa harmonia
coletiva que assume a figura do Equilíbrio.” 5
Dessa forma, compreende-se que a reintegração da moeda não ocorra sem
dificuldade. Sob este arcabouço teórico se esboçou um conjunto de hipóteses
destinadas a mostrar que a moeda nada tem a ver com a troca. A moeda não pode
ser reintegrada senão a um nível teórico subordinado, obtido com a introdução de
hipóteses ad hoc numa construção que foi concebida para dispensá-la. É por isso
que Jacques Attali diz que sob essa teoria, “para falar em moeda é necessário forçar
os conceitos como se soca uma mala por demais abarrotada.” 6
“É a razão pela qual a economia monetária tem muita dificuldade em adquirir seus
títulos de nobreza. Esse campo exige dos teóricos uma grande flexibilidade para
efetuar as contorções intelectuais impostas por suas próprias regras. A moeda é
importante, senão, como justificar os intermináveis discursos que lhe são
consagrados? Mas ela é neutra porque não pode alterar definitivamente a onipotência
da Razão que inspira os sujeitos econômicos. Para conciliar esse delicado dilema,
declara-se que a moeda é neutra... a longo prazo. Mas o longo prazo não tem outra
definição senão o tempo no termo do qual a moeda é neutra! (...) Há, portanto, um
incrível divórcio entre a inquietude suscitada pelas desordens monetárias e o que
disso pode afirmar o liberalismo econômico de um ponto de vista doutrinal.” 7
5
Aglietta & Orléan (1990), pg. 27. Meu negrito.
Ibid, pg. 9. Prefácio.
7
Ibid, pg. 28.
6
18
Essa lacuna teórica é que desencadeia alguns dos intensos debates políticos que se
observa com relação ao papel do Estado na economia. O que está em jogo diz
respeito à responsabilidade dos bancos centrais nas perturbações monetárias, à
definição de seus objetivos, à implementação dos meios através dos quais eles
podem exercer uma influência benéfica sobre a economia do setor privado, etc.
Os neokeynesianos, por exemplo, pensam que a eficiência dos mecanismos
objetivos da economia pode ser aumentada pela manipulação da demanda
autônoma e da taxa de juros. O Estado estaria, portanto, em condições de ter uma
ação positiva, através da conduta de suas autoridades monetárias.
Uma posição contrastante é a da tradição liberal ortodoxa que vê na moeda a
origem de todos os males. Para estes, todos os problemas monetários se resumem
na impossibilidade para os proprietários privados de prever os impulsos erráticos da
emissão monetária pelo Estado. A concepção do Estado se assemelha à imagem
maniqueísta do Leviatã. A debilidade da análise teórica subjacente às exortações
antiestatais do monetarismo leva a oscilações vertiginosas dentre seus autores.
Tem-se, por exemplo, por um lado, autores que, conduzidos por M. Friedman,
defendem que as autoridades do banco central deveriam reinar sem governar;
manter fixo o olhar sobre a linha azul de uma progressão constante da massa
monetária. Por outro, tem-se autores que, inspirados por F. Hayek, crêem poder
dispensar totalmente os bancos centrais, uma vez que a moeda não seria mais do
que outra mercadoria qualquer. Assim, estes perguntam: por que então sofrer o
arbítrio de uma instituição exorbitante do direito privado, já que se pode confiar nas
virtudes do mercado para selecionar as boas moedas privadas? As divergências se
encontram também nas questões monetárias internacionais entre os partidários dos
câmbios fixos e flexíveis, entre outros.
19
Dessa forma, dizem Aglietta & Orléan, a gravidade e a recorrência dos problemas
monetários lançam, portanto, um desafio ao qual a economia política foi incapaz de
responder. Essa lacuna não se deve a uma falha da atenção dos economistas, mas
se origina das hipóteses fundamentais da economia política. Com efeito, não é
possível estabelecer a necessidade da moeda, colocar em evidência sua
significação social e suprimir o desconhecimento que sua onipresença suscita, sem
rejeitar os postulados sobre os quais é fundada a teoria do valor.
Delegar um papel relevante à moeda na própria formação das relações mercantis se
torna, sem dúvida, o próximo passo no desenvolvimento das elaborações teóricas.
Mais precisamente, é necessário partir do ponto de vista segundo o qual a moeda é
o primeiro vínculo social para descobrir a qualidade do que é monetário e deduzir
um método geral para analisar os sistemas monetários. Em outras palavras, os
autores se propõem, com o objetivo de superar as limitações existentes, a
desenvolver nada menos do que uma teoria qualitativa da moeda. Para tanto,
pretendem renunciar ao que constitui o pressuposto da economia política desde sua
constituição na segunda metade do século XVIII, a saber, a concepção substancial
do valor.
“Que essa substância seja a utilidade ou o trabalho nada muda no que concerne ao
estatuto da moeda. O essencial é um ponto de partida segundo o qual a coerência
social já é pressuposta na evidência natural de uma qualidade comum aos objetivos
econômicos.” 8
O próprio Marx, embora tenha desenvolvido toda uma problemática que tendesse à
ruptura da concepção de valor, não o fez, deixando assim “ambigüidades que
permeiam a sua obra e que deram origens a incompreensões e infindáveis
8
Ibid, pg. 31.
20
discussões.” 9. Assim, será proposta uma reinterpretação da teoria marxista da
mercadoria que não esbarre nas deficiências da teoria do valor-trabalho.
Fica, então, a questão: como esperar partir de um pressuposto tão geral como o
valor, mas que implica a moeda como uma conseqüência em vez de suprimi-la?
Mais ainda, que hipótese se deve apresentar de forma a não conduzir apenas a
idéia de equilíbrio ou de reprodução, mas que incorpore indissoluvelmente a idéia de
crise ou de transformação?
A solução encontrada consiste em colocar no ponto de partida da sociedade
mercantil a violência. Para obter tal resposta foi necessário sair do escopo da
Ciência Econômica e se aventurar no âmbito da Antropologia e da Teoria
Estruturalista a ela associada.
“Assim, o pressuposto que se quer reter é que as relações mercantis se definem por
uma violência aquisitiva, isto é, que se transmite aos objetos, cujo processo
chamamos de açambarcamento.” 10
A lógica que se procura romper com esse direcionamento teórico não é apenas
associada aos postulados do valor e do homem racional, mas se refere também a
uma limitação de outra natureza e que é comumente empregado na Ciência
Econômica. Trata-se da aplicação do método experimental importado das chamadas
hard sciences, como a Física, que consiste basicamente em “formular hipóteses,
formalizá-las, efetuar testes empíricos e retomar as hipóteses de base”. 11
O problema da generalização desse procedimento quando aplicada numa ciência
predominantemente humana é que, para manipulá-la com praticidade, é necessária
9
Ibid.
Ibid, pg. 33, itálico dos autores.
11
Ibid.
10
21
a atribuição de certas suposições no que se refere às respostas de determinados
indivíduos (ou, se preferir, agentes) quando deparados a determinadas situações.
Daí surge o primado concedido ao sujeito racional na explicação das relações
econômicas.
“ele [o primado do sujeito racional] leva, em primeiro lugar, a escamotear o problema
da coerência social, pois a socialização já é adquirida no princípio de racionalidade,
suposto comum a todos os indivíduos. Assim, o campo social se constrói
automaticamente como resultado das arbitragens individuais. Conduz também [em
segundo lugar] à hipótese reducionista, segundo a qual todas as formas de
organização, mesmo as mais complexas, podem ser analisadas como sendo a soma
de comportamentos individuais.” 12
E, por fim, ressaltam:
“Nosso objetivo é antes de tudo demonstrar que é possível construir um modelo
conceitual e teórico das relações econômicas tão rigoroso quanto o do equilíbrio geral,
mas que rompe radicalmente com o primado do sujeito racional para substituí-lo pela
hipótese da violência social.” 13
1.2 A Moeda e os Processos Fundadores da Ordem Social
No que se refere à relação entre a Escola Francesa da Regulação e o Marxismo, o
assunto deve ser tratado com um pouco mais de profundidade. Isso porque se, por
um lado os regulacionistas se propõem a ser uma ruptura com a teoria desenvolvida
por Marx, uma vez que abrem mão da suposição do valor como elemento-chave da
coesão social nas relações mercantis, pilar central este da teoria marxista, por outro,
eles se apoiam consideravelmente em estruturas teóricas trazidas por Marx.
Com relação a essa questão, dizem Aglietta & Orléan (1990):
12
13
Ibid, pg. 34.
Ibid, pg. 37.
22
“No estudo das sociedades mercantis, a autonomia aparente das relações econômicas
é geralmente considerada como óbvia. Aliás, Marx é o primeiro entre os grandes
pensadores dessa disciplina a ter uma consciência clara do problema. Todavia, o
ponto de vista a partir do qual ele pôde adquirir essa consciência permaneceu
totalmente ininteligível, tanto aos não-marxistas como à maioria dos marxistas.” 14
Os autores dizem que Marx desenvolveu todos os procedimentos para se situar fora
do campo teórico definido por Ricardo, mas que, no entanto, ele não o quebra de
fato ao inserir as hipóteses do valor como princípio básico de sua teoria. Essa
conduta leva, portanto a confusões na interpretação da obra de Marx:
“A despeito de todas as indicações que Marx acrescenta sobre a dimensão moral e
histórica das necessidades humanas, o valor de uso permanece um enigma, porque
ele não é concebido como uma relação social. (...) É por essa razão que ocorre uma
modificação conceitual que se torna irremediável entre os sucessores de Marx.
Embora a contradição entre valor de uso e valor de troca apareça, teoricamente, antes
das contradições referentes ao conceito de trabalho, toda a tradição marxista faz dela
uma derivação destas últimas. (...) Essa situação vai marcar de forma indelével o
marxismo e explica como ele pode expor-se às críticas. Atribui-se-lhe com facilidade a
mais profunda análise do trabalho jamais feita, mas se assinala sua incapacidade em
acolher uma análise do desejo. A despeito da pretensão do marxismo em acolher toda
a práxis humana, um reducionismo estaria aí perpetuamente vigente, isto porque o
desejo humano tem forças que escapam às determinações que o trabalho supõe.
Nesse vazio teórico, o individualismo triunfante da sociedade burguesa, em seu
apogeu, pôde encontrar sua racionalização, graças à teoria da utilidade-escassez.
Pouco tempo depois da publicação da obra fundamental de Marx, o homo
oeconomicus eleva-se à condição de respeitabilidade científica na França, graças a L.
Walras; na Grã-Bretanha com Jevons; na Áustria sob a pena de Menger.” 15
Para que essas questões sejam superadas e para que seja possível compreender a
moeda em sua plenitude, os autores afirmam ser necessário não apenas rejeitar a
hipótese do sujeito genericamente idealizado, o agente racional, mas também
repensar a significação da relação social elementar, que é a troca mercantil.
14
15
Pg. 44.
Ibid, pg. 45. Itálicos dos autores.
23
“Ora, hoje é possível renovar a reflexão sobre o ponto de partida de Marx e, ao mesmo
tempo, compreender as razões profundas da esterilidade da assim chamada teoria
neoclássica; isto é, levando-se em conta os avanços decisivos da antropologia. A esse
respeito, os trabalhos de René Girard [1972, 1978] se destacam pela fecundidade da
hipótese que ele formula sobre a relação elementar que caracteriza o desejo humano.
A partir dessa hipótese que Girard denomina mimese, é possível criar uma concepção
geral do valor de uso. Uma importante conseqüência disso é subtrair a teoria marxista
das formas do valor às críticas dos partidários da teoria subjetiva do valor. Com esse
procedimento, mostram-se as incompatibilidades dessas críticas com os
conhecimentos positivos da moderna antropologia.” 16
Dessa forma, a Escola Francesa da Regulação acredita que Marx se equivocou ao
assimilar a teoria do valor como o elemento básico de coesão social das relações
mercantis. No entanto, tal equívoco pode ser solucionado ao se retirar do valor a sua
posição de destaque e, no lugar, inserir a teoria de René Girard que utiliza a
violência como elemento-chave. Assim, é possível não apenas resolver as
contradições que permeiam as discussões entre os marxistas desde suas origens,
mas também extrair ainda mais do que Marx buscou explicar em suas obras.
Para tanto, é necessário definir antes de tudo a hipótese subjacente no que
concerne a qual a concepção do sujeito humano que está por trás da lógica
fundamental de toda a ordem social. E é nesse ponto que a contribuição da moderna
antropologia se torna decisiva. A inovação que será aqui introduzida é que, em lugar
do “homem racional”, será inserida a concepção do “homem que deseja”.
Dizem Aglietta & Orléan (1990):
16
Ibid, pg. 47. Itálico dos autores, meu negrito.
24
“Se a contradição entre valor de uso e valor de troca é primordial em relação às
contradições relativas ao trabalho, é porque o desejo é a relação humana
fundamental. Se a concepção subjetiva do valor se engana, é porque ela faz do desejo
um simples desejo de objeto, correspondente a um sujeito que nasce na plenitude do
ser, e que é, conseqüentemente, livre e independente. A hipótese antropológica de
René Girard é completamente diferente. O desejo humano é um desejo do ser porque
todo indivíduo padece de uma ausência de ser. Sendo ele próprio o ser, o objeto do
desejo só pode ser procurado através de outrem, que se encontra na mesma situação.
Conseqüentemente, desejar o ser é imitar o desejo do outro. (...). O verdadeiro sujeito
social não é o indivíduo livre da concepção metafísica da subjetividade; é a relação
elementar sujeito-objeto-rival.” 17
A estrutura mimética do desejo pode ser representada da seguinte forma.
Figura 1: Representação da Relação Sujeito-Objeto-Rival.
Elaboração própria.
Isto é, o sujeito se confronta com o rival que é detentor do objeto de seu desejo. É
essa lógica que dá origem ao que a teoria de Girard denominará rivalidade
mimética.
17
Pgs. 54-55, Itálico dos autores, meu negrito.
25
“Essa relação é definida por Marx como a contradição entre o valor de uso e o valor de
troca. A contradição, isto é, as duas faces opostas e, entretanto indissociáveis de uma
mesma relação, resulta – da perspectiva do sujeito – da posição do rival. O fato é que
o rival é ao mesmo tempo modelo e obstáculo. O valor de uso é o produto, enquanto
designado pelo rival como objeto do desejo do sujeito. O valor de troca é o obstáculo
que o rival coloca diante do desejo de adquirir do sujeito. Compreende-se, então, a
significação profunda do caráter assimétrico da troca, do ponto de vista do sujeito.” 18
Esta estruturação teórica se contrapõe àquela desenvolvida por Walras. Sobre isso,
dizem os autores:
“Walras coloca-se desde o início em uma perspectiva exterior aos dois indivíduos que
se relacionam na troca, e portanto elimina, assim, toda a possibilidade de reconstruir
teoricamente o processo que tornaria legítima essa visão. Entretanto, o autor quer
analisar a troca a partir da própria troca. Assim sendo, esbarra em uma dificuldade que
o fascina. O ato da troca lhe aparece como sendo rigorosamente simétrico; nada pode
distinguir aqueles dois sujeitos participantes do ato da troca. Reciprocamente, nesse
ato, a demanda de um é a oferta do outro. Dessa forma, é totalmente impossível,
sobre esta base, definir funções de oferta e procura. Somente aparece a identidade
dos produtores e não-produtores de mercadorias, e o próprio ato como puro número,
cuja determinação é ininteligível. Uma tal relação, como veremos, é uma relação
mimética pura, que René Girard chama de relação de duplos. Ela não exprime a
harmonia de uma relação estável; mas é, ao contrário, o paroxismo de uma crise,
onde tudo se confunde, onde reina a extrema indeterminação. Portanto, não é
surpreendente que Walras não possa determinar a razão de troca, enclausurando-se
na análise da troca. Deve introduzir o que Endgeworth fará explicitamente, ou seja:
dotar os sujeitos privados do espírito de sujeitos racionais, já providos de seus
sistemas de preferências; isto é, voltar-se para a concepção objetal do desejo, da qual
mostramos a significação. Pode-se então construir a curva de contratos, e a troca
nada mais é do que um simulacro da sociabilidade preexistente nos seus
participantes.” 19
Marx, ao contrário, coloca-se na única perspectiva científica legítima para
compreender a própria troca, a saber, a dos possuidores privados de mercadorias:
18
19
Ibid, pg. 55.
Ibid, pgs. 52-53.
26
“Há, desta vez, dois pontos de vista que não podem ser mantidos simultaneamente,
mas, sim, sucessivamente. Quando alguém se coloca na perspectiva de um sujeito
particular, o outro aparece de forma distinta, e assim a troca é assimétrica. Mas,
quando se põem os óculos do outro, não se encontra mais o ponto de vista do
primeiro. ‘O outro’ do segundo não é a situação de onde se partiu. As duas relações
assimétricas, que foram sucessivamente consideradas, não se reduzem como por
encanto a uma única relação simétrica. Ao contrário, elas se excluem reciprocamente
num violento antagonismo. Tal é a estrutura mimética da troca que é o processo
elementar de toda a socialização. Porque a rivalidade violenta dos participantes da
troca não pode ser expulsa, a não ser engendrando um terceiro termo mediador,
radicalmente diferente dos dois protagonistas iniciais, qual seja, a instituição do social.
Assim, a troca não pode ser senão uma relação ternária, pois deve, continuamente,
expulsar a violência e reafirmar a legitimidade da instituição mediadora.” 20
A instituição mediadora que intermediará as relações mercantis é justamente a
moeda.
Agora que já foram introduzidas as variáveis da violência e do desejo e relegada a
segundo plano a idéia do valor, é possível retornar à teoria de Marx e analisá-la
fazendo as devidas ressalvas. Mais precisamente, falaremos da dialética das formas
do valor, que agora “poderia perfeitamente chamar-se de dialética das formas de
violência.”
21
Trata-se de três etapas que deduzem a gênese da moeda a partir de
um ponto de vista lógico. Estas serão enunciadas a seguir:
20
21
Ibid. pg. 53. Itálico dos autores.
Ibid, pg. 56, meu itálico.
27
1.2.1 FI: a Violência Essencial
“A primeira forma do valor (FI), aquela que confronta o sujeito e o rival com a
mercadoria [vide figura 1], é a mais fundamental e a mais difícil de se conceber. Karl
Marx a denomina ‘forma simples ou acidental do valor’. (...). No modo de expressão da
economia pura, duas mercadorias podem, imediatamente, se comparar uma a outra
na seguinte relação:
quantidade a do objeto A = quantidade b do objeto B.” 22
A forma FI explica a impossibilidade de uma sociedade de troca baseada no
escambo. No entanto, o motivo desta impossibilidade difere entre as duas leituras.
Para Marx, a forma FI é a expressão teórica da contradição da mercadoria que se
expressa através da tensão existente entre as duas determinações sociais da
mercadoria, a saber, o valor de uso e o valor de troca. Já para Girard, a força
elementar implícita na relação FI é a da captura:
“Cada sujeito procura apropriar-se do desejo do outro, imitando-o. No que é sempre
frustrado pelo obstáculo que o outro aí coloca tomando o desejo do primeiro por
objeto. Tal processo só pode conduzir a exacerbação recíproca do desejo; e no fim
desse processo, cada qual não vê senão seu próprio desejo em face de si mesmo.” 23
De qualquer forma, ambos concordam que “o escambo simétrico e estável, tão caro
aos economistas, não existe.” 24
22
Ibid, pgs. 57-58.
Ibid, pg. 59.
24
Ibid.
23
28
“O processo de socialização tem, portanto, num primeiro momento, uma Spaltung,
uma cisão, que o desejo inscreve naquilo que não poderia ser indicado
metaforicamente senão pela expressão do caos; uma indiferenciação que é, no
sentido estrito, impensável, porquanto amorfa. A violência do desejo está na origem da
relação social elementar. O valor de uso é uma metáfora do desejo de adquirir, isto é,
o nome dado à mercadoria através da qual o sujeito visa o modelo-obstáculo.” 25
1.2.2 FII: a Violência Recíproca
“Parece que, nem bem estabelecida, a relação de valor se autodestrói, porque é a
expressão teórica da violência essencial. No entanto, isso não ocorre. A contradição
pode encontrar uma forma social que a suporte. Mas essa forma não provém de um
apaziguamento da violência; é uma espécie de transmutação dela. Essa forma estável
não pode surgir diretamente. Resulta, paradoxalmente, de uma generalização da
relação concorrencial dos duplos. Tal generalização engendra a violência recíproca,
que é o segundo grau da lógica do desejo.” 26
A forma FII é, basicamente, a generalização da forma FI, quando inseridos muitos
bens com diferentes possuidores. Aquilo que os economistas chamariam de um
mercado. E pode ser representado pelas seguintes expressões:
b1 de B = c1 de C = ... = z1 de Z = a1 de A;
a2 de A = c2 de C = ... = z2 de Z = b2 de B;
E assim por diante. Até que finalmente:
Az de A = bz de B = ... = zz de Z.
O motivo desta seqüência é que o elemento que assumir a última posição da
equação é aquele tido como o equivalente. Isto é, aquela que “serve de espelho à
expressão de valor de todas as outras mercadorias.” Dizem ainda os autores:
25
26
Ibid. pgs. 59-60.
Ibid, pg. 61.
29
“Decorre disso um processo de contágio da relação elementar sujeito-mercadoria-rival.
Cada um expõe seu valor de uso, numa seqüência indefinida de formas equivalentes;
cada um vê sua mercadoria tomada como equivalente por um número indefinido de
vezes. Tal é a forma FII, chamada por Marx de ‘forma valor total ou desdobrada’” 27
Cabe ainda acrescentar que a forma FII apresenta instabilidade. Isso porque há o
problema de não haver um consenso estável entre os participantes sobre qual
destes exercerá o papel de moeda.
Esta é uma situação limite do que mais adiante iremos chamar de fragmentação.
Como resultado da concordância entre os envolvidos sobre a questão é que surge a
moeda.
1.2.3 FIII: a Violência Fundadora
Nesta forma, uma das mercadorias é eleita como o equivalente geral. Como
contrapartida, pode-se dizer ela também é expulsa, no sentido em que “um objeto
específico é excluído enquanto valor de uso.”
“Se A é esse objeto, podem-se escrever as equivalências:
b de B = a1 de A; c de C = a2 de A; ...; z de Z = an de A.
É a forma FIII do valor ou a “forma dinheiro”, cuja assimetria e, por conseguinte, cuja
diferenciação são agora fixados. Os números a1/b, a2/c, ..., an/z são os preços das
mercadorias B, C, ..., Z, respectivamente.” 28
27
28
Ibid, pg. 61, Itálico dos autores.
Ibid, pg. 63.
30
FIII é, de certa forma, o oposto de FII: se a violência recíproca (FII) expressa a falta de
consenso sobre qual bem exercerá o papel de equivalente geral, a fundadora (FIII)
representa a escolha de um bem, A, para exercer tal função.
1.3 Centralização e Fragmentação
Neste ponto da análise, encontramo-nos completamente afastados de uma visão
objetal ou instrumentalista da moeda. Desta forma, esta não pode ser identificada
com um objeto particular ou com uma mercadoria, uma vez que estas são apenas
suas representações transitórias. Ela pode, no entanto, ser identificada como a
articulação dialética das três formas de violência, FI, FII e FIII. Quanto a isso dizem os
autores:
“Cada uma dessas formas explicita uma modalidade particular de expressão da
violência social, a saber, a violência essencial, a violência recíproca e violência
unânime ou fundadora. Portanto, a violência não é homogênea e indiferenciada;
manifesta-se em níveis de ocorrência qualitativamente distintos, aos quais
correspondem leis específicas.” 29
Assim, cada uma das funções da moeda (meio de circulação, reserva de valor e
unidade de conta) corresponde a esses diferentes graus de violência mercantil.30
O âmago da questão é: num mundo onde a produção coletiva é assegurada pela
propriedade privada, em que cada produtor detém plena liberdade de decisão sobre
o que produzir, como que é assegurada uma alocação que satisfaça as
necessidades de seus integrantes? Qual o princípio que comanda a socialização dos
29
Ibid, pg. 79.
A explicação de como dessas três formas de violência se originam as três funções da moeda pode
ser encontrada nas pgs 65-73.
30
31
produtores privados? Como é neutralizado o desejo desvairado de apropriação por
parte dos agentes?
A forma de compreensão quase universal da solução desse problema consiste em
identificar na relação mercantil um princípio cuja lógica é exterior à troca
propriamente dita. Esse método lógico está na base de toda teoria do valor. Assim,
dizem os autores:
“Postula-se sempre nela a existência de uma lei primordial, qual seja, a racionalidade
dos agentes econômicos ou o primado do trabalho, que para além da anarquia
aparente da produção mercantil impõe-se como um princípio ordenador. Mas, se essa
regra permite que a sociabilidade mercantil se constitua, isso não se deve a uma
confrontação vitoriosa com a violência, cujas condições de sucesso deveriam, então,
ser explicitadas. É a simples conseqüência lógica do primado concedido a priori a essa
regra, que faz da separação dos produtores e da violência, daí decorrente, modos
subordinados de expressão das forças econômicas. Assim, se elabora uma teoria que
explicita precisamente as normas de socialização que essa lei transcendente coloca
em movimento. Mas, em suas premissas, ela nega uma dimensão fundamental da
realidade, tornando-a marcada pela insignificância. Então, a natureza arbitrária dessa
negação conduz a numerosos impasses lógicos, que esse discurso administra de
forma medíocre, graças a pseudodialética do ‘normativo’ e do ‘positivo’, do ‘natural’ e
do ‘real’.”
E, em seguida, acrescentam:
“Nossa conceituação difere radicalmente desse método lógico. Não existe na ordem
mercantil outra naturalidade a não ser a da violência aquisitiva. Assim, é a análise
desta, e não um princípio de coesão exterior às trocas, que permite compreender
como a sociedade mercantil se constitui. O conceito de mimese permitiu a análise das
formas de violência. Evidenciou-se, então, o seguinte resultado impressionante: se as
relações mercantis se estruturam e adquirem uma estabilidade relativa, isso se deve a
uma lógica própria, ou seja, a violência mimética. A organização social é tão somente
uma expressão particular da violência, a que foi denominada forma FIII. Na ordem
econômica, trata-se da instituição monetária.” 31
31
Ibid, pgs. 80-81. Itálicos dos autores.
32
É esta a proposição teórica que dá origem a análise concreta dos sistemas
monetários. Nessa lógica, a moeda é simultaneamente o fruto da violência, mas
também a regra que se opõe ao conflito, uma vez que assume o papel de
mediadora. A esta contradição é dado o nome de ambivalência da relação
monetária. Quanto a isso, dizem os autores:
“Ao conceito de transcendência, postulado pela economia política para fundar a
sociabilidade, propomos o de ambivalência da relação monetária, qual seja como
terceiro elemento intermediário nos conflitos, que não suprime a violência mimética,
impregnada nas trocas, mas lhe confere uma expressão social.” 32
Desta dicotomia, tem-se que a ordem monetária é fundamentalmente instável.
Nesse contexto, é portanto necessário analisar como o sistema monetário coloca em
prática essa ambivalência.
“Nosso estudo deve mostrar como a instituição da ordem monetária permite uma certa
administração dos conflitos, mas também como, indissoluvelmente, ela produz forças
violentas, capazes de destruí-la. Pois não há jamais forma absoluta de regulação,
mas, ao contrário, sempre formas transitórias, precárias, formas em mutação.” 33
Assim, temos a forma FIII como a referência básica de capacidade reguladora da
ordem monetária. À organização monetária baseada nesse molde se dará o nome
de sistema homogêneo. Esta é a situação em que as funções de meio de
circulação, reserva de valor e unidade de conta são exercidas unicamente por uma
moeda central, D. Já o sistema fragmentado seria aquele em que há liberdade
para que agentes privados emitam suas próprias moedas. No entanto, este último
dificilmente se vê como um retorno a forma FII. De fato, a forma FII, em si,
corresponde à situação extrema em que os agentes não atingem um consenso com
32
33
Ibid, pg. 81. Itálicos dos autores.
Ibid, pg. 82.
33
relação a qual, ou se há, uma moeda central. Temos então um sistema híbrido, onde
predomina a coexistência da moeda central com moedas privadas. A este se dá o
nome de sistema hierarquizado.
1.3.1 Partindo da Forma FIII
Posto que estamos trabalhando com a forma FIII, a análise da moeda será feita
através de um desvendamento regressivo, que vai das qualidades mais evidentes
até chegar nos princípios imanentes que a fundamenta.
“Enquanto processo de validação social, a moeda aparece primeiramente como
princípio de homogeneização, que torna comensuráveis as diversas mercadorias. Ela
despoja cada mercadoria de suas características concretas, e assim permite a
constituição de uma relação de equivalência: a cada bem, o operador monetário faz
corresponder um algarismo puro, seu preço. (...). Na forma FIII a moeda mostra
imediatamente suas qualidades de unidade de conta.
Mas, uma lógica de equivalência é essencialmente uma lógica violenta, pois designa
um processo que nega toda diferença; toda heterogeneidade se torna insignificante.
Ela implica uma submissão brutal dos projetos privados às normas centralizadas e
necessita, por conseguinte, da existência de processos de integração/exclusão e de
medidas coercitivas. Essa forma da regra monetária, que FIII coloca em prática, é a
obrigação do pagamento à vista, a coerção da solvabilidade. Nós a denominaremos
norma N0.” 34
Temos então que a unidade de conta e a regra do pagamento à vista, denominada
norma N0, são as qualidades que primeiro se colocam. A próxima qualidade que
deve ser ressaltada é a da moeda como reserva de valor. Isso porque há uma
operação fortemente incrustada na sociedade mercantil que as duas qualidades
anteriores não abrangem. Esta é o investimento. Nele, há uma questão com relação
à intensidade de aplicação da norma N0. A instauração da moeda como reserva de
34
Ibid, pg. 83. Meus negritos.
34
valor permite certo escalonamento no tempo de sua maturação. A função de reserva
de valor será representada aqui como a relação {D = M}, isto é, a moeda assumindo
o papel de mercadoria.
1.3.2 Polarização Mimética
Outro conceito que os autores aqui introduzem é o de polarização mimética.
Significa a convergência de todos os desejos sobre um mesmo objeto, como o que
ocorre no caso da moeda. Tal conceito tem a ver com a idéia de que os indivíduos,
por possuírem uma ausência de ser, acabam por imitar o outro. Sobre isso, dizem os
autores:
“A mimese designa o estado incompleto do indivíduo, de ausência total de uma
ausência referencial qualquer, que conduz o sujeito a desejar o que o outro deseja. Ela
desemboca num movimento de imitação, no qual cada agente tenta exorcizar esse
vazio ontológico tomando o vizinho como modelo.” 35
O resultado desse processo é nada menos do que a exclusão desse objeto para fora
da esfera privada, ou seja, sua institucionalização. Dessa forma, instituída a moeda
através de uma autoridade central, esta última passa a exercer o papel de mediador
nas relações mercantis:
“À relação privada i/j, engendrada por uma troca entre os sujeitos i e j, a soberania
monetária substitui a relação assimétrica i/X, que liga os agentes privados ao instituto
central X, através da posse da moeda.” 36
35
36
Ibid, pg. 86.
Ibid, pg. 88.
35
1.3.3 O Sistema Homogêneo
Será denominado sistema homogêneo a organização monetária na qual o
financiamento é assegurado exclusiva e diretamente pela instituição central.
Formalizando o sistema homogêneo observa-se que cada centro (i) nele é
submetido à obrigação de solvência C(i):
= ∑௛ , ℎ (, ℎ).
Onde h designa as mercadorias, p o preço estabelecido por i para o bem h e y a
oferta líquida de mercadoria h pelo centro i.
Temos então que ∑௜ = 0.
Aliás:
= − .
Onde D(i) designa a quantidade de dinheiro possuída por (i) após as vendas y(i,h) e
U(i) suas dívidas diante da instituição central X. Temos então:
= ∑௜ = ∑௜ = .
O balanço diferencial de X se escreve, à data t:
Em outras palavras, a instituição central (X) emite a moeda (D) em contrapartida de
dívidas (U) emitidas pelos centros i.
36
“Nessas condições, a coerência das decisões privadas é assegurada. Parece que
todos os conjuntos possíveis de escolha podem se exprimir em toda a sua liberdade. É
a equação monetária que absorve as tensões.” 37
Uma crítica que pode ser feitas a muitas correntes da economia política é que não
consideram a economia monetária senão sob essa forma caricatural. Walras, por
exemplo, só consegue explicitar com rigor o processo das trocas se supusesse a
priori a existência de um agente central fictício, o chamado leiloeiro walrasiano.
A propriedade essencial da relação i/X é a de colocar um mediador entre o devedor
e o credor; de substituir a relação instável i/j pela relação mediatizada i/X/j. Uma
transferência de j para i pode ser representado segundo os seguintes registros
contábeis:
Assim, na aparência, o sistema homogêneo é aquele cuja natureza é a mais
adequada à expressão das solidariedades produtivas. Isso porque, sob essa
estrutura, o agente devedor i é protegido das imposições de seu credor j, de sua
sede de açambarcamento. O banco central, aceitando o título U(i), transforma a
coerção do pagamento a vista. Fazendo isso, ele promove uma dinâmica
parcialmente liberada do desejo aquisitivo, que permite a emergência de maior
coerência social.
No entanto, esta relação não suprime o conflito, mas apenas o transforma. Isto é, os
efeitos da mimese aquisitiva ainda persistem. A relação i/X provoca uma polarização
37
Ibid, pg. 90.
37
entre os agentes entesouradores e os agentes deficitários. Ela define diretamente
um conflito de interesses onde o que está em jogo é a propriedade social.
“Os agentes superavitários vêem aumentar seus encaixes monetários sem que em
contrapartida seu poder econômico cresça. Com efeito, a propriedade permanece
parcialmente nas mãos de i, enquanto que, segundo eles, esse agente dá provas,
através dos déficits recorrentes que sofre, de sua incapacidade para reorganizar sua
produção. Ora, por elaboração, toda absorção dos agentes deficitários torna-se
impossível, pois não existe nenhuma ligação direta entre o agente superavitário j e o
agente deficitário i. O que era a qualidade primordial da relação i/X cria a possibilidade
de uma exacerbação infinita dos conflitos sem mecanismo auto-regulador. Para os
agentes deficitários a situação não é menos intolerável. Eles têm toda a razão de se
queixar de um financiamento cuja insuficiência lhes proíbe reaver sua hegemonia
tecnológica e, simultaneamente, suprimir seus déficits. As pressões que X poderia
exercer são ressentidas como inadmissíveis; elas os conduziriam diretamente à
falência, à supressão de toda sua autonomia.” 38
Dessa forma, fica latente uma incoerência fundamental do sistema homogêneo que
é a incapacidade da moeda central de permitir uma circulação dos direitos de
propriedade. O banco central atenua este impasse ao instituir uma relação de
equivalência vinculando um saldo que aparece na data t e o que aparece na data t +
T. Dessa forma, a imposição coercitiva da norma N0 se vê atenuada por um
escalonamento no tempo. A relação pode ser representada pela seguinte expressão:
௧ = ் ୲ା் .
Do ponto de vista dessa relação, todo engajamento produtivo não é nada mais do
que um circuito monetário prospectivo, cujos determinantes são os refluxos de cashflow antecipados para os diferentes períodos futuros. A todo investimento I é
associado um tempo T, ao cabo do qual o crédito U(i) é destruído. Esse tempo
responde a fórmula de atualização clássica:
38
Ibid, pgs. 96-97, meu itálico.
38
்಺
= ௧ ௧ .
௧ୀଵ
Onde Rt são os rendimentos esperados para o período futuro t e TI condensa a
tensão entre a lógica privada de acumulação de capital e a obrigação de seu
financiamento.
1.3.4 O Sistema Fragmentado
O sistema homogêneo é a expressão da necessidade que a ordem mercantil tem de
uma representação central a qual os sujeitos possam se referir. Essa referência tem
por tarefa atenuar a influência deletéria da violência e da incerteza. Ao mesmo
tempo, tal estrutura apresenta uma inflexibilidade em se adaptar às novas
condições. “Essa é uma dualidade própria a toda regra”, dizem os autores, “Ela se
exprime na possibilidade sempre renovada de um ‘excesso’ ou de uma ‘insuficiência’
de moeda”.
“A fragilidade dessa organização decorre do fato de que ela não oferece nenhum
exutório a essa violência privada; toda reivindicação particular não tem outros meios
de expressão a não ser tomar a própria moeda como alvo. Todo desejo privado, toda
transformação nova vê sua existência depender imediatamente da instituição central.
(...). Essa estrutura é essencialmente instável devido à sua incapacidade de oferecer à
violência aquisitiva presas profanas, de permitir certas transferências limitadas de
propriedade. Ou, dizendo de outra forma, a interdição de uma circulação privada de
títulos V(i,j), retidos por j sobre o agente i, mostra-se insustentável. Somos
confrontados, através dessa situação, à necessidade das relações i/j na reprodução da
relação monetária.” 39
Em outras palavras, o sistema homogêneo, ainda que exerça caráter essencial para
a ordem monetária, é por si só, insuficiente para mediar as relações entre os
39
Ibid, pg. 104-5, meu negrito.
39
agentes. Isso porque, em certa medida, há a necessidade por parte dos indivíduos
de se relacionar uns aos outros através de moeda privada V(i,j). Dizem ainda os
autores:
“Essa relação genérica tem propriedades que a diferenciam radicalmente da relação
i/X. Ela tem a particularidade de circunscrever rigorosamente os riscos da transação
unicamente aos dois agentes i e j. Uma inexata expectativa sobre as condições futuras
da produção, aliás, o que é sempre mais provável, não implica dificuldades para toda a
ordem monetária. Ela pode se resolver pela absorção de i, não engendrando
sedimentação monetária. Assim, o modo privado de gestão pode, sob muitos
aspectos, parecer ter melhor desempenho do que o colocado em prática pela relação
centralizada. Por um lado, a concentração da violência sobre i e j permitiria estimativas
de risco muito mais rigorosas, posto que elas colocam diretamente em jogo suas
respectivas autonomias. Por outro lado, a relação i/j é compatível com uma grande
diferenciação das normas de financiamento, mais apta a comungar a diversidade das
posições econômicas que os centros de produção conhecem.” 40
O ponto fundamental do sistema fragmentado reside na tensão resultante da
defasagem entre a obrigação N0 e as condições de financiamento concedidas por j.
O problema reside no fato de que a qualquer momento, o emprestador j pode se
deparar com uma necessidade imprevista de gastos em moeda D. Devido a essa
dependência, um ativo totalmente imobilizado faria os credores potenciais correrem
tal risco, que ele seria um obstáculo decisivo à emissão desses créditos e, portanto,
ao investimento.
40
Ibid, pg. 105.
40
“Por essa razão, os títulos devem ser negociáveis, vendidos ou comprados. Para
tanto, devem ser o objeto de uma avaliação coletiva. Esse procedimento de avaliação,
ao qual conduz o sistema fragmentado, é chamado mercado financeiro privado.
Dessa maneira, o título V se vê identificado à moeda e será, por essa razão, escrito {V
= D}. Essa relação coloca em prática, de forma semelhante ao caso homogêneo e à
relação {D = M}, um tempo T de reembolso, o qual permite o desenvolvimento das
atividades produtivas. Vê-se surgir no âmago dessa estrutura um dilema entre a
liquidez necessária dos títulos, preservando os juros do investidor, e uma certa
‘imobilização’ do risco, protegendo o devedor das oscilações de humor do credor” 41
Assim como o sistema homogêneo, o sistema fragmentado por si só também
apresenta instabilidade. Porém, ao contrario do primeiro, a instabilidade contida
neste se deve ao fato de que ele não mediatiza suficientemente a violência. A
ausência de qualquer procedimento central que regule o financiamento provoca uma
exacerbação dos conflitos privados i/j.
“Aparece portanto, em flagrante contradição com alguns séculos de economia política,
que as relações privadas não engendram, espontaneamente uma coerência social de
conjunto. Elas liberam, imediatamente uma conflitualidade devastadora; um firme e
infinito propósito pela riqueza. Dessa forma, abandonam a produção à destruição do
processo especulativo. Polarização mimética e autovalidação das expectativas são os
determinantes concretos desse processo epidêmico, desse contágio social. O
desengajamento das autoridades centrais, considerado pelos ultraliberais como fator
de otimização, implica, na realidade, uma hipersensibilidade dos agentes econômicos
a toda turbulência, a toda descontinuidade conjuntural.” 42
1.3.5 O Sistema Hierarquizado
A existência de uma pluralidade de circuitos privados designa um sistema que será
chamado de sistema hierarquizado, na medida em que supõe essencialmente uma
moeda chamada central. Essa moeda D, hierarquicamente superior, permite a
41
42
Ibid, pg. 106-7, itálicos dos autores, meus negritos.
Ibid, pgs. 109-10, itálico dos autores.
41
conversibilidade das moedas secundárias, reduzindo-as todas a um denominador
comum.
A constante oscilação em uma determinada economia entre os sistemas homogêneo
e fragmentado definem o importante conceito da ambivalência da moeda, ponto
crucial da teoria. Suas principais características e diferenças podem ser observadas
no quadro 1:
Propriedades lógicas
Sistema homogêneo
Sistema fragmentado
Definição pela relação
i/X
i/j
A coerção de destruição
monetária que a
obrigação N0 implica, aí
se forma através da
forma
{U – M}
{V – D}
A moeda aparece
portanto,
essencialmente, em sua
função de
bem social
vetor das transferências de
propriedade
O que domina é então
a moeda homogênea D
a moeda privada V
O financiamento
responde
tendencialmente à
norma
T = infinito
T=0
O sistema mediatiza a
violência
excessivamente
insuficientemente
A crise mimética nele se
exprime através da
inflação
deflação
42
Ela conduz a uma
polarização sobre
um objeto s indeterminado a moeda central D
Essa estrutura formaliza
a tendência centralizadora a tendência à fragmentação
que atesta
o papel da compensação
e do emprestador de
última instância
o papel do
açambarcamento para si e
do mercado financeiro
privado
constata-se aí
uma exteriorização
extrema da regra em
relação às relações
privadas da troca
uma dependência extrema
da regra, face às relações
privadas de troca
que provoca uma
indeterminação
da norma de
financiamento central
{D = M}
da avaliação dos ativos
privados
{V = D}
Quadro 1: Oposições que Traduzem o Dualismo da Moeda.
Fonte: Aglietta & Orléan, 1990, pg. 115.
“Essas estruturas, seja pelo fato de mediatizar demais, ou, contrariamente, seja pelo
fato de não mediatizar suficientemente a violência aquisitiva, são ambas fortemente
instáveis. Uma organização estável deve respeitar a ambivalência inerente à moeda. A
estabilidade do conjunto necessita que a relação monetária apareça simultaneamente
segundo sua dupla natureza de operador social e de vetor de transferências de
propriedade.” 43
“Essa concepção segundo a qual uma moeda pode ter suas propriedades mais ou
menos desenvolvidas é um ponto importante de nossa teoria. Num quadro
mecanicista, a moeda é ou não é; para nós, ao contrário, ela está sempre em um
devir, ou seja, em constante transformação. Ela é um processo de socialização que
pode reconhecer diversos níveis de extensão aos quais correspondem formas
genéticas qualitativamente distintas.” 44
43
44
Ibid, pg. 113.
Ibid, pg. 117.
43
Finalmente, outro conceito que deve ser definido é o de modelo de crescimento.
Aqui, este significa a hierarquização das relações sociais codificada pela
configuração particular das instituições financeiras. “Essa codificação monetária é
um momento importante, na medida em que estabiliza a dominação das relações
sociais, que sustentam o modelo.” 45
Dessa forma, temos até este ponto do presente estudo esclarecido os conceitoschave que permeiam a teoria monetária elaborada por Aglietta & Orléan. Mais do
que isso, diferentemente das teorias tradicionais, foi possível observar que esta tem
como eixo central que o fator de maior relevância no que concerne ao sistema
monetário de uma economia é o que diz respeito à questão da ambivalência da
relação monetária, isto é, a forma como esse sistema concilia a lógica centralizadora
e a lógica fragmentadora. Podemos assim passar para a análise das crises
monetárias.
1.4 As Crises Monetárias
As crises monetárias podem assumir qualquer um dos lados da ambivalência
monetária,
centralizadora
ou
fragmentadora.
Ambas
podem
igualmente
desestabilizar o equilíbrio realizado pelo sistema hierarquizado. No entanto, ao
contrário do que um exame superficial poderia fazer crer, não há simetria entre
esses dois processos.
45
Ibid, pg. 122.
44
“Cada uma dessas dinâmicas desestrutura de uma maneira específica a economia
mercantil. Elas estão, uma em relação à outra, na mesma relação lógica que une as
formas monetárias antitéticas, ao mesmo tempo semelhantes [na medida em que
resultam da polarização mimética] e opostas [evoluções implosivas ou explosivas].” 46
1.4.1 A Forma Geral das Crises
As diferenciações monetárias implementadas pelo sistema hierarquizado visam
realizar uma sutil arbitragem entre os interesses dos devedores e os dos credores.
Trata-se de uma disputa cujo objeto central é a apropriação da produção social. Os
devedores querem meios de financiamento suficientemente estáveis que lhes
permitam realizar seu ciclo produtivo sem obstáculos. Para eles, a obrigação N0
deve se fazer sentir prioritariamente através da obrigação de destruição das moedas
privadas {V – M}. Já os credores tendem a atuar como se os títulos que possuíssem
expressassem um direito imediato de apropriação da riqueza social. O respeito
dessa qualidade essencial impõe que o crédito possa se transformar em moeda
central. Sob esse ponto de vista, a obrigação N0 deve atuar sob sua forma {V – D}.
Esta é, portanto, a tensão central que permeia o equilíbrio no sistema monetário.
“O conflito se cristaliza sobre a intensidade que a obrigação N0 deve ter; isto é, sobre a
definição do horizonte econômico T, que é precisamente a medida desta. Essa é uma
variável estrutural que resulta da extensão das diferenciações monetárias e dos
fragmentos que elas instauram. De uma maneira geral, quanto mais o sistema
hierarquizado é diferenciado, tanto maior é o poder do credor, tanto mais coercitivo
será o horizonte econômico.” 47
Em sua essência, a crise é o resultado do desejo exacerbado dos agentes pela
riqueza.
46
47
Ibid, pg. 125.
Ibid, pg. 126, itálico dos autores.
45
“O desejo é, no sistema hierarquizado, enquadrado por uma dupla convenção: a
moeda considerada idêntica à riqueza e à avaliação dos ativos. Retomando as
relações {D = M} e {V = D}, mostramos que unicamente a polarização mimética dá um
conteúdo a essas representações mistificadoras. Fora do processo social engendrado
pela mudança unânime da violência, essas relações aparecem no que elas são:
irracionais, sem uma medida comum ao desejo de apropriação que elas pretendem
codificar. A crise é esse momento em que os agentes econômicos, procurando se
preservar dos efeitos destrutivos da violência, tentam maciçamente realizar as formas
de garantia que essas relações refletem. Eles tentam realizar as transações
implicadas por essas igualdades e percebem, com estupor, que elas são ilusórias.” 48
A forma como os agentes reagem no momento crítico é que caracteriza qual das
formas antitéticas da crise que prevalecerá: se os sujeitos procurarem transformar a
moeda D em riqueza, ter-se-á a crise de {M = D}, ou crise inflacionária; ou então, se
buscarem imediatamente a quantidade de moeda que lhes dê direito à posse de um
título de propriedade, ter-se-á a crise de {V = D}, ou crise deflacionária.
1.4.2 A Crise em Si
A crise tem início no momento em que surge um conflito entre um grupo de credores
e um de devedores, que não consegue mais se enquadrar no antigo cenário das
normas estabelecidas. O banco central é então chamado para tomar partido através
de uma atitude, seja ela centralizadora ou fragmentadora. Ele intervém em função
dos interesses que representa. Haverá ruptura dos mecanismos auto-reguladores do
sistema hierarquizado quando um dos grupos interpretar a atitude do banco central
como injusta. Se os agentes que se consideram lesados tentarem fazer valer seus
direitos e buscarem no sentido de receber o quantum de riqueza que lhes cabe,
então é o momento que a crise adquire sua dinâmica própria. Os autores descrevem
esse momento da seguinte forma:
48
Ibid, pg. 130.
46
“Ela [a crise] reaviva todas as rivalidades secundárias que impregnam as relações
mercantis, todos os conflitos categoriais, locais, pessoais. Todo o espectro das
atitudes humanas pode encontrar lugar para nesse contexto se exprimir, ou seja, da
pusilanimidade à megalomania. Todos os comportamentos individuais, segundo
formas psicológicas infinitas, se polarizam cada vez mais perigosamente sobre o
desejo imediato de possuir riqueza. Essa indiferenciação está no centro da crise; seus
determinantes concretos são a convergência mimética e a crise das diferenciações
monetárias.” 49
A extensão da crise é indeterminada e pode ser interrompida em diferentes fases, a
depender da capacidade das camadas dominantes em reafirmar sua hegemonia em
torno de uma nova arbitragem socialmente conhecida. Ao longo da busca desta
nova arbitragem, é possível observar oscilações entre as tendências fragmentadora
e centralizadora. No entanto, a análise que se segue terá por objeto as formas puras
das crises, quando elas são provocadas por um comportamento unilateral do banco
central, voltado unicamente para a centralização ou para a fragmentação.
1.4.3 A Crise Inflacionária
As dificuldades começam com a proliferação de moedas privadas que exprime o
desenvolvimento de tensões no modelo de crescimento. Na análise de inflação pura,
supõe-se que o banco central reaja a essas dificuldades monetarizando os saldos
deficitários para permitir a extensão do espaço de circulação das moedas privadas.
Tal estratégia centralizadora responde às exigências das camadas sociais
devedoras. Em tais condições, a crise se desenvolverá na medida em que essa
ação estatal não conduzir a uma reabsorção gradual das dificuldades iniciais pela
extinção progressiva dos créditos. Dessa forma, até que surja alguma força
49
Ibid, pg. 136.
47
atenuante, a autoridade estatal persistirá nessa tendência inercial à emissão
monetária como forma de remediar o conflito.
“O recurso sistemático à emissão monetária é a maneira pela qual a antiga hegemonia
tenta assegurar a perenidade de seus interesses. Assim operando, a instituição tenta
obstaculizar toda transferência de propriedade, e sustentando os setores produtivos,
outrora dominantes, que agora se encontram em situação precária; impedindo, por
outro lado seu desmantelamento. A questão é então saber como os credores podem
fazer valer seus direitos, isto é, como irá se organizar, pouco a pouco, uma tendência
fracionante, que se opõe à eutanásia daquele grupo; vale dizer, como o poder
monetário central será colocado em questão.” 50
Dessa forma, tem-se como efeito um processo inflacionário generalizado.
Cabe dizer, não é o aumento dos preços em si que ameaça diretamente a ordem
monetária. De fato, o aumento de preços pode muitas vezes ser benéfico, na medida
em que estimula a produção. O que ameaça a ordem estabelecida é, na verdade, a
incapacidade das autoridades centrais em controlar este aumento, em fixar um
quadro regulado de sua progressão. “O perigo é a anarquia da alta dos preços, cujo
combustível é a desestruturação progressiva do aparelho produtivo, outrora criado
pela soberania monetária.” 51
A crise inflacionária assume então, gradualmente, proporções cada vez maiores. É
através dos preços relativos que os setores de produção se enfrentam. A perda da
referência da moeda como unidade de conta dá margem ao fenômeno da ilusão
monetária52 e, mais tarde, à indexação53. A partir daí, assiste-se a um
embaralhamento do cálculo econômico. Na ausência de uma referência social
50
Ibid, pg. 137.
Ibid, pg. 138, itálico dos autores.
52
Ainda que o agente receba um aumento nominal de renda, a alta inflação implica que o poder de
compra de seus ganhos seja, na realidade, reduzido. A essa falsa impressão de ganho se dá o nome
de ilusão monetária.
53
Correção automática de salários e preços pela taxa de inflação.
51
48
unanimemente admitida, não se sabe mais com precisão se o que se obtém são
perdas ou ganhos, e quais as suas dimensões.
Na medida em que o processo inflacionário continua, a própria função da moeda
como reserva de valor enfraquece. Nessa altura, a economia se encontra em uma
nova fase, a saber, o retorno de FII.
“A polarização unânime que excluíra a moeda D da comparação com as mercadorias
profanas se desfaz. O desalento dos sujeitos decorre do fato de eles se encontrarem
diante de uma reverberação infinita das relações recíprocas entre todas as
mercadorias. Nessa era de suspeita e de incerteza, cada mercadoria, cada signo,
aparece aos olhos dos protagonistas como sendo supostos pretendentes, capazes de
satisfazer seus desejos de riqueza. Cada um busca sua própria salvação, onde se
esconde esse princípio misterioso, qualquer que seja a fantasia com que ele se
disfarce: o ouro, os imóveis, a terra, as fábricas, os bens líquidos, as divisas, etc.” 54
Enfim, o processo especulativo que se segue culmina na eleição/exclusão de um
novo objeto (s) para exercer as funções que a antiga moeda deixou de fazer.
“Nessa fase, a moeda D é totalmente destruída. A única função pela qual ela
desempenhava um papel, qual seja, moeda como meio de circulação se desintegra. A
polarização unânime sobre s se exprime, logicamente, como uma recusa direta feita
pelos agentes econômicos em aceitar D nas trocas. É o retorno de FI: todos os sujeitos
estão numa relação de absoluta simetria.” 55
O desenvolvimento dos fenômenos inflacionários expressa, em sua essência, a
relutância de um modelo central a toda recomposição dos poderes econômicos. A
emissão monetária é, sob este ponto de vista, o instrumento utilizado por um grupo
dominante para dificultar quaisquer modificações nas relações de apropriação.
54
55
Ibid, pg. 144.
Ibid, pgs. 153-4, itálicos dos autores.
49
“A inflação é, portanto, a medida exata da inadequação entre uma certa
hierarquização da propriedade privada mercantil e um novo modelo de crescimento.
(...) [Por outro lado,] identificar a inflação à alta dos preços ou a superemissão
monetária lhe confere uma homogeneidade de estrutura que é totalmente superficial.
É nessa superficialidade que geralmente se engolfou o pensamento quantitativo.” 56
1.4.4 A Crise Deflacionária
“A análise da crise deflacionária não reflete a mesma questão teórica que a da crise
inflacionária. A razão disso é simples. Na inflação, é a própria moeda central D que é
colocada em questão. (...). Na deflação, a transcendência monetária não é jamais
atingida. Assim, o sistema essencial de referências permanece estável: a obrigação N0
e a moeda, em sua função de unidade de conta, continuam a ter uma expressão
desprovida de ambigüidade.” 57
Sendo assim, no caso deflacionário a crise não atingirá o nível da moeda central D
ser destituída de suas funções. Mesmo assim, seus efeitos não deixam de ser
catastróficos.
Neste caso, o conflito entre credores e devedores se dá na medida em que os
primeiros anseiam por capitalizar seus saldos positivos buscando aumentar seu
controle sobre a produção. Então, os efeitos desse fenômeno atuam de forma a
aumentar a coerção da norma N0, o que significa também estreitar o horizonte
econômico T. Os devedores passam, nesse contexto, a buscar liquidez para pagar
suas dívidas, mesmo que para isso eles tenham que reduzir seus preços,
ocasionando a deflação. Ao mesmo tempo, os devedores buscarão se livrar das
condições hostis da moeda privada que possuem e, dentre outros ativos, procurarão
56
Ibid, pg. 155-6.
57
Ibid, pg. 163.
50
a moeda como forma de reter riqueza. Isso causa a valorização da moeda. Se, por
algum motivo, a instituição que emite a moeda central resistir a liberar mais moeda,
a crise pode ir assumindo níveis cada vez piores.
1.4.5 Observação sobre as Crises Monetárias
“A análise das crises mostra a falência de duas estratégias antagônicas, uma
centralizadora, outra fragmentadora. Por caminhos distintos (ܶ → ∞, ܴ(‫ → )ݐ‬0), ou
(ܶ → 0, ܴሺ‫ݐ‬ሻ ‫)ݎ݁ݑݍ݈ܽݑݍ‬, elas conduzem ao mesmo resultado, ou seja, à interrupção de
toda a produção, em que todos os ativos tem então um valor zero. (...). Podem-se
resumir os dois processos antitéticos da crise como a identificação progressiva do
sistema hierarquizado a uma das tendências que o constituem: ao sistema
homogêneo, no caso de um processo inflacionário, ao sistema fracionado no caso de
um processo deflacionário.” 58
1.5 Conclusão
A intenção de Michel Aglietta e André Orléan ao desenvolverem esta teoria foi de
evidenciar a ambivalência da relação monetária, isto é, a idéia de que os fenômenos
monetários devem ser compreendidos antes de tudo pelo seu caráter centralizado
ou fragmentado. Para tanto, eles desenvolveram uma teoria coerente e que dialoga
com as teorias alternativas.
Agletta e Orléan acreditam com isso estar trazendo uma abordagem teórica que
“reconciliaria Teoria e História” 59. Como visto, as variáveis da violência e da mimese
assumem papel de destaque no que tange à dedução da moeda. Do conceito de
mimese surge a relação do sujeito-objeto-rival cuja generalização evidencia a
necessidade da exclusão/eleição de determinada mercadoria para exercer a função
58
59
Ibid, pg. 168.
Ibid, pg. 170.
51
de moeda. A violência, por sua vez, possui papel importante neste processo na
medida em que o açambarcamento (violência aquisitiva) é um resultado lógico
decorrente do pressuposto do homem que deseja. Nesse contexto, a moeda, ao agir
como mediadora nas relações econômicas, seria como um escape aos impulsos
violentos resultantes do desejo aquisitivo. Vale lembrar que a moeda em si não
elimina esta violência, mas apenas promove uma transmutação desta que permite,
ao menos por certo tempo, o ordenamento das transações comerciais. Este
ordenamento está, por sua vez, associado a um modelo de crescimento específico.
E é no momento de crise deste modelo que tal ordenamento é questionado e a
violência readquire seu caráter explícito até que uma nova ordem seja estabelecida.
Estes preceitos, expostos até aqui em âmbito teórico serão testados nos próximos
capítulos na esfera da História. Por ora, cabe apenas acrescentar que uma das
formas pelas quais é possível observar a violência incrustada no mundo econômico
cotidiano é através das condições práticas de execução da norma N0, referente à
coerção de solvabilidade. Sob esta ótica, a violência poderia ser medida pela forma
como os credores se relacionam com os endividados, através de taxas de juros
abusivas, por exemplo, ou então pela forma como são tratados os inadimplentes.
A teoria até aqui exposta constitui a primeira parte do livro A Violência da Moeda. Há
ainda a segunda, em que os autores efetuam análises históricas utilizando essas
teorias. No entanto, estas não serão aqui apresentadas.
No lugar disso, a análise histórica que se segue retomará a questão que inspirou o
presente trabalho: explicar o que significou a crise da década de 1970.
52
2 CAPÍTULO 2:
O SISTEMA INTER-ESTATAL CAPITALISTA E A
ANÁLISE DE “LONGOS PERÍODOS”
2.1 O Sistema Inter-Estatal Capitalista
Aqui se inicia a análise do chamado Sistema Inter-Estatal Capitalista (SIC).
Desde 1991, com o fim da Guerra Fria e a conseqüente absorção do bloco
comunista pelo capitalista, o SIC e o Moderno Sistema Mundial passaram a
representar basicamente o mesmo conceito. Isso ocorre uma vez que, a partir desta
data, o mundo todo passou a compartilhar, ao menos no âmbito econômico,
instituições similares. O reconhecimento destas instituições, por sua vez, é uma
condição sine qua non para o bom desenvolvimento das relações econômicas. E
estas são justamente as instituições que compõem o SIC.
Não é de se surpreender que uma destas instituições seja a moeda. Esta é
fundamental para o estabelecimento de relações econômicas entre agentes.
Assim, se hoje podemos dizer que o SIC e o Moderno Sistema Mundial são
conceitos correspondentes, isso é um fenômeno bastante atual. Nesse contexto, a
análise que será aqui desenvolvida buscará apresentar o SIC num panorama
histórico, remontando de suas origens até os dias atuais.
Para tanto, cabe contextualizar um pouco sobre a literatura atual no que se refere a
este assunto. Como explicitado na introdução, foi na década de 1970 que,
53
deparados com uma crise de proporções mundiais, a área de Economia Política
Internacional, cadeira da área de Relações Internacionais, passou a se questionar
com maior ênfase sobre as questões relacionadas à hegemonia. A principal
motivação de tal redirecionamento era que vários indicadores da época, como, por
exemplo, a derrota norte-americana na Guerra do Vietnã, bem como a crise do
dólar, deram a entender que a hegemonia norte-americana estava em declínio e os
pesquisadores passaram a buscar compreender o que poderia futuramente suceder
a esta. Assim, em seus trabalhos, empreenderam análises históricas tendo o SIC
como objeto. E foi nesse contexto que o SIC passou a ser o principal objeto de
estudo da cadeira de Economia Política Internacional.
Porém, uma crítica que podemos fazer desde já é que, tamanha deve ter sido esta
crise, estes autores tomaram a decadência da hegemonia dos EUA praticamente
como um pressuposto de suas teses. Dessa forma, ainda que as elaborações
teóricas e históricas tenham sido frutíferas, a parte teórica apresentou fraquezas, na
medida em que buscavam explicar o que ocorreria após a próxima suposta transição
hegemônica, dos EUA para os próximos.
Atualmente, aproximadamente quatro décadas mais tarde, podemos observar que a
hegemonia norte-americana prevalece, os EUA são ainda a maior potência
econômica e bélica do mundo e, mais que isso, o dólar exerce exitosamente as
funções essenciais da moeda (meio de circulação, unidade de conta e reserva de
valor) nas transações internacionais. Em outras palavras, nada indica que a
hegemonia norte-americana esteja ameaçada. 60
60
Ainda que os EUA apresentem déficits crônicos no balanço de pagamentos, isso não apresenta
qualquer ameaça, uma vez que eles compensam esses déficits através da emissão de sua moeda
para o mundo.
54
Dessa forma, o presente trabalho utilizará a contribuição destes autores no que se
refere à análise do SIC. Além destes, uma referência que será bastante utilizada são
os artigos de José Luis Fiori, que é quem explicita esta crítica aos autores dos anos
70 e sintetiza a discussão.
2.2 Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM)
A Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM) é uma escola de pensamento
que pertence à área de Economia Política Internacional (EPI)
61
e que, por sua vez,
pertence à área de Relações Internacionais (RI). A EPSM foi fundada na década de
1970 por Immanuel Wallerstein62 e tem outros autores como Giovanni Arrighi63 e, no
Brasil, Theotonio dos Santos e André Gunder Frank64.
Como o próprio nome já diz, a teoria tem como unidade de análise os chamados
sistemas-mundo65. A criação deste conceito está associada à necessidade de uma
unidade de análise mais ampla do que as realidades intra-nacionais. Dessa forma,
seus autores se propõem a estudar não apenas o estado-nação ou a sociedade
nacional, mas sim algo com um escopo um pouco mais abrangente, a saber, algo
que fosse definido não pelas fronteiras nacionais propriamente ditas, mas sim pelo
espaço das nações que compartilhassem entre si instituições que intermediassem
suas relações, pelo menos no âmbito econômico. Em outras palavras, o sistemamundo.
61
Outros autores que se envolvem na discussão sobre a hegemonia são Charles Kindleberger,
Robert Gilpin, Robert Keohane e Susan Strange (1970).
62
(1987; 1999).
63
(1997; 2001).
64
Estes dois últimos foram também expoentes da antiga Teoria da Dependência.
65
A depender da situação podem se chamar também economias-mundo ou império-mundo. Mais
sobre essa questão pode ser encontrado em Costa (2007).
55
A delimitação de cada sistema-mundo está associada a fatores geográficos, na
medida em que, conforme as economias nacionais se expandem, elas tendem a
interagir antes – e com maior intensidade – com os seus vizinhos. Esta é uma
tendência natural e que pode ser justificada pela viabilidade econômica em interagir
com as nações mais próximas. Conforme a tecnologia se desenvolve, sobretudo nas
áreas de transporte e comunicação, essa diferença de custos e de tempo de viagem
pode se reduzir; no entanto, é provável que sempre exista. Conforme estas relações
se consolidam é que surge o ambiente propício para a criação das instituições
subjacentes às relações entre os países. De fato, tais relações podem se tornar mais
e mais intensas de forma a atingir níveis mais elevados de aproximação, como é o
caso, por exemplo, da divisão social da produção, onde cada país passa a se
especializar no setor em que possuir melhores condições de produção. Enfim, é da
generalização deste processo que se formam os sistemas-mundo.
Os sistemas-mundo podem ser unidos por um único poder central. No entanto, o
caso europeu, que é o que estudaremos com maior ênfase, nunca apresentou uma
autoridade bem-sucedida na tarefa de conquistar o sistema como um todo. E não foi
por falta de tentativas. Vide, por exemplo, as guerras napoleônicas. Com efeito,
veremos que a existência quase constante de guerras foi um dos fatores
característicos do sistema-mundo europeu.
A EPSM tem influência das obras de Karl Marx e Fernand Braudel. De fato, uma das
idéias centrais que a EPSM extrai destes autores é aquela da análise de longos
períodos. Sobre este ponto, enquanto Marx utiliza tal abordagem para estudar a
evolução entre os diferentes modos de produção (com maior ênfase na transição do
feudalismo para o capitalismo), Braudel efetua uma análise histórica da realidade
56
européia entre os séculos XV e XVIII, culminando numa abordagem que permitiu a
autores mais atuais analisar as tendências e padrões deste sistema-mundo.
Mais tarde, já no século XXI, é que o professor Fiori66 deu novo fôlego às pesquisas
dessa natureza ao fundar a Nova Economia Política do Sistema Mundial
(NEPSM), nova escola de pensamento da área de Economia Política Internacional.
Esta também estuda as teorias dos sistemas-mundo, embora se diferencie dos
primeiros em alguns aspectos. Em primeiro lugar, Wallerstein e Arrighi estudam o
capitalismo a partir de uma sucessão de expansões materiais e financeiras enquanto
o ponto de partida de Fiori é a forma de expansão do capital e do poder e a
convergência desses dois fenômenos. Outro ponto de divergência entre Wallerstein
e Arrighi e Fiori é que, enquanto para os dois primeiros o sistema mundial é o ponto
de partida e pré-existe ao capitalismo e à modernidade, para Fiori ele é mais um
produto da conquista européia que um ponto de partida dado. Mais ainda, para
Wallerstein e Arrighi, a necessidade de troca é que teria levado a sociedade
européia ao capitalismo, enquanto que, para Fiori, esta explicação que passa
apenas pelo mercado é insuficiente. Para este, predomina a idéia de que, não fosse
a sua fusão com o “jogo das guerras”, o “jogo das trocas” não teria estímulo para
produzir excedente67. Enfim, o presente trabalho se alinha com maior ênfase à
perspectiva deste último. É claro, porém, que deve ser levada em consideração a
significativa contribuição que os primeiros ofereceram ao estudo do moderno
sistema mundial68.
66
(2004, 2007, 2008).
Fiori, 2004, pg. 20.
68
Cabe observar que apesar de o professor Fiori ser significativamente contemplado no presente
trabalho e ainda que sua obra possua diversas semelhanças com aquelas da Teoria da Regulação
(aqui chamada de Escola Francesa da Regulação), isso não significa que ele tenha qualquer filiação
com esta escola de pensamento.
67
57
É então sob essa ótica que podemos afirmar que o mundo em que vivemos desde
1991 é a expressão de um sistema-mundo que superou os outros existentes; este é
o sistema-mundo europeu. E é a este sistema-mundo que chamaremos de Sistema
Inter-Estatal Capitalista, ou SIC.
2.3 Ciclos Expansivos
Ao longo de seus estudos, os teóricos dos sistemas-mundo puderam identificar a
existência de certos padrões no SIC e que passaram a ser classificados como
ciclos expansivos, que foram ocorrendo a partir do século XII. Mais precisamente,
segundo Fiori, foram quatro os ciclos expansivos vividos pelo sistema-mundo
europeu.
Isso não quer dizer, necessariamente, que os períodos que não fazem parte destes
ciclos não tenham sido de expansão. No entanto, estes quatro períodos foram
dotados de certas características específicas. Como diz o autor:
“Nesses ‘momentos históricos’ [os ciclos expansivos], houve primeiro um aumento da
‘pressão competitiva’ dentro do ‘universo’, e depois uma grande ‘explosão’ ou
alargamento das suas fronteiras internas e externas. O aumento da ‘pressão
competitiva’ foi provocado – quase sempre – pelo expansionismo de uma ou várias
‘potências’ líderes, e envolveu também um aumento do número e da intensidade dos
conflitos, entre as outras unidades políticas e econômicas do sistema. E a ‘explosão
expansiva’ que se seguiu projetou o poder destas unidades ou ‘potências’ mais
competitivas para fora de si mesmas, ampliando as fronteiras do próprio ‘universo’”. 69
Enfim, estes momentos podem ser representados através da seguinte figura (2):
69
Fiori, 2008, pgs. 22-3.
58
Figura 2: Ciclos Expansivos do SIC.
Elaboração própria.
Com relação à formação do sistema-mundo europeu, diz Fiori:
“Como é sabido, na Europa – ao contrário dos impérios asiáticos -, a desintegração do
Império Romano e, depois, do império de Carlos Magno provocou uma fragmentação
do poder territorial e um desaparecimento quase completo da moeda e da economia
de mercado entre os séculos IX e XI. Mas a desintegração política e a atrofia
econômica se reverteram nos séculos XII e XIII, quando começaram os processos de
centralização do poder territorial e de mercantilização da economia, que culminaram
com a formação dos ‘Estados-economias nacionais’ europeus. Essa ‘pré-história’ do
‘sistema mundial moderno’ oferece um ponto de observação privilegiado das relações
iniciais entre o poder, o dinheiro e a riqueza que se tornaram a especificidade e a
grande força propulsora do ‘milagre europeu’. 70
O primeiro destes períodos, o “Longo Século XIII” (I), ocorreu entre 1150 e 135071. O
aumento da pressão competitiva, dentro da Europa, foi provocado pelas invasões
mongóis, pelo expansionismo das Cruzadas e pela intensificação das guerras
internas na Península Ibérica, no norte da França e na Itália. A explosão expansiva
que se seguiu se tornou uma espécie de “Big Bang” do “universo” de que estamos
falando, o momento do nascimento do primeiro sistema europeu de guerras e trocas,
com suas unidades territoriais soberanas e competitivas, cada uma delas com suas
moedas e tributos.
70
2007, pg. 14.
Inicialmente, foi Braudel quem identificou o “longo século XVI”. Só mais tarde é que Peter Stufford,
em Money and its Use in Medieval Europe, identificou o “longo século XIII”, numa clara referência ao
primeiro.
71
59
O segundo período, o “Longo Século XVI” (II), ocorreu entre 1450 e 1650. Desta vez,
o aumento da pressão competitiva foi provocado pelo expansionismo do Império
Otomano e do Império Habsburgo e pelas guerras da Espanha com a França, os
Países Baixos e a Inglaterra. É o momento em que nascem os primeiros Estados
europeus, com suas economias nacionais e com uma capacidade bélica muito
superior à das unidades soberanas do período anterior. Foi a explosão deste
período que expandiu o sistema-mundo para muito além das fronteiras da Europa,
uma vez que foi nesse período que as Américas foram colonizadas. Esta expansão
foi liderada inicialmente pelas potências ibéricas, seguido pela Holanda, França e
Inglaterra.
O terceiro período foi o “Longo Século XIX” (III), entre 1790 e 1914. O aumento da
pressão competitiva foi provocado pelo expansionismo francês e inglês dentro e fora
da Europa, pelo nascimento dos estados americanos e pelo surgimento, depois de
1860, de três potências econômicas – Estados Unidos, Alemanha e Japão – que
cresceram rapidamente e revolucionaram a economia capitalista, de forma a
modificar significativamente o balanço de forças entre as grandes potências. A
explosão expansiva que se seguiu assumiu a forma de uma corrida imperialista
entre os mais poderosos, que trouxe a África e a Ásia para dentro das fronteiras
coloniais do SIC.
Segundo a tese de Fiori, a partir da década de 1970 (IV), a pressão competitiva
passou a ser ocasionada em grande medida pela estratégia expansionista e imperial
dos EUA, mas também pelo efeito da multiplicação dos Estados independentes
dentro do sistema, que já são cerca de duzentos, ocorrida depois da Segunda
Guerra Mundial e, finalmente, pelo crescimento vertiginoso do poder e da riqueza
dos estados asiáticos, em particular da China. É a partir desta lógica, portanto, que
60
Fiori responde aos autores da EPI e se permite prever uma nova potencial “corrida
imperialista” entre os países no futuro. 72
2.4 Ciclos Expansivos – Comentários
Há alguns comentários a serem feitos com relação a presente leitura da expansão
do SIC sob as abordagens das Teorias dos Sistemas-Mundo, mais especificamente,
da EPSM e da NEPSM.
Primeiramente, com relação à identificação da existência de ciclos expansivos, tratase de uma inovadora abordagem sobre o SIC com potencial de trazer novas
compreensões sobre o atual mundo em que vivemos. Os resultados aqui
observados são frutos de diversas gerações de pesquisadores que investigam o
assunto. Cada uma delas acrescentando e corrigindo a teoria anterior, conforme as
novas observações que o seu período oferece. Temos assim, tomando como
referência o presente trabalho, sucessivamente, a teoria do capital de Marx,
publicado na segunda metade do século XIX; os estudos de Braudel sobre a
formação da civilização européia, desenvolvidos nas primeiras décadas do século
XX; os trabalhos dos autores da EPSM, nos anos 70 e, finalmente, a contribuição da
NEPSM, escritos já no século XXI.
Em segundo lugar, o presente trabalho buscará trazer questionamentos com relação
à delimitação de alguns períodos enunciados, mais especificamente dos ciclos III e
IV. Estes se referem, em primeiro lugar, aos cortes selecionados para delimitar os
períodos e, em segundo lugar, se há realmente a necessidade da separação deste
período em dois ciclos expansivos distintos, ou se, pelo contrário, um só daria conta
72
Fiori, 2008, pgs. 23-4.
61
de expressar um significado mais preciso do ocorrido. Outra forma de colocar este
segundo questionamento é: seria a ruptura entre dois ciclos expansivos distintos a
melhor forma de expressar o que ocorreu no intervalo entre 1914-1970? Não poderia
todo o período de 1790 aos dias atuais ser compreendido em um único ciclo? Por
quê? Os capítulos seguintes se dedicarão a responder tais questões.
2.5 Considerações sobre o SIC
É possível delinear certas tendências históricas que permearam o SIC ao longo dos
séculos. Uma delas é a quase constante presença da guerra entre seus estados
componentes. Sem embargo, pode-se afirmar seguramente que ao longo de toda a
sua existência, os períodos de guerra superaram significativamente àqueles de
paz73. Sobre este ponto, Fiori identifica a mesma limitação na obra de Marx do que
aquela denunciada por Aglietta & Orléan e que os motivou a reformularem a teoria
daquele filósofo do capitalismo. Diz Fiori:
73
“A guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante
o qual a vontade de travar a batalha é suficientemente conhecida. Portanto, a noção de tempo deve
ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo quanto à natureza do clima.
Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa
tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não
consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há
garantia do contrário.” T. Hobbes, Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil,
pg. 77.
62
“Marx, (...) ao falar da ‘acumulação primitiva’74, salienta a importância do ‘poder do
Estado e da força concentrada e organizada da sociedade para acelerar o processo de
transformação do regime feudal de produção, no regime capitalista’. Mas, ao mesmo
tempo, ele afirma que a ‘biografia moderna do capital começa com o comércio e o
mercado mundiais’. E isso se explica porque, de fato, a ‘violência do poder’ aparece
em seu raciocínio como uma condição histórica e não como uma dimensão teórica
relevante da sua teoria do capital. E, mesmo em sua teoria do modo de produção
capitalista, não existe espaço relevante para os conceitos de território, de nação e de
competição e luta inter-estatal. Por isso, é tão difícil compatibilizar a visão histórica de
Marx sobre a ‘origem’ e a ‘acumulação primitiva’ do capital com sua dedução teórica
do valor e das leis de acumulação capitalista.” 75
De fato, as análises históricas referentes ao período analisado deixam pouca
margem a dúvidas de que a guerra foi um elemento presente na formação dos
estados-nacionais europeus e do SIC. Fiori cita um cálculo feito por Evan Luard de
que “tenha havido cerca de 1000 guerras em todo o mundo no período entre 1400 e
1984, e 120, envolvendo uma ou mais das Grandes Potências, no período entre
1495 e 1975” 76.
Ao investigar o porquê das guerras terem exercido um papel tão proeminente no
processo de formação do SIC, Fiori diz:
74
Marx, 1988, cap. 24.
Fiori, 2007, pg. 15.
76
Fiori, 2004, pg. 24.
75
63
“Do ponto de vista lógico, portanto, não há como fugir de uma conclusão implacável: a
guerra foi a força ou a energia que impeliu e alimentou a expansão territorial das
primeiras ‘unidades imperiais’ de que fala Braudel. Além disto, foi ela que criou as
primeiras hierarquias de poder entre as unidades que se saíram vitoriosas desta luta,
dentro do território europeu. A guerra foi condição básica de sobrevivência de cada
uma destas unidades e, ao mesmo tempo, foi a força destrutiva que as aproximou e
unificou, integrando-as, primeiro, em várias sub-regiões e, depois, dentro de um
mesmo sistema unificado de competição e poder. Por isto, toda e qualquer unidade
que se inclua neste sistema e tenha pretensões de ‘não cair’, está sempre obrigada a
expandir o seu poder, de forma permanente, porque a guerra é uma possibilidade
constante, e um componente essencial do cálculo estratégico de todas as unidades do
sistema. Para todas elas existe sempre, no horizonte, uma guerra virtual ou possível,
que só pode ser protelada pela conquista e acumulação de mais poder, um caminho
que leva, uma vez mais, de volta à guerra. Nesse sentido, apesar do paradoxo
aparente, pode-se dizer que a necessidade de expandir o poder para conquistar a paz
acaba transformando a paz na justificativa número um da própria guerra. Por outro
lado, a presença contínua desta ‘guerra virtual’ atua como estímulo para a mobilização
interna e permanente de recursos para a guerra, por parte de cada uma das ‘unidades
imperiais’ originárias.” 77
Outra tendência amplamente levada em consideração por Fiori é o papel
fundamental exercido pelo Estado em promover os interesses dos grupos
capitalistas dentro de seu território. Sem embargo, a Inglaterra, que foi o primeiro
país a se industrializar, foi também o primeiro país do sistema-mundo europeu a
obter um Estado que “estimulasse” as relações de mercado nos moldes que
correspondessem aos interesses desta classe.
Em seu trabalho, Fiori destaca a importância da forma como o “jogo das trocas”
passou a interagir com o “jogo das guerras”. Com efeito, ele segue a tradição que
afirma que, ainda que o comércio tenha existido em todos os tempos, durante a
maior parte de sua história sua tendência natural foi a de se manter no nível das
necessidades imediatas. Nestes momentos, os indivíduos prezavam mais pela sua
subsistência do que pela acumulação propriamente dita. Sob essa lógica, a
necessidade do excedente surgiu primeiramente na forma do tributo que os
77
Ibid, pg. 27.
64
camponeses deviam oferecer aos seus senhores. Mais que isso, a generalização do
tributo foi, muitas vezes, a força que estimulou a criação das moedas nacionais, uma
vez que facilitava a cobrança e o transporte. Mais ainda, a força que impulsionou a
necessidade da cobrança de tributos foi, justamente, o financiamento das guerras.
Por fim, é sob esse contexto que podemos aceitar a afirmação de que foi a
generalização das guerras que ocasionou a generalização do excedente e, mais
ainda, a criação das moedas nacionais no SIC.
Acredita-se ainda que o motivo que fez o sistema-mundo europeu se destacar
dentre os outros existentes no período foi a forma como os territórios se articularam
entre si, uma vez que eram espaços geográficos relativamente pequenos, mas
altamente competitivos e viviam sob a pressão da “guerra permanente”. 78 79
2.6 Conclusão
Ainda que as duas linhas de pensamento advenham de abordagens distintas, é
possível observar um expressivo alinhamento da Escola Francesa da Regulação
com as Teorias dos Sistemas-Mundo. Primeiramente, no que se refere à violência,
fica latente em ambas a significativa presença obtida por essa variável na formação
do SIC. De fato, a guerra foi virtualmente a via de regra empregada por esse sistema
para resolver seus conflitos. Sem contar que, como visto no item anterior, o próprio
Fiori reconhece na obra de Marx a mesma limitação identificada pelos autores da
Regulação. Além disso, outra semelhança entre as duas teorias é que, assim como
78
Fiori, 2004; 2008.
É daí que vem a afirmação de Braudel, segundo a qual o capitalismo não é a economia de
mercado, mas é sim um “antimercado”, uma vez que ele não surge a partir das relações livres de
mercado, mas sim a partir de posições monopólicas obtidas pelos Estados através das guerras. Daí
vem a célebre frase: enquanto Marx afirmava que para compreender o capitalismo é necessário
descer ao porão e ver como o capitalista se relaciona com o proletário, Braudel dizia para subir ao
sótão e ver como o banqueiro se relaciona com o príncipe.
79
65
no caso da Escola Francesa da Regulação, a análise histórica empreendida pelos
autores das Teorias dos Sistemas-Mundo não observa nenhum padrão referente ao
nível ou estilo de racionalidade que fosse inerente ao comportamento humano, como
prega o postulado da racionalidade nas teorias predominantes da Ciência
Econômica.
Já no que se refere à mimese, as Teorias dos Sistemas-Mundo não citam em
nenhum momento o caráter mimético das rivalidades do período. No entanto, a
relação do “jogo das guerras” com o “jogo das trocas” explicitadas por Fiori, carrega
expressivamente este conceito. No período anterior à generalização do excedente, a
referência para a quantidade de trabalho que o indivíduo deveria dispor na sua
produção era aquela que correspondia à sua subsistência (e a de seus familiares).
Após o desenvolvimento da lógica do acúmulo do excedente, essa referência se
esvai de forma que se passa a não saber mais quando parar de produzir. Sabe-se
apenas que quanto mais, melhor. Sob tais circunstâncias não é de se surpreender
que a referência passe a ser o vizinho e superá-lo passe a ser o novo objetivo. E aí
está a mimese. Essa nova referência no vizinho corrobora a teoria do casamento da
lógica da troca com a lógica da guerra, como exposta pela NEPSM, bem como a da
mimese, como exposta pelos regulacionistas. De fato, sob essa nova ótica do
excedente, o poder passa a estar intimamente associado à riqueza uma vez que,
quanto mais rico o indivíduo, ou a nação, maior será a sua capacidade para comprar
armas e contratar homens, de forma que maior será a sua facilidade para subjugar o
inimigo. Mais que isso, a instauração dessa lógica de busca insaciável pelo
excedente prevalece até os dias de hoje. De fato, a predominância do modo de
produção capitalista se caracteriza pela exploração cada vez mais intensiva da mãode-obra. Ao mesmo tempo, esta mão-de-obra se manifesta através de constantes
66
reivindicações por melhores condições de trabalho e por uma parcela maior da
produção social. E a única força que é, no longo prazo, capaz de remediar esta
contradição é a evolução do progresso técnico, uma vez que permite a obtenção de
maior quantidade de produção a partir de uma quantidade menor de mão-de-obra.
Dessa forma, o resultado não poderia ser outro senão a exaltação coletiva pelos
avanços tecnológicos por serem a válvula de escape das incoerências geradas por
esta lógica perversa, uma vez que permitem, ainda que temporariamente, a
conciliação das partes envolvidas através do incremento do poder de compra de
suas remunerações.
Tem-se então que, ainda que os autores das Teorias dos Sistemas-Mundo não
mencionem explicitamente a mimese, sua presença pode ser facilmente extraída da
estrutura teórica desenvolvida por eles. Vale ainda lembrar que, segundo o que foi
apresentado neste capítulo, a própria moeda aparece como um resultado lógico
deste processo, na medida em que surge da generalização dos tributos os quais, por
sua vez, surgem da generalização das guerras. Em outras palavras, o estudo das
Teorias dos Sistemas-Mundo, permite-nos uma interpretação que corrobora a teoria
trazida pela Escola Francesa da Regulação de que por trás do advento da moeda,
jazem os conceitos de violência e de mimese.
Por fim, cabe fazer uma ressalva com relação ao fato de que devemos ser
cautelosos ao efetuar comparações entre o período “anterior” e “posterior” ao
casamento entre o “jogo das trocas” e o “jogo das guerras”. Afinal, trata-se de um
processo que ocorreu de forma lenta e gradual ao longo de séculos de existência do
SIC. Se esta mudança foi aqui tratada como se houvesse ocorrido em determinado
instante no tempo, foi meramente para fins de simplificação.
67
Nos capítulos seguintes, em que se analisam períodos mais recentes, veremos
como os fenômenos monetários estão fortemente associados com as mudanças em
outras instituições sociais associadas ao mundo econômico. Procurar-se-á observar
se as análises históricas que se seguem corroboram ou não os resultados teóricos
obtidos pela Escola Francesa da Regulação com relação à relevância crucial da
moeda no mecanismo econômico.
68
3 CAPÍTULO 3:
PRÉ-FORDISMO
3.1 Introdução
As análises que seguem a partir deste ponto compreenderão escalas menores de
tempo em relação ao capítulo anterior. Mais precisamente, será estudada a
evolução do SIC, não desde sua “formação” em meados do século XII, mas sim em
seus tempos mais atuais, tendo como referência a ascensão da Inglaterra como o
seu primeiro hegemon
80 81 82
. A intenção por trás deste procedimento é, além de
analisar a crise da década de 1970, responder aos questionamentos levantados no
capítulo anterior, a saber: a) qual a melhor forma de representar os ciclos
expansivos III e IV83, com relação às suas datas de início e de fim, e b) se não seria
mais consistente a existência de apenas um período ao invés de dois.
Para tanto, o procedimento que será utilizado é a subdivisão de todo o período em
intervalos menores onde cada um deles poderá ser analisado separadamente, de
forma a encontrar critérios que possam auxiliar na tarefa.
80
Expressão de origem grega que designa o país que detém a hegemonia do SIC.
Até então o SIC sobreviveu sem que houvesse uma unidade específica que coordenasse o
sistema. Em sua Teoria da Estabilidade Hegemônica, Arrighi questiona se, no século XVII, a Holanda
não teria assumido tal papel. A princípio, o presente trabalho acredita que não, uma vez que a
experiência holandesa não atingiu o nível de o país impor exitosamente a sua moeda como referência
internacional dentro do SIC.
82
Segundo Teixeira, 1993, pg. 18, “(...) a hegemonia se constitui a partir da afirmação e
generalização do padrão de produção e consumo de um dado país, de seu modelo de organização
produtiva, de seus métodos de controle e gestão, do formato específico que imprime às relações
entre capital e trabalho, bem como do espaço, em termos de papéis e possibilidades, que abre para
as economias subordinadas.”
83
Cf. Figura 2.
81
69
Neste ponto, cabe introduzir novos conceitos trazidos pela Escola Francesa da
Regulação, a saber, regime de acumulação e modo de regulação.
3.2 Escola Francesa da Regulação – Conceitos
Os autores da Escola Francesa da Regulação84 se posicionam com relação à obra
de Karl Marx da seguinte forma: eles reconhecem a significativa contribuição que
este autor trouxe à compreensão do capitalismo, porém acreditam que, para o nível
de análise dos dias atuais, a teoria apresenta certas limitações. Tais limitações, por
sua vez, devem-se, em parte, ao fato de que o filósofo elaborou seu pensamento no
século XIX, quando o capitalismo ainda se encontrava em seus estágios mais
iniciais85 e, em parte, ao fato de o autor não ter rompido com a teoria ricardiana do
valor e inserido a violência como variável primordial, de forma a deixar contradições
em seu trabalho que permeariam inúmeras discussões entre os seus sucessores.
Com relação a isso, diz Boyer:
“A contribuição teórica que Marx propõe em O Capital é tratar o capitalismo como
modo de produção e atualizar seus fundamentos e sua dinâmica de longo prazo. Os
sucessores de Marx buscaram adequar a teoria aos dias de hoje em função de um
duplo imperativo: em primeiro lugar, levar em conta as mudanças ocorridas ao longo
do século XX; em seguida, e sobretudo, forjar instrumentos para a luta política. Com
isso, as análises do capitalismo evoluíram muito, porém, à luz da história econômica
do século XX, elas mostraram suas limitações e seu caráter equivocado. Aliás, os
instrumentos de análise do capitalismo evoluíram muito, e alguns permitem superar
algumas dificuldades encontradas por Marx.” 86
84
Cabe lembrar mais uma vez que o nome original desta escola de pensamento é Teoria da
Regulação. No entanto, no presente trabalho o nome foi modificado uma vez que, dentro da Ciência
Econômica, existe outra escola de pensamento de natureza distinta desta, porém, com o mesmo
nome.
85
Isto é, tendo como referência a Primeira Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra na segunda
metade do século XVII.
86
2009, pgs. 55-6, itálico do autor.
70
Neste contexto, os conceitos que serão definidos a seguir partem também destas
limitações, mais precisamente da primeira.
A limitação, neste caso, encontra-se no fato de que Marx, ao estudar o capitalismo
como um modo de produção, compara-o com outros modos de produção (asiático,
feudalismo, etc). Mais ainda, através do que ele chama da queda tendencial da taxa
de lucro, estipulada como uma lei geral do capitalismo, o autor prevê de antemão
como se daria o declínio do capitalismo que seria, por fim, substituído por novos
modos de produção, a saber, socialismo e depois, comunismo. No entanto, mais de
um século e meio se passou e tal mudança não foi todavia observada. Ao invés
disso, o que se observou foi uma impressionante capacidade do modo de produção
capitalista em, nos momentos de crise, adaptar-se às novas condições vigentes, de
forma a internalizar as necessidades daqueles que emitiam as forças destrutivas.
“Por exemplo, os trabalhadores podem lutar para limitar as reduções de salários
durante crises industriais, depois reivindicar e conseguir uma indexação de seu salário
nominal sobre os preços, ou enfim obter um princípio de participação nos ganhos de
produtividade, aos quais eles próprios contribuíram. No sistema conceitual de Marx,
isso quer dizer que o valor da força de trabalho não é mais determinado por
necessidades sociais invariantes ou, pelo menos, fixado pelos imperativos da
reprodução do assalariado.” 87
São justamente estas mudanças nas relações sociais que ocorrem ao longo do
modo de produção capitalista que os conceitos de modo de regulação e regime de
acumulação buscam expressar.
Ainda dentro do modo de produção capitalista, as mudanças nas relações sociais
são passíveis de ocorrer em diferentes níveis de profundidade. Nesse contexto,
87
Boyer, 2009, pg. 57.
71
pode-se afirmar que o conceito de regime de acumulação abrange um nível mais
abstrato do que o de modo de regulação. Os diferentes níveis de mudanças podem
ser ilustrados através do quadro 2:
Categorias
mais
abstratas
Relação de produção
capital/trabalho
Relação mercantil
Modo de
produção
capitalista
Leis de
acumulação
Categorias
intermediárias
Relação salarial
Forma de concorrência
Regime monetário
Conjunto de
formas
institucionais
Regime de
acumulação
Modo de
regulação
Quadro de
referência
dos
comportamentos
Variáveis
observadas
Evolução do salário e da
produtividade
Formação de preços
Crédito, moeda e taxa de juros
Quadro 2: Das Categorias da Teoria Marxista às Categorias da Escola Francesa da Regulação.
Adaptado de Boyer, 2009, pg. 58.
Dessa forma, temos que no modo de produção capitalista podem existir diversos
regimes de acumulação, que expressam a estrutura das formas institucionais e,
dentro de um regime de acumulação específico, podem existir múltiplos modos de
regulação, que, por sua vez, expressam a mudança qualitativa de variáveis mais
maleáveis do sistema.
As formas institucionais referidas no quadro 2 não são menos do que cinco espécies
de relações sociais de naturezas distintas. São elas:
1- forma e regime monetários;
2- forma da relação salarial;
3- forma da concorrência;
4- forma de adesão ao regime internacional e, por fim;
72
5- formas do Estado88.
3.3 Os Ciclos III e IV
Voltemos então às questões levantadas no capítulo anterior.
Inicialmente, faz-se necessário efetuar algumas ressalvas com relação aos cortes
utilizados por Fiori (2008) para delimitar os ciclos. No que se refere ao corte inicial do
ciclo III, o ano de 1790, o presente trabalho não se julga apto a fazer maiores críticas
com relação a esta escolha. Uma consideração que cabe ser feita é que, se o motivo
de tal escolha tiver como referência a Revolução Francesa, cujo início se deu em
1789, então ela soa coerente. O caráter de tal opção é predominantemente político e
foge ao escopo da Ciência Econômica, área a qual pertence este trabalho. Dessa
forma, para este estudo, o corte inicial a ser utilizado será o ano de 1870. O motivo
desta escolha é que, levando em consideração a ênfase que o presente trabalho
atribui à questão da moeda, foi a partir desta data que, já sob a hegemonia da
Inglaterra, passou-se a adotar em âmbito mundial o padrão ouro como instituição de
referência do regime monetário internacional89. De certa forma, pode–se dizer que aí
foi a primeira vez na história do SIC em que o regime monetário internacional atingiu
um nível tão centralizado. Em outras palavras, o nível inédito de poder obtido pela
Inglaterra foi tão grande que a possibilitou interferir em âmbito mundial numa
variável central do sistema, a saber, a moeda.
88
Boyer, 2009, pg. 62.
É importante ressaltar que não é porque as características aqui apresentadas tenham sido
predominantes nos períodos analisados que elas tenham necessariamente ocorrido de forma
generalizada em todos os países ou que todos tenham adotado as medidas recomendadas pelo país
hegemônico. Por exemplo, não é porque o padrão ouro foi a referência mundial de valor que todos os
países aderiram a ele. No entanto, não é por isso que o padrão ouro deixou de ser a referência
predominante nas últimas décadas do século XIX e início do século XX. O mesmo se pode dizer com
relação ao livre comércio.
89
73
Há outro questionamento que se pode fazer desde já com relação à classificação
estipulada por Fiori (2008). Este se refere à inclusão ou não nos ciclos expansivos III
e IV do que ele mesmo chama de ondas de descolonização. Trata-se de dois
períodos distintos em que nasceram e se multiplicaram os estados nacionais extraeuropeus. Com relação a estes, diz Fiori:
“A primeira [onda de descolonização ocorreu] entre 1776 e 1825, quando se
independizam as colônias americanas, e a segunda, entre 1945 e 1975, quando as
colônias européias da África e da Ásia se transformam em estados nacionais
autônomos, processo que se completa, depois de 1991, com a decomposição da
União Soviética. Entre 1945 e 1990, foram criados cerca de 100 novos estados e,
portanto, a maior parte dos estados que compõe hoje o sistema estatal mundial foi
criada depois da II Guerra Mundial e foram quase todas colônias das Grandes
Potências européias.” 90
Dessa forma, a questão que se levanta é: por que a primeira onda de
descolonização está inserida em um ciclo expansivo e a segunda, ao menos
parcialmente, não? Este ponto também diz respeito aos cortes sugeridos por Fiori e
será discutido em maior detalhe mais adiante.
Enfim, para os devidos fins, o presente trabalho propõe esquematizar o SIC desde a
implementação do padrão libra-ouro, em âmbito inter-estatal, com as divisões
segundo a figura 3 a seguir:
90
2004, pgs. 39-40.
74
Figura 3: O SIC Pós-1870.
Elaboração própria.
Daqui pra frente, este trabalho se destinará a justificar as divisões sugeridas na
figura 3, tendo como referência as cinco formas institucionais enunciadas. Nesse
contexto, o resto deste capítulo se destinará a estudar em maior detalhe o período
aqui denominado como “Pré-Fordismo”.
3.4 As Estruturas Sociais do Pré-Fordismo
Aqui se inicia a segunda parte do trabalho. Nesta, será elaborada, a partir dos
conceitos desenvolvidos na parte anterior, uma análise histórica própria, em que se
toma por referência o enquadramento institucional sugerido pelos autores da Escola
Francesa da Regulação. Busca-se, a partir deste procedimento, corroborar as
conclusões apreciadas até aqui com relação à primazia assumida pela moeda nas
relações econômicas. E é sob esse pano de fundo que será possível trazer nova luz
sobre o significado da crise mundial de 1970, proposta inicial do trabalho.
75
3.4.1 Contexto
Façamos, portanto, uma pequena contextualização do período aqui analisado. Em
1815, têm-se fim as Guerras Napoleônicas. Se no âmbito político essa data
simbolizou o início do período hegemônico inglês sobre o SIC, no âmbito econômico,
tal vitória marcou a hegemonia do insurgente modo de produção capitalista sobre o
mercantilismo do Antigo Regime. Apesar do Antigo Regime francês já conter
elementos importantes do modo de produção capitalista, ele ainda não podia ser
caracterizado como tal. Isso porque no sistema do Antigo Regime a lógica da política
prevalecia sobre a lógica da economia e isso impossibilitava a plena operação da
“economia de mercado” propriamente dita. A maior expressão desta limitação é,
talvez, o pacto colonial, em que as colônias deveriam vender seus produtos a preços
artificialmente baixos para as metrópoles. Estas últimas, por sua vez, conseguiam
lucros através da lógica de comprar barato e vender caro. Tal sistema era viabilizado
por meios militares que, por sua vez, justificavam-se pela idéia de a metrópole estar
também protegendo as colônias de invasões estrangeiras.
Assim, a partir deste ano o capitalismo inglês veio a se tornar o modo de produção
soberano, uma vez que o exército e o Estado a ele subordinados passaram a não ter
mais um adversário em nível mundial que pudesse lhe oferecer resistência. Dessa
forma, os países ao redor foram se acomodando como podiam a essa nova
realidade. Em outras palavras, o SIC passou a ter um novo hegemon. A partir de
então, a Inglaterra vive um período de profundas transformações internas onde
adéqua sua estrutura social, ainda profundamente agrária, a uma economia de
mercado91. No entanto, é apenas a partir da década de 1870 que diversos países do
mundo passam a lastrear as suas moedas nacionais em paridades fixas com o ouro,
91
Mais sobre as mudanças deste período e sobre as transformações inglesas que culminaram nas
instituições do período analisado podem ser encontradas em Polanyi (2000).
76
de forma a viabilizar o projeto inglês de implementar o livre mercado pelo mundo. É
este período, a partir da década de 1870, que nos interessa por ser o momento
anterior à lógica fordista, que passaria a prevalecer mais tarde.
3.4.2 Forma e Regime Monetários: O Padrão Ouro
No que se refere à forma e regime monetários, a análise de Frieden (2008) é
bastante esclarecedora:
“o padrão ouro se tornou o princípio organizador do capitalismo global. [...]. O Reino Unido era
praticamente o único país monometálico. A nação se desviou do padrão ouro,
temporariamente, apenas uma vez após as Guerras Napoleônicas. Quase todos os outros
Estados eram bimetálicos e utilizavam tanto o ouro quanto a prata. Centenas de anos de
utilização mista de ouro e prata chegaram abruptamente ao fim na década de 1870. [...] o
status da Grã-Bretanha como líder do mercado global atraiu outros países para a utilização do
92
mesmo sistema monetário.”
Quando o governo de uma nação adotava o padrão ouro, comprometia-se a trocar a
sua moeda por ouro a uma taxa pré-estabelecida. A moeda do país se tornava
equivalente ao ouro e podia ser trocada a uma taxa fixa pela de qualquer outro
Estado que também tivesse adotado o sistema. E, com a situação na qual as
principais moedas do planeta podiam ser diretamente convertidas em ouro a taxas
fixas, o mundo industrial compartilhava basicamente de uma moeda internacional.
“Sob o padrão ouro, tais taxas para trocas entre a libra e o marco, o franco e o dólar
e outras moedas, eram as mesmas por tanto tempo que, como é dito, nas escolas
as crianças as sabiam de cor, por serem tão estáveis quanto a tabuada”
93
.
A
previsibilidade do padrão ouro facilitou o comércio, os empréstimos, os
investimentos, a migração e os pagamentos internacionais. Banqueiros e
investidores se sentiam seguros com as dívidas sendo pagas em quantidades
92
93
Frieden, 2008, pg. 22.
Ibid, pg. 23.
77
equivalentes de ouro e com a obtenção de lucros nas moedas correntes fixadas no
metal.
No entanto, se por um lado o padrão ouro proporcionava a vantagem de oferecer ao
comércio mundial uma referência única de valor, por outro, as contrapartidas
referentes às dificuldades de sua manutenção eram imensas e repercutiam com
força nas outras instituições da economia. A forma da relação salarial, por exemplo,
mostrava-se muitas vezes subordinada a questões referentes às imposições do
padrão ouro.
O padrão ouro significava integridade financeira por exigir dos governos políticas
econômicas que se ajustassem às pressões da economia global. A adesão ao ouro
forçava as economias nacionais ao ajuste quando elas gastavam além do que
podiam. Se uma nação abrisse um déficit ao importar mais do que exportar, teria
que pagar a diferença com o dinheiro – ou seja, com o ouro – do país. Com a saída
do ouro, a oferta interna de dinheiro diminuiria, assim como o poder de compra da
nação. Isso reduziria a demanda e dificultaria as vendas dos produtores nacionais,
que precisariam reduzir os preços e forçar uma queda nos salários. Dessa forma,
pelo próprio funcionamento do padrão ouro, o país que gastasse mais do que
recebesse estaria fadado a reduzir os preços e salários, a gastar menos e a produzir
de forma mais barata. Somente após a queda nos salários e preços é que o sistema
reagiria. Isso porque 1- os estrangeiros, ao se depararem com uma situação mais
favorável no seu vizinho, passariam a comprar mais produtos dele e 2- os locais
78
passariam a comprar menos bens de fora. Assim, o montante importado diminuiria e
as exportações cresceriam, permitindo que a situação inicial se restaurasse94.
O padrão ouro agia como um regulador, impondo restrições aos salários e aos
preços. Qualquer país no padrão ouro que gastasse mais do que ganhasse (ou
pudesse pegar emprestado) seria forçado, pela forma como o sistema operava, a
inverter esse quadro; reduzir gastos e salários, de forma a retomar o equilíbrio. Os
governos que se comprometessem com o padrão ouro estavam automaticamente
privilegiando os laços internacionais em detrimento das necessidades internas,
impondo austeridade e cortes de salários a uma população relutante. Isso fez do
padrão ouro o teste de fogo dos investidores internacionais: o país disposto a honrar
seus compromissos internacionais em detrimento das pressões políticas internas
possuía mais credibilidade para receber os investimentos95.
Vale ressaltar que não foram todos os países que aderiram ao padrão ouro. Cabia a
cada país decidir se estaria disposto a se submeter às rigorosas regras subjacentes
à sua implementação. O país que aceitasse os termos seria integrado ao sistema
econômico internacional e receberia uma série de benefícios, como, por exemplo,
ajuda externa, caso as reservas de ouro se esgotassem. Era como se fosse um
clube de cavalheiros, o país que aderisse se tornava membro. Mesmo assim, vários
países decidiam não aderir ao sistema, ou então, aderiam, mas por um período
relativamente curto. Um dos motivos para a relutância de certos países em aderir ao
padrão era que a perda da liberdade em promover flutuações cambiais poderia
tornar as exportações demasiado expostas aos preços internacionais, ao passo que
94
Esse mecanismo de ajuste foi elaborado por David Hume e é conhecido como “modelo de fluxo de
moedas metálicas”.
95
Ibid, pgs. 34-5.
79
o país que não aderisse poderia apenas efetuar uma desvalorização de sua moeda
para fins de atenuar tais efeitos96.
3.4.3 Forma da Relação Salarial: Salários Flexíveis
A falta de articulação por parte dos operários era uma das condições do padrão ouro
e do sistema clássico liberal, predominante na época. Isso porque a necessidade de
reduzir salários nos momentos de desajustes externos era imprescindível para a
manutenção do lastro com o metal.
A classe operária, por sua vez, ainda que no início do período fosse desorganizada
e sem voz política significativa, foi crescendo e se sindicalizando rapidamente, de
forma a conseguir participação cada vez maior nos cenários políticos de seus
países. Esse movimento se mostrava uma verdadeira ameaça, uma vez que as
demandas trabalhistas se chocavam freqüentemente com os pilares do sistema
clássico liberal de salários flexíveis e governo mínimo. E, de fato, o aumento de
força da classe operária foi um fator significativo, no sentido de esgotar o sistema. O
direito a voto por parte dos trabalhadores do sexo masculino no final do séc. XIX e
início do séc. XX influenciou o processo. O resultante crescimento dos partidos
socialistas, no início do séc. XX, teria sido inimaginável uma geração antes, tanto
para capitalistas quanto para trabalhadores.
Com o crescimento da população operária nos países industriais, as suas
necessidades pareciam cada vez mais incompatíveis no que dizia respeito às
características mais importantes das economias abertas e ainda grandemente
agrárias do fim do séc. XIX e início do séc. XX, que se encontrava despreparada
96
Ibid, pg. 45.
80
para lidar com um contingente tão grande de indivíduos da classe assalariada. E o
mais relevante era que os trabalhadores precisavam de um escudo contra o
desemprego. Os produtores agrícolas, outro grande segmento da população,
podiam se recolher em suas terras, cultivos e vilarejos em tempos difíceis; podiam
produzir o suficiente para comer ou contar com a ajuda de familiares ou vizinhos
caso o problema fosse especificamente com suas fazendas. Os trabalhadores das
grandes cidades, por sua vez, na falta de emprego, não tinham propriedade e
nenhuma forma de produzir o básico para a subsistência, e o caráter impessoal da
sociedade urbana reduzia a possibilidade de ajuda por parte dos outros
trabalhadores. Tudo o que tinham era uma ajuda mínima, de alívio à pobreza,
oferecida por instituições de caridade privadas, ou os vestígios da assistência levada
à frente por governos medievais, que era concedida aos muito pobres, às viúvas e
aos órfãos97. Ou seja, o auxílio aos desempregados era escasso e limitado. Não
havia na época instituições sólidas destinadas a esse fim.
Quanto à posição da classe empresarial, apesar da política de auxílio às classes
mais pobres ter um lado benéfico, na medida em que trazia estabilidade para o
mercado de trabalho local e diminuía as inquietações sociais, ela era muitas vezes
combatida, uma vez que a ausência dos benefícios fazia com que os trabalhadores
tivessem poucas opções além de aceitar salários reduzidos em tempos difíceis, já
que a alternativa seria a fome. De fato, uma vez que os trabalhadores e os
programas sociais limitavam o poder das empresas em definir salários, o
descontentamento dos capitalistas se manifestava. Quanto mais controle os
trabalhadores tinham sobre suas vidas, menos seus salários e condições de trabalho
97
Para citar um exemplo que mostre que houve de fato auxílios por parte do Estado às classes mais
pobres em períodos anteriores à crise de 1929, temos a experiência de Speenhamland, descrita por
Polanyi (2000), que ocorreu entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do XIX.
81
podiam ser definidos ao bel-prazer da indústria. Os sindicatos tinham o objetivo de
fornecer aos trabalhadores ganhos garantidos, o que significa uma redução na
flexibilidade dos salários e nas horas trabalhadas98.
A sindicalização da classe operária e as ações políticas para reduzir a capacidade
do mercado de definir os salários livremente causaram impacto profundo no
capitalismo global. Isso ia diretamente de encontro à flexibilidade dos salários,
aspecto essencial para o funcionamento da maioria das economias nacionais e para
a relação delas com a economia internacional, mediada, por sua vez, pelo padrão
ouro.
Dentre os que mostravam oposição ao padrão ouro estavam os produtores
agrícolas99 e os mineradores que produziam para o mercado mundial. Isso ocorria
porque um país que estava sobre o padrão ouro não podia utilizar a desvalorização
monetária para proteger os exportadores das quedas de preço de seus produtos. Já
aqueles que competiam com os importados tinham uma alternativa fácil: eles
poderiam se beneficiar das tarifas alfandegárias para que os bens estrangeiros
ficassem menos competitivos100.
3.4.4 Forma da Concorrência: Concentração de Capital; Formação de Trustes,
Holdings, etc; corrida imperialista.
O período pré-fordista foi marcado por uma forte intensificação da concorrência. No
entanto, esta intensificação não foi necessariamente acompanhada de um aumento
da quantidade de empresas em cada setor. Esse resultado pode ser considerado um
98
Ibid, pgs. 134-7.
Era o caso, por exemplo, dos produtores de café no Brasil.
100
Ibid, pg. 129.
99
82
tanto quanto inesperado. Afinal, dada a grande concentração de capital que se
observou no período, poder-se-ia esperar que a diminuição do número de empresas
reduzisse o grau de concorrência entre elas. Mas não foi bem isso o que aconteceu.
Anteriormente, na economia acentuadamente agrícola, manufatureira e de pequena
escala do início do século XIX, o mercado possuía um nível de integração
relativamente pouco desenvolvido; consistia basicamente de pequenos mercados
locais, cada qual isolado dos demais pelo alto custo dos transportes e supridos pelos
produtores locais.
As grandes inovações tecnológicas dos períodos anteriores, bem como a
implementação dessas tecnologias na esfera produtiva, possibilitaram grande
aumento das escalas de produção. Somados a isto, tem-se também evoluções nas
formas de gerenciamento da moderna empresa capitalista. Com o desenvolvimento
da produção em larga escala, as funções de planejamento se converteram num
terreno de assalariados técnicos em produção, de administradores fabris do escalão
subalterno. O que se requeria agora era o toque mestre da estratégia industrial
orientadora, para fazer ou desfazer alianças, escolher ângulos propícios para o
crescimento ou prever o desenrolar de toda a operação. Cada vez mais os grandes
empresários se integravam na estratégia das finanças, da concorrência, das vendas,
em vez de se voltarem apenas para as frias técnicas da produção.
À medida que os canais e as ferrovias penetravam pelas entranhas do mundo e as
novas técnicas industriais aumentavam largamente a produção, o caráter
provinciano do sistema de mercado se transformou. Os mercados nacionais se
mostravam cada vez mais unidos e interligados e os minúsculos semi-monopólios
83
dos fornecedores locais foram invadidos por produtos provindos de grandes fábricas
de cidades distantes.
E não apenas as novas técnicas de produção davam novo fôlego à produção, mas o
ímpeto empreendedor dos homens de negócio em explorar qualquer nova
possibilidade de expansão de suas empresas também contribuía com as
significativas mudanças na estrutura vigente.
O resultado foi uma torrente fenomenal de produção, seguida de profunda
transformação da natureza da concorrência. A concorrência se tornara não só mais
extensa como também mais dispendiosa. À proporção que cresciam o tamanho da
fábrica e a complexidade do equipamento, também aumentavam as despesas fixas
da empresa comercial – os juros dos capitais emprestados, a depreciação dos bens
de capital, o custo do pessoal administrativo, a renda da terra e as despesas
gerais101. Esses custos tendiam a se tornar razoavelmente constantes, a despeito de
as vendas serem altas ou não. Diversamente do pagamento de salários à classe
trabalhadora, que caía quando se dispensava operários, não havia nenhum modo
fácil de reduzir o fluxo contínuo do pagamento dessas despesas fixas. O resultado
foi que quanto maior o negócio tanto mais vulnerável se tornara sua condição
econômica quando a concorrência intervinha em suas vendas.
A efervescência da época – mais o crescimento constante de uma tecnologia que
demandava investimentos maciços – foi tornando a concorrência gradativamente
mais drástica. Tornando-se gigantes, os negócios começaram a terçar armas,
ferrovia contra ferrovia, siderúrgica contra siderúrgica, cada qual desejoso de
assegurar a cobertura de suas despesas fixas ganhando para si o máximo que o
101
Esse processo é o que os marxistas chamam de aumento da composição orgânica do capital.
(Franco Júnior & Chacon, 1986, pg. 171).
84
mercado pudesse proporcionar-lhe. O resultado final foi o crescimento constante da
concorrência encarniçada entre os grandes produtores, em substituição à
concorrência local, restrita do mundo de pequenos negócios e de mercados
estreitos102.
Sob
tais
circunstâncias,
os
grandes
empresários
foram
pouco
a
pouco
compreendendo que seria melhor para eles se simplesmente parassem de competir
de forma tão selvagem e encontrassem alguma outra saída.
Uma das saídas descobertas foi o truste.
“Em 1879, Samuel Dodd, advogado da nova Standard Oil Company, teve a brilhante idéia de
regular a concorrência suicida que habitualmente arruinava a indústria petrolífera. Nasceu-lhe a
idéia da custódia (truste). Os acionistas das companhias que desejassem pertencer ao
Standard Oil Trust deviam entregar suas ações ao conselho diretor do novo truste. Dessa
forma, desistiriam de exercer o controle de suas companhias, mas receberiam em troca
‘certificados de truste’ (custódia de bens) que lhes davam o direito aos mesmos dividendos de
lucros que suas ações lhes proporcionavam. Dessa forma, os diretores da Standard Oil
assumiram o controle de todas as companhias associadas, enquanto os antigos acionistas
103
participavam inteiramente dos lucros.”
Com o passar dos anos, alguns trustes foram ganhando tanto porte que passaram a
ter quantidade de trabalhadores e faturamento similares aos seus governos. Nesse
contexto, os países passaram a promulgar leis regulando, limitando e, muitas vezes,
até dissolvendo os trustes104. Frente a essa situação, outros artifícios passaram a
ser empregados pelos empresários, como, por exemplo, a fusão, isto é, a
consolidação de duas companhias para formarem uma terceira mais forte.
Outro modo eficiente de limitar a concorrência foi o holding, que consiste em uma
companhia central adquirir a parte majoritária das ações de outras e, assim, ter o
controle sobre suas empresas subsidiárias.
102
Heilbroner, 1962, pgs. 148-150.
Ibid, pg. 151.
104
Nos EUA, o Sherman Antitrust Act foi promulgado em 1890.
103
85
No âmbito inter-estatal, cabe apenas acrescentar que a corrida imperialista
promovida pelas potências européias buscava não apenas o acesso a novas fontes
de matérias-primas, mas também às populações das novas áreas colonizadas.
Estas populações eram consumidores potenciais da produção das empresas dos
países centrais. Estas empresas dos países centrais, por sua, vez, frente aos
enormes aumentos na escala de produção ocasionados pelas inovações tanto na
parte de gestão como na parte das técnicas de produção em si, necessitavam mais
do que nunca de novos mercados de consumo para escoar suas mercadorias.
Dessa forma, é correto afirmar que, mesmo depois de superadas as “ineficiências de
mercado” que era a prática do pacto colonial, o SIC ainda se utilizava amplamente
da atuação de seus Estados, e muitas vezes através da violência, para impor suas
práticas de mercado.
Com relação à violência exercida pelas grandes potências européias no século XIX,
diz Oliveira (2003, pg. 191):
“Nas áreas de antigas sociedades que apresentavam certo nível de complexidade,
como Índia, China, Egito, etc., a missão civilizatória do capital foi exercida de forma
agudamente contraditória. As bárbaras formas de dominação locais foram sendo
substituídas por novas formas de organização da sociedade por meio de práticas
brutais, numa flagrante violação dos próprios primórdios do liberalismo, indicando
assim que o capital não hesita em abandonar sua ideologia quando seus interesses
estão em jogo.”
Outro exemplo da violência exercida pelos interesses do capital no período da
hegemonia britânica são os chamados domínios brancos – Canadá, Austrália e
Nova Zelândia. Nessas regiões, as atrasadas e rarefeitas populações indígenas se
mostraram incapazes de impedir os avanços da colonização realizada por
emigrantes europeus.
86
“A inexistência de expressivas resistências externas permitiu que os colonizadores
rapidamente exterminassem os nativos, abrindo assim um verdadeiro vazio social no
qual a livre concorrência podia moldar o surgimento de novas sociedades. Dessa
forma, emigrantes europeus e capitais ingleses puderam organizar, por meio de
pequenas propriedades ou do trabalho assalariado, uma estrutura produtiva que desde
suas origens estava voltada para o comércio exterior. Pujantes economias capitalistas
exportadoras de matérias-primas e alimentos foram sendo conformadas, e
conseqüentemente também nesses domínios a política livre-cambista foi adotada.” 105
3.4.5 Forma de Adesão ao Regime Internacional: Livre Comércio e Grande Fluxo
Internacional de Indivíduos e Capital
O livre comércio mundial liderado pela Grã-Bretanha surgiu a partir da superação da
forma anterior vigente, a saber, o mercantilismo. Os monarcas absolutistas que
governaram a Europa e o mundo antes de 1800 se preocupavam com as alianças
políticas, a extração colonial e o tamanho e o poder de seus Estados nacionais. Eles
controlavam suas economias como parte das vicissitudes das políticas dinásticas,
manipulando o comércio por meios militares. A riqueza era vista, na época,
predominantemente como um meio para se obter poder.
De fato, como exposto anteriormente, a lógica mercantilista não priorizava as
relações de livre mercado como forma de alocação de recursos, mas sim as
relações de poder. O pacto colonial vigente implicava que as colônias deveriam
vender sua produção à metrópole por um preço abaixo do preço de mercado. Como
contrapartida, a metrópole utilizava parte das riquezas acumuladas para proteger os
subjugados.
A revolução industrial inglesa trouxe à tona um sistema muito mais produtivo que o
mercantilista. A partir de meados do séc. XVIII, empreendedores britânicos
105
Oliveira, 2003, pg. 191.
87
passaram a introduzir inovações tecnológicas na produção, contratar uma grande
quantidade de empregados em fábricas e, finalmente, produzir manufaturados a
preços mais baratos que a concorrência em qualquer mercado. Os interesses
econômicos criados pela Revolução Industrial inglesa consideravam o mercantilismo
irrelevante ou danoso.
Contrariamente ao mercantilismo, era do interesse dos fabricantes britânicos
eliminar as barreiras comerciais do país. Permitir que estrangeiros vendessem
produtos à Grã-Bretanha prometia vários aspectos positivos. Os fabricantes da
nação poderiam reduzir seus custos de forma direta, comprando matérias-primas a
preços mais baixos, e indireta, uma vez que a importação de comida barata permitia
que os donos das fábricas pagassem salários menores sem que houvesse uma
redução no padrão de vida dos empregados. Ao mesmo tempo, se os estrangeiros
ganhassem mais ao vender para a Grã-Bretanha, teriam condições de comprar mais
produtos do país. Os industriais britânicos também se deram conta de que se os
estrangeiros pudessem comprar todos os produtos manufaturados que precisassem
dos baratos produtores britânicos, aqueles teriam menos necessidade de
desenvolver uma indústria própria. Por esses motivos, as classes e as regiões fabris
da Grã-Bretanha desenvolveram uma antipatia pelo mercantilismo e um forte desejo
pelo livre comércio.
À medida que a City de Londres se tornava o centro financeiro mundial, ela
adicionava sua influência a outros interessados no livre comércio. Os banqueiros
internacionais da Grã-Bretanha tinham um forte motivo para abrir os mercados do
país aos estrangeiros. Afinal, os estrangeiros eram seus clientes e o acesso deles
ao próspero mercado britânico tornaria mais fácil o pagamento de suas dívidas com
Londres.
88
O ápice da discussão sobre o livre comércio no âmbito interno à Grã-Bretanha se
deu através das chamadas Corn Laws, taxas impostas à importação de grãos. Tanto
os empresários quanto a comunidade financeira defendiam a abolição destas taxas.
Os fazendeiros, no entanto, estavam ávidos para manter as restrições à importação
de produtos agrícolas, afinal, eram eles que se beneficiavam com tais leis. Eles
recorriam aos argumentos da necessidade de auto-suficiência na produção de
alimentos, da importância da produção agrícola para o estilo de vida britânico e dos
dolorosos ajustes que a enxurrada de grãos imporia. Em 1846, as Corn Laws foram
abolidas e, junto com elas, foram-se também os últimos grandes resquícios da
prática mercantilista na Grã-Bretanha, bem como as últimas barreiras ao livre
comércio que passaria a vigorar no mundo.
Quando a Grã-Bretanha, a economia mais importante do mundo, descartou o
mercantilismo, os outros países se depararam com novas opções. Os problemas
políticos da era mercantil – alianças militares e monopólios – abriram caminho para
os grandes debates do século XIX sobre como, e se, os países deveriam participar
do mercado global. As décadas seguintes à revogação das Corn Laws foram de
crescimento intenso do comércio mundial, sobretudo nos países desenvolvidos106.
“Com as novas tecnologias nos meios de transporte (até o fim do séc. XIX, telégrafos,
telefones, navios a vapor e ferrovias substituíram cavalos, pombos, mensageiros e
barcos a vela) e o triunfo do livre comércio britânico, o mundo dos mercantilismos
militarizados nacionais abriu espaço para um mercado verdadeiramente internacional.
A velha ordem, defendida com armas em Waterloo, terminou e foi substituída por um
novo capitalismo global. A força dominante passou a ser o mercado, não o monarca.”
107
106
107
Frieden, 2008, pgs. 18-20.
Ibid, pg. 21.
89
O processo de dispersão do livre comércio pelo mundo foi se dando de forma
crescente e gradual. Os produtores e credores favoráveis ao livre comércio
encontraram aliados entre os que exportavam matérias-primas e solicitavam
empréstimos nos países em desenvolvimento. Os industrialistas e investidores
britânicos estabeleceram laços econômicos com os produtores agrícolas brasileiros
e egípcios, banqueiros norte-americanos e mineradores australianos. Tais laços
eram com freqüência culturais e sociais, como podia ser demonstrado pela difusão
da língua inglesa, do futebol, etc. Cada uma das nações que se lançava no comércio
mundial logo formava grupos de interesse poderosos, geralmente aliados a grupos
influentes no exterior, que faziam pressão para a consolidação da integração
comercial. A Grã-Bretanha era o centro da rede de livre comércio sendo, junto com o
seu império, responsável por cerca de um terço de todo o comércio internacional. As
políticas britânicas eram comprometidas incessantemente com a integração
global108.
O livre comércio e o padrão ouro estavam intimamente relacionados um com o outro.
De fato, a função exercida pelo padrão ouro de ser a referência monetária mundial,
ainda que não fosse imprescindível para o comércio internacional, era bastante
conveniente, uma vez que facilitava o acesso a mercados, capital e investimentos
estrangeiros. É claro que havia a contrapartida de tais vantagens. Os países que
adotassem o padrão ouro sofriam as intensas restrições nas opções de políticas
governamentais que se deparavam. Cabia a cada Estado decidir se valia a pena se
aventurar ou não neste sistema. Não é de se surpreender, portanto, quanto aos
108
Ibid, pg. 63.
90
acirrados enfrentamentos políticos que ocorreram nos diferentes países ao redor
dessas questões109.
Com relação ao fluxo migratório, houve grande movimentação de trabalhadores
entre países no período analisado. Não havia, contudo, um sistema ou uma política
global que se aplicasse a todos os países, como ocorria em relação ao comércio e
ao capital. Também não havia interesse, tanto por parte dos países que enviava
migrantes quanto por parte daqueles que os recebia, em restringir essa
movimentação. Os trabalhadores se locomoviam basicamente dos países que
pagavam menores salários para aqueles que pagavam maiores. O fluxo de capital
também foi intenso e estimulado. De fato, a Grã-Bretanha se consolidou como a
“oficina do mundo” ao promover enormes quantias de investimentos internacionais
para a construção de ferrovias no exterior110.
3.4.6 Formas do Estado: Estado Mínimo
Antes de 1914, salvo algumas exceções, predominou nos países economicamente
importantes que se deveria privilegiar os laços econômicos com o exterior em
detrimento das questões domésticas. Os compromissos com a economia
internacional eram tarefas mais importantes do que o desemprego na indústria ou a
aflição dos agricultores. Poucos líderes políticos nestes países acreditavam que os
governos deviam fazer algo pelas empresas nacionais, pela falta de trabalho ou pela
pobreza. De fato, muitos dos defensores ortodoxos do sistema argumentavam que
uma intervenção substancial do Estado nos mercados interferiria no curso natural do
padrão ouro. Acreditavam que seguro-desemprego, ajuda a agricultores em apuros
109
110
Ibid, pg. 61.
Ibid, pgs. 66-70.
91
e programas sociais extensivos aos pobres impediriam os ajustes exigidos pelo
padrão ouro. Tais programas, segundo estes, evitariam que os salários e preços
caíssem, como era necessário para manter a economia em equilíbrio.
No entanto, os governos eram necessários, uma vez que controlavam as relações
financeiras, a moeda e o comércio entre as nações. Os governos também aplicavam
o direito de propriedade, interna e externamente, o que era uma forma de garantir
aos seus cidadãos os benefícios da economia global. De modo semelhante, as
classes governantes, tanto das nações pobres quanto das industrializadas, fizeram o
possível para provar sua integridade econômica, mas pouco contribuíram para o
gerenciamento da economia interna111.
3.5 Conclusão
A experiência do Pré-Fordismo corrobora os resultados obtidos pela Escola
Francesa da Regulação com relação à relevância da moeda. De fato, além da
instituição relativa à forma e regime monetário (item 3.4.2), que trata justamente das
questões relativas à moeda, todas as outras estavam associadas às condições da
moeda vigentes. À exceção das instituições associadas às formas de concorrência
(item 3.4.4), as outras três formas institucionais (além da própria forma e regime
monetários, item 3.4.2) se encontravam firmemente subordinadas aos imperativos
das condições monetárias: no que se refere às formas salariais (item 3.4.3), as
relações trabalhistas exigiam salários flexíveis que variavam conforme as reservas
domésticas de ouro; com relação à forma de adesão ao regime internacional (item
3.4.5), a significativa intensificação das relações comerciais observada no período
111
Ibid, pg. 46.
92
se deveu em grande medida à fixação das taxas de conversão das moedas
nacionais com o ouro; já no que diz respeito às formas de Estado (item 3.4.6), o
lastro com o ouro implicava a necessidade de privilegiar os laços econômicos
externos em detrimento das questões internas, além de inviabilizar o manuseio de
certos instrumentos de política monetária, como a taxa de juros de títulos públicos e,
é claro, a taxa de câmbio.
Já com relação à instituição referente às formas de concorrência, a relação com os
imperativos do ouro se dava de modo um pouco mais complexo. De fato, não se
pode afirmar que esta instituição estava subordinada às exigências do ouro, como
as outras três. No entanto, havia uma relação íntima entre este item e aquele da
forma e regime monetários. Isso porque se a condição da concorrência viveu uma
grande intensificação, esta se deu devido a um abrupto aumento das oportunidades
econômicas, agora em âmbito mundial. E este aumento das oportunidades
econômicas é que estava associado com as condições monetárias por via da
integração mundial. Em outras palavras, era a intensa integração mundial a grande
responsável pelo aumento das oportunidades econômicas e esta integração
resultava, por sua vez, das condições exercidas pelas regras do padrão ouro. Temos
assim a grande influência exercida pela instituição monetária sobre as outras
instituições sociais do período.
93
4 CAPÍTULO 4:
O SIC EM TEMPOS MODERNOS
4.1 O Entreguerras
O período entre as duas grandes Guerras Mundiais (1914-1945), elas inclusas, não
é passível de uma análise das formas institucionais como no período anterior. Isso
porque neste intervalo não se observa características estáveis próprias do período,
mas sim um quadro de confusão generalizada marcada pela transição lenta e
gradual, ainda que nada ordenada, de um regime de acumulação para outro, mais
precisamente, do regime de acumulação pré-fordista para o fordista. Com relação a
este ponto, diz Teixeira:
“Como se sabe, os anos que transcorreram entre as duas grandes guerras foram
marcados pela incapacidade da Inglaterra de restabelecer sua hegemonia e, em
conseqüência, restaurar a ordem econômica internacional que prevalecera até as
vésperas do conflito. A libra – e os bancos ingleses – perdem seu poder de
ordenamento sobre os fluxos de capital e comércio e, em decorrência, a própria
economia mundial não consegue recobrar o dinamismo que havia alcançado no
período anterior, quando era clara e evidente a hegemonia inglesa. A Europa não
conseguiu produzir transformações estruturais suficientes para garantir seu
dinamismo, e os Estados Unidos, apesar de já serem a maior potência industrial e de
terem experimentado um importante processo de mudança estrutural, ainda eram uma
economia excessivamente introvertida, de qualquer ponto de vista.” 112
112
1993, pgs. 33-4.
94
Charles Kindleberger (1973), ao analisar o período em um dos textos que inauguram
a EPI, conclui que o motivo de tamanha desordem ocorre devido à ausência de um
país que exerça o papel de hegemon e organize a estrutura do sistema mundial.
De fato, após a Primeira Guerra Mundial (I G. M.), a Inglaterra, ainda que vencedora,
encontrava-se não apenas abalada pelas duras perdas de guerra, mas também
fortemente endividada em decorrência de vultosos empréstimos que tomaram dos
EUA para financiar seus custos bélicos. Os EUA, por sua vez, desde fins do século
XIX já possuíam a economia mais próspera. Além disso, seus prejuízos de guerra
foram consideravelmente menores e, ainda por cima, eram agora credores dos
países europeus. No entanto, não estavam com a disposição para assumir a batuta
do SIC, devido aos receios de que defender posições internacionalistas ao invés de
protecionistas pudesse comprometer a economia do país.
Assim, a lacuna remanescente contribuiu para a desordem observada no período. A
Inglaterra ainda buscou exercer o papel de hegemon e restabelecer o padrão libraouro à mesma cotação do pré-guerra, mas a idéia se mostrou um fiasco113. O
principal motivo do fracasso é que a força de trabalho se articulava agora através de
sindicatos e não estava mais disposta a tolerar reduções salariais quando a situação
externa assim exigisse. Mais que isso, a possibilidade de voto por parte desta classe
deu margem a mobilizações políticas das mais diversas e extremas, do socialismo
ao fascismo.
Com relação ao regime de acumulação pré-fordista, suas possibilidades de
expansão se encontravam exauridas. Isso porque a grande expansão do período
anterior resultou que, após a I G. M., o mundo se encontrasse virtualmente por
113
Um bom trabalho sobre as condições do padrão ouro no período entre guerras pode ser
encontrado em Eichengreen (2000), cap. 3.
95
completo
integrado
ao
SIC,
sendo
Ásia,
África
e
Oceania
compostas
predominantemente de colônias pertencentes aos países europeus, principalmente
Inglaterra e França. Ou seja, não havia mais possibilidade de expansão para o
escoamento das mercadorias produzidas pelas empresas européias. Nesse
contexto, a expansão do lucro capitalista, principal força propulsora da expansão do
SIC (ao menos em tempos de paz) estava ameaçada.
A solução para tal problemática foi trazida justamente por Henry Ford, empresário
norte-americano da indústria automobilística. A maior invenção atribuída a Ford é a
linha de montagem, organização produtiva que viabilizava enormes ganhos de
produtividade. No entanto, o que poucos autores ressaltam e que, esta sim, foi a
verdadeira inovação de Ford, foi que o empresário buscou administrar um esquema
onde seus próprios empregados pudessem obter um exemplar do que produziam. E
foi esta a inovação que satisfez as necessidades de expansão do SIC a partir
daquele momento, de forma a dar origem a todo um novo regime de acumulação.
Em outras palavras, a crise se resolveu na medida em que o crescimento da
produção deixou de se focar no contingente populacional dos novos mercados
coloniais para se dirigir à insurgente população assalariada que, cada vez mais,
reivindicava arduamente por melhores condições de vida.
De fato, este novo estilo de produção se conciliou com a crescente articulação dos
trabalhadores em sindicatos que agora votavam e lutavam por melhores condições
de trabalho e por maior participação na produção social. Dessa forma, a inovação
trazida por Ford foi a implementação prática que trouxe novo fôlego à expansão do
capitalismo na medida em que ofereceu uma alternativa à expansão do capital, bem
como uma solução para a questão da resistência da classe assalariada. E é esta a
razão principal pela qual é adequado atribuir o nome de Fordismo ao regime de
96
acumulação que se seguiu à Segunda Guerra Mundial (II G. M.) e que perdura até
os dias atuais. 114
Outra observação que cabe ser feita é que, apesar de todo o período do
entreguerras ter sido marcado pela transição de regimes de acumulação, o crash da
bolsa de Nova Iorque, em outubro de 1929, pode muito bem ser marcado como o
momento em que a balança virou de lado. Isso ocorre uma vez que a partir deste
momento é que os administradores do sistema foram obrigados a parar para
reavaliar a situação que o mundo vivia. De fato, as instituições desenvolvidas no
século XIX já não davam mais conta de operar um sistema onde mudanças tão
significativas tinham ocorrido. Assim, ao longo da crise que se seguiu ao crash, as
medidas que foram sendo adotadas atuaram como o princípio das novas instituições
que passariam a vigorar a partir de então.
4.2 Fordismo I ou Bretton Woods
Precisou-se de mais uma guerra para esclarecer ao mundo como se daria a nova
ordem mundial. Agora sim, os EUA foram os maiores vitoriosos e puderam exercer
ampla influência nas novas medidas que seriam tomadas. No entanto, a URSS
também saiu vitoriosa e, ainda que menos poderosa que os EUA e devastada pelos
114
É irônica a idéia de que a expansão do modo de produção capitalista se viu limitada pela falta de
demanda. De fato, a intuição nos diz que a expansão do processo produtivo deveria ter por objetivo
justamente suprir a uma demanda pré-existente pelas mercadorias produzidas. No entanto, a
generalização da produção em grandes escalas, resultou precisamente na inversão deste processo,
ou seja, as empresas, que já produziam maciçamente, viram-se, a partir de certo momento, sem um
mercado consumidor para consumir seus produtos. Nesse contexto, ficou a pergunta: o que fazer
então com as enormes estruturas produtivas criadas para suprir as necessidades das pessoas?
Assim, foi sob tais condições que, nessa mesma época de crise do Pré-Fordismo, J. M. Keynes
(1985, [1936]) escreveu sua mais famosa obra, em que enunciaria o chamado Princípio da Demanda
Efetiva, em que explicitaria as condições em que a demanda é que seria o maior determinante da
oferta. Enfim, o regime de acumulação que se sucederia estaria destinado a permanentemente
encontrar as novas condições (através de estratégias de marketing, etc.) para garantir sempre a
necessidade, o desejo, de novos produtos por parte dos consumidores. Tal lógica vigora até os dias
atuais.
97
danos da II G. M., mostrava-se como uma potencial resistência à sua hegemonia.
Dessa forma, pode-se dizer que, a partir de então, os EUA passaram a liderar o
bloco capitalista e a URSS o bloco comunista. No presente trabalho será dada maior
atenção ao primeiro.
Com relação às medidas organizadoras da nova ordem, diz Frieden:
“No início de julho de 1944, cerca de mil representantes de mais de 40 países se
reuniram no Mount Washington Hotel, nas montanhas de Bretton Woods, em New
Hampshire. Durante três semanas, sobre a liderança de [Harry Dexter] White e [John
Maynard] Keynes, as delegações traçaram planos para o FMI e o Banco Mundial –
bem como para a ordem financeira e monetária do pós-guerra. O sistema criado em
Bretton Woods era único. Nunca existira uma organização como o FMI, à qual os
governos membros concordaram em subordinar suas decisões sobre medidas
econômicas importantes. Tampouco já havia existido uma organização como o Banco
Mundial, que contava com bilhões de dólares a serem emprestados a governos ao
redor do mundo.” 115 116
Com relação ao regime monetário internacional, passa a prevalecer o padrão ourodólar, em que apenas a moeda norte-americana permanece lastreada com o metal.
Dessa
forma,
fica
assegurada
a
estabilidade
monetária
nas
transações
internacionais, que passam a ter o dólar como referência, ao mesmo tempo em que
dota os outros países do bloco capitalista de certa flexibilidade para promover
flutuações cambiais com suas moedas nacionais quando suas situações domésticas
necessitam de ajustes.
115
2008, pg. 281.
Apesar de Keynes, que era inglês, estar também coordenando a conferência, sua presença
acabou por simbolizar mais uma formalidade. Quanto a isso diz Frieden:
116
“Keynes ficou decepcionado com a evolução final das instituições de Bretton Woods. (...). Não
deveria ser uma surpresa: os norte-americanos e os britânicos queriam instituições que
servissem aos seus interesses, mas os britânicos esperavam ser tomadores de empréstimos, e
os norte-americanos, emprestadores. (...). Ele também acreditava que um acordo de
cooperação internacional estava sendo destruído, uma vez que os norte-americanos
modificaram as instituições de Bretton Woods para garantir a predominância dos Estados
Unidos.” (Frieden, 2008, pgs. 281-2)
98
No entanto, a idéia era que tais flutuações não ocorressem com grande freqüência,
porém, mais nos momentos de necessidade. Quanto a isso, diz Frieden:
“A essência do sistema de Bretton Woods – como Keynes e White desejavam – seria
a proposta de um meio termo entre a rigidez do padrão ouro e a insegurança do
entreguerras. Diferentemente do que ocorrera com o padrão ouro, outros governos
além do norte-americano poderiam modificar o valor de suas moedas quando
necessário, apesar de essas mudanças freqüentes serem desaprovadas. (...) [A]s
taxas de câmbio apresentavam estabilidade suficiente para estimular o comércio e os
investimentos internacionais, sofrendo transtornos apenas quando os governos se
deparavam com problemas econômicos sérios.” 117
Além disso, para que este sistema funcionasse corretamente, foi necessário
implementar também restrições à movimentação internacional de capital de
curto prazo. Tal medida foi necessária uma vez que, dessa forma, os países
poderiam gerenciar suas políticas monetárias de acordo com suas necessidades de
forma a manter o câmbio estável. Em outras palavras, se tais movimentos
especulativos fossem liberados, um país que desejasse, por exemplo, reduzir suas
taxas de juros para reduzir o desemprego, estaria sujeito a uma fuga massiva de
capitais que iria para o país que oferecesse taxas de juros maiores. Justamente para
que isso não ocorresse é que se implementaram tais restrições, de forma que os
países tivessem mais mobilidade para operar suas políticas domésticas. Assim, o
sistema de Bretton Woods pressupunha o controle de capitais por meio de
cobranças de taxas ou proibições para as movimentações internacionais de dinheiro
com fins especulativos.
Já com relação aos investimentos internacionais de longo prazo, como capital e
comércio, passou a predominar pela primeira vez a forma de empresas
multinacionais, ou investimentos diretos estrangeiros (IDEs). Anteriormente, a
117
2008, pg. 312.
99
principal forma de investimento internacional era o empréstimo estrangeiro. No
entanto, após a crise de 1929,
”os empréstimos privados internacionais praticamente desapareceram. Calotes e
outros problemas da década de 1930 assustaram banqueiros e mercados de títulos.
As oportunidades domésticas passaram a ser atraentes e o controle de capitais de
Bretton Woods desestimulava os empréstimos estrangeiros. (...). Antes da Segunda
Guerra Mundial, o investidor típico era um banqueiro ou alguém com títulos que
emprestava dinheiro a empresas e governos estrangeiros. Na era de Bretton Woods, o
investidor típico passou a ser uma empresa construindo fábricas no exterior.” 118
Outros fatores que colaboraram para a proliferação das IDEs foram: 1- o
crescimento da produção e consumo em massa em muitas indústrias concedeu
vantagens às expansões internacionais por parte das grandes empresas e 2- a
adoção de barreiras comerciais fizeram com que as empresas que vendiam para
determinados países adotassem alguma medida para não perder seus mercados.
No que se refere às outras formas institucionais estudadas pela Escola Francesa da
Regulação, Bob Jessop (2002) explica um pouco sobre o referido período. Ele utiliza
o conceito de Estado Nacional de Bem-estar Keynesiano (ENBK)
119
. Segundo o
autor, cada uma das palavras deste conceito expressa uma dimensão diferente
sobre o que representou o período.
118
119
Ibid, pg. 314-5.
Do inglês, Keynesian Welfare National State (ou KWNS).
100
“Primeiramente, (...) os ENBKs eram keynesianos na medida em que buscavam
assegurar o pleno emprego num contexto em que as economias nacionais se
encontravam relativamente fechadas e faziam isso principalmente através de políticas
de estímulo à demanda agregada. Os ENBKs buscavam ajustar a demanda efetiva às
necessidades de oferta advindas da produção em massa fordista, que, por sua vez,
dependia das economias de escala e da plena utilização de meios relativamente
inflexíveis de produção. Da mesma forma, (...) com o intuito de assegurar as
condições para a reprodução social, os ENBKs eram orientados às políticas de bemestar, na medida em que buscavam regular as barganhas coletivas [entre empresários
e sindicatos] dentro dos limites consistentes com o crescimento de pleno emprego, de
forma que todos os cidadãos pudessem compartilhar os frutos do crescimento
econômico (de forma a contribuir também para a demanda efetiva doméstica). (...). Os
ENBKs eram nacionais na medida em que o estado territorial nacional assumia
primariamente a responsabilidade por desenvolver e guiar políticas de bem-estar
keynesianas em diferentes escalas. Isso reflete a importância mais geral das
economias nacionais e dos estados nacionais nos ‘trinta anos gloriosos’ do
crescimento do pós-guerra. (...) Por fim, os ENBKs eram estatais na medida em que
as instituições estatais (em diferentes níveis) complementavam grandemente as forças
de mercado no regime de acumulação fordista e também tinham um papel dominante
nas instituições da sociedade civil” 120
Já Andrew Glyn (2006) explica como as condições que predominaram neste período
acabaram por gerar por si próprias as condições de sua derrocada. De fato, durante
o período do Fordismo I, também chamado de “Anos Dourados” devido ao
crescimento econômico significativo notado em diversos países, observou-se um
significativo aumento do poder de barganha por parte dos trabalhadores. Este se
refletiu em consideráveis aumentos salariais que, por sua vez, foram aos poucos
gerando um aumento da pressão inflacionária, na medida em que os empresários
procuravam repassar parte desses aumentos para os preços.
No âmbito internacional, ocorreu o que Medeiros & Serrano (1999) descrevem como
“desenvolvimento a convite”
120
121
. Trata-se de um processo em que, após a II G. M.,
Pgs. 59-61. Minha tradução e meus itálicos.
“No pós-guerra, o acesso ao mercado americano e ao financiamento internacional criou para os
países aliados as condições externas para o crescimento acelerado. Assim, podemos caracterizar
como ‘desenvolvimento a convite’ a estratégia americana de não apenas permitir, como também em
vários casos promover deliberadamente o desenvolvimento econômico dos países aliados nas
121
101
certos países passaram a se desenvolver rapidamente. Tal desenvolvimento ocorreu
sob a égide dos EUA, que os auxiliava, seja com ajudas financeiras ou senão
abrindo seus amplos mercados internos para as mercadorias daqueles, segundo os
interesses estratégicos do hegemon. Foi dessa forma que países como Alemanha e
Japão122 se reconstruíram da guerra e, rapidamente, readquiriram o status de países
desenvolvidos. No entanto, acrescenta Glyn, tais medidas por parte dos EUA
contribuíram para que o hegemon passasse a incorrer em déficits, tanto na balança
comercial quanto na de pagamentos. Quanto a estes, dizem Medeiros & Serrano:
“Nos anos do pós-guerra, os EUA incorreram em déficits globais em sua balança de
pagamentos, pois seus déficits da conta de capital excediam o seu superávit
comercial, e na balança de transações correntes (que no imediato pós-guerra são
bastante elevados, mas vão se reduzindo progressivamente). Os déficits na conta de
capital se devem à grande ajuda externa (econômica e militar) americana aos países
estratégicos, em particular à Alemanha e ao Japão e posteriormente à Coréia e
Formosa, e à substancial saída de investimento direto dos EUA nos anos 50 e 60.” 123
Com relação às formas de Estado, pode-se dizer que vigorou o modelo de bemestar social. Assim, observou-se um aumento significativo da participação dos
estados nas economias nacionais, seja através de obras públicas e empresas
estatais, ou então através de uma rede de seguridade social que amortecesse os
impactos da forte integração econômica sobre os setores que saíam prejudicados e
que auxiliasse os trabalhadores que se encontrassem desempregados ou inválidos.
Nesse contexto, os governos muitas vezes se davam ao luxo de incorrerem em
déficits fiscais sob o pretexto de promoverem políticas de estímulo à demanda
agregada. Nessa situação, para saldar os resultados negativos, os governos se viam
obrigados a emitir moeda, de forma a colaborar para o aumento da inflação, ou
regiões de maior importância estratégica para o conflito com a URSS” (Medeiros & Serrano, 1999, pg.
133)
122
Sobre a reconstrução do Japão, ver Torres Filho (1983).
123
1999, pg. 132-3.
102
então a se endividar, de forma a reduzir suas autonomias sobre suas políticas
domésticas.
Assim, é possível observar, de certa forma, como o período do Fordismo I pôde se
organizar no sentido de responder exitosamente às necessidades capitalistas do
sistema mundial a partir da II G. M., de forma a apresentar taxas significativas de
crescimento econômico. Ao mesmo tempo, pode-se compreender como, a partir de
certo ponto, tal sistema passou a apresentar novos desequilíbrios que demandavam
reformulações urgentes de sua estrutura. Dessa forma, não é de se surpreender
que, já ao final da década de 1960, a economia mundial apresentasse grandes
desequilíbrios, a saber, níveis de inflação acima do aceitável e que continuavam a
crescer; lutas ferozes entre trabalhadores e empresários pelas condições
trabalhistas, como foi o caso, por exemplo, das greves de 1968 na França; governos
amplamente endividados; e, finalmente, uma situação internacional instável, uma
vez que, não apenas países como Alemanha e Japão estavam apresentando níveis
de produção e produtividade cada vez mais próximos aos norte-americanos,
sugerindo uma potencial sucessão hegemônica, mas também o comunismo
soviético se mostrava ainda forte concorrente ao modelo capitalista de produção. E é
nesse contexto que irrompe a crise mundial da década de 1970.
4.3 A Crise da Década de 1970
4.3.1 Principais Fatos
Os principais fatos referentes à crise mundial da década de 1970 podem talvez ser
resumidos da seguinte forma: o fim do lastro dólar-ouro e, conseqüentemente, do
103
sistema de Bretton Woods, em 1971; as duas crises do petróleo, em 1973 e 1979, o
contexto de estagflação124 entre os países mais desenvolvidos; e, finalmente, o
brusco aumento da taxa de juros dos EUA, em 1979. Com relação a este ponto, diz
Teixeira:
“Os anos 70 se iniciam sob o signo da crise monetária internacional, a qual se seguem
a desvalorização do dólar e a adoção de um sistema de taxas de câmbio flutuantes, e
terminam sob o impacto da mudança da política monetária americana revalorizando a
sua moeda e abrindo as portas para a recessão mundial. Entre um e outro, o choque
do petróleo assinala, no plano do significado, a reviravolta nas tendências de
crescimento a longo prazo da economia mundial.” 125
4.3.2 O Petróleo
Cabe aqui fazer um parêntesis para contextualizar a importância do petróleo na
conjuntura mundial. Isso porque, ao analisar o caráter histórico do papel do petróleo
no SIC, é difícil não chamar à atenção a forma brusca como esta matéria-prima, que
era de menor importância, passa a assumir posição de destaque tanto na esfera
econômica quanto na geopolítica do SIC.
Quanto a este ponto, diz Torres Filho (2004):
“No final do século XIX, o querosene substituiu o óleo de baleia como principal fonte
de iluminação domiciliar em todo o mundo. Com isso, o petróleo passou a integrar
definitivamente a moderna cesta de consumo de massas. Desde então, a
generalização do uso dos motores a gasolina e a diesel levou o ‘ouro negro’ à posição
de principal fonte internacional de energia. O petróleo é hoje responsável pelo
funcionamento de praticamente todo o sistema de transporte, tanto em terra quanto no
mar e no ar.” 126
124
Coexistência de alta inflação com recessão econômica.
1993, pg. 41.
126
Pg. 1.
125
104
Assim como tantas outras inovações promovidas pelo SIC, foi a guerra que
estimulou a adoção deste paradigma tecnológico ao adaptar máquinas e
equipamentos, que antes funcionavam a carvão, a terem o petróleo como principal
combustível. Com relação a isto, diz Torres Filho:
“Tudo começou com um navio militar alemão ameaçando, em julho de 1911, o porto
de Agadir no Marrocos francês. O episódio convenceu Churchill de que uma guerra
entre a Inglaterra e a Alemanha era um fato iminente. Ao mesmo tempo, tornou
patente que, neste caso, a manutenção da liderança inglesa nos mares requereria, a
exemplo do que outros países estavam fazendo, a conversão da armada britânica, até
então movida a carvão – combustível abundante na Grã-Bretanha – para o petróleo –
um produto à época basicamente produzido nos EUA ou em países ‘exóticos’,
distantes e politicamente inseguros. Os navios de guerra movidos a petróleo
alcançavam maior velocidade e apresentavam substancial economia em termos de
espaço e mão-de-obra.” 127
A partir de então, seu uso se generalizou e o petróleo passou a ser utilizado como
combustível básico também na esfera econômica.
O caráter essencial que o petróleo passou a assumir pode ser observado também
pelo fato de que grandes manobras e movimentos das duas Guerras Mundiais foram
motivadas por interesses baseados no produto.
“A defesa de Paris, em setembro de 1914, foi, por exemplo, feita por tropas francesas
deslocadas da cidade até o front por táxis. Na 2ª Guerra, o petróleo passou a ter um
valor estratégico ainda maior. (...). O ataque a Pearl Harbor em 1941 foi uma resposta
imediata do Japão ao embargo de petróleo imposto pelos Estados Unidos, seu
tradicional fornecedor. Com a destruição da frota americana do Pacífico, o Japão ficou
livre para tomar os ricos campos de óleo da Indonésia, então colônia holandesa. (...).
Do mesmo modo, a invasão da União Soviética e do norte da África pelos alemães
visava o controle dos poços do Cáucaso e do Irã. A escassez de petróleo foi um dos
grandes fatores que frearam as máquinas de guerra japonesa e alemã, enquanto a
abundância do óleo americano abriu caminho para que a vitória dos Aliados pudesse
se concretizar mais rapidamente.” 128
127
128
2004, pgs. 1-2.
Torres Filho, 2004, pgs. 2-3
105
Assim, tornou-se claro que máquinas e equipamentos movidos a petróleo
apresentavam maior desempenho do que aqueles movidos a partir de combustíveis
alternativos. Isso fez com que, no decorrer de relativamente poucos anos, o mundo
funcionasse, virtualmente, a partir de fontes petrolíferas.
“A generalização do uso de carros, aviões, navios e trens, movidos a gasolina ou a
diesel, confundiu-se com a reorganização espacial das indústrias e das cidades,
permitindo a integração física de uma economia crescentemente urbanizada e
internacionalizada. A existência de enormes reservas, aliadas a seu baixo custo de
extração e às vantagens econômicas de sua utilização, tornou o ‘ouro negro’ a
principal fonte de energia global.” 129
Dessa forma, é possível observar uma mudança imperativa que passaria a vigorar
na geopolítica mundial na medida em que os países que possuíssem grandes
reservas do produto se encontrariam numa posição econômica e estratégica
vantajosa, uma vez que poderiam influenciar as condições sobre as quais o
combustível seria oferecido ao resto do mundo para suprir as suas demandas
energéticas. Sem contar, é claro, que teriam o produto disponível para suas
demandas internas.
De fato, a experiência da II G. M. levou os estrategistas americanos a considerarem
a importância deste novo elemento na remontagem do sistema de relações
internacionais. O petróleo já era então a principal fonte de energia do mundo,
superando o carvão, que predominava desde o século XVIII130.
Do ponto de vista corporativo, sete foram as empresas que se estabeleceram com
maior êxito no setor. Estas operavam o produto em suas mais diversas etapas,
129
130
Ibid, pg. 4.
Ibid, pgs. 3 e 6.
106
desde a extração da jazida até a distribuição do produto final. Quanto a isso, diz
Regensteiner (1982):
“Durante o período que termina em 1950, a história do petróleo se caracteriza pelo
estabelecimento do domínio mundial das Sete Irmãs131 que, num contraditório
processo de lutas e alianças, repartem os mercados, impõem os níveis de produção,
consumo e preços, tanto aos países produtores quanto aos consumidores, e
monopolizam todas as etapas de processamento do petróleo, desde a prospecção até
a distribuição.” 132
Com o decorrer do período, o caráter monopólico assumido por estas se mantêm,
apesar de novos obstáculos.
“Ao final deste período que termina em 1970, o mercado petrolífero mundial continua
dominado pelas Sete Irmãs, apesar dos golpes sofridos pelo surgimento das
companhias independentes, pelas nacionalizações havidas, pelas associações
protecionistas constituídas e pela emergência de fontes produtoras fora do controle do
cartel, como a URSS.” 133
Enfim, em 1973, as unidades integrantes da Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (OPEP) 134, insatisfeitos com os acordos vigentes, nacionalizam as suas
reservas e, em outubro do mesmo ano, num autêntico comportamento de cartel,
triplicam o preço do produto, contribuindo para a crise mundial ocorrida na década
de 1970. O procedimento se repete em 1979 e o preço do barril vai para níveis ainda
maiores.
131
O grupo das chamadas “Sete Irmãs” seriam: Jersey (Exxon), Socony-Vacuum (Mobil), Standard of
California (Chevron), Texaco, Gulf, Shell e British Petroleum. As cinco primeiras são de origem norteamericanas, a penúltima é de origem anglo-holandesa e a última é de origem inglesa.
132
pg. 60.
133
Regensteiner, 1982, pg 60.
134
Criada em 1960.
107
4.4 Fordismo II
Enfim, seja lá qual o critério que determina quando que tal crise chegou ao fim
temos que, após o seu término, significativas mudanças haviam ocorrido no
presente sistema.
Inicialmente, tem-se que, no lugar do padrão dólar-ouro, passa a vigorar o dólar
como moeda internacional sem que haja lastro qualquer. Dessa forma, o SIC passa
a viver a inédita situação em que as funções da moeda passam a ser exercidas no
nível internacional por uma unidade monetária cujas principais características estão
sujeitas às vicissitudes da política monetária e dos interesses unilaterais de um
único país, os EUA. Estes determinam as variáveis cruciais referentes a esta moeda
como, por exemplo, os níveis de emissão e de flutuação cambial.
Com relação às relações trabalhistas, pode-se afirmar que o lado assalariado
observou perdas significativas com relação ao que vigorou no período anterior. Isso
ocorreu na medida em que a crise dos anos anteriores causou um significativo
aumento do nível de desemprego que, por sua vez, reduziu consideravelmente o
poder de barganha por parte dos trabalhadores. Dessa forma, tem-se que as leis
trabalhistas se tornaram mais flexíveis com relação a questões como a facilidade
das empresas para contratar e demitir, etc.
No que se refere às formas de concorrência, observou-se um aumento significativo
da eficiência produtiva. Tal mudança se deveu, em parte, às flexibilizações
trabalhistas acima citadas e, em parte, ao grande aumento de produtividade
observado no período. De fato, o advento da internet, por exemplo, permitiu avanços
inéditos com relação ao acesso à informação, entre outras coisas. Por ora, vale
108
apenas dizer que as possibilidades inovativas dos novos paradigmas tecnológicos
ainda não foram plenamente exploradas.
A adesão ao regime internacional também progrediu consideravelmente. Observouse a formação de blocos comerciais regionais (Nafta, Mercosul, EU, etc) em que se
promovia, no mínimo, a redução das barreiras alfandegárias entre os países
integrantes. A depender do bloco, a integração poderia ir aumentando de forma a
acordar também livre fluxos de pessoas e capitais. Ademais, o fim da Guerra Fria e,
conseqüentemente, do bloco comunista, em 1991, gerou o fim do mundo bipolar.
Dessa forma, passou a prevalecer a lógica de um mundo chamado de multipolar.
Já quanto às formas de Estado, passou a vigorar novamente a idéia do Estado
mínimo. Os déficits fiscais passaram a ser repudiados e as empresas estatais foram
privatizadas
Deve-se ressaltar, no entanto, que, ainda que tenham sido observadas mudanças
nas formas institucionais, a crise da década de 1970 não representou uma alteração
do regime de acumulação. Essa afirmação pode ser evidenciada simplesmente pelo
fato de que a forma de acumulação que passou a prevalecer após a II G. M., a
saber, o escoamento da produção em massa através do consumo dos assalariados,
manteve-se. O que mudou foi a forma como os assalariados passaram a se
apropriar da sua parte da produção social: se, durante o Fordismo I, a demanda
efetiva dos assalariados era mantida através da sustentação de um nível salarial
elevado, durante o Fordismo II, tal demanda foi atingida através do estímulo ao
crédito para consumo ao público de baixa renda. Trata-se, portanto, de uma
mudança no modo de regulação.
109
4.5 Conclusão
Tendo como objeto a análise do SIC a partir da década de 1870 sob as estruturas
teóricas trazidas tanto pela Escola Francesa da Regulação quanto pelas escolas que
estudam os chamados sistemas-mundo (EPSM e NEPSM), pudemos não apenas
sugerir uma subdivisão do período em intervalos menores, como também explicar
tanto as condições gerais das relações sociais que vigoraram em cada período,
como também o que representou cada período quando analisado como etapa de um
processo mais amplo que é a ótica do SIC como um processo histórico.
Nesse contexto, pudemos qualificar como Pré-Fordismo o regime de acumulação
vigente no período 1870-1914 e como Fordismo àquele compreendido no período
1945- dias atuais. Mais ainda, dentro do regime de acumulação Fordista, pudemos
distinguir dois modos distintos de regulação, aqui denominados como Fordismos I
(1945-1971) e II (1971- dias atuais).
Com relação à questão da moeda, coincidência ou não, pôde-se observar que as
alterações no regime monetário foram acompanhadas de alterações em outras
áreas da esfera econômica, expressa pela outras quatro formas institucionais. Nesse
contexto, o Pré-Fordismo se caracteriza pela predominância do padrão ouro na
forma como planejado pela Inglaterra; o período do entreguerras está associado à
ausência de um padrão estável de regulação monetária em clara correspondência
com a ausência de padrões estáveis nas outras instituições associadas à esfera
econômica; o Fordismo I está associado ao padrão dólar-ouro e, finalmente, o
Fordismo II está associado ao padrão dólar flexível. Esse resultado corrobora mais
uma vez as conclusões obtidas pela Escola Francesa da Regulação que reitera o
caráter fundamental desempenhado pela moeda nas relações econômicas. É
110
verdade que há certo viés com relação às escolhas das datas de cortes dos
períodos e a associação destas com a mudança de variáveis de natureza monetária.
Este é o caso, por exemplo, do início do Pré-Fordismo em 1870, bem como da
própria ruptura do padrão dólar-ouro, em 1971. Mesmo assim, como foi possível
observar, as mudanças ocorreram em âmbito bem mais amplo do que nas variáveis
estritamente monetárias. Isso corrobora a teoria regulacionista de que as variáveis
de natureza monetária predominam sobre as outras variáveis de natureza
econômica.
Finalmente, a presente análise permitiu esclarecer que, enquanto o Pré-Fordismo se
distinguiu do Fordismo pelos diferentes públicos aos quais eram destinadas as
produções em larga escala produzidas pelas grandes empresas sediadas nos
países centrais, o Fordismo I se distinguiu do II “apenas” pela forma como a renda
era assegurada a esse público consumidor alvo. Mais ainda, podemos afirmar que,
enquanto a mudança de regime de acumulação “exigiu” nada menos do que trinta
anos, duas guerras mundiais e uma transição hegemônica, a mudança de modo de
regulação “exigiu” “apenas” uma reafirmação por parte do hegemon de sua
hegemonia.
111
5 CONCLUSÃO
Desde a década de 1870, o moderno sistema mundial viveu uma intensificação
inédita no nível de integração entre os países dele componentes. Esta integração
ocorreu antes de tudo na esfera econômica e a primeira forma em que dois países
quaisquer iniciam a interagir no âmbito econômico é através das relações
comerciais. Finalmente, a instituição primordial necessária para o estabelecimento
de relações comerciais é a moeda. Daí se tem que, para que dois países quaisquer
estabeleçam relações comerciais, eles devem antes de tudo estabelecer consenso
em como será negociada a instituição monetária. Por tradição, os termos gerais
deliberados por esta “negociação” foram obtidos tendo por via de regra a violência.
Nesse contexto, a Inglaterra, que devido às suas particularidades históricas foi o
primeiro país a obter posição de destaque neste processo, instituiu que a mediação
da moeda na relação comercial entre países se daria através do atrelamento das
moedas nacionais com o ouro. E, no topo da hierarquia entre as moedas nacionais
estaria, é claro, a libra. Resolvida esta questão, foi possível promover de forma
coordenada a expansão da integração internacional. O próximo país a obter
primazia nas decisões referentes à regulação monetária internacional foi os EUA.
Estes estabeleceram, por sua vez, até 1971, o lastro do dólar com o ouro e, a partir
de então, um sistema sem lastros tendo o dólar flexível como referência para o
sistema monetário internacional. Este último vigora até os dias atuais e, sob esta
112
regulação, observou-se um grau ainda maior de integração do sistema mundial, de
forma a, mais uma vez, atingir níveis inéditos.
Os novos questionamentos decorrentes destas intensas transformações trouxeram à
tona a necessidade de uma unidade de análise mais ampla do que aquela
delimitada pelo espaço das economias nacionais. É nesse contexto que surge o
conceito de sistemas-mundo, que corresponde basicamente a um conglomerado de
países que se identificam por alguma característica em comum, onde há
considerável influência de fatores de natureza geográfica. Enfim, a análise dos
sistemas-mundo empreendida pelos autores da área de Relações Internacionais,
permitiu-nos observar como o mundo que vivemos atualmente resulta da expansão
desenfreada de um sistema-mundo específico, a saber, o europeu. Devido a esta
particularidade deste sistema-mundo é que o atribuímos o nome de Sistema InterEstatal Capitalista, ou SIC. Por fim, a partir de 1991, com o fim da Guerra Fria e a
absorção do bloco comunista pelo capitalista, o SIC passou a conter virtualmente
todo o mundo civilizado.
Dessa forma, ainda que o aumento da integração mundial tenha trazido grandes
benefícios para a humanidade como um todo, uma crítica passível de ser feita diz
respeito à inadequação associada ao fato de que um país apenas detém o absoluto
controle sobre a moeda que exerce o papel de referência mundial. Isto é, ele pode
influenciar livremente a quantidade de moeda emitida, bem como outras variáveis a
ela associada, variáveis estas que dizem respeito a todos os envolvidos nas
transações internacionais, segundo apenas o seu interesse nacional. Uma possível
solução para esse problema seria a criação de uma unidade monetária internacional,
dissociada de qualquer nação específica, que fosse regulada por uma entidade
composta por representantes de todos os países envolvidos nas transações
113
internacionais, o que, virtualmente, equivale a todos os países, e que deliberaria
sobre como esta nova moeda deveria ser administrada. Esta é sugestão que o
presente trabalho propõe tendo como base o que foi observado nos capítulos
anteriores.
O presente trabalho se filia à escola de pensamento que reconhece na obra de Karl
Marx um divisor de águas no que se refere à compreensão do capitalismo enquanto
modo de produção. No entanto, reconhece também a necessidade de uma
expansão ao pensamento do autor, no sentido tanto de superar as limitações
deixadas pelo velho barbudo como de abranger as novas realidades observadas
neste modo de produção desde a publicação d`O Capital, ocorrida há cerca de um
século e meio atrás. É nesse contexto que se recorre à contribuição trazida pelos
autores da Escola Francesa da Regulação, que se esforçam justamente no sentido
de superar tais limitações. A partir deste posicionamento, os autores regulacionistas
desenvolvem uma teoria monetária alternativa às predominantes que se mostra
robusta e coerente, ao mesmo tempo em que se prontifica a dialogar com os
defensores das teorias alternativas sobre o assunto. A obra de Michel Aglietta &
André Orléan, bem como a de Robert Boyer, foram muito úteis para contextualizar
esta discussão.
No que se refere aos conceitos de modo de regulação e regime de acumulação,
bem como ao enquadramento institucional sugerido pelos regulacionistas, estes se
mostraram instrumentos adequados para melhor situar as condições vigentes em
cada período histórico. Dessa forma, foi possível fazer comparações entre períodos
distintos como se fossem objetos iguais, uma vez que, afinal, são iguais na medida
em que são períodos históricos. Assim, sendo constante o instrumental de análise
para cada período, a comparação se torna viável. Ademais, a partir da análise de
114
dois períodos distintos, mas que se sucedem, é possível também analisar as
condições que vigoraram durante o período de transição correspondente. Mais
ainda, este período de transição corresponde ao momento da crise do sistema
antecedente. E, por conseguinte, o período posterior corresponde ao sistema
engendrado por esta. Em suma, sob certo ponto de vista, as crises não são mais do
que a divisão entre dois sistemas distintos de regulação. Assim, compreender as
mudanças observadas entre dois períodos que se sucedem possui associação com
a compreensão da crise que ruiu o período mais antigo.
Já com relação aos autores dos sistemas-mundo, este trabalho se esforçou no
sentido de retomar as discussões empreendidas entre estes. Estas foram
apresentadas conforme o que se mostrou conveniente para elucidar as questões
aqui propostas de serem analisadas, sendo a principal delas a de desvendar o que
representou a crise da década de 1970. Para tanto, foi necessário, antes de
qualquer coisa, definir formalmente o conceito do SIC como a expansão exitosa de
um sistema-mundo que, após séculos de existência, acabou, em tempos recentes,
por ocupar toda a extensão do mundo civilizado. Assim, mostrou-se possível adotar
o SIC como objeto de estudo de forma a conceber os acontecimentos históricos nele
ocorridos como peculiaridades concernentes ao presente objeto. O trabalho de
síntese das questões relevantes concernentes ao assunto, empreendidas por Fiori,
foram, nesse contexto, de grande valia para o estudo.
Na análise histórica, um autor cujo trabalho foi de grande utilidade é Jeffry Frieden
que, em sua obra Capitalismo Global, enuncia com destreza as condições sob as
quais se deu a integração mundial durante o período analisado na segunda parte.
Outro autor que merece destaque é Andrew Glyn que, em sua obra Capitalism
115
Unleashed, identificou a ruptura que representou a crise mundial da década de 1970
e que inspirou este trabalho.
Com relação aos questionamentos levantados referentes às delimitações dos ciclos
III e IV, o presente trabalho sugere apenas que o período 1945-1971 seja incluído no
ciclo IV. Dessa forma, o ciclo III se referiria, basicamente, ao período de hegemonia
britânica, o ciclo IV ao período de hegemonia norte-americana e o período entre os
ciclos III e IV ao período de transição hegemônica onde não houve suficiente
estabilidade institucional para que houvesse um ambiente de crescimento
econômico. Além disso, esta classificação traria a conveniência de abranger dentro
dos ciclos as referidas ondas de descolonização. Cabe ainda apenas atentar para a
dificuldade referente à análise de determinado período sendo que ainda estamos
nele, como é o caso do ciclo IV.
Finalmente, no que se refere à questão inicial do presente trabalho, a saber, o que
significou a crise da década de 1970, temos que, segundo a abordagem da Escola
Francesa da Regulação, esta crise representou a ruptura de um modo de regulação
baseado na manutenção da demanda efetiva através da sustentação de
remunerações elevadas para a classe assalariada para outro em que tal demanda
passou a ser assegurada através de políticas de crédito para a mesma. Este último
é o modo de regulação vigente nos dias atuais.
116
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119
SIGLAS
I G. M. – Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918);
II G. M. – Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945);
ENBK – Estado Nacional de Bem-Estar Keynesiano;
EPI – Economia Política Internacional;
EPSM – Economia Política dos Sistemas-Mundo;
NEPSM – Nova Economia Política do Sistema Mundial;
RI – Relações Internacionais;
SIC – Sistema Inter-Estatal Capitalista.