Matéria sobre o projeto - O Nheçuano (pág. 2)

Transcrição

Matéria sobre o projeto - O Nheçuano (pág. 2)
ANO 6 - NÚMERO 27 - ROQUE GONZALES, RS - AGOSTO/SETEMBRO 2015
ALESSANDRA BESSA I ANTONIO CABRERA TUPÃ I CICERO GALENO LOPES I DÉCIO ADAMS I DINALVA AGISSÉ A. DE SOUZA
EMIL DE CASTRO I ENÉAS ATHANÁZIO I FRANCISCA VILAS BOAS I INÊS HOFFMANN I GERMANO JAESCHKE SCHNEIDER
JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO I J. PEIXOTO JR. I JULIO RIBAS I LEONAM CUNHA I MARIA DE LOURDES ALBA
MAURÍCIO C. BATISTA I NELSON HOFFMANN I PAULO DE TARSO RICCORDI I PAULO MONTEIRO I RUY NEDEL
I 02 I
Crônica/Poesia
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-----------------------------------------Quero agradecer os envios do jornal literário O Nheçuano, tenho todos os
exemplares que me caíram à mão, bem guardados, e que sempre os consulto.
O periódico me faz lembrar o saudoso Jornal de Letras, dos irmãos Condé,
uma publicação que deveria ter sido adotada pelo Ministério da Cultura,
assim como o trabalho de vocês, e distribuído nacionalmente.
O Nheçuano é um incentivo generoso para as nossas letras.
Milton Borges
[email protected]
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Ruy Nedel: “O Imigrante”
fecha trilogia
Desde 2012, quase anualmente, Ruy Nedel
vem publicando livros sob o título genérico, mas
importantíssimo: Memoriando a História do Sul Avaliação Crítica. É uma trilogia de estudos e narrativas sul-rio-grandenses que, agora, são imprescindíveis em qualquer biblioteca, na leitura de
qualquer estudioso, no debate de qualquer assunto relativo ao Sul do Brasil, ao próprio Brasil, América Latina e mundo… Acrescentando Europa, de
tanta força nestas terras sul-americanas.
O primeiro volume da trilogia, de 2012, é Os
Jesuítas e as Missões. O tema é sonegado, em sua
verdade integral, dentro da historiografia oficial.
Quando abordado, é distorcido. Ruy Nedel equaciona a questão.
O segundo volume enfrenta a Revolução e
Guerra dos Farrapos. É surpreendente. Ângulos
nunca vistos desse conflito, situações, causas e
desfecho de tudo, Ruy Nedel nos apresenta de
uma forma nova e contundente.
Por fim, agora, O Imigrante. É o complemento de uma História de Formação do Rio Grande do
Sul. Não se sabe de alguém que já tenha feito um
painel tão amplo e tão completo da formação do
Rio Grande do Sul, das convulsões desse Estado
sempre em tensão, da presença do imigrante em
terras gaúchas e de sua força na integração nacional brasileira.
Memoriando a História do Sul é trilogia para
se ler, guardar, reler. O Imigrante é a chave de ouro.
Nelson Hoffmann
[email protected]
www.vidanosul.com.br
Ruy Nedel publicou a trilogia Memoriando
a História do Sul - Avaliação Crítica pela
Editora Cultuarte, de Roque Gonzales, RS.
Número 27 - Agosto/Setembro 2015
Editor, Redator e Diagramador: Marco Marques
Assistente de Redação: Marcela Santos
Foto de Capa: Inês Hoffmann
Jornalista colaboradora: Andrea Fioravanti Reisdörfer
COLABORADORES:
ALESSANDRA BESSA, ANTONIO CABRERA, CICERO GALENO LOPES, DÉCIO ADAMS, DINALVA AGISSÉ A. DE SOUZA,
EMIL DE CASTRO, ENÉAS ATHANÁZIO, FRANCISCA VILAS BOAS, GERMANO JAESCHKE SCHNEIDER, INÊS HOFFMANN,
JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, J.PEIXOTO JR., JULIO RIBAS, LEONAM CUNHA, , MARIA DE LOURDES ALBA,
MAURÍCIO C. BATISTA, NELSON HOFFMANN, PAULO DE TARSO RICCORDI, PAULO MONTEIRO, RUY NEDEL.
OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES
E NÃO REPRODUZEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO JORNAL
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Rua Independência, 841- sala 01 - centro - 97.970-000 - Roque Gonzales - RS - [email protected]
O Legítimo Maragato
Aqui no Rio Grande do Sul não é preciso
de calendário para saber que estamos em
setembro, basta perceber que, de uma hora
para a outra, muitas pessoas passam a usar
bombacha, botas de couro, guaiaca e lenço
no pescoço, roupas que na maior parte do
ano permanecem guardadas no fundo do
armário, mas que nesta época passam a fazer
parte da paisagem local.
Mas não é apenas o figurino que muda
neste início de primavera: o idioma local também recebe um forte incremento de regionalismos que usualmente ficam escondidos em
algum escaninho da memória e que raramente são ouvidos em outros meses do ano: bagual, guasca, indiada macanuda, lenço maragato, expressões que, devido à falta de conhecimento etimológico, podem tornar-se
não mais do que meros adornos fonéticos.
Atentem para o termo que designa os
lenços vermelhos usados por muitos gaúchos: é sabido que se trata de um símbolo
identificado com um grupo político, mas talvez a grande maioria ignore que maragato é o
gentílico de Maragateria, região do centronorte da Espanha de onde saíram emigrantes
que se estabeleceram no Uruguai, povoando locais onde, mais tarde, os partidários de
Gaspar Silveira Martins se exilaram antes da
eclosão da Revolução Federalista.
A cidade mais importante da Maragateria chama-se Astorga, conhecida por causa
do seu Palácio Episcopal, obra do famoso arquiteto catalão Antoni Gaudí e que hoje abriga o Museo de los Caminos. A região é cortada pela rota utilizada pela maioria dos peregrinos que se dirigem a Santiago de Compostela.
Devido ao grande número de peregrinos que percorrem a região, esta é bem servida de opções de hospedagem e alimentação, que podem ser utilizadas por quem deseja conhecer seus pequenos, pitorescos e
belos pueblos semi-abandonados, com suas
casas e pequenas igrejas feitas de pedra, como Santa Catalina de Somoza, Foncebadón e
Rabanal del Camino.
Quando o setembro chegar e as pessoas novamente usarem o termo maragato,
lembrem-se de que não se trata apenas da
cor de um lenço.
Germano Jaeschke Schneider
www.adhdcontrolado.blogspot.com.br
Projeto Literário no HCPA
HCPA é a sigla do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, unidade hospitalar vinculada à
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Médicos-professores, estudantes e funcionários dessa instituição inauguraram no dia
1º de julho último o Projeto Poesia no HCPA. Os
organizadores lhe deram sobrenome, O impossível carinho, a partir de título de poema de Manuel Bandeira. Eis o poema: “Escuta, / eu não
quero contar-te o meu desejo / Quero apenas
contar-te a minha ternura / Ah se em troca de
tanta felicidade que me dás /Eu te pudesse
repor /- Eu soubesse repor- / No coração despedaçado/ As mais puras alegrias da tua infância!”
O projeto é coordenado pelo dr. Rogério
Gastal Xavier.
São dois os objetivos principais da tarefa
que empreendem: humanizar as relações no
hospital e aproximá-lo da comunidade externa.
A arte é a maneira mais eficaz de humanização,
ou seja, de valorização dos três maiores poderes construtivos da humanidade: bons sentimentos, bom emprego do raciocínio e das
ações.
Os dois encontros iniciais foram realizados nos dias 1º e 29 de julho último, a partir das
13h, no saguão do hospital. Os encontros são
abertos com explanação rápida sobre como foi
concebido o projeto e quais os objetivos dele.
Depois, audição musical. A seguir, poesia. É
quando responsáveis pelo projeto e convidados
recitam poemas.
Participam do evento literário pessoas do
quadro do hospital e externas pra celebrar a
poesia, jeito profundo de arte e humanização.
Através dela, aprendemos a olhar ao nosso
interior, abandonamos o surdo rolar de ambições, entendemos como a humildade pode ser
início de busca de saber alguma coisa deste
nosso mundo, tão inutilmente conflagrado.
As contribuições e participações não são
necessariamente vinculadas à atividade médica
nem ao meio hospitalar. Tampouco oferecem
restrição quanto à escolha da participação
poética aos encontros. Ouvem-se lá poemas
em português e espanhol, de autores diversos,
e música igualmente de diversa origem.
Transcrevo os dois poemas que li no segundo encontro (29/7): têm ambos mesmo tema e foram compostos por poetas-médicos: o
primeiro é de Luís Guilherme do Prado Veppo
(Porto Alegre, 1932; Santa Maria, 1999); o segundo, de Rogério Gastal Xavier.
Cicero Galeno Lopes
Professor de Literatura, escritor e pesquisador
www.cicerogalenolopes.com
Poema do plantão de hospital
Estou aqui para as angústias
E devo esperar os desesperos.
A dor me chamará de madrugada
E verei o medo nos olhos
Intumescidos de súplicas.
Estou aqui para marcar-me
De gritos enrouquecidos
E sentir a vida fugir
Das minhas mãos de brinquedo...
Mas eu sei que estou aqui
Para criar novos abraços
Em mil braços esquecidos
E dar às ruas do mundo
Os seus aviões de papel.
(Prado Veppo. Alba, tempo e rosa.
Santa Maria, Rainha, 1962)
Dora e Júlia
advindas no rastro de um meteoro:
pequenas astronautas
egressas de distante galáxia
imersas em cápsula de fina película
sem choques, nem ruído
até que um grito fez-se ouvir: quase
um pranto
mais um brado de alegria
olhos semicerrados, máscaras
em suspense
sorriem ao sopro da vida
(Rogério Gastal Xavier. Anjos sem face.
Porto Alegre, Movimento, 2013)
I 03 I
Crônica
Na década de 70 do século XX, houve num dos municípios do oeste do Estado do Paraná, um prefeito bastante
bizarro. Oriundo do meio agrícola, estabelecera-se no comércio e com o sucesso nessa atividade, ingressou na vida
política. A respeito de sua atuação política existem várias
histórias, contadas e recontadas, vindo talvez a perder muito
de sua originalidade, porém ganhando em diversidade. Isso
torna-as um tanto lendárias.
Era o tempo dos carrões como o Ford Galaxie, o Landau, os Dodge Charger RT e outros. O nosso personagem,
aproveitando o crescimento econômico do município, encaminhou a aquisição pela prefeitura de um Ford Landau para
uso em seus deslocamentos. Determinou a contratação de
um motorista para dirigir o carro e ele viajava, especialmente
quando ia a capital do estado, sentado no banco do passageiro, apreciando a paisagem.
Em uma dessas viagens, no asfalto recentemente
concluído entre Foz do Iguaçu e Curitiba, encontrou um trecho de trânsito interrompido. O motorista pediu a um motorista que vinha em sentido contrário o que ocorrera e foi
informado de que havia um acidente mais adiante. Nesse
momento o prefeito lembrou de uma recomendação que lhe
fizera um amigo:
- Quando encontrar acidente na estrada, diga aos
guardas que é parente da vítima e eles te deixam passar.
Não pensou duas vezes, dizendo ao motorista:
- Diga que sou parente da vítima.
Dito e feito, foi lhe sendo aberta passagem e quando
chegaram ao local do acidente, depararam-se com um automóvel que atropelara um burro, quando este se atravessara
em seu caminho.
Em outra ocasião, viajavam novamente para a capital
e em dado momento viram no acostamento placas com a
indicação: TRECHO EM OBRAS.
- Mas esse governo continua criando empresas estatais. Eu conheço a PETROBRÁS, TELEBRÁS, ELETROBRÁS, mas
EMOBRÁS eu nunca tinha visto. Deve ser nova.
Aliando a política, o comércio e agricultura, que começava a florescer, tornou-se um homem próspero de verdade. Mandou construir uma casa inteiramente nova. Era
nascido no Rio Grande do Sul e tinha seus resquícios de tradições gaúchas. Encomendou a um arquiteto o projeto todo
especial e recomendou não fazer economia em detalhes que
fizessem jus à sua condição de homem rico, comerciante de
Monteiro Lobato sonhava fazer dinheiro na indústria para investir na literatura e acabou ganhando
como escritor para perder nos negócios. Com esse objetivo, andou sempre às voltas com os mais variados e
curiosos negócios, desde uma rua aérea e uma casa
lotérica até um restaurante em Nova York. Quando
Adido Comercial do Brasil naquela cidade abriu lá o
“Brazilian Garden”, situado no começo da Greenwich
Street, a duas quadras de Wall Street. Ficava num résdo-chão, tinha uma única porta e a fachada toda envidraçada, conforme a moda da época. Estendia-se numa sala longa, com duas alas de mesas e cadeiras e um
passadiço para as pessoas. Era mais uma lanchonete,
como se diz hoje, onde serviam almoço e lanche - um
“lunch-room”. Além do nome nacionalista, tinha um
cardápio bem brasileiro, composto de picadinho de
carne (ou uma postinha de peixe), arroz e, é claro, o
nosso feijão, estes dois últimos obrigatórios. O café
com leite era servido de graça e o freguês podia repetir à vontade.
No começo o negócio ia bem, dando lucros animadores - segundo o próprio Lobato. Aos poucos, porém, “os brasileiros que lá faziam ponto anarquizaram
a casa com jogatina de pôquer e ruidosas farras à noite”. Como se não bastasse, o “crash” da Bolsa, em
1929, deixou incontáveis brasileiros e latino-americanos em geral no desemprego. Essa enorme fauna
faminta passou a frequentar o restaurante e “ali encontrava a generosidade que lhes garantia o almoço e
o jantar em troca de um vale de resgate dúbio. Por
muitos meses ainda Lobato manteve o seu “Brazilian
Garden”, já então conhecido como “Pátio dos Milagres”, para nele abrigar e alimentar diversos compatriotas surpreendidos pela avassaladora crise de empregos. O restaurante entrou a dar prejuízo e o pro-
Prefeito
arrogante!
Décio Adams
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[email protected]
www.imobix.net.br/montagem
sucesso e político renomado. O projeto foi feito e as recomendações seguidas. Chegou o momento de executar a obra. O melhor engenheiro da região e uma equipe dos melhores profissionais da área de construção foram contratados.
O pátio dos
milagres
Enéas Athanázio
[email protected]
ARTE CAMPOS
A obra foi demorada, mas finalmente ficou pronta. O
detalhe de requinte foi o acabamento usado em todas as maçanetas de portas, canoplas de torneiras e registros, havia
incrustações de partes de chifres, inclusive as saídas de água
nas pias eram feitas desse material. Foi difícil encontrar quem
fizesse esse serviço, mas disposto a não economizar para realizar seu desejo, tanto fez até que conseguiu fazer sua vontade. Com a casa pronta, faltava realizar um evento digno de
inaugurar o imóvel. Organizou uma festa à altura, convidando
para tanto os prefeitos dos municípios vizinhos e outras autoridades. Quem não poderia faltar era o governador. Foi preciso ajustar a data da festa para um dia em que o excelentíssimo
senhor governador do Estado tivesse a agenda livre e pudesse
comparecer. Tudo resolvido, foi preciso correr contra o tempo
para conseguir preparar tudo no prazo, que ficara exíguo, mas
não podia perder a oportunidade.
No dia marcado, o padre foi chamado para celebrar uma missa no local e compareceu uma pequena multidão de
gente, muitos só para ver de longe a suntuosidade da mansão
do prefeito. O governador chegou de avião em Foz do Iguaçu e
ali havia um cortejo de carros enviados pelo prefeito para recepcionar o mandatário maior do estado até o local da festa.
Lá chegando, foi a vez da celebração litúrgica e depois uma sucessão de discursos, sempre elogiando o bom gosto do dono
da casa.
Finalmente terminada a parte do cerimonial, foi o
momento de mostrar a casa às principais autoridades. Com
muito orgulho guiou todos de um cômodo a outro sempre
chamando a atenção para os detalhes de acabamento. Em determinado momento, após visitar o último cômodo, o senhor
governador perguntou:
- Me diga uma coisa, senhor prefeito. De onde o senhor
tirou tudo isso? Indicou os detalhes em chifre.
- Isso? Tirei daqui ó! Falou apontando para a própria
testa.
Ouviu-se uma risada geral, mas o anfitrião não perdeu
o prumo. Em sua ingenuidade, apesar da aparente rudeza de
modos, nem percebeu a interpretação dada pelos convidados
às suas palavras. Há muitas outras histórias sobre essa personagem.
* Escritor, autor de Contando um conto e aumentando um ponto e
Um veterinário judeu nos pampas (vol. I, II e II), entre outros.
prietário, também desempregado, teve que fechar as
portas, mas a casa ficou na memória de quantos a conheceram como o derradeiro recurso para matar a fome em país estranho e que vivia terrível crise.
Arthur Coelho e Francisco Silva Júnior, ambos
amigos de Lobato, conheceram o “Pátio dos Milagres”
e escreveram sobre ele, assinalando a falta que fez aos
brasileiros que se encontravam em situação precária.
Foram minhas fontes para estas notas, relembrando
mais uma pitoresca iniciativa do criador de Narizinho.
Com o mesmo título Lobato escreveu um artigo, recolhido às suas Obras Completas, que é uma crítica ferina à falta de assistência aos mendigos que infestam
nossas ruas, vivendo da caridade pública, sem que
nunca se procure uma solução digna e correta para
eles.
Escrevi, em crônica anterior, sobre o senhor
Mazzei, pai de Deise Mazzei, que ficou sem emprego e
dinheiro nos Estados Unidos, gastando suas horas numa praça, onde foi visto por Monteiro Lobato. Depois
de se inteirar da situação dele, o escritor lhe deu o
dinheiro para a passagem de retorno ao Brasil. Além
disso, - imagino cá com meus botões, - Mazzei deve
ter frequentado o “Pátio dos Milagres”, onde, como
tantos brasileiros e latino-americanos em situação difícil, saciou a fome com a comida bem brasileira, saboreando o picadinho de carne com arroz e feijão que
outro desempregado lhes fornecia, gastando com isso
suas parcas economias.
* Estudioso da vida e da obra de Monteiro Lobato, autor dos
livros “3 Dimensões de Lobato”, “Meu Amigo Hélio Bruma”,
“A Pátina do Tempo” e “As Antecipações de Lobato”,
todos reunindo ensaios sobre o escritor paulista.
I 04 I
Resenha
Em 8 de agosto último, foi lançada a segunda edição de
A entrevista, livro de contos de Cyro Martins (Quaraí, 1908;
Porto Alegre, 1995). A primeira foi da Sulina, em 1968. Da
mesa-redonda, participaram Carlos Appel (coordenador),
Benhur Bortolotto, Cicero Galeno Lopes e Maria da Graça Rodrigues. O evento foi organizado pelo CelpCyro (Centro de
Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins) em colaboração com a Editora Movimento.
A seguir vai transcrito o texto com as reflexões de Cicero Galeno Lopes, desenvolvidas na ocasião.
O livro de contos de Cyro Martins, A entrevista, como
saído em 1968 pela editora Sulina de Porto Alegre, contém dez
contos. Há contos de temáticas e ambientação urbanas e há
contos de temáticas e ambientação rurais. Mais precisamente
dito, campeira, como nós entendemos esse adjetivo. Quase
todos privilegiam preponderantemente trabalho analítico da
interioridade humana. Provavelmente, o mais tenaz desses
contos seja Você deve desistir, Osvaldo. Com tenaz, quero dizer
constante sobre a observação psicológica dos personagens,
especialmente sobre o protagonista, coerente na proposta
que expõe, persistente sobre o eixo narrativo, como teoricamente o conto deve ser, e denso na tessitura. Algo com a dramaticidade minudente da narrativa de Raul Pompeia, que Cyro
cita no primeiro conto, o que intitula o livro.
Na minha leitura, é uma aula de conto. Algo assim como Poética de Manuel Bandeira é para o Modernismo brasileiro em versos. Naquela linha de Profissão de fé do Bilac, Oferta
do Wamosy, Mundo pequeno de Manoel de Barros.
Quero contudo me achegar a outro conto. Um de temática campeira, em que Cyro é imbatível no nosso Modernismo. Me refiro a É bicho mau, o homem. Esse conto toma como epígrafe “ - Cuê-putcha!... é bicho mau, o homem”, doutro
conto, Boi velho, do autor de referência pré-modernista maior
no Brasil, em prosa, e instaurador da exponencial narrativa
curta na literatura sul-rio-grandense.
“Foi numa das férias do tempo da escola que ouvi este
causo [...]”- assim se abre É bicho mau o homem, sétima narrativa da coletânea de contos A entrevista. Depois de apresentar
o contador do causo, o narrador explica que o gaúcho Fulgêncio Nunes viera à procura do “menino”, que sabia escrever, que
é o personagem-narrador do texto. O narrador diz que “conhecia desde guri o Fulgêncio Nunes”. Os significados de guri e
menino distanciam-se um pouco, na semântica do conto. Guri
tem menos idade. Na fala do Fulgêncio, “o menino” era quem
dominava o lápis e já vivia sozinho na capital. Na campanha da
fronteira, ainda hoje, ser guri do fulano diz apenas que é filho
do fulano.
Chamava-se, pois, Fulgêncio Nunes o homem que precisava contar o causo. Vinha para que o menino assentasse nas
escritas o enredo que lhe teimava na memória e não o deixava
descansar.
Fulgêncio significa fulgurante. Nunes é o sobrenome
também do Blau, aquele que narra Boi velho, conto simoniano
já mencionado, que dá epígrafe ao que aqui nos ocupa. O substantivo nunes tem duas acepções possíveis de base etimoló-
A entrevista Cyro Martins
gica: número um, ímpar, ou testemunha, aio, pai. No caso do
conto do Cyro Martins, Nunes é principalmente testemunha.
Ele conta o que viu e, de algum modo, propiciou o acontecimento, ou seja, atuou como aio e parcialmente o viveu. A
questão que o aflige é o homem, nos seus internos insuspeitos
ou dormidos, que de vereda se acordam e podem danar. Não
foi o que se passou com Blau, o posteiro “que só tinha de seu o
facão, o cavalo gordo e as estradas”? Não foi ele, Blau, que saiu
à procura do boi barroso do destino, difícil de laçar? Não foi a
palavra que lhe faltou na hora das sete provas e por isso perdeu o rumo da “rosa dos tesouros escondidos dentro da casca
do mundo”? O substantivo Blau tem também dois significados
etimológicos: azul (na heráldica) e confuso, atrapalhado, enredado.
Não se encontrava ainda sem entender bem o que
ocorrera na trama do causo o outro Nunes, o Fulgêncio, e por
isso tinha necessidade de contar? Falando, talvez o compreendesse pouco melhor, como também tentaram, além de Blau,
Bentinho-Dom Casmurro, Riobaldo e tantos outros; tendência
também da fala psicanalítica. Quem sabe o “menino”, ao
assentá-lo na escrita, não ajudaria a desvendar essas tramoias
das reações, surpresas e iniquidades de adentros humanos?
Como o conto conta um causo, Cyro Martins lhe aplicou
a técnica dos causos em vários momentos. Por isso o narrador
já esclarecera no início da narrativa que o contante do conto
oral “gostava de conversar, e a sua prosa, sem ser cativante,
agradava, embora gaguejasse um pouco por vezes e intercalasse frequentemente um compreende sem propósito”. As
intercalações nos causos têm pelo menos três finalidades: (1)
interromper brevemente a sequência para observar e gerar interesse, (2) quebrar a ameaçadora monotonia do andamento
e (3) ajudar a memória e a imaginação, já que os causos partem de acontecidos (efetivos ou supostos), mas são tecidos
pela imaginação e narrados de improviso. Por vezes, o fim pode não parecer fim, nem o começo tem compromisso de ser
começo.
Essa é uma face dos causos nos contos que também
tentei escrever e que o prof. Appel teve a coragem de publicar.
Outra face é o perfil ideológico-narrativo de Cyro Martins, de
olho na sorte desprotegida dos desafortunados e preocupação
com ela e com eles. Ele os examinou sendo expulsos dos campos largos, de poucos donos.
Os contos que tentei escrever aos três livros editados
pela Movimento os tomam já nas periferias urbanas, vilas e vilarejos, adaptados ou em adaptação, conformados ou em dúvida sobre o que fazer do que lhes resta de vida. Eles são os sem
rumo, os que ficaram sem cavalo, os que se perdem nas furnas
escuras dos sete sendeiros, que dão nos tremedais. O prof.
Appel, ao lê-los, me ajudou a comprovar que era isso mesmo
que eu tinha feito.
Como nos causos, essa foi uma interrupção, para parecer que eu tinha terminado. Assim também, Fulgêncio foi
“dando tempo para as ideias se juntarem de novo, porque tinham se esparramado com a barbaridade daquele sogaço.
Compreende, menino?”
Depois do “- Compreendo, sim, senhor” do “menino”,
Fulgêncio Nunes confirmou: “- Foi fato verdadeiro!”
A formação psicanalítica e a habilidade literária do autor fulguram na finalização da narrativa:
Hoje, um incidente insignificante, um desses nadas que
nos acordam mundos, me fez evocar a sua figura e, junto, a história que me contou, numa tarde de mormaço, à sombra de um
oitão de venda de campanha, numa das minhas últimas férias
de estudante. Persisto na ideia de que aquele Pedro [o bicho
mau do título], que talvez por muitos anos permanecesse apagado na memória de Fulgêncio, e que só reapareceu na hora
das decepções, valia mesmo para ele como um símbolo. Com
uma diferença, entretanto, no meu juízo de agora. Fulgêncio
não sabia disso.
Muito obrigado pela gentileza da atenção.
Cicero Galeno Lopes
Professor de Literatura, escritor e pesquisador
www.cicerogalenolopes.com
Pra Não Dizer Que Não Falei de Livros
Calma, senhores meus, que vou falar é de nosso Brasil.
Mas não como fazem jornais e revistas. De um lado, endeusando gestores públicos (quando pagam anúncios). De outro, só vaticinando catástrofes. Vou falar no Brasil a partir da
frase de um livro, “A mágica que enferruja deixou bem antes
de ser mágica”. Essa frase é de Carlos Nejar, da Academia
Brasileira de Letras enorme poeta e, para muitos, maior romancista do Brasil de hoje. Seu romance anterior, “Matusalém de Flores”, é uma obra prima. Como se o personagem
fosse um Dom Quixote dos dias atuais. Agora é “O Feroz Círculo do Homem”.
Diferente no estilo, este se parece mais com o “Livro
do Desassossego” um gênero que poderia ser definido como romance sem enredo. No tanto em que o novo livro de
Nejar pode se ler abrindo em qualquer página. Há nele sempre ideias fantásticas. O nível não se altera. É sempre superior. E Pontal de Orvalho, implausível cidade onde tudo se
passa, de alguma forma lembra nosso país.
Na frase acima citada, o que vemos é um diagnóstico
de nossa realidade. A “mágica”, bem visto, é só reflexo de
uma conjuntura econômica mundial que beneficiou indistintamente (quase) todos os países. Não soubemos aproveitar, é pena. E ela enferrujou. “Deixou de ser mágica”. A realidade se apequenou. Que o diga o Governo.
Adiante, vem outra frase que podemos ler da maneira
que quisermos: “As mudanças no poder são provisórias, como se apenas mudasse a casca e a visão, não a pele, nem a
alma”. Pois foi o que aconteceu, senhores meus. Mudou a
casca, somente. O que havia de velho, disfarçado de novo e
com bons propósitos, envelheceu de vez. Todos podem ver.
Nada mudou. Nem mesmo esse lastimável modelo de barganha política em que se troca o apoio no Congresso por delícias na Petrobrás e tantas outras instâncias provedoras de
dinheiro muito.
Nosso herói do livro, Tibúrcio Dalmar, anda sempre
com seu cão Arauto. Num círculo que vai se dissolvendo, como o país que hoje sentimos despedaçado. No livro de
Nejar, o “circulo” se desfaz. No Brasil, e a menos que encontremos a luz, está se dissolvendo. Razão pela qual bem poderíamos aproveitar os versos finais da “Mensagem”, de
Fernando Pessoa: “Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal [Brasil, claro], hoje és nevoeiro”.
FRASES. São frases memoráveis. Lembro algumas, em
que o leitor amigo poderá reconhecer o país ou sua própria
circunstância. A ver, citadas na ordem em que aparecem no
livro do Nejar:
“Resistir é devorar furiosamente o que nos devora.
Deus tem saudade da infância, tem saudade de si mesmo.
Cinzas, cinzas, cinzas, é onde irei sobrevier. Sou maior do
que o silêncio. A realidade existe por causa da imaginação. A
alma é o corpo de minha sombra. Amar é um susto terrestre
e não se volta atrás. Perigoso não é viver, mas a morte ir
avançando burocraticamente na vida, até não poder andar
mais sozinha. Não há ódio além da morte, só amor. A bainha
não torna a espada boa, nem ruim. Não negocio alma, cuido
de que a grandeza não se extinga e alma é como infância que
não termina. O poder é como um tigre que não se sustenta
com ração de gato. A saudade é um vento virado para dentro, dentro de Deus. A memória se escreve para dentro. Desconfio que a alma cheirava a feijão no paraíso. A morte fica
no intervalo entre o ser e o não ser. Cachorro velho não late
em vão. Perigoso é o silêncio. Talvez a grande arte seja matar o que já está morto. O rosto muda o espelho. Sou todos,
sendo um só. O tempo não resiste ao tempo. E se o sonho
terminar?/ Termina a infância./ E se acabar a infância?/ Acaba o mundo./ E voltamos a sonhar com o começo.”
José Paulo Cavalcanti Filho
Advogado e escritor membro da Academia Pernambucana de Letras,
autor de “Fernando Pessoa, Uma Autobiografia”, entre outros.
(Publicado em www.proparnaiba.com).
I 05 I
Crônica
O anel, o estudante, o operário e a
menina que brincava com o anel
DETALHE DE PAINEL DE RUA EM SANTIAGO DO CHILE (SETEMBRO/2013)
Tenho uma história para contar. A história
de um anel de latão com uma pedra azulada,
comprado de um artesão em uma calçada qualquer no final dos anos 60, e que viajou de Porto
Alegre para o Chile, do Chile para a França, da
França para Portugal, de Portugal para São Paulo, de São Paulo para Diadema, de Diadema para Presidente Venceslau, de Presidente Venceslau para Presidente Prudente e de lá retornou a
São Paulo. E então, 42 anos depois, pelo mais
absoluto acaso, voltou para as mãos do dono,
em Porto Alegre.
Quem o repatriou, em menina o tirava dos
dedos do pai, para brincar, misturado a um
monte de bijuterias da mãe, que lhes escorregavam dos dedinhos. Um objeto familiar, cujo
único significado parecia exata e exclusivamente algo com um valor afetivo especial de
que o pai raramente se desligava e que, ao longo da vida, evocava isso mesmo: o pai e seu
quase inseparável e estranho anel, evidentemente “feminino”. Revirando fotos antigas de
um quarto de século, ela encontra imagens do
pai no trabalho, com o anel comunzinho no dedo anular. Se procurar mais, se verá, bebê ainda, ao colo do pai, e o anel lá, com eles. Coisa
mais familiar esse objeto, muito mais antigo
que a menina, no dedo do pai desde sempre,
eventualmente no da mãe. Até ela descobrir
que o anel não era do pai e que por ele seria encarregada de devolvê-lo ao verdadeiro dono.
Quase por acaso o dono do anel emergiu
do passado.
Em 2013, a menina já era jornalista, mestra em Comunicação aprovada para o Doutorado e estava escrevendo o projeto de um
documentário sobre o exílio político do pai, Enio Bucchioni, nos anos 60 e 70. Xenya, chamase ela, entrevistava o pai e chamou-lhe a atenção o fato de que ele só falava de amigos e companheiros de classe média, estudantes, intelectuais.
- Mas não havia operários no exílio?
- Raros. Um dos poucos que estavam lá era
um gaúcho, Dirceu Messias. Mas não sei dele.
E ficaria nisso, se ela não abrisse um novo
veio para o garimpo da história. Ao pesquisar na
internet em busca daquele nome, coincidentemente chegou à única referência que havia a
ele na rede: a postagem do blog do Comitê Carlos de Ré da Verdade e Justiça (migre.me/racwj)
noticiando que em 7 de setembro de 2013 ele
fora barrado no aeroporto de Santiago e devolvido ao Brasil, quando pretendia visitar o Chile,
acompanhando a delegação brasileira, para os
eventos de descomemoração dos 40 anos do
golpe militar que derrubou o presidente constitucional Salvador Allende. Messias deveria
prestar seu depoimento ao Museo Nacional de
los Derechos Humanos sobre os assassinatos e
demais violações aos direitos humanos que
presenciou de 13 de setembro a 24 de dezembro de 1973, quando esteve preso no Ginásio
do Chile e no Estádio Nacional - o mais importante campo de futebol do Chile-, transformados nos piores campos de concentração do continente, após o golpe.
No Ginásio a maioria dos presos ficava no
centro, na quadra polivalente. E alguns outros,
considerados dirigentes comunistas ou socialistas, ficavam na arquibancada superior, um
mezanino, como Víctor Jara,* que lá seria assassinado. Messias ficou com “os perigosos”.
Numa manhã desesperadora de setembro de 1973, ele foi levado ao mictório do Ginásio. Então, se cruzam os dois jovens que, depois
disso, não voltaram a se encontrar. Um, de 25
anos, estudante de Matemática na Universida-
de do Chile, no Brasil trocara a engenharia, na
Faculdade de Engenharia Industrial, onde fora
diretor do Centro Acadêmico, pela combinação
de Matemática e Ciências Sociais, na USP, já então, militando na Ação Popular. Fugindo com a
namorada da temível Operação Bandeirantes
(Oban), exilaram-se em Santiago, onde participara da fundação do agrupamento trotskista
Ponto de Partida.
O outro, o magrinho ensanguentado, voz
mansa e o nariz adunco que lhe valeu o apelido
de Turco, operário na metalúrgica (maestranza)
Jemo, tinha 32 anos. Em comum, o fato de serem brasileiros fugidos dos militares de seu
país, sequestrados pelos chilenos, que nas horas seguintes ao golpe de Estado passavam pente fino de fábrica em fábrica, faculdade por faculdade, comunidades populares, apresando
suspeitos aos milhares, arrastando-os para o
Ginásio do Chile, para o Estádio Nacional, para
delegacias de polícia e quartéis. Muitos desses
foram mortos nas primeiras horas e dias do golpe, sob tortura ou fuzilamento sumário, tão logo fossem identificados como líderes de qualquer coisa associada, ainda que remotamente,
a organizações de esquerda.
O magrinho chegara ao banheiro do Ginásio arrastado, seria mais exato dizer. Sangrava
como um atropelado, por fora e por dentro, no
corpo e na alma, abandonado ao próprio azar
em meio ao golpe militar. Há dias levava muita
pancada de vários homens vestidos com o mesmo uniforme dos que agora o acompanhavam
ao mictório, depois de ter sido identificado por
um policial brasileiro em colaboração com os
chilenos: esse Messias era militante do Partido
Operário Comunista (POC), fugido do Brasil. Começaram então as sessões de tortura com pancadas e choques elétricos.
De Messias queriam arrancar informações
sobre a localização das armas que poderiam ser
usadas contra os vencedores de então, comandados pelo general Augusto Pinochet. Dirceu
Messias fora preso por militares na invasão da
metalúrgica Jemo, no bairro de Conchalí, onde
trabalhava. Em Porto Alegre era militante operário (primeiro, do Partido Comunista Brasileiro, depois, do POC) e trabalhava na Companhia
Estadual de Energia Elétrica. De lá, fugiu para o
Espírito Santo, onde teve um bar em Vitória, até ser identificado pela polícia e novamente ter
de fugir, via Uruguai e Argentina, para o Chile,
onde o socialista Salvador Allende fora eleito
presidente da República.
Do paulista Enio Bucchioni a polícia não
tinha muitas informações. Dizia estar no Chile
apenas para estudar, apresentava documentos
de aluno da Faculdade de Matemática da Universidade Nacional, o que, depois, seria confirmado pelo reitor.
Enio olhou para o recém chegado, o rosto
transformado numa pasta de hematomas e
sangue.
- Acho que vão me matar”, disse o outro.
Ao encontrar no blog do Comitê Carlos De
Ré a única referência a Dirceu Messias na internet, Xenya surpreendeu-se novamente. Ao pé
da notícia de que ele não fora autorizado a entrar no Chile 40 anos depois de sua expulsão,
estava também postado um comentário de seu
pai, que pedia ajuda para comunicar-se com
Messias e relatava aquele último encontro que
tiveram, no banheiro do Ginásio do Chile:
“Dirceu estava muito mal fisicamente. Eu
tive mais sorte, pois 'apenas' um soldado que
me prendeu cortou levemente minha perna
com a ponta de sua baioneta. Foi um corte superficial, com o tempo, cicatrizou. Ao ver Dirceu
naquele estado crítico, com vários soldados
perto de nós, apenas apertei sua mão e lhe disse: 'Aguente firme, amigo!'
Vi que Dirceu se emocionou e ele me passou um anel que ele usava em seu dedo e me
disse: 'Fica com ele, amigo'. Entendi que Dirceu
pensava na possibilidade de ser morto. Ao me
dar seu anel, entendi que deveria levar esse anel para sua família, caso ele morresse.
Nunca mais nos vimos. Fui expulso para a
França e Dirceu para a Suécia. Tenho, entretanto, o anel de Dirceu até hoje comigo. Eu o usei
durante muitos e muitos anos.”
Xenya teve uma intuição: “O anel! Só pode ser o anel!”, o anel com que brincava na primeira infância. Era. O pai o confirmou.
Sem jamais terem se cruzado novamente,
nem no ginásio, nem no estádio, “era muita
gente”, foram expulsos para países diferentes,
tiveram vários endereços, retornaram ao Brasil
em momentos diversos e a vida voltou a mantêlos distantes, mas com essa pendência que acabou por reatá-los agora - havia o anel entre eles.
Um anel tão frágil, uma pequena tira de latão
acobreado, já com sucessivas marcas de amassamentos e desamassamentos, com uma gran-
de pedra azulada, passado furtivamente da
mão de um para a do outro num encontro de
brevíssimos minutos, muito pouco, diante da
eternidade do trimestre de dor física, sofrimento psicológico, medo, insegurança, e do
testemunho forçado das centenas de mortes
diante deles.
Entretanto, esse pedaço de lata enfeitada, a história pessoal de homens vizinhos dos
70 anos e a memória afetiva de uma menina feita pesquisadora mantiveram “no ar” esse vínculo, à espera de sua resignificação - a própria
troca de dedos, a volta do anel a quem o comprara, em Porto Alegre, há quase meio século.
No domingo, 9 de agosto de 2015, Xenya
Bucchioni devolveu a Dirceu Messias o anel do
qual o pai a fizera portadora. Ele o segurou por
um largo tempo, em silêncio. Muitas lembranças lhe brotaram. Depois, o repôs no dedo anular.
Há 42 anos deveria ter sido entregue à sua
família, como indicação de que fora morto. Não
morreu; o anel retornou a ele. Mas como teria
sido um testemunho dos horrores daqueles anos pesados, Messias decidiu que irá doá-lo ao
Museo Nacional de La Memória, em Santiago,
como outros objetos que lá estão para não nos
esqueçamos e para que não se repita.
Paulo de Tarso Riccordi
Escritor e Jornalista
facebook.com/paulodetarso.riccordi
13/08/2015
*Víctor Jara, músico, cantor, compositor, poeta,
professor de Jornalismo, diretor de teatro. Antes de seu assassinato, a 16 de setembro, os torturadores lhe esmagaram as mãos, provocando-o: “agora cante Puerto Montt, Puerto
Montt” (música em homenagem aos mineiros
massacrados naquela cidade). Contam que ele
respondeu aos torturadores: “Idiotas, pensam
que eu faço música com as mãos”. Após a redemocratização, o ginásio foi batizado de Ginásio
Víctor Jara.
I 06 I
Entrevista
IRINEU VOLPATO
FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
Homem de vivência, mundo e Arte acima de qualquer
modelo, um Senhor Poeta, de quem Manoel de Barros
não teve dúvidas: Poesia precisa de criar sua
linguagem. Particular. Você alcançou a sua.
Irineu Volpato, já consumindo os 80, nasceu em terras de roça nuns morredos Paraíso, somados a
Piracicaba. Por isso não me estranhem quando constante me digo de Ressaca, Caiapiá, Ponta do
Morro, Araquá, que era um corguinho altivo, mas semvergonhosamente vadio, sua nascida em
Cuvitinga, eitava por Santa Júlia, cortava Vila Estação, navegava entre terras cujos nomes ainda acho
me lembro. E doutras plagas também que vizinhavam ali onde. E como tantos curiosos da sorte
também eu vim catar beiras, que aís sobravam na vida. E não passo reclamo do tanto que essa vida
doou-me, que aprendi saber-me exato de quanto cabia e era meu. Botei uns filhos na vida, bonitos
(eta coruja !) pra não de mim reclamarem. Me andei por uns ofícios, que sustiveram meu sendo, me
garantiram uns depois. Me despedi de patrões, mas quem se despede do trampo? Catei meu picuá
de sonhos que tinha largado atrás e meti-me literato, com meu jeitão revezado e fui espiando a vida,
naqueles cantinhos amoitados que poucos cuidam catar. Somei uns livrinhos lavrados com títulos de
arrepiar, quase um poema inteiro (que sempre assim pensei se não me lerem os poemas, pelo
menos a resenha no título vão ter que engolir de ler). E de entremeio brinquei com uns amigos de
França, do México, do Paraguai (me esquecia da Argentina), ah, também duma Itália, de traduzi-los,
traduzirem-me. E pra me completar literato vim recolher-me de só, em beira rabeira de estrada, que
emenda duas cidades neste Estado de São Paulo (Piracicaba-Santa Bárbara). Propriamente na roça,
mas com suas facilidades cidades de luz, telefone na casa, mas com todo quieto do mato, com
passarinhos e seus cantos, cães e curiangos em noites e arrebóis de chorar. Agora tenho E-Mail e um
Blog, mas ainda prefiro o preto no branco escorrendo no papel. Amo as cartas em que toco com
devoção de oração. Autor de mais de quatro dezenas de livros de poesia, de viagem e diários.
Traduções: a. da França 6 títulos; b. da Itália 2 títulos; c. da Argentina 3 títulos; d. do Uruguai
2 títulos; e. do México 1 título; f. do Paraguai 2 títulos; g.do inglês para o nacional 1 título.
Letra do Hino de São Bernardo do Campo.
Versões de poemas para Italiano, Francês, Espanhol e Inglês.
Irineu Volpato, sabemos que tem vivência de
mundo e arte acima de qualquer modelo.
Mas esconde-se em sua retirada “Sesmaria”.
Para chegar a esse doce esconderijo, gostaríamos de saber detalhes anteriores de sua
vida extraliterária. Antes, em tempos de criança, supomos que tenha vivido com seus
pais, irmãos, vizinhos, família, gurizada ao
redor. Como era o ambiente de sua infância?
Alguma lembrança ou influência que possa
ter-se manifestado em suas letras de hoje?
Fui um moleque comum, que nasceu numa
Ponta de Morro, zona rural de Piracicaba - Paraisolândia e que ali conviveu apenas com primos por uns anos e trocou com a família esse
lugar pelo outro lado do vale - Ressaca, onde
não tive vizinho algum a não ser na escola rural, a 4 km distante, que passei a frequentar,
cujo relacionamento com os mais eram as correrias no terreiro da escola à hora de recreio.
Mudados para a cidade não tive dificuldade
em me enturmar com os moleques de escola e
bairro. Tempos de guerra e pobreza, mas
quem de nós moleques importava? Jogávamos bola em 3 campinhos ruim de capim, cupins e juás brabos, cajado nas quietas ruas
quase sem autos, e demais molecagens de
assaltar quintais de vizinhos e pegar frutos,
sacanear namorados à noite à sombra das árvores nas ruas.
Saído de casa, ou ficado, o que fez, por onde
andou, estudos, aventuras, o que aprontou
em seus tempos de adolescência e juventude? Normalmente, a infância prepara, a adolescência/juventude direciona. Pra onde foi
direcionado? Ou se direcionou?
Outra parte de minha vida aconteceu num seminário de padres. Por 6 anos. Uma experiência impagável na minha formação total. Sai e
completei meus estudos secundários em Piracicaba e mudei-me para São Paulo Capital, onde completei 4 cursos universitários e desenvolvi minha vida.
Experiência com trabalho as tive desde a infância, na roça, numa fábrica de bebidas duns
parentes, em Piracicaba. De volta do seminário trabalhei num escritório de metalúrgica e
numa fábrica de bebidas especiais. Lecionei
interinamente latim e literatura nacional em
colégios de freira e protestante, de Piracicaba.
Concomitantemente trabalhei como revisor
em redação de dois jornais locais, mantendo
num deles página semanal de cultura.
Depois, dono de sua vida (ou não foi?), contenos dos caminhos que trilhou (trilhou?). Seu
mundo é um mundo desconhecido por nós,
seus leitores. Fale-nos de estudos, família,
cursos, filhos, viagens, netos, profissões, cargos...? Uma ideia de sua vida, só isso?
Na capital, para sustentar-me nos estudos trabalhei inicialmente em banco e fiz carreira numa firma de petróleo internacional por 30 anos, onde pelos cargos que exercia, visitei 20
das 26 capitais de Estados a trabalho, frequentando pela firma cursos inerentes, especializações e congressos. Prossegui minha vida
profissional em empresa internacional de gases aéreos, produtos químicos, que me proporcionaram conhecer múltiplas áreas de atividades humanas, desde preservação de pescado em alto mar à fabricação de bombas autodirigidas, usinas hidroelétricas, fabricas de
veículos etc. e, até me surpreendi um dia em
vendas, negociando com êxito furgões automotivos, durante anos. E voltei a ser lavrador,
como aprendera aos 7 anos, quando meu pai
fabricou e me botou sobre para gradear terrenos de roça, equipo em que eu ia trepado, levado pelo burro Pinhão.
Nesse entremeio casei-me, botei 3 filhos no
mundo, formei-os e encaminhados na vida me
deram 5 netos e um bisneto.
A pergunta anterior e, em especial, o seu final
pode parecer um tanto… digamos, atrevido.
Não é, é respeito. É procura de resposta para
algo difícil de se entender. Como se pode entender, por exemplo, que um sujeito, ao que
se sabe, nascido há bom tempo, no interior
do Estado de São Paulo, de múltiplas atividades e responsabilidades, esteja produzindo
uma obra poética tão prolífica e tão original?
Como andei-me distribuindo em funções na
vida, fui conselheiro por 8 anos de Departamento de Cultura, em S. Bernardo, membro
por anos de concursos literários em Santo
André, São Pedro, Piracicaba.
Em soma e suas referências de certa maneira
acabou constando em minha criação literária,
cujo meu método de trabalho, aqui na roça é
dedicar-me obrigando-me todo dia escrever
algo do que vi, percebi e lembrei.
E aí estão os volumes de poemas editados, outros esperando, demorando e uns relatos de
viagens, e diários por 10 anos, contando de
mim, do mundo e daqui.
Além das viagens pelo Brasil a trabalho, visitei
lugares brasileiros com a família e aposentado
saí por terras de Itália, Espanha, Grécia, Portugal, Argentina, Uruguai, Paraguai e Peru.
Explique-nos, por favor, como funciona esse
seu processo de criação? Como pode produzir tanto? Quantos livros... sem contar as
publicações avulsas, é claro? Só poesias? Alguma prosa? Destaque para algum livro, ou
livros, de sua lavra?
Minha formação literária começou no seminário. O ambiente à época era propício, tínhamos 4 bons músicos, oradores, poetas. Internamente se editava uma revista bimestral,
onde todos podiam colaborar. As antologias
obrigatórias para as aulas me levaram primeiro a autores brasileiros. Entrei-me pelos românticos, poetas, vieram depois os parnasianos, simbolistas, pré-modernistas, pós, varei pelos portugueses e franceses, italianos e
não deu mais para parar. Então veio a prosa,
sempre procurando ler obras completas dos
autores. No período de 50 a 70 servi-me de
estrangeiros, na língua original que eu sabia,
como italiano, francês.
Mas dês meus tempos de colégio, talvez pela
obrigação de aprender línguas como latim,
grego e as demais neolatinas e outras foi-me o
aprendizado quase uma maneira de brincar,
que inventei de catar donde e como vinham as
palavras até nosso vocabulário.
Em 2005 escrevemos um pequeno texto, que
deu origem ao nosso livro A arte de nascer
das palavras, em que citamos Manoel de
Barros dirigindo-se ao ilustre Entrevistado e
afirmando: Poesia precisa de criar sua linguagem. Particular. Você alcançou a sua.
Perguntamos: Como funciona esse seu
processo de criação literária? Como alcançou, alcança, essa sua linguagem particular?
Com o poesiar veio-me desse tempo, Casimiro, Varela, Castro Alves, Catulo, tantos atiçavam-me. Aos 16 anos conheci os modernistas
e fui roçar no campo deles. Eram Boop, Cassiano Ricardo, Jorge de Lima, Valdomiro Silveira, senão todos. Em 1952, o Jornal de Piracicaba publicou meu e seu primeiro poema
modernista - Quando Chovia -, que incluí em
meu primeiro livro “Brumas e Brisas”. Isso
quase ano 60.
Confessamos: anos atrás, quando lemos os
primeiros poemas seus, ficamos desnorteados. Aos poucos, apaixonamo-nos e fruímos uma intensa e rara vibração estéticoliterária. Sentimos um perfeito amálgama de
fundo e forma. O seu forte lirismo é onipresente e a palavra é a sua expressão completa.
O destaque maior nos toca por conta dessa
forma, a linguagem. De onde lhe veio? Fontes? Como funciona, como trabalha a palavra? Para onde caminha, aonde quer chegar?
Autografando o livro “Ad-Venturum”, que teve lançamento em dezembro de 2014
I 07 I
Entrevista
O 1º livro: “Brumas e Brisas” (1953)
Ou já chegou? Sério mesmo: precisamos de
uma pequena aula sua sobre entendimento,
busca e realização poética verdadeira. Dênos essa aula, por favor!
Então parei de publicar trabalhos meus, onde
quer que, desde 1958 a 1992. Achava estar carecendo duma outra linguagem para dizer,
que aproveitasse de minhas leituras, minha
Vicência em seus múltiplos aspectos para reinventar-me poema-poeta, buscar a palavra
na sua evolução ou como essas palavras poderiam ter evoluído, se perseguissem as mudanças e, aplicar as mesmas regras constantes na
linguística sem exceção para nada. E sair catar
vocabulário caipira de dizer, o seu fraseado, as
quebras e requebros, e suprir certas convenções da escrita, como obrigar os versos sempre se iniciarem com letra grande e ponto e
vírgulas a temperar o texto, abusar das reti-
Discursando durante o lançamento do livro “Derradeira plumagem”, em 2013
cências, como se gaguejando ou pausando pra
pensar, quebrando o verso (nunca o ritmo e
harmonia) para uma leitura pensada e fazendo do verso um palavreado que obrigasse o
leitor a (re)aprender ler.
E comecei a enxugar meus poemas, botar no
papel apenas o necessário para dizer, pra que
os recheios de adjetivos, artigos, e demais sustentáculos da gramática com suas circunvoluções verbais? Poema enxuto que acompanhasse a pressa do leitor hoje, sempre correndo. Títulos pra quê? E já que poema é um escape do entendimento, por que não largar o
leitor demorando-se, bem depois da leitura,
no que leu?
E quanto eu ouvi contra dessa minha ensaiação de algo diferente, mesmo de gente entendida, mas acostumada. Certo professor, fundador dum desses cursos universitários,
dessa gente humildemente
que nunca sequer alcança uns triviais
saudade quando coração não se cumpriu
e fica a limar antigas lascas
respondeu-me na primeira carta dos primeiros trabalhos que lhe enviei que - meu estilo de
texto, assim como de G Rosa e M Barros só seriam lidos por raros curiosos e seus autores Continuei remetendo-lhe as minhas criações.
Menos de ano depois recebo dele correspondência em 5 laudas em A4, New Roman 12, um
estudo crítico-linguístico reconsiderando suas
opiniões contrárias sobre meus trabalhos e
até polemizando com figurão da Globo, que
afirmava que alguém estava a inventar novo
estilo de poema e, lhe enviou meu “Paulistarum Terra Mater”, que eu acabara de editar,
com linguagem a meus moldes. E com quantos aconteceu assim?
Literatura, hoje! Vive em São Paulo, no
interior, sabemos, mas como enxerga o
mundo literário dos dias de hoje? No Brasil,
Poemas de
Irineu Volpato
e iam todos vestidos de domingo
somados na carroça à missa
da capela em Covitinga
árvores mesmo são jequitibás
que têm porte de posar
- as mais somam-se arvoredos
ah esses ipês e suas pencas
de aquarela esparramada
nosso silêncio é isso que nos
tranca às vezes neste mundo pra
depurar substrato do que somos
…
(Excerto do início do livro “Neu”, 2011)
pelo menos? Rio-São Paulo é um eixo que
irrita o resto do país. O que diz? E o NorteNordeste atua com força e ninguém conhece… Conhece? E o Sul existe? Existimos?
Quanto à literatura nacional hoje, até que é
bom a gente fazer parte desse subsolo não
oficial das editoras, porque, pelo intercâmbio
que acontece entre os interessados desse plano, acaba-se descobrindo que há muita coisa e
gente produzindo hoje boa literatura, em
todos os cantos desta terra, melhor talvez que
a mesmice editorial oficial, independente das
geografias e da importância das tradicionais
Capitais. Acho que consegui que me entendam...
N
Por Nelson Hoffmann
[email protected]
um rio fazia seu torto
lilases das paineiras
vão de roxo sua quaresma
um velho mais seu burro
iam vieses pastorais
caindo a tarde
desses gaviões que viajam
sempre em um
e deu-se que um carro loucamente
veloz perdeu a estrada
indo desinventar-se em ventre de um rio
A capa de “Neu”, publicado em 2011
Roxos os manacás cantam na serra
é tempo de eu mudar-me de estação.
Obrigando-me de andar por outra terra,
cumprindo essa vereda inquietação
Nunca sei o que vai além da serra,
nem prejulgo intempérie de estação,
quero apenas mudar-me terra-em-terra,
tentando sossegar-me inquietação.
Sei lá do que minha alma se alvoroça.
Lembra-me apenas da primeira mossa
de viver e catar pela distância.
imensos de prédios
solenes silêncios
soletram janelas
de luzes acesas
essas almas debruns nossos avós
fenderam-nos amargas agonias
amamo-nos como se amam escorpiões
um gosto de silêncio sexta-feira
neste múrmure redor
é tempo de eucaliptos
trocarem cascas ontens
Perdi antigo gosto de me estar.
Nesse hoje qualquer marca de lembrar
me obriga rebentar por nova estância.
amava-me uma azaleia
com seu sorriso de espera
(Do livro “errâncias”, 2003)
(Do livro “errâncias”, 2003)
I 08 I
História
Cultura Guarani
“Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são invadidos… Dizem que o
Brasil foi descoberto; o Brasil não foi descoberto não, Santo Padre. O Brasil foi invadido e tomado dos
indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história que realmente precisa ser contada.”
(Marçal Tupã’i, líder Guarani-Nhandeva, em discurso ao Papa João Paulo II na sua visita ao Brasil, em 1980)
LÍNGUA GUARANI
Um ponto muito importante e que tem causado grande estrago pela falta de
entendimento, é a correta adaptação do Guarani na ortografia portuguesa, espanhola e
francesa.
Pronomes Pessoais/Pronomes retos:
Quero chamar a atenção aqui:
Che (Eu)
Tupi - ortografia portuguesa
Nde (Tu)
Guarani - ortografia espanhola
Ha'e (Ele/ela)
Macro-jê - ortografia francesa
Ñande (nós)
Neste pequeno ensaio da gramática Guarani, a grafia “b” somente é utilizada
nesta condição: mba, mbe, mbi, mbo, mbu.
Ore (nós)
Pe? (vós)
Por fim, a Língua Guarani não tem flexão verbal.
Exemplos:
Ha'e Kuera (eles/elas)
Eu como, Tu comes, Nós comemos…(Che akaru, ha'e okaru, Ore rokaru...)
Obs: Nós comemos. Neste caso, se levarmos em consideração a língua portuguesa, temos que conjugar: ore rokarus.
Che aké = eu durmo
Ñande jaké = nós dormimos (assim também neste caso: ñande jakes)
ANTONIO CABRERA TUPÃ
Licenciado em História e Guarani
www.guarany.org.br
[email protected]
A história do Abacaxi e do Ananás
Para entender a História do abacaxi e do
ananás é preciso conhecer a nossa língua Avá
Ñe'? ou Ñe'?ngatu (Guarani), a língua oficial do
Pindorama (como era chamado o Brasil pelos índios) que na atualidade passou a ser oficial e extra-oficial e aceita por todas as comunidades autóctones Guaranis. No Século XXI a língua Guarani foi reconhecida como Patrimônio Cultural da
Unesco e Cultura e Língua oficial do Mercosul
(Guarani, Português e Espanhol).
Descodificando e desconstruindo as palavras ABACAXI a ANANÁS na ortografia Oficial
Guarani:
Desconstruindo o abacaxi no seu verdadeiro sentido:
Yvá - fruta
Kati - cheiro
Yvá Kati- (fruta cheirosa), transformada em
ABACAXI pelos espanhóis.
ANANÁS:
Palavra adaptada na língua portuguesa. Ortografia atual na língua Guarani: ÑAÑA.
Ñaña: Planta uma mesma espécie ou pode
ter vários nomes populares ou científicos.
ABACAXI:
Avá: homem, mulher, gente, pessoa.
Kachi: vagina.
Antonio Cabrera Tupã
Táva Guasu Avá Guarani Retã
Ñande Ru Imbarete! (O Nosso Pai é Forte!)
I 09 I
Poesia
Ñeçu
A lavra da palavra
(A Nelson Hoffmann,
Mestre e Amigo).
Como Jacó, às margens do Jaboque,
tu não temeste os anjos do Senhor,
uns falsos anjos do Senhor em choque
com tudo a quanto tinhas mais amor.
De armas em punho ao invasor escroque
enfrentaste, sem medo e sem temor.
Terra, pão e família, sem retoque,
defendeste com honra e com valor.
Não costumo rasgar a blusa do que vejo
por um desejo leviano de puxar o pano sagrado
a que o seio confia seu silêncio,
mas é preciso descobri-lo com o tato do verso
até tornar as palavras transparentes
a ponto da fala ser a fala da Verdade…
Maurício C. Batista
Do livro A ceia do passo lavrador
[email protected].
Íngua na língua
Ela, brasileira
Ele, de qualquer outra parte
Um dizia oi; o outro se calava.
Não se entendiam.
Mas quando a lua punha a cara para fora feito
um tatu-bola,
O desentendimento perece…
Ela, brasileira
Ele de qualquer outra parte
No escuro, encurralados,
Parece que nasceram juntos.
Tombaste, neste bravo Continente,
primeiro herói que em minha Pátria atua.
Eu me orgulho de ti, velho parente!
Entendem-se como abelha e flor.
e sigo essa batalha, nua e crua,
pois enquanto eu viver, Ñeçu valente,
a guerra que iniciaste continua!
A língua do corpo, manhê
A língua, paiê -
Paulo Monteiro
[email protected]
(Ô mãe, ô pai, ô fi dos outros)
- é universal.
Leonam Cunha
Do livro Dissonante
[email protected]
Inventar
sonhado o mundo
ainda o sonhamos.
do não ser se erguem nossos sonhos.
atrás do vidro
desliza a vida, escombros.
gravitamos.
do pouco se alimenta o desejar.
Meus poemas
Meus poemas são minha fonte de inspiração
Vivências do meu existir
sonhamos morto, sonhamos torto.
sonhamos.
pois também se é não sendo:
no sempre esperado.
no esquecido.
no condenado.
Meus poemas são um pedaço de mim
Que saem de dentro
Por si
Meus poemas são meus olhos
Meus sentidos meu tato meu olfato
latências anotadas
em folhas da ilusão
em silêncios a se urdir
a aguardar o que não chega.
sobras a suspirar entre rendas.
na face contrária do espelho
um sonho deixou mensagem:
“além do pouco legado,
até que o vazio se cale
criarás o andaime dos véus
erguido do nada.”
ao nada devolvido, inteiro.
Francisca Vilas Boas
Do livro A asa e o osso
[email protected]
Meus poemas
Sou eu em mim.
Arte PENA CABREIRA
www.facebook.com/penacabreira
Eu e o tempo
Passo a mão sobre o Tempo em meu cabelo
Que era preto e o Tempo matizou.
Agora, branco, dá-me prazer vê-lo
Pois tem a cor do Tempo que passou.
Emil de Castro
Do livro Reserva de sonho
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XII
Não me queixo de ti, Tempo, ao contrário,
Mexeste muito bem no meu fadário,
São 90 anos… Como é bom viver!
O que de fato é o amor?
Ele meu amou.
Ele me amou?
O que de fato é ele?
O que de fato sou eu?
Eu o amei.
Eu o amei?
Eu e ele
Nós
Um nó
Um nó na garganta da alma
Uma ilusão talvez e mais nada.
J. Peixoto Jr.
Brasília, abril/2015
SQN 202 - G - Ap. 609 - CEP: 70832.070
Alessandra Bessa
Do livro Arcanos maiores e a valsa leve
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A experiência me dita e eu pelo
Tempo que vivo, e bom entendedor
de que o Tempo, com todo desvelo,
Cuida bem de mim, pondo-me onde estou.
A ave e a aurora
A ave pousada
no lago
através do espelho
observa a vida
e pressente a aurora
florindo no céu.
Maria de Lourdes Alba
Do livro Melodia íntima
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Por essa razão, Tempo, eu te saúdo,
Cuidastes mesmo deste cabeçudo
Dosificando a dor, não o prazer.
I 10 I
Literatura
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Rua Pe. Anchieta, 439
97970.000 - Roque Gonzales - RS
Inês Hoffmann e
Nelson Hoffmann
O mundo das Letras é um mundo estranho, muito. Solitário. Silencioso, em sua autenticidade. Escondido e ignorado. Quem sabe quantos, ao seu redor, lidam com Letras? E
quem se pergunta, não lida? E quem não lida e descobre alguém, olha superior e mostra um sorriso de piedade: “É um poeta, o que ele ganha com isso?”. Quais valores norteiam uns e outros? Os que sonham e os que se compadecem? N.H.
Emir Nunes Moreira reside em Melbourne,
na Austrália, e de lá nos vem com Um voo para a posteridade. O livro é uma coletânea de
49 crônicas muito bem escritas, divertidas,
bem-humoradas, reais algumas e fictícias outras, mas todas de um doce e fundo conteúdo
humano, retratando vivências do nosso corriqueiro dia-a-dia. O cenário desse cotidiano
simples nos é bem conhecido. Afinal, Emir Nunes Moreira é gaúcho e missioneiro de São Luiz
Gonzaga, RS, e morava aqui pertinho, a cerca de 30km desta nossa Roque Gonzales, RS. E alguém sabia que ele lidava com Letras e livros e era um exímio contador de causos?
E-mail: [email protected]
Antonio Fabiano é uma revelação. Poética. Para nós. Recebemos Cancioneiro da terra, poemas. Lemos, guardamos, tornamos a ler. Pouco
depois, ainda degustando o livro, recebemos
Nas pontas dos pés, novos poemas. Este com o
aval de Ferreira Gullar. Da leitura de ambos, ficamos com uma estranha inquietude de ligação
Terra-Céu, num mundo estranho de calcinação
e sofrimento. Até William Blake, com seu The marriage of heaven and hell, nos passou pela
cabeça. Antonio Fabiano é poeta de essência, o acidente é invólucro. Atente-se, de verdade, para esse nome: Antonio Fabiano. Quem tiver um mínimo de chance de ler algum poema dele, não
perca a chance, leia, medite, releia. E-mail: [email protected]
------------------------------------------------------------------------------------------Décio Adams é outra grata surpresa que nos vem de Curitiba, PR. De
uma tacada só, mandou-nos oito volumes de sua obra… E não são
volumezinhos quaisquer, não. Os menores ultrapassam as duzentas páginas. Atemo-nos, aqui, aos dois volumes iniciais, de contos: Contando
um conto e aumentando um ponto…. A grande, e grata, surpresa fica
por conta da temática abordada. Adiante-se que o estilo é o tradicional
natural-realismo, simples, claro, direto, sem rodeios. O conteúdo, porém, é inédito. Não sabemos de outro escritor que tenha abordado tão
completamente a vida missioneira cotidiana e colonial desta nossa microrregião de formação germânica. Usos, costumes, falas, tradições,
crenças, tudo é inventariado em histórias curtas, de sabor insuspeitado.
E picante. Além de boa obra literária, é valioso documento sociológico. O
autor, Décio Adams, nasceu aqui pertinho, em Salvador das Missões, RS,
a menos de 20km de onde moramos. E alguém sabia que ele lidava com
Letras e livros? E-mail: [email protected]
---------------------------------------------------Enéas Athanázio dispensa apresentação. A gente chega a se perguntar:
existe algum lugar, neste Brasil, em que Enéas Athanázio já não seja
conhecido ou não tenha estado? Ele está sempre em atividade total:
escreve, lê, viaja. Faz tudo ao mesmo tempo e não descuida de qualquer
mister comezinho. Impressionante. E chega-nos com mais dois livros: O
pó da estrada vol. 2 e O reduto de Nhô Ná. O primeiro livro continua os
relatos inteligentes do autor pelos quatro cantos deste país. É preciso
destacar, neste volume, a viagem em busca do Chão de Nheçu Uma viagem complicada. O autor relata sua participação no “3º Manifesto, Canto e Poesia Nheçuanos”, em 2011. Já O reduto de Nhô Ná é, seguramente, um dos melhores textos desse autor, cuja obra supera os cinquenta títulos. O livro é de crônicas e contos, foi dividido em duas partes:
I O Real; II O Imaginário. A narrativa escorre sempre límpida, tempo e
espaço integram o texto de forma natural, o conteúdo é seu preferido
tema campeiro do sul. Por isso, hoje, é respeitado como o maior Regionalista Vivo do Brasil. E-mail: [email protected]
---------------------------------------------------Carlos Nejar é nome conhecido e celebrado. Nicodemos Sena,
escritor e editor, encaminhou-nos seu último livro, O feroz círculo do homem. Romance. Mais conhecido como Poeta, e dos
maiores da Poesia Contemporânea, Carlos Nejar continua sua
trajetória de focar, e tentar decifrar, a problemática do ser humano. Em prosa ou verso, a Poesia de Nejar é de eternidade.
E-mail: [email protected]
===R E C E B E M O S===
* Escobar Franelas: Itaquera - Uma breve introdução, prosa;
* Rolando Kegler: Junta de estúdios históricos de Misiones,números,
boletins em prosa;
* Gervásio T. Luz: Cidadela Arte e cultura, prosa;
* Aricy Curvello: Antologia UBE, prosa e verso;
* Cleber Pacheco: Arte rupestre, versos;
* Cláudia Brino/Vieira Vivo: Centelha insana, Humor cego e Luiz
Otávio Oliani: entre-textos 2, versos;
* Manoel Onofre Jr.: Revista da Academia Norte-rio-grandense de
Letras, prosa;
* Tarcísio Gurgel (via David de Medeiros Leite): Inventário do
possível, prosa;
* Dinovaldo Gilioli: Suplemento cultural de Santa Catarina nº 85,
versos, e 17 anos: Ação cultural - Sinergia, prosa e imagens;
* Adrião Neto: De repente, revista cultural;
* Goreth Serra (via David de Medeiros Leite): As cidades da alma,
versos;
* Josselene Marques (via David de Medeiros Leite): Sublimes encontros, versos;
* João Batista de Andrade (via Nicodemos Sena): Poeira e escuridão,
prosa;
* Adelto Gonçalves (via Nicodemos Sena): Os vira-latas da madrugada, prosa;
* Álvaro Alves de Faria (via Nicodemos Sena): O tribunal, prosa;
* W. J. Solha: Deus e outros quarenta problemas, versos;
* Franklin Jorge: O livro dos afiguraves, prosa;
* Emil de Castro: Águas de ontem, versos;
* Cleber Pacheco: O terceiro dia, prosa;
* Dércio Braúna: Aridez lavrada pela carne disto, versos;
* Cláudia Brino e Vieira Vivo: Metal - Cabeça Ativa nº 30, versos;
* Francisco de Assis Nascimento: Vida avenida poesia, versos;
* Manoel Onofre Jr. e Thiago Gonzaga: O chamado das letras, prosa;
* Sérgio Campos (via Leontino Filho): Mar anterior, versos;
* Gaitano Antonaccio: Ilusões do amor, versos;
* Alaor Barbosa: O menino que eu fui, Mais histórias para ler e lembrar e A solidão e coragem de cada um, prosa;
* Irineu Volpato: Efêmeras (diário num '99 durante), prosa;
* Iara Maria Carvalho (via David de Medeiros Leite): Saraivada,
versos;
* Thiago Andrade Macedo: O silêncio das sombras, prosa;
* David de Medeiros Leite: Ruminar Rumiar, versos;
* Milton Borges: Sabor de vingança, prosa;
* Aristides Theodoro: América Latina, por favor, um minuto de silêncio: morreu Carlos Fuentes!…, prosa.
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Literatura
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Nelson Hoffmann
DESTAQUE
Em 23 de abril de 1953, na localidade de Salto Pirapó, no atual Município de Roque Gonzales, nascia RENATO JACOB SCHORR, o oitavo dentre os dez filhos de Erna Guilhermina e Léo Henrique Schorr, na
margem direita do Rio Ijuí-Guaçu.
Menino calça curta e pés descalços, iniciou os estudos na escolinha
do Salto, cursou o ginásio agrícola na escola Guaramano, o curso comercial nas escolas Sepé Tiaraju, de Santo Ângelo-RS e José Gribosi,
em Rio Negro-PR. Cursou Estudos Sociais, na FUNDAMES, Ciências
Jurídicas e Sociais, pela FADISA (IESA), e MBA em Estratégia e Gestão
de Empresas, na mesma instituição.
Desde a enxada, o arado, ao trotar de pingos, passando pelo Exército Brasileiro, atividades comerciais, o magistério Público Estadual, a
corretagem imobiliária, ao exercício do Direito, são seus ofícios íntimos.
Ligado ao culto das tradições gaúchas, ocupou diversos cargos,
tendo sido Patrão do CTG 20 de Setembro, de Santo Ângelo, em três
oportunidades, onde restou agraciado com o título de Sócio Benemérito. É sócio honorário do CTG Rancho Venda Velha, de Entre-Ijuís.
Integra a Confraria Recanto do Sabiá, na qual verteu o gosto pela
composição e interpretação, cuja entidade também já presidiu. Diversas de suas letras foram musicadas e integram CDs. Trabalhos vencedores fazem parte de suas obras.
É ativista cultural do Acampamento da Poesia, desde a 2ª edição,
dos treze momentos poéticos já realizados, evento que se realiza anualmente. Fruto do Acampamento é editado o livro Afluências. Diversos
poemas premiados no Concurso - Poema no Ônibus, de Santo Ângelo.
Do livro Interlocução de Saberes, do Instituto Estadual de Educação Odão Felippe Pippi, participa desde a prédiscussão e em todas as dez edições, com contribuições. Participou com textos na revista Talentos. Está presente em
diversas edições da Agenda VirArte e de concursos de Poemas do mesmo grupo. Possui eventuais participações no
jornal O Nheçuano, de Roque Gonzales.
É colunista semanal do Jornal das Missões, da cidade de Santo Ângelo. Outrora ocupou espaço no Jornal O Mensageiro, da mesma cidade. Ocupa a Cadeira número 16 da
Academia Santo-Angelense de Letras, a qual tem por Patrono Aparício Silva Rillo. Autor dos livros Segredos de Um Rio, Alma dos Vates, Nos Tentos, Luares e Garupa Gateada.
ARQUIVO PESSOAL
Pelos caminhos do Garupa Gateada
Li, como se diz, “numa sentada”. Não sem
antes ter cruzado os olhos pelas palavras do artista
plástico Tadeu Martins, que fez a apresentação da
obra, e do grande professor e mestre em literatura,
Arthur Hamerski, que discorreu sobre “uma costela do romance”, adiantando ao leitor que ele se
depararia com um romance histórico, centrado
nos pagos gaúchos do século XVIII.
Já de início, a leitura remete o leitor a um
vocabulário específico, tanto em relação a uma variante etária como a uma variação cultural. As entradas lexicais se assentam na fala regional do gaúcho, mais precisamente na figura do tropeiro, demonstrando a vasta familiaridade do autor acerca
da cultura campeira em vários aspectos. Particularmente, não conheço quase nada desse “linguajar”. Além de ser e me sentir urbana, as lidas do
campo nunca fizeram parte das minhas rotinas, o
que me distanciou um tanto da linguagem empregada pelo autor. Mas nada que não pudesse ser facilmente interpretado, já que o contexto permite
atribuir sentidos e significados às tantas palavras e
expressões típicas dessa cultura tão bem representada no texto.
A obra Garupa Gateada, que desde o início
me instigou a curiosidade em torno do título, nasceu de uma inquisição. O autor Renato Schorr foi
inquirido a escrever um romance, devendo, por-
tanto, enveredar por outros caminhos literários
além daqueles pelos quais cruzam seus escritos
costumeiros e sua produção literária. Ora! Nada
melhor do que ser desafiado! Os desafios testam
os medos, mexem com os nervos, fazem suar, incomodam, mas normalmente terminam por incitar atitudes e mobilizar ações. E foi assim que se
fez a história do Tonico Missioneiro, personagem,
como diz o próprio autor, “resgatado dos recônditos da história para ilustrar o romance”.
Em idas e vindas, durante a leitura, o leitor
faz um percurso pelo qual andam personagens,
como o Tonico, o Zordino, a Líria Morena, o Castaldino, o Manduca, a Zarinha e outras. Nesse percurso, as lembranças se constituem como forte elemento da narrativa, pois se traduzem não apenas
como uma recorrência do narrador para a descrição das personagens, mas, especialmente, para
perpassar valores éticos e morais inerentes a elas.
Nessa senda, deve ser destacada a relação entre
pais e filhos, fortemente percebida no enredo como uma evidente crítica ao atual contexto histórico-social em termos de relacionamentos interpessoais. Sinto que, nesse aspecto, autor e narrador se mesclam num emaranhado de valores em
que o respeito familiar, principalmente ao pai e à
mãe, se sobrepõe a questões de ordem individual,
íntima e pessoal. Tanto isso é verdade que, no final
do romance, a personagem central surpreende o
leitor com uma atitude inesperada, justamente
por romper com a linha reta que é traçada durante
a narrativa. Não que isso desvirtue o caráter do
Tonico. A surpresa reside é nesse fato inesperado,
já que no decorrer da história parece haver um distanciamento entre o Tonico e a Líria Morena.
Mas eu não vou contar o que aconteceu. Isso
faz parte da leitura como um todo. Além de não ter
graça saber do final sem conhecer o trajeto percorrido, o importante é que o romance seja lido na
íntegra. Deixo, pois, o convite para que todos, independentemente de idade e de cultura, peguem
o Garupa Gateada e sigam o “trote” da história,
dedicando um tempo para a leitura desse livro. Ao
autor, Renato, meus cumprimentos pela obra e os
votos de que continue fazendo das letras e das palavras uma arte a favor da retórica, da poética, da
estética, sempre em nome do fazer literário.
Dinalva Agissé Alves de Souza
Professora de Língua Portuguesa e de Linguística
Mestre em Letras - Linguística Aplicada PUCRS
Membro efetivo da ASLE - Cadeira nº 6
Patrono: Graciliano Ramos
facebook.com/academiasantoangelensedeletras
O direito dos povos
A defesa dos direitos do índio, de
forma radical e intransigente, é um dever ético e moral. Contra o índio americano foi praticado o maior crime social e
antropológico da história da humanidade. Também o maior genocídio no planeta em todos os tempos.
Ruy Nedel
Escritor e Historiador, autor da trilogia Memoriando a História do Sul - Avaliação
Crítica (Os Jesuítas e as Missões/Revolução e Guerra dos Farrapos/ O Imigrante)
Rua Sete de Setembro, 495 - Cerro Largo, RS - CEP 97900-000
PEDRO CARVALHO
Todos os povos, de todos os continentes, formaram as suas nações e nacionalidades. Os de continente americano também. Entretanto, a conquista os
trucidou. Os poucos que sobraram perderam suas nacionalidades, não só a geografia em que vicejavam.
Apesar de todos os crimes, não houve crime similar na África, Oriente Médio,
Ásia, Indonésia, Oceania e Austrália. De
todas as guerras criminosas nenhuma se
compara à rapinagem genocida da conquista do continente americano.
Em todas as democracias, de fita
ou de fato, alardeia-se a defesa dos direitos humanos. Como podemos pretender a defesa dos direitos humanos se
não concedemos o direito ao nativo de
fazer sua própria História? O direito humano não pode ser uma concessão e, isto sim, deve ser um direito.
Propugnar direitos humanos e ignorar o nativo autóctone é cinismo puro.
Democracia que não defende o direito
das minorias não é democracia. É o cínico
exercício de poder e soberba das maiorias.
Já é um crime hediondo ignorarse as nações que, apesar de tudo, ainda
existem. Nivela-se a todas na condição
linear e subalterna de índios.
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