Untitled - PPGS-UFF – Programa de Pós
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1 2 ANAIS DO I SEMINÁRIO FLUMINENSE DE SOCIOLOGIA ARTIGOS ISSN: XXXXXXX 19 , 20 e 21 de novembro de 2012 Niterói, Rio de Janeiro 3 Reitor da Universidade Federal Fluminense - UFF Roberto de Souza Salles Vice-Reitor Sidney Luiz de Matos Mello Pró-Reitor de Extensão - PROEX Wainer da Silveira e Silva Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação - PROPPI Antonio Claudio Lucas da Nóbrega Pró-Reitor de Assuntos Estudantis - PROAES Sérgio José Xavier de Mendonça Pró-Reitor de Administração - PROAD Leonardo Vargas da Silva Superintendente de Comunicação Social - SCS Rosane Pires Fernandes Coordenador do Curso de Ciências Sociais Sérgio Rodrigues Castilho Chefe do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais – GSO Carmen Lúcia Tavares Felgueiras Diretor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia - ICHF Théo Lobarinhas Piñeiro Vice-Diretor Napoleão Miranda Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia PPGS (2012) Brasilmar Ferreira Nunes 4 Coordenador do I Seminário Fluminense de Sociologia Sidnei Clemente Peres Coordenadores dos Grupos de Trabalho GT 01: identidade, conflito e movimentos sociais Brena Costa de Almeida Sidnei Clemente Peres Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo Wilma Lúcia Rodrigues Pessôa GT 02: meio-ambiente, território e poder Nurdino Cassiano Macata Valter Lúcio de Oliveira GT 03: pesquisas urbanas e arte Bianca Salles Pires Felipe Berocan Veiga Marco Antonio da Silva Mello GT 04: trabalho e modernidade Leonardo Vereza de Freitas Marilia Salles Falci Medeiros Comissão executiva e organizadora dos anais do evento Brena Costa de Almeida (Discente PPGS/UFF) Leonardo Vereza de Freitas (Discente PPGS/UFF). Edição Leonardo Vereza de Freitas 5 ÍNDICE POR AUTOR / APRESENTADOR GRUPO DE TRABALHO 01: IDENTIDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS ALMEIDA, Brena ................................................................................................................................ 7 CAVALCANTI, Thiago ..................................................................................................................... 21 CUNHA, Alexia ................................................................................................................................. 33 GOMES JR, Elson ............................................................................................................................. 46 MACATA, Nurdino ............................................................................................................................ 57 MILNER, Marcos .............................................................................................................................. 75 MONNÉ, Eric .................................................................................................................................... 90 RODRIGUES, Caroline ................................................................................................................... 104 SANT´ANNA, Rejane ..................................................................................................................... 120 VEREZA, Leonardo......................................................................................................................... 139 GRUPO DE TRABALHO 02: MEIO AMBIENTE, TERRITÓRIO E PODER AMARAL, Giverage ........................................................................................................................ 153 INCARNAÇÃO, Iuri ....................................................................................................................... 173 MACATA, Nurdino .......................................................................................................................... 186 SILVA, Tatiana ................................................................................................................................. 199 GRUPO DE TRABALHO 03: PESQUISAS URBANAS E ARTE BARBOZA, Leila ............................................................................................................................ 209 CAMPAGNANI, Nathália ............................................................................................................... 227 HORÁCIO, Heiberle ........................................................................................................................ 246 JOERKE, Gabriel ............................................................................................................................. 267 MAGGI, Diego ................................................................................................................................ 273 6 MOURA, Heitor............................................................................................................................... 287 OLIVEIRA, Luciano ........................................................................................................................ 303 PIRES, Bianca .................................................................................................................................. 324 RIBEIRO, Vanessa ........................................................................................................................... 338 SOARES, Flávia .............................................................................................................................. 359 GRUPO DE TRABALHO 04: TRABALHO E MODERNIDADE BRAGA, Bruno ................................................................................................................................ 377 DANTAS, Giselle ............................................................................................................................ 401 FERREIRA, Thaísa .......................................................................................................................... 416 GASPAR, Daniel.............................................................................................................................. 428 OLIVEIRA, Clarisse ........................................................................................................................ 438 PEÇANHA, Valéria ......................................................................................................................... 455 VEREZA, Leonardo......................................................................................................................... 472 7 GRUPO DE TRABALHO 01: IDENTIDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NA COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO DA RASA, NO MUNICÍPIO DE ARMAÇÃO DOS BÚZIOS, NO RIO DE JANEIRO. Brena Costa de Almeida1 RESUMO O presente trabalho consiste em pesquisa em desenvolvimento e possui como objeto o processo de construção da identidade na Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa no município de Armação dos Búzios no estado do Rio de Janeiro, Brasil. A conquista de direitos territoriais, traduzida no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, chama atenção para uma realidade que implica não apenas uma perspectiva de resgate histórico do problema da escravidão no Brasil, mas também se refere à composição das chamadas comunidades remanescentes de quilombos. Cabe realizar uma investigação que leve em consideração tais aspectos, e não se apegue a uma visão tradicional da formação societária como unidade relativamente isolada e separada de outras unidades, vislumbrando a auto-atribuição desses grupos étnicos. Nesse sentido, faz-se necessário ressaltar as diferenças que os próprios membros encontram e apontam como fatores sociais relevantes para caracterizar sua origem comum e identidade étnica. O trabalho é elaborado a partir de material etnográfico obtido com base em investigação empírica de caráter descritivo e analítico, observação direta, realização de entrevistas e depoimentos com membros da comunidade da Rasa. A abordagem dos pontos teóricos trata de conceitos como identidade, etnicidade, fronteiras, reconhecimento e auto-identificação. Palavras-chave: Comunidade Remanescente de Quilombo; Rasa; identidade; auto-identificação; 1. INTRODUÇÃO O processo de emergência identitária das “comunidades remanescentes de quilombo” será aqui abordado por meio de dois fios condutores que se inter-relacionam nessas análises: identidade étnica e memória, levando em consideração a articulação das experiências reunidas na Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa, no município de Armação dos Búzios no Rio de Janeiro. A pesquisa de campo, ainda em fase de desenvolvimento na comunidade, revelou a memória como chave para apreender como se constitui a autoatribuição da identidade étnica desse grupo em um 1 Mestranda do PPGS UFF. Email: [email protected] 8 contexto de luta política por reconhecimento e conquista de direitos territoriais. Tais questões recuperam ainda o problema da escravidão e da constituição do “pósabolição” no Brasil, compreendendo os diversos elementos que podem ser extraídos daí, não naturalizando as relações raciais como herança da escravidão, mas sim apreendendo como se compõe a partir da historicidade das identidades que estão entrelaçadas em problemas territoriais, de relações de trabalho, de processos de definição e acesso a direitos. Ou seja, em vez de reproduzir uma historiografia de acomodação das relações raciais pela mestiçagem no Brasil, cabe aqui apreender como estão se constituindo relações que podem se percebidas na historicidade do processo de emancipação da escravidão e na composição das próprias relações e caminhos delineados por esses atores sociais. Inúmeras lutas sociais e políticas que antecederam e fizeram parte da constituinte na década de 1980 ganharam expressão em diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988 e é nesse contexto que surge o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que confere direitos territoriais aos remanescentes das comunidades de quilombos, tal artigo é regulamentado pelo decreto 4.887/2003. Além do referido dispositivo, garantias de direitos culturais (especialmente no que concerne ao patrimônio material e imaterial) são encontradas nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, regulamentação que encontra consonância com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário (decreto 5.051/2004). Cabe ressaltar que o trabalho se desenvolve a partir dos diversos entrelaçamentos que envolvem identidade étnica e memória, bem como, dos aspectos imbricados na categoria remanescentes das comunidades de quilombos e como esses elementos se constituem no próprio lugar da comunidade e nas falas dos seus membros. O trabalho encontra-se em fase de desenvolvimento, a partir de pesquisas realizadas por meio do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais, Trabalho e Identidade (LEMSTI) na Universidade Federal Fluminense em Niterói no Rio de Janeiro e compõe-se de pesquisa bibliográfica e documental, mas principalmente dos relatos orais dos membros da comunidade da Rasa, buscando compreender as especificidades dessa comunidade no contexto de lutas das comunidades remanescentes de quilombo no Brasil. 2. A COMUNIDADE NEGRA DA RASA: HISTÓRIA E A MEMÓRIA A comunidade da Rasa situa-se no município de Armação dos Búzios no Estado do Rio de Janeiro. Conhecido balneário turístico que compõe a chamada Região dos Lagos ou Região das Baixadas Litorâneas do Estado do Rio, Búzios era o 3º distrito do município de Cabo Frio e tornouse município autônomo em 1995. Localiza-se a cerca de 165 quilômetros da capital do Estado e possui uma população de pouco mais de 28.000 habitantes; o rápido desenvolvimento gerado 9 principalmente pelo turismo e especulação imobiliária nos últimos 20 anos, coloca a Rasa na região periférica do município, recobrindo com a nuance negra os contornos de Armação. Segundo Dalmaso (2005), existem documentos históricos que comprovam que na região de Búzios havia uma grande quantidade de desembarques de navios com negros africanos que se tornariam escravos em diversas fazendas locais. De acordo com os relatos dos membros da comunidade da Rasa, os negros procediam em sua maioria de Bantu e de Angola e chegavam pela Praia de Armação, que recebia grande parte do comércio de escravos, os negros eram leiloados e recolhidos para Fazenda Campos Novos. Essa fazenda era uma sesmaria2 ocupada, a partir do século XVII, por Jesuítas da Companhia de Jesus para impedir que os índios que se encontravam na região negociassem com estrangeiros. Compreendia uma extensa área territorial que hoje abrange os municípios de São Pedro da Aldeia, Cabo Frio e Armação dos Búzios, servindo também de ponto de distribuição dos escravos para outras localidades, realizava a extração de madeiras nobres e sua produção agrícola vigorosa era voltada para o cultivo de mandioca, feijão, milho, café e arroz (Arruti, 2002, p.11) Com a ruptura de Portugal com os Jesuítas e expulsão dos mesmos pelo Marquês de Pombal, a partir de 1759, a fazenda volta a ser da Coroa Portuguesa e é renomeada como Fazenda D’El Rey, sendo arrematada, no mesmo período, por Manoel Pereira Gonçalves. Com a Lei Eusébio de Queiroz, que finda o tráfico negreiro em 1850, o Litoral de Búzios se tornou rota de contrabando de escravos e por constituir-se de várias enseadas, transformou-se em portos clandestinos de navios. Muitos negros africanos chegavam pela Praia de José Gonçalves e pela Praia Rasa ou Ponta do Pai Vitório, como são conhecidas pelos moradores da região. Em razão dos maus-tratos nas fazendas, muitos negros fugiam e refugiavam-se nas proximidades da Praia dos Negros ou Praia Gorda. O local, que parece adequado a servir para ocultar os escravos fugidos, era assim chamado, pois oferecia uma fartura de alimentos para os negros que dali retiravam seu sustento. Essa região compõe um manguezal de pedras e cascalhos que guardavam nas suas pequenas depressões peixes, ostras, entre outros alimentos que, segundo os moradores da Rasa, fizeram os cativos fugidos sobreviverem durante muito tempo longe das fazendas que os açoitavam. A abolição em 1888, não gerou mudanças para os ex-escravos ou seus descendentes, muitos continuaram morando e trabalhando nas terras da fazenda, cultivando a mandioca, principal base alimentar. A compra da fazenda por Eugênio Arnoud, no início do século XIX, transformou-os em arrendatários, em troca de continuarem nas terras e produzirem suas roças, deveriam trabalhar um determinado número de dias nas terras dos grandes proprietários de terras como pagamento – 2 Sistema imposto pela Coroa de Portugal ao Brasil no período colonial com o objetivo de ocupar e produzir nas áreas territoriais da colônia. 10 trabalhavam geralmente na extração de madeiras nobres e no cultivo de banana e café para exportação. Almeida (2011) chama atenção para o desenvolvimento de certa autonomia no processo de produção por parte das próprias famílias de escravos não muito longe da Casa Grande, especialmente após a ampliação do declínio das grandes plantações cafeeiras no século XIX. Com esse declínio, ocorre a diminuição do poder de coerção dos grandes proprietários, dessa forma, não apenas havia quilombos com produção autônoma a uma grande distancia das Casas Grandes das fazendas, mas sim aos arredores, inclusive fomentando a produção de alimentos de subsistência (milho, abóbora, mandioca, feijão, cana-de-açúcar) que serviam ao consumo da própria fazenda em momentos de escassez. A Fazenda Campos Novos é de grande importância, pois vários moradores da Rasa, assim como de outras comunidades remanescentes de escravos afirmam que avós, tios, parentes trabalhavam em suas terras ou fugiram delas para os Quilombos. A partir da década de 1940, com a compra da fazenda por Antônio Paterno, conhecido na região como “Marquês”, começaram os conflitos pela posse e exploração de terras, violência e expropriação de caráter coletivo, neste período a população local começa a se organizar para defender suas terras. Os descendentes que moravam mais afastados da sede conseguiram lutar e se manter nas terras, esse foi o caso de comunidades vizinhas, como Botafogo e Caveira. Acirrou-se, de 1950 a 1980, um período de intenso e violento conflito de terras nessa fazenda, inclusive Dalmaso afirma que foi “um dos mais violentos do Estado do Rio de Janeiro.” (2005, p.21). De acordo com Arruti: Em 1983 parte da fazenda Campos Novos é desapropriada pelo INCRA 3, foram 3.203,43 ha de terra desapropriada para fins de reforma agrária. Esta foi dividida em quatro grande glebas e de acordo com o levantamento realizado em 1984, havia um total de 248 ocupações. O ato de desapropriação por parte do governo federal, ao contrário do que se poderia esperar, no entanto, não significou o fim da violência e tensão social. (Arruti, 2002, p. 15) As famílias de descendentes de escravos que estavam vivendo do cultivo nessas terras por meio de arrendamento foram expulsas após o fracionamento da extensa área da antiga fazenda. As narrativas dos membros mais antigos da comunidade se combinam ao mencionar que os “novos donos” não queriam saber que as terras eram cedidas “àqueles negros”, não queriam negros nas suas terras e usavam o gado para afugentá-los. Apesar da resistência de alguns que lutavam contra o gado nas suas plantações, ou permaneciam nos arredores prestando serviços na localidade, muitos tiveram que se deslocar para outras regiões, buscando novas formas de luta pela sobrevivência e retornando, apenas posteriormente, para as terras que tradicionalmente ocupavam. 3 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária 11 O contato com a comunidade da Rasa originou-se de Projeto de Extensão da Universidade Federal Fluminense. Denominado Acuia – Acervo Dona UIA, desde 2005 esse projeto busca resgatar a memória local. Em nossa entrada na comunidade fomos informados de que o Quilombo possui um grande número de adeptos da religião evangélica e que havia uma matriarca que completaria 102 anos com uma grande festa, o ano era 2011 e a matriarca era a D. Eva. Sua filha, a D. Uia, é a matriarca política da região, reconhecida por todos e até mesmo no exterior como uma forte liderança política na luta pelos direitos da comunidade. A chegada à Praia da Rasa logo evidencia várias casas, alguns condomínios e uma considerável movimentação urbana, não há sinal do que estereótipos chamariam de um quilombo, como uma comunidade rural, afastada de centros urbanos, que se utiliza de agricultura de subsistência. O Quilombo da Rasa escapa a encaixes conceituais frigorificados, conforme coloca Almeida (2011) e por isso mesmo instiga e aguça ainda mais os sentidos direcionados à busca da composição de nuances que constrói a identidade do grupo. O centro de toda a comunidade é uma praça onde há uma lanchonete, uma quadra poliesportiva, uma Igreja Católica frequentada pelos “brancos”, os “Gonçalves” conforme diz D. Uia, e uma Igreja da Assembléia de Deus frequentada por muitos quilombolas e da qual um deles inclusive foi pastor, o Pastor Luiz, cuja entrevista foi utilizada nesse trabalho. Os “Gonçalves” são mencionados constantemente nas falas dos membros da comunidade, são os brancos, referidos como descendentes da família do português Manoel Pereira Gonçalves, cuja família permaneceu naquelas terras. Dessa composição da praça e das igrejas se evidenciam as diferenças entre brancos e negros na comunidade, na Rasa a Igreja Católica é a igreja dos brancos e a Igreja Evangélica é dos negros4. Em frente a referida praça há uma travessa e no seu fim se encontra a casa da Dona Eva, a matriarca da comunidade que atualmente possui 103 anos. É este local o ponto de encontro do grupo de pesquisa com a comunidade. Dona Eva, além de mãe de Dona Uia, também é mãe de mais 11 filhos, incluindo o Sr. Valmir, conhecido na região como Valmir da Rasa, justamente por ser um “filho da rasa” como costumam dizer, o Valmir da Rasa foi vereador do Município de Armação dos Búzios. Com o tempo, a equipe de pesquisa entendeu que na realidade a família da D. Uia e demais membros do quilombo foram expulsos das terras que originalmente ocupavam. Por meio de relatos constatou-se que o pai da D. Uia havia comprado “uma terra”, na qual “colocou” toda a sua família. Outros relatos comuns a diversos membros denotam uma nuance muito específica da Rasa, apesar 4 Esse elemento é bem característico da Rasa e embora mereça maior desenvolvimento da pesquisa de campo para que possamos tecer uma análise mais cuidadosa, pode-se dizer que a Igreja Evangélica é um mecanismo aglutinador dos membros da comunidade, funcionando como chave na própria composição da identidade e dos critérios de pertença do grupo. 12 de agregar características de comunidade urbana, ainda possui memórias de comunidade rural, um relato constante é o de que as famílias fabricavam farinha na casa de farinha e possuíam roça, levando uma parte da produção para vender em Cabo Frio. A memória rural das casas de farinha ou das chamadas cozinhas de farinha, está presente na narrativa de todos, D. Uia nos conta que era comum toda a comunidade se envolver para colher a mandioca e depois ir para a cozinha de farinha. Segundo ela, aconteciam “paqueras” nas cozinhas de farinha, pois os donos chamavam as moças para ralar a mandioca e os rapazes que iam “paquerar” acabavam trabalhando para rodar a roda, as casas de farinha eram um espaço de convívio social e nas épocas frias serviam de aquecedor para todos, D. Uia conta que a última foi desfeita à alguns anos. Na Rasa há mais ou menos 40 anos, não havia estradas, nem ônibus e o transporte era feito “no lombo de cavalos ou a pé”. Conforme relata D. Ana: “Nem estrada não tinha, só tinha uma picada, de andar com o cavalo se viesse um carro o cavalo tinha que ir pro meio do mato pra deixar o carro passar, (…) tudo que nós tínhamos que fazer aqui nós íamos pra Cabo Frio, ia comprar comida, fazenda pra fazer roupa, remédio... saía as 4 horas da manhã pra ir pra Cabo Frio, os pequenos não vendiam nada, mas quem tinha animal vendia.” Foi apenas na década de 1970 que o bairro da Rasa, onde se localiza a comunidade quilombola, começou de fato o processo de urbanização com a abertura de ruas e instalação de iluminação pública nas ruas transversais e internas, embora a prestação de serviços públicos ainda seja precária. Nesse mesmo período várias famílias foram expulsas de terrenos que ficavam próximos à praia e ao Mangue de Pedra, para a construção da Reserva Biológica da Marinha – conforme já mencionado, esse território era utilizado pelos quilombolas como reserva de alimentos: caranguejos, frutos e pequenos animais que fazem parte da fauna e flora da área. Na década de 90, apesar da intensificação do processo de urbanização, ainda existiam alguns roçados, base alimentar dessa população até então, os roçados eram divididos entre as famílias, mas todos ajudavam no plantio e colheita. Conforme coloca O’Dwyer: A utilização dessas áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade. (O’Dwyer, 2002, p.19) Segundo relatos, foi nesse período que algumas famílias chegaram à Rasa se dizendo donas das terras em que a comunidade que tradicionalmente as ocupava, realizava o plantio dos seus roçados. Essas famílias vinham de uma região do Rio de Janeiro conhecida como baixada fluminense5 e a sua chegada iniciou inúmeras desavenças e até mesmo ameaças de morte de 5 Compreende os municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford roxo, 13 lideranças da comunidade quilombola. Nesse contexto repleto de inúmeros problemas territoriais, o Sr. Valmir, irmão de D. Uia e filho de D. Eva, frequenta a graduação em Direito junto com um primo de D. Uia que era pastor na Igreja Assembléia de Deus da comunidade, a partir do curso eles se depararam com discussões jurídicas acerca da titulação de terras para as Comunidades Remanescentes de Quilombo. Em 1995 surge dessa extensa rede familiar a Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo da Rasa, que reivindicou a Fundação Cultural Palmares 6 o reconhecimento enquanto comunidade quilombola e ao INCRA7 a titulação das terras das quais foram expulsos. Até o término deste trabalho o Quilombo da Rasa ainda estava aguardando a demarcação de seu território. O processo de construção identitária se compõe em meio às mobilizações políticas organizadas pelo próprio grupo em situações de conflito, não considerando o quilombo como uma composição histórica do passado, mas sim como esse grupo constrói e mobiliza, no presente, o elemento político-organizativo, que une e busca circunstâncias para reprodução econômica e cultural do grupo. Dessa forma, a própria apreensão da identidade étnica é compreendida nesse contexto, no sentido de uma existência coletiva mobilizada na demanda por acesso a direitos. Além disso, a composição da identidade dessa comunidade está intrinsecamente relacionada à memória de um passado de escravidão que é compartilhada pelos membros da comunidade, que se compreendem como parentes, como membros de uma grande família. Em um dos relatos gravados com a Sra. Ilma, prima de Dona Uia, todos na Rasa de alguma forma são parentes: “Tanto os negros quanto os brancos só casavam com parentes, porquê não tinha como casar com pessoas de outros lugares, aqui todo mundo, todos os negros são parentes.” Essa fala da Dona Ilma é reiterada por um relato obtido por O´Dwyer: “Aqui na Rasa, a periferia, ficou exatamente o povo de cor negra, é tudo uma família, casou primo com prima, essa coisa toda e foi gerando uma família.”, outro relato confirma: “Esse parentesco que a gente tem … quase todo mundo da Rasa tem um grau forte de parentesco. E a gente começa a discutir com os parentes, com os mais velhos como é que se deu essa coisa, como é que foi isso... Isso foi em virtude da família da minha avó, que se uniu á família do meu pai, eles fizeram uma família só. Um desses irmãos da minha avó tinha mais de dez mulheres, acho que era o Justino, o irmão da Donária. Daí se formou esse grau forte de parentesco.” (O´Dwyer, p. 4, 1998) A configuração da memória da comunidade extraída principalmente dos relatos dos mais Queimados e Mesquita Criada em 1988, a Fundação Cultural Palmares é uma instituição pública vinculada ao Ministério da Cultura, fruto do movimento negro brasileiro, a Fundação Cultural Palmares foi o primeiro órgão federal criado para promover a preservação, a proteção e a disseminação da cultura negra. 7 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária 6 14 idosos e da atualização desses relatos nas narrativas dos mais jovens está bastante alicerçada no que poderíamos chamar de espécies de pontos particulares que compõe lugares de memória, como exemplo cabe referir novamente a Praia Gorda e a Ponta do Pai Vitório. Conforme já mencionado, a Praia Gorda era o local no qual os escravos que conseguiam fugir dos navios ou da fazenda Campos Novos, se alimentavam e se refugiavam por ser de difícil acesso e protegido por um Mangue de Pedra e um morro, e a Ponta do Pai Vitório era um porto para desembarque dos navios negreiros, segundo relatos há alguns anos havia um único pau da ponte que serviu de acesso dos navios à terra firme. A memória, no sentido aqui abordado, reflete muito a memória subterrânea explicitada por Michael Pollak no texto Memória, esquecimento, silêncio (1989). Aqui não estamos nos referindo a uma memória esquecida de um passado de sofrimento, mas sim a uma memória latente que é silenciada e que emerge em momentos de crise, contrapondo-se a uma memória coletiva ou oficial, como a chamada memória nacional, apresentada por Halbwachs como a forma mais completa de memória coletiva. Reconhecemos a importância de estudos como o de Halbwachs em relação a memória coletiva e ao entendimento de que o foco originário dos pontos de referência necessários para construção do passado se encontram na sociedade. O autor destaca desde a necessidade de se compreender as funções “positivas” da memória (como as funções de continuidade, de coesão interna e de defesa das fronteiras comuns ao grupo) até mesmo o funcionamento do trabalho de enquadramento que realiza um controle da memória coletiva, compondo memórias oficiais que poderão funcionar como elementos de perpetuação do tecido social e das estruturas institucionais da sociedade. Tais elementos também devem ser analisados, no entanto, queremos pensar em conjunto com Pollak, naquela memória oculta, ilegítima, tão clandestina quanto os navios que aportavam na costa brasileira durante os séculos em que foi perpetuada a escravidão, mesmo quando já era proibido o tráfico negreiro. Segundo o autor, tais fenômenos consistem: “[...] muito mais na irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de uma memória da dominação e de sofrimentos que jamais puderam se exprimir publicamente.” Por isso essa memória se deslinda em momentos de crise, mas também pode ser desvelada pela história oral, pelos relatos das memórias individuais ocultadas nos subterrâneos das relações sociais. (Pollak, 1989, p. 5) O autor separa, por meio de uma fronteira entre o dizível e o indizível, uma memória coletiva organizada, oficial, de uma memória coletiva subterrânea, da sociedade civil dominada, de grupos específicos que se encontram às margens daquilo que é relativo à maioria ou daquilo que o Estado quer pôr em voga. Tal limite separa aquilo que pode ser dito, pronunciado, daquilo que não pode, aclarando como essas lembranças (dolorosas, proibidas, indizíveis e vergonhosas) mesmo 15 quando são estranhamente cultivadas no próprio silêncio, podem funcionar como ferramenta de oposição à memória coletiva oficial, nesse sentido: O longo silencio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizade, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. (POLLAK, 1989, p.5) Além de se colocar como forma de resistência, o silêncio muitas vezes é utilizado como ferramenta pelas vítimas para poder conviver com os outros membros da sociedade que estiveram de alguma maneira, passivos ou omissos ao trauma sofrido, ou seja, pode funcionar como uma forma de se continuar vivendo. O mais importante aqui é verificar como essa memória de sofrimento, dominação e angústias, enquanto irrupção de ressentimentos que se aglomeram no decorrer do tempo, não pode ser controlada “pelos tabus da memória oficial”, dessa ruptura emergem inúmeras reivindicações que invadem a esfera pública e que são irrefreáveis. É assim que a memória subterrânea dos negros da Rasa acaba emergindo por meio da história oral narrada pelos membros do grupo, ela compõe memória de sofrimento, de dor, de vergonha, que é ocultada e por muito tempo permanece silenciada, latente, mas que é acionada em torno da confecção de estratégias de sobrevivência nas lutas políticas. 3. IDENTIDADE, ETNICIDADE E COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO NO BRASIL Entendemos que a chave para compreender a constituição da identidade na comunidade quilombola da Rasa pode ser forjada a partir dos elementos da memória e da identidade étnica, compreendendo como esses componentes são acionados pelo próprio grupo em processos de autorrepresentação e constituição de critérios político-organizativos para mobilização de lutas, especialmente a luta pela efetividade das garantias de direitos constitucionais. Em consonância com Almeida8, acreditamos que é necessário discutir o que é o quilombo na atualidade, apreendendo como ele ganha forma e nuance no cenário de definições jurídicas cristalizadas desde o século XVIII, com sentidos reproduzidos acriticamente, nesse sentido, devemos compor as matrizes do significado de quilombo e esclarecer a extensão de seus mecanismos de interpretação. Até o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 fixar a garantia territorial para comunidades remanescentes de quilombos, houve um caminho de lutas e reivindicações dos movimentos sociais que antecederam a Assembléia 8 Alfredo Wagner Berno de Almeida compila diversos textos sob a rubrica de Quilombos e as novas etnias (2011) onde aborda problemas de grande relevância relativos às comunidades tradicionais e às terras tradicionalmente por elas ocupadas. 16 Constituinte e ganharam força com a promulgação da Carta Federal Brasileira. Algumas categorias básicas utilizadas pelos órgãos competentes para pensar a estrutura agrária no Brasil, como estabelecimento e imóvel rural, não contemplavam situações específicas, como usos não individualizados da terra, ou as chamadas “terras de uso comum” que em grande parte afetam as chamadas comunidades tradicionais. Em1985, a partir das pressões do movimento camponês, tais situações passaram a denominar-se “ocupações especiais9” pelo Cadastro de Glebas do INCRA. Tal atitude política, no entanto, não resolve os problemas das demandas relacionadas e em 1987 há um arrefecimento dos movimentos sociais com certo fortalecimento dos interesses ruralistas, especialmente por motivos políticos e em razão da atuação de frágeis intermediários nos conflitos – como as Comissões Agrárias. Tal composição é importante para que possamos vislumbrar o nascedouro do referido artigo do ADCT e analisá-lo criticamente, atentando para importância tanto da recuperação das lutas camponesas pós-Constituição de 1988, quanto da organização de associações voluntárias e identidades coletivas de grupos específicos nas lutas por mecanismos de efetividade do dispositivo constitucional, em especial a formação de um movimento social quilombola nacional em 1994. Dessa forma, situações materiais de conflito tornam visíveis os limites do artigo, levantando inúmeros problemas relacionados a definições e interpretações que envolvem essa norma constitucional. Para Almeida, as discussões sobre a noção de quilombo abrangem os termos de uma categoria histórica que é ao mesmo tempo jurídica e se constitui no plano de situações sociais concretas, isso exige uma ruptura com antigas definições e interpretações, bem como, uma construção diferenciada, que não seja mais marcada por visões congeladas no tempo. Isso requer uma mudança nas concepções “frigorificadas” e nos padrões “arqueológicos”, a partir dos quais ainda se busca uma espécie de escavação na qual podem ser encontrados “[...] indícios materiais e onde estão as marcas ruiniformes da ancianidade da ocupação.” (Almeida, 2011, p. 69) O referido autor apresenta uma concepção jurídico-formal de quilombo que permaneceu, de certo modo, congelada ao longo do tempo, conceito que vem desde 174010, compõe a seguinte visão acerca de quilombo: “[...] toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte 9 Segundo Almeida as “ocupações especiais” compunham aquelas condições que não se achavam contempladas pelo domínio individual, nem estavam adequadas às formas de propriedade previstas, tais quais a condominial, a sociedade anônima, limitada e cooperativa, designavam principalmente as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de índio, “[...] tal como definidas e acatadas pelos próprios grupos sociais, que estavam classificados em zonas críticas de tensão social e conflito.” (2011, p. 58). 10 Essa compreensão configurou elementos básicos que se mantiveram ao longo do tempo, marcando as disposições e disciplinas legais do Período Colonial – ainda que no Brasil não houvesse um “Código Negro” com normas compiladas que exercesse a disciplina dos escravos, conforme havia em outros países onde se fazia presente o sistema escravocrata. 17 despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles. (Conselho Ultramarino, 1740)” (Almeida, 2011, p. 59). Faz-se necessário realizar um corte, uma ruptura com os elementos que compõe esses conceitos solidificados, modificando a forma de significar o quilombo, Almeida acentua ainda que no Período Republicano pesa nas constituições o silêncio sobre essa questão, como se com a abolição da escravatura os problemas relacionados aos quilombos fossem apagados da realidade, simplesmente não possuíssem mais motivos para existir. Nesse sentido, a redefinição de quilombo precisa ser observada na contemporaneidade a partir do contexto de lutas sociais do movimento quilombola em torno de reconhecimento, especialmente a partir das demandas pela operacionalização efetiva do dispositivo constitucional, por isso mesmo faz-se necessário realizar rupturas com as referidas acepções “frigorificadas” ou “escavações arqueológicas”, em busca da afirmação da identidade étnica. Isso quer dizer que também o referido dispositivo fixador de garantias territoriais deve ser analisado criticamente, desde que surge considerando a existência do quilombo como aquela parcela “remanescente” ou “sobrevivente” do que é residual, como aquela fagulha de algo que já se extinguiu ou está prestes a se extinguir. Dessa forma, deve-se observar atentamente e em conexão, elementos ao mesmo tempo relacionados à compreensão e esclarecimento de caracteres políticos que podem operacionalizar e mediar situações em constante transformação, bem como, noções de identidade étnica que abarquem a compreensão do quilombo. A redefinição de quilombo, tal como colocada hoje pelos que através dele se autorrepresentam, estabelece uma clivagem político-organizativa face a estes intérpretes consagrados. Os seus elementos contrastantes não se encontram no fator racial. A mobilização étnica apóia-se numa expectativa de direitos sustentada, por sua vez, numa identidade cultural que não tem sua razão de ser na “miscigenação”. (ALMEIDA, 2011, p. 87) Para pensar os problemas apresentados e a comunidade quilombola da Rasa precisamos nos mover dentro de uma teoria da etnicidade que privilegie os processos de interação entre os grupos étnicos, uma teoria que se diferencie tanto de uma posição mais tradicional, em que raça identifica-se com cultura e com uma língua, quanto da condição em que a sociedade corresponde a uma unidade que “rejeita ou discrimina outros” (Barth, 2000, p. 28). Tais posturas já vinham sendo desenvolvidas por autores como Leach e Gluckman, mas tomaremos como ponto de partida a obra de Fredrick Barth para pensar menos por meio de essencialismos culturais ou biológicos, que tecem esses grupos como formas culturais e sociais relativamente isoladas e mais por meio de suas interações através de processos de exclusão e inclusão que demarcam os limites dos grupos. Levaremos em consideração a autoatribuição e os “sinais diacríticos” como marcadores das diferenças que os próprios atores sociais consideram relevantes significativas nos critérios de pertença de cada grupo. 18 Essa compreensão que se contrapõe a visões preconcebidas – principalmente a respeito de quais fatores são significativos para continuidade e forma das unidades étnicas no tempo – é imprescindível para que possamos pensar comunidades quilombolas, com todas as nuances que se apresentam atualmente, ao levarmos em consideração os critérios de pertença estabelecidos pelo próprio grupo podemos compreender que apesar de não viver isoladamente, o grupo apresenta e mantém características próprias que definem limites em relação a outros grupos. Pode-se dizer que os grupos étnicos compõem categorias utilizadas pelos próprios atores para imputar, identificar o grupo e organizar as interações, seguindo essa linha de raciocínio, a autoatribuição consiste em elemento de elevada relevância, dessa forma: A autoatribuição de uma categoria é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica, mais geral, determinada presumivelmente por sua origem e circunstâncias de conformação. Nesse sentido organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação, usam identidade étnica para se categoriza e categorizar os outros, passam a formar grupos étnicos. (BARTH, 2000, p. 32) Barth estava com a razão quando mencionou que as categorias étnicas proporcionam uma espécie de “recipiente organizacional que pode receber conteúdo em diferentes quantidades e formas nos diversos sistemas socioculturais”. (Barth, 2000, p. 33). Isso implica em uma ampliação do campo para experiências etnográficas e comparativas, assim, menos do que as chamadas “diferenças objetivas” colocadas muitas vezes de “fora para dentro” serão levados em consideração os fatores socialmente relevantes determinados pelo próprio grupo para estabelecer o diagnóstico do pertencimento, sem deixar de observar que os elementos culturais que demarcam as fronteiras11 podem se modificar, transmutando inclusive caracteres culturais e as formas de organização do grupo. Segundo Catarino, tais componentes marcadores de diferença e autoatribuição agregam identidade étnica e mecanismos de operacionalização de lutas políticas: As definições podem servir de instrumento de legitimação das posições assumidas no campo propriamente político, mas, como numa via de mão dupla, a emergência de uma identidade étnica “remanescente de quilombo”, referida a uma origem comum presumida de grupos que orientam suas ações pela aplicação do preceito constitucional (artigo 68 do ADCT), tem igualmente fomentado debates de natureza teórica e metodológica no campo da antropologia praticada não apenas no Brasil. (O’Dwyer, 2005, p. 95) No caso das comunidades quilombolas os caracteres são marcados principalmente por uma origem comum e constituição no processo escravista, na comunidade da Rasa, essa origem comum se faz fortemente presente nos relatos dos membros do grupo que rememoram uma “grande família” 11 Para Barth além de implicar uma organização do comportamento e das relações sociais, a fronteira étnica “[…] define o grupo e não o conteúdo cultural por ela delimitado. As fronteiras sobre as quais devemos concentrar nossa atenção são evidentemente fronteiras sociais, ainda que possam ter contrapartida territorial. Se um grupo mantém sua identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existência de critérios para determinação do pertencimento, assim como maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão. (Barth, 2000, p. 34) 19 com ascendência escravocrata, que não deixa de constituir-se enquanto comunidade remanescente de quilombo, por meio de um direcionamento ao passado, mas não aquele passado de uma historiografia tradicional e sim o de uma memória coletiva que constitui o passado a partir dos relatos do grupo, cujos membros não deixam de caracterizar elementos significativos, ainda que os processos de interação desse grupo tenham modificado ao longo do tempo suas formas de organização, agregando elementos que não possuíam anteriormente. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao apresentar o panorama histórico e sociológico do contexto no qual o Quilombo da Rasa está inserido, bem como a perspectiva teórica e também política por meio da qual é possível alcançar o problema da identidade étnica do grupo, buscamos manifestar alguns elementos do processo de composição da identidade na Comunidade Quilombola da Rasa. Processo que se traduz em um movimento contínuo de autoatribuição e reconhecimento que se dá a partir da constituição de critérios político-organizativos e da ressemantização de sentidos frigorificados. A memória subterrânea e silenciada de um passado de cativeiro é compartilhada e emerge junto com laços de solidariedade e valores comuns com os quais se identificam os membros dessa grande família que é a Rasa. Essa memória se combina a identidade étnica desse grupo com caracteres muito próprios e é acionada em um contexto de conflitos, mobilizações políticas e lutas por direitos. Levantamos aqui a necessidade de se observar o presente dessas relações, de como está se organizando o movimento quilombola na atualidade e como podem ser pensados mecanismos para operacionalizar as garantias que se traduzem do reconhecimento dessa afirmação étnica. Por isso a autoatribuição, a definição dos critérios de pertença e de caracteres diferenciadores por parte do próprio grupo se faz de grande relevância para compreender a Rasa, que compõe a sua identidade enquanto comunidade quilombola a partir de uma religiosidade na Igreja Evangélica, reelaborando práticas, tradições e constituindo seus elementos de pertença étnica com base na religiosidade mesma da Igreja catalisadora da união do grupo. Esse e tantos outros elementos fazem desse trabalho uma jornada com uma composição única de significados e lugares de memória, de resistência e luta descarnada nas relações de força desse fenômeno de múltiplas dimensões que é a Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa. REFERÊNCIAS: ALMEIDA, Alfredo W. B de. Os Quilombos e as Novas Etnias, Manaus: UEA Edições, 2011; ARRUTI, José Maurício Andion. Relatório parcial de caracterização da Comunidade Negra das Terras de Preto Forro. Rio de Janeiro, 2002; BARTH, Fredrik, O guru, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro: Contra 20 Capa Livraria, 2000; DALMASO, Flávia Freire. Comunidade Quilombola de Botafogo e Caveira: Identidade Étnica e Posse de Terra. Niterói, 2005; MELLO, Marcelo Moura. Reminiscências dos quilombos: territórios da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome, 2012; O’DWYER, Eliane Cantarino. Os Quilombos e a prática profissional dos antropólogos In O’Dwyer, Eliane Cantarino (org). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2002; _______________________. Os Quilombos e as Fronteiras da antropologia. In Antropolítica 19. Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. Niterói. 2. sem. 2005; ______________________. Os negros da Rasa: Relatório de identificação sobre a comunidade negra da Rasa, de acordo com o artigo 68 ADCTCF – CF/1988. Convênio Fundação Cultural Palmares – Minc – ITERJ; P. Poutignat & J. Streiff-Fenart (orgs.). Teorias da Identidade. São Paulo, UNESP, 1998; RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: narrativa e identidade negra no antigo Sudeste cafeeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 21 O CICLO DE 2012 E A RESISTÊNCIA CULTURAL, ESPIRITUAL E POLÍTICA DOS MAIAS CONTEMPORÂNEOS Thiago José Bezerra Cavalcanti1 RESUMO Desde os anos 90, o governo da Guatemala viu-se obrigado a acolher cada vez mais as populações indígenas, ciclo cujo início remonta à "renascença maia" que resgatou e unificou politicamente a antiga identidade indigena em torno de um objetivo político comum contra a ditadura e a guerra civil. Graças a isto veio o reconhecimento de uma identidade nacional pluriétnica. Entretanto, 16 anos após a assinatura do acordo de paz, observamos em trabalho etnográfico que, para muitos indígenas, a identidade maia tem sido bastante deturpada pelo Estado e pela burguesia indígena aliada a ele, a mesma que constitui uma liderança "maia" forjada. A venda do ciclo de 2012, através das relações internacionais, como oportunidade turística única “antes do fim do mundo”, coloca em risco o patrimônio maia material e imaterial, tanto antigo quanto contemporâneo. O objetivo deste trabalho é apresentar às discussões acadêmicas brasileiras as questões que envolvem politicamente o ciclo de 2012, os indígenas e o Estado moderno da Guatemala. De que maneira o ciclo de 2012 pode ser realmente importante para a compreensão dos maias de hoje? Almejamos contextualizar tanto a situação do Estado perante os maias quanto as demandas e denúncias políticas dos indígenas pela construção de uma democracia amparada na educação e no direito consuetudinários, caminhos estes trilhados de maneira independente por centenas de organizações indígenas autônomas. Palavras-chave: maia, maianismo, identidades, política, calendário. INTRODUÇÃO Este ensaio tem por objetivo apresentar os estudos maianistas, especialmente no que se refere ao trabalho de campo etnográfico, e que pode ser interessante para aqueles que estudam calendário, religião, política e ritual, na medida em que botam o dedo na ferida para tentar tratar sobriamente todas as coisas relacionadas ao calendário ritual maia, que na verdade é um grande fato social mesoamericano. Como falo de resistências maias, meu principal interesse desta vez é situar o contexto político e também urbano, almejando pontuar informações importantes para um etnógrafo. Falo, aqui, de aspectos que apresentaram-se a mim em minha última viagem à Guatemala, em janeiro de 2012. Como tenho apreendido cada vez mais, teorias e métodos são aqueles definidos pelo campo, e não qualquer espécie de antropologia clássica engessada como solução para a etnografia. Calhou de minha pesquisa estar em grande medida relacionada à dissertação de 1 Graduando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Contato: [email protected]. 22 mestrado de José Roberto Morales Sic (FLACSO Guatemala), tendo em vista que tal etnografia reflete e complementa muito do que eu próprio observei em campo. A Guatemala é um lugar particular a se pensar, por isso apresento a comunicação em forma de ensaio, buscando caminhos alternativos para organizar esse próprio campo de pesquisas localmente e também suscitar debates menos academicistas e mais próximos aos nativos, como penso as ciências sociais. CONHECENDO O CAMPO Há muita diversidade étnica entre os maias, e isto remonta ao próprio passado. Os maias nunca constituíram um "império", ao contrário de mexicas e incas. Ocorriam alianças locais, regionais, trocas e compartilhamento da escrita hieroglífica entre etnias rivais no passado. Contudo, devemos lembrar que o tronco linguístico maia é muito diversificado, e na Guatemala existem atualmente 22 línguas, sendo elas (em ordem alfabética): Achi’ Akateka Awakateka Chalchiteka Ch’orti’ Chuj Itza’ Ixil Jakalteka Kaqchikel K´iche´ Mam Mopan Poqomam Poqomchi’ Q’anjob’al Q'eqchi' Sakapulteka Sipakapense Tektiteka Tz’utujil Uspanteka 23 Cada língua corresponde a uma etnia ou uma "comunidade linguística", nome que tomou cada grupo perante a Academia de Lenguas Mayas de Guatemala (ALMG). Existem inúmeros marcadores de diferença entre as etnias, dentre os quais podemos destacar as técnicas e símbolos atrelados às vestes - que pode variar mesmo dentro de uma mesma etnia - e adaptações particulares dos calendários, por exemplo uma data de ano novo diferente. Tendo em vista que a Guatemala é um país pequeno, situado justamente onde os indígenas encontraram refúgio para resistir aos invasores espanhois até o século XX, a maioria da população sempre foi indígena. Atualmente, ainda considera-se que os indígenas são maioria, ao menos geneticamente, e eles têm bastante peso para a própria construção da identidade nacional guatemalteca. Entretanto, os maias do passado têm peso para o governo e a população da Guatemala, já sobre os de hoje não se poderia dizer o mesmo. Boa parte da população guatemalteca resiste e contexta qualquer tipo de identidade maia contemporânea, por diversos fatores. Em primeiro lugar, a identidade maia é uma (re)construção fortalecida especialmente enquanto uma identidade que unia as etnias ou comunidades linguísticas e propiciava uma resistência muito mais coesa à ditadura militar naquele país. Contudo, assim como observamos no Brasil, tão logo a ditadura foi derrubada houve uma grande fragmentação na luta, ou no que se convencionaria chamar de "esquerda" por ter combatido as forças de repressão do Estado. Mas na Guatemala a situação seria mais complicada, pois o peso dos indígenas nos processos históricos recentes faz com que a política não se polarize apenas entre três ou quatro partidos pra "inglês" ver, como no Brasil, mas sim que se fragmenta tanto entre as diferentes comunidades linguísticas quanto internamente, a partir do momento em que observamos a emersão de um novo sujeito que se autoidentifica "maia", e cuja prática política é mais articulada junto ao Estado e ao capital. De fato, o acordo de paz de 1996 oficializa o Estado da Guatemala como pluriétnico, multicultural, etc. Isto, claro, para que se possa legitimar minimamente na prática política, o respeito ao direito consuetudinário maia e a concessão de espaço e cargos de liderança legitimados pelo Estado. Torna-se evidente aqui, para mim, um aparelhamento institucional. O Estado aproximou-se de determinadas lideranças e as legitimou. Como a situação política era e continua sendo absolutamente fragmentada, encontrei muitas críticas a essas lideranças que, para vários outros nativos maias, são definidas como um engano, uma conspiração entre o governo e quem se vendeu para lucrar e folclorizar num mau sentido. Essa é a segunda e forte razão para que o povo guatemalteco veja todos que se dizem "maias" hoje com descrença, e a institucionalização políticoreligiosa que a segue. 24 DUAS VERTENTES DE POLÍTICA MAIA? Observei, no mínimo, uma importante dicotomia, dois grupos políticos marcantes entre os maias atualmente. De um lado, os maias "institucionais", que têm algum tipo de relação com o Estado, desde os líderes que estão no próprio palácio do governo (Embajada de los pueblos indígenas de Guatemala) ou que comandam as principais associações de sacerdotes maias, como são chamados os especialistas em calendário maia. Em algumas dessas instituições, é possível pagar por uma consulta com uma autoridade espiritual maia, bem como se tornou mais fácil alcançar o rito de passagem que permite a um estrangeiro ser considerado sacerdote maia no círculo institucional, com a possibilidade de serem realizadas espécies de "cursos intensivos" com esse fim. Estes maias das instituições foram considerados por Morales Sic como algo que se poderia definir a partir da categoria analítica de "nova vertente de ajq'ijab'"2 (FONTE FLACSO p. 83), com a qual eu não teria razões para discordar até agora. O campo apontou-me conclusões que vão pelo mesmo caminho. Do outro lado, aquilo que convém chamar de resistência maia. Com o fim da opressão direta, da ditadura e da guerra civil, fortes grupos reafirmaram seu compromisso com seus ancestrais. Isto significou uma virada na história maia recente, pois de fato os maias puderam ser o que eles querem ser, estando livres a princípio tanto do sincretismo com o catolicismo quanto da opressão militar. Essa resistência mostra-se preocupada em resguardar a educação maia, com o exercício do direito consuetudinário num sentido amplo. Isto significa dizer, também, que estão preocupados em resguardar as categorias nativas associadas à cosmovisão, que é considerada base da educação maia e ajuda muito na compreensão dos calendários e dos rituais diários que eles marcam. Ao invés de sacerdotes maias, nesse caso usa-se a categoria nativa: ajq'ij. Tentando traduzir da melhor maneira tal categoria, pode-se dizer que aj é um prefixo que denota ocupação e q'ij significa "dia" ou "sol". Ou seja, ajq'ij significa "aquele que se ocupa com os dias", e tal ocupação denota um profundo estudo e conhecimento para manejar. O que se questiona hoje é justamente até onde a função social de ajq'ij foi resignificada pelos novos ajq'ijab', isto é, aqueles das instituições que de fato trouxeram um novo tratamento à função milenar, que antes da invasão era destinada a quem dominava religião, matemática e astronomia (que, obviamente, neste caso só são necessariamente três tipos de conhecimento separado a partir de um ponto de vista eurocêntrico e academicista). Os novos ajq'ijab' parecem ter construído uma identidade maia muito forte, enquanto que os nativos mantêm suas identidades étnicas e consequentemente seus inúmeros marcadores da diferença em relação a outras comunidades e outras etnias. Desta maneira, os novos ajq'ijab' surgem como representantes do maianismo, que poderíamos definir como ideologia político2 Plural de ajq'ij, categoria maia K'iche' que designa o nativo especialista em calendários. 25 religiosa "maia". Essa nova vertente visa tornar mais coesa uma identidade maia de fato, e ao mesmo tempo em que busca inspirações em tradições fora da rede social indígena - principalmente as novas tradições new age -, parece querer suprimir as especificidades étnicas e generalizar as coisas como "maias". Problemas do campo A dose de sincretismo e diversidade sempre é lembrada: as lideranças que o Estado legitima clamam um largo passado dentro de sua tradição familiar, entretanto hoje, aos olhos das outras tradições que consultei, essa tradição é vista como uma coisa vendida, inventada, manipulada: sincretizada, aculturada. É fato que alguns indígenas tiveram sempre mais proximidade ao invasor; prova disto são os próprios textos escritos na Nova Espanha em língua maia readaptada pela adoção dos símbolos latinos, que terminaram de matar a escrita hieroglífica maia antiga entre os nativos. Portanto, minha percepção alinha-se aos nativos: os "novos" ajq'ijab' podem ser justamente aqueles de larga tradição, mas que escolheram um novo caminho, junto ao Estado e outras ideias new age com as quais muitas tradições não concordam como, por exemplo, dizer que os quatro precursores dos maias - quatro primeiros homens modelados com perfeição pelos criadores - vieram de outro planeta. E isto apenas dificulta ainda mais. De fato, as tradições parecem ter tomado caminhos familiares, justamente pois foi dentro de casa e da família que conseguiu se manter algo sem que os invasores . Isso implica em muitas tradições diferentes, algumas mais e outras menos influenciadas pelo pensamento do invasor, outras alinhadas a ideologias new age e nossas preferidas, aquelas que mantém as categorias nativas nos dias de hoje e estuda as categorias do passado, além de reviver sua história através do drama e dos rituais em todos os dias do calendário. A esses, portanto, escolho chamar de nativos, enquanto que aos outros ajq'ijab' sou impelido à diferenciação pela categoria de "novo", ainda que sua linhagem familiar seja antiga; tal categoria se sustentaria, nestes casos, a partir da análise de que estas são tradições "novas" na medida em que sofreram influência new age. O nativo ou "maia da resistência" pode ser encarado como aquele que articula a resistência do saber local, que cumpre sua função social e ajuda seu povo a caminhar resistindo às imposições da globalização e do Estado. Este é o ajq'ij que os maias aprenderam a construir ainda mais a partir da invasão europeia. Entretanto, no passado o ajq'ij foi o "assistente" dos governantes maias, como nos mostra uma importante fonte nativa da Asociación Maya Uk'u'x B'e3. São (algumas) (d)elas (UK'U'X B'E, 3 Uk'u'x B'e significa "Caminho do Coração" em língua maia K'iche'. É interessante observar o simbolismo associado ao coração na cosmovisão não apenas maia mas mesoamericana. O coração é a fonte da racionalidade, e não o cérebro. Como se os pensamentos mais puros e filosóficos idealizados por Platão viessem do coração. O caminho do coração é, portanto, o caminho da razão, da verdade daquilo que se vive enquanto maia. 26 2010): - Conhecer os elementos rituais - Exercer a leitura do tz'ité,4 dos ossos e das conchas - Realizar as oferendas em sinal de reciprocidade com a mãe terra - Interpretar as mensagens dos astros (sem separar da astronomia) - Conhecer, retificar, controlar e sustentar os cálculos do tempo - Escrever e ensinar Pois bem. A penúltima dessas parece ser a única notoriamente observada nos dias de hoje entre os ajq'ijab'. Talvez seja algo que defina bem boa parte das tradições dos "novos" ajq'ijab'. As leituras tornaram-se mais reproduzidas na medida em que a institucionalização do saber através de livros também influencia a todos, na medida em que essa institucionalização alcança a condição de um aparelhamento da educação. Entretanto, a resistência maia também é muito ativa. No livro Aportes a la reconstrucción del liderazgo mayab', a Uk'u'x B'e deu uma aula, uma legítima contribuição ao que se propõe: o resgate do passado e a manutenção do presente maia. Neste livro, torna-se clara a posição política da associação como muito mais alinhada à resistência cultural, espiritual e política maia. Existem muitas outras produções autônomas parecidas e diferentes (interessadas mais em aspectos rituais, ou educacionais) e que podem ser analisadas sob o caráter do que é a demanda por autonomia que auxilia o entendimento da própria categoria analítica de "resistência maia". Há uma crítica nativa ao Estado, alinhada ao propósito de contextualização deste ensaio. Isto significa dizer que existem instituições que se posicionam politicamente de um lado ou de outro, não apenas junto ao Estado. Na verdade, os maias são tão fortes pois conseguiram construir, através de suas comunidades desde antes do massacre militar redes de educação local. Por isso, a Guatemala teve também de regulamentar a educação. E em relação a isto, tenho críticas que não cabem, mas mereceriam mais atenção em outro ensaio. Basta dizer que isto engessa a diversidade que existe hoje na Guatemala. Além disso, o interesse do Estado é introduzir o ensino do espanhol nas comunidades campesinas, num país que para além da capital pouco tem de urbano. Não por acaso, é justamente nessas comunidades que resistem as culturas nativas e, portanto, é interesse do Estado estar lá. A elaboração e a execução da lei de idiomas maias da Guatemala recebem críticas e mais críticas que, sendo proferidas por aqueles que romperam com o Estado e os novos - ou históricos 4 Tipo de feijão através do qual é estabelecida uma comunicação com os ancestrais. Ao invés de comido, tal feijão é sagrado e "lido" de maneira semelhante aos búzios. 27 sincretismos, só podem ser conhecidas pelo pesquisador no campo ou através de redes independentes, tendo em vista que, em pleno 2012, tudo isso continua sendo ignorado pelas grandes mídias na medida em que é ignorado pelo Estado e o capital, aliado ao interesse popular meramente superficial sobre os maias do passado e a ignorância quase completa acerca dos maias do presente. Os maias da resistência acreditam, de fato, que o Estado executa uma série de medidas que aceleram a aculturação do povo, duros e frequentes golpes de Estado que vão no caminho oposto ao que a Guatemala deveria ser: sem preconceito, sem exploração dos patrimônios maias. Até hoje, a identidade nacional guatemalteca mostrou-se um grande negócio para lucrar-se com turismo: sítios arqueológicos belíssimos e os novos sacerdotes maias em "consultórios" na capital dando exatamente a curiosidade que o turista (e o leigo) tem pelo calendário maia e as pirâmides. Chega de opressão da mídia, das identidades maias. As tradições estão sendo mostradas, mas correm o risco de cair na armadilha de institucionalizar-se, de abandonar (como já acontece em alguns casos) as tradições orais em nome de botá-las no papel e protegê-las das manipulações da oralidade. Há também o problema de que há associações de sacerdotes maias desejosas, ainda hoje, de uma unificação calendárica ampla, que sirva para ajudar a unificar a própria identidade maia em mais um aspecto e celebração ritual. O problema com isto é que determinadas tradições calendáricas (K'iche' e Kaqchikel) seriam adotadas por outras etnias de maneira aconstruir um "ano novo maia" unificado. A meu ver este é um dos mais perigosos sincretismos, e que também ser propagada através da imposição de uma escrita e o consequente abandono da tradição e da liberdade do ajq'ij. e manutenção da diversidade das tradições familiares. CATEGORIAS NATIVAS? As categorias de pensamento nativas são grande interesse meu. Seu uso embasa também a ideia de uma dicotomia política em torno da identidade maia nos dias de hoje. Enquanto a resistência maia preserva as categorias de pensamento, as instituições introduzem novas categorias no trato com a cultura maia enquanto algo unificado. Entretanto, tratam-se de categorias novas nesse contexto. Nesse contexto, as categorias maias, nas instituições, são substituídos por categorias mais populares e em espanhol. Um exemplo é uwach q'ij (rosto do seu dia), categoria K'iche' que designa o dia do seu nascimento no calendário ritual. No caso da Asociación de Sacerdotes Mayas de Guatemala, a categoria "signo", muito mais vulgarizada no "imaginário ocidental" e que esconde o rosto do dia, a identidade do calendário maia. As instituições podem, dessa maneira, fabricar categorias nativas; isto facilita o entendimento superficial - chamar, por exemplo, o dia de nascimento no calendário maia de "signo" - mas, por outro lado, se distancia do conhecimento nativo e se aproxima dos horóscopos mais vulgarizados, o 28 que reflete no mínimo uma influência eurocêntrica e que mostra-se bastante persuasiva junto aos turistas e curiosos que já fazem uma imagem bastante mística dos maias. Em último caso, a aculturação do nativo também pode impelir à tentação, de que o próprio elabore alguma resignificação de categorias analíticas da língua espanhola enquanto categorias nativas, pois isto significa um resgate, ainda que sincretizado. É bom destacar que é o próprio nativo quem fala em aculturação. Há etnocentrismo não apenas aí, por parte de quem está na resistência, quer manter a tradição e acusa o outro lado de ter sofrido uma aculturação, mas mais ainda neste outro lado, dos novos ajq'ijab', que ainda tentam articular uma "unificação" dos maias via calendários unificados. Isto parece-me outra falácia, e a lista de práticas que tentam suprimir as particularidades étnicas seria muito maior. Outra questão é aquela já levantada por Morales Sic: estamos tratando de uma nova vertente de ajq'ijab'. Em alguns casos, talvez até mesmo a maioria deles, cada ajq'ij essa nova vertente representa também uma nova tradição, alheia à resistência maia e alinhada ao maianismo (ideologia político-religiosa que sincretiza new age e maia), mas em outros casos estamos falando de uma antiga tradição que é resignificada e, em dado momento, as próprias funções sociais do ajq'ij são de fato revistas e aplicadas de novas maneiras que sabem se inserir melhor no mundo globalizado. O CICLO DE 2012 O tão falado "ciclo de 2012" maia é oriundo da conta longa. A conta longa, por sua vez, é uma adaptação da matemática à contagem de tempo que, literalmente, possibilita a contagem de ciclos infinitos. Portanto, o ciclo de 2012 não teria, de forma alguma, como corresponder a qualquer ideia de fim do mundo ou do calendário no pensamento maia. O ciclo que estaria se encerrando em 2012 é composto por 13 ciclos pik (popularmente, b'aktun), cada um deles equivalente a 144.000 dias, o que totaliza 1.872.000 dias. Existem ciclos muito maiores do que este, mas este é especial por uma razão: é o período que demora para que o fim de um pik volte a coincidir com um mesmo dia do ciclo ritual (260 dias). Aquilo que é muito pouco comentado pelos acadêmicos e que é o maior problema da conta longa é o seguinte: ao que tudo indica, a conta longa caiu em desuso a partir da virada do primeiro milênio EC (Era Comum) e teria sido de fato perdida em algum momento antes ou depois da invasão espanhola. Isto significa que a conta longa foi resgatada por acadêmicos e, sendo assim, a ideia de que o tal ciclo termina em 2012 é apenas uma entre dezenas de teorias. Não por acaso é a teoria "mais aceita", pois está em acordo com a conta do ciclo de 260 dias mantida na Guatemala nos dias de hoje. De alguma maneira que ainda ignoro, essa teoria se popularizou de tal maneira que até os 29 maias contemporâneos a legitimaram. Suspeito que o Estado e a burguesia indígena tenham participado efetivamente dessa legitimação, tendo em vista que são os que mais lucram com o "produto 2012" nos dias de hoje. Os ajq'ijab' que se mostram comprometidos com o resgate da cultura maia se sentem obrigados a reconhecer: eles não mantiveram a conta longa. Mas um ciclo grande desses é simbólico também para a resistência maia: apesar dos pesares, mesmo sendo o ciclo de 2012 algo fabricado, é também significado como uma espécie de libertação da cultura maia. Existem nativos que têm significado tal ciclo como o fim do escárnio; após o mundo não acabar, finalmente os maias terão paz e poderão vislumbrar quão sólida é sua base e sua resistência e quão promissor pode ser seu futuro. Isto significa dizer que, de fato, não há qualquer certeza sólida, sob o ponto de vista do pesquisador maianista independente, de que o ciclo termine em dezembro de 2012. Mais: significa dizer que a teoria foi naturalizada tanto por acadêmicos quanto por maias, com apoio dos Estados nacionais que, às portas do ciclo politicamente fabricado, exploram ao máximo a identidade maia como algo inerente às suas identidades nacionais, questão demasiado polêmica no que se refere à gerência dos patrimônios dos chamados povos originários, construídos tanto antes quanto após o estabelecimento de tais Estados. DUAS INSTITUIÇÕES MAIAS LIGADAS AO ESTADO Dois breves estudos de caso - duas das mais fortes instituições. Asociación de Sacerdotes Mayas de Guatemala (ASMG) Conheci o atual presidente em janeiro, na sede da associação. Há uma pedreira lá, usada com fins ritualísticos há gerações. Contudo, o sincretismo com o catolicismo é evidente. Na pessoa de seu presidente, deixou-me a impressão mais apelativa no sentido da unificação do calendário em torno do ano novo K'iche'. Fui recebido em seu "consultório". Ele negou alteridade ao termo nawal - meio termo entre uwach q'ij e signo, a categoria mais usada hoje na Guatemala e de origem náhuatl (mexicana). Defendeu a categoria signo e mostrou-se bastante persuasivo em suas explicações - ao menos foi como o vi desde meu ponto de vista como especialista em calendários maias. Existem muitos produtos, livros interessantes e até bandeiras da associação à venda. Dentre as instituições que visitei, pareceu-me a mais "aparelhada" das associações para um lado mais capitalista, turístico, folclórico em um sentido esotérico, que mais abrange a atuação do maianismo. Oxlajuj Ajpop Associação civil que engloba várias organizações de ajq'ijab'. Fui recebido por seu ancião 30 principal, que defendeu uma tradição que eu desconhecia: ano novo fixo em 21 de dezembro e o "ciclo de 2012" se encerrando em 21 de dezembro de 2012. Meu informante (que me levou até lá) concordou que a posição do ancião era demasiado etnocêntrica, pois ofendia a tradição do ano novo K'iche', como sendo algo fabricado pelos antropólogos. Ele parece ter seu fundo de razão, graças à instituição da "nova" tradição de unificação, defendida pela própria ASMG, e que ao que tudo tem indicado é de unificação "maia" enquanto reprodução de determinadas tradições K'iche' e Kaqchikel. O ancião principal da Oxlajuj Ajpop mesclou elementos mexicas (astecas) em suas explicações sobre o calendário, o que facilmente se observa enquanto sincretismo dentro da Mesoamérica. O ciclo de 260 dias é constitutivo da Mesoamérica enquanto região cultural, o que implica no fato de que centenas de etnias usaram (e dezenas ainda vivem) este calendário ritual de 260 dias. CONCLUSÕES Até o momento temos desenhado um quadro muito diverso, um verdadeiro campo minado que se apresenta tomando em conta o aspecto político-religioso que interfere diretamente no estudo linguístico das tradições e suas categorias nativas rituais e políticas, que caem em desuso graças a novas tradições e categorias que aproximam-se mais do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo existem instituições burguesas e nativas disputando o mesmo espaço estatal maia. Aqueles que chamo de maias da resistência também estão em todos os espaços, incluindo o próprio palácio do governo da Guatemala, onde também estive. O governo, naquela oportunidade, promoveu uma palestra que, para mim e os outros ajq'ijab' que conhecia na plateia, foi absolutamente desrespeitosa às tradições maias, pois falava que os maias antigos "sabiam" das teorias de mudança de DNA e da ressonância Schumman, ambos combustíveis de crenças do maianismo, isto é, de movimentos da nova era. Os antropólogos precisam correr para lá e entender melhor tudo isso. Os nativos já fazem trabalho de antropólogo às escuras, para salvar a documentação dos rituais que ainda resistem aos dias de hoje e que não sabemos se de fato continuará pela próxima geração, tendo em vista que a identidade maia é cada vez mais popularizada e o patrimônio socializado nacionalmente, na mesma medida em que os jovens são cada vez mais atraídos justamente por aquilo que traz o capital e o Estado, e passam a esconder de si próprios a língua materna. Não que os nativos não possam ser antropólogos. Eu escrevi aqui, também, como nativo. Não diria nada que achasse que um nativo não gostaria. Mas os antropólogos podem justamente ajudar, dessa maneira, enquanto espelhos da alteridade, que observam situações político-religiosas que também prejudicam seu campo, tornam-no às vezes impraticável enquanto estudo das categorias em 31 línguas indígenas. CATEGORIAS NATIVAS DE INVESTIGAÇÃO Um método descrito de investigação nativa maia (Uk'u'x B'e, 2010) tem ênfase em 10 princípios: Namay Perceber, pensar, compreender a vida dos elementos do universo e suas diferentes formas de existência, para permitir uma interação equilibrada com eles. Oj Mayib' Reafirmação e aprovação da identidade coletiva e histórica maia; propicia o resurgimento da nossa raiz, história e de nossa afirmação enquanto seres cosmogônicos. Xukulem Princípio de reciprocidade, espaço para a reflexão e análise do entorno, tratando de entender o comportamento dos seres humanos, da mãe natureza e do cosmos. Jun May Reconhecer as qualidades de cada um dos seres do cosmos e as potencialidades que eles têm, para fortalecer o trabalho coletivo. Jotay O sentigo inter-geracional. Utz' Tzij É a língua ou o discurso, e nos recorda a importância de todas as línguas e o valor da palavra. Aj Mayon Pensar grande e coletivamente através do tempo, entre os elementos do cosmos. Mayonik A ação de reflexão e concentração, a busca de respostas e compreensão do desenvolvimento do tempo e da força ou energia que tem a mãe natureza e o cosmos. 32 Tz'onoj É a recuperação de conhecimento, entendido e compreendido como um processo recíproco no qual todas as partes dão e recebem conselhos. Pixab' Reconhecimento metodológico: todo o proposto deverá passar por um processo de comprovação e validação, desde a perspectiva dos valores e princípios para crescer constantamente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAVALCANTI, Thiago José Bezerra. Calendário maia, ciclo de 2012 e nova era. Niterói: Edição do autor, 2012. Disponível em: www.calendariosagrado.org/pt. Morales Sic, José Roberto. espiritualidad en el Movimiento Maya Guatemalteco. Guatemala: FLACSO, 2004. UK'U'X B'E, Asociación Maya. Aportes a la Reconstrucción del Ligerazgo Mayab'. Chimaltenango: Uk'u'x B'e, 2010. 33 POLITIZAÇÃO NA JUSTIÇA DE CÚPULA: UMA ANÁLISE ACERCA DOS CONFLITOS INSTITUCIONAIS NA FORMAÇÃO DE LISTAS PARA A COMPOSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Alexia Soares Cunha1 Marcos Felipe Alves2 Tauat Resende3 Orientador: Delton R. S. Meirelles4 RESUMO Este artigo possui como fim analisar os conflitos institucionais existentes no processamento das listas sêxtuplas e tríplices para preenchimento de vagas de ministro no Superior Tribunal de Justiça, por meio do instituto do quinto constitucional. Para tal, será feito um estudo de um caso ocorrido em 2008/2009, ocasião em que o STJ se negou a elaborar lista tríplice a partir dos seis nomes indicados pelo Conselho Federal da OAB para preenchimento de vaga naquela Corte. Tal fato gerou controvérsias e debates acerca dos limites de atuação de cada Poder, objeto que será estudado neste trabalho. Palavras-chave: Conflitos institucionais, lista tríplice, investidura de magistrados. INTRODUÇÃO O tema da investidura dos magistrados é um dos mais relevantes quando se discute o Sistema de Justiça gerando, por vezes, controvérsias e debates acerca da nomeação dos magistrados num ambiente democrático. Nesse âmbito, o instituto do quinto constitucional constitui um rico objeto de análise, vez que figura como exceção à regra do ingresso no Poder Judiciário via concurso público e engloba em sua dinâmica um processo político que envolve diversas instituições. O presente artigo tem como objetivo analisar o procedimento constitucional de escolha dos ministros do Superior Tribunal de Justiça oriundos do chamado ‘terço constitucional’, verificando a possibilidade de conflitos institucionais durante o processamento das listas pelas entidades de 1 Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF. ([email protected]) 2 Bacharelando em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do LAFEP/UFF. Monitor da disciplina Teoria Geral do Processo. ([email protected]) 3 Bacharelando em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do LAFEP/UFF. ([email protected]) 4 Coordenador de graduação e professor adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (SPP/UFF) e do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF). Coordenador do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF). Doutor em Direito (UERJ). ([email protected]) 34 classe, Judiciário, Senado Federal e Presidência da República. Como o art. 94 c/c art. 104 da Constituição Federal estabelecem critérios para a composição das listas pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil, questiona-se a competência do Superior Tribunal de Justiça para se recusar a formar a lista tríplice, sob o fundamento regimental da ausência de maioria absoluta de votos, ainda que os candidatos indicados pela entidade de classe apresentem os requisitos objetivos do art. 94 da Constituição. Os principais questionamentos são: 1) Seria legítimo ao Superior Tribunal de Justiça utilizar-se de desembargadores convocados, sem passar pelo procedimento previsto na Constituição Federal, enquanto perdurar o conflito com a OAB ? 2) Seria possível ao STJ recusar-se a elaborar a lista tríplice ? Enquanto permanecer o impasse entre OAB e STJ, este poderá compor lista tríplice de provenientes do Ministério Público, tendo em vista o desequilíbrio entre ministros oriundos do Parquet e da advocacia? 3) Pode, ainda, o STJ funcionar com quatro Ministros a menos enquanto o conflito não é formalmente resolvido? METODOLOGIA A investigação tomará por base o estudo de caso ocorrido entre o ano de 2008 e 2009, ocasião em que o Pleno do Superior Tribunal de Justiça, em reunião realizada no dia 12 de fevereiro de 2008, rejeitou a lista de indicações da Ordem dos Advogados do Brasil para preenchimento de vaga aberta no ano passado pela aposentadoria do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro (19/09/2008). Segundo a Corte, nenhum dos indicados alcançou a maioria absoluta dos votos dos ministros do Tribunal nos três escrutínios realizados. A referida lista sêxtupla era composta pelos seguintes advogados: Roberto Gonçalves de Freitas Filho (PI), Flávio Cheim Jorge (ES), Marcelo Lavocat Galvão (DF), Orlando Maluf Haddad (SP), Cezar Roberto Bittencourt (RS) e Bruno Espiñeira Lemos (BA). Foram computados, segundo a ata da reunião, em primeiro escrutínio, 84 votos, sendo 44 em branco e 40 válidos, assim distribuídos: Flávio Cheim Jorge, 9 votos; Cezar Roberto Bitencourt, 8 votos; Orlando Maluf Haddad, 6 votos; Roberto Gonçalves Freitas Filho, 6 votos; Bruno Espiñeira Lemos, 6 votos; Marcelo Lavocat Galvão, 5 votos. No segundo escrutínio foram computados 84 votos, 48 em branco e 36 válidos, restaram assim distribuídos: Flávio Cheim Jorge, 9 votos; Cezar Roberto Bitencourt, 7 votos; Orlando Maluf Haddad, 6 votos; Marcelo Lavocat Galvão, 5 votos; Bruno Espiñeira Lemos, 5 votos; Roberto Gonçalves Freitas Filho, 4 votos. No terceiro escrutínio foram computados 84 votos, sendo 59 em branco e 25 válidos, assim distribuídos: Flávio Cheim Jorge, 7 votos; Cezar Roberto Bitencourt, 5 votos; Marcelo 35 Lavocat Galvão, 4 votos; Bruno Espiñeira Lemos, 4 votos; Roberto Gonçalves Freitas Filho, 3 votos; Orlando Maluf Haddad, 2 votos. Nas três votações, o candidato mais votado, Flávio Cheim Jorge, do Espírito Santo, recebeu apenas nove indicações no segundo escrutínio. Para ser indicado, o candidato precisa ter pelo menos 17 votos5. Em resposta à rejeição da lista, a OAB impetrou mandado de segurança no próprio STJ, tendo, no entanto, seu pedido rejeitado. Dessa decisão, a entidade recorreu ao Supremo Tribunal Federal, alegando ilegalidade e descumprimento de deveres constitucionalmente conferidos ao STJ. Além disso, inconformada com o citado ato, a OAB deixou de encaminhar outra lista sêxtupla, referente à vaga destinada à categoria dos advogados decorrente da aposentadoria do ministro Humberto Gomes de Barros. O caso começou a ser julgado pela 2ª Turma do Supremo no dia 23 de junho de 2009 e culminou com a decisão6, no dia 06 de outubro do mesmo ano, pelo reconhecimento do direito do Superior Tribunal de Justiça de recusar lista sêxtupla encaminhada pela Ordem dos Advogados do Brasil para preenchimento de vaga de Ministro do chamado terço constitucional da composição daquela Corte que cabe à categoria dos advogados. Faremos, portanto, uma análise dos argumentos jurídicos utilizados pela OAB, STJ e STF para a defesa de seus respectivos entendimentos a respeito da causa em questão. DISCUSSÃO I. Das Formas de investidura no Poder Judiciário Brasileiro O Poder Judiciário no Brasil sustenta, basicamente, quatro diferentes formas de investidura para seus magistrados. São elas: (i) o concurso público; (ii) a promoção de juízes, decorrente de uma estrutura judiciária verticalizada; (iii) a elaboração de listas para preenchimento de um quinto das vagas nos tribunais colegiados de membros oriundos do Ministério Público e da Advocacia e a nomeação política, feita por parte do Presidente da República e Governador do respectivo Estado. Fruto da ideologia democrática sustentada pela Constituição Federal de 1988, o concurso público é, notadamente, a forma de investidura mais representativa de nosso Sistema de Justiça. Fundado no princípio da isonomia formal, o concurso público de provas e títulos7 para a magistratura privilegia o conhecimento técnico-jurídico, o que se reflete nas diversas etapas do exame, de caráter escrito e oral. Para os aprovados, e consagrando o valor fundamental da independência do Judiciário, são 5 Regimento Interno do STJ. Art. 26, § 5º: “Somente constará de lista tríplice o candidato que obtiver, em primeiro ou subseqüente escrutínio, a maioria absoluta dos votos dos membros do Tribunal, observado o disposto no artigo 27, § 3º”. 6 STF. RMS 27920 / DF, Relator(a): Min. EROS GRAU, Julgamento: 06/10/2009. 7 CF, art. 93, I “Ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação” 36 asseguradas as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios 8, bem como a prerrogativa constitucional de promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e merecimento9. No que toca à aferição do merecimento, cabe salientar que a Carta Magna estabeleceu critérios objetivos para tal, como a produtividade, frequência e aproveitamento em cursos oficiais, de forma a reduzir ao máximo a subjetividade de tal decisão. A “carreirização” no modelo jurisdicional brasileiro encontra-se apenas atenuada mediante a incorporação lateral de um quinto dos juízes que devem ser oriundos, nos TRF’s, Tribunais dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, de membros do Ministério Público e da advocacia, com mais de 10 anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes10. Não obstante o art. 94 só faça menção aos tribunais acima mencionados, a regra do “quinto constitucional” é estendida, também, para os tribunais do trabalho11. Exclui-se deste mecanismo, contudo, a Justiça Eleitoral e Militar. Para o Superior Tribunal de Justiça (art. 104, parágrafo único), a regra se opera de maneira semelhante, com a ressalva de que não se trata de “quinto” (1/5), pois neste Tribunal amplia-se a reserva de vagas do MP e OAB a 1/3 das cadeiras. O procedimento se opera da seguinte maneira: os órgãos representativos da classe dos advogados e Ministério Público12 elaboram lista sêxtupla, ou seja, lista com 6 nomes que preencham os requisitos constitucionais exigidos no art. 94. Recebidas as indicações, o tribunal para o qual foram indicados elabora lista tríplice a partir da lista sêxtupla recebida. Nos 20 dias subsequentes, o Chefe do Executivo (Governador de Estado ou Presidente da República, a depender do caso) escolherá 1 dos 3 nomes para a nomeação. Nos Tribunais Superiores (STJ e TST), entretanto, antes de ocorrer a nomeação por parte do Executivo, os nomeados precisam passar por um período de sabatina no Senado Federal (que não participa do processo de escolha). O Supremo Tribunal Federal é a única Corte que sustenta a designação unicamente política de seus membros, ou seja, seus componentes são nomeados diretamente pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. 8 CF, art. 95; I, II e III. CF, art. 93, II 10 CF, art. 94 “Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. 11 “Com a promulgação da Emenda Constitucional n .45/2004, deu-se a extensão, aos tribunais do trabalho da regra ‘q ’ 94 C F .” (ADI 3.490, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 19.12.2005, DJ de 07.04.2006) 12 Na classe dos advogados, a indicação dos nomes para a lista sêxtupla cabe ao Conselho Federal e Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, conforme o art. 51 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB. Quanto à classe dos membros do MP, tal escolha cabe, em âmbito estadual (para o TJ do Estado), ao Conselho Superior do MP( art. 15,I, lei n. 8625/93) e, no âmbito do MP da União, ao Colégio de Procuradores (arts. 53, II; 94, III; e 162, III da LC 75/93). 9 37 Ainda assim, a Carta Magna estabelece requisitos necessários para tal escolha, delimitados pelo seu art. 10113. II. Dos modelos estruturais caracterizadores do Poder Judiciário Para enriquecer esta discussão acerca do tema investidura dos magistrados no sistema brasileiro, traremos à baila a classificação proposta por Eugênio Raúl Zaffaroni, em sua obra “Poder Judiciário: crises, acertos e desacertos”. Segundo a concepção do autor, existem três modelos estruturais, em torno dos quais pode ser constituído o Poder Judiciário. São eles: 1) Modelo Empírico-Primitivo : Marcadamente arbitrário, este modelo é marcado pelo domínio do Judiciário pelo poder político, ou seja, a estruturação vertical do Judiciário com a hierarquização dos juízes das instâncias inferiores em relação aos juízes das instâncias superiores e destes em relação às autoridades político-administrativas. Segundo o autor, fica claro que se opera, neste caso, um sistema de reciprocidade que desfavorece a imagem do Judiciário, tornando-o frágil, ineficaz e pouco atuante: a nomeação de um juiz pelo poder político faz com que o mesmo seja devedor de favores àquele que o nomeou. Desta forma, quem exerce o poder político pode controlar o Poder Judiciário, através da concentração de poder decisório nos órgãos de cúpula. Nas palavras de ZAFFARONI (1994, p. 119): (...) acentuou-se a tendência de aumentar e centralizar ainda mais o poder das cúpulas, quer dizer, de verticalizar mais a estrutura judiciária para melhor controlá-la. (...) O resultado foram cúpulas hierarquizadas fortes e politicamente fracas, como quiseram os executivos. É o tipo estrutural básico, adotado nos países latino-americanos que apresentam notável similitude estrutural na concepção de seus modelos judiciais. O Brasil, entretanto, rompeu com este modelo desde o Estado Novo, adotando o modelo tecno-burocrático. 2) Modelo tecno-burocrático Este modelo representa um notório avanço sobre os empíricos, sendo seu passo superior, ainda que muito formalizado. Possui como principal característica a seleção técnica “forte”, ou seja, sua rigorosa seleção para o ingresso nos quadros da magistratura, privilegiando o conhecimento técnico por intermédio da instituição de concursos públicos, forma reconhecida de democratização do acesso às vagas. As vicissitudes deste modelo são a ausência de função política e social da magistratura, que se limite a um papel unicamente técnico, a figura do juiz “asséptico”, a tendência 13 CF, art. 101 “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onzes ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de m , áv b j çã b .” 38 à burocratização carreirística, o controle de constitucionalidade com baixo nível de incidência, entre outros. Diz o autor: Não é o concurso que provoca os inconvenientes que teremos neste modelo, senão que o concurso não é acompanhado das reformas democráticas que se devem produzir para dar sequencia a uma estrutura judicial de modelo democrático-contemporâneo. (Ibidem, p.141) Em comparação com os demais modelos judiciários latino-americanos, o modelo brasileiro é o mais avançado da região, sendo praticamente o único que não corresponde à estrutura empíricoprimitiva, sendo um verdadeiro modelo tecno-burocrático, ao garantir o nível técnico de seus membros por meio do concurso público. Como indica o autor: Como se pode ver, trata-se de um sistema em que a qualidade técnica de seus membros é assegurada por concurso, cujo governo é vertical, exercido por um corpo ao qual dois terços de seus integrantes chegam por promoção e cuja principal função técnica é a unificação jurisprudencial, com amplas garantias de inamovibilidade. (Ibidem, p.125) 3) Modelo democrático-contemporâneo Fruto das transformações políticas e sociais da Europa pós-guerra, este modelo conserva a seleção técnica do anterior, mediante um melhor controle do processo seletivo. No entanto, diminuise a tendência de se atuar por inércia, sendo seu juiz de um perfil técnico politizado. Este modelo prega a horizontalização do Poder Judiciário, reduzindo sua hierarquia interna, sendo a chave disto a transferência do poder de controle interno para um órgão externo de controle. Tudo isto é chave para um magistrado mais politizado e menos preso ao formalismo. Avesso aos sistemas de promoções por “outras vias”, propõe que “os concursos abertos em todas as instâncias são a melhor garantia de imparcialidade e transparência democrática”. No âmbito da magistratura, incentiva o investimento produtivo racional, tendo como resultado a elevação da cultura jurídica para um patamar mais dinâmico. Característica marcante desta proposta de modelo se encontra nos seguinte fragmentos: A horizontalização permite ao juiz decidir sem se ater a critérios ou simpatias, antipatias, preferências, gostos ou arbitrariedades dos tribunais de segunda instância ou de cassação (...) A superação da imagem “asséptica” do juiz permite uma redefinição de sua identidade, que lhe concede maior liberdade para participar em atividades sociais e culturais, o que ajudará a sua “desguetização”, fazendo-o um partícipe mais cheio de vida social e cidadã.” (p.185) Zaffaroni ainda salienta que: O Estado de Direito será fortalecido com a tendência da forma constitucional. Na medida em que esta estrutura seja real e não se reduza a uma planificação constitucional desvirtuada por vícios instrumentais, a característica geral não pode ser outra que a de uma democracia. (p.104) Vemos, portanto, que este modelo se calca na legalidade, afastando as arbitrariedades políticas dos processos de nomeação e estabelecendo critérios de forma clara e objetiva para a concretização de uma magistratura independente e democratizada. 39 III. Aspectos relativos ao quinto constitucional O ingresso na magistratura pela via do concurso público de provas e títulos, na forma do artigo 93, I, da Magna Carta, exige que o profissional dedique-se exclusivamente aos estudos, distanciando-se da realidade social. Ainda que haja o requisito da prática jurídica, os magistrados ingressantes na carreira como juízes substitutos tendem a conviver tão somente com colegas que desempenhem a mesma função, ocasionando o distanciamento do cidadão comum, adstringindo-se à aplicação de uma justiça não condizente com a realidade social (RODRIGUES, 2008, p. 28). Nesse panorama, o quinto constitucional consiste em inovação exclusivamente brasileira, com vistas à “oxigenação” da magistratura dos tribunais de segundo grau e superiores. A inovação data da Constituição de 1934, que prelecionava: Art. 104, § 6º. Na composição dos tribunais superiores serão reservados lugares, correspondentes a um quinto do número total, para que sejam preenchidos por advogados, ou membros do Ministério Público, de notório merecimento e reputação ilibada, escolhidos em lista tríplice, organizada na forma do § 3º. Contudo, antes da previsão constitucional, a oxigenação necessária aos tribunais já era suscitada na doutrina, dentre os quais merece destaque LA GRASSERIE, ao afirmar que: “a magistratura é um corpo fechado, enrijecida pela falta de ar e de luz, condenada a uma verdadeira necrose” (LA GRASSIRIE, 1912 apud MARTINS, 2005, p. 4). A metodologia adotada no quinto constitucional brasileiro mescla dois grandes princípios de sistemas de investidura de magistrados: a carreira funcional e o velho método inglês de aproveitamento dos advogados para a magistratura (DE BARROS, 2008, p. 31). Na prática, a ascensão aos tribunais de advogados e promotores de vasta experiência satisfaz à necessidade de serem apontadas as falhas dos tribunais por aqueles que acompanham de perto o seu funcionamento, fiscalizando, incidentalmente, as instituições judiciárias e colaborando à efetivação da democratização (BOMFIM, 2008, p. 34). No aspecto principiológico, pode-se afirmar que o quinto constitucional atende, ainda, à concretização do Estado democrático de direito, tendo em vista que os componentes do Poder Judiciário são submetidos à avaliação do povo, através de seus representantes eleitos diretamente (MARTINS, 2005, p. 4), seja na forma da “sabatina”, no qual o candidato designado aos tribunais superiores é submetido ao crivo do Poder Legislativo, seja na escolha final pelo chefe do Poder Executivo. IV. Das peculiaridades procedimentais do “terço” no Superior Tribunal de Justiça Como já mencionado, o instituto do quinto constitucional é estendido ao STJ, como forma de concretizar os objetivos citados no tópico acima. Há, no entanto, apenas uma alteração matemática. Isso porque 1/3 das vagas são destinadas à Advocacia (1/6) e ao Ministério Público 40 (1/6) e não 1/5, como nos demais Tribunais. No mais, de acordo com seu regimento interno14, a votação da lista tríplice deve ocorrer com a condição de os candidatos cumprirem os requisitos constitucionais e obtiverem obtiver, em primeiro ou subsequente escrutínio, a maioria absoluta dos votos dos membros do Tribunal. Frisase, ainda, que a votação deve possuir caráter secreto e que a escolha dos nomes a constar na lista tríplice far-se-á em tantos escrutínios quantos forem necessários. Aberta a sessão, será ela transformada em conselho, para que o Tribunal aprecie aspectos gerais referentes à escolha dos candidatos, seus currículos, vida pregressa e se satisfazem os requisitos constitucionais exigidos15. V. Da Independência entre os poderes A famosa doutrina da separação dos poderes, desenvolvida por Montesquieu no livro O Espírito das Leis, possui como pedra angular a limitação do poder, de forma a concretizar um governo respeitador das liberdades. É neste âmbito que surge o sistema de “freios e contrapesos”, um verdadeiro instrumento jurídico-institucional que concretiza o princípio da divisão do exercício do poder e, sobretudo, visa a impedir a interferência, principalmente política, de um poder sobre o outro. A cláusula constitucional parâmetro para a aplicação do princípio da separação entres os poderes é, por excelência, em nosso sistema presidencialista, a da “independência e harmonia”, conforme dita o art. 2º da nossa Carta Magna.16 Nas palavras de FERRAZ (1994, p.14): Isto significa dizer que, no desdobramento constitucional do esquema de poderes, haverá um mínimo e um máximo de independência de cada órgão de poder, sob pena de se desfigurar a separação, e haverá, também, um número mínimo e um máximo de instrumentos que favoreçam o exercício harmônico dos poderes, sob pena de, inexistindo limites, um poder se sobrepor ao outro poder, ao invés de, entre eles, se formar uma atuação “de concerto”. Por esta razão, é de extrema importância que sejam delimitadas as áreas de atuação de cada poder, ou seja, estabelecer suas áreas de atuação independente e harmônica. O entendimento majoritário da doutrina é no sentido de apenas permitir flexibilizações à cláusula da separação dos poderes, preceito já consolidado na ordem constitucional do Estado Democrático de Direito, quando se vise realizar o próprio princípio-fim do postulado. Isto significa que somente se admitem exceções quando estas estiverem destinadas a efetivar a real harmonia no relacionamento entre os poderes ou assegurar o exercício pleno das funções próprias. Tais exceções, no entanto, jamais devem vir com roupagem democrática para maquiar intenções de interferência política para dominação de um poder sobre o outro. 14 Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, art. 26. Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, art. 27. 16 CF, art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 15 41 É preciso ter em mente que a ampliação desmesurada das exceções à cláusula constitucional parâmetro representa um perigo à ordem democrática, vez que torna cada vez mais teórico e ineficaz este basilar preceito, promovendo um esvaziamento de seu significado. Isto sinalizaria um grande retrocesso à tendência constitucional contemporânea de doação de efetividade aos preceitos constitucionais, tornando os princípios de nossa Carta Federal mero instrumento retórico. VI. Quanto à natureza jurídica do ato de nomeação ao terço constitucional e o princípio da supremacia do interesse público No julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 27.920-0/DF, o Ministro Joaquim Barbosa destacou a imprescindibilidade da motivação em razão da natureza do ato de recusa da lista sêxtupla pelo Superior Tribunal de Justiça. Merece destaque o seguinte trecho: Creio que o ato do STJ peca por déficit de motivação e, por esta razão, é nulo. (...)Lembro que a nomeação de membros dos tribunais é ato administrativo composto, ou complexo, como querem alguns, em que há uma relação de interdependência entre as diversas etapas do procedimento. Neste procedimento de nomeação, não há espaço para ações discricionárias (...) Todavia, nota-se evidente equívoco a que o Ministro Joaquim Barbosa fundamentou seu voto no que tange à natureza do ato de nomeação à vaga de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Àqueles atos nos quais há a interdependência de atos distintos de diferentes órgãos da Administração, a doutrina diferencia-os entre atos complexos e compostos. Ainda que se trate de institutos por vezes semelhantes, a diferenciação é fundamental para se apreciar a pertinência da incidência discricionária. Merece destaque o estudo de MEIRELLES (2004, p. 169), que caracteriza o ato complexo como sendo aquele “que se forma pela conjugação de vontades de mais de um órgão administrativo O essencial, nessa categoria de atos, é o concurso de vontades de órgãos diferentes para a formação de um ato único”, ao passo que o o ato composto “é o que resulta da vontade única de um órgão, mas depende da verificação por parte de outro, para e tornar exequível”. Assim sendo, no caso do ato complexo, o ato sucessivo ainda se perfaz da análise de mérito da questão, avaliando a conveniência e a oportunidade, enquanto que no ato composto, o ato sucessivo se traduz como sendo mero controle de legalidade, não permitindo a incidência discricionária do órgão interveniente (CAVALCANTE FILHO, 2010, p. 9). Desse modo, resta claro que a nomeação de Ministro do STJ constitui-se em ato complexo, do qual os atores envolvidos exercem seu juízo de oportunidade no desempenho de sua função, seja na transformação da lista sêxtupla em tríplice pelo próprio Tribunal, seja na escolha do Ministro pelo Presidente da República, ou, ainda, na sabatina e sucessivo escrutínio realizado no âmbito do 42 Senado Federal. Quanto a este último, cabe frisar seu papel no procedimento de escolha dos Ministros da Corte mediante o instituto da sabatina, que visa aferir os requisitos subjetivos previstos no art. 94 da CF: o notório saber jurídico e reputação ilibada. Retificando o entendimento do Ministro Joaquim Barbosa, o voto-vista proferido pela Ministra Ellen Gracie destaca a adequada caracterização do ato de nomeação, consoante o trecho que ora se destaca: Alerte-se, de início, que a seleção de um futuro integrante do Superior Tribunal de Justiça é um ato complexo, do qual fazem parte a formação da lista sêxtupla, a submissão de três nomes que a integravam ao Presidente da República, a indicação de um desses nomes pelo Chefe do Poder Executivo Federal, a aprovação dessa escolha , após arguição pública, pelo Senado e, finalmente, a sua nomeação pelo Presidente da República para o referido cargo. No mesmo sentido se manifestou o Supremo Tribunal Federal, em questões similares, tomando-se por base a premissa de que a nomeação de juiz à vaga do quinto constitucional que envolva o Tribunal e o Presidente da República caracteriza-se por ser um ato complexo. Destaca-se o seguinte julgado: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL. MANDADO DE SEGURANÇA: ATO COMPLEXO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA DA IMPETRANTE: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DA REPÚBLICA. DECADÊNCIA. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL: COMPOSIÇÃO. QUINTO CONSTITUCIONAL: NÚMERO PAR DE JUÍZES. C.F., art. 94 e art. 107, I. LOMAN, Lei. Compl. 35/79, art. 100, §2º. I. - Nomeação de Juiz do quinto constitucional: ato complexo de cuja formação participam o Tribunal e o Presidente da República: competência originária do Supremo Tribunal Federal. (…) 17 Outrossim, há de se salientar a limitação quanto ao exercício da discricionariedade por parte do Superior Tribunal de Justiça. Ainda que se trate de ato administrativo complexo, do qual cada órgão exerça juízo próprio quanto à conveniência e oportunidade da realização do aludido ato, não se deve afastar a vinculação quanto à função pública que o Tribunal exerce. Ou seja, deve-se adequar a razoabilidade do ato tanto à qualificação dos candidatos ao preenchimento dos requisitos constitucionais, quanto ao tempo que a Corte estava com a vaga em aberto. Trata-se, portanto, de um dever-poder vinculado ao interesse público. A autoridade pública, seja no exercício administrativo ou jurisidicional, não pode se afastar do princípio da supremacia do interesse público, que sempre se sobrepõe em relação aos interesses individuais envolvidos. É esse o entendimento despendido na obra de DI PIETRO (2011, p. 67), acerca do poder-dever (ou deverpoder, conforme o entendimento do Supremo Tribunal Federal): “Assim, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei (…). Cada vez que ela se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado”. VII. Do poder-dever intrínseco à competência do Superior Tribunal de Justiça na dinâmica 17 STF, Pleno, MS nº 23.972/DF, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 29 ago. 2003, p. 21 43 do “terço constitucional” O processo de nomeação ao Superior Tribunal de Justiça por meio da regra esculpida no art. 104, II da Magna Carta, à primeira vista, parece não deixar dúvidas quanto à competência para se analisar os requisitos dos candidatos a que o próprio artigo alude. No que tange à escolha dos advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territórios há de ser observado duas espécies de critérios: de caráter objetivo, em relação à idade dos candidatos (Constituição Federal art. 104, parágrafo único, m çã , v b “b ”) e o de caráter subjetivo (“ b mm áv b j ”). Em interpretação conjugada com a regra prelecionada no art. 94, a regra do terço constitucional aplicável ao Superior Tribunal de Justiça distribui o dever de elaboração da lista sêxtupla aos órgãos de representação das respectivas classes. Cabe ao STJ tão somente a transformação da lista sêxtupla em lista tríplice, que será encaminhada ao Presidente da República. O escolhido presidencial, então, ainda será submetido à sabatina do Senado Federal. Não há que se falar, portanto, em divisão de competências para aferição dos requisitos constitucionais. É notório que cada ente, na respectiva função que lhe é incumbida pela Constituição Federal, levará em consideração os critérios de caráter objetivo e subjetivo sedimentados no parágrafo único do art. 104. Contudo, a questão cinge-se na natureza jurídica do ato da nomeação, à luz do direito administrativo, a fim de se delimitar a incidência ou não da discricionariedade a que cada órgão está submetido. Por outro lado, não há margem que legitime a posição do STJ em se eximir da função que lhe é incumbida pela Constituição Federal, qual seja, a transformação da lista sêxtupla em lista tríplice. No caso objeto de estudo, o voto proferido pelo ministro Relator Eros Grau destaca que a função desempenhada pelo Tribunal consiste num dever-poder, haja vista a notória proteção ao interesse público. Cumpre destacar trecho do referido voto: “Aí não se trata de simples poder, mas, antes, de função, isto é, dever-poder. Detém o poder de proceder a essa escolha instrumentalmente, apenas na medida em que exerça a fim de cumprir o dever de proceder-lha. Pode, então, fazer o quanto deva fazer. Nada mais.” Trata-se, portanto, de poder vinculado ao interesse alheio, notadamente o interesse público. Não cabe margem, portanto, à discricionariedade da ausência de exercício, uma vez que a aludida vinculação impõe o dever àquele Tribunal. CONCLUSÃO Pode-se, dessa forma, discernir que a existência de conflitos institucionais é característica de um ambiente democrático, pautado na limitação de poderes e no sistema dos “freios e 44 contrapesos”. A tensão entre o Superior Tribunal de Justiça e a Ordem dos Advogados do Brasil demonstra que os diálogos institucionais previstos na Constituição Federal são, ainda, carentes de melhor delimitação de competência, política e procedimental. Faz-se necessária a devida atenção, nesse âmbito, à observância do princípio da razoabilidade e da supremacia do interesse público, como norteadores hermenêuticos de todo o sistema normativo vigente. Nessa esteira, cabe salientar as conseqüências práticas da recusa da lista sêxtupla pelo STJ. Por um lado, o tempo em que o Tribunal se obriga a funcionar sem os tais ministros, aproximadamente um ano e meio, exigindo a convocação de desembargadores para suprir a vaga e, por outro, o fato de ter sido feita lista sêxtupla posterior referente à classe do Ministério Público, quebrando o princípio da alternância. Tais fatos, explicitamente, em nada contribuem para a consecução dos objetivos do quinto constitucional: a oxigenação do Poder Judiciário, bem como sua democratização e otimização, por meio do ingresso de profissionais provenientes das classes integrantes das funções essenciais à justiça, a advocacia e o Ministério Público. Assim sendo, faz-se mister ter em vista que a porção de discricionariedade conferida pela Carta Magna a determinadas instituições não pode sobrepujar-se ao interesse público. Respeitar os limites de atuação em cada função significa observar os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, principalmente aquele relativo à independência e harmonia entre os poderes. Referências bibliográficas BOMFIM, Benedito Calheiros. Extinção ou manutenção do quinto constitucional? Revista Jurídica Consulex, v. 12, nº 270, 2008. CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Critérios de distinção entre atos administrativos compostos e complexos. Fórum Administrativo, nº 111, 2010. DE BARROS, Humberto Gomes. Décimos constitucionais. Revista Jurídica Consulex, v. 12, nº 270, 2008. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24ª ed. São Paulo, Atlas. 2011. FERRAZ, A. C. CUNHA DA. Conflito entre poderes: O Poder Congressual de sustar atos normativos do Poder Executivo. 1994. Ed. Revista dos Tribunais. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Editora Saraiva, 2010 LIMA, Josué de Sousa. O quinto constitucional. Revista Jurídica Consulex, v. 11, n. 259, 2007. MARTINS, Francisco Peçanha. Quinto constitucional e a renovação do Poder Judiciário. Revista de Direito Renovar, nº 33, 2005. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004. RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Quinto constitucional: a polêmica instalada. Revista Jurídica Consulex, v. 12, nº 270, 2008. 45 ZAFFARONI, R. E. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Tradução Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 46 ASSENTAMENTOS RURAIS E IMPACTOS REGIONAIS: APONTAMENTOS PARA O ENTENDIMENTO ALÉM DA ESFERA ECONÔMICA Elson dos Santos Gomes Junior1 Vanessa da Silva Palagar Ribeiro2 RESUMO O presente trabalho propõe realizar uma contribuição aos estudos que tratam dos impactos regionais de assentamentos rurais. Pesquisas vêm apontando, em âmbito econômico, para dois principais pontos: o primeiro demonstra que novas demandas e serviços são criados em regiões que recebem assentamentos rurais. Já o segundo aponta para a maximização de bens materiais por parte daqueles que passam a condição de assentados rurais. Contudo, além da esfera econômica, existem outras envolvendo os movimentos sociais do campo que, devido a suas peculiaridades, não podem ser facilmente mensurados. Neste caso encontra-se a discussão em torno da cultura. Sendo assim, partindo do assentamento rural como uma alternativa de organização econômica capaz de maximizar bens na esfera econômica destas famílias, foram analisados os impactos do assentamento no tocante ao exercício de atividades culturais. Em pesquisa de Iniciação Científica e monografia, foi abordado como campo de estudo o assentamento Zumbi dos Palmares (Campos dos Goytacazes/São Francisco de Itabapoana-RJ). Por meio da metodologia de História de vida, traçouse a trajetória de camponeses portadores de habilidades culturais que buscou compor uma leitura do exercício destas práticas após a entrada no assentamento. Nestes termos, a pesquisa vem confirmando na realidade deste assentamento o aumento do quantitativo de bens na esfera econômica. Também, e no que se concentra esta pesquisa, aponta para um conjunto de fatores favoráveis ao exercício de habilidades culturais tais como teatro, poesia, calendário de festas, artesanato e espaços de sociabilidade. Palavras-chaves: reforma agrária; história de vida; habilidades culturais; identidade. INTRODUÇÃO A concentração fundiária permeia historicamente as relações político-econômicas da sociedade brasileira, e possui como desdobramento uma série de elementos evidenciados principalmente em âmbito social. Assim a questão fundiária tornou-se tema de conflitos e discussões em diversos momentos da história deste país (VEIGA, 1986, p. 7). Em 1850, a partir da promulgação da Lei de Terras, a propriedade da terra ganhou institucionalização no Brasil; em função da necessidade de se promover uma organização jurídica 1 Bacharelando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF); Elson dos Santos Gomes Junior – [email protected] – cel.: (22) 9861-4083. 2 Bacharelando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF); Vanessa da Silva Palagar Ribeiro – [email protected] – tel.: (22) 8821-4475. 47 em torno da mesma. Esta lei estabeleceu que a propriedade (enquanto um bem privado e reconhecido legalmente pelo Estado), deveria ser adquirida mediante pagamento em espécie de um valor igualmente proporcional ao perímetro da propriedade. Esta legislação apresentou-se para as camadas menos favorecidas com um caráter altamente expropriatório uma vez que, por questões econômicas, estas não tiveram possibilidades de acesso a este bem (TAGLIETTI, 2006, p. 191). Desta forma pode-se ver que existe uma trajetória do modelo de propriedade da terra no Brasil cuja concentração não é mera característica, e sim, uma “Questão agrária” (SILVA, 1986, p. 11). O debate em torno da questão agrária esteve presente em vários momentos da vida nacional. Na década de 30 do século XX com a chamada “grande depressão”, este debate girou em torno de questões relacionadas à política do café, já na década de 50, a questão agrária esteve presente na discussão sobre os rumos da industrialização brasileira (onde a agricultura foi vista como sinônimo de atraso frente à industrialização do país). Por outro lado, na década de 60 e meados de 70, a questão da terra ficou relegada a um segundo plano devido o forte crescimento causado por uma série de políticas públicas que ficaram conhecidas como “milagre brasileiro”. Contudo, este crescimento acabou por gerar efeitos negativos, uma vez que se acentuou o êxodo rural, a concentração da propriedade, o aumento da taxa de exploração da força de trabalho, o declínio da qualidade de vida da população do campo, a disparidade de renda, e o aumento dos impactos ambientais. Isto foi agravado pela chamada “revolução verde”, que também elevou os níveis de mecanização do trabalho no campo (GOMES, 2005, p. 407). Na década de 1980, também chamada de “década perdida” (devido fortes indícios de crise no projeto nacional desenvolvimentista) e influenciada pelo regime militar de 1964, houve um gradual aumento inflacionário e alto índice de desemprego. Isto acabou contribuindo para o estabelecimento de uma conjuntura política propícia para o ressurgimento de ação organizada (destaque para os sindicatos urbanos). Este foi o momento em que surgiu o movimento social de maior expressão nas últimas décadas da história brasileira: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Fruto da junção de vários movimentos sociais de luta pela terra, o MST criou um modelo político pedagógico de ação pela luta de socialização da propriedade da terra e desenvolveu um aparato simbólico particular (SIGAUD, 2004, p. 15-16; COMPARATO, 2001, p. 105). O MST se apresenta como representante de um modelo de agricultura oposto ao modelo do capitalismo industrial-financeiro ( baseado na monocultura para exportação, grande extensão de terra, mecanização dos processos agrícolas, uso de agrotóxicos, etc.). O MST também incorpora outras questões em sua pauta de reivindicações entre as quais se destaca: o acesso ao crédito para pequenos agricultores, desenvolvimento sustentável, infra-estrutura para as famílias assentadas. Assim a unidade produtiva de caráter familiar passou a ser proposta alternativa e objeto de estudos 48 no que tange aos impactos da agricultura para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do Brasil (HEREDIA, 2002, p. 98). O motivo que norteou este trabalho se relaciona a verificação empírica dos possíveis benefícios causados pela ampliação do acesso a propriedade da terra as camadas desfavorecidas da sociedade. Onde pesquisas têm mostrado impactos positivos na esfera econômica tanto para os assentados como para as regiões que recebem assentamentos. Além do ganho mensurável no aspecto econômico, há um ganho considerável no âmbito cultural. Este último, neste estudo, se apresenta sob a forma de habilidades portadas por estes camponeses (após o assentamento) e que se manifestam de variadas formas (teatro, artesanato, poesia, festas folclóricas). Sãos estas formas de manifestação cultural expressa por estes camponeses que constituem, mais precisamente, o objeto desta pesquisa. METODOLOGIA E ÁREA DE ESTUDO Os recursos metodológicos utilizados neste trabalho foram baseados em visitas de campo, uso da técnica “bola de neve” e a aplicação de um questionário semi-estruturado. Este último com questões que buscaram demonstrar a trajetória antes e depois do assentamento tanto no que se refere ao âmbito econômico como ao exercício de habilidades culturais. Nesta pesquisa também foi utilizada o uso de bibliografia especializada, referente a questão agrária, a agricultura familiar e seus impactos. O Projeto de Assentamento (PA Zumbi dos Palmares) localiza-se entre as coordenadas 21º 32' e 21º 45' S e 41º 11' e 41º 16' W, englobando território dentro dos municípios de Campos dos Goytacazes e São Francisco do Itabapoana. O PA Zumbi dos Palmares resultou de uma ocupação organizada pelo MST em 12 de abril de 1997 nas terras da Usina São João. A Usina se encontrava com graves dificuldades financeiras e um acúmulo de dívidas em forma de impostos e direitos trabalhistas não pagos. Em outubro de 1997 as terras foram transferidas para o INCRA que iniciou o processo de cadastramento para divisão dos lotes. Neste processo, as famílias que compunham o grupo representante do MST, acabaram recebendo a companhia de mais dois diferentes grupos: primeiro os membros do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Francisco de Itabapoana; depois de um grupo de ex-trabalhadores da Usina São João. Em apenas seis meses após a ocupação das terras pelo MST o ato de desapropriação das terras estava assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Esta ação se configurou em uma das mais aceleradas no tocante a reforma agrária (CORDEIRO, 2007, p. 15), dando origem a um assentamento dividido em cinco lotes em uma extensão de 8.553 hectares. O trabalho que foi realizado neste assentamento buscou catalogar camponeses com habilidades culturais em exercício. Assim contribuíram para a pesquisa um grupo de teatro (23 49 integrantes, que se apresenta como Grupo de Teatro Zumbi dos Palmares), um camponês que trabalha com poesia e artesanato (autor de um livro com apoio da Secretaria de Cultura de Campos dos Goytacazes – “Terra Conquistada, Esperança de vida Nova”, 2000), um animador cultural, quatro pessoas que trabalham com artesanato de palha de taboa. Dentre estes, boa parte compõe a escolinha de agroecologia. Esta última foi criada em 2005 por iniciativa da CPT 3, com o propósito de promover um espaço de socialização de experiências, saberes e alternativas aos percalços do cotidiano do trabalho na terra. Reforma agrária e seus impactos econômicos A questão da propriedade da terra no Brasil é tema de profundo debate. No meio científico brasileiro existem leituras diversas quando se trata desta questão, principalmente, quando o assunto se refere a proposta de mexer na estrutura fundiária de modo a tornar sua posse mais equânime entre os integrantes da sociedade (Reforma Agrária). No que tange a literatura acadêmica especializada, é possível enumerar uma série de autores que pensaram as questões referentes ao mundo rural e sua população. Também no Brasil um conjunto significativo de centros de pesquisa no assunto e de autores pôde formar um capital teórico e monográfico a respeito das questões do meio rural brasileiro. Nestes termos, buscou-se situar a análise a partir de algumas destas importantes contribuições. Antes de serem apresentadas algumas destas interpretações, é relevante de esclarecer que em relação ao que será chamado de impactos econômicos está relacionado, principalmente, às possibilidades de maximização de bens mensuráveis (eletrodomésticos, residência, automóvel, faixa salarial, etc.). No desenvolvimento das pesquisas em torno da Reforma Agrária e seus impactos, autores apontaram para as mais variadas formas de organização social que seriam oriundas destes assentamentos. Uma destas aponta que a reforma agrária manteria o campesinato, não em seu estado puro, mas seu papel dentro da sociedade capitalista se redefiniria. Nesta leitura, o campesinato não seria assimilado pelo capitalismo (como burguês ou proletário agrário), mas sim como portador da capacidade de unir agricultura familiar e inovações técnico-agrícolas típicas da agricultura capitalista. Seu papel na sociedade seria o de produzir alimentos mais baratos para o meio urbano, de modo a baratear produção e reprodução desta força de trabalho (ABRAMOVAY, 2007, p. 83). Outros apontam que a reforma agrária não deve ser essencialmente agrícola, ou seja, não deve se restringir apenas as questões pertinentes a produção de alimentos. Neste viés salientam a 3 Comissão Pastoral da Terra. 50 emergente necessidade de novos serviços causados pela implantação de um assentamento; enumerando serviços como escola, mercados, oficinas, enfim, uma série de necessidades que terão demanda pela população recém-chegada. Nesta leitura um assentamento não abrange apenas distribuição de terras para pessoas poderem trabalhar, mas, também, a geração de novos empregos e formas de renda no campo (SILVA, 1998, p. 83). Outra leitura sobre os impactos econômicos causados pela reforma agrária aponta para uma redefinição das relações de trabalho no campo, onde estas relações são regidas a partir de uma base produtiva que ganhou um “termo novo”. Assim salienta que este “modo de gestão da produção” através de nova terminologia deixou de lado o sentido pejorativo que esteve durante tanto tempo associado a palavra “camponês”4 (NEVES, 2007, p. 234). Nesta abordagem ao tornar-se assentado e possuidor de um modo singular de gestão da produção, o camponês ultrapassou os limites econômicos de seus ganhos através da luta pela posse da terra. Ele passou a acumular um capital social que o concedeu acesso, mais facilmente, a uma rede financeira que passou a reconhecê-lo como produtor. Este ganho foi apresentado por Delma Peçanha Neves como um ganho político. Em confluência com esta interpretação que Maria Moraes vai apresentar este ganho de capital como, além de político, social; ou seja, “de camponês a agricultor familiar” (MORAES, 1998, p. 121). Além de ganhos econômicos, possibilidade de aumentar a demanda por serviços não essencialmente agrícolas, e de apresentar um ganho na esfera política, a Reforma Agrária é apresentada por alguns estudiosos como uma forma de superação da pobreza. Esta esfera se relaciona com as demais citadas acima, mas de um caráter mais próximo do que chamamos de “maximização dos bens materiais”. Esta fração da sociedade cuja, boa parte, não tinha nem onde morar, passou a possuir bens após a conquista do lote. Desta forma estes “Sujeitos em Movimento” conseguiram obter ganhos significativos que os possibilitaram superar, até mesmo, condições de elevado nível de pobreza (MENEGASSO; BRANCALEONI, 2008, p. 11). Não é por acaso que também é apresentada como uma estratégia de desenvolvimento econômico (LEITE, 2006, p. 8). A reforma agrária passou a figurar como um modelo alternativo ao da agricultura mecanizada; ou seja, ao modelo apresentado como sendo o responsável por impactos negativos de desemprego e expropriação do homem do campo (BALSAN, 2006, p. 124). Nestes termos, tem se apresentado com uma alternativa a reorganização social do homem do campo, com mais domínio sobre os processos produtivos e maiores ganhos em aquisições de bens sociais e ampliação de seu 4 Delma Peçanha Neves apresenta o termo “camponês” como uma palavra que ficou estigmatizada pela sociedade possuindo, assim, uma forte carga pejorativa que relacionou por muito tempo a vida no campo às questões de infortúnios e pobreza. ` 51 capital cultural. No caso de Campos dos Goytacazes, a participação do Estado no tocante ao processo de consolidação de famílias em assentamento rurais tem se mostrado “desassistido”. No entanto, as várias estratégias desenvolvidas pelos assentados vêm contribuindo para que estes consigam permanecer nos lotes mesmo sem um apoio significativo do poder público a esta iniciativa de manutenção do homem do campo (PEDLOWSKI, 2007, p.3). Estes elementos aos quais são chamados de culturais começaram a se fortalecer desde os primeiros momentos do processo de ocupação. Existe todo um conjunto simbólico que permeia as relações entre os acampados e contribui para o surgimento de laços de parceria duradouros. Assim todo o processo de viver embaixo da “lona preta”, das necessidades de ajuda mútua, os confrontos unidos, a persistência dos acampados, a bandeira e as músicas, formou um conjunto de elementos que passou a figurar e permanecer nas relações futuras entre os assentados (SIGAUD, 2004, p. 14). Foi deste processo que muitas das redes sociais passaram a vigorar e se fortalecer, contribuindo fortemente como um dos importantes fatores de permanência dos assentados nos lotes (ZINGA, 2004, p. 97). Este percurso de conquistas que passou pelo viés econômico, político e cultural (não necessariamente nesta ordem), contribuiu para que o camponês pudesse exercer e manifestar de forma mais espontânea e com maior capacidade de aproveitamento suas habilidades culturais. É neste âmbito que o presente trabalho verificou no Assentamento Zumbi dos Palmares a existência destes camponeses, não só portadores de melhores condições de vida, mas portadores de habilidades culturais que, manifestas, refletem este conjunto de ganhos. Condição de assentado e o exercício de habilidades culturais Os assentados demonstraram que após a conquista desta condição, o assentamento ganhou um calendário festivo. Apesar de não ser muito extenso, o calendário possui a comemoração do dia da ocupação (12 de abril), uma quadrilha organizada no período entre julho e agosto, o dia de Zumbi dos Palmares (20 de novembro) patrono do assentamento e a festa do dia das crianças. Estes eventos reúnem pessoas dos vários núcleos do assentamento. A produção das festividades é feita coletivamente com a participação de adultos e crianças. O atual quadro que oferece um reforço da história do Assentamento e de cada um dos assentados contribui para que os portadores de habilidades culturais possam exercê-las, não só no dia a dia, mas também na forma de apresentações públicas. Assim os envolvidos com atividades culturais se relacionam tanto de forma interna, quanto de forma externa ao Assentamento como, por exemplo, o grupo de Teatro que possui uma regularidade de ensaios e apresentações. As poesias de Paulo Poeta foram publicadas em um livro com a ajuda da Secretaria de 52 Cultura da Cidade de Campos dos Goytacazes. Elas refletem a história dos Assentados desde o início do processo de ocupação. Em uma passagem ele descreve sua chegada ao acampamento (POETA, 2000, p. 3): Quando vim de Macaé, Vim com boas intenções, Trouxe algumas ferramentas Sendo faca e facão. Também trouxe a minha foice A enxada e o enxadão. Outros temas trabalhados pela poesia são a homenagem a bandeira do MST, a escolha do nome do Assentamento, os encontros dos trabalhadores, a vida na roça, a história de opressão dos trabalhadores, desapropriação, reflorestamento5 e a outras ocupações. Dentre estas temáticas, o sentimento de libertação aparece evidenciado, como uma conquista que, a condição de assentado, pode oferecer a estas pessoas. Estes temas englobam um conjunto de elementos que se materializam por meio da cultura e inovação (MEDEIROS, 2006, p. 43). Outra atividade que se encontra presente no assentamento é a confecção de artesanato com palha de taboa. Ela contribuiu, em alguns momentos, como forma de complementação de renda para alguns camponeses. No entanto, ultimamente este artesanato tem estado restrito as necessidades diárias e não mais com vistas comerciais. No que se refere ao processo de conquista e socialização destas habilidades, algumas pessoas afirmaram que conseguiram adquiri-las após a conquista do lote por meio de oficinas promovidas pelos próprios assentados. Contudo, a maioria deles afirmou que estas oficinas nunca tiveram uma regularidade considerável e que as tentativas de consolidação destes espaços de transmissão de habilidades referentes ao artesanato não tiveram grande sucesso. As atividades culturais desenvolvidas durante o calendário do Assentamento contam com a participação da CPT. Esta organização se faz presente através de projetos orientadores, educativos e culturais. Um destes projetos apoiados pela CPT é o projeto Fitovida6. O assentamento se encontra relativamente longe dos principais hospitais da cidade. Desta maneira, pequenas ocorrências em que se faz necessário o uso de algum medicamento são com frequência tratados através do conhecimento de ervas medicinais. Este projeto busca promover o encontro de pessoas, não só assentados, que possuam conhecimentos de ervas medicinais de modo a poderem trocar informações e receitas entre si. Além disso, são apresentadas várias formas de sementes e a forma correta de cultivá-las. Trabalhos que envolvem o ensino de pequenas confecções artesanais também são 5 6 Paulo é um agroecologista. A rede FITOVIDA é uma associação composta e organizada por camponeses e colaboradores com vistas a socialização de conhecimentos referentes às capacidades medicinais de plantas e sementes. Além disto, conta com uma regularidade de eventos objetivando a compartilhar o processo de produção destes remédios e derivados. 53 desenvolvidos dentro do Assentamento através da CPT. Estes encontros também são usados como espaço de discussão que abrange vários aspectos referentes aos assentados, como de direitos humanos (condições de trabalho no campo), posicionamento frente aos órgãos deliberadores dos Assentamentos (INCRA) e decisões que envolvem a coletividade do Assentamento. No dia 20 de novembro (feriado de Zumbi dos Palmares), a confraternização contém a apresentação de atividades culturais, depoimentos, e uma pedagogia que é exercida através de uma mesa onde são expostos os “frutos da terra”. A CPT é uma organização que trabalha assessorando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), contribuindo para a valorização da cultura do homem do campo. Busca-se verificar as possibilidades de relações existentes entre as conquistas materiais e o exercício das atividades culturais. A partir de uma análise da história de vida destes assentados foi possível perceber alguns importantes elementos para nossa análise. Assim, foram analisados e organizados os depoimentos selecionados nas entrevistas. Um ponto importante é poder pensar que as atividades imateriais começaram a ser desenvolvidas desde o momento do acampamento (SIGAUD, 2004, p. 17). Assim, quando perguntado sobre o significado de serem assentados, todos responderam de forma positiva. Nenhum dos entrevistados demonstrou insatisfação sobre morar e viver no assentamento. Além disso, a maioria falou sobre a tranqüilidade e a segurança que sentem se comparado a cidade. Já em relação a forma de verem a vida após o assentamento, disseram que mudou porque agora eles têm o que é deles. Alguns falaram de como é bom não pagar aluguel, outros falaram da melhoria da alimentação, principalmente, por meio de uma produção de dispensa agrotóxico7. Quanto aos pontos negativos e os positivos de viver no assentamento estão, entre os positivos, a tranquilidade, a possibilidade de ter os filhos por perto e a ausência da violência existente no meio urbano. Agora, quanto aos negativos, quase todos foram unânimes em relatar que existe certo descaso com o assentamento por parte do poder público. Isto já foi evidenciado por meio de outros trabalhos realizados em assentamentos da região (PEDLOWSKI, 2007, p. 3). Quanto aos aspectos culturais, todos afirmaram ter conhecimento a respeito das festas existentes no assentamento. Isto mostra que estas atividades e a formação deste calendário criaram uma prática que está presente no imaginário de cada um a respeito do funcionamento e das atividades do assentamento. Em relação a compartilhar a atividade com outros assentados, alguns disseram encontrar 7 Como a maioria dos entrevistados faz parte da escolinha de agroecologia, eles não usam produtos químicos em seus lotes. Contudo, o uso destes produtos é frequente no assentamento e alguns dos assentados entrevistados, contaram que já sofreram graves danos devido ao uso destes agrotóxicos por parte de seus vizinhos. 54 dificuldades para a manutenção de uma constância, pois todas as vezes que tentaram forma um grupo, este se desfez antes mesmo de poder consolidar uma forma minimamente duradoura de troca de conhecimento. Neste caso encontram-se os artesãos de palha de taboa. Segundo eles, apesar de alguns terem afirmados que aprenderam dentro do assentamento as técnicas que usam, afirmaram também que estes momentos de troca não são frequentes (dificuldade esta não encontrada entre os participantes do grupo de teatro). Em relação a importância destas atividades para os mesmos como indivíduo, percebemos que algumas delas são vistas como forma de afirmação de identidade (poesia e teatro). Já quando questionados sobre a importância destas atividades para a coletividade, principalmente sobre os conhecimentos trocados na escolinha de agroecologia, a maioria afirmou ser de grande importância. Isto por perceberem que na busca de interesses individuais, alguns podem sair perdendo demais (como o caso de pessoas acidentadas com agrotóxico sem usá-los). Além disto, espaços como estes interferem diretamente na forma de cultivo dos lotes. Como exemplo têm-se os “alunos” assentados que realizam todo um trabalho de conscientização dos riscos do agrotóxico. Por fim, ao perguntarmos sobre os limites de algumas destas atividades podemos perceber que elas vão além dos limites físicos do assentamento. Assim, muitas vezes o Paulo Poeta foi convidado para declamar suas poesias em escolas fora do assentamento, até mesmo, pelo seu conteúdo agroecológico. De semelhante modo, o grupo de teatro vem apresentando-se fora do assentamento em escolas e eventos, assim como, a quadrilha do assentamento. CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho mostrou que os camponeses do Assentamento Zumbi dos Palmares após terem obtido o lote conseguiram um aumento na qualidade de vida, como pesquisas desenvolvidas em outras regiões tem mostrado. Estes assentados conseguiram aumentar seu patrimônio no âmbito econômico e conseguiram ter acesso a bens que, anteriormente, não tinham. Além disso, expressam satisfação com a vida no campo e enfatizam a respeito da qualidade de vida superior a que eles desfrutavam antes. No Assentamento estas pessoas passaram a contar com um maior grau de autonomia, a ponto de poderem, através de suas histórias de vida que culminou com o assentamento, se representarem enquanto assentados. Isto, não só através da forma de trabalho ou da localidade onde vivem, mas através do exercício prático de suas habilidades culturais. Estas habilidades apresentam a vida do assentado como uma conquista, e promovem laços de sociabilidade onde uma forma peculiar de cultura é produzida e reproduzida. Ela se expressa através da escrita (poesia), música (festas do calendário) e do teatro. Assim pode ser visto como uma nova coletividade que se iniciou a partir da “identidade sem 55 terra” (ALVES, 2007, p. 92). No entanto, quando estas trajetórias individuais começaram a interagir por meio de variadas esferas, começaram a elaborar mecanismos de exercício da cidadania. Nestes termos a possibilidade de exercício de habilidades culturais apareceu como uma face do exercício desta, contribuindo também para a formação de uma cultura que começou com uma ação coletiva e se reproduz por meio de práticas cotidianas que vão desde o cultivo da terra ao exercício de atividades de caráter imaterial como as retratadas aqui. BIBLIOGRAFIA ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. São Paulo: Edusp, 2007. ALVES, Flamarion Dutra. et al. “Territorialização camponesa, identidade e reproduções sociais: os assentamentos rurais na metade sul do Rio Grande do Sul”. CAMPO TERRITÓRIO: revista de geografia agrária, v.2, n.4, p. 82-97, ago. 2007. BALSAN, Rosane. “Impactos decorrentes da modernização da agricultura brasileira”. CAMPOTERRITÓRIO: revista de geografia agrária, v.1, n. 2, p. 123-151, ago. 2006. COMPARATO, Bruno Konder. “A ação política do MST”. São Paulo em Perspectiva, V. 15, n. 4, p. 105-118, 2001. CORDEIRO, Manuela Souza Siqueira. 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Dissertação de Mestrado em Políticas Sociais, UENF. 57 SITUAÇÃO COLONIAL, ESTADO – NAÇÃO E ETNICIDADE EM MOÇAMBIQUE: PRELIMINARES TEORICO METODOLÓGICAS1. Nurdino Cassiano Macata2 RESUMO Os processos de reordenamento territorial na medida em que levam a processos de reassentamentos, tendem a colocar em xeque os processos ancestrais de territorialização e o seu significado subjetivo/objetivo para a vida quotidiana das populações. Pretendemos a partir da literatura empírica e teórica sobre os processos de reassentamento em Moçambique (vale do zambeze), explorar os novos rearranjos culturais e sócio-espaciais necessários na busca de um novo lugar para o grupo enquanto entidade socialmente vinculada a terra, questionando a habilidade do Estado para negociar e propiciar novas configurações territoriais que não irrompam em conflitos intra-grupais e inter-grupos, conflitos esses que se geram e se agudizam sobretudo entre as lideranças tradicionais, tomando feições de natureza econômica, cultural, social, política, espacial e simbólica, na medida em que a defesa do território é significada como sendo a defesa da cultura e da identidade dos grupos étnicos. Palavras-Chave: Identidade; Territorialização; Conflitos; Grupos Étnicos; Práticas Socioculturais ligados a Terra. INTRODUÇÃO Devido a sua localização geográfica, Moçambique é um país ciclicamente afetado por eventos naturais de elevado poder destrutivo, basta para tal, observar que as cheias de 2007 e de 2008, afetaram cerca de 258.000 pessoas, o que corresponde a perto de 55.000 agregados familiares só no vale do Zambeze, (MATE et al., 2009; INGC, 2010). Por seu lado, as cheias de 2000 que ainda ocupam um espaço de relevo no imaginário dos moçambicanos, afetaram mais de um milhão de pessoas, destruíram centenas de casas e mais de 400.000 pessoas tiveram que se deslocar para centros de acomodação temporários, tendo sido causada a morte de mais de 800 pessoas (INGC, 2010). Mais recentemente, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2012, o país voltou a ser assolado por calamidades naturais (nomeadamente os ciclones Dando e Funso), tendo se registrado inundações, chuvas e depressões tropicais, que afetaram diretamente 81.200 pessoas do centro e sul 1 2 Este trabalho é fruto de uma pesquisa ainda em construção e pretendemos nele, lançar os alicerces teóricos e metodológicos que estão levando a construção de nosso problema de pesquisa Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF); Contacto: [email protected] 58 do país, fazendo 37 mortos, 41 feridos e pouco mais de 81 mil famílias desabrigadas3. Quando os desastres acontecem tem destruído, em grande escala as infraestruturas sociais e econômicas, habitações, reservas alimentares e meios de sobrevivências de milhares de famílias, colocando-as em permanente vulnerabilidade, afetando em particular as zonas rurais (LIHAHE, 2009. MATE et al, 2009, CHAMBOTE e VEJA, 2008). É, portanto, movidos por interesses simultaneamente teóricos e “práticos” que pretendemos levar a cabo uma pesquisa, que procure compreender os processos e as representações de âmbito identitário, econômico, político e simbólico, implicados na resistência aos bairros de reassentamentos (enquanto inseridos num projeto de construção de um Estado-Nação) e consequente abandono dos centros de reassentamento pós-cheias. CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO ÉTNICA EM MOÇAMBIQUE Localizado na costa sudeste de África, o território geográfico a que corresponde atualmente a unidade geopolítica denominada Republica de Moçambique, foi devido a sua localização privilegiada (Banhado a leste pelo Oceano Indico e com várias baias e canais de navegação, para além de recursos hídricos e terras férteis no interior), um importante berço das civilizações em África, tendo sido igualmente um entreposto comercial de referencia na zona Austral de África e alvo de interesse de várias potencias coloniais, o que por si só já mostra a riqueza e a complexidade dos processos identitários em Moçambique. Daí que a análise dos “processos identitários” enquanto mobilizados politicamente que a seguir propomos (vai em função dos nossos objetivos nesse trabalho), recortar três importantes períodos históricos, nomeadamente: O período que vai desde a conferencia de Berlim em 1884/85 até a instauração da primeira republica com a independência em 1975; O período que vai desde 1975 até a constituição de 1990 que instaurou o Estado de Direito Democrático (segunda Republica), e por fim o período que vai desde 1990 até a atualidade (NGOENHA, 2009). A escolha do período de contato com os Portugueses como marco histórico inicial para a análise dos processos de construção e constituição de uma unidade política unificada em Moçambique, mobilizando, por conseguinte “políticas identitárias” específicas – aos interesses coloniais - ignora obviamente séculos de migrações, lutas e intercâmbios culturais e comerciais, quer entre os grupos/unidades políticas internas ao continente, quer com outros grupos/unidades políticas externas4 como são o caso dos mercadores e navegadores swahilis, árabes e indianos que 3 4 Jornal notícias, sexta-feira, redacção de 03 de Fevereiro de 2012. Uma análise mais detalhada e profunda da historia do territorio a que hoje coresponde o Estado moçambicano, pode ser encontrada nas seguintes obras: SERRA, Carlos (coord.). História de Moçambique: Parte I - Primeiras Sociedades sedentárias e impacto dos mercadores, 200/300- 1885; Parte II - Agressão imperialista, 1886-1930. Vol. 1, 2.ª edição, Maputo, Livraria Universitária, Universidade Eduardo Mondlane, 2000. e, PÉLISSIER, René. História 59 chegaram inclusive a constituir importantes configurações políticas, econômicas, culturais e religiosas na costa moçambicana (conhecidos por sultanatos e xeicados). Até a chegada dos portugueses em 1498, é de ressaltar a existência de diversos reinos independentes entre os quais se destaca o império dos Mwenemutapas que estendia os seus vastos domínios até a uma região limitada pelo rio Zambeze a norte, pelo Oceano Índico a leste, e pelo rio Limpopo a sul, chegando a sua influência quase ao deserto do Kalahari a sudoeste. Outros importantes impérios anteriores a presença colonial são o império Marave; os Estados Ajaua, o império de Gaza e os Estados Islâmicos da Costa, entre outras unidades políticas que detinham territórios soberanos. Moçambique não foge a regra segundo a qual, apesar da multiplicidade de fatores - tanto de caráter exógeno assim como endógeno - que podem explicar a passagem de uma sociedade segmentar à condição de sociedade centralizada, existir um elemento primordial para a efetivação dessa transformação que é “a submissão” a um aparato político-administrativo que integra e representa um Estado quer seja politicamente soberano ou somente com status colonial como se deu com Moçambique, ou seja, estamos aqui falando de situação colonial (BALANDIER, 1993, p.113; CABAÇO, 2007, p.38-39; OLIVEIRA FILHO, 1998, p.54). Assim, tal como nos mostra Oliveira Filho (1998, p.54), “é um fato histórico – a presença colonial - que instaura uma nova relação da sociedade com o território, deflagrando transformações em múltiplos níveis da sua existência sociocultural”. As sociedades colonizadas são assim, produto de uma dupla historia uma das quais de caráter endógeno - que Balandier (1993) denomina de “propriamente africana”- que colocou em presença “formas sociais homogêneas” e a outra de caráter exógeno, largamente condicionada pela presença europeia que “colocou em contacto formas sociais radicalmente heterogêneas” (ibdem:110). Em Moçambique assim como no resto de África, a situação colonial enquanto efetivação de um projeto de estado colonial português, encontra-se associada aos interesses - matéria-prima, mão de obra e mercados - impostos pela revolução industrial e consequente crescimento do sistema capitalista (ARENDT, 1990; HOBSBAWN, 1988). Assim, podemos situar nas resoluções de ocupação efetiva saídas da conferencia de Berlim (15 de novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885) a necessidade de constituição e efetivação nos territórios africanos de um aparato jurídico-administrativo, o que faz com que a questão colonial (vista até então exclusivamente pela dimensão econômica), passe a ser uma questão eminentemente social e política (BALANDIER, 1993, p.111; CABAÇO, 2007, p. 35-38). Ora, a efetivação da colonização que impunha “o controle total” dos territórios africanos, implantou uma ordem social caracterizada por uma alteridade radicalizada, a partir da qual se de Moçambique: formação e oposição: 1854-1918. 2 vols., Lisboa, Ed. Estampa,2000. 60 fundam dois mundos sociais5 distintos: nomeadamente o mundo dos dominadores e o mundo dos dominados. Tais mundos se encontravam inseridos no mesmo sistema social cuja relação política, ideológica, cultural e econômica vão constituir a situação colonial. Dá-se assim a passagem ao imperialismo tal como proposto por Hannah Arendt (1990, p.164-170), que se caracteriza pela administração do território tendo como essência o uso da força por parte dos “administradores da violência”, constituindo dialeticamente oprimidos e opressores. Tal como nos mostra Cabaço: Na sociedade colonial estarão, frente a frente, bem demarcados, não só “branco e preto”, indígena e colonizador, mas também civilizado e primitivo, tradicional e moderno, cultura e usos e costumes, oralidade e escrita, sociedade com historia e sociedade sem historia, superstição e religião, regime jurídico europeu e regime consuetudinário (...) todos eles conceitos marcados pela hierarquização, em que uns se apresentam como a negação dos outros e, em muitos casos, como a sua raison d´ être. (CABAÇO, 2007, p.38). A oposição entre a sociedade colonizada e a sociedade colonial enquanto possibilitada dualmente pela raça e pela civilização, coloca a ação administrativa e a ideologia como pilares desse sistema que opera como uma totalidade (ARENDT, 1990, p.215; BALANDIER, 1993, p.113119). O desafio da colônia era o de efetivar um quadro político-administrativo capaz de explorar efetivamente a colônia, o que precisou ser acompanhado por uma política ideológica que permitiria garantir a mão de obra não só para as atividades braçais, mas também para as administrativas, difundindo a crença de superioridade do colono. É de ressaltar que nas colônias portuguesas, não havia condições objetivas que levassem a uma proletarização imediata e voluntaria das populações locais, as pessoas podiam e com frequência evitavam vender a sua força de trabalho, pois, mantinham a posse da terra, o mais básico meio de produção, e os instrumentos de produção, ainda que rudimentares (ZAMPARONI, 1998, p.27). “[...] As formas produtivas não capitalistas, embora comportassem conflitos sociais não negligenciáveis, pois os camponeses indígenas não formavam um todo homogêneo e indistinto sem hierarquias em seu seio, conseguiam sustentar suas necessidades de consumo e os excedentes, em geral, convertidos em tributos pagos aos régulos e potentados diversos, quer africanos, afro-portugueses ou afro-islamizados, entravam no circuito de trocas; mas a terra era possuída, de formas e por mecanismos variados, pelos membros da comunidade que dela desfrutavam” (ZAMPARONI, 1998, p.28). Quando na terceira década do século XIX, Portugal por meio de reformulações na constituição passou a considerar as colônias como províncias ultramarinas e que, portanto, estariam subordinadas à mesma legislação em vigor na metrópole, fez teoricamente de todo cidadão independentemente de sua raça e origem étnica, desde que cristão batizado, cidadão português, com 5 Mundo social está aqui sendo usado - mutatis mutandis - no sentido trazido por Becker (2008), em que os mundos sociais são compostos por pessoas que, agindo juntas, com diferentes graus de comprometimento, produzem realidades que também as definem. 61 os mesmos direitos legais e sociais que os portugueses nascidos em Portugal. Ora, essa universalização de direitos foi somente teórica, pois na pratica nenhum momento “os indígenas foram de fato tratados igualitariamente, como cidadãos” plenos, perante a lei (FARRÉ, 2008, p.398; ZAMPARONI, 1998, p.29). Na realidade, o que aconteceu foi que em função das políticas imperialistas de Antonio Enes - sob o argumento de uma pretensa antropologia evolucionista – institucionalizaram-se dois estatutos de cidadania no império: os indígenas e os civilizados. Foi com o início deste debate que começaram a perfilar-se alguns conceitos que viriam a converter-se nos fundamentos ideológicos do imperialismo português: indigenato, assimilacionismo, usos e costumes, autoridades gentílicas, tutela do Estado (FARRÉ, 2008, p. 399). Assim, o acesso a alguns direitos ficou condicionado no que tange aos africanos, ao grau de inserção do indivíduo no restrito espaço político e cultural do dominador6 (ZAMPARONI, 1998, p.29). Seguindo esta estratégia, em 1895, o então Comissário Régio de Moçambique, António Enes, criou a circunscrição indígena, unidade administrativa adequada às zonas rurais, na qual o administrador, no lugar das até então chefias tradicionais, exercia, em termos cumulativos, as funções de juiz e administrador. Por seu turno, as circunscrições foram divididas em regedorias, dada a escassez de recursos políticos e administrativos da metrópole, foram escolhidos entre os antigos chefes tradicionais, indivíduos submissos para a governação das regedorias então criadas. Os regedores ou régulos como eram mais conhecidos, juntamente com os seus auxiliares (chefes de povoação, chefes de terras, sipaios, cabos-de-terra), desempenharam um papel preponderante e ativo na persuasão das populações rurais para o chibalo, serviços públicos e outros, e até mesmo, para o pagamento do mussoco ou do imposto da palhota. (LOURENÇO, 2005, p.14; SERRA, 2010, p.12). De tal forma que gradualmente, os régulos e seus auxiliares foram sendo percebidos como parte efetiva do estado colonial, auferindo remunerações pagas através de comissões sobre os impostos, do recrutamento de mão de obra e sobre a venda de culturas obrigatórias dentro das áreas sob seu controlo (MENESES, 2003). Apesar de manipuladas - ainda que com alguma resistência em alguns casos- as autoridades tradicionais e instituições a ela relacionadas, constituíram um importante fator de coesão e identidade cultural, legitimando a autoridade e regulando as relações das populações com o meio, 6 O projeto assimilacionista, estipulava que os africanos que demonstrassem ter integrado a língua, a conduta e os valores da civilização portuguesa na sua vida fossem considerados assimilados. Os assimilados teriam direito à plena cidadania portuguesa, pois estariam capacitados para a exercerem. Pelo contrário, todos os que ainda não tivessem alcançado o estatuto de assimilado seriam considerados indígenas. Os indígenas caracterizavam-se por continuarem a viver regidos pelos seus usos e costumes e a falar dialectos locais, não estando por isso capacitados para exercerem a cidadania portuguesa, ficando dela excluídos até que demonstrassem ter avançado no seu processo civilizacional. Enquanto não fossem cidadãos, o Estado português assumia sobre eles uma relação de tutela, o que significava submissão ao regime de trabalho forçado, pagamento de impostos e emigração controlada para além de outras condicionantes. 62 administrando localmente as situações de conflito que emergiram. Assim, o regime de indigenato assentava num sistema de identidade social que tornava o nascimento ou a associação à linhagem de um determinado grupo o fundamento dos direitos de residência e acesso à terra (quer no sentido real, quer no sentido de pertença linhageira), embora, fosse frequente o desrespeito as alianças e fronteiras pré-coloniais (MENEZES, 2003, p.346). Uma das características do período de implementação do Estado colonial foi a destruição da autoridade política de algumas linhagens, integrando-as noutras, e passando-as à situação de subordinadas. Com este procedimento, a administração colonial tinha em vista o banimento das linhagens temidas, consideradas possíveis protagonistas de focos de resistência militar e a formação de grupos políticos dóceis ou mesmo aliados (LOURENÇO, 2005; MENESES, 2003; MONDLANE, 1995). “Naturalmente que a Administração colonial exercia, sempre que necessário, uma interferência nas regras sucessórias para designar uma autoridade considerada subserviente ou afastar outra que fosse considerada insubordinada ou, de certo modo, contrária aos objetivos coloniais. A nova organização administrativa implementada pelas autoridades coloniais pressupôs, igualmente, um processo de redimensionamento ou redefinição das fronteiras dos territórios pertencentes aos anteriores Estados pré-coloniais, sempre para menor, dentro do espírito da política de dividir para melhor reinar, introduzindo modificações nas estruturas e relações societárias e de poder, à luz dos desígnios da potência ocupante, com implicações que persistiram à evolução dos tempos” (SERRA, 2010, p.13). Fruto desta situação, surgiram inúmeros conflitos de liderança, alguns dos quais se alastram até hoje, entre os “legítimos” lideres, reconhecidos pela comunidade, e os “criados”, resultantes de decisão das autoridades coloniais, mais importante ainda, essa estratégia de dominação do território moçambicano, alterou o conteúdo das relações inter-grupais e intra-grupais, na medida em que as representações advindas da política colonial em torno dos grupos sociais privilegiavam uns em detrimento de outros, que eram considerados inferiores e aos quais eram atribuídas qualidades pejorativas. Ou seja, as políticas de identidade no período colonial, eram determinadas pela necessidade de impor às sociedades existentes no território um sistema de regras que o colonizador dominava e o colonizado desconhecia, afirmando a própria superioridade no controle social e determinando a instabilidade emocional e a inibição cultural do “outro” (CABAÇO, 2007). Quando em 1964 se inicia a luta de libertação nacional conduzida pela Frente de Libertação de Moçambique - FRELIMO, a estratégia da guerrilha consistia em estabelecer alianças com as lideranças tradicionais, uma vez que estavam na origem da própria FRELIMO, filhos de régulos entre outros indivíduos que gozavam de prestigio entre as comunidades (LOURENÇO, 2005; MENEZES, 2003; MONDLANE, 1995). Com o avançar da luta e a medida que a Frelimo vai conquistando terreno, dá-se a consequente retirada do maquina político-administrativa colonial, que 63 em alguns casos incluía ainda as lideranças locais. Assim, nas “zonas libertas” a Frelimo não defrontava apenas o poder colonial, mas também o poder local que continuava em alguns casos a prestar apoio ao governo colonial, daí que a estratégia nestas zonas consistia dependendo da resposta que estas lideranças davam a presença da Frelimo, “consistia em integra-las na sua estrutura administrativa e no processo revolucionário, ou então, elimina-las” (LOURENÇO, 2005, p.24). “O que acontece nas regiões onde estamos envolvidos em combate é que qualquer chefe tradicional que seja contra a luta de libertação é excluído antes que a ação militar se inicie. Mas a partir do momento em que a ação militar está em curso, ou ele passa para o lado do inimigo, ou é eliminado. Só os chefes tradicionais que aderem à FRELIMO, o que significa que se tornam presidentes ou secretários de células, círculos, distritos ou província das nossas estruturas, podem-se manter enquanto tais. Então, eles tornam-se perfeitamente iguais a qualquer um de nós. Portanto, as funções que exerciam antes tiveram influência na sua escolha só na medida em que tinham prestígio (...) mas uma vez começada a luta, ela diz respeito ao povo de Moçambique na sua totalidade” (entrevista com Eduardo Mondlane em 1969, citada em LOURENÇO, 2005, p.29). Após a independência, conseguida em 1975, a herança deixada pelo colonialismo era caracterizada por um espaço político composto por múltiplas etnias, socialmente multifacetado e com graves desigualdades regionais (MENEZES, 2003, p.350). Na medida em que a Frelimo adota a ideologia Marxista-Leninista, a principal preocupação do agora Partido-Estado Frelimo era o de construir e efetivar um projeto de estado nação socialista, no qual se combatem abertamente as diferenças étnicas e culturais locais/regionais, era preciso promover uma cultura e um projeto de desenvolvimento nacional único, criando-se uma nação supra-etnica. O projeto da Frelimo visava a criação de um Estado novo que, sob os desígnios do antiimperialismo e do anti-racismo, se propunha fazer tábua rasa do passado para edificar uma nova sociedade habitada por um homem novo (CASAL, 1991). Todos teriam de se subordinar ao partidoEstado, incluindo os outros partidos ou grupos que também tinham lutado contra os portugueses. Era preciso “matar a tribo para fazer nascer a nação” tal como expresso pelo então presidente da Republica Popular de Moçambique, Samora Machel. Com esta atitude arrogante e totalitária, a efervescência e entusiasmo popular que se criou com a instauração de uma nova república e fim do jugo colonial, foi radicalmente eclipsado, foi criada a nível local toda uma estrutura hierárquica ligada exclusivamente ao partido Frelimo, que suplantou a antiga ordem sociopolítica baseada no regulado e na autoridade tradicional, que se viu assim relegada a marginalidade e a condição de “praticas obscurantistas reacionárias que atrasam o desenvolvimento7” (MENEZES, 2003, p.351-352). 7 O artigo 4º da primeira constituição de Moçambique (1975) expressa “a caça às bruxas”, vivida nesse período, na medida em que previa: “a eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente”. 64 Esta situação levou a um descontentamento por parte das bases de apoio a Frelimo, e constitui uma das razões endógenas que propiciaram a deflagração e expansão por todo território moçambicano de uma guerra civil iniciada em 1976, o argumento que levou a que vários líderes tradicionais apoiassem a RENAMO (força que se opunha a FRELIMO e seu projeto), era o de que é preciso recuperar “o direito básico ao livre exercício da vida social, devolvendo às autoridades tradicionais o papel e lugar que sempre lhes pertenceu (...) uma vez, que a Frelimo as estava marginalizando politicamente” (LOURENÇO, 2007, p.196). “Neste contexto de “desencantamento” político crescente com a FRELIMO, os chefes tradicionais anteviram uma oportunidade para reafirmarem a sua liderança e autoridade sobre as comunidades de camponeses – comunidades essas que, em alguns casos, tinham apoiado a FRELIMO na deposição das Autoridades Tradicionais no período imediatamente após a independência. Os líderes políticos tradicionais – especialmente os líderes religiosos – cuja autoridade ainda era considerável, tornaram-se num elemento social centralizador da oposição dos camponeses à autoridade política do Estado. Tal como muitos médiuns e curandeiros, cuja autoridade e influência tradicionais foram também prejudicadas pelas políticas de desenvolvimento rural do Governo no período pós-independência, também os chefes tradicionais se opuseram às aldeias comunais8 se aliando a RENAMO” (LOURENÇO, 2005, p.40). Quando em 1986, ainda no auge da guerra civil, Moçambique adere às instituições de Bretton Woods, abandonando o sistema socialista em detrimento do capitalista e de uma democracia multipartidária, o país inicia uma progressiva viragem histórica, que leva a aprovação de uma nova constituição em 1990, e a assinatura dos acordos de Paz e fim da guerra civil em 1992, com a realização das primeiras eleições multipartidárias em 1994. A nova constituição de 1990 fixa entre outros importantes elementos, o reconhecimento das autoridades tradicionais, assim, o artigo 6º referente aos objetivos do Estado moçambicano, fez constar “a afirmação da personalidade moçambicana, das suas tradições e demais valores socioculturais”; depois, através da norma constante no n.º 1 do artigo 53, determinou que “o Estado promove o desenvolvimento da cultura e personalidade nacionais e garante a livre expressão das tradições e valores da sociedade moçambicana” (SERRA, 2010, p.46). É nesta esteira de reconhecimento às autoridades tradicionais que é publicado o decreto n.º 15/2000, principal instrumento jurídico de reconhecimento a pluralidade das autoridades tradicionais e as diferenças étnicas e identitárias que elas defendem e simbolicamente representam. Após um longo processo histórico as autoridades tradicionais deixaram claro seu importante papel na estruturação da vida quotidiana das populações que garantem sua legitimidade. 8 A literatura sobre o projeto de constituição e implementação de aldeias comunais em Moçambique, é de reconhecida importância para nosso propósitos, no entanto, esta discussão não esta sendo aqui feita pois, não tivemos acesso ainda a essa bibliografia que podera ser acedida em Moçambique. 65 “Em termos sociológicos, o ressurgimento dos antigos régulos significa antes a sua passagem da clandestinidade para a diurnidade. (…) O seu banimento oficial não lhes retirou pertinácia sociológica. Rapidamente assumiram os espaços sociais e simbólicos que lhes eram reservados pela sabedoria de origem imemorial. À mesma velocidade, surgiram os conflitos de liderança e de legitimidade com os grupos dinamizadores 9. As autoridades tradicionais (…) cedo reconquistaram os seus espaços de liderança e foram disputadas por diversos partidos políticos nos principais pleitos eleitorais, ao mesmo tempo em que eram aliciadas pelo Governo para se tornarem tentáculos da administração pública nas comunidades” (FUMO, 2007, p.150) Até aqui pontuamos que, dado o seu poder, importância e legitimidade face as populações, as autoridades tradicionais, foram um recurso amplamente usado para a efetivação do domínio e exploração colonial, herdando assim, da situação colonial um papel político que condicionou a sua relação com o projeto de construção de uma Estado Nação proposto pelo partido Estado marxistaleninista da Frelimo. Esta situação levou a um descontentamento que legitimou em parte a deflagração da guerra civil. Importa referir que, apesar da retórica e prática hostis da FRELIMO, aquilo que o partidoEstado rotulava de “autoridade tradicional” nunca deixou completamente de existir no mundo rural, quer após a independência de Moçambique, quer mesmo durante os anos em que a FRELIMO implementou com sucesso relativo, o seu programa de “modernização socialista”. Os quadros locais da FRELIMO, mais letrados que os chefes tradicionais, comprovaram ser modestamente bem sucedidos como auxiliares dos programas sociais do partido – a expansão da educação rural, a construção de uma rede de cuidados de saúde a nível rural, o fornecimento de água potável às aldeias rurais, etc. – demonstrando, contudo, serem relativamente inaptos em assuntos de conhecimento e gestão do mundo rural (FUMO, 2007; LOURENÇO, 2005; 2007; SERRA, 2010). TERRITORIALIZAÇÃO, ESTADO E CALAMIDADES NATURAIS NO VALE DO ZAMBEZE O deslocamento forçado ou voluntário de pessoas em Moçambique não é um fenômeno recente, pois, historicamente as pessoas têm sido removidas das suas terras devido à interação causal de vários fatores tais como as calamidades naturais, iniciativas de desenvolvimento, guerras, 9 Os grupos dinamizadores (GD) é o nome pelo qual foram designadas as organizações de base da sociedade moçambicana, que foram instauradas logo após a independencia em 1975, embora tenham desde a sua origem sido orientadas pelo projeto politico e social de instauração de uma sociedade Marxista-Leninista centralizada na figura do partido-estado FRELIMO, só a partir de 1978 é que os GD se transformam em celulas do partido Frelimo. Existiram dois tipos de GD, nomeadamente: Os GD de local de residência que tinham como missão organizar os moradores em várias tarefas colectivas, tais como a vigilância das ruas, a limpeza ou promoção da higiene colectiva, a alfabetização de adultos, a resolução de conflitos e a organização de cooperativas de consumo, entre outras. E os os GD de local de trabalho que tinham como missão, estimular o aumento da produtividade - criticar os trabalhadores faltosos, assistir a direcção principalmente nas suas relações com os restantes trabalhadores, evitar os roubos - e, mais importante, orientar Sessões de Esclarecimento politico-ideologico. Em face dessa atuação direta sobre as comunidades os GD constituiram uma frente de conflito com “as autoridades tradicionais” que viram sua legitimidade e poder sobre as comunidades diminuidos. 66 etc. (MATE et al, 2009; LIHAHE, 2009). Focando nas calamidades naturais, na medida em que, é a partir destes eventos no vale do rio Zambeze que se gera a situação concreta de pesquisa que nos possibilita construir nossa problemática, importa dizer que o uso da designação calamidades naturais para os eventos de cheias, já é no caso de Moçambique indicativo de uma gramática politizada, tal como nos mostra Coelho (2005): O termo “calamidades” ganhou, após a independência, uma dimensão bastante lata, referida a todo tipo de malefícios que se abatem sobre a sociedade, num contexto de procura de definição do “inimigo” associada ao esforço de construção do Estado-Nação. Assim, a par das calamidades provocadas pelos inimigos regionais (sobretudo o apartheid), surgiu, por extensão, a definição da natureza como inimiga quando o seu comportamento fugia à normalidade. (COELHO, 2005, p. 219). Para nossos propósitos, mais do que problematizar esta instrumentalização dos eventos naturais, vamos restringir a noção de desastres naturais aos eventos de cheias no vale do Zambeze, evento estes, que tem estado a incitar um processo de remoção das populações das suas zonas de origem, desnudando assim uma série de processos conflituosos de cariz político e identitário, que tem como principais interlocutores o Estado e as comunidades afetadas. A remoção das comunidades e consequente reassentamento em zonas consideradas seguras é tal como nos mostram Chambote e Veja (2008), caracterizada pelo abandono e resistência das populações em permanecer nas zonas de reassentamento, resistência esta que encontra sua origem em parte nos processos incompletos de reassentamento pós-cheias que não dão conta de aspetos ligados a sobrevivência e/ou subsistência das famílias nos centros de reassentamento, que são caracterizados pela falta de alternativas de renda, escassez de infraestruturas básicas nos locais de reassentamento, fragilidade do manuseamento de saúde pública, fraco acesso a água potável, entre outras. Assim, é lugar comum tal como nos mostram a maioria dos estudos que abordam a resistência dos grupos em permanecer nos centros de reassentamento, que as famílias reassentadas regressam as suas antigas comunidades, em função do maior benefício econômico que podem tirar dessas áreas, na medida em que, as terras mais férteis que garantem consequentemente uma maior produtividade agrária, localizam-se nas zonas baixas e nas margens dos rios, que são justamente as zonas mais propícias as cheias e calamidades naturais. Ainda é nessas áreas consideradas de risco que a pratica da pesca, importante recurso para a dieta e renda das famílias é mais comum (CHAMBOTE e VEJA, 2008; LIHAHE, 2009; MATE 2009; JUSTIÇA AMBIENTAL, 2011; COELHO, 2005). Observa-se deste modo um dilema: viver em zonas altas não propensas às cheias, contudo longe da fonte de subsistência, ou viver em zonas baixas propensas às cheias, mas, próximos das 67 fontes de subsistência (CHAMBOTE, 2008; QUEFACE, 2009; LIHAHE, 2009). Neste contexto, verifica-se que aquilo que os “agentes peritos governamentais” designam como área de risco é tido pelas populações como área privilegiada de oportunidades, porém apesar de explicar parcialmente a resistência as zonas de reassentamento esta perspectiva ainda não é a que mais nos interessa. Um desastre ou calamidade natural é assim, um processo que descaracteriza a família e o grupo levando a desterritorialização do mesmo por retirá-la do lugar onde estava situada, o espaço onde elaborava o processo de viver, no âmbito privado e comunitário, sendo por isso, também supressão imaterial, pois, como lembra Milton Santos (1998, p.82) “ O território em que vivemos é mais que um simples conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também um dado simbólico”. Segundo Valencio et al. (2007) o lugar da família é a sua casa/terra. É dali que se elaboram as relações do grupo consigo mesmo e com o mundo exterior. É, ainda, de onde se promovem os elos entre as memórias do passado – onde radica a identidade de cada um e do coletivo – e as memórias do futuro – o vir-à-ser que parte dos meios e modos que a vida concreta oferece. Enfim, é um cenário físico, situado geograficamente, que resguarda a intimidade do grupo familiar e a sua integridade nas várias dimensões da existência social e cultural. Assim, quando a moradia é afetada por desastres ambientais, imprime prejuízos por vezes irreversíveis à família, sobretudo porque o desmantelamento do lugar coloca esse coletivo sob o constrangimento de ocupar outro lugar no qual são impostos novos estilos de vida, isto é, subordinação a sujeitos e argumentos que partem de hierarquias exógenas, cessando sua autodeterminação (VALENCIO et al, 2007). Esta situação afeta, sobretudo as lideranças tradicionais que de um momento para o outro podem se ver despojadas do seu poder e domínio territorial. Apesar da sua materialidade evidente, o território esta aqui sendo construído como mais do que um reservatório de recursos, ele é simultaneamente um espaço de memórias e significados, no qual e a partir do qual as lideranças tradicionais e os grupos criam todo um discurso que lhes confere legitimidade, e serve de mote para suas demandas políticas e de reconhecimento social. Importa assim, pesquisar em que situações estes discursos são acionados e em que é que consistem as reivindicações dos grupos que se recusam a permanecer nos centros de reassentamento. Em Moçambique, as iniciativas do estado ligadas ao controlo sobre o espaço que implica em transferências de populações tem encontrado uma constante resistência por parte dos grupos afetados (GEFFRAY, 1991; CASAL, 1987). Uma vez que não levam em consideração a diversidade e heterogeneidades concretas e históricas dos grupos sociais que pretendem unir e integrar sobre o signo de uma identidade única (GEFFRAY, 1991). Deste modo Anthony Oliver-Smith (2001) citado por Mate et al. (2009, p.49), nos traz que o reassentamento é tido como a expressão mais aguda de 68 perda de poder das pessoas pelo fato de constituir a perda de controlo sobre o espaço físico. Deste modo a ação do governo em face dos desastres naturais, leva não ao fim das disputas inter-territoriais (numa região de forte potencialidade econômica e política) mas sim ao seu apogeu, na medida em que, a resistência das comunidades em permanecer nos centros de reassentamento traz ao de cima a questão da habilidade do Estado moçambicano em proporcionar novas configurações territoriais, acreditamos que são assim colocadas a nu velhas questões ligadas a relação historicamente conturbada entre o projeto de construção de uma nova ordem social ligado a efetivação do Estado-Nação moçambicano e as lideranças tradicionais. Segundo Santos (1996) a sociedade se define, igualmente, por seu contexto geográfico e, portanto, o território contribui para materializar as relações sociais hierarquizadas. Neste contexto, o processo de desterritorializacao dificulta a afirmação de identidades das populações deslocadas na medida em que estas são geograficamente mediadas (HAESBAERT, 2004). Assim, observa-se um confronto entre a racionalidade do Estado/projetos nacionais e a racionalidade das populações afetadas por esses projetos. Os projetos de desenvolvimento e de transformação social, implicando, quase sempre, operações de reordenamento espacial e de estruturação habitacional, são concebidos e executados verticalmente e sem que a orgânica social dessas populações seja tida em conta. Neste contexto, muitos dos conflitos e resistências que envolvem estes projetos não derivam somente da sua natureza e de seus objetivos, mas também das transformações espaciais que deles decorrem e das respostas grupais que eles incitam. A justificação para o fracasso do processo de reassentamento, oferecida pelas autoridades governamentais, assenta numa base “preconceituosa” segundo a qual as populações locais apegamse mais às práticas culturais tradicionais que na racional necessidade de salvar e estabilizar suas vidas em zonas fora de risco. Apontando uma atitude de falta de auto-estima da população vítima das cheias (CHAMBOTE e VEJA, 2008). De acordo com Valencio et al. (2006, 2007), a iniciativa e o poder de decisão sobre o desenvolvimento não constituem competência exclusiva do Estado, mas englobam a sociedade civil que deve ser sujeito, e não objeto, dos programas de desenvolvimento. Assim, os atores centrais dos projetos de desenvolvimento são os sujeitos coletivos, ou seja, as comunidades organizadas cujo processo de construção do poder comunitário engendra um potencial para que os efeitos dessas iniciativas populares se estendam à esfera política, contrariando as causas estruturais da marginalização. Uma vez que cada sociedade tem a sua própria racionalidade inspirada na sua maneira de viver e de coexistir com a natureza e com outras sociedades (NGOENHA, 2005). A desterritorialização, como experiência coletiva propícia a quebra de hábitos, normas e práticas 69 rituais que davam sentidos a ação, incluindo as relacionadas à reafirmação de identidades culturais e ao exercício de papéis públicos e privados10. Suscitam ainda a desritualização de práticas que indivíduos ou grupos exercitam frequentemente, dificultando a recomposição de significados do mundo (THORNBURG; KNOTTNERUS E WEBB, 2005 apud VALENCIO et al, 2009, p.38) O processo de reassentamento, tendo em conta que junta no mesmo local, comunidades, autoridades tradicionais de várias zonas, pode ser um espaço de geração de conflitos pelo controlo do poder, e pela reivindicação por reconhecimento étnico o que pode dificultar o processo de integração e coesão das comunidades nas zonas de reassentamento. Sendo que as lideranças tradicionais nas zonas rurais em Moçambique se constituem como atores de especial importância no próprio processo cognitivo de percepção e objetivação da realidade, gozando deste modo de varias benesses social e historicamente legitimadas, e estruturando o nomos social (MENESES, 2009). Se buscarmos exemplos no processo de socialização do campo (reassentamentos em forma de aldeias comunais) constata-se segundo (GEFFRAY, 1991) que este processo foi levado a cabo em ruptura e conflito aberto com elementos política e socialmente respeitados a nível local pelas populações e por elas investidos de uma autoridade reconhecida. Para os mentores da iniciativa, pouco importavam as diferenças históricas e sociais regionais, pouco interessavam igualmente as motivações e aspirações reais das populações em nome das quais tal projeto foi concebido, tendo sido esta a mesma perspectiva usada nos reassentamentos das populações vítimas de calamidades naturais. CONSTRUINDO O PROBLEMA: ETNICIDADE E TERRITÓRIO Resumindo e concatenando pontuamos que os bairros de reassentamento (que são relativamente seguros), surgiram como política do governo para a prevenção das populações que vivem em zonas de risco dos efeitos das cheias e demais desastres. Porém, tem se verificado que populações resistem a este processo de “ çã ”, abandonando os centros e bairros de reassentamento e voltando as suas zonas de origem passado algum tempo. A pergunta que se coloca neste domínio é: porque é que estas populações resistem ao processo de reassentamento/desterritorialização? Das várias respostas fornecidas para esta pergunta encontramos como vimos a explicação das instituições governamentais que apontam a “teimosia” e fatores políticos como forças motrizes para este comportamento. Neste domínio, as populações afetadas são consideradas ignorantes 10 É preciso complementar essa visão, avançado que os processos de desterritorialização são sempre uma via de mão dupla, na medida em que implicam simultaneamente processos de reterritorialização, e é nestes moldes que pretendemos percebe-los. 70 quando vivenciam o risco e não mudam de residência, temos por outro lado as questões produtivas como um dos fatores-chave, ou seja, nas zonas baixas, perto dos rios, há abundância de água e os solos são relativamente mais férteis. Apesar destas respostas há, entretanto, devido a complexidade do tema, e tendo em conta que a pesquisa sobre desastres como fenômenos sociais em Moçambique, ainda está numa fase embrionária, necessidade de se levantar outro tipo de hipóteses até aqui pouco exploradas, hipóteses estas que se baseiam na premissa do espaço físico como lócus de relações de poder e de conflitos de cariz social, econômico, cultural, político, espacial e simbólico, especialmente entre as lideranças cujo caráter e legitimidade “tradicional” precisa ser explorada. Os processos de reassentamento, como experiência coletiva de territorialização propiciam a resistência ou não à quebra e consequente reformulação de hábitos, normas e praticas que davam sentidos a ação e existência coletiva, incluindo os sentidos relacionados à reafirmação de identidades coletivas e ao agir do grupo enquanto grupos inerentemente políticos, envolvidos num processo conflituoso de domínio territorial e de luta por afirmação (HONNETH, 2003). Processo esse que tem fortes implicações nas lógicas de constituição do grupo enquanto entidade diacriticamente estruturada face a sociedade global, e que age intencionalmente em face a mudanças do mundo prático, o que acirra disputas e conflitos de ordem política, econômica e simbólica entre os diferentes atores que lutam pelo direito e domínio legítimo do território, envolvendo desse modo como principal interlocutor o Estado. Isto é, os desastres naturais na medida em que levam à processos de reassentamentos, tendem a colocar em xeque outros processos específicos de territorialização e o seu significado subjetivo/objetivo para a vida quotidiana das populações constituindo-se deste modo em oportunidades impares de atuação e reordenação política no seio dos próprios grupos e enquanto resposta externa do grupo. Torna-se então importante explorar os novos arranjos culturais e sócio-espaciais adotados pelos grupos na busca de um novo lugar para a coletividade enquanto entidade socialmente vinculada a terra, questionando a habilidade do Estado para negociar e propiciar novas configurações territoriais. Configurações essas que devem ser vistas a luz dos conflitos intra-grupais e inter-grupos, através de uma perspectiva que dê conta em vários níveis, das implicações e nuances econômicas, culturais, sociais, políticas, espaciais e simbólicas, que este processo acarreta no seio dos diferentes atores envolvidos, sendo a fraca adesão as zonas de reassentamento apenas a síntese de um processo figuracional11 (ELIAS, 1970). 11 O conceito de figuração de Elias demonstra existir uma rede de interdependência entre os seres humanos destinandose justamente a combater a teoria de que os seres humanos são átomos isolados nas sociedades, soma-se a isso o fato 71 Assim, a situação que procuramos mapear acima nos oferece uma oportunidade impar para analisar as práticas discrepantes e os desvios das normas - que marcam as contradições internas das sociedades africanas - que se manifestam nas situações concretas de eventos, dramas e crises- cujo quadro explicativo pode ser mapeado num quadro/contexto mais amplo que o local, ou seja, tornase importante perceber as estruturas políticas, econômicas, sociais e simbólicas mais amplas que conduzem a novas dinâmicas dos grupos como resposta a eventos concretos (COHEN, 1969; TURNER, 2008). Devemos, portanto procurar ver estes fenômenos não a luz de uma pretensa tradição estática e irracional, mas sim a luz da relação ambígua entre as práticas ditas “tradicionais” e fenômenos como a urbanização, industrialização, “globalização”, formação de um Estado-Nação, etc. – que equacionados num contexto em que se reconhece o caráter intrinsecamente racional dos grupos se dá conta das tensões e reconfigurações - que não resultam na destruição dos grupos e suas práticas tradicionais, mas sim em processos de “retribalização12” em função da adaptação do grupo ao novo contexto social, político e econômico (Cohen, 1969). Procuraremos então com a presente pesquisa mapear e compreender outros fatores explicativos (sociais, econômicos, políticos, espaciais e simbólicos) ligados à historicidade e as dinâmicas endógenas e exógenas aos grupos, que, podem concorrer para a resistência das populações ao processo de reassentamento pós-cheias (como calamidade natural específica) no vale do Zambeze, ou seja, questionamo-nos: Em que medida as lideranças tradicionais perdem sua legitimidade quando perdem o seu território de origem? Como e que conflitos se manifestam entre as varias lideranças tradicionais e grupos reassentados nos mesmos centros? Até que ponto a configuração espacial interfere na “organização social” das famílias e como esta pode influenciar as comunidades a resistirem ao processo de reassentamento? Até que ponto o processo de desterritorialização das populações implica numa reorganização da estrutura social dos grupos/comunidades afetadas? Como se procedem as novas dinâmicas de poder e autoridade no seio de diferentes comunidades desterritorializadas e reterritorializadas? E que relação se pode estabelecer entre os conflitos de poder por parte dos líderes tradicionais das varias comunidades reassentadas e o abandono das zonas de reassentamento? Que demandas específicas os grupos requerem nos processos de reassentamento? Que elementos identitários diacríticos são colocados em cena nas reivindicações de que as figurações estão sempre em constante mudança num fluxo contínuo, em função do resultado da ação humana sobre elas, e das relações das figurações entre si, na medida em que, todo o ser humano pertence a mais de uma figuração, a exceção para casos extremos. 12 O fenômeno da “retribalização” estudado por Cohen nas cidades africanas, realça que o que se encontra ao explorar a etnicidade são formas de organização social em que as populações se apropriam e articulam estrategicamente antigos costumes e formas de relacionamento social com as novas regras a que estão submetidas, de uma forma dinâmica, em função de uma auto-organização em termos políticos. 72 territoriais dos grupos no vale do Zambeze? Que relação se pode estabelecer entre a historia política de efetivação do Estado-Nação em Moçambique e os conflitos ligados aos processos de reassentamento no vale do Zambeze? Nossa pesquisa vai então procurar perceber em que medida os conflitos e a questão da legitimidade das lideranças tradicionais das diferentes comunidades nos centros de reassentamento de desastres naturais influenciam no retorno das populações às suas zonas de origem? Sendo que estaremos assumindo em jeito de hipóteses que: são os conflitos/lutas de poder entre as autoridades tradicionais e as diferenças socioculturais que levam ao abandono dos centros de reassentamento, por parte das populações deslocadas, devido às mudanças impostas no modus vivendi destas populações. Os centros de reassentamento operam como um artefato político, econômico e simbólico que opera na medida em que é produzido e produz diferentes agentes políticos. Os conflitos e as lutas de poder entre as lideranças tradicionais das diferentes comunidades nos centros de reassentamento são fruto das dinâmicas de estruturação étnica nesses contextos. Em jeito de conclusão, importa dizer que analisar os processos de territorialização, tendo em conta que o território é mais do que uma fonte de subsistência das populações rurais (vale lembrar que a agricultura é a principal atividade de subsistência das populações rurais em Moçambique), sendo também um artefato político, econômico e simbólico que opera na medida em que é produzido e produz diferentes agentes políticos, e cujo domínio está inserido nas micro relações de poder entre as lideranças tradicionais, revela-se como uma oportunidade ímpar, para analisar os processos de institucionalização dos Estados africanos nascidos da situação colonial, partindo de uma abordagem que considere os atores e processos em múltiplas escalas da realidade que de forma ambígua e instigante, combinam e (re) significam “modernidade e tradição”, “etnicidade e estadonação”, “dominação legal e tradicional”, etc. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. 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Pretendemos, desta forma, entender como as leituras e análises sobre o personalismo à brasileira, empreendidas por autores como Richard Morse e Sérgio Buarque de Holanda, reagem através de uma complexa conjugação entre tais valores culturalmente herdados e instituições e legislações marcadamente impessoais, presentes nas modernas democracias ocidentais, para enfim desaguar em determinados aspectos únicos e fundamentais, constituintes importantes da nossa própria identidade. INTRODUÇÃO. Sabemos que as raízes são responsáveis por fixar o vegetal ao solo; são responsáveis, também, por retirar deste mesmo solo os nutrientes que, posteriormente, serão transformados em alimento e garantirão a sobrevivência do vegetal. As raízes, portanto, são as grandes responsáveis por garantir o desenvolvimento e a maturação de toda o funcionamento daquilo que suportam; é nas raízes que começa toda e qualquer estrutura. Já os espelhos são artefatos capazes de refletir uma imagem. São de grande auxílio quando se pretende promover mudanças na própria aparência, tal como são essencialmente os grandes promotores do auto-reconhecimento físico. Espelhos são, obviamente, o duplo de quem ou do que neles se admira mas, a despeito do poderoso misticismo que tal ato carrega para algumas culturas, o reflexo nem sempre é exato ou fiel: a qualidade da imagem refletida está sujeita a fatores como a curvatura do vidro, o ângulo observado e a iluminação do ambiente. Espelhos servem, resumindo, para refletir, de forma mais ou menos fiel, algo que se pretende observar. Desta forma, a questão aqui proposta é, prioritariamente, examinar aspectos desenvolvidos em obras como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, O Espelho de Próspero, de Richard Morse, entre outros, para estabelecer uma pequena análise sobre o processo de construção 76 da identidade brasileira, sobretudo em referência aos aspectos personalistas herdados dos colonizadores ibéricos — “as raízes” — e na conflituosa relação e reconfiguração (ou realocação) de tais aspectos dentro de um sistema social e político, predominante no mundo ocidental, conceitualmente fundamentado na igualdade de direitos e deveres de cada cidadão, tal como em sua necessidade de afirmação identitária dentro do Brasil moderno — “o espelho”. Pretendemos, em outras palavras, entender como se expressam as relações hierárquicas pautadas por fatores intrínsecos ao modelo ibérico, em especial o personalismo — isto é, a valorização do ser através de fatores particulares, como o seu grau de prestígio pessoal, o alcance de suas relações políticas e sociais, o seu reconhecimento profissional — quando confrontadas com situações universalizantes, onde tal prestígio pessoal precisa ser forçosamente desconsiderado em nome da igualdade de direitos civis no Brasil contemporâneo, onde o próprio conceito de democracia representativa adotado postula que, fundamentalmente e obrigatoriamente, todos os indivíduos possuem direitos iguais, perante a lei e o Estado. Não é novidade a existência de fortes conflitos enraizados profundamente na sociedade brasileira. O choque entre a matriz cultural, herdada de uma Ibéria culturalmente segregada por suas próprias particularidades históricas de seus vizinhos europeus, e o sistema político hegemônico, de origem francamente anglo-saxã, vem sendo intensamente trabalhado por intelectuais brasileiros especialmente após a década de 1930, na esteira de autores como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, além do já mencionado Sérgio Buarque de Holanda. Objetivamos, entretanto, recortar dentro deste universo conceitual enorme aspectos que determinem como a difícil conjugação, que aqui necessariamente assume ares conflituosos entre tradição e sistema político-representativo contemporâneo, está contida dentro do processo de formação e das crises identitárias brasileiras atuais e delas se faz fator de suma importância para a compreensão do Brasil enquanto grande, complexo e diversificado esquema cultural. Nas próximas linhas, partiremos de um todo para o particular, saindo de um breve panorama histórico sobre a formação do sistema ibérico para por fim desaguar em casos mais específicos sobre como tal identidade ibérica se manifesta contemporaneamente e onde estão os conflitos encerrados em si, seja via manifestações culturais, via movimentos sociais, ou ações afirmativas, seja através da utilização do “jeitinho”, da necessidade de reafirmação hierárquica. Entre a Ibéria e o resto do mundo. Separada não só geograficamente, mas também culturalmente do resto da Europa pelos Pirineus, a Península Ibérica era, em tempos remotos, um grande e conflituoso mosaico étnico e 77 cultural, composto por mouros, judeus e cristãos; por negros e europeus; todos em franca e constante interação. “O medievalista Henri Pirenne observou que sem Maomé não haveria Carlos Magno (e nem a França). Diga-se o mesmo de modo mais amplo: sem a ocupação muçulmana do Mediterrâneo não se deslocaria para o norte do continente o centro dinâmico que veio formar a Europa. Pode-se dizer também que sem a invasão moura na Ibéria, não existiriam Espanha e Portugal dos descobrimentos que, lembre-se ainda mais uma vez, constituíram, como disse Richard Morse, a primeira face da Europa na história moderna (MORSE, 1988). Da Reconquista, surgiu uma nova identidade cultural desses dois países: como misturas de povos e culturas cristãs, mouras e judias, relegando-se ao passado a Hispania visigótica e a romana.” (WEFFORT, 2012, p. 433) Se por um lado a Reconquista garantiria aos cristãos a tão procurada hegemonia política, por outro o contágio, o escambo, promovido por séculos de convívio entre os diferentes povos originaria aspectos culturais ímpares que, absorvidos, adaptados e homogeneizados, funcionariam como as bases de um ethos próprio, exclusivamente encontrado na população peninsular. Em Portugal, do âmago deste ethos, embalado por uma ética que valorizava especialmente a pessoa, o mérito dos feitos e das histórias pessoais em detrimento à instituição burocrática, brotariam fatores de reconhecimento identitário como o personalismo e, de certa forma, um cárater aventureiro, “ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis” (BRESSER-PEREIRA, 2000, p. 3 apud HOLANDA, 1969, p. 16), em contraste com o apego ao trabalho como principal fundamento ético que mais tarde seria um dos motores dos Estados mais diretamente afetados pela Reforma Protestante. Apoiado no breve panorama histórico acima traçado, é mister novamente ressaltar que estas particularidades explicitadas garantiriam, enfim, o desenvolvimento de um sistema cultural próprio — consideravelmente distinto das matrizes individualistas que surgiriam no mundo anglo-saxão — e afetariam e influenciariam, por conseguinte, diretamente os herdeiros, isto é, as colônias portuguesas e espanholas, dentre elas, obviamente, o Brasil. Desta forma, partindo da pressuposta existência de uma unidade identitária nacional e social que permita ao nativo o seu auto-reconhecimento enquanto brasileiro, mas assumindo que esta unidade é, também, fruto de incorporações de fragmentos provenientes de fontes tão diversas quanto as matrizes étnicas e culturais que aqui aportaram ao longo dos séculos de nossa história, o presente trabalho busca em seu escopo entender e responder duas questões: em primeiro lugar, como tais fragmentos, tão diversos na origem, se conjugam, interagem e que discussões produzem dentro do todo? Em um segundo momento e principalmente, como a herança ibérica se manifesta, quais os conflitos que ela denota, como se organiza e quais soluções propõe ao Brasil contemporâneo, assumindo estruturalmente a enorme variedade de aspectos aos quais aqui está interligada? 78 Conjugações e interações. Ainda no século XIX, o Brasil carecia de um mito formador. Não somos, pois, os filhos de Ulisses como os portugueses; não foram os nossos fundadores amamentados por lobas como no caso romano e não fomos nós, mas os judeus, conforme a bíblia, o povo escolhido por Deus. Foi só então, graças ao pragmatismo de um naturalista alemão — e não graças ao misticismo ou aos ensaios mitológicos — que ganhamos identidade. Somos, segundo Karl von Martius, um híbrido, uma grande confluência entre três raças distintas: os brancos (portugueses), prioritariamente, seguido de índios e negros. Muito embora já existisse antes de von Martius um lógico entendimento sobre o papel de índios e portugueses no que diz respeito às funções identitárias brasileiras, é dele o mérito em inserir culturalmente o negro, até então encarado como não mais do que simples mão-de-obra, dentro das construções culturais. Vale ressaltar que tal síntese, originalmente publicada em 1841, passou décadas ignorada sendo retomada pelos pensadores brasileiros somente já no início do século XX, para ser efetivamente consagrada a partir da década de 1930 (GOMES, 2012, p. 183). É simplificar demais, no entanto, assumir hoje somente as três matrizes dentro de um universo plural, sujeito aos efeitos da dita modernidade estendida, da diminuição de fronteiras e da globalização, como é o Brasil contemporâneo. Não podemos esquecer da intensa contribuição dos fluxos migratórios, especialmente compreendido entre os esforços de importação de mão-de-obra branca iniciado conforme o fim da escravidão e desenvolvido até a crise européia nas décadas de 1940 e 1950, que trouxe uma enorme quantidade de japoneses, judeus, alemães e, sobretudo, italianos. Todos contribuíram, pois, para uma formação com certo grau de cosmopolitismo e influenciaram em um ou outro aspecto identitário algo que seria mais tarde englobado por aquilo que definimos como cultura nacional. Não existe identidade imutável: da mesma forma que os imigrantes do século XIX acrescentaram seus próprios valores e influenciaram o meio, é plausível assumir que mais tarde, com o frequente aporte de chineses, bolivianos e haitianos, característico deste início de século XXI, por exemplo, surgirão novos aspectos e valores, em maior ou menor escala, dentro deste complexo meio. Existe, todavia, uma grande matriz que a despeito das demais, sobressai. É da matriz ibérica que surge o idioma, uma boa parte das referências estéticas e arquitetônicas, a simbologia, a religião da maioria. As conjugações culturais e as incorporações são quase sempre originadas através de um diálogo entre um aspecto diverso e a referência ibérica correspondente: só no Brasil existe uma conjugação tão específica entre as religiões africanas e o catolicismo, para ficar no exemplo mais 79 emblemático; é no Brasil onde as tradicionais baianas, sacerdotisas afro-religiosas e consequentemente pagãs, lavam com água de cheiro as escadarias de um templo cristão. Se em vários lugares o ritual seria enxergado como uma afronta a simbologia cristã, no Brasil é visto com afetividade, com certa doçura, como uma manifestação cultural valiosíssima para ambos os lados — católicos e afros. A capacidade de diálogo já estava presente, para Sérgio Buarque de Holanda, nas origens do Estado português, motivada pela própria miscigenação decorrente da ocupação da Ibéria por diversos povos. O português, em outras palavras, tinha um jogo de cintura próprio para lidar com outras culturas, motivado por certa ausência de orgulho de raça. “Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe latina e, mais do que delas, dos muçulmanos da África, explica-se muito pelo fato de serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestiços [...] Neste caso, o Brasil não foi teatro de nenhuma grande novidade. A mistura com gente de cor tinha começado amplamente na própria metrópole.” (HOLANDA, 1995, p. 53) Esta plasticidade social — também refletia em uma menor estratificação hierárquica, chegando ao ponto de reunir quase homogeneamente dentro do genérico “classe dominante” nobres, burgueses e ricos profissionais liberais, todos dividindo uma mesma mentalidade e com hábitos parecidos não só entre si, mas também similares aos do populacho (cf. BRESSER-PEREIRA, 2000; MORSE, 1988; HOLANDA, 1995) — garantia uma espécie de permeabilidade conceitual que favorecia a transição e a incorporação do particular pelo todo. Se por um lado a maleabilidade social — com a qual também trabalharia Gilberto Freyre através de seu conceito de democracia racial — gerava e permitia esse índice elevado de incorporações, por outro a homogeneização resultava em uma ausência de projetos de classe. Explica-se: tendo o burguês status e mentalidade muito similar a do nobre, a ponto de se confundirem, existe um esvaziamento da noção de classe, uma adoção de um projeto geral que acaba sendo centralizado. Se, no início, essa particularidade cultural foi responsável pelo surgimento de Portugal, já no século XII, como o primeiro Estado moderno de forma precoce, e pelas grandes inovações que o Reino promoveu nos três séculos seguintes, também seria ela a responsável pela transição entre a prosperidade e a inoperância pela qual ficou historicamente marcado o Estado português. Como explica melhor Raymundo Faoro, “a marcha triunfal de Aljubarrota e dos descobrimentos, o encontro com a experiência, tudo se frustraria, imobilizado em uma condição inesperada: a de um reino comercial-marítimo, incandescente no seu primeiro fogo, e uma monarquia ferida de imobilismo.” (FAORO, 2007, p. 46). Em suma, devido às particularidades históricas que atravessaram os Reinos da Ibéria, estes não partilharam com os demais países europeus a estrutura feudal, se modernizando precocemente. 80 Em contrapartida, a própria resultante deste esforço ímpar gerou um sistema identitário diferenciado, que se fechou por muitos séculos dentro de si próprio, não buscando compreender ou conjugar as diferentes filosofias e saberes que surgiam externas as suas fronteiras. O iluminismo e do liberalismo — ao contrário das reformas religiosas, que nunca ocorreram efetivamente na Península — só chegariam e/ou se difundiriam em Portugal só em meados do século XIX. Todo este trato social diferenciado está contido dentro do conceito de personalismo. A valorização do conhecimento social, das interações, dos contatos e da personalidade, das relações moderadas pela intimidade, pelo mérito de ser determinada pessoa — ou, em outras palavras, de todo o conjunto subjetivo que diferencia uma “pessoa” de um “indivíduo” — e não pela impessoalidade tácita das instituições, modelou todo o sistema cultural ibérico e, consequentemente, a herança íbero-americana. Se na América, as conjugações com outras matrizes geraram híbridos interessantíssimos do ponto de vista estrutural conforme demonstrado anteriormente, deve-se levar em conta também que elas acarretam graves conflitos sistêmicos. E dentro destes conflitos, existem entusiasmos que defendem distintos pontos de vista. Se, conforme veremos mais adiante, uns defendem que a “cordialidade” ibérica garante uma sociedade mais unida e solidária, como nos faz crer Richard Morse (1988), outros entendem que a frouxidão de aspectos institucionais promovem patrimonialismo exagerado, tanto na administração pública — o macro — quanto em pequenos conflitos cotidianos — o micro. São, portanto, os dois lados de uma mesma moeda. Os desdobramentos e raízes da cordialidade. Fortemente influenciado pela obra de Max Weber, Sérgio Buarque de Holanda elaborou, em Raízes do Brasil, um tipo ideal que ilustrasse e argumentasse a favor de suas acepções acerca da cultura brasileira. Concebeu, desta forma, o que chamou de “homem cordial”. O homem cordial seria na ótica o autor o arquétipo que melhor traduz interações sociais tipicamente brasileiras: regido pelas emoções em detrimento da razão, com tendência a aproximar e tornar íntimos aqueles que são de suas relações, rejeitando tudo aquilo que lhe parece impessoal. O homem cordial não deve ser, entretanto, confundido com gentil; ele é “cordial” no sentido literal, inerentemente emotivo, passional, e como tal reage passionalmente, seja positivamente ou negativamente: “O homem cordial é aquele que busca sempre em todas as suas relações sociais um nexo de proximidade pessoal. O impessoal pra ele é um tormento. Tudo que é impessoal, desde a burocracia até as pessoas em multidão, lhe são potencialmente adversários. Portanto, para que haja relacionamento, faz-se mister que se dê conhecimento pessoal e em consequência simpatia e proximidade. Tal atitude derivaria, segundo Sérgio Buarque, de um antagonismo inerente entre o Estado, como instância do poder público, portanto, do impessoal, portanto, do adverso; e a Família, como instância do privado, do pessoal e portanto do próximo. O brasileiro, que forma sua personalidade no seio e no aconchego da família, detesta o 81 impessoal, sente-se ameaçado e incapaz diante do desconhecido e só pode conviver verdadeiramente com aquilo que lhe pode ser tornado pessoal.” (GOMES, 2012, p. 190) Ele é, ao mesmo tempo, instrumento e executor do personalismo. É ele quem promove e fomenta o culto à aproximação, rejeita o impessoal e tenta sempre trazer o que é estranho para intimidade; por outro lado, o homem cordial representa uma construção recorrente, entranhada no meio cultural do qual ele também é uma reprodução. Entendemos que é um ciclo: o personalismo entranhado recria e opera constantemente um instrumento, o homem, que executa o mesmo personalismo, sucessivamente. Sendo ambos, homem cordial e personalismo, ao mesmo tempo, causas e efeitos, legislador e executor um do outro, podemos assumir que este ciclo avançou continuamente, ainda que sofrendo incorporações ao longo dos tempos, enxertos conflituosos provenientes de aspectos culturais exógenos, que aportaram dentro deste meio já previamente estabelecido e que, embora não tenha destruído ou mesmo desfigurado o sistema em questão, remodelaram e inseriram novos ramos estruturais, tornando sua fisionomia sociológica fundamentalmente mais complexa. Existem, portanto, vários vieses mais ou menos explorados, trabalhando qualitativamente aspectos mais ou menos evidentes, dentro da literatura sócio-antropológica ou política produzida pelos pensadores brasileiros que se dedicam ao tema. Enfim, a problemática que envolve relações entre tradição e modernidade no Brasil gerou diversas produções com enfoques distintos e permite trânsito entre diferentes correntes e idéias para desta forma entender o personalismo e o homem cordial em variados desdobramentos. Curiosamente, Sérgio Buarque de Holanda se esforça pela neutralidade. Se por um lado, aparentemente nutre certa simpatia pela sua referência de tipo ideal, por outro define, talvez causticamente, o homem cordial como “contribuição brasileira a civilização” (1995, p. 146). O autor, embora demonstre um certo desprezo por algumas demonstrações típicas de personalismo, como o que entende por “bacharelismo” brasileiro, faz por outro lado concessões ao modus operandi português de colonização, pautado prioritariamente pelo fomento das relações pessoais, ao contrário do modelo neerlandês, principalmente representado pelo desenvolvimento de instituições burocráticas. Em suas considerações, o autor entende que a modernidade acabará por suplantar a herança personalista, as raízes, que serão paulatinamente substituídas por um modelo mais próximo daquele norte-americano, cujo individualismo e igualdade de direitos civis tanto inspirou Tocqueville. Alcançamos enfim a proposta deste trabalho: tipificar, exemplificar, entender, manifestar e fazer dialogar as diferentes propostas e visões acerca dos conflitos gerados pela inserção e acomodação de matrizes de origens distintas dentro deste meio inicial predominantemente ibérico e os dispositivos que o homem cordial encontrou e desenvolveu para continuar agindo de forma 82 personalista. Surge, enfim, uma profusão de símbolos, situações e atitudes que merecem ser trabalhados, conforme será visto nos próximos parágrafos. Entre malandros e bacharéis. Coexistem no Brasil dois fatores, um político e um cultural, que a priori são notadamente incompatíveis. Se, de um lado, seguindo os moldes das grandes democracias ocidentais, existe busca pela impessoalidade das leis, nivelando todos os indivíduos dentro de um mesmo universo legislativo de direitos e responsabilidades, por outro existe o personalismo ibérico, com suas propostas de aproximação, de levar para o lado pessoal aspectos que deveriam ser estritamente impessoais. Existe um significativo outro lado da nossa cordialidade simpática. Este outro lado, mais malicioso, é o responsável pelo mau personalismo, o personalismo que fere leis e enfraquece instituições; é o personalismo que corrompe, que se confunde com o patrimonialismo, misturando e cancelando os limites, dentro das esferas administrativas do país, de dois campos que deveriam, para o bem da ordem pública, se manter estritamente afastados: o poder público e o poder privado. Este aspecto negativo do personalismo acabou predominando no imaginário popular. Os conflitos gerados pelo seu uso pernóstico geraram dispositivos de afirmação hierárquica, como a famosa expressão “você sabe com quem está falando?”, trabalhada por Roberto DaMatta (1997). O antropólogo invoca então um desdobramento negativo desta essência personalista. A utilização da expressão — usualmente aplicada em situações onde alguém nega a identidade subjetiva e particular da pessoa para situá-la em uma relação impessoal onde predomina o indivíduo — é uma resposta agressiva ao frio trato que separa o ser de todas as suas insígnias e relações sociais; o utilizador da expressão busca, portanto, se reafirmar dentro de um status social que ele julga pertencer e que, subitamente, lhe foi subtraído e desrespeitado. O “você sabe quem está falando?” é, acima de tudo, uma forma de se posicionar hierarquicamente como superior ao interlocutor, de registrar a importância de suas particularidades especiais em detrimento da lei que o generaliza e que não serve para si próprio, mas somente para enquadrar para os outros. Para tornar mais claro, podemos citar, por exemplo, alguém que estaciona seu automóvel em um lugar proibido. Ao ser abordado pelo guarda-municipal, reage com a famigerada pergunta, já emendando imediatamente a resposta: “você sabe com quem está falando? eu sou o deputado fulano!”, ou “sou a esposa do deputado fulano” ou ainda “sou o motorista do deputado fulano”. Em todos os casos, quem emprega a expressão se julga detentor de particularidades, de um status que não permite a abordagem e o trato como se fosse um “qualquer”. A negação do valor pessoal, da posição hierárquica que a pessoa ocupa dentro da estratificação social da sociedade, e a 83 consequente realocação da personalidade para a categoria genérica de indivíduo gera estranheza, conflito, e exige uma reparação. Percebemos, pois, uma nítida dicotomia: existe a pessoa e todo o aparato abstrato, como relações sociais e os status que fazem dela alguém particular e existe o indivíduo, o cidadão, genérico, cujos direitos e deveres estão pautados legislativamente e são comuns a todos os outros. A dicotomia pode ser, inclusive, ampliada: os nossos, os amigos, os companheiros, os de casa, em contraste com os outros, os estranhos, os da rua1. Aos nossos, os privilégios e a particularização; aos outros, a lei! No Brasil, o próprio termo “indivíduo” é encarado como certo ar pejorativo, onde “são inúmeras as expressões que denotam o desprezo pelo ‘indivíduo’, usado como sinônimo de gente sem princípios, um elemento desgarrado do mundo humano e próximo da natureza, como os animais.” (DaMATTA, 1997, p. 240). São sempre os indivíduos (os outros, portanto) que frequentam ambientes ruins, que se envolvem em escândalos e crimes; nunca os de casa, os de “boa família”. Segundo este entendimento, o Brasil está imerso em uma cultura de privilégios, estratificada pelo quão próximos somos dos outros e não moderada efetivamente pela igualdade de direitos, embora esta exista apenas em teoria. “Eis o que parece ser o dilema brasileiro. Pois temos a regra universalizante que supostamente deveria corrigir as desigualdades servindo apenas para legitimá-las, posto que as leis tornam o sistema de relações pessoais mais solidário, mais operativo e mais preparado para superar as dificuldades colocadas pela autoridade impessoal da regra.” (Idem, p. 247) A ausência de rigor legislativo observada por DaMatta vai de encontro ao desleixo português pelas formalidades narrado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil e concorda também com as considerações sobre a fraqueza de formalidades burocráticas e institucionais presentes na América Ibérica proposta por Richard Morse (1988), ainda que este último considere tal aspecto positivo, conforme veremos mais adiante. O esforço das leis em igualar os indivíduos em um mesmo patamar e vedar a prática personalista, em tese, é evidente; existem, no entanto, certos exemplos de leis que, de dentro do nosso conjunto de legislações, recorrem também a uma prática personalista. Um exemplo contundente é a lei2 que garante prisão especial provisória, cela individual, para pessoas que tenham um diploma de ensino superior antes de uma condenação efetiva. O privilégio em questão faz jus à análise de Sérgio Buarque sobre o que ele chama de “bacharelismo”. Diz o autor inicialmente, sobre particularidades da hierarquia portuguesa, que 1 Ver DaMatta, Roberto. “A Casa & a Rua”. Rocco: São Paulo, 1997 Art. 295 do Código de Processo Penal, inciso VII, que determina que os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República “serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva”. 2 84 “qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza.” (1995, p. 83) para, depois, retomar o raciocínio, argumentando que: “Apenas, no Brasil, se fatores de ordem econômica e social — comuns a todos os países americanos — devem ter contribuído largamente para o prestígio das profissões liberais, convém não esquecer que o mesmo prestígio já as cercava tradicionalmente na mãe-pátria. Em quase todas as épocas da história portuguesa uma carta de bacharel valeu quase tanto como uma carta de recomendação nas pretensões a altos cargos públicos.” (Idem, p. 157) Se o título de bacharel no Brasil substituiu motivos heráldicos, dentro de uma ótica hierárquica, é compreensível que alguns dos privilégios outrora concedidos aos nobres sejam recuperados para a nova classe aristocrática; o ato de isolar o graduado, ainda que provisoriamente antes do julgamento, pode ser interpretado como um “benefício da dúvida” que os demais, inferiores hierarquicamente, não possuem. Da mesma forma que o nobre detém privilégios amparados por suas origens hereditárias, neste caso específico, o bacharel as absorve, amparado por pretensa superioridade intelectual. Em outras palavras, espera-se de um comum hoje (e antes) que se pratique um delito e que seja punido por ele, mas a recíproca, para o diplomado, não é verdadeira (da mesma forma que não o era para o nobre antes) e, se o diploma não garante exatamente a sua liberdade plena mediante um crime, ao menos garante que ele não se misture — e consequentemente se contamine — com os inferiores. A discussão se dá, portanto, em um contexto de transição de formas hierárquicas traduzidos na transferência simbólica entre o brasão e o diploma. Diz DaMatta sobre o assunto: “Assim, na medida em que símbolos tradicionais de posição social, como o uso de fraques, bengalas e bigodes [...] saíram de moda, a expressão ‘sabe com quem está falando?’ tenha ficado muito mais comum nessas eras de de mudança e de ‘desenvolvimento’ justamente porque hoje não se tem mais a antiga e ‘boa consciência’ de lugar.” (1997, p. 206) É possível interpretar a evolução dos símbolos levando em consideração a teoria proposta por Norbert Elias (2011) sobre o reinvento de hábitos e símbolos que justificassem e demonstrassem preponderância hierárquica dos nobres sobre os demais, durante a transição entre a nobreza feudal, guerreira, para a nobreza de corte. Se no caso brasileiro a nobreza é substituída por uma elite intelectual, conforme coloca Buarque de Holanda, é compreensível que sejam adaptados rituais e símbolos — e mesmo leis, conforme vimos anteriormente — que justifiquem a posição de superioridade; não estando estes símbolos sempre explícitos, o dispositivo “você sabe com quem está falando?” estudado por DaMatta entra na discussão para colocar o inferior em seu devido lugar. Resumindo, procuramos demonstrar nas linhas precedentes como o personalismo herdado dos ibéricos e a difícil fronteira entre o público e o privado entra em conflito quando confrontado com o regimento impessoal das leis e das instituições modernas. Procuramos observar também que, mesmo que haja um esforço teórico para de fato nivelar os cidadãos em uma posição de direitos 85 iguais, existem alguns dispositivos que acabam por justificar dentro destas construções o mesmo personalismo que elas deveriam combater. A construção e a transição dos símbolos que justificam o posicionamento hierárquico de cada classe também faz parte do conflito, seja através da ostentação de insígnias, seja, na ausência delas enquanto explícitas, no uso da autoritária expressão “você sabe com quem está falando?”. Nota-se, portanto, que também a cordialidade, em seu sentido literal de emotividade, pode transitar entre aspectos positivos e negativos; que da mesma forma que existe a constante tentativa de aproximar aquele que é distante, existe também a defesa do próximo em detrimento do desconhecido, caracterizando uma potencial desigualdade no alcance e aplicação das leis. As leis, afinal, servem sempre para os outros, nunca para os nossos. Estas observações exprimem também o patrimonialismo, desde manifestações mais simplórias — como uma pessoa que fura a fila de determinado estabelecimento por ser amigo do gerente — até exemplos consideravelmente mais graves — como a contratação de um funcionário público intermediado por suas relações pessoais, sem a convocação de concurso, ou mesmo a apropriação de dinheiro do Estado para uso em causas próprias. O conflito entre identidade cultural e controle legislativo se alastra portanto tanto dentro de um universo micro, traduzido pelas dificuldades de interação e pequenas crises cotidianas, até o macro, especialmente representado pelo patrimonialismo dentro do corpo político. É dentro desta conjuntura que podemos enquadrar uma importante observação proposta por um dos nossos autores: “A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas.” (HOLANDA, 1995, p. 160) Notamos, por fim, a dificuldade em acomodar dentro do ethos ibérico noções de democracia e igualdade, compreendida no sentido tocquevilleano do termo, enquanto civil, igualdade de direitos. Não conseguimos conjugar, à maneira dos americanos, igualdade civil com diferenças étnicas ou sociais. Explica DaMatta sobre a questão racial, mas cujo argumento também pode ser importado para conflitos de ordem puramente social ou sócio-econômicos: “Sendo assim, não fizemos qualquer contralegislação que definisse um sistema de relações raciais fechado e segregacionista, com base no princípio do ‘iguais, mas separados’ (como foi o caso americano). Preferimos usar o domínio das relações pessoais — essa área não atingida pelas leis — como local privilegiado para o preconceito que, entre nós, como têm observado muitos pesquisadores, tem um forte componente estético (ou moral) e nunca legal.” (1997, p. 208) Em contrapartida, aspectos positivos sobre a herança ibérica são igualmente enumerados por outros autores, que utilizam justamente o mesmo contraste com os países individualistas para desenvolver seus argumentos. Examinaremos algumas proposições e aspectos que abordam esse 86 viés mais positivo, em um sentido construtivo também como uma espécie de nova ordem social do personalismo para podermos, finalmente, completar o panorama. Nem tudo está perdido: reflexos positivos da herança ibérica. Um espelho. Um artefato, conforme ilustrado na introdução do presente trabalho, cuja função reflete uma busca por auto-reconhecimento ou identificação. Um espelho controlado por Próspero3, um grande mago e legítimo governante de um ducado que, exilado em uma ilha por traição política, busca vingança e restituição. O espelho de Próspero ao qual o brasilianista Richard Morse faz referência no título de seu estudo sobre a América Latina — que ele coerentemente prefere chamar de Íbero-América — é uma alegoria que o autor utiliza para representar a “vingança” do sistema personalista ibérico, estigmatizado como inoperante e atrasado, quando confrontado com o modelo individualista e impessoal predominante na Anglo-América. O curioso projeto de Morse — ele próprio um historiador norte-americano, que discorre com fluência e erudição sobre as particularidades do processo civilizatório e do aparato histórico ao qual a Ibéria e, posteriormente, suas colônias estiveram submetidas — consiste em encontrar um espaço para o sistema ibérico — que ele entende como uma escolha, uma opção, uma alternativa promovida pelos Estados peninsulares — e seus herdeiros íbero-americanos dentro da estrutura ocidental; para o autor, o modelo ibérico, embora careça de menor dinamismo e receptividade científica e filosófica que o modelo anglo-saxão, possui méritos únicos capazes de uma forte contribuição para a civilização ocidental. Assumindo a “escolha” ibérica como periférica e o modelo adotado pela anglo-américa como hegemônico, Morse entende que o último entrou em vias de esgotamento e que o projeto ibérico pode emergir desta periferia como uma alternativa saudável para a manutenção ou construção de uma ordem social remodelada. No entendimento do autor, a Ibéria permaneceu, durante séculos, estagnada, não experimentando nenhuma “situação interna revolucionária religiosa ou política” (MORSE, 1988, p. 73) e, consequentemente, acabou sonolenta, presa no próprio imobilismo, que não permitiu nenhum auto-exame, ao contrário do modelo hegemônico, que em suas origens atravessou a Reforma Protestante, as revoluções Francesa e Industrial e, embora o autor não mencione, mais recentemente as duas guerras mundiais. A escolha ibérica se escondeu do mundo e dele não partilhou. Continuou existente em si, pouco adaptada aos fatores políticos e sociais que surgiam, visto que estes não haviam sido 3 Personagem de “A Tempestade”, de William Shakespeare. 87 pensados sobre medida para teu uso4. Tomava as coisas “de segunda mão” e tinha dificuldades para customizá-las. O projeto ibérico, neste sentido, de fato assumiria ares de fracasso. O resgate que o autor promove, todavia, desta escolha periférica, especialmente aplicada na economicamente e socialmente frágil Íbero-América, é entusiástico: Richard Morse entende que o modelo da rica Anglo-América está em vias de esgotamento e que a alternativa passa pelo entendimento da sociedade por uma ótica onde as instituições mais frágeis permitam uma maior interação social entre os cidadãos, gerando assim uma espécie de solidariedade personalista. Nota-se, portanto, que em Morse, o personalismo pode adquirir contornos positivos e tomar sua parte no “desígnio ocidental”. O otimismo do autor para o futuro contrasta, portanto, com as perspectivas já abordadas neste trabalho e, embora desenvolva esquema semelhante em sua obra ao que Sérgio Buarque de Holanda desenvolve em Raízes do Brasil, partindo de uma formação histórica e política como ponto de partida para a formação do projeto estrutural ibérico, o brasilianista se mostra muito mais otimista que o reticente brasileiro no que diz respeito ao futuro da Íbero-América. Morse, portanto, pode ser classificado como um entusiasta. Seu espelho, no entanto, gerou polêmicas. Ressuscitou em fins da década de 1980 velhas disputas intelectuais, já presentes nos tempos do Império, entre os defensores do iberismo e aqueles que promoviam o americanismo: a discussão do autor com Simon Schwartzman5 reedita, de certa forma, uma outra, muito anterior, entre o liberal Tavares Bastos e o ibérico Oliveira Vianna, estando esta última revisitada por conhecido artigo do sociólogo Werneck Vianna6. Embora infelizmente seja fisicamente impossível discutir neste trabalho com a enorme atenção que a rica correspondência entre os autores em questão merece, é importante ao menos mencionar que a polêmica que envolve os defensores de esta ou aquela corrente está presente há séculos no pensamento e debate sociológico e político brasileiro. Felizmente, não existe e provavelmente nunca existirá um consenso sobre qual é, de fato, o mérito do individualismo ou o peso do personalismo; a discussão é ampla demais para permitir certezas. Desta forma, restam as conjecturas e os argumentos mais ou menos convincentes. Assim sendo, mencionados os aspectos que interessaram ao âmbito deste trabalho, correremos a seguir o risco de propor uma conclusão, que de forma nenhuma significa ter a triste e audaciosa pretensão de propor uma certeza ou um fim para tão amplo debate. 4 Impossível não recordar da célebre exclamação de João da Ega, personagem do romance Os Maias, de autoria do português Eça de Queirós: “Aqui importa-se tudo! Leis, idéias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos de alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas.” 5 Cf. Schwartzman, Simon. "O Espelho de Morse", e Novos Estudos CEBRAP vol 25, outubro de 1989 pp. 191203. Também disponível em http://www.schwartzman.org.br/simon/redesc/morse.htm. Consultado em 05 de novembro de 2012. 6 WERNECK VIANNA, Luiz. “Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos”. In: DADOS - Revista de Ciências Sociais, Vol. 34. Rio de Janeiro, 1991. 88 CONCLUSÃO O personalismo à brasileira, herdado da metrópole ibérica, existe e influi nas nossas relações culturais e na nossa própria concepção identitária. Existimos enquanto resultado vivo, físico, de um processo histórico iniciado em tempos quase imemoriais; absorvemos uma mentalidade, uma determinada forma de refletir e agir, que tem origem em um processo histórico que nunca poderemos entender ou narrar com plenitude, graças a ausência efetiva de detalhes, onde alguns ficaram por completo perdidos no tempo e espaço. Somos filhos de pais conceituais por nós semidesconhecidos mas, como bons filhos pródigos que somos, assumimos a nossa herança e delas sobrevivemos. Como todo filho, somos diferentes e ao mesmo tempo temos semelhanças com nossos pais. Guardamos a nossa identidade com certo orgulho, preservamos certos ensinamentos, mas os adaptamos as nossas necessidades e ao nosso tempo específico. Existe, claro, uma essência preservada; mas nesta essência se incorporam outros sabores. Somos, sim, personalistas; somos, conforme o termo empregado por Sérgio Buarque, cordiais; temos certa aversão ao distanciamento, buscamos trazer para perto e estabelecer certa intimidade com aqueles que estão longe. Protegemos também aqueles que estão em nossas relações da indiferença do mundo, mesmo que isto signifique passar por cima das nossas próprias regras. As leis, repetindo o que já foi dito anteriormente, são para os outros. Existe, neste esquema, um evidente conflito. Somos modernos, estamos incluídos em um mundo dinâmico do qual dependemos e que funciona pautado por um modelo que nos é estranho, de difícil adaptação, pautado por impessoalidades e friezas institucionais. Ibéricos, latinos, procuramos sempre uma brecha no sistema, damos um jeitinho de aproximar o que está longe e resolver dentro de um meio mecânico por um viés mais orgânico. Explicitadas estas particularidades, o que somos, afinal? Difícil (ou mesmo impossível) responder. Existem, entretanto alguns pontos notáveis que merecessem reconhecimento. Em primeiro lugar, incorporamos vetores. Não somos imutáveis. E, se Buarque de Holanda se precipitou em dizer que a herança ibérica estava condenada a desaparecer (1995, pp. 169 - 189), não podemos negar que elas sofreram uma certa mutação. Em segundo lugar, estamos organizados, mal ou bem, dentro de um sistema que tende, cada vez mais, a nos reconhecer enquanto células responsáveis pelo funcionamento de um todo, onde cada um tem uma função e uma influência específica. Desta forma, dentro de uma estrutura, não somos meros observadores, mas sim participantes que, muito embora detendo certos valores em comum, ao qual podemos chamar genericamente de identidade, pensamos diferente e possuímos diferentes argumentos que podem gerar diferentes atuações. 89 Entendo, ao fim deste trabalho, assumindo todas as consequências e conforme já explicitado sem ter a audácia de querer por fim a discussão, que estamos imersos em um sistema que englobou aspectos distintos e entrou em mutação, produzindo um híbrido. Estes aspectos, dentro de um conjunto amplo, estão justapostos e ora dialogam e interagem harmoniosamente, ora entram em desacordo e promovem conflitos. Eles, os aspectos culturais absorvidos e distintos, não estão, analogamente falando, dispostos em uma balança que pende para este ou aquele lado, mas sim em profundo contato, interativos, dinâmicos e voláteis. Como todo híbrido, acaba necessitando de um certo desenvolvimento, acaba possuindo certas arestas e deformidades que com o tempo vão sendo polidas ou amenizadas. Não somos, concluindo, exclusivamente personalistas ou individualistas; possuímos heranças e incorporações que geraram uma identidade híbrida que se manifesta de forma mais ou menos incerta muito de acordo com a ocasião. Se existe no Brasil uma grande gama étnica que gerou reconhecidamente um ser mestiço como grande símbolo da variedade do país, acho que devemos entender este mesmo processo de miscigenação como responsável pelas dores e delícias, parafraseando o compositor, de sermos quem nós somos. Boa Viagem, novembro de 2012. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRESSER-PEREIRA, Luíz Carlos. Relendo Raízes do Brasil. 2000. Disponível em http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=549. Consultado em 5 de novembro de 2012. DaMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. _________, O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. FAORO, Raimundo. A República inacabada. São Paulo, Editora Globo, 2007. GOMES, Mércio P. Antropologia. São Paulo: Contexto, 2012. HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. MORSE, Richard. O Espelho de Próspero. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. WEFFORT, Francisco. “Origens do Brasil: Nossas Heranças Ibéricas” In: Uma Sociologia Indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2012. 90 BLOOD & HONOUR: NEONAZISMO, LUTA POR RECONHECIMENTO E TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Eric Monné Fraga de Oliveira1 RESUMO O artigo que se segue pretende oferecer uma abordagem científica e livre de viés político sobre a organização neonazista Blood & Honour. Os referenciais sociológicos usados compreendem, sobretudo, quatro contribuições teóricas: a teoria dos movimentos sociais de Sidney Tarrow; os conceitos de movimento social, movimento societal e antimovimento social desenvolvidos por Alain Touraine, o conceito de luta por reconhecimento de Axel Honneth; e a teoria sobre multiculturalidade de Stuart Hall. O propósito principal é compreender e explicar como se produzem os sentimentos, experiências e memórias neonazistas e como isso se desenvolveu através da organização Blood & Honour. O material empírico para este estudo é constituído pelos trabalhos de Antonio Salas (sobre a Blood & Honour) e Bill Buford (sobre neonazismo), e pela website da organização. Palavras-chave: Neonazismo; reconhecimento; movimentos sociais; multiculturalidade. INTRODUÇÃO Esse trabalho tem como objetivo realizar uma breve análise da organização neonazista Blood & Honour sob o prisma das teorias dos movimentos sociais e do multiculturalismo. O referencial teórico utilizado será composto principalmente por Axel Honneth, Alain Touraine, Sidney Tarrow e Stuart Hall, com utilizações pontuais de alguns trabalhos e contribuições teóricas de Benedict Anderson, Norbert Elias e Ron Eyerman. As informações sobre o Blood & Honour e outros grupos neonazistas são tiradas dos trabalhos de Antonio Salas e Bill Buford, além das websites das próprias organizações. Alguns outros autores poderão ser úteis em momentos isolados. Verificar-se-á se essa organização pode ser pensada como um movimento social, como se constitui a estrutura de oportunidades e mobilização de recursos, quais são seus símbolos e como eles são manipulados, quais seus objetivos, aliados e opositores. Antes, porém, faz-se necessário esclarecer qual a relação de Salas e Buford com o tema tratado. Antonio Salas é um jornalista espanhol que se infiltrou em um terreno onde se articulam três áreas distintas, porém interligadas: música (assim como estética) “skinhead”, neonazismo e hooliganismo no futebol. Salas relacionou-se, durante sua infiltração, com diversos grupos 1 Mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense, graduado em Ciências Sociais também pela Universidade Federal Fluminense. 91 neonazistas, skinheads (incluídos aí os de orientação esquerdista) e hooligans, mas, no presente trabalho, apenas sua interação com as divisões espanholas do Blood & Honour, a discussão sobre o início da “subcultura”2 jovem skinhead e a relação dessa “subcultura” com o neonazismo terão relevância. Já a obra de Bill Buford, um norte-americano que realizou um trabalho, também de cunho jornalístico, entre hooligans ingleses, foi utilizado mais com a finalidade de corroborar as informações de Salas sobre as organizações neonazistas e suas relações com o hooliganismo e com a “subcultura” skinhead, fornecendo elementos para uma generalização mais correta. Seu papel secundário é providenciar dados para a afinidade entre o National Front e o neonazismo. SURGIMENTO DA ORGANIZAÇÃO BLOOD & HONOUR A organização Blood & Honour tem um início bastante particular, cuja elucidação demanda que se explique, mesmo que superficialmente, um fenômeno que lhe é anterior. Aqui, será necessário fazer isso de maneira curta e objetiva. Após a independência jamaicana em relação ao Reino Unido, grandes contingentes de jovens jamaicanos migraram para a Inglaterra em busca de oportunidades melhores de emprego, e levaram sua música consigo. Logo, esse estilo musical que os acompanhou, uma mistura agressiva de mento, calipso, swing, jazz, jive e Rhythm & Blues que veio a se chamar ska, acompanhado por um ritmo bastante intenso de dança, alcançou uma notável popularidade entre outros jovens urbanos de origem proletária, tornando-se parte de seu estilo de vida e da formação de sua identidade. Dessa integração, surgiram os mods (diminutivo para modernists, modernistas) que, com o passar do tempo, começaram progressivamente a agregar cerveja, futebol e violência ao estilo musical na construção identitária. Avessos ao pacifismo hippie, esses jovens começaram a formar grupos relativamente coesos e orientados por um comportamento violento (já nas suas origens jamaicanas, a postura violenta estava presente). Raspar a cabeça (além de deixar o rosto perfeitamente imberbe) tornou-se uma regra geral nos grupos, significando que estavam constantemente preparados para o combate físico3. Com o passar do tempo, esse estilo musical se tornou cada vez mais popular entre jovens brancos, que passaram a constituir a maioria esmagadora dos seus ouvintes. Após uma ligeira queda desse fenômeno na segunda metade da década de 1960 e no começo dos anos 19704, com o surgimento do movimento musical punk na Inglaterra, esses jovens skinheads (apelido derivado de suas cabeças 2 O termo subcultura é utilizado entre aspas, referindo-se mais ao uso do senso comum do que a uma categoria científica que se preste a uma análise sociológica. A decisão para esse uso menos elaborado do termo ocorreu em virtude da necessidade que haveria de prolongar-se em uma discussão que acabaria por desviar-se dos objetivos previamente propostos, caso se escolhesse por usar a palavra “subcultura” em uma acepção analítica mais adequada. 3 Cabelos e barbas compridos podem facilmente serem fatores negativos em lutas físicas, por questões práticas: podem se enroscar em lugares inoportunos, atrapalhar a visão e possibilitar puxões desestabilizadores por parte dos adversários. 4 Segundo Antonio Salas, a responsabilidade por isso recai sobre a ação da polícia, dos tribunais e da imprensa contra esses jovens, cujas ações violentas se intensificaram e passaram a se relacionar cada vez mais com o futebol após a vitória da Seleção Inglesa no Mundial de Futebol de 1966, criando o fenômeno hooligan. 92 raspadas) voltam a ganhar força. No início, eram politicamente apartidários, embora fossem fortemente marcados por um sentimento de rejeição e de revolta. Suásticas e cruzes gamadas, elementos do imaginário simbólico nazista foram reapropriadas por alguns desses grupos, sendo de início utilizadas unicamente para fins provocativos, como uma forma de transgressão, de demonstração de repulsa contra a sociedade inglesa na qual se sentiam abandonados. Mas em pouco tempo, esses símbolos deixaram de ser meramente sinais de revolta e se tornaram parte do nascente movimento neonazista5. Desse contexto, a figura de Ian Stuart Donaldson, vocalista da banda Skrewdriver, que, a partir de 1984 se torna a mais importante do cenário skinhead neonazi, emergiu com destaque. Junto a Paul Burnley, membro da No Remorse, outra banda neonazista proeminente, em Junho de 1987, eles formaram um grupo político e de distribuição de música neonazista chamado Blood & Honour (isto é, Sangue e Honra), com a ajuda de membros de outras bandas skinhead neonazi, como a Sudden Impact e a Brutal Attack. A organização tem, desde então, como suas principais atividades, o preparo de concertos de música neonazista, especialmente na Europa, e a composição e publicação de sua revista homônima, para divulgação tanto de música neonazista quanto da sua ideologia. Seu nome é uma referência direta ao imaginário nazista: Blut und Ehre era o lema da Juventude Hitlerista, a organização paramilitar do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Cabem, então, as perguntas: o Blood & Honour, como representante do neonazismo, pode ser considerado um movimento social? Por quê? Quais os códigos morais e simbólicos que o guiam? Quais são suas oportunidades políticas e suas formas de ação? Como ele mobiliza os recursos? Qual é a base sobre a qual está assentada sua estrutura? Quais são seus aliados e oponentes? Tentar-se-á aqui, fornecer um esboço de respostas a essas perguntas. BLOOD & HONOUR: UM MOVIMENTO SOCIAL? Para pensar se a organização Blood & Honour, fundada para a divulgação de música e de ideologia de caráter neonazistas, constitui um movimento social, usar-se-á, no presente trabalho, a obra Poderemos Viver Juntos?, de Alain Touraine. Embora definir precisamente o que é um movimento social para esse autor não seja uma tarefa simples, quando o que está em questão é uma organização como o Blood & Honour, esse tipo de raciocínio torna-se ao menos possível. Segundo Alain Touraine, os movimentos sociais são caracterizados como 5 Não se deve cometer o equívoco, todavia, de tomar todo grupo skinhead como um grupo de ideologia neonazista. Em verdade, a maior parte dos grupos skinheads pode ser classificada de três maneiras: a) neonazistas; b) anarquistas e comunistas (em suas diversas vertentes), também chamados de SHARP’s, sigla para SkinHeads Against Racial Prejudice, ou seja, Skinheads contra preconceito racial; e c) apartidários, embora normalmente descontentes com a ordem política e econômica atual. 93 um tipo muito particular de ação coletiva [...] pelo qual uma categoria social, sempre particular, questiona uma forma de dominação social [...] invocando contra ela valores e orientações gerais da sociedade, que ela partilha com seu adversário, para privar este de legitimidade (TOURAINE, 1999, p. 113). Em outras palavras, um movimento social busca não apenas defender os interesses de um determinado grupo, mas destruir uma relação de dominação. Até aqui, ainda é muito nebuloso definir se o Blood & Honour constitui um movimento social, dadas as particularidades desse grupo, as quais serão analisadas mais adiante. Em seguida, Touraine distingue os movimentos sociais em três tipos: societais, culturais e históricos. Será suficiente, para os propósitos aqui definidos, que se atenha apenas aos movimentos societais. Os movimentos societais “combinam um conflito propriamente social com um projeto cultural” (TOURAINE, 1999, p. 118-9), nos quais se constrói o sujeito em seus direitos, ao mesmo tempo em que se luta contra um adversário. O que constitui um movimento de tipo societal “é a associação entre um apelo moral e um conflito diretamente social, isto é, opondo um ator socialmente definido a outro” (TOURAINE, 1999, p. 122). No caso das sociedades ocidentais atuais, o apelo dos movimentos societais é quase sempre em direção às liberdades individuais. De uma forma bastante “deformada”, o Blood & Honour corresponde a essa característica: a defesa de seus princípios, de seu pensamento e de sua expressão está freqüentemente acompanhada pela noção de liberdade individual, embora seus membros neguem esse ideal para seus oponentes, e não raro se manifestem contra esse próprio ideal. Em outras palavras, o B&H defende a liberdade individual deles próprios de serem contra as liberdades (e mesmo contra a existência) de seus oponentes. Segundo Touraine, enquanto os movimentos societais se definem por seus objetivos construtivos, as revoltas se orientam por aquilo que rejeitam. Ora, é difícil imaginar uma luta coletiva que não se organize simultaneamente pela rejeição de algo existente (no plano real ou no imaginário) e pela conquista de alguma forma de reconhecimento (seja na luta por bens – materiais ou imateriais – escassos, seja pela garantia de direitos efetivos e/ou simbólicos ou por outros tipos de conquista). Então, nesse sentido, o que define o B&H? Seria a “defesa da raça ariana” 6 ou o ataque direto aos estrangeiros, judeus e grupos jovens de tendência anarquista? Em uma primeira análise que parta do exterior desse grupo, tende-se a responder essa questão com a segunda alternativa proposta. Entretanto, é fácil compreender, a partir dos trabalhos de Buford e de Salas, além do que se pode ler na própria website da organização, que, para os sujeitos que dela são membros, a primeira alternativa de resposta seria a mais correta7. Reformulando, então, a pergunta: 6 7 No presente trabalho, todas as vezes em que for utilizado o termo “raça”, este será usado como uma categoria dos sujeitos estudados, como uma categoria nativa, e não como uma categoria analítica (GEERTZ, 1989). Supor que a “auto-defesa da raça ariana”, como costuma ser dito pelos sujeitos que participam dessas organizações, não passa de uma demagogia por eles utilizada é ignorar o sentido que esses grupos têm para os agentes que deles 94 os objetivos reais desse grupo são os expostos pelos seus membros ou os que os não-membros vêem a partir das ações dos próprios membros do grupo? Na realidade, todavia, não é possível pensar esse grupo sem considerar os dois objetivos em conjunto. Nesse caso, uma hipótese não precisa excluir a outra. Para o Blood & Honour, o que eles entendem como “a defesa da raça ariana” aparece sempre junto ao ataque contra grupos não-arianos ou de orientação política de esquerda – ataques advindos de uma rejeição radical, que não permite nenhum diálogo com os grupos adversários. Sendo assim, o neonazismo parece encaixar naquilo que Touraine chama de “antimovimento social”, que é aquilo que surge “quando um ator social identifica-se inteiramente com uma aposta cultural [...] e então rejeita seu adversário como inimigo, traidor ou simples obstáculo a eliminar” (TOURAINE, 1999, p. 140). Dessa maneira, os antimovimentos sociais corrompem qualquer possibilidade de diálogo, ao recusar completamente qualquer legitimidade a seus adversários. Os skinheads neonacionalistas do B&H constituem um exemplo sólido dessa situação: eles estão completamente identificados (ideológica e emocionalmente) com a proposta neonazista; essa não é uma posição política à qual se possa aderir apenas parcialmente 8. Sua “aposta cultural” é, primeiro, em uma Europa racialmente branca, livre de estrangeiros (e, em menor grau, com menor importância, essa proposta também serviria para a América do Norte9 e para a Austrália). Para eles, essa seria a pré-condição para a Europa reconstruir sua antiga glória, reafirmando a posição de superioridade da raça branca. Para cumprir esse ideal, faz-se necessário destruir seus inimigos (os sionistas – designação destinada a todos os judeus – em sua economia neoliberal supranacional, e as políticas multiculturais, que incluem os estrangeiros nas terras européias e que, para o B&H, tem como função destruir a identidade tradicional branca européia), os traidores (brancos europeus e americanos com orientação política liberal – os quais são vistos como traidores da causa branca que buscam o lucro imoral do mercado liberal controlados pelos sionistas – ou de esquerda, particularmente, os mais “radicais”, como anarquistas e comunistas) e seus maiores obstáculos (os migrantes que chegam à Europa, principalmente os negros – africanos, afro-caribenhos, jamaicanos, sul-americanos, entre outros – e os muçulmanos – tanto os africanos quanto os árabes e asiáticos). Touraine percebe nos antimovimentos sociais uma ação de defesa contra a dominação da “globalização”10, “em nome de uma tradição comunitária e não para defender a liberdade do formam parte. Embora a adoção da estética geralmente utilizada pelos membros desse grupo não precise ser completa, especialmente entre as mulheres. 9 A maior parte dos skinheads europeus tem uma posição confusa – inclusive para eles – e mesmo ambígua em relação aos Estados Unidos. Os motivos para essa confusão serão abordados brevemente mais adiante. 10 Não é o escopo desse trabalho discutir o termo “globalização”, o que, por si só, levaria um artigo ou mesmo um livro inteiro, dependendo do motivo da discussão. Para nossos fins, será suficiente pensar a globalização nos termos que propõe Stuart Hall em Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais (2003): uma intensificação ocorrida a partir da década de 1970 de um processo muito mais antigo, que já havia tomado formas muito distintas, mas que, desde então, é regido principalmente pelo fortalecimento de um sistema econômico em escala global, “no sentido de que sua esfera de operações é planetária (STUART HALL, 2003, p. 56). 8 95 sujeito” (TOURAINE, 1999, p. 140), impossibilitando a construção de conflitos, levando a uma resposta violenta contra a possibilidade de relacionamento com as outras comunidades. Dessa forma, o “antimovimento social” B&H pode ser considerado uma expressão de um comunitarismo antimulticultural centrado na Europa. Ele representa a recusa a qualquer tipo de relação social com comunidades não-brancas: para eles, é necessário que se crie um orgulho público da raça branca, para que esta possa se unir contra os imigrados e contra a dominação sionista. Isso significa que a resposta para todos os problemas presentes na sociedade européia desde a década de 1970 (com os choques do petróleo, o desmonte de grande parte do welfare state e a implantação de práticas econômicas neoliberais) é, para o B&H, muito simples: retirar os imigrados das terras européias, em defesa das tradições locais. O DESENVOLVIMENTO DE UM ANTIMOVIMENTO SOCIAL Partindo da concepção dos movimentos sociais construída por Alain Touraine, o Blood & Honour se constitui, portanto, não como um movimento social, mas como uma parte de um antimovimento social mais amplo, visto que suas propostas não são consideradas através do conflito pela via do diálogo, mas do confronto pela via da violência, dada a recusa completa de reconhecimento da legitimidade da alteridade – ainda que essa proposta apareça revestida como simples auto-defesa de uma supostamente ameaçada raça branca. Faz-se necessário compreender, portanto, como se constitui esse antimovimento social. Já foi dito contra o que e contra quem o B&H se propõe a lutar. Agora, antes mesmo de entender sua gramática moral e suas formas de ação, é mister demonstrar quem são seus aliados e quem constitui a sua base, para poder entender como se comporta sua estrutura de oportunidades e de mobilização de recursos. A filiação de Ian Stuart, em 1979, já então líder da banda skinhead Skrewdriver11, ao National Front12, partido da extrema-direita nacionalista britânica que costuma estar vinculado a propostas xenófobas e racistas, teve dois efeitos: primeiro, gerou uma filiação em massa de jovens skinheads ao mesmo partido13 e, segundo, fez com que todo o movimento skinhead passasse a ser tomado, na ortodoxia das representações públicas, como sinônimo de neonazismo14. “As fileiras do baixo escalão do National Front consistiam basicamente em pessoas que sentiam, com certo 11 Note-se, entretanto, que o primeiro álbum da banda, All Skrewed Up lançado em 1977, não continha qualquer elemento neonazista: a temática das letras é predominantemente sobre o sentimento de rejeição social, o que é perceptível pelos títulos das canções, como “An-Ti-So-Ci-Al”, I don’t like You” e “I don’t Need Your Love”. 12 Filiação que aconteceu cinco anos antes da fundação do Blood & Honour. 13 Não parece ser mera coincidência que o partido tenha alcançado seu auge nas eleições nacionais gerais nesse mesmo ano. Entretanto, o partido entrou em queda vertiginosa depois dessa data, demonstrando um tímido novo crescimento a partir de 2001. 14 Essa imagem permanece até os dias atuais aos olhos de boa parte do público que não está de alguma forma envolvido com o movimento. 96 fundamento, que não tinham nenhum outro lugar para onde se voltar” (BUFORD, 2010, p. 141). Essas pessoas eram majoritariamente skinheads, fãs de músicos que haviam se filiado ao partido, e/ou hooligans recrutados em estádios de futebol, durante as partidas dos campeonatos nacionais, dois tipos de jovens fortemente marcados pela sensação de falta de reconhecimento e estima social. Alguns anos mais tarde, Ian Stuart deixou o partido, por acreditar que este não era radical o suficiente em suas proposições e, para corresponder às suas expectativas, julgou necessário criar um novo movimento em conjunto com outros skinheads neonazistas, fazendo surgir, assim, o Blood & Honour. Entretanto, o National Front continuou a ser um ponto de referência para muitos dos membros do Blood & Honour, especialmente em época de eleição. Ainda hoje, alguns partidos políticos estão relacionados extra-oficialmente ou indiretamente com o Blood & Honour. Um exemplo disso está na França, onde jovens neonazis, inclusive os que estão ligados ao B&H, apóiam o partido de extrema-direita Front National (partido inspirado no National Front britânico, embora não exista qualquer relação de caráter oficial entre os dois), presidido por Marine Le Pen, a qual recusa qualquer ligação com os jovens skinheads, indo contra a recomendação de outros membros do partido. Apesar dessa recusa em aceitar o apoio explícito desses setores, é praticamente inevitável que o Front National – assim como outros partidos de direita de caráter mai nacionalista, também em outros países europeus – o receba de maneira extra-oficial, pois algumas de suas propostas entram em comum com as exigências do Blood & Honour, particularmente na questão da imigração. Salas nota que, na Espanha, partidos e movimentos de extrema-direita recebem apoio dos jovens neonazis durante as eleições e oferecem recursos, principalmente financeiros, para que suas associações (inclusive o B&H) mantenham suas atividades. Além das ligações extra-oficiais entre as organizações neonazistas (incluindo, obviamente, o Blood & Honour) e alguns partidos políticos de extrema-direita, existem também, como o esperado, relações íntimas dessas organizações neonazistas entre si, embora nem sempre de caráter oficial. A segunda mais importante organização neonazista, a Hammerskin, merece destaque entre elas, por sua força na Espanha e nos Estados Unidos, onde se fundou, embora tenha bases também na Holanda, Suécia, Hungria, Portugal, Nova Zelândia, Canadá e Austrália. É interessante notar que, nos dois lugares onde ela é mais forte, a Hammerskin liga-se a elementos diferentes: nos Estados Unidos, além dos elementos que constituem o neonazismo na Europa, o ódio aos mexicanos e porto-riquenhos (incluindo, sem dúvida, outros latinos) é um dos principais focos mobilizadores de suas ações; já na Espanha, a Hammerskin está presente nos estádios de futebol de alguns dos principais clubes do país, através de torcidas organizadas, como a Ultrassur, torcida organizada do Real Madrid Club de Fútbol15. A relação entre Hammerskin e Blood & Honour, entretanto, tem um 15 Há ainda outras torcidas organizadas de conteúdo neonazista na Espanha, assim como na Europa, mas nenhuma possui uma ligação tão direta com a Hammerskin. 97 caráter muito fluido e instável: as duas organizações não estão diretamente interconectadas entre si por toda parte, embora alguns de seus membros mantenham contatos, em virtude da música e da ideologia compartilhada. Em alguns países, como na Espanha, por exemplo, existe mesmo uma rivalidade entre as duas organizações. Por outro lado, note-se, como exemplo, que a website da Hammerskins (www.hammerskins.net) pôs à venda um DVD, produzido por sua divisão australiana, a Southern Cross Hammerskin em 2007, em conjunto com a 9% Productions e a divisão australiana da B&H, cujo conteúdo é a gravação de um concerto musical realizado em homenagem a Ian Stuart Donaldson16. Pode-se, portanto, exemplificar a relação existente entre as duas organizações através desses dois casos paradigmáticos quase opostos: rivalidade na Espanha (embora, eventualmente, existam oportunidades de apoio mútuo) e parceria íntima na Austrália. Nos outros países, é mais difícil identificar essa relação, embora ela exista em algum nível entre os dois casos previamente expostos. Os outros aliados desse antimovimento são essencialmente associações neonazistas e skinheads menores, além de pequenas lojas e gravadoras de música destinadas ao público skinhead neonazista. Entre elas, podem-se citar Rampage Productions, Rune & Sword Productions, Final Conflict Store, Dissident Mail-order, American Front, Gesta Bélica e Associazione Culturale Veneto Fronte Skinheads – além da Falange, Democracia Nacional, Alternativa por la Unidad Nacional, que não são associadas, mas estão sempre ao entorno das divisões espanholas de Blood & Honour e Hammerskin. São todos, contudo, aliados menores. Não tendo êxito em se aliar oficialmente com os partidos de extrema-direita17, que temem ser “manchados” pela postura violenta dos skinheads, o B&H acaba por não conseguir oportunidades políticas no que tange a arena política estatal. Dessa forma, o antimovimento social neonazista está relativamente isolado, pois não pode entrar nas vias políticas de fato18, tendo que se restringir à captação de membros para suas fileiras para poder fazer o antimovimento crescer e continuar a buscar por oportunidades políticas. Para isso, é necessária a mobilização de recursos financeiros. A responsabilidade na realização dessa tarefa recai sobre as divisões nacionais do antimovimento, que o fazem principalmente com a venda de material neonazista (revistas, livros, CD’s e camisetas de produção independente ou semiindependente, além de outras mercadorias de menor importância) e com a realização de shows de música RAC (sigla de Rock Against Comunism, embora seu teor não seja majoritariamente anticomunista, mas em defesa da supremacia branca e contra os imigrantes), com o apoio de outras organizações neonazistas. 16 Fonte: http://www.hammerskins.net/herecomesthethunder.html Salas chega mesmo a defender que os skinheads são manipulados como massa de manobra por esses partidos. 18 A conduta violenta de seus líderes e sua recusa a participar do jogo político das democracias liberal-burguesas impedem que entre eles se crie um habitus político profissional, no sentido apresentado por Pierre Bourdieu em O Poder Simbólico. 17 98 Quanto às suas oportunidades políticas, a situação do B&H, assim como de outras associações similares, é muito pouco definida. A princípio, qualquer mobilização contrária à sua ideologia torna-se uma possibilidade de oportunidade política: de passeatas do movimento pelos direitos de homossexuais, bissexuais e transexuais, às políticas de ação afirmativa das populações afro-descendentes e de outras minorias, todos esses movimentos geram oportunidades para a ação física ou ideológica do B&H. Cada auto-afirmação dos grupos opostos ao B&H é tomada por eles como uma tentativa de destruir a identidade branca e a cultura européia e, portanto, é transformada pelo grupo em uma oportunidade para fortalecer sua identidade e recrutar novos membros. SÍMBOLOS, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEONAZISTA Parafraseando Sidney Tarrow (2009), adaptando ao objeto de estudo aqui proposto, o que motiva os membros do B&H a participar de atitudes violentas em nome de seu ideal, arriscando suas próprias integridades físicas e patrimoniais? Qual a recompensa que podem obter por se arriscarem? Que objetivos pretendem alcançar com isso? Qual é a estrutura moral que informa seu comportamento? É o caso de uma luta por reconhecimento, para pensar também nos termos de Axel Honneth? Comecemos pela última questão: é, sim, uma luta por reconhecimento. A cada direito conquistado por seus adversários, mais esse antimovimento se sente injustiçado: enquanto sua suposta superioridade não for publicamente reconhecida, enquanto os seus adversários compartilharem de isonomia jurídica e gozarem alguma estima social, os membros da organização continuarão a se sentir menosprezados. Os motivos da resistência social e da rebelião se formam no quadro de experiências morais que procedem da infração e de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas (HONNETH, 2003, p. 258). No caso do antimovimento social neonazista, há a expectativa de se alcançar o reconhecimento de superioridade: ora, um antimovimento marcado pelo sentimento de superioridade racial só poderá se sentir reconhecido se, e na medida em que, for reconhecida sua suposta superioridade. A ausência desse reconhecimento significa a infração dessas expectativas. Oferecer-lhes tratamento igual ao dado às outras “raças” é igualá-los a elas. Ora, igualados àqueles que consideram inferiores, os neonazistas sentem-se rebaixados, desprezados, não-reconhecidos. Os skinheads, conforme relatado por Antonio Salas, incluindo os membros do Blood & Honour, são marcados por um sentimento de submissão e de exclusão, desde antes do componente político entrar em cena. É difícil conhecer exatamente todos os porquês de o antimovimento skinhead neonazista ser escolhido por um indivíduo como um meio para expressar esse sentimento, tendo em vista que existem várias outras formas de organização que poderiam servir para esse mesmo fim e, mais especificamente, dentro desse antimovimento, existem várias organizações às 99 quais o indivíduo pode se associar. O que é fácil, todavia, de compreender é que esse antimovimento disponibiliza elementos fortes – ainda que sejam baseados em premissas equivocadas, como a de uma suposta superioridade racial – para seus membros expressarem seus sentimentos de revolta contra a submissão e exclusão que eles sentem que lhes são impostas, independente de isso corresponder corretamente à realidade. Uma vez que se começa a participar dessa associação, o sentimento de pertença gerado pela solidariedade que se encontra no interior do grupo forma “uma espécie de estima mútua” (HONNETH, 2003, p. 260) entre os membros, aumentando a identificação com a causa. “O engajamento individual na luta política restitui ao indivíduo um pouco de seu autorrespeito perdido” (HONNETH, 2003, p. 259-60) O antimovimento Blood & Honour acolhe seus membros em um grupo coeso, unido, cuja ideologia canaliza todas as angústias sentidas contra inimigos reduzidos a rótulos simples: judeus e, com eles, o sistema econômico globalizado; homossexuais, que, para os neonazistas, ameaçam a integridade da família branca; socialistas, comunistas e anarquistas, por não defenderem a raça branca; e, sobretudo, imigrantes, que alegadamente se recusariam a se integrar às populações nativas. Para esse movimento, a resposta é simples: com a eliminação dos imigrantes (física, especial e/ou simbólica), a Europa poderá se fortalecer e construir uma supremacia branca, lutando contra o “sionismo” e subjugando os demais povos. A “violação de um consenso tácito” – consenso que, no caso do B&H, assim como de todo o antimovimento neonazista, reside na superioridade da raça branca – “é vivenciada pelos atingidos como um processo que os priva de reconhecimento e, por isso, os vexa no sentimento de seu próprio valor” (HONNETH, 2003, p. 263). O B&H envolve os indivíduos em um meio no qual a estima mútua entre os “camaradas” (para usar uma categoria nativa) restitui seu autorrespeito, através da manipulação de símbolos que apelam à superioridade da raça ariana e da identidade européia defendida pelo grupo. Além das supracitadas suásticas e cruzes gamadas, ligadas diretamente ao nazismo, o antimovimento neonazista também possui seus próprios símbolos. Curiosamente, os principais símbolos utilizados são numéricos: “18” vem da primeira e da oitava letras do alfabeto latino, A e H, fazendo referência a Adolf Hitler; “88” segue uma lógica similar, H e H, Heil Hitler; o mesmo acontece com “28”, que é outra forma de se referir ao Blood & Honour; já com o “14”, a lógica é outra – uma alusão às 14 palavras do supremacista branco David Lane, uma frase que deve obrigatoriamente ser de conhecimento de todo jovem neonazi: “We must secure the existence of our people and a future for White Children”, isto é, “devemos assegurar a existência do nosso povo 100 e um futuro para as crianças brancas”19. É pela via simbólica, portanto, que se mobiliza e se organiza a gramática moral do grupo. Esses símbolos apelam não apenas ao sentimento de uma superioridade não reconhecida, mas também à memória coletivamente criada, que sustenta a identidade do grupo. Como ressaltou Ron Eyerman (2004), a memória é uma parte fundamental na formação da identidade – tanto individual quanto coletiva –, bem como da constituição de conflitos e processos políticos. Os “traumas culturais” que marcam a memória neonazista são a derrota na Segunda Guerra Mundial e a perda da condição imperialista européia. Além disso, como se pôde perceber pelos principais símbolos do antimovimento, sua memória está profundamente orientada pelo imaginário do III Reich – o ápice do reconhecimento da “superioridade” da raça ariana. Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas (2005) também destaca, entre outras coisas, o papel da memória, enquanto um processo que envolve simultaneamente lembrança e esquecimento, na construção da identidade coletiva de uma comunidade que existe sobretudo no plano imaginário20, especialmente na questão da nação, isto é, da identidade nacional. Todo o antimovimento neonazista apresenta uma característica particular nesse sentido: por um lado, suas reivindicações são nacionalistas, na medida em que se propõem a fazer a defesa das tradições nacionais; por outro lado, suas organizações são transnacionais. Considerando-se que a maior parte do antimovimento se situa na Europa, ao se associar ao Blood & Honour, o sujeito faz uma afirmação com um duplo sentido de lugar21: em um primeiro momento, afirma-se uma nacionalidade (espanhol, inglês, alemão, holandês etc.); no segundo momento, afirma-se uma pertença “racial” determinada pelo continente – a Europa. Esquecem-se as rivalidades e conflitos intra-europeus em prol da defesa da raça ariana. Também na questão da memória, é importante ressaltar que, como em toda idealização do passado, o antimovimento neonazista reformula todos os problemas que já afligiram a Europa, especialmente os do passado mais recente, responsabilizando preferencialmente a influência judaica – real ou imaginada. Mais que isso, um episódio inteiro do trauma cultural judaico na história recente é apagado da memória neonazista: o holocausto é completamente negado pelos membros dessa organização, é tratado como uma invenção do Judaísmo para poder se travestir de vítima – embora a maioria desses membros não fosse hesitar em realizar um novo holocausto. Conforme relatado por Salas, o revisionismo histórico sobre o genocídio judaico nos últimos anos do Reich é 19 Há também referências simbólicas menores, como às divisões Panzer. Além disso, cada associação neonazista conta com símbolos próprios. Na Hammerskin, por exemplo, um machado tatuado ou numa camiseta pode fazer 20 A nação “é [uma comunidade] imaginada porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão” (ANDERSON, 2005, p. 25). Nesse contexto, de maneira alguma dizer que a nação é imaginada poderia implicar que a nação não fosse, também, real. 21 Assim como ocorre na expressão “afro-americano”, fazendo referência ao país em que se vive – os Estados Unidos da América – e ao continente de “origem” (real e/ou simbólica) – a África – como observou Eyerman. 101 uma marca presente em todas as organizações neonazistas. O revisionismo sobre o holocausto pretende apagá-lo oficialmente da memória não apenas de neonazistas, mas de todos. CONCLUSÃO Anderson (2005) percebe como o adjetivo “novo” usado para denominar cidades fundadas pelos europeus em terras distantes (como New York e Nouvelle-Orléans, na América do Norte) não tem o significado de substituição de um lugar antigo que existia, enquanto isso acontecia, por exemplo, no Sudeste Asiático, em que a cidade assim nomeada era considerada uma sucessora ou herdeira de uma cidade antiga desaparecida. O significado do “novo” nas cidades fundadas pelos europeus em lugares remotos é de uma nova versão a partir do topônimo inspirador. O prefixo “neo” em “neonazismo” reúne essas duas características: ele é o herdeiro de um nazismo praticamente desaparecido e, ao mesmo tempo, uma nova versão. O “neonazismo” é a adaptação de algumas das principais idéias nazistas originais a uma nova condição histórica. Tanto o nazismo original quanto sua versão reformulada partem de um misto de sentimento de falta de reconhecimento de uma suposta superioridade ariana com um conjunto de idéias que têm como foco a negação do reconhecimento a múltiplas formas de alteridade. O fato de o nazismo ser em grande parte motivado pela crise do liberalismo e pela humilhação imposta à Alemanha com o Tratado de Versalhes, além do antigo anti-semitismo presente em diversas populações européias, junto com todo o contexto histórico e social em que estava envolvido, ajuda a explicar aquela que é a maior diferença entre ele e o neonazismo: o caráter transnacional deste, diferente do caráter exclusivamente nacional do nazismo. O neonazismo não é, nem ao menos em parte, uma resposta alemã a uma humilhação nacionalmente sentida: entre as principais organizações neonazistas, a Blood & Honour foi criada por ingleses e a Hammerskin por norte-americanos. A unidade à qual o grupo apela deixou de ser a unidade pangermânica para atuar em diversos níveis: primeiro, o nível nacional; segundo, o nível continental (já que a maior parte do antimovimento é européia); e terceiro, o nível étnico-racial. Embora utilizem símbolos do passado alemão, o antimovimento social neonazista se situa para muito além da Alemanha; esses símbolos são ressignificados de símbolos nacionais para supranacionais, de um movimento político – no significado mais tradicional da palavra “política” – para um antimovimento social predominantemente juvenil. Os símbolos culturais não estão automaticamente disponíveis como símbolos mobilizadores, mas exigem agentes concretos para transformá-los em quadros interpretativos de confronto (TARROW, 2009, p. 157). E é precisamente o que acontece com a Blood & Honour em relação aos antigos símbolos nazistas: a organização, através dos confrontos sócio-políticos, manipula e mobiliza esses símbolos para fornecer um “quadro interpretativo” de todos os elementos que compõem o confronto em que 102 se insere. A combinação do novo quadro interpretativo da xenofobia pan-européia com o antigo quadro do imaginário nazista, numa “matriz cultural” (TARROW, 2009, p. 158) produziu um “quadro interpretativo explosivo de ação coletiva”, isto é, um quadro que possibilitou o surgimento de um novo anti-movimento social. Em outras palavras, o neonazismo, através de suas organizações supranacionais, mobiliza antigos símbolos nazistas, dando-lhes um novo significado – embora ainda ligado ao significado anterior –, fornecido pelos conflitos sócio-políticos em que seus adeptos se encontram, organizando suas experiências de falta de reconhecimento em torno de uma luta que nega o reconhecimento a seus opositores. O neonazismo, através de organizações como a Blood & Honour, funciona como uma ponte cognitiva que liga uma experiência de exclusão sentida individualmente pelo sujeito a uma luta política por reconhecimento dentro de uma coletividade, fornecendo-lhe um mapa cognitivo que explica suas experiências pessoais e o mundo que o cerca e que o sujeito sente que o exclui – ainda que esse mapa não esteja de acordo com a realidade. Essa luta é marcada por uma conduta agressiva não apenas pela violência intrínseca à própria ideologia do movimento, mas também porque, tendo recursos limitados, a “violência real ou potencial [é] a forma mais fácil para a iniciação” (TARROW, 2009, p. 126) de sujeitos que se sentem interditos para se vincular ao antimovimento, sendo também “usada deliberadamente [...] para unir apoiadores, desumanizar opositores e demonstrar a coragem” (TARROW, 2009, p. 126) do anti-movimento, criando “uma identidade coletiva baseada na virilidade e no poder”22. Esse trabalho pretendeu analisar brevemente o funcionamento dos elementos mais básicos da organização neonazista Blood & Honour a partir de dois eixos principais: primeiro, as teorias dos movimentos sociais pensadas por Tarrow, Honneth e Touraine; e, segundo, as teorias sobre o multiculturalismo de Touraine e Hall. Além disso, também foram utilizados os trabalhos de Anderson e Eyerman sobre o papel da memória na construção da identidade em conflitos políticos. Acima disso, o objetivo foi demonstrar como a experiência de exclusão e de interdição do sujeito precisa de um conjunto simbólico coletivamente organizado para poder se transformar em um elemento que mobiliza a ação política coletiva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo. Lisboa: 70, 2005. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. 22 Não é mera coincidência, portanto, que a maior parte do antimovimento seja composta por homens, especialmente mais jovens. 103 ELIAS, Norbert. Os Alemães – A Luta pelo Poder e a Evolução do Habitus nos Séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. EYERMAN, Ron. The Past in the Present – Culture and the Transmission of Memory. Acta Sociologica, Londres, nº 47(2), 2004, pp. 159-169. HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento – A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Rio de Janeiro: 34, 2009. TARROW, Sidney. O Poder em Movimento – Movimentos Sociais e Confronto Político. Petrópolis: Vozes, 2009. _______________. The New Transnational Activism. Nova York: Cambridge University, 2005. TOURAINE, Alain. Poderemos Viver Juntos? – Iguais e Diferentes. Petrópolis: Vozes, 1998. 104 JUDICIALIZAÇÃO DA GUARDA DE FILHOS MENORES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Caroline de Araújo Rodrigues 1 Erika Alcântara Pinto 2 Marcela Rodrigues Souza Figueiredo 3 Suzana Antunes Suzano 4 (Orientador) Delton R. S. Meirelles5 RESUMO: Durante muito tempo acreditou-se que as mães reuniriam as melhores condições para a criação dos filhos menores nos casos de divórcio ou separação. No entanto, nas ciências sociais em geral, houve uma reorganização da divisão social no que diz respeito aos homens e mulheres, o que foi reconhecido pela atual legislação. Diante desse fato, entende-se que é importante estudar esse fenômeno, conhecido como igualdade de gêneros, no âmbito do Poder Judiciário, com o intuito de analisar o modo como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vem enfrentando as questões que envolvem a disputa da guarda entre genitores pelos filhos menores de idade. Além disso, verificou-se a existência de princípios que norteiam a concepção dos julgadores nas decisões judiciais, a fim de assegurar o bem-estar e o desenvolvimento do menor, no momento em que o filho se torna tão frágil em relação à dissolução conjugal. Palavras-Chave: Direito de família, Guarda unilateral, Genitores. SUMÁRIO: Introdução – 1 A tutela dos filhos menores na legislação brasileira – 2 Guarda – 2.1 Conceito. Característica. Definição legal. – 2.2 Guarda Unilateral – 3 O maior interesse do menor como direito fundamental – 4 Presunção pro mater – 5. A guarda no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Conclusão – Referências. 1 Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF ([email protected]). 2 Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF ([email protected]). 3 Mestranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. Professora de Direito de Família no IBMEC. Advogada. Pesquisadora do LAFEP/UFF. ([email protected]) 4 Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF ([email protected]). 5 Coordenador de graduação e professor adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense (SPP/UFF) e do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF). Coordenador do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF). Doutor em Direito (UERJ). ([email protected]) 105 INTRODUÇÃO Quando estamos diante de filhos menores, a proteção jurídica da família ganha especial atenção, sendo a relação afetiva diuturna com os membros que lhes são importantes, incentivada e exigida pelo Estado. No entanto, das relações familiares que as crianças mantêm, as mais importantes são aquelas que desenvolvem com seus pais, merecendo, por isso, maior atenção dos operadores do direito. A disputa pela guarda e a garantia de convivência com o genitor não guardião são questões enfrentadas pelo Judiciário, para as quais deve dar respostas adequadas em nome do melhor interesse da criança e da proteção de sua dignidade. Embora estudos indiquem um aumento no percentual de guarda compartilhada, as mulheres ainda detêm a hegemonia na responsabilidade pela guarda unilateral de filhos menores. Tendo em vista as discussões acerca do papel do Judiciário na construção da igualdade de gêneros, o presente trabalho investiga como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vem enfrentando os conflitos interfamiliares pela guarda unilateral dos filhos menores. Para investigar tal realidade, adotou-se o método quantitativo, a partir da jurisprudência fluminense no período de 2007 a 2010 e de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre divórcios concedidos em primeira instância a casais com filhos menores de idade, no mesmo período. Assim, busca-se compreender como o Estado interfere nas relações entre pais e filhos por meio de uma análise comparativa das decisões de primeira e segunda instância, nos quesitos de preferência na escolha do guardião dos filhos menores e dos fundamentos sobre os quais basearam suas decisões. 1 A TUTELA DOS FILHOS MENORES NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Uma das questões mais relevantes que envolvem o Direito de Família é aquela proveniente das relações de parentesco, qual seja, a proteção da pessoa dos filhos. O tema ganha importância quando seus genitores não convivem no mesmo lar, sendo necessário definir quem exercerá a guarda dos filhos comuns. Quando há dissenso entre o casal quanto à guarda, o menor torna-se um ponto frágil, um objeto de disputa, fazendo-se necessária uma proteção especial à criança, em nome do seu melhor interesse. O termo “criança” é utilizado para fazer referência aos menores de dezoito anos. A utilização do referido termo foi reafirmada em nosso ordenamento jurídico por meio da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (adotada em Assembléia pela ONU), ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n.º 99.710, de 21 de novembro de 1990. Posteriormente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90) adotou os termos “criança” e “adolescente”, para nomear a pessoa até doze anos de idade incompletos e aquelas entre doze e dezoito anos de idade incompletos, respectivamente. No Código Civil de 2002, por sua vez, verifica-se a utilização do 106 termo “menor” em seus dispositivos para se referir às pessoas menores de dezoito anos. Além disso, ao tratar da dissolução conjugal, o Codex utiliza o termo “filhos”. Todos estes termos são sinônimos e serão utilizados no desenvolvimento desta pesquisa. Devido à fragilidade desse microssistema hipossuficiente tem-se procurado alternativas para a sua proteção. Como objeto de importantes convenções e documentos internacionais, tal como a Declaração de Genebra de 1924, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, os quais traziam princípios para a proteção da criança e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, este tema obteve relevância e influenciou para que as crianças emergissem como “sujeitos de direito”, a fim de que os seus interesses se sobrepusessem aos de seus genitores. Assim, por exemplo, há um deslocamento gradativo de um dos principais critérios utilizados para atribuição da guarda, qual seja priorizar os interesses dos menores em detrimento do de seus pais. Sob a influência destes acontecimentos a proteção às crianças se consagrada como direito fundamental na legislação brasileira, no art. 227, caput da Constituição Federal de 1988: Art. 227, caput. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (caput com redação determinada pela Emenda Constitucional nº 65/2010). Com a promulgação da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo Brasil e entrando em vigor em 1990, houve a adoção de uma postura de reconhecimento de que as crianças e os adolescentes precisavam de uma proteção especial, que ficou conhecida como a “Doutrina da Proteção Integral da Criança". Ao ser internalizada em nosso ordenamento jurídico, os Estados partes firmaram um acordo de proteger os menores, de modo que se devesse preservar o melhor interesse da criança, conforme disposto em seu art. 3º: Art. 3º. 1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. 2. Os Estados Partes se comprometem a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários para seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas. 3. Os Estados Partes se certificarão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de supervisão adequada. 107 Assim, todos os artigos convergem para a mesma finalidade, qual seja, a de que os menores devem ter os seus direitos fundamentais assegurados tanto pela família, como pela sociedade e também pelo Estado, devendo prevalecer o interesse maior da criança quando confrontado com os dos genitores. Pouco tempo depois foi promulgada a Lei n.º 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em que é reafirmada a “Doutrina de Proteção Integral” pela qual o menor deverá ter seus direitos protegidos e respeitados. Deste modo, não obstante o ECA ofereça às crianças e adolescentes uma gama de direito e garantias, insta salientar que todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana elencados na Constituição também são aplicados a este grupo de indivíduos. No art. 4º da referida Lei está disposto que: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Esses direitos devem ser observados em todas as situações em que se tratar de matéria pertinente à criança e ao adolescente, inclusive no que diz respeito à guarda. 2 GUARDA 2.1 CONCEITO. CARACTERÍSTICA. DEFINIÇÃO LEGAL. O termo “poder familiar” 6 é uma nova denominação adotada pelo Código Civil de 2002 em substituição ao termo “pátrio poder”. A melhor doutrina, no entanto, entende ser mais adequada a expressão “autoridade parental”, pois a palavra “poder” remeteria á ideia de posse sobre uma coisa, ao passo que, após a Constituição Federal de 1988 e o ECA, a criança e o adolescente passaram a ser verdadeiros sujeitos de direitos. Assim, O poder familiar verte-se em encargo imposto por lei aos genitores, que deve ser exercido no melhor interesse dos filhos. De acordo com Maria Berenice Dias7, Autoridade parental está impregnada de deveres não apenas no campo material, mas, principalmente, no campo existencial, devendo os pais satisfazer outras necessidades dos filhos, notadamente de índole afetiva. Para Waldir Grisard, tentar definir poder familiar nada mais é do que tentar enfeixar o que compreende o conjunto de faculdades encomendadas aos pais, como instituição protetora da menoridade, com o fim de lograr o pleno desenvolvimento e a formação integral dos filhos, seja físico, mental, espiritual ou socialmente. 6 Segundo o Código Civil, o poder familiar é um conjunto de direito e obrigações que os pais têm em relação aos filhos, enquanto menores. 7 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 345. 108 Ambos os genitores exercem igualmente a Autoridade Parental, mesmo quando dissolvido o relacionamento de ambos. Isto porque o instituto decorre da paternidade e da filiação e não do casamento ou da união estável. A guarda é um dos atributos do poder familiar. Quando ocorre o rompimento da relação amorosa entre os genitores, passando os mesmos a residirem em casas separadas, a guarda dos filhos menores deverá ser definida. Isto significa apenas uma restrição ao exercício da Autoridade Parental, sem que importe limitação ao seu exercício pelo genitor não guardião. Desta forma, A guarda absorve apenas alguns aspectos do poder familiar. A falta de convivência sob o mesmo teto não limita nem exclui o poder-dever, que permanece íntegro, exceto quanto ao direito de ter os filhos em sua companhia (CC 1.632). Não ocorre limitação à titularidade do encargo, apenas restrição ao seu exercício, que dispõe de graduação de intensidade. Como o poder familiar é um complexo de direitos e deveres, a convivência dos pais não é requisito para a sua titularidade.8 Rolf Madaleno9, ao conceituar guarda assevera que Com relação aos pais, o vocábulo guarda consiste na faculdade que eles têm de conservar consigo os filhos sob seu poder familiar, compreendendo-se a guarda como o direito de adequada comunicação e supervisão da educação da prole, ou como refere Norberto Novellino, tratar-se a guarda como uma faculdade outorgada pela lei aos progenitores de manter seus filhos perto de si, através do direito de fixar o lugar de residência da prole e com ela coabitar, tendo os descendentes menores sob seus cuidados diretos e debaixo de sua autoridade parental Existem vários tipos de guarda elencados na legislação brasileira entre os arts 1583 a 1590 do Código Civil Brasileiro, nos arts 33 a 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente e também na Lei do Divórcio, Lei 6.515/1977, nos artigos 9° ao 16. Vale salientar que a guarda abordada no Estatuto da Criança e do Adolescente não regula as decorrentes da separação dos pais, e sim do menor que se encontra em situação irregular, abandonado, ameaçado ou então que esteja sofrendo violação de seus direitos. O direito brasileiro, no que se refere ao art. 1583, CC/02, permite duas modalidades de guarda para as crianças quando os pais não convivem juntos: a unilateral ou a compartilhada. Mais adiante, será discutida a guarda unilateral, objeto da pesquisa. Vale ressaltar que esta pesquisa limitou-se a analisar a guarda de filhos menores por um dos cônjuges, não sendo considerados os casos de outros incapazes, nem a guarda para avós, demais parentes ou família substituta. Portanto, no que tange aos genitores, o instituto do Poder Familiar confere as seguintes obrigações, conforme disposto no art. 1634 do CC/02: Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; 8 9 Ibdem, p. 347. MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 422. 109 II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. No inciso II do artigo supramencionado, encontra-se claramente a obrigação do genitor, ou seja, do titular do poder familiar, quanto à guarda dos filhos. Para uma melhor compreensão, tornase imprescindível a leitura do art. 33 do ECA, pois é neste que se encontra a definição legal de guarda, qual seja: “[...] prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.” Segundo estatísticas oficiais, na maioria dos casos de fim da união dos genitores, é estabelecida a guarda exclusiva em favor de um dos genitores, garantindo ao outro o direito de visitação e supervisão, não obstante a guarda compartilhada esteja prevista na lei e que talvez seja a melhor modalidade de guarda para a proteção dos interesses do menor. 2.2 GUARDA UNILATERAL Segundo o Código Civil a guarda unilateral é atribuída a um só dos pais, ou seja, ao genitor que revele melhores condições para exercê-la.10 Apenas um recebe a guarda física e jurídica do menor. Nesta modalidade o menor vive em um lar fixo, enquanto recebe a visita daquele que não detém a guarda. Este tipo de guarda pode ser definida em consenso pelos genitores ou decretada pelo juiz, o qual deverá observar em sua decisão alguns princípios importantes, os quais serão vistos mais adiante. Cumpre destacar a existência de uma cultura jurídica que estabeleceu uma presunção de guarda materna, assim descrita por Maria Berenice Dias: Historicamente os filhos ficavam sob a guarda materna, por absoluta incompetência dos homens de desempenhar as funções de maternagem. Sempre foi proibido aos meninos brincar de boneca, entrar na cozinha. Claro que não tinham como adquirir qualquer habilidade para cuidar dos filhos. Assim, mais do que natural que essas tarefas fossem desempenhadas exclusivamente pelas mães: quem pariu que embale! Quando da separação, 10 Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 2o A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II - saúde e segurança; III - educação. § 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos. 110 os filhos só podiam ficar com a mãe. Até a lei dizia isso 11. Entretanto, esta guarda pro mater começa a ser questionada com a inserção da mulher no mercado de trabalho (deixando de ser a “dona de casa” com a exclusividade na criação dos filhos) e a necessária reorganização da divisão social homem/mulher. Ainda que a mulher tenda a assumir diversas jornadas (mãe e trabalhadora, p. ex.), os homens passaram a ser cobrados em sua responsabilidade no cuidado e educação dos filhos, deixando de ser apenas provedores. Reconhecendo esta realidade, a Constituição Federal de 1988 estabelece que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (art. 5º, I), assim como “os direitos e deveres referente à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (art. 226, §5º). A igualdade entre os cônjuges implica a existência de idênticas condições entre genitores de assistir, criar e educar os filhos menores.12 Deste modo, com o fim da união conjugal, há uma divisão de atribuições no que diz respeito ao exercício de alguns direitos, tanto para o pai quanto para a mãe, não ocorrendo à perda da autoridade parental. 13 Esta só ocorre em casos que os genitores descumprem seus deveres para com os filhos.14 Assim, tendo em vista à igualdade de gêneros e a tutela integral dos direitos das crianças, a guarda compartilhada tem se mostrado uma modalidade de guarda que permite uma maior proteção aos interesses das crianças, uma vez que ambos os pais de co-responsabilizam sobre as decisões importantes da vida dos filhos. Os filhos se beneficiam a partir do momento em que têm ambos os pais presentes e cuidadosos, assumindo as mesmas responsabilidades e participando da mesma 11 DIAS, Maria Berenice. Guarda compartilhada, uma novidade bem-vinda!. 2010. Disponível em: < http://www.mariaberenice.com.br/uploads/1_-_guarda_compartilhada%2C_uma_novidade_bem-vinda.pdf>. Acesso em 14 set. 2012. 12 Art. 229, CF - Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. 13 No Código Civil está disposto que: Art. 1.579. O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos. Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá importar restrições aos direitos e deveres previstos neste artigo. Art. 1632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. Na Lei 6.515/77, Lei do divórcio: Art. 27 - O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos. Parágrafo único - O novo casamento de qualquer dos pais ou de ambos também não importará restrição a esses direitos e deveres. 14 O ECA dispõe que: Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. Parágrafo único. Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio. Art. 24. A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22. 111 forma das suas vidas. De acordo com Guilherme Calmon15, são os seguintes aspectos definidores da guarda compartilhada: (...) o primeiro aspecto envolve a própria noção de guarda compartilhada, ou seja, o exercício comum da autoridade parental, a continuidade do contato da criança (ou do adolescente) com ambos os pais, tal como ocorria no período em que o casal parental era, ao mesmo tempo, casal conjugal. Outro aspecto diz respeito à residência do menor. Acerca de tal ponto, é fundamental que o menor tenha “ uma residência fixa (na casa do pai, na casa da mãe ou de terceiros) ,única e não alternada. (...) Assim, guarda compartilhada consiste no compartilhamento de responsabilidade entre os pais os quais têm idêntica participação na vida dos filhos, sem que isso implique em alternância de lares. Isto quer dizer que o que se compartilha é a guarda jurídica, não a guarda física. A guarda unilateral, por sua vez, pressupõe que apenas um genitor exerça a guarda jurídica e física. Infelizmente, a guarda unilateral continua sendo o modelo mais adotado nos casos de dissenso entre os genitores, sendo ainda preferencialmente atribuído à mulher o exercício uniparental da guarda, não obstante preveja § 2º do art. 1.584 do Código Civil que quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. 3 O MAIOR INTERESSE DO MENOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL A guarda se caracteriza como uma forma de acolhimento jurídico do menor em uma família. Os filhos não podem ter a sua qualidade de vida interferida por conta de problemas de convivência dos pais. A Lei Maior dispõe em seus arts. 227 e 229 sobre a prioridade à convivência familiar como dever da família, da sociedade e do poder público quando da separação de fato ou de direito. Sendo garantida aos filhos uma qualidade moral, psíquica, emocional e física. No rompimento da convivência entre os genitores, ocorre à cisão da guarda dos filhos e o casal deve ter o pleno entendimento de que a partir deste momento serão ex-companheiros, mas não serão ex-pai ou exmãe. 16 Todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana elencados na Constituição Federal são aplicados às crianças e aos adolescentes, tal como o art. 5º e o art. 227, assim como os direitos fundamentais decorrentes dos tratados internacionais internalizados que versam sobre direitos humanos. Os direitos fundamentais constituem “direitos jurídico-positivamente constitucionalizados”17. A breve afirmativa de J. J. Gomes Canotilho encerra duas considerações de 15 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios Constitucionais de Direito de família: Guarda Compartilhada à Luz da Lei n.º 11.698/08: Família, Criança, Adolescente e Idoso. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 218. 16 COUTO, Lindajara Ostjen. A separação do casal e a guarda compartilhada dos filhos. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3683/A-separacao-do-casal-e-a-guarda-compartilhada-dos-filhos>. Acesso em: 14 set. 2012. 17 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Lisboa: Almedina, 1993.p.497 112 extrema relevância. Primeiramente, seu caráter positivo, enquanto incorporação no ordenamento escrito. Em segundo lugar, esta positivação deve ocorrer do bojo do mais importante diploma jurídico: a Constituição.18 Portanto, quando os direitos fundamentais da Convenção foram inseridos por meio do art. 5º, § 2º da Lei Maior, passaram ao status de direito fundamental conforme concedido aos demais. Assim, o Princípio do melhor interesse da criança, aludido por esta, deve ser observado, vez que está presente em nosso ordenamento jurídico. Torna-se uma tarefa difícil para o magistrado determinar a guarda nos processos, pois como aferir quem melhor cuidará do filho? É notória que deveriam ser os pais de forma conjunta a complementar a educação de seus filhos. A este respeito Pontes de Miranda afirma que “os filhos podem ficar uns com o pai, outros com a mãe ou todos com apenas um, pois o que decide é o interesse deles”19. Este é um dos princípios que norteiam a guarda, utilizado como critério legal, o Princípio do melhor interesse do menor. Os filhos deixaram de ser objeto de direito e passaram a ser sujeitos. Verifica-se uma perfeita harmonia entre o melhor interesse da criança (art.227, CF), o direito de pleno gozo dos direitos fundamentais pelas crianças e adolescentes (art. 3º do ECA)20 e o dever da família de zelar para a efetividade desses direitos (art. 4º do ECA). O que se complementa com o Código Civil ao atribuir a guarda ao genitor que apresentar melhores condições de exercê-la (art. 1583, § 2º). Assim, há uma intenção do legislador em priorizar o interesse do menor. Nas análises jurisprudenciais realizadas no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro verificou-se a adoção de princípios utilizados pelos julgadores nas decisões, considerados auxiliadores na determinação do melhor interesse da criança. O Direito da Família contemporâneo tem alguns princípios fundamentais norteadores que o regem como: afeto, igualdade e alteralidade, pluralidade de famílias, melhor interesse da criança/adolescente, autonomia da vontade, intervenção estatal mínima, a preferência da criança, a não separação dos irmãos, a capacidade educativa e econômica dos pais, o progenitor que mais favorece a relação do menor com o outro genitor, assim como a manutenção da situação de fato.21 É importante que o juiz avalie cada caso concreto, a fim de que seja tomada a melhor 18 PEREIRA, Tânia da Silva. Infância e juventude: os direitos fundamentais e os princípios constitucionais consolidados na Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28526-28537-1-PB.pdf>. Acesso em: 14 set. 2012.p.3 19 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito de família 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1947. p.466 20 Art. 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”. 21 CHAVES, Marianna. Melhor interesse da criança: critério para atribuição da guarda unilateral à luz dos ordenamentos brasileiro e português. Jus Navigandi, Teresina, ano 15 (/revista/edicoes/2010), n. 2716 (/revista/edicoes/2010/12/8), 8/revista/edicoes/2010/12/8) dez. (/revista/edicoes/2010/12), 2010 (/revista/edicoes/2010) . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17985>. Acesso em: 14 set. 2012. 113 solução aplicável diante de cada acontecimento, ou seja, que a decisão esteja em consenso com o melhor interesse do menor, pois este que deve ser priorizado. Para Grisard Filho22, [...] existem interesses individuais e concretos sobre os quais se procede a uma avaliação individualizada. É desses interesses concretos que se cuida na determinação da guarda de filhos, sendo o juiz o intérprete dos particulares interesses materiais, morais, emocionais, mentais e espirituais de filho menor, intervindo segundo o princípio de que cada caso é um caso, o da máxima singularidade. Eduardo de Oliveira Leite 23, no mesmo sentido, entende que: Convém, pois, não considerar o interesse do menor como um fim em si, mas como instrumento operacional, cuja utilização é confiada ao juiz. É o juiz, a quem compete examinar cada situação de fato, que determina, a partir da consideração de elementos objetivos e subjetivos, qual é o “interesse” daquele menor, naquela dada situação fática. Podemos assim concluir que o melhor interesse da criança e do adolescente, lido conjuntamente com a proteção à dignidade da pessoa, servirá de norte para a definição pelo Juiz da modalidade de guarda a ser exercida pelo genitor. 4 PRESUNÇÃO PRO MATER Quando se trata da guarda da criança e do adolescente, há a presunção social e cultural que o mais razoável seria que essa ficasse com a mãe. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas24, no Estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2007 e 2010, dos casos resolvidos pelo judiciário em 1ª instância, em 95,64% dos casos a guarda fora deferida para a genitora, sendo somente em 4,36%, para o genitor. Isto ocorre, apesar de o art. 1583 §2º do Código Civil afirmar que deve deter a guarda unilateral do menor aquele que tiver melhores condições para exercê-la, oferecendo-lhe, principalmente, afeto, saúde, segurança e educação. Observa-se que existe uma tendência da sociedade de acreditar que determinados valores em uma cultura são naturalmente produzidos e por isso, inevitáveis ou superiores. A antropologia chama este fenômeno de etnocentrismo, onde construtos sociais se transformam em valores culturais, que são utilizados como forma de retirar a responsabilidade pelos próprios comportamentos e pela própria condição individual e social de determinado grupo. Já a psicologia afirma que não há qualquer superioridade na aptidão das mães para criar os filhos após o desmame, que esta é uma situação construída socialmente. A psicóloga Nancy Chodorow afirma que psicanalistas, psicólogos, obstetras, biólogos e cientistas não apresentam 22 FILHO, Waldyr Grisard. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002. 23 LEITE, Eduardo de Oliveira. “Famílias Monoparentais - A situação jurídica de pais e mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal”. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1997. 24 IBGE, Estatísticas do Registro Civil 2003-2010. Disponível em <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=RGC403>. Acesso em: 31 ago. 2012. 114 argumentos que comprovem que bebês precisam ser maternados, necessariamente, pela mãe, tampouco para a tese de que há um instinto ou biologia, que por si só, possam gerar a maternalidade nas mulheres e excluir a capacidade dos homens de criar os filhos. Sendo assim o comportamento humano não é determinado instintivamente ou biologicamente, mas sim mediado culturalmente.25 Esta situação deriva-se, principalmente, da ideologia de uma sociedade patriarcal onde a mulher tinha como dever cuidar dos filhos e da casa, enquanto o homem era provedor, que trabalhava para sustentar a família. A partir disso, criou-se a afirmação que a mulher teria um instinto materno, entendendo que esta possuiria um dever natural de cuidar dos filhos, conseguindo identificar todas as necessidades deles, sendo, portanto, naturalmente mais apta a criar seus filhos. Esta situação é verificada nitidamente na Declaração Universal dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, que em seu princípio VI afirma: A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe [...]. (sem grifos no original) Devido a este paradigma socialmente construído, o genitor que deseje ter a guarda dos filhos possui grande desvantagem, porquanto terá de provar a incapacidade da genitora em cuidar e conduzir a vida dos filhos para, só então, demonstrar suas reais condições de atender ao interesse da criança ou do adolescente. A presunção pro mater torna a análise da capacidade protetiva, educativa e afetiva do pai dependente da existência de fatos que impeçam a mãe de exercer adequadamente a guarda do filho menor. 5 A JUDICIALIZAÇÃO DA GUARDA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO A fim de compreender o modo como o Estado interfere nas relações interfamiliares, o presente trabalho investiga a jurisprundência fluminense analisando comparativamente as decisões de primeira e segunda instância. O método adotado na pesquisa é quantitativo, a partir da jurisprudência do Tribunal do Rio de Janeiro e de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. As ementas selecionadas (119, no total) versavam sobre disputa entre genitores pela responsabilidade da guarda unilateral dos filhos menores de idade, no período de 2007 a 2010. Os resultados obtidos na pesquisa jurisprudencial foram comparados à pesquisa do IBGE sobre divórcios concedidos em primeira instância a casais com filhos menores de idade, no mesmo período. A pesquisa em segunda instância restringiu-se aos casos de conflitos entre genitores, 25 CHODOROW, Nancy. Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990. p 89. 115 exclusivamente, pela guarda dos filhos menores de idade – não foram incluídos os incapazes –, sendo selecionados apenas aqueles em que a totalidade de filhos ficou sob a responsabilidade de um único genitor. Cumpre esclarecer que a ferramenta de busca disponibilizada pelo Tribunal impõe algumas restrições à pesquisa de ementas de processos que correm em segredo de justiça. Houve uma grande dificuldade em identificar, por exemplo, se o autor da ação foi o genitor ou a genitora. Entretanto, a mesma dificuldade não ocorreu na identificação do vencedor da lide. É possível que algumas ementas tenham sido cadastradas no portal com erro material, no que se refere ao gênero do apelante ou do vencedor, mas é uma parcela infíma do material coletado e não invalida, portanto, a pesquisa. Além disso, o sistema de buscas do Tribunal limita a pesquisa a trezentas ementas por palavra-chave pesquisada. Assim, em prol de um melhor aproveitamento, foram selecionados os seguintes grupos de palavras-chave: “guarda menor genitor”, “guarda menor genitora”, “guarda menor pai”, “guarda menor mãe”, “guarda genitor”, “guarda genitora”, “guarda pai’, guarda mãe”, pesquisados ano a ano, no período de 2007 a 2010. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas apontaram uma prevalência da guarda materna nos casos resolvidos pelo Tribunal do Estado do Rio de Janeiro em 1ª instância (figura 1). A partir da análise das características dos apelantes (figura 2), observa-se que o número de genitoras que recorrem das sentenças é superior ao número de genitores. Razão pela qual se deduz que a judicialização da guarda dos filhos menores não é uma disputa paterna, já que as mulheres ademais de receberem majoritariamente a guarda em 1ª instância, também em maior número recorrem ao Tribunal a fim de conquistar para si a responsabilidade pela guarda unilateral dos filhos. Apelações Responsável pela guarda em 1ª instância Genitor 0,36% Genitor 4,36% Genitora 6,14% Genitora 95,64% (Figura 1) (Figura 2) Verifica-se também que na maior parte dos casos analisados (figura 3), o Tribunal confirma a sentença judicial. Neste ponto, é importante salientar o problema da análise probatória em 2ª instância, qual seja: a realização de diligências para a produção de provas é permitida somente à primeira instância, assim, apenas os juízes possuem contato direto com a fonte probatória e, por conseguinte, melhor conhecimento da situação fática, o que explica essa tendência dos desembargadores em seguir as decisões proferidas pelos juízes. 116 Análise das sentenças pelo Tribunal Guardas revertidas 9,24% Guardas confirmadas 90,76% (Figura 3) No que se refere ao conteúdo das ementas, foram identificados os seguintes fundamentos adotados pelos desembargadores: o princípio do melhor interesse do menor, o princípio da manutenção da situação de fato e a preferência do menor, nesta ordem, seja para deferir a guarda para o genitor ou para a genitora. Outro dado importante, é que na maior parte dos casos analisados os desembargadores seguiram o laudo do estudo psicossocial feito do caso. Não obstante o melhor interesse da criança/adolescente seja defendido como vetor das decisões judiciais, bem como adotado pela maioria dos desembargadores em suas razões de decidir, o alto percentual de guardas concedidas às mães em primeira instância e confirmadas em segunda instância, evidencia que o Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro ainda privilegia o gênero feminino, a partir da crença de que as mães possuem melhores condições ao exercício da guarda dos filhos menores. Isso ocorre porque o referido princípio é subjetivo, e depende das concepções dos julgadores e dos peritos que analisam a situação fática das famílias, para ser preenchido de conteúdo. CONCLUSÃO Estudos científicos demonstram que homens e mulheres possuem as mesmas condições de exercerem individualmente a responsabilidade pela guarda dos filhos, a Constituição Federal de 1988 revolucionou o Direito de Família, estabelecendo a igualdade entre homens e mulheres e entre cônjuges (art. 5º, I e § 5º do art. 226). No entanto, as mudanças na prática do judiciário dependem da mudança nas concepções dos julgadores, sobretudo, porque o princípio do melhor interesse do menor possui caráter subjetivo. Assim, apesar da legislação prever preferencialmente o modelo da guarda compartilhada, a igualdade de gêneros, e idêntica participação dos genitores no exercício da autoridade parental, a pesquisa constatou que o Judiciário Fluminense ainda opta pela guarda unilateral exercida pela mãe. 117 De qualquer sorte, entende-se que o princípio do melhor interesse do menor deve ser utilizado para assegurar o bem-estar e o desenvolvimento da criança e do adolescente, cabendo ao Judiciário, nos casos a ele levados, analisar objetivamente, com base principalmente em estudos técnicos, quem reúne as melhores condições para garantir que o menor possa alcançar plenamente a maturidade tanto social quanto cívica, sem considerar que em determinado momento histórico coube à genitora cuidar dos filhos, já que na atual situação, ambos os genitores gozam dos mesmos direitos, em igualdade de condições. REFERÊNCIAS AHMAD, Roseli Borin Ramadan. 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Acesso em: 14 set. 2012. 120 A FORMAÇÃO SÓCIO AFETIVA DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RISCO NO CENÁRIO EDUCACIONAL Rejane Honorio de Sant’anna Doutoranda em Sociologia Instituto Universitário de Pesquisas do Rio De Janeiro - IUPERJ RESUMO O presente estudo objetivou analisar a representatividade no campo educacional do I Programa Especial de Educação (IPEE) nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) nos anos 80 e 90, e, em especial o Programa Aluno Residente (PAR),o impacto social que representou esse Programa à população e a garantia do direito democrático de inclusão social através da formação sócio educativa. Para tal, utilizou-se a metodologia de pesquisa descritiva e qualitativa de natureza etnográfica, utilizando bibliografia concernente ao objeto em questão e entrevistas semiestruturadas. Assim, apresenta-se um estudo teórico sobre pressupostos da educação (em tempo) integral, baseada em Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Tal metodologia se fundamentou no levantamento do estudo da arte da literatura existente sobre o I PEE, e, em particular sobre o PAR. Ao longo da pesquisa constatamos que até o início da década de 90, foram atendidas mais de 5.000 crianças, considerando o número significativo de reintegrações familiares proporcionado pelo Projeto PAR, com a permanência da criança na escola de horário integral. A articulação positiva entre a assistência e a educação possibilitou incluir crianças e adolescentes em situação de risco social nas áreas como: educação, trabalho, esporte, saúde, cultura e lazer, do ponto de vista das pessoas entrevistadas ao longo da pesquisa de campo. Palavras-chave: Educação Integral – Projeto Alunos Residentes – Assistência 1. INTRODUÇÃO O Brasil cresceu visivelmente nos últimos 80 anos. Cresceu mal, porém. Cresceu como um boi mantido, desde bezerro, dentro de uma jaula de ferro. Nossa jaula são as estruturas sociais medíocres, inscritas nas leis, para compor um país da pobreza na província mais bela da terra. Darcy Ribeiro O presente artigo, de resgate histórico, traz alguns resultados de um estudo realizado nos anos de 2007 a 2009, com ex alunos do Projeto Alunos-Residentes inseridos no Programa 121 Especial de Educação (I PEE)1, implantado no 1º governo de Leonel de Moura Brizola no estado do Rio de Janeiro (1983-1987), e investigar até que ponto o PAR se constituiu enquanto alternativa de inclusão social, através das práticas de formação sócio-educativa. Portanto, o tema, justifica-se pelo fato de que, projeto de tal envergadura merecem ser mais bem analisado, devido a sua relevância social, pois através dele talvez seja possível contribuir para a mudança de rumo da vida de algumas crianças e adolescentes. Se considerarmos que devido a uma série de circunstâncias, como a falta de recursos econômicos e apoio familiar, muitas vezes os que têm o acesso à educação, perdem oportunidades de uma maior inserção no processo social. O campo da Educação tem como fundamento a prática social que objetiva o ensino dos diversos tipos de saberes, contribuindo para a formação dos sujeitos, de acordo com as necessidades e exigências da sociedade em dado momento histórico. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a Educação se tornou no país um direito de todos e dever do Estado e da família. Entretanto, a inserção em políticas educacionais, desde a Educação Infantil, ainda não está universalizada devido às vagas insuficientes. Logo, parte da população deixa de ter acesso a escola pública e também a possibilidade de ensino de qualidade, levando ao reforço das desigualdades sociais e econômicas, a medida que não ocorreu a oferta quantitativa e qualitativa aos mais desfavorecidos socialmente. Deste modo, as crianças e adolescentes permanecem, em pleno século XXI, desmotivadas em freqüentar as salas de aulas, levando à evasão e repetência ou, quando concluem o ciclo de ensino, saem despreparados, sem qualificação alguma, o que refletirá em seu futuro pessoal e profissional. Ao mesmo tempo, podemos observar que há um grande esforço dos setores mais excluídos, não apenas para ingressarem no ciclo do ensino, mas, sobretudo para permanecerem nele. Nos anos 80, com o processo de re-democratização em todo o Brasil e em particular, no Estado do Rio de Janeiro, algumas políticas públicas educacionais se destacaram, dentre elas, os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP’s/RJ) implantados durante o governo de Leonel de Moura Brizola. 1 O Programa Especial de Educação (PEE), de escopo tão abrangente, acabou sendo identificado com os CIEPs. Luiz Antônio Cunha atribui a reorientação definitiva no sentido da redução do PEE aos CIEPs o que, em sua avaliação, de fato aconteceu no encontro dos professores em Mendes. Essas avaliações indicavam que o desencanto provocado na seqüência do encontro deveu-se à suspeita de que toda a reunião servira apenas como referendo para decisões de governo que foram imediatamente chanceladas pela Assembléia Legislativa do estado, autorizando a construção da cadeia de escolas que vieram a constituir os CIEPs. Daí a conclusão de Luiz Antônio Cunha, de que o Encontro de Mendes marcaria a clivagem definitiva entre o governo e o magistério da rede pública de ensino do Rio de Janeiro (EMERIQUE, 1997; MAURÍCIO, 2004). 122 De acordo com Bomeny (2009), nos muitos depoimentos concedidos à imprensa e aos meios de divulgação acadêmica, Darcy Ribeiro2 defendia os Cieps como uma escola pública regular em nada distinta daquelas milhares em funcionamento em qualquer bairro dos países que, de alguma maneira, sinalizaram para a importância democrática de prover educação para a maioria da população. O feito tido aqui como extraordinário e extravagante, é agenda rotineira de qualquer governante nos países que universalizaram o direito à educação, afirmava Darcy. E não era preciso que tal associação fosse feita com os países considerados desenvolvidos. Na própria América Latina, lembrava Darcy, era possível encontrar, em outros países que não o Brasil, a concepção da educação integral, como padrão de escolarização nas séries iniciais. As lideranças de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, em grande medida, autorizavam – pelo estilo e pela paixão implicados nas ações de governo – a eclosão da virulência crítica de seus adversários. O processo de construção do sistema público do ensino fluminense, a deterioração da rede escolar, o aumento da violência urbana e a sensação de insegurança e desorientação, sobre o que fazer com tantas demandas feitas às escolas, facilitam paradoxalmente, um distanciamento e uma aproximação do que seria a mensagem daquilo que se oferecia como Centro Integrado de Educação Pública. Que mensagem era essa? Darcy Ribeiro estava convencido de que a escola pública brasileira ainda não podia ser considerada republicana. Elitista e seletiva, ela não estava preparada para receber quem não tivesse acesso a bens materiais e simbólicos que contam e interferem diretamente no desempenho escolar. A escola burguesa exigia da criança pobre o rendimento da criança abastada, não levando em conta a maioria do alunado, oriundo das classes populares. O vice-governador convencido do desvirtuamento do sentido republicano da Educação brasileira propugnava clamoroso: Então o CIEP fornece gratuitamente os uniformes e o material escolar necessário. Os alunos estão expostos a doenças infecciosas, estão com problemas dentários ou apresentam deficiência visual ou auditiva? Então o Ciep proporciona a todos eles assistência médica e odontológica (Ribeiro, 1986, p.48). Ainda segundo Bomeny (2009), identificamos na fala acima a intenção de firmar dois pontos cruciais à defesa do projeto do governo: o programa era destinado às crianças e, a escola em tempo integral deveria ser uma resposta ao que Darcy considerava a “calamidade” do sistema público de ensino. As séries iniciais foram o segmento de ensino para o qual o programa fora pensado prioritariamente. 2 Darcy Ribeiro, acumulava em 1983 os cargos de vice-governador, secretário de Ciência e Cultura e chanceler da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 123 No reencontro com a vida coloca-se a perspectiva de um projeto educativo que, ancorado na instituição escolar, possa recriar seu sentido na relação com outros interlocutores, outros espaços, outras políticas e equipamentos públicos. Portanto, o patamar a partir do qual se organiza uma escola que pensa e propõe Educação Integral precisa considerar os saberes, as histórias, as trajetórias, as memórias, as sensibilidades dos grupos e dos sujeitos com os quais trabalha, tecendo as universalidades expressas nos campos clássicos de conhecimento. Em sua teoria sobre o Brasil, para o antropólogo, o povo se torna categoria incorporada na construção da nação, reiterando sua filiação ao pensamento da geração de intelectuais dos anos 50, comprometida com os processos da transformação sócio-econômica brasileira. A reação aos Cieps parecia conferir veracidade ao diagnóstico de Darcy. A conjuntura de alguns setores conservadores da sociedade no momento da redemocratização brasileira se identificou com a liderança de Brizola ao elegê-lo governador do Estado do Rio de Janeiro em 1982. Por outro lado, setores da esquerda dificultaram a gradual e progressiva implantação do programa especial, alimentando as reações conservadoras que combatiam o projeto dos Cieps. Paralelamente, segundo Emerique (1997), o I Programa Especial de Educação (PEE) tinha como objetivo garantir à população seu direito democrático, de acesso a um ensino gratuito moderno, reestruturado do ponto de vista pedagógico e tecnologicamente aparelhado. No Encontro de Mendes3, foram apresentadas aos delegados representantes dos professores da rede pública estadual e municipal do Rio de Janeiro 19 metas: metas assistenciais ligadas à educação (material didático para todos os alunos, uniforme, calçado escolar); metas assistenciais não relacionadas com a educação (melhoria da qualidade da merenda escolar e assistência médico-odontológica para os alunos) e metas de conservação das escolas (reformas dos prédios escolares e renovação do mobiliário). O professor Darcy Ribeiro resolveu colocar em discussão um conjunto de teses sobre educação. As teses cobriam vários temas, relativos à situação da educação naquele momento, e o Darcy queria fazer com que todo o corpo docente do estado discutisse essas teses. Era uma tentativa de fazer um grande processo de qualificação profissional dos professores. Em Mendes houve a chegada do encontro. Eram 60 mil professores que, durante uma semana, foram se aproximando de Mendes por afunilamento. Ou seja, começou nas escolas, com todos 3 Em 1983 professores se reuniam, pela primeira vez na história do país, para discutir as políticas educacionais a serem adotadas nos anos seguintes. O Encontro de Mendes, como ficou conhecido, foi organizado pela professora Rosiska Darcy de Oliveira, juntamente com o vice-governador da época, o educador Darcy Ribeiro. 124 os 60 mil discutindo, depois iam-se criando grupos menores e delegações, até que os delegados chegaram a Mendes. E lá houve um grande debate. Foi um momento muito importante do pensamento sobre a educação no estado do Rio de Janeiro4.” As metas pedagógicas se referiam a eliminação do terceiro turno diurno nas escolas, aumento da carga horária diária para cinco horas, revisão de todo o material didático, reforço adicional de horas de aula para a melhoria do rendimento escolar, separação dos alunos do primeiro segmento do ensino fundamental dos alunos do segundo segmento — da primeira a quarta e da quinta a oitava séries, respectivamente. Também se destacavam novos projetos educacionais: Casas da Criança com atendimento pré-escolar; criação dos CIEPs; criação dos Centros Culturais Comunitários; Educação Juvenil com atendimento noturno, para jovens de 14 a 20 anos; treinamento de professores e melhoria das condições de trabalho (cursos para reciclagem de professores, novos cursos de formação de professores; revitalização dos Institutos de Educação; reestruturação da carreira docente, do estatuto do professor e dos regulamentos das escolas. Algumas pesquisas criticam o I PEE, afirmando que o programa apenas se dirigiu aos CIEPS, embora o I PEE tivesse como objetivo um escopo bem mais abrangente, mas o foco se limitou bastante aos CIEPs, por ter sido o projeto conforme identificamos ao longo deste estudo, que provocou maior impacto na sociedade fluminense naquela década. 2- A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL Educar é crescer. E crescer é viver. Educação é, assim, vida no sentido mais autêntico da palavra. Anísio Teixeira De acordo com o recenseamento de 1906, o Brasil apresentava a média nacional de analfabetismo na ordem dos 74,6%.A exceção vinha da cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, com 48,1% de analfabetos. Tais números fortaleceram a defesa em favor da escola pública, firmando-se na década de 1920. O movimento da Escola Nova5 inspirou 4 Folha Dirigida, 11/11/2003, Seção Educação, ‘A dívida com a escola pública’. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil 5 O movimento chamado Escola nova esboçou-se, na década de 1920, no Brasil. O mundo vivia, à época, um momento de crescimento industrial e de expansão urbana e, nesse contexto, um grupo de intelectuais brasileiros sentiu necessidade de preparar o país para acompanhar esse desenvolvimento. A educação era por eles percebida como o elemento-chave para promover a remodelação requerida. Inspirados nas idéias político-filosóficas de 125 jovens reformadores liderados por Anísio Teixeira, que irá atuar na área das políticas públicas pela educacionais de meados da década de 1920 até 1971. A história da educação brasileira se confundiu com a luta pelo acesso das crianças às escolas, o que acabou por abrir portas para outros movimentos, que lutariam pelo acesso ao conhecimento das operações mentais desenvolvidas com as habilidades da escrita, da leitura e dos cálculos elementares. Na década de 80 ocorreram mudanças no quadro internacional provocadas pelas transformações tecnológicas, provenientes do desenvolvimento de sistemas de automação e informatização. Tal quadro concorre para fazer do Brasil do fim do século XX, um país despreparado ainda com muitos analfabetos, embora os 74,6% do final do século XIX, tenham dado lugar aos 17% no final dos anos 1980. De acordo com Guará (2009), o conceito de educação integral encontra amparo jurídico significativo na legislação brasileira, assegurando sua aplicabilidade no campo da educação formal e em outras áreas da política social. O arcabouço normativo oferecido pelo paradigma da proteção integral, garante os direitos de toda criança ou adolescente a receber atendimento em todas as suas necessidades pessoais e sociais, desenvolvendo adequadamente. Por outro lado, recorrendo-se à Constituição Brasileira (1988), ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), podem-se constatar nesses marcos legais as bases para a educação integral na perspectiva que queremos adotar aqui. Não se pode negar que o Brasil tem avançado muito em termos normativos, embora também exista uma reconhecida distância entre a lei e o ritmo das mudanças por ela sugeridas. Esse descaso no cumprimento das responsabilidades legais não diminui a exigibilidade do direito e o fato de que a população infanto-juvenil goze, hoje, de uma proteção legal expressiva, alinhada às indicações da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (GUARÁ, 2009). O tema da educação integral renasce também sob inspiração da Lei nº 9.394/ 96, que prevê o aumento progressivo da jornada escolar para o regime de tempo integral (arts. 34 e 87, § 5º) e reconhece e valorizam as iniciativas de instituições que desenvolvem como parceiras da escola, experiências extra-escolares (art. 3°, X). A previsão disposta no artigo 34 – de ampliação da permanência da criança na escola, com a progressiva extensão do horário igualdade entre os homens e do direito de todos à educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação. Denominado de Escola Nova, o movimento ganhou impulso na década de 1930, após a divulgação do Manifesto da Escola Nova (1932). Nesse documento, defendia-se a universalização da escola pública, laica e gratuita. 126 escolar – gera para os pais a obrigatoriedade de matricular e zelar pela freqüência dos filhos às atividades previstas. Ao mesmo tempo, a idéia de proteção integral inscrita no ECA está fundada, em primeiro lugar, no reconhecimento de que a situação peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento exige uma forma específica de proteção, traduzida em direitos, tanto individuais como coletivos, que devem assegurar sua plena formação. A década de 1990 foi uma década de grande importância na história da educação brasileira, uma vez que suas deficiências e incapacidades foram expostas de maneira mais clara. Ribeiro (1991) denunciou “a pedagogia da repetência” e dessa forma, propiciou uma retomada das discussões, destacando agora não somente os fatores externos que se interpunham ao sistema educacional impedindo seu florescimento satisfatório, mas, os impasses internos aos próprios sistemas de ensino. Devido a precária situação educacional do país, governos estaduais se movimentaram com plataformas específicas de intervenção, uma delas, nacionalmente conhecida, foi a que deu notoriedade aos dois mandatos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, nos períodos de 1983-1987 e 1991-1994. Bandeira de luta dos reformadores da educação no Brasil conhecidos como os pioneiros da Educação Nova, cujo líder foi Anísio Teixeira. 3 - CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RISCO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Criança é coisa séria. A criança é o princípio sem fim. O fim da criança é o princípio do fim. Quando uma sociedade deixa matar as crianças é porque começou seu suicídio como sociedade. Herbert de Souza (Betinho) Cada vez mais, as políticas de atenção à criança em situação de risco enfrentam o desafio das precárias condições de vida em que estas se encontram, vivendo no cotidiano, muitas vezes, situações extremas de exclusão social, em que os direitos assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente não são respeitados (ECA, 1990). Por situação de risco, entende-se a condição de crianças que, por suas circunstâncias de vida, estão expostas à violência, ao uso de drogas e a um conjunto de experiências relacionadas às privações de ordem afetiva, cultural e socioeconômica que desfavorecem o pleno desenvolvimento bio-psico-social (LESCHER et al, 2004). 127 Esta situação de risco acaba se traduzindo por dificuldades na freqüência e no aproveitamento escolar, nas condições de saúde de forma geral e nas relações afetivas consigo mesmo, com sua família e com o mundo, tendo como conseqüências à exposição a um circuito de sociabilidade marcado pela violência, pelo uso de drogas e pelos conflitos com a lei. Muitas vezes estas experiências de vida facilitam dinâmicas expulsivas da família nuclear e da casa e o ingresso no circuito da rua e das instituições de abrigamento. No campo da prevenção e do tratamento do uso de drogas observa-se que esta população é bastante vulnerável às circunstâncias da violência. Embora crianças em situação de risco façam parte de um grupo com muitas necessidades, por suas condições de vida acabam tendo dificuldades de acesso aos serviços públicos existentes em seus bairros de origem, agravando a situação de risco em que se encontram. A complexidade da atenção às crianças em situação de risco passa por repensar as práticas da saúde e da assistência social, na medida em que a forma como os serviços estão organizados e como os profissionais se relacionam podem facilitar ou não o acesso e a permanência no serviço. Nesse âmbito, a noção de acolhimento tanto da criança ou jovem, quanto do adulto que acompanha, seja ele um educador ou um familiar, ganha importância (LESCHER et al, 2004). A presente pesquisa sinaliza que para o profissional envolvido no atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco, tão importante como conhecer as fases do desenvolvimento infantil, visando à adaptação do atendimento a cada faixa etária, é ter em mente os condicionantes sócio-econômicos para seu comportamento. Nesse sentido, cabem algumas considerações a respeito do contexto sócio-cultural em que se encontram crianças e adolescentes que, desassistidas pelos familiares, necessitam da intervenção do Estado na proteção de seus direitos fundamentais. As crianças e os adolescentes estarão mais vulneráveis a esta aprendizagem do que adultos, que, porventura, tragam consigo configuração diversa de valores éticos e morais. Na medida em que estarão ainda formando tais valores dimensionados numa realidade adversa, materializada por situação de risco pessoal e social. Por outro lado, configuram-se situações de risco pessoal/social na infância e adolescência, casos de: abandono e negligência; abuso e maus-tratos na família e nas instituições; exploração e abuso sexual; trabalho abusivo e explorador; tráfico de crianças e adolescentes; uso e tráfico de drogas e conflito com a lei, em razão de cometimento de ato 128 infracional. Ainda se pode verificar que a maioria dos indicativos de situação de risco correlaciona-se com a situação econômica precária da família que não consegue cuidar de suas crianças, enquanto outros, relaciona-se a problemas de saúde psíquica e emocional dos seus membros. A violência doméstica ocorre em todas as classes sociais, embora seja mais visível nas classes menos favorecidas. Muitos são os casos que chegam aos hospitais de crianças vítimas de violência física e sexual perpetrada pelos próprios familiares. 4 - O PROGRAMA ALUNOS-RESIDENTES [...] É... A gente quer viver pleno direito A gente quer viver todo respeito A gente quer viver uma nação A gente quer é ser um cidadão A gente quer viver uma nação Gonzaguinha Durante os anos 80 foi implantado no estado do Rio de Janeiro um conjunto de escolas públicas de tempo integral, os CIEPs, funcionando a partir de concepções administrativas e pedagógicas próprias. Os dois Programas Especiais de Educação, criaram 406 CIEPs e cinco CIACs6. O que a pesquisa revelou foi que tal projeto se realizou em um período curtíssimo de tempo, o que só foi possível graças à dedicação do Professor Darcy Ribeiro, somado ao esforço e comprometimento de mais de 200 professores do Estado e Município do Rio de Janeiro, responsáveis pelas Coordenações do Programa, sob responsabilidade do I PEE. Ao longo da realização do programa dos CIEPs foram criadas coordenações que ficaram responsáveis pelas obras, pelo trabalho pedagógico e pela gestão. Também reformaram equipes pedagógicas que desenvolveram os seguintes projetos: material didático, 6 O Programa Especial de Educação – I e II PE, incluiu na sua proposta político pedagógica integrada, nas décadas de 80 e 90. Sua implantação e implementação tinha como meta a construção de 500 CIEPs no Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e Interior do Estado. No projeto arquitetônico constavam modelos diferenciados de residência (sobre a lage ou sobre biblioteca) com capacidade de acolher de 12 a 15 crianças e adolescentes em alojamentos separados, com idades entre 6 e 14 anos, inseridas no segmento escolar. As residências foram totalmente equipadas para o casal, seus filhos e os alunos residentes. A intenção do Programa Especial foi incluir na escola crianças em situação de risco social, com sérias dificuldades familiares considerando sobretudo, ser este o seu espaço de direito. 129 treinamento de pessoal, cultura e recreação, assistência médico-odontológica, projeto alunosresidentes (PAR), educação juvenil, estudo dirigido, biblioteca e alunos-renitentes (Ribeiro, 1986). O objetivo da Comissão era formular e orientar a execução de toda a política educacional do estado. Ao objetivarmos privilegiar o estudo acerca dos alunos residentes, propiciando um melhor entendimento desta política pública, através das falas e memórias, que expressam representações do significado histórico daquele projeto, como uma das propostas educacionais dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Também analisamos o impacto social do projeto, junto aos militares da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, que forneciam os casais sociais, que atuavam como responsáveis das crianças inseridas no projeto, destacando um olhar ousado, em meio a um cenário político de redemocratização do país e de fortalecimento da escola pública. O PAR, mesmo tendo sido responsável por algumas incompreensões, ensejou teorizar sobre a função social da Escola pública, contrapondo com preconceitos cristalizados que entendiam que as crianças mais “desiguais socialmente” seriam casos para o atendimento por órgãos assistenciais e não pela Escola. Para Freire (1997), nessa relação, os oprimidos são submetidos à “invasão cultural” ao “silenciamento” da sua palavra e a constante “desumanização”, o que os impede de concretizar a sua “vocação ontológica” na direção de “ser mais” e de sua “humanização”. De acordo com Lobo Júnior (2001), o Projeto Alunos-Residentes inseria os alunosresidentes nas atividades de rotina, a partir das 8 horas, recolhendo-os às residências do CIEP no final do dia. Nos finais de semana, feriados e férias escolares, os alunos deveriam retornar à convivência com seus pais ou responsáveis, minimizando dessa forma, o rompimento dos laços familiares. Enquanto para Cavalieri (1996), pesquisadora da UFRJ, o PAR encaminhava e apoiava o aluno que iniciava seu processo de evasão escolar. Paralelamente, se desenvolvia um trabalho conjunto com os familiares, procurando meios de superação os problemas encontrados. No caso das crianças abandonadas ou em estágio de pré-marginalização, o projeto funcionava como instrumento de inserção da criança no sistema escolar, proporcionando também, e principalmente, a reversão, ou seja, o retorno dos alunosresidentes ao seio da família. Entretanto, tal projeto foi alvo de controvérsias, visto que muitos estudiosos 130 acreditavam tratar-se apenas de uma proposta marcada meramente por um viés assistencialista, tendo sido criada com objetivos político-partidários. Segundo Bomeny (2008), o aluno residente participava das atividades escolares, retornando à residência do CIEP no fim da tarde. Era a partir desse momento que surgiam as oportunidades de um trabalho mais intenso dos casais junto às crianças – conversando com elas em grupo ou individualmente. O projeto da residência era ambicioso: oferecer aos meninos e meninas dormitórios separados, equipados confortavelmente. O foco seria atender as crianças candidatas futuras às ruas e reeducá-las, dando-lhes educação de qualidade dentro dos CIEPs. O que se observa é uma contraposição ao projeto de ressocialização fracassado da tão criticada Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor). Uma experiência de moradia assistida em espaço menor, sendo unidade integral, com assistência social e pedagógica especializada (BOMENY, 2008). Desta forma, o Projeto de Aluno Residente, objetivava assistir em particular às crianças ou adolescentes em situação de carência ou abandono, gerada pela inteira ou parcial impossibilidade dos pais, principalmente em áreas mais carentes, cuidando do acolhimento, nas residências construídas nos CIEPs, de grupos de no mínimo 15, no máximo 24 crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos. O aluno residente é a criança que, diante de uma situação social crítica, precisava de apoio para que pudesse freqüentar a escola como é seu direito. As investigações realizadas ao longo da pesquisa identificaram 298 CIEPs, em 1994, atendendo a alunos residentes com 332 residências em funcionamento (algumas unidades que abrigavam até 24 crianças possuíam duas residências) em setenta e quatro municípios do Estado. O trabalho nesses municípios foi articulado com outros órgãos oficiais e nãogovernamentais, reunindo: Ministério Público, Juizado da Infância e Juventude, Conselhos de Defesa (Tutelar e Municipal), Secretarias Municipais etc. Assim sendo, um grupo de doze crianças – os alunos residentes – permanece na escola durante toda a semana, sob os cuidados de um casal representado por uma “mãe social” e um “pai social”7. Os pais sociais, seus filhos e os alunos residentes moram em um espaço 7 No Projeto Alunos Residentes, o marido da mãe social não é pai social. Desde a concepção do Projeto, tal situação era prevista: “constituirão uma família sob a responsabilidade de um casal ou de uma senhora em qualquer caso elementos cuidadosamente selecionados segundo critérios estabelecidos pela contratação. Essa contratação implicará em deveres explicitamente definidos e permitirá uma autonomia de ação no âmbito doméstico, estabelecerá uma vinculação administrativa direta ao Diretor Geral do CIEP e assegurará a orientação de técnicos da área social e de especialistas em assuntos educacionais”. (SÁ EARP, 1996, p.119) 131 construído para essa finalidade: a “residência”, onde ficam até o dia seguinte, quando vão novamente para as atividades na escola, ou seja, tal projeto reunia em uma mesma instituição educação e assistência. (SÁ EARP, 1996). As mães das crianças residentes podem visitá-las durante a semana. Esse é um dos aspectos que diferencia o Projeto alunos residente de outras instituições, como os internatos da FUNABEM, FEBEM e FEEM/RJ. Ainda segundo Sá Earp (1996), as crianças residentes têm condições de moradia extremamente precárias, geralmente casas de poucos cômodos, onde vivem muitas pessoas. Os alunos com laços familiares moram com as mães e a figura paterna parece distante, algumas vezes substituída por um padrasto. Para algumas crianças residentes, o CIEP representa um internato. Para crianças sem laços familiares, os chamados “desassistidos”, o atendimento na “residência” assume características de internação. 5 - FALAS E MARCAS DO PAR Mesmo considerando a diversidade de arranjos familiares no plano empírico, a unidade doméstica é, ainda, o grupo mais importante para transmitir capital cultural e para orientar a ação dos filhos na aquisição de capital escolar Romanelli Quanto ao processo de entrevistas, os sujeitos selecionados foram 8 (oito) ex-alunos do PAR, bem como 5 (cinco) ex-professores; 3 (três) ex-diretores; 3 (três) coordenadores do projeto e 2 (dois) ex-pais sociais. Cabe também salientar que os entrevistados pertenceram e, alguns ainda fazem parte da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME- RJ), embora o Projeto tenha sido gerenciado, tanto pelo município, quanto pelo estado do RJ. Pelos estudos realizados, acreditamos que a vivência longe dos pais, a situação de risco e a miséria em que se encontravam produza, inicialmente, resistências, dor, negação e fragilidade diante da necessidade de expor as experiências vividas na época. Essa resistência inicial deverá atingir os ex-alunos, dificultando a retirada de informações importantes. Para minimizar esse problema, foi construído um contato empático, solidário, não-julgador, que favoreça a confiança e a exteriorização de sentimentos e emoções, visando o alívio de tensões e elaboração da dor ao relembrar o passado. Cabe preliminarmente informar que o tempo que os ex-alunos permaneceram no 132 Projeto Aluno Residente variou de 3 anos a 7 anos. Dos 8 anos entrevistados, 3 (37%) tinham 7 anos de idade quando entraram para o PAR; 3 (37%) tinham 8 anos; 1 (13%) tinha 6 anos e 1 (13%) tinha 9 anos de idade (Gráfico 1). Gráfico 1 – Idade que os alunos entrevistados entraram para o PAR 13% 13% 37% 37% 6 anos 7 anos 8 anos 9 anos Quanto ao tempo de permanência desses alunos no projeto verificou-se que 4 (49%) permaneceram no PAR por 3 anos; 2 (25%) por 4 anos; 1 (13%) por 7 anos e 1 (13%) por 6 anos (Gráfico 2). Gráfico 2 – Tempo de permanência dos ex-alunos no PAR 13% 13% 49% 25% 3 anos 4 anos 6 anos 7 anos A resistência ao abordar o passado foi percebida desde o início, devido à dificuldade de conseguir que os ex-alunos relatassem a sua trajetória no referido Projeto. Os que aceitaram falar não queriam se aprofundar muito na temática e, alguns chegaram a mentir seu próprio nome. Em outros casos, as respostas foram bem sucintas, não havendo 133 aprofundamento. Tal atitude é compreensível, uma vez que abordar o passado, nesse caso, traz de volta sentimentos de dor, sofrimento e desamparo. Esses sentimentos ficam claros na fala de um dos ex-alunos. Muitos dos ex-alunos mencionaram que foram para o PAR, uma vez que o Conselho Tutelar visitou seu ambiente familiar e verificou que seria melhor que fossem inseridos no Projeto Alunos Residentes. Um ex-aluno inclusive mencionou que todos os irmãos foram levados ao PAR por meio do Conselho Tutelar. Dois dos ex-alunos entrevistados eram filhos de pais sociais, sendo que uma ficou durante dezoito anos, convivendo com os alunos residentes. As lembranças desses alunos não são tão difíceis, pois a situação era outra, eles estavam com os próprios pais, não eram crianças historicamente excluídas. Outro tema recorrente é a violência em família, revelando que na sua grande maioria, o Conselho Tutelar optou por levar as crianças para o Projeto Alunos Residentes. Vários foram os relatos dessas situações familiares. Em contrapartida, duas ex-alunas mencionaram que não sofriam violência por parte dos pais. Em um dos casos o problema era unicamente a miséria em que viviam, o que não deixa de ser uma outra forma violência social, imposta pelo modelo econômico brasileiro. Quanto à convivência com os pais sociais, os ex-alunos entrevistados relatam certa dificuldade inicial no relacionamento com os novos pais, mas afirmam que significaram muito para eles, como pode ser observado em seus depoimentos abaixo. Dando prosseguimento, todos os ex-alunos que vivenciaram aquela experiência, assinalaram a importância do PAR na suas vidas. Mesmo não sendo um abrigo, o PAR traz algumas características de institucionalização de menores e a preocupação relativa aos efeitos prejudiciais da institucionalização no desenvolvimento e na saúde de um indivíduo. A base de todos estes prejuízos é a impossibilidade de se formar e manter vínculos afetivos, pois estes são um referencial primordial na elaboração da concepção de si e do mundo. É a vinculação afetiva, inclusive, que propicia as estimulações sensorial, social e afetiva fundamental para que o indivíduo adquira amplas condições de aprendizagem em todas estas áreas. A infância conturbada e privada de laços afetivos fortes traz conseqüências futuras para o repertório comportamental dos indivíduos, inclusive para sua auto-estima, que pode definir sua forma de 134 relacionamento com o outro e com o mundo em geral. No caso específico do PAR, embora as crianças tenham a possibilidade de encontrar seus pais nos fins de semana, ocorre que muitas delas não têm pais, o que propicia uma angústia muito grande por parte da criança. Ao mesmo tempo, muitas crianças do PAR eram proibidas pelo Conselho Tutelar retornar para casa no final de semana, devido à total falta de condições apresentadas por parte da família. Algumas crianças chegavam ao PAR através do Conselho Tutelar, uma vez que as suas famílias, geralmente mono parentais (nas quais só a mãe está presente) e desfavorecidas economicamente. Muitas, a partir do momento em que chegavam ao PAR, eram proibidas de visitar suas famílias. Devido ao total desfavorecimento das mesmas no que tange à questão econômica, como também devido a muitas famílias terem mães e pais sem condições de criar os filhos (alcoólatras, prostitutas), ou também casos de crianças que viviam em ambiente de total violência física ou abuso sexual. Diante disso, passam a fazer parte de um contingente especial da população: os filhos de ninguém. As famílias, que a princípio pensavam em utilizar o PAR como um colégio interno, ou como simplesmente um local onde os filhos teriam o que comer, desaparece. As famílias, no entanto, continuam detentoras do pátrio poder e, as crianças nem sequer têm o direito de serem colocadas em uma família substituta. De outro lado, quando questionados se o PAR seria útil atualmente, no sentido da inserção social das crianças em situação de risco, todos entrevistados acreditam que sim. Paralelamente, no que tange ao que representou o PAR, de um modo geral, verificouse que este propiciou uma maximização da visão de como ligar com as crianças que tem necessidades sociais e que precisam promover para o bem estar social. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da presente investigação, podemos assinalar que o PAR foi um projeto inovador na área da educação pública, uma vez que antecipou-se às disposições do ECA, atendendo crianças e adolescentes em situação de risco. Também constatamos que até o início da década de 90, foram atendidas mais de 5.000 crianças, considerando o número significativo de reintegrações familiares, com a permanência da criança na escola de horário integral e ingresso de novas crianças/adolescentes. 135 Tal proposta educativa de assistência foi uma possibilidade que abriu caminhos para o rompimento da situação de crianças nas ruas e/ou internações em estabelecimentos de modelo asilar. A intenção do PAR foi incluir na escola, crianças em situação de risco social, com sérias dificuldades familiares considerando, sobretudo, ser este, o seu espaço de direito. O PAR apresenta-se como contexto principal de desenvolvimento para aquelas crianças, proporcionando novas relações de amizade, ampliando as suas redes de apoio. Os pais sociais foram de vital importância na vida das crianças inseridas no PAR, pois forneceram apoio, tendo em vista que, frente às situações adversas a que as crianças estavam expostas. Percebe-se que para as crianças entrevistadas, a falha ou mesmo a ausência de apoio familiar faz com que o apoio fornecido pelos pais sociais seja mais valorizado. O Projeto foi percebido por todos como uma oportunidade e como uma possibilidade de crescimento e desenvolvimento pessoal que permitiu o acesso a um futuro mais promissor. Desta maneira, sentiram-se ocupando um espaço, ou seja, julgaram-se incluídos na sociedade, pois o projeto permitiu a integração familiar, a participação política e social e controle de risco da marginalidade e da violência em que viviam essas crianças. Assim, queremos ressaltar que os sentidos construídos por esses jovens não são generalizáveis devido à especificidade do Projeto Alunos Residentes. Apesar disso, gostaríamos de destacar que iniciativas como esta podem ser “um dos” caminhos para evitar a marginalidade do jovem, possibilitando seu acesso ao acervo cultural de nossa sociedade. BIBLIOGRAFIA: ALMARALES, I. R. 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Bragança Paulista: Ifan/ Cdaph/Edusf, 2000. 139 MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA E PARTICIPAÇÃO POPULAR Do Brasil-colônia ao Governo Lula Leonardo Vereza de Freitas1 RESUMO O trabalho expõe alguns episódios da história do Brasil, onde elites buscaram promover transformações sociais e políticas no país. Analisamos a modernização neo-pombalina no período da transferência da corte portuguesa ao Brasil em 1808, bem como na transação de independência de 1822, entendendo esses dois processos enquanto antecipações das elites a mobilizações de setores ora desfavorecidos à época. Analisamos também a proclamação da República em 1889, observando o nível de participação das classes populares no movimento e os três matizes políticos envolvidos da idealização da República: jacobinos, liberais e positivistas. Já em período contemporâneo, analisamos o governo Lula, debatendo o sentido das chamadas “mudanças” promovidas por este, questionando o não-atendimento de demandas populares históricas no país. Relacionamos os fenômenos coronelismo, clientelismo e corrupção, resgatando origens históricas e verificando a vigência dos mesmos até hoje. Analisamos os impactos do programa Bolsa-família, como fenômeno de estatização do clientelismo, sustentado pela relação entre a prática assistencialista e a retribuição pelo voto nas eleições estatais. Para avaliar a qualidade da chamada “mudança” no governo Lula, debatemos os conceitos gramscianos de revolução passiva, reforma e contra-reforma. Com esta base conceitual, interpretamos práticas políticas do governo Lula, como o Bolsa-Família e o processo de transformismo, relativo à cooptação de lideranças populares pelo Estado. Como um todo no trabalho, debatemos o protagonismo das classes trabalhadoras em todos esses movimentos de transformação, para buscar entender como os processos de modernização no Brasil têm jogado o moderno sempre um pouco mais a frente. Palavras-chaves: Modernização, Clientelismo, Lula. INTRODUÇÃO O presente trabalho buscará de forma objetiva, expor alguns importantes episódios da história do Brasil, onde as elites buscaram promover transformações sociais e políticas no Brasil. 1 Leonardo Vereza de Freitas é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense e Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma universidade. E-mail: [email protected] 140 No senso comum muitas vezes esses episódios se apresentam com nuances positivas, dando a impressão de que o povo de fato foi atendido em suas demandas. Há pouco anos atrás, em 2008, o Rio de Janeiro era tomado por cartazes e debates acerca da importância da vinda de D. João VI e da Corte portuguesa ao Brasil em 1808. A tônica dos debates era sobre como se modernizou o Rio de Janeiro e o Brasil em função daquele evento e como as condições precárias de vida da população foram melhoradas. As datas de celebração de independência do Brasil e da proclamação da República, constituem-se como atos cívicos anuais em que enaltece-se um sentido de pátria que a população aplaude de pé, mesmo sem ter entendimento muitas vezes do que é essa pátria e como ela foi em fatos constituída. Já o governo de Luis Inácio Lula da Silva segue sendo considerado por significativa parcela das classes trabalhadoras como o melhor presidente dos últimos tempos, em função de todo um simbolismo que sua origem operária suscita no imaginário popular, bem como devido a sua habilidade política em sustentar o projeto das classes dominantes, fazendo-o passar como o interesse de melhoria de vida dos dominados. Buscaremos debater aqui então sobre qual foi a preponderância e protagonismo das classes trabalhadoras em todos esses processos de mudança, para buscar entender como os processos de modernização tem jogado o moderno sempre um pouco mais a frente. A TRANSAÇÃO – Do domínio colonial a independência antecipada “O pensamento político brasileiro é o pensamento político português.” É a partir dessa afirmação que Raimundo Faoro, em sua obra Existe um Pensamento Político Brasileiro? (FAORO, 2007), busca apresentar as origens do pensamento político brasileiro, relacionando o mesmo com a colonização brasileira e o particular modo em que se deu mesma. Faoro questiona as razões do atraso político no Brasil, sobre o porquê de sucessivos processos de modernização, onde as classes dominantes souberam alijar as classes populares do centro das transformações. Distanciando o Pensamento Político da concepção de que ele estaria restrito ao plano teórico, Faoro afirma que o mesmo é uma atividade, circunscrita no território da prática. É nesse sentido que o autor expõe as transformações políticas, no período de colonização do Brasil, na metrópole e na colônia, demonstrando como as mesmas contribuíram para a formação de uma determinada via de transformações no Brasil, em que a modernidade, além de defasada no tempo, sempre chegava de forma incompleta. Como diz Faoro: “a modernização, pelo seu toque voluntário, senão voluntarista, chega a sociedade por um grupo 141 condutor que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes” (FAORO, 2007, p. 125). Demonstrando o descompasso político e cultural de Portugal com relação à Europa no século XVIII, Faoro analisa as reformas promovidas pelo Marques de Pombal. Enquanto uma parcial modernização de Portugal, implicava numa descompressão cultural que abria caminho para o fomento da então atrasada economia portuguesa, “artificialmente ativada pelo ouro do Brasil e subterraneamente devastada pela Revolução Industrial, à qual o país permanecia alheio e, pelo Tratado de Methuen, vendido” (FAORO, 2007, p. 70). Os entraves culturais foram superados pela expulsão dos jesuítas em 1759 e com a renovação do ensino e do modelo universitário. Do ponto de vista da organização política do Estado, promove uma transformação parcial no modelo absolutista, na medida em que atenua o poder da aristocracia, ao removê-la do papel de controle político, sem substituí-la, entretanto, por outra classe em ascensão – a burguesia comercial. Em uma transação com essa burguesia, tais medidas consistem num enfraquecimento do setor mais conservador da aristocracia, que abre as possibilidades para o caminho liberal português, inaugurado na Revolução de 1820 e que por consequência instala uma dita forma liberal no Brasil, oficial e dirigida pelo alto, como apêndice do Estado. A via das transformações, ainda que contida pela severidade da Real Mesa Censória e pelo poder régio, agora colocado como se emanado diretamente de Deus, liberta a direção do Estado das restrições eclesiásticas, das Cortes e do Papa. Isso permite uma abertura parcial aos debates filosóficos e políticos iluministas que tomavam a Europa, levando ao preparo das elites que iriam decidir os caminhos da colônia e do curto Império do Brasil. Os reflexos das transformações promovidas por Pombal vêm se manifestar no Brasil a partir da transferência da Corte para a colônia em 1808. Aquilo que veio a ser chamado de neo-pombalismo traduziu-se na transação que resultou no fim do pacto colonial e no conjunto de adequações econômicas e de infra-estrutura necessárias a transformação da colônia em metrópole do reino português. Isso virá afetar diretamente as tensões crescentes que decorriam da crise do sistema colonial. A insatisfação dos senhores de engenho que viviam sob um crescente arrocho em suas receitas era o termômetro da falência de um sistema colonial que começava a dar seus espasmos. Com o preço de seus produtos regulados pela metrópole, os senhores de terras não possuíam muito mais que a aparência de ricos e a ostentação no interior de seus perímetros. E além da crise no meio das elites locais, fermentavam movimentos contestatórios de maior monta que propunham a aliança de setores desprivilegiados da sociedade, incluindo os escravos. No rumo dos influxos da Revolta de São Domingos de iniciada em 1791 no Haiti, a 142 Inconfidência Baiana de 1798 retrata bem no Brasil o perfil dos movimentos de ruptura que a Coroa não hesitará sobrepujar. Como observa Faoro (p. 128): A modernização, no Brasil, encontra, na sua primeira versão histórica, uma modernização em maturação. As inovações de d. João recaíram sobre um país em transformação, dirigindo-o e, ao mesmo tempo, freando-o e renovando-o com o transplante da Corte portuguesa no Rio de Janeiro. O segundo movimento de modernização no Brasil se dá em 1822 por meio da Independência transacionada por Pedro I e as elites locais, para que se mantenha, à custa de reformas, o núcleo neopombalino. Anos antes, a Revolução Pernambucana de 1817 aventava para o risco de sucesso de movimentos de independência nacional que corressem por fora dos arranjos que se estabeleciam desde 1808. Logrando êxito, ideais liberais hasteados pelas classes desprivilegiadas poderiam alterar a estrutura do Estado, de uma forma não prevista. Daí a necessidade de mais uma vez, haver a antecipação das elites aos intentos populares, projetada nessa vez pelo reformismo da transação da Independência. Através de um constitucionalismo de restauração, tomava corpo um novo Estado nacional. No entanto, o mesmo não fazia mais que renovar a tradição absolutista, moderada pelo sentimento de união nacional, cooptando interesses econômicos divergentes, como o senhor rural e o comerciante urbano. A Constituição de 1824 inaugura o Poder Moderador, que, como quarto poder e “neutro”, serviria à vigilância do equilíbrio dos três poderes constituídos, assegurando que nenhum deles tomasse um viés popular. Além disso, o constitucionalismo toma para si o rótulo de liberalismo sem o sê-lo. Dá forma ao absolutismo reformista brasileiro para, em nome do liberalismo, desqualificar os liberais. O pensamento liberal genuíno, por sua vez, além de não conseguir alçar-se a cabeça do Estado, sofria de carências no próprio movimento contestatório, que o tornavam insuficiente enquanto uma proposta de poder assegurador dos direitos individuais. Não se traduzia em democracia, mas na defesa da integridade do Império, tendo como horizonte no máximo o liberalismo norte-americano e europeu, socialmente conservador. Como atesta Faoro, o liberais, quanto ao poder, “serão potencial ou realmente sediciosos, ou, sem tocar no Estado, farão a política conservadora” (FAORO, 2007, p. 99). O liberalismo ao se desenvolver genuinamente poderia superar o invólucro da consciência do possível e ampliar o campo democrático, que lhe é correlato, mas que pode ser antagônico. Das insuficiências e fracassos do mesmo resulta uma continuidade do absolutismo, agora pretensamente “nacional” pela base do reformismo, sem nunca voltar os 143 olhos ao povo brasileiro, quanto às suas reivindicações sociais e no respeito aos seus direitos. A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA ÀS MARGENS DO POVO O processo de Proclamação da República no Brasil demonstra um terceiro movimento de elites que implica em uma reestruturação política ao nível nacional. Num ato em si predominantemente de cunho militar, suas lideranças tiveram a preocupação de tentar angariar alguma legitimidade fora dos círculos militares. Legitimidade essa que não necessariamente significava participação popular. Tomando como base a descrição de José Murilo de Carvalho em A Formação das Almas (1990), centramos aqui na análise das três vertentes do pensamento republicano – os liberais, os jacobinos e os positivistas – no período que antecede a data de 15 de novembro de 1889, de forma a identificar que influências de fato tiveram nos acontecimentos, bem como o apelo popular que puderam alcançar. Já com alguma tradição política no país, registrada pela Revolução Pernambucana de 1817 e pela difusão do Manifesto Republicano em 1870, entre outros episódios, os liberais brasileiros tinham como referência o liberalismo estadunidense, na forma da constituição de uma República Federalista, com sistema parlamentar bicameral. O pensamento liberal tinha significativo apelo entre os proprietários rurais, em especial os paulistas, que se sentiam asfixiados pela centralização monárquica no período de expansão do café. Com adeptos também em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, teve como personalidades marcantes as figuras de Alberto Sales e Quintino Bocaiúva. Embora o modelo liberal estadunidense atender aos interesses de grandes proprietários rurais, no Brasil este tinha sentido bem distinto do sistema estabelecido de fato nos Estados Unidos. Isso, pois, apesar dos sucessivos e graduais atos abolicionistas concluídos em 1888, o Brasil sofria de profundas desigualdades sociais e grande concentração de poder – cenário esse, bem distinto da realidade dos Estados Unidos, quando do estabelecimento do federalismo. Este país tinha passado por uma revolução que desembocara numa quase ausência de hierarquias sociais, segundo Carvalho (1990, p. 25). Pensar em liberalismo americano no Brasil pressupunha a consagração da desigualdade, por meio de um regime presidencialista profundamente autoritário. A vertente positivista, por sua vez, baseada na lei dos três estados (Teológico, Metafísico e Positivo), defendia a superação da fase teológico-militar – que corresponderia à Monarquia, pela fase positivista – cuja encarnação era a República. E apesar de serem contra a monarquia, entretanto, viam no Estado a instituição-mor capaz de promover o progresso, 144 que necessitava, por sua vez, de se separar da Igreja para cumprir seus intentos. Tinha grande apelo entre militares, atraídos pela ênfase positivista dada a ciência e ao desenvolvimento industrial, mas seduziu também os republicanos do Rio Grande do Sul, que na constituição daquele estado incorporaram importantes elementos positivistas. Tiveram à testa Benjamin Constant e teorizavam acerca do papel da Ditadura Republicana, para ao largo do conflito de classes incorporar o proletariado à sociedade, mediante o reconhecimento dos ricos à necessidade de proteger os pobres. A terceira vertente, a dos chamados radicais da república ou jacobinos, tinha como pregador ilustre a figura de Antônio da Silva Jardim e forte apelo entre pequenos proprietários, profissionais liberais, jornalistas, professores, estudantes – em suma, setores das classes médias. Estabeleciam postura radical contra o regime monárquico, invocando críticas semelhantes às tecidas ao Ancien Régime francês, na revolução de 1789. Consideravam também que a solução liberal ortodoxa era insuficiente para colocar as classes desprivilegiadas em vantagem num sistema de competição livre, na medida em que não controlavam recursos de poder econômico e social. Apesar das limitações na defesa das bandeiras de igualdade, liberdade e participação, desenvolvidas de forma um tanto abstrata, e de terem também uma abstrata concepção sobre o povo, os jacobinos eram o único segmento que defendia a intervenção popular para a derrubada do Estado autocrático. Mas pelo alto nível da abstração de suas ideias, conseguiam ter pouca penetração entre camadas populares, que marcadamente nutriam simpatias pela Monarquia no Rio de Janeiro. Dentre as três correntes políticas, as vertentes positivista e liberal foram as que mais conseguiram se aproximar dos acontecimentos que resultaram na eclosão da Proclamação da República. Entretanto, isso seu deu mais pela visibilidade dos seus ilustres representantes históricos junto ao movimento de 15 de novembro, do que pela real aplicação de seus ideários. Movimento de cunho estritamente militar, a derrubada da monarquia encenada por Deodoro da Fonseca e a parada militar que percorreu as ruas do centro do Rio de Janeiro, resultaram em mais um movimento conservador no Brasil. A dicotomia e insegurança dos militares à época não era em torno do cunho popular ou elitista que o movimento poderia tomar. Esse era um paradigma fora dos horizontes dos militares, que se preocupavam somente em ter, em aparências, um lastro civil. Daí a necessidade de ter presente aos eventos figuras como Benjamin Constant e Quintino Bocaiúva. Já a representação jacobina não foi admitida ao palco no dia 15. Como descreve José Murilo de Carvalho: 145 A afirmação do papel dos históricos era, portanto, importante para garantir a posição dos civis na proclamação e a perspectiva liberal da República. Mas era impossível negar o aspecto militar do evento e o caráter inesperado da eclosão. [...] Um compilador de notícias publicadas nos primeiros dias da República reconhece “o sentimento de surpresa unânime, produzido pelo estabelecimento da forma republicana no Brasil” (Carvalho, 1990, p. 51). Em realidade o grupo de militares que esteve à frente do movimento do dia 15 de novembro não possuía uma visão elaborada de república. A transação dos militares buscava apenas uma posição de maior prestígio e poder, que consideravam ser de direito do exército após o esforço de guerra contra o Paraguai. Democracia, renovação e implantação de direitos individuais eram expressões que não faziam parte do ideário da vanguarda militar. Governo Lula e Hegemonia às Avessas A eleição do governo Lula estabelece novos paradigmas e elementos na estrutura de dominação política no Brasil. Tendo como referência a tradição brasileira na qual reformas movidas pelo alto se sucederam desde os tempos de domínio colonial, é inevitável que um governo originado de lutas sindicais suscite questionamentos diferentes daqueles colocados quando de governos constituídos por representações diretas das oligarquias. Na sequencia dos processos que vieram modernizar o Brasil de forma conservadora no período final do sistema colonial, no efêmero Império “independente” e na proclamação da República, o país passa ainda por significativas transformações ao longo do século XX. Transformações, entretanto, que ou não envolviam as classes trabalhadores ou no máximo as integravam no processo como coadjuvantes para legitimar as novas transações. A chamada Era Vargas e o período do gerenciamento militar do país são expressões marcantes destes processos. O primeiro governo Vargas (1930-1945) fica marcado pela utilização do par Mobilização/Desmobilização como método para construção do regime corporativista. “Para assumir a ‘representação’ das classes subalternas, primeiro o Estado teria de liquidar suas organizações independentes, tendo reprimido seus líderes, cooptado outros e corrompido a uns tantos” (VIANNA, 1976, p. 142). Já no gerenciamento militar do Estado brasileiro, ocorrido de 1964 a 1985, os militares, para realizar o programa capitalista em suas formas mais violentas lançaram mão de outros métodos, como atesta Francisco Oliveira: [...] o regime militar sucumbiu não ao seu fracasso, mas ao seu êxito em construir uma ordem capitalista avassaladora. O regime militar relegou a burguesia nacional ao papel de coadjuvante, submeteu a classe trabalhadora a pesadas intervenções e não abriu ao capital estrangeiro, como faria supor seu ato mais imediato, a revogação da Lei de Remessa de Lucros de Goulart, que deu pretexto ao golpe (OLIVEIRA, 2010, p. 372) 146 O desfecho da gestão militar, a chamada “transição democrática”, fica marcado como mais um pacto firmado pelo alto entre o partido oficial de oposição a ditadura e o falido partido da ditadura, que entrega o poder, por meio de uma eleição indireta, a um civil mais conservador que o próprio general (OLIVEIRA, idem). Nesse sentido, quando um governo se elege com uma proposta de acabar com a pobreza, recuperar os direitos alijados das classes trabalhadoras – apontando ainda para a integração das mesmas ao projeto de governo – e ainda aplicar um Plano de Aceleração do Crescimento no país, é natural que haja questionamentos sobre a possibilidade de mudança de rota no curso de nossa história. Entretanto, há que tomar alguns dados, observar remanências, aprofundamentos e possíveis rupturas nas formas de dominação e de organização do Estado. E é claro, pôr todas essas questões a luz do conceitual teórico que trata das transformações da ordem político-social. O programa Bolsa-Família é elemento chave para essa análise. É carro chefe de Lula em toda sua propaganda sobre redução da pobreza e democratização no país. Por outro lado, é criticado severamente, como instrumento da perpetuação eleitoral de Lula e do PT. José de Souza Martins vai mais além (MARTINS, 2011). O autor avalia que tal programa se converteu em instrumento para estatização do clientelismo. Foi o modo de institucionalizar o conformismo político e, ao mesmo tempo, incorporar as massas desvalidas ao processo político por meio do Estado, arrancando-as da tutela privada dos régulos de província, sem acabar com eles, substituindo-os pelo intermediário cúmplice, transformando-os em sócios menores do poder (MARTINS, 2011, p. 9). Martins dá ênfase a essa questão por considerar o clientelismo como uma prática política resultante da forma que a arcaica estrutura fundiária latifundista tomou e preservou em nosso país. Suas chagas seriam “um conformismo preguiçoso, uma desmemoria política, uma espera messiânica, um milenarismo retrógrado, um apreço reacionário pelas aparências” (MARTINS, 2011, p. 11) A prática do clientelismo está intimamente ligada à política do coronelismo. Nesta estabelecem-se valores antimodernos de cunho feudal, baseados na troca de favores entre potentados locais e população, que retribui a supostas benesses concedidas pelos senhores através da prática do “voto de cabresto”, reafirmando e continuando o poder oligárquico regionalmente e sua influência a nível nacional. O coronelismo é originário dos tempos ainda do sistema colonial, no qual a Coroa instituiu uma hierarquia que partia do Rei, aos capitães generais (governadores das capitanias), aos capitães de ordenança, que eram responsáveis pela companhias de ordenança. Essas companhias eram formadas pelos chamados cabos de ordenança – cabeças de família 147 convocados pelas câmaras para realizar serviços públicos (à época chamados “serviços de bem comum”). Organizações de cunho civil com tendências a militarização, tiveram seu caráter alterado, quando no período da Regência, passando a possuir uma hierarquia militar completa e submetida ao Ministério Justiça. Surgia assim a Guarda Nacional, na qual os potentados locais ganhavam maior visibilidade e forma política como coronéis da Guarda. Guardiões do Estado Nacional recente, estes senhores eram fonte de legitimidade política do país. Tal legitimidade não fora perdida a partir do fim da Guarda Nacional, quando as estruturas locais de poder seguiram sendo as mesmas. Desde aquele período até então, a política coronelista e clientelista (senão que umbilicalmente complementares), mantida pela estrutura latifundista, tem sido instrumento de freio e retardamento das possibilidades de transformação social profunda e de democratização do país (MARTINS, 2011, p. 18). Ampliando o conceito de clientelismo, Martins relaciona tal fenômeno com a prática da corrupção. Buscando fugir do senso comum, argumenta que a corrupção não está restrita a prática do roubo na máquina pública, ou no uso escuso de poder de cargos mesmo em instituições privadas. Para o autor, a corrupção se estabelece mediante a troca de favores e interesses. Prática esta que acomete como doença crônica o poder público, mas que se estende a práticas cotidianas da população, pelo sentimento de dever e culpa, ao se cumprir ou não o hábito de conceder o “presentinho”, a gorjeta, o “agrado”, chegando até as pequenas propinas e os altos subornos. E é a partir de uma análise macro que Martins considera o clientelismo como uma prática não marcada pela relação entre políticos ricos e eleitores pobres. Sustenta que o oligarquismo brasileiro se apoia, na verdade, numa relação entre todos que dependem de alguma forma do Estado e são induzidos a uma relação de troca de favores com os políticos. E nisso está contida a política de sobrevivência de populações pobres inteiras, mas também e principalmente na relação entre poderosos e ricos. E se as relações de interesses ocorrem entre grandes corporações, bicheiros, etc. e políticos, as mesmas se colocam também como tática de governabilidade, mediante a relação promiscua entre partidos e poderes públicos. Anualmente tomam vulto na mídia, as discussões polêmicas que ocorrem sobre apoio político no Congresso e a liberação de verbas para “as emendas”: dinheiro público cedido pelo governo a parlamentares para bancar seus projetos locais, seja com a finalidade de investimentos para proveito pessoal ou familiar, seja para a realização de obras regionais que revertem-se em capital político angariado junto às populações locais. O Bolsa Família passa a ter o status de política clientelista estatal, pois estabelece a 148 prática da troca de favores direta entre o governo e populações pobres. Os resultados apareceram nas eleições de 2010 e 2006, esta última logo após o escândalo do “mensalão”, que longe de abalar a popularidade de Lula, reverteu a ele estrondosos índices de votação, principalmente no nordeste. Martins fundamenta: A grande inovação do PT no poder foi a estatização do clientelismo, inovação que não é pouco significativa. Por meio dela, ganha consistência o processo de esvaziamento político das oligarquias, iniciado, com estratégia própria, no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas uma inovação que, se suprime do oligarquismo o propriamente privado, fortalece-o como prática institucional, o que seria o mesmo que transformar os antigos coronéis do sertão em funcionários públicos da dominação patrimonial (MARTINS, 2011, p. 94). Mas a forma inovadora de fazer política do governo Lula não se resume ao clientelismo estatizado do Bolsa Família. Lula mantém a estrutura social conservadora mediante um consentimento construído junto a população. Este só é possível mediante a incorporação e atendimento de algumas demandas populares que não impactam no processo de exploração do capital. Afinal quais os impactos negativos para o capital hoje, em função do financiamento das centrais sindicais? E do aumento de vagas universitárias pelo Prouni e pelo Reuni? E pelo incentivo ao consumo através do crédito consignado? E pelas grandes obras de infra-estrutura do PAC, onde não tem faltado empreendimentos para empreiteiras? O Bolsa Família se inclui nestes questionamentos, mas já foi suficientemente comentado. Aquilo que poderia ser chamado por “Hegemonia às Avessas” tem nítido exemplo na África do Sul. As classes dominadas tomam a “direção moral” da sociedade e a dominação burguesa se faz mais descarada. Como comenta Francisco de Oliveira: “As favelas de Johannesburgo não deixam dúvidas. Assim, a liquidação do apartheid mantém o mito da capacidade popular para vencer seu temível adversário, enquanto legitima a desenfreada exploração pelo capitalismo mais impiedoso” (OLIVEIRA, 2010, p.24). O já bastante debatido Bolsa Família poderia ser considerado a concessão em certo nível equivalente ao fim do apatheid da África do Sul. Mas há outros tipos bem evidentes. O transformismo de lideranças populares é marcante no governo luta. A cooptação de representações sindicais e lideranças camponesas atinge os movimentos de contestação como um todo, excluindo as camadas populares do efetivo protagonismo nos processos de transformação social. No governo Lula, pululam nas direções de empresas estatais, fundos de pensões e nos ministérios, históricos militantes da CUT e ainda representantes do MST. No interior desses movimentos se instauram crises, na medida em que suas direções se veem ao mesmo tempo pressionadas pelas bases enquanto precisam defender ainda a agenda do governo, defendendo em realidade as políticas públicas definidas por seus pares instalados no 149 governo. Esses são alguns dos elementos que expostos aqui de forma bem breve servem ao debate sobre o significado político do governo Lula, debatido por Carlos Nelson Coutinho (2011) no livro e no seminário homônimo Hegemonia às Avessas organizado pelo CinedicUSP. O autor debate os binômios restauração versus revolução, conservação versus modernização. Fundamentalmente situado pela leitura gramsciana, busca identificar no momento da luta de classes da época do lulismo, como se articulam os aspectos da conservação e da inovação. Carlos Nelson Coutinho aventa para a possibilidade de se passar nesse período uma revolução passiva. Ele resume assim as características desse tipo de revolução: 1) as classes dominantes reagem a pressões que provêm das classes subalternas, ao seu “subjetivismo esporádico, elementar”, ou seja, ainda não suficientemente organizado para promover uma revolução “jacobina”, a partir de baixo, mas já capaz de impor um novo comportamento às classes dominantes; 2) essa reação, embora tenha como finalidade principal a conservação dos fundamentos da velha ordem, implica o acolhimento de “uma certa parte” das reivindicações provindas de baixo; 3) ao lado da conservação do domínio das velhas classes, introduzem-se modificações que abrem caminho para novas modificações (COUTINHO, 2010, p. 33). Para situar o debate sobre esse tema, Coutinho aborda um aspecto da contrarreforma de Grasmci, considerando o advento da mesma como não necessariamente resultado da ação de um bloco hegemônico, “mas uma combinação substancial, se não formal, entre velho e novo”2. Expõe isso, pois considera importante diferenciar o aspecto transformador parcial da revolução passiva, onde se fala de “revolução-restauração”, do fundamento do processo de contrarreforma que é a pura “restauração”, apesar de admitir nesse caso a combinação entre o novo e o velho. A revolução passiva teria seu sentido ligado diretamente ao de reforma, enquanto um movimento realizado pelas classes dominantes, mas que atende parcialmente os anseios das classes subalternas – movimento limitado, mas com aspectos progressistas. Podemos supor, assim, que a diferença essencial entre uma revolução passiva e uma contrarreforma reside no fato de que, enquanto na primeira certamente existem “restaurações” – mas que “acolhem uma certa parte das exigências que vinham de baixo” – na segunda é preponderante não o momento do novo, mas precisamente o do velho. Trata-se de uma diferença sutil, mas que tem um significado histórico que não pode ser subestimado (COUTINHO, 2010, p. 34). Sob os tempos do chamado “neoliberalismo”, argumenta Coutinho, o sentido de reforma tem sido manipulado, apontando não para um cenário de acolhimento dos interesses dos “de baixo”, mas sim por uma inversão desse sentido. Sob a argumentação de promover os 2 Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2003, v.5, p. 143, apud COUTINHO, 2011, p. 29. 150 ajustes necessários na economia e na organização social, visando o crescimento e melhoria das condições de vida, as “reformas” apresentadas têm ido, em realidade, de encontro aos interesses das classes trabalhadoras. E o período do governo Lula tem sido o momento em que tal tipo de “reformas” puderam parcial ou integralmente ser implementadas, com uma determinada forma de consentimento popular, na medida em que os movimentos contestatórios encontravam-se anestesiados pelas suas lideranças sindicais e populares alocados no governo e pelas deficientes políticas compensatórias implementadas em paralelo. Tudo isso embalado pelo discurso carismático do presidente. Quanto ao protagonismo das classes trabalhadoras na transformação do país, esse ficou nos discursos de campanha eleitoral e nas intervenções políticas das greves do ABC. CONSIDERAÇÕES FINAIS A trajetória histórica abordada brevemente neste trabalho, buscou por um lado exemplificar sucessivos movimentos de modernização conservadora, para situar importantes questionamentos dos dias de hoje: estamos vivendo ou não período de transformações sociais? Em que nível essas transformações atendem aos interesses históricos das classes trabalhadoras? Em que nível as mudanças percebidas hoje se diferenciam de falsos e limitados projetos de transformação no Brasil? Como elemento em comum entre os processos de modernização conservadora observados no Brasil colônia, na proclamação da independência e na proclamação República, pode-se atestar como as classes dominantes souberam identificar conturbações sociais que poderiam desestabilizar o regime e agir de acordo. Anteciparam por diversas vezes movimentos que apesar de quaisquer limitações poderiam alçar ao poder classes populares, ou ao menos abrir caminho para futuros movimentos emancipatórios. Foi assim que Dom João VI e Dom Pedro I derrotaram os movimentos liberais. O período colonial e o do Império foram marcados por diversas revoltas, todas elas sem estar organizadas por um núcleo único, uma vanguarda e uma organização com um projeto complexo de poder para o Brasil. Entretanto, eram a expressão de tentativas de ruptura com o sistema de exploração atrasado da época. Ao realizar determinadas concessões, souberam neutralizar esses movimentos, ou até cooptar adeptos. É a conhecida política do “dar os anéis, para ficar com os dedos”. Apesar de que nesses casos, nem tantos anéis assim foram concedidos. O embuste da proclamação da República, na qual os elementos centrais do movimento eram originários material e ideologicamente do próprio Império – a alta oficialidade do 151 exército – serve a uma exposição complementar. Expõe como que entre os movimentos republicanos, nota-se a quase ausência do aspecto popular do movimento contestatório como um todo. Os únicos a defender uma intervenção popular eram o minoritário grupo dos jacobinos. Estes por sua vez, dada à limitação de suas formulações, não conseguiam obter apoio popular, de um povo que pouco entendia o nível de abstração de suas ideias. Movimento militar de elite, no 15 de novembro não se preocupava em haver um lastro popular, mas um lastro civil, para fugir de uma cisma contra os militares, por falta de legitimidade. No governo Lula vê-se uma nova modalidade de “mudança”. As concessões se repetem, tal qual no período de domínio lusitano, mas dessa vez são apresentadas por um dito representante do povo. Para esse povo, as benesses deixam de ser dadas em parte pelos coronéis para serem dadas por um histórico sindicalista. Por sua vez, as concessões se não são localizadas e fragmentadas para atender específicos setores, de forma a não impactar nos lucros do capital, possuem na verdade um sentido contrário aos anseios de emancipação popular. O exemplo do Bolsa Família demonstra como é possível como uma “concessão”, ampliar uma estrutura arcaica de dominação, do plano local para o plano nacional, dando maior legitimidade institucional inclusive aos potentados locais. É nesse sentido que expressamos acordo, com a expressão Hegemonia às Avessas de Francisco de Oliveira. Vivemos num período em que as classes dominantes concederam licença a que uma representação das classes subalternas tomasse a direção moral do sistema de produção, para em realidade aplicar o programa já dominante. Usamos a expressão direção moral, pois entendemos que ter representantes oriundos das classes populares no poder não significa ter as classes populares no poder. Sem romper com as estruturas de dominação arcaicas através de um longo processo de transformações revolucionárias, o máximo que poderemos ter serão caricaturas populares no poder. E caricaturas muitas vezes servem somente a exacerbar determinadas qualidades, mas sem nunca refletir a totalidade de seu objeto. E dessa caricatura só saem piadas de mal gosto, ficando somente a burguesia e o latifúndio a sorrirem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 COUTINHO, Carlos Nelson. A Hegemonia da Pequena Política, in OLIVEIRA, Francisco, 152 BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.), Hegemonia às Avessas. São Paulo: Boitempo, 2010. FAORO, Raymundo. A República Inacabada: São Paulo. Globo, 2007 MARTINS, José de Souza. A Política do Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Conmtexto, 2011 OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às Avessas, in OLIVEIRA, Francisco, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.), Hegemonia às Avessas. São Paulo: Boitempo, 2010. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1976. 153 GRUPO DE TRABALHO 02: MEIO AMBIENTE, TERRITÓRIO E PODER A GESTÃO DOS RECURSOS NATURAIS EM MOÇAMBIQUE NA ERA DA SUSTENTABILIDADE E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA EROSÃO COSTEIRA: QUEM DISSE? O QUE DISSE? PARA QUEM DISSE? SOCIOLOGIZANDO COM HANNIGAN À BEIRA DA COSTA DO SOL Giverage Alves do Amaral1 RESUMO O presente artigo constitui um requisito para participação no seminário fluminense de Sociologia, especificamente para o grupo de trabalho (GT) de sociedade e meio ambiente, e o mesmo tem como objectivo central, perceber os contornos da gestão dos recursos naturais em Moçambique na era da sustentabilidade, pretendemos também entender a relação entre a erosão Costeira na praia da Cosa do Sol como resultado da acção humana no meio ambiente, visto tratar-se de um dos problemas ambientais mais gritantes da actualidade Moçambicana. Palavras-chave: Erosão Costeira, Meio Ambiente, Sustentabilidade, Legislação Ambiental 1. INTRODUÇÃO: O presente artigo tem como objectivo central desenvolver uma análise sobre os contornos da gestão dos recursos naturais em Moçambique na era da sustentabilidade, procurando entender o fenómeno da Erosão Costeira na Praia da Cosa do Sol como resultado da acção humana no meio ambiente à luz do construcionismo ambiental, visto tratar-se de um dos problemas ambientais da actualidade Moçambicana. Num primeiro momento, procederemos a apresentação das ideias principais do construcionismo, seus elementos teóricos de análise e os conceitos, fazendo articulação com o pensamento construcionista de Hannigan. O segundo momento, dedicamos a (des) construção o problema da erosão costeira em Moçambique, especificamente na praia da Costa do sol, apresentando as ideias ou estratégias retóricas que estiveram por detrás do levantamento do problema, mostrando as perspetivas e a forma como o fenómeno foi abordado pelos diferentes actores. A revisão bibliográfica e a consulta documental permitirão, ter acesso aos diferentes discursos proferidos e a identificação dos actores envolvidos. 1 Mestrando em Sociologia, PPGS/UFF (Universidade Federal Fluminense). E-mail: [email protected] 154 A escolha da praia da Costa do Sol deveu-se ao facto de ser um assunto/exemplo muito referenciado nos últimos tempos tanto pela imprensa assim como pelas organizações e instituições Estatais de defesa do ambiente, que alertam para o perigo da erosão costeira e as implicações que poderá induzir na vida económica e social da população. Nos propomos a analisar esta questão tendo como referência a construção social dos problemas Ambientais, cabe aqui já em jeito de introdução referir que o significado do construtivismo foi discutido por vários autores, tanto da sociologia como da psicologia, assim podemos verificar que segundo Becker (1992) por exemplo, falar de Construcionismo significaria dizer que o conhecimento não é estático e está em constante transformação e em Hegel e Marx podemos ver que este movimento dá-se pela dialéctica, onde este princípio da transformação está na essência do próprio ser. Para Piaget, na psicologia e influenciado pela física relativista, esta ideia da transformação encontra-se no que ele denominou de “Epistemologia Genética”, que quer dizer que o homem possui uma carga hereditária ao nascer, porém esta não lhe permite emitir um pensamento sequer, assim como o sistema social em que o indivíduo nasce não lhe permite ter algum conhecimento objectivo, apesar de sintetizar em si (sistema social) milhares de anos de civilização, com estas considerações queremos chamar atenção ao facto de o indivíduo ou o sujeito humano ser sempre um projecto a ser construído, tal qual o objecto. Ora se os dois (objecto e sujeito) têm de ser construídos, significa que eles não têm existência prévia, mas são construídos mutuamente na interacção. Entender isto é importante porque daqui nasce uma negação explícita ao apriorismo e ao empirismo, por onde se entende que o conhecimento não nasce com o indivíduo, nem é dado pelo meio social, o conhecimento é socialmente construído, é na interacção com o meio físico que o sujeito constrói o seu conhecimento, sendo que tal construção depende das condições do sujeito, conforme pretendemos demonstrar no caso da erosão costeira da costa do sol. Na visão de Becker (1992), construtivismo é a ideia ou teoria de que nada, a rigor, está pronto e acabado, e de que o conhecimento não é dado a priori, em nenhuma instância, como algo terminado. Ele se constitui pela interacção do indivíduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais e se constitui por força de sua acção, e que assim nos permite estudar e interpretar o mundo (do conhecimento) em que vivemos: “Vê-se, pois, que, assim como Marx derrubou a ideia de uma sociedade constituída por estratos, ricos e pobres, que existem desde toda a eternidade, e criou a ideia de uma sociedade que se produz e reproduz, estabelecendo um sistema de produção que a perpetua, Piaget derruba a ideia de um universo de conhecimento 155 dado, seja na bagagem hereditária (apriorismo), seja no meio físico ou social (empirismo).” (Becker, 1992). Com esta ideia do construtivismo consolidada, podemos agora partir para entender o exercício feito por Hannigan ao falar sobre “a construção social dos problemas ambientais”. 2. HANNIGAN E A CONSTRUÇÃO DOS PROBLEMAS AMBIENTAIS Antes porém de entrar para exposição do pensamento de Hannigan, cabe aqui distinguir o construcionismo social do construtivismo social. O “construcionismo” se aproxima etimologicamente e conceitualmente do “construtivismo”, e parte da ideia de que os assuntos ambientais, não se materializam por si; eles são construídos por indivíduos ou instituições que definem os problemas ambientais por exemplo, como altamente inquietantes, e que ocupam-se a procurar possíveis soluções para resolver o problema” (Hannigan, 1995). Porém, há uma diferença muito importante: Construcionismo social refere-se aos aprendizados que são criados através de interacções sociais de grupos, enquanto o construtivismo social foca no aprendizado do indivíduo, que acontece como resultado de sua interacção com um grupo. Não é minha intenção fazer uma discussão mais aprofundada sobre esta distinção, visto que me dedicarei a usar o construcionismo de Hannigan, para apresentar aspectos da desconstrução do problema da erosão na costa do sol, tendo em conta discursos de grupos, falo do governo e da sociedade civil. Agora sim, podemos adentrar o pensamento de Hannigan, segundo o qual, na análise das questões ambientais é necessário considerar a natureza das exigências dos problemas sociais. A ideia de Hannigan é a do construcionismo, aplicado a análise dos problemas ambientais. E isto é possível fazer aplicando algumas questões sobre o que é dito sobre o problema em alusão? O modo como o problema está a ser tipificado? Quais as análises da retórica das exigências? O modo como as exigências, são apresentadas ao público? E qual a perspetiva adoptada pelos analistas/atores? Como forma de demonstrar que o construtivismo é uma ferramenta valida, a ser usada na análise dos problemas ambientais, Hannigan faz referência a Best (1989), que propôs as suas duas novas tácticas ou temas retóricos e que variam segundo a natureza do público. A primeira é a rectidão retórica (valores e moralidade), que segundo Best é a mais eficaz no início da campanha de criação de exigências, pois geralmente é o momento em que os públicos são mais polarizados e os activistas tem menos experiencias. A segunda é a retórica da racionalidade (ratificar uma exigência dará ao publico um tipo de beneficio), e 156 funciona melhor, segundo Best (1989), nas últimas fases da construção dos problemas sociais, pois os públicos são mais facilmente persuadidos, e os temas destina-se as agendas políticas. Ainda uma terceira acrescentada por Raffer (1992), que é a formação do arquétipo, onde os arquétipos são modelos a partir dos quais os estereótipos são inventados e tem um poder na campanha de criação das exigências. Hannigan faz ainda menção ao pensamento de Ibara e Kitsuse (1993), que propuseram estratégias retóricas na criação de exigências, esboçando uma variedade de idiomas retóricos, motivos e estilos de criação de exigências, e assim, estes dois autores consideram a existência de idiomas retóricos de perda, de insensatez, de calamidade, de titularidade e de perigo. Para definição dos problemas sociais ambientais, que são a sua preocupação, Hannigan faz a análise de 2 modelos, nomeadamente o de Carolyn Wiener (1981), que apresenta 3 passos principais e que segundo o autor são passos sobrepostos, em constante interacção e não independentes, são: a animação, a legitimação, e a demonstração do problema. Hannigan na sua análise, considera como tarefas essenciais para a definição dos problemas sociais ambientais: a reunião, a apresentação, e a contestação de exigências. A primeira tarefa é reunião, onde os formuladores se dedicam a descoberta e a elaboração do problema. Distinguindo-o dos demais, através da determinação da base legal, técnica, moral da exigência, determinando-se também o responsável por procurar soluções. Para Hannigan os problemas ambientais são frequentemente originados da ciência, e uma das razoes para isto deve-se ao factos de as pessoas comuns não terem nem conhecimento e nem os recursos para encontrar novos problemas. Ao procurar as origens das exigências ambientais é importante para o investigador perguntar de onde vem as exigências, a quem pertencem ou quem lida com elas? Que interesses económicos e políticos os formuladores de exigências representam e que tipo de fontes elas trazem para o processo de criação das exigências. A segunda tarefa é a ”apresentação das exigências ambientais”, que aparecem como importantes novidades. A esta tarefa equivaleria a chamar de a “etapa da caça a atenção” na área científica, dos meios de comunicação social e pública, utilizando por vezes meios de estratégias retóricas, tácticas, e os patrocinadores. A terceira e última tarefa, é a contestação das exigências, onde o problema é principalmente contestado no âmbito da arena política” (HANNIGAN, 1995, p. 68). Contudo, Hannigan (1995, p. 75) apud Moro & Miranda (2001: 309) sistematiza o processo de construção das exigências ambientais de maneira completa, introduzindo novos componentes por intermédio de seis (6) factores: 1) Uma autoridade científica sobre o problema ambiental para a validação das exigências. 2) Existência de “propagadores” que 157 possam estabelecer a ligação entre ambientalismo e a ciência, ou seja, transformar uma investigação fascinante numa exigência ambiental proactiva. 3) Atenção dos meios de comunicação em que o problema é “estruturado” como novidade e importante. 4) Dramatização do problema em termos simbólicos e visuais. 5) Incentivos económicos para tornar uma acção positivam. 6) Emergência de um patrocinador institucional que possa assegurar legitimidade e continuidade. 2.1 CRÍTICAS AO PENSAMENTO DE HANNIGAN Este pensamento social construtivista de Hannigan, sofreu duras críticas do realismo ambiental, que foram muito bem sintetizadas por Luciano (2000) no seu artigo sobre o lugar da natureza na teoria sociológica contemporânea, onde o autor afirma que as críticas mais profundas que esta abordagem construtivista de análise dos problemas ambientais tem recebido referem-se ao facto dela carregar uma subestimação da existência dos problemas ambientais, não contribuindo assim para a solução ou resolução desses problemas. Segundo Luciano, não se trata de uma crítica que negue o carácter socialmente construído do conhecimento, já que boa parte destes autores reconhecem que "todo conhecimento é de certa forma socialmente construído" Assim, a abordagem de Hannigan falharia por ser "sociológica demais" (Benton, 1994 e Martell, 1994, apud Burningham e Cooper, 1999: 300), e por isso perderia sua eficácia prática. Luciano (2000) ao apresenta sobre a génese deste pensamento realista, argumentar que deve-se ao facto de sua agenda realista na sociologia ambiental ser repleta do imperativo de contribuir com eficácia na administração dos problemas ambientais, e assim, como e’ possível verificar no pensamento dos próprios Dunlap e Catton, o social construtivismo é “incapaz” de contribuir para este objectivo porque "se todas as demandas têm validade, então não há base para apoiar alguma em lugar de outra, e portanto não há base para se tornar pró-activo" (Burningham e Cooper, 1999: 300). Ao apresentar os vários problemas que teriam estas críticas realistas, Luciano (2000) citando Burningham e Cooper, afirma que as criticas realistas se baseiam na consideração de um construcionismo extremo, e que não é aquele que tem dado subsídio a maior parte dos estudos empíricos construcionista, os quais são ignorados pela crítica realista. Sendo dai possível notar que os aspectos ou equívocos implícitos nas críticas realistas se confundem quanto ao ponto de partida metodológico do construtivismo, desconsiderando que na verdade a abordagem construcionista não nega a existência de uma "realidade" externa, mas defende que aquilo que essa realidade "é", o significado que ela carrega, é 158 socialmente construído e não pode ser considerado como dado, (Luciano, 2000). 3. CONTEXTUALIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO A costa moçambicana, com cerca de 2.770 km² de extensão é caracterizada por uma ampla diversidade de habitats incluindo praias, recifes de corais, estuários, bacias, mangais tapetes de ervas marinhas e a cidade de Maputo representa territorialmente a área sujeita à mais alta e mais diversificada intensidade de utilização das condições naturais de Moçambique e é onde se registam por consequência, as transformações mais significativas (HATTON, 1995). O litoral de Moçambique possui uma grande riqueza natural mas, contrariamente, possui um ecossistema frágil, (CHEMANE, 1997). Segundo Meneses (2001), parte significativa da população moçambicana vive ao longo do litoral e após um longo período de guerra, está a reinstalar-se ao longo da costa e dependem essencialmente de recursos naturais, costeiros para à sua subsistência. A agricultura de pequena escala, é praticada na base do corte e queima em solos arenosos, pobres em nutrientes ao longo da costa. Verifica-se igualmente na área de estudo a prática de actividades turísticas, que contribui para a receita do Estado. Geralmente, as zonas costeiras atraem concentrações humanas por serem lugares lindos geralmente uniformes de climas moderados e muitas vezes convenientemente planos com terra baixa a prática da agricultura e a utilização do mar para a pesca e para a comunicação. Para os membros de uma dada comunidade, a sua sobrevivência, a reprodução da flora e da fauna locais como um todo dependem da diversidade do ecossistema, e das várias formas de uso e adaptação a este, que possibilitam a sua sobrevivência e asseguram a sua manutenção (Meneses, 2001: 4). Os problemas ambientais na praia da Costa do Sol estão relacionados com a erosão costeira sendo que já foram divulgados trabalhos científicos e jornalísticos alertando sobre o perigo indicando como exemplo o possível desaparecimento da estrada que liga a Cidade de Maputo a outros bairros da cidade, bem como o possível desaparecimento de algumas habitações devido a velocidade com que as águas do mar avançam para o interior. Um elemento a ser tido em conta é que ao nível dos estudos realizados sobre o assunto constata-se que grande parte das análises foi feita por geógrafos debruçando-se sobre aspectos de planeamento físico. Assim a análise sociológica e a sua investigação sobre a influência humana na erosão costeira, tem obrigatoriamente de passar pela operacionalização dos elementos teóricos de análise que conduziram a elaboração dos mesmos, ou seja, a definição dos conceitos de erosão, erosão costeira, gestão ambiental. Confesso que ate fiquei tentado de fazer toda uma análise destes conceitos e sua aplicação nas ciências naturais e nas ciências 159 humanas, mas isso extrapola os nossos objectivos, vou mesmo simplesmente apresenta-los de forma breve, com o objectivo de deixar claro sobre o que estamos falando. A erosão é considerada como sendo o desgaste da superfície do solo provocado por vários agentes naturais, tais como o gelo, a água e o vento, nessa ordem de ideais, segundo o agente causador, podemos ter erosão hídrica, erosão eólica, erosão costeira etc. Assim erosão costeira é um processo, em geral natural, que pode actuar tanto em costa rasa, como praias, e também em costa escarpada batida pelo mar, (Cristofoletti, 1979). Esta definição permite pensar na possibilidade da consideração do homem como agente causador, mas não toca no aspecto antropogénico da erosão, quem o faz é Mungoi (1997), Segundo o qual a erosão costeira, é um processo de deslocamento de terras ou de rochas de uma superfície, e no caso em análise a erosão relaciona-se com o deslocamento de terras que pode ser pela acção natural dos ventos ou das águas ou ainda por práticas humanas de retirada da vegetação, aqui já temos a componente antropogénica bem presente, e é esta definição que nos permite entender a questão por exemplo do impacto da inoperância de uma lei ambiental sobre o ambiente, ou sobre o agravamento da erosão como vimos falando. Este nosso pensamento vem acordar com, Moreira (1984), que por seu turno define a erosão costeira, como sendo um processo natural através de dinâmicas das marés, eventos e a quantidade de precipitação, mas que pode ser acelerado pela acção antropogénica. Enfim, está claro que o homem é um factor influente para o ambiente. Todas as operações que reduzem a cobertura do local, podem induzir uma erosão acelerada (GTA, 1996). Os estudos anteriores feitos sobre a erosão e degradação ambiental na praia da Costa do Sol, atribuem causas humanas e naturais ao problema. As causas humanas seriam designadamente o aumento demográfico na cidade, o comportamento dos utentes da praia e da população que devido a sua condição sócio-económica, recorreu ao abate indiscriminado das árvores (casuarianas) e a destruição do mangal, a falta de acção consistente das autoridades, assim o impacto da actividade humana nesta zona é elevado. O outro aspecto humano relevante é que estas zonas pelas suas qualidades paisagísticas e com uma função de lazer, conheceram o aumento de edificações de unidades turísticas e casas de veraneio, as infra-estruturas neste caso barracas, montadas sobre as dunas costeiras também contribuem para o deslizamento da terra devido aos constantes movimentos dos clientes, aceleram sobremaneira a degradação das condições ambientais na cidade de Maputo. Os factores naturais são: a redução de sedimentos que alimentavam o crescimento das praias; O facto de o mar na sua acção contínua de erosão, transporte e deposição de sedimentos fazer com que a linha da costa esteja em constante alteração, sendo difícil atingir 160 um estado de equilíbrio. Contudo, o problema de erosão é também causado pelo homem (Muchangos, 1985: 35). O outro conceito que nos interessa é o de gestão ambiental considerado como o maneio e a utilização racional e sustentável dos componentes ambientais incluindo o seu uso, reciclagem, protecção e conservação, (Gulele, 2004). Marcadamente, esta definição aponta para a existência de práticas de actividades que lesam o ecossistema natural, através por exemplo da pesca ilegal, uso de veículos ao longo das dunas, campismo, onde se considera que a população tem trazido mudanças extensivas nos processos geradores da erosão costeira na área de estudo, então para a gestão ambiental deste espaço existe a necessidade da consideração da convergência de factores naturais (marítimos, atmosféricos) e humanos. Mas e a sociologia ambiental, o que teria a fazer ou dizer a respeito deste assunto? Buttel e Taylor (1992: 214) fundamentados no pensamento de Hannigan (1995), argumentaram que a sociologia ambiental deve dar mais atenção a construção social do conhecimento ambiental, pois que a construção (…) dos problemas ambientais ou das questões ambientais é uma questão de construção social e politicas da produção de conhecimento, visto tratar-se de uma reflexão directa da realidade biofísica, e a forma como o conhecimento e os riscos ambientais são conceptualizados e o relativo êxito destas construções, são impelidas e canalizadas para as estruturas existente do poder económico e político, ademais que os problemas ambientais progridem desde a sua descoberta inicial até a politica de implementação, e esta é sua ordem temporal de desenvolvimento. Como é nosso objectivo articular o pensamento construtivista de Hannigan ao problema da erosão na praia da costa do sol, vamos começar por analisar os discursos de cada actor envolvido na discussão, é salutar referenciar que na análise sobre o que se diz sobre o problema, foi possível identificar dois actores nomeadamente o governo e a sociedade civil, não temos discursos relacionados a população, o que já de partida nos permite pensar que o surgimento do problema da erosão como problema, não tem as suas exigências baseadas na população, mas sim, é uma contestação feita pelo governo e por académicos, cientistas de varias áreas, assim só através da análise dos seus discursos poderemos identificar, as bases, as definições, as conclusões, e os esquemas retóricos por eles usados na construção deste problema da erosão na costa do sol. 4. EXPOSIÇÃO ANALÍTICA DOS DISCURSOS “CONSTRUTIVISTAS” 4.1 DISCURSO DO GOVERNO: “Incumprimento das normas ambientais agrava erosão na Costa do Sol” 161 De acordo com os relatórios do Ministério da Coordenação da Acção Ambiental (MICOA) sobre a erosão costeira, o litoral da Capital do país, mais concretamente, a praia da Costa do Sol (outrora chamada praia da Polana), apresenta níveis alarmantes de erosão do solo que vão tomando proporções gigantescas, por falta de cumprimento das políticas de protecção ambiental. Hoje, assiste-se na praia da Costa do Sol, uma forte pressão sobre os recursos naturais e a erosão está a tomar contornos preocupantes pois já não é apenas a praia que se encontra em risco de desaparecer, mas também as habitações e outras infra-estruturas da região, pois que as águas marinhas estão em progressão fazendo frente a muralha protectora, ameaçando o corte da estrada marginal e a invasão das residências periféricas da praia. A principal causa desta degradação, está na prática do Comércio Informal, por parte de algumas pessoas que montam “barracas” no local, bem como a ignorância das leis ambientais, (Chicatsa, 1996). Assim, o lixo provocado pela prática do comércio informal, já tomou conta do litoral, perigando a vida dos banhistas que frequentam a praia. Segundo o MICOA, a praia da Costa do Sol já foi uma das mais concorridas e apreciadas pelos turistas nacionais e estrangeiros, mas ultimamente, eles preferem passar uma tarde em uma outra praia mais próxima. Um outro aspecto levantado pelo governo refere-se a o facto de que nos dias que correm, devido à prática da actividade pesqueira ilegal em larga escala, o litoral da zona dos pescadores está exposto a uma degradação acentuada, as barreiras que antes protegiam a terra do mar já desapareceram, tudo devido ao desrespeito e desconhecimento das leis ambientais. Casos mais alarmantes, são os desabamentos de terra e das barreiras que protegiam a região costeira, largamente causados pela acção do próprio Homem: pelos banhistas que utilizando veículos passeiam pelas mesmas, e ao abate descontrolado e desnecessário da floresta de mangal. Hoje, a erosão é bem visível na praia da Costa do Sol, constituindo uma preocupação não só para as autoridades Municipais, assim como para os munícipes. Para conter o processo erosivo que se verifica na praia da Costa do Sol, o Município com apoio de algumas organizações não-governamentais colocou em alguns pontos críticos sacos de areia e construiu uma barreira protectora na zona próxima ao bairro Triunfo. O Município pretende fazer o plantio de árvores, construir muralhas, quebra-marés e gaviões para conter a erosão. Ao nível do Governo Central estão sendo feitos esforços no sentido de se conseguir cerca de 18 milhões de dólares para solucionar o problema da erosão na zona costeira da cidade de Maputo. Estas entre outras acções a serem concretizadas, poderão segundo o MICOA, reduzir a situação dramática que vive ao longo da praia da Costa do Sol. Reconhecendo a gravidade 162 do problema no âmbito do Plano Nacional de combate a erosão, o governo pretende desenvolver infra-estruturas ambientais, nomeadamente o plantio de árvores, colocação de sacos de areia para travar a progressão da erosão, gaviões e muralhas. Segundo o IDPPE (2002)2 existem mais de 298 pescadores a exercerem à actividade pesqueira no Bairro da Costa do Sol e que tem três (3) centros de pesca: (1) A aldeia de pescadores, com um efetivo de 175 (59%) de pescadores artesanais; (2) O centro de marítimo, com um efetivo de 65 (22%) de pescadores artesanais; e (3) O triunfo, com um efetivo de 58 (19%) de pescadores artesanais. 4.2 DISCURSO DA SOCIEDADE CIVIL “A utilização múltipla das áreas costeiras requer uma gestão através de agências governamentais a nível nacional e local responsável pela protecção do Meio ambiente costeiro” A erosão na Costa do Sol é causada pela abertura de pequenas machambas familiares, pastorícia, queimadas, corte da madeira para a comercialização e construção de pequenas embarcações, abertura de picadas, trânsito de pessoas e veículos por cima das dunas. Portanto, todas estas facetas da utilização humana da costa produzem resultados específicos em cada lugar, condicionada por circunstâncias históricas e locais. Assim é na conjugação da operacionalidade de todos estes factos que reside à explicação científica do fenómeno da erosão costeira na praia da Costa do Sol, embora a incidência da acção antropogénica seja mais evidente e contribua significativamente para a prevalência dos actuais padrões de erosão (Moreira, 1984). Com a destruição de dunas costeiras e o crescente abate indiscriminado da cobertura vegetal (que são os principais dispositivos de protecção natural da costa), vão aumentando em toda a cidade os perigos da erosão e o desaparecimento das trolhas freáticas. Acresce-se a este factor a falta de um sistema de planeamento físico que respeite a dinâmica costeira, segundo Muchangos (1985). Para este autor, a construção da estrada hoje denominada avenida Marginal foi a razão que concorreu para a destruição das dunas, e aponta o avanço das águas do mar como consequência. A destruição das dunas para a construção da estrada, poderia ter sido evitada com um sistema de planeamento físico que respeitasse mais a dinâmica costeira (idem: 45). No final do ano passado segundo Chicatsa (1996: 45), decorreram obras de protecção 2 Para uma informação mais detalhada, vide: Jorge Jerónimo Gulele (2004,) Relação entre a expansão urbana e a actividade pesqueira: estudo de caso do Bairro da Costa do Sol. Maputo: FLCS/UEM. 163 na praia, com o incremento de pedras e areia, mas, estas obras não seriam necessárias se a vegetação de mangal que cobria a Península em frente à ponte lá existente, não tivesse sido cortada ou arrancada, não se sabe bem por quem (há quem diga que isso aconteceu precisamente na altura em que a ponte foi reconstruída por uma Empresa Italiana. Mas o certo é que “já lá não existe o mangal” e assim, a ausência de uma estratégia oficial para enfrentar o problema, dá lugar a intervenções de carácter “individual” (seja do proprietário, seja dos próprios munícipes agindo independentemente), que sem desejar acabam contribuindo para o agravamento do problema, pois as obras de estabilização rígida (muros) são efectuadas normalmente em carácter emergencial e improvisado, sem a orientação técnica adequada, o que resulta na pequena durabilidade das mesmas. Para a sociedade civil a degradação da região costeira esta directamente associada a não divulgação das Políticas ambientais bem como a uma ausência de educação ambiental, pois muitos dos Comerciantes (ou vendedores informais) atribuem culpas ao Conselho Municipal que, segundo afirmam, limita-se a cobrar impostos e nada faz para criar melhorias e repor a ordem. Segundo pescador que opera naquela área, existem colegas seus que não entendem nada acerca do ambiente e: “a culpa não é dos colegas, pois nunca foi divulgada nenhuma lei ambiental (...), o Ministério que lida com o ambiente deveria criar um projecto de educação Ambiental para toda a população que pratica actividades comerciais junto a C .”. Frisou Ernesto Sitoe3. Contudo, para a sociedade civil é importante introduzir medidas legais e incentivos para a conservação dos ecossistemas, habitats e paisagens importantes que estejam fora das áreas de conservação; e que o planeamento físico deve ter máximo respeito pelas dunas, visto que, a melhor forma de ter uma costa equilibrada deverá, necessariamente passar do respeito pelas dunas. 5. ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A EROSÃO COSTEIRA Á LUZ DE HANNIGAN I Apoiando-se no pensamento de Hannigan, podemos conjecturar que os construtores das exigências existentes na formulação de possíveis soluções ligadas ao problema da erosão fornecem dados ou factos básicos que moldam os discursos dos actores envolvidos. Assim, é possível perceber que existe uma tentativa de adequação do discurso sobre o 3 Entrevista realizada no dia 04 de Maio de 2009, pelas 13:00 horas em frente ao “Mercado do Peixe”. Ernesto Sitoe, nome fictício, de 23 anos de idade, pescador e vendedor de peixe na zona da Costa do Sol. 164 problema ambiental da erosão costeira ao discurso político do governo moçambicano na construção deste problema ambiental. O discurso político baseia suas afirmações retóricas 4 na teoria da administração por descentralização do poder que sustenta que o envolvimento da comunidade na gestão dos problemas locais passa necessariamente em o Estado descentralizar algumas funções, competências e recursos, ainda que continuem sob o seu controle (MICOA, 2002). Nesta óptica, o governo considera que uma das vantagens da descentralização é permitir que as decisões sejam tomadas pelas unidades situadas nos níveis mais baixos da organização social, acrescentando que as pessoas que vivem os problemas são mais indicadas para resolve-los no local, economizando o tempo e dinheiro. A importância da descentralização deve-se ao seu mérito na defesa da solução local dos problemas pelas comunidades locais e neste caso, incluindo os usuários (os pescadores, por exemplo) da praia e a classe empresarial que explora unidades económicas na sua periferia, Moreira (1984). Esta teoria usada pelo Governo vem demonstrar sua convicção de que os problemas da erosão de origem humana podem ter solução através da educação cívica e a participação pública no processo de gestão ambiental. Analisando o discurso do governo conclui-se facilmente que o problema ambiental da praia da Costa do Sol, está sendo associado também a difícil gestão do ambiente urbano Moçambicano, em virtude da existência de dois sistemas sócio-económico em permanente competição e por vezes com interesses conflituosos, designadamente, o sector tradicional dito informal e rural por um lado, e o sector moderno dito formal e urbano do outro. As dificuldades de gestão ambiental urbana tornam-se mais graves, na óptica do governo, devido a fraca capacidade humana, material e financeira do Município do Maputo e de outras instituições governamentais que tutelam a gestão urbana da cidade de Maputo. O discurso retórico do governo oferece garantias5 e baseia-se também na ideia da ilegalidade como ”origem de todos os males” e na necessidade da adopção de estratégias e de mecanismos que estaquem à pesca e o comercio ilegal pois que a não implementação das mesmas, pode afectar a reprodução do pescado, morte de outras espécies marinhas e outros 4 Hannigan existem 3 tipos de exigências principais que são as de afirmações retóricas as quais Hannigan considera serem de base, que são: definições, exemplos, e estimativas numéricas; Sendo que as definições dão as fronteiras e as dimensões do problema social; Os exemplos facilitam a identificação com o problema e as pessoas afectadas, principalmente quando se vêem como vítimas indefesas; As estimativas numéricas facilitam o estabelecimento da importância do problema, seu alcance, e seu potencial para o crescimento, (HANNIGAN, 1995 p. 70) 5 As Garantias, estas seriam o conjunto de justificações que permitem exigir que seja levada a cabo uma acção, estas podem incluir a apresentação das vítimas como inocentes, ligando as exigências a direitos básicos a liberdade (HANNIGAN, 1995 p. 70). 165 moluscos que residem nestas zonas, destruindo largamente a diversidade biológica que ocorre nas zonas costeiras de todo o pais onde se realiza a pesca – na área de estudo, por exemplo onde em geral os pescadores usam plantas tradicionais ou silvestres para às suas práticas, deve sempre ter em conta a sustentabilidade dos mesmos; Podemos portanto inferir que o problema da erosão costeira da praia da costa do sol, foi construído ao nível do governo tendo como contexto, a dependência financeira, a ilegalidade e a necessidade de incremento da capacidade humana, é assim que segundo ilação do pensamento de Becker (1992), o governo Moçambicano, vai “escolher” se associar - para construção do problema ambientais ou objecto de risco - a diferentes instituições internacionais, capazes de financiar formações de capacitações institucionais e dar doações para a resolução dos problemas ambientais e as actividades ilegais na sua jurisdição. Para análise dos formuladores de exigências Best (1989) apud Hannigan, aconselha algumas questões tais como, a organização a que eles pertencem ou estão filiados, os interesses que representam, e o grau de experiencia que possuem. Considerando esta dica dos autores torna-se possível entender o discurso subsequente da ONU por exemplo, que é a parceira por excelência para o desenvolvimento de Moçambique, segundo o qual “Moçambique apresenta um quadro legal para os riscos ambientais, e que a política de desenvolvimento visa realmente a promoção de práticas sustentáveis no uso da terra, sendo que os constrangimentos financeiros é que impedem a sua implementação”. (UN-HABITAT: Perfil do sector urbano em Moçambique, 2007). Estaria assim bem fundamentado e justificado o porque da existência do problema e que acções devem ser levadas a cabo para resolução do problema, estariam assim dadas as “conclusões” retóricas do problema da erosão na costa do sol 6. II O segundo actor é a sociedade civil e antes de lançar um olhar para o seu discurso, devemos começar por considerar que falar de Sociedade Civil (SC) em Moçambique, é completamente diferente de falar sobre sociedade civil em qualquer outro contexto, 6 As conclusões, nesta componente das afirmações retóricas, o discurso é feito ou composto de modo a tornar clara a acção que é necessária para aliviar ou erradicar um problema social, geralmente envolve a formulação de novas politicas sociais de controle, (Kingdon 1980, citado por HANNIGAN, 1995, p. 69) apresenta dois critérios básicos para que as propostas políticas “sobrevivam” na “selva política”: primeiro que as propostas sejam tecnicamente exequíveis – “cientificamente sã e politicamente administráveis” – e que sejam concomitantemente compatíveis com os valores dos formuladores de políticas; e para além disso, contestar uma exigência ambiental com êxito na arena política “[...] q m m h m , m ”, m “[...] m ” (MORO & MIRANDA, 2001, apud HANNIGAN, 1995 p. 70). 166 infelizmente não me vou ater a detalhar sobre os aspectos específicos da sociedade civil Moçambicana, somente referir que ela é composta por ONG’s Internacionais, Nacionais, e pelos académicos, e se enquadra inteiramente no pensamento de Hannigan que considera que hoje em dia os movimentos sociais, que se dedicam as questões sociais actuam como “ m v v çã m , m m çã de fundos fortes e sofisticados, ligações institucionalizadas em relação aos meios de m çã ” (HANNIGAN, 1995,p. 61). Contudo, a sociedade civil tem como objectivo central ser o “porta-voz” das exigências da população, promovendo o desenvolvimento em todas suas vertentes, mas na maior parte, acabam sendo a “Voz”, por inexistência de “vozes” na população, o que até entende considerando dados estatísticos sobre o elevado índice de analfabetismo e outros problemas sócio-histórico ligados aos sistemas de governação pelos quais o país passou, mas isso é outro assunto, pois até porque a sociedade civil não tem conseguido ser “porta-voz”, pelo menos tem exercido bem o seu papel de consciencialização sobre os problemas sociais para a população. Agora lançando um olhar sobre a visão da sociedade civil em relação ao problema da erosão costeira, tendo em conta o pensamento de Hannigan, podemos auferir que, segundo a sociedade civil a problemática da erosão costeira na cidade de Maputo tem dupla raiz: primária e secundária. Ao nível da raiz primária, encontram-se factores como: as condições naturais, as marés altas, o abate ao mangal, a pesca artesanal e a fragilidade institucional, e na raiz secundária, destacam-se: a destruição de dunas costeiras e, a falta de manutenção dos sistemas de drenagem urbana e suburbana, e consideram que estes factores não actuam isoladamente senão numa acção conjugada. A natureza das exigências e suas afirmações retóricas de base passam consequentemente pela necessidade da definição de lugares de acesso a praia para pescadores artesanais e banhistas, a fixação de dunas costeiras, são entre outras medidas, as de grande vulto para a redução da erosão costeira; urge a proibição do abate ao mangal; replante das casuarianas ao longo da costa para a protecção da mesma; Assim a sociedade civil defende que é necessário trabalhar em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Pesqueiro no estabelecimento de formas apropriadas de pesca a nível dos pescadores de pequena escala, como forma de garantir que estes tenham o seu sustento a longo prazo. A educação ambiental é uma das medidas de prevenção que se recomenda aqui, pois que esta permite uma interacção entre os vários parceiros na resolução deste problema, tornando-os mais conscientes sobre o problema e preocupados em reagir para reduzir o seu 167 impacto no ambiente, proporcionando um plano preciso e bastante definido, que consolide cada um dos núcleos de população existentes. São igualmente exigidas políticas que não possibilitem a ampliação das habitações, pois a construção de novas habitações sobre as dunas acaba sendo demasiado dispendiosa em termos monetários e em termos ecológicos; A sociedade civil baseia as suas afirmações retóricas de base, na consideração dos comerciantes, os pescadores e os outros actores indirectamente envolvidos, como vítimas da indolência do governo em oferecer uma educação ambiental de qualidade a população. Deste modo as suas conclusões vão de acordo com as inquietações do Governo, que como apontamos acima, incide sobre o problema da escassez de recursos financeiros e humanos para “cuidar do ambiente”, assim eles oferecem um conjunto de acções necessárias e que devidamente implementadas evitariam gastos económicos, portanto conforme defendido por Hannigan, ao considerar os estilos de criação das exigências, refere que para que as formas de uma exigência estejam em sincronia com o público pretendido (Público, burocratas, Artesãos, Governo, etc.), estas tem de ser adequadas ao estilo do público, (seja este científico, estilo cómico, teatral, cívico, legal, subcultural, etc.) Assim os formuladores dos problemas ou das exigências combinam um estilo certo para a situação e públicos certos, tal qual vimos no discurso da sociedade civil evidentemente dirigido ao Governo. 6. A EROSÃO COSTEIRA: REFLEXO DE UM CONTEXTO DE CONFLITOS SÓCIO-AMBIENTAL NA COSTA DO SOL Sendo que um dos factores apresentados aqui foi o crescimento da população moçambicana, acreditamos que seja pertinente entender a possível relação existente entre o crescimento demográfico e a degradação dos recursos naturais. De acordo com McElroy & Townsend (1996: 24-25), o ambiente pode ser quebrado em três (3) partes, nomeadamente: o ambiente abiótico (físico) o qual a biologia e a ecologia definem como sendo um conjunto de factores que afetam directamente o desenvolvimento fundamental à vida. Estes factores incluem a luz, o ar, o solo e a temperatura; o ambiente biótico (biológico) que inclui os animais, as plantas e os alimentos; e o ambiente cultural que se refere as relações estabelecidas com o meio em que se vive, e cujo produto de aprendizado é partilhado por todos os membros da comunidade. Estas partes são interdependentes e estão em contínua interação, uma mudança em uma das variáveis frequentemente conduz à uma variação noutra variável. Contudo, usualmente são evidenciados aspetos separados e pensamos neles como causas e efeitos de processos em mudanças, porém é também possível imaginar todas estas esferas e variáveis individuais funcionando como uma unidade singular. Se olhar-nos para o 168 todo desta maneira, teremos um modelo de um ecossistema, onde todos os componentes: físico, biológico e cultural - formam um ecossistema total - um passo de relações entre organismos e seu ambiente. A nossa convicção é a de que uma governação local autárquica assente no princípio de gestão participativa de recursos naturais e dos bens públicos pode solucionar muitos problemas relacionados com a degradação ambiental na área em estudo, num sistema em que o público utente, os pescadores, os residentes, as unidades económicas e as autoridades governamentais estabeleçam um vínculo de pareceria em defesa do bem comum. Somos assim impelidos a antes das considerações finais, tecer comentários em relação a política ambiental de Moçambique e algumas das suas especificidades. 7. A POLÍTICA AMBIENTAL EM MOÇAMBIQUE: IDEIA OU UTOPIA? Lançando um olhar rápido sobre a questão do ambiente e seu lugar na vida política do país, é possível afirmar, que a questão tem ocupado lugar de destaque, bastando para tal considerar que Moçambique é signatário de vários tratados internacionais relativos ao ambiente, e entre as convenções principais está a Convenção Africana sobre a Conservação de Natureza e Recursos Naturais, a Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas, a Declaração de ONU sobre Assentamentos Humanos – a Agenda Habitat, a Declaração do Milénio, e o Plano de Acção para o Desenvolvimento Sustentável – Agenda 21. A responsabilidade global pela política ambiental em Moçambique é do Ministério para Coordenação da Acção Ambiental (MICOA). A Lei do Ambiente existente e por este órgão elaborada foi aprovada com o Nº. 20/97, de 1 de Outubro e tem como objectivos promover o desenvolvimento sustentável e da utilização nacional dos recursos naturais, pugnando pela inclusão dos princípios e práticas ambientais no esforço nacional de reconstrução e desenvolvimento do País, estabelecendo as políticas e a legislação apropriadas para esse efeito. Esta Lei estabelece a utilização e gestão racionais dos componentes ambientais de forma, não só a promover a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, como também a valorizar as tradições e o saber das comunidades locais com vista à conservação e preservação dos recursos naturais, bem como a responsabilizá-las nos atos propositados da degradação do ambiente. Nos termos do Artigo 6 da Lei do Ambiente, foi criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Sustentável (CONDES) - que é um Órgão Consultivo do Conselho de Ministros e Fórum de auscultação da opinião pública sobre as questões ambientais e legisla as medidas de proteção do ambiente, a prevenção dos danos ambientais, os direitos e deveres dos 169 cidadãos, as responsabilidades, as infrações e sanções e fiscalização ambiental, com a participação das comunidades (Relatório Nacional da Consultoria de Moçambique, 2009). A lei do ambiente constituiu um quadro legal, por exemplo, para permitir a exigência de uma licença ambiental para empreendimentos cujas actividades mostrem potencial de prejudicar o ambiente, assim como obriga que sejam envolvidas as populações locais no processo de tomada de decisão. Um aspeto a referir é que o Ministério para Coordenação da Acção Ambiental depende dos fundos do Orçamento do Estado que é essencialmente para cobrir custos administrativos e insuficientes para implementar actividades no campo, assim a maioria dos recursos para a preservação do ambiente e combate aos impactos ambientais negativos provém de parceiros de cooperação, pois as instituições estatais ainda continuam incapazes de colher receitas (renda) provenientes das avaliações de impacto ambiental. (UNHABITAT: Perfil do sector urbano em Moçambique, 2007) 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de nossa análise ser extremamente limitada e parcial, eis uma desconstrução de um problema ambiental de acordo com a proposta de Hannigan, que brilhantemente evidenciou a necessidade de se desconstruir os problemas ambientas de modo a obter uma compreensão mais apurada do problema e sobretudo facilitar a compreensão da génese dos problemas, o que vai de acordo com a ideia de Buttel e Taylor (1992: 214) que argumentaram que a sociologia deve dar mais atenção a construção social do conhecimento ambiental. Assim, foi possível identificar que o problema da erosão costeira, apesar de ser de facto um problema fisicamente identificado, é também uma construção social, trespassada por problemas políticos e até financeiros, seja na conceção do estado ou da sociedade civil. Este artigo mostra também que este problema não tem sua origem na população e que as exigências a ele associadas são pervadidas de estratégias retóricas de diferentes estilos, motivos e idiomas, referenciados por Best (1989), Ibara (1993), Kitsuse (1993) e por Hannigan como predominantes na construção de demandas ambientais. Podemos facilmente notar, por exemplo, o quanto o discurso ambientalista do governo apresenta predominantemente um estilo retórico legal e cívico, enquanto a sociedade civil recorre a um estilo mas cientifico, legal e subcultural. Estilos retóricos, que são possíveis compreender considerando que enquanto o governo pretende convencer seus parceiros de cooperação a financiar as acções a serem levadas a cabo, a sociedade civil esta a dialogar com o governo, com o intuito de chamar a sua atenção para diferentes possibilidades de acção. Infelizmente não nos é possível fazer uma análise das modificações das exigências, o que nos 170 permitiria ter a ideia clara sobre a legitimidade e a relevância das exigências apresentadas. Contudo, claro ficou que os problemas ambientais da praia da Costa do Sol estão associados a difícil gestão do ambiente urbano em virtude da existência de dois sistemas sócio-económico em permanente competição e por vezes com interesses conflituosos, designadamente, o sector tradicional informal e rural por um lado e o sector moderno formal e urbano do outro, contudo, estes factores não atuam isoladamente, senão numa acção que conjugada, acelera sobremaneira a degradação das condições ambientais e concorrem para a sua extinção. Podemos também conjeturar que o incumprimento das normas ambientais agrava a erosão na Costa do Sol, constituindo uma preocupação não só para as autoridades Municipais, assim como para os munícipes, pensamos nós que assim acontece também por falta de cumprimento e efetivação das políticas de proteção ambiental em Moçambique, e enquanto isso não se verificar, a erosão costeira na praia da Costa do Sol estará a tomar contornos preocupantes. Pensamos ainda que as ações a nível local têm como objectivos introduzir valores à gestão acompanhados pela valorização das tradições locais, que ajudariam a fortalecer a identidade local, assim, além da comunidade ter que assumir o papel de “comunidade agente”, se poderia induzir políticas de participação e captar recursos e espaços para a sua implementação, de modo que o gozo da independência para a tomada de decisões, resultassem na durabilidade das ações, isto implica que as ações locais sejam dirigidas com vista a sensibilização da comunidade para suas vocações e potencialidades, explorando as vantagens locais através de um processo participativo, democrático e solidário, envolvendo o Governo, as organizações da sociedade, permitindo o exercício de uma cidadania activa. Por ultimo, consideraríamos que seria uma vantagem para Moçambique permitir que as decisões fossem discutidas com as unidades situadas nos níveis mais baixos da organização político-administrativa, o que para o caso de Moçambique seriam os municípios, acrescentando que as “pessoas que vivem os problemas são mais indicadas para resolvê-los” economizando deste modo, tempo e dinheiro, isto é, “assegurar a sustentabilidade ambiental” local, (UN-Habitat, 2007). 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARO AMBIENTE, Nº11. Maputo, Junho de 2002. Mensal. p. 7. BECKER, Fernando. O que é construtivismo? Revista de Educação AEC, Brasília, v. 21, n.83, p. 7-15, abr./jun. 1992. 171 CHEMANE, David et al (1997), Vulnerability of coastal resources to climate changes in the Mozambique: A call for integrated coastal zone management. Maputo. CHICATSA, Alexandre Jamo (1996), A problemática das inundações na Cidade da Beira como um impacto da Erosão Costeira. Beira. pp. 25-50. 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O estudo visa investigar os conceitos ambientais difundidos entre os estudantes e saber qual a predominância nas abordagens sobre percepção ambiental: globalizante, antropocêntrica ou naturalista. A pesquisa foi realizada com alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), no município sul fluminense de Porto Real. Entendeu-se como percepção as representações sociais que os alunos têm sobre o meio ambiente e seu entorno, as quais são influenciadas pela cultura, família, religião, mídia, colegas e etc. O presente trabalho consiste em uma pesquisa de campo e qualitativa, onde se utilizou como procedimento metodológico entrevistas individuais, aplicação de questionários junto aos estudantes, bem como a consulta a dados oficiais. Valeu-se da legislação vigente, de dados oficiais, fundamentos teóricos e identificação do local da pesquisa. Ao final foi feita uma análise dos dados coletados apresentando a percepção ambiental dos estudantes. INTRODUÇÃO No contexto atual, a sociedade enfrenta o problema de uma degradação crescente dos ecossistemas o que envolve uma necessária produção de conhecimentos interdisciplinar. Neste sentido a educação como uma das práticas sociais tem um papel importante de buscar alternativas sustentáveis ao desenvolvimento, e essa preocupação cada vez maior da sociedade com os problemas ambientais e de conservação dos recursos naturais vem crescendo no Brasil e no mundo. A Educação Ambiental (EA) busca a mobilização de instauração de processos de mudanças, nos estudantes e nas instituições escolares visando uma postura ética, crítica e cidadã pela formação consciente das responsabilidades individuais nessa questão de gerência contínua e de forma sustentável. Cada vez mais cresce o número de publicações que tratam da questão ambiental e 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito – UFF Cientista Social (UFF) e Especialista em Gestão Ambiental (UCAM) Iuri Duque da Incarnação [email protected] 174 em específico da percepção ambiental. Este artigo pretendeu trazer o debate sobre percepção ambiental a fim de contribuir na elaboração de políticas públicas de gestão do meio ambiente e aprofundar o estudo nesta área. Essa busca de novos padrões de práticas sociais justas ecologicamente e viáveis economicamente com a noção de novos preceitos socioambientais sem comprometer as gerações futuras passa a ser uma preocupação da maioria das nações, conforme visto na “Rio + 20”, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada no Rio de Janeiro em junho de 2012. A legislação brasileira através da Política Nacional de Educação Ambiental – PNEA - (Lei nº 9795/99, art.9º), estabelece a inserção da Educação Ambiental (EA) na Educação de Jovens e Adultos - (EJA), a ser desenvolvida de forma integrada, contínua e permanente e a EJA é tratada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, lei nº 9394/96) como uma modalidade da Educação Básica. Essa modalidade ocorre em qualquer nível de conclusão de estudos da Educação Básica, e é apropriada ao aluno que não teve oportunidade de realizar ou completar seus estudos em idade regular. Nos últimos anos tem-se intensificado um questionamento crescente da sociedade com os problemas ambientais e dos riscos que podem surgir para a humanidade com as consequências do desleixo. Desta maneira, atentar para essa preocupação é de suma importância na formação do estudante da Educação Básica principalmente ao conhecer suas percepções sobre a problemática com o intuito de superação de valores adquiridos pelo senso comum, para a aquisição de novos valores ambientais, o que justifica esse artigo. A discussão dessa temática para se conhecer as representações sociais dos alunos permitirá uma reavaliação crítica de seus conceitos dentre as diferentes concepções de mundo e das relações do dia a dia com o meio ambiente. Os alunos sempre fazem representações sociais sobre um tema baseados na sua cultura, na família, na mídia, na religião, nos colegas, etc. Essas representações com relação à percepção ambiental servem para transformar o que não é familiar em familiar. A prática pedagógica, no processo social, tem como condição para o conhecimento o diálogo entre gerações e culturas como mediação e essa relação dialógica representa um compromisso com o outro e com os saberes dos alunos. (FREIRE, 2002) A pesquisa foi realizada na cidade sul fluminense de Porto Real - RJ com alunos de três turmas do ensino médio de uma escola pública municipal que oferece a modalidade do ensino da Educação de Jovens e Adultos, no turno da noite. A escolha da cidade se deu pelo fato de ser o município mais rico do estado (PIB per capta, IBGE, 2010) e o interesse em se 175 conhecer como as questões ambientais são percebidas pelos alunos. O principal objetivo da pesquisa consiste em desenvolver um estudo sobre percepção ambiental dos estudantes do EJA como estratégia direcionada para a gestão de ações de sustentabilidade. Também é importante destacar que se pretende com o artigo investigar as representações sociais dos alunos sobre o meio ambiente do município, explicar as práticas individuais voltadas para a conservação e preservação do meio ambiente em benefício da coletividade e levantar os principais problemas ambientais de Porto Real na visão dos estudantes. O local da pesquisa: Porto Real-RJ O jovem município sul fluminense de Porto Real, com apenas dezesseis anos, pertencia ao município de Resende - RJ. Hoje possui uma população de aproximadamente 17 mil habitantes (16.592 habitantes) e uma área de 50.748 km² de acordo com o Censo do IBGE de 2010. Localizado na região do Vale Médio Paraíba do Sul, próximo da Rodovia Presidente Dutra que liga o município do Rio de Janeiro à capital paulista, Porto Real apresenta características físicas, geográficas e históricas privilegiadas. O município está distante, a menos de 500 Km de três das principais metrópoles brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Verifica-se no município uma vocação industrial comparada a grandes centros nacionais e um crescimento econômico favorecido pela instalação de fábricas multinacionais como a Peugeot-Citröen, a Coca-Cola e a Guardian, entre outras. Essa vocação, entretanto, não prejudicou o desenvolvimento agrícola com o destaque no plantio de feijão, milho e inhame. De acordo com dados do IBGE/2010 sobre Produto Interno Bruto dos municípios, foi constatado que Porto Real ocupa o primeiro lugar em PIB per capta do Estado do Rio de Janeiro e o segundo lugar entre os municípios brasileiros (R$ 215.506,46 per capta). Seu Índice de Desenvolvimento Humano foi registrado em 0,743 de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2010). Sua população, na maioria católica com a predominância da cultura italiana, possui tratamento de esgoto em 92% dos domicílios e seu lixo mensal é reciclado em 15 toneladas. Os habitantes tem transporte coletivo gratuito para todos atendendo aos 33 bairros do município o qual conta, também, com 942 empresas (IBGE, 2010). O censo escolar 2010 mostra a rede pública de ensino básico com 3.231 alunos 176 matriculados e uma população alfabetizada de 14.179 pessoas. A rede municipal de ensino apresenta nove escolas e uma creche além de uma escola estadual e duas particulares. Apenas duas escolas públicas oferecem a Educação de Jovens e Adultos. O município de Porto Real fica próximo à região das Agulhas Negras, e pertence ao bioma da Mata Atlântica, contando com uma Secretaria de Meio Ambiente, Saneamento Urbano e Defesa Civil. A localidade possui um avançado Código de Direito Ambiental, Lei nº 322/08 elaborada conforme a Política Nacional do Meio Ambiente. Esse documento legal trás em seu bojo os dispositivos sobre educação ambiental no capítulo XII, de acordo com os artigos abaixo: Art. 66 - A educação ambiental, em todos os níveis de ensino da rede municipal, e a conscientização pública para a preservação e conservação do meio ambiente são instrumentos essenciais e imprescindíveis para a garantia do equilíbrio ecológico e da sadia qualidade de vida da população. (Lei n°322/08) A educação ambiental do município também é tratada nessa legislação através do seu artigo 67 que propõe: Art. 67 - O Poder Público, na rede escolar municipal e na sociedade, deverá: I apoiar ações voltadas para introdução da educação ambiental em todos os níveis de educação formal e não formal; II - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino da rede municipal; III - fornecer suporte técnico/conceitual aos projetos ou estudos interdisciplinares das escolas da rede municipal voltados para a questão ambiental; IV - articular-se com entidades jurídicas e não governamentais para o desenvolvimento de ações educativas na área ambiental no Município, incluindo a formação e capacitação de recursos humanos; V - desenvolver ações de educação ambiental junto à população do Município. (Lei 322/08) Educação Ambiental e Percepção Ambiental A degradação ambiental é uma preocupação antiga e está expressa nos fóruns internacionais e nos remete às décadas passadas. Já em 1942 surge a preocupação em organizar eventos internacionais de discussão da questão ambiental. Acontecimentos ocorridos no mundo entre os anos de 53 e 65 do século XX, como a contaminação do ar, a intoxicação por mercúrio os efeitos nocivos do pesticida DDT levaram a criação de organismos internacionais especializados no assunto. Os estudos iniciais sobre a percepção da EA surgiram na década de 50 e 60. O termo EA ou “environmental educátion” foi usado pela primeira vez em 1965 na Inglaterra, na Universidade de Keele durante uma conferência de educação, antes se usava o termo “estudos ambientais”. (FREITAS & MAIA, 2009) Ele surgiu para unir teoria e prática socioambientais no cotidiano escolar como prática pedagógica. Assim experiências educativas facilitam a percepção conjunta do meio 177 ambiente e isso é o resultado da transdisciplinaridade. Nesse sentido a percepção ambiental é fundamentada na compreensão das interrelações entre o homem e o ambiente, suas satisfações, anseios e condutas. Várias são as entidades que se preocupam com a educação ambiental, porém a escola é o espaço que melhor contribui para essa formação do aluno. O livro “A Primavera Silenciosa” da autora Rachel Carson, publicado em 1962, serve como um marco de referência, pois nele a autora coloca o ser humano como centro da questão ambiental. Neste sentido, uso de pesticidas no espaço agrícola afetaria consideravelmente a natureza e modificaria suas características originais, provocando inclusive o desaparecimento de espécies. O marco histórico, internacional sobre o ambiente humano surge com a Conferência de Estocolmo em 1972, preparada pela Organização das Nações Unidas - ONU. Em seguida veio a Carta de Belgrado, em 1975, realizada na extinta Iugoslávia onde foi promulgado o documento que se formulou orientações para um programa de educação ambiental. Em 1977 na cidade de Tbilisi atual Geórgia (antiga URSS) a Conferência de Educação Ambiental formulou estratégias ambientais inovadoras, apresentando objetivos onde o meio ambiente foi definido como: “O conjunto de sistemas naturais e sociais em que vive o homem e os demais organismos e de onde obtém sua subsistência”. Em seguida veio a Conferência de Moscou em 1987 que teve como meta a indicação de um plano de ação para a década de 90. No Brasil, a educação ambiental foi instituída pela lei nº 6938//81 onde se criou a Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA que mais tarde se ampliou em lei específica para a educação e com isso criou, também, o Sistema Nacional de Meio Ambiente. A preocupação de conservar o meio ambiente está objetiva e clara na Constituição Federal de 1988 ao colocar que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de uso comum, essencial à qualidade de vida e todos tem o dever de preservá-lo e defendê-lo para a atual e futuras gerações. Na Constituição Federal/88 a Educação Ambiental se tornou exigência a ser garantida em todas as esferas do governo no seu artigo 225 § 1º, inciso VI, onde foi implantado o tema transversal e daí surgiram as legislações específicas como a Lei nº 9795/99 (Política Nacional de Educação Ambiental) com a obrigatoriedade de se trabalhar o tema de forma transversal interdisciplinar e ainda em discussão se deve ou não ser disciplina escolar. Na escola a temática se justifica no sentido de promoção do entendimento das 178 questões ambientais e do uso adequado dos recursos naturais disponíveis o que visa a formação consciente do cidadão. Ela não é uma disciplina e sim uma prática interdisciplinar. Na educação nacional, a EA está em todos os níveis e modalidades de ensino formal e não formal e procura integrar a escola com a comunidade. A questão ecológica trás em seu todo, a influência de questionamentos ideológicos que podem ser traduzidos em perspectivas biocêntricas, ou antropocêntricas preservacionista ou conservacionista e envolvem ou não a participação da sociedade como um todo no seu tratamento. A partir da segunda metade do século XX, ao mesmo tempo em que se começava a debater a tema ambiental, surgem também os primeiros estudos a respeito da percepção ambiental. O objetivo era tentar conhecer as atitudes e valores que a população pesquisada atribuía ao meio ambiente (FREITAS & MAIA apud. MENDES, 2009). Desde então, estudos sobre a percepção ambiental vêm trazendo a relação entre teoria e prática onde se busca compreender o que se pensa e o que se faz quando o assunto é a questão ambiental. Conforme afirma VASCO & ZAKRZEVSKI em 2010: Estudos de percepção ambiental oferecem subsídios para o estabelecimento de estratégias para amenizar os problemas socioambientais e para a elaboração e implementação de Programas de Educação e Comunicação Ambiental, que assegurem a participação social e o envolvimento dos distintos atores nos processos de gestão ambiental. (VASCO & ZAKRZEVSKI, 2010, p.18) O conceito de percepção ambiental envolve a relação do homem com o ambiente, onde o homem toma consciência sobre seu meio. Como defende Panceri (1997, p. 29) “a percepção envolve um ator ativo, pertencente a um determinado ambiente que constrói e reconstrói suas percepções. Na medida em que suas estruturas de sensibilidade e cognitivas vão se transformando, transforma sua forma de olhar”. De acordo com Palma 2005: Percepção é a interação do indivíduo com seu meio. Esse envolvimento dá-se através dos órgãos do sentido. Para que possamos perceber é necessário que tenhamos algum interesse no objeto de percepção e esse interesse é baseado no conhecimento, na cultura, na ética, e na postura de cada um, fazendo com que cada pessoa tenha uma percepção diferenciada para o mesmo objeto. (PALMA, 2005, p.16) O homem percebe o meio a partir das sensações e percepções geradas pelos órgãos dos sentidos e o conhecimento sobre o que está a sua volta. Essa percepção depende da objetividade – conforme seus estímulos - e subjetividade – conforme sua personalidade e atitudes pessoais. 179 A forma com que um determinado sujeito concebe o meio em que vive, também se relaciona com os aspectos sociais, culturais e econômicos que o cerca. Uma vez que se retira o sujeito de sua comunidade e sociedade muda também a percepção que ele tem sobre o ambiente. (MASSON, 2004) Penna (1997) acrescenta que a relação do ser humano com o meio ambiente está ligada à história de vida, alegrias, expectativas pessoais, frustrações entre outros sentimentos adquiridos ao longo de sua vida. Daí ser necessário perceber para conhecer e promover a coordenação de conduta conforme o percebido. Assim, conhecer a interação do indivíduo com o meio ajuda na elaboração de estratégias de ações voltadas para o planejamento da gestão ambiental. A percepção ambiental das pessoas pode-se direcionar para visões diferentes e que segundo Bezerra et. al. (2008) o seu conteúdo pode-se relacionar com as visões: antropológica, naturalista e globalizante. Visão antropológica é a que mostra a supremacia do homem sobre todas as formas de vida. É uma concepção utilitarista que considera o meio ambiente um cenário útil à sua sobrevivência. Ela envolve o homem e os seres vivos como partes do meio ambiente, mas o homem é o mais importante. Visão naturalista é caracterizada pelos aspectos naturais, são restritos à dimensão ecológica voltada para a conservação da natureza e dos ecossistemas. Tem a noção de meio ambiente como natureza pura, exclui o ser humano como parte integrante do ecossistema. O indivíduo se julga como não-pertencente a esse meio. Sobre isso, Trigueiro (2003) fala da preocupante constatação de que muitos brasileiros não se percebem como seres inseridos no meio ambiente. Os mesmos se consideram a parte da natureza. Visão globalizante é a visão que mostra dinâmica na interação entre o sistema social e natural e engloba, também, aspectos socioeconômicos e culturais. Nessa visão as pessoas entendem o conceito de meio ambiente de uma maneira mais abrangente, percebem que pertencem a este, e sugerem propostas de sustentabilidade para a preservação ambiental. (FREITAS & MAIA, 2009). O presente artigo considerou que essas três visões abrangem outras que são tratadas em vários estudos, daí a opção adotada na metodologia deste trabalho. Pretende-se identificar os entrevistados a partir de uma destas visões a respeito da questão ambiental. EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 180 A educação passou a ser direito de todos os brasileiros independente da idade com a Constituição Federal de 1988 e ela foi reafirmada na lei nº9394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB - a qual trata também da Educação de Jovens e Adultos - EJA. Para ANDRADE (2004), o tema da juventude foi incluído na Educação de Adultos nos anos 90 devido a presença de jovens nas turmas do EJA, os quais com fracasso escolar no ensino regular e necessidade de arrumar um trabalho passaram a frequentar o ensino noturno, mais apropriado. A Educação de Jovens e Adultos se iniciou internacionalmente, como direito a partir da I Conferência Internacional Elsimore na Dinamarca, em 1949, e foi convocada pela UNESCO e a partir daí outras conferências foram surgindo no mundo. (PAIVA, 2005). No Brasil, conforme falam Hadad (2007); LOPES & SOUSA (2004), a educação de adultos teve início com os jesuítas no trabalho de catequização e ensino das primeiras letras durante o Brasil colônia e com a adoção de políticas necessárias, sobretudo em forma de campanhas e de legislações específicas. Na década de 1970, foi promulgada a lei nº 5692/71, Lei de Diretrizes e Bases. Ela implantou o ensino supletivo o que levou a criação no país dos centros de ensino supletivo em 1974, sem frequência obrigatória e avaliação em dois módulos, interna ou externa pelos sistemas educacionais, mas não atingiu o objetivo. Foi a Constituição de 1988 que colocou a educação como obrigatória a todos os brasileiros e isso foi reafirmado com a lei nº 9394/96 LDB. Três documentos evidenciam o discurso político educacional: a Proposta Curricular do Primeiro Segmento, o Parecer CNE – CEB nº 11/2000 e a Resolução 2000 do CNE que define as orientações curriculares da EJA. Na última década foi criada a Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo com o Programa Brasil Alfabetizado lançado. A história do EJA entre nós está muito ligada a figura do educador Paulo Freire criador do método de alfabetização de adultos baseado na realidade do aluno.(PAIVA, 2005.) DISCUSSÃO DOS RESULTADOS A fase inicial do estudo serviu para a preparação dos argumentos teóricos com a revisão da literatura e da leitura de documentos oficiais e a partir daí elaborar o material necessário às etapas posteriores. Organizou-se os instrumentos e procedimentos a serem utilizados, como análise documental, observações, entrevistas semiestruturadas, questionários sobre as representações sociais dos alunos. 181 Buscou-se o conhecimento dos dados do Censo Escolar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE- do município em questão bem como conhecer o Índice do Desenvolvimento Humano – IDH de Porto Real, RJ, já descritos no corpo do texto. Após ter coletado os dados oficiais sobre o município (IBGE/2010) e Prefeitura Municipal, procurou conhecer o setor educacional local entrando em contato com a direção, orientação pedagógica e educacional e professores da escola para realizar o trabalho com a proposta de apresentar o resultado final. A escolha da escola foi feita mediante ao fato do estabelecimento de ensino municipal ser considerado uma referência com relação ao maior número de alunos do ensino médio onde se inclui também a EJA e as turmas escolhidas conforme a disponibilidade dos horários sugeridos pelos responsáveis. A coleta de dados na escola teve o questionário aplicado pelo pesquisador. Os dados foram analisados, tratados e sistematizados em forma de tabelas, gráficos e extratos o que permitiu se chegar a uma síntese conclusiva. Toda a discussão dos resultados foi permeada pelo confronto com os objetivos propostos. O enfoque dado à representação social é o senso comum que se tem sobre determinado tema, e que pode ou não envolver ideologias, preconceitos e atividades cotidianas. Cada aluno tem a sua ideia própria a respeito de determinado assunto. As informações sobre a identificação do perfil dos alunos e suas condutas nas ações realizadas seguem a seguir: A idade dos alunos entrevistados varia entre 18 e 47 anos e a maior frequência recai em 18 anos. Do total, 9 são do sexo masculino e 11 do sexo feminino. A maioria reside na cidade há mais de 10 anos sendo que 6 estão há mais de 20 anos em Porto Real. O número de alunos que trabalha é de 7, sendo principalmente o setor o industrial para os homens e trabalhos em casa (domésticas e babá) para mulheres. Apenas 2 nasceram em Porto Real, sendo 4 em Barra Mansa, 1 em Andrelândia-MG, 1 em Volta Redonda e os 12 restantes são naturais de Resende, município original de Porto Real. A percepção sobre o conceito de meio ambiente teve como categoria de análise e interpretação de conteúdo dentro das categorias escolhidas conforme as visões dos entrevistados: globalizante, antropológica e naturalista. Os extratos mais significativos das falas coletadas, apresentam os resultados obtidos. Extrato 1 – Percepção Globalizante: “é o homem e a natureza tentando viver em harmonia” Extrato 2 – Percepção Antropológica: 182 “que o meio ambiente depende de nós”; “devemos cuidar bem do lugar onde moramos”; “cuidar do planeta para mantê-lo limpo” Extrato 3 – Percepção Naturalista: “eu entendo como as matas, rios animais e florestas”; “é tudo que se relaciona com a natureza”; “é o ar que respiramos”; “as árvores, o ar, os rios, a natureza em geral”; “é um assunto que fala sobre a natureza e o planeta” Como pode-se observar, a definição mais recorrente de meio ambiente entre os alunos entrevistados se relaciona com uma visão naturalista. A maior parte dos alunos associaram meio ambiente com a natureza, não incluindo o homem neste processo. Todos os alunos que responderam ao questionário mostraram grande preocupação com o lixo. Quando perguntados o que faziam para melhoram a questão ambiental em Porto Real, associaram com a separação, tratamento, reciclagem, ou destinação adequada ao lixo. Quando perguntados sobre qual a reação deles quando encontram uma pessoa jogando lixo nas ruas a maioria se mostrou indiferente, pois fazem o mesmo, conforme apresentado no gráfico a seguir: Orienta a jogar o lixo no lugar correto Não faz nada, pois também joga lixo na rua Pega o lixo no chão e o coloca na lixeira Os alunos foram questionados sobre como se informam a respeito da questão ambiental. A tabela a seguir mostra que a televisão é o meio mais utilizado para se informarem sobre meio ambiente. Alguns alunos apontaram mais de um meio de comunicação para se informarem. Meio para Nº de se alunos informar Televisão 10 Radio 3 Escola 4 183 Internet 6 Jornais 4 Com relação aos problemas ambientais enfrentados pelo município de Porto Real, a maior parte afirmou que a poluição das águas dos rios é o que mais preocupa os estudantes, seguido da poluição do ar, do tratamento do lixo, do saneamento e por último está a preocupação com a extinção de animais e plantas. Dos entrevistados a grande maioria disse saber que o município dispõe de uma secretaria de meio ambiente, como revela o gráfico a seguir: SIM NÃO O questionário permitiu o uso de categorias de análise como: representações sociais sobre meio ambiente, ações realizadas contributivas para a melhoria da vida no planeta, problemas ambientais e tipos de visões percebidas. Além disso, procurou identificar hábitos e atitudes de seus participantes e levantar o conhecimento da sua comunidade sobre ações e órgãos governamentais. Os extratos das falas coletadas dos alunos e os instrumentos aqui apresentados expressam suas representações sociais sobre a problemática. CONCLUSÃO A percepção dos estudantes sobre a questão ambiental deve levá-los a uma interrelação entre escola, poder público e sociedade, por meio do diálogo, promovendo uma transformação mais favorável ao tratamento com o meio ambiente. A investigação revelou uma preocupação dos alunos mais direcionada para a percepção ambiental em uma visão naturalista e identificou que eles abordam questões relativas aos problemas ambientais, e realizam ações contributivas na melhoria de sua participação e na aquisição de novos conceitos socioambientais. O aprofundamento do estudo neste campo se faz necessário tendo em vista a urgência da temática a qual deve ser voltada para a transformação do modo de vida com ética 184 comportamental e justiça social. O respeito ao direito ambiental pelo homem e as nações, com base no conhecimento científico, promoverá uma mudança de pensamento e o engajamento na luta pela vida qualitativa no planeta para todas as gerações. BIBLIOGRAFIA ALCANTARA, et al. Educação Ambiental e os sistemas de gestão ambiental nos desafios do desenvolvimento sustentável. Rev. Eletrônica em educação, gestão e tecnologia ambiental. v.5, n.5, p. 734-740, 2012. ANDRADE, Eliane Ribeiro. A Educação de Jovens e Adultos e os jovens do último turno: produzindo outsiders. Niterói ,RJ: UFF, 2004, Tese (Doutorado em Educação) BAQUERO, Fabíola Gomide. O fracasso escolar de jovens e adultos e o imaginário social. Brasília: UCB, 2001. Dissertação. (Mestrado em Psicologia). BARROS, J. & SILVA, M., Educação Ambiental na Educação de Jovens e Adultos em Cachoeira dos Índios – PB. Rev. de Educ. Agrícola Superior. Brasília: ABEAS. V.25, Nº.2, pag. 79-83, 2010. BEZERRA, Aldenice Alves. Fragmentos da história da educação ambiental. 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Pretendemos então objetivar o a questão ambiental em Moçambique, considerando as estruturas de oportunidades políticas inerentes a questão ambiental, o que condiciona e significa o surgimento de novos movimentos sociais e consequentemente novos atores (Habermas, 1990), ligados ao movimento ambientalista, o que será feito atentando para a dinâmica conflituosa e estruturante que se estabelece entre estes movimentos, o capital e o Estado enquanto processos eminentemente globais. Palavras-Chave: Movimentos ambientais; Novos atores sociais; Capital, Estado e Ambiente. INTRODUÇÃO O tempo trabalhou a nossa alma coletiva por via de três materiais: o passado, o presente e o futuro. Nenhum destes materiais parece estar feito para uso imediato. O passado foi mal embalado e chega-nos deformado, carregado de mitos e preconceitos. O presente vem vestido de roupa emprestada. E o futuro foi encomendado por interesses que nos são alheios. – Mia Couto, A Fronteira da Cultura Desde a década de 1970, quando as preocupações ambientais ascenderam à agenda política e alcançaram uma perspectiva global (Acselrad e Mello, 2002; Alonso e Costa, 2002; Oliveira, 2008), tem estado a emergir no mundo todo um conjunto de organizações cuja 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF); Contacto: [email protected] 187 atuação enquadra-se na resposta a chamada crise ambiental, propondo um novo modelo de percepção e ação homem-natureza. Estes movimentos têm inevitavelmente uma forte componente política e ideológica, e é apartir desse viés que pretendemos no presente artigo, fazer uma leitura sobre as potencialidades políticas dos movimentos ambientalistas em Moçambique, considerando as estruturas de oportunidades políticas existentes, e a ação do capital predador aliado aos interesses desenvolvimentistas do Estado moçambicano. A questão ambiental enquanto construção social historicamente gerada e situada, possibilita discursos e praticas que se contrapõem ao sistema de produção capitalista, agenciando deste modo a constituição de novos atores sociais que lutam pelo controle da historicidade, se contrapondo no campo social, econômico e político as dinâmicas do capital e do Estado. E na medida em que a questão ambiental se tornou um problema global, ela possibilita o surgimento de novos atores, que no caso dos movimentos ambientais em Moçambique se encontram incrustados num contexto local, que é de onde advém sua “legitimidade prática”, mas inseridos num contexto global que é de onde advém sua “legitimidade teórico cientifica” na defesa e construção da questão ambiental. Pretendemos então, problematizar a forma como estes movimentos integrados numa lógica global-local surgem, interagem e se redefinem constituindo a questão ambiental, o que será feito considerando as estruturas de oportunidades políticas inerentes a questão ambiental, que condicionam e significam o surgimento de novos movimentos sociais, atentando para a dinâmica conflituosa e estruturante que se estabelece entre estes movimentos, o capital e o Estado em Moçambique. OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A CONSTITUIÇÃO DA ARENA POLÍTICA EM MOÇAMBIQUE É hoje lugar comum, tal como pontua Weber (1983) que toda a ação social se situa dentro de um quadro contextualmente racional, o que leva a que a legitimidade e/ou a validade racional dessas praticas e ações, tenha que ser necessariamente compreendida por meio de uma análise do contexto que a produziu. Partindo desta premissa, torna-se mister para perceber a dinâmica dos movimentos ambientais em Moçambique, perceber os contextos nos quais estes novos atores2 surgem e se 2 Por novos atores pretendemos designar os movimentos sociais surgidos após a instauração da segunda república em Moçambique - período que se inicia com a constituição de 1990 que instaura o Estado de direito 188 afirmam, na medida em que eles representam uma “reconfiguração” das lógicas até então estabelecidas de participação e constituição de atores sociais, pois,“a compreensão do aparecimento e da institucionalização dos movimentos sociais é indissociável do contexto histórico-social existente em cada país, não sendo possível conhecê-los sem se regressar ao seu passado” (Fernando, 1997: 190). A história de Moçambique enquanto Estado independente se inicia a 25 de Junho de 1975, data em que o país se tornou independente de Portugal. Assim como todas as excolônias portuguesas em África, a independência só veio a ser alcançada depois de uma insurreição armada, que foi no caso de Moçambique orquestrada e executada pela Frente de Libertação de Moçambique-FRELIMO (Newitt, 2002). No mesmo ano da independência de Moçambique (1975), se inicia uma guerra civil no país opondo a FRELIMO que, entretanto se veio a assumir oficialmente em 1977 durante o seu III congresso, como partido-estado de ideologia marxista-leninista, e a RENAMOResistência Nacional de Moçambique- movimento criado em 1975 que se opôs ao modelo socialista de estado (idem). Em função da orientação marxista-leninista que foi adotada pela FRELIMO enquanto partido-estado (que “procurava” instaurar um Estado socialista), com exceção das chamadas “instituições de massas” originalmente criadas no seio do partido3, não existia espaço jurídico e nem liberdade para a criação de movimentos independentes do partido e do Estado4 (Mazula, 1995). A identificação do Estado moçambicano com o sistema socialista vinculou até a adoção da constituição de 1990, que introduziu o Estado de Direito Democrático alicerçado na separação e interdependência dos poderes e no pluralismo, lançando segundo Ngoenha (1993) “os parâmetros estruturais da modernização”, contribuindo de forma decisiva para a instauração de um projeto democrático que levou aos acordos de paz (fim da guerra civil) em 1992, tendo as primeiras eleições multipartidárias acontecido em 1994, iniciando-se deste modo também a abertura jurídica e política para o surgimento das chamadas “organizações da sociedade civil”, categoria na qual se enquadram os movimentos ambientais em Moçambique. A sociedade civil refere-se habitualmente às formas de organização dos cidadãos que democrático - possibilitando o multipartidarismo e o surgimento das organizações da sociedade civil (Ngoenha e Castiano, 2011). 3 São os casos da OMM (Organização da Mulher Moçambicana); OJM (Organização da Juventude Moçambicana); OTM (Organização dos Trabalhadores Moçambicanos) entre outras de menor porte (Yussuf, 1997:83). 4 Com exceção do caso particular do Conselho Cristão de Moçambique que se manteve no país desde a sua fundação em 1948 (Afrimap, 2009). 189 não se inserem nem no sector público nem no privado, ou seja, o meio associativo na sua globalidade e de forma generalista. No entanto, a designação de “organizações não governamentais e/ou organizações da sociedade civil”, é bastante polissêmica, uma vez que são propostos vários sentidos em função das diferentes fontes5. Aspecto este que: “(...) Não favorece a compreensão da ideia de organização cidadã num país como Moçambique, em que a experiência democrática é relativamente recente. O papel de grupo de pressão da sociedade civil e o seu lugar como parceiro do Governo, cuja vocação é participar (de uma forma que ainda está por determinar) na governação de um Estado, não estão até ao momento totalmente assimilados. Essa falta de compreensão parece atingir tanto as esferas de decisão como uma boa percentagem dos próprios atores não estatais” (Homerin, 2005:12). O fato da delimitação daquilo que constituem as fronteiras das organizações da sociedade civil não ser consensual, e ser um termo em disputa que é “utilizado e reivindicado por vários tipos de organizações que são bastante dispares em suas características” (Oliveira, 2004: 69), nos leva a considerar os movimentos ambientalistas partindo do conceito de “atores não estatais (ANE)”, conforme proposto pelo acordo de Cotonou assinado em 2000, pelos países da ACP (incluindo Moçambique) e que preconiza o fato de os ANE, serem organizações nascidas da vontade dos cidadãos e que são independentes do Estado, cujo objetivo é promover um tema ou defender interesses supostamente comuns a uma maioria de cidadãos (Homerin, 2005: 12). Como podemos constatar pela história de Moçambique enquanto país independente, o surgimento dos movimentos sociais6 é ainda recente, o que contrasta com a grande importância que estas organizações têm para o processo de democratização e desenvolvimento econômico e social do país (Mazula, 1995: 73). Mais importante ainda, é que estas organizações representam uma oportunidade de participação política, possibilitando a configuração de atores exteriores à esfera do Estado, pois: “Em Moçambique, as marcas do autoritarismo colonial e do controle social exercido durante o período de partido-estado ainda se fazem presentes nas instituições e práticas políticas do país, e são percebidas e vivenciadas pelos cidadãos (...) resta claro o receio demonstrado pelos moçambicanos ao responder a perguntas com conteúdo político-partidário que são sempre associadas ao Estado (...) notando-se um claro receio na manifestação livre da opinião e do descontentamento. Neste 5 A título de exemplo a agência norueguesa de desenvolvimento em Moçambique NORAD define a sociedade civil de acordo com os seus atores, reagrupando todas as organizações não estatais. Ao passo que, segundo a USAID (agencia norte-americana de desenvolvimento) a sociedade civil se define pela sua função de vetor de democratização, e é composta por organizações não estatais envolvidas na adoção e consolidação das reformas democráticas (Homerin, 2005). 6 O conceito de movimento social esta sendo aqui usado em linhas gerais como se referindo à ação coletiva de um grupo organizado que objetiva alcançar mudanças sociais por meio do embate político, conforme seus valores e ideologias dentro de uma determinada sociedade e de um contexto específicos, permeados por tensões sociais (Gohn, 1995). 190 ponto, pode-se argumentar que anos de autoritarismo e centralismo inculcaram nos moçambicanos uma relação de exagerado respeito e medo em relação aos agentes governamentais, dos quais não ousam discordar abertamente” (Brito, 2003:187). Percebidos enquanto movimentos sociais, as organizações ambientalistas politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil, suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e disputas ligados ao modelo de exploração capitalista e a defesa do meioambiente (Leff, 2011). Desta feita, consideramos os movimentos ambientais e seus atores enquanto se enquadrando no campo da ecologia política (Lipietz, 2002), que é onde se configuram as estratégias discursivas de sustentabilidade, e se estabelecem as arenas7 nas quais se confrontam as diferentes visões e interesses pela reapropriação social da natureza (Leff, 2011: 34). O CAPITAL, O ESTADO E OS MOVIMENTOS AMBIENTAIS. Os movimentos ambientais enquanto se integrando no vasto campo dos movimentos sociais, que tem a particularidade de no seu agir focalizar a questão ambiental, podem ser considerados como empreendimentos coletivos para o estabelecimento de uma nova configuração de vida que: “Tem raízes num estado de inquietação e social, e derivam seu impulso, de um lado, da insatisfação com a vigente forma de vida, e, de outro, dos desejos e esperanças de um novo modo ou sistema de vida. O curso de um movimento social representa a luta pela emergência de uma nova ordenação de vida (...)” (Blumer, 1969: 83). Essas “novas configurações da vida” se tornam possíveis na medida em que com o surgimento da questão ambiental, surge algo radicalmente novo que redefine o social, não só enquanto uma nova questão filosófica ou um novo método de analise dos processos naturais e sociais de interesse eminentemente teórico, mas, sobretudo enquanto uma nova forma de compreensão que propõe um novo agir prático no mundo, que emerge da consciência dos limites e perigos da intervenção humana sobre a natureza em função da ordem econômica e social vigentes. “Contrariamente ao fim da historia anunciada por Fukuyama, da morte do sujeito 7 A noção de arena é aqui trazida segundo proposto pela Escola de Manchester para perceber os espaços de interação efetiva, buscando compreender os diferentes pontos de vista, racionalidades, interesses e estratégias dos diversos atores implicados, as suas posições e as suas concepções de agency, enquanto capacidade de ação e competência. (Sardan 1995). 191 anunciada desde a crítica filosófica ao humanismo de Heidegger, e a crítica estruturalista ao antropocentrismo, hoje emergem os novos atores sociais do ambientalismo. Os atores do ambientalismo surgem da emancipação (...) de uma consciência ecológica que confronta a racionalidade de uma modernidade insustentável, resignificando seus modos de vida e reinventado novas identidades” (Leff, 2011: 34). Por outro lado, conforme aponta Alain Touraine (1976), para se compreender os movimentos sociais, mais do que pensar em valores e crenças comuns para a ação social coletiva, seria necessário considerar as estruturas sociais nas quais os movimentos se manifestam, ou seja, sua historicidade8. Assim, os movimentos sociais fariam explodir os conflitos já postos pela estrutura social geradora por si só da contradição entre as classes, sendo uma ferramenta fundamental para a ação com fins de intervenção e mudança daquela mesma estrutura (Leff, 2011; Touraine, 1976). Sendo que a ação desses movimentos (no caso especifico o movimento ambiental em Moçambique) é potencializada e agenciada por meio da incorporação da questão ambiental na modernidade, percebida sobre o viés do sistema mundo (Wallerstein, 1974 e 2004; Gonçalves, 2006). Ou seja, na medida em que a questão ambiental se tornou um problema global, ela possibilita o surgimento de novos atores, que no caso dos movimentos ambientais em Moçambique se encontram incrustados num contexto local, que é de onde advém sua “legitimidade prática”, mas inseridos num contexto global que é de onde advém sua “legitimidade teórico cientifica” na defesa e construção da questão ambiental. DA PERSPECTIVA FILOSÓFICO-AFRICANA DA RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA À QUESTÃO AMBIENTAL Ao abordar a relação homem-natureza Ngoenha (1994), pontua que o homem é por natureza desprovido de qualidades naturais, não estando “naturalmente equipado para sobreviver de forma ecológica”, o homem deve a sua sobrevivência ao saber empírico, técnico e moral que vai adquirindo, afastando-se naturalmente da natureza, uma vez que tem uma relação com o mundo baseado em mediações simbólicas e técnicas9. Daí que para o homem a cultura (entendida como meio de mediação simbólico e técnico entre o homem e a natureza), torna-se condição sine qua non para a sua sobrevivência, 8 Cada sociedade ou estrutura social teria como cenário um contexto histórico (ou historicidades) no qual, assim como também apontava Karl Marx, estaria posto um conflito, entre classes, terreno das relações sociais, a depender dos modelos culturais, político e social. Touraine (1976). 9 Para os objetivos a que nos propomos nesse trabalho, não nos interessa problematizar a relação técnicasociedade, que pode ser percebida de acordo com Benakouche (2007), sobre três diferentes abordagens: a que destaca o conceito de sistema; a que insiste em seu caráter socialmente construído; e a que privilegia o conceito de rede. 192 pelo que Ngoenha a denomina de segunda natureza: “Esta segunda natureza existia até relativamente pouco tempo em todos os países do mundo, entre limites muito estritos, em todas as esferas culturais e em todo o mundo a segunda natureza limitava-se a rectificar os defeitos mais evidentes do ambiente natural, mas no essencial imitava-o (…) até que o progresso científico e a tecnologia moderna romperam este equilíbrio” (Ngoenha, 1994: 11). De certa forma “o homem ocidental” libertou-se da natureza em decorrência dos seus avanços técnico-científicos, fazendo com que a segunda natureza já não mais exista em complementaridade a primeira natureza, mas sim em substituição a primeira, sendo em certos casos mutuamente exclusivas, o que se agrava pelo facto de a segunda natureza alimentar-se da primeira, assim a medida que esta vai avançando a primeira natureza vai recuando. Enquanto a primeira natureza coloca o homem como ser idêntico aos outros seres naturais, a segunda afasta e diferencia o homem não só em relação aos outros seres naturais, mas também em relação aos outros homens através de uma cultura específica para cada sociedade, sendo que em decorrência da racionalidade instrumental, tais culturas são valorativamente hierarquizadas (Ngoenha, 1994). Esta concepção da realidade é característico das sociedades ocidentais posteriores aos valores e premissas da revolução industrial, sendo que os alicerces de uma concepção africana da realidade, o coloca fora do modelo antropocêntrico da racionalidade instrumental que “utiliza as coisas para os seus fins utilitários”, por sua vez o “africano vive tradicionalmente da terra, com a terra, no cosmos e através dele” a razão europeia é analítica para a utilização enquanto a razão negra é intuitiva para a participação (Ngoenha, 1994). Deste modo, a relação do africano com a natureza10 é a expressão de uma simbiose consciente: “Onde o africano sente-se parte integrante da natureza e a sua acção inscreve-se num sistema de relações com o cosmos, com as plantas, com os animais e num sistema de relações sociais. A epistemologia negro-africana ignora a separação entre a ordem de conhecer e a ordem do ser, sendo que o conhecimento é um ser e não só um instrumento ao serviço do homem ” (Ngoenha, 1994: 24). Com o advento da modernidade11 e da nova ordem impostas pela dinâmica do sistema mundo (Wallerstein, 1974), tal como afirma Benakouche (2007:79) se existe um consenso a respeito das principais características das sociedades contemporâneas, este se 10 Um exemplo de uma etnografia que detalha a concepção filosófico africana da relação homem-natureza, pode ser encontrada em EVANS-PRITCHARD, E.E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978. 11 Referimo-nos aqui as sociedades nascidas depois da revolução industrial que segundo MATHIAS, Peter (1992). A Revolução Industrial: Conceito e Realidade. Lisboa: Ática. Situa-se apartir do séc. XVIII, embora reconheçamos as diferenças e as múltiplas “dinâmicas ou metamorfoses” decorrentes da própria historia que separa a sociedade do séc. XVIII da sociedade atual, o que nos interessa aqui é de modo grosseiro a primazia da economia de mercado e o modelo de produção capitalista industrial, que embora tenha “evoluído” permanece como característica comum das sociedades desde o séc.XVIII. 193 refere à presença cada vez maior da tecnologia na organização das práticas sociais, das mais complexas às mais elementares. Sendo que inserida num contexto de exploração capitalista, esta tecnologia é usada no sentido de potencializar o “desenvolvimento”, pois, o avanço da civilização moderna tem como signo distintivo a tentativa da imposição do controle humano sobre os meio ambientes de ação, entre eles o natural. Esta orientação para o controle, por sua vez, liga-se fortemente à ênfase num tipo de desenvolvimento econômico contínuo e que se impõe a todas as sociedades (Giddens, 1996). Surge deste modo, na medida em que a “segunda natureza” se alimenta da “primeira natureza” (como proposto por Ngoenha, 1994), um conjunto de preocupações que podem ser aglutinadas sob a denominação de “questão ambiental12” que longe de serem percebidas per si, trata-se de uma construção social com fortes implicações políticas, ideológica, econômicas, culturais, etc. A CONSTRUÇÃO DA QUESTÃO AMBIENTAL E O AGIR DOS MOVIMENTOS AMBIENTAIS EM MOÇAMBIQUE EM CONTRAPOSIÇÃO AO CAPITAL E AO ESTADO A abordagem trazida por Hannigan (1995) em “Sociologia Ambiental. A formação de uma perspectiva social” mostra-se bastante útil para perceber a legitimidade teórica cientifica das demandas dos movimentos ambientalistas em Moçambique, uma vez que de acordo com esta abordagem, os problemas ambientais só passam a existir a partir do momento em que determinado grupo social passa a encarar determinadas situações como situações de risco. “(...) Os problemas ambientais não se materializam por eles próprios; em vez disso, eles devem ser ‘construídos’ pelos indivíduos ou organizações que definem a poluição, ou outro estado objetivo como preocupante, e que procuram fazer algo para resolver o problema . ” (Hannigan, 1995:11). Em Moçambique, um dos exemplos do agir dos movimentos ambientais como contraponto aos interesses do Estado e do capital, pode ser encontrado na controvérsia que opôs os movimentos ambientais ao funcionamento da empresa Mozal13 (Mozambique 12 Por questão ambiental referimo-nos a relação meio ambiente-sociedade no sentindo mais lato do termo, reconhecendo, contudo as diferentes demandas, movimentos e posições que esta mesma questão traz consigo, assim como a forma como este “recurso” (no sentido de poder potencializar a ação) pode ser estrategicamente usada por diversos atores para legitimar demandas que nada tem haver com a relação ambiente-sociedade. Cf. Acselrad, Henri (2010). Ambientalização das lutas sócias- o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos avançados. 24 (68), p-103-119. 2010 13 Escolhemos este exemplo devido a repercussão e aos acesos debates que o mesmo trouxe a nível da mídia Moçambicana, nos quais o governo deliberadamente se colocava em defesa da Mozal e contrario aos argumentos trazidos pelos movimentos ambientalistas. A Mozal é desde o inicio da sua produção em 2000 até a realização do último senso em 2011, a empresa líder do raking das 100 maiores empresas de Moçambique 194 Aluminium). Desde que se tornou de conhecimento público a 5 de Abril de 2011 a intenção da Mozal de proceder ao bypass dos centros de tratamento de fumos e gases. Desde essa altura foi formada uma coligação de protesto envolvendo seis conhecidas organizações moçambicanas, nomeadamente a Justiça Ambiental, Centro Terra Verde, Centro de Integridade Pública, Lida dos Direitos Humanos, Livaningo e a Kulima. A coligação constituída por essas organizações utilizou todos os mecanismos disponíveis ao seu alcance para evitar que o processo de bypass requerido pela Mozal as autoridades governamentais moçambicanas fosse de fato levado a cabo. Tendo recorrido ao Tribunal Administrativo e à Assembleia da República, envolvendo sempre os órgãos de comunicação social, e promovendo discussões em torno da matéria, comentando ativamente todos os documentos disponibilizados ao longo do processo e procurando junto das instituições governamentais responsáveis obter informação válida e a oportunidade para participar num processo aberto, transparente e justo. E, por fim, dada a falta de resultados obtidos a nível da justiça Moçambicana, a coligação recorreu a instituições internacionais. Tendo submetido no início de Outubro do ano passado, queixas a cerca de 24 instituições internacionais a que de alguma forma a Mozal, através do seu principal acionista, a BHP Billition, está ligada. Estas queixas basearam-se na violação de princípios e valores que a BHP Billiton diz seguir e respeitar e que contribuem imenso para a sua imagem, tais como responsabilidade social e ambiental, transparência na disponibilização de informação, entre outras. Tendo obtido respostas positivas uma vez que as queixas foram aceites pelo Banco Europeu de Investimentos (EIB) e pelo Compliance Advisory Ombudsman (CAO), do International Finance Corporation (IFC) 14. Segundo Hannigan (1995:65) um acontecimento dá origem a uma questão ambiental quando: a) estimula a atenção dos meios de comunicação social; b) envolve alguma arma do governo; c) exige uma decisão governamental; d) não é eliminado pelo público como um fenômeno que acontece apenas uma vez; e) relaciona-se com os interesses pessoais de um número significativo de cidadãos. Assim, visto sob esta perspectiva os movimentos ambientais construíram uma demanda ambiental, que foi cientificamente validada, pois, foge ao vulgo os efeitos que a em termos de volume de negócios (572,5 milhões de Euros em 2010), liderando ainda o rankig das empresas que mais exportam. O que a transforma num recurso econômico e político considerável. 14 As informações aqui avançadas em torno desse caso tem como fonte o Jornal “a verdade”, que foi aqui escolhido por ser o jornal de maior circulação em Moçambique e podem ser consultadas em http://www.verdade.co.mz/ambiente/23139-mozal-alvo-de-24-queixas-internacionais-em-conexao-com-aoperacao-bypass . 195 transmissão direta ao ambiente externo por parte da Mozal de substâncias como o Fluoreto de Hidrogênio, Dióxido de Enxofre, Dióxido de Azoto e Ozono podem causar a saúde e ao meio ambiente envolvente. Ainda, uma vez que a dimensão filosófico africana da relação homem natureza, pressupõe aquilo que Ngoenha (2004) denomina de “simbiose consciente”, é preciso todo um processo de consciencialização pública sobre os efeitos do agir técnico sobre a natureza, para que o público tenha consciência prática do que esta sendo discutido, em termos dos efeitos que uma operação bypass pode vir a trazer. Podemos perceber apartir desse caso que a construção social da (in) sustentabilidade se dá através de estratégias discursivas15 nas quais se confrontam as razões da racionalidade moderna e as motivações da racionalidade ambiental, pois, se por um lado uma operação por parte da Mozal por meio do bypass vai permitir uma poupança de mais de 10 milhões de dólares (preço da operação de manutenção dos filtros que foram removidos por seis messes), por outro lado, operar no esquema de bypass traz a longo prazo danos incalculáveis ao ambiente. Ora, embora a situação do bypass da Mozal se refira a um espaço territorial especifico regido por legislação “autônoma e independente” – a legislação Moçambicana- este exemplo nos mostra também o quanto a demanda ambiental é uma demanda por um “projeto de vida global, e não apenas a defesa dos recursos ou da biodiversidade” (Escobar e Prado, 2005:05), pois, não tendo encontrado solução no nível das instâncias jurídicas moçambicanas, as organizações ambientalistas recorreram a múltiplas instituições internacionais, tendo por via destas conseguido que os relatórios e estudos ambientais da Mozal se tornem público. Pois, tal como refere Castells: Os Estados não se tornam irrelevantes na sociedade de, mas eles se tornam dependentes de uma rede de poder mais ampla, constituindo-se como nós dessa rede. Sua autoridade declinante depende de, e está situada entre, por um lado, redes de capital, produção, instituições internacionais de comunicação e organizações não governamentais, e por outro lado, pelo espaço do lugar, com comunidades, tribos, localidades, cultos, gangues e identidades locais. (Castells, 1996: 406). Dada a historia política e social de Moçambique, o largo debate que se originou em torno do bypass da Mozal, e que se alastrou incitando toda uma discussão em torno do impacto dos mega projetos desenvolvimentistas em Moçambique, tendo levado a um questionamento sobre o lugar e pertinência política, econômica, social e ecológica que os 15 Percebidas de acordo com a arqueologia do poder de Foucault (2008) apartir de quatro dimensões, nomeadamente a formação dos objetos, a formação das modalidades enunciativas, a formação dos conceitos e a formação das estratégias. 196 mesmos ocupam no contexto Moçambicano, possibilitou o agenciamento de uma maior participação política por parte da população, que se manifestou por meio de um abaixo assinado dirigido a assembleia da republica, com mais de 150.000 assinaturas, colocando-se contra o modus operandi da Mozal e o agir do Estado. Á GUISA DA CONCLUSÃO. O papel participativo da sociedade civil, na qualidade de interlocutor na definição e implementação das políticas sociais e econômicas de Moçambique, permanece ainda um campo de estudos relativamente novo. Se por um lado os atores do meio associativo se afirmam como sendo movidos pela única vontade de “ajudar as comunidades mais desfavorecidas”, colocando-se fora da arena política, por outro lado os efeitos (ainda que não desejados da sua ação) são inevitavelmente políticos, na medida em que elas instauram a possibilidade de um diálogo e participação política. Embora ainda frágeis do ponto de vista institucional, cientifico e econômico, visto que as organizações ambientais em Moçambique são totalmente dependentes de financiamentos externos, é útil olhar para as suas potencialidades como mediadores e agenciadores da participação política, ligada principalmente aos interesses do Estado e do capital, o que deve ser analisado tendo em conta o peso da história política do país, em que o poder esteve sempre centralizado (desde a época colonial, a guerra e o regime socialista) sendo a emergência dos atores sociais não estatais um processo ainda recente, fruto da constituição de 1990. Estes movimentos têm, portanto, permitido o agenciamento da participação dos cidadãos no processo político, sendo que a sua capacidade de influenciar a formulação das políticas públicas, a abertura do governo às demandas da população e a transparência com que o governo trata dos assuntos públicos, devem ser vistos a luz da tradição política e dos interesses econômicos do capital em Moçambique. Dessa forma, para além das instituições democráticas como os partidos, as eleições e o parlamento, a existência dos movimentos sociais é de fundamental importância para a sociedade civil enquanto meio de manifestação e reivindicação, e na medida em que esses movimentos se colocam deliberadamente em defesa da sustentabilidade e justiça ambiental, em meio a exploração predatória dos recursos engendrados por uma dinâmica capitalista hegemônica e global, esse papel ganha mais importância ainda. 197 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAM, Yussuf, Messias Modernos Procuram Novos Lázaros. 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London: Duke University Press, 2004. 199 PLANO PILOTO PARA BAIXADA DE JACAREPAGUÁ: O que foi realizado e o que foi modificado ao longo de quatro décadas Tatiana Fernandes Dias da Silva Sigla da Instituição:UFF Titulação: mestranda E-mail: [email protected] O Plano Piloto não foi concebido em função do chamado milagre econômico ou das normais flutuações do mercado, mas visando a racional ocupação volumétrica da área, independentemente da consideração do padrão econômico dos futuros usuários, e se definiu previamente s critérios de ocupação para a faixa litorânea e para a antiga BR-101, deixou, deliberadamente, em aberto, as demais áreas a proposições e iniciativas cuja aceitação estará sempre condicionada à ambientação paisagística local. (Lúcio Costa, Jornal Recreio da Barra, 1980.) RESUMO O presente estudo tem por objetivo comparar o Plano Piloto de urbanização e zoneamento para a Baixada de Jacarepaguá elaborado e apresentado pelo arquiteto Lúcio Costa em 1969 e a realidade atual da região, com ênfase ao crescimento urbano, políticas públicas e proteção ao meio ambiente. Para tanto será examinado o Decreto-lei n. 42, de 23 de junho de 1969, que aprovou o Plano Piloto de urbanização e zoneamento da região, legislações posteriores, doutrina, artigos acadêmicos e periódicos. O intuito da pesquisa é analisar e enumerar as discrepâncias entre o projeto do arquiteto e as características atuais da localidade. O trabalho mapeará a área onde se localiza a baixada de Jacarepaguá, fará uma descrição do projeto do arquiteto, discutirá o que foi realizado e o que foi modificado do traçado original ao longo dessas quatro décadas. 1. INTRODUÇÃO Em 23 de junho de 1969, o governador do estado da Guanabara, Francisco Negrão de Lima, promulgou o Decreto - Lei n. 42, que aprovava o Plano Piloto de urbanização e zoneamento da Baixada de Jacarepaguá. Uma área de 165 quilômetros quadrados, situada entre os maciços da Tijuca e Pedra Branca. O artigo 1° do citado Decreto-lei determinava que a elaboração e apresentação do Plano Piloto para a região seria do arquiteto Lúcio Costa. Da criação do Plano Piloto até a atualidade, a Baixada de Jacarepaguá sofreu inúmeras transformações de ordem espacial, urbana e ambiental. Ao longo desses 43 anos, contados a partir da edição do Decreto-Lei 42/69, foram sancionadas 62 legislações para a localidade, dessas, 23 alteraram o projeto inicial de ocupação urbana da área e apenas 12 enfocaram a preservação do meio ambiente. O Plano Piloto visava o planejamento espacial da Baixada de Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, região composta por diversos bairros, são eles: Anil, Barra 200 da Tijuca, Camorim, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Gardenia Azul, Pechincha, Praça Seca, Recreio dos Bandeirantes, Rio das Pedras, Tanque, Taquara, Vargem Pequena, Vargem Grande e Vila Valqueire. (Bairros que compõem a Baixada de Jacarepaguá. Fonte: http://ihja.blogspot.com.br/) Na época da elaboração do projeto de Lúcio Costa a Barra da Tijuca e demais bairros que compunham a Baixada de Jacarepaguá eram um patrimônio natural exuberante com dunas, agreste, lagoas e praia que o arquiteto tentou ao máximo preservar mesmo sem possuir a conscientização ambiental dos dias de hoje. Infelizmente, apenas parte do que foi previsto pelo arquiteto foi realizado. De 1970 até o presente a região teve um crescimento urbano galopante, um surto de crescimento imobiliário e econômico. Como consequência a natureza que haveria de ser preservada, muito se perdeu e obras de estruturação que deveriam ser realizadas, um exemplo é o metrô, ainda encontra-se no papel. Com a expansão urbana, a especulação imobiliária é crescente. Esta especulação apesar de levar ao crescimento econômico, conforto e melhoria da condição de vida para os que ali residem, traz também destruição e poluição ao ecossistema. 2. CONTEXTO HISTÓRICO A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada por Estácio de Sá em 1° 201 de março de 1565. Na segunda metade do século XVII, com aproximadamente 30 mil habitantes, o Rio de Janeiro se tornou a cidade mais populosa do Brasil. Após a Proclamação da República, especificamente as últimas décadas do século XIX e início do XX, a cidade enfrentou graves problemas sociais, consequência do seu crescimento rápido e desordenado. Com o fim do trabalho escravo, a capital do Estado passou a receber grandes massas de imigrantes da Europa e de antigos escravos atraídos pela oportunidade de crescimento da nova região. Entre 1872 e 1890, a população dobrou passando para 522 mil habitantes. Com o aumento populacional ocorreu o crescimento da pobreza, o que agravou a crise habitacional. Reformas urbanas do centro do Rio, realizadas pelo engenheiro Pereira Passos demoliram vários cortiços e a população pobre da região central foi deslocada para as encostas de morros na Zona Portuária e Caju. Esse novo povoamento cresceu de forma desordenada, iniciando o processo de favelização. No início do século XIX, o desenvolvimento industrial contribuiu muito para a urbanização das cidades brasileiras acelerando o desenvolvimento habitacional. Em 1902, o prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos desalojou milhares de moradores e comerciantes para realizar reformas urbanísticas no centro da cidade. Foi nesta época que foi construída a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), o Cais do Porto, a Cinelândia, além do alargamento de algumas ruas. Os anos se passaram e de lá para cá o município do Rio de Janeiro cresceu rapidamente, dominando os espaços naturais e fazendo necessária e expansão da cidade para sua área ainda muito pouco habitada, a Baixada de Jacarepaguá. A decisão de planejar a ocupação da região pelo Governo surgiu em decorrência de uma matéria pública no Jornal do Brasil, em 1º de setembro de 1968, com o título “Falta de Planos Ameaça o Futuro da Barra da Tijuca”, de autoria dos repórteres Israel Tabak e Luiz Paulo Coutinho. O Governo, sentindo-se pressionado, reuniu-se para buscar uma solução. O secretário de obras, Raimundo Paula Soares, convidou o urbanista Lúcio Costa para a realização do empreendimento. Num primeiro momento o arquiteto declinou do convite feito engenheiro Geraldo Heleno Segadas Viana, mas, ao final, acabou por aceitar. Assim, no final dos anos 60, com a abertura do túnel Dois Irmãos e do elevado do Joá, que ligou a Zona Sul à Barra da Tijuca, iniciou-se o projeto de urbanização da Baixada de Jacarepaguá. O objetivo precípuo para a região era controlar a expansão urbana e preservar a geografia do lugar, suas belezas naturais como as praias, as dunas, restingas e lagoas, já que 202 era uma das últimas áreas disponíveis para onde a cidade poderia se expandir. 3. O PROJETO DO ARQUITETO LÚCIO COSTA Como já afirmado, com a promulgação do Decreto - Lei n. 42, em 23 de junho de 1969, Lúcio Costa foi convidado pelo governo do Rio de Janeiro para planejar a urbanização e o zoneamento da Baixada de Jacarepaguá. Nesta época a área era formada por uma planície agreste preservada e articulada pelas Avenidas Brasil e BR – 101. O objetivo do plano era criar além do grande centro metropolitano Norte/Sul e Leste/Oeste dois centros metropolitanos principais, um em Sernambetiba e outro na Barra da Tijuca. O projeto modernista, similar ao Plano de Brasília, que também foi elaborado por Costa, teve inspiração no urbanismo racionalista, com grandes avenidas e espaços abertos. A proposta era ordenar o uso do solo, numa visão global que articulasse o novo centro de negócios da Barra da Tijuca, ao centro histórico da Cidade do Rio de Janeiro e ao novo centro de Santa Cruz, ligando a cidade de leste a oeste, reestruturando seu espaço, direcionando a migração populacional rumo à Zona Oeste. Seu ponto central foi à construção de duas vias principais, a Avenida das Américas e a Avenida Alvorada (atual Avenida Ayrton Senna), que fariam a ligação de todo o bairro. O Plano Piloto previa para a localidade a criação em quilômetro em quilômetro de numerosos núcleos urbanizados ao longo da BR -101 formados de torres com 25 a 30 metros de andares, com um pequeno comércio térreo ao redor, além de lotes residenciais espaçados. Os núcleos residenciais seriam constituídos por conjunto de edifícios de 8 a 10 pavimentos e próximo deles um sistema autônomo de lojas com venda de diversos produtos. Os núcleos urbanizados seriam ligados na diagonal por uma via que teria pequenos conjuntos de edificações para utilidades pública ou privada. As moradias se concentrariam em uni ou plurifamiliares, formando os condomínios fechados, que reproduziriam internamente um pequeno centro com comércio e serviço, dando segurança a seus moradores. Foi previsto para a Baixada um aeroporto executivo, metrô, campo de golfe, museu, orla hoteleira, áreas de reserva biológica, bosque, zona agrícola e autódromo. Todas as áreas já urbanizadas deveriam ser arborizadas. Haveria um octógono alongado, articulado por duas vias que comandaria dois eixos ortogonais, um maior Leste/Oeste, paralelo a praia e um menor na direção de 203 Jacarepaguá, dividindo a área em quatro partes que se subdivide em quarteirões de quatro lóbulos cada um. Os quarteirões centrais teriam gabarito mais alto, cerca de 200 metros, o equivalente a 70 andares. O arquiteto, modernista, queria definir os usos do espaço: residencial, comercial, lazer e preservação ambiental. Também acreditava que a construção e ocupação da zona litorânea deveria ser feira de forma a não bloquear a vista do mar dos demais quarteirões, por isso limitaria os gabaritos para construção desses prédios. (Projeto Lúcio Costa. Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br) Como bem define Luciana Araújo Gomes da Silva, em sua obra intitulada Barra da Tijuca: O Concebido e o Realizado, página 8: “O plano constituía-se, então, em um regulamentador de diretrizes para a ocupação da àrea.” Foi criado um grupo de trabalho da Baixada de Jacarepaguá (G.T.B.J.) para fiscalizar e analisar os projetos de urbanização da região, o qual Lúcio Costa trabalhou como consultor. Esse grupo adotou uma postura flexível de planejamento analisando as construções uma a uma. Lúcio Costa creditava que deveria possibilitar uma gradual ocupação da área, sem, contudo, abrir mão da preservação ambiental, expressa nas diretrizes contidas no Plano Piloto. Contudo, em 1981, Lucio Costa abandonou o cargo de consultor pois, as 204 significativas alterações promovidas no Plano Piloto pelo poder público municipal descaracterizavam o projeto urbanístico que havia concebido originalmente. O bairro da Barra da Tijuca apresentou a partir de então um grande impulso de ocupação. O crescimento foi puxado principalmente pela explosão da Região Administrativa (RA) da Barra da Tijuca, cujo total de habitantes em 2010 era de 300.823 habitantes. Não posso deixar de destacar que Jacarepaguá, na mesma ocasião já contava com 572.617 habitantes, sendo a área mais populosa da cidade. 4. PLANO PILOTO: O QUE FOI REALIZADO E O QUE FOI MODIFICADO AO LONGO DE QUATRO DÉCADAS Após os 10 primeiros anos da concepção e aprovação do Plano Piloto de urbanização e zoneamento da Baixada de Jacarepaguá, em 1980, Lúcio Costa forneceu entrevista ao repórter André Holanda, publicada no Jornal Recreio da Barra e já afirmava seu descontentamento face às alterações efetuadas pelo poder público ao seu projeto: “Só posso atribuir a não cumprimento destas determinações à falta de entrosamento administrativo, ou a um deliberado propósito de não respeitá-las, talvez por incapacidade congênita de compreensão.” No artigo o arquiteto continuou a enumerar o que estava sendo descumprido do traçado original e lembrou que na memória descritiva do Plano Piloto havia uma preocupação em preservar as características agrestes da região, o que, notadamente, não estava sendo cumprindo pela falta de sensibilidade e imaginação dos empresários e arquitetos. Ressalva-se que, diferente do que também foi determinado, a urbanização da área, não iniciou pela infraestrutura, o que seria o mais correto e praticado pela maioria dos países desenvolvidos. As primeiras modificações do plano urbanístico tiveram por fito atender aos interesses do setor imobiliário. Para Costa esse grupo deveria ter suas práticas monitoradas pelo ente público, para que houvesse “oferta de compensações para uma civilizada e melhor vivência dos usuários, inclusive, ou principalmente, quando se trate de programas destinados a populações de padrão econômico baixo”. Uma grande alteração do embrionário projeto ocorreu em 1976, com a edição do Decreto n° 322, alterando a cota de utilização das áreas localizadas entre o antigo Caminho de Guaratiba e todas as terras consideradas utilizáveis no Maciço da Pedra Branca, além da área contida entre a Estrada de Jacarepaguá e o Maciço da Tijuca. Desiludido, continua o urbanista na sua entrevista afirmando que: “Como já era de se esperar-se, o aspecto negativo do ponto de vista da prevenção do primitivo agreste é uma decorrência fatal da própria urbanização: a cota baixa de grande parte da área impõe aterros afim de possibilitar o devido escoamento à necessária infra-estrutura, e as dunas 205 exigem nivelamento para a implantação das vias, dos estacionamentos, das áreas do recreio e próprias edificações. Lamento apenas que as dificuldades de financiamentos pioneiros do Centro da Barra – quando outros foram generosamente aquinhoados – tenham, de certo modo, retardado a caracterização do esquema urbanístico proposto.” Para que pudesse ser conciliada a urbanização com a manutenção da ambientação paisagística do local, seria necessário que o governo cumprisse o papel de regulador e de fiscalizador, fiel às diretrizes do projeto, o que nunca aconteceu. Outro importante descumprimento as determinações do plano foi a transformação da Av. Sernambetiba em uma via de mão dupla, o que era proibido pelo rascunhado original, uma vez que ela deveria ser integrada ao ambiente agreste que deveria ser preservado. No entanto, ocorreu justamente o inverso, além de mão dupla a Av. Sernambetiba se tornou uma avenida de tráfego de alta velocidade. A ocupação da orla marítima da Barra da Tijuca, ao invés de manter o mapa primário, alterou-o na tentativa de recuperar o modelo do bairro de Copacabana que tinha uma diversidade de usos e elevados índices de ocupação. Desse modo, o Decreto 3.046, de 22, de abril de 1981, mexia nos gabaritos das edificações e criava novas condições de parcelamento, autorizando, ainda, a construção de apart hotéis ao longo da orla. Esta norma impunha as condições de uso do solo, de parcelamento da terra e das edificações refletindo o microzoneamento de cada subzona, em especial a Zona que consiste nos bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Tratava-se de uma medida que promoveria a verticalização e a diversificação de uso da terra urbana. A autorização para implantação desses empreendimentos na Barra da Tijuca, especialmente Avenida Sernambetiba, contrariava nitidamente a concepção inicial do Plano Piloto, que previa a construção de hotéis apenas em pontos preestabelecidos nas extremidades da orla marítima. Em 1994, por ocasião da comemoração dos 25 anos de criação do Plano Piloto, o urbanista afirmou em entrevista ao Jornal do Brasil, no dia 10 de junho de 1994, que: “O plano foi uma concepção pessoal para a ocupação racional daquela área. Eu não contemplava, por exemplo, essa ideia da falta de convivência entre os moradores de cada condomínio.”[...]“Nem tenho lembrança de ter sido o criador deste projeto. Ele nasceu como um belo filho, muito elogiado e sempre querido. Depois cresceu e sumiu no mundo. A única certeza urbanística é a de que as coisas nunca ocorrem como planejadas”. Outro descaminho das diretrizes apresentadas pelo Plano Piloto na década de 90 foi a expansão dos loteamentos e construções irregulares nos bairros de Vargem Pequena e Vargem Grande. O gabarito inicial determinava para esses bairros uma ocupação rarefeita, preservando as características originais do local. Em 2000, o então prefeito do Município do Rio de Janeiro, César Maia, em artigo publicado no jornal O Globo, no dia 28/01/2000 afirmou: “autorizações de construções, sejam elas respaldadas por operações interligadas ou de discutível legalidade urbanística, afetam a ocupação do solo através de novos 206 gabaritos, nova volumetria, impacto populacional concentrado, impacto ambiental imprevisto ou avanços que deformam a paisagem urbana” [...] “tanto na Avenida Sernambetiba quanto na periferia da Avenida das Américas, da Barra ao Recreio dos Bandeirantes”. Após 43 anos da elaboração do Plano Piloto, a Baixada de Jacarepaguá está muito descaracterizada do seu projeto primitivo. O rápido crescimento urbano, impulsionado pela expansão imobiliária, evidencia os pontos fracos da região como o deficitário sistema de transporte público e a poluição hídrica de seu complexo lagunar ocasionada pela precariedade nos serviços de saneamento, tratamento de esgotos e pela ocupação regular e irregular das margens de lagoas e rios. Essa poluição é um obstáculo ao desenvolvimento sustentável da Barra da Tijuca por gerar sérios problemas ecológicos e impactos ambientais. O arquiteto e urbanista Nireu Cavalcanti, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado no site G1 (globo.com), no dia 01 de julho de 2011, comenta que o ponto crítico das lagoas representa, uma conivência histórica do governo municipal carioca "com tudo o que há de pior na ocupação urbana". Ele ainda destaca o favorecimento da classe média em detrimento da população pobre. “O discurso é o mesmo de Brasília. Ele projetou a capital, mas não as cidades satélites. Elas foram se construindo igual a qualquer favela. O mesmo conceito foi aplicado na Barra”. Diante desse abrupto crescimento urbano, os bairros de Camorim, Vargem Pequena e Recreio dos Bandeirantes mais que dobraram sua população com aumentos de 150%, 136% e 118%, respectivamente, enquanto a taxa de crescimento da cidade do Rio de Janeiro foi de 7,9% nesta última década. Dados fornecidos pela Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi) mostram que 68,5% de todas as unidades habitacionais lançadas na cidade entre 2005 e 2010 estavam concentradas em quatro bairros da zona oeste: Barra da Tijuca, Jacarepaguá, Recreio e Campo Grande. Continua o docente Nireu Cavalcanti, afirmando que: "Mais uma vez, esse crescimento se dá de forma desordenada, em função do mercado imobiliário". Para o docente a falta de planejamento urbano na região é preocupante e cita, como exemplo, a ausência de transporte público eficiente e a precária infraestrutura sanitária. Ressalta o professor: “Costa foi convocado para fazer o projeto de uma nova cidade, já que a ‘cidade velha’ não atendia às necessidades do mundo moderno. É um absurdo que em 1970 se conceba uma urbanização sem transporte de massa, sem nenhum espaço para habitação daqueles que iam trabalhar na própria construção da cidade”. Agora, as portas da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, a 207 Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro tem muito que fazer na Baixada de Jacarepaguá. Criar um transporte público de massa eficiente, controlar o uso e ocupação do solo e despoluir o sistema lagunar da Baixada de Jacarepaguá são pontos primordiais. A expansão do transporte público rodoviário com a criação do sistema denominado BRT, que tem como objetivo precípuo agilizar o tempo da viagem de ônibus, já é um começo, mas a região necessita de muito mais. (Barra da Tijuca nos dias de hoje – Fonte: Google) 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEITÃO, Gerônimo Emílio Almeida. 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De modo a compreender a complementaridade entre as linhas teóricas e suas contribuições no pensamento sociológico, o trabalho parte da sociologia configuracional de Norbert Elias para discutir a noção de habitus social na relação indivíduo, sociedade e identidade; passando pelo construtivismo estruturalista de Pierre Bourdieu, a fim de pensar sobre a arte nas práticas sociais e trocas simbólicas, as quais são estruturadas e estruturantes, estudando termos como habitus e estilo de vida; e, assim, concluindo com o interacionismo simbólico de Erving Goffman de modo a refletir sobre a representação do eu no processo de constituição de identidade de artista no espaço da Feira de Artes e Artesanatos do Campo de São Bento. Com isso, o trabalho toma como base para o presente artigo um recorte dos relatos, centrando na narrativa em um dos artistas plásticos observados. Palavras-chave: arte; identidade; espaço. INTRODUÇÃO O trabalho busca compreender a constituição da identidade de artista na Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, situada na cidade de Niterói, especificamente no bairro de Icaraí. Com isso, partiu-se para uma revisão bibliográfica sobre indivíduo, sociedade e arte, a fim de perceber a malha social trançada nas interações do processo de constituição de identidade de artista. De modo a compreender a complementaridade entre as linhas teóricas e suas contribuições no pensamento sociológico, o trabalho parte da sociologia configuracional de 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia/ Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]. 210 Norbert Elias para discutir a noção de habitus social na relação indivíduo, sociedade e identidade; passando pelo construtivismo estruturalista de Pierre Bourdieu, a fim de pensar sobre a arte nas práticas sociais e trocas simbólicas, as quais são estruturadas e estruturantes, estudando termos como habitus e estilo de vida; e, assim, concluindo com o interacionismo simbólico de Erving Goffman de modo a refletir sobre a representação do eu no processo de constituição de identidade de artista no espaço da Feira de Artesanatos do Campo de São Bento. Para tal, o primeiro tópico segue para o estudo da relação indivíduo e sociedade, buscando não dicotomizar o indivíduo de seu grupo, da sociedade. De modo a perceber os indivíduos como figurantes e figurados, o trabalho é orientado pela explanação de Norbert Elias, com sua obra A sociedade dos indivíduos (1994), especificamente na parte Mudança na balança nós-eu, a qual constitui uma leitura na transformação da identidade ao longo da história, no processo de configuração do lugar e sentido do indivíduo na sociedade, o qual a incorpora e a constitui, e vice-versa. Dessa maneira, Elias (1994) contribui na compreensão de que não se trata do artista em si mesmo, mas sim em constante constituição e valoração nas interações sociais, figurando uma “sociedade dos indivíduos”. Em seguida, no tópico intitulado de Arte no indivíduo, arte na sociedade: as práticas sociais e as trocas simbólicas, o estudo pretende discutir a arte como prática social, a qual significa e é significada nas interações. Com isso, o trabalho se direciona na perspectiva de Pierre Bourdieu, de modo a compreender o sentido da arte nas trocas simbólicas, constituindo um valor e um lugar da arte e do artista na cadeia hierárquica da vida social. No terceiro tópico, intitulado de A constituição de identidade de artista na Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, o estudo parte para a observação das pesquisas de campo realizadas nos meses de junho, julho, agosto de 2011 e janeiro de 2012, tomando como exemplo a entrevista de um dos artistas plásticos entrevistados, o qual é chamado aqui de T.. Com objetivo de compreender os discursos produzidos pelo artista, principalmente a constituição de um discurso artístico sobre si e sua obra na afirmação de sua identidade de artista, o trabalho é orientado pela obra de Erving Goffman, A representação do eu na vida cotidiana (2002), a qual busca refletir os papeis apresentados pelos atores nos espaços, que se configuram como palcos do espetáculo das interações sociais. Ao final, introduzimos Howard Becker, em Arts Worlds (1982), o qual situa o artista no mundo da arte, compreendendo seus significados na vida social. Em conjunto, o estudo retomará as discussões anteriores de Elias e Bourdieu de modo a perceber a complementaridade entre as linhas teóricas apresentadas, que colaboram para o entendimento 211 do processo de formação da identidade de artista. 1. INDIVÍDUO NA SOCIEDADE, SOCIEDADE NO INDIVÍDUO: FIGURAÇÃO SOCIAL E IDENTIDADE PROCESSUAL O social é um “conjunto de relações”, constituindo-se como um todo relacional (WAIZBORT, 2001, p.91). Por serem relações em processo, essas “se fazem e desfazem, se constroem, se destroem, se reconstroem, são e deixam de ser” (WAIZBORT, 2001, p.92). Ou seja, as relações, que são fluidas e vivas, se atualizam a cada momento, podendo se fortificar ou se enfraquecer. Dessa forma, é necessário pensar os conceitos que delineiam “indivíduo” e “sociedade”. Para Elias (WAIZBORT, 2001, idem), não é possível falar de “indivíduo” autônomo, e sim de indivíduo na sociedade. Assim como não é possível falar de “sociedade” desligada do seu corpo, do que a compõe, e sim de “sociedade” no indivíduo. Isto é, os indivíduos constroem a sociedade, assim como a sociedade constrói os indivíduos. As noções de sociedade em si, ou o indivíduo em si não passam de um “mito”, os quais a sociologia deve desmistificar. As interações sociais, figuradas e figurantes em constante movimento, se entrelaçam, constituindo uma interdependência entre os homens. Segundo Elias (1994, p.130), a “balança nós-eu” sofreu modificações ao longo dos séculos, constituindo-se como um processo de longa duração. Na época do Estado romano da Antiguidade, a “identidade-nós”, caracterizada pelo sentimento de pertencer a determinado grupo, “mal era separável da imagem que as classes formadoras da língua tinham da pessoa individual” (ELIAS, 1994, idem). Assim, a identidade grupal, “identidade-nós”, de uma determinada pessoa se configurava com relevância na práxis social da Antiguidade. Nesse mesmo período, a palavra latina persona figurava-se semelhante ao sentido do “indivíduo” moderno, embora seu conceito “nada tem do nível de generalidade ou de síntese dos atuais termos ‘pessoa’ ou ‘indivíduo’” (ELIAS, 1994, p.131). Persona se referia às mascaras, pelas quais os atores proferiam suas falas, derivando do verbo personare. Dessa maneira, o sentido de persona consiste nas “nuanças da máscara”, “como as referentes ao papel de um ator ou caráter da pessoa por ele representada” (ELIAS, 1994, idem). A partir de uma sociologia dos processos, Elias (1994, p.132) oferece uma discussão sobre o caráter instrumental dos conceitos, a partir de uma reflexão de seu desenvolvimento, o qual se constitui como parte do desenvolvimento social mais amplo, cumprindo uma “função 212 explicativa”. O sentido de “pessoa” não evoluiu a partir de uma abstração individual sobre o conceito teatral persona, e sim se configurou em um processo social, em que a linguagem se conforma no desenvolvimento da sociedade, dos indivíduos. Ou seja, o caráter linguístico dos símbolos comunica e orienta conceitos, precisando ser “compreensíveis não apenas para uma pessoa isolada, mas para uma comunidade linguística, um grupo específico de pessoas” (ELIAS, 1994, p.133). De acordo com ELIAS (1994, idem), a palavra individuus, o qual o emprego simbolizava uma “unidade indivisível”, pode ter se ligado na “comunicação entre os eruditos da Igreja medieval”, estabelecendo uma “ponte para o desenvolvimento do conceito mais recente de ‘indivíduo’”. A filosofia escolástica, portanto, contribuiu substancialmente nesse processo de elevação desse conceito, em que “cada entidade singular tem sua própria história individual e suas peculiaridades”. Na época Renascentista (ELIAS, 1994, p.134), ocorre uma ascensão social, em que humanistas passaram a ocupar cargos públicos, caracterizando um “aumento das oportunidades sociais de progresso individual”. Assim, no século XVII, configurou-se uma distinção entre “o que era feito individualmente e o que era feito coletivamente” (ELIAS, 1994, idem). Nesse processo, se conformou uma necessidade de existência de equivalentes linguísticos: “a formações vocabulares como ‘individualismo’, de um lado, e ‘socialismo’ e ‘coletivismo’, de outro” (ELIAS, 1994, idem). Essas formações vocabulares contribuíram na significação dos termos “indivíduo” e “sociedade”, situando tais conceitos como opostos na comunicação. Na sociologia dos processos que reflete Elias (1994, p.150), o conceito habitus social (ou “de composição”) constitui-se como um instrumento sociológico importante na compreensão da relação “indivíduo” e “sociedade”, evitando abordagens que dicotomizem tais termos. O habitus se configura como “cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma composição específica que compartilha com outros membros de sua sociedade” (ELIAS, 1994, idem). Ou seja, o habitus se caracteriza como uma “composição social dos indivíduos”. Desse modo, é formada uma linguagem comum, na qual os indivíduos compartilham símbolos e sentidos, como parte do habitus social – “um estilo mais ou menos individual inconfundível que brota da escrita social” (ELIAS, 1994, idem). Elias (1994, p.151) destaca que “é do número de planos interligados de sua sociedade que depende o número de camadas entrelaçadas no habitus social de uma pessoa”. A “identidade eu-nós”, parte integrante do habitus social, encontra-se aberta a individualização, 213 em que uma pessoa é ao mesmo tempo individual e social. Ou seja, “a existência da pessoa como ser individual é indissociável de sua existência como ser social” (ELIAS, 1994, p.151), uma vez que o indivíduo constitui-se como membro de um grupo e o que esse espera dele. A pessoa, portanto, carrega o sentido do grupo, em combinação com o individualizante. “Não há identidade-eu sem identidade-nós”, uma vez que “tudo o que varia é a ponderação dos termos na balança eu-nós, o padrão da relação eu-nós” (ELIAS, 1994, p.152). Cabe ressaltar que o habitus social, “parte da bagagem intelectual das pessoas civilizadas” e da construção da “identidade eu-nós”, está longe de se constituir como um produto acabado. Elias (1994, p.153) ressalta a importância da teoria sociológica dos processos, uma vez que “a maneira como interagem e se entrelaçam os diferentes aspectos do desenvolvimento da personalidade de uma pessoa ainda não foi claramente entendida”. “O processo de desenvolvimento e sua representação simbólica, o processo como tal e como objeto da experiência individual, são igualmente entrelaçados e inseparáveis” (ELIAS, 1994, idem). Dessa maneira, o estudo segue com a discussão na abordagem de Pierre Bourdieu sobre práticas e trocas simbólicas, de modo a compreender a arte como vida social. Ou seja, as interações sociais como significantes da arte, e vice-versa. Assim, é buscado situar a arte no processo de configuração do sentido das conformações sociais, como parte constitutiva do significado da relação social e individual. 2. ARTE NO INDIVÍDUO, ARTE NA SOCIEDADE: AS PRÁTICAS SOCIAIS E AS TROCAS SIMBÓLICAS Em Gostos de classes e estilos de vida (1983), Bourdieu oferece uma discussão das práticas e estruturas sociais, articulando noções como gosto, habitus, classe e prática, as quais significam e são significadas nas interações. A escala hierárquica que compõe o espaço social constitui fronteiras simbólicas, em que o acúmulo de capital corresponde ao acúmulo de poder e legitimidade na cadeia hierárquica, nas posições ocupadas pelos indivíduos na estrutura. Na perspectiva de Bourdieu (1983), a arte se manifesta como forma de dominação, uma vez que as próprias relações sociais se estruturam desse modo. Como um item da vida social, a arte compõe o estilo de vida dos agentes. O autor entende estilo de vida como correspondente das posições ocupadas pelo indivíduo no espaço social, como um sistema “de desvios diferenciais que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência” (BOURDIEU, 1983, p.01). As práticas sociais, assim, configuram uma “expressão sistemática das condições de existência” – estilo de vida – uma vez que “são 214 o produto do mesmo operador prático” – habitus. Cabe ressaltar que habitus se constitui como um “sistema de disposições duráveis e transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades objetivas das quais ele é o produto” (BOURDIEU, 1983, p.01). Esse “sistema de disposições”, as quais são estruturadas e estruturantes, se constitui na prática social. Por gerar e organizar as práticas, o habitus orienta as ações dos indivíduos, sendo um princípio passível de mudança. Cabe ressaltar quanto mais consciência o sujeito tem da prática, mais o habitus é passível de mudança, embora seja coletivamente orquestrado. O habitus, portanto produz e reproduz hierarquias, uma vez que carrega princípios de classificação. Cabe ressaltar que o habitus oferece uma margem para improvisação, em que o indivíduo se desloca no espaço. Para Bourdieu (2009, p.100), para que os indivíduos se reconheçam enquanto classe, é preciso adquirirem consciência do habitus incorporado, uma vez que a classe está ligada ao habitus. As regras, atreladas as posições, evidenciam o sentido do jogo. O senso do jogo é o senso do por-vir do jogo, ou seja, o senso do sentido da história do jogo que dá seu sentido ao jogo (BOURDIEU, 2009, p.136). A lógica da prática, logo, não se resume em si (BOURDIEU, 2009, p.142). No interior da prática encontram-se sua coerência, a qual corresponde ao sentido do jogo, e a memória dos indivíduos, o corpo pelo qual é possível concretizar e reproduzir a prática (BOURDIEU, 2009, p.148). As práticas só existem em vida, ou seja, existem a nível do corpo, uma vez que necessitam serem incorporadas para pulsarem. O corpo, portanto, é a unidade que permite sintetizar o objetivismo e a consciência, em que as trocas entre os indivíduos são caracterizadas por Bourdieu (2009) como materiais e simbólicas. Ao configurar-se em determinadas condições materiais de existência, o “sistema de esquemas geradores” – habitus – possui sua lógica e leis próprias, exprimindo a necessidade dessas condições em “sistemas de preferências”. As diferenças referentes à “posição na estrutura da distribuição dos instrumentos de apropriação” são transmutadas em distinções simbólicas (BOURDIEU, 1983, p.01). A condição econômica e social, que prevê um determinado acúmulo de capital desde o volume até a estrutura da qual foi apreendido, evidencia a posição do “indivíduo ou grupo no espaço dos estilos de vida” (BOURDIEU, 1983, p.02). Nesse sentido, o estilo de vida se configura na “apropriação material e/ou simbólica de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras”, conformando aptidões, propensões e gostos. O estilo de vida é um conjunto de 215 preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem ou héxis corporal, a mesma intenção expressiva, princípio da unidade de estilo que se entrega diretamente à instituição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados. (BOURDIEU, 1983, idem). Os estilos de vida são significantes e significados das e nas práticas sociais, em que os indivíduos são classificados e hierarquizados. Portanto, há uma hierarquia dos estilos de vida, em que a matriz de gosto constitui-se no modelo de estilo de vida. Esse modelo diz respeito a uma cultura configurada como superior, possuidora de legitimidade, de poder distintivo e classificatório, desempenhando uma dominação simbólica na cadeia hierárquica da vida social. A dominação, que se sustenta no acúmulo de capital – econômico, cultural, social, simbólico –, evidencia uma distinção de gostos, de fala, vestimenta, produtos consumidos, comunicando posições ocupadas pelos indivíduos nas interações humanas (BOURDIEU, 1983). “A própria disposição estética, que, com a competência específica correspondente, constitui a condição da apropriação legítima da obra de arte, é uma dimensão de um estilo de vida” (BOURDIEU, 1983, p.06). O consumo da obra de arte, seja esse material ou simbólico, faz parte de um dos elementos constitutivos da “estilização da vida”. A “estilização da vida”, logo, é um conjunto de escolhas, preferências e práticas que é construída em relação com a estrutura. Nesse sentido, os estilos de vida são relacionais, ou seja, possuem hierarquias entre esses evidenciadas pelos produtos consumidos, pelas trocas simbólicas nas interações. Segundo Miceli (apud BOURDIEU, 2007, p.LXI), é preciso “proceder à investigação dos processos de produção simbólica para o qual concorrem de maneira determinante os próprios agentes produtores dos diversos aparelhos e instâncias do campo simbólico”. Nessa lógica, constitui-se um sistema de regras, “de um habitus que orienta as condutas e os pensamentos [...] que justifica a ordem social prevalecente de uma determinada sociedade” (MICELI apud BOURDIEU, 2007, p.LIX). De modo concomitante ao desenvolvimento do sistema de bens simbólicos há um processo de diferenciação, que se acomoda no princípio “da diversidade dos públicos as quais as diferentes categorias de produtores destinam seus produtos e cujas condições de possibilidade residem na própria natureza dos bens simbólicos” (BOURDIEU, 2007, p.101). Os valores mercantil e cultural da obra de arte, para Bourdieu (2007, p.102), subsistem de maneira independente, “mesmo nos casos em que a sanção econômica reafirma a consagração cultural”. Ou seja, quando se configura um mercado da obra de arte, os artistas podem afirmar – “por via de um paradoxo aparente” – “a irredutibilidade da obra de arte ao 216 estatuto de simples mercadoria, e também a singularidade da condição intelectual e artística”, através de “suas práticas e nas representações que possuem de sua prática”. A arte não se constitui a partir dela mesma, e sim a partir das práticas sociais, constituindo o valor e lugar da arte, do artista, da posição e imagem do artista no mundo artístico e no mundo social mais amplo. Não se trata, portanto de uma hierarquia dos objetos artísticos, valorados em si mesmos, mas sim de uma hierarquia a partir de interações e representações sociais as quais legitimam de acordo com uma ordem racional de dominação. Nesse sentido, o estudo seguirá com a discussão no próximo tópico, no qual será abordada a constituição de identidade de artista na Feira de Artesanatos do Campo de São Bento. Para tal, será utilizada a pesquisa de campo realizada nos meses de junho, julho e agosto de 2011 e janeiro de 2012, tomando como exemplo a entrevista com um artista plástico, o qual será chamado aqui de T.. De modo a perceber as práticas sociais e trocas simbólicas serão retomadas as reflexões de Pierre Bourdieu, assim como as abordagens de Norbert Elias (1994) na compreensão da constituição da “identidade eu-nós”. Com o objetivo de complementar a discussão, será utilizada a perspectiva de Erving Goffman (2002) a fim de perceber as formas de representação do eu nesse processo, em conjunto com Howard Becker (1982), na busca por situar o artista no mundo artístico. 3. A CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADE DE ARTISTA NA FEIRA DE ARTESANATOS DO CAMPO DE SÃO BENTO O Campo de São Bento, formalmente chamado de Parque Pereira Ferraz, é um espaço público de referência de Niterói, com diversos atrativos para a população. Situado no bairro de Icaraí, Zona Sul da cidade, o campo possui uma biblioteca com cursos e eventos variados, o Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, com exposições artísticas, um rink de patinação, parquinho, área verde e a Feira de Artesanatos no final de semana, pela manhã. O campo, que fica entre as ruas Gavião Peixoto, Domingues de Sá, Lopes Trovão e Avenida Roberto Silveira (Figura 1) o que contribui para sua visibilidade e acesso, possui um percurso interno chamado Al. Edmundo de Macedo Soares e Silva, que acomoda a Feira de Artesanato. 217 Figura 1: Campo de São Bento - Google Maps – 07 de janeiro de 2012. Nesse caminho da feira, que comunica as partes da malha social do campo, dispõe de, aproximadamente trezentas barracas, as quais são ocupadas por produtos feitos de panos, crochês, peças decoradas de madeira, bolos, doces, quadros, etc. – marcando um mosaico heterogêneo de expressões do modo de vida urbano (Figura 2). Figura 2Figura 02 (Campo de São Bento, final de semana, 2011) Pesquisa de campo: Leila Maribondo Na parte da feira com maior circulação de pessoas, constituindo a parte mais privilegiada, encontram-se os quadros dos artistas plásticos. Os objetos artísticos são expostos em estruturas maiores do que as barracas de artesanato, sendo do próprio artista (Figura 3). Foi possível perceber que a feira acomoda atores com diferentes desejos, intenções e origens, desde o seu público até os vendedores da feira, compondo uma unidade heterogênea, improvisada e imediata. Nesse trabalho, serão utilizadas partes da entrevista informal realizada com o artista plástico, que chamarei aqui de T., o qual vende quadros de pinturas abstratas que se assemelhando à arte contemporânea. Cabe ressaltar que a narrativa do artista, acomodada em seu corpo, corresponde, ao mesmo tempo, a uma voz individual e social, a qual adquire sentido nas interações sociais. Ou seja, no corpo, unidade que possibilita sintetizar o objetivismo e a consciência, a memória é 218 constituída, a qual se configura nas trocas materiais e simbólicas. A lógica da prática, portanto, encontra sua coerência – o sentido do jogo – na memória, corpo no qual é possível concretizar e reproduzir a prática (BOURDIEU, 2009). Figura 3 (Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, final de semana, 2011) Pesquisa de campo: Leila Maribondo T., que está na feira há dezoito anos, diz que pinta quadros há vinte e oito anos. T. cursou o primeiro semestre da graduação em artes plásticas, na Universidade Federal do Espírito Santo. Apesar de ter cursado apenas um semestre, T. parece deter um saber legítimo frente aos outros artistas estudados durante as pesquisas de campo, os quais não possuem formação formal em artes. Enquanto conversava com T., J., outro artista plástico, se aproximou e abraçando-o de forma amistosa disse: “esse é um grande artista!”. No decorrer da entrevista, pergunto a T. sobre a inspiração e técnica de seus quadros. T. explica, animado, os motivos de seus traços, e diz: “me referencio muito ao abstracionismo alemão, que desconstrói a pincelada, o que é aparente”. As telas de T. não acompanham o formato quadrado das demais telas expostas pelos outros artistas plásticos da feira, e sim utiliza telas sobrepostas, com formatos e tamanhos diferenciados, resignificando seu sentido e textura (Figura 4). 219 Figura 4 (Quadros do artista plástico T., Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, final de semana, 2011) Pesquisa de campo: Leila Maribondo Para T., a arte abstrata possibilita maior liberdade do que a arte “mais evidente”. Sua arte possui “uma linha poética”, e diz ser “diferente de muitos outros quadros expostos aqui, como esse daqui ó, que...”. E começa a explicar o que os outros quadros “tem de errado”. Sem parecer se incomodar com as críticas de T., J. sorri como se estivesse agradecendo pelas “dicas” do artista e se retira de seu espaço para lhe dar mais abertura de apresentar os supostos equívocos técnicos dos quadros expostos. No decorrer desse momento, T. explica que “a arte abstrata não prende o entendimento, as outras artes são dadas, não dá para abstrair nada”. É possível perceber que o breve contato com a academia posicionou T. como detentor de um discurso artístico legitimado pelos outros artistas no espaço da feira, como forma de dominação simbólica, adquirindo um poder de fala e julgamento. A dominação simbólica, sustentada pelo acúmulo de capital simbólico que o fortalece na luta pelo poder, evidencia uma distinção de T. frente os outros artistas, marcando sua posição nas interações. As obras de T., que se assemelham às técnicas da arte contemporânea, também significam essa hierarquia, compondo estilos de vida distintos. Ao perguntar sobre o público que consome seus quadros, T. diz ser composto por “mulher que tem dinheiro”, afinal, segundo ele, “é preciso ter educação para entender os meus quadros”. O gosto “civilizado” evidenciado pelos produtos consumidos marca uma distinção dos estilos de vida. O público que consome as obras de T., por possuírem estilos de vida 220 hierarquicamente acima do público que consome as demais obras de arte dos artistas plásticos, comunica a dominação e legitima a posição que T. ocupa no espaço da feira. Cabe destacar que o acúmulo de capital cultural não está necessariamente atrelado ao acúmulo de capital econômico, apesar de se encontrarem frequentemente. Nesse sentido, são evidenciados os “processos de produção simbólica para o qual concorrem de maneira determinante os próprios agentes produtores dos diversos aparelhos e instâncias do campo simbólico” (MICELI apud BOURDIEU, 2007, p.LXI). Vale ressaltar também que a exposição de seus quadros realizada no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, em 2007, no próprio Campo de São Bento, legitimou seu saber artístico contribuindo para que T. ocupasse um espaço privilegiado na malha hierárquica dos artistas plásticos, podendo usufruir, assim de status e prestígio. É possível perceber que a significação do eu se constitui na comunicação entre os indivíduos, em que as práticas sociais delineiam a constituição da identidade, demandando papéis e formas a serem representadas que condizem com as expectativas de um ou mais grupos. Ou seja, os indivíduos interagem seguindo um script de seu espetáculo, construído por ele mesmo, mas também socialmente. O roteiro da vida cotidiana oferece possibilidades de símbolos nos quais os atores podem representar seus papéis, com a melhor desenvoltura possível de forma a beneficiar-se desse mecanismo. As relações sociais, portanto, uma vez intermediadas pelas imagens apresentadas, comunicam intenções, legitimam espaços ocupados, estabelecem distinções. De acordo com Goffman (2002, p.25), “quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles”. Ou seja, é necessário haver uma crença mútua no papel representado pelo indivíduo, em que os atributos do personagem devem parecer verdadeiros. Esse espetáculo da representação, portanto, é significado nas interações sociais, dependendo de uma troca simbólica entre os indivíduos, na qual seja possível estabelecer uma comunicação de papéis e intenções. Em um dos extremos, o ator, compenetrado em seu número, pode estar convencido da impressão da realidade que produz, considerando-a como real. Assim como seu público, significante também dessa interação, acredita no que é apresentado. No outro extremo explanado por Goffman (2002, idem), é quando um “ator pode não estar completamente compenetrado de sua prática”, uma vez que o executante usufrui de uma posição privilegiada para apreciar sua própria execução. Nesse sentido, o ator detém controle considerável de manipular a impressão que seu público pode ter, dirigindo sua apresentação. Porém, “o executante pode ser levado a dirigir a convicção de seu público apenas como um 221 meio para outros fins, não tendo interesse final na ideia que fazem dele ou da situação” (GOFFMAN, 2002, idem). Quando o indivíduo não acredita em sua atuação e nem está preocupado com a crença do seu público, o autor denomina-o de “cínico”, e reserva o termo “sincero” aos que acreditam na impressão de sua atuação. Referente a esses dois extremos de representação do eu, é possível perceber “típicas carreiras de fé, começando o indivíduo com um tipo de envolvimento pela representação que deve fazer, oscilando em seguida para trás e para adiante várias vezes entre a sinceridade e o cinismo” (GOFFMAN, 2002, p.28). Cabe destacar aqui a noção de representação destacada por Goffman (2002, p.29), a qual se refere a “toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular”. Na Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, é possível perceber as encenações de papéis como forma de legitimação do espaço ocupado e valoração de seus produtos artísticos. O discurso artístico dominante evidenciado nas entrevistas se constitui como parte do espetáculo de artistas, construindo identidades em um movimento contínuo com o espaço. Os símbolos incorporados nas representações comunicam os papéis e hierarquias nos espaços ocupados, prestígios e status. O modo como a estrutura materializa a figuração pode ser percebida na ocupação de espaços pelos artistas plásticos, desvendando uma assimetria entre os próprios, desvendando uma hierarquia de prestígio. A organização das localizações dos agentes revela as formas da figuração, conformando a materialidade do espaço. É válido ressaltar que a hierarquia das posições que compreende a conformação de correlação de forças é construída socialmente e historicamente, em que a luta pelo prestígio se comunica com a disposição espacial dos agentes. Dessa forma, é possível perceber as pressões e contrapressões entre os artistas plásticos na busca por prestígio e etiqueta e como os mesmos procuram usar sua influência sobre si nesse processo. Nessa figuração de delimitações dos espaços há também conformações de mecanismos de controle, em que os agentes treinam seu discurso na busca por legitimação de seu trabalho artístico, como forma de afirmação de sua identidade de arista. T. conta que passou a pintar formas abstratas após ter estudado artes plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo. Antes disso, T. explica que pintava paisagens de Paris. Mesmo sem nunca ter ido a essa cidade, o artista diz que quadros desse tipo “vendiam muito”. Relativizando suas explicações dos benefícios de se pintar arte abstrata, T. conta que o quadro que a deixou mais satisfeita foi uma encomenda que um cliente fez: “fiz um quadro todo vermelho, com um touro, ficou muito bonito aquele quadro!”. T. diz que recebe muitas 222 encomendas e que os clientes escolhem desde as cores do quadro até as formas geométricas a serem pintadas – intermediadas e concretizadas por T. “Tem cliente que fala que quer um círculo laranja aqui, com um fundo preto e um quadrado vermelho no canto da tela, eu faço, se o cliente gostar é o que me deixa mais satisfeito”. Mesmo frente de uma aparente e possível parceria com o cliente na criação artística, para T. a autoria das obras é dele, uma vez que é sua pincelada que concretiza a ideia: “mesmo preso a uma encomenda, eu coloco um tanto de mim na obra”. Becker (1982, p.292) destaca que a desenvoltura e adequação das habilidades de um artista comercial contribuem na sua promoção e aceitação no mercado, atraindo consumidores os quais consideram suas habilidades úteis para seu fim. Geralmente, os artistas que dominam suas habilidades técnicas começam a falar, pensar e agir como artesãos, uma vez que se orgulham de suas virtuosidades e controle do trabalho artístico que produzem, o qual está acima do seu conteúdo (BECKER, 1982, p.294), Ou seja, mesmo que a arte comercial possua as mesmas técnicas e materiais das artes plásticas, essas se disponibilizam e variam de acordo com o fim que o mercado demanda. Bourdieu (2007, p.102) ressalta que nas trocas simbólicas, constituem-se realidades de mercadorias e significações, em que o valor mercantil e o valor cultural da obra de arte subsistem de forma independente – “mesmo nos casos em que a sanção econômica reafirma a consagração cultural”. Ou seja, a obra do artista também se curva as demandas do mercado, mas não se separa de sua significação cultural, não sendo reduzida, logo a uma mercadoria dura e racionalizada. É válido ressaltar que entre os quadros abstratos posicionados quase em todo o seu painel, há um pequeno quadro de uma paisagem niteroiense, de modo a expor as suas habilidades e técnicas artísticas para pintar a “encomenda que vier”. Ao perceber minha curiosidade nesse quadro, T. saca de sua maleta um álbum de fotos de seus demais quadros. Agora, diferente do que é exibido no painel, o álbum possui uma oferta variada de opções de formas artísticas. Cabe ressaltar que a concepção de Becker (1982) sobre habilidade consiste em ser um domínio da capacidade física e mental a qual permite ter um controle sobre os materiais e técnicas. Porém, os membros dos mundos artísticos percebem as habilidades artesanais como um desafio tanto do ponto de vista social como estético frente à indústria. Os diferentes aspectos do trabalho são valorados de acordo com as diferentes definições sobre habilidade Para Becker (1982), as formas de coordenação das atividades de todos os agentes que cooperam no mundo artístico são reveladas nas concepções convencionais que legitimam e 223 impõem formas verdadeiras de obra de arte. Os agentes, por sua vez, incorporam as convenções e materializam nos seus trabalhos artísticos, permitindo um consenso cooperado desses valores como um elo de atividades. É válido ressaltar que os objetos da feira se encontram posicionados e hierarquizados dentro do sistema classificatório artístico, o qual se insere no sistema classificatório mais amplo que os agentes vivem, da mecanização expressada na vida humana. Em A representação do eu na vida cotidiana (2002), Goffman destaca que, no palco, um ator se apresenta sob a máscara de um personagem para personagens projetados por outros atores. A plateia, essencial para essa mecânica ensaística, contribui na conformação de estereótipos da vida social. A representação do papel ocupado como artista plástico requer que T. saiba se comportar como um, causando impressões em seu público por meio de símbolos do mundo da arte incorporados no seu discurso e na sua obra que irão evidenciar sua valoração e merecimento do espaço ocupado. Dessa maneira, a constituição da identidade de artista, que é processual, se configura no desenrolar das interações. As práticas sociais são tecidas nas relações de interdependência entre os homens, configurando uma malha de possibilidades de representações, na qual os indivíduos improvisam suas intenções e representações, testando a margem de suas atuações. Cabe ressaltar que a representação do eu não se resume a um fingimento apenas. O próprio fingimento significa o processo de constituição de identidades, de forma contínua e mutável – construindo e desconstruindo, fazendo e desfazendo. Segundo a visão de Erving Goffman (2002), a moral, peça fundamental que civiliza as representações e comunica as expressões e impressões, se evidencia no roteiro. Nesse sentido, o domínio das regras do script possibilita que o ator manipule-as, estendendo uma margem de atuação. Portanto, a margem é elástica, podendo estender-se de acordo com as habilidades do ator. As convenções do mundo da arte descritas por Becker (1982) pode se encontrar como valores morais que Goffman (2002) propõe, em que quanto maior o domínio do ator dessas convenções – tanto a nível do discurso, quanto a nível de materialização do discurso por meio de suas produções artísticas – maior é a margem de representação e legitimidade de seu espetáculo. É importante ressaltar que o equilíbrio do interior das representações se encontra com a manutenção do equilíbrio externo, na manutenção da ordem. O nível de cinismo tolerável é o nível de funcionamento necessário, em que o script se constitui no consenso moral dos 224 papeis. Vale destacar que os scripts possuem lacunas, mas que são preenchidas pelos artistas e suas representações. De acordo com a perspectiva de Norbert Elias (1994), a constituição de identidade de artista figura-se nas dinâmicas sociais, situadas no habitus social. Ou seja, a identidade de T. enquanto artista é conferida coletivamente, evidenciando uma “identidade nós-eu”. Na “composição social dos indivíduos”, Elias (1994, p.150) destaca que no interior dos grupos é formada uma linguagem comum, em que os indivíduos compartilham os símbolos e significados. É possível perceber que a identidade de T. enquanto artista se constitui nas práticas sociais, em que o significado e legitimidade de seu trabalho artístico se entrelaça no significado e legitimidade de seu eu. Ou seja, o eu, constituído na relação nós-eu, incorpora os códigos do grupo, de modo a acomodar-se e orientar-se da melhor maneira possível na composição social. Dessa maneira, Elias (1994, p.151) ressalta como parte integrante do habitus social, a “identidade eu-nós” sintetiza o social e o individual, sendo ao mesmo tempo um e outro. T., portanto, constitui sua identidade de artista na relação nós-eu, constituindo as interações sociais e se constituindo nelas, dividindo formas de linguagem, as quais simbolizam sua posição, legitimidade e valoração artística. Na visão de Goffman (2002), T., localizado espacialmente na estrutura das interações sociais da feira, apresenta a si mesmo na busca constante por identificar-se no papel por ele representado, de modo a afirmar e reafirmar sua legitimidade enquanto artista. Porém, Elias (1994) atenta que a figuração social é processual, podendo construir e desconstruir, significar e resignificar. Dessa maneira, as práticas sociais que legitimam determinadas trocas simbólicas nos mercados artísticos (BOURDIEU, 2007), assim como convenções do mundo da arte (BECKER, 1982) na constituição de identidade de T. enquanto artista são mutáveis. Por constitui-se como uma luta por poder, o sentido do jogo pode sofrer mutações, resignificando as formas de interações ou reafirmando posições. Cabe ressaltar que, de acordo com a perspectiva de Bourdieu (2009) devido à lógica hierárquica e classificatória que guia a vida humana, mesmo quando há uma inversão do sentido do jogo, em que dominantes alcançam níveis mais altos da cadeia hierárquica, assumindo o poder legítimo, o mecanismo de dominação persiste. Ou seja, as formas de interações podem se transformar, porém o seu conteúdo de dominação continuará, uma vez que a engrenagem mais ampla da vida humana funciona dessa maneira – o capitalismo e a luta de classes. 225 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou compreender o processo de conformação de identidade de artista na Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, direcionando-se nas teorias de Norbert Elias (1994), Pierre Bourdieu, Erving Goffman (2002) e Howard Becker (1982). Orientado pelas pesquisas de campo de junho, julho e agosto de 2011, e janeiro de 2012, especificamente na observação da entrevista com um dos artistas plásticos, o estudo pretendeu apresentar a complexidade da realidade, a qual não se restringe a uma linha teórica apenas. Suas múltiplas faces que significam o corpo da malha social se entrelaçam continuamente, construindo e desconstruindo sentidos, tomando e retomando direções, conformando e acomodando intensidades. Dessa maneira, o trabalho buscou relacionar os autores, de modo a compreender sua complementaridade na observação sociológica do campo. A relação indivíduo e sociedade possui variadas corporificações, configurando um sistema de significados, códigos, pulsações, sintetizando a materialidade e a imaterialidade da vida humana em constante processo. A arte, como parte constitutiva da vida social, é significada nas interações, construindo o valor e lugar do artista no mundo artístico, no mundo social mais amplo (BECKER, 1982). O estudo demonstrou que o sistema classificatório dos artistas possui múltiplas dimensões, em que as hierarquias atravessam as práticas e trocas simbólicas, conformando uma cadeia das representações artísticas. A partir de uma ordem racional de dominação, os artistas são posicionados e valorados de acordo com sua performance (GOFFMAN, 2002), com seu acúmulo de capital (BOURDIEU, 2009) – instrumentos que possibilitam legitimar-se enquanto artistas. Ou seja, quanto maior habilidade e destreza em se adequar no sentido do jogo, mais o artista se firma no campo. Portanto, foi possível perceber que a constituição de identidade de artista, no Campo de São Bento, sintetiza as variadas dimensões da malha social. Na representação de papeis que discute Goffman (2002), as interações sociais adquirem um sentido coletivo, materializando uma vida de espetáculos, construída na relação constante do eu com o nós. O sentido coletivo do grupo fusionado com o sentido individual constrói uma “identidade nóseu” (ELIAS, 1994), figurando o significado do artista na sociedade, o significado da sociedade no indivíduo. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BECKER, Howard. Art Worlds. Berkeley, University of California Press, 1982. 226 BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In Ortiz, R. (org.) Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo, Ática, 1983. BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. Introdução, Organização e Produção: Sérgio Miceli. Ed. Perspectiva, São Paulo, 2007. BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Petrópolis, Vozes, 2009. Diário de Campo. Leila Maribondo – PPGS/ UFF: 2011/ 2012. ELIAS, Norbert. Mudanças na balança nós-eu. In A sociedade dos indivíduos. Org. Michael Schröter; Trad. Vera Ribeiro; Rev. técnica e notas Renato Ribeiro. Ed.: Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1994. GOFFMAN, Erving. Cap.I: Representações. In A representação do eu na vida cotidiana. Tradução Maria Célia Santos Raposo. Editora Vozes, Petrópolis, 2002. MICELI, Sérgio. Introdução. In BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. Introdução, Organização e Produção: Sérgio Miceli. Ed. Perspectiva, São Paulo, 2007. WAIZBORT, Leopoldo. Elias e Simmel. In Dossiê Nobert Elias. Org. Leopoldo Waizbort. 2ª edição. Ed.: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. 227 A PRODUÇÃO COTIDIANA DE SENTIDO NO ESPAÇO DE MORADIA: O caso do Jardim Icaraí, em Niterói/RJ Nathália Carneiro Campagnani* RESUMO Este trabalho trata da discussão acerca da construção e ressignificação cotidiana do espaço urbano do “bairro” Jardim Icaraí pelos moradores dos novos empreendimentos residenciais que surgem na região em função de um processo de verticalização e remodelação urbana. Sendo esses novos prédios caracterizados por alguns elementos particulares como estilo arquitetônico “sofisticado” e oferta de amplas áreas de lazer comum, ambas remetendo a um estilo de vida diferenciado, a proposta é pensar como se dá a articulação entre o espaço territorial e o espaço social como geradores de mecanismos de classificação social desses moradores. Os principais pontos de interesse do trabalho giram assim em torno de três eixos principais: a caracterização do que é o “bairro” Jardim Icaraí e de como se dá a demarcação dos seus limites a partir de uma discussão que pensa a disputa entre o planejamento urbano e a vida cotidiana; a caracterização dos novos empreendimentos residenciais que são ofertados na região e a maneira como se inserem na proposta de um conceito de moradia e de estilo de vida; a maneira como a partir desses elementos são construídos os mecanismos de classificação social pautados na moradia. Palavras-chave: bairro, estilo de vida, cotidiano, remodelação urbana, classificação social. INTRODUÇÃO As metrópoles urbanas, de grande e mesmo de médio porte, se caracterizam pela diversidade que não apenas comportam, como também estimulam. São diferentes comportamentos, maneiras de se mover e de se localizar no espaço, perpassados cotidianamente por ininterruptos rearranjos táticos, que caracterizam essa diversidade e que fazem do ambiente urbano um espaço de efervescência, heterogeneidade e mutação permanente. As mudanças na paisagem urbana, no sentido de uma modificação dos tipos de atividades e construções que podem ser observados em diferentes áreas da cidade, nos dão pistas sobre como vão se organizando aí as diferentes ordens de atores sociais e sobre que tipo * Aluna de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] 228 de significação atribuem ao espaço no qual interagem. A cidade compreendida como um “mosaico de mundos sociais” (WIRTH, 1979) supõe a segmentação do espaço urbano em função de diferentes necessidades e modos de vida dos diferentes grupos. Essa segmentação deve, no entanto, ser confrontada com os processos de mudança e movimento ao nível das práticas cotidianas que conferem a vitalidade dos espaços urbanos. Isso porque se tomamos as cidades como esse mosaico do qual nos fala Wirth, podemos argumentar que esse é um mosaico em construção e com peças intercaladas e permanentemente trocadas. Assim é que percebemos que uma “mudança de paisagem” na maior parte das vezes não se mostra assim tão marcada quando lhe dedicamos um olhar mais atento e percebemos um ou outro elemento que foge ao padrão. Particularmente para os interesses desse artigo, pensemos em como vão se organizando os diferentes grupos no território da cidade no que se refere ao endereço que ocupam, tendo em vista diferentes bairros e também diferentes tipos de prédios. Explicita-se assim um padrão de moradia específico de um grupo a partir da compreensão de maneiras de morar que privilegiam as práticas cotidianas dos agentes como definidoras do espaço e, portanto, de limites que não são rígidos nem tampouco arbitrários, pois estão intimamente relacionados com uma percepção e identificação de e com o lugar. Da mesma maneira, esse padrão de moradia específico está diretamente associado a um dado estilo de vida com o qual se procura identificar-se e com o qual se é identificado. A partir da percepção das práticas sociais e territoriais de um grupo temos então elementos para averiguar o modo como esses agentes são capazes de modificar o sentido que o espaço de moradia adquire na sua vivência cotidiana. Portanto, é possível pensar em como o endereço na cidade permite a identificação de um grupo com determinado estilo de vida e até mesmo com um padrão estético. Atentando para os diferentes atores sociais que compõem a rede de relações que organizam a configuração de um determinado território, podemos pensar no papel desempenhado, por exemplo, pelo mercado imobiliário, pelo poder público e principalmente pelos próprios moradores. De maneira mais imediata vemos que no primeiro caso há uma organização territorial de acordo com faixas de renda, uma vez que potenciais compradores são selecionados em função dos preços dos imóveis localizados em uma ou outra área da cidade. No mesmo sentido, o poder público estabelece uma organização espacial que tem o planejamento urbano como principal componente. Trata-se de um plano de cidade normatizado que pode ou não estar em consonância com o que faz parte do cotidiano da 229 própria cidade, opondo-se assim muitas vezes uma “cidade planejada” a uma “cidade vivida” (NUNES, 2010). E nesse particular é essencial compreender o papel que desempenham os moradores nessa rede, visto que eles são capazes de, por meio das suas práticas concretas e cotidianas, ressignificar e se apropriar simbolicamente do espaço no qual atuam e interagem. Certamente outros fatores entram em cena nessa organização socioespacial da moradia e estão muito relacionados com a oferta e proximidade de certos equipamentos urbanos e com um determinado padrão de construção, por exemplo. O que procuramos ressaltar com essa afirmativa é que não apenas os critérios classificatórios baseados na renda ou na classe social são importantes para se pensar na maneira como se distribuem os diferentes grupos pela cidade, mas também aqueles que são da ordem do status (WEBER, 1966) e que dizem respeito a um estilo de morar e de viver. Esse é necessariamente o motivo do por que não se compra qualquer imóvel em qualquer lugar, do por que a propaganda publicitária é tão importante e valorizada pelas empresas imobiliárias para “vender” um estilo de morar ou do por que os financiamentos de imóveis tem cada vez mais importância como possibilitadores da aquisição de um bem material muitas vezes com preço superior às posses do comprador e em certos casos de um padrão de moradia que em um primeiro momento pode encontrar pouca correspondência com as demais práticas daquele sujeito. O CASO DO JARDIM ICARAÍ O recorte empírico da pesquisa que deu origem a esse artigo centra-se na realização de um estudo de caso do “bairro” Jardim Icaraí na cidade de Niterói e dos seus moradores que optam por morar nos novos empreendimentos ofertados na região que passa por um processo de expansão vertical e de consequente remodelação urbana1. Inicialmente duas características, uma em relação ao bairro e outra em relação aos prédios, podem ser destacadas como interessantes para a análise desse caso: 1) O Jardim Icaraí não possui institucionalmente uma classificação políticoadministrativa como bairro da cidade de Niterói; 2) Os novos empreendimentos residenciais multifamiliares dispõem de características arquitetônicas de alto padrão e de áreas de lazer comum com diversidade de equipamentos, ambas com forte apelo publicitário ao que pode ser descrito 1 Minha entrada em campo se deu na segunda metade do ano de 2010, momento no qual era possível perceber com nítida clareza que o “bairro” passava por um processo de modificação dos tipos de construções que o caracterizavam. Tendo como referência o ano de 2012, pode-se inferir, a partir da avaliação feita pelos corretores de imóveis entrevistados, que esse processo teve início no período entre 5 e 8 anos atrás. 230 suscintamente como um “estilo de vida privilegiado no melhor que o bairro pode oferecer”. Tendo como questão principal o porquê de essas pessoas quererem morar nesse “bairro” e nesses prédios, tomam-se as duas características mencionadas para avaliar em que medida estão relacionadas ao modo como operam os mecanismos de classificação social a partir do critério residencial, que conjuga aspectos materiais e simbólicos. Coloca-se então a pergunta sobre que pessoas são essas que residem nesses locais e de que maneira elas se relacionam com esses espaços, ressignificando-os. Resta, portanto, a questão sobre quais são os fatores que compõem o processo de identificação desse grupo, que inicialmente pode ser caracterizado como pertencente à classe média, o que por sua vez implica um estilo de vida e um padrão estético2. Ambos se rebatem em uma moradia e em um bairro, ou seja, em um espaço tanto físico quanto social, dimensões essas priorizadas na análise. Por isso, a hipótese que guiou a pesquisa gira em torno da ideia de que a localização de um grupo em determinada porção do território da cidade se relaciona com o desenvolvimento de um estilo de vida específico e que, portanto, há uma forte correlação entre mobilidade espacial e mobilidade social ou entre as estruturas do espaço físico e as estruturas do espaço social (BOURDIEU, 1997). Em suma, buscamos ressaltar que o local de moradia aparece como um forte indicador do lugar social ocupado por esse grupo. A VIDA SOCIAL DO “BAIRRO” EM PERSPECTIVA O processo de expansão imobiliária pelo qual passa o Jardim Icaraí se dá de tal forma que, de maneira acentuada e rápida, antigas casas, geralmente térreas, e pequenos prédios de até cinco andares cedem lugar a prédios que contam com mais de dez andares, inclusive com coberturas, e que abrigam cada um em torno de cem famílias. Trata-se de um processo tão marcante que em praticamente todas as ruas do bairro é possível encontrar um ou mais desses lançamentos imobiliários. Essa modificação dos padrões habitacionais, que passa pela demolição dessas casas e pequenos prédios, ultrapassa o desfazer de abrigos, significando a derrubada de um modo de vida para o consequente estabelecimento de outro em seu lugar que altera o cotidiano do bairro. Além disso, no caso do Jardim Icaraí vale destacar que tal expansão coincide com a 2 A definição de classes e também da própria classe média é bastante discutida no âmbito da sociologia e da economia, mas é também relativamente imprecisa e questionável sob alguns aspectos. Particularmente nos estudos sobre a classe média a denominação que mais se popularizou para caracterizá-la foi a de “White Collars”. Para algumas referências sobre o assunto ver Stuart Mills e Anthony Giddens. 231 indefinição da sua delimitação física, o que em geral parece ser recorrente nas áreas urbanas que são alvo da especulação imobiliária3. Digno de nota, entretanto, é o fato de que falta ao Jardim Icaraí uma classificação político-administrativa de bairro4, o que, por sua vez, faz dele um exemplo emblemático de que a definição de qualquer espaço territorial como bairro não se esgota em uma classificação desse tipo5. Desse modo, resta uma indagação: até que ponto aspectos como “convivialidade” e identificação com elementos comuns podem ser geradores da noção de bairro, mesmo que não haja aí uma definição normatizada? Diante desse aspecto, parece configurar-se uma defasagem entre o que é vivido no cotidiano da cidade e aquilo que está estabelecido pelos órgãos que regem o espaço urbano. Isso porque o que ocorre no Jardim Icaraí, apesar dessa ausência de limites institucionalizados, é que há em torno de 20 ruas que podem ser apontadas como componentes desse espaço.6 O que atualmente é conhecido como Jardim Icaraí é na verdade o resultado de um entrelaçamento das ruas que “antes” delimitavam os bairros vizinhos de Icaraí e Santa Rosa ou em algumas versões o que originalmente era um pedaço apenas de Santa Rosa7. Trata-se, sobretudo da ressignificação prática desse espaço urbano pelos diversos agentes que nele atuam, pois “o bairro define-se através do vivido e do agir social, consolidando-se a partir da sua história. O bairro é, pois, polissêmico e não rigorosamente delimitável” (GONÇALVES, 1988, p. 30). Sob essa perspectiva é possível pensar o bairro em termos de uma dupla existência: concreta-objetiva e subjetiva-intersubjetiva (RAMOS, 2002, p.67). Isso quer dizer que 3 Como exemplo de um processo semelhante, vale observar o caso da Barra da Tijuca na Zona Oeste do Rio de Janeiro que se “expande” para o bairro vizinho de Jacarepaguá principalmente. 4 O que é admitido no âmbito da Secretaria de Urbanismo da cidade de Niterói é que o local pode ser caracterizado como um loteamento, mas não como um bairro. Outras denominações recorrentes são a de “sub-bairro” e “invenção imobiliária”. Não há menção ao Jardim Icaraí no orçamento da prefeitura para o ano de 2012, o que poderia ser um indicativo do seu estatuto institucional de bairro. Por outro lado, alguns moradores entrevistados relataram que o nome Jardim Icaraí consta no carnê de IPTU, o que é alvo de muitas queixas entre eles por acreditarem pagar um imposto mais caro por esse motivo. 5 É claro, no entanto, que uma classificação nesses termos pode certamente reforçar esse estatuto de bairro. 6 Essa estimativa foi feita tendo como base os relatos dos moradores e também a existência de empreendimentos imobiliários ou estabelecimentos comerciais cujos nomes fizessem referência ao Jardim Icaraí. 7 Digo “antes” porque no levantamento dos processos de licitação para a construção de edifícios residenciais multifamiliares com entrada no sistema de protocolo e também com processos aprovados no período de 01/01/2006 até 13/09/2010, requerido à Secretaria de Urbanismo de Niterói e cuja classificação se dá em função dos bairros onde serão construídos, não há menção ao Jardim Icaraí, mas sempre à Icaraí e à Santa Rosa como sendo os bairros atuais. Esse foi, aliás, o motivo da inviabilização do trabalho de pesquisa com os dados fornecidos pela Secretaria. Ainda segundo o arquiteto Cornélio Mello, em nota publicada na revista “O Flu” de 6 de novembro de 2011, o que vem sendo chamado de Jardim Icaraí é uma parte do bairro de Santa Rosa que tem esse nome desde os anos 1940. A questão é que somente em período mais recente esta denominação está se convertendo em domínio público. 232 devemos apreendê-lo tanto em termos do espaço material que é constantemente construído pelos mais diversos agentes, quanto a partir dos critérios intersubjetivos e simbólicos desses agentes que nele vivem ou atuam e que o aceitam e legitimam como bairro. A dinâmica das suas ruas, o caráter das suas construções, as atividades que abriga, o tipo de sociabilidade que engendra, as representações que comporta, os processos de identificação que estabelece, enfim, os mais diversos fatores combinados permitem afirmar a existência social do Jardim Icaraí em um espaço próprio. Apesar das dificuldades classificatórias dos meus interlocutores em relação às regiões fronteiriças do bairro, há certo consenso que gira em torno da afirmação de que “todas as ruas daquela meiuca” fazem parte do Jardim Icaraí, tendo a Av. Gov. Roberto Silveira como principal marco delimitador em relação ao bairro vizinho de Icaraí e a Rua Santa Rosa quando se trata do bairro vizinho de Santa Rosa8. Sendo contíguo aos bairros de Icaraí e Santa Rosa, o Jardim Icaraí toma uma posição na qual aspectos que o aproximem de Santa Rosa são renegados, enquanto aqueles que o aproximam de Icaraí são evidenciados, além de serem enaltecidas algumas características que Icaraí já teria deixado de possuir por conta da expansão em fase mais avançada, como o trânsito menos intenso. Assim, a proximidade com o bairro de Icaraí é tida como positiva, enquanto acontece o contrário quando se trata de Santa Rosa. O próprio nome “Jardim Icaraí” já permite tornar esse aspecto mais evidente, ainda que o Jardim Icaraí não possa ser considerado uma cópia ou uma negação nem de um nem de outro. Nesse par de oposições, o bairro de Icaraí, que goza de uma tradicional valorização junto à classe média alta, sempre é citado pelos moradores como um bairro mais nobre, mais bem servido e símbolo de prosperidade e “agito”, sendo destacados em relação a ele tipos específicos de locais como praia, teatro, parque, estádio e polo gastronômico. Já quando a referência é Santa Rosa, elementos como “favelas” e escassez ou pior qualidade dos serviços são mencionados. Os moradores atribuem também às ruas o papel de referência de bons e maus lugares ou de um emblema de um modo de vida com o qual se busca compatibilidade ou afastamento.9 Longe de serem apenas vias de circulação, as “ruas são um ‘microcosmo real’ 8 Essas ruas-limite sofrem questionamentos quanto ao seu pertencimento ao Jardim Icaraí, apesar de haver uma argumentação no sentido de que um de seus lados pertença ao bairro. Outras denominações, também imprecisas, são evocadas para tentar definir o que seria outra localidade que se prolonga em direção ao bairro de Santa Rosa: o “Recanto Icaraí” ou o “Recanto Santa Rosa”. 9 As alusões dos meus interlocutores à rua da praia de Icaraí e à Rua Cel. Moreira César, ambas em Icaraí, eram constantes e servem de referencial para o estilo de vida que é valorado positivamente pelos moradores do Jardim Icaraí em relação ao bairro vizinho. A menção desses locais se dava principalmente quando havia o 233 de espaços e relações que tem a ver com repouso e movimento, com dentro e fora, com intimidade e exposição e assim por diante. Que servem para referenciar bons e maus lugares” (JACOBS, 2003 apud SANTOS & VOGUEL, 1981, p.24). No mesmo sentido, como assinala Jacobs (2003), ruas são também “cenários de um complexo balé de calçada” onde a vida social se apresenta o tempo todo em sua complexidade. Isso demostra a importância de compreender como se dá a construção do espaço do bairro na relação com a própria dinâmica da cidade compreendida em sentido mais amplo, que engloba os demais bairros. A partir dessa constatação, podemos supor que há uma hierarquia de bairros na cidade (VELHO, 1973), através da qual os atores sociais percebem e situam a si e aos outros no espaço urbano e também social, levando em conta a ideia de que um deslocamento espacial pode muitas vezes sugerir uma “melhora de vida” e um ganho de prestígio, sendo o contrário também verdadeiro. Dentre as características do Jardim Icaraí mais destacadas nas entrevistas estão a grande oferta de serviços e a possibilidade de realizar as atividades cotidianas a pé, além da preservação de certa tranquilidade. Interessante é notar como essas características tem relação com o próprio processo de expansão do Jardim Icaraí, no qual esses moradores estão inseridos. Isso porque uma vez que a expansão residencial se consolida, traz consigo a maior oferta de serviços, pois desperta o interesse de mais investidores. E é isso que precisamente facilita os deslocamentos a pé no dia-a-dia. Por outro lado, a garantia da tranquilidade com número menor de prédios e trânsito menos intenso é ameaçada justamente pelo movimento de expansão pelo qual o bairro passa e para o qual esses mesmos moradores contribuem. O que percebemos é que os moradores explícita ou implicitamente relatam uma melhora na qualidade de vida ou o desejo de permanecerem desfrutando de todas as facilidades que o Jardim Icaraí oferece ou até mesmo mostram o desejo de atingir um status superior. Porém, essa característica não deve ser pensada em termos socialmente homogeneizadores, pois quando se analisam os bairros de origem desses moradores em suas diferentes configurações socioculturais e também a própria construção da imagem do indivíduo na relação com o espaço que habita, é possível perceber a variação dos juízos de valor. Pessoas oriundas de regiões da cidade que gozam de menor prestígio social são as que mais relatam essa mudança de estilo de vida, se referindo a caminhadas pelo bairro ou até a questionamento acerca das carências do Jardim Icaraí: “aqui é bem servido das necessidades básicas como padaria e farmácia, mas não tem tantas lojas de presentes como na Moreira César, que é um shopping a céu aberto” ou então “daqui eu só sairia se fosse pra morar de frente pro mar, porque você chega da janela e olha dali e é muito bonito!”. 234 praia, bem como ao fato de frequentarem o polo gastronômico local que vem se expandindo e se tornando referência na cidade. Nas palavras do antigo morador do Barreto: “aqui as pessoas não bebem em bar, bebem em restaurante!” Por outro lado, aquelas pessoas que saem, por exemplo, de Icaraí, região com status superior, muito frequentemente expressam o desejo de retornar ao bairro de origem, apesar de relatarem gostar do Jardim Icaraí, ou mesmo lamentam por não terem tido recursos para lá permanecerem, sentindo falta da “confusão” com a qual estavam habituadas. Na percepção da dinâmica local, é notável a vitalidade e diversidade que caracterizam o Jardim Icaraí, principalmente quando se trata do trânsito intenso de pedestres em diferentes horários e da multiplicação da oferta de serviços como lojas de roupas, salões de beleza, farmácias, inclusive de manipulação, cursos de línguas estrangeiras, clínicas médicas, etc.10 Também os diferentes tipos de construção que variam em função da idade e do estado de conservação, permitem analisar essa configuração do bairro à luz dos quatro fatores ressaltados por Jacobs como indispensáveis para a geração da diversidade urbana, quais sejam: a multiplicidade de usos primários garantindo que diferentes pessoas sejam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura em horários diferentes, a necessidade de quadras pequenas, a mistura de edifícios de idades e estados de conservação variados e certa densidade, inclusive residencial (JACOBS, 2003, p.165). Mesmo atestando que o Jardim Icaraí atende relativamente bem a essas condições, a excessiva valorização da terra do bairro pode vir a se configurar como um fator de risco para tal diversidade, já que tem o poder de expulsar muitos ramos de atividades e consequentemente muitas pessoas da região. Apesar disso, certa homogeneidade pode contribuir para a criação de algumas identificações comuns entre os moradores, reforçando o sentimento de pertença ao bairro e a identificação com ele. Isso não quer dizer, no entanto, que seja criada aí uma identidade comum, visto que as trajetórias e mesmo as identificações de cada ator social são muito diversas entre si e também em relação às dos outros. A DISTINÇÃO DE UM GRUPO A PARTIR DOS IMÓVEIS RESIDENCIAIS A proposta de incidir na análise das dinâmicas que organizam a vida socioespacial do bairro Jardim Icaraí encontra seu complemento justamente no modo de vida específico que é 10 Possíveis carências que possam ser sentidas são facilmente suprimidas pela proximidade com outros bairros e pelo fato de haver diversas linhas de ônibus cruzando as ruas, levando em direção a quase todas as regiões de Niterói e até mesmo ao município vizinho do Rio de Janeiro. Além disso, as quadras são pequenas, havendo muitas esquinas para dobrar, o que favorece os deslocamentos a pé e a possibilidade de cruzar com conhecidos. 235 ofertado através dos novos empreendimentos do mercado imobiliário aos indivíduos que ali desejam se estabelecer. Os “condomínios verticais” que surgem na Zona Sul da cidade fazem com que os bairros dessa região, principalmente Icaraí, Jardim Icaraí e Santa Rosa liderem a lista dos que mais recebem esses empreendimentos11. Nesses lançamentos imobiliários são recorrentes certas características como a imagem de modernidade e sofisticação pressuposta pela arquitetura dos prédios, por sua vez altamente valorizada pelos moradores. Eles demonstram orgulho ao se referirem à fachada ou ao “visual” do prédio: “olha que bonito, não é para ficar de peito estufado?” ou ainda, “o que me chamou a atenção aqui foi o visual do prédio, tem um ‘tchan’, eles usam aqueles vidros verdes...”. E novamente podem mesmo falar com orgulho de uma portaria climatizada na qual se observa uma mesa redonda com um lustre por cima “igualzinho no projeto”. Outros elementos que se repetem nesses projetos são a venda dos apartamentos na planta, a presença de varanda e pelo menos uma vaga na garagem, bem como uma suíte. Mas a principal característica que identifica esses lançamentos imobiliários certamente é a existência de uma área de lazer comum com equipamentos dos mais variados tipos e que são veiculados como um diferencial na qualidade de vida: salão de festas, espaço pizza, espaço baby/brinquedoteca, salão de jogos, espaço gourmet, lan house, piscina, spa/hidromassagem, sauna, sala de cinema, churrasqueira e espaço fitness. No equacionamento dos “atrativos do condomínio”, o usual é uma diminuição do tamanho da planta dos apartamentos em favor da possibilidade de utilização dessa área de lazer como uma extensão da própria casa. Como consequência da remodelação residencial, da substituição de antigos moradores por novos moradores com maior poder aquisitivo e da forte expansão do setor de serviços e de comércio no bairro, a propaganda publicitária dos condomínios conjuga aspectos que se referem a um estilo de vida ao mesmo tempo livre e isolado. Livre para usufruir das comodidades do setor de serviços e comércio do bairro e isolado para poder permanecer nos espaços privativos das áreas de lazer sem a necessidade do deslocamento e da exposição à insegurança das ruas para atividades como ginástica, reunião com amigos, etc. O processo de renovação urbana do Jardim Icaraí pode ser entendido então como uma espécie de gentrification ou “enobrecimento” do local a partir da reabilitação do estoque arquitetônico e também da presença de novas construções (LEITE, 2004) 11 12 . Entretanto, A referência são os dados da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Niterói – ADEMI- Niterói publicados no Jornal “O Globo” de 7 de novembro de 2010. Apenas para o ano de 2010 estava previsto o lançamento de 24 empreendimentos em Icaraí, 16 no Jardim Icaraí e 7 em Santa Rosa. 12 As construções novas são maciçamente representadas pelos empreendimentos residenciais. Mas no que diz respeito aos estabelecimentos comerciais e de serviços, há um duplo movimento que engloba construções 236 distancia-se da noção de “higienização social”, pressuposta na transformação de uma zona popular degradada em região nobre e que por vezes é associada ao termo, já que este não é o caso do Jardim Icaraí. O que ocorre no bairro parece estar mais próximo do que seria um processo de especulação imobiliária, mas que ao mesmo tempo está orientado pela perspectiva de um “enobrecimento” do local e que conta com o aval de estratégias políticas que liberam a construção de prédios de maior porte no local e também de estratégias empresariais que deslocam seu capital de investimento para a área. Segundo Leite, “as práticas de gentrification apostam na singularidade e diferenciação dos atos de consumo” (2004, p. 70). Por esse motivo argumento que existem sim marcas que distinguem os novos moradores do Jardim Icaraí e estas estão associadas a um tipo de consumo de bens – os apartamentos – e de estilo de vida, que permitem a apropriação diferenciada do local. São duas dimensões complementares do consumo presentes nesse contexto: a material ou econômica, que garante o acesso aos produtos e serviços disponíveis no mercado em razão de possibilidades financeiras e a simbólica, que enquanto prática social diferencia gostos e estilos de vida (id, p. 66). As motivações em termos mercadológicos e simbólicos para a compra desses apartamentos nessa área específica da cidade obedecem a uma lógica de ocupação do território urbano que tende a uma “aproximação dos semelhantes”, no caso aqui analisado, indivíduos das camadas médias.13 Isso contribui para a formação de “paisagens de poder” que são as expressões visuais de valores e visões de mundo de uma camada social que busca apropriar-se de certos espaços da cidade (ZUKIN, 2000 apud LEITE, 2004, p. 63). Particularmente no que diz respeito à disposição de recursos financeiros que permitam a compra do apartamento desejado, os indivíduos tem inúmeras maneiras de lidar com a situação de se por em disputa no mercado e de pretender um estilo de vida. Partindo de uma representação inicial do lugar e do tipo de prédio que desejam, vão literalmente “jogando com a situação” e ajustando ininterruptamente o que encontram – e que está dado - ao que almejam. São muitos os elementos que justificam a decisão pela compra do apartamento e que 13 novas e a reabilitação de construções antigas para abrigar consultórios médicos, lojas de roupas, salões de beleza, etc. O termo “camadas médias” é utilizado aqui como sinônimo de “classe média” e se refere aos grupos que, dentre outras coisas, detêm um nível de renda relativamente alto que lhes permite disputar no mercado imobiliário a compra de imóveis nessa área valorizada da cidade. O preço dos apartamentos de dois quartos no segundo semestre de 2010 oscilava em torno de R$250.000, 00 dependendo da rua em que se localizavam, enquanto os de três quartos ultrapassavam os R$350.000,00, ambos vendidos ainda na planta. Após a entrega das chaves ou ainda mesmo no período das obras o aumento dos preços se dá em poucos meses podendo alcançar R$400.000,00 e R$600.000,00, respectivamente. 237 revelam como esta foi possível. Primeiro há a questão de representar um investimento seguro e rentável e em outro plano, a planta do apartamento divide com as áreas de lazer comum a preferência dos entrevistados, seja por conta do tamanho ou mesmo pela presença de algum diferencial como o tamanho da cozinha ou a presença de varanda. A compra dos apartamentos na planta tem ainda um papel fundamental como elemento de diferenciação e de expressão da subjetividade do morador, que pode tanto propor mudanças no período das obras quanto “deixar do jeito que quiser” após a entrega das chaves, já que os apartamentos são entregues “sem nada, até sem lâmpada”. No que diz respeito à demanda por áreas de lazer comum nos condomínios, podemos sugerir que “a adesão aos conjuntos e condomínios, de preferência fechados e dotados de áreas de lazer comunitário” (SANTOS & VOGUEL, 1981, p. 100) se insere na busca por solucionar questões de preconceito vigente em relação às ruas. Isso devido a insegurança e impessoalidade que aparentemente as caracterizam e que parecem ameaçar principalmente as crianças e os jovens, que nas entrevistas são justamente os mais apontados como utilizadores dos equipamentos de lazer dos prédios.14 Ter acesso a essas áreas significa do mesmo modo ter o privilégio de desfrutar de uma qualidade de vida superior e também de exclusividade (id, p.101). Por outro lado, dentre as táticas empregadas pelos moradores para realizar a compra do apartamento, podemos mencionar a moradia durante um período na casa dos pais para poupar dinheiro, a opção por um apartamento novo no Jardim Icaraí em detrimento de um antigo em Icaraí ou a venda de um imóvel para possibilitar a aquisição de outro. Certo é, no entanto, que os financiamentos de parte ou do total do preço do imóvel representam um dos aspectos da dinâmica do mercado e dessas táticas dos agentes que merecem atenção especial. Isso tendo em vista que todos os entrevistados obtiveram acesso ao crédito15 para ter a possibilidade de viver no charme privilegiado de um bairro e de um condomínio, o que é indicativo das táticas de grupos que valorizam altamente o status. Por fim, podemos lançar mão dos argumentos de Michel de Certeau e de Pierre Mayol (2009) para pensar em como o sujeito é capaz de impor à ordem externa, seja ela a da cidade e do bairro ou a dos condomínios fechados e da casa, a sua lei de consumo do espaço. Jacobs (2003) já chamava atenção para essa percepção, visto que fala sempre nessa refabricação dos 14 15 Os adultos, principalmente os que trabalham fora de casa, utilizam bem menos essas áreas e quando utilizam acabam por se restringir aos equipamentos que geralmente estão presentes nos prédios mais antigos, como piscina, sauna e salão de festas. Em relação à impessoalidade das ruas, essa parece se repetir no contexto dos espaços privativos, já que a relação entre os vizinhos é geralmente distanciada. Apenas uma das entrevistadas foi capaz de fazer o pagamento à vista do imóvel, recorrendo, entretanto, ao regateio junto ao corretor de imóveis e à ajuda da mãe (que mora no imóvel) para a quitação do pagamento . 238 espaços para o uso próprio do sujeito nos seus sistemas relacionais. As pessoas no seu cotidiano empreendem seleções de todo o tipo, repletas de significado simbólico, além de “contra-usos” do espaço normatizado. Um exemplo bastante ilustrativo desse último ponto é que um dos condomínios visitados que contava com uma midiateca/lan house na sua área de lazer comum teve seu uso transformado em sala da síndica, pois como declara a moradora “aqui todo mundo tem seu computador, então não tinha necessidade”. MANEIRAS DE MORAR NA CIDADE: QUEM MORA E COMO MORA? É importante atentar para a transferência do foco de análise proposta por Michel de Certeau (2011) para pensar o deslocamento dos lugares acabados para as operações práticas dos usuários, onde “o que é” torna-se “o que se faz com”. Assim é que é possível para o homem comum nas suas práticas cotidianas se valer de táticas e astúcias sutis, em oposição às estratégias que implicam a elaboração de planos, para ressignificar aquilo que está posto. “Ele cria na cidade planejada uma cidade ‘metafórica’ ou em deslocamento (id, p. 177). No caso analisado pela pesquisa, os moradores do Jardim Icaraí nas suas decisões acerca da compra de um imóvel e das possibilidades de definição e significação do espaço do bairro, estão imbuídos de uma atividade criadora prática que põe em evidência as “maneiras de fazer” e mesmo as maneiras de se colocar como pertencente a um grupo de status ou de classe social. Buscando ressaltar exatamente essas operações e usos individuais variáveis desses usuários práticos do espaço, bem como a questão do contexto e das circunstâncias em que são exercidas essas práticas é que podemos pensar nos critérios classificatórios que incidem sobre esse grupo. De maneira imediata o que se quer evitar é recair em uma demarcação talvez um pouco rígida e homogênea de classes sociais para a caracterização desse grupo, o que poderia estar implícito no conceito de habitus de Bourdieu que pressupõe em última instância que gostos são fortemente determinados por habitus de classe16. Ao conceber também a formação de classes cujos integrantes partilham de uma trajetória média comum (OLIVEIRA, 2008, p. 4), a abordagem de Bourdieu pode apontar certo grau de repetitividade ou de previsibilidade estatística a partir da noção de que o habitus é “uma potencialidade que tende a assegurar as condições de sua própria realização” 16 Apesar da definição do habitus como sendo ao mesmo tempo uma “ação determinada e espontânea” (BOURDIEU, 2005, p.48), a sua concepção como um conceito indissociável de um processo de incorporação, seja mais ou menos aprofundada para cada um dos diferentes habitus, acaba por fazer com que as práticas recaiam mais em uma determinação por estruturas coletivas do que por motivações individuais. 239 (BOURDIEU, 2005, p.55), ainda que se trate de uma tendência de ação e não de uma determinação. Por outro lado, há que se considerar a ideia primorosa de Bourdieu de que os agentes atuam em diferentes esferas (os campos) e que se põem em disputa nelas, sendo dotados de recursos diferentes e em diferentes graus (os diferentes tipos de capital). Não há, portanto, uma igualdade de oportunidades entre os diversos agentes e é claro que isso se reflete em uma maior ou menor margem de manobra, que pode se apresentar ainda sob a forma de acesso ou restrição à mobilidade social e residencial, por exemplo, havendo aí até mesmo uma relação de correspondência entre uma e outra, como ressaltado pelo próprio Bourdieu (1997). Podemos concluir, portanto, que o conceito de classe é muito mais operatório do que propriamente revelador da maneira como se organizam os diversos grupos sociais.17 Isso porque a própria classe é heterogênea, assim como são heterogêneos os percursos e os pertencimentos de cada agente que, como afirma Certeau, seleciona o tempo todo dentro de uma ordem de possibilidades (2011, p.165). São por meio das pequenas táticas que os indivíduos se situam em um grupo, adequam seus recursos econômicos a um gosto ou estilo e se apropriam dos lugares de diferentes maneiras. Assim como assumimos que os indivíduos são o produto de multideterminações e que por isso estão inseridos em um processo que envolve múltiplos pertencimentos e identificações, podemos avaliar como isso se reflete nos sistemas classificatórios em sociedade, visto que os indivíduos se organizam em grupos. O que se tem em vista é a ideia de que esses indivíduos partilham entre si alguns pontos em comum que permitem em última instância essa própria organização de grupo, mas sempre guardando uma margem de particularidade que tem a ver com aspectos da sua trajetória, que é única. A opção de morar em um local como o Jardim Icaraí tem como fator comum entre os moradores a questão de uma adequação a um estilo de vida simbolicamente valorizado positivamente. Está implícita aí a ideia de que há práticas, gostos e consumos que são mais legítimos do que outros e aos quais se deve estar adequado, sendo esta crença proveniente da internalização de certos valores por meio do processo de socialização ao qual os indivíduos são submetidos (LAHIRE, 2006). A questão central de Lahire é que a cultura tem uma importante função social em sociedades com divisão de classes e que é a partir da configuração de processos culturalmente diferenciadores que emergem “elites” capazes de 17 O argumento de que o conceito de classe é mais operatório não quer dizer que se devem desconsiderar aspectos do caso pesquisado que tenham a ver com a dimensão do mercado e até mesmo da renda, comumente utilizados nas análises sociológicas e econômicas que tratam do assunto. 240 exercer dominação simbólica. E esse mesmo mecanismo parece figurar quando se trata de pensar no papel exercido pelo local de moradia e no sentido que este pode adquirir, pois pode tanto trazer prestígio ao seu morador quanto estigmatizá-lo. Em suma, Lahire (2006) compreende que o processo de socialização naturaliza a representação de “tipos” generalizadores ou aglutinadores, mas lembra que esses perfis não são completamente incorporados pelos indivíduos heterogêneos. Se o que cria um ponto de encontro entre os moradores do Jardim Icaraí é o compartilhamento de um mesmo endereço de bairro, as motivações mais imediatas para a compra de um apartamento nesse local podem ser variadas, dentre as quais se encontrou na pesquisa: proximidade ao trabalho, acesso às “facilidades” da vida urbana, proximidade de familiares e amigos, adequação ao preço que se podia pagar, investimento, custo-benefício (compra de um apartamento maior com preço acessível), tranquilidade e melhor qualidade de vida. Se para alguns dos moradores residir em um endereço no Jardim Icaraí significa certamente subir na escala social, para outros, antigos residentes de bairros mais nobres como Icaraí e Ingá, significa ter que descer um pouco nessa escala, mas sempre utilizando de pequenas astúcias para não permanecer tão longe do almejado. Antes se trata de pesar os benefícios e as desvantagens em relação à qualidade de vida e ao status que são oferecidos pelo bairro e também pelo tipo de prédio no qual se vai morar. Talvez pareça mais vantajoso nessas questões deixar de morar em Icaraí, por exemplo, para morar em um prédio novo e com área de lazer diversificada no Jardim Icaraí ou conseguir comprar um apartamento de três quartos no Jardim Icaraí que no Ingá só poderia ser de dois quartos devido aos preços praticados na região. Outro ponto de interesse e que permite questionar uma possível homogeneidade que pudesse ser atribuída ao grupo desses moradores do Jardim Icaraí é a sua origem e as diferentes configurações socioculturais que daí decorrem. De maneira alguma há como englobar a todos no que seria ou a classe média tradicional ou apenas a nova classe média em ascensão. Diferentes origens dentro da cidade e mesmo quanto ao local de nascimento dessas pessoas fazem com que os valores que guardam quanto à estética e ao estilo de vida do local possam variar consideravelmente. E isso mesmo que compartilhem um endereço comum. Pode-se perceber então como está presente nesses fragmentos o entendimento de que há elementos amplamente valorizados pelos praticantes daquele espaço, mas que também cada um deles tem a sua própria forma de se relacionar e estabelecer uma significação com esse espaço. Ou seja, a relação espaço-sociedade não se dá de forma homogênea, comporta sutilezas que contribuem para a própria configuração desse grupo e do seu local de residência. 241 A esfera do consumo, e aí tanto o consumo de bens quanto de lugares em sua dimensão material e principalmente simbólica, constitui campo fértil para a expressão de subjetividades e evidencia a diversidade que se pode encontrar no seio de um mesmo grupo social e não somente entre grupos sociais distintos. Fica evidente também que são diferentes as esferas nas quais os sistemas classificatórios são construídos e a análise weberiana, que compreende o espaço social a partir de três esferas de ação, a econômica, a social e a política18, lança pistas interessantes para a análise (WEBER, 1966). Levando em conta que “a estratificação por status caminha de mãos dadas com uma monopolização de bens ou oportunidades materiais e ideais” (id, p.76) por parte daqueles que desejam pertencer ao círculo social e compartilhar de suas convenções, percebemos na pesquisa que se há uma correspondência entre um estilo de vida e um grupo social, há também a conformação de uma situação de classe desse grupo em termos de uma disputa no mercado por bens altamente valorizados, os apartamentos. Em suma, as distinções pessoais de maneira alguma entram em contradição com as pretensões de aquisição puramente econômica. CONCLUSÕES Este trabalho buscou responder à pergunta sobre quais são os aspectos motivadores da decisão de morar em determinada área da cidade e não em outra. E mais ainda, do por que morar nessa área em um tipo de prédio específico. Há por trás dessas questões um mesmo plano de fundo que diz respeito à dimensão subjetiva da vida urbana e do ambiente construído. É notadamente essa dimensão que perpassa a atividade prática dos atores sociais em interação cotidiana e que merece a atenção dos pesquisadores do meio urbano. Georg Simmel (1979) já ressaltava a importância de se perceber a cidade como um espaço de experiências sensíveis, que se fazem sentir nos indivíduos por meio de estímulos tanto físicos quanto psicológicos que são, nesse ambiente, muito mais intensos e até mesmo perturbadores. A cidade como um espaço múltiplo é, para Simmel, geradora de formas de sociabilidade e de estilos de vida que se redefinem permanentemente nas interações da vida cotidiana, visto que por ser esse um ambiente de grande heterogeneidade são muito mais amplas as possibilidades de escolha de que dispõem os indivíduos que aí vivem. Assim é que para Simmel a sociedade é interação social e isso no meio urbano significa exatamente indivíduos que integram uma rede bastante heterogênea de relações e 18 A esfera política, assentada na noção de poder, não faz parte da análise empreendida nesse trabalho. 242 por isso são capazes de empreender inúmeras táticas para se mover nesse espaço. Mas a ideia principal que deve ser evidenciada é a concepção do espaço urbano como campo da experiência sentida e vivida e em permanente mutação e que, desse modo, é capaz de adquirir e transmitir significados e sentidos para os seus praticantes. Decorrem inclusive da inobservância dessa dimensão subjetiva muitos equívocos recorrentes entre os planejadores urbanos que, por muitas vezes abdicarem de uma experiência sensível da cidade, não alcançam os processos próprios da cidade vivida e fruto da interação social dos mais diversos atores sociais, apesar de serem eles mesmos integrantes dessa rede de agentes. Muitas vezes então, escapam aos planejadores e às suas categorias globalizantes a complexidade do meio urbano e as sutilezas dos processos que aí se desenrolam, como, por exemplo, a dinâmica de um bairro – e aí o que o define e que aspectos promovem a identificação com esse espaço? Em um esforço de compreensão do grupo estudado nessa pesquisa e da sua organização socioespacial, fizemos referência ao longo do texto aos mecanismos ininterruptos de ressignificação tanto do espaço habitado pelos moradores do Jardim Icaraí quanto da apresentação de si que estes fazem perante os outros, valendo destacar nesse ponto a relação de proximidade ou de afastamento que é feita com o estilo de vida dos bairros vizinhos ao Jardim Icaraí. Essas são questões que esbarram essencialmente em uma discussão do espaço como espaço construído na prática cotidiana e também em uma discussão acerca dos mecanismos de classificação social pautadas na diferenciação e no reconhecimento, que é a sua consequência mais imediata. E isso principalmente quando se trata de uma diferenciação prestigiosa, relacionada a uma maneira de morar na cidade, de onde se ressalta o estilo de vida do bairro e também aquele dos prédios, com a exclusividade das suas áreas de lazer e a beleza de suas fachadas. Nesse sentido, por diferenciação entenda-se tanto uma diferenciação via mercado, por meio da qual preços selecionam potenciais compradores, quanto uma diferenciação por status, na qual prevalece a lógica do quem mora, onde mora e principalmente como mora. O que se tem em vista aqui é, portanto, o estabelecimento de uma correlação socioespacial, através da qual podemos afirmar que um espaço físico, seja o do bairro ou o dos prédios, adquire sentido para seus moradores. Evidente que esse sentido comporta uma dimensão coletiva, mas da mesma forma também uma dimensão mais particularizada que diz respeito à trajetória e anseios de cada indivíduo. E ainda esse é um sentido que se manifesta em diferentes esferas, podendo ser inicialmente apontadas a estética, a social e a econômica. Na inter-relação entre essas esferas 243 é que é construída a configuração desse grupo, que por meio de critérios simbólicos e materiais ganha consistência como grupo mesmo, e aí se quer dizer um grupo identificável coletivamente e também formador de uma coletividade. No entanto, essa delimitação de grupo não é restritiva, ou seja, comporta uma mobilidade intrínseca que lhe fornece a sua dinâmica. Assim, o que é permanente é uma constante ultrapassagem de fronteiras, físicas e sociais. BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. Santa Catarina: Revista Política & Sociedade, n° 6, p. 15-57, abril de 2005. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/1930/1697. Acessado em 25 de março de 2012. ________________. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2008. ________________. Efeitos de lugar. In: BOURDIEU, Pierre (coord.). A miséria do mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. CERTEAU, Michel de, GIARD, Luce, MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. GONÇALVES, António Custódio. Os bairros urbanos como lugares de práticas sociais. Revista da faculdade de Letras – Geografia. I Série, volume IV, Porto, 1988, p. 15-31. 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Acessado em 08 de junho de 2012. 245 Jornal O GLOBO. Expansão imobiliária impulsiona arrecadação. Caderno Niterói, pág.11. Reportagem de Flávia Milhorance. Dados estatísticos da Associação Das Empresas do Mercado Imobiliário de Niterói – ADEMI-Niterói. Domingo, 7 de novembro de 2010. Revista O FLU. Número 139, p. 23 – Social, por Paulo Freitas. Sábado, 6 de novembro de 2011. Distribuição gratuita. PLANO URBANÍSTICO REGIONAL (PUR) DAS PRAIAS DA BAÍA. Disponível em: www.ccron.org.br/arquivos/legislacao/pla_urb_reg_praias_baia.doc. Acessado em 4 de julho de 2011. 246 O “PENSAR-DUPLO” NA URBANIDADE CUBANA Heiberle Hirsgberg Horácio1 RESUMO Este trabalho tem como lócus privilegiado de análise a “urbanidade” de Havana (capital e a maior cidade de Cuba, local de destino dos indivíduos do interior da Ilha que migram a procura de melhores condições econômicas, marcada pela combinação de religiões afro e cristãs no cotidiano popular, pela efervescência turística, pelas vicissitudes consequentes da prostituição e do tráfico de drogas, que seriam “toleradas” sem espanto, como em qualquer cidade, se não fosse pela estrutura do regime que foi estabelecido com enunciados de não aceitação dessas práticas, relacionando-as ao passado republicano pré-revolucionário). Nesta análise, busca-se uma alternativa para apreciações que observam a sociedade cubana, existente sob um regime político de governo centralizado, apenas em termos antinômicos – favoráveis ao governo ou não favoráveis. Nela, intenta-se a perspectiva do “pensar – duplo” no exame de comportamentos urbanos “habaneros”. Essa atividade vê no “pensar-duplo” (imperativo de se “existir com duas imagens de si mesmo”, sem necessariamente corresponder a uma contradição angustiante, em alguns casos uma no espaço privado e outra no espaço público) a possibilidade de apreciação dos comportamentos que convivem com um discurso governamental que explora a cultura cívica para a sua manutenção, por um lado. E por outro, com um imperativo de se responder a situações de exceção e de necessidades de ajustamento sociais, como a falta de moradia, a impossibilidade da mudança de domicílio e a dualidade monetária, que tem acarretado desigualdades num regime edificado sob o discurso de justiça social e equidade. Palavras-chaves: Cuba, urbanidade, pensar-duplo, civismo. INTRODUÇÃO Este texto é meramente um ensaio, que tem como lócus privilegiado de reflexão e análise o “pensar-duplo” na “urbanidade” de Havana2. Este empreendimento qualifica-se como ensaio porque optou apenas por indicar apontamentos que permitam investigações mais sistemáticas, uma vez que como ensaio ele 1 Doutorando PPCIR na área de Ciências Sociais da Religião – Universidade Federal de Juiz de Fora – [email protected] 2 Todas as traduções desse trabalho foram realizadas por nós. Devido a natureza deste texto, e as exigências de um texto acadêmico, mesmo nos moldes de um ensaio, ao longo dele estão inseridas várias notas explicativas. Mesmo sabendo dos riscos de uma leitura cansativa, optamos pelos riscos às lacunas de informação. 247 não cumpre perfeitamente esta tarefa. Além disso, os autores nele utilizados foram encarados como inspirações devido aos seus valores hermenêuticos, e não apreciados como aportes teórico-metodológico no sentido stricto. Bem como as fontes aqui empregadas, que foram utilizadas com o intuito prioritário de ilustrar as premissas das perspectivas assumidas no trabalho. No entanto, mesmo que consideremos que tal empresa seria melhor conduzida se feita nos moldes de um trabalho acadêmico, a relevância dela se dá pela urgência do momento, haja vista as mudanças significativas que ocorrem na sociedade cubana, sobretudo em Havana. Capital e a maior cidade de Cuba, local de destino dos indivíduos do interior da Ilha que migram a procura de melhores condições econômicas, marcada pela combinação de religiões afro e cristãs no cotidiano popular, pela efervescência turística, pelas vicissitudes consequentes da prostituição e do tráfico de drogas, que seriam “toleradas” sem espanto, como em muitas cidades latino-americanas, se não fosse pela estrutura do regime. Já que ele foi estabelecido com enunciados de não aceitação dessas práticas, relacionando-as ao passado republicano pré-revolucionário. Assim sendo, diante dessa dinâmica mencionada, faz-se mister no mínimo reflexões, mesmo no limite de um ensaio, sobre a mencionada peculiar cidade e seus componentes. Importante demarcarmos que se busca também uma alternativa para apreciações que observam a sociedade cubana, existente sob um regime político de governo centralizado, apenas em termos antinômicos – favoráveis ao governo ou não favoráveis. Neste empreendimento, como anunciado no título, intenta-se a perspectiva da reflexão sobre o “pensar – duplo” no exame de comportamentos urbanos “habaneros”. Onde, pelo “pensar-duplo”, observa-se a possibilidade de apreciação dos comportamentos que convivem com um discurso governamental que explora a cultura cívica para a sua manutenção, por um lado. E por outro, com um imperativo de se responder a situações de exceção e de necessidades de ajustamento sociais, como a falta de moradia, a impossibilidade da mudança de domicílio e a dualidade monetária, que tem acarretado desigualdades num regime edificado sobre o discurso de justiça social e equidade. A PERSPECTIVA DO “PENSAR-DUPLO” A possibilidade de utilização da perspectiva do “pensar-duplo” como uma espécie de categoria de análise para reflexões sobre o caso cubano, foi aberta, especialmente, após a leitura dos escritos do historiador francês Pierre Laborie, no artigo Os franceses do pensar - 248 duplo. Ao ponto de vista aberto por esse artigo3, adicionamos a tese do complexo duplo de valores em Cuba defendida pela pesquisadora da FLACSO, a professora Velia Cecilia Bobes. Sobre o “conceito” desenvolvido por Laborie, vale a pena lembrar que o mesmo o utiliza para analisar a difícil dinâmica do “verdadeiro sentido das escolhas coletivas” na França de Vichy e da Ocupação4. Laborie busca uma alternativa a visão antinômica colocada em vários estudos sobre esse período. Para ele, as alternativas simples entre petanismo e gaullismo, resistência e vichismo ou resistência e colaboração fornecem apenas imagens redutoras da vivência dos contemporâneos. Sabe-se assim que uma maioria de franceses chorou a derrota sem deixar desejar o armistício, que foram capazes de aplaudir fervorosamente o marechal Pétain enquanto rejeitavam o regime de Vichy, que conseguiram ser irredutivelmente hostis ao ocupante sem por isso se tornarem resistentes ou ainda que alguns foram capazes de contribuir na salvação dos judeus enquanto mantinham uma lealdade ao chefe de Estado. (LABORIE, 2010, p. 38). Deste modo, Laborie vê a ambivalência como ocupante de um lugar “preponderante nas atitudes dos franceses sob Vichy”, sendo ela, “um dos espelhos menos deformantes para dar conta da plasticidade das situações attentistes e de suas aparentes contradições” (LABORIE, 2010, p. 38). Sobre o “duplo-pensar”, a definição dele diz respeito ao imperativo de se “existir com duas imagens de si mesmo”, sem necessariamente corresponder a uma contradição angustiante. Formando, uma espécie de “cultura do duplo”, onde no caso supracitado: A imagem dos franceses trazendo em si mesmos sentimentos opostos, mais partilhados entre dois impulsos contraditórios do que separados em campos hostis, não pode ser reduzida unicamente à expressão da duplicidade. Ela remete à ideia do homem duplo, daquele que é um e outro ao mesmo tempo, mais pelo peso da necessidade exterior do que por cálculo cínico ou interesse (LABORIE, 2010, p. 40). Desse modo, é por essa “cultura do duplo” (onde “sem pertencer à consciência clara, e sem tampouco ser vivida como uma contradição dilacerante, mais como uma forma de aculturação, a ideia do duplo ritma as formas do pensamento ordinário (...) (LABORIE, 2010, 3 Embora sedutora a associação do caso cubano e do “pensar-duplo” ao termo “duplipensar” desenvolvido na ficção criada pelo autor George Orwell no livro 1984. A diferença fundamental entre os dois conceitos está relacionada ao fato de que na obra de Orwell o duplipensar é uma espécie de mecanismo produzido pelo “regime-partido” para “controlar, manipular” os indivíduos. Já o “pensar-duplo” do autor francês por nós adotado, está mais próximo de uma solução criada pelos próprios indivíduos para dar conta das situações extremas impostas por necessidades exteriores. Sobre o conceito de Orwell, ele pode ser definido como: “Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; portanto sabe que está aplicando um truque na realidade: mas pelo exercício do duplipensar ele se convence também de que a realidade não está sendo violada. O processo tem de ser consciente, mas também deve ser inconsciente, ou provocaria uma sensação de falsidade e, portanto, de culpa”. (ORWELL, 2005, p. 206). 4 Regime de Vichy foi como ficou conhecido o regime instaurado em parte da França entre 1940 a 1944, após um acordo com os alemães que tinham ocupado uma parcela da França. Considerado por alguns estudiosos como um governo fantoche dos alemães, liderado por Pétain. Para informações mais precisas consultar bibliografia especializada. 249 p. 40) que nos enveredamos para pensar o caso cubano, juntamente com a tese de Cecilia Bobes, que servirá ora como fundamento da proposta do “pensar-duplo”, ora como fonte para pensarmos esse conceito. VELIA CECILIA BOBES E O COMPLEXO DUPLO DE VALORES EM CUBA Está nossa análise parte de uma perspectiva que observa que existe em Cuba um regime que implementou uma narrativa institucional que explora uma cultura cívica para a sua manutenção. Este regime observa o socialismo5 como única opção econômica possível, que articula seu discurso em busca de “consenso e/ou consentimento” em torno do imaginário nacionalista (RAMONET, 2006) e da pátria revolucionária em construção, bem como a ideia da ameaça de agressão externa (fundamentalmente norte-americana)6 (BURCHARDT, 1998) e na legitimação através de uma noção de justiça social definida em termos de igualdade econômica7 (BOBES, 2010, p. 520). Para a pesquisadora Velia Cecília Bobes: além dos mecanismos de repressão e controle, a permanência e imutabilidade do regime cubano tem descansado e repousa na efetividade de seus mecanismos de legitimação, que em sua dimensão simbólica tem contribuído para legitimar uma ordem política autoritária, centralizada, e verticalista que tem conduzido a opacidade, quando não a oclusão, da autonomia social (BOBES, 2010, p. 521). Em Cuba, na implementação dessa estrutura discursivo-simbólica levada a cabo pelo governo, o mesmo lança mão de um sistema educacional público centralizado, praticamente exclusivo, com programas e planos bem definidos e gerenciados. Lança mão também de uma estrutura midiática uniforme, porque controlada, e igualmente centralizada. 5 Em uma etnográfica do ritual político que desenvolvemos no 26 de julho (2011) cubano em Ciego de Ávila, essas foram as palavras ditas ao final do discurso de José Ramón Machado Ventura segundo secretário do comitê central do Partido e primeiro vice-presidente dos conselhos de estado e ministros: “Não variará jamais nossa decisão de defender e construir o socialismo”. Para Hans-Jürgen Burchardt: “No princípio, o socialismo cubano mescla a pronunciada pretensão social do Estado, com uma doutrina estatal leninista. Esta mescla se legitima como o imperativo de defender a soberania nacional. Por conseguinte, ‘unidade social’ e ‘independência nacional’ podem resumir-se com o conceito geral de ‘unidade nacional’. Considero que este é o fator de estabilidade mais importante e terceiro elemento estrutural endógeno do processo de reformas. Daí que concluímos que segundo o regime cubano atual deve entender-se muito mais como ‘nacionalista radial do que como ‘socialista ortodoxo’. (BURCHARDT, 1998, p. 39). Concordamos com o posicionamento do estudioso alemão, pelo menos no que diz respeito ao discurso estatal que vem sendo enfatizado pelo PCC. 6 “Uns crêem que a agressão dos E.U.A. estabiliza o sistema político de Cuba apoiado sobre um nacionalismo generalizado. Para outros existe o convencimento de que justamente a pressão norte-americana impede uma abertura ampla e, ademais, exacerba um conservadorismo estrutural inimigo das reformas: ‘Não pode se esperar uma distensão na política interna de uma sociedade submetida a tensões extremas’. Então, se analisam deste ponto de vista os efeitos concretos da política norte-americana diante Cuba, há que considerar o bloqueio norteamericano como um segundo elemento estrutural exógeno de mudança.” (BURCHARDT, 1998, p. 28). 7 Para Velia Cecilia Bobes, “o modelo de cidadania vigente em Cuba desde 1959, se erige a partir de um ideal de justiça social definido em termos de igualdade econômica (excluindo as dimensões política e civil), que induz a um modelo de governo autoritário (...) O trabalho de Bobes, “parte de uma compreensão de justiça social que não se reduz aos critérios de distribuição de bens e recursos, sim que deve incluir a equidade e a pluralidade de interesses e preferências sociais.” (BOBES, 2010, p. 520). 250 Além disso, o regime se beneficia de um conjunto de liturgias e ritos público-político exclusivos do Estado que reforçam o discurso igualitarista, conforme supramencionamos, bem como da existência de “organizações sociais estatais”. Onde, ambas instituições mencionadas, com “objetivos semelhantes contribuem a uma socialização homogênea que favorece o desenvolvimento de aspirações e expectativas similares em uma mesma geração.” (BOBES, 2000, p. 194). No entanto, de acordo com as premissas por nós defendidas no início desse trabalho, mesmo a permanência desses mecanismos e a existência de valores coletivistas, não implica na geração de um consenso uníssono. Somos do parecer que “confirma a ideia de que na sociedade cubana tem existido sempre um repertório simbólico que contém valores de diversas naturezas, e que a quimera de homogeneizá-lo e impor um só de seus complexos no máximo alcançou alguns espaços e em um período breve” (BOBES, 2000, p. 233). Atualmente, para Velia Cecilia Bobes, enquanto nos âmbitos institucionais o “complexo nacionalista revolucionário é ativo de maneira coativa. Nos espaços informais não institucionalizados existe uma ‘sociabilidade submersa cujas práticas atualizam o complexo individualista liberal”. (BOBES, 2000, p. 12) Deste modo, Velia Cecilia Bobes observa então a existência de Cuba de um “duplo” relacionado ao sistema de valores, sendo um coletivista e outro liberal. O “DUPLO” NO DUPLO-ESPAÇO (HABANERO) Evidentemente que precisamos delimitar os “lugares” do “duplo-pensar” de Laborie com o duplo conjunto de valores de Bobes, evitando aproximações indevidas. Haja vista que em Laborie o duplo sistema coabita as mentalidades e em vários momentos não é nem visto como duplo (ou visto apenas como duplo pelo observador externo), enquanto em Bobes, a autora aponta uma existência na sociedade de um duplo complexo de valores, onde cada qual é acionado de acordo com as circunstâncias, embora ela também observe em vários momentos da sua obra uma noção de “duplo valores” que se aproxima muito do “duplo-pensar” do autor francês. Assim sendo, se utilizamos ambas noções aqui, é porque consideramos que os dois processos podem ocorrer no cotidiano cubano8, notadamente aqui o “habanero”. 8 Para acrescentar mais uma referência de reflexão, vale mencionar Leach e o caso dos Kachim e dos Shan na Alta Birmânia, onde dependendo do espaço social que operam e do tipo de ação que executam os indivíduos usam o sistema ético Kachim ou Shan, comportamento que pode ser evidente para um observador externo, “porém para o ator esta mudança pode ser apenas notável. Ao fazer-se sofisticado, o indivíduo somente começa a incorporar valores Shan a atos rituais que antes só tinham uma significação Kachim (BOBES, 2000, p. 159). 251 Referimo-nos especialmente a Havana porque consideramos que a sua dinâmica tornaa um espaço privilegiado para a observação das transformações ocorridas em Cuba. Houve na sociedade cubana do Período Especial até agora mudanças importantes, oriundas, entre outras causas, de uma migração significativa do campo para a cidade, sobretudo para a grande Havana - proporcionalmente muito maior que outros movimentos migratórios de períodos anteriores. Embora sempre tenha existido na Ilha, após a Revolução, uma tendência de se migrar para a região de Havana. Pois, após a Revolução ocorreu uma grande migração do Oriente da Ilha para Havana – lembramos que cerca da metade da população do país se concentra, até hoje, no entorno da capital -, o que aprofundou mais a diferença entre as duas regiões9” (VILLAÇA, 2010, p. 290). Segundo Hans-Jürgen Burchardt, nos idos do Período Especial as proporções que antes eram “relativamente equilibradas entre cidade e campo cedem a disparidades cada vez maiores” (BURCHARDT, 1998). Havana, por exemplo, se torna cada vez mais atrativa para as populações rurais que procuram melhores níveis de vida. Vale lembrar que o abastecimento de alimentos também é maior na cidade, segundo pesquisas do final da década anterior, a “concentração nas cidades da oferta de viveres nos mercados agropecuários é de 80%; e 50% corresponde a cidade de Havana” (BURCHARDT, 1998, p. 73). Para Hans-Jürgen Burchardt: Uma massa importante dos campesinos da Ilha, independente das condições surgidas depois de 1959, compartilha o destino de muitos de seus análogos no ‘Terceiro Mundo’. Mediante baixos preços estatais para seus produtos, eles subvencionam indiretamente o abastecimento de viveres da população urbana, sem poder melhorar significativamente seus próprios padrões de vida. Nas cidades, pelo contrário, existem mais campos de atividades proporcionadoras de ingressos, sem olvidar que em uma grande maioria abarcam trabalhos ilegais. (BURCHARDT, 1998, p. 35). Sobre a questão da migração e as consequências que ela pode trazer para a cidade, um relato, embora de uma fonte autobiográfico-literária10, é no mínimo ilustrativo. Como é o caso 9 A autora se refere as regiões Oeste e Leste de Cuba. Segundo ela, “costumava-se dizer que a identidade cubana era comparável a uma árvore de dois ramos, um enraizado na parte Oeste da Ilha (Havana) e outro, na região leste (Santiago de Cuba). O Oeste, ou Ocidente de Cuba sempre foi mais cosmopolita, mais desenvolvido e mais diretamente influenciado pela presença espanhola e pelos Estados Unidos que o Oriente, onde se percebe mais a presença de traços culturais africanos e o legado da imigração haitiana que ocorreu no final do século XIX. (VILLAÇA, 2010, p. 290). 10 A menção da fonte como autobiográfico-literária se dá porque essa passagem foi retirada de uma obra que é considerada como a narrativa de uma vida particular, mas de um modo literário. GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Trilogia suja de Havana. A despeito da utilização de fontes literárias, como aponta o historiador José D’ Assunção Barros “o texto que se está tomando naquele momento como fonte é já aquilo que deve ser analisado, enquanto discurso de época a ser decifrado, a ser compreendido, a ser questionado. (p. 135). Para compreender a literatura como fonte de pesquisa historiográfica, Daniel Arão Reis em Stalin, Stalinismo e Sociedade (In: A construção social dos regimes autoritários.) sugere SELIGMANN-SILVA, M. História, memória e literatura. O testemunho na era das catástrofes. Campinas. Unicamp. 2003. 252 de uma mulher, comportamento comum na sociedade cubana conforme nossas leituras e pesquisas, que mudou para Havana quando: Aos dezesseis anos viu que o café é trabalho para gente grossa e morta de fome. Uma tarde tomou seu banho, vestiu roupa limpa e sem se despedir de ninguém foi para estrada e chegou a Havana. Assim sem ter a menor ideia do que poderia ser Havana. Ouvia dizer que em Havana, sim, era possível viver bem porque havia mais dinheiro (GUTIÉRREZ, 2008, p. 210). Interessante do resultado dessa situação é que essa mesma mulher não possuía moradia e superlotou, como é costume na cidade, um apartamento de um conhecido, em um prédio por sua vez também superlotado e com apenas um banheiro para todos os moradores. A pessoa, nesse caso mencionado, acabou trabalhando como prostituta. Pode-se mencionar ainda o caso do indivíduo que saiu do interior de Cuba e foi para Havana morar de favor com uma prostituta em um prédio superlotado. Como em vários outros casos por nós observados, nesse também o indivíduo acabou preso. Mas, a peculiaridade dessa prisão foi a causa: vendia no mercado negro fígado humano como fígado de porco, pois anunciara as pessoas que era açougueiro. (GUTIÉRREZ, 2008, p. 319). Em fim, é constatável que as diferenças crescentes entre cidade e campo constituem outro indício de uma regressão social em Cuba. Ademais, existem outros elementos que se pode mencionar a margem, como o aumento da prostituição, a deliquencia infantil, o incremento da mendicância assim como o aumento da corrupção e o regresso das crenças religiosas11. (BURCHARDT, 1998). Do interior para Havana chegam também, embora proibidos, alguns produtos que abastecem o mercado negro. Não são poucas as situações de indivíduos que saem de Havana e buscam no interior alguns gêneros alimentícios e procuram comercializá-los, mesmo com todos os riscos que há nessa atividade. Junta-se a essas causas de migração para a cidade, a procura por trabalho, alguns ilegais, agora relacionados ao turismo. Já que o turismo é hoje uma das maiores fontes de 11 Conquanto houvesse, sobretudo antes de 1992 quando o Estado cubano se declarava ateu, na Ilha um sistema de repressão formal e informal significativo em relação a religião. Pesquisas qualitativas indicam que “o povo cubano é um povo majoritariamente religioso [...] porém não majoritariamente católico” (Carranza, 2011) já que vive uma religiosidade sem adesão a uma instituição determinada. Onde a Igreja Católica tem “hoje alguma ressonância, porém não é uma voz definidora” (Carranza, 2011). Em que pese a afirmação acima de que a Igreja Católica não tem uma voz definidora, em uma sociedade que tem uma religiosidade tida como difusa (Calzadilla, 2000) e espontânea, de práticas não sistemáticas (Berges, 1997), pesquisas indicam que atualmente a Igreja Católica tem resgatado sua “influência institucional e, ao mesmo tempo, um lugar significativo na demografia religiosa cubana” (Alonso, 2011), comprovada pelo reconhecimento por parte do governo do seu papel de mediadora. Essas características da religiosidade cubana mencionada por Calzadilla e por Berges demonstra que a religiosidade foi um dos elementos “duplos” cubanos. Já que mesmo com impedimentos (lembrando que era proibido adentrar ao PCC no caso de alguma associação religiosa) a religiosidade cubana foi vivida no espaço privado. 253 divisas de Cuba12. Lembrando que a situação da migração para o trabalho com o turismo se alarga após a implantação da dualidade monetária em Cuba, que aumenta a possibilidade dos trabalhadores envolvidos com o dólar e o CUC (peso convertido) possuírem uma renda superior13. Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, No mercado negro, em que se vendiam as mercadorias desviadas, i.e., roubadas dos hotéis, lojas, fábricas e outros centros de produção, prática esta que se convertera em rotina, bem como no mercado oficial para turistas e estrangeiros, os preços eram cobrados em dólar ou em peso convertible, nova moeda à qual o governo cubano assegurava a paridade 1:1 com o próprio dólar (BANDEIRA, 2009, p. 654) 14. É certo que o fato de Cuba possuir hoje um forte apelo ao turismo, devido a ele ter se tornado uma fonte importante de entrada de divisas, resulta em uma procura significativa de trabalhos relacionados a essa atividade, com consequências que induzem a uma nova dinâmica na sociedade cubana. Não são poucas as pesquisas que indicam que a existência cada vez maior de “trabalhadores do turismo” tem levado a uma desigualdade de renda na sociedade cubana. Desigualdade que como já mencionamos, é oriunda da dualidade monetária, que faz com que haja uma valorização maior do peso convertido e uma busca por dólares, moedas que apenas os estrangeiros e os cubanos que trabalham com o turismo possuem15. Por isso, 12 Sobre o turismo como fonte de divisas, Luiz Bandeira menciona um exemplo esclarecedor de uma de suas possibilidades: “em outras palavras o Estado pagava ao trabalhador de um hotel, por exemplo, cerca de 120 a 125 pesos cubanos, o que equivalia a USS 4 e USS 5, mas cobrava da empresa privada, a quem cedia a mão de obra, cerca de US$ 120 a US$ 150. E, com essa diferença cambial, promovia acumulação de capital e mantinha o funcionamento do seu aparelho, já a depender, em larga medida, dos dólares do turismo” (BANDEIRA, 2009, p. 655). 13 Dentre os problemas causados pela a dualidade monetária, o posicionamento a seguir é no mínimo interessante: “Certo, o regime castrista sobreviveu. Mas o preço a pagar é pesado. O dólar é rei, que símbolo! É a primeira vitória política americana obtida após 40 anos”J. HABEL, 1999 In: THÉRET, Bruno. 2003. 14 Perguntado pelo jornalista Ignacio Ramonet como se explicaria as corrupções em Cuba e as desigualdades econômicas que elas estavam causando, Fidel Castro respondeu: (...) “havia quem ganhasse, em um mês, quarenta ou cinqüenta vezes o que ganham nossos médicos que estão nas montanhas da Guatemala ou em outros lugares distantes da África (...) E esses médicos ganham 5, 10 por cento do que ganha um ladrãozinho que vende gasolina a novos ricos, que desvia toneladas de recursos de portos em caminhões; que rouba nas lojas em divisas; que rouba em um hotel cinco-estrelas, na melhor das hipóteses trocando a garrafinha de rum por uma que trouxe, pondo-a no lugar da outra e recebendo todas as divisas pela venda das doses, que podem ter saído de uma garrafa de rum de qualidade inferior. Quantas formas de roubo há neste país?” (RAMONET, 2006, p.519). 15 Lógico que essa disparidade surgida é consequencia não só do dinheiro do turismo, mas também da inserção de divisas de exilados, que também tem causado desigualdades sociais em uma sociedade edificada sobre o discurso da igualdade. Para Burchardt: “Aqui se origina a primeira fonte de desigualdade social. Com a generalização do setor informal, “cuentapropista” e a existência da ilegalidade, muitas rendas deixam de depender de critérios sociais ou de rendimentos específicos. As transferências monetárias estatais se desvalorizam através da inflação, assim como os salários perdem sua antiga função como homegeneizadores sociais. O padrão de vida, pelo contrário, depende muito mais de redes, atividades privilegiadas como o turismo, ilegalidades, etc. Isto traz como consequencia uma estratificação clandestina e assimétrica das rendas. (BURCHARDT, 1998, p. 32). É importante destacar que essa análise é do final da década de 90, e que hoje o Partido Comunista Cubano, após constatação de tais problemas, iniciou um processo de ratificação e reformas econômicas a fim de resolver tais questões. Os resultados dessas mudanças ainda carecem de análises 254 Os trabalhadores por conta própria, donos de pequenos restaurantes, camponeses individuais, prostitutas e atores do mercado negro são hoje em dia os cubanos que melhores níveis de vida alcançam e a diferença de seus consumos em relação aos dos trabalhadores estatais sem acesso a dólares é abismal (BOBES, 2000, p. 237). Inquietantes para o regime são os problemas surgidos relacionados ao turismo nas cidades, principalmente em Havana, como, por exemplo, reaparecimento da solicitação de gorjetas, que em alguns casos são também mendicância16. Para a pesquisadora Velia Cecilia Bobes, outro problema arrolado ao fortalecimento do turismo, é o crescimento de “maneira veloz (d)a prostituição” (BOBES, 2000, p. 228). Pois, como diria a própria filha de Fidel Castro no final dos anos 90 “La Havana se convertiera en una feliz escala sexual y Varadero en el paraíso de las venéreas (BANDEIRA, 2009, p. 652). Sobre a prostituição habanera, a fala de um jornalista estrangeiro pode ser ilustrativa: ...por sua vez, o jornalista Andres Oppnheimer registrou que, na ausência de outras formas de entretenimento, o sexo tornou-se o esporte nacional em Cuba e a prostituição não apenas se espraiou como se tornou crescentemente aberta, com o aparecimento das jineteras ao longo do Malecón e de outras avenidas. (BANDEIRA, 2009, p. 652) Além da prostituição, na medida em que aumentam os ganhos com o “mercado livre” e por conta própria “se incrementa também certo tipo de comércio ilícito” (BOBES, 2000, p.227). Economistas cubanos indicam que já algum tempo que a maior parte das atividades econômicas de Cuba não são “absorvidas pelo Estado sim [pelo] mercado negro. [Padilla] Estima-se que quase 40% da população economicamente ativa está envolvida em um trabalho desde tipo.” (BURCHARDT, 1998, p.72). Hans-Jürgen Burchardt expõe dados importantes sobre essa atividade e suas conseqüências, embora sejam informações apenas do início do período abrangido por nós, torna-se relevante no mínimo para esclarecimento: Dados do Centro de Estudos Demográficos CEDEM tem registrado o potencial do mercado negro em Havana. Segundo essas cifras, ‘entre 1989 e 1992, para cada trabalhador que chegou a cidade, ingressaram 29,9 pessoas inativas, predominando entre estas adultos de idade de laboral que buscavam trabalho (BURCHARDT, 1998, p.72). No entanto, embora tenha havido um crescimento do comércio de ilícitos e do mercado negro com o apogeu do turismo. Em cidades como Havana essas práticas parecem ser tão antigas quanto a revolução, sobre isso falaremos mais adiante. sistemáticas. 16 Ironicamente, no livro a Ilha da década de 70, o escritor Fernando Morais descreve, pelo menos no tocante a mendicância ou gorjeta, outro cenário “O carregador do Nacional leva as malas ao confortável apartamento e fica me olhando sorridente. Tiro do bolso moedas recebidas na troca de dinheiro e lhe ofereço. Sempre sorrindo, o homem diz apenas ‘não’. Devo estar oferecendo pouco, imagino. Tiro uma nota em peso cubano – nove cruzeiros, ao cambio da época – e entrego a ele. O carregador é obrigado a ser claro comigo: ‘ companheiro, aqui não existe mais isso. estou esperando, mas é para o senhor dizer que está satisfeito com o apartamento’ (MORAIS, p. 22). 255 E talvez nisso incida um dos casos do complexo duplo de valores habanero, já que mesmo existindo certa coerção contra esse mercado negro e um discurso moral estatal que reprova tal atividade, ela permanece existindo. Como podemos observar na fala de um indivíduo que tem como atividade buscar produtos no interior da Ilha para levar a Havana: “No julgamento me deram uma multa de dez mil pesos. Só porque me pegaram com vinte lagostas. Se eles tivessem se adiantado um dia e me surpreendido com a carne de boi, eu pegaria três ou quatro anos de cadeia” (GUTIÉRREZ, 2008, p. 135). COERÇÃO FORMAL E INFORMAL DO ESTADO, (MERCADO NEGRO) E O DUPLO O regime cubano, como já afirmamos, procura através do seu aparato litúrgicodiscursivo manter alguma coesão em torno da simbologia Estatal. Mas, ele lança mão também de uma estrutura de coerção, com sanções legais ou espontâneas (a maneira de Durkheim), para sustentar a organização centralizada do governo, que no caso cubano se confunde com a do partido único (Partido Comunista Cubano). Essas características do regime cubano fizeram com que a sociedade cubana fosse construída sobre estruturas peculiarmente repressoras. Devido a quantidade de mecanismos criados pelo regime para “assistir” ao comportamento dos indivíduos, a fim de garantir as determinações estatais17. Entre os mecanismos do regime, o “policiamento” foi um expediente ininterruptamente utilizado. No entanto, esse “policiamento” cubano possui uma singularidade importante. Em muitos dos casos é feito pelos próprios indivíduos cubanos. Já que o regime conseguiu implementar uma lógica na sociedade que a dividiu entre os cidadãos apoiadores da Revolução e os indivíduos que foram taxados pelo governo de contrarevolucionários. Sobre isso, as palavras de Reinaldo Arenas são categóricas: “vivíamos em um estado policial, e o mais prático para alguns foi virar polícia.’’ (ARENAS, 2009, p. 177). No tocante aos “cidadãos-policiais”, podemos mencionar os Comitês de Defesa da Revolução. Criado em 1960 com a função de organizar e mobilizar as “massas” que apoiavam a Revolução, essa instituição tinha como objetivo fundamental “o apoio ao governo e a canalização dos esforços e ações coletivas em função das metas definidas pelo Estado” 17 Exemplo desses mecanismos são as prisões preventivas, “que é um invento fantástico porque eles prendem você só porque pressentem que vai fazer uma coisa errada. Parece eu sabem por telepatia. E desse jeito protegem você de si mesmo”. (GUTIERREZ, 2008, p. 49). 256 (BOBES, 2000, p. 92). No entanto, acabou se destacando também pelo papel de vigilância que sempre manteve18. O CRD chegou a cooperar em algum momento, para o surgimento de uma “aura” de desconfiança e temor no seio da população. Tendo contribuído, como diz Pedro Juan Gutiérrez, para “colocar um sistema repressivo na cabeça de todo mundo”. (GUIÉRREZ, 2008, p.89). O funcionamento da coação exercida pelos Comitês e seus membros, passa pelo sistema de delação desenvolvido em razão das necessidades do governo19. Como afirmara Reinaldo Arenas - em um período distinto do estudado por nós, mas não isolado- “a delação é algo que a imensa maioria dos cubanos pratica diariamente.” (ARENAS, 2009, p. 247,258). A respeito do sistema de delação, dentro da mesma lógica acima, seguindo alguma precaução, podemos nos aludir a fala de Alina Fernandez, quando ela referindo-se a Cuba e aos motivos que a levaram a exilar-se, diz que cresceu em um país “rodeada de delatores que substituem os ordenadores da polícia com uma rede de denúncias20” (BANDEIRA, 2009, p. 620). A respeito disso, podemos observar a fala de Reinaldo Arenas: Foi uma das coisas mais horríveis que o Castrismo conseguiu: romper os laços de amizade, fazer com que desconfiássemos dos nossos melhores amigos, transformálos em informantes, em tiras. Eu já desconfiava de muitos amigos meus (ARENAS, 2009, p. 192). 18 Os Comitês de Defesa já foram mais efetivos em Cuba. Sua antiga efetividade pode ser vista em um relato da década de 70. “No nosso bairro, como em todos os outros, el Comité reina supremo. Como o nome diz, eles foram criados para defender a Revolução. Os vizinhos se ajuntaram para ajudar a patrulhar as ruas locais à noite, ficando de olho aberto para identificar qualquer pessoa estúpida o bastante para tentar plantar uma bomba ou grafitar slogans anticastristas nas paredes, coisa que acontecia de tempos em tempos depois do triunfo. Depois, os CDRs foram usados para organizar ruas inteiras de voluntários para cortar cana-de-açúcar ... Nada é feito sem o Comitê tenha metido o nariz. Por exemplo, se você quiser reclamar dos cachorros que latem no meio da noite, tem de ir a El Comité...Se você quer viajar a Havana, é conveniente verificar com o El Comité primeiro, já que vai precisar da permissão para se ausentar do trabalho e para comprar passagens de ônibus. (...) É a mesma coisa se você quiser delatar alguma coisa sobre seus vizinhos – ou seus pais. Você vai até a mulher do El Comité e lhe conta que seus pais andam dizendo coisas que não deveriam sobre Fidel; ela vai cumprir seu dever revolucionário e relatar tudo à polícia... (GARCIA, 2007, p. 124, 125,126). 19 O sistema de delação cubano se entranhou tão fortemente na sociedade que até alguns estrangeiros compreendem essa lógica. Como é o caso de um mexicano que tendo um problema de ordem pessoal, relacionado a sexo e prostitutas, com um cubano, como forma de “vingança” foi a delegacia e delatou o cubano acusando-o de ser um contra-revolucionário (GUTIERREZ, 2008, p. 72). 20 Talvez porque o regime cubano já foi baseado nas estruturas soviéticas de vigilância, talvez por mera coincidência, os relatos sobre as redes de denúncia em Cuba possuem semelhanças com os relatos sobre os soviéticos. Como nos diz B. Braczko sobre o Partido Soviético e sua relação com os membros: “Os membros vigilantes do Partido – qualidade suprema, valorizada particularmente durante o ‘grande terror’- admite ao mesmo tempo, ser objeto de uma vigilância permanente”. Sobre o “grande terror” e os delatores, diz ainda Braczko: “Durante o ‘grande terror’, o poder impõe às mulheres que se divorciem de seus maridos ‘desmascarados’ e às crianças que reneguem seus pais condenados como ‘inimigos do povo’ (Palvlik Morozov, um menino que denunciou o pai, é exaltado em canções e todas as crianças aprendem na escola sua façanha gloriosa)” (BLACZKO, 1983, p. 31,32). 257 A “cooptação” de indivíduos por parte do governo para a composição dessas instituições e comportamentos vigilantes, talvez possa nos abrir a possibilidade de refletirmos sobre a perspectiva do “duplo”. Já que as causas da associação desses indivíduos a essas instituições21 vão desde a aceitação e compreensão do discurso e da simbologia estatal, inclusive em alguns casos por até por razões práticas, até o recebimento de benesses e de privilégios dentro na estrutura governamental. Dentro do nossa ponto de vista de análise, separar tais lógicas na maneira como o indivíduo enxerga o mundo pode ser uma tarefa impraticável22, apontá-las pode ser mais fecundo. Ou seja, apontar casos que nos permitam pensar o duplo e a inserção de indivíduos nas associações governamentais. Como, por exemplo, os cidadãos do CDR que outrora conseguiam TVs por serem “bons revolucionários23” (GARCIA, 2007, p. 153), mesmo tendo esses próprios cidadãos atividades no mercado negro. No entanto, mais evidente possa ser constatar que opera em Cuba um sistema em que as pessoas necessitam de instituições para as legitimarem e a introduzirem em várias estruturas sociais. Isto é, a associação dos indivíduos às instituições governamentais serve como dispositivo para inserção dos mesmos em uma dinâmica propicia a garantir alguns privilégios e benefícios. Como o caso da blogueira cubana que diz ter sido impedida de participar de um congresso de informática porque não pertencia a nenhuma dessas instituições. A propósito, diz Yoani Sanchez24 : Muitos de nós chega a acreditar que, se não estamos debaixo do guarda-chuva de uma entidade estatal, não existimos. Na porta de um ministério ou diante da secretária de algum funcionário público, uma pergunta sempre nos recebe: E você de onde é? Não se trata de curiosidade sobre a nossa origem regional, mas sim de uma 21 A despeito do fato de indivíduos escolherem o partido por interesses, Ramonet faz a seguinte pergunta a Fidel: “Em muitos países do extinto bloco socialista, ser membro do Partido era uma maneira de obter privilégios, benefícios e favores. Fazia-se isso mais por interesse que por convicção ou espírito de sacrifício. Não é o que acontece em Cuba? [resposta de Fidel]: Este Partido não concede privilégios. Se há uma obrigação qualquer a cumprir, o primeiro que tem o dever de ir é o militante do Partido. (...) O Partido não elege os deputados, são as pessoas, repito, são todos os cidadãos que elegem os deputados. Entretanto, o Partido dirige, eu diria, de uma forma ideológica, define estratégias, mas compartilha isso com o governo do Estado, compartilha com o Parlamento da República, compartilha com as organizações de massas. É um conceito diferente do que houve em outros países socialistas, onde foi fonte de privilégios, de corrupção, e foi fonte de abuso de poder (RAMONET, 2006, p. 526). 22 A não ser por teorias como as da escolha racional. 23 Informações sobre o fato do governo cubano não conceder mais privilégios a membros do CDR, e a suposta perda de força dessa instituição em Cuba pode ser visto em Sánchez: “Montar a guarda no CDR ou rebater as críticas perdeu a graça, pois não parece que a recompensa será a doação de uma máquina de lavar, uma linha telefônica ou um rádio Portátil” (SÁNCHEZ, 2009, p. 53). 24 Sobre os relatos de Yoani Sánchez utilizados como fonte, relevante que destaquemos que a referida autora é considerada pelo governo cubano como uma contra-revolucionária financiada pelo governo norte-americano. Tendo, inclusive, o governo cubano produzido uma espécie de série televisiva (intitulada Las Razones de Cuba) onde em um “episódio” (Ciberguerra) Yoni é apontada como uma espiã norte-americana que seria paga através de premiações que seu blog tem recebido. De acordo com a narrativa, essa forma de pagamento a Yoani seria uma maneira de burlar a opinião pública e a verdadeira função da blogueira em Cuba. 258 cuidadosa investigação acerca da instituição que nos legitima25. Essa lógica da necessidade de associação a essas instituições cria então um tipo de membro figurativo. Velia Cecilia Bobes destaca que os jovens até se associam a essas instituições, mas satisfazem suas necessidades de pertença e identificação na informalidade, já que as organizações de massa “todas são oficiais, todas estão politizadas” (BOBES, 2000, p. 40). Não obstante, todos são membros das organizações, e isto se explica porque é menos custoso para eles pertencer formalmente e “alienar-se”delas que declarar o rechaço ‘ou seja, poder estar dentro, porém não participar’ (Esperanza). São ‘membros figurativos das organizações porque não se sentem identificados com elas nem representados. (BOBES, 2000, p. 240). A despeito do caráter figurativo dos membros26, muitos se associam a essas organizações em busca de benesses, vinculados a uma visão individualista e utilitária, mas acabam sendo inseridos em uma lógica do próprio partido. Formando assim um duplo, inesperado em alguns momentos até pelo próprio indivíduo. Como uma jovem participante figurativa de uma organização que em uma entrevista dizia que “pessoalmente não me ocorria (...) fazer nada que estivera contra a Revolução e que possa, sobretudo prejudicar-me a mim como pessoa” (BOBES, 2000, 241). Corroborando nossa compreensão, podemos observar as palavras de Velia Cecilia Bobes onde para ela: Neste caso parecem estar funcionando simultaneamente valores de ambos os complexos, por um lado, estar ‘contra a Revolução’ significa – do complexo nacionalista- colocar-se do lado do inimigo e contra os interesses da pátria e da nação, já que este sistema ético identifica a nação e o povo com a ordem estatal socialista; por outra, funciona o cálculo de custos e benefícios e o proveito pessoal central do outro complexo27 (BOBES, 2000, p. 241). Vale destacar ainda no caso acima da jovem participante que, em um regime nos moldes do modelo cubano, a participação política toma função de controle que “garante que 25 Segundo o depoimento de Yoani: “O resultado [da não associação aos órgãos do governo] é que, embora eu caminhe, durma, ame e até me queixe, me falta a declaração de vida que me seria dada pela filiação a um reduzido – e aborrecido- número de órgãos neogovernamentais. Na prática, sou um fantasma cívico, um nãoser, alguém que não pode mostrar diante do incisivo olhar do porteiro nem uma mínima prova de que está na engrenagem oficial (SÁNCHEZ, 2009, p. 107). 26 Sobre o caráter figurativo e a possibilidade de consentimento desses “figurantes” em relação ao regime, David Kertzer em uma pesquisa que realizou sobre a festa comunista no interior da Itália, identificou que alguns moradores da localidade das festas (como os alborenses) observam que mesmo não participando efetivamente do Partido, podem através das festas dele, “se identificar com o P.C.I. (e realmente se identificam) como são levados a fazer parte dele”. Além disso, existem casos, como o dos imigrantes presentes nessas localidades que “descobre que a identificação com os comunistas não o levará ao ostracismo em relação á comunidade, mas, ao contrário, fará com que ele se torne uma parte dela” (KERTZER, 1983, p. 7). 27 Em relação as considerações acima sobre o caso da jovem participante e o seu “duplo”, Bobes explica: “Neste sentido é que penso que ambos os complexos de amalgamam e começam a interpenetrar na medida em que se iniciam a perda da diferenciação radical dos espaços formais e informais” (BOBES, 2000, p. 241). 259 as atividades dos cidadãos se concentre no que o Estado considera prioritário e, dado que tanto as lideranças destas organizações como suas agendas de debates são decididas desde cima” desse modo garante que a ação conjunta da sociedade “se estabeleça em uma só direção, a dos objetivos estatais de reprodução28”. (BOBES, 2000, p. 154). PARTIDÁRIOS DUPLOS E O MERCADO NEGRO Essa condição de ser um “duplo” nas organizações estatais, ou seja, um membro figurativo (que vimos não é sem consequencia, pelo menos quando se trata de adesão simbólica) pode explicar em parte a assunção e efetivação da lógica do mercado negro em Cuba, e Havana, inclusive entre os partidários formais do regime. Já falamos em um tópico acima, da força do mercado negro na sociedade cubana, especificamente em Havana. Mencionamos também a “antiguidade” de tal comportamento. Sobre isso, alguns falam até em “cubaneo”, como, nas palavras da pesquisadora Mariana Villaça, que “seria algo similar ao ‘jeitinho brasileiro29’(VILLAÇA, 2010, p. 371), onde entre outras características é marcado pelo oportunismo, sobretudo de indivíduos “que apesar de repetir os jargões socialistas” (VILLAÇA, 2010, p. 371) desejam desfrutar dos prazeres materiais, em alguns casos, a qualquer custo30. A respeito da antiguidade desse comportamento, ele pode ser visto, no mínimo de modo ilustrativo, quando indivíduos vinculados as organizações estatais ou ao Partido operam no mercado negro ilegal, como em um relato logo após a Revolução: É assim que Cuba está dividida agora – existem os comunistas e os comunistas que são boa gente. Os que são boas pessoas são aqueles cujo trabalho é proteger a 28 Interessante demarcarmos que os membros dos órgãos estatais cubanos, quando acusados de erro pelos seus “superiores”, acabam por serem tronados. Conforme nos explica Mariana Villaça: “isto é, ser atingido pelo trovão (trueno) emanado das altas esferas do poder, e rebaixado a um cargo menor. Ser tronado significava ser acusado de alguma falha, o que implicava a destituição desse intelectual, que já não era mais considerado ‘revolucionário’” (VILLAÇA, 2010, p. 312). 29 Uma das referencias de Mariana Villaça para a afirmação de “cubaneo” vem do filme Se Permuta de Juan Carlos Tabio, onde o filme tem um personagem Guillermito que “por ser um burocrata corrupto (trabalha como projetistas de campanhas de mobilização popular) consegue várias facilidades para Glória [protagonista do filme] e Yolanda, como um telefone residencial, ou a oferta de um emprego fácil (VILLAÇA, 2010, p.371). 30 Apenas para pensarmos sobre o que Villaça denominou de “cubaneo” um relato da década de 70 pode ser ilustrativo: “No entanto, eu e meu irmão estamos supersatisfeitos com o novo emprego do meu pai, porque isso significa que todos os dias ele chega em casa com um grande saco de papel marrom cheio de biscoitos. Nada de filas nem de libreta. E meu pai não é um caso isolado. Ele conta a minha mãe que metade da produção diária de biscoitos e massas simplesmente desaparece da fábrica, o que significa que as pessoas que trabalham lá devem estar sumindo com muitos biscoitos e massas, levando tudo para casa, para suas famílias. Do modo como os cubanos vêem as coisas, isso não é roubo. Eles dão o nome de resolviendo; não acho que as outras línguas tenham um termo exato para traduzir este conceito, mas quer dizer qualquer coisa como ‘dando um jeitinho’. E, se algum dia você teve de ficar duas a três horas em uma fila debaixo do sol, sem chapéu ou sombrinha para protegê-lo, então entenderá perfeitamente o que resolviendo quer dizer. É o que alega meu pai” (GARCIA, 2007). 260 Revolução contra os americanos, mas que também vêm bater a porta para lhe oferecer porco no mercado negro (GARCIA, 2007, p. 39) Outro relato dessa antiguidade e complexidade do comportamento de sujeitos ligados ao Partido e atuando no mercado negro pode ser visto na fala de Reinaldo Arenas: “Minha tia, que era presidente do Comitê de Defesa e, segundo ela mesma afirmava, alta informante da Segurança cubana, prometeu [a uma] velha senhora [mãe de um preso político] que providenciaria sua saída do país em troca de todos os seus móveis. A casa da senhora ficou completamente vazia”. (ARENAS, 2009, p. 181). A senhora acabou morrendo em Cuba com a casa vazia31. Para Fidel as dificuldades e carências do Período Especial favoreceram os hábitos de corrupção e roubo, embora ele afirme que esses hábitos antecedem esse período, já que ele observa que “(...) alguns vícios podem estar arraigados”. (RAMONET, 2006, p. 519). Ainda segundo Fidel Castro, mesmo que haja muitos vícios na sociedade cubana, o Estado tem fechado o cerco aos corruptos de uma maneira muito mais enérgica do que apenas com o antigo método da crítica coletiva ou autocrítica, considerado por ele ineficaz. Pois, “... entre nós há alguns que dizem: ‘Sim, eu tenho autocrítica’. E ficam tranqüilos, morrendo de rir! São felizes. E todo prejuízo que causaram? E todos os milhões que foram perdidos como consequencia desse descuido ou dessa forma de agir” (RAMONET, 2006, p. 518). Como podemos observar nos discursos de Castro e até nessa fala acima, o exgovernante reconhece esse comportamento existente no partido cubano e os compreende apenas em termos de oportunismo (RAMONET, 2006). Para nós, embora tais situações possam parecer apenas atos oportunistas se encarados como atividades incoerentes por parte dos integrantes dessas instituições cubanas. Nós optamos, pelo menos como possibilidade reflexiva, à alternativa de observarmos esses mesmos comportamentos não só em termos de contradição, mas também em termos da “lógica do duplo”, perspectiva que interessa a esse trabalho. Onde, talvez pelas circunstâncias das necessidades existentes ou, na tese de Bobes, sendo tomando pelo complexo de valores individualista, o indivíduo não tenha a percepção do seu comportamento como “contrarevolucionário”, para usar um termo do próprio regime. Mesmo que ele saiba da ilegalidade do comportamento. Utilizando as palavras de Laborie, podemos ter aqui “as zonas cinzentas do pensar-duplo” (LABORIE, 2010, p. 40), onde: A despeito de suas névoas e perturbações, o pensar-duplo aparece como uma 31 No relato de Arenas, o escritor Lezama contava uma história que “Cintio [Vitier] e Fina foram a Porto Rico fazer uma conferencia, na qual disseram maravilhas de Castro; em seguida, percorreram todo o país comprando sapatos para revendê-los no mercado negro em Havana” (ARENAS, 2009, p. 278). 261 maneira uma realidade que se tornou insuportável, como uma resposta de circunstância a uma situação de exceção, como elemento de um amplo processo de adaptação. (LABORIE, 2010, p. 40). Quanto a dúvida em considerarmos determinados comportamentos em termos de incoerência ou pelo “raciocínio do duplo”, um relato nosso, baseado em um trabalho que fizemos em Cuba no ano de 2011 pode contribuir para as reflexões. Após fazermos uma “espécie de amizade” com um líder partidário “municipal” que nos afirmou ser um ex-combatente. Fomos levados por ele a conhecer um comitê do partido. O indivíduo nos mostrou fotos, livros e nos contou histórias. Mencionando inclusive que sua família tinha partido para Miami enquanto ele decidira permanecer em Cuba. Após horas conosco, nos sugeriu que ficássemos (ilegalmente) em uma casa de seu amigo. Casa essa que não era registrada para o acolhimento de turistas, exigência indispensável para quem desejava acolher estrangeiros em Cuba. Sua fala sobre isso em algum momento foi: “precisamos sempre colaborar com Cuba, e desse modo sempre colaboramos trazendo dinheiro para cá, né? Pois estamos precisando né” Outra “fonte” que pode nos dar um indicativo dessa tensão entre corrupção e “duplo” dos integrantes de instituições governamentais cubanas é o filme Fresa y Chocolate 32 de Tomás Gutiérrez Alea y Juan Carlos Tabío, sobretudo o papel da personagem Nancy (Mirta Ibarra). Nancy uma vigilante, relacionada ao Comitê de Defesa da Revolução em Havana, é a vigilante do prédio que mora e “pretende suicidar-se, onde o suicídio é visto como ato de covardia” (NÚNEZ DE LA PAZ, 2004, p.72). Nancy onde mora atua no mercado negro, em uma atmosfera que segundo a pesquisadora Núñez de la Paz (2004, p.110) a “mentira funciona como porta de escape33”. No caso de Nancy, ela “mente com seu comércio ilegal para sobreviver”( NÚNEZ DE LA PAZ , 2004). 32 Sinopse do filme: “Relação gradativa de amizade que se estabelece entre um intelectual homossexual (Diego) e um estudante militante (David), que discutem suas visões do país, da cultura cubana e da Revolução. Ambos encaram temas polêmicos como o homossexualismo e o exílio e têm em comum a amizade da desiludida Nancy, que tenta o suicídio e depois vive uma história de amor com David”. (VILLAÇA, 2010, p. 410). 33 “A mentira transborda, desde o início do filme, até o seu final. A mentira é a porta de escape para situações delicadas, ela resolve conflitos e que parece respirar-se no cotidiano cubano. Vivian, se casa mentindo para resolver sua situação econômica. Diego, mente para conseguir que David visite sua casa. David, mente para contar a Miguel porque visitou a casa de Diego. Diego, mente para Germán – a respeito da sua relação com David – para ganhar reconhecimento. Nancy, mente para aproximar-se de David. Diego, mente para poder acompanhar Nancy na ambulância. David, mente para poder se aproximar novamente a Diego com o fim de investigá-lo. Miguel, mente para conseguir sancionar David. Nancy, mente com seu comércio ilegal para sobreviver. Diego, mente para conseguir seus propósitos de saída do país” (Núñez de la Paz, 2004). 262 Para Núñez de la Paz, Nancy pode ser interpretada como uma mulher solteira, em uma sociedade “machista e patriarcal” como a cubana, que precisa se virar para se alimentar e “que desesperada quer salvar-se e para salvar-se recorre ao sexo possuidor de controle, da verdade, autoridade e do poder” (NÚNEZ DE LA PAZ, 2004, p. 80) e, a nosso ver, ao cargo de vigilante como mais um elemento de fortalecimento. Para citarmos Laborie: Muito longe dos comportamentos heróicos e das rejeições declaradas, o duplopensar aparece como uma forma de resposta social a alternativas consideradas insuperáveis, uma resposta datada que deve ser vista como tal, como tentativa patética de ajustamento entre o desejo e o possível. (LABORIE, 2010, p. 41). Quanto a esse subterfúgio que pode ter se tornado o mercado negro, a fala da oposicionista ao governo Yoani Sánchez parece acrescentar um elemento a mais a nossa perspectiva. Já que para ela: Com os ganhos provenientes dessas ‘maracutaias’, reforçam-se as paredes da bolha que os protege dos discursos, mas que também os dissuade de protestar publicamente. O fruto de tantas ilegalidades vai parar no balcão das lojas que vendem em moeda estrangeira e se materializa na lâmpada recarregável que neste verão iluminará algumas casas. Enquanto isso, lá fora, pouco importa se existe apagão (SÁNCHÉZ, 2009, p. 57). A fala acima nos abre uma outra possibilidade de enxergamos o “duplo” em Cuba. Sobre a perspectiva de se observar que o duplo se faz também conseqüente de um duploespaço. Deste modo, podemos mencionar que em Cuba, notadamente em Havana, podem operar duas lógicas distintas, sendo uma no espaço público e outro no espaço privado. O que podemos chamar de tipos de práticas em diferentes espaços, onde observamos - “a assunção de duas lógicas implica aprendizagens diferentes; estes indivíduos são conscientes de que cada âmbito tem suas regras e sabem operar com ambas e distinguir perfeitamente o que funciona em um e outro para adaptar suas ações ao permitido e aprovado em cada um.” (BOBES, 2000, p. 239, 241) 34. Assim sendo, há uma lógica que opera no espaço público e outra no espaço privado, sendo cada uma acionada pelo indivíduo de acordo com as necessidades do momento. Essa “lógica dupla”, que Velia Bobes chama também de formal e informal, opera ainda no que diz respeito a interações e sociabilidade. Onde, há uma sociabilidade “negra ou submersa que coexiste com a sociabilidade oficial e aberta” (BOBES, 2000, p. 43, 44). Velia Cecília Bobes 34 Velia Cecilia Bobes indica que algumas pesquisas comensuram níveis de interiorização de valores, como a pesquisa de M. Dominguez. Todavia, ela afirma não compartilhar com tal perspectiva, já que de acordo com a que ela defende “não tem muito sentido falar de uns valores que se interiorizam e outros não; antes, o que trato de explicar é que todos os valores do repertório cultural estão a disposição dos sujeitos simultaneamente.” (BOBES, 2000, p. 235). 263 chama esse fenômeno de complexos coletivista e liberal-individualista. Que, para ela, são sistemas que orientam as condutas dos indivíduos (idem, p. 43,44). Para Bobes, a diferença de comportamentos de acordo com o espaço, implica inclusive no ordenamento moral do cidadão e suas relações na sociedade, em relação ao amor, ao matrimônio, a questão racial, etc. Sobre a questão racial, por exemplo, e sua dinâmica no espaço formal e informal, Bobes observa que: é possível falar também aqui de duas lógicas diferentes que operam simultaneamente na sociedade; no âmbito público o problema tem sido ‘resolvido’ por meio de um marco normativo e jurídico que ordena as relações a partir da igualdade e sanciona qualquer desvio a esta regra. Sem embargo, na esfera privada segue funcionando – ainda que veladamente- um sistema de valores e hierarquias que supõe a superioridade de uma raça sobre a outra. (BOBES, 2000, p. 186) No pensamento da autora, os indivíduos, “tem assumido a duplicidade de seus códigos de comunicação tanto na esfera econômica como na social” (BOBES, 2000, p. 238). E a natureza dos espaços de interação, pode se caracterizar por ser institucionalizada e não institucionalizada, formal e informal, legal ou submersa, oficial e não oficial (idem, p. 43). Para fins de ilustração desse movimento supramencionado por nós, podemos nos remeter novamente ao filme Fresa y Chocolate, feito no interior do ICAIC, onde os indivíduos operam, o caso se passa em Havana, em uma “dupla lógica”. Principalmente a personagem Nancy, também já mencionada por nós, que mesmo sendo vigilante atua no mercado negro e desenvolve formas de burlar o sistema em que ela seria uma das mantenedoras. CONCLUSÃO Podemos observar, através dos estudos da pesquisadora da FLACSO Velia Cecilia Bobes, que em Cuba opera um “complexo duplo de valores” que atuam simultaneamente, sem necessariamente serem concorrentes. As reflexões sobre o “duplo-pensar” de Pierre Laborie nos abriu uma possibilidade para vermos esse “complexo-duplo” não só em termos antinômicos - como menciona inclusive Yoani Sánchez quando diz que “aqui [em Cuba] só é possível ser ‘revolucionário’ ou ‘contrarevolucionário’, ‘escritor’ ou ‘alheio a cultura’, pertencer ao ‘povo’ ou a um grupelho’’. (SÁNCHEZ, 2009, p. 12). Mas, em termos de reacomodações, recomposições. Problematizando uma noção antinômica, observamos que o ponto de vista do “duplopensar” de Laborie nos abre a possibilidade de vermos de um modo alternativo o fato dos cubanos terem que aprender a existir com uma dupla imagem de si mesmos, “um rosto para mostrar publicamente a fim de subsistir e um para esconder a fim de preservar uma maneira 264 de ser e agir35” (LABORIE, 2010, p. 40). A ideia do duplo nos comportamentos cubanos pode ser notada também na perspectiva da tese de Velia Cecilia Bobes e nas fontes ilustrativas apresentadas nesse trabalho, que se não foram sistematizadas ao melhor modo, são no mínimo indicações que estimulam algumas reflexões. Laborie aponta que esse “duplo” pode surgir em momentos de extremos problemas sociais ou em espaços de mudanças radicais. Assim sendo, essa foi a justificativa de pensarmos o caso “habanero”. Pois, se os problemas não são exclusividades dessa cidade, como vimos pela diversidade das origens das fontes, se dão nela de modo mais evidente. Corroborando com a nossa opinião, Hans-Jürgen Burchardt menciona: As novas contradições tem tomado múltiplas formas, sobretudo na capital cubana. Havana, antes a pérola do Caribe, parece hoje uma metrópole atolada em agonia; sem embargo, realmente volta a pulsar no Caribe. Porém o movimento agitado obedece hoje a outras leis muito diferentes de dez anos atrás. Cada vez mais é expressão de uma crescente desigualdade social. (BURCHARDT, 1998, p. 31). Em Havana, embora pesquisas indiquem o processo em toda a Ilha, podemos observar a “informalidade como traço da vida cotidiana, não só dos marginais” (BOBES, 2000, p. 159). Constatação apontada por Bobes de que as práticas dos sujeitos refletem a dualidade das lógicas dos espaços formais e informais, onde: a existência dessas lógicas e a sobrevivência do complexo censurado (mesmo quando confinado ao oculto e como moralidade privada) geram a acumulação de defasagens entre os valores que promove o discurso oficial e as práticas reais dos sujeitos; entre elas a dupla moral ou a simulação, a falta de interesse pelo trabalho, o afã pelo consumo, as diferenças não planejadas, a participação formal e a indiferença, a concentração no privado e no individual e a existência de uma sociabilidade submersa. Afirmo nesse caso que se trata de uma defasagem e não de condutas de ruptura, porque nestes primeiros anos a lógica estatal é monolítica e logra capitalizar a totalidade da atividade pública. (BOBES, 2000, p.265) Esse “complexo duplo de valores” pode ser visto até mesmo quando se trata de gerações distintas, onde aqueles que vivenciaram uma Cuba antes da Revolução ou nos primórdios dela, tem uma percepção sobre Cuba que se diferencia da percepção da geração nascida e crescida um pouco antes do Período Especial e após ele. Tal questão geracional leva a afirmações como a emitida em 2005 pelo chanceler Felipe Pérez Roque de que a juventude possuía pouco ou nenhum memória histórica (LATELL, 2008, p.320)36. 35 Importante relembramos que Pierre Laborie se refere ao vichysmo. Ele é por nós utilizado apenas como inspiração e aporte para reflexão. 36 Se quisermos procurar algumas outras possibilidades de “duplos” em Cuba, poderíamos inclusive pensar sobre a afirmação do prof. Marcos Pimentel, brasileiro que trabalha na EICTV-CUBA, onde em uma entrevista (01/12/2011) para nós afirmou que se na capital há uma grande rejeição ao governo e uma crença não tão forte, no interior cubano essa crença ainda é significativa. 265 Nesse caso novamente, a questão fica mais evidente em Havana, pois o aumento da urbanidade e o déficit habitacional, além do seu “engessamento imobiliário37” levaram vários jovens a morarem com seus avós (BOBES, 2000, p. 140). Esse fato, embora possa ser uma possibilidade do jovem ter contato através dos seus avós de outros modos de vida e de percepção do passado (Bobes, 2000). Pode fazer também que os jovens, a sua maneira, possam convencer os seus antepassados sobre os benefícios arrolados ao “conjunto de valores relacionados a individualidade”. No entanto, o que suspeitamos é que ambos possam conviver com as suas duplicidades em um processo contínuo de ressignificação e readequação permanente, de acordo com as necessidades, sendo ora percebido como deslealdade, sendo em vários momentos nem visto como contradições ao regime38. BIBLIOGRAFIA ALONSO, Aurelio. “A Igreja Católica, a política e a sociedade”. Estudos Avançados: São Paulo: USP. Vol.25, no. 72. ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. BACZKO, Bronislaw. Stalin: a fabricação de um carisma. Religião e Sociedade, 9, 1983, pp. 27-34. BANDEIRA, Luiz Alberto Munis. De Martí a Fidel: A revolução cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. BARROS, José D’Assunção. O campo da História: especialidade e abordagens. Petrópolis: Editora Voze, 2004. BERGES, Juana. El protestantismo cubano en los caminos del crecimiento. In: CAMINOS, Ciudad Havana. BOBES, Velia Cecilia. Los Laberintos de la Imaginación: repertorio simbólico, identidades y actores del cambio social em Cuba. México: El colégio de México, 2000. 37 38 Havia em Cuba uma proibição a venda de casas, era permitido apenas trocas. O que se via, por isso, era inclusive casamentos falsos, onde as pessoas se casavam, faziam a transferência do imóvel e depois se divorciavam. Com as reformas efetuadas por Raul Castro tornou-se legal a compra e venda de imóveis. Das mudanças na dinâmica de percepção da sociedade cubana, podemos mencionar o caso dos Gusanos (exilados cubanos que eram chamados pelo governo de vermes, e eram estigmatizados na sociedade) que com a possibilidade dos exilados enviarem divisas a Cuba passaram a ser olhados de modo diferente. (BOBES, 222). Ainda sobre apontamentos das mudanças, se na década de 70, de acordo com Fernando Morais, todos os cubanos eram chamados de companheiros (“Todo mundo é companheiro – menos, é claro, os considerados contra-revolucionários. Estes são os gusanos, ou vermes”, p.105), hoje, para Yoani Sánchez “Entre as evidências lingüísticas da nossa atual apatia, está o paulatino desaparecimento do termo ‘companheiro’ (...) Aconteciam até casos tragicômicos, por exemplo, quando uma pessoa chamava de ‘companheiro’ ao burocrata que o fazia esperar seis horas por um papel, embora na verdade tivesse vontade de insultá-lo” (2009, p. 20). 266 ___________. Cuba: justicia social, gobernanza e imaginário ciudadano. Presente y futuro de una compleja relación. Revista Mexicana de Sociologia, 72, n.4 (out,dezemb. 2010). BURCHARDT, Hans-Jürgen. Deberían leer em Cuba a Bourdieu? Socialismo, estructura social y capital cultual. Colômbia: Análisis político, n.34, maio/agosto 1998. CALZADILLA, J. Ramírez. Religión y relaciones sociales. Havana: Editorial Academia, 2000. CARRANZA, Brenda. “Catolicismo e religiões sincréticas – uma pesquisa em Santiago de Cuba”. 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São Paulo: Alameda, 2010. 267 A ARTE DO COQUETISMO COMO ELEMENTO DE SOCIABILIDADE EM CONTEXTOS DE LAZER Gabriel Antonio Ogaya Joerke1 RESUMO A arte da coqueteria ou coquetismo, entendida como uma forma de jogo do erotismo efetivase na sociabilidade urbana de forma leve, lúdica e ampla. Este estudo de cunho bibliográfico tem por objetivo apresentar a contribuição do pensamento de George Simmel quanto às formas e especificidades deste processo de socialização em contextos de lazer, subsidiando, desta maneira, às pesquisas urbanas. Palavras-chave: Sociabilidade; Coquetismo; Lazer INTRODUÇÃO A arte da coqueteria ou também chamada de coquetismo é tão antiga quanto a história da humanidade. Como forma de jogo do erotismo e, um dos elementos de sociabilidade, ocorre de forma leve, lúdica e ampla em contextos urbanos de lazer. Este estudo introdutório, de cunho bibliográfico, tem por objetivo, apresentar aspectos do pensamento de Georg Simmel quanto às formas e especificidades do coquetismo como elemento de sociabilidade em contextos de lazer, subsidiando, desta maneira, às pesquisas urbanas. Georg Simmel, filho de pais judeus berlinenes, nasceu em Berlim (1858) vindo a falecer em Estrasburgo (1918). Estudou História e Filosofia na Universidade de Humboldt, em Berlim. Doutorou-se em Filosofia com decisiva influência do pensamento kantiano. Sua origem judaica o levou ao ostracismo no meio acadêmico, muito embora o sucesso dos cursos que ministrava. Somente aos 56 anos conseguiu a nomeação para professor de Filosofia na Universidade de Estrasburgo. (WAIZBORT, 2000) Embora se considerasse, antes de tudo, um filósofo, concebendo a sociologia como uma extensão de seu pensamento associativo-analógico, foi fundador da chamada “Sociologia Formal” ou “Sociologia das Formas”. Voltou-se para a microssociologia, sendo lembrado 1 Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT); Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ/UCAM); Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT); Especialista em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). E-mail: [email protected]. 268 como seu precursor; onde, busca, na sociedade, os fenômenos, a partir das ações e reações dos atores sociais em interação. Para o filósofo e sociólogo da modernidade, a realidade só poderia ser apreendida a partir de diversos pontos e olhares, sem com isso, esgotá-la (FRISBY, 2002). Daí seu caráter interdisciplinar e estilo indisciplinado de seus ensaios. Concebe a sociedade como um “... círculo de indivíduos que estão de uma maneira determinada, ligados uns aos outros por efeito das relações mútuas, e que por isso podem ser caracterizados como unidade...” (SIMMEL, 2006b, p.18). Isso leva a entender o ser humano como ser social e a sociedade como portadora de toda situação histórica; desta maneira, a sociologia não possui nenhum objeto que já não tenha sido tratado por outras ciências (SIMMEL, 2006b). A epistemologia, a sociologia e a filosofia da cultura foram as três principais áreas de interesse do berlinense. Seu pensamento está prenhe dos princípios da dualidade ou paradoxos que articulam a oposição entre: (1) as formas e os conteúdos (neokantismo)2 e, (2) da interação (vitalismo). Este dois princípios estabelecem os pilares da sociologia formal que “... propõe, por meio de uma interpretação dialética das formas e dos conteúdos, uma sociologia interacionista das formas de associação.” (VANDENBERGHE, 2005) Sociação e sociabilidade Simmel (2006b, p. 60-61) entende sociação como ... a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual os indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados -, se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses, sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, casuais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana.” Abstraída do conceito supracitado a sociabilidade seria “... a forma lúdica de sociação...” (SIMMEL, 2006b, p.65). O prazer de estar com o outro, de ser para o outro e estar contra o outro; nada além da satisfação dos instantes vividos ou de suas lembranças. Desta maneira estariam fora deste contexto: riqueza, posição social, privilégios, fama, erudição; bem como, o que se tem de mais pessoal tal como: maus humores, estados depressivos e ansiosos etc. Isto garantiria o princípio da sociabilidade: “... cada indivíduo deve garantir ao outro aquele máximo de valores sociáveis (alegria, liberação, vivacidade) compatível com o máximo de valores recebidos por esse indivíduo.” (SIMMEL, 2006b, p. 69) 2 O neokantismo foi uma forma de filosofia pós-hegeliana, inspirada em Kant, dominante na Alemanha entre os anos de 1850 a 1920. 269 Tendo em vista o anterior, não podemos esquecer que a necessidade de criar uma relação democrática e livre de tensões materiais leva a um mundo artificial de sociabilidade. Isto posto, como seres humanos, não conseguiríamos nos desprender das nossas tribulações diárias. Por isso, Simmel (2006b) nos alerta para a forma mais pura de interação, aquela que acontece entre iguais. Pessoas da mesma situação socioeconômica, com os mesmos valores interagindo num certo “faz de conta” que todos são iguais. (SIMMEL, 1976). Encaixa-se nesse âmbito, a coqueteria como elemento de sociabilidade. A ARTE DA COQUETERIA OU COQUETISMO Para a exposição das particularidades da arte do coquetismo no contexto de lazer (DUMAZEDIER, 2008; PRONOVOST, 2011), aqui especificamente a praia, e, sem pretender esgotar o assunto, utilizaremos como recurso, num primeiro momento, relação figura-fundo, a letra de uma das canções mais tocadas no mundo, Garota de Ipanema3, composta em 1962 por Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Olha que coisa mais linda/ Mais cheia de graça/ É ela menina/ Que vem e que passa/ No doce balanço, a caminho do mar/ Moça do corpo dourado/ Do sol de Ipanema/ O seu balançado é mais que um poema/ É a coisa mais linda que eu já vi passar/ Ah, porque estou tão sozinho/ Ah, porque tudo é tão triste/ Ah, a beleza que existe/ A beleza que não é só minha/ Que também passa sozinha/ Ah, se ela soubesse/ Que quando ela passa/ O mundo inteirinho se enche de graça/ E fica mais lindo/ Por causa do amor. O filósofo e sociólogo berlinense parte do pressuposto de que só acontece a arte da coqueteria entre um homem e uma mulher4. Nesse jogo, a coquete tem como comportamento característico “... despertar o prazer e o desejo por meio de uma antítese/síntese original, através da alternância ou da concomitância da atenção ou ausências de atenções, sugerindo simbolicamente ao mesmo tempo o dizer-sim e o dizer-não, que atuam como que ‘à distância’, pela entrega ou a recusa...” (SIMMEL, 2006a, p.95) A possibilidade do ter e do não ter5, como paradoxo, estão presentes, quando não na vida real pelo menos na forma lúdica6. Nesse jogo, onde o homem deseja7 e a mulher que 3 A versão original da música chamava-se Menina que passa. Foi composta por Vinícius com a seguinte letra: Vinha cansado de tudo/ De tantos caminhos/ Tão sem poesia/ Tão sem passarinhos/ Com medo da vida/ Com medo de amar/ Quando na tarde vazia/ Tão linda no espaço/ Eu vi a menina/ Que vinha num passo/ Cheio de balanço/ Caminho do mar. 4 A garota de Ipanema e os compositores. Ah, porque estou tão sozinho/ Ah, porque tudo é tão triste/ Ah, a beleza que existe/ A beleza que não é só minha/ Que também passa sozinha. 6 Os compositores no Bar Veloso, hoje Garota de Ipanema, no bairro Ipanema, no Rio de Janeiro. 7 Olha que coisa mais linda/ Mais cheia de graça/ Moça do corpo dourado. 5 270 provoca esse desejo, é importante que aconteça de soslaio, sem se deter, furtivamente, quase lá. Nas palavras de Simmel (2006a, p. 96) o olhar “... não pode durar mais de alguns segundos, de sorte que, voltando-se para, ele já prefigura, com inevitável, o movimento de se esquivar. Ele tem a tração do segredo, do furtado, que não pode ter duração, onde, por conseguinte, o sim e o não estão intimamente mesclados.” Outro elemento importante no coquetismo é o andar, traduzido no requebrado, no andar balanceado8, o “bambolear das ancas” (SIMMEL, 2008) numa alternância contínua de mostra e ocultação, sem, contudo chegar a uma decisão definitiva. É um balanço, onde o conceder e o recusar, realizados com maestria pelas mulheres, não deve chegar ao seu definitivum. Caso isso venha acontecer porá fim à arte em pauta. A próxima etapa da arte do coquetismo acontece quando ela toma forma adequada de sociabilidade. Isso quer dizer, enfatiza Simmel (2006a), no momento em que o homem livrase da conotação erótica que, a priori, o jogo sinalizara. O papel do homem ultrapassa o papel de mero objeto para entrar no jogo (SIMMEL, 2008). Ou seja, ao afastar-se do âmbito do desejo erótico9, o jogo da sedução transforma-se em jogo da interação; onde, o gracejo e a ironia deambulam no contexto encantador da sociabilidade10. É muito mais um jogo ou arte, neste momento, do que a própria necessidade de agradar. É a forma mais pura do coquetismo, a qual envolve uma atividade sem fim, como vemos a seguir: Quando o homem já nada deseja além deste estádio, a convicção de que a coquete não toma as coisas a sério dá-lhe, perante ela, uma certa segurança. Não desejando o sim e sem recear o não, considerando indignas de atenção as eventuais recusas ao seu anseio, o homem pode entregar-se mais plenamente ao encanto desse jogo do que quando deseja, ou por ventura também receia, que o caminho empreendido leve alguma vez ao seu termo. (SIMMEL, 2008, p. 80-81) Num estágio último, a coquete, ainda retém, nesse balanço de dar-se e de revelar-se “... um último quê misterioso, inacessível” (SIMMEL, 2006a, p. 105) quase numa visão da eterna insatisfeita freudiana. O homem está consciente, nesse momento, da promessa inicial que pode ou não ser cumprida pela coquete, mas também se compraz apenas com a arte ou jogo da qual se deleita ao fazer parte. A essência da arte diferencia-se da do coquetismo. A primeira situa-se para além da realidade, sendo que, dai, seu olhar se desvia; a segunda, além de jogar com a realidade, faz parte dela. 8 Que vem e que passa/ No doce balanço, a caminho do mar. “O ser erótico prefere despir-se com pouca luz”, diria ALVES (2008, p. 13) 10 Heloisa Pinheiro só ficou sabendo que tinha sido a musa de inspiração para a letra da música após dois anos. Durante esse tempo o mundo inteirinho se encheu de graça e ficou mais lindo, por causa do amor. 9 271 O coquetismo, de certa maneira, está ligado ao amor. Este envolve um dualismo intermediário entre o ter e o não ter. Simmel (2006a) utiliza-se de um dos diálogos de Platão para ilustrar, como vemos a seguir. O COQUETISMO PLATÔNICO Uma das passagens que chama a atenção em Simmel (2006a), lendo seu texto Psicologia do coquetismo, ao iniciar, o sociólogo, reporta-se à concepção de amor em Platão (2011). Destaca, no escrito do filósofo grego, o dualismo intermédio entre o ter e o não ter, como características e a sua concretização ou gozo, sua própria destruição. Platão já tinha alinhavado a noção de amor no diálogo Fedro, vindo a consagrá-lo no Banquete. Neste, o filósofo ratifica que o amor só pertenceria à alma. Embora Simmel (2006a), ao tratar da arte do coquetismo, se refira tão somente ao homem como aquele que deseja e a mulher como objeto desejado, única relação possível do coquetismo como elemento erótico; percebe-se que, no diálogo Banquete de Platão, especificamente na parte “Elogio de Sócrates”, trata da declaração de amor que o discípulo Alcibíades faz para seu mestre Sócrates. Diferentemente da afirmação inicial, a dualidade entre o ter e o não ter estão presentes nesse contexto; sendo que, o mesmo chega ao definitivum possível, no momento em que o discípulo declara seu amor e o mestre rejeita a materialidade desse sentimento. Quando se fala em um definitivum possível, abre-se a alternativa de, o discípulo, após a negativa do seu mestre, sair do âmbito do desejo concreto para a forma mais pura de sociabilidade: o jogo ou arte da coqueteria. Portanto, ... onde existe amor, existe também – quer no seu fundamento, quer à sua superfície - posse e não posse; portanto, onde existe posse e não posse – embora não na forma da realidade, mas do jogo – existirá também amor, ou, pelo menos, algo que ocupa o seu lugar. (SIMMEL, 2008, p. 73) OUTRAS FORMAS DE COQUETISMO O coquetismo também pode apresentar-se em tipos de comportamento geral. As pessoas “coqueteiam”, geralmente, com a realidade (SIMMEL, 2009; VERNIK, 2009). A vida nas grandes metrópoles, além de nos influenciar com múltiplos incentivos, sejam eles, sonoros, visuais, etc, (SIMMEL, 1976) também nos obriga a, constantemente, “coquetear” frente às situações de tomada de decisões. À GUISA DE CONCLUSÃO 272 Em sua forma mais suave e sutil, o coquetismo em contexto de lazer, como vimos, é um dos elementos de sociabilidade tratado pelo sociólogo berlinense. Apresenta-se, inicialmente, com um caráter fisiológico, onde o ter e o não ter se movimentam prazerosamente num jogo erótico de sedução. Num segundo momento se estabelece psicologicamente, tendo como possibilidades ou não a sua concretude. O último estágio seria a forma pura de sociabilidade que envolve o coquetismo. Nesta, o homem, destituído do caráter erótico que envolveria um fim, volta-se para o prazer do jogo ou da arte da coquete. Pois, a concretude do ato, levaria ao fim da arte do coquetismo em si. A coqueteria pode tomar outras formas. As próprias necessidades nos leva a coquetear com a realidade. REFERÊNCIAS ALVES, Rubem. As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer. 8. ed. Campinas, SP: Papirus, 2008. DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica do lazer. 3. ed. São Paulo: Perspectiva; SESC, 2008. 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Conclui-se que ocorreram transformações paradigmáticas no movimento cineclubista relacionadas intrinsecamente a processos sociais mais amplos: ditadura civil-militar, estilhaçamento da figura do “trabalhador” reivindicador de direitos, e advento de uma identidade de periferia. Em relação a esse último, problematizam-se as condições de seu surgimento, suas características constitutivas, sua relação com o poder público e seus desafios à frente. Palavras-chaves: cineclubismo, identidade, periferia, política, formação de público. INTRODUÇÃO Este trabalho surgiu no âmbito das reflexões desenvolvidas pelo Núcleo de Pesquisa Fronteiras e Transformações das Práticas Estatais e Políticas da Universidade Federal Fluminense em volta da pesquisa “J v â , j çã ”, coordenada pela Professora Lívia De Tommasi e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A proposta de pesquisa foi acompanhar as trajetórias de alguns jovens das cidades de Rio de Janeiro, de Recife e de São Paulo, em particular os trânsitos entre diferentes espaços de interação social, com o objetivo de estudar as práticas e as atividades culturais desenvolvidas em regiões periféricas do ponto de vista do significado político atribuído pelos sujeitos e desvendado pela análise do conteúdo e das formas de intervenção no espaço público. Durante as atividades de pesquisa, obtivemos contato com cineclubes da Baixada Fluminense. Um estudo inicial apontou para uma mudança de práticas e objetivos por parte de seus organizadores em comparação com aqueles historicamente constitutivos do movimento cineclubista. Este trabalho, portanto, busca analisar as práticas e as transformações do 274 cineclubismo, assim como sua relação com políticas estatais e com as configurações sociopolíticas em diferentes momentos da história brasileira. Meu interesse, portanto, é analisar de que maneira o cineclubismo é atravessado por processos sociais amplos. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: APREENDENDO O MOVIMENTO Primeiramente, é importante ressaltar que a contemporaneidade exige a construção de novas ferramentas analíticas capazes de abarcar as dinâmicas de transformação da estrutura, das instituições e das práticas sociais. Enquanto a atividade sociológica historicamente se restringia a um território específico e a um grupo social específico delimitado a esse território, a chamada pós-modernidade significa também processos de formação de novas configurações territoriais. Se considerarmos uma dupla perspectiva — material e simbólica — sobre o conceito de território, as novas tecnologias, as instituições (empresariais ou não, estatais ou não) de atuação a nível global, e os fluxos globais de capitais, de informações, de mercadorias e de pessoas, implicam na formação de territórios descontínuos, em forma de rede. Cidades globais interconectadas de onde podem sair decisões com certo grau de independência do Estado nacional no qual estão inseridas, instituições políticas que atuam em diversas localidades subnacionais ao redor do mundo, redes internacionais de comércio de mercadorias que transitam entre lícito e ilícito1, bairros de imigrantes que mantém laços materiais e simbólicos com seus países de origem ou ainda com mais outros países2. Tudo isso constitui a formação de “territórios-rede” (Haesbaert, 2004) e a “desestabilização das antigas hierarquias escalares” (Sassen, 2010). Além disso, do ponto de vista das práticas e dos bens culturais, observa-se também que os fluxos não são unidirecionais, mas possuem via de mão dupla (não com igualdade de condições) entre centro e periferia3. Tendo em vista todas essas questões, devemos trabalhar para construir ferramentas analíticas que tornem a análise das ciências sociais capazes de superar dicotomias e de apreender o movimento dialético entre macro e micro, sistema e processo, estrutura global e práticas locais, e ainda entre as diversas esferas sociais pelas quais os indivíduos perpassam. Nesse sentido, a orientação metodológica desse trabalho faz referência fundamentalmente às três linhas de intensidade citadas pela Socióloga Vera da Silva Telles (2006). As trajetórias pessoais apanhadas através de entrevistas semi-estruturadas e 1 Ver Pinheiro-Machado, 2008. 2 Ver Berg, 2006. 3 Ver Hall, 2003. 275 articuladas com tempo social-histórico compõe a linha vertical das cronologias. A análise da espacialização das práticas urbanas através de observação participante, e a correlação entre diferentes histórias e eventos compõem a linha horizontal das espacialidades. Ambas vão ser atravessadas por uma linha perpendicular, composta pelos eventos políticos e, nesse caso, também por um levantamento de produções historiográficas a respeito do movimento cineclubista. CINECLUBE: CONSTRUÇÃO DE PARÂMETROS Trabalhar com essa temática exigiu levar em consideração que não há uma ideia fechada de cineclube, há cineclubes. Por esse motivo, é importante expor alguns parâmetros de análise e características gerais que foram construídos e utilizados para conceitualização do objeto. As principais características encontram-se cristalizadas na Instrução Normativa nº63 de 02 de outubro de 2007 da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Cineclubes, segundo o Art. 1º “são espaços de exibição não comercial de obras audiovisuais nacionais e estrangeiras diversificadas, que podem realizar atividades correlatas, tais como palestras e debates acerca da linguagem audiovisual”. Em linhas gerais, a atividade cineclubista, portanto, consiste em um compromisso de difusão cultural sem fins lucrativos. Esse compromisso pode estar vinculado a outros objetivos pedagógicos, como no caso de cineclubes criados pela Igreja Católica ou por sindicatos. A dinâmica das sessões consiste basicamente na exibição de uma obra cinematográfica (alguns cineclubes misturam outras linguagens artísticas) seguida por um debate cujo eixo variará conforme os objetivos do cineclube em questão. Desde uma discussão a respeito dos valores cristãos até aspectos revolucionários da obra, o ponto comum é a construção de uma relação entre público, obra e produtor que se diferencia daquela encontrada no circuito comercial. Essa atividade possui um aspecto político que será melhor debatido mais a frente, mas por ora é necessário ter em mente que os cineclubes objetivam construir uma relação orgânica com seu público frequentador. OS CINECLUBES DA BAIXADA FLUMINENSE Na região metropolitana do Rio de Janeiro, há uma maior proliferação de cineclubes na Baixada Fluminense e na Zona Norte da capital, estabelecidos em centros culturais ou espaços improvisados. Não tenho o objetivo de abarcar aqui todos os cineclubes existentes, isso seria uma tarefa difícil tendo em vista a dinâmica de transformação dessa atividade: é 276 grande a velocidade com que cineclubes param/retomam/encerram suas atividades enquanto outros novos são criados. Porém, ao fazer um mapeamento inicial, destaco os cineclubes Mate com Angú em Duque de Caxias, Buraco do Getúlio em Nova Iguaçu, Donana em Belford Roxo, Subúrbio em Transe em Vista Alegre, Beco do Rato no Complexo da Maré, e CineCamarim em Jacarepaguá. Aqueles dois primeiros foram melhor analisados graças às atividades de pesquisa e à dissertação de mestrado profissionalizante em História, Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas “C m v M m A ú” de Maria Gôuvea. Ambos os cineclubes Mate com Angú e Buraco do Getúlio surgiram no começo dos anos 2000. Por estarem inseridos em uma região fora do eixo cultural comercial4, é constitutiva de suas atuações a valorização da identidade e da produção cultural locais. À título de melhor ilustração de suas motivações e objetivos, reproduzo a auto-descrição do Mate com Angu que encontra-se em seu blog na internet5: O Cineclube Mate Com Angu nasceu em 2002 da necessidade de alimentar na Baixada Fluminense uma movimentação e uma discussão sobre a produção/exibição de imagens e suas implicações sociais e estéticas na realidade e no modo de vida da região. Sistematicamente, o grupo vem atuando em três frentes distintas, embora interligadas. A primeira são exibições de filmes, que acontecem em alguns lugares fixos e em algumas vezes itinerantes. Com o foco no curta-metragem, as exibições apostam na força da produção mais atual dos realizadores independentes do cenário brasileiro, cuja demanda é urgente e necessária para a vitalização da relação entre público e o curta-metragem. As sessões são gratuitas e têm formado um grande público na região ávido por informação cinematográfica, introduzindo o expectador caxiense no fervilhante e instigante universo das novas produções curta-metragistas. Nos sete anos o grupo vem promovendo a difusão da linguagem cinematográfica na Baixada não só através de exibições, mas também com debates, produções, festas e cursos. Outra linha de atuação é colocar a Baixada Fluminense no mapa cultural do país, assim como gerar discussões sobre o cinema e a produção audiovisual na Baixada Fluminense, notadamente, discussões sobre suporte (relações entre película e digital, por exemplo), sobre distribuição, sobre tendências e sobre novos caminhos da linguagem audiovisual. As discussões ocorrem em fóruns ao vivo e via internet e já aglutinam boa parte dos interessados no assunto pela cidade, permitindo um intercâmbio entre o conhecimento de profissionais e estudiosos da cidade do Rio de Janeiro e o público em geral. A terceira vertente é a produção de filmes com a marca dos habitantes da região, empreendimento que vem tendo êxito, uma vez que dois dos filmes produzidos em 2004 já arrebataram importantes prêmios em festivas nacionais. O Cineclube Mate Com Angu é um agente provocador na desmistificação do fazer cinematográfico. Acreditamos que o cinema pode proporcionar uma experiência lúdica e pessoal. Contribuindo minimamente a sermos maiores, livres, e que de alguma forma viver possa se tornar divertido, intenso. É também através da 4 A Baixada Fluminense é consensualmente delimitada pelos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de Meriti, Nilópolis, Mesquita, Queimados e Japeri. É uma região com grande participação no PIB brasileiro e constituída por boa parte da população do Estado fluminense, mas caracteriza-se por ser uma área de população mais pobre na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Observa-se uma precarização da infraestrutura e uma grande concentração de renda. Duque de Caxias, por exemplo, possui o segundo PIB do Estado, mas é apenas o 52º no ranking do IDH. 5 O cerol fininho da Baixada. Disponível em: <http://matecomangu.wordpress.com/sobre/>. Acessado em: março 2012. 277 educação cinematográfica que podemos construir uma sociedade mais humana, mais digna e mais possível. Vamos fazer um filme? As atividades de pesquisa, seja em campo ou por análise de material coletado, levaram ao estudo sobre o conceito “formação de público”. Identificou-se que, historicamente, essa expressão se dirigia a uma formação específica: política. O Professor Ricardo Brisolla Ravanello, da Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó), explica: Ao se reduzir o cinema a uma atividade comercial, tem-se a implicação geral da atividade capitalista, pois, enquanto produto, o filme passa a ter um caráter único de entretenimento – e, por isso, menor. Passa a ser concebido não pela potência criadora do cineasta ou do roteirista, mas pela expectativa de lucro no mercado. [...] Com os cineclubes, inicia-se um processo em que criação, produção, distribuição e consumo não se configuram como coisas separadas, mas um processo em que foi possível ver e entender de forma completa o cinema. O aprofundamento de uma proposta alternativa independente nos processos de recepção, produção e distribuição de filmes foi o que podemos chamar de subversão do cinema comercial, que se limitava a produzir e exibir, sem, em nenhum momento, relacionar esses processos. Ao apresentar tal arte de forma segmentada e desconexa, não se concretizam vários componentes que são fundamentais para se entender o cinema na sua complexidade, como sistema potente de produção de bens simbólicos, de atitudes e valores, como legitimador cultural ou como possibilidade de representação e reflexão da realidade. (Ravanello, 2008) Ou seja, a atividade cineclubista, nessa perspectiva, é subversiva ao tentar dissolver a relação mercadológica do cinema e ao construir nos cineclubes uma relação alternativa entre público, artista e obra cinematográfica. Porém, ao analisar o discurso de atuais organizadores de cineclubes e o uso por eles feito da expressão, observa-se um processo de deslizamento de sentido, chave pra compreender uma mudança paradigmática da atividade cineclubista: a formação é de um público fundamentalmente consumidor. A ideia de política foi ressignificada: os cineclubes buscam valorizar a produção cultural local, ser um canal de acesso a bens culturais para uma população à margem do eixo cultural, e formar um público que consuma uma produção de cineastas que possuem pouco espaço no circuito comercial por estarem à margem das grandes produtoras e por trabalharem com uma estética diferenciada — não massificada. O horizonte se estreitou. Para compreendermos melhor essas transformações, seguirei desse ponto em diante com uma análise sociológica feita através de um levantamento de produções historiográficas e de teorizações de sociólogos brasileiros. Busquei relacionar o percurso histórico do movimento cineclubista com os diferentes contextos sociopolíticos da sociedade brasileira. É importante ressaltar inicialmente que obtive dificuldade para encontrar produções acadêmicas a respeito do tema, tendo sido utilizados os artigos “Cineclubismo no Brasil: esboço de uma 278 história” da mestranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense Débora Butruce, e “Cineclubismo: prática subversiva” do mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade Federal de Santa Maria e Professor da Universidade Comunitário Regional de Chapecó Ricardo Brisolla Ravanello. Para além da academia, foram utilizados escritos do cineclubista Felipe Macedo e entrevistas fornecidas ao livro “Memória cineclubista de Pernambuco”, organizado por Isabela Cribari. MOVIMENTO CINECLUBISTA: ASCENSÃO E DECADÊNCIA O primeiro cineclube surge em junho de 1928, no Rio de Janeiro: o Chaplin Club, fundado por “personalidades de grande prestígio no meio cultural carioca da época, fazendo com que o cineclube alcançasse forte repercussão” (Butruce, 2003, p.1). A partir dos anos de 1940, inicia-se um primeiro momento de expansão quantitativa do movimento caracterizado por um forte caráter acadêmico e intelectual. A Igreja Católica teve grande importância para essa expansão. “Desde 1936, criado pela Ação Católica Brasileira, funcionava o Serviço de Informações Cinematográficas, de onde eram divulgados boletins com as cotações morais dos filmes exibidos no Brasil” (Butruce, op. cit., p.2). Em Recife, por exemplo, cineclubistas da época, em entrevistas para o já citado livro “Memória cineclubista de Pernambuco”, destacam a importância do Vigilanti Cura: cineclube de preceitos morais católicos criado em 1953, cujo nome é uma citação de uma encíclica do Papa Pio XI e cujo funcionamento se dava no edifício do Círculo Católico, no centro da cidade. Seu público entre 60 e 100 pessoas era composto, em sua maioria quase absoluta, por universitários e católicos de classe média. A maioria dos filmes exibidos eram estrangeiros e em películas 16mm alugadas em distribuidoras estadunidenses. O objetivo era debater a respeito de uma estética “mais artística” e estimular a formulação crítica do público a respeito das obras. No mesmo livro, os cineclubistas Celso Marconi e Jomard Muniz de Brito descrevem o caráter elitista e a ausência de “uma reflexão acerca do modo de agir e de viver na sociedade” nesse momento do movimento. A partir de meados da década de 1950, o movimento encontra-se mais quantitativamente amadurecido e surgem as primeiras entidades de representação e organização. Primeiro, o Centro de Cineclubes de São Paulo, seguido pelas Federações do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, do Nordeste e do Centro-Oeste. O amadurecimento organizativo e quantitativo do movimento culmina na fundação do Conselho 279 Nacional de Cineclubes (CNC)6 em 1962. Nesse momento, segundo Butruce, os cineclubes “apontavam para uma lenta superação de seu elitismo” (op. cit., p.5), provavelmente sob influência da ascendente teologia da libertação. Em tempos de ditadura civil-militar, o movimento cineclubista se junta aos movimentos sociais de resistência e suas entidades caem na clandestinidade. Por conta da censura, ter acesso às películas torna-se uma tarefa difícil e perigosa. Começa a delinear-se um caráter mais militante na atividade cineclubista, como podemos observar na entrevista do cineasta Cláudio Assis7: Eu saí daqui com um projetor passando filme até o Ceará. Saí de ônibus, de carona, com o operário Antonio Flores, passando Braços Cruzados, Máquinas Paradas. E eu passava chapéu, comecei a passar chapéu pra andar. E passava no bairros operários. E eu abri um cinema no Cabo de Santo Agostinho. [...] Era uma coisa organizada, que debatia ideologicamente, debatia a arte, o cinema como uma arte, só passava filme que tivesse um compromisso, só passava Bergman, só passava Buñuel, só passava Fellini, só passava os fodão, ou filmes engajados, filme que tivesse alguma coisa a dizer, dependendo do tema. [...] Existia essa posição, que era luta. Tinha uma formação de liderança, era liderar essas pessoas que estavam aí, que lutavam. Era uma resistência. Uma resistência cultural à ditadura militar. E toda esquerda estava no movimento cineclubista: PCdoB, MR8, todas as esquerdas estavam no movimento. E a direita também. [...] Se dava de congresso, de conselho, a reunião do encontro no Conselho Nacional, federação, as federações. Tudo isso havia uma movimentação. E lá era luta. Luta ideológica. Era pau! As entidades se reorganizam na década de 1970 e o CNC cria, em 1976, um departamento para distribuição alternativa de filmes em películas 16mm, em contraponto ao constante crescimento das distribuidoras estadunidenses: a Distribuidora Nacional de Filmes (Dinafilme). Sua atividade é marcada por constantes invasões e apreensões pela Polícia Federal e por dificuldades financeiras. No final da década, “a maioria dos cineclubes – que já são 600 filiados nominalmente ao CNC – é de bairros das periferias das grandes cidades” (Macedo, 2004). A partir da segunda metade da década de 1980, o movimento começa a entrar em decadência, chegando praticamente à extinção no começo dos anos 19908. Entre as produções historiográficas analisadas, há discordância a respeito dos motivos desse processo. Porém, uma abordagem sociológica do contexto sociopolítico desse momento histórico pode dar algumas pistas. O momento é de redemocratização e muitos grupos políticos, antes repelidos 6 Não confundir com o Conselho Nacional de Cinema (Concine), criado em 1976 e extinto em 1990. 7Cineclubista das décadas 70 e 80 e diretor de filmes como “Amarelo Manga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006) e “Febre do Rato” (2011). 8 Situação não somente retratada por Butruce (2003) e Macedo (2004), mas também visível pelo encerramento das atividades do CNC e pela ausência de encontros regionais e nacionais do movimento cineclubista durante esse período. Até mesmo nas entrevistas dos cineclubistas dos anos 1990 para o livro “Memória cineclubista de Pernambuco” observa-se que suas atividades enquanto tais se deram fundamentalmente nos primeiros ou nos últimos anos dessa década, evidenciando-se o vazio do movimento nesse meio tempo. 280 pela ditadura civil-militar e tendo encontrado no cineclubismo um campo frutífero de atuação, agora redirecionam seu foco para a disputa do Estado. Além disso, devemos suspeitar que a decadência do cineclubismo, o qual consistia em “militantismo” e “luta ideológica”, fizesse parte de um processo muito mais amplo: a figura do “trabalhador” reivindicador de direitos e cidadania protagonista dos movimentos sociais a partir da década de 1970, calcada na ideia do trabalho fordista e estável, vai sendo estilhaçada nas décadas seguintes. Sobre sua cabeça talvez caiam os cacos do muro de Berlim. Observa-se então um processo de formação de nova configuração social em que os “parceiros” da fábrica, da sociedade civil, das interseções entre público e o privado [...] não mais se negam mutuamente. Busca-se, assim, despedir da cena pública as figuras litigiosas do “trabalhador” e das “classes sociais”, que supõem uma divisão “infrutífera” no seio da sociedade e que reivindicam o direito ao conflito. [...] O corolário do consensualismo pós-democrático seria a proliferação de um regime de sondagem permanente da opinião individual, diluidora de qualquer figura coletiva anti-comunitária. (Bezerra, 2008, p.3) No mercado cinematográfico, observa-se uma progressiva concentração de capital nas mãos de distribuidoras estadunidenses, o fechamento de diversas salas de cinema pelo país e uma despreocupação por parte do governo federal que se evidencia no fechamento do Ministério da Cultura em 19909 e na privatização de empresas estatais ligadas a esse mercado. A passagem para equipamentos de películas 35mm começa a se tornar ponto de discordância dentro do movimento cineclubista. Até o começo da década de 1990, as atividades do CNC cessam e as poucas salas de exibição em 35mm passam paulatinamente para um caráter mais comercial. Destaco aqui o Estação Botafogo, no Rio de Janeiro, que posteriormente se tornou uma rede, o Grupo Estação. Os “novos” cineclubes – e já algumas salas de estrutura juridicamente comercial – vão cada vez mais ocupando um segmento de mercado que sempre existiu e que também havia ficado temporariamente vazio em meio às profundas transformações que estavam ocorrendo no cinema no Brasil. Trata–se do nicho – bastante significativo, aliás – de tudo que não é cinema americano, e mais claramente o cinema europeu (Macedo, op. cit.). O cineclubismo sai da inércia no começo dos anos 2000. Principalmente nas periferias das grandes cidades, surgem cineclubes com novas características. Dentre eles, encontram-se os cineclubes da Baixada Fluminense que foram observados pela pesquisa. A NOVA GERAÇÃO DOS ANOS 2000 9 O Ministério da Cultura foi transformado em Secretaria da Cultura no governo de Fernando Collor de Mello. Essa ação foi revertida dois anos depois durante o governo Itamar Franco, não significando, porém, a construção de um projeto político voltado ao meio cultural. 281 Não busco, nesse artigo, dar explicações definitivas a respeito do surgimento de novos cineclubes observado no começo dos anos 2000. Porém, novamente, alguns elementos constitutivos desse processo podem ser dados do ponto de vista sociológico. A seguir, darei quatro. Porém, gostaria de ressaltar que não se trata de uma tentativa de captar uma relação de causa e efeito que culminou no processo de renascimento cineclubista. Essa divisão em quatro elementos possui um caráter organizativo. O primeiro elemento recebe sua posição por sua obviedade: o surgimento de novas tecnologias digitais e seu processo de barateamento no Brasil, permitindo maior facilidade na produção, no acesso e na exibição de produções audiovisuais. Os equipamentos voltados às películas de 35mm começaram a perder espaço para os equipamentos digitais voltados aos novos formatos de mídia e às novas formas de armazenamento (CD, DVD, e posteriormente os discos rígidos portáteis). Seu barateamento foi permitindo cada vez mais sua obtenção por parte de indivíduos ou de pequenos coletivos de periferia. Porém, a mera existência de equipamentos não basta para explicar a motivação para a formação de cineclubes. O segundo elemento é uma nova configuração identitária que só faz sentido se analisarmos o contexto sociopolítico no qual está inserido. O estilhaçamento supracitado da figura do trabalhador fordista protagonista dos movimentos sociais na década de 1970 ganha ainda mais sentido se observarmos que, a partir do final da década de 1980, inicia-se um processo de desproletarização do trabalho na medida em que se busca neoliberalizar a economia brasileira. No Brasil, assim como em diversos outros países, o Estado “submete-se a receituários ortodoxos de instituições financeiras e sua associação com grandes empresas garante a estas últimas as condições de infra-estrutura e serviços necessárias” (Kovarick, 1988, p.29). Nesse período, o mercado financeiro é desregulamentado, as dívidas interna e externa são totalmente financeirizadas, o controle cambial é deixado de lado, empresas estatais são privatizadas. Francisco de Oliveira (2007) aponta que as medidas neoliberais dobram a taxa de desemprego em um período de apenas 10 anos, alcançando 8% em 2002. Ainda segundo ele, nos primeiros anos do século XXI, mais de 50% da população brasileira era pobre, e um terço se encontrava abaixo da denominada “linha de pobreza”. A chamada “flexibilização” das regulamentações jurídicas trabalhistas minou os mecanismos de distribuição de renda que estão historicamente vinculados ao trabalho sob contrato formal e proporcionou um acirramento da já existente distribuição desigual de renda. Nas periferias, cresce uma massa que transita entre trabalho formal e informal, entre lícito e ilícito. Essa categoria — periferia —, já antes utilizada na academia em estudos sociológicos a respeito da classe trabalhadora, começa a percorrer a classe média demarcando um estigma. 282 São construídas (ouso dizer como nunca antes) representações da periferia ou da favela enquanto espaços de desordem, violência, imoralidade e precariedade. Porém, nessa fluidez “entre trabalhadores ativos e o que antes era então chamado de exército industrial de reserva” (Telles, 2006, p.46), surge um movimento de fagocitose da categoria por seus próprios moradores. Começa a ser moldada uma identidade de periferia ligada à potência e carregada de orgulho. A arte ganha protagonismo, e no vácuo de um Estado que se pretende mínimo — visão a qual será relativizada mais a frente nesse trabalho —, coletivos tentam construir suas próprias alternativas à margem do eixo comercial cultural, valorizando a produção local. O terceiro elemento parte da visão sobre Estado neoliberal não apenas como um conjunto de medidas econômicas, mas como uma lógica de governo e seu conjunto de técnicas, no sentido de “governamentalidade” (Foucault, 1987). Surgem, a partir do final da década de 1980 “os programas técnicos governamentais e não-governamentais, dirigidos diretamente para a atenuação das carências críticas em áreas pobres e degradadas da cidade e para a falta de acesso a seus habitantes a meios de superá-las” (Paoli, 2007, p.228). As mazelas, ou “problemas sociais”, provenientes do acirramento da desigualdade social deveriam ser isoladas, objetificadas e pretensamente resolvidas com programas técnicos específicos. Observa-se um processo de esvaziamento da política — no sentido de Ranciére (1996), ou seja, constituída em dissenso, por ser a reclamação da parte dos que não tem parte. O Estado, de força centrífuga de conflitos políticos e de agente distribuidor de renda, passa a ser gestor da escassez. Nesse cenário, emergem a celebração do individualismo empreendedor e novas formas de associação a ele vinculados atuantes nas periferias das grandes cidades. Emergem projetos financiados por editais governamentais que identificam grupos de risco: temos como exemplo os cursos audiovisuais voltados aos jovens carentes para que estes não atuem junto ao tráfico de drogas. Observou-se nas atividades de pesquisa que muitos jovens organizadores de cineclubes são provenientes desses cursos e tiveram neles seus contatos iniciais com a produção audiovisual. Para além, portanto, do mero barateamento de equipamentos audiovisuais, foi fundamental o acesso e a capacitação necessários proporcionados por esses projetos. Há ainda um quarto elemento: o interesse do governo federal no renascimento do cineclubismo. Com esse objetivo, após um vácuo de 14 anos sem que houvesse encontros nacionais, ocorre a 24ª Jornada Nacional de Cineclubes, por iniciativa do Ministério da Cultura (MinC). As atividades do CNC são retomadas logo em seguida. Além disso, em 2008, com o início das atividades do Programa Cine Mais Cultura, os cineclubes passaram a ganhar equipamentos audiovisuais e acesso a um acervo de produções cinematográficas nacionais, a 283 Programadora Brasil. Encontrar-se a seguinte apresentação do programa em seu portal online10: Com a concentração de salas comerciais de cinema em apenas 8% do território nacional e a quantidade muito reduzida de obras audiovisuais brasileiras na TV, a maioria dos filmes produzidos no país permanecem inéditos para grande parte de sua população. Norteado por demandas apresentadas em diálogos com a sociedade civil, o Ministério da Cultura, sob orientação do Programa Mais Cultura, promove a ação Cine Mais Cultura. Através de editais e parcerias diretas, a iniciativa disponibiliza equipamento audiovisual de projeção digital, obras brasileiras do catálogo da Programadora Brasil e oficina de capacitação cineclubista, atendendo prioritariamente periferias de grandes centros urbanos e municípios, de acordo com os indicadores utilizados pelo Programa Territórios da Cidadania. O Programa Territórios da Cidadania também foi lançado em 2008 e conta com a atuação de 22 Ministérios e 120 territórios delimitados em áreas rurais de todos os Estados brasileiros. Seu objetivo é a universalização de direitos básicos através de estratégias de desenvolvimento territorial sustentável11. Esses programas estão em consonância com a postura adotada pelo MinC a partir de sua reestruturação em 2003: mais sensível aos movimentos sociais, ele passou a dar mais atenção ao mercado cinematográfico brasileiro e a enxergar o acesso aos bens culturais enquanto um direito. A estratégia, portanto, é incentivar a formação de cineclubes nas periferias das grandes metrópoles e em municípios periféricos em relação às grandes metrópoles, tendo em vista o grande déficit de salas de cinema no território nacional. Por outro lado, na medida em que os cineclubes proporcionam o público para cineastas independentes, ameniza-se a tensão criada pela grande concentração de capital por parte de poucas produtoras e distribuidoras. Uma obra financiada pelo MinC, que dura pouco tempo em cartaz nos cinemas comerciais e que pouco arrecada, passa a ser disponibilizado gratuitamente na Programadora Brasil e pode alcançar um público telespectador maior nos cineclubes, equipados pelo Cine Mais Cultura. A atividade cineclubista, portanto, não somente garante o público de cineastas independentes, como garante para esse público, que em boa medida se encontra à margem do eixo comercial, uma opção de acesso a alguma produção cultural. ALGUMAS REFLEXÕES CONCLUSIVAS Considerando-se o papel delimitado pelo governo federal, o cineclubismo corre o risco de perder o caráter de movimento social autônomo reivindicador de novos direitos, para 10 11 Disponível em: <http://www.cinemaiscultura.org.br/>. Acessado em: agosto 2012. Ver <http://www.territoriosdacidadania.gov.br>. Acessado em: agosto 2012. 284 tornar-se uma política pública de acessibilidade ao mercado cultural. Na avaliação de Felipe Macedo, cineclubista das décadas de 1970 e 1980: Ao militantismo de outras eras substituiu-se uma certa “profissionalização” de um núcleo central de “produtores” do cineclubismo em escala nacional, ligados à pequena política e a suas carreiras pessoais e/ou que vivem do Estado ou da sua condição de “representação” do movimento. [...] A defesa dos direitos do público reduziu-se a uma concepção utilitária de “acessibilidade” que mal esconde a ideologia de busca de uma plateia e um “mercado” para essa produção. (Macedo, 2011) À frente do cineclubismo, assim como da periferia enquanto categoria fagocitada e transformada por seus moradores em uma marca identitária, colocam-se duas relações problemáticas: com o mercado e com o poder público. Se antes a periferia era vista enquanto espaço de ausência e de violência, hoje há um movimento de hiperexaltação da periferia enquanto potência criativa. Celebram-se iniciativas “façamos por nós mesmos” ou categorias como “gambiarra”. Essa guinada de um extremo ao outro pode fazer perder de vista o âmbito do conflito gerado pela ausência que também é constitutiva da periferia: ausência gerada pelo fornecimento visivelmente desigual de serviços e equipamentos entre ela e o centro financeiro e simbólico. Por outro lado, é constitutiva dessa identidade periférica uma crítica mais sistemática à desigualdade social e à lógica comercial de produção cultural, porém, como mantê-la ao passo que os artistas culturais periféricos conquistam um espaço no mercado e a arte de periferia transforma-se em nicho de mercado? Em termos gramscinianos 12, o risco (ou talvez tendência) do cineclubismo e dos movimentos periféricos nesse momento é perder o caráter contra-hegemônico e passar a ser não-hegemônico na medida em que podem contrariar os interesses das grandes corporações sem questionar a lógica mercadológica constitutiva. O grande dilema atual é como ser contra-hegemônico e, ao mesmo tempo, lutar para viver dignamente de sua atividade? A cultura de periferia, portanto, anda em uma corda bamba entre criticar as regras do jogo e disputar um espaço no jogo. BIBLIOGRAFIA AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA. Instrução Normativa nº63, de 02 de outubro de 2007. Disponível em: <http://www.ancine.gov.br/legislacao/instrucoes-normativas- consolidadas/instru-o-normativa-n-63-de-02-de-outubro-de-2007 >. Acesso em: ago. 2012. BERG, Mette Louise. “O desafio de encontrar e definir o terreno: reflexões em torno de uma investigação entre diáspora cubana em Madrid”. 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TELLES, Vera da Silva. “Trajetórias urbanas: fios de uma descrição da cidade”. In: TELLES, Vera da Silva & CABANES, Robert (org.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Humanitas, 2006. 287 O ESPAÇO FREQUENTADO E O ESPAÇO PLANEJADO: PERSPECTIVAS ANTAGÔNICAS? Um estudo de caso no Morro Vital Brazil – Niterói. Heitor Vianna Moura1 RESUMO A partir de um diálogo entre o campo das ciências sociais e da arquitetura e urbanismo, o presente trabalho visa promover um exercício de reflexão sobre as dinâmicas e as relações entre o morador e o arquiteto durante um projeto participativo de requalificação de moradias. Resultado do estudo de caso do “Projeto Arquitetos de Família” no Morro Vital Brazil (Niterói), a pesquisa buscou decifrar as dinâmicas relacionais entre tais atores que, no fundo, revelariam diferentes percepções do espaço privado. Nesse sentido, buscou-se confrontar o modelo fragmentado, funcional, normatizado e, acima de tudo, desprovido da experiência de frequentação dos projetos arquitetônicos tradicionais com as práticas reais e cotidianas do homem ordinário. Portanto, para além da questão habitacional, o que estaria em questão é o próprio papel do arquiteto e urbanista, que não mais deve pensar sua prática a partir de uma coerência desincorporada, mas sim a partir da possibilidade da incorporação de tantas coerências quantos os sujeitos sejam capazes de produzir. INTRODUÇÃO A presente pesquisa se insere no debate atual das políticas habitacionais em vigor na cidade do Rio de janeiro. No entanto, ao contrário dos estudos focados nas políticas de remoção, indenização, realocação e construção de conjuntos habitacionais, seu olhar está focalizado na relação entre o arquiteto e o morador em projetos de requalificação de moradias, buscando, assim, revelar as percepções destes atores sobre os espaços privados. O interesse em estudar essa relação em particular se revelou na leitura de estudos que apresentam as dinâmicas construtivas em conjuntos habitacionais após a sua ocupação2. O que eles apontam é que ao desconsiderar seus futuros moradores enquanto produtores de signos classificatórios próprios e possuidores de demandas particulares ignoram também que as moradias sofrerão profundas modificações em seu processo de ocupação, sejam elas físicas e 1 Graduando do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Bolsista PIBIC-CNPQ. Nome: Heitor Vianna Moura; E-mail: [email protected]. 2 Andrade e Leitão (2000) apresentam uma leitura sobre o fenômeno da “favelização dos conjuntos habitacionais”, que revela o descompasso entre os espaços físicos projetados e o viver cotidiano de seus moradores. 288 estruturais ou em seus usos e significados. Tendo em vista as consequências da exclusão do futuro morador e frequentador do espaço projetado pelos arquitetos e urbanistas, o atual estudo buscou analisar uma experiência em que morador tivesse um papel ativo na produção de sua habitação, permitindo que o mesmo interagisse com arquitetos em um processo dialógico de elaboração de um projeto de modificação em sua moradia. A experiência foi possível através da pesquisa de campo realizada por intermédio das ações da ONG “Soluções Urbanas” no Projeto Arquiteto de Família no Morro Vital Brazil em Niterói. O estudo desse espaço interacional possibilitou a observação das diferenças entre as normas lógico-acadêmicas manejadas pelos arquitetos-urbanistas em face às que se manifestam de forma “espontânea” 3, a partir de valores culturais/subjetivos dos usuários das moradias. O arquiteto, sobretudo, tentando submeter à habitação a padrões racionais de organização, enquanto o morador busca criar um espaço de intimidade e comodidade que fosse além da simples utilização de estruturas fisicamente bem definidas. Ou seja, tal profissional pensa no espaço enquanto um fato material e objetivo a ser ocupado por atores que devem se enquadrar as funcionalidades normatizadas e o morador, ao contrário, com sua experiência da freqüentação e vivência de seu lar, que só se completa a partir da resignificação do mesmo espaço a partir de sensações, lembranças e desejos pessoais marcadamente subjetivos (LEITÃO, 2007). Nesse sentido, o que está em questão é a capacidade do arquiteto-urbanista superar a imposição de uma funcionalidade-estética formalista visando à uniformização do tecido urbano, em favor do respeito da especificidade e complexidade desses espaços. Levantando, assim, questões que superam os limites da habitação em direção ao espaço urbano como um todo. OBJETO Bachelard (1993), em sua célebre obra A poética do espaço, faz uma particular análise sobre o espaço da moradia. Ao contrário de outros trabalhos sobre o tema, o autor busca compreender a habitação independente da realidade em que está inserida, portanto independente das condições concretas e reais não só do espaço, mas de seus sujeitos. A casa por ele analisada é universal, para todo e qualquer sujeito, em qualquer lugar e qualquer 3 Na ausência de um termo mais apropriado na descrição fenômeno descrito, será utilizada a noção de espontaneidade para descrever espaços em que a presença das normas construtivas formais (planos urbanísticos, habite-se, impacto de vizinhança, estudos estruturais,...) raramente estão presentes. O que não significa uma total ausência de normas, mas limites outros (acordos entre vizinhos, autorização da associação de moradores, preocupação com a instabilidade do terreno,...). 289 momento histórico. Assim, seu estudo propriamente fenomenológico visa atingir a essência primeira da função de habitar, “(...) tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental.” (p. 198). Segundo o autor, a habitação é “o nosso canto no mundo”, “nosso primeiro universo”, “um verdadeiro cosmo”. Assim, a casa não se resume a estrutura física em que os homens se protegem das intempéries, mas o local em que o homem vive em sua realidade e virtualidade, abrigando o devaneio, o sonho e os dias passados e futuros de seu morador. Sem ela o homem seria um ser disperso. O autor, portanto, dá a casa o status de objeto privilegiado do estudo dos valores da intimidade. De Cearteau (1994), em uma análise menos filosófica, mas nem por isso mais objetiva dos espaços privados, se aproxima de seu conterrâneo ao considerar tais espaços um “lugar protegido” das pressões do corpo social sobre o corpo individual, onde, teoricamente, o plural dos estímulos seria filtrado. Em última instância, o que esses autores nos apresentam é uma dimensão da habitação que protege seus moradores não só fisicamente, mas simbolicamente, permitindo que estes manifestem suas subjetividades, vivências e idiossincrasias. No entanto, o espaço da habitação não deve ser pensado apenas como o local em que o sujeito exterioriza todas as suas qualidades, sentimentos e defeitos (ROUANET, 2007), atendendo assim as todas as suas demandas, socioculturais, econômicas e idiossincráticas (AMORIN, 2007), mas o resultado de um movimento espiral das demandas particulares do morador e os limites impostos pelo próprio espaço e as regras que os regulam. Portanto, é somente a partir dessa relação dialética que é possível pensar o espaço produzido e praticado pelos sujeitos em seu cotidiano. Cotidiano este que é estruturado e estruturante de todos os espaços frequentados por esses sujeitos. A habitação, como foi definida pelos autores supracitados, é antes de tudo um espaço que só se completa com a presença de seu morador e, mais do que isso, é produzida, mesmo que em sua virtualidade, a imagem de semelhança deste. Nesse sentido, é possível pensar a unicidade de cada lar a partir da unicidade de cada morador, sem que a análise fique restrita a microcosmos particulares. Por isso a importância de não considerar as casas no Morro Vital Brazil, inserido na lógica da flexibilização construtiva, como um elemento separado de seu contexto, pelo contrário ela modifica e compõem o seu entorno, assim como o entorno interfere direta e indiretamente na sua construção, sem que com isso as possibilidades de transformação sejam norteadas por parâmetros que alheios aos seus sujeitos. Tendo em vista o alcance das reflexões acerca das dinâmicas presentes no espaço estudado, é fundamental explicar de que maneira o Projeto Arquiteto de Família, em execução 290 no Morro Vital Brazil, visa lidar com o complexo ambiente em que atua. Em linhas gerais, o projeto está interessado em promover melhorias nas habitações existentes no local oferecendo assistência técnica gratuita4, permitindo que os moradores tenham acesso a profissionais capazes de oferecer soluções seguras, minimizadoras de riscos e promotoras de bem estar às suas reformas. O projeto se diferencia através de sua metodologia participativa, que visa eliminar a associação da figura do arquiteto e urbanista como elemento ordenador, impositor de uma determinada lógica construtiva, em favor de um planejamento disposto a escutar e incorporar os desejos de tais moradores na elaboração dos projetos de modificação. No entanto, como foi observado ao longo da pesquisa, essa experiência nem sempre ocorre sem disputas e conflitos. TRABALHO DE CAMPO E ENTREVISTAS. Dado que o ambiente estudado apresentava uma diversidade e dinâmica muito intensa, optou-se pelo uso de duas metodologias de investigação: a observação participante e entrevistas semi-estruturadas. O que permitiu uma percepção mais completa, dinâmica e interativa do processo de produção de moradia. No primeiro momento optou-se pelo uso da observação participante, uma vez que ela proporcionaria não só o estabelecimento de relações comunicativas com as pessoas ou grupos estudados, mas diminuiria a distância entre os discursos e as práticas concretas dos atores sociais (MAYER, JACCOUD, 2008). Desde o princípio foi imediatamente percebido a importância dessa relação mais próxima com o grupo pesquisado, sendo possível, ainda que de forma limitada, senão partilhar o modo de vida dos atores, ao menos interagir de forma duradoura com os mesmos. Nesse sentido, apesar de não ter sido viável “viver no seu íntimo a tendência principal da cultura em que está estudando” (LAPLANTINE, 2004), a experiência ao menos permitiu que fosse minimizada, mas nunca eliminada, a artificialidade criada durante uma entrevista. Numa etapa posterior da pesquisa, foram finalmente realizadas entrevistas semiestruturadas com 9 moradores e 4 arquitetos, dentro de um universo de 100 famílias e 15 arquitetos. Na prática, foram marcadas entrevistas com os atores nos horários e espaços que mais lhe convinham, privilegiando não uma suposta padronização, mas a produção de uma situação em sua máxima cooperação. Seguindo essa linha de priorizar a fluidez do processo, 4 A assistência técnica é um direito legal de famílias moradoras de áreas de interesse social com renda de até três salários mínimos, segundo a lei federal nº 11.888 sancionada no dia 24 de Dezembro de 2008. No entanto, seu descumprimento acaba abrindo espaço para atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs), como é o caso do projeto ora estudado. 291 negou-se a possibilidade de submeter os atores às mesmas perguntas, tendo em vista que cada autor percebe as questões de uma maneira, não garantindo nenhuma univocidade das respostas. Pelo contrário, a entrevista foi estruturada em eixos temáticos que se entrecruzaram ao longo do processo, produzindo um material co-construído e, portanto, único tanto no processo de construção como no seu resultado final. A investigação, que se estendeu por um ano, não só buscou contemplar as mais diversas etapas do projeto, mas ter contato com o maior número possível de interações entre os moradores e os arquitetos. O que se observou nessas visitas foi uma relação dialógica muito intensa, pois ao mesmo tempo em que o morador apresentava seus anseios, o arquiteto deveria tentar satisfazê-lo, mas sem que isso rompesse radicalmente com as suas noções de uma moradia ideal. Sendo o grande desafio a captação desses momentos de atrito, o que dificilmente seria possível caso a pesquisa fosse produzida apenas através de entrevista. Isso porque, em nenhuma das entrevistas aos moradores foi relatado qualquer atrito com as opiniões dos arquitetos, tendo a sua totalidade afirmado que assim como todos os seus desejos foram contemplados no projeto, as opiniões dos arquitetos foram de ótima serventia, o que dificilmente se sustenta após a experiência de campo. Já os arquitetos apontam alguns conflitos durante o processo, mas que foram quase todos superados após longos diálogos. Contudo os mesmos divergem quantos os limites desses acordos, enquanto uns defendem serem como consultores dos moradores, onde o fim último deve ser sempre a realização dos desejos do habitante, outros acreditam que devem ser impostos limites claros nessa relação, em que certos critérios de habitabilidade seriam inegociáveis. Para exemplificar essa situação dois casos são bem elucidativos. O primeiro deles ocorreu em uma das casas em que foi possível acompanhar duas visitas, assim como entrevistar o arquiteto e o morador em um momento posterior. Nela os moradores gostariam de construir um segundo andar para os quartos dos filhos, ampliando consideravelmente a área de circulação da casa, no entanto durante o processo o primeiro andar da casa foi alugado para um bar e seus moradores foram obrigados a construírem o segundo andar às pressas. Essa situação inesperada obrigou que o arquiteto lançasse mão de um projeto em favor de uma “consultoria” improvisada, como o mesmo denominou, o que no dia resultou em alguns conflitos com relação à disposição dos cômodos5. Durante as entrevistas ambos os atores contaram sobre o caso, mas os discursos não poderiam ser mais conflitantes. Enquanto o 5 Por exemplo, o arquiteto insistiu pela construção de uma coxinha em linha (fogão e geladeira separados pela pia em uma linha reata), o que foi negado pelos moradores, que defenderam que tal disposição dificultaria a preparação dos churrascos na casa. 292 morador contou ter sido essencial a presença do arquiteto e a relação não ter produzido qualquer forma de conflito, o arquiteto relatou que essa casa abandonou o projeto e que ele apenas opinou sobre alguns aspectos do projeto, a maioria das vezes sem sucesso. Em um segundo caso a situação se repete, a moradora diz ter gostado bastante de ter a ajuda da arquiteta durante a elaboração do projeto e que sem ela dificilmente a reforma de sua casa seria possível. Já a arquiteta disse ter ficado impressionada com a distância entre o projeto e as reformas executadas, uma vez que não reconhecia nenhum elemento do plano na construção real. Os dois casos nos fazem refletir sobre um aspecto importante sobre a dinâmica de construção desses moradores. Apesar dos relatos poderem representar um indício de uma não compreensão do morador ao projeto proposto ou um receio de contrariar o arquiteto durante a sua elaboração, parece importante considerar que esses atores possuem noções distintas do conceito “projeto”. Apesar de todos os moradores terem reconhecido a importância do arquiteto no planejamento das obras, dificilmente o “projeto final” era tratado como fim último, pelo contrário, este, na prática ou no discurso, se tratava de apenas mais uma das etapas de uma dinâmica permanente. Já os arquitetos, mesmo enfatizando a importância de produzir participativamente o projeto, tinham certa dificuldade em compreender a centralidade da inconstância e perpétuo movimento nesses espaços, uma vez que o projeto, enquanto ferramenta metodológica, parecia incapaz de responder a esses desafios. Nesse sentido, a incompatibilidade entre as práticas tradicionais acadêmicas e os “espaços-movimentos”6 observados no campo parece corroborar com a tese de Jacques (2004, 2006) de que são exatamente nesses espaços em que tais práticas devem ser questionadas quanto a sua aplicabilidade. Por exemplo, foi possível observar três elementos que constantemente estavam presentes nas casas visitadas e que indicam para processo construtivo constante: a presença de materiais de construção guardados para futuras obras; a constante transformação e realocação da configuração espacial dos cômodos; e o uso da laje como um espaço de futura ocupação, ou seja, um local a ser transformado e ocupado. Tornando essas casas o local da inconstância e do “não-planejamento" nos termos formais, o que não significa 6 Segundo Jacques (2002) “A ideia de espaço movimento não estaria mais ligada apenas ao próprio espaço físico, mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo e, ao mesmo tempo, ao movimento do próprio espaço em transformação. O espaço movimento é diretamente ligado aos seus atores (sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços do cotidiano quanto os que constroem e os transformam sem cessar. No caso das favelas os dois atores podem estar reunidos em um só, o morador [...] no espaço em movimento o usuário passivo (espectador) se torna sempre ator (e/ou co-autor) e participante.” (p. 56) 293 que a presença dos arquitetos seja despropositada, mas que os mesmos devem rever suas práticas no sentido de permitir que tais dinâmicas não sejam cerceadas. Essa questão ficou clara nas entrevistas realizadas com os arquitetos, em que muitos deles relataram dificuldade, sua ou dos demais, em lidar com as constantes modificações sugeridas pelos moradores ou com as obras que confrontam os projetos sugeridos. O que revela certo apego aos projetos já planejados, quando, na verdade, deveriam ser concebidos como um processo sempre sujeito a revisões, tendo em vista que é fruto das necessidades imediatas e futuras de seus moradores. Como fica claro na resposta quase que unívoca dos moradores quando questionados sobre a execução das obras, tais como foram planejadas no projeto: “Acho que sim, mas q v f m v m h ...”. Tal dificuldade parece ter correspondência com duas questões: a flexibilidade construtiva, que parece ter correspondência com que Jacques (2003) caracterizou de rizomático7, e formação dos profissionais entrevistados, cuja graduação privilegiou em sua grade disciplinas voltada para os aspectos estruturais, estéticos e funcionais da casa, assim como a promoção de trabalhos práticos completamente divorciados da realidade dos habitantes, tendo vista que são planejados a partir de um espaço e de um morador hipotético. O que torna fundamental uma breve investigação sobre as bases teórico-metodológicas da arquitetura e urbanismo, visando promover uma articulação entre esse campo e às ciências humanas. REFLEXÕES TEÓRICAS Partindo de uma breve recuperação histórica do desenvolvimento da arquitetura e urbanismo, é possível perceber que tal ciência assume os traços hoje conhecidos a partir das transformações ocorridas durante o século XIX na Europa8. Isso por que acabou assumindo a função de romper com o antigo modelo das cidades medievais (labirínticas, fragmentadas e de desenvolvimento mais orgânico), em favor de um modelo mais eficiente e racional, apropriado ao novo sistema produtivo em questão (JACQUES, 2003). Françoise Choay, em seu ensaio “O urbanismo em questão” (1979), trata do desenvolvimento das escolas de pensamentos que se formaram desde os movimentos pré7 Segundo Jacques (2003) o caráter rizomático (GUATTARI, DELEUZE, 1995) das favelas se opõem não só a cidade projetada (cidade árvore), mas também a cidade semi-projetada (cidade-arbusto), sendo esta a cidade sem projeto, a cidade-mato. Em poucas palavras, esse tipo de ocupação tem um movimento sempre surpreendente, seguindo as linhas de fugas num constante fluxo, se opondo a qualquer demarcação fixa que visa cessar os movimentos pré-existentes, portanto não é um sistema, mas um processo. 8 Apesar de historicamente a arquitetura e o urbanismo remontarem aos gregos clássicos, é possível dizer que com o advento da modernidade estas ganharam uma dimensão até então inédita, pois passaram a explorar não apenas a estética, mas, sobretudo, os espaços coletivos 294 urbanistas até os movimentos que atuantes no final do século XX. Nele será destacada, para os propósitos da presente análise, a leitura do modelo racionalista-progressista sobre os espaços, públicos e privados, uma vez que seu herdeiro imediato, o modernismo, foi uma das correntes mais influentes no pensamento brasileiro. Com o surgimento no início do século XIX, o progressismo buscou lidar com o temor da desordem da cidade industrial através de um estudo sistêmico que ajudaria na determinação de uma ordem-tipo capaz de ser aplicada em qualquer agrupamento humano, não importando a sua localização espacial ou temporal. Tal ordem privilegiava uma lógica e estética austera, dando forte importância à fragmentação e atomização a partir das funções humanas básicas. Apesar de fracassado na tentativa de racionalizar os novos espaços industriais, seus ideais foram revisitados já no século XX, quando uma das mais fortes correntes da arquitetura e urbanismo passou a imperar: o modernismo ou progressismo moderno. Esse novo modelo, cujos princípios são descritos na Carta de Atenas 9, se coloca a serviço da modernidade do século XX, tendo como máximas a eficácia e a estética. Através de formas simples e geometricamente pensadas, os teóricos do movimento criam espaços fragmentados e ordenados a partir de funcionalidades específicas. Inspirado na noção de ordem-tipo, o movimento elabora a noção de homem-tipo, que seria representado por quatro funções básicas: habitar, trabalhar, locomover-se e cultivar o corpo e o espírito (lazer). Frente a essa divisão, a cidade passa a ser pensada a partir da necessidade de “completar nossas capacidades naturais por meio de elementos de reforço” (LE CORBUSIER, 1976). Ou seja, em favor das necessidades básicas desse homem universal passou-se a pensar a cidade e os espaços que a compõe como locais isentos de qualquer particularismo e, mais do que isso, a construção de espaços regidos por uma lógica matemática capaz de prover o encontro entre o belo e o verdadeiro. Le Corbusier, seu principal teórico, buscou formular os princípios fundamentais do urbanismo moderno. Pensado em seu limite, o célebre urbanista nos interessa não só pela sua concepção de cidade, cuja experiência máxima brasileira pode ser observada através do plano piloto de Brasília elaborado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer, mas principalmente pela sua concepção de habitação. Segundo o autor, a casa deveria ser pensada a partir de sua concepção de apartamento-tipo, que possuiria “(...) funções determinadas em um espaço 9 Manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional da Arquitetura Moderna, realizado no ano de 1933 em Atenas. Tendo como foco a “cidade funcional” o documento traça as principais diretrizes do movimento, cujo principal teórico foi Le Corbusier. 295 mínimo, instransformável, obrigando os ocupantes a seguirem os esquemas de circulação elaborados e pensados pelos arquitetos, que deduziu serem os melhores possíveis” (Choay, 1979, p. 25). Privilegiando os princípios da higiene, da luz, da ventilação e da circulação, os arquitetos deveriam ser capazes de criar uma “célula perfeita humana”, ou melhor, projetar a casa tal como “uma máquina de morar”, célebre expressão do autor. Tal descolamento da realidade e distanciamento dos usuários não foi privilégio da matriz progressista, pelo contrário, ele dominou durante grande parte do século XX. O esforço de promover modelos e esquemas ideais estabelecidos aprioristicamente só começou a ser contestado de forma mais incisiva a partir da segunda metade do século XX, quando teóricos da área passaram a questionar a ilusão de um urbanismo científico, para se aproximar de um urbanismo mais participativo, dialético, humano e histórico. No centro desse debate temos os movimentos / escolas10 urbanístico-arquitetônicas: a antrópolis, em que se destaca a americana Jane Jacobs, e a situacionista, assim como a própria Françoise Choay, que não se encaixa em nenhuma dessas escolas. Choay (1979), por exemplo, destaca a importância de desnaturalizar os discursos urbanísticos, evidenciando as tendências e sistemas de valores que estão por detrás deles. Mais do que isso, ela qualifica as tentativas de se propor uma ordem a uma realidade supostamente desordenada como parte de projeções racionalizadas pelo imaginário coletivo e individual, que, enquanto produto de uma imaginação, são profundamente arbitrárias. Além disso, a autora critica a linguagem utilizada pelos urbanistas, devido o seu limite e seu tom imperativo. Não só porque o habitante não participou da elaboração de tal linguagem, mas também por não compartilhar dos sistemas semiológicos construídos pelos teóricos, frustrando toda capacidade comunicativa que a urbanidade oferece. Por fim, a autora advoga que é preciso deixar de conceber as aglomerações urbanas em termos de modelos e funcionalismo, negando qualquer formula fixa que se propõe como solução verdadeira e incontestável em favor de sistemas que privilegiam as relações, que criem estruturas flexíveis, uma pré-sintaxe aberta a significados ainda não construídos. Ou seja, defende um urbanismo onde os moradores são interlocutores e criadores de significados, negando a noção de urbanismo como pai castrador dos jogos criativos de seus habitantes. 10 De difícil consenso, os termos escola ou movimento podem sugerir duas impressões. A primeira dela é de uma escola de atividades, cujos componentes estão dispostos a trabalharem juntos, mesmo que seus pensamentos se distanciem no plano teórico. Esse foi o caso dos situacionistas, grupo de diversas tendências artistas de vanguarda que passaram a trocar ideias e trabalhos na Internacional Situacionista. O segundo caso são as escolas de pensamento, cuja definição mais se aproxima de uma conceituação criada a posteriori com o intuito de aproximar atores cujos pensamentos se conectam em um determinado espaço de tempo por sua semelhança no plano das ideias ou dos atos. Caso dos antrópolis. 296 Também críticos do urbanismo teórico e abstrato, os “antrópolis” defenderam uma reintegração do homem concreto no movimento de planificação urbana, lidando assim com temporalidades e espacialidades concretas. Nesse sentido, a ruptura principal seria a negação da noção de modelo, tendo em vista que não existiria uma cidade-tipo ou um homem-tipo, mas tantas cidades e homens quantos casos particulares, sendo incoerente qualquer tentativa de previsão ou criação de modelos utópicos padronizados. Para os estudiosos desse movimento, podendo ser citados L. Duhl, D. Riesman, Geddes e Jane Jacobs, os habitantes não deveriam ser submetidos a um planejamento urbano como fato consumado, mas deveriam ser convidados a participarem ativamente, deixando a posição de objetos para se transformarem em atores, ou melhor, interlocutores do arquiteto. Jane Jacobs, a mais célebre autora do movimento, em sua obra clássica “Morte e Vida de Grandes Cidades” (2003), apresenta uma consistente defesa em favor da diversidade. Segundo a autora o arquiteto-urbanista deve deixar de encarar a cidade e sua diversidade inerente como uma desordem a ser disciplinada, pelo contrário, o que a cidade apresenta é uma ordem surpreendentemente complexa, com mistura de usos e vitalidades ímpares, desconstruindo, assim, o binômio ordem e desordem proposto pelo modelo progressista. Por isso a autora propõe uma mudança de perspectiva do olhar sobre a cidade. Ao invés de observá-la a partir de um plano distante e cartográfico, onde são privilegiadas as repetições, as figuras geométricas e a ideia de continuidade, deveriam observa-la a partir de uma perspectiva visual de curta distância, onde os detalhes e a intensidade da vida saltam os olhos. Tal mudança seria capaz de proporcionar a esse profissional uma visão cara ao cidadão usuário de tais espaços, o mesmo que é plenamente capaz de dar um significado e uma ordem ao seu olhar íntimo. Em uma proposta mais crítica e radical, mas em sintonia com as anteriores, o movimento situacionista11 teve uma posição combativa a espetacularização da cidade, limitadora das práticas concretas. Segundo seus participantes, cujo mais célebre é Guy Debord (1997), na “cidade do espetáculo” o cidadão é um mero figurante em um cenário criado por urbanistas e arquitetos, exatamente o inverso da cidade proposta por eles: construída coletiva pelos seus cidadãos, não mais espectadores, mas protagonista do processo. Nesse sentido eles negavam qualquer forma de cidade pré-definida, tendo em vista que sua criação dependeria das múltiplas participações. (JACQUES, 2006). Apesar de nunca ter 11 A Internacional Situacionista foi um movimento artístico e político dos anos 50 contra a não-participação, a alienação e a passividade da sociedade, que apesar de terem dedicado seus estudos aos mais diversos campos da vida social, contribuíram fortemente para o debate urbanístico. 297 existido uma forma material de cidade situacionista, mas formas situacionistas de viver e experimentar a cidade, em que seus habitantes passam a construir, transformar e vivenciar seus próprios espaços, tal movimento promoveu, e ainda promove, uma reflexão autocrítica do urbanismo enquanto disciplina e prática construtiva. Portanto, ao contrário do que pensavam os modernistas, que defendiam que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a cidade, para os situacionistas seria a cidade e as experiências nela experimentadas que transformariam essas áreas do saber. (JACQUES, 2003) E é partindo dos espaços praticados que autores das ciências humanas contribuem na promoção do debate ora proposto. Esse é o caso de Michel de Certeau (1994, 2001), que rejeita a visão aérea dos urbanistas em favor dos praticantes ordinárias da cidade, sujeitos estes que subvertem o ambiente normatizado a partir de dentro, criando pequenos espaços de resistência, fissuras e conflitos. Questão que pode ser sintetizada a partir de dois conceitos chaves de sua obra: estratégia e tática. Enquanto a primeira teria como objetivo perpetuar o que é por ela mesma produzida, a segunda se infiltra em busca de espaços de flexibilidade. Traduzido aos termos da produção do espaço urbano podemos compreender as estratégias a partir de um urbanismo que se imaginar enquanto uma técnica de organização e racionalização das aglomerações humanas, que, a partir de uma visão altamente funcionalista, pensa os espaços como ações completamente estanques e que devem respeitar determinadas regras na sua utilização. Sendo o povoamento desses espaços mortos o que Certeau chamou de táticas, ou seja, a possibilidade do indivíduo subverter o ambiente normatizado a partir de dentro, o que não necessariamente gera uma grande transformação ou rejeição ao espaço, mas o faz funcionar em outro registro. Nas suas palavras a tática é acima de tudo a “arte do fraco”, que tem a sua disposição a astúcia e com ela desafia o espaço disciplinar. Lógica que pode ser pensada nos espaços privados quando os moradores resistem e rejeitam a possibilidade de seus lares sofrerem intervenções fixadoras, como as casas sob intervenção de políticas públicas. Nesse sentido, o autor defende que “planejar a cidade é ao mesmo tempo pensar a pluralidade do real e dar efetividade a este pensamento plural: é saber e poder articular” (CERTEAU, 2001: 160), tarefa que não vem tendo êxito pelos planejadores, justamente por pensarem ser sua função exatamente o contrário desta. Nesse sentido, o discurso dos urbanistas ainda hoje reproduzem três operações daninhas a sua real tarefa: a produção de espaços que visem delimitar qualquer elemento que o comprometa; estabelecer um não tempo ou um sistema sincrônico capaz de eliminar as resistências da tradição; e a criação de um sujeito universal anônimo que é a própria cidade, produzido a partir de um número finito de 298 propriedades estáveis, isoláveis e articuladas umas sobre as outras. Como resultado, é produzido por tais profissionais um espaço geométrico com um “sentido próprio”, incapaz de ser reconhecido no uso corrente. Restando aos moradores e praticantes desses espaços sacudilos com uma força que ameasse todos seus cálculos, repetindo, assim, a “experiência jubilatória e silenciosa da infância.” (CERTEAU, 2001, p. 177). Pensando ainda sobre a possibilidade dos atores romperem com a lógica dos espaços projetados através de suas práticas cotidianas, é possível ainda citar brevemente outros autores que privilegiam a temática dos espaços praticados, foco da atual pesquisa. O sociólogo Leite (2002, 2009, 2010), por exemplo, articula seu conceito de “contra-uso” para analisar espaços moldados para determinadas práticas econômicas ou culturais que foram apropriados pelos sujeitos, que lá expressam suas singularidades e reivindicam seus direitos, onde as pessoas compartilham e disputam realidades em um ambiente de pluralidade. Ideia também presente no texto de Arantes (2001), que a partir do termo “guerra de lugares” descreve os conflitos, tensões e trocas espacializadas numa sucessão e superposição de espaços urbanos. Ou Martins (2010) que se opõe a noção de cotidiano do homem ordinário como algo repetitivo e banal, portanto reprodutor e destituído da capacidade de transformação, em defesa de que sem essa esfera o pesquisador se torna alheio ao acontecer histórico da vida urbana, assentado nas contradições dos processos históricos. Ressaltando ainda importância de Lefebvre, (1999, [1974] 2000), seja a partir da noção do cotidiano como contraponto da História; em sua defesa por uma noção dialética de espaço12; a crítica da substituição da práxis pelas representações que os urbanistas têm do espaço; ou, ainda, sua proposta de “ritmanálise”, que estimula a percepção do observador sobre as múltiplas expressões da vida pública: sonora, visual, olfativa, rítmica, histórica, entre outras (FORTUNA, 2009). Em suma, o que esses autores apresentam é a capacidade do usuário dos espaços projetados, pelos próprios ou por outros, de os atualizarem e ressignificarem através de suas práticas, vivências e experiências cotidianas, tornando-os o espaço da impermanência e do dissenso. O que não só indica a necessidade dos arquitetos e urbanistas reverem suas práticas nas políticas habitacionais, mas inverterem seu olhar sobre a cidade, menos interessado em ordená-la e mais focado na compreensão e gestão de seu movimento ininterrupto. NOTAS CONCLUSIVAS. 12 Espaço como mediador das práticas sociais, portanto socialmente construído, mas também com produtor dessas relações. Ou seja, ao ser produzido ele intervém na produção em si. (LEFEBVRE, [1974] 2000) 299 Ao longo do caminho percorrido, a particularidade do espaço estudado ficou evidente. Em primeiro lugar, buscou-se descontruir a ideia de que a habitação é um mero espaço físico com o intuito de abrigar seus habitantes das intempéries, mas que, muito além disso, é um elemento constitutivo da própria experiência de seus habitantes, onde este abriga seu passado, presente e futuro na forma de vivências cotidianas e devaneios. No entanto, a pesquisa não tratou da habitação a-temporal e a-histórica, como assim o fez Bachelard (1993), mas de casas localizadas no Morro Vital Brazil e habitadas por sujeitos concretos únicos. A partir da análise mais ampla desse espaço, observou-se uma flexibilização construtiva de seus moradores, que se liberam da submissão às normas formais de uso e ocupação do solo, em favor de uma atuação mais livre. No entanto, isso não significa que seus moradores vivam em um ambiente destituído de normas, mas que as normas que vigoram nesses espaços possuem lógicas e limites outros, portanto, não reconhecidos por agentes externos. Nesse sentido, o estudo da habitação nesse local corresponde a uma tentativa de promover um exercício de reflexão que permita não mais pensar os espaços ditos “informais” ou espontâneos a partir da ótica da cidade racionalmente planejada, mas exatamente o inverso. Logo, a investigação mais do que reconhecer a necessidade de uma mudança da atuação dos arquitetos e urbanistas em locais como o MVB, como o fez o PAF, questiona as implicações de uma atuação que visa eliminar a capacidade inventiva e criativa de seus usuários, em todo e qualquer local da cidade. Por isso o interesse de compreender as teorias urbanísticas enquanto um elemento norteador da prática de tais profissionais, assim como a o processo de produção do lar, físico e simbolicamente, através da tradição sociológica e de áreas irmãs. Tanto o trabalho de campo como as entrevistas indicaram que por mais que os arquitetos que trabalham no projeto, idealizado em sua forma mais participativa, se coloquem abertos às propostas e anseios dos moradores, ainda é difícil para eles a desconstrução de sua imagem como elemento ordenador dos espaços ou ainda de idealizadores de cenários de longa duração. Assim sendo, vale lembrar que esses profissionais norteiam suas atuações em determinados contextos paradigmáticos, que não só influenciam sua prática, mas também sua própria capacidade reflexiva. Vale, portanto, pensar que muito do que hoje é produzido por tais profissionais é orientado por tradições teórico-metodológicas incapazes de pensar seu espaço de atuação em toda a sua complexidade, uma vez que costumam reduzi-los a modelos fragmentados, funcionais, normatizados e, acima de tudo, desprovidos da experiência de frequentação e vivência de atores reais e seus imponderáveis. Logo, não parece difícil compreender o porquê 300 de espaços como o MVB serem vistos como a imagem de semelhança do caos e do desequilíbrio, ou melhor, do fracasso urbanístico, quando na verdade são exatamente os locais onde a participação dos múltiplos atores se manifestam em sua forma mais próxima de sua plenitude. Diferente da produção de um discurso que romantiza espaços como MVB, buscou-se reconhecer os problemas resultantes de uma atuação sem a presença desses profissionais, mas, acima de tudo, a dificuldade de tais profissionais em atuarem em uma área em que a permanência inerente a um projeto arquitetônico não faz sentido. No entanto, essa falta de sentido, segundo certos teóricos da cidade, não é exclusividade de locais como o estudado, mas uma questão referente a toda cidade. Seria possível continuar pensando a atuação desses profissionais a partir de categorias como fixidez, permanência, projeção, racionalidade, quando os mesmos estão tratando de espaços frequentados e produzidos por uma teia de atores fluidos e inconstantes? Ou melhor, seria ainda pertinente basear a atuação desses profissionais a partir das dicotomias ordem e desordem, equilíbrio e desequilíbrio? A experiência confirmou a necessidade de tais profissionais superarem a imposição de uma funcionalidade-estética formalista que tende à domesticação e uniformização de todos os espaços urbanos, inclusive os privados, em favor de uma visão menos cartográfica e mais próxima do cotidiano dos atores, permitindo que esses sujeitos sejam transformados em protagonistas dos processos de produção espacial, mesmo que estes nunca tenham deixado de serem. Deste modo, a negação de uma cidade pré-definida, em benefício das múltiplas participações, permitiria o movimento em direção ao que os situacionista defenderam como rompimento da “cidade espetáculo” e dos modelos paradigmáticos do modernismo / progressismo: a cidade e as experiências nelas experimentadas como subsídios na produção de novos constructos teóricos e práticas. A atuação na cidade deve, assim, ser pensada a partir da atuação e frequentação das estruturas fisicamente definidas pelos atores sociais, e não apesar deles. Logo, parece essencial não mais pensar a cidade a partir paradigmas cuja noção de equilíbrio é o fim último, cujos limites impedem que experiências concretas sejam incorporados por não corresponderem aos seus pressupostos13, mas sim a construção de constructos teóricos capazes de darem conta de todos os espaços da cidades como um processo multifacetado e dinâmico em transformação, em que cada indivíduo, pelo simples fato de percorrê-lo, seja 13 O debate acerca da dominação da perspectiva funcionalista, em detrimento de uma perspectiva da dialética da mudança na atuação dos arquitetos e urbanistas, será mais bem desenvolvido em um artigo publicado em parceria com o Prof. Dr. Brasilmar Ferreira Nunes, em que discutimos a “racionalidade” e a espontaneidade no espaço urbano. (NUNES, MOURA, 2012). 301 capaz de atualizar seu significado e usos sem que isso seja cerceado por lógicas externas a ele. O que está em questão é o próprio papel do arquiteto e urbanista, que não mais deve pensar sua prática a partir de uma coerência desincorporada, mas sim a partir da possibilidade da incorporação de tantas coerências quantos os sujeitos sejam capazes de produzir. Processo este que Jacques (2002) denominou “urbanismo incorporado”, mas que prefiro chamar de “urbanismo plurifacetado”. Por fim, o artigo propõe como exercício intelectual e epistêmico que os campos disciplinares ultrapassem os flertes interdisciplinares na tentativa de criarem novos constructos teóricos e paradigmáticos (CORRÊA, 2007), mais do que isso, se torna fundamental a exploração de saberes aparentemente distantes, mas capazes de produzir o novo, a ruptura, sem que isso signifique uma negação do conhecido, mas uma produção dialógica e espiral em busca de respostas ao que hoje parece ofuscado por “verdades dogmáticas”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, L. A casa – Espaços e narrativas. In: LEITÃO, L., AMORIM, L. 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Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. 303 SABERES E CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: O CASO DOS MORADORES DE RUA EM SÃO CARLOS/SP Luciano Márcio Freitas de Oliveira1 RESUMO Nas últimas décadas observamos o surgimento de um fenômeno que passou a ser caracterizado como uma das principais questões urbanas. A existência de pessoas vivendo nas ruas das cidades propiciou a elaboração de um conjunto de “saberes” visando explicar esse fenômeno, como o desenvolvimento de pesquisas em diversas áreas do conhecimento e a criação de políticas públicas para atendimento a esse segmento. Este artigo pretende discutir, a partir de um contexto situado, como as transformações nas políticas de atendimento aos moradores de rua repercutiram em suas experiências cotidianas no espaço urbano. Sugerimos que a partir das transformações na política de assistência social na primeira década dos anos 2000, e o encadeamento dessas mudanças no âmbito municipal, propiciaram o surgimento de discursos e práticas que culminaram em um novo personagem o morador de rua de São Carlos. Essa situação produziu novas formas de gerenciamento dos moradores de rua bem como a organização bancas (agrupamentos de moradores de rua) em um determinado território da cidade. Esta pesquisa é parte de uma dissertação de mestrado, na qual foi realizada uma revisão bibliográfica acerca da temática, entrevistas com técnicos, a trajetória profissional do pesquisador como gestor, que atuou na política de atendimento aos moradores de rua na cidade de São Carlos, interior paulista. Ressaltamos também a realização de pesquisa etnográfica em um agrupamento de rua no ano de 2011. Palavras-chave: morador de rua, assistência social, interior paulista. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas observamos o surgimento de um fenômeno novo, ao menos em sua proporção, caracterizado progressivamente como uma das principais questões urbanas: a existência de pessoas e grupos vivendo nas ruas das cidades, em situação considerada degradante, indigna e, por vezes, ameaçadora. O fenômeno ensejou a elaboração de um 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), bolsista CAPES/CEM: Centro de Estudos da Metrópole. Integrante do Núcleo de Pesquisas Urbanas (NaMargem/UFScar). Contato: [email protected] 304 conjunto de “saberes” que visam explicá-lo, fomentando pesquisas em diversas áreas do conhecimento, mas sobretudo reduzi-lo, pela criação de políticas públicas para atendimento ao segmento populacional em questão. No Brasil o crescimento do debate sobre as pessoas que vivem nas ruas, foi vivenciado principalmente nas metrópoles do país. Enquanto essa questão não se tornou pauta na agenda nacional, várias experiências de atendimento ao segmento foram praticadas pelos municípios a partir de critérios elencados pelos mesmos. No que tange a consolidação de uma política pública visando uma intervenção focalizada, Silva (2009) destaca as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre. No caso da capital paulista, o atendimento a população em situação de rua ao longo de cinqüenta anos possibilitou o surgimento de uma rede de atendimentos que compreendeu na construção de albergues, casas de convivência e diversos programas de “reinserção social” coordenados pelas secretarias de Assistência Social tornando referência no modelo de gestão dessa população (DE LUCCA, 2006). Com o objetivo de discorrer sobre a questão dos moradores de rua2 no interior paulista, dividimos este artigo em três partes. Na primeira procuraremos analisar brevemente a produção dos saberes sobre os moradores de rua e as transformações na política de assistência social a partir do início da década dos anos 2000. No segundo momento, como a relação apresentada possibilitou a construção de discursos e práticas sobre o segmento no interior paulista, especificamente na cidade de São Carlos, e terceiro como as práticas de intervenção se relacionam com as bancas, termo que designa, em São Carlos e outras cidades do interior paulista, agrupamentos de moradores de rua que se formam em determinados lugares de cidade. A escolha das bancas como lócus de análise se deve a tática3 mais comum de vida na rua no município pesquisado, além da visibilidade que tais agrupamentos provocam no espaço urbano, ensejando formas de gerenciamento público do problema que representam. Para concluir apresentamos algumas considerações buscando relacionar o debate 2 Pesquisar sobre as pessoas que vivem nas ruas, a primeira dificuldade que o pesquisador encontra para definir seus sujeitos ou objetos de pesquisa é a quantidade de termos utilizados para representar a questão. Devido a uma gama de áreas que discutem o tema, definir o termo torna-se uma disputa. É refletindo sobre esse campo conflituoso da produção dos termos que se originou uma quantidade de expressões que tentam classificar, dar sentido, como os exemplos: mendigos, povo de rua, morador de rua, população de rua e população em situação de rua. Imerso em tantas classificações e na falta de outro termo mais apropriado para os objetivos que nos propomos nesta pesquisa, utilizaremos a expressão morador de rua, um termo descritivo que permite fugir, em partes, dos termos vigentes. O termo morador de rua será aqui apresentado como um termo geral, relacionado às diversas formas de viver na rua. 3 Ao falarmos em táticas de vida na rua recorremos a De Certeau (1998) que destaca “a tática depende do tempo, vigiando para ‘captar vôo’, possibilidade de ganho. O que ele ganha não o guarda, tem constantemente que jogar com os acontecimentos para transformar em ocasiões” (DE CERTEAU, 1998, p.47). 305 apresentado e a relação dos moradores de rua com a cidade. A PRODUÇÃO DOS SABERES SOBRE OS MORADORES DE RUA No final dos anos de 1990 e início dos 2000, o debate sobre a existência dos moradores de rua estava ancorado nos processos que produzem os novos excluídos. Nessa chave explicativa destacamos, no período citado, três pesquisas, em campos distintos de atuação como Serviço Social, Sociologia e Política Social, contudo complementares, que influenciaram novos debates em diferentes contextos (políticas públicas e pesquisas), temos Rosa (2005) na cidade de São Paulo, Escorel (1999) no Rio de Janeiro e Bursztyn (2000) em Brasília. Rosa (2005), ao retomar argumentos apresentados no início dos anos 1990, o qual relaciona o desemprego e a população de rua, e influenciada pelos trabalhos de Castel (1998) e Paugam (2003), por meio da análise de trajetórias de vida de alguns moradores de rua na cidade de São Paulo, aponta a relação da vida nas ruas com as transformações no mundo do trabalho e no Estado. A autora atenta que as condições de crescimento no Brasil nos anos 1970, assim como suas consequências nos anos 1990, possibilitou o crescimento cada vez maior de trabalhadores que, alijados do mercado de trabalho formal, com baixa remuneração, sem residência fixa, procuravam alternar a moradia entre pensões, albergues e ruas da cidade, bem como a dependência cada vez maior dos recursos assistenciais para a sobrevivência, produziu os novos excluídos, os desfiliados, no caso a população de rua. O estudo de Escorel (1999) está inserido no campo do debate sobre a pobreza urbana, procurando expor os condicionantes macroestruturais que se configuraram no Brasil, especificamente na cidade do Rio de Janeiro dos anos 1980, até o início dos anos 1990. A autora parte do conceito de exclusão social e de como os elementos constitutivos da exclusão perpassavam o cotidiano das pessoas que viviam nas ruas da capital fluminense. A autora aborda que, para a utilização do conceito de exclusão social, deve-se o mesmo estar relacionado aos processos de vulnerabilidade, fragilização, precariedade e ruptura dos vínculos sociais nas esferas “econômico-ocupacional, sociofamiliar, da cidadania, das representações sociais e da vida humana” (ESCOREL, 1999, p. 17). Define a condição de exclusão como “está sem lugar no mundo”, desvinculado ou com vínculos frágeis que não conseguem constituir uma unidade social de pertencimento. Para Escorel (1999), a exclusão social não é apenas caracterizada pela privação material, uma vez que ela “desqualifica”, retirando a qualidade de “sujeito de direito” portador de desejos, “a exclusão social significa, então, o não encontrar nenhum lugar social, o não pertencimento a nenhum topos social, uma 306 existência limitada à sobrevivência singular diária” (ESCOREL, 1999, p.81). Como exemplo relevante referente à influência da teoria dos novos excluídos sociais destacamos o conjunto de pesquisas desenvolvidas na Universidade de Brasília, sob a organização de Bursnztyn (2000). Para os autores, a questão das pessoas vivendo nas ruas do Brasil no limiar do século XXI é a emergência dos inimpregáveis como consequências do sistema econômico e globalizado. Tais autores se voltam para uma questão global, na qual se juntam aos “antigos mendigos” todos os que foram empurrados para fora do mundo do trabalho. Nessa perspectiva, as investigações apresentadas buscam mostrar quem são os moradores de rua da atualidade, o que os diferenciam dos “velhos miseráveis” e em que medidas podem ser considerados como excluídos sociais. Para responder a essas perguntas, Burnsztyn (2000) aponta que para a compreensão da questão, é preciso entendê-la como a radicalização das desigualdades sociais, na medida em que um processo é desencadeado pela pobreza, passa pela miséria e no limite a exclusão, a produção do excluído, sendo este último definido por Nascimento (2000) como um grupo economicamente desnecessário, politicamente incômodo e socialmente ameaçador, portanto, fisicamente eliminado. Outro eixo que articula os trabalhos coordenados por Burnsztyn (2000) é a necessidade do Estado em “combater” os processos que levam à exclusão contando com políticas de inclusão, como a transferência de renda para as famílias migrantes defendidas por Araújo (2000), ou pela inserção no mundo do trabalho e interação familiar, como destaca Nascimento (2000). Sobre a discussão sobre o morador de rua no interior paulista, ressaltamos que as pesquisas e a produção bibliográfica sobre a temática são escassas, principalmente no que tange às análises sociológicas sobre a questão fora do contexto metropolitano. Contudo, algumas áreas como a psicologia social e a geografia trazem considerações sobre o tema nesse contexto. Essas pesquisas enfatizam os deslocamentos dessa população entre as cidades do interior paulista. Primeiro destacamos as pesquisas na área da psicologia social. Influenciados pelo debate da desfiliação social, Nascimento e Justo (2000; 2009), desde o início dos anos 2000 apresentam análises sobre os trecheiros e andarilhos de estradas, destacando a errância como característica dessa população. Referente à errância, Nascimento e Justo (2009) a destacam como um fenômeno radical da normalização conjugada com a migração, o desemprego, a pobreza e a desqualificação social. É caracterizada pela movimentação a pé pelas rodovias do país, sem objetivos e rumo definidos. Ressaltam ainda que a errância também seja definida pela solidão, desapego, miséria e processos de rupturas com a família e o trabalho. E a interligação entre o desemprego, o alcoolismo, a falta de apoio familiar e a 307 vida errante. No campo da geografia destacamos a pesquisa de Furini (2010), que traçou o perfil da população de rua na cidade de Presidente Prudente, destacando aspectos relacionados às estratégias de sobrevivência, assistência social, trabalho não regular, lugares de pernoite e lazer. A partir do perfil estabelecido, o autor relaciona a questão da população de rua com as particularidades locais da região estudada, como a instalação de diversos presídios aliada às situações anteriores, os fluxos rodoviários, a oferta de abrigos e a atitude dos técnicos que podem redefinir as trajetórias, tudo isso culminando na transitoriedade da população de rua pelas cidades da região. Assim, uma das causas da dificuldade de encontrar essa população em determinadas cidades é devido à expulsão, incentivada pela migração. As primeiras pesquisas na cidade de São Carlos foram elaboradas por Granado (2010) e Martinez (2011). Granado (2010) tem como foco a questão socioambiental, destacando por sua vez a influência da água como elemento norteador no cotidiano do grupo vulnerável, especificamente a população em situação de rua. Dentre as diversas questões que a autora apresenta em relação ao perfil, chama atenção para os dados referentes à naturalidade dos sujeitos pesquisados, evidenciando a migração do campo para a cidade, devido a não absorção de sua mão de obra nos locais de origem. Martinez (2011), ao estudar as trajetórias de rua na cidade de São Carlos, partindo de uma etnografia realizada em instituição assistencial e nas ruas, buscou apresentar como essas trajetórias de vida estão relacionadas às táticas de preservação da vida elaboradas nas ruas, tendo nas transformações corporais a expressão das diferentes maneiras de como são vivenciadas por cada sujeito. É por essas transformações que a autora atenta para a interferência dos aparatos urbanos que legitimam essas vidas nas ruas, pela viabilidade das políticas públicas. Faz-se preciso reconhecer a contribuição desses pesquisadores que trouxeram elementos importantes para a produção acadêmica e nas políticas públicas, influenciando na produção de discursos e intervenções sociais. Utilizando-se de metodologias de pesquisa variadas como o estudo de casos, trajetórias de vida, etnografias, esses autores lançaram questões que hoje auxiliam os novos pesquisadores e gestores a avançarem na compreensão e na qualificação do debate sobre a questão complexa que é a existência de pessoas que utilizam das ruas como uma forma de vida. AS TRANSFORMAÇÕES NA ASSISTÊNCIA SOCIAL O que caracterizou as décadas de 1990 e 2000 foi a reorientação das políticas sociais 308 na focalização sobre os segmentos mais pobres, evidenciando a luta contra a pobreza que se inicia a partir das orientações dos organismos internacionais como Organização das Nações Unidas, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. Segundo Maranhão (2009), entre os anos 1980 e 1990 destacou-se as reformas liberalizantes na América Latina e África subsaariana. Na América Latina, as privatizações, desregulamentações e liberalização do comércio avançaram rapidamente. Como ressalta a autora, essa agenda política se notabilizou através da imposição para concessões de empréstimos oferecidos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial à reestruturação das economias em crise a partir da década de 1980. E foram as experiências nacionais responsáveis pela difusão desse ideário por meio da influência na implementação de políticas públicas. As primeiras transformações no campo assistencial estavam inseridas numa tensão, como destaca Ivo (2008), de um lado estava o regime democrático nascente, tendendo a ampliar a cidadania e incluir politicamente, e de outro estava a dinâmica de uma economia que historicamente produziu as maiores taxas de desigualdades econômicas. No meio dessa tensão, o arranjo adotado pelo Estado brasileiro foi a adesão às orientações dos organismos internacionais, como Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, voltado para a desconcentração do Estado, significando descentralizar as políticas, especificamente as sociais, privatizou e flexibilizou grandes empresas estatais e, posteriormente, a focalização das políticas sobre os mais pobres. Segundo Palotti e Costa (2011), a redemocratização não foi conduzida apenas pelas liberdades democráticas, visto que se procurou romper com o Estado unitário, estabelecendo um sistema político federalista com maior autonomia para Estados e municípios. Para as autoras, na década de 1990 a assistência social em sua consolidação institucional não foi conduzida como as outras políticas sociais, como no caso da Saúde, com o Sistema Único de Saúde (SUS). No governo de Fernando Henrique Cardoso houve a realização de algumas normativas para a assistência, como a discussão da representação popular por meio do Conselho Nacional e do Fundo Nacional de Assistência Social, assim como pela ampliação dos conselhos, fundos e planos municipais até o ano de 2001. Em 2003, com o início do governo Lula pelo Partido dos Trabalhadores (PT), se acentuam as mudanças na política de assistência social, desvinculando essa política da Previdência Social ao se criar um Ministério próprio, ou seja, primeiro o Ministério da Assistência Social e depois o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Dessa forma, em 2004 é aprovada a Política Nacional de Assistência Social, e em 2005 ocorre 309 à normatização da Norma Operacional Básica (NOB-SUAS), em que participaram técnicos e especialistas em fóruns de debates e articulação da política, no entanto, a grande mudança que passa a assistência é o enfrentamento da pobreza e das desigualdades (COSTA; PAROLI, 2011). Mauriel (2010) aponta que nos últimos anos, entre 1990 e 2000, observou-se o debate sobre o combate à pobreza e às desigualdades, influenciando os direcionamentos das ações da política de assistência social, reduzindo assim o princípio universalista ao se voltarem as ações para os pobres e excluídos de forma focalizada. Para a autora, essa escolha se dá por opções teóricas distintas, uma vez que no caso brasileiro a política nacional de assistência social inclui a agenda internacional de combate à pobreza. E com a implantação da Política Nacional de Assistência Social, em relação à população em situação de rua, se destacaram apenas algumas considerações sobre o atendimento ao segmento, definindo-os como usuários da proteção social especial e “serão priorizados os serviços que possibilitem a organização de um novo projeto de vida” (BRASIL, 2004, p 37). Com o crescente debate sobre as pessoas que encontram nas ruas sua sobrevivência, aos poucos essa temática ganhou importância na agenda pública, inicialmente em nível municipal, e somente no início dos 2000 foi que adentrou ao debate do Governo Federal, como aponta Ferro (2010). Tal fato se deu graças à confluência de diversos fatores4, como a sensibilidade do presidente Lula com a questão, a partir da visita aos catadores de materiais recicláveis em dezembro de 2003, fazendo permanecer em sua agenda anual até o último ano de seu governo, propiciando a abertura para a participação da população em situação de rua no encontro. O massacre de moradores de rua na região central da capital paulista, fez com que se houvesse uma abertura para essa questão, assim incluindo a discussão de políticas públicas voltadas especificamente para esse segmento. Primeiro destacamos a realização da Pesquisa Nacional sobre a população em situação de rua em 2007, esta pesquisa realizada nas capitais brasileiras e nas cidades acima de 300 mil habitantes trouxe informações que deram suporte as ações para a elaboração da Política Nacional de Inclusão da População em Situação de Rua no ano de 2009 (FERRO, 2011). SÃO CARLOS COMO LOCAL DE ESTUDO São Carlos é uma cidade do interior paulista, localizada a 230 km da capital, e conta 4 Essa visibilidade teve como consequência a alteração do artigo da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), através da lei 11.258 incluiu o segmento da população em situação de rua e abrindo para a discussão de políticas públicas em nível nacional. Ver Ferro (2010) e De Lucca (2009). 310 com aproximadamente 220 mil habitantes, além de uma economia industrial e agrícola bastante desenvolvida, está situada em eixo de alta circulação de recursos do interior paulista, próxima das cidades de Campinas e Ribeirão Preto. De acordo com o diagnóstico realizado pela Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social do município, em 2007 apontavase que a taxa de urbanização da cidade era superior às médias regional e estadual. No ano 2000, o percentual residente na zona urbana era de 95% e 5% residia em área rural. Já em 2006, o grau de urbanização do município chegou em 96,5%, sendo superior ao índice do Estado, que no mesmo período era de 93,7%. Esses dados contribuíram para a elaboração do diagnóstico que justificou as mudanças na política de assistência social no município, reorganizando os serviços a partir da implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) na cidade, em meados dos anos 2000. É nesse momento que a visibilidade dos moradores de rua enquanto uma questão a ser “resolvida” ganha novos contornos. Essa visibilidade está ligada à história da política local a partir da mudança do governo municipal, com a eleição do Partido dos Trabalhadores (PT), que inicialmente defendia uma visão política de esquerda e posteriormente o alinhamento às visões políticas do Governo Federal. Quando Luiz Inácio Lula da Silva é eleito para Presidente da República, também representante do Partido dos Trabalhadores. Esse alinhamento político e as transformações na política de assistência social, que será discutida no segundo capítulo, propiciaram ao município de São Carlos criar um dos primeiros Centro Pop5 do Brasil. ENTRELAÇANDO TRAJETÓRIAS Muitos estudos sobre os moradores de rua se concentram em compreender a sucessão de fatos que levaram homens e mulheres a viverem nas ruas, estes fatos em sua maioria carregados de perdas e que tem nesta situação o ponto de chegada. Baseando-se na pesquisa de De Lucca (2007) que utilizou como recurso as trajetórias de experiências de pessoas que falaram sobre os moradores de rua, a utilização desse recurso metodológico é importante porque não existem pesquisas na cidade de São Carlos que discorram sobre os processos históricos relativos à política de atendimento na cidade6. É através das trajetórias de uma 5 O Centro POP é um equipamento estatal de acolhimento diurno aos moradores de rua. Sobre mais informações ver Brasil (2009; 2011). 6 Recentemente na UFSCar se desenvolveram algumas pesquisas sobre tema, como trabalho de conclusão de curso destaca-se Barbosa (2005). No Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social a pesquisa de Mariana Medina Martinez (2007) e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia as pesquisas em andamento de Luiz Fernando Pereira, Natália Máximo e Melo e Luciano Márcio Freitas de Oliveira. Na Universidade de São Paulo campus de São Carlos, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da 311 assistente social e do pesquisador/gestor que remontamos a construção o percurso da produção do novo sujeito das ruas da cidade de São Carlos. “CONSTRUINDO” O MORADOR DE RUA DE SÃO CARLOS Em 2006 realizou-se um concurso na prefeitura para a contratação de assistentes sociais que complementariam o quadro de profissionais exigidos pelas novas diretrizes da política de assistência social, visando à implantação dos serviços assistenciais no município. É nesse momento que Vanessa ingressa na prefeitura, permanecendo até meados de 2009. Para Vanessa, trabalhar com uma população específica, no caso a população de rua, era a que mais lhe instigava enquanto profissional, “não sabia de nada, quem eram e como trabalhar”. Os primeiros dias de trabalho foram difíceis em relação à aproximação com o novo público. Através do Albergue Noturno, Vanessa iniciou seus primeiros contatos que consistiu em conhecer os funcionários, a dinâmica de atendimento da instituição e as pessoas que eram atendidas no local. Ela também realizou rondas noturnas7 acompanhada dos motoristas da instituição para mapear os principais locais onde se concentravam os moradores de rua. Em relação às abordagens, Vanessa ressaltou que não existia um serviço estabelecido nas ruas. Em casos específicos, as abordagens aos moradores de rua e acolhimento no albergue durante dia eram efetivados quando a cidade recebia a visita de autoridades como Ministros, Senadores, Secretários de Estado ou algum político ligado ao governo: A demanda crescia quando a cidade recebia uma visita de alguma pessoa pública do partido, então a solicitação era pra que nos locais em que a pessoa fosse passar, não tivesse a população de rua. Isso só mostra que quer esconder algo, um problema, que talvez seja uma carência do atendimento. Qual era a ordem? A ordem é “tira aquela pessoa do local”. Nesse caso o albergue era aberto durante o dia. Você podia trancar a pessoa lá dentro ou pedia pra pessoa sair do local onde se encontrava e mudar para outro. [Vanessa]. Ao elencar uma bibliografia específica sobre o tema, além de um contato frequente com o público atendido, Vanessa percebeu que, no contexto de São Carlos, existiam duas situações distintas em relação ao que considerava como população de rua: os trecheiros/itinerantes e os moradores de rua, sendo que estes últimos não eram prioridades para os atendimentos no Albergue Noturno. Assim apresentou-se uma primeira clivagem na definição do público que pretendia atender. No ano de 2007, foi elaborado o primeiro diagnóstico cujo objetivo era apresentar o que se considerava como população de rua em São Carlos. Dos 93 prontuários analisados, 7 Engenharia Ambiental a pesquisa de Karina Granado (2010). As rondas noturnas são ações realizadas pelos funcionários do Albergue desde o início dos anos 1990. 312 destacaram-se as seguintes variáveis: grupo etário, sexo, naturalidade, familiar na cidade, situação de saúde e escolaridade. Foram encontrados 79 homens e 14 mulheres. A idade predominante estava entre 25 e 59 e nove anos. Os dados que chamaram mais atenção foram em relação à naturalidade, pois 25 pessoas haviam nascido em São Carlos e 57 pessoas possuíam familiares na cidade. Quando nós conseguimos montar o diagnóstico aí sim foi a mudança. Porque nós mostramos que a maioria das pessoas que viviam nas ruas estavam há mais de dois anos em São Carlos. A maioria era nascida em São Carlos. Então não dava pra se falar que eram trecheiros que não eram cidadãos são-carlenses, não dava pra se negar. [Vanessa]. No período acima citado, o Albergue Noturno atendia aos moradores de rua e trecheiros/itinerantes entre os horários das 18 horas e 6 horas da manhã, oferecendo apenas três dias de pernoite. Aqueles nascidos ou com familiares na cidade não eram aceitos na instituição. Para Vanessa, esses critérios eram “uma tentativa de expulsão para ver se a pessoa ia embora da cidade ou voltava para a casa da família”. Simultâneo ao debate municipal sobre os moradores de rua, o Governo Federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) apresentou a primeira pesquisa nacional sobre a população em situação de rua8. Com o debate nacional, segundo Vanessa, reforçou a pressão para a elaboração de uma política de atendimento em São Carlos. O momento que vivia-se foi propício para que a gestora de assistência, visando garantir os primeiros recursos em relação à criação de uma nova instituição, buscou como estratégia discutir a temática no orçamento participativo9. Em uma das reuniões do orçamento participativo, na região central, estiveram presentes a gestora da assistência social, os técnicos envolvidos no projeto e os moradores de rua, apresentou-se a necessidade da criação de um espaço e equipe para atendimento, além de um orçamento definido. Em julho de 2008, conseguiu-se um local para atendimento, e no dia 10 foi inaugurada Casa Dia10 nas proximidades da rodoviária. Para Vanessa, nesse momento duas questões 8 Sobre esta pesquisa ver Brasil (2008) e Silva (2009). O Orçamento Participativo é um modelo de gestão pública que pressupõe a intervenção direta da sociedade na gestão financeira e orçamentária. No Brasil, as primeiras experiências desse modelo de gestão se iniciaram no final dos anos oitenta, nos municípios governados pelo Partido dos Trabalhadores (PT). As principais experiências foram nas cidades de Porto Alegre e Santo André. Na cidade de São Carlos, a experiência de gestão através do orçamento participativo iniciou-se em 2001 com a entrada do PT no governo municipal. Sobre esse debate ver Marino Júnior (2005). 10 Nesse momento não existiam normativas referentes a serviços de acolhimento diurno para os moradores de rua, cada município organizava a partir de sua experiência, como exemplo na cidade de São Paulo que esses serviços diurnos eram denominados de casas de convivência. Em São Carlos optou-se por classificar a nova instituição de Casa Dia. Após participação nas reuniões estaduais e federal sobre a Política Nacional da População de Rua e as reorganizações nos serviços da cidade, o nome mudou para CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social – Unidade de atendimento à população de rua) e, em 2011 9 313 foram essenciais para existência do Centro Pop: a primeira era definir qual o objetivo do serviço e a segunda qual o público atendido. Em relação ao objetivo, sabia-se que o mesmo deveria tornar-se referência para os moradores de rua. Um lugar para guardar os pertences, referência domiciliar, bem como para alimentação e higienização. No entanto, para a construção de um novo projeto de vida, como preconizava a Política Nacional de Assistência Social, além de alternativas de intervenção dentro da instituição, a equipe não tinha clareza das ações. Nos primeiros meses de funcionamento, o novo serviço não conseguia atender a demanda que chegava todos os dias, principalmente em relação aos trecheiros/itinerantes. Para Vanessa, o trabalho do Centro POP deveria priorizar os moradores de rua de São Carlos, e, devido ao fluxo de pessoas que passavam diariamente pela cidade, tornou-se fundamental elaborar a primeira definição de quem era a população de rua. A primeira definição baseou-se em dois critérios: o tempo de rua e vínculos na cidade. Sobre o tempo de rua entendia-se o tempo em que o indivíduo utilizava as ruas ou o albergue como lugar de pernoite, e, na medida em que aumentava esse tempo, a condição de morador de rua tornava-se estável. Esse critério teve como base os estudos de Vieira (1997) que elaboraram diferentes situações de vivenciar a rua, como ficar na rua, estar na rua e ser da rua. Em relação aos vínculos com a cidade, compreendia-se a existência de alguma referência familiar ou domiciliar anterior à situação de rua em São Carlos. Esta discussão tinha como pressuposto a Política Nacional de Assistência Social, que destacava como o principal objetivo a garantia dos vínculos comunitários, assim justificava-se a utilização desse critério em relação ao público de referência para o Centro POP. A preocupação em relação aos vínculos familiares na cidade de São Carlos para definirem quem seriam os moradores de rua faz parte de um dos principais eixos da política de assistência social no Brasil. segundo Castilho e Marloto (2010) após a Constituição de 1988 a família passa a ser o foco principal de ação das políticas sociais. De acordo com Teixeira (2009), é no final dos anos 1990 que a preocupação com a família como foco de atuação, acentua-se nos serviços da assistência social primeiro através dos NAF’S (núcleo de apoio as famílias) entendendo o grupo familiar e a comunidade como “lugares naturais de proteção e inclusão social” (BRASIL, 1999, p.50). E segundo Teixeira (2009) esta reorganização propiciou a centralização na família como foco para a implementação de benefícios, serviços e programas ao longo dos anos 2000. Primeiro através do Plano Nacional com a criação do Guia de Orientações do CREAS, o equipamento estatal de acolhimento diurno aos moradores de rua foram classificados como Centro POP. Sobre mais informações ver Brasil (2009; 2011). 314 de Atendimento Integral à Família (PNAIF) em 2003 e com a Política Nacional de Assistência Social em 2004, o plano nacional transformou-se em Plano de Atendimento Integral a Família (PAIF) que tem como objetivo a garantia da convivência familiar e comunitária dos membros da família. Em 2005 destaca-se a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS) através da matricialidade sociofamiliar evidenciando a primazia a atenção às famílias e seus membros a partir do seu território de vivência, com prioridades aqueles com registro de fragilidades, vulnerabilidades e a presença de vitimação entre seus membros (NOB/SUAS 2005 p. 28). Foi esse debate que norteou a primeira definição daqueles considerados como os moradores de rua de São Carlos a partir do tempo de rua, entendido como no mínimo seis meses vivendo nas ruas e a existência de familiares na cidade. Fizemos um recorte e definimos que para ser considerado morador de rua de São Carlos era preciso estar nas ruas no mínimo seis meses. O tempo de rua foi a primeira classificação que adotamos para diferenciarmos dos trecheiros/itinerantes. Os critérios não eram tão rígidos, foram criados a partir de nossa prática [Vanessa]. LUGARES PARA ATENDER Definido os moradores de rua de São Carlos, enquanto gestores foi preciso organizar os serviços de acolhida, especificamente o Albergue Noturno. Os primeiros dias de trabalho na instituição foram para observar e compreender a rotina. O horário de atendimento acontecia a partir das 18 horas e encerrava-se às 7 horas da manhã, quando todos deveriam deixar o albergue e voltarem para as ruas. Caso precisassem de algum atendimento, dirigiamse até a secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social. Para os trecheiros/itinerantes prosseguia-se a distribuição de passagens interurbanas, e em relação ao acolhimento noturno prevalecia a regra construída no final dos anos 1980, de três pernoites11. Os trecheiros/itinerantes que chegavam ao albergue esperavam três dias para conseguirem as passagens, pois os embarques eram realizados apenas as terças e sextas-feiras. Com a apresentação do primeiro levantamento dos moradores de rua elaborado por Vanessa, iniciou-se uma pressão para que as pessoas com vínculos familiares na cidade fossem atendidas. A direção da entidade acolheu alguns casos solicitados pela prefeitura como os idosos e as mulheres que estavam pelas ruas. Com o passar dos meses emergiram-se diversos conflitos com a diretoria da instituição em relação às propostas para ampliação do número de atendimentos às pessoas com vínculos em São Carlos, especificamente os jovens que estavam pelas ruas e procuravam por 11 Referente à regra dos três pernoites no Albergue Noturno ver Oliveira 2012. 315 acolhimento. A direção alegava que a capacidade de vagas para pernoite não comportava a demanda crescente e para amenizar os conflitos, realizaram-se reuniões com os técnicos da prefeitura e a diretoria da instituição para que viabilizassem algumas mudanças. Como destacado por Vanessa, O Centro POP surge a partir da confluência de vários fatores: 1) a visibilidade dos moradores de rua nas praças da cidade, causando incomodo à população e ao governo municipal; 2) a implantação do Sistema único de Assistência Social (SUAS), que orientava os municípios a estabelecerem projetos para a população de rua; 3) a necessidade em garantir atendimentos diurnos aos moradores de rua. Com a abertura do serviço em julho de 2008, procuramos vincular os casos atendidos pelo Albergue para um acompanhamento no Centro Pop, nesse momento, todos que se encontravam na cidade, moradores de rua ou trecheiros/itinerantes foram cadastrados no serviço como população de rua. Em várias situações, os trecheiros/itinerantes que chegavam à cidade após esse cadastramento queriam atendimento fixo no local, sendo recusado. E na tentativa de resolução dessa questão, foi necessário definir o que considerávamos como a população de rua de São Carlos, ou seja, a urgência para elencar os primeiros critérios que definiram o público prioritário para atendimento nos serviços aos moradores de rua de São Carlos (tempo de rua e vínculo com a cidade). Em 2009 muda-se a administração municipal e, consequentemente, a gestão da Secretaria de Assistência Social. Em janeiro do mesmo ano é criada a Divisão de Políticas de atendimento à população em situação de rua. Com a criação de uma divisão, o Centro POP conseguiu recursos próprios, oriundos de repasse municipal e estadual. Como ações prioritárias que a nova gestão elencou para a recém-criada Divisão: 1) retirar do Albergue Noturno o gerenciamento da política de distribuição de passagens, passando para o Centro POP; 2) a criação do serviço de abordagem nas ruas12; 3) a mudança de local do Centro POP para a região central, especificamente em frente à Secretaria de Cidadania e Assistência social. O serviço de abordagens nas ruas era realizado de forma esporádica, apenas quando solicitado pelo governo municipal para atender algum caso específico, no entanto, ao criar a Divisão com recursos próprios13, foi possível a contratação 12 O Serviço de Abordagens na rua foi criado em São Carlos no inicio de 2009, sendo este regulamentado a partir da tipificação dos serviços socioassistenciais, que apresentou algumas diretrizes como a oferta do serviço de forma continuada e programada, com a finalidade de assegurar o trabalho social de abordagem. Para maiores informações ver Brasil (2009b). 13 Referente aos recursos financeiros destinados aos serviços de atendimento a população em situação de rua, a Secretaria de Cidadania e Assistência Social (2010) apresentou uma estimativa do seu orçamento anual para a 316 de duas educadoras para realizarem o trabalho nas ruas da cidade14. Com a implantação da Política Nacional da População em Situação de Rua no final de 2009, definindo por sua vez o que se considerava como pessoas em situação de rua e a Tipificação dos Serviços Socioassistenciais,15 apresentando os serviços essenciais para o segmento que, segundo o Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, defini-se como população em situação de rua: Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009b, p. 1). Essa definição abrangente não contemplava a principal questão que vivenciávamos desde os primeiros dias de atendimento no Centro POP, o grande fluxo de trecheiros/itinerantes que passavam diariamente pela cidade, demandando em alguns casos, o atendimento na instituição alegando-se que também estavam em situação de rua e que tinham direitos ao atendimento. O critério dos seis meses, baseado no tempo de rua que inicialmente tentou organizar o fluxo de pessoas, não respondia às novas demandas que surgiam. Para tentarmos resolver o impasse em relação aos trecheiros/itinerantes com a elaboração do plano de atendimento do Centro POP, no início de 2010, mudamos os critérios que definiam quem era a população em situação de rua em São Carlos. Partindo de um segundo levantamento com 65 usuários que frequentavam a instituição, apenas 8 pessoas não possuíam familiares na cidade de São Carlos. Assim definimos o público alvo a ser atendido pelos serviços de acolhida para população de rua a partir de critérios como trajetória de rua,16 vínculos familiares e comunitários17 com a cidade de São Carlos. Assim, de acordo com o Plano de Atendimento do Centro POP: população em situação de rua de aproximadamente 600 mil reais. Nesse orçamento está incluído o repasse financeiro para o Serviço de Obras Sociais (Albergue Noturno) e o Centro POP (gastos com funcionários, passagens e todo o custeio da unidade). 14 Sobre o serviço de abordagem de rua em São Carlos ver Martinez (2011). 15 Este documento tipifica os serviços socioassistenciais em âmbito nacional, dentre os quais os serviços destinados ao atendimento à População em Situação de Rua na Proteção Social Especial destacam-se: o Serviço Especializado em Abordagem Social, o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro POP), o Serviço de Acolhimento Institucional (que incluem adultos e famílias em situação de rua) e o Serviço de Acolhimento em República (que inclui adultos em processo de saída das ruas). Mais informações ver Brasília (2009b). 16 Entende-se como trajetória de rua que a pessoa esteja vivendo nas ruas no momento em que procura a instituição ou tenha em sua história de vida experiências de situação de rua. 17 Em relação aos vínculos familiares e comunitários, primeiro pela presença de muitas pessoas em situação de rua com familiares em São Carlos, e também destacamos a Política Nacional de Assistência Social, que prioriza ações possibilitando a reconstrução desses vínculos considerados “rompidos”. 317 Consideramos como população em situação de rua de São Carlos: I – Pessoas de ambos os sexos com idade a partir de 18 anos que se encontram em situação de risco pessoal e social e que utilizam a rua como moradia ou sobrevivência; II – Pessoa natural de São Carlos ou proveniente de outra cidade que possua trajetória de vida na rua, vínculo familiar ou comunitário no município (SÃO CARLOS, 2010, p.4). Em relação aos trecheiros/itinerantes, justificou-se que devido à grande circulação de pessoas pelo município, o trabalho consistia em buscar alternativas através de parcerias com outros municípios, a questão tornou-se regional. Com isso, para aqueles que não estavam inseridos aos novos critérios, continuava-se a doação de passagens como a única alternativa de atendimento. A primeira mudança após o ingresso da nova gestão municipal e a criação da Divisão de Políticas de Atendimento à População em Situação de Rua, consistiu em gerenciar o atendimento de distribuição de passagens para os trecheiros/itinerantes. Ampliou-se o recurso para compra de passagens interurbanas, passando-se o atendimento a ocorrer de segunda à sexta-feira em diversos horários18, e, dependendo das situações, aos finais de semana. A estratégia adotada na distribuição de passagens todos os dias tinha como objetivos: 1) controlar o fluxo de trecheiros/itinerantes na cidade, evitar o contato com os moradores de rua de São Carlos e a possibilidade de permanência na cidade; 2) com a diminuição do número de trecheiros/itinerantes pernoitando, ampliaram-se as vagas no Albergue Noturno para os moradores de rua da cidade. As mudanças apresentadas resultaram na supressão da regra dos três pernoites para os dois seguimentos atendidos. Para os moradores de rua de São Carlos, o tempo de acolhida no albergue seria decidido em conjunto com a equipe do Centro POP, mediante o atendimento da instituição. Para os trecheiros/itinerantes, pernoitavam no Albergue, aqueles que chegassem após o horário estabelecido para a distribuição de passagens. VIVENDO NO BAIRRO: A BANCA DA DONA SÔNIA Quando decidiram ficar pela rua, se iniciou uma divisão de tarefas para a realização do almoço na “terra do nunca”. Elton se empolgou e contribuiu com um pacote de suco. Joaquim saiu em busca de lenha para fazer o fogo. Santista, 28 anos, que veio de Ribeirão Preto e está nas ruas de são Carlos desde 2010, ficou para pedir água no bar do Zé Besouro. Luciene, Marta e Tiago saíram juntos para manguear nas residências próximas ao cemitério. Júnior saiu sozinho. Elton foi pedir panelas nas casas próximo ao bar da dona Sônia e conseguir dinheiro no caldo de cana. Sandro, Valdir e Aparecido se dirigiram aos semáforos da Avenida São Carlos para conseguirem dinheiro. Chegando às proximidades do cemitério, encontramos 18 A ampliação do recurso financeiro para a Divisão de Políticas de Atendimento à População em Situação de Rua possibilitou expandir a distribuição de passagens para outras cidades. Em 2008 encaminhavam-se os itinerantes para as cidades de Araraquara e Itirapina. Em 2009, era possível encaminhar para Rio Claro e, em 2010, atendia-se com passagens para Ribeirão Preto, Campinas e São Paulo. 318 Aparecido e Sandro mangueando nos faróis da Avenida são Carlos com a rua dos Jasmins e Valdir mangueava no estacionamento do supermercado Jaú. Fomos à praça acompanhados por Índio enquanto esperavam o restante do grupo. Marta e Luciene apareceram na praça com temperos e verduras que ganharam na quitanda. Também conseguiram R$ 2,00 e cigarros pedindo às pessoas que passavam pela praça. Com um tempo outros retornaram, contribuíram na intera para a compra de pinga e complementar o almoço. Como resultado do mangueio pela manhã: mangueio no farol e nas pessoas que passavam pela praça e ruas próximas R$ 30,00. Com esse dinheiro compraram cigarros e dois litros de cachaça (no bar ao lado da praça), carne moída e de porco, e um refrigerante (supermercado). No mangueio nas residências e comércios conseguiram arroz, feijão, verduras (cebolas, tomates, alho e batatas), milho verde, macarrão, óleo, uma lata de sardinha, um molho de tomate. Finalizado o mangueio nas ruas, seguimos para “terra do nunca”. Por último chegou Júnior com cigarros, pinga e dinheiro (Diário de Campo, 23/02/2011). Segundo Oliveira (2012) para a existência de uma banca é preciso um território, membros e suas regras19. Para facilitar a compreensão procuraremos demonstrar e analisar como essas transformações influenciaram nas formas de se virar dos moradores de rua em São Carlos através da banca da dona Sônia, majoritariamente formada por moradores de rua da cidade que circulam pela cidade a partir de um território específico, o entorno do Albergue Noturno. Os moradores de rua que frequentam a banca da dona Sônia circulam por diversos lugares da cidade, porém, existe um território que é percorrido diariamente, relacionado à rede de apoio20 construída pelos moradores de rua. Nas imediações do bar encontramos postos de combustível, churrascaria e lanchonete. O segundo lugar frequentado pelos membros da banca é a Praça do Cemitério, onde se encontra o velório municipal, estacionamentos, churrascaria, bares, ponto de ônibus, semáforos, supermercados e quitanda, além da existência de residências e um barracão abandonado nas proximidades. Os arredores do terminal rodoviário são caracterizados por um fluxo contínuo de pessoas devido ao embarque e desembarque de passageiros e ponto de integração dos ônibus urbanos. Nessa região temos restaurantes, lanchonetes, padaria, supermercado, as praças e residências. O cotidiano dos membros da banca da dona Sônia, em relação à vida nas ruas (alimentação, lugar para dormir, condições para as necessidades fisiológicas, roupas, dinheiro para pinga, cigarros e drogas) ocorre em razão da prática do mangueio, do corre21 e da dependência institucional (Centro POP e albergue). Usualmente esses membros intercalam a 19 Referente às bancas de moradores de rua em São Carlos ver Oliveira (2012). Classifico como “rede de apoio” a rede formada por todos os locais (residências, comércios, instituições, transeuntes) acionados pelos membros da banca para a sobrevivência no território. 21 Mangueio é o nome dado a prática do pedido elaborada pelos moradores de rua de rua em São Carlos. Consiste em contar uma estória que comova e assim conseguir dinheiro, alimentação cigarros etc. tudo que for adquirido no mangueio deve ser dividido entre os membros da banca. O corre significa pedir individualmente ou pequenos furtos, no entanto, o produto adquirido através do corre não tem a obrigatoriedade de dividir com os membros da banca. Sobre os termos ver Oliveira (2012). 20 319 frequência entre as instituições e a permanência na banca. A regularidade com que demandam das instituições lhes garante o atendimento para as necessidades básicas. No Centro POP e no Albergue, dispõe-se de banheiros para a higiene pessoal e da distribuição de roupas, calçados, produtos de higiene (barbeadores, sabonetes e xampus) para todos os freqüentadores dos serviços. Cabe ressaltar que aos finais de semana, o Albergue estende o horário de atendimento, servindo almoço e jantar aos sábados e domingos. A alternância entre as instituições assistenciais e a rua é uma característica dos moradores de rua que participam dessa banca. Tal alternância sé dá por dois motivos, o primeiro quando decidem ficar pelas ruas e não frequentarem o Centro POP e o Albergue durante alguns dias da semana, o segundo quando estão suspensos das instituições. Ao ficarem pelas ruas, no território da banca da dona Sônia, os membros acionam diversas táticas para suprirem suas necessidades fora das instituições como demonstrado no relato de campo citado. Uma das primeiras táticas que destacamos é o mangueio e o corre, que garantem alimentação, pinga, cigarros e drogas para a banca. Como apresentado, ao optarem por não frequentar o Centro POP, os que estavam presentes na banca acionaram a “rede de apoio” (comércios, residências, transeuntes) para conseguirem alimentos e dinheiro para a pinga e cigarros. Ao transitarem frequentemente pelo território da banca os membros fixos se tornaram conhecidos da vizinhança, possibilitando constantes doações. Para realizarem suas necessidades fisiológicas, os recorrem aos banheiros públicos do velório municipal, além de conseguirem água gelada e cafezinho. Ao lado do velório existe um estacionamento e, para Índio, “quando morre alguém importante é bom porque conseguimos dinheiro olhando carros”. Vale destacar também que na região da praça, todos os dias, a partir das 14 horas, uma churrascaria vende por R$ 5,00 o churrasco que sobram nos espetos para os moradores de rua. Aos finais de semana a rotina é a mesma, a diferença consiste na distribuição de alimentos por entidades religiosas. Aos sábados, a partir das 11 horas, um grupo de voluntários da Pastoral de Rua percorre as principais bancas de São Carlos (estação, Vila Prado, Mercadão e Dona Sônia) distribuindo marmitas e refrigerante para os moradores de rua e trecheiros/itinerantes que se encontram nos locais citados. Aos domingos, a partir das 9h da manhã, o grupo espírita do Posto de Rua Eurípedes Barsanulfo 22 atende aos moradores de rua que distribuem refeições. Nesses encontros são oferecidos café da manhã e almoço, a distribuição de roupas e kit de higiene pessoal para os participantes, além da realização de 22 Sobre o Posto de rua, ver os trabalhos de Granado (2008) e (2010). 320 corte de cabelo no local. Em relação ao jantar, a tática que utilizada é pedir comida nas residências no território por onde transitam: nas churrascarias e no restaurante próximo à rodoviária. Em alguns dias da semana o jantar é distribuído por entidades assistenciais. Como exemplo: nas quartas-feiras o jantar é oferecido pela igreja São Sebastião, as quintas distribuem café, leite e pão nas proximidades da rodoviária, e às sextas-feiras, outro grupo espírita23 entrega sopa e cobertores pelas ruas da cidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para compreendermos as formas de gerenciamento dos moradores de rua em São Carlos, percebemos que em meados dos anos 2000 a partir das transformações na legislação da política de assistência social, o morador de rua entendido como um excluído, sua permanência nas ruas explica-se como um momento transitório, e a inserção nas políticas de públicas possibilita a superação da situação. É a partir das transformações na política de assistência social e o encadeamento dessas mudanças no âmbito municipal, propiciaram o surgimento de discursos e práticas que culminaram em um novo personagem o morador de rua de São Carlos. Baseados nas reflexões de Arendt (2009) sugerimos que as mudanças aqui apresentadas, especificamente o surgimento do morador de rua de São Carlos foi o pertencimento a um lugar no mundo e reconhecimento deste lugar pelo outro. Seguindo as análises da autora, é preciso o Estado para proteger e reclamar. E para compreendermos como se deu o processo de reconhecimento do morador de rua de São Carlos destacamos primeiro através das mudanças nas legislações federais como Sistema Único de Assistência Social e, posteriormente no ano de 2005, quando é inserido na Lei Orgânica da Assistência Social o desenvolvimento de ações municipais para a população em situação de rua e principalmente com a promulgação do decreto presidencial nº 7033 de 23 de dezembro de 2009 apresentando a política nacional de inclusão da população em situação de rua. Simultâneo ao processo iniciado pelo governo federal, na cidade de São Carlos o momento de reconhecimento da existência desse novo sujeito foi quando se inverteram as normas no orçamento participativo as quais preveem que as demandas sejam lançadas pela população. No caso em análise, uma parte do próprio Estado, representado por técnicos e gestores, que reclamaram a existência e o reconhecimento de um grupo, demonstrando o nível 23 Ao acompanhar a banca no período da noite, fomos abordados por dois homens que distribuíam sopa nas ruas, perguntamos qual igreja ou entidade eles faziam parte, apenas informaram que pertenciam a um grupo espírita. 321 de exclusão política que se encontravam os moradores de rua, estes não fazendo parte da agenda da política municipal. A resolução foi fixar o morador de rua a partir de critérios que exigem o reconhecimento de pertencimento a cidade através de vínculos familiares ou uma “rede de apoio” construída fora da vivencia nas ruas, critérios para justificar o reconhecimento do pertencimento a um lugar, a uma comunidade humana. O resultado dessa transformação possibilitou a reorganização dos equipamentos de atendimento como a emergência do Centro Pop, um espaço físico primordial para a fixação do morador de rua de São Carlos A emergência desse novo sujeito nas ruas, amparado pelos discursos e práticas que justificam seu pertencimento e reconhecimento a um lugar possibilitou a construção de novas relações sociais entre os membros das bancas, os territórios por onde circulam e com os agentes de intervenção, produzindo uma “rede de apoio” (instituições, comércios e pessoas que vivem no território de circulação da banca). Estas novas relações, baseadas nos critérios estabelecidos para definir os legítimos a “rede de atendimento” e, por conseguinte, a cidade só foi possível ao pertencimento e reconhecimento desses moradores de rua a um lugar, a uma comunidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ARRETCHE, M. 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O material levantado durante a pesquisa apontou os momentos de estreias dos filmes como ocasiões chaves nas observações destas interações e na construção das subjetividades dos frequentadores, destarte este artigo visa debater sobre o papel que a frequência aos cinemas pode adquirir nestas ocasiões. A exclusividade, o estar entre os primeiros e o sentimento de “ter que ver no final de semana da estreia” ou durante o Festival de Cinema do Rio são pontos comuns que aproximam os três públicos ao mesmo tempo em que apontam as aspirações e diferentes mecanismos de distinção e pertencimento que movem as ações e escolhas dos indivíduos. Palavras-chaves: Publico de cinema, estreia, exclusividade. INTRODUÇÃO O público pensado enquanto categoria de análise vem sendo estudo pela sociologia e pela antropologia tendo comumente como foco a obra de arte e suas relações com a recepção/públicos. Seja em pesquisas com um recorte quantitativo, que pensam o público e a relação com os museus a partir de diferenças de classe e de seus respectivos capitais simbólicos, fundada por Bourdieu e Darbel (2003) na França, seja por meio de uma perspectiva do público enquanto receptores passionais de uma cultura de massa produzida por uma indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1974) na vertente alemã. Ou ainda nos 1 Mestranda PPGS-UFF. 325 estudos que envolvem a obra e a subjetividade dos receptores (GUY, 2000). O público e suas relações com as obras são comumente pensados enquanto capacidades ou não de entendê-la, como a expressão de uma relação de dominação, existindo ainda estudos que permeiam a recepção de determinados bens específicos, com recortes de gênero, étnico ou etário, principalmente relacionados aos públicos televisivos (SQUENAZI, 2006). No Brasil os estudos sobre os públicos e recepção têm seguido o mesmo enfoque. No estudo realizado por Almeida (1995) nas salas de cinema em São Paulo, este enfoca a mudança ocorrida na passagem das antigas salas de rua para o interior dos shoppings centers, buscando por meio dos relatos dos antigos frequentadores, remontar o que seria a experiência do público com os cinemas nas décadas de 40/50. As conclusões da autora vão ao encontro da setorização e segregação de classe existente entre as várias salas da cidade e da mudança ocorrida a partir dos shoppings. Outros textos brasileiros que relatam o público de cinema são os textos literários realizados por Capucho (1999) no cinema pornô Orly e por Durst (1996) a cerca da existência de cineclubes na cidade do Rio de Janeiro e da chamada Geração Paissandu que frequentava o local, por meio dos quais temos acesso a um relato minucioso das experiências dos espectadores nestes espaços. No entanto, a pesquisa ora apresentada, se aproxima das perceptivas de análise realizadas por Vale (2000) quanto ao público de filmes pornô focando no que faz o público durante a exibição dos filmes e Dabul (2005) que ao pesquisar o público de exposições de arte levantou questões importantes quanto ao porque vão e como agem os indivíduos nestas ocasiões. Sendo assim, percebe-se a relação entre a obra de arte e os expectadores como atravessada pelas expectativas dos citadinos, por meio do qual as salas de cinema e seus espaços externos são palco de verdadeiras interações sociais. Neste contexto, optou-se pelo recorte geográfico de três cinemas localizados em Botafogo, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, onde a partir dos espaços de cinema pesquisamos as relações dos públicos com os mesmos2. São estes o Espaço SESC de Cinema, antigo Espaço de Cinema, localizado numa das ruas mais movimentadas do bairro 3, o Cinemark Botafogo, localizado no oitavo piso do Botafogo Praia Shopping junto à praça de alimentação, e o Espaço Itaú de Cinema, antigo Unibanco Arteplex, localizado na Praia de Botafogo. Estes cinemas encontram-se a no máximo quatro quadras de distância um do outro, 2 Levantamento de dados realizado em 2007, para obtenção do Bacharelado em Ciências Sociais e continuação em 2011/2012 para elaboração da Dissertação de Mestrado em Sociologia. 3 Rua Voluntários da Pátria. 326 mas atraem públicos que se diferenciam e percebem aos outros como não semelhantes. 4 Tal percepção nos leva a questionar os estudos dos públicos puramente voltados a recortes econômicos e de classe, de fato se trata de três cinemas que se encontram em uma mesma região da cidade e que tem um preço médio para seus ingressos equivalentes. Contudo, quando pensado a partir das opções de lazer dentro da cidade tendo como base as escolhas dos indivíduos, tais salas atraem frequentadores diferenciados. Aqui, os estudos urbanos nos permitem questionar de que forma a proximidade física e a construção social da diferença se dão (PARK, 1967), o que nos permite refletir sobre a transição dos citadinos pelos espaços urbanos, e o caráter das escolhas e ademais, o porquê das escolhas quando se trata de filmes e cinemas. Ainda que possamos dizer que se trata de uma etnografia das classes médias cariocas (VELHO, 2011), o estudo permite perceber algumas estratégias utilizadas pelos frequentadores dos cinemas na busca por diferenciação e pertencimento de grupo, a partir do discurso que estes têm sobre os filmes, os cinemas e os usos que tais frequências podem adquirir em outros contextos. Destarte, buscou-se perceber o que está em jogo na escolha de se ir a um dos três cinemas pesquisados. Como fazem, o que fazem, por que fazem? (SEEGER, 1977) são perguntas chaves para entender não só o comportamento dos grupos estudados, mas também perceber o que buscam e esperam ao irem ao cinema, qual a visão de mundo (FOOT-WHITE, 2005) que os públicos, pensados enquanto grupos, têm e de que forma manipulam suas identidades nestes contextos. Encarando assim, o cinema como uma prática social em um contexto urbano plural, lugar este onde ocorrem inúmeras interações entre os indivíduos que buscam não somente a assistência de um filme, mas o status trazido pelo consumo de tal bem e o reconhecimento no grupo de frequentadores. O material recolhido durante a pesquisa, ainda que não possa ser aqui esmiuçado, permite que algumas características gerais dos usos dos espaços e do comportamento do público sejam percebidas. Algumas variáveis (os horários das exibições, dias da semana, filme dublado e/ou livre) influenciam diretamente na plateia, e pode-se perceber que as tolerâncias ao barulho, à comida dentro das salas e expectativas dos funcionários dos cinemas seguem uma lógica de acordo com estas variáveis. No entanto, para efeito de análise, propõese que se faça um recorte restringindo e aprofundando o exame dos momentos de estreias de filmes nos respectivos cinemas, que permitam perceber a forma como cada espaço de cinema 4 Os cinemas são apresentados em seus sites como exibindo: Espaço SESC Rio filmes alternativos e/ou arte (estacaovirtual.com.br), o Cinemark passa os filmes que são os “últimos lançamentos do mercado” tento como missão “ser a melhor empresa de entretenimento e lazer” (cinemark.com.br), já o Itaú Cinema utilizava o termo Arteplex “que significa cinema de arte em formato multiplex” (itaucinemas.com.br) . 327 e público se relaciona com os filmes nestas ocasiões. Isso significa dizer que, a forma de agir dos públicos varia dentro do mesmo espaço de cinema segundo as sessões, e que os conflitos entre expectadores durante as exibições dos filmes são caracterizado pela quebra cívica de alguns frequentadores (GOFFMAN: 2010), que desrespeitam a forma de agir numa determinada sessão. Segundo o mesmo autor, isso não significa que não existe uma regra explícita quanto ao barulho e a forma de se portar no cinema, mas de que essas regras são frouxas e que os participantes de uma sessão de cinema podem se mostrar mais ou menos tolerantes ao descumprimento das regras estabelecidas pelo cinema, o autor aponta a antiga existência de lanterninhas como figuras importantes no comprimento destas últimas (GOFFMAN: 2010, 227). AS ESTREIAS DE FILMES O funcionamento dos cinemas segue uma lógica de estreias de filmes em todos os finais de semanas. A alta rotatividade de filmes torna a experiência e a pressa em assistir pontos importantes na escolha de qual filme assistir para alguns espectadores. De um modo geral, o ir às primeiras sessões de exibição implica em compra antecipada de ingresso(s), ao menos com algumas horas de antecedência, sessões cheias e possíveis filas quando se trata de um filme “muito esperado”. As películas se tornam bastante aguardadas por motivos variados. O fato de serem continuações de grandes sagas, premiadas em festivais, de diretores famosos, adaptações de livros, crítica positiva, etc. refletem diretamente na experiência dos públicos e na vendagem de ingressos. As pré-estreias e super-estreias no Cinemark englobam filmes muito divulgados nas mídias e esperados pelo público. Referem-se a continuações de grandes sucessos de bilheteria, muitas vezes seus personagens principais são oriundos de revistas em quadrinhos ou livros. Em tais casos, os filmes estreiam em até três salas simultaneamente e têm durante o final de semana de estreia todas as suas sessões com lotação máxima. Sabendo desta enorme confluência de público, o Cinemark prepara uma sessão especial de pré-estreia, que ocorre na virada da noite de quinta-feira para a sexta-feira à meia noite e um5, com a sala de exibição completamente lotada e com toda uma organização prévia de venda de ingressos, que começam a serem comercializados com até um mês de antecedência. Os cuidados do cinema, evitando que o filme seja reproduzido pelos espectadores, e os 5 Toda estreia de filme se dá às sextas-feiras a menos que seja feriado. Algumas sessões como Amanhecer Parte II ocorrerem às 23:55 de quarta-feira, em função do feriado na quinta-feira. 328 ingressos que já estão esgotados há alguns dias faz das pré-estreias6 ocasiões excepcionais, onde um pequeno grupo terá acesso ao tão esperado filme antes de todo o restante do público. Esta distinção é reforçada pelo clima que se instala no ambiente horas antes da sessão, quando as filas são formadas desde bem cedo e o público, próximo fisicamente, transparecem sua ansiedade e euforia. Em vários casos, os fãs mais fanáticos se caracterizam como os personagens do filme e entram fantasiados para a exibição. Existem conversas entre grupos durante a espera, e todos falam da felicidade e curiosidade de ver “O Filme”. Dentro da sala o clima não é diferente, as pessoas conversam em tom de voz alto enquanto esperam o início da exibição, gritando e batendo palma nas principais cenas dos filmes7. Algumas das conversas e entrevistas feitas antes do início dos filmes demonstram o caráter distintivo de tais ocasiões. O “assistir ao filme” e o “dizer que já o assistiu” no dia seguinte se confundem, demonstrando que muito está em jogo no fato de se assistir ao filme nesta primeira exibição. “Eu agora só venho neste horário das estreias, é muito bom!” Quando questionado o porquê da preferência respondeu: “Amanhã quando eu chegar na facu (faculdade) o pessoal vai ficar falando: ah, hoje é e estreia do filme tal... e eu digo que já vi.” Outro participante do mesmo grupo disse que: “Eu só venho ao cinema para ver estas super-estreias ou um filme que estou muito afim. Se não vejo em casa8.” (Três estudantes de engenharia na UFF, pré-estreia do Piratas do Caribe.) Este mesmo grupo afirmou ainda, que veio também a sessão de pré-estreia do Homem Aranha 3. Há ainda jovens que vem de cidades do interior do estado somente para assistir a tal sessão, como é o caso de um rapaz entrevistado, que na companhia da avó disse: “Não tem mais como esperar! Preciso ver este filme hoje! (...) Vou ligar para o pessoal zoando que eu estou vendo o filme.” (Akira, 15 anos, morador de Armação dos Búzios). Tais depoimentos demonstram que o “ver o filme” e o “dizer que viu” fazem do filme um bem simbólico (BOURDIEU, 2008) distintivo junto aos grupos dos entrevistados. O status adquirido por fazer parte de tal sessão se dá não somente no próprio dia, onde ainda na fila a grande ansiedade e a sensação de pertencimento ao seleto grupo dos que conseguiram comprar seus ingressos são reforçados pelo próprio cinema que adota várias atitudes diferenciadas em tais exibições, mas também no dia seguinte junto aos seus grupos de convívio. Seja na escola, na faculdade, no trabalho, ou mesmo junto aos amigos fãs dos personagens e filmes, a utilização do “eu já assisti” será aproveitada como forma de distinção, 6 As pré-estreias que foram acompanhadas durante a pesquisa formam dos filmes: Homem Aranha 3, Piratas do Caribe 3, o Harry Potter e a Ordem da Fênix, Shrek Para Sempre, Amanhecer parte I e II. 7 Alguns exemplos destas palmas foram: Guitarrista do Rolling Stones Keith Richards durante o Piratas do Caribe; Cena em que o Homem Aranha dança em um bar; Cena em que o Venon aparece pela primeira vez no filme do Homem Aranha; Cena da rebelião dos estudantes no filme Harry Potter. 8 Costuma baixar filmes da internet. 329 diferenciação e de pertencimento ao grupo dos que já assistiram, o que fica mais claro quando confrontado com a “necessidade’ de se assistir as super-estreias no final de semana de suas estreias. Sendo assim, o assistir a determinado filme em determinado cinema reflete as estratégias individuais, demarcando não apenas o pertencimento, mas interligando o assistir o filme à rede social mais ampla dos citadinos (EPSTEIN, 1969). A multiplicidade e fluidez das pressões sociais sofridas pelos indivíduos nos contextos urbanos nos permitem fazer análises que levam em conta o caráter da escolha individual (BECKER, 2008) procedentes de tal forma de organização dos espaços, opção entre filmes, ainda que esta escolha esteja diretamente relacionada a expectativas de distinção e pertencimento. Contudo, ainda que esta primeira sessão seja especial, o final de semana de estreia como um todo é bastante movimentado, e atrai um grande número de pessoas. Em tais finais de semana são comuns as grandes filas, que começam a se formar desde cedo e não param durante todos os dias que se seguem à sexta-feira de estreia. Antes da marcação de lugares eram comuns pessoas correndo no momento em que se libera a sala em busca de seus lugares preferidos ou dos “melhores lugares”9. A euforia citada nas ocasiões de pré-estreias também ocorre aqui, porém não para todo o público como no caso anterior. As pessoas correm, sentam-se e em muitos casos só depois de instaladas saem para comprar seus produtos no snack10. Conversas antes do filme e durante a exibição são bastante frequentes, principalmente quando se trata de referências ao filme feitas em voz alta. O cinema disponibiliza ainda uma sala com cópias dubladas dos filmes com classificação livre, o que faz que um número grande de crianças e grupos de crianças acompanhadas de seus pais assistam a estes. Foi possível inclusive perceber grupos de crianças comemorando o aniversário de um de seus membros juntos no cinema em uma destas sessões, Homem Aranha 3: “Cara, eles fizeram a maior bagunça, jogaram pipoca nos outros. Nunca mais trago eles ao cinema.” (Mãe acompanhando o filho e os amigos, sábado 05/05). A curiosidade e a pressa em se assistir a tais filmes está ligada a várias situações que se cruzam: a espera que às vezes dura mais de um ano pelo lançamento da continuação do filme tão esperado, a existência de super-heróis e personagens carismáticos entre os personagens principais, as conversas nas semanas anteriores e posteriores nos grupos a que pertencem os espectadores sobre o filme e a questão de “estar por fora”: 9 Os melhores lugares para se assistir aos filmes variam bastante dependendo das necessidades e gostos dos espectadores. 10 Lanchonete no espaço interno do cinema que vendem pipocas, refrigerantes e guloseimas em geral. 330 “Eu sempre trago ele ao cinema, é um programa legal e ele gosta.” Quando questionada sobre o tempo que precisaria esperar pelo início da sessão, eram 14:30 a sessão só iniciaria às 19:10, ela disse que: “Ele (o filho) disse que se eu não o trouxesse neste final de semana, segunda-feira na escola todo mundo ia ficar comentando e ele estaria por fora.”. (Mãe acompanhando o filho de 9 anos, dia 05/05). Depoimentos como estes foram recolhidos durante todos os finais de semana de superestreias, demonstrando que ir durante o final de semana de estreia é programa “obrigatório” para determinados grupos. Assistir ao filme é um dos argumentos de pertencimento aos grupos, sendo parte do assunto das conversas e das características do grupo saber sobre os filmes e sobre os personagens retratados nos filmes, e não estar “por fora” significa assistir ao filme o quanto antes. Algumas das ocasiões sociais observadas durante a pesquisa podem ser entendidas ainda, segundo a definição de ritual de interação pessoal de Goffman (2011). Existindo verdadeiras ocasiões excepcionais quanto ao comportamento do público, como é o caso da sessão que ocorre nas sextas-feiras de super-estreias11, no primeiro horário após 14h, que coincidem com o final das aulas dos turnos da manhã das escolas, existindo uma confluência destes alunos para o shopping, Cinemark. Em tais ocasiões vários grupos de estudantes uniformizados encontram-se no cinema e começam a interagir e a performar (GOFFMAN: 1999) para os demais espectadores. Esta sessão acaba se estabelecendo como o ponto de encontro dos jovens das escolas das redondezas, que vem em grupo e fazem da experiência de se assistir ao filme “O Programa” de suas sextas-feiras. Em tais ocasiões, vários jovens das mais variadas escolas, em sua grande maioria particular, já começam a se encontrar nas lanchonetes e restaurantes do shopping enquanto almoçam ou pegam seus lanches para levarem ao cinema. Na fila para aquisição dos ingressos, que há esta hora já é significativa, o barulho e as conversas são frequentes, assim como os encontros casuais entre conhecidos de escolas diferentes. Após a aquisição dos ingressos, entram na fila de espera, onde muitos se sentam no chão e alguns aproveitam para almoçar seus lanches. O clima de paquera e de bagunça é geral entre os jovens, que falam entre si e entre grupos lembrando-se de conhecidos em comuns ou perguntando sobre algum aluno da escola do outro grupo. Em tais ocasiões, mesmo os grupos que normalmente frequentam outros lugares, como no caso da “galera da praia”, podem aparecer ao cinema 11 Por super-estréias chamamos as películas exibidas no Cinemark que são muito divulgados nas mídias e esperados pelo público. Referem-se a continuações de grandes sucessos de bilheteria, muitas vezes seus personagens principais são oriundos de revistas em quadrinhos ou livros. Em tais casos, os filmes estréiam em até três salas simultaneamente e têm durante o final de semana de estréia todas as suas sessões com lotação máxima. 331 para ver “qual é a do filme”12. Com a desculpa de que o dia não está com muito sol ou porque “todo mundo da sala estava vindo”. As sessões são então, verdadeiras ocasiões sociais, quando os jovens reunidos aproveitam a presença de outros estudantes da mesma idade das mais diferentes escolas para conversar e se aproximar, existindo demonstrações/exposições públicas destes últimos. Comentários são feitos em voz alta, jovens jogam pipoca entre si, rapazes tentam puxar assunto com grupos de meninas, se levantam e gritam alto, cantam parabéns em conjunto para algum aniversariante, etc. A performace apresentada por Goffman (2004) nos ajuda a perceber no que tais ocasiões se convertem para estes jovens que ávidos por chamar atenção utilizam seus corpos e falas para que os olhares da plateia se voltem para eles. A sala de cinema pode ser percebida como uma cena teatral no sentido de Goffman (2009), ocasião está onde a troca de ações produz uma dramatização que é compartilhada pela plateia em geral. Neste sentido, em tais ocasiões, uma definição compartilhada da situação acaba prevalecendo (GOFFMAN: 2010, 109). Para além das performances individuais de cada ator social, existe ainda uma atitude coletiva, da plateia como um todo, diante do filme. Durante a exibição dos trailers o público canta junto com as músicas das propagandas, normalmente comercializadas também nos canais de televisões, e fazem comentários durante os filmes que remetem diretamente ao universo jovem da época. Entre os exemplos mais marcantes de tais comentários estão os realizados durante o filme do Homem Aranha, quando em uma das cenas o personagem: meche em seu cabelo que caía sobre o seu rosto; vários espectadores gritaram: “O Homem Aranha é Emo13!”. Estes comentários causam risos, e nestas ocasiões o público parece ser formado por um grupo único, o dos jovens das escolas da Zona Sul do Rio de Janeiro. Esta sessão não pode ser apresentada e pensada sobre uma ótica que não as leve em conta como verdadeiros eventos sociais dos jovens. Pensá-las apenas como ocasiões para se assistir a um filme deixaria de englobar as interações, expectativas e vontades destes jovens ao irem ao cinema. Estes percebem tais sessões como um verdadeiro ponto de encontro entre jovens estudantes, ocasião onde podem rever conhecidos, conhecer novas pessoas e flertar com alunos de outras escolas. Goffman nos permite analisar essa ocasião social segundo uma reincidência de tais comportamentos ao mesmo tempo em que nos chama atenção para vários fatos excepcionais que podem ser tolerados neste tipo de ocasião, uma vez que as regras das 12 13 Como é o filme? Porque falam tanto sobre ele? (Fala de alguns alunos na fila de espera) Emo, Emotional Hardcore. Movimento musical mundial que no Brasil se caracteriza por jovens que andam com roupas pretas e quadriculadas e que tem como marca distintiva o uso do cabelo sobre o rosto e maquiagens melancólicas. 332 interações são definidas durante a figuração, e refletem e são o reflexo das brechas e da existência de frouxidão e firmeza quanto aos comportamentos nas ocasiões sociais e nos espaços públicos (GOFFMAN: 2010, 214). No Espaço SESC de Cinema, as estreias que atraem a um público maior estão comumente associadas a diretores que alcançam um status de produtor de grandes filmes e/ou filmes que recebem uma crítica favorável nas premiações internacionais14 e pela crítica brasileira, mesmo durante o Festival de Cinema do Rio 2012 percebe-se essas variáveis como importantes. A imagem do cinema enquanto experiência cinematográfica, tão recorrente nos depoimentos dos frequentadores, nos leva a reflexões quanto ao que estes buscam ao irem ao Espaço SESC e o que fazem a partir desta frequência. O Espaço SESC carrega consigo a imagem da exibição dos bens simbólicos institucionalizados como melhores (BOURDIEU, 2003), são os filmes arte, de qualidade e que fogem do “circuito comercial”. Esta distinção traz consequências claras na frequência, que é em sua maioria composta por adultos, bem vestidos, que se utilizam do Atelier Culinário15 como um espaço de estudo e que priorizam filmes que sejam mais do que roteiros bem escritos. Contudo, os próprios depoimentos e a vivência no cinema levantam outras questões quanto às escolhas dos filmes. São comuns que as primeiras sessões dos filmes que tenham uma crítica favorável nos jornais sejam procuradas. Em tais ocasiões a expectativa e a “necessidade” de se assistir ao filme o quanto antes faz com que muitos atores sociais, ávidos pela distinção trazida pelo filme, ocupem as primeiras sessões, e em alguns casos acabam saindo decepcionados. Um exemplo claro deste desconforto, quanto a não ter gostado de um filme “tão elogiado”, se deu na semana do dia 29 de junho a 05 de julho 2007, quando estreou o filme 500 almas. Após a exibição, na fila do banheiro, algumas espectadoras começaram a falar sobre o que acharam do filme, primeiro de forma discreta, como se estivessem incomodadas pela situação, e depois, quando percebendo a unanimidade quanto às críticas negativas ao filme, falaram de forma mais aberta dizendo que o acharam “chato e parado”. Nestas situações, a experiência individual ao ver o filme é atravessada pela crítica 14 Aqui a distinção se dá a partir de uma diferenciação entre os festivais. É unanime a citação dos festivais de Veneza, Cannes e Berlim pelos entrevistados, os mais jovens citam também os festivais de Toronto, Sundance e Locarno. Quase nunca se referem ao Oscar, normalmente acionado no Cinemark e Espaço Itaú, mas não desconhecem os filmes que ganharam premiações neste último. Alguns sugerem algumas das premiações do Oscar como possíveis, como no caso do Oscar de filme estrangeiro, “mas você precisa ver os dois ou três primeiros lugares, pois nem sempre o que ganha é de fato o melhor. Festival tem muita indicação” (Senhora, Espaço Itaú, 10/2012). 15 O Atelier Culinário é uma lanchonete que pode ser classificada como um dos Cafés que vêm se consolidando em toda a Zona Sul da cidade como ambientes de leitura e consumo de cafés, comidas, doces e bebidas alcoólicas. 333 positiva que este recebeu, e o sentimento buscado pela plateia é o de alcançar suas expectativas diante do filme. Esta última traduz não só uma vontade de entender e compreender o filme, mas também uma utilização do conteúdo destes em conversas e discussões posteriores. Sendo assim, os filmes e o cinema, se interligam a rede social mais ampla dos indivíduos, que no caso aqui analisado permite paralelos aos Nobres analisados por Velho (2008), uma vez que o Espaço SESC incorpora, dentro das possibilidades de cinemas da cidade, um habitus valorizado por este grupo (BOURDIEU, 1983), traduzido enquanto gosto e um estilo de vida, que se afirma por meio de uma diferença no modo de se vestir, consumir, o no que encaram como sendo um bom filme. No livro Amor pela arte, Bourdieu (2003) aponta a pressão sofrida pelos indivíduos que possuem “ambições culturais mais consistentes”, percebendo que durante uma viajem turísticas os sujeitos são “coagidos” a frequentarem determinadas exposições consideradas “imperdíveis”. O mesmo sentimento de “obrigação” apontado pelo autor pode ser percebido com relação aos filmes do Espaço SESC, que respaldados pelas críticas positivas e pelos grupos de referência dos frequentadores, acaba por criar uma necessidade de assistência e entendimento do mesmo. Nestes casos, assim como nas super-estreias do Cinemark, o que está em jogo não é somente o “ver o filme”, mas o status trazidos ao se assistir a determinados filmes considerados “obrigatórios”. Ficou claro durante a pesquisa, que os critérios que regem as escolhas dos filmes “imperdíveis” são diferentes quando pensadas em cada um dos cinemas. No Cinemark, está relacionada às superproduções muito aguardadas e fruto normalmente de adaptações de quadrinhos e livros de sucesso. Já no Espaço são os filmes dos diretores aclamados e prestigiados pelas “boas críticas cinematográficas”. No entanto, pode-se dizer que, apesar de funcionarem para grupos distintos a lógica que rege a escolha dos filmes está diretamente relacionada aos grupos de referência de cada ator social, que buscam na assistência não apenas o filme, mas o “dizer que viu o filme” e o sentimento de pertencimento ao grupo dos que já o assistiram. A aspiração ao mundo culto e a sensação de se estar entre semelhantes são apontadas pelos frequentadores do Espaço como motivos pela escolha deste cinema em relação aos outros existentes no bairro. “Eu sou elitista! Não curto muito estes filmes narrativos (americanos). Gosto do filmes pelo diretor, filmes experimentais.” (Pai acompanhado da esposa e da filha, 55 anos, 10/01, Espaço de Cinema). “Venho aqui tomar um café e estudar, gosto do ambiente e das pessoas que freqüentam o Espaço. Eu me identifico com o público daqui.” (Rapaz, 25 anos, 25/02, Espaço de Cinema). 334 O “ser visto” nas dependências do Espaço e os encontros casuais também fazem parte das experiências dos frequentadores, que encontram seus pares e conhecidos de forma causal e trocam informações sobre os filmes que assistiram ou irão assistir. Há ainda a existência de frequentadores esporádicos, que estão pela primeira vez no cinema e apontam diferenças marcantes. “Eu não gosto daqui, pois o pessoal é diferente do que tô acostumado. Todo mundo é meio esnobe, metido... é porque o cinema fica onde fica 16 e os filmes diferentões que não passam nos outros lugares.” Quando perguntado sobre quais eram as diferenças ele disse: “Olha o jeito como se vestem, tem este jeito blasé, o óculos da moda. Todo mundo fazendo tipo de intelectual.” (Casal de universitários, 10/01, Espaço de Cinema). O casal acima apontou ainda a questão étnica, me perguntando quantos negros eu já havia visto frequentando o Espaço. O número foi realmente muito pequeno durante toda a pesquisa, existindo um número maior no Cinemark e Espaço Itaú. O casal, contudo, afirmou odiar os cinemas barulhentos, dizendo que o lado bom do Espaço SESC era que “o povo é tão metido que não faz barulho”. O Espaço Itaú de Cinema é comumente acionado quando os entrevistados do Estação SESC se referem a algum “bom filme americano”, sendo visto como um cinema que passa alguns dos filmes do chamado “circuito comercial” já pré-selecionados. Essa escolha dos filmes é reafirmada pelo site do cinema e pelos funcionários, que percebem este espaço como detentor de uma programação “mais ” 17 . A programação que mescla filmes que são exibidos no Espaço SESC e no Cinemark, em um complexo que disponibiliza seis salas, faz com que o Espaço Itaú tenha um movimento constante de pessoas das mais variadas faixas etárias. No que tange aos momentos de estreias de filmes, este acaba se tornando uma “alternativa ao cinema de h ”, percebido como cheio e com um “clima de shopping”. Os encontros casuais e os comentários quanto aos filmes que estreiam na semana, como o caso do “Elefante Branco” (09/11/12), demonstram como que alguns filmes devem ser vistos e se tornaram assunto das conversas posteriores destes indivíduos, ainda que não produzam o mesmo frenesi e comoção que os filmes mais divulgados pelas mídias causam entre os jovens. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho se caracteriza como um primeiro esforço para sistematização de alguns dados que veem sendo levantado para elaboração do texto final da dissertação, e se 16 17 Refere-se a localização na Zona Sul do Rio de Janeiro. Os termos quanto aos circuitos de cinema não estão sendo aqui questionados, mas as definições e classificações entre os filmes serão parte da análise da dissertação. 335 tornará parte de um capítulo voltado para os momentos de estreias dos filmes. Enquanto tal busca produzir algumas reflexões que acerca destes momentos e dos espaços estudados que vão ao encontro da importância e das escolhas dos filmes para os grupos e indivíduos estudados. Almeida (1995) em sua pesquisa na cidade de São Paulo percebeu diferenças marcantes entre os cinemas de rua e os cinemas de shopping, que estavam diretamente relacionadas à decadência do antigo centro da cidade e das mudanças urbanas ocorridas em São Paulo. Aponta ainda a existência de cinemas arte, que se encontram no entorno da Avenida Paulista junto aos museus da região. Sua contraposição, no entanto, está entre as salas de rua a salas de shopping, percebendo o cinema arte como uma nova categoria restrita a um espaço da cidade. Na cidade do Rio de Janeiro, está oposição entre cinema de rua e cinema de shopping não se dá como em São Paulo. Várias salas de rua foram adaptadas e transformadas segundo o padrão multiplex (GOULARD: 2004), e abrigam cinemas com o mesmo padrão de serviços dos Norte-Americanos18. As salas divididas em várias exibem muitas vezes os mesmos filmes do cinema do shopping, e a oposição percebida por Almeida não nos ajuda a pensar tal situação do Rio de Janeiro. A oposição aqui, não é entre cinema de rua ou de shopping e sim de distribuidores e circuitos distintos, que exibem filmes diferentes e que buscam atingir a públicos diversos. As expectativas e propagandas dos serviços e filmes realizadas pelos cinemas acabam por atrair clientes que vão em busca de seus serviços. Os usos dos espaços internos e externos às salas de exibição juntamente com as entrevistas mostrou que são muitas as expectativas e motivos que levam os indivíduos aos cinemas, espaços estes percebidos enquanto demarcadores de suas identidades a partir dos projetos individuais de seus frequentadores. As experiências cinematográficas são variadas e altamente influenciadas pela presença ou não de acompanhantes. O ir ao cinema abarca mais do que a experiência estética contemplativa, são verdadeiras ocasiões sociais, quando os atores sociais interagem com o restante da plateia, assistem aos filmes e “dizem que os assistiu”, em alguns casos o comunicado é realizado dentro do próprio cinema através de ligação ou postagens na internet via celulares. As considerações finais a que chegamos neste trabalho, assim como apontado por Park quanto às regiões morais, é que os indivíduos ao buscarem a mesma forma de diversão, devem de tempo em tempo se encontrar nos mesmos lugares, resultando que a organização 18 Exemplos: São Luiz, Roxy, Espaço Itaú de cinema. 336 espacial citadina acaba por criar espaços de convívio que seguem padrões de gosto e de temperamento (PARK, 1967: 70). Tais disposições acabam por criar uma segregação espacial, ainda que no caso aqui estudado ela não se estabeleça enquanto definitiva, imprimindo aos frequentadores de determinado cinema identidades de grupos e individuais. Sendo assim, o ir ao cinema está aqui relacionado à liberdade de fazer escolhas que determinados indivíduos da classe média carioca têm quanto às possibilidades de salas de cinema, estando diretamente relacionada à multiplicidade de visões de mundo que coexistem na cidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Heloísa. 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Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 338 RELIGIÃO, REDES SOCIAIS E “AGENTES MEDIADORES”: AÇÕES PENTECOSTAIS NAS FAVELAS DE CAMPOS DOS GOYTACAZES Vanessa da Silva Palagar Ribeiro1 Elson dos Santos Gomes Junior2 RESUMO O segmento religioso evangélico tem apresentado grande dinamismo em suas estratégias e ações na sociedade brasileira. O crescimento expressivo obtido nas últimas décadas também intensificou as ações assistenciais entre este segmento religioso que incrementa seu proselitismo junto à população. Num contexto de retratação das políticas sociais e de precarização do trabalho e desemprego, as igrejas pentecostais se inscrevem territorialmente em favelas por meio de redes e estratégias de enfrentamento da situação de pobreza de seus fiéis. Contemplando as atividades de iniciação científica desenvolvidas desde 2009 busca-se problematizar o campo de atuação dos pentecostais na cidade de Campos dos Goytacazes. Inicialmente foram selecionadas três favelas da cidade de acordo com suas características socioeconômicas e as condições de vida de seus moradores, em seguida buscaram-se fontes e/ou dados sobre a formação destas favelas e, por fim, a imersão ao campo. Foram analisados de forma especial alguns aspectos encontrados no campo relevantes e presentes na literatura sobre pentecostalismo no Brasil, dessa forma, foram observados as redes de amparo/proteção, os “agentes mediadores” e as ações assistenciais das igrejas face aos contextos de precariedade de serviços e isolamento institucional. A partir de uma abordagem metodológica qualitativa com pesquisa de campo, de observações diretas e entrevistas semiestruturadas privilegia-se as narrativas de membros das denominações pentecostais investigadas nas favelas da cidade. Palavras-chave: Pentecostais; Redes Sociais; Mediação. INTRODUÇÃO O presente trabalho é resultado de um conjunto de atividades realizadas durante a graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense, a partir das experiências obtidas 1 2 Bacharelanda do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF); Bacharelando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF); 339 nos respectivos projetos de Iniciação Científica e em disciplinas cursadas. A abordagem qualitativa é a predominante, dando ênfase a métodos antropológicos de pesquisa. O trabalho a ser apresentado a seguir, num primeiro momento, tem por finalidade traçar a trajetória da formação da cidade de Campos dos Goytacazes. Tendo em vista, que a formação da cidade está intrinsecamente relacionada às terras que aqui se encontravam, pois estas eram (e ainda o são) totalmente propicia para o cultivo da cana e o açúcar era fonte de riqueza da época da colonial. Então, nesta parte do texto visamos tratar resumidamente, pontos importantes que fazem do povo campista e da cidade de Campos o que são hoje, via o desenvolvimento da agricultura açucareira, desde as primeiras tentativas de sua implantação até sua ascensão como principal fonte econômica da planície goitacá. Depois, tem-se por objetivo delinear a expansão pentecostal assim como algumas estratégias realizadas pelo segmento evangélico para “conquista das almas” (ALMEIDA e D’ANDREA, 2004, p. 105), desde a anexação de fiéis, trabalho assistencial realizado junto aos membros da igreja e a dimensão política desta assistência. Ou seja, busca-se investigar o campo de atuação dos pentecostais nas favelas de Campos dos Goytacazes enfatizando o assistencialismo destas igrejas; procura-se compreender e interpretar, como estas denominações religiosas atuam em face aos problemas sociais que se apresentam no cotidiano dos moradores de favelas. METODOLOGIA A metodologia característica desta pesquisa é a qualitativa, que passa a ter devida ampliação a partir do desdobramento da realização do trabalho de campo, envolvendo a observação participante, conversas informais e entrevistas semi-estruturadas desenvolvidas devidamente no campo de estudo. A pesquisa etnográfica ou mesmo o texto etnográfico levantado com o diário de campo, passa a ter grande importância para análise dos dados obtidos durante as conversas e entrevistas, enfatizando sua relevância enquanto método de estudo e servindo como meio de descrição e posteriormente, reflexão do contexto pesquisado. Primeiramente foram selecionadas três favelas de Campos dos Goytacazes de acordo com suas características socioeconômicas e as condições de vida de seus moradores. Em seguida, é feito um levantamento das atividades realizadas pelas igrejas que envolvem ações de caráter assistencialista. Também se realiza a observação participante dos cultos como forma de aproximação das instituições pentecostais. E ainda, elaboração do diário de campo a partir das observações e comentários sobre o contexto e dinâmicas focalizadas na pesquisa. 340 Foram aplicadas entrevistas semi-estruturadas com os responsáveis das organizações de cunho assistencialista de confissão pentecostal, bem como os pastores dessas denominações. Também será utilizado material extraído do grupo focal realizado pela Professora Wania Mesquita para o projeto “Cidadania sob cerco: percepções e estratégias de ação dos moradores de favela”. As seções foram divididas por grupos formados a partir das temáticas levantas no referido projeto, e de acordo também com os contatos das pesquisas de outros estudantes bolsistas de iniciação científica, foram convidados a participar grupos de homens, mulheres, lideranças religiosas (pentecostais), pais e mães, e adolescentes; dividido assim, cada grupo focal foi realizado em dias distintos durante o mês de Outubro de 2010. CAMPOS DOS GOYTACAZES: DA CAPITANIA À CIDADE A princípio, ao Brasil ser dividido em capitanias hereditárias por D. João III, a Capitania de São Tomé – como era chamada toda a área que hoje se encontra toda a região norte e noroeste fluminense do estado do Rio de Janeiro – foi doada a Pero de Góes da Silveira. Pero de Góes, por sua vez, inicia em 1539 a colonização de suas terras, entretanto, suas tentativas de construir engenhos de açúcar sempre eram destruídas pela população local indígena, os índios Goitacá; que fez com que Pero de Góes abandonasse sua capitania, pois a resistência dos índios Goitacá apresentava grande perigo a segurança dos senhores e suas respectivas famílias. (LAMEGO, 1947, p. 64) Depois de muitos anos abandonada, a capitania de São Tomé, também chamada de capitania Paraíba do sul, após a morte de Pero de Góes, recebe um novo donatário, seu filho Gil de Góes da Silveira. Apesar da dedicação de Gil de Góes o mesmo lhe passou, os índios mostraram resistência. Então, Gil de Góes renuncia sua capitania em favor da Coroa portuguesa. Mais tarde determinou o rei de Portugal que o Governador do Rio de Janeiro dividisse as terras em sesmaria a sete capitães. Estes arrendaram e venderam parte de seus ‘terrenos’ para moradores da cidade do Rio de Janeiro. Assim, em pouco tempo divididos os quinhões foram construídos os currais. (LAMEGO, 1947, p. 66) A partir da leitura de Alberto Lamego (1947) podemos ver as muitas tentativas da criação da vila de São Salvador pelos moradores locais e não pelos donos de currais e sítios, os poderosos que viviam no Rio de Janeiro. Mostra-se neste processo de fundação da Vila de São Salvador ser de fundamental importância a propriedade, ter propriedade de terras era essencial para conseguir afirmar seus direitos, vontades, ter poder, posição social etc. Porém, não basta somente ter propriedade para afirmar seu poder como elite, tem que ter também o poder político, ou seja, o poder da Câmara. A formação de Campos dos 341 Goytacazes desde sempre foi baseada na luta, pelo conflito. A situação das classes mais pobres – pequenos proprietários, trabalhadores livres, escravos etc. –, sempre esteve mais que insatisfatória, pois não tinham voz neste cenário político e econômico em que a luta era visivelmente inter-elite. (ALVES, 2009, p. 79) Em 1677 é fundada a vila de São Salvador. Juntamente com a fundação da Vila está construída a identidade da população campista, está construída sua história. A Vila de São Salvador, futuro município de Campos dos Goytacazes é fundada pela perspicácia, fervor, audácia que possui o seu povo; pelo conflito, resistência e superação que aspira uma população que quer se libertar: a luta pela liberdade de Campos. (ALVES, 2009) Dividida em latifúndios depois da queda dos Assecas (os que tiveram suas terras doadas pelo Rei de Portugal) houve uma grande expansão da agroindústria açucareira. Em Campos a principio não existiu os chamados engenhos reais, com grande número de escravos etc.; na indústria açucareira campista era tudo muito rústico assim como Lamego filho cita Couto Reis (1974): “Para a casa da fabrica, que comumente é a mesma da vivenda, tudo serve. O fim principal é moer cana e fazer açúcar. Há engenhocas que não têm cobertura senão o espaço que ocupam as moendas, cuja cobertura anda à roda, por estar armada por cima das almanjarras, e só mói em tempo de sol; outro há, senhor das tais engenhocas, que não possui escravo algum e se serve com a sua família – filhos, irmãos, mulher e alugados. Faze-se incrível o que se conta de algumas destas fábricas, que assim mesmo fazem muito açúcar, com que se remedeiam os donos, a vão deixando de cultivar outras culturas, a que antes se aplicavam.” (LAMEGO FILHO apud COUTO REIS, 1974, p.139) Mas essas famílias produtoras de açúcar também passam adquirir escravos, utensílios, crédito com mercadores com o que ganham da sua produção e muitos chegam até a adquirir engenhos. Portanto, afirma Lamego Filho (1974): “Assim é que nasce em Campos a industria açucareira. Da engenhoca de 4 a 6 formas de açúcar diárias é que sai o engenho de 30 a 40 caixas e com essa multiplicidade individual de iniciativas é que enxameiam as pequenas fábricas. O desejo da terra acirrado na luta contra os Assecas é que leva o pequeno foreiro a construir moendas próprias em suas fazendas penosamente adquiridas. Dessa maneira é que, de 1769 a 1783, no espaço apenas de 14 anos, se levantam na planície 223 novos engenhos e engenhocas.” (LAMEGO FILHO, 1974, p.139) Sabendo-se que no relevo campista predomina a planície e uma forte presença se recursos hídricos, como o próprio rio Paraíba do Sul e diversos lagos, lagoas e brejos. Neste contexto, como nos diz Lamego filho, o meio geográfico se impõem e contribui para a dispersão do homem. A disposição topográfica da região dificultava a comunicação da população. Após 30 anos da passagem da capitania para a Coroa, a lavoura de cana já tende a monopolizar toda a atividade econômica da região. 342 Assim, com o adensamento da região vai se criando possibilidades de comercio, há melhorias nos transportes, o cultivo da cana traz toda uma modificação do ambiente social da planície. “A cana tudo modifica e o novo método de vida traz maior convívio e mais frequentes idas à vila pelas necessidades de intercambio.” (LAMEGO FILHO, 1974, p. 141) A vida muda na planície, novos ricos surgem, é aparente um leve refinamento, se vê sedas, cetins, belos objetos em prata, uma ostentação do que a cana trouxe para os que dela tiram o seu trabalho. Diz Lamego Filho (1974): “Todo esse refinamento, entretanto, é quase esterno. Não entra na epiderme. Os pés desses novos-ricos ainda trazem a lama dos pantanais em que se atolaram, e suas mãos os calos do laço. O rosto é curtido pelas soalheiras nos canaviais e pelo bafo das fornalhas. Mas o contágio da abastança pelo açúcar tudo invade. Por todo esse fim de século e princípios do seguinte, as lavouras se derramaram na planície, e numa extraordinária animação febrilmente se levantam centenas de novos engenhos e engenhocas.” (LAMEGO FILHO, 1974, p. 142) Se tratando da área norte e noroeste fluminense o fator diferenciador da região está na presença da ordem religiosa, isto porque, entre outros fatores, apresentaram forte resistência a utilização do trabalho escravo, havendo conflito entre senhores de engenhos e a ordem eclesiástica durante a consolidação da agroindústria açucareira. Em 1827 é instalado o primeiro engenho a vapor em Campos, já em 1877, surgiu o primeiro engenho central do país: o Engenho Central de Quissamã. Para a construção deste Engenho foram compradas máquinas francesas. Além disso, O aparecimento da ferrovia, em 1837, com a inauguração do trecho Campos-Goitacazes; e posteriormente em direção ao trecho Norte-Sul, facilitou a circulação, transformando o município em centro ferroviário da região. Em 1879/90, também no município de Campos, foi inaugurada a primeira usina de açúcar do Brasil: Usina do Limão, situada na fazenda e engenho do Limão, pertencente a João José Nunes de Carvalho. Época da aristocracia rural enriquecida pelo açúcar. (LAMEGO FILHO, 1974, p. 150) Já no Período Republicano a sociedade campista viveu um surto econômico e urbanístico de grande importância na história fluminense, chegando a até mesmo entrar em uma disputa política e econômica pela sede da capital estadual no início do século XX (ALVES, 2009, p. 81). Porém, para que Campos atingisse a categoria de cidade era necessário que o Governo central acabasse com as epidemias causadas principalmente pelos períodos de cheias, e atribuísse a cidade uma imagem de progresso. (ALVES, 2009, p. 83) Em 1835 Campos deixa de ser vila e passa a ser cidade. Então se pode dizer que o processo de urbanização da cidade se dá em 1877 com a implantação dos engenhos centrais. E 343 aproximadamente, em 1890 a região passa do rural para o urbano. Com isto, a plena circulação de negros, pobres etc. no centro urbano passa a ser um problema a nova ideia de “civilização” advinda com o conceito de espaço urbano. Era necessário tornar o espaço urbano civilizado e para isto, foi necessário estabelecer regras de circulação, plano higienicista, etc., ou seja, uma serie de medidas institucionais, políticas, sociais e econômicas para tal fim. Logo, a “política de reforma urbana” perpassava não só pela limpeza do espaço, como acima de tudo acentuava, ou melhor, determinava a divisão do espaço. (ALVES, 2009, p. 85-90) A cidade de Campos dos Goytacazes apresentou no período entre 1950 e 2000 além de um grande crescimento populacional, também um forte fluxo migratório no sentido campocidade, em decorrência da decadência de setores agrários na região. A crise do açúcar e álcool levou ao fechamento de muitas usinas em Campos, e outras sofreram um processo de modernização nos meios de produção. Logo, precisavam de mão de obra especializada, o que não era encontrado na região. Os trabalhadores rurais se deslocaram para as cidades em busca de melhores condições de vida e trabalho, porém mesmo na cidade, essa parte da população desempenhava funções que exigiam bem menos “qualificações profissionais” (GUIMARÃES e PÓVOA, 2005, p. 9). O centro urbano da cidade não estava preparado para receber tamanho contingente de pessoas; o acesso fácil e maior “oferta” de emprego nesta parte da cidade, levou a parcela pobre da população a ocupar lugares próximos ao centro urbano, porém à margem do mesmo. A modernidade trouxe assim uma transformação urbanística a cidade e, também, realocou esta população pobre definindo o seu lugar, ou seja, as margens do espaço urbano da cidade campista (na favela). O CAMPO DE PESQUISA: LOCALIZAÇÃO, CONTEXTO HISTÓRICO E TRABALHO ETNOGRÁFICO De acordo com as saídas de campo foi possível caracterizar a localização mais exata das favelas, são elas: Baleeira, Tira-gosto e Matadouro, determinando Ruas, Bairro, Avenidas e pontos de referência de suas localidades, e a partir disto foi realizada a descrição a seguir. A Baleeira está localizada entre quatro avenidas importantes da cidade: Av. Alberto Torres; Av. Max de Vasconcelos; Av. Presidente Vargas; Av. Visconde de Alvarenga. Situa-se atrás do Cemitério do Caju, o maior da cidade de Campos. O cemitério foi instalado no centro urbano em 1855 por causa da epidemia de cólera que atingiu grande parte da população devido à insalubridade dada a topografia de áreas alagadas. A ocupação da área atualmente 344 conhecida como Parque Leopoldina era de moradores que prestava serviços ao cemitério e de ferroviários da estação Leopoldina Raiwllys. A favela Matadouro está localizada em uma área que forma um corredor entre duas margens laterais, sendo uma delas a Avenida Alberto Lamego e a outra o rio Paraíba do Sul. Percebe-se nos últimos anos uma paulatina valorização dos imóveis da área no entorno da favela, conforme mais se aproxima da Avenida. A favela é plana e cortada por ruas internas, sendo a parte mais próxima do rio cortada por pequeninos becos e passagens. Assim pode-se dizer que a planificação do bairro é tanto menos perceptível conforme mais se adentra no espaço da favela, aonde os barracos vão ficando menores e exibindo uma estrutura mais precária. A extensão territorial da favela Matadouro se estabelece em continuidade entre a favela Tira-Gosto e o Goiabal. Muitos dos seus moradores construíram suas casas próximo ao dique de contenção do rio Paraíba do Sul, que delimita um dos lados da favela dando o contorno sinuoso de seus limites. Conforme dito anteriormente, passam pela favela a Avenida Dr. Adão Manuel Pereira Nunes que mais pra frente se encontra com a Avenida São João da Barra e a Avenida Rui Barbosa, também as duas em contorno do mesmo rio. Dentro dos limites da favela Matadouro se localizam ao longo da Avenida Dr. Adão Manuel Pereira Nunes, quatro Igrejas Pentecostais: a Igreja Pentecostal Filadélfia com o Pastor Isaías; Igreja Prebisteriana da Congregação do Matadouro com o Pastor Devid; Assembleia de Deus Ministério de Volta Redonda com Pastor Emanuel; e Assembleia de Deus Ministério Getsêmani com o Pastor Adilson, mas esta se encontra já no Goiabal, entretanto a Pastor está construindo uma filial próximo a Portelinha3. E ainda na Rua Projetada Aguiar, ao lado da UENF, se dá uma das entradas para a favela Matadouro, onde se localiza também os prédios que são chamados pela comunidade de ‘Portelinha’, há uma Igreja Assembléia de Deus do Ministério Madureira com o Pastor Marcos. E por fim, atrás da Avenida Adão Manuel Pereira Nunes, na Avenida Rui Barbosa que beira o Rio Paraíba do Sul há também outra Igreja Pentecostal intitulada de Igreja Evangélica Resgatar com a Pastora Luzia. Então, ao todo, existem sete igrejas de origem Pentecostal localizadas no interior da comunidade Matadouro. Segundo depoimento de alguns destes pastores as igrejas não possuem muitos membros, por exemplo, na igreja pentecostal Filadélfia o número aproximado de membros fixos, sem contar com crianças e visitantes, gira em torno de 12 pessoas. Na igreja 3 Portelinha é como é conhecido o conjunto habitacional construído pela Prefeitura de Campos dos Goytacazes na comunidade Matadouro. Ela está localizada no final da Rua Projetada Aguiar e fica ao lado da UENF. 345 Prebisteriana esse número é um pouco maior, e se pode dizer que a igreja recebe aproximadamente 50 pessoas durante os cultos, incluindo membros e visitantes. E já na Igreja Resgatar os membros fixos da igreja fica em 30 pessoas. O exato limite entre as favelas Matadouro e Tira-Gosto são desconhecidos, não dá para afirmar com precisão onde começa uma e termina a outra, mas em todo caso o Posto de Saúde da favela Tira-Gosto delimita, pelo menos simbolicamente, este ponto de ruptura. Contudo cabe mencionar que os moradores da Matadouro vêem a Tira-Gosto como uma favela muito mais violenta, e esta proximidade com ela os afetam por esta última representar um perigo eminente (MESQUITA, 2009). A favela Tira-Gosto surgiu na década de 60 e se localiza próxima a favela Matadouro, as margens do Rio Paraíba do Sul, no bairro Parque Riachuelo. Situa-se entre as Ruas Élson de Souza Oliveira também conhecida pelos moradores como Rua São João da Barra (beirario) e a Av. Dr.º Adão Manoel Pereira Nunes, e segundo informantes, a favela se inicia desde a fábrica Purac Sínteses Indústria e Comércio até o beco Risca Faca. As ruas de acesso a Tira Gosto, sentido Alberto Lamego, são as ruas Siqueira e Silva e Felipe Uebe. Observa-se na favela Tira-Gosto a predominância de becos, alguns mais estreitos do que os outros e não possuem asfalto, as casas são em sua maioria bem simples e em muitas delas residem famílias numerosas. Existem vários botecos de vendas de bebidas e alguns produtos alimentícios de primeira necessidade, duas igrejas, uma católica (desativada) e uma pentecostal (Igreja Caminho das Águas dirigida pelo Pastor Getúlio). Existe um campo de futebol, que serve para brincadeiras esportivas, e também já foi muito utilizado para bailes funks. A igreja Católica, segundo contam alguns dos moradores, já faz muito tempo que não funciona, e quando é aberta se restringe apenas a velórios. Não há Padre fixo na igreja e esta se localiza muito próxima ao campo da comunidade, porém, entretanto, ao lado da igreja católica também se encontra um dos pontos de maior incidência do tráfico de drogas. Historicamente a favela Baleeira foi formada por famílias que saíram das fazendas e do campo em direção à cidade “... e como não tinham condições de pagar um aluguel invadiram uma área localizada na malha urbana da cidade, que afirmam ter sido doada por um fazendeiro à Prefeitura.” (GUIMARÃES & PÓVOA, 2005, p. 16). As favelas Baleeira, Tiragosto e Matadouro são reconhecidas no IBGE4 como “aglomerados subnormais”, mas alguns moradores da Matadouro a identificam como Goiabal, mas esta por sua vez, tem sua origem anterior a Matadouro que se formou posteriormente em contiguidade territorial. 4 Dados preliminares IBGE 2012. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/agsn/ 346 Um fato ressaltado por Guimarães e Póvoa (2005) é que muitas favelas da cidade se formaram em continuidade uma das outras, e como nos casos das favelas Tira-Gosto, Risca Faca e Siqueira e Silva, que atualmente de acordo com alguns moradores da Tira-Gosto, é possível agrupar a Tira-Gosto e Risca faca como uma única favela, recebendo o nome somente de Tira-Gosto. Porém dados do IBGE5 contradizem os moradores, identificando e delimitando espaços para cada uma dessas duas favelas. A Siqueira e Silva é uma rua de entrada da Avenida Alberto Lamego para a favela Tira-Gosto, mas esta vive um histórico diferente, pois os moradores dessa rua não se sentem pertencentes à Tira-Gosto, e por isto, criaram uma própria maneira de identificação social, são moradores da Siqueira e Silva, segundo relatos. Esta atitude pode ser observada como uma forma de ‘fugir’ do estigma (GOFFMAN, 1974) referente à criminalidade dos territórios favelados. No entanto, também dados do IBGE (2012) mostram que a Siqueira e Silva é identificada como um dos “aglomerados subnormais” da cidade de Campos. A EXPANSÃO PENTECOSTAL Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o catolicismo era a religião que compreendia a maior parte dos fiéis no Brasil.6 Visto o Brasil como um país majoritariamente católico desde o período da colonização, não é viável dizer, atualmente, ser um país radicalmente católico; Isto porque, a partir da década de 80 com o avanço do movimento evangélico nas principais cidades brasileiras, marco de um importante fenômeno religioso impulsionado pela forte presença e participação de evangélicos em diversos âmbitos da vida social do país (como a cultural, política, econômica e social), as igrejas evangélicas passam a ocupar cada vez mais os espaços na sociedade brasileira. As estatísticas mostram que os evangélicos pentecostais dobram a cada década: 3,9 milhões em 1980, 8,8 milhões em 1991 e 18 milhões em 2000. (Atlas da filiação religiosa e indicares sociais no Brasil, 2003, p. 39). Este aumento está relacionado principalmente a dois aspectos: publicidade (ou divulgação pela mídia) e o proselitismo religioso fortemente utilizado pelos membros dessas 5 6 Id. IBGE 2012. Não é mais cabível, hoje, afirmar que o Brasil é um país radicalmente católico, tornando-se impossível ignorar a mudança em curso no quadro religioso brasileiro. A oferta de denominações religiosas é enorme. Os dados do IBGE referentes ao ano de 2000 evidenciam não somente a pluralização religiosa brasileira, com a maioria católica reduzindo-se de 83,76% para 73,8%, como também o aumento da taxa dos sem-religião, que subiu de 4,78% para 7,28%. Esta ultima tendência parece indicar uma desistitucionalização da religião, com um bom número de brasileiros procurando fora das religiões um sentido para a sua vida. O estado do Rio de Janeiro apresentou em 2000 uma menor proporção de católicos (57,2%) e maior de pessoas sem religião (15,5%). As pesquisas indicam que, ao longo dos censos, o Rio de Janeiro vem apresentando uma maior diversidade de declarações de religião, e também, foi constatado expressiva concentração de evangélicos com 21,1% da população (Comunicação Social, 08 de maio de 2002). 347 igrejas. De acordo com Silva e Costa (2007, p. 46) o crescimento dos movimentos religiosos de ordem pentecostal na América Latina ocorreu a partir do ano de 1970 que coincide com o crescimento da Teologia da Libertação7, o fim do milagre econômico e a industrialização dos centros urbanos. Esses acontecimentos religiosos e econômicos não têm nada em comum à primeira vista, mas estão completamente imbricados e interferem até hoje na vida política, social e econômica brasileira. O milagre econômico fez o Brasil crescer, mas beneficiou a poucos, para maioria da população brasileira restaram o crescente desemprego, os baixos salários, a falta de infraestrutura, etc. Com esse quadro econômico pouco favorável à parcela pobre da população, surgem mudanças no campo religioso onde estes tipos de instituições religiosas passam a buscar explicações e soluções para os problemas enfrentados pelos seus fiéis. (SILVA e COSTA, 2007, p. 46) A inserção dos evangélicos pentecostais no meio político pode indicar um suposto enfraquecimento de influência da Igreja Católica, sob as instituições seculares, e uma mudança no mundo evangélico. Essa mudança é assinalada na manutenção das características próprias (dos pentecostais), ao passo que a esfera política, em nossa sociedade, está em constante transformação. Autores como Pierucci e Prandi (1996) destacam a utilidade de compreender a religião como inovação, ruptura e mudança no intuito de perceber o papel que esta exerce em determinado contexto social. Nessa perspectiva, o pentecostalismo brasileiro aponta para a redefinição de valores ou redescoberta de valores religiosos em uma nova concepção. De forma geral, estes fiéis buscavam respostas para seus males, tanto de ordem material como espiritual, já que as instituições tradicionais não ofereciam o conforto ritual que precisavam e nem correspondiam aos desejos da classe pobre que crescia de forma acelerada. Devido à grande competitividade religiosa existente no Brasil, o não atendimento dessas necessidades básicas de seus fiéis, implicaria consequentemente, na perda de membros que buscariam em outras igrejas aquilo que desejavam (Silva, 2009). Então, segundo Santos (2008 apud Pierucci, 2000) ao analisar os dados do censo 2000, as religiões católica, protestante e umbanda, tidas como tradicionais no contexto brasileiro, têm perdido seu vigor na anexação de novos adeptos; mostrando o caso do catolicismo onde menos pessoas têm se confessado fiéis católicos, e o contrário ocorre quando comparado aos 7 A Teologia da Libertação diz respeito ao catolicismo, mas se difundiu para algumas igrejas protestantes históricas. 348 evangélicos, pois segundo este dado, mais pessoas procuram se vincular a algum tipo de denominação evangélica. Logo, o autor entende que a perda de adesão de católicos nas ultimas décadas “reflete justamente os efeitos da secularização sobre a religião na modernidade, ou seja, da pluralização do campo religioso e consequente afrouxamento dos laços institucionais sobre os indivíduos.”. (SANTOS, 2008, p. 86) Contudo podemos dizer que o crescimento do número de fiéis nas congregações pentecostais, que passam a incorporar cada vez mais pessoas de classes sociais médias e pobre, é proveniente em grande parte pela procura destes em encontrar respostas aos seus problemas, principalmente de ordem material, vivenciados pelos altos níveis de desemprego e subemprego e intensificados pela expulsão dos trabalhadores rurais do campo, característicos da forte tendência capitalista ao afrouxamento da proteção do Estado nas relações empregatícias; mas também em contrapartida, buscam consolo e explicação para seus tormentos espirituais. (ALMEIDA, 2006; SILVA, 2009) A autora Delma Pessanha Neves (2008) problematiza a categoria analítica de “ med m ”, e neste sentido atribui a esta categoria o papel de interventores entre dois universos de significações específicas e diferenciadas. Trabalhando para além de uma visão simplista de um “terceiro ou intermediário”, o mediador faz da relação um ato dialético, não imediato e atribui importância as representações e transformações do mundo ao desempenhar seu papel. Por ser um ator social intelectual, ativo e que lida com a ação política e justiça social estão “em geral agregados em torno de alianças estabelecidas por redes de instituições ou movimentos associativos.” (NEVES, 2008, p. 10) A partir da concepção desta autora será analisado, dentro do contexto pesquisado, os “nossos mediadores sociais”, tidos como: os líderes de grupo religiosos, pastores e membros ativos da comunidade evangélica. Onde suas respectivas ações vão muitas vezes além da esfera religiosa e através das redes de proteção desenvolvidas fora e dentro das instituições evangélicas constituem a ligação, o ponto de partida e a retórica das relações sociais estabelecidas por eles; ou seja, além de serem a interseção, também são a união de dois universos diferentes, neste caso o universo do morador de favela ao do cenário político e social, ao reapresentar a esta parcela da população sua legitimidade enquanto sujeitos de direitos: cidadãos. Desta forma, a precariedade na realização dos direitos sociais faz da referencia religiosa um agente que predomina na assistência aos necessitados. Contudo, a ideia de que a sociedade pode contribuir de forma solidária com os projetos sociais na igreja, seja na forma de dinheiro ou de trabalho voluntário, pode ampliar a percepção de que a efetivação destes 349 direitos não depende exclusivamente do Estado. Daí a importância das redes de inclusão, construídas com a participação das igrejas. Essas redes incluem uma diversidade de serviços como cursos profissionalizantes, pré-vestibular, assistência psicológica, médica, jurídica, dentre outros (MESQUITA e SIERRA, 2008, p. 177). Com isto, pode-se argumentar que “as redes religiosas de perfil evangélico geram maior integração social, principalmente naquelas denominações que sobrepõem outros vínculos como de parentesco e de trabalho e isto é um forte fator de atração de adeptos...”. (ALMEIDA, 2006, p. 120) ASSISTÊNCIA SOCIAL E REDES DE PROTEÇÃO Partindo da concepção de que as favelas de Campos dos Goytacazes focalizadas na presente pesquisa se localizam em áreas de extrema pobreza, sobretudo em face do seu entorno, que possui melhores condições de moradia e infraestrutura urbana, por exemplo, formadas próximo à condomínios e casas de classe alta, além de uma universidade8, é possível dizer, com base na observação e análise do campo da pesquisa, que os moradores dessas áreas são frequentemente estigmatizados por viverem em território marcado pela pobreza, criminalidade e pelo tráfico de drogas. De acordo com Eduardo Marques (2010, p. 43) o fundamento teórico de análise das redes sociais está na base dos fenômenos sociais, uma vez que o mundo social está repleto de relações intensas entre indivíduos. Nesse sentido, sobre o tema, a literatura brasileira atualmente explicita que políticas de combate a pobreza já possuem as redes sociais como elemento de interesse. “As ações do Estado já impactam as redes sociais de forma não intencional, mas sua consideração explícita pode ser bastante útil para o desenvolvimento das políticas públicas” (MARQUES, 2009, p. 03). Vale ressaltar ainda que as redes são vistas como componentes importantes no estabelecimento da coesão social – ajuda o indivíduo a criar identidade, a ter a noção de pertencimento às comunidades e, na integração social –, contribuindo para a diminuição do isolamento social que alguns grupos enfrentam e, por conseguinte, atenuando sua condição de vulnerabilidade. Em Campos dos Goytacazes as políticas públicas desenvolvidas pela prefeitura direcionadas às favelas são bastante limitadas, ocorrendo apenas em casos emergenciais. Como na Tira Gosto e na Matadouro que se localizam próximas ao Rio Paraíba do Sul, e quando este enche, toma algumas casas da favela, prejudicando os moradores. A prefeitura, por sua vez, retira os moradores das áreas alagadas e os leva para escolas públicas como é o 8 A exemplo da favela Matadouro que fica atrás da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. 350 caso da Escola Municipal Francisco de Assis, que recebe os moradores desde o final da década de 80 e essa situação se repete até os dias atuais. Quando a situação normaliza, os moradores retornam as suas casas e, portanto, pode-se dizer que as políticas municipais não passam de medidas temporárias. Isso nos mostra que o poder público local está pouco presente nas favelas e basicamente só atuam sobre elas quando realmente é necessário – como nesse caso emergencial; ou em tempos de eleição. Em suma, em Campos as medidas de intervenção sobre questões relacionadas à política de habitação, sobretudo a população das favelas, são poucas e ineficazes face aos problemas cotidianamente enfrentados. (GUIMARÃES e PÓVOA, 2005, p. 37) Os moradores de favelas lidam com circunstâncias locais adversas, que por um lado podem ser resultado e consequência, sobretudo da negligência, ausência ou inoperância de algumas entidades governamentais que trata de forma diferenciada categorias sociais distintas, o que pode ser percebido no caso dos moradores de favelas. Ademais a população das favelas de Campos costuma ser geralmente atingida por carências e experiências de medo, risco e insegurança em face de um cotidiano marcado pela violência, das drogas e das armas. (MESQUITA, 2009, p. 10)9. Nesse sentido, percebe-se que a partir desse contexto socioeconômico, se acentua um processo de perda significativa da rede de proteção e, portanto, os moradores das favelas sentem dificuldade em serem reconhecidos no cenário público. No entanto, dentro dessas favelas existe o que Almeida e D’Andrea (2004, p. 95) chamam de “estrutura de oportunidade”, na qual estratégias de melhoria social são geradas para atender os mais pobres. Desta forma, diversas redes de relações sociais surgem com o propósito de minimizar carências, fazendo circular benefícios materiais e afetivos para, do mesmo modo, ampliar o acesso aos serviços urbanos e às outras vias da cidade. As redes sociais criadas pelas igrejas ou grupos religiosos evangélicos acabam servindo como apoio para o enfrentamento das dificuldades econômicas, sociais e espirituais. De acordo com Silva (2009, p. 50) as igrejas, de modo geral, são fundamentadas pelos princípios e valores dos dirigentes espirituais, mas do que a criação de instituições assistências. Estes dirigentes são sensibilizados pela situação de pobreza das pessoas que estão a sua volta, e se utilizam de práticas sociais para fazer uma intervenção ou uma tentativa de amenizar tal situação, se justificando através de uma determinação bíblica, que diz que se deve ‘cuidar’ dos mais pobres. 9 Relatório técnico-científico de pesquisa, conferido pelo Edital Primeiros Projetos FAPERJ/CNPq em Agosto de 2009. O título da pesquisa é “Cidadania sob cerco: percepções e estratégias de ação dos moradores de favelas”. 351 Assim, parafraseando Almeida e D’Andrea (2004, p. 105) as ações dos evangélicos se concentram na regeneração individual e, dessa forma, o potencial de mobilização evangélico está relacionado mais profundamente com a “conquista das almas” e não tanto em questões coletivas. A partir de uma das nossas entrevistas pudemos confirmar isto, através de um dos membros do grupo religioso evangélico que realiza um trabalho de evangelização voltado para crianças, mas que também se utilizam do momento para caminhar pela favela e conversar com jovens e adultos da comunidade Tira-Gosto, este grupo se autointitula Ministério “Resgatando Vidas”. A seguir está transcrita a parte da entrevista que fizemos com ele, onde trata destas questões, principalmente quando é perguntado sobre o que significa pra ele o trabalho que realiza, não só na Tira-Gosto, mas também em Travessão10, com os mendigos nas ruas, em casas de recuperação (de dependentes químicos) e hospitais: “Rapaz isto significa, você pegar uma pessoa... Essa pergunta é meio pesada dá até vontade de chorar... de você pegar uma pessoa na rua, uma pessoa que está ali sem mais nenhuma expectativa de vida, uma pessoa que para ela é melhor morrer do que viver, porém por algum motivo ela ainda não deu fim em sua vida e, você ir lá e pegar esta pessoa e chegar pra ela e dizer ‘Jesus te ama! E Ele quer fazer obra em tua vida!’, e você chegar e pegar uma pessoa dessa e levar pra sua casa, você dar um banho nela, pegar sua roupa dá para ela e vesti-la, depois leva-la pra dentro da igreja e mais pra frente você ver esta pessoa se firmar dentro de uma igreja e, ainda depois de mais um tempo você ver esta pessoa pregando, isso aí paga tudo! Paga todo o esforço, é claro que nem sempre a gente tem essa alegria, mas a palavra de Deus diz que “mais vale uma alma que se converte do que um mundo inteiro”, Deus se alegra quando uma alma aceita Ele, é uma alegria, a palavra diz que tem festa no céu, então só há festa no céu quando uma alma se converte. E é interessante você ver essa uma alma vivendo uma vida completamente diferente da que ela vivia a um tempo atrás, você ver essa uma alma totalmente transformada, você olha para o semblante dela e o semblante é outro, as idéias são outras, aquela pessoa que antes pedia para morrer porque acreditava que Deus não existia mais, que Deus não queria mais nada com ela, esta pessoa agora prega o evangelho de Deus e vai resgatar pessoas que estavam vivendo como ela, isso daí é uma recompensa muito grande. Isso aí é aquilo que explode dentro da gente nos incentivando a pregar o evangelho, isso aí é o pagamento, eu acho que não há nada melhor do que isso... isso não é um trabalho que vai ser de um dia para o outro, isso leva tempo, mas quando as pessoas começam a notar que realmente existe um Deus que se preocupa com ela e se preocupa tanto que enviou alguém para poder falar Dele pra ela, essa pessoa começa olhar a vida de modo diferente, ela começa a se esforçar mais, ela começa a pensar melhor,...”. (out./2009) Então, como já foi mencionado anteriormente, neste contexto socioeconômico que vivenciamos hoje de grande crescimento da taxa de desemprego, informalidade, da redução do papel do Estado e, da terceirização, proveio um processo de perda ascendente e significativa da rede de proteção social. Dessa forma, pode-se dizer segundo Almeida (2006) que “as redes evangélicas trabalham em favor da valorização da pessoa e das relações pessoais, gerando ajuda mútua com o estabelecimento de laços de confiança, além do aumento de auto-estima e do impulso empreendedor. Elas atuam, para além da sua finalidade religiosa, estrito senso, como circuitos de trocas que envolvem dinheiro, comida, utensílios, informações e recomendações de trabalho, entre outros.” (ALMEIDA, 2006, p. 120) 10 Travessão é o nome de um bairro de Campos dos Goytacazes, na verdade é um distrito da cidade, localizado as margens da BR 101. 352 Podemos perceber estas formas de “proteção social” através das redes evangélicas também pelo relato coletado por um dos entrevistados da pesquisa, uma missionária da Assembleia de Deus do Ministério Madureira: Muitas vezes também ajudamos, não só com o quilo, mas com luz. Chega um fiel aqui que está desempregado e tá com a luz vencida; aluguel; gás. Não tem a escola batista, então, quem são pastores tem o desconto muito além do normal então tem muitos fiéis que não tem condições de pagar uma escola, ou então o filho estuda e tem que tirar o filho daquela escola porque está desempregado, então através dos pastores nós vamos a escola, conversamos com o diretor, diretora e recorre a bolsa, faz o que é pedido o que é solicitado e por conhecimento lá o diretor sabe da nossa índole que somos sérios, porque tem pastores e tem pastores tudo existe no meio de tudo né aqui nem todo mundo é anjo, quando se formar anjo Deus leva (risos)... Então o pastor sabe ali da igreja batista o diretor sabe e ajuda muitas pessoas, esse ano então foram muitos membros daqui ajudados com bolsas de um valor alto e o pastor deixa crianças lá pra pagar 50,00 reais, é uma grande ajuda. Tem pessoas mesmo aqui que tá precisando de emprego nós conversamos com o diretor se tiver precisando de pessoas para limpeza geral na escola aí, alguma coisa aí e foram e foi pedido e mandamos pessoas daqui que não estavam desempregadas e acabaram ficando, o pastor gostou deu a indicação né porque eu só vou indicar quem eu sei que é fiel ali que não vai me dar dor de cabeça, porque é um problema que chega lá e a pessoa né..., aí a mãe que trabalha lá os filhos não pagam nenhuma matricula, não paga nada, estuda de graça... Às vezes nos procuram com uma receita médica, “me ajudam aqui, to com uma dificuldade aqui”, tá bom, nós vamos lá ver o caso e nós quando compramos remédios eu ranço a caixa, tudo, porque? Porque já aconteceu de ajudar com remédio e a pessoa vai devolve na farmácia e compra coisas que não,... que é mentira. Então o que eu faço quando é remédio, eu rasgo a caixa e dou o remédio, aí não tem como trocar. Só pra você ver que agente tem que tá atento pra tudo. Nós também ajudamos muito não só com alimentos, os alimentos não é governo ou ninguém que dá não, são os próprios fiéis, nos ajudam com os alimentos, tem pessoas que falam aí “a missionária, vou ajudar com duas caixas de leite”, o que tem mais é crianças, né, muitas crianças e até pessoas idosas que precisam de tomar um mingau, uma vitamina. (Missionária da AD, 2011) Podemos dizer que as relações que a igreja estabelece ajudam nos circuitos de trocas, na qual circula dinheiro, benefícios afetivos, comida, informações sobre trabalho, cuidado com os filhos das mães que trabalham fora e também ajuda em casos de doença. Particularmente uma das igrejas pentecostais na favela Tira-Gosto desenvolve ações de superação das várias formas que a pobreza adota na comunidade. O vínculo de sociabilidade dos pentecostais ganha forma não apenas no processo de conversão daqueles ligados ao tráfico como também no processo de evangelização dos traficantes. (MESQUITA, 2009, p. 32) De forma geral, as redes trazem, junto com a igreja, a perspectiva do viver. Segundo relato do Pastor Getúlio da favela Tira Gosto, o problema do ser humano é ser desvalorizado. Então, eles procuram a valorização, na maioria das vezes, nas drogas. Nas suas palavras: “quando chegamos na comunidade Tira Gosto, por exemplo, as pessoas não tinham perspectiva de adquirir nada. Eles não tinham endereço, eles não tinham família, não existia amor e o dinheiro que eles pegavam era pra usar drogas. Esse era o problema. Quando a igreja chega, a primeira coisa que eles conseguem é enxergar alguma coisa. Drogas não é a solução” (Pastor Getúlio, out./2010) A partir do momento que o indivíduo ganha perspectiva do viver e passa a frequentar 353 a igreja, falta a ele o acesso a bens e serviços e um trabalho que não esteja relacionado ao tráfico de drogas. Pois, por exemplo, por mais que o morador de favela esteja bem espiritualmente, o que fazer se dentro da sua casa falta comida. As redes trabalham na mediação ao acesso a ações e serviços do Estado e também no mercado de trabalho. Como os moradores de favela sofrem discriminação e são estigmatizados por viverem num ambiente onde é marcado pela violência, esse fato acaba prejudicando na obtenção de emprego fora da favela. O mesmo pastor diz: era muito comum uma pessoa perguntar a um pai de família, onde você mora? – ‘ f v ’. q m á m m f v ?! (Pastor Getúlio, out./2010) As redes também são mobilizadas na obtenção de benefícios. Assim como Marques ressalta “O fornecimento de informações a respeito de emprego pode se associar a todos os tipos de ajuda, mas também pode ser veiculado pelos laços que carreiam as ajudas imediatas e de baixo custo, em especial para os empregos mais locais” (MARQUES, 2009, p. 09). Podemos verificar isto como no caso do membro do Ministério Resgatando Vidas, já citado anteriormente, que reproduz essa ideia da mobilização em prol de emprego: “Eu cheguei pra um amigo meu dono de supermercado e falei pra ele: “rapaz, você ta precisando de um funcionário não?” ele falou: to sim. Eu falei: “to com um cara aí. Um cara bom, trabalhador, um cara que quer viver a vida diferente...” Ele falou: “ manda ele me procurar e fala que foi você que indicou.” (out./2010) Sendo assim, percebe-se que entre os indivíduos que necessitam de ajuda, aqueles que apresentam maior vínculo de sociabilidade tendem a ter condições sociais melhores, o que nos mostra que as redes conseguem minimizar a pobreza e o isolamento social presente na vida em favela. Neste sentido Araújo complementa que “tais mecanismos de ajuda mútua são fundamentais para a reprodução e fortalecimento do território pentecostal, aumentando ainda mais a identificação do pentecostalismo clássico11 com os pobres, os sofredores e marginalizados de uma sociedade cada vez mais seleta, tornando-se desta forma um movimento popular.” (ARAÚJO, 2008, p. 04) Em todas as igrejas pesquisadas foi possível identificar as formas de realização de assistência às famílias necessitadas. Nestas igrejas predomina a contribuição de gêneros alimentícios, e só em caso de necessidades emergenciais, há coleta e conseguinte doação de medicamentos e roupas. Em sua grande maioria a ajuda é mútua, pois as próprias pessoas dos 11 Segundo o próprio autor, Bruno G. de Araújo, o Pentecostalismo clássico (1910) fica restrito a igrejas como: Assembléia de Deus (maior igreja pentecostal do Brasil) e Congregação Cristã (com ênfase no batismo do Espírito Santo). 354 templos evangélicos, havendo necessidade e por intermédio do pastor, colaboram com doações principalmente de alimentos. Nas Igrejas Assembleia de Deus do Ministério Madureira a forma de arrecadação é predominantemente pelo sistema de Campanhas do quilo, sendo recolhidas doações feitas pelos membros da igreja, mas uma parte fica com a própria congregação e outra vai para a igreja matriz da denominação. Isto pode ser melhor entendido na fala de um dos membros da igreja Assembleia, uma missionária, que foi entrevistada: “Nós temos a campanha do quilo, essa campanha funciona assim, amanhã mesmo é dia da campanha do quilo, então cada membro que tem condições, que tem posses traz um quilo de alimento não perecível para a igreja, e depois levamos para a dispensa da igreja. Essa dispensa da igreja serve para quando, caso uma hora, alguém esteja precisando, é só procurar o pastor e falar da sua necessidade, que tendo as coisas na dispensa o pastor ajuda. Mas no caso da igreja matriz, que fica na Rua Rocha Leão, como ela é a “mãe”, é maior, o pastor citou que chegamos a meta de 700.000 membros. O nome do pastor da matriz é Josias e coordena todas as congregações, tem muito trabalho nas costas do nosso pastor. Lá por ser uma igreja maior, eles acodem mais números de cestas básicas, aqui, por exemplo, nós não damos cesta básica, não temos assim famílias registradas para a doação, mas lá o pastor não fala dessa quantidade de famílias, porque a bíblia ensina a fazer e não falar, o que a nossa mão esquerda faz a direita não precisa saber. Então as doações que ele faz lá não precisam passar pela igreja, mas tem muitas famílias registradas para doação, assim lá entra uma base de 200 ou 300 quilos de alimentos. E aqui na igreja nós temos o dia de cota para recolher os alimentos e enviar para a matriz, isso acontece uma vez por mês. E todas as congregações da região desse mesmo ministério possuem essa cota para levar para a igreja matriz e lá, é que se faz a distribuição. Nessa época que teve enchente todas nós nos mobilizamos e, até mesmo o pastor se mobilizou, indo de canoa lá na Lagoa de Cima para levar os donativos. Aqui na igreja nós só recolhemos alimentos; e já as roupas, remédios e outras coisas mandamos direto para a matriz e de lá fazem a distribuição entre as congregações que estejam precisando.” (maio/2009) De modo geral, os pastores das igrejas e líderes de grupo que foram entrevistados, em sua maioria relataram não receber nenhum tipo de ajuda econômica dos poderes públicos, como por exemplo, da própria prefeitura da cidade, para a realização de suas ações assistenciais. Entretanto o Pastor Getúlio nos informou que na eleição de 2004 procurou ajuda política, de um vereador não evangélico e lhe disse que iria apoiá-lo, mas, no entanto não conseguiu muita coisa e afirmou que o desinteresse por parte dos políticos de forma geral (evangélicos ou não) é muito grande. Podemos comprovar isto no seguinte relato que nos deu: Os rapazes do tráfico, na verdade vêem a igreja como a saída, devido a testemunhos de pessoas que viviam no meio deles e que conseguiram sair, não sei se agente vai entrar em um ponto polêmico, mas infelizmente o governo tem as condições, tem a verba, o dinheiro né, mas não sabem como fazer, a igreja sabe como fazer, mas não tem o dinheiro, não tem a verba, porque a igreja evangélica na verdade, ela vive, é auto-sustentável, ela se sustenta com os projetos dela tudo que ela faz é do jeito, ela que dá o seu jeito de sobreviver, não existe verba de governo estadual, federal, municipal é projeto de comunidade, a coisa mais difícil, então é essa parte de apoio pra se fazer um projeto, não existe mesmo... Estes jovens mesmo ainda estando no tráfico vêem como saída deste meio a igreja, mas o que acontece muito é o seguinte, infelizmente eu ouço muito isso, ‘pastor eu quero sair do tráfico de drogas, mas tenho 2 filhos com uma mulher, e mais outros 2 com outra, e ainda tenho mais 1 filho com m m h á... m é q ? C m é q ?’. Esse é um problema entendeu? Como fazer? A igreja em si ajuda um, dois, até pode, tem condições, de maneira precária infelizmente, mais tem. Nós como igreja já cansamos de fazer isso, já cansamos de comprar, de fazer compras e fazer coisas do tipo, mas agora não é só de pão, não é só comida que a família tem 355 necessidade, a família se veste, a família tem que ter o mínimo pra sobreviver, né? Na eleição de 2004 procurei uma pessoa, já era vereador e nós queríamos apoiá-lo,... . Ele não era evangélico. Eu apoio você. Mas não sei se vai importar o que eu estou dizendo, mas infelizmente, nós temos que falar a verdade, nem mesmo um vereador evangélico se envolve, nem mesmo evangélico. Eu não vou aqui botar pano quente porque é evangélico, porque é crente... infelizmente nem evangélico faz isso. Você procura, pode procurar, agora nas eleições, agora em 2008 eu procurei um evangélico e... já se foi a eleição... Este ‘desinteresse’ de não tomar uma iniciativa de apoio por parte de políticos não sei bem porque isso acontece, não sei se é a época..., mas eles cuidam do gabinete deles, cuidam das verbas deles, tiram o máximo que puder. Na eleição passada de 2004 nós elegemos um candidato crente, e o retorno foi pior possível, os projetos, a obra, o trabalho dele foi um dos piores. E em períodos de eleições eles sempre têm a iniciativa de procurar as igrejas, ai enche de candidatos... Teve um na semana das eleições que eu desenvolvi, na semana das eleições nós conversamos com um, não vou falar o nome por ética, ta?. Ai ele prometeu como todos eles... E no fim foi eleito, já liguei umas 500 vezes e não consigo falar com ele infelizmente. Na época das eleições antes dele ser eleito, tive uma reunião com ele levei o projeto lá para Tira-Gosto, ele disse que era viável fazer. O projeto era de fazer um campo de futebol, fazer uma quadra poliesportiva, fazer os vestiários, fazer os banheiros tudo direitinho, uma quadra poliesportiva e um campo de grama sintética,... Sabe, porque você consegue tirar a criança da rua naquela comunidade, que ali não é difícil ali é pequeno e você consegue. Se você, lá na Tira-Gosto faz uma sala de computadores, coloca cursinhos pra aquelas crianças, se você coloca esportes pra aquelas crianças, eles vão parar de brincar de bandido, de polícia e ladrão,... Se você pegar essa criança e coloca pra praticar um esporte, você já começa a trabalhar a educação, no caso essa criança vai começar a preparar uma árvore pra dar os frutos...”. (Pastor Getúlio, abr./2009) Assim de acordo com a literatura pesquisada é frequente encontrar casos em que a assistência social realizada por instituições religiosas, não servem apenas como forma de ajuda ao próximo, mas também há casos em que estas instituições se utilizam deste meio assistencial para a construção de uma carreira política (MESQUITA e SIERRA, 2008, p. 179) ou então apoio a candidatos que estão na disputa eleitoral (religiosos ou não). Dessa forma é possível dizer que existe uma grande influencia religiosa no campo político, e tomando em conta o estudo realizado por Maria das Dores C. Machado e Cecília L. Mariz (2004, p. 33) referente a conflitos religiosos na política do Rio de Janeiro, se confirma a ideia de que, em alguns momentos a própria identidade religiosa é utilizada para mobilizar os eleitores e, em outros, é frisado pelo partido o não vinculo religioso como código de conduta para a nação. CONCLUSÃO Durante as incursões ao campo de pesquisa foi constatado uma forte presença de igrejas pentecostais e neopentecostais no interior das favelas de Campos. Todas elas se utilizam de práticas assistencialistas para com seus respectivos membros, como forma de ajuda mútua, pois as próprias pessoas dos templos evangélicos, havendo necessidade e por intermédio do pastor, colaboram com doações principalmente de alimentos e vestuário, ou então, a arrecadação mensal de doações para manutenção de um fundo para casos de ajuda emergencial. Portanto, todas as igrejas pentecostais pesquisadas estabelecem redes de proteção que servem para o enfrentamento dos problemas sociais vivenciados pelos 356 moradores de favela que, por sua vez, vivem num território marcado pela pobreza, violência e estigmatização social. Assim, pode-se concluir que as redes evangélicas, com todos seus circuitos de trocas – dinheiro, informações sobre emprego, comida, etc. – ajudam na redução do isolamento social por parte dos moradores favelados em relação ao restante da cidade, buscando então muitas vezes, nas comunidades religiosas um pertencimento social. Desta forma, de acordo com a literatura abordada no texto, o estudo mostra que as redes nas favelas enfatizam o aumento de auto-estima, o impulso empreendedor no indivíduo e fomentam a ajuda mútua por meio de laços de confiança e fidelidade (ALMEIDA, 2006, p. 10). Além disso, os pentecostais, a partir dos seus vínculos de sociabilidade, trabalham no processo de evangelização e conversão de traficantes que estão inseridos em territórios onde incide a ordem violenta, um espaço, portanto, estigmatizado. Assim se observa a importância e existência destas redes evangélicas, como suporte moral e social ao enfrentamento das condições adversas que muitos dos fiéis moradores de favelas se deparam cotidianamente. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Ronaldo de; D’ANDREA, Tiaraju. (2004) Pobreza e redes sociais em uma favela paulistana. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 68: 94-106. ALMEIDA, Ronaldo. R. M. (2006) A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: TEXEIRA, Faustino & MENEZES, Renata (Org.) As religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, p. 111-122. ALVES, Heloiza Manhães (2009) A sultana do Paraíba. Rio de Janeiro. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. ARAÚJO, Bruno Gomes de. 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Na minha casa falta tudo menos spray...” (MDDO) Flávia Cristina Soares1 RESUMO Este artigo propõe investigar o fenômeno da pichação e a relação deste com a juventude no Conjunto Taquaril, localizado na periferia da cidade de Belo Horizonte. Durante a pesquisa de campo, foi possível perceber as relações estabelecidas entre os jovens e a forma de constituição de identidades, demarcação territorial e a transgressão da lei através dos relatos da juventude local e de moradores da comunidade. De acordo com as entrevistas realizadas, os programas sociais podem minimizar os efeitos desta prática na juventude, pois a oferta de oportunidades ressalta que os jovens possuem maiores condições sociais e econômicas. A pesquisa investigou duas áreas da comunidade denominadas Taquaril A e B em que se destaca a forma das pichações, o estilo da letra e a apropriação do espaço público entre os jovens que tem como objetivo a obtenção de fama e reconhecimento social. Palavras chave: Pichação, identidade, território e transgressão da lei. INTRODUÇÃO O presente artigo se propõe a discutir a relação entre as características socioeconômicas e a prática de pichação realizada por jovens do Conjunto Taquaril. Este aglomerado está localizado na região leste de Belo Horizonte, uma área que pertencia à CODEURB – Companhia de Desenvolvimento Urbano de Minas Gerais – e passou a ser ocupada pelos atuais moradores em 1981. Após seis anos, a Prefeitura de Belo Horizonte regularizou os terrenos e iniciou-se a implantação de serviços básicos como redes de água, saneamento, escolas públicas e postos de saúde. No entanto, a região passou a se expandir desordenadamente, principalmente, nas áreas verdes e margens de córregos, considerados como locais de risco geológico eminente. De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2000, a área possui em torno de 12.306 habitantes e apresenta o pior índice de qualidade de vida dentre os principais aglomerados de Belo Horizonte, conforme observado na 1 Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Especialista em Gestão Social pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro e Psicóloga. 360 Tabela 1, em anexo (ANDRADE; PEIXOTO; AZEVEDO, 2007). Também é possível constatar, nessa mesma tabela, que o percentual de jovens, no Conjunto Taquaril, com idade de 10 à 19 anos, representa uma das maiores populações em comparação com os outros aglomerados de Belo Horizonte. Os dados coligidos demonstram que o maior percentual de pessoas sem renda também é predominante nesta área (ANDRADE; PEIXOTO; AZEVEDO, 2007). Os outros percentuais de renda continuam baixos e não influenciam para uma melhoria significativa na região. FIGURA 1 – Foto mostrando uma vista parcial do Conjunto Taquaril Fonte: Arquivo pessoal. Tomando como perspectiva que os grupos de jovens pichadores se formam nas periferias com a finalidade de tecer redes de sociabilidade (PEREIRA, 2010, p.145), é de fundamental importância investigar o discurso dos jovens envolvidos com a pichação, além dos aspectos sociais e econômicos relacionados ao indivíduo e ao espaço em que habita fazendo uma distinção entre a cidade e a favela. O processo de constituição de identidades, a demarcação territorial e a transgressão serão contemplados no desenvolvimento deste artigo. O interesse em abordar o fenômeno da pichação foi suscitado pelo Curso de Gestores realizado pelo CRISP – Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública – no Núcleo de Prevenção à Criminalidade do Conjunto Taquaril2, em 2009. O curso era dividido em dez encontros sendo que, nos dois últimos, as lideranças comunitárias e os jovens formulavam o Plano Local de Prevenção à Criminalidade. Dentro deste plano, uma das ações propostas foi a de intervenção nos grupos de pichadores, uma vez que esta 2 O Núcleo de Prevenção à Criminalidade é composto pelos Programas Fica Vivo! e Mediação de Conflitos. 361 atuação estava provocando conflitos entre os jovens de regiões distintas da comunidade. Inclusive, entre os grupos de pichadores, chegaram a ocorrer tentativas de homicídio em decorrência de uma rasura3 realizada por um grupo rival. O CRISP optou por intervir no Conjunto Taquaril por ser considerada uma área que possui alto índice de criminalidade violenta em Belo Horizonte (BEATO, 2012). O Programa Fica Vivo! implantou oficinas de comunicação, grafite, axé e mobilização sócio-cultural, visando atender a demanda dos jovens pichadores e estabelecer uma aproximação dos oficineiros e dos técnicos que trabalhavam nesta localidade. O Grupo de Gestores desenvolveu o projeto Praça Viva, Cidadania Ativa com a finalidade de revitalizar a Praça Che Guevara. Com a aproximação dos jovens na oficina, foi possível contar com a presença dos pichadores no dia do evento. Os jovens elaboraram um material de intervenção na saúde, educação e instituições locais com o intuito de conscientizar a comunidade acerca da preservação dos espaços comunitários. Os participantes da oficina de grafite construíram moldes de desenhos que seriam estampados na praça. A oficina de comunicação editou um documentário que registrou o movimento das instituições, dos jovens e dos representantes da comunidade para alcançar com êxito o objetivo do projeto. A oficina de axé consolidou uma coreografia para que os jovens pudessem apresentar no dia da revitalização da praça. O registro dessas ações e a participação dos jovens nas oficinas promoveu o reconhecimento dos pichadores em outras práticas para além da pichação. O Grupo de Gestores ressaltava a importância de envolver os pichadores na revitalização deste espaço, pois os pichos representavam um aspecto de “ j m ”e“ v v f j v ” (SOARES, 2010). No dia destinado à revitalização foi possível perceber a presença de grupos de regiões diferentes, que se encontraram para reconstruir a praça. A circulação de jovens vindos de regiões distintas da comunidade foi essencial para intervir nos conflitos entre os grupos, uma vez que o principal objetivo era a construção de um espaço a ser utilizado por toda a comunidade. Este momento marcou o cotidiano dos grupos de pichadores, observando-se entre eles o abandono das práticas violentas e dos conflitos para a participação nas atividades. Para avaliar a intervenção, foi realizado um encontro com os participantes das oficinas, no qual um dos jovens relatou a dificuldade em “ ” para não pichar a praça revitalizada. A partir desta intervenção proposta pelo Grupo de Gestores, pôde-se verificar que os jovens participantes das oficinas e do projeto não 3 Rasura significa um nome pichado em cima de outro já pichado. 362 picharam a praça revitalizada. FIGURA 2 – Foto do evento Praça Viva, Cidadania Ativa, que contou com a participação de jovens pichadores na revitalização da Praça Che Guevara, localizada no Taquaril B, em julho de 2009. Fonte: Arquivo pessoal. Sendo assim, quais seriam as intervenções possíveis na prática de pichação? Existiria uma relação estabelecida entre os grupos de pichadores e a constituição de identidades? Como se dá a demarcação territorial? Qual a relação entre estes jovens e a transgressão? O conhecimento acerca do fenômeno da pichação na comunidade investigada favorece a compreensão da dinâmica social do local o que se considera como importante justificativa a implantação de programas e projetos sociais que melhorem a qualidade de vida dos habitantes e, consequentemente, permite intervir nas causas deste fenômeno no Conjunto Taquaril. A metodologia adotada para esta investigação partiu de uma revisão bibliográfica que contemplou os temas relacionados à pichação, identidade, território e transgressão. Para obter maiores informações, a pesquisa documental nas instituições localizadas na região foi fundamental para conhecer a história do bairro e o movimento da juventude, no que diz respeito às formações de grupos. As entrevistas semi-estruturadas, realizadas entre o período de Julho à Outubro de 2009, contemplou seis jovens pertencentes ao grupo Possuídos pela Arte Maligna (PAM) localizado no Taquaril A e seis jovens pertencentes ao grupo Bonde dos Jacarés (BDJ) localizado no Taquaril B, abordando características da pichação e da juventude, além da relação dessa última com a comunidade o que possibilitou colher dados relacionados aos grupos investigados. A escolha dos 363 entrevistados foi feita a partir dos jovens que participavam das oficinas oferecidas pelo Programa Fica Vivo!, no Taquaril A e B e que possuíam como principal característica a prática de pichação. Além dos jovens entrevistados, realizou-se um levantamento de líderes comunitários que conheciam os pichadores e possuíam um vínculo estabelecido com eles expressando a relação da juventude com a pichação. Realizou-se seis entrevistas semiestruturadas com moradores do Conjunto Taquaril A e mais seis entrevistas semiestruturadas com os moradores do Taquaril B. 1- IDENTIDADES A partir dos dados apresentados na introdução, estudar a prática da pichação no Conjunto Taquaril é importante porque através dos pichos, os jovens constituem as suas identidades. Estabelecer uma conexão entre as características sociais e econômicas do local de moradia dos jovens e a pichação é fundamental para se compreender esta prática realizada pelos jovens moradores do aglomerado e pela juventude localizada nas periferias das grandes cidades. Durante a pesquisa foi possível verificar que, devido ao processo de ocupação, os jovens se agrupam de acordo com a separação territorial. A BHTRANS4 dividiu as linhas de ônibus, concomitantemente ao processo de ocupação dos moradores, para atender ao Taquaril A, B e R sendo esta última uma denominação incorporada pela própria comunidade. Na pesquisa foi possível observar uma variedade de grupos envolvidos com a criminalidade local, porém, uma vez que o escopo do trabalho era investigar apenas aqueles ligados à pichação, optou-se por entrevistar jovens dos grupos chamados BDJ (Bonde dos Jacarés) e PAM (Possuídos pela Arte Maligna), pois seu objetivo definido era o ato de pichar. A baixa renda e a segregação espacial observados no Conjunto Taquaril5, aliados à sociedade de consumo – evidenciada principalmente nos grandes centros urbanos – propiciam o desenvolvimento do estigma e do preconceito imposto àquela região. Para Goffman (1975), os indivíduos se identificam pela formação de grupos encontrando nesta categoria uma forma para se expressarem e reconhecerem enquanto pertencentes a uma determinada sociedade. Através do estigma, o indivíduo vivencia o próprio esmagamento pela sociedade sem ter consciência da sua condição de sujeito. Segundo o relato de um morador do Conjunto Taquaril: 4 5 Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte/MG. Bairro situado no extremo leste de Belo Horizonte/MG e área limítrofe com o município de Sabará. 364 “[...] se a gente for parar pra analisar a fundo, o que motiva um jovem a se tornar pichador – eu bato muito na tecla de que o que favorece a intenção do jovem em grupo de pichação, até mesmo a desenvolver essa prática – é questão da afirmação. De uma forma ou de outra eu preciso mostrar que eu existo, né? Igual, eu consegui afirmar o meu potencial no meio social, né? Todo mundo, todo mundo, procura o seu lugar ao sol [...]”. Stuart Hall (1987) ressalta que o sujeito sociológico demonstra uma necessidade de interação entre o indivíduo e a sociedade, no qual a essência interior do sujeito se forma a partir das relações estabelecidas com o mundo exterior e as identidades que este mundo lhe oferece. Essa identidade preenche uma lacuna entre o mundo pessoal e o mundo público, suturando o sujeito à estrutura, tornando ambos unificados. O processo de constituição de identidades fortalece as identidades locais e a produção de novas identidades. Na pesquisa realizada com os jovens e os moradores do Conjunto Taquaril, eles descrevem o espaço de moradia como uma favela. Gomes (2003) destaca que a favela possui características marcantes, como a pobreza e a desorganização social. Estas características são fundamentais para se indagar o espaço do aglomerado na cidade e também considerar as formas de controle e coerção social como precários e ineficientes. Para o autor, a favela e a cidade são dotadas de uma ruptura total que se divide entre a cidade formal e informal, “cada qual com sua moral, seus costumes e seus valores” (Gomes, 2003, p.173). A falta de políticas públicas, de programas ou projetos sociais para oferecer aos jovens outras formas de constituição de identidades, fomenta a inserção deles na prática de atos infracionais ou criminosos, como a pichação, na medida em que o fácil acesso à ilegalidade é uma característica fundamental dos espaços onde vivem (BEATO, 2012). Coura (2009) destaca que os jovens dos aglomerados carregam em si mesmos a periferia nos espaços em que circulam, vivenciando os imperativos simbólicos da segregação urbana através da introjeção do estigma. Segundo o relato de um morador do bairro: “[...] pelo contexto social do Taquaril A, os meninos da PAM [...] até meio irônico o que eu vou falar, mas foi uma ação assim [...] Eu vou ter um olhar mais cuidadoso, foi uma ação política que eu acredito que eles tiveram aqui no Taquaril. O que eu estou definindo como uma ação política? [É] aquela ação de falar assim: pô, o Taquaril A existe, ou seja, se não for possível da gente ter esse reconhecimento de forma passiva, de forma tranquila, [se] as pessoas [não] conseguirem nos enxergar como moradores, como pessoas que participam ativamente da vida da comunidade, a gente vai tentar fazer esse caminho de forma controversa do que a sociedade espera. Então, assim [é o modo] que eu compreendo. A PAM surgiu mais para dar um sinal de fogo, sinal de fumaça. Estamos aqui, existimos. E hoje a PAM é o grupo mais, com mais membros dentro da comunidade [...]”. A relação existente entre a formação de grupos de jovens para a prática da pichação 365 e o processo de constituição de identidades se caracteriza pelo estilo de vida destes jovens com assinaturas elaboradas e uma preocupação estética com o seu próprio tag e do grupo do qual será pichado nos muros da cidade. Pennachin (2003) estabelece uma conexão entre os grafismos urbanos e a produção de identidade, afirmando que o picho é uma das maneiras pelas quais os jovens se tornam visíveis socialmente, superando a sensação de despertencimento no meio em que vivem. Ela observa que os pichadores se expressam através dos rabiscos dos muros como forma de transformar as ruas numa extensão da sua individualidade, criando identidades e participando da vida na cidade. Cada pichador cria um nick ou signature, ou seja, um código para reforçar sua singularidade e estabelecer uma marca que o diferencia e, ao mesmo tempo, o identifica perante a sociedade. FIGURA 3 – Foto de estabelecimento comercial, localizado no Taquaril A, que foi pichado pelos jovens pertencentes ao grupo PAM Fonte: Arquivo pessoal. As investigações de Souza (2007) acerca dos traços característicos de jovens pichadores na cidade do Rio de Janeiro revelou que os pichos devem ser pequenos (de três a quatro letras) em função da rapidez exigida pela prática. A escolha do rabisco se deve à facilidade que os jovens possuem para estilizá-las, adotando uma estética da pichação. Estes estudos demonstraram que a palavra escolhida pelo pichador é a identidade que será reconhecida por outros grupos. Através da pesquisa de campo realizada por Souza (2007), ele destaca outra característica marcante dessa prática que são as reuniões feitas pelos pichadores – consideradas espaços de prestígio e de interação social – o que provoca o fortalecimento de laços sociais entre os jovens e fomenta o desenvolvimento da prática de 366 pichação nas grandes cidades. Tendo em vista este contexto a pichação pode ser concebida como uma forma de obtenção de fama e reconhecimento. FIGURA 4 – Foto do local onde os pichadores se reúnem para discutir a prática no Conjunto Taquaril A. Fonte: Arquivo pessoal. 2- TERRITÓRIOS Dentro do Conjunto Taquaril é possível perceber a demarcação territorial imposta pela juventude do local, ou seja, os membros dos grupos de regiões distintas da comunidade não picham o local de moradia de outros grupos da mesma comunidade, uma vez que eles relatam o respeito e a demarcação de cada grupo. No contexto da cidade, os jovens ressaltam que possuem liberdade para pichar qualquer região. De acordo com As marcas da cidade: a dinâmica da pixação6 em São Paulo, “as alianças com outros grupos de pixadores para se fazer um rolê em outras quebradas não impede, entretanto, que muitos deles dirijam-se sozinhos a outras regiões da cidade, pois não há uma demarcação de territórios onde um grupo ou outro não possa pixar” (Pereira, 2010, p.151). Este autor aponta que não se pode considerar que os pichadores sejam desterritorializados. A partir de tal argumento, ele diz que a pichação está relacionada a uma cultura de valorização da periferia, no que tange ao pertencimento e ao reconhecimento destes jovens com o local de moradia. Então, pode-se considerar que a pichação realizada pelos jovens é hiperterritorializada, pois são as relações da periferia que estão sendo postas em prática. 6 O autor utiliza a expressão pixador com “x” fazendo referência à cultura de rua. 367 Em todo momento os jovens estão reterritorializando a cidade através das pichações impressas nos muros. Segundo o relato de um pichador do Conjunto Taquaril: [...] Você faz as pessoas verem, chegam e comentam [...] tem muito respeito, [se] você tem muita pichação, tem respeito. Em festa o camarada chega e fala ‘eu picho e eu já vi preza sua’. [Eles ficam te] chamando para dar role aqui bairro [e se] você quer ficar conhecido por aqui. Lá onde você presta serviço comunitário tem uns menorzinho que ficam assim ‘Colé Slim’. Eles ficam tipo seu fãzinho, tipo como se você fosse aqueles ator de novela [...] adrenalina, ibope [...] Dá uma sensação tão doida. Já fiz uma [pichação] na avenida Amazonas, uma grandona, que no outro dia eu passei lá e tinha um tanto de senhor mais velho olhando impressionado, o tamanho, fico doido. [Eles ficam só] olhando, não fala nada, passa direto, mas você fez alguma coisa que as pessoas prestaram atenção. Você acha que se tivesse só um desenho no vão lá eles iam ficar olhando pro teto? [Mas] quem entende de pichação vê lá no alto [e] pergunta como que o cara subiu? Aí viaja no cara, né? Mas já tem pessoa que não gosta. Tem gente que é doido pra pegar pichador [...]. Ao estudar Etnografia Urbana, Magnani (1992) destaca os pedaços, as manchas e os trajetos realizados por membros de grupos que circulam pela cidade. O autor ressalta que pedaço é algo formado pelo elemento espacial caracterizado pela rede de relações, tendo o efeito de uma marcação territorial como, por exemplo, um bar, um terreiro etc. Para ele, ser do pedaço implica situar-se numa rede de relações similar a dos laços familiares, ou dos vínculos afetivos, ou da proximidade da moradia, ou da presença nos mesmos espaços, querendo, com isso, dizer que a rede de relações determina a classificação dos indivíduos. Esta noção designa o intermédio entre o espaço público e o privado7. O pedaço determina uma rede ampla em que os vínculos familiares são significativos em decorrência das relações formais impostas pela sociedade. Dessa forma, “pertencer ao pedaço significa também poder ser reconhecido em qualquer circunstância, o que implica o cumprimento de determinadas regras de lealdade que até mesmo os ‘bandidos’ da vila, de alguma forma, acatam” (Magnani, 1992, p.192). Este contexto possibilita verificar que a circulação de jovens nas regiões a que não “pertencem” provoca um sentimento de hostilidade por parte de outros grupos, podendo, inclusive, significar que o desconhecido naquele local pode se colocar em perigo. A exposição desse autor observa que os pedaços são disseminados pela cidade e possibilitam a formação de manchas pelos jovens. A circulação de jovens nos espaços através dos trajetos caracteriza uma aglutinação em torno dos estabelecimentos com uma implantação estável na paisagem e no imaginário. Essas aglutinações são denominadas 7 Para Bignoto (2002), o espaço público é considerado como uma possibilidade de construir um objetivo comum para a sociedade. Já o espaço privado se refere a uma definição de privação em que o indivíduo é destituído das características essenciais da vida humana (BIGNOTO, 2000, p. 286). 368 manchas. Este termo remete à identificação dos indivíduos pelas áreas, ou seja, “uma mancha é recortada por trajetos e pode abrigar vários pedaços” (Magnani, 1992, p.195). Estas manchas são equipamentos que propiciam pontos de referência entre os jovens, resultando no estabelecimento de relações e transformando o lugar em um encontro entre os praticantes. Segundo o autor, o trajeto representa um sistema de compatibilidade. Este conceito fornece aos jovens a possibilidade de escolhas com a finalidade de se identificarem com as manchas e pertencerem a pedaços, provocando a circulação de pessoas no espaço urbano (Magnani, 1992, p.196). É importante destacar que o autor considera a mancha enquanto uma delimitação de trajetos, observando a presença de pedaços. O relato de um jovem demonstra as marcas da pichação na cidade: [...] não é só no Taquaril, tem muita pichação minha por aí. Muita pichação no Centro, no Oiapoque [...] Durante a pesquisa de campo, foi possível compreender como os pedaços, as manchas e os trajetos possuem relação com os pichos. Os jovens dos grupos PAM e BDJ mostraram as pichações que estavam localizadas pela cidade. É importante destacar que os jovens picham aqueles locais em que a sua comunidade possa reconhecê-los. Ou seja, os jovens deixam suas marcas nos trajetos feitos pelas linhas de ônibus até o centro da cidade, caminho realizado pelos moradores do bairro. Um morador comenta: [...] Eu percebo fora do bairro, não é só no bairro, no Centro da cidade, a gente consegue perceber, mas sempre em locais estratégicos no sentido de que alguém do bairro vai passar por esse local e vai ver, ou que seja o caminho do ônibus, ou que seja um ponto de ônibus, essas plaquinhas. [Se] estou sentado no Parque Municipal lá tem um PAM pequenininho escrito, rabiscado ou com corretivo, e eles vão para fora sim [...]. As fotos tiradas com os jovens dos grupos demonstram como é realizada a apropriação do espaço da cidade pelos pichadores. 369 FIGURA 5 – Foto mostrando a pichação Slim, Snaco e Sol, localizada na Rua Jequitinhonha, bairro Vera Cruz, feita por jovens da PAM Fonte: Arquivo pessoal. FIGURA 6 – Foto mostrando a pichação Spim, Stom, Menor e Snaco, localizada na Rua Niquelina, bairro Saudade, feita por membros do grupo PAM Fonte: Arquivo pessoal. 370 FIGURA 7 – Foto mostrando a pichação Slim, no Cemitério da Saudade. Autoria de jovem pertencente ao grupo PAM Fonte: Arquivo pessoal. FIGURA 8 – Foto mostrando pichação dos jovens da PAM, na Avenida dos Andradas. Fonte: Arquivo pessoal. 3- TRANGRESSÃO Os moradores do Conjunto Taquaril intitulam os pichadores como vândalos e relatam que eles possuem uma tendência para se inserirem no “mundo do crime”, como o tráfico de drogas. Porém, neste artigo, considera-se importante utilizar o conceito de 371 transgressão. A transgressão possui um caráter de “valorização desta ideia e de certa postura marginal, que está presente em diversos momentos de seu cotidiano e não apenas no ato de pixação” (Pereira, 2010, p.152). Segundo o relato de um morador do Conjunto Taquaril: [...] [os jovens do PAM] não são temidos por ações de amedrontar a comunidade: eles são odiados! Talvez use essa palavra pela ação deles. Quando as pessoas moram na comunidade (e moram há mais tempo) existe um vínculo criado com essa comunidade. Tenho comigo uma revolta em relação a isso, até mesmo porque a minha casa é pichada. A relação que eu tenho é de incômodo, porque o problema maior não é a minha casa. [A pichação] não está ligada à minha casa, ela está ligada a um contexto maior. Então, o meu incômodo com relação a eles é esta ação num contexto geral. Eu me preocupo com o Taquaril, porque é o local que eu moro desde quando eu tinha 7 anos de idade, e eu vim criando vínculos com o bairro [...]. FIGURA 9 – Foto mostrando a casa de um morador entrevistado. Nesse local os jovens do grupo PAM se reúnem durante a madrugada. Fonte: Arquivo pessoal. Becker (1928) utilizou o termo outsiders para descrever aqueles que estão envolvidos em ações coletivas consideradas como erradas. Os grupos sociais tecem as regras de como os indivíduos devem constituir suas vidas e determinam o modo de imposição entre as ações certas e erradas. Assim, “quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como outsider” (Becker, 1928, p.15). Para o autor, os outsiders podem ser considerados como desviantes, principalmente, das regras sociais impostas. O desvio possui várias concepções. Em primeiro lugar, um comportamento só pode ser considerado como desviante através da estatística, ou seja, aquilo que varia em relação 372 à média. Outra concepção é aquela em que o desvio é considerado como patológico, uma doença. Os sociólogos rotulam os desviantes como “sintomas de desorganização social” (Becker, 1928, p.20), ou, como falhas em obedecer às regras do grupo dominante. Becker considera que o desvio é criado pela sociedade. Sendo assim, neste caso, o desvio não é uma qualidade do comportamento, mas uma interação entre o pichador, por exemplo, e aqueles que reagem contra ele. Deste modo, os indivíduos constituem identidades através do desvio como uma maneira de viver. O autor expressa que “o indivíduo aprende, em suma, a participar de uma subcultura organizada em torno da atividade desviante particular” (Becker, 1928, p.41). Em um contexto social, os pichadores são rotulados pela sociedade provocando uma identificação com o ato e com a postura de desviante, ou indesejável, para conviver entre os “normais”. Assim, Becker expõe que o jovem “é identificado como desviante, antes que outras identificações sejam feitas” (BECKER, 1928, p.44). O desvio para estes grupos de pichadores se transformam em algo dominante para reger a vida de cada um dos participantes. Após a pesquisa realizada com os grupos de jovens do Conjunto Taquaril, verificou-se que eles se identificam como pichadores que fazem parte de um grupo desviante organizado o que provoca uma identidade com o grupo. É nesse sentido que Becker (1928) ressalta a formalização de uma cultura desviante, conjunto de atividades rotineiras com um mesmo propósito. Assim, “o pertencimento a um grupo desse tipo solidifica a identidade desviante” (BECKER, 1928, p.48), contendo um repúdio às regras morais do mundo convencional. Um morador do Conjunto Taquaril demonstra de maneira clara como os pichadores se organizam em torno da transgressão: [...] Já teve caso de guerra por causa da pichação, mas não chegou a levar à morte. Mas troca de tiro, menino tomar surra, [isso] já. E ameaça. Recentemente, com esse movimento da praça, alguns traficantes chegaram a anunciar que ia pichar essa parte e que ia tomar. Foram ameaças indiretas, mas meio que não inibiu não [...]. Outro estudo interessante concretizado por Elias (2000) foi demonstrado em seu livro Os estabelecidos e os Outsiders. A pesquisa de campo realizada pelo autor em uma cidade denominada Winston Parva no final dos anos 50, ressalta aspectos como violência, discriminação e exclusão social, termos concebidos, também, para os pichadores. Nesta cidade, havia o grupo estabelecido e o grupo outsider – que ocupou a cidade num período posterior. O grupo estabelecido era dotado por uma posição de virtude humana superior que eles mesmos se atribuíam. Conforme exposto por Elias (2000): “... um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração 373 diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder; sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os membros dos outros grupos – o que constitui, essencialmente, o que se pretende dizer ao falar de uma figuração estabelecidosoutsiders” (ELIAS, 2000, p.22). A conexão entre os estabelecidos (sociedade e suas regras de uma forma geral) e os outsiders provoca uma concepção de que o próprio grupo dominante concebe os outsiders numa posição de inferioridade e desonra. Estes conceitos provocam aos estigmatizados um efeito paralisante. Elias (2000) ressalta que o rebaixamento de grupos na ordem hierárquica reduz a capacidade de competição pelo poder e status colocando-os em uma posição de estigmatizados. As análises dos grupos estabelecidos e outsiders em Winston Parva demonstram, claramente, de que maneira os indivíduos devem seguir uma obediência grupal. Segundo o autor, “a punição pelo desvio do grupo ou, às vezes, até pela suspeita de desvio, é perda de poder, acompanhada de rebaixamento de status” (Elias, 2000, p.40). Na pesquisa de campo realizada no Conjunto Taquaril, por ser aquele o espaço de moradia dos jovens, fica claro como os indivíduos moradores da periferia de uma grande metrópole procuram um status à sua maneira, neste caso, através das assinaturas estampadas nos muros da cidade, pode ser considerado como um contra-ataque daqueles dominados pelas regras sociais. De acordo com o relato de um pichador: [...] Então, eu acredito muito nisso, que a minha inserção no crime foi por causa da pichação. Porque, a partir da pichação, eu tive contato com outras pessoas que não eram pichadores, mas que também não era boa influência pra mim. Porque, naquela época que eu comecei pichando, a minha intenção era de ficar famoso, mostrar que eu existo, e o pessoal sabia que eu existo, tem uma pessoa, um moleque que picha, então, eu queria reconhecimento [...]. 4- CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das considerações realizadas neste artigo é possível perceber que a maior predominância de pichos na comunidade advém do grupo PAM – Possuídos pela Arte Maligna. Conforme exposto, este grupo está situado no Taquaril A que até o ano de 2009 não possuía programas e projetos sociais para atender a comunidade, principalmente a juventude. O grupo BDJ – Bonde dos Jacarés – está localizado no Taquaril B, local onde se concentrava uma série de intervenções, como o Programa Mediações de Conflitos, Programa Fica Vivo!, Instituto Planetários, Projeto Providência, Associação Shekinah, Igrejas, Escolas e Postos de Saúde. Como as políticas sociais são implantadas, em sua maioria, no Taquaril B – por constituir uma infra-estrutura adequada para a implantação 374 dessas instituições – os moradores do Taquaril A não possuem acesso aos dispositivos públicos o que influencia na maneira como é constituída a juventude naquele local. De acordo com as observações realizadas na pesquisa de campo, os jovens entrevistados e os moradores do Taquaril A não concluíram o Ensino Médio e possuíam dificuldades para se inserirem no mercado de trabalho em função da falta de oportunidades ocasionadas pela região. Os jovens entrevistados do Taquaril B, no momento das entrevistas, estavam estudando, alguns haviam concluído o Ensino Médio em função da proximidade com a escola e já estavam trabalhando ou possuíam experiência profissional. No entanto, cabe ressaltar que os jovens do Taquaril B possuíam outras atividades diferentes da pichação, o que minimizava esta prática na comunidade e na cidade. Um jovem do grupo BDJ relata: [...] Eu acho, tipo assim, que a gente ficou tipo famoso assim porque nós tinha nosso grupo e todo mundo trabalhava, aí nós num parava no Taquaril, nosso negócio era só sair pra fora, ou então de vez em quando fazia uma festinha, mas, tipo assim, só nós e num chamava ninguém. Por exemplo, tinha uns colega, mas envolvia só a gente mesmo [...] O contexto citado pode provocar um sentimento de impotência por parte dos moradores do Taquaril A o que dificulta a relação com a juventude local. As percepções durante a pesquisa de campo demonstram que a pichação é uma forma de manifestação social, verificada a partir da atuação dos jovens em busca pelo direito da cidade. Como o Conjunto Taquaril está situado em uma área limítrofe com o município de Sabará, esta situação impossibilita o acesso de muitos jovens às oportunidades como educação, inserção no mercado de trabalho, lazer, entre outros, da cidade de Belo Horizonte. Eles buscam o reconhecimento social e a visibilidade, ressignificando a metrópole pela cultura popular. O muro seria o único espaço que não exclui ideias e nomes. A pichação, como uma manifestação marginalizada, é absorvida pela própria sociedade que a exclui. Os jovens provocam a sociedade pichando os muros de suas residências, patrimônios públicos, comércio entre outros e, dessa forma, são reconhecidos (mesmo como vândalos), tornandose foco da percepção da população. 6-BIBLIOGRAFIA BEATO, Cláudio. Crime e Cidades. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1928. BIGNOTTO, Newton. 2003. “Entre o público e o privado: aspectos do debate ético contemporâneo. In: DOMINGUES, I. et al. Ética, política e cultura. Belo Horizonte: 375 Editora UFMG. BRASIL. Lei nº 9605, 1998. Lei de Crimes Ambientais. São Paulo, 2003. COURA, Claudinéia A P. 2009. Juventude e segregação urbana em Belo Horizonte: um estudo de trajetórias e representações sociais no Conjunto Taquaril. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. PUC-MINAS. ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2000. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. GOMES, Paulo C. 2003. Estranhos vizinhos: o lugar da favela nas cidades brasileiras. Anuário Americanista Europeo, v. 1, n. 1: 171-178. MAGNANI, José G. C. 1992(b). Da periferia ao centro: pedaços e trajetos. Revista de Antropologia. v. 35:191-203. PEIXOTO, Mônica; VIEGAS, Mônica; AZEVEDO, João P.; 2008. Prevenção e controle de homicídios: uma avaliação de impacto no Brasil. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar. PENNACHIN, Débora L. 2003. Signos Subversivos: das significações de graffiti e pichação. 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BH favelas 0.668 0.319 sem Morro Pedras 0.931 0.053 das Cabana de Pai Tomás 0.947 Pedreira Prado Lopes 0.916 Alto Cruz 0.941 0.014 0.037 0.004 Vera 0.948 Conjunto Felicidade 0.926 Ribeiro Abreu 0.899 0.042 0.023 0.078 Taquaril de 376 P. comodo P. abast. água P. esgoto P. banheiros P. coleta lixo P. 1 residente P. 2 residentes P. 3 residentes P.4 residentes P.5 residentes P.mais de 6 residentes. P.alfabetizado s P.alfab. de 15 a 29 anos P. de homem P. até 9 anos P. de 10 a 14anos P. de 15 a 19anos P. de 20 a 24 anos P. de 25 a 29anos P. de 30 anos ou mais P. sem renda P. renda até 1 salário P.renda – 1 a 3 salários P.renda – 3 a 5 salários P.renda– 5 a 10 salários P.renda–mais de 10 sal. 0.013 0.992 0.932 0.985 0.987 0.116 0.016 0.989 0.920 0.938 0.943 0.092 0.039 0.995 0.969 0.954 1.000 0.098 0.047 0.993 0.976 0.949 0.997 0.113 0.055 0.992 0.880 0.947 0.991 0.100 0.010 0.982 0.567 0.909 0.834 0.081 0.052 0.994 0.870 0.971 0.994 0.046 0.023 0.990 0.825 0.971 0.931 0.073 0.193 0.148 0.156 0.147 0.153 0.130 0.117 0.140 0.223 0.232 0.137 0.191 0.224 0.145 0.220 0.216 0.139 0.181 0.203 0.151 0.201 0.217 0.151 0.191 0.214 0.174 0.190 0.234 0.185 0.218 0.231 0.171 0.098 0.200 0.171 0.205 0.178 0.210 0.228 0.167 0.943 0.846 0.848 0.865 0.854 0.834 0.882 0.882 0.988 0.467 0.142 0.966 0.480 0.213 0.975 0.484 0.206 0.970 0.471 0.197 0.975 0.480 0.210 0.958 0.489 0.239 0.978 0.489 0.194 0.979 0.488 0.202 0.079 0.105 0.097 0.104 0.100 0.129 0.113 0.104 0.095 0.114 0.107 0.109 0.108 0.120 0.140 0.116 0.101 0.116 0.112 0.108 0.104 0.102 0.117 0.111 0.088 0.082 0.089 0.088 0.092 0.072 0.082 0.084 0.494 0.061 0.370 0.117 0.388 0.123 0.395 0.113 0.387 0.132 0.337 0.179 0.353 0.098 0.382 0.110 0.094 0.247 0.248 0.305 0.243 0.233 0.211 0.181 0.242 0.441 0.453 0.408 0.413 0.466 0.482 0.419 0.152 0.100 0.116 0.106 0.120 0.087 0.140 0.165 0.207 0.046 0.053 0.056 0.075 0.030 0.060 0.104 0.244 0.049 0.008 0.012 0.017 0.005 0.009 0.022 Nota: P. significa proporção. O primeiro conjunto de variáveis se refere à proporção de domicílios, o segundo conjunto à proporção de residentes e o terceiro conjunto à proporção de responsáveis pelo domicílio. Fonte: Censo Demográfico 2000. (ANDRADE; PEIXOTO; AZEVEDO, 2007) 377 GRUPO DE TRABALHO 04: TRABALHO E MODERNIDADE TENSÕES E INTENSÕES DA JUVENTUDE NO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO: Um olhar a partir dos jovens do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano Banjaqui Nhaga1 Bruno Mota Braga2 RESUMO O presente artigo faz parte de um primeiro esforço de pesquisa desenvolvido no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, tendo por objetivo, demonstrando os mais variados rostos, sentidos e reverberações assumidos pela juventude brasileira, durante sua imersão no mercado de trabalho. Neste sentido, sua primeira análise centra-se em um olhar sobre as principais conjecturas assumidas pela juventude no mercado de trabalho, mais especificamente sobre a experiência singular dos jovens da “sulanca” inseridos no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, este que tem em suas principais características, a informalidade, trabalho domiciliar, barreiras frágeis de inserção comercial e produtiva, tecnologia do domínio popular e uma extrema precarização das relações de trabalho. Palavras Chave: Juventude, Trabalho, Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano INTRODUÇÃO O ingresso no mundo do trabalho constitui-se, tradicionalmente, um dos principais marcos da passagem da condição juvenil para a vida adulta. No entanto, nas últimas décadas, em funções de intensas transformações produtivas e sociais, ocorreram mudanças nos padrões de transição de uma condição à outra. As pesquisas apontam para as enormes dificuldades dos jovens em conseguir uma ocupação, principalmente em obter o primeiro emprego, dado o aumento da competitividade, da demanda por experiência e por qualificação no mercado de trabalho. Com isso, a transição para a vida adulta tem sido retardada. Os jovens em idade legal de trabalhar tornam-se um dos segmentos mais frágeis 1 2 Mestrando do PPGCS-UFCG Mestrando do PPGCS-UFCG 378 na disputa por um posto de trabalho em meio ao elevado excedente de mão-de-obra e a perda de oportunidades ocupacionais em empregos regulares. Pesquisas nacionais têm mostrado que o trabalho está entre os principais assuntos que mais mobilizam o interesse dos jovens. O trabalho também é por eles indicado como um dos direitos mais importantes de cidadania, assim como um dos direitos essenciais dos quais deveriam ser detentores. Vale dizer que a centralidade do trabalho para os jovens não advém tão-somente do seu significado ético, ainda que este seja relevante, mas resulta também, e sobremaneira, da sua urgência enquanto problema: (...) é, sobretudo enquanto um fator de risco, instabilizador das formas de inserção social e do padrão de vida, que o trabalho se manifesta como demanda urgente, como necessidade, no coração da agenda para uma parcela significativa da juventude brasileira. Ou, de outra forma, é por sua ausência, por sua falta, pelo não trabalho, pelo desemprego, que o mesmo se destaca. (GUIMARÃES, 2004, p.12) Nesse sentido o presente artigo, propõe uma reflexão sobre alguns aspectos sobre a inserção e as condições de trabalho dos jovens no mercado de trabalho brasileiro, mais especificamente o mercado de trabalho da “S ”, mais conhecido como o Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, um arranjo produtivo que tem em suas principais características, a informalidade enquanto elemento constitutivo das relações de trabalho, tendo unidades produtivas domiciliares e precárias, tecnologia de domínio popular, pouca presença de lideranças, entre outras. Atualmente o Estado de Pernambuco abriga uma das mais importantes e intrigantes experiências produtivas do Nordeste, dado a amplitude e dinâmica assumida no referido clusters, que surge sem a participação da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e sem a participação da Guerra Fiscal que trouxe plantas industriais para o Nordeste, inclusive de confecções. O Pólo de Confecções de Confecções do Agreste Pernambucano tem como referencia as suas três principais cidades Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e Toritama, juntas são responsáveis por 60% da produção do vestuário do Estado (LIMA & SOARES, 2002, p.168). Mas, segundo dados da Secretária Especial da Juventude e Emprego do Governo do Estado de Pernambuco, existem mais 13 municípios da região como atividades ligadas ao setor têxtil e de confecções, são eles, Agrestina, Bezerros, Brejo de Madre de Deus, Cupira, Frei Miguelinho, Riacho das Almas, Santa Maria do Cambucá, São Caetano, São Joaquim do Monte, São Vicente Ferrer, Surubim, Tacaimbó e Taquaritinga do Norte 379 (DIEESE, 2010, p.9), ressaltando grande estas atividades são realizadas em unidades produtivas domiciliares de trabalho domiciliar e com predominância de jovens de 14 a 29 anos No Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, observa-se um mercado de trabalho precário, informal e domiciliar, ao mesmo tempo em que se verificam tentativas nos últimos anos de fazê-lo adequar-se aos novos padrões estabelecidos por instituições governamentais e não governamentais (ANDRADE, 2008), nesse sentido alguns atores como o SEBRAE, SENAI, EJA tem se mobilizado como o intuito de modernização e reconfiguração na imagem do referido clusters, tendo nos jovens uma de suas portas de entrada. Tendo como ponto de partida essas considerações iniciais, e considerando o trabalho nas unidades produtivas e comerciais de confecções como elemento central entre os jovens do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, lanço às seguintes questões: 1. Quais a condições de trabalho encontradas por esses jovens? 2. Em que tipo de ocupação e com qual jornada estão inseridos os jovens no mercado de trabalho? 3. Quais seriam os encontros e desencontros entre a situação juvenil no mercado de trabalho e as ações públicas? 4. Como se dá a relação trabalho-escola? 5. Como se dá a entrada juvenil no mercado de trabalho, se existe, já que este clusters tem como característica principal o trabalho familiar? Não tentaremos responder todas as questões e inquietações suscitadas na abordagem acima, mais nos lancemos na tentativa de demonstrar como ainda hoje as várias formas de inserção ou não do jovem no mercado de trabalho, produz e reproduz formas contrastantes de desigualdade social em contextos sociais, políticos e econômicos singulares, distintos e heterogêneos. . Pretendemos, aqui, não propriamente apresentar resultados de pesquisa, mas principalmente propor algumas indicações para uma interpretação sobre tal experiência. Este texto se encontra estruturado em quatro partes. Depois desta Introdução, a parte que segue busca situar os principais elementos que caracterizam o olhar singular sobre o conceito de juventude. A segunda parte se detém sobre as dinâmicas, tensões e 380 intenções, mais evidentes, da intersecção escola, juventude e trabalho, na terceira parte, um olhar específico sobre as condições e inserção da juventude no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, na quarta e última parte, proponhamos algumas considerações acerca dos primeiros resultados de pesquisa e os fios proporcionados pelas abordagens teóricas da “Produção e Reprodução da Desigualdade”. 1. A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE JUVENTUDE Dentre as várias questões colocadas as Ciências Sociais, a juventude sempre esteve em evidência, como um período caracterizado pela intersecção de várias lógicas, dentre elas o trabalho, estudo, família e preparação para a vida adulta, entre outros. Refletir os rostos assumidos pela juventude na modernidade é ter no trabalho o eixo central de análise. Observa-se que na modernidade há uma nítida demarcação das etapas e ciclos de vida com valorizações distintas: a infância é vista como fase de dependência; a juventude, como sinônimo de transição; a idade adulta, reconhecida como o apogeu da vida, e a velhice, como decadência (Debert, 1999). A juventude é, assim, vista como uma fase de transição que tem que ser transportada para se chegar àquilo que se considera ideal de adulto, representado como auge do percurso de existência, e cuja marca repousaria em uma formação relativamente sólida, na decorrente estabilidade de emprego e independência financeira como a definitiva saída da casa dos país e constituição de uma nova família, trio que resultava na “completa” e irreversível” autonomia do sujeito. Claro que não é a sociedade que “inventa” a juventude, já que jovens sempre existiram e foram reconhecidos como tais em outros contextos, mas é na modernidade que a encara como transição. Nas sociedades tradicionais, em geral estáticas, não havia muita dificuldade de se passar de uma geração a outra, pois aqueles que chegavam as novas gerações, tendiam a valorizar o mundo adulto e, assim, reviver os modos de vida de seus predecessores, a passagem dos jovens aos papéis adultos sendo realizada por meio de rituais que organizavam e controlavam essa entrada, de modo a dotá-la de sentimento. Já nas sociedades modernas, ... as práticas de uma geração só são repetidas se forem reflexivamente justificadas. O curso de vida transforma-se em um espaço de experiências abertas e não de passagens ritualizadas de uma etapa para outra. Cada fase de transição tende a ser interpretada, pelo indivíduo, uma crise de identidade e o curso da vida é construído em termos da necessidade antecipada de confrontar e resolver essas fases de crise. (Debert, 1999, p.53) Se nas sociedades tradicionais, o ritual de passagem do jovem à fase adulta é 381 definido pela transmissão de um status social, que tem a ver com o estágio de maturidade, nas ocidentais modernas, ele é determinado por um “mecanismo básico de atribuição de status (maioridade legal), de definição de papéis ocupacionais (entrada no mercado de trabalho), de formulação de demandas sociais” (Debert, 1999, p.26). Em suma, pela idade cronológica, baseada em um sistema de datação que independe das estruturas biológicas e dos estágios de maturidade. Na realidade, não foram propriamente os rituais que desapareceram, eles se transformaram em “quase ritos”, definidos pelo calendário escolar: passagem pela universidade, salário ligado ao primeiro emprego, são marcos que denotam a possibilidade de conquista de autonomia, mas sim a tolerância ao desvio, que passa a ser visto como patologia. Assim, como nenhum desses momentos representa a estabilidade, a claridade e o reconhecimento público dos verdadeiros ritos de passagem, essa perda de conexões entre a vida pessoal e a troca de gerações faz com que, para os jovens, a entrada no mundo adulto seja mais rápido e mais hostil na sociedade moderna. Simultaneamente, a juventude passa a ser vista como uma etapa transitória, que se torna objeto de atenção na medida em que parece romper com a ordem social estabelecida pelas gerações anteriores. Ou seja, não só a juventude passa ao segundo plano, como a própria idéia de transição para ser vista como problema. Ao mesmo tempo é somente aí, quando seus mecanismos de reprodução estão ameaçados, que uma sociedade passa a se preocupar com seus jovens. Como sintetiza Helena Abramo (1997), ... m çã j v “ b m ”éh já foi assumida por muitos autores: a juventude só se torna objeto de atenção enquanto representa uma ameaça a ruptura com a continuidade social: ameaça para si própria ou para a sociedade. Seja porque o indivíduo jovem se desvia do seu caminho em direção à integração social – por problemas localizados no próprio indivíduo ou nas instituições encarregadas de sua socialização ou ainda por anomalia do próprio sistema social -, seja porque um grupo ou movimento juvenil propõe ou produz transformações na ordem social ou ainda porque uma geração ameace romper com a transmissão da herança cultural. (p.29) Por outro lado, a juventude é simultaneamente revestida de um ideal e de uma aposta: vista como um estado de espírito permanente, ela se transforma em mito para as outras gerações como condição para a felicidade eterna e para a resolução de todos os males da sociedade (Debert, 1999). Muito desse modelo simbólico que a adjetiva como “progressista” provém da massificação cultural dos anos 60, expressa pelos jovens da moda, na música e na dança, etc... Vê-se, assim, que a modernidade produz o aparente paradoxo de encarar a 382 juventude como uma fase transitória e (por isso mesmo) problemática e, simultaneamente, de valorizá-la como um estilo de vida independente de um grupo etário específico. Mannheim (1975) foi o primeiro a problematizar o conceito de juventude da perspectiva sociológica. Ou seja, foi o primeiro a desnaturalizá-la, afirmando que, por cima da idade, da condição biológica, esta sim, universal, há construções sociais diversas. Por isso, a juventude não possui atributos inerentes, ela não é nem revolucionária, nem conservadora por natureza, mas sim uma energia latente que, conforme as condições históricas, dirigi-se a uma direção ou a outra. Além de latente, ela é marginal no sentido de vir de dentro (da esfera privada), ou seja, de não ter ainda sobre ela os encargos da estrutura social e também de estar fora do centro do poder (da esfera pública). A transição também é um elemento que Mannheim atribui à juventude, mais é preciso relembrar que essa característica é limitada para compreendê-la, não só porque a condição provisória é comum a qualquer grupo etário, mais também porque a ênfase na “passagem” como pertencente à condição juvenil faz com que a idéia de juventude seja ressaltada pela sua negatividade, por aquilo que ela não é (Sposito, 2002); tudo o que não é voltado para a preparação para a vida adulta é, assim, considerado perca de tempo. Entretanto, se quer apenas pela sua transitoriedade, por isso implica cair no ideal centrado nos adultos forjado pela sociedade salarial, para a qual o tempo livre representa um perigo. Se a transição é um aspecto limitado, isso não significa que a própria transição seja desconsiderada, desde que se façam algumas ressalvas. Primeiramente, é preciso que há especificidades nessa transição, que a torna inegavelmente singular (Sposito, 2005) e fazem com que ela tenha sentido em si mesma: é a fase da vida que o indivíduo não tem sobre ele os encargos da estrutura social (Mannheim, 1975) e, simultaneamente, se distancia do grupo de origem, sem que tenha clareza do grupo aonde se quer chegar (Gallland, 1996). Por isso mesmo ele potencializa atitudes de experimentação, vivência de situações limite (Sposito, 1994), tanto para a conquista de autonomia (De Singly, 2000) quanto para a construção de sua(s) identidade(s) e dos estatuto(s) que lhe deve(m) corresponder (Dubar, 2005; Galland, 1996), por meio de auto-classificações e de status, que culmina com a realização de papéis de adulto (Hasenbalg, 2003) é também marcado pela “insegurança frente ao futuro” (Rama apud Sposito, 1994, p.162). 383 A juventude é, pois, uma condição que será vivida conforme os distintos contextos socioestruturais e socioculturais e, dentro dele, conforme alguns ativos como posição social, o sexo, o próprio momento de ciclo de vida (ter 15 é diferente de ter 24), ou como venho a trabalhar mais à frente, os jovens inseridos em cidades pertencentes a arranjos produtivos. Por um lado, essa própria condição também é uma representação, ou seja, é revestida de valores que diferem historicamente conforme os rostos assumidos pelas juventudes. Da perspectiva sociológica, a juventude não pode, assim, ser definida apenas por critérios biológicos ou jurídicos, pois cada sociedade vê seus jovens de uma maneira, o que significa dizer que a juventude é uma construção social. A “juventude” é, portanto, diferente dos “jovens”, estes são concretos e se afastam ou se aproximam dessa imagem social construída, seja como fase da vida com determinados papéis e/ou com estilo de vida. A juventude é, ao mesmo tempo, uma fase da vida, uma força social renovadora um estilo de existência. Se a concebermos como uma etapa que antecede a maturidade e que apresenta características singulares, notaremos que ela corresponde a um momento definitivo de descoberta da vida e da história. Sob este aspecto, é uma experiência particular que se universaliza como componente indispensável da formação da pessoa, como afirmação dos seus recursos e das suas potencialidades humanas. Os quadros dessa experiência particular e os caminhos da sua universalização são, no entanto, socialmente estabelecidos. Isto quer dizer que cada sociedade constitui o jovem à sua própria imagem. As representações que valoriza e as manipulações que estimula tendem, o geral, a fazê-lo agir dentro dos limites que ela mesmo estabelece e que são os limites da sua preservação (Foracchi, 1977, p. 302) Nas propriamente nos anos 2000 se inicia várias pesquisas voltadas para a compreensão do modo como se faz a transição à vida adulta no país, seja apartir de metodologias de cunho quantitativo (Camarano ET al., 2004; Guimarães, 2006) ou qualitativo (Pimenta, 2001). Marcados pela perspectiva de que há múltiplas juventudes, esses estudos mostram que, dentro do próprio país, há múltiplas formas de adentrar a vida adulta, nas quais se inserem novos estilos de vida (Camarano et al, 2004). Essas passagens também se diferenciam das que ocorrem em outros países, especialmente quando se leva em conta os regimes de proteção social e o modo como se configuram as políticas públicas (Guimarães, 2005). Igualmente se amplia o número de pesquisas centradas particularmente no campo de trabalho, dada a dificuldade cada vez mais 384 crescente dos jovens se inserirem e permanecerem no mercado, apesar dos níveis crescentes de escolarização. É nessa perspectiva de juventude e trabalho que pretendo relacionar esses conceitos na tentativa de revelar o olhar brasileiro sobre essas lógicas distintas e singulares. 2. JUVENTUDE E TRABALHO NO BRASIL As transformações na instituição escolar e no mundo do trabalho têm um lugar importante, parecendo significativo aprofundar a observação dos percursos juvenis nas duas esferas, considerando o mundo do trabalho, ainda se encontra em curso um intenso processo de crise e transformação. A partir dos anos 1970, nos países desenvolvidos, e do final dos anos 1980, no Brasil, os mercados de trabalho tornaram-se cada vez mais heterogêneos e fragmentados, observando-se um grupo de trabalhadores com alta qualificação, atividades em período integral e direito trabalhistas assegurado convivendo ao lado de uma grande massa de trabalhadores pouco qualificados, ocupando postos de trabalho precários, mal remunerados, muitas vezes sem quaisquer direitos trabalhistas, e junto ainda a um número cada vez maior de desempregados (Gorz, 1991; Harvey, 1996). Sendo assim, as transformações no mundo do trabalho e o aumento dos ganhos de produtividade não significaram aumento do nível de emprego, tornando o desemprego um problema estrutural no cenário global. O período mais recente mostra um contexto de maior crescimento da atividade econômica e das oportunidades de empregos e ocupações que, embora ainda insuficientes, podem ser indicativos de relevantes mudanças socioeconômicas em curso. De todo modo, em todos os países, os jovens são apontados como um dos grupos mais afetados pelo aumento do nível de desemprego e pelo processo de precarização do mercado de trabalho seja do ponto de vista estritamente subjetivo ou objetivo, considerando-se as taxas de desemprego juvenil. No campo educacional, os números tornam evidente a ampliação das oportunidades de acesso à educação formal e da permanência dos jovens na escola. Mas persistem trajetórias escolares marcadas por intermitentes reprovações e evasões, e está longe de se completar a universalização da educação dos adolescentes e dos jovens. Somam-se a isso importantes questionamentos em torno da qualidade do ensino e das chances da escola constituir-se em um espaço significativo para os jovens. Convém ainda investigar o que o maior tempo de permanência na escola tem produzido nas 385 gerações mais jovens, e há muitas maneiras de fazê-lo. Assim, considerando as mutações que atingem a esfera do trabalho e da escola, é cada vez mais necessário um olhar aprofundado para os percursos dos jovens nessas esferas, principalmente em países como o Brasil, pois aqui, para além da escola, o trabalho também faz a juventude. Tal como afirma Sposito (2005, p. 106): “[...] para os jovens brasileiros, escola e trabalho são projetos que se superpõem ou poderão sofrer ênfases diversas de acordo com o momento do ciclo de vida e as condições sociais que h m mvv çã j v ”. Isso não quer dizer que maior escolarização garanta automaticamente aos jovens o ingresso em bons postos de trabalho, pois o incremento na oferta de mão-de-obra qualificada não segue necessariamente o mesmo ritmo do aumento na demanda por profissionais qualificados (CASTRO e AQUINO, 2008). Reconhecer que no Brasil, que o trabalho também faz a juventude, não significa, de maneira ingênua, defender o trabalho de adolescentes e jovens, mas, ao contrário, “implica admitir que, se a construção da condição juvenil decorre de um complexo de valores sedimentados sob o ponto de vista social e histórico, no Brasil, uma alteração desse quadro deveria ser expressão de mudanças estruturais mais substantivas que atenuem as profundas desigualdades sociais, submetidas a processos de longa duração” (Sposito, 2005, p. 226). Estas considerações evidenciam a complexidade da temática da juventude e das características que orientam a definição de “jovem”, inclusive no que se refere à delimitação do início e do final desse período na vida das pessoas. Por outro lado, a Constituição da República Federativa do Brasil determina os 16 anos como idade mínima para o trabalho, admitindo, a partir dos 14 anos apenas o trabalho na condição de aprendiz. Por sua vez, a atual política nacional para a juventude definiu que a faixa etária para sua atuação vai dos 15 aos 29 anos. Vale registrar que, embora muitos jovens entrem no mercado de trabalho por necessidade ou por precariedade econômica e social de suas famílias, há, também, aqueles que, por desejo de autonomia, independência financeira, crescimento pessoal ou outras razões de cunho subjetivo, entram no mundo do trabalho de forma voluntária. Também parece ser crescente entre os jovens a percepção de que a experiência no mundo do trabalho faz parte da equação de construção da trajetória ocupacional. Para muitos jovens, é seu próprio trabalho que lhes possibilita arcar com os custos vinculados à educação. Desde o meados da década de 1990, assistimos a um conjunto de 386 reformas institucionais, que induziram a uma forte expansão do ensino superior, integrando um plano que atingisse as camadas as classes médias e altas, tem em si, um diferencial importante donde vários adultos e jovens que entram no mercado de trabalho de forma precária, retomam a escola enquanto uma necessidade de estabilidade e oportunidade de ascensão social. No Brasil, o padrão peculiar encarnado na figura do trabalhador ‑estudante não e exatamente novo, já que desde sempre os indivíduos mais pobres tem sido atraídos para o mercado de trabalho em idade muito precoce, o que lhes reserva como melhor cenário possível a combinação entre trabalho e estudo. A novidade e que este padrão tem viabilizado a expansão do ensino superior, na escala a que assistimos, dada a prevalência do ensino pago e a cobertura ainda muito insuficiente das políticas de subsidio e inclusão muitos v “v ”, m f m m empregabilidade, o aquecimento do mercado de trabalho e o aumento da renda dos mais pobres lhes infundiram otimismo e renda para suportar a árdua convivência de jornadas extensas de trabalho com o estudo noturno....(Comim; Barbosa 2011) Para muitos também, especialmente os integrantes das camadas populares, os baixos níveis de renda e capacidade de consumo da família redundam na necessidade do seu trabalho como condição de sobrevivência familiar. No Brasil, segundo a Pnad de 2007, 30,4% dos jovens na faixa etária de 15 a 29 anos poderiam ser considerados pobres, pois viviam em famílias com renda domiciliar per capita de até ½ salário mínimo (SM); 53,8% pertenciam ao extrato intermediário, com renda domiciliar per capita entre ½ e 2 SMs; e apenas 15,8% viviam com renda domiciliar per capita superior a 2 salários mínimos. Salienta-se que, mesmo quando o trabalho não é uma imposição ditada pela necessidade de subsistência familiar, o que por si só o justificaria, os jovens têm a tendência de encará-lo como uma oportunidade de aprendizado, de ter acesso a variados tipos de consumo e de lazer, de alcançar a emancipação econômica. Desse modo, a associação entre os baixos níveis de renda familiar e a possibilidade de o jovem estar inserido como estudante e trabalhador na estrutura ocupacional não é tão imediata quanto parece. São muitos os jovens cuja renda familiar possibilitaria uma dedicação exclusiva aos estudos, mas que acabam optando, ou melhor, escolhendo também trabalhar. 2.1 MERCADO DE TRABALHO E INSERÇÃO JUVENIL A prática tipicamente humana do trabalho adquiriu um papel central tanto na inserção social de cada indivíduo e na decorrente formação de sua identidade quanto na 387 constituição e na sustentação da sociedade, principalmente nos Estados nacionais modernos fundados na concepção do contrato social (Cf. CASTEL, 1998). O ser humano promove a transformação da natureza para garantir a sua sobrevivência, bem como cria conhecimento e cultura transformando a sua própria natureza pelo trabalho; mas, ao longo da história humana, essa condição não foi compartilhada livre e igualmente (Cf. GORZ, 2003). Atualmente, não sem grandes questionamentos e conflitos, a noção de trabalho figura simultaneamente como uma forma de distribuição de renda da sociedade e, sobretudo, de garantia de dignidade humana e de direitos, tal como figura na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hobsbawm (2000) destaca que a luta de trabalhadores operários por direitos trabalhistas promoveu a extensão da reivindicação para a luta por Direitos Humanos mais amplos. No Brasil, essa noção dos direitos de trabalho constituiu-se principalmente relacionada com sua modalidade de emprego, regida por uma relação específica de contrato que atribuiu direitos e deveres a empregados e a empregadores, o que ainda mantém relativamente à margem modalidades de prestação de serviços, trabalhos informais e ocupações precárias (Cf. ESTEVES, 2002; CACCIAMALI, 1999; ANTUNES, 1999). Em consonância, o pleno emprego, grosso modo, que é a ocupação relativamente total da mão-de-obra de trabalhadores disponível no mercado de trabalho, ao longo do século XX, no Brasil, constituiu-se como uma meta do desenvolvimento econômico nacional.. Mesmo assim, desde a década de 1970, o então crescente mercado de trabalho brasileiro foi submetido a uma crise que tem comprometido a possibilidade de acesso da população ao trabalho e, em decorrência, à renda, aos bens sociais e à garantia dos direitos individuais e sociais básicos. Em período mais recente, desde a década de 1990, como aponta Mattoso (1999), evidencia-se um grande aumento do desemprego, um rebaixamento da renda assalariada, um incremento do trabalho e da economia informal e uma grande dificuldade para os trabalhadores serem incluídos no sistema econômico. Esse mergulho na crise econômica chegou associado a reformas do Estado, ajustes econômicos neoliberais e crescimento exponencial da automação e da tecnologia nos sistemas de produção, tudo isso implicando a dispensa em massa de mão-de-obra humana. Nota-se que, nesse contexto, como em estudos de Pochmann (2000), os jovens enfrentam dificuldades adicionais para encontrar trabalho e nele se manterem, uma vez que além de inexperientes, encontram poucas oportunidades. Isso fica significativamente mais grave entre jovens pobres, pois eles são impelidos a precipitar a ocupação de um posto 388 de trabalho para obter uma renda a fim de sustentar as despesas familiares ou a própria sobrevivência, o que costuma comprometer a possibilidade de formação escolar e de maior qualificação profissional, as quais adiante provavelmente contribuiriam para a seqüência de sua carreira de trabalho. 3. OS JOVENS NO MERCADO DE TRABALHO DO PÓLO DE CONFECÇÕES DO AGRESTE PERNAMBUCO Para compreender melhor a inserção e as condições de trabalho dos jovens no mercado de trabalho no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, foram necessários alguns incursões a campo no ano de 2011, leituras acerca das produções bibliográficas sobre o referido clusters e do arcabouço teórico desenvolvido na disciplina acadêmica Tópicos Especiais Produção e Reprodução da Desigualdade Social PPGSA/UFRJ. Nesse sentido pretendo ressaltar como a categoria juventude e sua inserção trabalho assume percursos distintos e reverberações para os indivíduos inseridos neste respectivo experimento coletivo, denominado Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano. 3.1 DA “SULANCA” AO PÓLO DE CONFECÇÕES DO AGRESTE PERNAMBUCANO O Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano surgiu entre os anos de 1940 e 1950, na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, no momento em que a cultura algodoeira no Nordeste passava por um forte declínio, deixando numerosos contingentes de famílias em situação de miséria, sem alternativas para sobreviver da agricultura, restando-lhes aventurar-se na migração para as cidades do Sudeste do país. Vários dos comerciantes que residiam na cidade da cidade de Santa Cruz do Capibaribe saiam do interior de Pernambuco para a região sudeste à compra de mercadoria e voltavam trazendo restos de tecidos, os quais vieram a ser trocados pelos por galinha, queijo, carvão vegetal, que foi base para as primeiras confecções, denominadas sulanca, sul = origem do tecido e elanca = tipo do tecido. Aos que permaneceram na região agrestina, a produção da sulanca se colocou como alternativa a geração de renda. O estudo do Dieese (2010) nos aponta que a atividade da sulanca surgiu de um movimento espontâneo dos pequenos empreendedores locais, como estratégia de sobrevivência da população local: A necessidade de se reinventar promoveu a busca pelo tecido em outros 389 Estados, como São Paulo e, mais recentemente, na Paraíba, ou até mesmo a sobra do produto. A arte de transformar restos de tecido em produto e a intensificação do fluxo comercial entre os estados de Pernambuco e São Paulo, pelos comerciantes pernambucanos que viajavam para São Paulo, pelos comerciantes pernambucanos que viajavam a São Paulo para comprar matéria-prima, deram origem ao nome da famosa feira semanal de confecções na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, a Feira da Sulanca (DIEESE, 2010, p.8) Um elemento de destaque no surgimento da sulanca foi o papel das mulheres, que passam a utilizar as sobras de retalhos para confeccionar, inicialmente, peças de uso doméstico, como colchas e, em seguida, peças do vestuário em geral. (...) a gente comprava, trazia pra casa, agente colecionava tudinho, com uns mais pequenos agente fazia coberta, com uns mais maior gente fazia uns shortinhos, aqueles shortinhos que botava a ligas. Aí quando era de madrugada, que a feira começava de madrugada, eu ia mais ela [sua filha], Sivi, e compadre João. Nós ia vender na feira. Chegava lá, agente vendia tudinho (entrevistada, 08/10/2011) A indústria de confecções é caracterizada pela sua atomização do processo produtivo, onde participam de forma autônoma ou interligada as micro, pequenas, médias e grandes empresas, embora haja predominância na participação da micro e pequenas empresas na estrutura industrial da região. Segundo Araújo (2006) atualmente 75% das indústrias de confecções do Estado de Pernambuco encontra-se no Agreste, havendo uma considerável concentração de empregos. Diante do número expressivo, para facilitar o acompanhamento nas empresas locais, O SEBRAE utiliza uma classificação de acordo com o número de funcionários por empresas: microempresa, até 19 funcionários; pequenas, 20 a 99 funcionários; média, entre 100 a 499 funcionários; grande, acima de 500 funcionários. Além das características citadas, é possível encontrar ainda empresas informais que trabalham como “facção”, desenvolvendo atividades de costura, e que são contratadas ou terceirizadas por outras empresas informais, como meio de garantir a produção, uma vez que não têm estrutura suficiente para desenvolver todo o processo de produção em suas dependências, formando assim uma grande rede de prestação de serviços. Observando as características dos processos e produção das empresas do Pólo de Confecções, é possível verificar que o grau de interação entre elas é visto nas relações de subcontratação e faccionamento de algumas fases do processo produtivo. (DIAS, 2007, p.89) Tanto a produção quanto a organização acontecem dentro das próprias casas das famílias, como a mão de obra familiar, estruturas de trabalho precárias, tecnologia de domínio popular e em muito dos casos com a utilização do trabalho infantil. Com o 390 crescimento da confecção, é construída uma garagem aos fundos ou ao lado da casa, de modo que o ambiente de produção dificilmente se separa do espaço doméstico. No que se refere às empresas maiores, geralmente se começa com a mesma estrutura, e com o aumento da produção e das vendas sentem a necessidade de melhorar a qualidade de seus artigos, de aumentar o espaço de produção, de formalizar seus funcionários em empresas. Mas continuam utilizando os mais variados tipos de estratégias para baratear ao máximo o custo da produção e garantir a margem de lucro, como por exemplo, a contratação de “f çõ ”, não se responsabilizando pelos encargos sociais em relação aos funcionários que estão localizados fora da indústria. A “precariedade está em toda a parte” (BOURDIEU, 1998, p. 120), envolvendo a família, agrupando parentes e funcionários, que em sua maioria são jovens, em um processo de trabalho bastante cansativo, com ritmo de produção elevadíssimo, uma jornada de trabalho, principalmente nos período junho e dezembro (épocas de grandes vendas), de até 14 horas por dia. Há uma combinação de máquinas industriais em combinação com o trabalho manual. O comércio está, também, está voltado para as confecções, disponibilizando proporcionalmente muitos empregos nesse setor, assim como as atividades de prestação de serviços relacionados ao segmento de confecções, fato este que faz com que muitas pessoas se desloquem de seus municípios, do entorno, para conseguir um emprego nesses locais. 3.2 OS JOVENS: INICIAÇÃO AO TRABALHO, IDADE E ESCOLARIDADE Para compreender melhor a inserção juvenil no mercado de trabalho local e pela inexistência de dados específicos, foram realizadas algumas incursões e campo no ano de 2011, uma das incursões diz respeito a visita a oito unidades produtivas dos mais variados tamanhos, onde farei uma breve apresentação das primeiras impressões e apontamentos da pesquisa. Desde o surgimento, o Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano tem atraído muitos migrantes para a região, que buscam uma alternativa de sobrevivência para a família. No entanto a presença de jovens advindos é notória e crescente. Os jovens advindos de outras cidades geralmente são convidados por outros parentes ou amigos já empregados nas fábricas de confecções, e chegam sozinhos à região. Quando conseguem se organizar trazem o resto da família. A trajetória de trabalho da juventude do Pólo de Confecções nas indústrias de 391 confecções começa desde a infância. Fato este identificado por Marx (1988, p. 450) referindo ao contexto da revolução industrial na Inglaterra, quando destaca o trabalho não deixou de fora as crianças e o jovem, tomando o lugar dos “folguedos infantis e do trabalho livre realizado, em casa, para a própria família dentro dos limites estabelecidos pelos costumes”. Tal situação é encontrada também na família camponesa, onde a iniciação no trabalho se dá apartir da mais tenra idade, e se associa “à falta de brincadeira ou de tempo de brincar nessa fase da vida” (MENESES, 2002, P.6). Vale destacar ainda que há dois tipos de trabalho infantil: o “remunerado”, que é efetivado mediante condições penosas de trabalho, impedindo o crescimento físico, social, moral e profissional das crianças e dos adolescentes; e o baseado na construção de saberes e construção de profissões”, como é encontrado entre os artesãos e na agricultura familiar (NEVES, 1999). Os relatos dos jovens, deixa claro o trabalho infantil é tido como uma transmissão de saberes, no que se refere ao processo de socialização que ocorrem no interior das famílias que realizam a produção com uma mão de obra estritamente familiar, não havendo remuneração para os mais novos, assim como, de outro lado, nota-se a presença do trabalho infantil remunerado, que restringe as atividades lúdicas e educativas na vida das crianças e adolescentes e os tornam o elo mais precário das relações de trabalho. Durante algumas visitas a campo, foi encontrado algumas crianças trabalhando, nas microempresas, nas empresas que prestam serviço de casear, bodar, estampar e ainda nas facções (como mostra a foto 1) geralmente fazendo acabamento nas peças produzidas ou aparando pontas de linha, dobrando ou ainda embolsando peças. 392 Foto 1: Facção de casear, microempresa prestadora de serviço as médias empresas. Fonte: Arquivo pessoal. No entanto, nos últimos anos houve certas diminuição desse do trabalho infantil, devido à intensificação da fiscalização por parte do Ministério Público, no que se refere à efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que vem atentar para os direitos à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e à proteção ao trabalho. Outro fator que contribui para a diminuição do trabalho infantil foi o Programa do Governo Federal Bolsa Família, visto que, segundo os critérios estabelecidos pelo programa, a criança em idade escolar de 6 a 15 anos precisa estar matriculada e freqüentando a escola. No entanto, observa-se claramente que não houve erradicação do trabalho infantil, mas apenas a sua diminuição, até mesmo porque há a justificativa de que a criança deve ajudar na renda familiar. Uma estratégia encontrada pra não prejudicar a freqüência escolar é a combinação prévia com os padrões de trabalho oposto ao da escola. Isso não significa a diminuição da jornada de trabalho que esta organizada em uma faixa de nove horas por dia, sem cortar as horas-extras, que têm uma variação de acordo com a necessidade de aumento de produção em épocas de pico de vendas, ocorridas geralmente próximas aos meses de junho e dezembro. O grande índice de desistência pelos jovens é justificado pela dificuldade em conciliar os estudos com o trabalho, devido à longas e exaustiva jornada de trabalho nos fabricos, sem contar que é muito comum se encontrar jovens que têm suas produções independentes com o objetivo de futuramente abrir seu próprio negócio. 393 [...] às vezes eu fico pensando, a pessoa vai, deixa o trabalho, que é onde a pessoa grana um trocadinho extra, que é no trabalho à noite. E posso até fabricar pra mim. Como agora, que eu já venho fabricando, e é nesse horário vago. E se eu tivesse na escola também não tava dando, né [...] Entrevistado, 08/07/2011. Outra coisa que influencia a desistência escolar é que muitos, além de trabalharem nas empresas de confecções, também trabalham nas conhecidas Feiras da Sulanca em Toritama, Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru. Geralmente vendem mercadorias para o patrão, para a família que tem a própria produção, ou pegam mercadoria de outras pessoas como forma de complementar a renda. A saída para a feira, geralmente acontece na noite anterior ou de madrugada. 3.2 CONDIÇÕES DE TRABALHO E RENDA As condições, ritmo, jornada de trabalho e renda dos jovens inseridos no mercado de trabalho seguem em mesmo no mesmo padrão no que se refere à organização e produção, entre as empresas de pequeno e médio porte, que são a grande maioria no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano. A jornada de trabalho está fixada em média de 9 horas por dia, sem contar as horas-extras, que têm uma variação de acordo com a necessidade e aumento de produção em época de pico de venda, que ocorrem geralmente próximos aos meses de junho a dezembro. O horário de expediente é das 7 h às 11h30min, e 13h às 17h, havendo um intervalo de 15h para o lanche (quinze minutos). O registro de horas de trabalho e das horas-extras é feito em um caderno, onde cada funcionário anota a hora que chega e em que sai do estabelecimento. O horário estabelecido de entrada, de saída e para o lanche é determinado pelo patrão. O espaço físico é bastante fragmentado, geralmente funcionando em garagens, sendo constantemente readaptado para atender as necessidades de aumento de produção. É em geral muito quente e com pouca ventilação. A higiene do ambiente é feita diariamente pelos próprios funcionários, no entanto no modo precário como são acondicionados os estoques de tecidos produzindo uma quantidade excessiva de poeira, principalmente durante o processo de corte e costura. A estamparia, além de ser o espaço mais quente de todo o processo de produção, é também um espaço de trabalho com exposição às substâncias tóxicas advindas nas tintas e das outras substâncias utilizadas durante o processo. Vale ressaltar que os jovens trabalhadores, mesmo estando expostas a poeira e a substâncias tóxicas, grande maioria não fazem o uso de máscaras de proteção. 394 O barulho constante das máquinas trabalhando é consideravelmente alto, e no que se refere a proteção auricular observa-se a negligência quanto ao uso de equipamentos de proteção individual, como demostra a foto 2 e 3: Foto 2 : Fabrico de Costura em Sta. Cruz do Capibaribe Fonte: Arquivo Pessoal. Foto 3: Facção de costura(microempresa prestadora de serviços). Fonte: Arquivo Pessoal O ritmo de trabalho no processo de produção de confecções é intenso e exaustivo. Uma vez que a produção é de larga escala, há uma constante necessidade de grande produção semanal. Nas empresas de maior porte, a quantidade de peças produzidas semanalmente chega aproximadamente a 40.000. O jovem que melhor se adéqua ao trabalho nas empresas são os que “ ã produção”, ou seja, aqueles que conseguem acompanhar o ritmo imposto pela empresa mediante a quantidade de peças a serem produzidas semanalmente. Deste modo, um dos 395 requisitos básico para a inserção no mercado de trabalho é a experiência e prática nos diversos processos de produção e confecção. É comum que os jovens se insiram no trabalho de confecções seguindo uma seqüência de aprendizagem que se dá no interior das fábricas, onde começam a trabalhar em atividades mais elementares, por exemplo, aparar pontas de linha e embolsar camisas. Quando mudam as atividades, geralmente as mulheres atuam na costura, ou fazendo bordados à mão, ou ainda na venda de mercadorias nas diversas feiras. Os homens trabalham em atividades mais pesadas, que exigem maior força física, ou o corte e no bordão industrial, na estamparia, ou ainda no estoque de empresas maiores. A questão da divisão sexual do trabalho, no caso do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, é de modo particular no recorte aqui feito, se coloca em constante mudança que é própria do processo de produção das empresas locais. Desse modo, é possível encontrar homens e mulheres atuando em diversos locais, homens atuando na costura, mulheres atuando na comercialização, durante a gravidez as mulheres voltam pra os trabalhos mais manuais, costura e em trabalhos que não exigem muito esforço, entre outros. O processo de aprendizagem e especialização não acontece em cursos profissionalizantes, mas dentro de casa, com os pais, ou no ambiente próprio do trabalho. São comuns jovens mulheres, de modo particular, as que são de outras cidades, começarem em atividades domésticas e, aos poucos, na própria casa em que estão trabalhando, irem apreendendo as diversas tarefas do processo de produção, incluindo costura. No caso dos jovens (homens), geralmente começam no acabamento das peças e, em seguida, aprendem a trabalhar na estamparia, bordado, ou corte. Conforme o nível de aprendizagem do funcionário, ao longo das atividades exercidas no processo de produção e diante da necessidade da empresa, é possível que ocorra troca de funções. Fato que geralmente funciona com a ascensão no trabalho, melhorando suas condições. A remuneração salarial é feita de duas maneiras, grande maioria dos jovens recebem o pagamento fixo, com valor baseado no salário mínino e outra parcela recebem por produção. No que se refere ao salário fixo, geralmente é acrescido por um valor advindo da produção realizada em hora extra, que pode ser feita ou na mesma empresa em que se trabalha, ou ainda em outra como forma de prestação de serviço. Há ainda jovens que combinam o trabalho em outras empresas e a produção de suas próprias confecções. 396 No que diz respeito ao trabalho formal e regularizado com direitos sociais garantido, devido grande maioria das unidades produtivas serem domiciliar, a informalidade se estabelece como elemento constitutivo nas relações de trabalho, valendo ressaltar que mesmo havendo um grande investimento para a formalização da mão-de-obra na região, a informalidade é consideravelmente significativa do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, como demonstram as pesquisas. No entanto, a linha que separa o formal do informal atualmente é tênue, pelo fato de que o Governo Estadual tem investido fortemente me prol do seu desenvolvimento, sendo assim estão sendo realizadas várias campanhas de formalização das empresas. Sobre o desejo de autonomia dos jovens observa-se que pelo baixo salário e pelo ritmo intenso imposto pelas empresas, muitos jovens trabalham em casa na própria confecção, ou em outra empresa no período da noite, prestando serviço de corte, estamparia, costura, dentre outros. Tal realidade e demonstrada fortemente por um jovem entrevistado em maio/2011, relevando como maioria dos jovens do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, tem sua perspectiva de futura baseada no desejo de ter sua própria confecção: Pergunta: Quais são os seus sonhos e seus projetos para o futuro? Resposta: No momento eu tava pensando em fabricar pra mim. Pergunta: E sair da empresa que você está trabalhando? Resposta: Sim, eu tava pensando. E eu já não sai porque devo um pano lá que eu comprei. Eu to pensando em pagar pra ele para fabricar pra mim. Pergunta: Mas, em ter carteira assinada e fabricar, você prefere fabricar? Resposta: Eu acho que sim. Pergunta: Você acha que ganharia mais? Resposta: Eu acho que ganharia mais. Eu acho que se a pessoa conseguisse uma mercadoria boa e que venda bem, a pessoa dá pra ganhar bem [...] Só que essa mercadoria eu to fabricado agora, eu não to tendo lucro dela ainda, porque eu comprei o pano fiado, to fazendo ela toda, vendendo e pagando o bordado. Um pouco que eu vendi deu pra pagar o bordão que foram feitas [...] quando eu conseguir pagar esse pano. E o resto que vai sobrar vai ser o lucro desse pano. Pergunta: Aí você pretende só fabricar pra você? Resposta: É, eu pretendo fabricar. E se eu conseguir fabricar e me estabelecer, eu to pensando em comprar uma casa e um terreno pra mim. É o próximo investimento que 397 eu vou fazer pra mim [...] Mas tem um problema tem semana que vende e tem semana que não vende. Feira, tem que ter sorte. Tem que ter sorte, porque ninguém sabe se as feiras, tem feira que você espera ser bem boa, não é. E tem umas que a pessoa vai por ir mesmo, aí vai e é boa. A pessoa nunca sabe. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Refletir sobre a juventude e sua inserção no mercado de trabalho no Brasil é antes de tudo deparar-se com as mais variadas faces e interfaces assumidas em seus contextos econômicos, sociais e políticos, o que demonstra de forma mais específica os vários sentidos assumidos pelo juventude e trabalho no referido clusters... A juventude inserida no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano precisa constantemente adequar-se à precária estrutura física, das empresas, além do ritmo intenso que é imposto pela quantidade de peças que são produzidas semanalmente. O cansaço físico, ao término do dia, é nítido, mas muitos estendem sua jornada de trabalho, ou prestando serviço para outras empresas, ou ainda “f b ” para si e sua família. É ainda muito comum encontrarmos jovens que conciliam o trabalho nas empresas de confecções com as diversas “Feira da Sulanca”. Apesar de toda a precariedade existente e da longa jornada de trabalho, tais atividades são vistas como um importante passo para alcançar o objetivo da maioria dos jovens, que é tornar-se autônomo, abrindo seu próprio fabrico, deixando definitivamente de ser empregado. Dada essa configuração, muitas das jovens mulheres, ganham ao longo do tempo uma certa autonomia, não vendo mais só no casamento, uma forma de ascensão social. Diante disso, vemos que o trabalho nas unidades produtivas domiciliares de confecções, inicia-se na infância como parte do processo de socialização, sendo uma primeira entrada para o estabelecimento do jovem para entrada no mercado de trabalho e pela transmissão de saberes para sua constituição de forma autônoma, dado que o conhecimento adquirido para a produção se dá pela transmissão dos parentes ou familiares. As políticas públicas de combate ao trabalho infantil se constituem enquanto uma dificuldade de inserção e aplicabilidade, perante das configurações assumidas no trabalho domiciliar. No atual ano, várias instituições como o SEBRAE e SENAI tem se voltado para o público jovem pólo no intuito de qualificação, criando cursos de lavanderia, corte e costura, atendimento ao cliente, entre outros e mobilizando-se com o discurso de 398 modernização das atividades ali existentes Por fim, concluimos que, mesmo levando em conta sua singular constituição histórica, o desenvolvimento do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, o crescimento e o investimento tecnológico de algumas empresas e a possibilidade de geração de emprego e renda para os jovens locais, é necessário ressaltar que as condições de trabalho continuam precárias. A melhoria do ambiente de trabalho, na segurança do trabalhador, na remuneração salarial e na jornada de trabalho, ainda está longe de se tornarem realidade, pois também no Pólo cada vez mais se destrói e precariza a força humana de trabalho e o meio ambiente a favor do capital (ANTUNES, 1999, P.34) Referências Bibliográficas: ABRAMO, Helena. W. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n5/6, 1997. ADORNO, Sérgio. Adolescentes, crime e violência. In: ABRAMO, Helena Wendel; FREITAS, Maria Virgínia de; SPÓSITO, Marília. Pontes. (Orgs.). Juventude em Debate. São Paulo: Cortez, 2002. ANDRADE, Tabira de Sousa. A estrutura institucional do APL de confecções do agreste pernambucano e seus reflexos sobre a cooperação e a inovação: o caso do município de Toritama. Dissertação de Mestrado, UFPB/CCSA, 2008. ANTUNES, Ricardo. O mundo precarizado do trabalho e seus significados. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, v. 2, no. 1, p. 55-59, 1999. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. Boitempo: São Paulo, 1999. BORDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução Lucy Marinho. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: https://www.presidencia.gov.br/casacivil/site/static/le.htm. Acesso em: 22 de Julho/2012 CACCIAMALI, Maria Cristina. Transformações nas relações de trabalho e na política pública. Cadernos de Ps