Baixar arquivo - Convenção Batista Nacional
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Eveline Xavier As histórias que as pedras nos contam e as histórias que as pedras não contam As histórias que as pedras nos contam e as histórias que as pedras não contam Eveline Xavier Eveline Souza Xavier Este livro foi desenvolvido como da habilitação em jornalismo, do Faculdade de Filosofia e Ciências de Minas Trabalho de Conclusão de Curso curso de comunicação social da Humanas da Universidade Federal Gerais. Orientador:Prof. Projeto gráfico e diagramação:Bruna Monotipias:Bruna Diagramação:Tomás Nísio Teixeira Lubambo e Tomás German Lubambo German Agradecimentos Minha gratidão sem fim aos meus pais, que acreditaram que eu podia, mesmo quando eu tinha certeza que não. E eu pude. Que me apoiaram em minhas diversas passagens por comunidades terapêuticas e me acompanharam nos Narcóticos Anônimos. Que se emocionaram com este trabalho, tanto quanto eu mesma. Minha terna gratidão à Gilvane e ao Moisés que me conduziram em meus primeiros passos por essas e muitas outras histórias. Minha gratidão carinhosa ao Osvaldo e à Lena que abriram as portas da Monte Moriá e de sua própria casa, que acolheram meu projeto e me ofereceram cafezinhos quando eu era ainda uma desconhecida. Tornaram-me “de casa”, “bem-vinda”. Minha profunda gratidão ao Nísio, à Bruna, à Marcela e ao Tomás, que mesmo com os dias e cabeça simplesmente lotados, abraçaram este trabalho com tamanha generosidade, dedicação e alegria, que me emocionavam toda vez que compartilhávamos algo sobre este livro. E minha eterna gratidão ao Poder Superior, que me guiou e susteve ao longo de toda essa caminhada, que me ensinou a olhar de modo diferente, que me inspirou. Meu grande desejo é que ele ilumine o caminho de volta de tantos pais, mães, cônjuges, filhos e irmãos. Sumário 8Eu, o crack e os outros 13Por onde as pedras me levaram 19Caminhando Domingo, 09 de setembro 26 33Viajante 38Inquietude que as pedras não 44Histórias contam Quando se ouviu fa59Apêndice: lar das pedras Eu, o crack e os 8 outros M eus pais ainda vivem na mesma casa em Ipatinga onde vivi 20 anos de minha vida. Meu avô materno se mudou para aquele mesmo número há cerca de 40 anos. Na época, a cidade ainda estava em fase de organização em torno da siderúrgica Usiminas (Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais S.A.). A rua onde foram viver quase não tinha casas, foi habitada aos poucos. Vizinhança sempre tranquila e rostos sempre conhecidos. Quase quatro décadas depois, ao longo de todo o ano 2011, minha mãe insistiu que a rua em que sempre vivemos - residencial e tranquila - não era a mesma. As portas e portões de nossa casa, que antes permaneciam abertos ao longo de todo o dia, agora estavam sempre trancados. Difícil acreditar, já que passei a infância inteira jogando bola naquele asfalto e me escondendo naquelas árvores. Na adolescência, ficava até tarde jogando conversa fora na calçada. Depois de passar no vestibular e me mudar para a capital mineira, nos feriados e férias, minha grande alegria era estar de volta à casa de meus pais, o que me impedia de ter qualquer percepção negativa sobre aquele lugar. Eu só entendi a preocupação de minha mãe na primeira manhã de 2012. A rua onde morei termina num trecho da BR381 que corta Ipatinga. Por volta das sete e meia da manhã, voltávamos para casa após as comemorações do réveillon. Ao sair da BR e pegar a rua, qual não foi minha surpresa: era quase impossível discernir os humanos por trás dos cachimbos, das chamas e da sujeira. Os últimos quarteirões daquela rua em que brinquei durante minha infância haviam se tornado boca de fumo. Naquele dia 1°, entrei em meu quarto e me deitei completamente atônita, estava exausta depois da virada, mas o sono não vinha. Mais um pouco de insônia e percebi um paradoxo: há algum tempo ouvia sobre o crack, mas só percebi a que distância estava da realidade daqueles corpos apinhados nas calçadas, quando ela se instalou bem ao lado da casa de meus pais. Aquelas pessoas passaram a ficar ali todos os dias, assentadas no fim da rua, pela manhã, durante a tarde e à noite, longe o suficiente para me serem indiferentes enquanto pessoas, mas tão perto para se tornarem incômodas como dependentes. Dependentes de quê? Qualquer identificação de minha parte com o fenômeno era totalmente – e equivocadamente - impensável, até aquela manhã. Então percebi que, mesmo sem traficar, consumir ou sequer ter visto um cachimbo se acender assim tão perto antes daquele dia, com aquela cena tão concreta e tão próxima, eu também era parte dessa realidade. Foi então que decidi que precisava conhecê-los. Por onde as pedras me levaram 13 Segura o B.O., moleque! Segura o B.O.! A casa caiu pra você, você é de menor e não vai ficar só. Ia o moleque crescendo, com a perca no seu dia a dia. Hoje ele porta oitão, é linha de frente da periferia. Ele sofria demais. Ele não tinha oportunidade. Pois era de menor e não tava incluído na sociedade. Um dia ele se revoltou, pegou sua peça e partiu pra missão: Dizia que ia matar, que seu problema não tem solução. Ia o moleque bolado arrumando treta por causa de pó. Só que o bicho pegou, ele não agüentou segurar o B.O. (Segura o B.O. - MC Avatar, Caput1) A companhada por uma antiga conhecida, assistente social em Ipatinga, saí em busca de histórias que as pedras não contam, mas que logo descobri: estão sempre presentes. Nossa primeira parada foi num distrito de Ipatinga, Barra Alegre, que pertence ao município desde sua emancipação, em 1964. Entramos numa estrada cercada por matas e ribeiros, quando a assistente social me apontou o lugar. De um lado da estrada um portão cinza e do outro um campo de futebol. Ela explicou que aquele campo pertencia à Missão Resgate, a instituição que desejávamos visitar. A Missão Resgate recebe adolescentes usuários de drogas com idades entre 12 e 17 anos, residentes no Vale do Aço e municípios vizinhos. O local tem capacidade para 20 rapazes. Geralmente eles são fichados pela polícia por envolvimento com tráfico, ou outros crimes relacionados ao consumo de drogas ilícitas. Em geral, são réus primários que o juiz opta por encaminhar para tratamento. A maioria deles teme por sua própria segurança e a dos familiares e vêem na instituição uma oportunidade de se manterem a salvo. Na época, a Missão lidava com uma série de dívidas e estava prestes a fechar as portas. Colocou parte de seu terreno à venda e desenvolveu várias ações na tentativa de levantar a renda necessária. O governo municipal havia alguns meses não repassava as verbas destinadas à manutenção do lugar. A administração pública se tornara um verdadeiro caos desde 2010, quando o então presidente da Câmara Municipal, Robson Gomes, em eleição extemporânea, foi eleito prefeito de Ipatinga. Por falta de planejamento, diversos recursos repassados pelos governos federal e estadual não foram utilizados, funcionários públicos em atividade e aposentados passaram meses sem receber pagamento, além disso, o Ministério Público ajuizou ações de improbidade administrativa contra o prefeito e secretários do governo municipal. Assim como a Missão Resgate, diversos projetos sociais em Ipatinga sofreram com os atrasos nos repasses e fecharam suas portas, os próprios serviços públicos de saúde, educação e limpeza urbana estavam ameaçados. Buzinamos e, depois de alguns minutos, um rapaz moreno abriu o portão. Ele era franzino, tinha uma cicatriz no rosto, um ar desinibido e o jeito de olhar ainda guardava uma curiosidade infantil. Entramos com o carro numa espécie de quintal bem amplo e ele fechou o portão atrás de nós. Quando descemos do carro ele já havia se juntado a outros dois adolescentes, sentados na cabeceira de um tosco banco de madeira, em baixo de uma árvore frondosa. A assistente social desceu do carro primeiro, com um sorriso simpático no rosto foi puxar assunto com os garotos. Curtos e diretos, eles respondiam às perguntas tentando devolver a simpatia, mas sem muito sucesso, estavam entediados e tinham todos um olhar desconfiado. A pedido da assistente, um deles foi chamar o encarregado dos garotos naquela Sexta-Feira da Paixão. Junto a ele veio um outro adolescente, de aparência muito infantil, era o menor e mais novo, tinha doze anos. O mais velho dos quatro tinha quinze. Enquanto o responsável nos dava as boas vindas, percebi que éramos avaliadas pelos quatro assentados ali. De minha parte também observava-os e, imaginando as histórias por trás de suas cicatrizes e desconfiança, não pude deixar de concluir o óbvio: são tão jovens! Em pleno feriado, com todos os afazeres da comunidade já cumpridos e um campo de futebol a lhes esperar, nada tão desinteressante quanto ficar ouvindo conversas de adultos. Mas o horário do almoço se aproximava e eles só poderiam jogar bola depois da refeição. Pensei em tornar a nossa presença um pouco mais agradável, tentei me aproximar. As primeiras tentativas foram frustradas, eles continuavam respondendo a tudo monossilabicamente, até que o jovem que nos abriu o portão, num gesto compreensivo, resolveu valorizar meu esforço. Começou a contar-me como eram as partidas de futebol na Missão. É interessante como o gosto por essa atividade pode, tão facilmente, promover aproximação. Pronto. Não parou mais de falar, era o mais extrovertido. Lembrou com empolgação das aulas de circo e capoeira que tivera, gabava-se de suas inúmeras habilidades, tinha talento pra tudo. A capoeira parecia ser uma outra paixão compartilhada entre aqueles garotos, tanto que fez com que o mais velho (e mais sisudo) entrasse na conversa. Ele me disse que gostaria muito de voltar às rodas, ainda que não conseguisse lutar como antes. Na verdade até “bater uma bola” era penoso, ele me explicou, mostrando uma cicatriz comprida abaixo do joelho esquerdo. - Ainda bem que foi de 22 e foi de raspão, se fosse 38 eu tava sem a perna. Tava fugindo. Hospital? Que hospital... Não tinha como. Tratei foi no mato mesmo, fiquei passando planta aqui. Eu fiquei foragido, escondido no meio do mato, uai! A conversa com eles fluía trazendo as mesmas contradições inerentes às histórias contadas por qualquer adolescente. Revelavam-se divididos entre relatar com o ar juvenil de quem ainda não se deu conta da seriedade e do peso de suas aventuras com armas, pó e pedras e encarar com pesar as consequências das escolhas que fizeram, antes mesmo de aprenderem a separar com clareza a realidade da ilusão, a grande fronteira da adolescência. - Era pra eu ser mestre de capoeira hoje, se eu não tivesse seguido o caminho errado... Meu irmão chegou a ser mestre, mas teve que parar pra trabalhar, ele joga capoeira bem demais! Todo mundo fala que a gente é muito parecido. É, de fato, muito pesado para alguém tão jovem ter de decidir entre uma realidade de necessidades, de desigualdade e de faltas e a ilusão gerada pelo fascínio do poder que o tráfico e a violência promovem. Descobri que eles tinham em comum ainda mais uma paixão: a família. Não temiam pela própria vida, mas quando se tratava da família venciam a timidez, erguiam a cabeça e afirmavam serem capazes de matar e morrer por suas mães e irmãos. Foi o único momento em seus relatos que percebi medo em seus olhos. - A minha mãe. Eu tô com muita saudade dela... Dos meus irmãos também. Eu não tenho medo pela minha vida não, mas se ameaçar minha mãe, se for pro lado da minha família, eu viro o bicho, sou capaz de... É, foi por isso que eu resolvi parar, pra não dar mais problema pra minha família. Sentiam falta dos parentes, que lhes visitavam de 15 em 15 dias na Missão. Aqueles adolescentes haviam perdido muito: o circo, a capoeira, a ilusão, até mesmo a liberdade de ir e vir sem o risco de retaliações. Mas a ameaça de perder os familiares lhes trazia verdadeiro pavor. Fortemente apegados aos vestígios de infância que lhes restaram, vivendo num mundo que não lhes ofereceu nem tempo, nem o espaço ou a atenção que todas as crianças necessitam para se desenvolverem, no fim da aventura eles foram impelidos a uma decisão adulta: escolher entre continuar a ilusão, ou proteger a família e preservar a própria vida. - Mexo com isso mais não. Isso num é vida. Como será a vida fora dali? Nota 1 Durantes os meses de novembro e dezembro de 2012, o grupo de pesquisa Som e Sentido do curso de comunicação social da UFMG em parceria com a Associação Imagem Comunitária (AIC) realizou uma oficina de rádio junto aos jovens atendidos pelo Centro de Atendimento e Proteção ao Usuário de Tóxicos (Caput) de Belo Horizonte. “Segura o B.O.” é um dos raps de autoria desses jovens gravados em uma das atividades da oficina. Caminhando 19 D ecidi continuar a busca, com a companhia de minha antiga conhecida. Dessa vez visitaríamos uma Comunidade Terapêutica que recebe homens adultos na cidade de Santana do Paraíso. Combinamos de nos encontrar no caminho, no centro de Ipatinga. Era feriado e as ruas do centro, sempre muito agitadas pelo comércio, estavam desertas. Encontrei minha acompanhante conversando com um rapaz. Tinha 17 anos, era alto, boa aparência, cabelos bem curtos, pintados de vermelho sob um boné velho, mas bem conservado. A roupa combinava com o boné, camisa e bermudão bem gastos, mas limpos. Um piercing na sobrancelha. A assistente social me chamou para fora do carro e nos apresentou. Arrisquei um aperto de mãos, que ele consentiu um pouco desconfortável. Falava pouco. Tentou sorrir, mas parecia uma tarefa muito árdua, então desistiu. Antes de nos despedirmos, ela perguntou onde poderia encontrá-lo para tomarmos um suco qualquer dia, ele respondeu que estava morando nas redondezas da rodoviária e que estava sempre por lá. Despedimos-nos. Ele novamente ensaiou um sorriso mal-sucedido, mas dessa vez dedicou um último olhar atencioso, quase terno para ela. Atravessou a rua, virou à primeira esquerda e não o vimos mais. A assistente social explicava de onde conhecia o garoto, a voz transmitia certa calma, mas os olhos vermelhos falhavam ao tentar conter as lágrimas. Ela fora responsável por uma Casa de Passagem que recebia garotos em risco pessoal ou social, por curtos períodos de tempo. Um desses garotos era o rapaz que ela encontrou - ele passou por diversas Casas Abrigo, mas não permaneceu em nenhuma delas. Fazia um bom tempo que não se viam. Sem nunca ter conhecido o pai, vivia um relacionamento conturbado com a mãe em casa. As coisas se tornavam ainda mais complicadas quando ela trazia um novo parceiro. Depois de sofrer uma série de abusos dentro da própria casa, ele resolveu fugir, foi morar na rua. Não demorou muito para conhecer as drogas, se tornou usuário e aviãozinho para sobreviver. Ali na rua continuou sofrendo todo tipo de violência, até que um dia foi recolhido pelo Conselho Tutelar e, numa medida protetiva, foi encaminhado a Casa de Passagem. No começo, a comunicação com ele foi difícil, era muito fechado, e agressivo. A agressividade era resultante, também, da abstinência da droga. Depois de um tempo na Casa, tornou-se mais sociável, companheiro, já se aproximava, era prestativo, aos poucos foi se adaptando à rotina. Tornou-se o defensor dos menores e das cuidadoras. Apesar de não ter conhecido muito afeto em sua vida, sabia ser carinhoso e depois de tudo, não parecia guardar consigo nenhuma raiva de seus agressores. Minha acompanhante desistiu, deixou as lágrimas virem e com elas a sensação de impotência. O garoto saiu da Casa de Passagem de volta para a mãe e depois disso, o garoto e a assistente social nunca haviam se reencontrado, até aquele dia. - Algumas pessoas não dão conta de ficar num lugar fechado, limitado, numa casa. Elas estão tão feridas, tão traumatizadas que preferem correr o risco de sofrer alguma violência na rua, do que sofrer as mesmas violências dentro de casa. Aquele rapaz, de volta a casa da mãe, não agüentou muito tempo. Voltou para as ruas. - Mas dá pra ver que, mesmo morando na rua, usando pedra, ele continua aquele mesmo menino respeitoso, atencioso que a gente recebeu lá na Casa de Passagem. Eu preciso fazer alguma coisa por ele, mas o quê? Nós já chegávamos a Santana do Paraíso. … Chegamos à Comunidade Terapêutica Monte Moriá, à procura de Osvaldo, o coordenador do projeto. Um dos recuperandos que nos recebeu ao portão informou que ele havia saído havia alguns minutos, mas logo estaria de volta. Ele nos acompanhou até o refeitório, onde poderíamos aguardá-lo. Tudo era muito simples ali. Logo ao lado do portão de entrada um cômodo pequeno coberto por um telhão funcionava como dormitório, à direita e à frente duas construções igualmente simples e antigas. À direita, uma pequena casa abrigava o coordenador, sua esposa e três filhos, à frente um outro dormitório tão modesto quanto o primeiro, onde os beliches se multiplicavam e davam a impressão de que o lugar era ainda menor. A alvenaria por todo o espaço da Comunidade revelava as marcas do tempo que passou desde que os primeiros grupos se recuperaram ali. O refeitório e a cozinha, com seu fogão à lenha bem rústico, eram anexos ao segundo dormitório. Três mesas grandes e improvisadas se espalhavam pelo espaço, rodeadas de cadeiras de plástico e de madeira. Sentamos para esperar por Osvaldo. Enquanto isso, o rapaz que nos recebeu puxou conversa. Disse de onde era e falou um pouco sobre a obra que se erguia lentamente ao lado do refeitório. - É o novo dormitório. Nós mesmos é que estamos construindo - contou com orgulho. De fato a obra era promissora. Com ela também se erguia uma expectativa em todos ali, parecia a promessa de um novo tempo, ainda que alguns deles não fossem desfrutar das novas instalações, viam-se como parte importante daquela obra. Depois de perderem tanto, a sensação de estarem novamente construindo algo era recompensadora. A conversa continuou e ele nos contou sobre a horta que cercava os fundamentos do “novo dormitório” ao fundo e à esquerda, mas não era a área dele. Quem entendia melhor era o cozinheiro. Apontou para um homem na faixa dos quarenta que acabava de sair da cozinha. - Esse aí é cozinheiro mesmo. Faz umas comidas boas demais pra gente! O cozinheiro se apresentou. Era, na verdade, padeiro e confeiteiro. Sentou-se próximo a nós. Tinha um sorriso imenso num rosto redondo e pequeno. De repente um menino veio correndo e o abraçou. Era dia de visita e o homem recebia o pai e o filho naquele feriado. A criança assentou-se próxima, o sorriso já não cabia naquele rosto pequeno. Descreveu-se como um apaixonado pela profissão, sabia fazer de um tudo na cozinha, “até bolo de casamento”, mas também era um bom pedreiro e marceneiro. - Na vida a gente tem que saber de tudo um pouco. A gente não sabe o dia de amanhã, não sabe o que vai precisar fazer pra sobreviver. A campainha tocou e um carro atravessou o portão. Era Osvaldo. Seguimos para a casa do coordenador, que nos recebeu na varanda, junto à esposa. Ela nos viu e tratou de ir passar um café. Um dos filhos saiu de dentro da casa e nos cumprimentou. Era apenas um dos trigêmeos do casal. Eu me perguntava como todos eles se distribuíam naquela morada tão pequena. A esposa nos servia o café elogiando o filho, que nos deixara para jogar bola com os recuperandos no campinho desajeitado da instituição. - Esse aí diz que quando o pai for bem velho, é ele quem vai cuidar aqui do projeto. Ele vive no meio dos homens aí, dá conselho pra eles... Agora mesmo foi jogar bola com eles. Osvaldo me explicou como funcionava a Monte Moriá em meio às dificuldades e contou um pouco de sua história. A Comunidade Terapêutica foi fundada pela Igreja Assembleia de Deus de Ipatinga. Ali, a Assembleia é uma igreja grande, que tem em sua convenção várias igrejas filhas, é bem estruturada física, organizacional e financeiramente. Ela fundou o projeto há mais de 20 anos. Osvaldo também passou pelo processo de recuperação ali. Era jovem, família bem estruturada, tinha um emprego promissor e um bom salário. Começou com o baseado, seguiu para a cocaína, que logo ocupou todo o seu tempo, suas forças e seus planos. Passou pela Monte Moriá e conseguiu deixar as drogas. Trabalhou um tempo fora, mas voltou e coordena o projeto há cerca de 18 anos. Atualmente, a Comunidade sobrevive em parte com um apoio financeiro da Igreja, mas também conta com doações. Aos internos não é cobrado nada pelo tempo que passam ali (nove meses para a recuperação). Os familiares com condições contribuem como podem, mas a maioria deles chega apenas com a roupa do corpo. A recuperação naquela instituição segue a proposta tradicional de uma comunidade terapêutica fundamentada no tripé trabalho, fé e disciplina. De acordo com essa filosofia, o dependente deve permanecer ocupado boa parte do tempo, o que ajuda a superar os momentos de fissura e a reabilitação do organismo sem fazer uso de remédios. - Se o cara vem pra cá é porque ele quer sair daqui limpo. A terapia aqui ó (apontou para a obra), é trabalho. O cara chega aqui tem dificuldade pra dormir, a gente “taca” trabalho nele. Pronto. Ele dorme a noite inteira. Agora, na hora do desespero, não tem remédio, não tem ocupação, não tem médico, nem psicólogo que segura o cara não. Só Jesus é que liberta. Se o cara não tiver muito decidido e não tiver muita fé, ele não permanece aqui não. Nem aqui, nem em clínica nenhuma. O que o sujeito mais precisa é esperança. Depois dos primeiros dois meses, os recuperandos podem sair aos finais de semana e feriados para visitar a família, mas essa saída é sempre orientada e precisa ser permitida pelo coordenador. Perguntei se muitos deles vieram para a Monte Moriá por problemas com o crack: - Ah! Praticamente todos aí. Na minha época não existia isso não, fui ouvir falar de crack muito depois de recuperado, mas hoje é um ou outro só que “tá” aqui por problema com alcoolismo, ou outra coisa. A maioria usou crack. Começa com um baseado achando que não vai viciar, que é natural, não faz mal nenhum... Até não vicia mesmo, mas daí um dia dá uma cheirada, no outro fuma uma pedra achando que não vai viciar também... Aí acabou. Encerramos a conversa com o sol já se pondo. Deixamos que Osvaldo continuasse sua rotina e fomos assistir a “pelada” no campinho nos fundos da Comunidade. A todo o momento a campainha soava e um visitante diferente entrava. Eram rapazes da vizinhança que vinham religiosamente jogar uma bola com os recuperandos. O jogo corria com muitos “frangos”, pouca técnica, nenhuma grande revelação e muitas gargalhadas. Eu me senti estranhamente à vontade ali. Decidi então que iria contar as histórias daquele lugar. Domingo, 26 09 de setembro -O povo vê viciado na rua, até desvia pra não encontrar com eles na calçada, porque acham que a gente já vai roubar. Às vezes a gente tá lá fumando e num tá nem prestando atenção nas pessoas passando, nem tá vendo que o cara tá vindo e eles desviam com medo. - Mateus conta isso como a constatação de um fato comum e recorrente, mas não é difícil perceber a decepção em sua voz, que ele carrega, aliás, desde os dias em que fumava pedra nas calçadas. … A capacidade que as crianças têm de brincarem alheias a qualquer adversidade, penso, é uma dádiva. Não quer dizer que não sofram com os efeitos, mas sua capacidade de julgamento, felizmente, não lhes impõe as rígidas limitações dos preconceitos e não lhes mantêm presas às circunstâncias. Naquela tarde de domingo quente e árida, por onde passavam, duas crianças levantavam muita poeira, rolando pelo mato seco que restou de um inverno praticamente sem chuvas. Uma menina nos seus seis anos de idade e o irmão aos quatro. Crianças se divertem das maneiras mais simples e estranhas. No campinho de futebol, com um gramado marrom muito ralo e castigado, eles jogavam terra em suas cabeças às gargalhadas como se tomassem banho. O pai era um rapaz esguio de pele clara com um rosto colorido por sardas, e semblante juvenil. Ele assistia a tudo incrivelmente satisfeito, com um sorriso bobo no rosto. Era possível ver aquele mesmo sorriso nas faces de mais oito outros recuperandos que, vez ou outra, interrompiam o bate-papo no refeitório da Comunidade Terapêutica para assistir a cena. Mateus revelou ter mais um filho, um bebê que ainda não havia completado um ano de idade, era difícil acreditar sendo ele tão jovem, 27 anos. Ele lembra com prazer de suas melhores memórias da infância, sempre passadas junto do pai. Ele ensinou Mateus a pescar e andar de moto ainda muito novo. Parecia que nada no mundo seria capaz de separar aqueles dois, sempre que podiam estavam juntos. - Eu ia até trabalhar com ele. Mas um dia a adolescência chegou e Mateus começou a acreditar que estava perdendo muito tempo com seu pai. - Meu pai era meu herói. Só que aí eu cresci. Ele me corrigia e eu pensava: “Nossa meu pai é um careta”, aí eu fui me afastando e esse foi meu problema maior. Eu não devia ter me afastado dele. Mateus tinha 12 anos quando começou a trabalhar. Dividiu-se, então, entre os estudos e o trabalho. Terminava sua rotina bem tarde, quando já não havia outras crianças para brincar, logo passou a andar com gente mais velha. - Eu chegava tarde, não tinha mais ninguém brincando de birosca, jogando videogame... Não sei fazer nada disso, não sei fazer um papagaio. Mateus parou de pescar com seu pai e foi pescar com outras pessoas que faziam coisas que seu pai nunca fizera. Quando se deu conta, nem pescava mais. Aos quatorze aprendeu a beber, logo depois a fumar. Apresentaram-lhe um baseado e uma profissão, foi trabalhar como mecânico, e como mecânico conheceu o crack. Aos 16, ele desmontava carros e preparava-os para pessoas que buscavam a pasta base de cocaína em Belo Horizonte. Conseguia grandes quantias de dinheiro fácil, mas não fazia ideia da degradação que o crack poderia causar. Com a proposta de ganhar ainda mais dinheiro, passou a ajudar no preparo das pedras. - Eu misturava na maconha e experimentava pra ver se tinha ficado boa. Ganhava muito dinheiro, minha vida era boa demais! Só que depois veio o lado ruim do crack, que é a realidade. O quê que o crack é na realidade, eu só conheci depois: o crack só destrói. Você vive num mundinho ali afastado, só da droga. Mateus já não conseguia conviver com o pai, com mais ninguém. Com o uso constante, ele experimentou longos períodos de ausência na família, na vida dos filhos, nele mesmo. Logo descobriu como é ser tratado como uma pedra no meio do caminho das pessoas que percorrem as calçadas. Perdeu o controle de si mesmo. - Domínio próprio. Eu não conseguia me dominar. Eu tinha um compromisso com a minha família, não queria dar desgosto pra eles, mas eu não conseguia me dominar. O dinheiro ia todo pra droga, eu não conseguia me controlar. Mas ser viciado nem sempre significa ser esquecido, nem esquecer. É a segunda vez que ele passa pela Monte Moriá. E a família nunca se afastou de fato. Naquele domingo vieram o pai, a irmã, o cunhado e os dois filhos maiores. Os parentes conversavam com os outros internos e caminhavam pela comunidade terapêutica aparentando bastante familiaridade, afinal, tornaram-se visita frequente para as refeições do fim de semana nos últimos meses. Os almoços durante os finais de semana ali não diferem muito das refeições dominicais de boa parte das casas brasileiras, a não ser pelo fato de reunirem sempre mais de uma família. Todos que aparecem para a refeição são muito bem vindos. Mateus se apresenta orgulhoso como um dos cozinheiros. As visitas são esperadas com grande ansiedade, a essa altura dos acontecimentos o apoio de parentes e amigos é o que há de mais importante para os usuários em tratamento, por vezes é a única importância que lhes resta. - Ah! Meu pai é meu melhor amigo. Meu único amigo. Ele me apóia, quer ver meu bem, ele quer que eu tenha uma vida normal. É tão simples, mas é tão difícil ao mesmo tempo. Não há quem possa garantir que os nove meses que passará na comunidade terapêutica serão, enfim, suficientes para que Mateus supere os problemas com a dependência. Ele acredita firmemente que sim. Mas o olhar dele para os filhos naquele refeitório chega a ser capaz de calar essa incógnita e fazer as cobranças e angústias do futuro esperarem em seu devido lugar. Aquele olhar é um olhar diferente dos que vemos nas calçadas, olhar de quem é aceito, de quem sabe que é aguardado, de quem está redescobrindo que faz parte de algo muito maior que ele próprio. É o mesmo olhar que tem seu pai, um senhor grisalho na faixa dos sessenta, alto como Mateus, semblante tranquilo, divertido, conversa fácil, o mesmo sorriso do filho. Olhar bobo que têm os pais que olham por seus filhos, enquanto eles brincam muito mais preocupados com suas peraltices, que com o futuro, ou com os motivos que levam os adultos a desviarem nas calçadas. A simplicidade das crianças é, de fato, uma dádiva! … - As pessoas têm preconceito até com quem tá aqui na recuperação, acham que aqui só tem marginal, não passam nem na porta, porque acham que vão entrar aqui e encontrar uns monstros. Você veio aqui um dia que meus filhos vieram me visitar, eles ficam o tempo todo correndo aqui pelo espaço afora, brincando no meio do pessoal totalmente à vontade, você acha que se nós fossemos monstros eles estariam fazendo isso? Viajante 33 -M inha mãe chegava de tarde do serviço, aí sobrava sempre um suco, um chup-chup ou um salgado. Ela falava: “Não! Vocês não tavam trabalhando, vocês tavam brincando”... Daí eu falei pro meu irmão: “Oh Junin, vamos catar rebite de carreta pra gente vender, aí quando chegar de tarde, se sobrar algum salgado da mãe a gente compra dela”. … Flávio é um viajante. Mineiro, nos primeiros anos de vida perdeu o pai e a família precisou se mudar para o Rio de Janeiro. Lá a mãe fazia quitandas e as vendia na rua. Aos nove, ele começou a ajudá-la nas vendas, percorrendo ruas e vielas da cidade. Apesar da imensa vontade de passar seus dias brincando, já entendia a importância das quitandas na sobrevivência da família e viu nos rebites de alumínio um meio de ajudar na renda e investir no trabalho da mãe. Catando rebites de carreta, chamaram o Junior, seu irmão mais velho, para trabalhar numa oficina de caminhões. Flávio, seu fiel seguidor, teria de vir junto. - Lá todo mundo fumava um baseado, só que eu não queria mexer com isso não. Aos 15 apareceu uma oportunidade e os dois irmãos montaram sua primeira oficina. Flávio me mostrou a foto antiga de quando colocaram a mecânica para funcionar. Trabalhavam apenas com carretas e as marcas deixadas nelas pelas longas jornadas que faziam: - Esse aqui é o meu maior orgulho! - Ele dizia apontando para a foto da oficina. Flávio carrega a melhor parte de sua história naquele álbum de papel velho, que aos poucos está cedendo com o peso de tantas fotos. Tem até da primeira namorada, que ele deixou no Rio quando abriu sua segunda oficina, em Aparecida do Norte, São Paulo. Para mim soou como uma daquelas paixões inesquecíveis. Fico olhando para ele e pensando: como o corpo humano, tão pequeno e tão frágil, dá conta de trazer consigo toda a complexidade do ser e o peso de tantas histórias e de tantos caminhos. Flávio é a materialização disso, não que ele seja muito pequeno, ou pareça muito frágil, mas, a cada conversa, eu era levada a um lugar diferente de sua vida e a um lugar diferente dentro dele mesmo. - No começo do ano agora eu vim lá de Penaforte [Ceará] a pé e de carona em carreta, pegando um pedacinho aqui, outro ali... E hoje eu tô aqui. Ainda me lembro da primeira vez que nos vimos: ele havia chegado há apenas dez dias na Monte Moriá. Um rapaz moreno de cabeça raspada, bem magro, que aparentava estar em seus 20 e poucos anos (mais tarde me surpreendi por serem na verdade 32). Ficou sentado num canto do refeitório, sisudo, silencioso, cabeça baixa, mas olhos espertos, atentos. Depois de deixar sua primeira impressão, veio sentar-se perto de mim. De sisudo passou a questionador. Estava investigando. Fez-me dezenas de perguntas, sorriu para todas as minhas respostas como se não fossem suficientes. Inclinou-se um pouco na cadeira para parecer relaxado, tentando esconder a tensão de quem ainda não sabia se estava em terreno amigo, testava a mim e a todos ali. Resolvi jogar o mesmo jogo, Flávio não demorou a perceber e baixou a guarda, achou engraçada minha tentativa desastrada de imitá-lo, começou a compartilhar suas histórias e não parou mais de falar. Em Aparecida do Norte, bem próximo à basílica, o mecânico fumou sua primeira pedra. Tinha 19. Aos 12, seus colegas da oficina lhe ensinaram a cheirar tíner. Depois de relutar por um tempo, também experimentou alguns baseados. A mãe logo percebeu e ele desistiu daquelas viagens curtas, preferiu não se envolver com mais nada. Dos 15 aos 19 ficou por conta apenas de suas carretas, a oficina - seu “maior orgulho” - e sua namorada. Mas nunca havia sonhado em ganhar tanto como em Aparecida. Naquela época, uma viagem pelo mundo das pedras lhe pareceu uma boa ideia. Consumiu-se tanto com as novas “viagens” que já não conseguia parar por um tempo na realidade. Logo viu seu “maior orgulho” evaporar junto à fumaça de seus cachimbos. No ano 2000, pegou a estrada de volta a Minas para reencontrar seu irmão, mas as pedras pareciam acompanhá-lo e começaram a ser traficadas também no interior. Flávio não tinha mais oficina, não tinha mais orgulho, não tinha mais paixão, não tinha mais a mãe. Restou-lhe uma tia distante, um irmão – que ele quer bem como a um pai – e três irmãs já casadas. Todos tentavam compreendê-lo, mas suas viagens só tinham lugar para um. - Meu irmão um dia me chamou e falou: “Flávio, você quer morrer? Por que se você quiser morrer, você pode continuar assim”. Um pastor me ofereceu uma oportunidade de ir para um centro de recuperação, mas eu não queria saber de mais nada. Depois de me mostrar as fotos, contou-me envergonhado que deu “muito serviço pra polícia” da cidade onde vivia no interior de Minas. Preso 17 vezes acusado por furto, sempre saía da cadeia, pois nunca conseguiram ligá-lo aos crimes. A família acreditava que em breve o encontrariam morto, mas ele não queria mesmo saber de mais nada. Cinco dias depois de ouvir a proposta do pastor, um traficante com quem tinha dívidas mandou matá-lo. Quando se deu conta da situação, Flávio fugiu. Na perseguição, seu algoz tropeçou e deixou cair a arma. Ele aproveitou a oportunidade para pular um muro, sair da mira e novamente colocar o pé na estrada rumo a uma história diferente. Procurou o irmão e o pastor e pediu ajuda, os dois acompanharam-no à Monte Moriá. Em nosso segundo encontro, Flávio me esperava ansiosamente, guardava uma novidade que já não cabia nele: pela primeira vez recebera a visita de Junior. Dessa vez não era mais o rapaz magro, desconfiado e desconfortável que chegou à comunidade terapêutica, se portava como um velho conhecido de todos ali, tão familiarizado com o local que já me recebia com certo sentimento de pertença. Convidava-me a sentar e me dizia para ficar à vontade. - Depois de muita espera esse fim de semana eu recebi visita. Veio meu irmão e o pastor que me trouxe pra cá. Eles passaram o dia aqui comigo... Se eu fiquei? Fiquei alegre demais, mais de um mês aqui e eu ainda não tinha recebido nenhuma visita. Todo mundo recebia, menos eu. É claro que aqui é uma família, a visita dos outros a gente recebe pra gente também, mas meu irmão... Nossa! A gente precisa muito desse apoio. Na semana em que me mostrou as fotos, ele completou três meses de sua primeira passagem pela recuperação. Na primeira passagem, geralmente a maioria mostra bastante firmeza ao longo dos primeiros dias, mas a fissura, a dependência psicológica e a falta de uma resolução pessoal mais profunda sobre a situação, normalmente fazem com que essa firmeza na decisão de “ficar limpo” se esvaia ao longo das semanas. No entanto, sempre encontro Flávio cada vez mais resoluto diante da possibilidade da recuperação, mesmo com as dificuldades que encontra e do pouco apoio que recebe da família ali – até aquela data o irmão lhe fizera apenas duas visitas. Ele diz que o maior incentivo para concluir os nove meses vem da amizade dos companheiros da Monte Moriá. - Uma mão lava a outra, as duas lavam o rosto e vamo embora! Eu não quero voltar aqui pra me recuperar mais, eu quero voltar aqui pra trazer um futuro pra eles. Nem que seja de bicicleta eu volto aqui. Flávio continua viajando, em nossas conversas viaja para o futuro, compartilha seus sonhos e faz planos com a segurança de quem já começou a vivê-los. Ele escolheu continuar sua caminhada por uma realidade em que ele não esteja sozinho, em que possa perceber o mundo a sua volta, afinal sempre gostou mesmo é de viajar com os pés no chão. - Porque eu sou simplesmente um ex-doido... Eu não sou doido mais, beleza?! Inquietude 38 -E u não me arrependo de ter passado por tudo que eu passei. Eu aprendi a ser humilde, eu deixei de ser egoísta, aprendi a ajudar as pessoas. Antes eu era muito nariz em pé, achava que eu precisava ter muita coisa pra ser alguém. Depois de tudo que eu passei, eu vi que a gente num precisa de nada disso pra viver. Quando eu tava lá viciado na pedra é que eu aprendi a ajudar os outros. … Durante as longas conversas que tinha com os recuperandos da Monte Moriá, um deles não conseguia se conter. Sempre cheio de perguntas e pontos de vista, confrontava a todos nós, ora alternado as posições dos braços apoiados na mesa, ora balançando-se na cadeira, ora caminhando até o bebedouro. Jason tem um daqueles espíritos inquietos, além de ser grande apreciador da curiosidade. Nos anos memoráveis de sua juventude, a característica que o definia era a capacidade de não se deter em nada, vivia para desfrutar as aventuras do dia seguinte, saía sempre a sua procura, em qualquer lugar, e não parava até encontrá-las. Em suas próprias palavras, ele “necessita de adrenalina”. Ainda bem criança, deu um grande susto na mãe quando ela estava prestes a dar a luz a seu irmão: ele foi atropelado – segundo ele mesmo - porque estava “fazendo arte” na rua. Esse episódio da infância foi o primeiro de uma série de pequenos acidentes e atropelamentos. Perambulava pelas ruas até a madrugada em busca da tal adrenalina, pegava carona em traseiras de ônibus, participava de competições de skate, mountain bike e patins, experimentava tudo que pudesse lhe trazer aquela sensação. Jovem de classe média, tudo o que tinha nunca era suficiente, ele não conseguia parar por nada, em lugar algum, por ninguém. O pai bem que tentou, chamou-lhe à atenção um dia e disse que com uma vida tão cheia de riscos iria acabar morrendo. Jason encarou como um novo desafio. Uma noite, de volta para casa depois de suas habituais aventuras, deu carona para algumas moças. Elas lhe ofereceram uma miscelânea de substâncias, entre elas, uma que nunca havia provado. Gostou. - Eu não sabia o que eu tava usando, depois que eu fui saber. Na minha época não tinha conscientização igual tem hoje. É uma droga nova, apesar de ser muito falada, mas as pessoas hoje em dia não sabem com o quê que elas estão lidando. A cada dia que passa, eu percebo mais que é muito difícil, não de parar, mas de compreender o poder que ela tem. A droga o parou. O consumo crônico de crack fez seu ritmo diminuir, bem como seu interesse por aventuras. Arranjou um substituto de peso para a adrenalina. Com a dependência o corpo parou de reagir como de costume, já não conseguia pensar com tanta clareza, não conseguia sequer fazer as perguntas de que tanto gostava, viu sua insaciável curiosidade se calar. Passou a depender do tempo e da atenção das pessoas pelas quais ele nunca se deteve. Logo ele, tão dono de si e senhor das situações mais arriscadas, foi perdendo a consciência dele próprio. O crack fez Jason parar para ver o mundo de um ângulo que ele nunca pensou em conhecer. Não suportou perder o próprio controle. Com a ajuda da mãe foi procurar tratamento. - Minha mãe ficava me mostrando as fotos das viagens dela pelo mundo inteiro e falando assim: “Tanto lugar bacana pra você ir e você fica aí gastando rios de dinheiro de esquina em esquina. Nossa! Você é careta demais!”. Ao todo, foram três internações em hospitais psiquiátricos e cinco passagens por comunidades terapêuticas. Esta é a sexta e pela primeira vez ele vai concluir o período de tratamento. As idas e vindas eram justificadas pela falta de interesse. Jason já não gostava do crack, sua falta de controle sobre a dependência fazia-o sentir-se num verdadeiro inferno - “independente de estar em chamas ou não” - mas, para a inquietude de seu espírito, isso ainda não era suficiente, faltava-lhe uma motivação maior para permanecer. A motivação apareceu três meses antes de entrar na Monte Moriá. - Eu nunca levei tratamento a sério. Eu só fui levar agora, porque a minha filha nasceu... Ela vai fazer um ano agora em dezembro, quando ela tinha três meses eu vim pra cá. Eu tenho muito medo de frustrá-la à toa, né! Porque droga é à toa... Acabou a diversão na verdade. À medida que o crack deixava seu organismo e sua mente, a necessidade pela adrenalina retornava. Sua antiga curiosidade também voltou e com ela as múltiplas, incansáveis e adoradas perguntas que povoam sua consciência. Os colegas da Monte Moriá o chamam de psicólogo, quando cisma com um deles inicia uma maratona de questões que só se encerra em dois ou três dias. - No início a recuperação era só pela minha filha, agora eu tô curioso em parar, a verdade é essa. Entrou na minha mente: “Você não vai conseguir ganhar disso não?”. Eu quero conseguir vencer, porque pra mim é um desafio. Eu preciso conhecer o outro lado da droga que é a recuperação. Jason não se intimida em responder questões complicadas. Ele me explicou que dessa vez vai concluir os nove meses, pois aprendeu a fazer as perguntas certas em seu estudo sobre seu próprio vício, acredita que são elas que vão conduzi-lo para longe da dependência. Elas e o curso de paraquedismo que pretende fazer com a mãe quando deixar a Monte Moriá. - Pode perguntar mesmo! Não tenha vergonha. Eu me sinto muito a vontade com perguntas difíceis. Histórias que as pedras 44 não contam -M uitas clientes falam comigo: “Não acredito que você passa por tudo isso e continua rindo, continua brincando”. Não é nem tão sofrido pra te falar a verdade, não é tão sacrificante, tão pesado, não é tão assim... A gente vive. … Adélia é uma jovem microempresária de Ipatinga que trabalha com atendimento ao público. A relação com seus clientes facilmente se torna uma relação de amizade graças à sua extroversão, seu carisma e suas gargalhadas altas e divertidas que representam, pelo menos, 50% das conversas com ela. A profissional da beleza é capaz de tornar engraçados os assuntos mais complexos, até as mazelas parecem perder todo seu peso quando contadas por ela. Casada há nove anos com Carlos, um homem igualmente jovem, menor que a esposa e bem mais magro, há oito tiveram o carinhoso e hiperativo Davi. Quem é atendido pela esfuziante Adélia, dificilmente imagina que seu relacionamento familiar se confunde com os caminhos das pedras em Ipatinga. Na verdade, é difícil imaginar muito mais por seu estado de espírito, que pela atual situação do consumo de crack na cidade. - Eu procuro segurar a onda pra não deixar ele mais nervoso, pra ele não sair e usar o crack, porque o crack tá aqui na praça, ele tá aqui do lado. É que nem eu te falei: é tão maquiado, é tão tampado que eu achava que eu era a única mulher casada que tinha um marido que usava crack, aí conversando com um, conversando com outro... As minhas clientes: ou é um irmão, ou é um primo, ou é o tio, ou é um pai. Todas com poder aquisitivo bom, num é pobre, sabe? Aqui na rua tem cinco - eu fiquei de boca aberta! - tudo com dificuldade assim. Uma vizinha nossa, o neto apareceu lá e quebrou a casa toda... É muito difícil! Certa vez, numa busca pelo marido, Adélia visitou diversas bocas de fumo e alguns dos traficantes conhecidos da cidade. Era aniversário de Davi. Carlos pediu um adiantamento do salário para comprar um presente para o filho. Ele saiu do trabalho, foi ao centro comercial comprar o presente e depois disso Adélia não soube mais do marido. À noite, a festa aconteceu sem a presença do pai. Ao aniversário de Davi se seguiram três dias sem notícias do marido. Adélia, então, ligou para o cunhado e os dois saíram à procura de Carlos. A busca começou pelo bairro onde moravam antes de Adélia abrir sua empresa, lá disseram que ela deveria procurar pelo “Psicopata”, com quem Carlos costumava fumar. O apelido provocou a curiosidade da empresária, que descobriu sua razão: os pais de Psicopata foram trabalhar em Portugal - de onde nunca voltaram - e deixaram o filho com a avó, uma senhora enferma que depende de ajuda até mesmo para tomar seus remédios. O rapaz logo se tornou adicto. Desesperado por se livrar do vício, um dia trancou-se dentro de casa e jogou a chave pela janela, mas a fissura foi tão violenta que ele ateou fogo no próprio corpo. - Ele se queimou todo, ele é todo deformado... Foi pra não usar droga. Ele tentou... Mas ele tentou de uma forma errada. Na casa de Psicopata informaram que o Carlos não passara por lá, indicaram o nome de outro usuário e Adélia bateu de porta em porta, até chegar à casa de um traficante apelidado de “Foguinho”. - E eu achando que o traficante era um homem mais velho, o Foguinho não deve ter nem 17 anos. Foguinho lhe deu o endereço de uma propriedade usada como boca de fumo. Quando chegaram, Adélia e o cunhado precisaram pular o muro. Dentro da propriedade o cheiro era pútrido, os usuários urinavam e defecavam naquele mesmo chão onde se multiplicavam latas, sujeira e corpos. - Aí eu perguntei pra eles onde tava o Carlos: “Ah! Ele já foi embora”. Adélia seguiu quase sem esperanças para a região central da cidade, que havia algum tempo, concentrava grande número de usuários. Ela sabia que quanto maior o período que o usuário passa consumindo, menores são as chances de ele voltar. Procurou o marido debaixo de uma ponte que liga o Centro a um bairro vizinho. Lá, uma mulher grávida com os seios à mostra, fumava de cócoras observada por duas crianças assentadas num sofá velho. Mais abaixo, vários homens vestidos com uniformes de diferentes empresas da cidade, como a Usiminas e a Sankyu, acendiam seus cachimbos e latas, assentados à beira do rio. - Eu chegava pra eles e perguntava: Você viu um rapaz assim e assado? “Aqui? Não. O quê ele tá fazendo aqui?”. É que ele usa drogas. “Nossa! Ele usa drogas?”. O cara com a boca toda queimada! Ele vira pra mim e fala que tá indignado porque o outro tá usando droga... O quê que esse cara tá fazendo ali? E são pessoas normais, não são marginais não, são pessoas que trabalham e parece que passam o resto do dia ali. O crack alastrou, pegou todo mundo. Se a gente não vigiar, pega até a gente. Carlos ficou sabendo que a esposa o procurava e voltou para casa. Apesar de estar sujo e faminto, nunca admitiu por onde andou durante aqueles dias. Voltou trazendo os presentes que comprara para o filho. Adélia casou-se sem saber da adicção do marido, os sinais só apareceram nos primeiros meses da gravidez de Davi. Carlos ficava constantemente alterado, pupilas muito dilatadas e quantias de dinheiro começaram a sumir do caixa da loja do casal, sem motivo aparente. A esposa começou a procurar uma causa, então achou um pequeno embrulho com maconha. Um tempo depois do nascimento de Davi, Carlos começou a guardar latas vazias, Adélia estranhou: - Pra quê que precisa de lata de refrigerante. Você sabe pra quê? Pois é, eu não sabia. Quê que esse cara tá fazendo com lata? E nisso eu fui pesquisando, pesquisando, pergunta aqui, pergunta ali... Aí eu comecei a perceber que os valores que su- miam eram mais altos, ele ficava mais alterado do que de costume. Aí começou a mentir, começou a não dormir em casa, pra ficar na loja, falar que tava trabalhando até mais tarde, na verdade ele tava consumindo droga até tarde com os colegas dele. Em alguns meses a loja faliu, Adélia foi trabalhar num salão de beleza, Carlos estava desempregado e as discussões eram constantes. Aos sumiços de Carlos, somaram-se pequenos furtos dentro da própria casa. Ele costumava voltar das idas às bocas tarde da noite e encontrar a casa fechada, então pegava o que estivesse do lado de fora para transformar em pedra, um dia foi o botijão de gás, num outro uma bicicleta do casal. O curioso é que ele nunca mexeu nas coisas de Adélia. Geralmente, antes de sair para o trabalho, ela deixava dinheiro bem à vista para uma eventual despesa da casa, ele nunca tocou no dinheiro. Os conhecidos sempre questionam o motivo de a empresária manter o casamento, ela me contou isso antecipando minha pergunta, que agora me soava um pouco óbvia. A possibilidade foi cogitada diversas vezes, mas quando Adélia finalmente explicou a lógica que a mantém unida a Carlos, fiquei constrangida com meu questionamento. - Eu não quero ter na minha mente que eu poderia fazer alguma coisa por ele e não fiz. Tantas pessoas carregam problemas de outras pessoas, que nem são da mesma família e eu não vou fazer isso pelo meu marido? Se eu não consigo fazer isso por alguém que tá dentro da minha casa, eu não vou fazer isso por ninguém. É muito fácil você amar quem tá bem, vai amar quem tá mal... Ele é digno disso. Eu acho que ele não é digno de ficar na rua, porque se eu me separar dele, vai ser mais um. Adélia e Davi são a única família de Carlos. Aos doze anos, ele e os dois irmãos assistiram um processo de divórcio conflituoso entre os pais. Nenhum deles tinha casa, os três filhos, então, de mês em mês migravam entre as casas dos tios e dos avós. Logo após a separação, a mãe começou a namorar um rapaz bem mais jovem, o pai casou novamente e construiu outra família, cada um foi viver sua vida e os filhos ficaram perdidos e sem referência com a separação. A mãe de Carlos divorciou do pai por causa do problema dele com alcoolismo. Não demorou muito e o filho começou a se consolar com baseados e muito pó. A família só se deu conta no fim do ano letivo, quando foram avisados que o garoto não apareceu na escola durante meses. Mas cada um dos pais seguia envolvido com sua própria vida, sem dar muita atenção aos conflitos dos filhos. A mãe faleceu aos 42 anos, pouco mais de uma década depois da separação. O pai é vivo. Ainda alcoólatra, ele dorme nas ruas e calçadas do bairro onde sempre morou em Vitória - cidade natal de Carlos - vive de favor dos outros. Por se tratar de um bairro de moradores mais antigos, todos o conhecem e ajudam, dão comida, roupa, banho. Os outros dois filhos tomaram seus rumos para fora daquela história. Casaram-se, constituíram suas próprias famílias, mantém pouco contato e preferem não falar sobre o passado. Quando começaram a namorar, Adélia não tinha muitas perspectivas, foi Carlos quem a incentivou a estudar. Sua família não tinha condições de pagar um curso, ou uma faculdade, então o namorado descobriu uma instituição que oferecia cursos técnicos gratuitamente e estimulou Adélia até que ela se inscrevesse. Depois do nascimento de Davi, o marido se ocupava do bebê para que a mãe pudesse assistir às aulas. - Embora ele usasse, consumisse a droga, a pessoa dele não me afetava. Comigo ele é super carinhoso, com o Davi ele é super carinhoso. É um bom marido, se eu adoeço, se eu passo mal, ele limpa, passa, cozinha... Fica o dia inteiro te servindo: você quer isso, você quer aquilo... Acompanha, incentiva. Eu acho que tudo que ele gostaria de ser, ele quer que eu seja. Ao chegar a casa/empresa de Adélia para nossa conversa, ela e o marido estavam envolvidos com alguns afazeres de uma reforma que iriam começar aquela semana. Carlos continuou preparando o local sozinho, enquanto sua esposa conversava comigo. Durante a conversa com Adélia, ele se dividiu entre os afazeres da reforma, conferir se estávamos confortáveis - oferecendo-nos água gelada e suco - e trocar alguns dedos de prosa e algumas risadas com a irmã de sua esposa, que se ocupava da recepção da empresa. Ela me explicou que o marido é sempre assim: prestativo, preocupado com todos ao redor. Atualmente a família de Adélia sabe do problema de Carlos, apesar de ele ainda insistir em acreditar que não. Por muito tempo sua mãe e irmãos desconfiaram, mas ela teve de lidar com tudo sozinha. Quando a empresária confirmou as suspeitas, as opiniões se dividiram, mas hoje eles respeitam sua decisão de permanecer ao lado de Carlos e sua esperança em vê-lo no caminho de volta. Na verdade, a sogra e os cunhados se afeiçoaram ao marido de Adélia, valorizam o cuidado que ele tem com a mulher e principalmente seus esforços para proteger Davi, que ainda não entende as ausências repentinas do pai. - Ele não sabe que o Carlos usa droga e eu não falo isso pra ele. Por exemplo, nesses dias que o Carlos some, ele pergunta: “Cadê meu pai?”, daí eu falo que ele tá trabalhando. Aí o pai dele chega e ele vai dar um abraço no pai: “Nossa pai, você trabalha tanto!”. Isso quebra o Carlos, ele se sente mal pra caramba. Adélia diz amar muito o marido, um sentimento que é claramente diverso de uma paixão cega. Há cerca de cinco meses, Carlos não anda em companhia das pedras. Ele sabe que pode contar com a esposa mesmo em tempos de crise, já ela sabe que não pode contar com a aparente estabilidade dele. - É um milagre ele consumir, consumir, ainda voltar pra casa e estar bem até hoje. Em nossa conversa, a profissional, especialista em cuidar de aparências, falou sobre os percalços de seu relacionamento em profundidade e sem constrangimento. Os olhos brilhavam de lágrimas discretas e muita fé. As gargalhadas divertidas enchiam a sala, intercalando os relatos detalhados das circunstâncias mais complicadas que ela encarou por causa do vício do pai de seu filho e do homem que ela escolheu amar. A princípio, pensei que toda aquela extroversão fosse um artifício, uma fuga, depois de uma tarde inteira de confissões, descobri ser, de fato, a essência de Adélia e a forma como ela conduz tudo mais em sua vida. Há muito ela abriu mão do conto de fadas com o qual sonhou na adolescência, da mesma forma precisou abrir mão de vários planos e projetos, no entanto, ela me diz isso não como mártir, mas com a paz de espírito e a firmeza de quem sente que tomou a decisão mais acertada. - A minha meta agora é a cura do Carlos. Ela escolheu o ser humano com todas as dificuldades da realidade que o cerca. … - Na verdade eu sempre quis contar isso, eu sempre falei que eu ia fazer um livro com tudo que eu já passei (risos). “Não necessitam de médico os que estão sãos, mas, sim, os que estão enfermos”. (Evangelho segundo Lucas, capítulo 5) Adélia citou-me essa passagem ao falar sobre o amor que sentia pelo marido. A passagem remete a um episódio em que Jesus participou de um grande banquete oferecido pelo publicano Mateus em sua casa, que mais tarde deixou o ofício para se tornar apóstolo. Na época a nação de Israel era dominada pelo Império Romano e os publicanos eram homens escolhidos entre o próprio povo dominado, para cobrar imposto de seus pares para o Império. Por esse motivo eram detestados pelos judeus e, geralmente, se envolviam em corrupção, a fama que lhes ocorria era de desonestidade e eram repudiados e considerados inferiores, principalmente pela casta religiosa dos fariseus. Há algum tempo Jesus estava sendo perseguido por fariseus e mestres da lei judaica, pois há cada oportunidade o Cristo os confrontava pelas ações legalistas e discursos hipócritas que eles apresentavam. Por ocasião do banquete, eles questionaram as intenções de Jesus e seu próprio caráter, uma vez que ele comia e bebia com “publicanos e pecadores”. De acordo com a bíblia, ele respondeu às críticas com a passagem citada por Adélia. Ela concluiu a reflexão sobre seu relacionamento com o marido, dizendo: “Nós temos que estar para os enfermos”. Logo que comecei minhas viagens pelas histórias que as pedras contam e pelas histórias que elas não contam, presen- ciei um assalto na Avenida Antônio Carlos, em Belo Horizonte. Eu aguardava um ônibus para a região hospitalar no ponto, no meio de uma tarde de sábado. Um adolescente vestido com roupas bem gastas e sujas, calçando tênis velhos e portando uma mochila preta rasgada, se aproximou. Manteve-se bem próximo a mim e andava de um lado para o outro, como se reparasse em cada detalhe. Uma moça e um rapaz também aguardavam no mesmo ponto, um pouco mais distantes. Eu me senti incomodada com a movimentação do adolescente e mantive minha bolsa bem junto ao corpo. Ele atravessou a Avenida, sumiu por alguns minutos e retornou ao ponto, dessa vez se distanciou. Quando me dei conta, ele estava assaltando a moça, o rapaz que a acompanhava fugiu a tempo e eu assistia à cena sem conseguir reagir. O garoto sacou do bolso da bermuda uma pequena faca artesanal, não era maior que a palma de sua mão. Assustada, a moça pedia calma, enquanto tirava um porta-níquel da bolsa, dali ela retirou algum dinheiro e deu ao adolescente, depois atravessou rapidamente as faixas de ônibus para encontrar seu acompanhante, que aguardava no ponto de ônibus, no sentido contrário da Avenida. O adolescente, por sua vez, também atravessou rapidamente a faixa dos carros e novamente sumiu de vista, dessa vez não retornou. Ele não tomou a bolsa, nem o porta-níquel, nem o iPod que ela segurava bem a vista antes do assalto. Ele esperou que a moça retirasse qualquer valor da bolsa e lhe entregasse. Alguns segundos depois o ônibus chegou, dei sinal e entrei. Foram 25 minutos até o local em que precisava chegar, fiquei completamente atônita ao longo de todo o percurso, por alguns minutos foi pela sensação de impotência por não conseguir ajudar a moça que estava sendo assaltada, seguidos de muitos e muitos minutos e depois noites em que eu ia dormir com a imagem daquele adolescente, sentindo uma impotência ainda maior pela realidade que nos separa, por saber que ele não deve ter tido muitas alternativas e oportunidades para seguir um caminho diferente daquele. A moça ainda tinha algum dinheiro, sua bolsa, seu iPod, seu companheiro e a solidariedade das pessoas no outro ponto de ônibus. Para o garoto, logo que chegasse ao viaduto da Lagoinha não lhe restaria nada, nem o valor roubado. Cerca de um mês e meio depois, eu me encaminhava para a rodoviária para uma viagem de campo deste Trabalho de Conclusão de Curso, quando, ao passar pelo viaduto da Lagoinha avistei o adolescente vestindo as mesmas roupas, os mesmos tênis e portando a mesma mochila. Ele caminhava aparentemente sem rumo, entre uma dezena de outros usuários de crack. Alguns gritavam para o nada, outros pareciam dançar numa coreografia sem sentido algum, outros gargalhavam, outros ainda apenas tragavam e observavam as vias. Um casal dormia bem abraçado, em meio ao lixo, ao barulho e ao frio. O trânsito estava lento, então pude ver o garoto se juntar aos outros naquela viagem para fora do caos do centro urbano. Perguntei-me se seria capaz de sentar-me ali, ao lado daquele adolescente e conversar com ele, sem ser conduzida pelas pedras, conclui que elas claramente estabeleciam uma barreira entre ele e eu, entre nós dentro dos carros e os outros por trás dos cachimbos. Cheguei à Ipatinga e comecei a caminhada pelas histórias de Mateus, Flávio, Jason, Joaquim, Igor, Jairo, Éderson, Wéverton, Evaldo, Carlos e mais outros. Impossível não imergir nessas histórias, com o tempo senti que se tornavam um pouco minhas também. A maioria deles furtou, frustrou expectativas e planos, gastaram muito de seu tempo prostrados nas bocas e calçadas sujas. No entanto, eu ainda os encontrei sendo pais, filhos, irmãos, amigos, profissionais, humanos com planos, sonhos, alguma esperança e a complexidade inerente a toda humanidade. Nem anjos, nem monstros, vítimas ou culpados. Talvez apenas homens enfermos. Pude concluir algo totalmente novo, que Adélia definiu muito bem em seu relato e sua citação: não há, de fato, nenhuma barreira a não ser aquela que nós próprios alimentamos entre nós e os outros de nós que estão enfermos. Somos, na verdade, uma sociedade enferma, que não dá muita oportunidade para quem já não consegue tratar sozinho de suas próprias chagas, muito menos escondê-las. Os usuários estão dentro de nossas casas, de nossas famílias, cresceram no mesmo bairro que a gente, são nossos vizinhos, estão no fim de nossas ruas, são nossos amigos, não são os zumbis dos noticiários, compomos a mesma sociedade, a mesma nação. Não tenho com esses relatos a ilusão pretensiosa de transformar a realidade que muito se coloca entre mim e o garoto da Avenida Antônio Carlos, entre mim e as vidas apinhadas nas calçadas. Tenho sim, uma imensa alegria em poder compartilhar desse mergulho em que me lancei e mostrar que essa aproximação é possível e importante, assim como contar essas histórias bem de perto. Tenho também imensa gratidão pelas pessoas que permitiram que eu caminhasse por suas histórias e me sentisse mais próxima daqueles corpos que estavam no fim da rua, onde ainda vivem meus pais. “Estavam”, não estão mais. Os moradores protestaram contra aquele “problema de segurança pública” e a polícia dispersou os usuários de lá. Ninguém sabe dizer ao certo para onde foram... Nem para onde vão. Essa vai para aqueles que nunca tomam partido na guerra, Preocupam-se mais com os erros dos outros e não percebem o quanto erram. Fazem pose de boa gente, Na sua frente te dão boas notas, Como num ritual macabro te apunhalam pelas costas. Não importa como seja, as aparências sempre enganam. Lobos em pele de cordeiro podem até dizer que te amam. Situação, oposição, não importa em que lado esteja, Quando se é desse tipo todos sabem que você fraqueja. É difícil batalhar na guerra onde não se conhece o inimigo. A central de guerra avisa: Há risco de fogo amigo! Cuidado com o que plantam na terra em que vocês aram, As tempestades sempre devastam as terras daqueles que menos plantaram. Aproveitem a bonança, porque as tempestades vêm chegando. Contra falsos como vocês, existe um exército marchando. A anedota nessa história, digo a vocês: são eles. Lobo em pele de cordeiro é tosquiado duas vezes. (Rap sem nome - MC Digow1, Caput) Nota 1 Durantes os meses de novembro e dezembro de 2012, o grupo de pesquisa Som e Sentido do curso de comunicação social da UFMG em parceria com a Associação Imagem Comunitária (AIC) realizou uma oficina de rádio junto aos jovens atendidos pelo Centro de Atendimento e Proteção ao Usuário de Tóxicos (Caput) de Belo Horizonte. MC Digow foi um dos educadores que ministrou atividades na oficina. Apêndice: Quando 59 se ouviu falar das pedras Crack. Foi como os norte-americanos nomearam a cocaína reinventada: cristais feitos da pasta base de cocaína misturada a bicarbonato de sódio, que rapidamente se espalharam por áreas marginalizadas de Nova Iorque, Miami e Los Angeles, no início dos anos 1980. O nome deriva do verbo to crack, quebrar em inglês. Chamaram assim pelos estalos que as pedras produzem quando são queimadas. Já em 1988, nas ruas pobres da periferia de São Paulo, as pedras de um branco encardido e os cachimbos feitos de antena de carro, copos de iogurte e água mineral indicaram a presença de uma nova droga que, como nos Estados Unidos, se disseminou rapidamente. O crack tem seu próprio modus operandi, ele reconfigurou a dinâmica de tráfico, consumo e dependência de substância que o Brasil e os países nos quais se instalou conheceram até então. Os primeiros registros de comercialização das pe- dras em Minas Gerais ocorreram em Belo Horizonte, em 1994. A porta de entrada era a Pedreira Prado Lopes, que abastecia a região do Baixo Lagoinha, onde se concentravam os usuários. As ações policiais empreendidas na tentativa de conter o crack na capital mineira dispersaram as cenas de uso, que hoje não estão mais restritas às proximidades de favelas, mas se espalham pelos viadutos das principais avenidas, nas proximidades da estação rodoviária, praças e calçadas da região central. A primeira década do século XXI se encerrou com a conclusão preocupante de que o crack chegara a pequenos municípios no interior de Minas. Durante o mês de novembro de 2010, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) desenvolveu uma pesquisa sobre o consumo de crack nas cidades brasileiras, esse levantamento deu origem a um Mapa do Consumo de Crack2 no país. Em Minas Gerais, dos 853 municípios, 748 participaram da pesquisa e 679 (70%) admitiram apresentar problemas com a droga. Política sobre drogas em Ipatinga Ipatinga nunca teve a tradicional aparência das pequenas cidades mineiras de interior. Talvez por seu histórico industrial, sempre recebeu pessoas de diversos lugares do Brasil e do mundo. A cidade com mais de 230 mil habitantes faz parte da Região Metropolitana do Vale do Aço, juntamente com Coronel Fabriciano, Timóteo e Santana do Paraíso. De acordo com o Censo do IBGE de 2010, o Vale do Aço conta com um PIB per capita de mais de R$20 mil. A potencialidade econômica da região sempre foi um atrativo para atividades legais e ilegais. O tráfico e consumo de drogas sempre esteve presente, mas ficava isolado a áreas específicas, aos bairros mais humildes e periféricos. A chegada do crack ao Vale do Aço mudou essa configuração, o mercado da droga se constituiu na região há aproximadamente 10 anos. Atualmente as cenas de uso não estão mais isoladas a periferia, os grupos de usuários se espalham pelas pontes e viadutos das cidades, por praças e ruas mal iluminadas dos centros comerciais e bairros residenciais. De acordo com o Mapa do Consumo de Crack, a situação dos municípios do Vale do Aço e cidades circunvizinhas é preocupante. O estudo criou três classificações para o nível de consumo: Alto, Médio e Baixo. No Mapa, Ipatinga e Santana do Paraíso apresentam nível de consumo Alto, enquanto que em Coronel Fabriciano e Timóteo o consumo foi classificado como Médio. É impossível pensar o quadro de tráfico e consumo de crack em Ipatinga, sem levar em consideração a situação das cidades no entorno. O que se percebe é que o fenômeno é compartilhado. Há traficantes que operam em mais de uma cidade da região, bem como usuários que migram de outras cidades e constituem cenas de uso em Ipatinga. Da mesma forma, dependentes dos outros municípios do Vale do Aço e municípios vizinhos buscam tratamento ali. No dia 29 de junho de 2012, o go- vernador de Minas, Antônio Anastasia, assinou um termo de cooperação junto ao Governo Federal para aderir ao programa Crack, é possível vencer. O pacto tem como objetivo o aumento da oferta de tratamento de saúde e atenção aos usuários de drogas, o fortalecimento de ações para enfrentar o tráfico e as organizações criminosas e ampliação de atividades de prevenção. A adesão dos governos estaduais ao programa é apenas uma parte do processo. É necessária também a adesão das prefeituras e a criação de propostas de planos de ação municipais que sejam consoantes às normas do programa. Em fevereiro de 2012, o então presidente da Câmara de Ipatinga, vereador Nardyello Rocha, encaminhou ao Governo Federal a Indicação 15/2012, solicitando a adoção de providências para a participação de Ipatinga no programa de combate ao crack. Os outros municípios da região também procuram se mobilizar, seja através de ações do governo público, iniciativa privada ou do terceiro setor, mas essas iniciativas ainda são pontuais. No mês de abril, teve início na cidade o Fórum Intersetorial sobre Álcool e outras Drogas. Com o objetivo de construir, implantar e acompanhar a política municipal sobre álcool e drogas, que é inexistente em Ipatinga. O Fórum consiste numa série de encontros entre representantes do poder público, setor privado e sociedade civil que estejam, de alguma forma, relacionados à temática. Atualmente, Coronel Fabriciano e Ipatinga contam, cada um dos municípios, com um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II). Entretanto o propósito dessa instituição não é o usuário de drogas, mas o portador de patologia psíquica. Além disso, Ipatinga também conta com uma Unidade de Acolhimento Institucional para Adultos e cinco Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), que podem atuar no suporte a usuários e suas famílias. Mas o CAPS AD, instituição pública especializada no tratamento de dependentes químicos, ainda não foi instalado na região. O tratamento de usuários é realizado no Vale do Aço, majoritariamente, por comunidades terapêuticas dirigidas por entidades religiosas. Um dos objetivos específicos do Fórum Intersetorial sobre Álcool e outras Drogas é exigir a implementação da Rede de Atenção Psicossocial para usuários de saúde mental e dependentes químicos, incluindo CAPS - AD, CAPS-I, Unidades de Acolhimento, leitos psiquiátricos em Hospital Geral e equipes de Consultório na Rua3. Mas a realidade que as cidades do Vale do Aço enfrentam com os problemas gerados pelo tráfico e adicção e a estrutura que apresentam para lidar com o fenômeno, se mostram ainda muito distantes das perspectivas do Fórum e das propostas do Programa do Governo Federal de enfrentamento ao crack. Sobre drogas e discursos Toda relação entre substância e usuário que constitui uma situação de abuso atravessa o indivíduo, ultrapassa-lhe. Na verdade, basta o uso de substância considerada ilícita para tornar a condição do indivíduo um fenômeno social. Por vezes, esse ser humano passa a ser apresentado destituído de particularidades e se torna número, geralmente utilizado em estatísticas classificadas como preocupantes. Venda e consumo de drogas lícitas e ilícitas constituíram um mercado que foge às estimativas e é crescente. Por onde se instala, esse mercado traz consigo um rastro de degradação. De acordo com o Relatório Brasileiro sobre Drogas, de 2010, elaborado pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), de 2001 a 2007, 44.326 brasileiros morreram devido a transtornos associados ao uso de drogas. Desse total, 92,9% são de mortes decorridas devido ao uso de bebida alcoólica e tabaco, enquanto 0,6% correspondem a mortes decorridas do uso de cocaína. Por certo, as mortes causadas por drogas ilícitas ultrapassam as porcentagens apresentadas no Relatório, já que seu caráter ilegal impede uma coleta de dados mais completa, ainda assim os números não ultrapassariam as porcentagens de mortes associadas ao uso das drogas lícitas. Apesar disso, é crescente na sociedade brasileira a glamuralização e o estímulo ao consumo de álcool, de um lado, e de outro lado, a marginalização dos usuários de drogas ilícitas, principalmente dos dependentes de crack. Desde o início do século passado, o governo brasileiro vem declarando guerra às drogas ilícitas, pregando a eliminação desse mercado. É de 1921 a primeira lei que prevê penas de multa e prisão para o porte e venda de cocaína e outras drogas. Milhões são investidos em pesquisas, estatísticas e planos na tentativa de mapear o “submundo das drogas”, com a perspectiva de desbaratá-lo de maneira efetiva. Ainda assim o mercado continua crescendo. De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2012 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o consumo de cocaína apresentou aumento no Brasil de 2004 para 2010 e as apreensões da droga triplicaram chegando a 27 toneladas. O Governo, o Direito, os profissionais da saúde, as comunidades terapêuticas, os hospitais psiquiátricos, todos eles desenvolveram discursos na tentativa de lidar com a degradação. Internação voluntária, involuntária, compulsória, liberação do consumo, redução de danos, a cura pela fé, pelos remédios, pelo trabalho. Os discursos por vezes se antagonizam, procuram dar conta das falhas nos outros discursos. Mas, na prática, todo profissional que trata do uso e abuso de substâncias acaba percebendo a necessidade de estar aberto às diversas possibilidades. Quando o usuário deixa de ser estatística para se tornar novamente indivíduo, quando ele é visto de perto a ponto de ter suas particularidades percebidas, as generalizações e os discursos ficam em segundo plano. A droga não destitui o humano de sua complexidade. A politização do fenômeno No Brasil a opção do discurso oficial foi pela repressão. Em geral, pouca reflexão, pouco debate e uma postura enrijecida. As políticas públicas de prevenção e combate ao comércio colocaram a droga no lugar de sujeito da degradação social e o usuário seria sua marionete, ambos deveriam ser combatidos. O posicionamento do governo se torna um pouco mais flexível a partir da década de 1970, quando a concepção médico-psiquiátrica passa a dividir espaço com a justiça penal na compreensão do Estado sobre o fenômeno das drogas. O usuário passa a ser entendido como doente e os hospitais psiquiátricos ganham relevância numa tentativa de reabilitar o dependente, mas os portes para consumo e tráfico permanecem criminalizados. Em 1998, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso criou a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) e o Conselho Nacional Antidrogas (Conad). Atualmente essas instituições dividem o cenário político-ideológico oficial com o Ministério da Saúde: as leis e políticas públicas relativas ao fenômeno das drogas são elaboradas no contexto dessas instituições. Senad e Conad sustentam os preceitos de conscientização da sociedade e prevenção ao uso, combate ao tráfico no território nacional, avaliação das iniciativas terapêuticas, abstinência como única forma de tratamento do usuário e o estabelecimento de redes intersetoriais entre órgãos públicos e privados que garantam assistência aos indivíduos. Permanece o viés antidrogas focado na segurança pública e defesa social. Por outro lado, o Ministério da Saúde se pauta pelo direito dos indivíduos de acesso à saúde e à assistência social. A instituição, em seu discurso, defende a pluralidade e flexibilidade de tratamentos, para além da internação e abstinência, e a importância de se considerar o contexto social do sujeito. Ao Senad e Conad estão vinculadas as comunidades terapêuticas que operam com programas terapêutico-educativos sistematiza- dos. O usuário deve permanecer internado durante um período de nove meses, e o objetivo é a libertação do dependente químico através da mudança de seu estilo de vida. As comunidades funcionam com base em três elementos terapêuticos principais: disciplina, trabalho e fé. Essa estrutura metodológica de tratamento, fundamentada desde 1960, vem recebendo diversas críticas, principalmente de órgãos ligados ao Ministério da Saúde. O modelo das comunidades seria rígido e inadequado, já que ele é o mesmo para todos os indivíduos e, por isso, não daria conta das especificidades de cada caso. Além disso, algumas correntes afirmam que uma libertação real do dependente é impossível porque, nessa dinâmica terapêutica, ele seria orientado a “substituir” um vício por outro: as drogas pela fé. Há ainda a questão da irregularidade de diversas comunidades terapêuticas e clínicas de recuperação, que apresentam grande defasagem nas estruturas de atendimento ao dependente. Vinculados ao Ministério da Saúde estão os hospitais psiquiátricos e os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) - unidade de saúde municipal especializada no atendimento de dependentes, que oferece atendimento diário. Aqui o foco nem sempre está na abstinência, mas na qualidade de vida do viciado e na redução dos problemas à saúde pública gerados pelas situações de abuso. Nessa linha, em 1994 o Ministério da Saúde adotou ações de redução de danos, como distribuição de preservativos e seringas entre a população de rua, com o intuito de conter os casos de DSTs e hepatites. A redução de danos seria uma maneira de intervenção na condição de uso e abuso em defesa da vida, respeitando as singularidades e a vontade do sujeito sem colocar a abstinência como objetivo principal. Por sua vez, a redução de danos também vem recebendo críticas, uma delas defende que, com ações como a distribuição de cachimbos e seringas, o governo não estaria atuando para reduzir o número de pessoas em situação de uso, mas incentivando o consumo. Se por um lado o Ministério da Saúde em seu discurso prega princípios de assistência mais flexíveis, o atendimento de de- pendentes em redes, o compartilhamento de responsabilidades e compactua do princípio de intersetorialidade pregado por Senad e Conad, por outro defende, rigidamente em suas diretrizes, o atendimento pelo CAPS AD como única forma de tratamento ao dependente, renegando as outras formas e instituições – como a reabilitação em comunidades terapêuticas - que apresentam resultados importantes e não podem ser ignorados. Atualmente, entretanto, em todo o território brasileiro estão em funcionamento 258 unidades de CAPS AD, esse número seria o necessário para atender apenas o estado de São Paulo. Além disso, por falta de profissionais especializados e estrutura de atendimento, boa parte dessas unidades não opera 24h por dia. A Guerra às Drogas Na contramão do que, com a redução de danos, parece ser sinal de flexibilização ao se tratar o fenômeno das drogas, diversos governos estaduais e municipais endureceram o discurso ao lidar com a questão das cracolândias. Episódio memorável em 2012 foi protagonizado pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, no momento em que a cidade discutia a internação compulsória de usuários de crack. A discussão surgiu paralelamente à preparação do Rio para a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas de 2016. A ocupação pela polícia das favelas de Manguinhos e do Jacarezinho provocou a migração dos usuários e cenas de uso para um espaço em obras na Avenida Brasil, próximo ao Complexo da Maré. No Complexo do Jacarezinho, traficantes chegaram a afixar placas informando que a venda do crack estava proibida. Uma ação de recolhimento teve início no mês de outubro. Por determinação do prefeito, a Polícia Militar e agentes da Secretaria Municipal de Assistência Social, enfrentando muita resistência, deslocaram os usuários da Avenida Brasil para abrigos. Entretanto, sem uma ordem de internação específica emitida por um juiz, os usuários adultos não eram obrigados a permanecer nesses abrigos e logo boa parte deles retornou às cenas de uso. Eventos semelhantes ocorrem na Cracolândia na região central da cidade de São Paulo, desde meados da década de 1990. O crack chegou à cidade no final dos anos 1980 e o mercado se instalou inicialmente nos bairros de periferia. A dinâmica de consumo própria da droga e a condição de dependência mantinham os usuários próximos aos locais de produção e venda das pedras, a presença dos “nóias” - como ficaram conhecidos esses usuários - chamava a atenção da polícia e desagradava à população local e os próprios traficantes, o que tornou comum o extermínio de nóias nesses locais. A região próxima à antiga rodoviária no centro da cidade - onde o processo de consolidação da Cracolândia teve início ainda nos dois primeiros anos da década de 1990 era historicamente conhecida como a “boca do lixo” de São Paulo: zona de baixo meretrício, degradada e ignorada pelo poder público e pela polícia. Os usuários de crack, então, fugindo das ameaças e da truculência dos traficantes, migraram para a região central, onde a venda da droga era mais fácil, não estava associada aos locais de produção e eles poderiam consumir “tranquilamente” sem serem perturbados por batidas policiais. Os grupos de nóias, que se espalhavam pelos prédios vazios, terrenos baldios e calçadas, cresceram com o passar dos anos e se tornaram uma realidade inegável e incômoda. Em 1997, o então governador do estado de São Paulo, Mário Covas, encabeçou a primeira grande ação policial a prender usuários na Cracolândia, a Operação Tolerância Zero. Ao longo dos anos, diversas incursões policiais à Cracolândia se seguiram, mas nenhuma se mostrou bem sucedida. Elas provocavam a migração dos usuários para áreas vizinhas e logo os mesmos espaços voltavam a ser ocupados por grupos de dependentes, que só faziam aumentar. Os usuários apreendidos logo eram liberados e voltavam às cenas de uso. Em janeiro de 2012, a Polícia Militar deu início a uma nova operação no centro de São Paulo com o objetivo de desarticular o tráfico na região. A ação acabou por disseminar o comércio: se antes os usuários ficavam concentrados nas bocas de fumo em áreas específicas, com a operação, os grupos de nóias se tornaram ambulantes avançando sobre novas áreas em busca de fornecedor. Algumas correntes do Direito baseiam a legitimidade de ações como as dos governos e polícias do Rio e de São Paulo no Decreto-Lei 891, de 25 de novembro de 1938, que regulamenta a fiscalização de entorpecentes. Essa lei remete ao dever do Estado de atuar em defesa da vida. O texto diz que é obrigação do Estado interferir na vida do dependente através da internação obrigatória, quando for provado que há necessidade de tratamento adequado, ou quando for conveniente à ordem pública. Mas a internação só ocorre com a determinação do juiz e após análise do quadro do sujeito. Entretanto, caso os governos resolvam “cumprir seu dever” e adotar compulsoriamente a internação obrigatória, não haveria estrutura suficiente para atendimento de dependentes, nem no Rio de Janeiro ou em São Paulo, assim como em todo o Brasil. A estrutura existente não dá conta da demanda atual, muito menos de realizar os atendimentos com a qualidade que as circunstâncias requerem. A defesa da vida é um dos argumentos sobre os quais se fundamenta a versão brasileira da War on Drugs, iniciada em 1971, pelo ex-presidente dos EUA, Richard Nixon. A política de Guerra às Drogas foi adotada por boa parte dos governos latino-americanos em seus territórios, entre outras razões, por temerem represálias norte-americanas. A guerra completou 40 anos e, em 2011, um relatório da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, instituída pela ONU e chefiada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, declarou: “A guerra global contra as drogas fracassou, deixando em seu rastro conseqüências devastadoras para pessoas e sociedades em todo o mundo1”. Fernando Henrique, que durante a presidência foi grande defensor da política antidrogas, logo após o fim de seu mandato, se constituiu no cenário brasileiro como voz importante em favor da descriminalização. No relatório da Comissão de Políticas sobre Drogas, os discursos de descriminalização, liberação do consumo e regularização do mercado pelo governo são apontados como única maneira eficaz de enfraquecer o narcotráfico e acabar com a violência advinda do crime organizado. Os posicionamentos contrários defendem que a liberação no Brasil promoverá um aumento no número de usuários, gerando um cenário de caos, e que a sociedade ainda não está preparada para lidar com essa realidade, principalmente quando se pensa a situação de marginalização enfrentada pelos usuários de crack. Alguma saída? Cada um dos discursos e instituições que tratam do fenômeno das drogas em nossa sociedade existe quase como negação dos outros, mas na prática nenhum deles, isoladamente, dá conta da complexidade do fenômeno. Claro é que esses discursos se embasam em densos argumentos, propostos a partir de longos períodos de observação e interação com o problema. Entretanto, boa parte deles não chega à sociedade brasileira, ou chegam já em forma de ações e intervenção. Em geral, à sociedade não são propostas reflexões sobre o tema, não há um movimento consolidado no sentido de promover conscientização sobre esse fenômeno que faz parte dela. Essa interação com a população se mostra importante, não apenas para discutir os efeitos das drogas na sociedade, bem como toda a dinâmica que as acompanha, mas também para pensar a constituição das causas que alimentam o fenômeno e promover a ideia de responsabilidade social na contramão de processos marginalizantes. Antes de tomar qualquer dos discursos como solução para as complicações oriundas do fenômeno das drogas, faz-se neces- sária uma chamada à reflexão, ao debate, a uma mudança no olhar, em especial no olhar para o indivíduo, o usuário como sujeito do fenômeno e como dependente que carece de suporte em todas as dimensões de sua vida. Pois nesse cenário tão complexo em que as diferenças ideológicas ainda se sobrepõem às conclusões, parece haver apenas uma resposta consistente: quem ensina a saída para o problema não são os profissionais, políticos, discursos ou instituições que lidam com o fenômeno, a saída quem aponta é o próprio usuário. Notas 1 Texto do relatório da Comissão Global de Políticas sobre Drogas na íntegra em: http://www.globalcommissionondrugs.org/reports/ 2 Mapa do Consumo de Crack disponível em: < http://www.cnm.org.br/crack/ 3 FONTE: Projeto Final para o Fórum Intersetorial sobre Álcool e outras Drogas do Município de Ipatinga Referências AGÊNCIA BRASIL. Sem prevenção e repressão eficiente, crack avança em capitais e cidades médias brasileiras. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/ noticia/2009-03-11/sem-prevencao-e-repressao-eficiente-crack-avanca-em-capitais-e-cidades-medias-brasileiras. Acesso em: 23 de nov. de 2012. COMISSÃO GLOBAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS. Organização das Nações Unidas. Relatório. Rio de Janeiro, 2011. COSME. Glauciane Vieira. O uso do crack: um problema social restrito às metrópoles?. 2012. Trabalho acadêmico (Graduação em Assistência Social) – Curso de Assistência Social, Universidade Norte do Paraná, Londrina, 2012. DUARTE, P.; STEMPLIUK, V.; BARROSO, L. 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