O ENCONTRO DO MORTO COM OS SEUSANTEPASSADOS E
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O ENCONTRO DO MORTO COM OS SEUSANTEPASSADOS E
O encontro do morto com os seus Antepassados ... 155 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj O ENCONTRO DO MORTO COM OS SEUSANTEPASSADOS E COM DEUS NA RTA Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj INTRODUÇÃO O tema que me foi dado a desenvolver é um tema sugestivo e difícil de se tratar adequadamente. Sugestivo porque ele implica a crença na vida do além: o encontro entre duas pessoas, o morto e os seus antepassados; mas também difícil porque ninguém foi à morada dos mortos e voltou vivo para nos dizer como é que as coisas estão por lá. Temos pois de encontrar uma chave de leitura para tratar desse assunto, ainda que de modo inadequado. E a grelha de leitura que me ocorreu é fazer uma leitura à luz de um Processo Ritual, que é essencialmente um Processo Iniciático. Falar da Morte como um Processo Iniciático é reconhecer no fenómeno-morte a existência de um Rito de Passagem; e a própria palavra “Encontro” implica essa passagem de um estado para o outro. No caso vertente, o morto deixa o mundo dos vivos visíveis para ir ao mundo dos vivos invisíveis, os mortos seus antepassados... Na visão banta, ninguém se torna antepassado logo a seguir à sua morte. Tem que seguir um longo processo para chegar ao mundo dos seus antepassados. Os Ritos de passagem, como nos ensinou Arnald Van Gennep, conhecem essencialmente três momentos ou fases progressivas: existe uma fase de separação na qual uma pessoa é arrancada, muitas vezes violentamente, de uma dada situação presente para o projectar, muitas vezes também de modo violento, numa nova condição de existência. À essa nova fase chamou Van O encontro do morto com os seus Antepassados ... 156 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj Gennep de reintegração: é um momento em que o indivíduo é inserido num determinado grupo que pode ser o mesmo de onde saiu, mas que agora é inserido sendo conhecedor das regras do jogo desse grupo. Entre a separação e a reintegração existe um outro momento a que Van Gennep chamou de Isolamento. Neste momento de facto o indivíduo em causa é isolado da vida normal que levava antes da separação. Victor Turner, dedicou uma atenção especial a essa fase que ele chama de liminalidade; ele observou que um indivíduo na fase liminal, i.e, na fase entre-doismundos é caracterizado por uma espécie de isenção da observância das regras ético-sociais, vigentes do mundo do dia-adia, porque se torna ritualmente impuro, portanto, incapaz, indigno de conviver no grupo, por ser essencialmente perigoso. Pessoalmente gostaria de chamar à fase da liminalidade uma fase de identificação pessoal: é o momento em que os Mestres dos Ritos transfigurantes ajudam o indivíduo a forjar a identidade dessa nova condição. Quer os Ritos de iniciação à condição de adulto, de homem conscientemente responsável na sociedade, à condição de um “reprodutor” consciente da sociedade, à condição nova de um morto-vivo, todos eles são ritos que forjam no indivíduo em questão uma identidade nova. I. O LONGO PROCESSO DE ANCESTRALIZAÇÃO É nesta perspectiva de um Processo iniciático que queria “ler” este encontro do morto negro-africano com os seus antepassados. E como em qualquer processo iniciático, também aqui não é fácil delimitar com precisão os diversos momentos do processo. Vou considerar os ritos que se realizam à volta do morto até ao enterro como ritos de separação. Nestes Ritos a principal preocupação dos vivos é que a separação se dê e se dê bem. E uma O encontro do morto com os seus Antepassados ... 157 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj maneira de se fazer bem a separação é que os ritos sejam bem executados; i.e, completos e feitos com dignidade. Uma “morte boa” é que pode permitir de facto a realização digna dos Ritos segundo manda a Tradição. A transmissão de Testamento na agonia, o último suspiro, o fechar dos olhos, a lavagem do corpo, a acomodação do cadáver no caixão, o velório, o momento da reconciliação na família, o encaminhar das possíveis dívidas do morto, as recomendações do membro sénior para o morto levar aos antepassados da família, a própria maneira de como o morto sai (=é tirado)da casa, a procissão para o cemitério, o deitar terra na sepultura, o lavar as mãos em casa depois de regressados do cemitério: são outros tantos ritos que querem marcar com clareza a ruptura radical que deve realizar a separação entre o morto e os familiares que ficam para trás. Estes e outros ritos de separação bem como alguns tabus a serem rigorosamente observados, servem para garantir que os laços existenciais por tanto tempo vividos, sejam realmente rompidos a fim de que um outro tipo de relacionamento, não menos existencial, se estabeleça. O morto deve realizar efectivamente uma separação com os vivos em vista do encontro que ele deve realizar com os seus antepassados. Entramos assim na fase do luto, independentemente da sua duração, fase essencialmente de liminalidade, na expressão de Victor Turner, fase em que o morto deve assumir iniciaticamente a sua nova identidade, a de morto, e esquecer a antiga, a de um vivo. Os Ritos realizados durante o tempo do luto, juntamente com os Tabus que os acompanham, servem para, de um lado, o morto ir assimilando a sua nova condição de existência, ao mesmo tempo que os vivos vão assimilando a sua. Quanto mais estreitos são os laços mais tempo precisam para se diluírem tais laços. Suspeito que a psicologia mais elementar pode explicar este fenómeno. O encontro do morto com os seus Antepassados ... 158 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj O que mais caracteriza o período de luto como fase liminal é o estado de impureza ritual que é altamente perigoso para os outros e que por isso mesmo é rodeado de muitos e pesados tabus. A pessoa em estado de impureza ritual é um perigo não tanto para si mesma, quanto para os outros. Quem se metesse por exemplo com uma viúva ainda em estado de impureza ritual, seria ele e não a viúva que correria o risco de contrair uma doença grave que até lhe pode levar à morte. Sai-se de um estado de impureza ritual através de um Rito de Purificação. Por rito é preciso entender qualquer gesto, acção, palavra, pessoa ou coisa que deve ser tratada de uma determinada maneira codificada, segundo estabeleceu a Tradição dos Antigos, para surtir um determinado efeito. Assim o acto sexual segundo nos descreveu o frei Amaral nesta Semana Teológica, citando aliás vários outros autores, é um acto purificador, portanto um acto ritual. E para ser ritual deve preencher as condições de um Rito: um gesto que é feito de uma determinada maneira, em um determinado tempo e espaço, por uma determinada pessoa escolhida por uma determinada comunidade, com uma finalidade bem concreta. Esse mesmo acto, feito de qualquer maneira (=não ritualmente, portanto) não só deixa a viúva ainda ritualmente impura como põe em perigo de vida a outra pessoa. O acto sexual assim como fica descrito, é portanto, um acto purificador e como tal é sem dúvida “um acto sagrado. “Não chames impuro aquilo que purifica”, poderíamos parafrasear. Foi nesta perspectiva que já em 1971 chamei de acto litúrgico a este gesto. O rito do “Pitakufa”, assim como inventado e vivido pelos antepassados daqueles que o praticam é um acto ritual, um “acto litúrgico” se assim quisermos: ele é uma linguagem religiosa que quer restabelecer a Vida como foi deixada e ensinada pelos Antigos. O encontro do morto com os seus Antepassados ... 159 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj Se esta minha intuição não for tão estranha à realidade das coisas, temos de concluir que estamos muito longe da visão éticosocial a que estamos habituados e longe do mundo feminista que veria neste mesmo acto um daqueles momentos de opressão do mundo feminino. Sem negar a validade destas visões, temos de aceitar que se trata de grelhas de leitura diferentes. Numa atitude científica temos a obrigação de procurar compreender o significado profundo, de uma dada realidade mas a partir daqueles que a instituíram, se não queremos viver de preconceitos. E para nós agentes da Pastoral fica-nos sempre uma pergunta incontornável: aquilo que de facto significa na tradição dos povos, este modo de proceder (=este rito de purificação) é ou não compatível com a Boa Nova trazida por Jesus Cristo? No caso de uma negativa, que fazer para que o “combate” a esta tradição não crie um vazio existencial que possa fazer mais mal do que o mal que se queria evitar ao instituir o rito de “pitakufa” por exemplo. Este é certamente um desafio para a inculturação, a real incarnação do Evangelho numa determinada cultura. O exemplo do acto sexual como acto purificador não é o único modo de purificar uma viúva; tanto é assim que nem todos os povos conhecem o “rito de pitakufa”. Mas certamente é um desafio pastoral lá onde esse rito é vivido. Como é também um desafio pastoral a destruição da palhota naqueles povos que a praticam. Aquilo que aqui importa salientar é a necessidade fundamental de compreender o significado de tais gestos, para que se possa dar uma evangelização real e adequada. Os muitos e diversos ritos de purificação muito bem descritos e analisados pelo Frei Amaral, mostram a importância não só de acompanhar os membros directamente afectados pelo fenómeno da morte, mas também um processo de os libertar de todo e qualquer contágio que a situação criou. Este processo é ao mesmo tempo um processo iniciático de reintegração, na sociedade de todos os dias. É também um acto de libertação definitiva para a viúva, O encontro do morto com os seus Antepassados ... 160 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj permitindo-lhe, por assim dizer, retomar a sua vida normal, sobretudo aqueles gestos em relação directa com a transmissão da vida. A omissão desse rito pode trazer tristes e graves consequências não só para a viúva, como até para a comunidade inteira. Pela clara incompatibilidade com a mensagem evangélica e pela crescente repugnância que as novas gerações sentem por ele, talvez fosse necessário encontrar um novo rito de purificação, capaz de convencer e tranquilizar as consciências das pessoas envolvidas e assim evitar criar um vazio perturbador. Os ritos do período liminal servem para acabar com o carácter de “invisibilidade” desse período não só das pessoas directamente envolvidas, mas também do próprio morto. Por “invisibilidade” entende Victor Turner, a condição de impureza ritual em que se encontram as pessoas de modo a terem que estar rigorosamente isoladas, como que “invisíveis”. O morto já esteve no mundo visível dos vivos mas não pode continuar nele. Então, é preciso acompanhá-lo e iniciá-lo na sua nova condição de um morto-vivo. Durante esse período de iniciação, o período de luto, ele se comporta como se não existisse, portanto, como se não fosse visível. O rito de ukubuyisa entre os Zulus de África do Sul, esse rito de “trazer o morto para casa”, é um rito de reintegração do morto não só na sua nova condição definitiva, de um integrado no mundo dos mortos-vivos, no mundo dos antepassados, mas também é uma espécie de entronização na sua nova função: de um espírito que está activamente presente no seio da sua família terrestre para a proteger dos eventuais perigos e abençoá-la, sobretudo as bênçãos da vida: a harmonia familiar e social, a fecundidade, a paz. Existe, pois, um processo longo e difícil de ancestralização do morto: é um caminho iniciático no qual o morto é ajudado a afastar-se mais e mais do mundo a que esteve O encontro do morto com os seus Antepassados ... 161 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj habituado, o mundo dos vivos, para se adentrar irresistivelmente no mundo dos antepassados, esses mortos-vivos. II- BREVES NOTAS SOBRE O MUNDO DOS ANTEPASSADOS Chegados aqui somos obrigados a tecer, ainda que mui brevemente, algumas palavras sobre o mundo dos antepassados. Não temos outra fonte de informação a não ser a própria crença bantu sobre os antepassados. 1- Um estudo linguístico da terminologia usada para designar os Antepassados pode-nos levar à conclusão de que não existe nas línguas bantu uma palavra genérica para designar os antepassados; existem sim vários termos que nos apontam vários atributos dos mortos: mizimu (com as suas variantes em diversas línguas) designa a condição essencialmente espiritual dos mortosvivos: os antepassados são essencialmente espíritos vivos. Akuluakale (os Anciãos de antigamente): reconhece-se a ancianidade daqueles que nos precederam no tempo e no espaço. Abapansi (= os que vivem debaixo da terra), designando os mortos pela sua nova morada: a Terra-Mãe. 2- No imaginário negro-africano existe uma morada dos antepassados, a aldeia dos antepassados. Conforme o habitat ecológico de cada Povo, essa aldeia pode situar-se para além da floresta, e um caminho longo, largo e bonito para lá nos conduz. Outros situarão tal aldeia para além do grande Rio que marca os confins do nosso mundo. Para outros ainda ela se situa debaixo da Terra-Mãe, e nesse imaginário, a termiteira é o lugar privilegiado de encontro entre os vivos e os mortos. Réplica fiel do mundo dos vivos, a aldeia dos mortos é, no entanto, mais bonito. Uma O encontro do morto com os seus Antepassados ... 162 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj característica típica é que lá no mundo dos mortos não se sofre mais, não se morre mais. 3- Um mundo destes não pode ser para todos indistintamente: no limiar da nova vida o morto é examinado pelos antepassados; há, portanto, um juízo particular: os que foram maus, aqueles que devotaram a sua vida à destruição das vidas dos outros, como são os feiticeiros (abathakati, baloi. Mfiti) são implacavelmente rejeitados e os que favoreceram a vida são acolhidos. Assim pensam os Yaka do Congo Kinshasa. 4- Os Antepassados são tidos como tendo uma missão bem especifica: estão sempre presentes no dia-a-dia dos seus descendentes para os proteger e defender. Travam uma luta ferrenha contra “inimigos da vida”. Eles manifestam as suas vontades através dos sonhos; manifestam o desejo de algum deles incarnar nalguma criança. São eles que chamam este ou aquele membro da família para junto deles. Numa palavra, os Antepassados estão activamente presentes na vida do clã. 5- Para além da vaga ideia da “Terra dos Mortos”, os vários povos determinaram para os seus mortos habitações concretas. Determinada Árvore dos Antepassados, o curral dos bois, a termiteira, o umsamo da casa entre os Zulus. Estes são sítios onde com facilidade cada clã pode entrar em contacto vivo com os seus Antepassados. Podemos dizer como conclusão a estas breves notas que, se existe um lugar onde se pensa viverem todos os Antepassados de uma etnia, houve contudo uma necessidade psicológica de cada clã localizar os seus antepassados. O encontro do morto com os seus Antepassados ... 163 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj III- CRISTO, ANTEPASSADO DOS ANTEPASSADOS: UMA LEITURA NEGROAFRICANA DE COL. 1, 15-20 O tema de Cristo visto como Antepassado, não é novo. Charles Nyamiti estudou-o no seu Christ as our Ancestor; e Benezet Bujo centra muita da sua reflexão sobre le Christ ProtoAncêtre. Consultando a bibliografia que vem no fim das Actas da Segunda Semana Teológica da Beira, compilado pelo Padre Vincent Bailey, podemos ver que o tema já fascinou muitos investigadores. Quando me foi pedido apresentar umas notas sobre a RTA aos Bispos da Imbisa reunidos em Pretória, África do Sul (dezembro 1993) em vista da preparação do Sínodo Africano foquei dois aspectos: 1º que a veneração dos antepassados era o cerne da RTA e 2º que um conhecimento mais aprofundado dos antepassados levar-nos-ia a um conhecimento mais aprofundado de Cristo e não dos Santos. Estava a contrariar claramente a visão de que os Antepassados não são para se compararem com os santos, mas sim com Cristo. Estas afirmações levantaram três reacções muito típicas entre os Bispos, reacções que eram, ao fim e ao cabo, sinal da longa e difícil caminhada que a Igreja de Deus em África está a empreender para uma maior assimilação da mensagem evangélica. Retomei a ideia na II Semana Teológica da Beira. Também hoje quero continuar o tema, mas a partir duma leitura negro-africana da carta de Paulo aos cristãos de Colossenses (Col. 1, 15-20). 1. Jesus Cristo é imagem visível do Deus invisível: Uma imagem é mais do que um símbolo. Existe uma certa identidade entre a imagem e a coisa que essa imagem representa; não é apenas uma fotografia, mas a presença viva daquilo que a imagem quer significar. Existe na Religião Tradicional Africana (RTA) uma ideia vaga de que há uma ligação existencial entre os O encontro do morto com os seus Antepassados ... 164 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj Antepassados e Deus, sobretudo o Antepassado-Fundador. Uma criança ou um descendente é imagem viva do antepassado sobretudo quando ela carrega o nome desse Antepassado. Cristo é a imagem viva do Deus invisível. 2. Primogénito de toda a criação: Primogénito implica ser primeiro na ordem da existência. A noção de primogenitura é muito importante em África; é um dos três princípios à volta dos quais se organiza a sociedade negro-africana (idade, sexo, estatuto social). A primogenitura implica antecedência no tempo e no espaço. E o respeito que se dá ao ancião é por causa da sua senioridade. Na longa cadeia das gerações, o primogénito é o que está mais próximo da fonte original da vida. Cristo é Primogénito “pois n´Ele tudo foi criado”. O Primogénito é em África o candidato por excelência para se tornar Antepassado, é um antepassado por vocação. IV- “TUDO FOI CRIADO POR ELE E PARA ELE (16C) 1) “Criado por ele”, implica que a criação depende existencialmente de Cristo, pois sem ele não teria existido. Estamos aqui no âmago do mito de criação. Em África muitas vezes o Criador “faz” a sua criação não directamente, mas através de um mediador. Assim o Antepassado –Fundador é o instrumento ideal de mediação na criação. Aqui Cristo seria esse mediador através do qual Deus faz a sua criação. a) “... e para ele”. Cristo não só é origem, mas também fim da criação. Ele o sentido último de tudo quanto existe. Cristo é, portanto, também o Antepassado dos negroafricanos. Cristo está na origem e na meta dos nossos antepassados. E isto porque Cristo existe antes de qualquer antepassado mesmo fundador de clãs. Por isso, Bujo lhe chama de ProtoAntepassado. O encontro do morto com os seus Antepassados ... 165 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj 2) “Tudo nele se mantém”. Fora dos antepassados não se pode conceber, no mundo negro-africano, nada de real. Não há um negro-africano que seja primariamente indivíduo, um ser isolado, subsistindo por si mesmo. Eu sou eu porque sou mlauzi, em relação vital com todos aqueles que carregam o mesmo sangue de mlauzi, faço parte dessa longa cadeia de negro-africanos que se mantêm unidos porque neles circula o mesmo sangue que se convencionou de chamar de mlauzi. Em Cristo, tudo e todos, inclusive os mlauzi, se mantêm relação com tudo e com todos. 3) Ele é a Cabeça do Corpo. O primogénito, antepassado por vocação, é na família, isso mesmo: cabeça, chefe, representante de todos perante os antepassados, elo incontornável de ligação. Prescindir dele é prescindir da vida, da existência. Cristo é isso mesmo, elo incontornável de ligação de tudo e de todos, portanto também dos meus antepassados, elo de ligação com Deus: não se pode ir directamente a Deus sem passar por Cristo. 4) Ele é o começo. Toda a genealogia tem começo. Podemos recuar sempre para trás até mais não conseguir recuar porque tenho de parar algures, nalguém que deu início, um começo a tudo quanto existe deste clã; é ele que iniciou a linhagem dos mlauzi; sem esse começo eu nunca seria mlauzi. E Cristo é isso mesmo: o começo de tudo e de todos, também dos mlauzi. 5) Primogénito dentre os mortos. No mundo negroafricano, falar dos antepassados é falar necessariamente do mundo dos mortos; e nesse mundo Cristo também é primogénito, o primeiro de todos os mortos “porque Ele ressuscitou verdadeiramente e não morre mais”. O encontro do morto com os seus Antepassados ... 166 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj 6) “Pois aprouve a Deus fazer habitar nele a plenitude da Divindade”, e certamente também a plenitude da Humanidade. De facto, os antepassados são aqueles que durante a sua vida realizaram o que se espera de um verdadeiro homem, dum verdadeiro munthu. Cristo é o Munthu por excelência por ser a imagem do Deus invisível, a realização plena do Homem ideal segundo planeou esse Deus, à sua imagem e semelhança. 7) E tudo reconciliar por meio dele e para ele. Reconciliar é aqui o termo fulcral. A harmonia universal espelha-se na harmonia clãnica e esta existe quando se observam as regras estabelecidas pelos Antigos, os antepassados. Sabemos que a reconciliação é uma demarche necessária para a harmonia social. Estar em paz com os outros membros do clã é fundamental para estar em paz com os antepassados e vice-versa. Estar em paz com os outros é condição `sine qua non´ para estar em paz com Cristo: “tudo o que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos é a mim que o fazeis”. 8) Tendo estabelecido a paz pelo sangue da sua cruz. Entre Cristo e os Antepassados tem de haver uma diferença radical. Não é pelo sangue da geração física ou pela vontade da carne que Cristo trouxe uma paz definitiva, mas sim pelo sangue da sua cruz. O sangue é o que identifica um negroafricano. O sangue de Cristo é o que dá identidade ao cristão, seja qual for o sangue clinico que carrega nas suas veias. CONCLUINDO O que tentei dizer neste tema, em resumo, é isto: o encontro do morto com os seus antepassados é um longo processo iniciático de ancestralização, no qual os vivos, através de ritos e tabus, ajudam o morto a assumir a sua nova condição de O encontro do morto com os seus Antepassados ... 167 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj existência: deixar o mundo dos vivos para entrar no mundo dos mortos. Essa entrada no mundo dos antepassados dá-se com o fim do luto em que os vivos afectados são de novo reintegrados na vida normal do clã; e o morto, através do rito do ukubuyisa por exemplo, é integrado no mundo dos seus antepassados e trazido para junto dos familiares vivos, mas numa nova condição e função: o morto de ontem tornou-se hoje também um antepassado que protege e abençoa. Esse encontro com os seus antepassados não podia deixar de ser um encontro com Jesus Cristo, o ProtoAntepassado, o Antepassado dos antepassados, Ele que é a origem e fim de toda a criação. Cristo é um Antepassado não na longa cadeia de gerações físicas, mas na nova cadeia de “gerações” no sangue da sua Cruz. É ali, no sangue da sua cruz, que Ele se torna o Primogénito, o Princípio e o Fim de todas as Tribos, raças, línguas, para a glória de Deus Pai. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS SOBRE OS ANTEPASSADOS LALEYE, Issiaka-Prosper, Le Religions de l´Afrique Noire, in Jean DELUMEAU, LE FAIT RELIGIEUX, fayard, 1993 SANON, Anselme Titiana, TIERCE EGLISE MA MERE, Inst.Cath.Paris TSANGU MAKWIBA Marie Viviane, Ancêtres et Honneurs de la Sepulture, in POUR UNE INTRODUCTION A L´AFRICANITE, d’ Universitaires de Fribourg, 1994. O encontro do morto com os seus Antepassados ... 168 Pe. Ezequiel Pedro Gwembe, Sj HOCHEGGER, Hermann, Ancêtres in DICTIONNAIRE DES RITES, Ceeba, Bandundu, 1985 Barbara TYRELL e Peter JURGENS : The birth of ancestor, in AFRICAN HERITAGE, Johannesburg 1983. Mort, Funerailles, Deuil et Culte des Ancêtres, Actas da III Semana de estudos etno-pastorais de bandundu, 1967.