Hamlet no Holodeck - LTS-i
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Hamlet no Holodeck - LTS-i
Flavio Miyamaru NUSP: 4941373 [email protected] CCA 5125 – Linguagens e Tecnologia Professora: Maria Cristina Castilho Costa Hamlet no Holodeck o futuro da narrativa no ciberespaço Janet H. Murray Narratividade digital A vontade do homem de contar histórias sempre esteve presente, seja através do lápis e papel, seja pela fala, ou até mesmo pelo movimento. As narrativas representam esta vontade e promovem a formação de comunidades em torno do mundo imaginário constituído pelas histórias criadas e contadas. Segundo Murray, “A beleza narrativa não depende do meio. Contos de tradição oral, histórias ilustradas, peças de teatro, romances, filmes de cinema e programas de televisão, todos podem variar do fraco e sensacionalista ao comovente e brilhante.” (pág. 255). A beleza da narrativa não depende exclusivamente do meio, no entanto, cada meio oferece ao autor elementos que podem tornar sua narrativa mais bela e interessante para seu público alvo, portanto a escolha do meio na qual o autor deseja veicular sua narrativa torna-se uma decisão crucial para que existam interessados na sua história. Ao longo de séculos e décadas, as mídias “tradicionais” ou analógicas têm formado uma base teórica sólida, na qual é possível extrair: guias para a criação de narrativas, técnicas para seduzir o leitor ou o espectador, um modelo cognitivo das pessoas no momento de interpretação das histórias e outras técnicas que permitem ao autor elaborar narrativas mais cativantes. A era da informatização trouxe novos meios de comunicação, identificados como mídias digitais, que trouxeram novas formas de transmitir idéias, informações e histórias. Suas possibilidades vão muito além da simples codificação em “zeros e uns” dos produtos das mídias analógicas. Novos mundos virtuais surgem a cada instante. Pessoas reais se transportam para o mundo virtual onde ganham um novo nome, uma nova personalidade e até novos amigos, criam um mundo imaginário ficcional ao lado de milhares de outros personagens digitais espalhados pelo globo terrestre. Os precursores, a estética, as formas de representação e assuntos correlatos da narratividade digital são abordados por Murray no livro Hamlet no Holodeck de maneira positivista e profunda que também promove uma visão do passado, do presente e futuro. O título realiza a fusão de dois elementos intertextuais: a famosa obra de Shakespeare, Hamlet, e a visionária máquina Holodeck. O Holodeck é uma câmara negra apresentado no seriado Start Trek na qual os passageiros da nave espacial utilizavam para interagir na sua holonovela. Quando acionado, o Holodeck criava um ambiente com projeções computacionais onde podiam interagir com outras pessoas virtuais (hologramas) temporariamente materializados fisicamente. Esta tecnologia que propõe simular as sensações da realidade de forma que as pessoas interajam de forma transparente de sua real posição no espaço-tempo. O Holodeck vislumbrado pelos autores de StarTrek ainda estão longe de serem desenvolvidos, mas já é possível encontrar protótipos designados como Cavernas Digitais (CAVE - Cave Automatic Virtual Environment), onde projetores criam imagens nas paredes de uma sala, constituindo um novo cenário para o ambiente do usuário. Um exemplo desta tecnologia pode ser encontrado na USP, na Caverna Digital do LSI1. Para entender como narrativas tradicionais como Hamlet poderiam ser encenadas dentro de um ambiente como o Holodeck é necessário compreender as características das narrativas neste novo ambiente. 1 http://www.lsi.usp.br/interativos/nrv/caverna.html As narrativas não foram abruptamente retiradas de sua linearidade um formato multifacetado dos mundos virtuais. Houve uma longa transição na qual os elementos narrativos já foram propostos pela própria cultura. Eles foram descobertos nas próprias mídias analógicas e foram impulsionados pelas facilidades trazidas pelas mídias digitais. Um importante precursor para as narrativas digitais foram as histórias multiformes que ofereciam ramificações do enredo da história principal que poderiam variar em relação ao ponto de vista, ou seja, os fatos da história são narrados de pontos de vistas de diferentes personagens, ou em relação ao percurso da história em que são apresentadas opções para o prosseguimento da história, existindo então diferentes desfechos para a história. A retratação de múltiplos caminhos foi parte da “percepção que caracteriza o século XX, ou seja, a vida enquanto composição de possibilidades paralelas” (pág. 49). Nestas histórias a audiência ganha possibilidades para escolher, mesmo dentro de opções restritas a sua perspectiva do enredo. A audiência tornou-se mais ativa, trazendo duas novas situações: o leitor ficaria perturbado devido a necessidade de escolha para continuar a história. Seu papel de ouvinte ou espectador foi alterado, o que poderia não agradar o leitor que espera a “melhor” história, não querendo ser o responsável pela escolha de uma história ruim. Por outro lado existe o convite para participar do processo criativo em conjunto com o autor, mesmo que em espaços temporais distintos, o leitor consegue, dentro dos limites estabelecidos pelo autor, constituir a sua própria história. Um gênero que influenciou as mídias digitais foram os jogos de RPG (Role-Playing Game) que consistem na interpretação teatral de personagens definidos pelos próprios jogadores que os projetam dando-lhes características físicas, emocionais, éticas e determina suas ações dentro do mundo imaginário. O moderador do jogo guia os personagens indicando seus objetivos, os inimigos para combater e indica a vitória ou derrota do grupo. No entanto, mesmo com estes poderes, o moderador isoladamente não consegue constituir a história. Ele depende das ações tomadas por cada personagem, que podem ser as mais variadas possíveis. Se um personagem quiser ele pode tirar um cochilo em baixo de uma árvore. A princípio esta ação é imprevisível pelo moderador, que diante da situação pode dizer que o personagem cochilou ao lado de um grande formigueiro que começou a atacá-lo. Neste caso os personagens (audiência) ganham forte poder de autoria, decidindo o rumo da história com infinitas opções, dependendo exclusivamente de sua criatividade. Já na década de 80 surgem os MUDs (Multi-User Domains, ou Dominios Multiusuários) nos quais jogadores distantes entre si compartilhassem, através da internet, um espaço virtual no qual podiam conversar uns com os outros em tempo real. Desta forma os jogos de RPG puderam ser transferidos para os ambientes virtuais. Outro precursor do Holodeck é o programa ELIZA, capaz de manter uma conversação respondendo, com palavras impressas, a sentenças digitadas. “A persona resultante, Eliza, parecia-se com um terapeuta rogeriano, o tipo de clinico que devolve as inquietações dos pacientes como um eco, sem interpretá-la.”(pág. 76). Desde então novas “Elizas” surgiram, com algoritmos de inteligência artificial que tornam cada vez mais realistas as conversas com estes “robôs” virtuais. Interagir com um personagem digital tornou-se algo corriqueiro, sites apresentam maneira de você conversar com Jonh Lennon2 ou com uma nova amiga virtual A.L.I.C.E.3. Novos sistemas de atendimento telefônico automático também possuem uma inteligência que permitem uma conversa primitiva com o computador. Algumas conversas escritas são suficientemente convincentes para que os humanos não percebam que do outro lado não existe uma pessoa. No entanto, ainda estamos longe da simulação de uma conversa com um robô virtual através da voz ou imagens suficientemente convincentes. Murray define as seguintes características das narrativas em ambientes digitais: Os ambientes digitais são Procedimentais 2 3 http://triumphpc.com/johnlennon/index.shtml http://www.pandorabots.com/pandora/talk?botid=f5d922d97e345aa1 O computador tem o poder de processamento de regras definidas pelo seu programador. Desta forma, uma narrativa digital somente é computada mediante instruções definidas pelos seus autores. Estas instruções formarão o enredo desejado para a narrativa, que deverão ser codificadas pelos programadores de forma a abstrair o comportamento desejado na interação do autor e sua audiência. Existe o desafio de proporcionar ferramentas que permitam o autor “não cientista da computação” possa elaborar estas regras e desta forma criar suas narrativas de maneira aberta e prática. No entanto a criação destas ferramentas depende primeiramente da abstração do comportamento desejado para a narrativa, o que nem sempre é trivial, na medida em que sistemas não determinísticos podem ser desejados para representar o comportamento. Algumas ferramentas de formalização de uma estrutura complexa de regras e objetos que compõe o enredo são discutidas por Murray como a proposta de Ronald B. Tobias que sugere a existência de vinte enredos mestres em toda literatura. Já os bardos compunham suas historias baseadas em um estoque de blocos básicos que compunham temas e enredos. Neste mesmo contexto temos o trabalho de Vladimir Propp que analisou 450 contos de fadas na qual derivaram uma narrativa central composta por 25 “funções básicas”. Para Murray o futuro nesta modelagem de enredos baseia-se na abstração de elementos para que formem quadros, idéia proposto por Minsky, nos quais podem ser descritos os atributos e funções do objeto que conectados entre si oferecem a relação entre os elementos. Os ambientes digitais são Participativos O interator, pessoa que interage com a narrativa, tem a capacidade de trocar mensagens com os computadores, induzindo o seu processamento. Os programas de computador reagem às informações ou comandos inseridos pelo interator, proporcionando novos caminhos para suas narrativas multiformes. Os ambientes digitais são Espaciais Enquanto meios lineares como livros e filmes retratam os espaços tanto pela descrição verbal quanto pela imagem, os ambientes digitais oferecem espaços na qual é possível se movimentar. Este movimento vai além dos movimentos das imagens, dos personagens, dos ícones na tela do computador. Também independe da sua função comunicativa de integração das pessoas distantes geograficamente através da Internet. Esta qualidade espacial do computador é criada pelo processo interativo de navegação. O poder concedido ao interator modificar seu estado e contexto através de uma ação (clique em um link, a escrita de um comando, um botão do joystick), permite o usuário caminhar pelos diferentes estados, páginas, telas ou cenários, criando uma estrutura deste ambiente na qual a decisão de escolha está em suas mãos. Os ambientes digitais são Enciclopédicos O poder de armazenamento, recuperação e processamento de informação por meio dos computadores é algo além do imaginado. Esta quantidade de informação armazenada proporciona a criação de um ambiente rico em detalhes. A possibilidade de interagir em um museu virtual, olhando detalhes das obras, detalhes da vida do artista, fotos de seu atelier e vídeos com entrevistas sobre a obra permite um potencial artístico para autores neste novo ambiente. Por outro lado a natureza enciclopédica pode dificultar a busca do "fim". Diante da imensidão de informações, de caminhos navegáveis, o ato de encerrar uma visita ao mundo virtual torna-se algo indefinido. O interator deve escolher o momento que se sente satisfeito com a interação, finalizando o programa de computador. A beleza do meio Murray distingue três pontos focais que representam a Estética do meio: a imersão, a agência e a transformação. A imersão representa a experiência de ser transportado para um lugar primorosamente simulado. O interator mergulha em um mundo encantado, onde o espaço do imaginário do mundo físico-real é tomado pelo mundo virtual criado pelas narrativas. Em qualquer meio é preciso descobrir os limites entre o mundo da representação e o mundo real permitindo que o interator consiga ser transportado para este mundo da representação. Os autores das narrativas tradicionais promoveram convenções para sustentar o transe imersivo entre elas a não participação do público. Segundo Langer a arte depende do estabelecimento de uma distancia entre autor e público, tornando uma comunicação praticamente unidirecional. A participação do público não chega ser repudiada, no entanto é uma tarefa extremamente complexa para o autor manter a audiência imersa, em um enredo na qual é preciso sair do papel de ouvinte e agir como um colaborador e raciocinar sobre o próximo passo da história, que nem sempre pode atender as suas expectativas e todas as possibilidades levantadas pelo colaborador. Neste momento os meios digitais oferecem recursos que permitem a imersão mesmo com a colaboração do público. Oferecer a possibilidade de criar seu próprio universo e capacidade de induzir comportamentos que dão vida a objetos e personagens imaginários. Estes personagens são as máscaras que as pessoas vestem que permite distinguir a pessoa fora e dentro do ambiente virtual. São personagens ou avatares que oferecem uma forma de camuflar sua identidade e incentivar a criatividade. Promove a desinibição que permite falas ou ações que nunca realizariam na vida real. Estes avatares podem conquistar postos hierárquicos, poder e fama que podem ser dificilmente alcançados no mundo real. No entanto esta imersão deve ter fronteiras para não ser destruído. De acordo com Winnicott, “o elemento prazeroso do jogar traz consigo a implicação de que a excitação instintiva não é excessiva, isto é, os objetos do mundo imaginário não devem ser demasiadamente sedutores, assustadores ou reais a fim de que o transe imersivo não se rompa” (pág.119). No ambiente colaborativo aberto, torna-se de grande dificuldade esta fronteira das ações que podem provocar excitações extremas. Como banir um personagem que trapaceia “no mundo real” para levar vantagens no mundo virtual? Como tratar questões éticas dentro do ciberespaço? Ainda são dilemas que aumentam a complexidade deste meio. Outro elemento estético é a agência que se refere à capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas. A navegabilidade oferecida pelos espaços virtuais ou hiperlinks emerge o prazer da tomada de decisão pelo interator proporcionando o comando sobre a situação e uma suposta liberdade de escolha da sua próxima página ou da próxima sala virtual. Muitas histórias utilizam o labirinto de aventura como forma de criar uma ambiente mais imersivo, onde “sua atração advém da fusão entre um problema cognitivo (encontrar o caminho) e um padrão emocional simbólico (enfrentar o que é assustador e desconhecido)”. O hipertexto narrativo proporciona um segundo tipo de labirinto digital originário da comunidade literária acadêmica, comparando-se a um rizoma, rede de fios emaranhados que permite infinitas possibilidades de navegação. Os labirintos precisam basear-se me histórias que sejam impulsionados por objetivos que além de guiar a navegação possam manter o cenário aberto o bastante para permitir a livre exploração. Neste momento o autor deve criar momentos de ansiedade no interator de maneira que consiga prende-lo no enredo através do suspense, do terror ou da diversão. Segundo Murray, “um jogo é um tipo de narração que se parece com um universo da experiência cotidiana, mas condensa esta última a fim de aumentar seu interesse”. Esta visão ultrapassa a simples visão do jogo como uma brincadeira de perde e ganha, mas como um universo dramático que oferece oportunidade de extravasar o desejo de vencer a adversidade, de sobreviver às inevitáveis derrotas, de modelar nosso ambiente, de dominar a complexidade e de fazer nossas vidas se encaixarem como as peças de um quebra-cabeça. MUDs são universos abertos suficientes a ponto do interator ignorar todo o propósito do mundo concebido e criar suas próprias regras. Um guerreiro pode deixar de atacar seus inimigos para o acumulo de ouro e poder, para simplesmente encontrar uma namorada. Talvez o autor do jogo não tenha pensado nesta possibilidade, tampouco tenha projetado para que existam ações como beijos e abraços, mas o personagem pode encontrar maneira de representar estas ações virtualmente. Abre-se a seguinte questão: Até que ponto somos os autores da obra que vivenciamos? A autoria nos meios eletrônicos é procedimental, o que significa escrever as regras pelas quais os textos aparecem tanto quanto escrever os próprios textos. “Significa escrever as regras para o envolvimento do interator, isto é, as condições sob as quais as coisas acontecerão em resposta às ações dos participantes. Significa estabelecer as propriedades dos objetos e dos potenciais objetos no mundo virtual, bem como as fórmulas de como eles se relacionarão uns com os outros. O autor procedimental não cria simplesmente um conjunto de cenas, mas um mundo de possibilidades narrativas” (pág. 149). Este poder concedido ao autor e ao interator proporciona uma infinidade de possibilidade para a história, permitindo que ela esteja em constante transformação. Surgem novos desafios como a dificuldade de criar uma história coesa dentro de um ambiente tão fluido, e como mostrar ao interator que sua jornada tem fim. Em busca de um novo conjunto de convenções formais para lidar com a mutabilidade, surge a proposta dos caleidoscópios multidimensionais, que permitem reagrupar os fragmentos de forma a criar padrões de organização destes mosaicos. Outro dilema da era da informação entra em cena, a quantidade de informação disponível para as pessoas é algo saudável? Como lidar com tamanha massa de informação? A experiência de uso de um programa em mosaico proporciona uma qualidade maior para o usuário? Não seria mais saudável e produtivo o uso da forma correta e mais efetiva de cada mosaico ao invés de oferecer uma enxurrada de informação? Marshall McLuhan ressaltou a estrutura dos meios de comunicação do século XX são mais mosaicos do que lineares, se comparados com o livro impresso. No ambiente digital, estes mosaicos tornam-se dinâmicos permitindo que sejam reagrupados tantas vezes quisermos. Estes mosaicos podem ser representados por programas de televisão como os seriados Lost e Heroes têm apresentado uma integração com outros meios digitais como a internet, onde materiais extras para a história passada nos episódios da TV são disponibilizados. Isto promove uma experiência narrativa multiforme, na medida em que abre a possibilidade de diferentes abordagens e visões sobre o enredo principal. O novo paradigma onde a simulação permite a manipulação de sistemas inteiros com a criação de personagens, objetos, tramas e desafios nos quais o interator ganha agência sobre este novo mundo suficiente para interagir e transformar o sistema e proporcionar o prazer de sua imersão nas narrativas digitais. Torna-se um grande desafio prever o rumo das novas criações. A expansão da virtualidade sobre a realidade continuará cultivando uma incógnita que merece reflexão sobre implicações sociais, midiáticas e até econômicas sobre nossa duas vidas: virtuais e reais.