Antonio Gomes de Jesus Neto
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Antonio Gomes de Jesus Neto
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 O BANCO MUNDIAL E OS TRANSPORTES EM MOÇAMBIQUE Antonio Gomes de Jesus Neto Universidade de São Paulo (USP) [email protected] INTRODUÇÃO Diversas vezes, quando o tema das finanças é abordado na ciência geográfica, se coloca em questão a relevância atual do espaço geográfico (principalmente do seu conteúdo material) na composição do universo financeiro: a aparente virtualidade dos fluxos financeiros – invisíveis, transmitidos quase instantaneamente e acessíveis de praticamente qualquer lugar do mundo – muitas vezes induz a uma análise que considera o espaço geográfico cada vez menos relevante na organização do sistema econômico mundial (como na famosa hipótese do “fim da geografia” de Richard O’Brien, 1992). É exatamente dessa importância subestimada do espaço geográfico nas finanças mundiais que tentaremos nos aproximar neste trabalho, focando nossas atenções no interesse do Banco Mundial na reestruturação do sistema de transportes de Moçambique. Cercaremos o tema a partir de três abordagens distintas: uma teórica, uma histórica e uma empírica. Na abordagem inicial, teórica, pretendemos elaborar uma pequena discussão através de diferentes autores sobre o sistema financeiro mundial e a chamada “globalização”. Achamos importante a inserção desses debates para situar as condições desse sistema financeiro mundial que permitem ao Banco Mundial agir em Moçambique hoje. Dadas essas condições, partimos então para uma periodização do assunto em questão. Pretendemos nesse item organizar cronologicamente a trajetória do Banco Mundial que o levou a atuar em Moçambique, simultaneamente a uma cronologia do sistema econômico moçambicano que culminou com o ajustamento às políticas do Banco Mundial na década de 1980. 1787 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 A partir desse encontro entre ambos chegamos ao último item do presente trabalho, que trata empiricamente dos recentes investimentos do Banco Mundial no sistema de transportes de Moçambique. Destacando a articulação entre a circulação financeira e a circulação de bens e pessoas, nosso intuito final é analisar os projetos do Banco Mundial no setor de transportes do país, com base nos documentos e dados disponíveis na internet na seção de Moçambique no site do Banco Mundial. SISTEMA FINANCEIRO, BANCO MUNDIAL E CIRCULAÇÃO Como explicitado no título e na introdução deste trabalho, pretendemos demonstrar aqui a articulação existente entre a circulação financeira e a circulação de bens e pessoas. Mais especificamente, a articulação entre o Banco Mundial e o sistema de transportes de Moçambique. Em um mundo regido pelas finanças, como afirmam CHESNAIS (1998) e SANTOS (2000), entendemos que os conteúdos normativos da relação entre o Banco Mundial e o Estado moçambicano são ditados pelo primeiro, e por isso achamos importante uma breve contextualização do sistema financeiro mundial contemporâneo que possibilita essa relação. De acordo com MARTIN (1999), o sistema financeiro mundial passa atualmente por três processos de transformação que se interpenetram, criando um novo mapa das finanças mundiais: a desregulação, a inovação tecnológica e a globalização. A desregulação, segundo o autor, teve início em 1973, com o abandono dos preceitos de Bretton Woods (onde o livre comércio dependia de uma certa regulação e autonomia dos Estados nacionais) e o início de uma sucessão de medidas que tiravam o poder dos Estados nacionais com relação às finanças: “Restrições no movimento de capitais foram relaxadas ou abolidas, bolsas de valores foram desreguladas, o mercado financeiro e fronteiras fiscais de produtos foram desmantelados, controles sobre operações bancárias e outras instituições financeiras foram removidas, e grande parte das atividades estatais privatizadas (MARTIN, 1999, p. 13)” 1 Em suma, as “fronteiras regulatórias do sistema financeiro foram redesenhadas” (MARTIN, 1999, p. 13) 2. Paralelamente a esse processo de desregulação, a inovação 1 Tradução nossa. No original: “Restrictions on capital movements were relaxed or abolished, stock markets were deregulated, financial market and product boundaries were dismantled, controls on the operation of banks and other financial institutions were removed, and large sections of state owned activities were sold off (privatised)”. 2 Tradução nossa. No original: “(...) regulatory boundaries of financial systems have been redrawn (...)”. 1788 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 tecnológica vem também transformando a geografia do sistema financeiro mundial, através das novas formas de dinheiro “imaterial”, das transferências financeiras quase instantâneas e dos novos produtos financeiros advindos dessas atualizações tecnológicas. Esses dois processos acabam por promover um terceiro citado pelo autor, que define o atual mapa financeiro mundial: a globalização. Segundo o autor, a globalização remete a uma crescente integração e convergência de relações econômico-espaciais em detrimento das fronteiras e instituições nacionais, e é na esfera financeira que esse processo é mais avançado. Por mais que concorde com o fato do sistema financeiro ser o grande articulador da globalização, SANTOS (2000) alerta para o caráter ideológico desse processo, onde mais do que uma integração entre os territórios, os atores da globalização buscam uma homogeneização dos costumes e do consumo mundiais, reforçando assim o poder desse sistema financeiro. A consciência desse domínio da esfera financeira levou CHESNAIS (1998) a cunhar o termo “mundialização financeira”, que o autor descreve da seguinte maneira: “A expressão ‘mundialização financeira’ designa as estreitas interligações entre os sistemas monetários e os mercados financeiros nacionais, resultantes da liberalização e desregulamentação adotadas inicialmente pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, entre 1979 e 1987, e nos anos seguintes pelos demais países industrializados. A abertura, externa e interna, dos sistemas nacionais, anteriormente fechados e compartimentados, proporcionou a emergência de um espaço financeiro mundial” (p. 12) Assim como SANTOS (2000), porém, o autor também ressalva que esse espaço financeiro mundial não é um espaço homogêneo (por mais que se esforce por uma homogeneização), tampouco horizontalmente dirigido. Pelo contrário, ele é fortemente hierarquizado, polarizado pelo sistema financeiro norte-americano, e carente de instâncias de supervisão e controle. Nas palavras de CHESNAIS (1998, p. 12), “A integração internacional dos mercados financeiros nacionais tornou-se possível a partir de sua abertura regulamentar e de sua interligação em tempo real. Mas o efetivo contexto dessa integração decorre, de forma concreta, das decisões tomadas e das operações efetuadas pelos gestores das carteiras mais importantes e mais internacionalizadas” Esse controle do espaço financeiro mundial, no entanto, não se dá diretamente pelo governo norte-americano, mas por sua influência sobre instituições que se dizem internacionais e que não são vinculadas diretamente a um Estado nacional. A aparente 1789 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 desvinculação territorial dessas instituições levou SANTOS (1999) a falar de um “dinheiro global” que se sobrepõe ao Estado, “um dinheiro sustentado por um sistema ideológico” (p. 10) composto, segundo o autor, por duas lógicas de funcionamento - uma individual (das empresas), e uma que seria a inteligência geral: “Essa inteligência geral não pode ser confiada aos Estados porque estes podem decidir atender aos reclames das populações. Então são esses governos globais, representados pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial, pelos bancos internacionais regionais, como o BID, pelo consenso de Washington, pelas Universidades centrais produtoras de idéias de globalização e pelas Universidades subalternas que aceitam reproduzi-las” (SANTOS, 1999, p. 11). O Banco Mundial aparece, portanto, como um dos atores determinantes e reguladores das políticas estatais do mundo todo relacionadas às finanças. O surgimento, direcionamento ideológico e atuação dessa instituição serão discutidos no próximo item desse trabalho, bem como sua trajetória até o encontro com Moçambique. Perguntamos-nos agora, porém, os motivos que levam o Banco Mundial a investir na reestruturação dos transportes em Moçambique. Em outras palavras, qual o interesse de uma instituição financeira mundial em melhorar as condições de circulação material em um Estado nacional? CHESNAIS (1998) fala, com cautela, de certa autonomia da esfera financeira em relação à esfera produtiva atualmente. O funcionamento do mercado financeiro chegou a tal ponto que grande parte das transações financeiras acontece no plano imaterial, em operações que não necessitam de uma contrapartida em mercadorias ou serviços – elas começam e terminam virtualmente. Entretanto, por mais autônoma que pareça a esfera financeira em relação ao mundo material, “...isso não significa que não existam vínculos muito fortes, e sobretudo de grande alcance econômico e social, entre a esfera da produção e comércio internacional e das finanças. A esfera financeira alimenta-se da riqueza criada pelo investimento e pela mobilização de certa força de trabalho de múltiplas qualificações” (CHESNAIS, 1998, p. 15) Assim, ao investir nos transportes em Moçambique, o Banco Mundial entende que existe uma articulação importante entre a circulação financeira, a qual ele é um dos principais agentes mundiais atualmente, e a circulação de mercadorias, mesmo em um Estado periférico e frágil financeiramente como Moçambique. Além disso, não só a circulação de mercadorias em Moçambique põe em movimento o capital financeiro mundial, 1790 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 como as próprias obras de reestruturação dos transportes, de custos elevados como veremos mais à frente, colocam muito dinheiro em circulação. Importante dizer, o setor de transportes é apenas um dos setores onde o Banco Mundial investe em Moçambique. Infra-estruturas ligadas aos setores de energia, água, saneamento e comunicação vão sendo construídas e re-construídas com auxílio do Banco Mundial, bem como projetos de desenvolvimento agrícola e industrial. Da mesma forma como foi dito anteriormente, esses investimentos refletem a consciência do Banco Mundial sobre a articulação entre a esfera produtiva e a esfera financeira, e o setor de transportes é o que garante a circulação em ambas. No próximo item, traçaremos as histórias paralelas do Banco Mundial e de Moçambique que culminaram no encontro entre as duas instituições em 1984. O ENCONTRO ENTRE BANCO MUNDIAL E MOÇAMBIQUE Antes de fazer um paralelo entre os caminhos de Moçambique e do Banco Mundial até o início das relações entre ambos, nos parece importante uma breve introdução sobre a composição e a organização institucional do que chamamos de Banco Mundial. Existe uma diferença entre o “Banco Mundial” e o “Grupo Banco Mundial”. O Grupo Banco Mundial é composto por 5 organizações diferentes, porém complementares: o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), a Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), a Corporação Financeira Internacional (CFI), a Agência Multilateral de Garantias de Investimentos (AMGI) e o Centro Internacional para Conciliação de Divergências em Investimentos (CICDI) 3. Aquilo que chamamos por Banco Mundial é a junção do BIRD e da AID, cujas funções e modos de funcionamento são explicados por PEREIRA (2013, p. 378-379): “O BIRD concede empréstimos a países de renda média e de baixa renda solventes, captando recursos em mercados de capital e emprestando a seus clientes em condições próximas às do mercado financeiro internacional (hard loans). O lastro das suas operações denomina-se ‘capital geral’, e é aportado pelos Estados-membros, em proporções desiguais, e só pode ser aumentado após negociações entre eles. Já a AID efetua empréstimo de longo prazo e com baixas taxas de juros (soft loans) a países pobres com pouca ou nenhuma 3 Para mais informações sobre a função específica de cada uma dessas organizações, ver ISMI (2004) e o site do Banco Mundial (www.worldbank.org). PEREIRA (2013) inclui ainda dentre essas organizações o Instituto do Banco Mundial (IBM) e o Painel de Inspeção, mas como tanto ISMI (2004) como o próprio Grupo Banco Mundial vêem a existência de apenas 5 organizações internas, ficamos com esse arranjo. 1791 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 capacidade de tomar emprestado nas condições de mercado. A AID tem três fontes de financiamento: contribuições do BIRD, pagamento com juros dos empréstimos que realiza e, a mais importante, contribuições voluntarias negociadas entre países doadores a cada três anos”. Assim, quando falamos dos investimentos do Banco Mundial na reestruturação do sistema de transporte de Moçambique, nos referimos basicamente ao BIRD e à AID. Ainda que as outras organizações do Grupo Banco Mundial também atuem em território moçambicano, elas não possuem essa função de investir diretamente em infra-estruturas como o chamado Banco Mundial. O BIRD foi a primeira a surgir dentre essas organizações. Criado após a Conferência de Bretton Woods, em 1944, mas como resultado de negociações anteriores principalmente entre o governo norte-americano e o britânico, o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento era na verdade uma organização financeira multi-lateral concebida e levada adiante pelos Estados Unidos e, portanto, expressava a visão norte-americana acerca da economia mundial. Sua missão primordial “consistia em prover garantias e empréstimos para a reconstrução dos países-membros afetados pela guerra (PEREIRA, 2012, p. 396)”, sempre visando os interesses de seu principal acionista, os Estados Unidos. A própria localização geográfica do BIRD deixava claro sua subordinação a esse Estado: “As decisões sobre a localização do BIRD e o papel dos diretores executivos provocaram efeitos duradouros sobre as suas operações, facilitando a interação cotidiana com o governo norte-americano (PEREIRA, 2012, p. 397)”. O BIRD, porém, não tinha recursos suficientes para sua missão de reconstruir a Europa arrasada pela guerra, e estava caminhando para um grande fracasso poucos anos após sua abertura. Como o governo norte-americano, principal provedor de recursos do banco, estava voltando sua política externa à contenção da ameaça comunista na Europa (com o início da Guerra Fria), o BIRD começou a se aproximar de Wall Street na tentativa de angariar fundos para seus objetivos, ainda que fortemente supervisionado e com interferência direta do governo norte-americano. Os banqueiros, por sua vez, tinham interesse em investimentos seguros, e grande parte dos investimentos do BIRD eram voltados aos países capitalistas mais industrializados, onde o retorno era garantindo. Mesmo assim, o banco voltava suas atenções também às colônias européias na África, mas em proporções muito menores do que à Europa: “Além disso, parte desses empréstimos foi destinada ao financiamento de 1792 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 projetos em áreas coloniais de interesse das suas respectivas metrópoles, contribuindo para provê-las de matérias-primas ou, simplesmente, abrir ou expandir frentes de exploração econômica a empresas metropolitanas. [...] Desse modo, o BIRD contribuiu para que a Bélgica, a Inglaterra e a França prosseguissem com a sua dominação colonial, bem como aplainassem o terreno para a dependência econômica pós-colonial. Em casos assim, os recursos emprestados foram gastos, quase que integralmente, na importação de bens e serviços de empresas metropolitanas, com o agravante de que as dívidas contraídas pelas metrópoles foram depois transferidas aos novos Estados (PEREIRA, 2012, p. 407)”. Quando da formação desses novos Estados o BIRD não via essas instituições pós-coloniais como elegíveis ao recebimento de créditos, fechando quase totalmente o acesso desses Estados ao Banco. A inclinação política dos Estados pós-coloniais, porém, fizeram o BIRD passar a se preocupar mais seriamente com o continente africano: “Aos poucos foram se avolumando os governos inclinados à adoção de políticas econômicas voltadas para o mercado interno e a industrialização por substituição de importações. Em certos casos, tais políticas eram acompanhadas da nacionalização de empresas e ativos patrimoniais e financeiros estrangeiros. O fracasso da dominação colonial sobre o Congo Belga e a Argélia aumentou o temor de que nacionalismo e socialismo convergissem e contagiassem todo o continente africano (PEREIRA, 2012, p. 414).” Somada a essa ameaça comunista, o fato do BIRD não se mostrar um banco de desenvolvimento e a criação de um fundo das Nações Unidas para o desenvolvimento (o SUNFED), levaram o governo norte-americano a criar uma nova instituição financeira, vinculada ao BIRD e voltada ao auxílio dos países menos favorecidos economicamente, mas que eram importantes geopoliticamente para os Estados Unidos: a Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), fundada em 1960. Moçambique, porém, não fazia parte dos planos dessas duas organizações até então. Quando da criação do banco, o país era ainda colônia portuguesa, e foi só a partir do final da II Guerra Mundial que Portugal viu sua colônia como um recurso para reconstruir sua economia pós-guerra. Até ali, Moçambique era puro fornecedor de matéria-prima para a metrópole, mas os Planos de Fomento do governo português instituídos a partir de 1953 mudaram a posição da colônia. Com o intuito de promover o desenvolvimento industrial de Moçambique, esses planos basicamente se constituíam em investimentos para construção de infra-estruturas de transportes que possibilitassem a conexão entre a produção e a 1793 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 exportação tanto agrícola (explorada desde muito tempo) quanto das novas indústrias. Ainda que esses investimentos não tenham vindo diretamente do BIRD, foi o início das relações de Moçambique (através de Portugal) com os Estados Unidos. Nas palavras de BELLUCCI (2007): “A valorização das colônias não poderia se fazer sem uma política de investimentos. Assim, a utilização dos capitais na ajuda norte-americana à Europa – o Plano Marshall – era vista como a única maneira de Portugal ultrapassar sua incapacidade de estender as transformações políticas às colônias. [...] Em Moçambique, a ajuda americana serviu, sobretudo, para as ferrovias, para o porto da Beira e para a produção de energia elétrica, ou seja, reforçando a economia de trânsito. (p. 111)” Esses investimentos, porém, não vinham apenas do governo norte-americano. Para construir uma ferrovia que ligava Lourenço Marques (atual Maputo, capital moçambicana) à fronteira com a Rodésia do Sul (atual Zimbabwe), o governo português contou com o investimento de um banco situado nos Estados Unidos. Segundo SERRA (2000), “Com a ajuda diplomática britânica, Portugal obteve um empréstimo de 17 milhões de dólares do Banco de Importações e Exportações, sediado nos E.U.A., que pagava cerca de 80 por cento das despesas de construção, e que constituiu cerca de 36 por cento do total das despesas do I Plano de Fomento (p. 164)” Dessa forma, fica claro que o interesse norte-americano no sistema de transportes de Moçambique, que culmina com os atuais investimentos do Banco Mundial no setor, é de longa data. Esse interesse, porém, sofreu uma grave ruptura na década de 70. Os processos de independência das colônias africanas começaram a despontar com a independência de Gana, em 1958. Uma a uma, diversas colônias foram angariando sua libertação perante as potências européias ao longo de toda a década de 60. As colônias portuguesas, porém, não conseguiam negociar suas independências pacificamente, e se viram obrigadas a organizar movimentos armados que deram origem às guerras de libertação. Assim, por mais que o governo português não medisse esforços para garantir seu poder sobre Moçambique, em 1975 a ex-colônia se tornou um Estado independente e, para frustração dos investidores norte-americanos, de orientação socialista. A desaprovação das potências capitalistas, lideradas pelos Estados Unidos, em relação à opção socialista não foi apenas ideológica. A proposta do governo moçambicano 1794 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 independente era de ruptura com todas as diretrizes coloniais, o que incluía a nacionalização dos sistemas de produção e circulação, que agora seriam voltados ao desenvolvimento interno do Estado e do processo de industrialização. Como os países capitalistas tinham muito interesse no continente africano como fornecedor de matéria-prima e mercado para seus produtos industrializados, o fechamento de Moçambique ao mercado externo os deixou preocupados. Desde muito tempo, Moçambique funcionava como território de escoamento da produção das colônias britânicas, devido aos seus 2.795 km de costa marítima, onde se situam importantes portos da África Austral. É nesse contexto que os governos da Rodésia do Sul (atual Zimbabwe) e da África do Sul, ainda com os brancos no poder e sob influência econômica dos britânicos e norte-americanos, passaram a investir e incentivar ataques às infra-estruturas de transporte moçambicanas, visando desestabilizar o projeto socialista e impossibilitando praticamente toda a circulação de fluxos materiais (de todas as naturezas) em Moçambique, dando origem à chamada “guerra de desestabilização”. Durante os anos da guerra de desestabilização, a situação econômica interna do país se deteriorou a um nível insustentável, de maneira que o governo moçambicano não encontrou outra opção senão recorrer à ajuda estrangeira, aumentando exponencialmente sua dívida externa 4 . Na tentativa de negociar essas dívidas, em 1984 o governo moçambicano aderiu ao FMI e ao Banco Mundial, marcando a entrada do país na lógica neo-liberal. Essa adesão de Moçambique, porém, não foi um fato isolado no continente africano, fazendo parte de um grande projeto do Banco Mundial para os Estados pós-coloniais da África na década de 80, chamado Programa de Ajustamento Estrutural (PAE). No final da década de 70, com a subida ao poder de Margareth Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, as orientações políticas resultantes da conferência de Bretton Woods são duramente criticadas, principalmente o papel importante do Estado nacional na regulação econômica e financeira. Nesse contexto, o Banco Mundial passa a ser contestado dentro dos Estados Unidos, seu principal acionista, sendo acusado de promover o desenvolvimento do setor público dos seus Estados clientes (PEREIRA, 2013). Pressionado pelo governo norte-americano, o Banco Mundial publica, em 1981, um relatório acerca das razões da deterioração dos indicadores econômicos e sociais do continente 4 Segundo BELLUCCI (2007, p. 186), “Em 1983, a dívida externa de Moçambique girava em torno de 1,4 bilhões de dólares e vinha sendo paga com reservas e empréstimos variados”. 1795 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 africano na década de 70, e as políticas necessárias para reverter a situação – o chamado relatório Berg 5. De acordo com PEREIRA (2013, p. 361-362), “A sua mensagem central era a de que o Estado pós-colonial tornara-se excessivamente grande, ineficiente e intervencionista. O corolário implícito era o de que a estratégia de substituição de importações havia fracassado. Sem mencionar em nome de quais interesses tal trajetória havia sido seguida, o informe indicava como alternativa uma redução significativa do tamanho do Estado, a adoção da ‘recuperação de custos’ (cobrança de taxas) em serviços públicos antes gratuitos e o aumento do controle privado sobre a economia em geral. [...]Recomendava-se o aumento da assistência econômica externa a região como forma de alavancar as reformas e catalisar fluxos de capital externo, desde que os governos preparassem os ajustes preconizados pelo Banco e pelo FMI.” Ao mesmo tempo em que o Banco Mundial agia de acordo os interesses norte-americanos de liberalização da economia mundial, e conseqüentemente enfraquecendo o poder dos Estados pós-coloniais africanos recém-constituídos, esses mesmos Estados viam sua dívida externa, contraída desde os tempos coloniais, aumentar exponencialmente. Com níveis de produção insuficientes para cobrir essas dívidas, elaboraram um mecanismo de pagamento que complicava ainda mais sua situação, explicitava por PEREIRA (2013, p. 368): “A partir de 1982, parte importante dos recursos recebidos a titulo de ajuda bilateral ao desenvolvimento e de empréstimos contraídos com a AID passou a ser utilizada para o pagamento do serviço da divida dos países africanos com o FMI e o Banco Mundial. Em meados da década, dois de cada três dólares facilitados pela AID retornavam aos cofres do Banco sob a forma de pagamento de créditos anteriores, ao passo que a maior parte do dólar restante se destinava ao FMI para a mesma finalidade.” Em suma, os países africanos estavam seriamente endividados e os Estados pós-coloniais não conseguiam manter um ritmo de produção (agrícola e industrial) minimamente suficiente para equilibrar suas finanças. Ainda que Moçambique não fosse cliente do Banco Mundial até o momento, a opção pelo socialismo e a conseqüente guerra de desestabilização levou-o indiretamente ao mesmo enquadramento dos países africanos que já contavam com investimentos dessa organização. Foi essa convergência de interesses entre o Banco Mundial, que via no continente africano uma grande oportunidade de 5 BANCO MUNDIAL. Accelerated development in Sub-Saharan Africa: an agenda for action. 1.ed. Washington (DC): Oxford University Press, 1981. 1796 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 negócios, e Moçambique, endividado e destruído pela guerra, que levou ao encontro entre ambos em 1984. A liberalização econômica de Moçambique, como em todos os outros Estados africanos inseridos no Programa de Ajustamento Estrutural, pressupõe uma capacidade de fazer circular no território nacional a maior quantidade possível de produtos e mercadorias visando o mercado externo. Por esse motivo, não é de se estranhar o fato da maior parte dos recursos disponibilizados pelo Banco Mundial 6 setor de transportes, como mostra o gráfico a seguir: 7 para Moçambique ser destinado ao Fonte: BANCO MUNDIAL. Grupo Banco Mundial em Moçambique. (disponível em http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/cd_ppi/pastas/governacao/geral/artigos_cientificos_imprensa/moz_brochur es.pdf) Esses investimentos no setor de transportes são divididos em projetos específicos, direcionados à construção e/ou reestruturação de sistemas técnicos de circulação relacionados aos diferentes modais de transporte no país. A análise desses 6 Em Moçambique, devido à sua classificação para o Banco Mundial de país “pobre”, a maior parte dos recursos é provida pela AID, ainda que existam projetos financiados pelo BIRD. 7 No gráfico, onde se lê “IDA”, entenda-se “AID”. IDA é a sigla em inglês para “International Development Association’, que no presente trabalho vem sendo apresentada com a sigla em português AID, “Associação Internacional para o Desenvolvimento”. 1797 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 projetos é o escopo do próximo item do presente trabalho. OS PROJETOS DO BANCO MUNDIAL PARA O SETOR DE TRANSPORTES DE MOÇAMBIQUE Detemo-nos, no item anterior, a uma análise da construção histórica da relação entre Moçambique e o Banco Mundial, não tendo dado muito atenção ao caráter geográficos desse processo. Conforme foi dito logo na introdução desse trabalho, nossa intenção aqui é mostrar a relevância que o espaço geográfico ainda possui na organização do sistema econômico-financeiro mundial, no qual aparentemente ele perde sentido. Na presente discussão sobre a ação do Banco Mundial em Moçambique, podemos destacar pelo menos dois elementos eminentemente geográficos que regem essa relação: os conteúdos normativos do espaço geográfico e a localização geo-estratégica dos projetos de investimento do Banco Mundial. Do ponto de vista normativo, é clara a mudança de paradigma existente em Moçambique a partir da independência. Se após o fim do colonialismo a regulação do território moçambicano se dava integralmente pelo Estado nacional, a adesão à lógica neo-liberal transferiu essa regulação às políticas do Banco Mundial. O uso do território passou a ser condicionado pelos interesses dessa instituição financeira e, conseqüentemente, pela visão norte-americana acerca do uso do território. Em outras palavras, a autonomia do Estado sobre o território pretendida com a conquista da independência foi substituída pela inserção de Moçambique na lógica territorial do capitalismo, onde cabe ao país um papel passivo, mas crucial, para o funcionamento dessa lógica. A existência de espaços periféricos pouco modernizados é fundamental para garantir a centralização do poder financeiro e a vazão de seus fluxos de capital. O outro aspecto importante que remete à Geografia é a localização geo-estratégica dos projetos do Banco Mundial no setor de transportes em Moçambique. Essa localização, inclusive, é resultado da mudança dos conteúdos normativos do território moçambicano e dos interesses econômicos advindos dessa mudança. Mais do que garantir a circulação de pessoas e mercadorias moçambicanas, a reestruturação dos transportes levada a cabo pelo Banco Mundial visa garantir a circulação da produção direcionada à economia capitalista. Com base nisso, discorreremos nesse último item sobre as características principais desses projetos. No total, são 5 os projetos de investimento do Banco Mundial no setor de 1798 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 transporte em Moçambique, existindo mais outros 4 que são fases posteriores ou novos financiamentos desses 5 principais. Todos os projetos do setor de transporte são financiados pela AID, e apenas um deles ainda está ativo (com dois novos financiamentos), estando todos os outros concluídos. Organizamos essas informações de maneira sintética na tabela a seguir: Projeto Status Data de Aprovação Financiador Investimento (em milhões) Beira Transport Corridor Project Concluído 14/9/1989 AID 40 First Roads and Costal Shipping Project Concluído 2/6/1992 AID 74.3 Second Roads and Coastal Shipping Project Concluído 7/4/1994 AID 188 Railways & Ports Restructuring Project Concluído 14/10/1999 AID 100 Roads and Bridges Management and Maitenance Project - Phase I Concluído 19/7/2001 AID 162 Beira Railway Project Concluído 14/10/2004 AID 110 Roads and Bridges Management and Maitenance Project - Phase II Ativo 23/5/2007 AID 100 Roads and Bridges Management and Maitenance Project - Phase II - Additional Financing Ativo 7/4/2011 AID 41 Roads and Bridges Management and Maitenance Project - Phase II - Additional Financing Ativo 13/12/2013 AID 39.4 Fonte: Adaptado do Banco Mundial (http://www.worldbank.org/en/country/mozambique/projects) Todas as informações contidas nos próximos parágrafos foram retiradas dos documentos de avaliação dos projetos, disponíveis no site do Banco Mundial em www.worldbank.org/en/country/mozambique/projects. O primeiro investimento do Banco Mundial no setor de transportes em Moçambique foi no ano de 1989, ou seja, ainda durante a guerra de desestabilização. Esse projeto, denominado “Beira Transport Corridor Project”, consistia no desenvolvimento do chamado “corredor da Beira”. Para fins de planejamento, o governo moçambicano divide o país nos chamados “corredores de desenvolvimento”: os corredores de Maputo, da Beira, e de Nacala. Esses corredores de desenvolvimento nada mais são do que um conjunto de sistemas técnicos de transporte complementares (portos, ferrovias, estradas) que têm como ponto inicial um porto importante do território moçambicano, e como destino final os países vizinhos de Moçambique no interior do continente: África do Sul, Swazilândia e Zimbabwe para o porto de Maputo; Zimbabwe para o porto da Beira; e Malawi para o porto de Nacala. Dessa forma, o corredor da Beira permitiria a retomada da circulação entre Moçambique e o 1799 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 Zimbabwe, interrompida por muitos anos pela destruição dos sistemas técnicos de transporte na região em virtude da guerra, e pelo bloqueio imposto por Moçambique à Rodésia do Sul, que durou até o ano de 1980 – ano em que a colônia conseguiu a independência e passou a se chamar Zimbabwe 8. O projeto consistia basicamente em uma reestruturação organizacional dos portos e ferrovias, com assistência técnica operacional a e treinamento de pessoal para trabalhar nas novas estruturas, além de reabilitação e compra de antigas locomotivas. A partir do sucesso do primeiro projeto, e com o fim da guerra de desestabilização em 1992, Moçambique passou a ser considerado um país seguro para se investir, e no mesmo ano o Banco Mundial iniciou seu segundo projeto no setor de transportes: o “Roads and Coastal Shipping Project”. Dividido em duas fases, e com investimentos muito maiores do que o primeiro projeto, a proposta desse projeto era o de reabilitar as rodovias do país, também gravemente prejudicadas pela guerra recém-terminada, além de melhorar as condições de embarque nos portos moçambicanos. Assim como no projeto do corredor da Beira, foi disponibilizado suporte institucional aos departamentos responsáveis por esses modais de transporte, bem como treinamento de pessoal, para finalmente seguir-se com os investimentos em infra-estrutura – reabilitação e construção de um grande número de estradas pavimentadas e modernização dos portos. Mais uma vez, o interesse do Banco Mundial era o de melhorar as condições de circulação do país para inseri-lo no sistema econômico do capitalismo mundial, além de fazer circular o capital proveniente da instituição. Tendo investido no corredor da Beira, e incrementado a fluidez rodoviária e capacidade dos portos, o Banco Mundial iniciou um grande projeto de reestruturação do sistema de portos e ferrovias moçambicanos, chamado “Railways & Ports Restructuring Project”, intervindo dessa vez não apenas no corredor da Beira, mas também nos outros dois principais corredores de desenvolvimento do país: o de Maputo e o de Nacala. Mais do que investimentos em infra-estruturas, como a reabilitação da linha ferroviária de Ressano Garcia-Limpopo (que liga Maputo à Johannesburgo, na África do Sul), o grande objetivo do Banco Mundial era promover uma reestruturação organizacional do sistema ferro-portuário de Moçambique, incentivando o regime de concessões na administração dessas estruturas. Claramente, o Banco Mundial estava alterando os conteúdos normativos do espaço 8 Com uma extensão litorânea considerável e distâncias relativamente curtas entre a costa e seus limites territoriais, Moçambique é a saída mais próxima para o mar para todos os países do hinterland com quem faz fronteira: Swazilândia, Zimbabwe, Zâmbia e Malawi. 1800 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 geográfico, tirando o controle do setor de transportes do Estado e colocando-o à cargo de empresas capitalistas. Nesse contexto, foi em 1998 a primeira experiência de concessão de terminais do CFM 9, no porto da Beira, a investidores estrangeiros, nesse caso ao capital holandês da Cornelder de Moçambique (SAÚTE, 2010). Em meados dos anos 2000, outros consórcios de capital estrangeiro (como britânicos, suecos, portugueses e indianos) passaram a atuar nos portos e ferrovias moçambicanos, reconstruindo e modernizando os sistemas técnicos antigos, e gerando uma onda de privatizações no sistema de circulação de Moçambique (SAÚTE, 2010). Em 2001, o banco iniciou mais um grande projeto, dividido em duas fases (e que hoje já conta com dois financiamentos adicionais), que consiste na reabilitação e manutenção de estradas e pontes do território moçambicano: é o “Roads and Bridges Management and Maintenance Project”. Com investimentos vultosos, o projeto consiste na manutenção periódica de 525 km de estradas primárias nas províncias de Maputo, Gaza, Inhambane, Sofala e Manica e na reabilitação de 313 km de estradas primárias em Maputo e Inhambane e 412 km de estradas rurais nas províncias de Gaza, Nampula e Tete. Com a circulação ferro-portuária reestruturada, o projeto volta suas atenções aos sistemas técnicos rodoviários, ainda extremamente deficientes no país, e é o único projeto do setor de transportes que continua ativo no país: tem previsão de conclusão em 2016. Todos os projetos indicados até agora tiveram, em sua avaliação pelo Banco Mundial, resultados satisfatórios, com exceção de um: o “Beira Railway Project”, iniciado em 2004 e já encerrado. Esse projeto consistia na reabilitação de alguns trechos ferroviários que ligavam o interior do país e os países do hinterland ao porto da Beira, como a linha de Sena (que liga a cidade à Moatize, onde se localizam extensas minas de carvão mineral), a linha de Machipanda (que vai em direção à Harare, capital do Zimbabwe), e os trechos que ligam essas linhas ao Malawi e à Zâmbia. Apesar da linha de Sena ter sido reabilitada, objetivo de aumentar o tráfico de passageiros não foi atingido, e o tráfego internacional entre Moçambique e Zimbabwe pela linha de Machipanda não foi incrementado como o esperado. Além disso, a ligação ferroviária com o Malawi não foi implementada, tendo sido reabilitado apenas o trecho que liga Moatize à Zâmbia. Mesmo com o relativo fracasso do Banco Mundial na reabilitação das ferrovias da região, os investimentos estrangeiros não cessaram, e hoje a companhia brasileira Vale além de explorar as minas de carvão mineral de Moatize também trabalha na reconstrução das ferrovias regionais. 9 Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique, que são administrados conjuntamente. 1801 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão sobre o legado do Banco Mundial no continente africano tem basicamente dois pontos de vista: um é o do próprio banco, que admite um longo caminho ainda a se percorrer para o desenvolvimento econômico da África, mas que vê em si mesmo a única saída possível para os Estados africanos se enquadrarem no sistema econômico mundial; o outro é aquele de acadêmicos como CHOSSUDOVSKY (1997) e ISMI (2004) que, contrariamente ao Banco Mundial, vêem a organização como a principal causadora da atual situação de pobreza do continente (e não uma provedora de soluções). Para esses autores, os programas de ajustamento estrutural serviram para aumentar as desigualdades econômicas internas dos países africanos, enriquecendo as elites políticas e econômicas e deixando grande parte da população mais pobre e sem acesso ao mundo dito globalizado. Além disso, a ação do Banco Mundial em Moçambique demonstra que o espaço financeiro mundial, encabeçado por essa organização, não é um espaço homogêneo e democrático. Pelo contrário, esse espaço financeiro mundial é controlado por uma instituição financeira intimamente ligada a um território nacional, o norte-americano, que através dessa ligação coloca a serviço de seu interesse na liberalização econômica e financeira mundial todo o continente africano, deixando Moçambique sem autonomia sobre seu próprio território. Essa regulação do Banco Mundial sobre o território moçambicano gera uma das conseqüências mais graves desses altos investimentos da organização no sistema de transportes de Moçambique: a inorganicidade resultante dessa relação. A circulação de um território deve responder aos interesses dos cidadãos desse território, àqueles que produzem, vivem e se identificam nele. Quando uma organização estrangeira vem impor seus interesses a despeito do governo e da população de Moçambique, priva os moçambicanos do acesso ao seu próprio território. Não são eles que utilizam os sistemas técnicos avançados construídos pelo Banco Mundial, eles no máximo vendem sua produção por um valor baixíssimo para uma grande empresa que, compactuando com os interesses do Banco Mundial, acabam por utilizar as ferrovias, rodovias e portos modernizados. Como argumentou SANTOS (1999, p.13), “Em última análise é esse o resultado da influência do dinheiro em estado puro sobre o território. A finança tornada internacional como norma contraria as 1802 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 estruturas vigentes e impõe outras. E quando tem uma existência autônoma, isto é, não necessita consultar ninguém para se instalar, ela funciona a despeito dos outros atores, e acarreta para o lugar uma existência sem autonomia.” Por fim, parece-nos claro que a articulação existente entre a circulação financeira e circulação material é fundamental para a ação do Banco Mundial. Do contrário, a instituição não investiria grandes quantidades de capital no desenvolvimento do sistema de transportes de Moçambique, mesmo sendo o país um dos mais pobres e sem acesso ao capital financeiro mundial. Enquanto o governo moçambicano aceitar politicamente a intervenção do Banco Mundial na estruturação de seu território, a circulação em Moçambique será cada vez menos moçambicana. REFERÊNCIAS BELLUCCI, Beluce. Economia contemporânea em Moçambique: sociedade linhageira, colonialismo, socialismo, liberalismo. Rio de Janeiro : Educam, 2007. CHESNAIS, François. A mundialização financeira. Gênese, custos e riscos. São Paulo : Xamã Editorial, 1998 CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza: impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial. São Paulo : Moderna, 1999. ISMI, Asad. “Impoverishing a continent: the World Bank and the IMF in Africa”. Canadian Centre for Policy Alternatives. Ottawa : Halifax Initiative Coalition, 2004. MARTIN, Ron. “The new economic geography of money” In MARTIN, Ron (ed.). Money and space economy. Sussex : John Willey and Sons, 1999. PEREIRA, João Márcio Mendes. “O Banco Mundial e a construção política dos programas de ajustamento estrutural nos anos 1980”. Rev. Bras. Hist. [online]. 2013, vol.33, n.65, pp. 359-381. __________________________. “Banco Mundial: concepção, criação e primeiros anos (1942-60”). Varia hist. [online]. 2012, vol.28, n.47, pp. 391-419. SANTOS, Milton. “O Dinheiro e o território”. In Geographia. Revista da Pós-Graduação em Geografia da UFF. Ano 1, No. 1. 1999. pp. 7-13. ______________. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro : Record, 2000. SAÚTE, Nelson. Crônica de uma integração imperfeita: o caso da privatização da gestão dos Portos e Caminhos de Ferro em Moçambique (2000-2005). Dissertação de Mestrado, Departamento de Sociologia, FFLCH/USP, 2010. SERRA, Carlos (org.). História de Moçambique: Moçambique no auge do colonialismo (1930-1961) – Volume 2. Maputo : Livraria Universitária (UEM), 2000. Sites consultados BANCO MUNDIAL EM MOÇAMBIQUE – www.worldbank.org/pt/country/mozambique (acessado pela última vez em 20/01/2014). 1803 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 O BANCO MUNDIAL E OS TRANSPORTES EM MOÇAMBIQUE EIXO 1 – Transformações territoriais em perspectiva histórica: processos, escalas e contradições RESUMO Dentre todos os investimentos realizados pelo Banco Mundial no território moçambicano, aqueles destinados ao setor de transporte são os mais volumosos. No intuito de entender o porquê dessa preocupação da instituição com a circulação em Moçambique, o presente trabalho tenta observar a articulação existente entre a esfera da circulação e a esfera financeira, partindo da compreensão do atual processo de mundialização do capital, e do papel das instituições de Bretton Woods em tal movimento, e desembocando nos diferentes projetos no setor de transportes que o Banco Mundial leva a cabo no país. Tal relação seria impossível de ser encontrada sem levar em consideração também a convergência de trajetórias entre ambos, ou seja, do Banco Mundial em seu caminho rumo à África, e da economia moçambicana em direção à instituição financeira, de maneira que uma abordagem histórica se fez igualmente necessária. De maneira geral, a proposta final desse trabalho é verificar que tipo de consequências pode ter para o território moçambicano a intervenção de uma instituição financeira internacional em seu setor de transportes. Palavras-chave: Moçambique; Banco Mundial; transportes. 1804