a escassez de água
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a escassez de água
2 Cidadania&MeioAmbiente 3 Ilustração por Jack Cook/WoodsHole Oceanographic Institution E D I T O R I A Caros Amigos, Nada melhor para ilustrar a crise global da água que esta imagem, onde a pequena “bolinha” azul representa todo o volume de água disponível no planeta em relação ao volume da esfera Terra. A “esfera azul” tem diâmetro de 1.385km, volume de 1,4 bilhão de km3 e inclui toda a água nos oceanos, mares, calotas polares, lagos, rios, aquíferos, na atmosfera e até mesmo em você, em seu animal de estimação e nas plantas. A comparação entre as duas esferas torna-se mais impactante quando se sabe que o “capital água doce” – não renovável e cada vez mais dilapidado – é de 35 milhões de km3, algo como 2,5% do volume total. A gestão desse limitadíssimo estoque de água doce é hoje o maior desafio enfrentado em escala global. Daí a importância do chamado à reflexão lançado pela Organização das Nações Unidas no Dia Mundial da Água 2011 – foco desta edição. Recurso vital à sobrevivência de todos os organismos vivos, a água tem sido fonte de conflitos desde 2500 a.C., quando Urlama, rei de Lagash, desviou o os cursos d’água que alimentavam a cidade rival de Umma (cf. Água – Cronologia de Conflitos, nas edições 26, 27 e 28 de Cidadania & Meio Ambiente). E agora, mais do que nunca, a água deixou de ser um direito básico para ganhar estrutura de “commodity”, de mercadoria cara que já hoje coloca mais de um bilhão de indivíduos na categoria dos “sem água”. Na verdade, estamos caminhando em direção a um “mundo de sede” se não iniciarmos uma rapidíssima transição do atual modelo de desenvolvimento predatório e consumista para um sistema econômico que utilize os recursos naturais e os serviços ecossistêmicos de forma sustentável. Como seria impossível esgotar numa única edição a multidisciplinar questão da água, selecionamos dados essenciais, referências bibliográficas (enfatizando os recursos online), estratégias que abrem perspectivas ao uso responsável da água, e destacamos o principal protagonista da trama recursos hídricos – o “crescimento demográfico mundial”, chave da equação disponibilidade/uso da água. A dimensão dessa equação-desafio explode nos estudos, estatísticas e avaliações sobre os setores abastecimento e saneamento básico, e na constatação de que, pela primeira vez na história da humanidade, o contingente populacional urbano excede o rural – tendência irreversível e de impactantes consequências urbanas, sociais, culturais e econômicas, como explicita Doug Saunders, autor do revelador best-seller “Arrival Cities”. Além da importância do aumento populacional e da expansão de áreas urbanas, outros fatores que contribuem para tornar a escassez de recursos hídricos uma realidade também foram abordados. Descubra como o brutal desafio das alterações climáticas resultam em mudanças no regime pluviométrico, ameaçam a manutenção das águas superficiais e a regularidade de recarga dos aquíferos. Enfim, como a presença humana vem contribuindo para poluir, degradar e esgotar as águas doces e salgadas. Helio Carneiro Editor L A revista Cidadania & Meio Ambiente é uma publicação da Câmara de Cultura Telefax (21)2487-4128 (21) 8197-6313 . 8549-1269 [email protected] www w.. c a m a r a d e c u l t u r a . o r g Diretora Regina Lima [email protected] Editor Hélio Carneiro [email protected] Subeditor Henrique Cortez [email protected] Projeto Gráfico Lucia H. Carneiro [email protected] Colaboraram nesta edição Doug Saunders Graziela Wolfart (IHU-OnLine) Henrique Cortez IBGE (www.ibge.gov.br) Isabela Vieira (Agência Brasil) John Emilio Garcia Tatton José Eustáquio Diniz Alves Organização das Nações Unidas (WWAP, UN-HABITAT, UNESCO, WHO/UNICEF, UN/ESA). PNAS Portal Ecodebate Wagner Costa Ribeiro Wishard Van Visite o portal EcoDebate w.. e c o d e b a t e . c o m . b r www Uma ferramenta de incentivo ao conhecimento e à reflexão através de notícias, informações, artigos de opinião e artigos técnicos, sempre discutindo cidadania e meio ambiente, de forma transversal e analítica. Cidadania & Meio Ambiente também pode ser lida e/ou baixada em pdf no portal www.ecodebate.com.br A Revista Cidadania & Meio Ambiente não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos em matérias e artigos assinados. Editada e impressa no Brasil. ISSN217-630X 977217763007 032 Nº 32 – 2011 - ANO VI Capa: Sunrise on Tintamarre por GAD 7 Água: rumo a um mundo de sede? No atual contexto de tensão e escassez de água doce, o mundo enfrenta o desafio de encontrar formas criativas de gerir os recursos hídricos para atender as demandas de consumo de uma população mundial que deverá chegar aos 9 bilhões de indivíduos em 2050. Por UN, WWAP, UN-HABITAT, UNESCO, WHO/UNICEF, UN/ESA, 14 Pegada hídrica: o uso responsável da água 18 2050 – Mais de 1 bilhão sem água 20 Água: vital para a vida no planeta 22 Água e mudanças climáticas 25 Cidades da periferia: a nova ordem econômica e social 30 Consumo ético e cidadania 32 10 Tendências que mudam a cena global Metodologia criada pelo Prof. Arjen Hoekstra promove o uso eficiente e consciente da água, realçando a relação entre consumo diário e seus impactos ambientais na gestão da sustentabilidade hídrica. Por Ecodebate Estudo publicado pela PNAS indica que em quatro décadas a atual escassez de água se tornará dramática para os habitantes das cidades na medida em que o aquecimento global agravar os efeitos da urbanização. Por PNAS. A questão da escassez da água no planeta é analisada à luz de suas implicações políticas, sociais e ambientais. Descubra porque a água deixou de ser bem da humanidade para tornarse “mercadoria”, cujo acesso é desigual ao redor do planeta. Por Wagner Costa Ribeiro A ingerência humana no meio ambiente vem afetando de forma dramática o equilíbrio ecossistêmico da Terra, como revela este artigo sobre as repercusões da ação antropogênica no elemento água. Por John Emilio Garcia Tatton Um terço da humanidade está trocando o campo pela cidade na maior migração da história humana – um evento gerador de novo remodelamento urbano, social e econômico. Descubra o como e o por quê desta irreversível tendência mundial com o autor do best-seller Arrival Cities. Por Doug Saunders Não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma profunda revisão dos conceitos, fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária. Por Henrique Cortez Nunca antes na história da evolução humana o contexto ambiental e psicossocial sofreu tão dramáticas alterações como nos últimos 50 anos. Confira – e prepare-se – para o que o futuro próximo nos reserva nesta era de informação e virtualidade. Por Wishard Van/World TrendsResearch UN-Water World Water Day. 6 ÁGUA © WHO / UNICEF Rumo a um mundo de sede? A questão é muito simples: dado o volume de água disponível e nas atuais circunstâncias de gestão desse patrimônio hídrico, será possível nas próximas décadas ter-se água doce suficiente para atender as demandas de consumo de uma população mundial estimada em 9 bilhões de indivíduos, em 2050 (segundo estimativa da ONU) com o volume de água praticamente igual ao que existe hoje? No contexto de tensão e escassez, o desafio atual é encontrar formas criativas de gerir os recursos hídricos sem enfatizar as disputas e conflitos já existentes. Esse quebra-cabeça levanta questões importantes, como: z Será razoável pensar-se em transposição de água para longas distâncias sem ameaçar as reservas hídricas e prejudicar o equilíbrio ambiental? z Quais são os países e regiões que vão sofrer mais devido à falta d’água? z Em que países uma parcela importante da população ainda terá de esperar algumas décadas antes de contar com abastecimento de água e saneamento básico adequados? O problema das águas urbanas – tema do Dia Mundial da Água 2011 – é apenas um dos pontos abordados neste caderno especial, que analisa consumo, demanda, superexploração, poluição e outras ameaças aos recursos hídricos doces que, em 2050, lamentavelmente já deixarão de estar disponíveis para pelo menos 1 bilhão de indivíduos. Encontrar respostas para esses desafios é a tarefa mais urgente que governos e sociedade civil enfrentam em escala global. Cidadania&MeioAmbiente 7 DIA MUNDIAL DA ÁGUA ÁGUA: RECURSO FINITO A água é o bem essencial do qual depende toda a vida na Terra. Para a maioria das nações, o desenvolvimento econômico está intimamente relacionadoà disponibilidade e à qualidade do abastecimento em água doce. Como a água está integrada em nosso cotidiano – quer nos inúmeros usos, quer embutida em tudo que consumimos (água virtual), – em geral esquecemos que esta commodity natural não é inesgotável e ilimitada (ver quadro Recursos de Água Doce por Continente, pág. 9). Fato que ocorre em países como o nosso, em que há abundância de recursos hídricos doces. DISPONIBILIDADE E USO DA ÁGUA A percepção comum é que a maior parte dos recursos de água doce disponível está em lagos, represas e rios. No entanto, essa água visível representa apenas uma pequena fração dos recursos mundiais de água doce. Boa parte desse estoque está armazenada em aquíferos (água subterrânea) e a maior parte das reservas – em estado sólido – na Antártida e na calota polar da Groenlândia. Do volume total de recursos hídricos terrestres, a água doce representa um percentual mínimo em relação à água salgada de mares e oceanos (ver nesta página o gráfico Um Mundo de Sal). No entanto, não devemos esquecer que em muitas regiões da Terra – inclusive Brasil – a disponibilidade de água é uma questão de vida ou morte. Afinal, a quantidade, qualidade e disponibilidade de água doce e salgada desempenham um papel importante na determinação dos níveis e padrões de pobreza, degradação do solo, poluição, saneamento, saúde e desenvolvimento rural e urbano ao redor do mundo. Lamentavelmente, o abuso e a superexploração dos recursos hídricos (doces e marinhos) estão rapidamente esgotando e deteriorando a seiva da vida de nosso planeta. Quando ficamos sabendo que não há “criação” de água “nova” no planeta fica mais fácil perceber a responsabilidade individual e coletiva na preservação desse bem indispensável a todos os seres vivos e à civilização. O volume de água disponível no planeta é reciclado através de um sistema bem coordenado entre a terra e atmosfera, o chamado “ciclo hidrológico”. Isso significa que, apesar do rápido crescimento demográfico atual – e da maior utilização dos recursos naturais – o volume de água doce disponível e acessível é praticamente o mesmo. Portanto, superar o desafio . 2011 do o crescimento populacional exige capacitação (e vontade política) para gerir recursos e serviços ecossistêmicos de modo a assegurar sua quantidade, qualidade e acesso ao maior número de pessoas – a todos, idealmente. TENDÊNCIAS ATUAIS E FUTURAS As avaliações realizadas nas duas últimas décadas sobre o uso da água destacam que: z Os recursos de água doce são desigualmente distribuídos, com grande parte localizada longe dos estabelecimentos humanos. Muitas das bacias hidrográficas dos maiores rios do mundo percorrem regiões com fraca densidade populacional. 263 rios transfronteiriços (internacionais) cobrem 45,3% da superfície terrestre (excluindo a Antártica). z As águas subterrâneas (aquíferos) representam 90% dos recursos mundiais de água doce de fácil acesso, e um contingente de 1,5 bilhão de indivíduos depende das águas subterrâneas para aprovisionamento em água potável. z A água utilizada na agricultura responde por 75% do consumo mundial total – principalmente em função da irrigação –, seguido de 20% na indústria e os restantes 5% para fins domésticos. UM MUNDO DE SAL: PERCENTUAL DE ÁGUA SALINA GLOBAL As estimativas dos recursos hídricos mundiais com base em vários métodos de cálculo variam. A mais reconhecida é a apresentada por Shiklomanov, em Gleick (1993): z O volume total de água na Terra é de 1,4 bilhão km3. z O volume de mananciais de água doce é de 35 milhões km3, ou 2,5% do volume total. z Do volume total de água doce, 24 milhões km3 (68,9%) estão em forma de gelo e neve permanente nas regiões montanhosas, na Antártica e no Ártico. z Cerca de 8% (30,8 milhões km3) está estocado no subsolo sob a forma de lençóis subterrâneos (bacias subterrâneas rasas e profundas de até 2000 metros, solo úmido, pântanos e permafrost). Esse estoque constitui por volta de 97% de toda a água doce potencialmente disponível para uso humano. z Lagos e rios contêm um volume estimado de 105.000 km3 (0,3%) da água doce mundial. z O estoque total de água doce disponível para ecossistemas e seres humanos é de 200.000 km3, ou seja, menos de 1% de todos os recursos de água doce e apenas 0,01% de toda a água da Terra (Gleick, 1993; Shiklomanov, 1999). 8 RECURSOS DE ÁGUA DOCE: VOLUME POR CONTINENTE Este gráfico ilustra a quantidade (em quilômetros cúbicos) e a distribuição dos recursos mundiais de água doce nas geleiras e calotas de gelo perene, em águas subterrâneas e em áreas úmidas, grandes lagos, represas e rios. z As geleiras e calotas de gelo cobrem cerca de 10% da massa terrestre. Concentradas na Groenlândia e na Antártida, elas encerram 70% da água doce planetária. Infelizmente, a maior parte desse recurso está localizada distante dos núcleos habitacionais, não sendo facilmente acessíveis para o uso humano. De acordo com o United States Geological Survey (USGS), 96% da água doce congelada do mundo está nos Polos Sul e Norte, ficando os restantes 4% distribuídos em 550.000 km2 de geleiras e calotas em montanhas, numa superfície estimada de 180.000 km3 (UNEP, 1992; Untersteiner, 1975; WGMS, 1998, 2002). z A água subterrânea é a fonte mais abundante e disponível de água doce, seguida de lagos, represas, rios e pântanos. z As águas subterrâneas representam 90% dos recursos mun- diais de água doce disponíveis (Boswinkel, 2000). Cerca de 1,5 bilhão de pessoas delas depende para o abastecimento em água potável (WRI, PNUMA, PNUD, Banco Mundial, 1998). z A quantidade de água subterrânea extraída por ano é estima- da em cerca de 600-700 km3, o que representa cerca de 20% das extrações globais (OMM, 1997). z Não existe uma estimativa detalhada da quantidade de água subterrânea retirada e consumida anualmente em todo o mundo. z A maioria dos lagos de água doce estão em altitudes elevadas, sendo quase 50% deles situados no Canadá. Muitos lagos, especialmente os localizados nas regiões áridas, tornam-se salgados devido à evaporação que concentra os sais afluentes. O Mar Cáspio, o Mar Morto e o Grande Lago Salgado figuram entre os maiores lagos salgados do mundo. z Os rios formam um mosaico hidrológico, estimando-se em 263 as bacias hidrográficas internacionais que cobrem 45,3% (231.059.898 km2) da superfície terrestre, excetuando a Antártida (UNEP, Oregon State University et al., em preparação). O volume total de água nos rios do mundo é estimado em 2.115 km3 (Groombridge e Jenkins, 1998). Cidadania&MeioAmbiente 9 DIA MUNDIAL DA ÁGUA z Estima-se que até 2025, dois em cada três indivíduos viverão em áreas de estresse hídrico. Só na África, 25 países estarão enfrentando escassez de água (abaixo de 1.700m3 per capita por ano) até 2025. Hoje, 450 milhões de pessoas em 29 países sofrem escassez de água. z O abastecimento de água potável e o saneamento básico continuam a ser os grandes problemas mundiais. 20% da população global não têm acesso à água potável. Se 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso a fontes de abastecimento de água apropriadas, outras 2,4 bilhões não têm acesso a qualquer tipo de instalação de saneamento adequado. 2 milhões de indivíduos morrem a cada ano devido a doenças transmitidas por poluição fecal nas águas superficiais – a maioria crianças com menos de cinco anos de idade. z Uma grande variedade de atividades humanas também afeta o ambiente costeiro e marinho. Pressão populacional, demanda crescente por espaço e recursos, e fraco desempenho econômico podem comprometer a utilização sustentável dos oceanos e zonas costeiras. Outros problemas graves que afetam a qualidade e o aproveitamento desses ecossistemas incluem a alteração e a destruição de habitats e ecossistemas. z As estatísticas revelam que quase 50% da costa marinha mundial estão ameaçadas por atividades relacionadas ao desenvolvimento, e em vários mares fechados ou semifechados ocorre eutrofização severa. Estima-se que 80% da poluição marinha tem origem em fontes e atividades terrestres. z A maioria das áreas de pesca marinhas está em declínio de produtividade. Sabese que o aumento da produção pesqueira nunca mais irá aumentar, agravando o quadro pesqueiro e alimentar mundial. Por outro lado, a navegação marítima e a aquicultura (produção confinada) estão crescendo, já contribuindo com 30% da produção pesqueira total global. z O impacto das mudanças climáticas deve resultar no aumento significativo do nível oceânico mundial. Fato que submergerá algumas áreas costeiras de baixa altitude, aumentando a vulnerabilidade humana em outras áreas. Os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS) altamente dependentes dos recursos marinhos serão especialmente vulneráveis devido tanto aos efeitos da subida do nível do mar quanto às alterações nos ecossistemas marinhos. 10 . 2011 ÁGUA E SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL Crianças habitando em condições sanitárias precárias no Mandela, no Rio de Janeiro. Foto: Vladimir Platonow/ABr z A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2008, do IBGE, indica que 55,2% dos municípios brasileiros têm serviço de esgotamento sanitário por rede coletora, três pontos percentuais acima do índice verificado em 2000 (52,2%). Os melhores desempenhos foram encontrados nos estados de São Paulo (apenas 1 dos 645 municípios não tinha o serviço) e Espírito Santo (2 de 78 sem coleta de esgoto). A principal solução alternativa adotada pelos municípios que não possuíam rede de coleta de esgoto sanitário foi a construção de fossas sépticas, que aumentou 7,4% em relação ao levantamento de 2000. z Apesar de menos de um terço dos municípios terem tratamento de esgoto, o volume tratado representava 68,8% do total coletado no país. Houve melhora considerável frente a 2000 e 1989, quando o percentual de tratamento era, respectivamente, de 35,3% e 19,9%. E em grandes produtores, como são os municípios com mais de 1 milhão de habitantes, o percentual de esgoto tratado foi superior a 90%. z Os dados do IDS indicam que o abastecimento de água deficiente, falta de esgoto, contaminação por resíduos ou condições precárias de moradia foram responsáveis por 308,8 internações a cada grupo de 100 mil habitantes em 2008, por doenças como diarreia, hepatites e verminoses. O documento relaciona essas doenças à falta de moradia adequada no país: até 2008, cerca de 40% dos domicílios (25 milhões) eram considerados inadequados pelo levantamento. z Segundo a pesquisa, o número de doentes oscilou nos últimos dez anos. Em 1998, a taxa foi de 348,2 até chegar ao pico de 371,1 por 100 mil, em 2002. As doenças de transmissão feco-oral (diarreias, hepatite A e febres entéricas) lideram e correspondem a 80% das internações. z Entre as regiões, os números são díspares e refletem desigualdades socioeconômicas. A taxa de internação por doenças da pobreza na Região Sudeste era cinco vezes menor do que no Norte, onde as internações por 100 mil foram de 900 pacientes no Piauí e no Pará, em 2008, e de 80 em São Paulo. No Maranhão, em Rondônia e na Paraíba, a taxa foi de 600 por 100 mil. z Entre as doenças classificadas como decorrentes da falta de saneamento ambiental, predominam, na Região Norte, as maiores taxas de internação provocadas por inseto vetor como a dengue, febre amarela e malária. Nesses lugares, a pesquisa destaca como fator de risco o desmatamento. z O maior número de internações por inseto vetor no Norte se deve, em geral, à ocorrência da febre amarela e malária. Segundo o Ministério da Saúde, 99,5% dos casos de malária são registrados na Amazônia Legal, área que envolve nove estados brasileiros. Fonte: Síntese dos dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2008, IBGE - www.ibge.gov.br e Isabela Vieira, da Agência Brasil. DESIGUALDADE NO ACESSO À ÁGUA POTÁVEL E SANEAMENTO GLOBAL Avaliação de 2000 (destaques): z O percentual da população com algum serviço de abastecimento de água cresceu de 79% (4,1 bilhão de pessoas), em 1990, para 82% (4,9 bilhões), em 2000. Entre 1990 e 2000, cerca de 816 milhões de pessoas adicionais tiveram acesso ao abastecimento de água – uma melhoria de 3%. z Dois em cada cinco africanos não têm acesso a serviço de abastecimento de água. Em toda a África, os serviços de abastecimento de água rural estão muito aquém dos serviços urbanos. z Durante a década de 1990, o percentual de cobertura de oferta de água rural aumentou enquanto a cobertura urbana diminuiu, embora o número de pessoas sem acesso ao abastecimento de água tenha se mantido praticamente o mesmo. z Na África, Ásia, América Latina e Caribe, 1 bilhão de pessoas em áreas rurais não têm acesso a fontes de água tratada. z Para se atingir na África, Ásia, América Latina e Caribe os OBM estabelecidos para 2015, o abastecimento de água terá que chegar a um contingente adicional de 1,5 bilhão de pessoas. z A proporção de indivíduos com acesso a instalações sanitárias (banheiros) passou de 55% (2,9 bilhões), em 1990, para 60% (3,6 bilhões), em 2000. Entre 1990 e 2000, um adicional de 747 milhões de indivíduos conquisotu acesso a instalações sanitárias, embora o número de indivíduos sem acesso a serviços de saneamento tenha permanecido praticamente o mesmo. z No início de 2000, dois quintos da população mundial (2,4 bilhões de indivíduos) não tinham acesso a instalações sanitárias satisfatórias. A maioria vive na Ásia e na África, sendo que menos da metade de todos os asiáticos têm acesso a saneamento de qualidade. z A cobertura do saneamento nas zonas rurais é inferior à metade da encontrada nos centros urbanos, embora 80% dos indivíduos sem saneamento adequado (2 bilhões) vivam em áreas rurais (cerca de 1,3 bilhão na China e na Índia). z Na África, Ásia, América Latina e no Caribe cerca de 2 bilhões de pessoas em áreas rurais não têm acesso a instalações sanitárias de qualidade. z Para se alcançar em 2015 os Objetivos do Milênio relativos a saneamento na África, Ásia, América Latina e no Caribe, um adicional de 2,2 bilhões de indivíduos terão de ser equipados com instalações sanitárias. z A água poluída afeta a saúde de mais de 1,2 bilhão de indivíduos e contribui para a morte de uma média de 15 milhões de crianças todos os anos. Em 1994, a OMS estimou em 1,3 bilhão o contingente de indivíduos sem acesso à água potável. Em 2000, cerca de 1,2 bilhão de pessoas não tinham acesso à água potável, enquanto 2,4 bilhões não têm acesso a serviços adequados de saneamento. Fontes: Meeting the MDG Drinking Water and Sanitation Target, World Health Organisation (WHO) and United Nations International Children’s Emergency Fund (UNICEF), 2006. Cartógrafo/Designer: Phillippe Rekacewicz, February 2006, UNEP/GRID-Arendal. Publicado em Vital Water Graphics 2, 2009. Link: http://maps.grida.no/go/graphic/inequity-in-access-to-clean-water-and-sanitation ÁGUA E CIDADES: UM DESAFIO SEM PRECEDENTES Mais da metade da humanidade já vive em cidades. Estima-se que em duas décadas quase 60% da população habitarão os centros urbanos. O crescimento urbano é mais rápido nos países em desenvolvimento, onde as cidades ganham uma média de 5 milhões de habitantes a cada mês. O crescimento explosivo da população urbana cria desafios sem precedentes, entre os quais a provisão de água e saneamento são os mais prementes. Dois desafios relacionados à água afetam a sustentabilidade dos assentamentos humanos urbanos: o não acesso à água potável e ao saneamento básico, e os desastres relacionados à água, como inundações e estiagens. Estes problemas têm enormes consequências sobre a saúde humana e sobre o bem-estar, a segurança, o meio ambiente, o crescimento econômico e o desenvolvimento. A falta de água potável e de instalações sanitárias adequadas leva a problemas de saúde, como malária, diarreia e surtos de cólera. Embora o abastecimento de água e a cobertura sanitária básica tenham aumentado entre 1990 e 2008, o crescimento das populações urbanas põe em risco esses ganhos. Enquanto entre 1990 e 2008, 1,052 bilhão de habitantes das cidades ganharam acesso à água potável e 813 milhões ao saneamento básico, a população urbana neno mesmo período aumentou em 1,089 bilhão de indivíduos. Aqueles que mais sofrem com os desafios afeitos à água são os pobres instalados em favelas e assentamentos informais, onde Cidadania&MeioAmbiente 11 DIA MUNDIAL DA ÁGUA carecem de muitas necessidades básicas como água potável, serviços adequados de saneamento, acesso aos serviços de saúde, habitação durável e regularização fundiária. . 2011 DIA MUNDIAL DA ÁGUA 2011 Chuwasg As cidades não podem ser sustentáveis se não garantirem acesso seguro à água potável e ao saneamento básico. Lidar com as crescentes necessidades de água e saneamento nas cidades é uma das questões mais prementes deste século. A gestão sustentável, eficaz e equitativa da água nas cidades nunca foi tão importante como no mundo de hoje. DESIGUALDADE NO ACESSO À ÁGUA POTÁVEL E SANEAMENTO O fornecimento de água potável e de saneamento são questões de gestão que levantam preocupações sobre a injusta prestação de serviços, particularmente nos países em desenvolvimento. Apesar do lançamento de inúmeras iniciativas bem sucedidas para o abastecimento de água potável para as populações urbanas, os esforços ainda estão aquém das metas necessárias para o desenvolvimento sustentável. Nos países em desenvolvimento, os sistemas de abastecimento de água são penalizados por vazamentos, ligações clandestinas e vandalismo, ao mesmo tempo em que preciosos recursos hídricos são desperdiçados devido à ganância e à má administração. Recentemente, o Banco Mundial calculou que são necessários US$600 bilhões para reparar e melhorar os sistemas mundiais de distribuição de água (UNCSD, 1999). Na década de 1990, a maior redução no abastecimento de água per capita ocorreu na África (2,8 vezes), na Ásia (2 vezes) e na América Latina e Caribe (1,7 vezes), enquanto o abastecimento de água disponível às populações europeias para o período diminuiu 16% (OMS / UNICEF, 2000). A falta de acesso à água potável e ao saneamento está diretamente relacionada à pobreza e, em muitos casos, à incapacidade de os governos financiarem satisfatoriamente os sistemas de captação e distribuição de água e os de saneamento. Os custos diretos e indiretos dessas falhas humanas são enormes, incluindo problemas de saúde generalizados, jornada de trabalho excessiva (especialmente para as mulheres, obrigadas a percorrer longas distâncias para trazer água para seus lares) e limitações ao desenvolvimento econômico (Gleick, 1995). Por outro lado, sistemas de água e de sanea- 12 Ciclistas manifestam apoio ao Dia Mundial da Água em Cingapura O “Dia Mundial da Água” (DMA) – 22 de março – foi criado pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1992, no Rio de Janeiro, segundo as recomendações da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento contidas no capítulo 18 (Recursos Hídricos) da Agenda 21. A cada ano, desde 1994, uma agência da Organização das Nações Unidas estabelece um programa de ações baseado num tema específico relacionado à gestão, conservação e abastecimento de água. Os países são convidados a realizar no DMA – em contexto nacional apropriado – atividades concretas que promovam a conscientização pública para o tema proposto através de publicações, documentários, conferências, mesas redondas, seminários, exposições e outras atividades relacionados à conservação e desenvolvimento dos recursos hídricos e/ou à implementação das recomendações proposta pela Agenda 21. Neste 2011, com o tema “Água para as Cidades – Respondendo ao desafio urbano”, o DMA objetivou chamar a atenção para o impacto do rápido crescimento da população urbana, da industrialização e das mudanças climáticas nos recursos hídricos e na proteção ambiental das cidades. Este enfoque é de alta relevância quando se observa que, pela primeira vez na história da humanidade, a maior parte da população mundial – nada menos que 3,3 bilhões de indivíduos – já vive em centros urbanos, com cinco milhões a cada mês migrando do campo para a cidasde nos países em desenvolvimento. Um crescimento demográfico explosivo que impõe desafios sem precedentes, entre os quais os mais prementes e lesivos são a falta de suprimento de água e de serviços de esgotamento sanitário, que penalizam toda a sociedade. mento desejáveis trazem benefícios importantes, tanto para o desenvolvimento social e econômico como para a redução da pobreza (OMS /UNICEF, 2000). (Em relação à situação brasileira, ver quadro Água e Saneamento Básico no Brasil, à pág. 10). ÁGUA, CIDADES E OBJETIVOS DO MILÊNIO Entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) propostos pelas Nações Unidas, dois se relacionam diretamente à água e às cidades: z A meta número 7 dos ODM prevê a redução pela metade do número de indivíduos sem acesso sustentável à água potável e ao saneamento. z A mesma meta articula o compromisso firmado pelos Estados-membros da ONU para a melhoria significativa das condições de existência de pelo menos 100 milhões de habitantes de cidades periféricas/favelas até 2020. z No ritmo atual, espera-se que o mundo concretize a meta referente à água potável dos ODM. Atualmente, 96% da população urbana têm acesso a fontes adequadas de água potável. No entanto, a meta do saneamento não será cumprida até 2015. Embora muitas vezes melhor servidas do que as áreas rurais, as áreas urbanas se esforçam para enfrentar o desafio de seu explosivo crescimento demográfi- A divisão de população das Nações Unidas (ONU) atualizou em seu site os dados demográficos e os primeiros resultados das novas projeções de população – revisão 2010 – cobrindo o período de 1950 a 2100. Abaixo, as estimativas mais relevantes. A POPULAÇÃO MUNDIAL... ... era de 2,52 bilhões de habitantes em 1950, passando para 6,87 bilhões em 2010, e devendo chegar a 10,16 bilhões em 2100, segundo a projeção média. Anirudh Koul 2100: NOVAS PROJEÇÕES POPULACIONAIS DEMOGRAFIA E MEIO AMBIENTE Não existe consenso na literatura quanto aos efeitos do crescimento populacional sobre o meio ambiente e sobre a qualidade de vida de uma população em constante crescimento. Alguns autores vislumbram perspectivas catastróficas se nada for feito para estabilizar a população e salvar o meio ambiente. Outros consideram que os avanços científicos e tecnológicos têm sido capazes de sustentar uma população cada vez maior e que consome cada vez mais em quantidade e em qualidade. Nos 60 anos, entre 1950 e 2010, a população mundial cresceu 172%, e nos próximos 90 anos, entre 2010 e 2100, esse crescimento deverá ficar em 50%. Portanto, o ritmo de crescimento demográfico mundial está diminuindo, mas o planeta terá mais 3 bilhões de pessoas até o fim do século 21. Exemplo de perspectiva otimista da relação entre população e desenvolvimento pode ser lida online em: David Lam. How the World Survived the Population Bomb: Lessons from 50 Years of Exceptional Demographic History, 2011 (www.psc.isr.umich.edu/ events/archive/2011/paa/david_lam.html). Brasil – O contingente populacional de 191 milhões de habitantes em 2010 deverá atingir um pico de 220 milhões por volta do ano de 2030 e, depois, iniciar um suave declínio até cerca de 180 milhões de habitantes em 2100. China – A população chinesa, que era de 551 milhões de habitantes em 1950, chegou a 1,341 bilhão em 2010, devendo atingir um pico de 1,396 bilhão por volta do ano de 2025 e, depois, iniciar um grande declínio até atingir 944 milhões em 2100. E a ponderação para uma perspectiva pessimista da atual relação entre população e desenvolvimento pode ser encontrada na obra World on the Edge: How to Prevent Environmental and Economic Collapse, 2010, de autoria de Lester R. Brown. Índia – A população indiana somava 372 milhões de indivíduos em 1950, chegou a 1,223 bilhão em 2010, deverá atingir um pico de 1,720 bilhão por volta do ano de 2060 e, depois, iniciar um leve declínio até chegar a 1,557 bilhão em 2100. Portanto, a Índia deverá ter mais 600 milhões de habitantes do que a China no final do século 21. Japão – De 82 milhões de habitantes, em 1950, passou para 127 milhões em 2010, devendo declinar até ficar com 91 milhões de habitantes em 2100. Ou seja, ao final de 150 anos, a população do Japão será quase igual a atual. Nigéria – No extremo oposto, este país que tinha em 1950 de 38 milhões de habitantes passou para 158 milhões em 2010, e deverá alcançar 756 milhões em 2100. co. Em todo o mundo, 789 milhões de habitantes de cidades ainda vivem sem acesso a saneamento adequado. No tocante à meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio relativa às favelas, as melhorias nesta área não conseguem acompanhar o ritmo crescente de afluxo de novos pobres. Nos últimos 10 anos, a parcela da população urbana vivendo em favelas nos países em desenvolvimento diminuiu: de 39%, em 2000, para 33%, em Contudo, o mundo é um só, e tanto os pessimistas quanto os otimistas precisam juntar forças para a construção de um mundo melhor e mais justo. O importante é que o debate das diversas perspectivas teóricas não paralise as ações no sentido de mitigar o aquecimento global, garantir os direitos da biodiversidade, recuperar os recursos naturais e possibilitar uma vida humana com mais bem-estar e em harmonia com a natureza. José Eustáquio Diniz Alves é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. As opiniões deste artigo são do autor e não refletem necessariamente as daquela instituição. E-mail: jed_alves{at}yahoo.com.br Publicado em www.ecodeb ate.com.br (07/04/2011). REFERÊNCIAS DA ONU: UN/ESA: Expert Group Meeting on Recent and Future Trends in Fertility, New York, 24 December 2009, e UN/ESA. What is new in the 2010 Revision of the World Population Prospects? New York, 201 2010. No entanto, em termos absolutos, o número de favelados no mundo em desenvolvimento cresce e continuará a aumentar no futuro próximo. O número de indivíduos que habitam em cidades periféricas das grandes metrópoles é agora estimado em 828 milhões, e deverá crescer em 6 milhões a cada ano. Serão necessários esforços redobrados para melhorar a vida desse número crescente de indivíduos. n FONTES E REFERÊNCIAS USADAS NO ARTIGO “Água - Rumo a um mundo de sede”: Water for sustainable urban human settlements. Briefing note. WWAP, UN-HABITAT. 2010 UN World Water Development Report 3: Water in a Changing World. WWAP. 2009 State of the World’s Cities 2007/2008. UN-HABITAT. 2008 Website of the Water for Life Decade www.un.org/ waterforlifedecade/water_cities.html) Website of the International Year of Freshwater 2003. UNESCO Progress on Sanitation and Drinking-Water: update 2010. WHO/UNICEF JMP. 2010 The Millennium Development Goals Report. UN, 2010 UN World Water Development Report 2: Water, a shared responsibility. WWAP, UN-HABITAT. 2006 UN-HABITAT Brochure. UN-HABITAT Vital Water Graphics - 2nd Edition (2008)- www.grida.no/ publications/vg/water2/ Cidadania&MeioAmbiente 13 . 2011 Waterfortheworld.net DIA MUNDIAL DA ÁGUA ‘Pegada Hídrica’: o uso responsável da água Metodologia criada pelo Prof. Arjen Hoekstra promove o uso eficiente e consciente da água, realçando a relação entre consumo diário e impactos ambientais na gestão da sustentabilidade hídrica. A Pegada Hídrica é uma ferramenta de gestão de recursos hídricos que indica o consumo de água doce com base em seus usos direto e indireto. O método permite que as iniciativas públicas e privadas, assim como a população em geral, entendam o quanto de água é necessário para a fabricação de produtos ao longo de toda a cadeia produtiva. Desta forma, os segmentos da sociedade podem quantificar a sua contribuição para os conflitos de uso da água e degradação ambiental nas bacias hidrográficas em todo o mundo. “Embora o Brasil seja o país com a maior reserva hídrica do planeta, em muitas regiões já existe conflito pelo uso da água, o que demanda uma boa governança. Além disso, o crescimento da economia brasileira deve aumentar significativamente o uso da água nas diversas atividades produtivas”, explica Samuel Barrêto, coordenador do Programa Água para a Vida do WWF-Brasil. Dessa forma, é preciso redu- zir os riscos de escassez de água, promovendo o uso eficiente desse recurso natural, e até mesmo reduzir o risco de imagem negativa, que pode estar associado a uma empresa que não utiliza bem este recurso. Para o Prof. Hoekstra, apesar de os governos terem papel fundamental na elaboração de leis que tornem a gestão eficiente da água uma obrigação, a população e as empresas também devem se envolver completamente. As companhias precisam entender como utilizar os recursos hídricos da melhor forma e devolvê-los limpos para a natureza. Já os consumidores devem se preocupar com a origem dos produtos que consomem e com os procedimentos adotados na produção. MÉDIAS GLOBAIS DE ‘PEGADA HÍDRICA’ Ao analisar a ‘Pegada Hídrica’ de um produto, é preciso levar em consideração as etapas do processo de fabricação e os locais por onde ele passou – desde a matéria-prima até o produto final. De acordo com o professor, “a Pegada Hídrica de uma área onde tem água em abundância é muito diferente da que está numa região mais seca”. Por isso, ele criou uma forma de distinguir estas Pegadas, a saber: z VERDE – quando a água da chuva evapora ou é incorporada em um produto durante a sua produção; z AZUL – quando se calcula as águas superficiais ou subterrâneas que evaporam ou são incorporadas em produtos, ou então devolvidas ao mar ou lançadas em outra bacia; e z CINZA – aquela que mede o volume de água necessário para diluir a poluição gerada durante o processo produtivo. Hoekstra destaca que a média global de ‘Pegada Hídrica’ de uma camisa de algodão, por exemplo, é de 2.700 litros de água (consulte as médias globais de outros produtos no quadro à pag. 15). Durante a produção, o algodão pode ter sido cultivado e transformado em tecido no Paquistão e em camisa na Malásia para ser ven- dida nos Estados Unidos. Portanto, o cálculo da ‘Pegada Hídrica’ de uma camisa é o somatório da pegada de cada etapa, e isso é distribuído por várias partes do mundo. ÁGUA VIRTUAL EMBUTIDA NOS PRODUTOS “Quem sabe se, no futuro, não poderemos dizer que a ‘Pegada Hídrica’ não é tão alta porque foi produzida onde há abundância de água ou onde não está poluindo. Cada vez mais os consumidores querem saber este tipo de informação. Devemos considerar quanto de poluição pode ser gerada nas águas da Ásia, por exemplo, para que o europeu possa vestir uma camisa. Com a Pegada Hídrica, fazemos uma ligação entre o consumo que acontece em um lugar e o impacto no sistema hídrico de outro lugar”, destaca Hoekstra. litros de água para uma espiga - 500g Milho litros de água para um filé - 330g Carne Mesmo já sofrendo com conflitos pelo uso da água doce, a América do Sul tem a maior reserva de recursos hídricos do mundo. Por isso, há uma crescente demanda por produtos de uso intensivo de água na região. Um país como a China, que vive essencialmente de exportações, precisa transferir a pegada para outros países que têm maior oferta. Países como a Nigéria têm uma pegada enorme não só por falta de água, mas também por práticas pouco sustentáveis do recurso. Hoekstra acredita que as empresas estão buscando entender o que podem fazer para ajudar. O comprometimento dos recursos hídricos pode afetar diretamente os negócios de um file (330g) um pacote - 500g Frango Arroz litros de água para litros de água para 500g uma garrafa - 500ml Soja Vinho Cada gota (da figura) equivale a 50 litros de água virtual (definido no local de produção). O teor de água virtual de um produto (uma commodity, bem ou serviço) é o volume de água usada para produzir o produto, aferido no local onde o produto foi realmente produzido. Refere-se à soma total da água usada nas várias etapas da cadeia de produção. Fonte: Dados e ilustrações extraídos do poster Virtual Water Inside Products, que pode ser visualizado na íntegra (e comprado) no site www.virtualwater.eu uma companhia, prejudicando a reputação, a área financeira, regulatória e até mesmo a sua localização. A WFN deu um grande passo e publicou o Manual Técnico de Pega- da Hídrica (disponível para download em www.waterfootprint.org (1), que contém normas e padrões globais, ponto chave para comparar produtos e empresas. n R EFERÊNCIA 1 – A Water Footprint Network é uma fundação sem fins lucrativos sob a lei holandesa. É essencialmente uma rede internacional aberta a parceiros de diversos grupos formadores de opinião na gestão de recursos hídricos, incluindo agências governamentais, organizações não-governamentais, empresas, universidades e organizações internacionais. As organizações podem tornar-se sócias da rede, inscrevendo-se para a missão e submetendo um pedido ao Conselho ARJEN HOEKSTRA A compassionate world.org ‘PEGADA HÍDRICA’ HUMANA Hoekstra explica que é possível também calcular a Pegada Hídrica de um indivíduo, de acordo com o padrão de consumo que ele segue e a oferta de produtos que tem. Uma pessoa que adota dieta vegetariana, por exemplo, tem uma Pegada Hídrica 30% menor do que uma não vegetariana. O brasileiro tem cerca de 5% da sua pegada em casa, com consumo de água na cozinha e no banheiro, e 95% estão relacionados com o que compra no supermercado, especialmente com produtos agrícolas. Outro dado importante é que 8% da pegada do brasileiro estão fora do País, um índice muito pequeno se comparado aos 85% da Holanda. “Precisamos desconstruir a percepção de que a água vem apenas da torneira e que simplesmente consertar um pequeno vazamento é o bastante para assumir uma atitude sustentável”, ressalta Albano Araujo, coordenador da Estratégia de Água Doce do Programa de Conservação da Mata Atlântica e das Savanas Centrais da The Nature Conservancy. litros de água para litros de água para z Criador do conceito de ‘Pegada Hídrica”, o Prof. Hoekstra e estabeleceu o campo de pesquisa interdisciplinar para avaliação das relações entre consumo, gestão e comércio de água. Hoekstra é professor de Gestão dos Recursos Hídricos da Universidade de Twente, na Holanda, e diretor científico da Water Footprint Network. z É especialista em gestão integrada de recursos hídricos, gestão de bacias hidrográficas, análise política, análise de sistemas e da ciência do desenvolvimento sustentável. O professor tem mestrado em Engenharia Civil e PhD em Análise Política, ambos da Universidade Tecnológica de Delft, na Holanda. z Suas publicações abrangem uma vasta gama de tópicos relacionados com a escassez de água, gestão dos riscos de inundação e do desenvolvimento sustentável e inclui 45 trabalhos em revistas científicas. Hoekstra tem três livros publicados: Perspectives on Water (Perspectivas sobre a Água, 1998), Globalization of Water (Globalização da Água, 2008) e The Water Footprint Assessment Manual (Manual Técnico da Pegada Hídrica, 2011). O Prof. Arjen Hoekstra visitou o Brasil para estimular a implantação de estratégias de conservação e gestão da água doce, graças a uma parceria entre WWF-Brasil, Water Footprint Network, The Nature Conservancy e USP São Carlos. Texto editado a partir de artigo publicado no portal EcoDebate (22/03/2011). Cidadania&MeioAmbiente 15 16 Cidadania&MeioAmbiente 17 DIA MUNDIAL DA ÁGUA . 2011 © WHO/P.Virot 2050: mais de 1 bilhão sem água Estudo publicado pela PNAS indica que em quatro décadas a atual escassez de água se tornará dramática para os habitantes das cidades, na medida em que o aquecimento global agravar os efeitos da urbanização. Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos/PNAS A escassez ameaça o saneamento em algumas das cidades de mais rápido crescimento no mundo, particularmente na Índia, mas também representa riscos para a vida silvestre caso as cidades bombeiem água de fora, afirma o artigo publicado nas Atas da Academia Nacional de Ciências (PNAS). memos esses números como uma fatalidade irreversível. Eles apenas sinalizam um desafio”, alerta o principal autor do estudo, Rob McDonald, do grupo privado ambiental The Nature Conservancy (www.nature.org), com sede em Washington. O estudo concluiu que, a continuarem as atuais tendências de urbanização, em meados deste século em torno de 990 milhões de habitantes de cidades viverão com menos de 100 litros diários de água cada um – mais ou menos a quantidade necessária para encher uma banheira -, quantidade que segundo os autores é a mínima necessária. Atualmente, cerca de 150 milhões de pessoas estão abaixo do patamar dos 100 litros de uso diário. A casa de um americano médio gasta 376 litros/dia/pessoa, apesar de o uso real variar dependendo da região. Mas o mundo está experimentando mudanças sem precedentes no nível urbano à medida que as populações rurais da Índia, China e outras nações em desenvolvimento migram para as cidades. Além disso, mais 100 milhões de indivíduos não terão água para beber, cozinhar, limpar, tomar banho e usar no banheiro. “Não to- As seis maiores cidades da Índia – Bombaim, Delhi, Calcutá, Bangalore, Chennai e Hyderabad – estão entre as cidades mais 18 afetadas pela escassez de água. O estudo prevê que 119 milhões de indivíduos não terão água suficiente até 2050 apenas nas planícies e no delta do rio Ganges. Segundo o estudo, a África ocidental também enfrentará escassez em cidades como Lagos, na Nigéria, e Cotonu, em Benin. Outras cidades que sofrerão o impacto são Manila, Pequim, Lahore e Teerã. n Fonte: O artigo “Urban growth, climate change, and freshwater availability”, publicado pelo PNAS/Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States, está disponível para consulta em versão integral em www.pnas.org. O texto original do presente artigo foi publicado no Correio Brasiliense e republicado e completado com informações adicionais no portal EcoDebate (29/3/2011). Fontes: FAO, Nations Unies, World Resource Institute (WRI). Publicado em Vital Water Graphics 2. UNEP; Human Development Report 2006. UNDP, 2006. Coping with water scarcity. Challenge of the twenty-first century. UN-Water, FAO. 2007. Cartógrafo/Designer: Philippe Rekacewicz (Le Monde diplomatique), fevereiro 2006. Link: http://maps.grida.no/go/graphic/global-waterstress-and-scarcity ESCASSEZ E ESTRESSE AQUÍFERO GLOBAL A ESCASSEZ DE ÁGUA... ...já afeta todos os continentes. Cerca de 1,2 bilhão de indivíduos, quase um quinto da população mundial, vive em áreas de escassez física, e 500 milhões estão se aproximando dessa situação. Outro 1,6 bilhão de indivíduos (quase um quarto da população mundial) enfrenta escassez econômica de água (aquela em que os países não têm a infra-estrutura necessária para captar água de rios e aquíferos). ... está entre os principais problemas a ser enfrentado por muitas sociedades e pelo mundo no século 21. No último século, a utilização da água mais do que dobrou em relação à taxa de crescimento demográfico, e embora não haja escassez global água como tal, um número crescente de regiões sofrem escassez hídrica crônica. ... é tanto um fenômeno natural e quanto antropogênico. Há bastante água doce no planeta para atender seus seis bilhões de indivíduos, só que distribuída de forma desigual, sendo boa parte é desperdiçada, poluída e gerida de forma insustentável. ESCASSEZ DE ÁGUA E OS ODM A forma como as questões da escassez de água são abordados tem reflexo sobre êxito da maioria dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). Estresse hídrico versus escassez de água – Os hidrologistas avaliam a escassez via relação água-população. Uma área conhece estresse hídrico quando o fornecimento de água anual é inferior a 1.700m3/pessoa; e quando ele cai a menos de 1.000m3/pessoa, a população enfrenta escassez de água, e abaixo de 500 m3 caracteriza-se a “escassez absoluta”. A escassez de água é definida como o ponto em que o impacto agregado de todos os usuários colide com o fornecimento ou a qualidade da água, na medida em que a demanda de todos os setores, incluindo o meio ambiente, não pode ser totalmente satisfeita. A escassez de água é um conceito relativo e pode ocorrer em qualquer nível de oferta ou de demanda. Pode ainda ser uma percepção social (produto de afluência, expectativas e comportamento habitual) ou a consequência de padrões de abastecimento alterados, como, por exemplo, os decorrentes das mudanças climáticas. Vocêsabia? Cerca de 700 milhões de pessoas em 43 países já sofrem com escassez de água. Em 2025, 1,8 bilhão de pessoas estarão vivendo em países ou regiões com escassez absoluta de água, e dois terços da população mundial pode já estar sob condições de estresse hídrico. Com o cenário das alterações climáticas, quase metade da população mundial estará em áreas de alto estresse hídrico até 2030, sendo 75 milhões a 250 milhões na África. Além disso, a escassez de água em alguns sítios áridos e semi-áridos provocam êxodos de 24 milhões a 700 milhões de pessoas. A África Subsaariana registra o maior número de países com estresse hídrico de toda a região. Fontes: Vital Water Graphics. UNEP - Coping with water scarcity. Challenge of the twenty-first century. UN-Water, FAO. 2007 Cidadania&MeioAmbiente 19 DIA MUNDIAL DA ÁGUA . 2011 A questão da escassez da água no planeta é analisada à luz de suas implicações políticas, sociais e ambientais. Descubra porque a água deixou de ser bem da humanidade para tornar-se “mercadoria” de acesso desigual ao redor do planeta. Sleepychinchilla Entrevista com Wagner Costa Ribeiro ÁGUA: vital para a vida no planeta IHU ON-LINE – EM QUE SENTIDO PODEMOS PENSAR NA ÁGUA COMO COMO ENTENDER QUE A ÁGUA É VISTA COMO MERCADORIA EM ESCALA INTERNACIONAL? Wagner Costa Ribeiro – Ela é vista como fonte de riqueza porque é um insumo fundamental para a produção agrícola e industrial, mas é, principalmente, uma substância vital para a reprodução da vida no planeta, inclusive da espécie humana. A água já é vista como mercadoria em alguns países do mundo, inclusive no Brasil, pois se cobra por ela, não apenas pelo serviço de coleta, tratamento e distribuição, mas também pela própria água. FONTE DE RIQUEZA? IHU – A JUSTIFICATIVA PARA ESSA COBRANÇA É A ESCASSEZ? WCR – A questão da escassez tem que ser vista da seguinte forma: existe água em abundância no planeta? Sim. Existe água com qualidade? Sim. Existe água em abundância, com qualidade onde é necessário? Em alguns lugares, não. A dificuldade é a distribuição política da água. É fazer essa água estar junto aos agrupamentos humanos, sem a fonte estar contaminada. Então, se isso não ocorrer, a água se torna um bem raro, portanto, uma mercadoria mais cara. IHU – O QUE PODEMOS ENTENDER PELO CONCEITO QUE O SENHOR GEOGRAFIA POLÍTICA DA ÁGUA? WCR – A geografia política da água procura estudar justamente, de que maneira, a apropriação da água pela espécie humana ocorre DEFENDE NA OBRA 20 ao longo dos tempos. Isso tem que ser analisado da seguinte maneira: nós temos estoques de água naturais, sejam subterrâneas ou que correm nos rios, e isso aconteceu por processos naturais. Porém, a apropriação dessa água ocorre por processos históricos, sociais, políticos, que envolvem trocas comerciais, guerras, domínios territoriais. Geografia Política da Água procura mostrar de que maneira ocorreu a apropriação desses recursos naturais, no caso, a água, a partir dos processos históricos. Muitas vezes, infelizmente, com conflitos ou com trocas comerciais desiguais. IHU – QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS E AMBIENTAIS DO ACESSO DESIGUAL AOS RECURSOS HÍDRICOS NO PLANETA? WCR – As consequências sociais são as mais relevantes, embora hoje possamos falar mais em consequências socioambientais. Mas a situação é mais grave do ponto de vista social, pois, hoje, em países pobres, inclusive em parte do Brasil, a maior parte das internações hospitalares ocorre em função da contaminação a partir da água. São populações que sofrem doenças a partir da água. Em vez de a água ser uma substância para repor elementos importantes para a vida, ela acaba se transformando num vetor de doença. O problema é que o acesso à água ainda é desigual. Dia 18 de abril, haverá uma corrida de rua de seis quilômetros em vários pontos do mundo para chamar a atenção para o fato de que a distância média percorrida por muita gente para conseguir água potável, muitas vezes carregada em lata d’água na cabeça, é de seis quilômetros. Do ponto de vista ambiental, a principal consequência é a introdução de elementos estranhos na água, no caso, a contaminação. Isso acontece pelo uso intensivo na agricultura, pelo uso intensivo de agrotóxicos que acaba contaminando a água, e também o processo de industrialização, que usa a água como insumo para a produção e depois não a trata antes de devolvêla aos rios. A espécie humana também tem sua parcela importante: no caso brasileiro, ainda não tratamos o esgoto, que também acaba sendo fonte de contaminação da água. IHU – QUE CENÁRIO PODEMOS VISLUMBRAR A CURTO PRAZO A PARTIR DE CRISES LOCALIZADAS DE FALTA DE ÁGUA? FALA-SE ATÉ EM GUERRAS FUTURAS PELA DISPUTA DA ÁGUA… WCR – Quando se fala em guerra por água, é importante lembrar que já houve, no passado, situações de tensão extrema, que levaram à confrontação. Guerra não significa necessariamente a confrontação armada, pode ser uma relação hostil, uma troca de tensão etc. Às vezes, declarações tensas já são interpretadas como um conflito. Então, já tivemos conflitos pela água e certamente teremos outros. E aí já temos áreas apontadas e conhecidas como de tensão. Hoje, a mais grave em todo o planeta é a zona entre Palestina e Israel. E também temos a fronteira entre México e Estados Unidos. IHU – EM QUE MEDIDA A CRISE DA ESCASSEZ DE ÁGUA AFETA A QUESTÃO DO SANEAMENTO BÁSICO? WCR – A relação é direta. Se não tivermos a capacidade de tratar o esgoto, estaremos contaminando os rios. As pessoas gostam muito de utilizar tinta no cabelo, passar xampus diferentes, e esquecem que, depois, isso tudo é levado pela água, vai se concentrar em larga escala. Em metrópoles como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, com milhões de habitantes jogando esses insumos na água, imagine a contaminação que isso gera, só para falar da questão do esgoto. IHU – COMO FAZER COM QUE AS POLÍTICAS PÚBLICAS BENEFICIEM O USO COLETIVO E IGUALITÁRIO DA ÁGUA? WCR – Temos hoje os comitês de bacia que deveriam ser o instrumento de determinação do uso da água a partir dos planos de bacia hidrográfica. Em algumas regiões do país, isso já está mais avançado, e, em outras, não. Há muito desequilíbrio no Brasil em relação a essa questão. Infelizmente, há situações onde predominam os interesses dos grandes usuários de água, que são principalmente as empresas de saneamento básico. n Wagner Costa Ribeiro – Geógrafo e Ph.D em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo/USP, onde leciona no Depto de Geografia e atua no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental. Coordena o Grupo de Pesquisa de Ciências Ambientais do Instituto de Estudos Avançados da USP, e é autor de Geografia Política da Água (São Paulo: Editora Annablume, 2008) e A Ordem Ambiental Internacional (São Paulo: Contexto, 2001), entre outros. Entrevista de Graziela Wolfart em IHU On-line, publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo, RS, e republicada em www.ecodebate.com.br (23/03/2011). ACESSO À ÁGUA POTÁVEL PARCELA DA POPULAÇÃO COM ACESSO À ÁGUA POTÁVEL 85% ou mais 70 - 85 55 - 70 40 - 55 menos de 40% sem registros Fontes: Organização Mundial da Saúde e Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2000. Informações obtidas no United Nations Common Database, em 2006. Online em: http://unstats.un.org/unsd/cdb/. Cartógrafo/Designer: Hugo Ahlenius, UNEP/GRID-Arendal.com Link: http://maps.grida.no/go/graphic/access-to-safe-drinking-water Atualmente, mais de 1 bilhão de indivíduos não tem acesso a uma fonte de água adequada, como a viabilizada por rede de abastecimento ou por poço confiável. Em vez disso, o acesso à água é limitado ou disponível via fontes não confiáveis. Um dos objetivos das Metas de Desenvolvimento do Milênio é reduzir pela metade, até 2015, a proporção de indivíduos sem acesso sustentável à água potável e ao saneamento básico. Cidadania&MeioAmbiente 21 DIA MUNDIAL DA ÁGUA . 2011 ÁGUA & MUDANÇAS CLIMÁTICAS A INGERÊNCIA HUMANA NO MEIO AMBIENTE VEM AFETANDO DE FORMA DRAMÁTICA O EQUILÍBRIO ECOSSISTÊMICO DA TERRA, COMO REVELA ESTE ARTIGO SOBRE AS REPERCUSSÕES DA AÇÃO ANTROPOGÊNICA NO ELEMENTO ÁGUA. Kate Fisher/BBC WorldService ÁGUA EM EXCESSO Os fortes temporais ocorridos ao longo do mês de janeiro na cidade de São Paulo estão diretamente relacionados ao fenômeno conhecido como “ilha de calor”. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a grande quantidade de chuvas no início do ano mostra uma discrepância entre o clima na capital e no restante do estado. Janeiro deste ano foi o mais chuvoso desde 1943, quando começaram as medições, enquanto que no interior do estado não choveu tanto. A diferença da capital para o restante do estado está na grande aglomeração urbana que concentra fontes e receptores de energia. Os Rios Tietê e Pinheiros, além de 70 principais córregos e 569 galerias pluviais de drenagem, acumulam atualmente pelo menos 4,2 milhões de metros cúbicos de sedimentos, areia, entulho e muito lixo, volume que corresponde a 350 mil caçambas de caminhão. O acúmulo de calor causado pela grande quantidade de edificações verticalizadas, a impermeabilização do solo, o uso de equipamentos como ar-condicionado, além das 22 por John Emilio Garcia Tatton emissões de uma frota com mais de 6 milhões de automóveis, ampliam a corrente que leva o vapor de água para a atmosfera. Esse processo acaba criando nuvens maiores do que o normal. Quanto mais intensa a corrente ascendente que leva a água lá para cima, mais desenvolvimento vertical essa nuvem vai ter. Assim a “ilha de calor” é muito bem caracterizada na cidade. Essas grandes nuvens dão origem a tempestades que descarregam em um curto espaço de tempo a precipitação que demoraria várias horas ou até alguns dias para voltar ao solo. São Paulo é a capital brasileira que tem a maior tendência para eventos extremos, chove a mesma quantidade em um número menor de vezes, de acordo com as observações feitas em todo o país pelo Inmet. Uma chuva forte é caracterizada pela precipitação acima de 60mm por hora ou de 10mm em 10 minutos. Com um diâmetro médio das gotas de chuva aproximado de um a dois milímetros. Recentemente foi observada por pesquisadores gotas com diâmetro de um centímetro (10mm). Cientistas suspeitam que a formação destas supergotas tenha relação com a poluição do ar. Possivelmente os pingos se formariam pela condensação de água em contato com partículas em suspensão. Cientistas do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) consideram como certo o aumento da frequência e intensidade dos fenômenos climáticos extremos se o planeta continuar aquecendo. Afirmam que precisamos estar preparados para um número cada vez maior de tragédias humanas relacionadas a mudanças climáticas. O clima se tornará mais variável. O úmido será mais úmido e o seco, mais seco. Eventos climáticos extremos, como as fortes chuvas que recentemente atingiram Angra dos Reis, Ilha Grande e que mataram quase mil pessoas na região serrana do Estado do Rio de Janeiro podem estar relacionados ao aquecimento global. Assim como temporais nunca vistos, que no mesmo período ocorreram em São Luís do Paraitinga (SP), em Santa Catarina, na Cidade do México, em Buenos Aires e em regiões da Austrália, Paquistão e Arábia Saudita. Essa sucessão de tragédias climáticas provavelmente tem alguma conexão. Segundo os cientistas, ela é coerente com o quadro das mudanças climáticas esperado. Cada vez mais há ruptura dos padrões conhecidos de clima. As médias tradicionais de chuvas, segundo as quais foram construídas nossas cidades e até nossa civilização, estão sendo rompidas por recordes seguidos. Pesquisas mostram que a presença na atmosfera de gases efeito estufa (GEE) originados pela ação humana contribui para o aumento da temperatura da atmosfera e leva a um acúmulo maior de vapor d´água, que se transforma em chuva, aumentando significativamente a probabilidade de tempestades, caracterizadas por mais de 100 milímetros de água por metro quadrado em um dia. De acordo com a Rede Histórica Global de Climatologia, 2010 foi o ano mais úmido já registrado, em termos de precipitação média global. Estudos, coordenados pelo meteorologista Francis Zwiers, do Centro Canadense de Análises Climáticas, contabilizaram os índices máximos de precipitação do hemisfério Norte de 1951 a 1999 e concluíram que o aumento dos gases efeito estufa (GEE) contribuiu para a intensificação das chuvas fortes em aproximadamente dois terços das áreas analisadas. Para ter certeza de que o aumento foi causado pelos GEE, os pesquisadores compararam os modelos climáticos da segunda metade do século 20 com a concentração de gases-estufa na atmosfera durante os anos e confirmaram que as chuvas se tornaram mais intensas conforme as emissões aumentaram. A temporada de furacões do Atlântico em 2010 foi extremamente ativa, com 19 tempestades e 12 furacões. O ano terminou em terceiro como o de mais tempestades e em segundo como o de mais furacões já registrados. Desde que os registros começaram em 1979, o Ártico atingiu o seu terceiro menor índice de gelo do mar anual. A oscilação negativa do Ártico em janeiro e fevereiro de 2011 ajudou a espalhar o ar frio do Ártico para grande parte do Hemisfério Norte. Frios recordes e grandes nevascas com acúmulos de neve ocorreram em grande parte da América, norte da Europa Oriental e da Ásia. Entretanto em março de 2011, a extensão do gelo marinho da Antártida atingiu o oitavo menor índice máximo de extensão anual. Realmente o clima do planeta está mudando. rio mais volumoso do mundo, atingiram seus níveis mais baixos desde 1963. “ A seca de 2010 na Amazônia pode provocar a emissão de mais de 5 bilhões de toneladas de CO2 florestal para a atmosfera. ” ÁGUA EM ESCASSEZ O Centro Nacional de Dados Climáticos dos Estados Unidos revelou que 2010 e 2005, foram os anos mais quentes da história desde que os registros começaram a ser feitos, em 1880. A temperatura global em 2010 foi a segunda mais quente já registrada, com 0,96°C acima da média do século 20. A temperatura da superfície do oceano ficou empatada com a de 2005 como a terceira mais quente já registrada, com 0,49°C acima da média do século 20. Estudos realizados pela Universidade de Leeds no Reino Unido e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) revelaram que a seca de 2010 na Amazônia pode ter sido ainda mais devastadora para suas florestas do que a seca de 2005, antes considerada a mais grave da região nos últimos cem anos. Outro estudo (The 2010 Amazon Drought) publicado pela “Science” comparou as secas de 2005 e 2010, através de observações por satélite. A primeira, pela amplitude, foi batizada “seca do século” na Amazônia, por ter afetado 1,9 milhão de quilômetros quadrados, ou seja, 37% da superfície total. Mas a segunda, somente cinco anos mais tarde, foi ainda mais forte, por ter afetado 3 milhões de quilômetros quadrados, 57% da superfície total observada. Em virtude do déficit hídrico de 2010, o rio negro e o rio Amazonas, Cientistas britânicos e brasileiros calculam que a seca de 2010 pode provocar a emissão de mais de 5 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) florestal para a atmosfera. Com base em correlações conhecidas entre seca e mortalidade das árvores, os autores do estudo prevêem o impacto nocivo da seca de 2010: não só a floresta não poderá mais captar seu habitual 1,5 bilhão de toneladas de CO2, como também as árvores mortas, ao apodrecerem, soltarão 5 bilhões de toneladas de CO2 ao longo dos próximos anos. Em comparação, os Estados Unidos emitem anualmente 5,4 bilhões de toneladas de CO2 de origem fóssil. De acordo com cientistas, também as alterações em ciclos climáticos, como o El Nino, La Nina e o aquecimento do Atlântico Norte causados pelas mudanças climáticas, podem aumentar a intensidade e frequência de secas na Amazônia. Assim como também os gases de efeito estufa, secas, desflorestamento, incêndios e emissões crescentes de carbono intensificam o efeito estufa e o aquecimento climático, concluiu o estudo publicado na revista Science. ÁGUA SEM QUALIDADE As mudanças climáticas podem aumentar a exposição das pessoas a doenças transmitidas pela água procedente de oceanos, lagos e ecossistemas costeiros. Segundo cientistas da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), vários estudos demonstraram que as mudanças no clima provocadas pelo aquecimento global tornam os ambientes marinhos e de água doce mais suscetíveis à proliferação de algas tóxicas, conhecida como “maré vermelha” e permitem que micróbios e bactérias nocivas à saúde se multipliquem. Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) recentemente notificou que irá atualizar as leis de água limpa do país, que estão atrasadas em relação à ciência ambiental e de saúde. Vários estudos mostram que centenas de substâncias químicas industriais e agrícolas, incluindo vários carcinógenos conhecidos, estão presentes nos sistemas de água municipais americanos. Há suspeitas de que o consumo de água contaminada por estrogênio, um hormônio sintético presente em pílulas anticoncepcionais orais e produtos veterinários usados Cidadania&MeioAmbiente 23 DIA INTERNACIONAL DA ÁGUA nômico causado pelas enchentes na Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, que abriga a Região Metropolitana de São Paulo, com mais de 20 milhões de habitantes. O rio Tietê exprime o “caldo da cultura” consumista e insustentável da megametrópole. O Brasil é atualmente um dos maiores consumidores de agrotóxicos classificados como perigosos ou muito perigosos para o ecossistema aquático e o meio ambiente, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Em 2009, foram utilizadas 90,5 mil toneladas do herbicida glifosato em lavouras de 26 culturas diferentes, entre elas arroz, café, milho, trigo e soja. Entre os dez produtos agrotóxicos mais comercializados está o metamidofós, banido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na última semana pelos altos riscos à saúde. Muitos agrotóxicos em uso no Brasil já foram proibidos em seus países de origem, como o acefato, por exemplo, que está passando por processo de reavaliação e pode ser banido das lavouras brasileiras. Ainda no século 21 a falta de saneamento básico nas regiões Norte, Nordeste e nas periferias das grandes cidades brasileiras são responsáveis pelas altas taxas de internação por diarréias, decorrentes de condições mínimas de esgotamento sanitário, que expõem a população permanentemente a enfermidades. A situação é mais grave onde há menos saneamento e mais pobreza e as crianças são o elo mais frágil. Estudo do Instituto Trata Brasil 24 © WHO / UNICEF para aumentar a produção de leite provoque nos seres humanos desequilíbrios hormonais e reprodutivos, além da feminização de peixes. Para os cientistas é importante a modernização do tratamento de efluentes, incluindo a desinfecção com ozônio, entre outros tratamentos capazes de remover compostos como o estrogênio e parasitas como o cryptosporidium. As leis e programas de fiscalização nos EUA não acompanharam o ritmo da disseminação da contaminação, o que representa riscos de saúde significativos para milhões. A EPA anunciou que irá estabelecer padrões para até 16 outras substâncias tóxicas e carcinógenas, entretanto há muito mais contaminantes de preocupação emergente, que a ciência apenas recentemente permitiu detectar em níveis muito baixos, partes por bilhão e até partes por trilhão, como a dioxina por exemplo. É preciso continuar acompanhando o aumento do conhecimento e as implicações para a saúde pública de um crescente número de substâncias químicas que podem estar presentes em nossos produtos, nossa água e nossos corpos. . 2011 “ O pleno acesso ao saneamento básico é garantia para a melhoria da saúde, da qualidade de vida e do futuro sustentável do país. ” comprovou que as crianças de até cinco anos são o grupo mais vulnerável às diarréias e representam mais de 50% das internações por esse tipo de enfermidade. Nos 81 municípios analisados pelo estudo, 39.265 crianças de até cinco anos haviam sido internadas por diarréias em 2007. Conclui-se que o pleno acesso ao saneamento básico é a garantia para melhoria de saúde, qualidade de vida e de um futuro sustentável para o país. Sem dúvida, o lixo é o elemento que mais impacta as águas no mundo todo, sejam salgadas ou doces. Ilhas de plástico já podem ser vistas do espaço, lógico ao lado de lixo espacial. São Paulo, a maior cidade do Brasil, não tem onde depositar o lixo doméstico e comercial de seus mais de 10 milhões de moradores. A metrópole está desde 2009 sem aterro próprio para descartar as 12 mil toneladas diárias de lixo que produz e ainda, as aproximadamente 55 gramas diárias de biosólidos por habitante, provenientes do tratamento de esgotos. O último aterro em funcionamento possui uma montanha de 28 milhões de toneladas acumuladas ao longo de seus 17 anos de funcionamento. Sua manutenção pelos próximos 20 anos inclui a queima de gás metano e ainda o transporte diário de quase 6 mil toneladas de chorume para tratamento na Sabesp. O casamento fúnebre do lixo com os esgotos tem sido um pesadelo para os paulistanos nesse verão de 2010. Haja vista o grave impacto social, ambiental e eco- GESTÃO DA ÁGUA: SANEAMENTO, LEGISLAÇÃO E EDUCAÇÃO AMBIENTAL A solução encontrada para conter a degradação socioambiental no Brasil foi a criação, pela ordem nos últimos anos, das políticas públicas de meio ambiente, recursos hídricos, educação ambiental, saneamento e resíduos sólidos, institucionalizadas em forma de leis. Em consideração ao tema “Água para as Cidades – Respondendo ao desafio urbano” do Dia Mundial da Água 2011; destacamos a política pública de recursos hídricos, com: a outorga de uso da água, o licenciamento de empreendimentos poluidores, o enquadramento de corpos d´água receptores e principalmente a gestão participativa da água, com difusão da educação ambiental, no âmbito dos Comitês de Bacia. O século 21 será o século da ecologia. Também a inclusão de disciplinas como Ecologia e Ciência Ambiental em cursos das áreas de exatas, como arquitetura, engenharia e economia; além da criação de novos cursos de graduação, como Engenharia Ambiental e Ecologia; trouxeram avanços de conhecimento significativos para conquista do desenvolvimento sustentável. Entretanto a geração atual que comanda empresas e governos continua com foco na rentabilidade econômica para poucos, ainda não está convencida da mudança de paradigma urgente a ser aplicada, com a renovação de crenças e valores e aplicação efetiva das ferramentas de sustentabilidade conhecidas: Agenda 21, 3Rs, ISO14.000, A3P, Consumo Responsável, Pegada Ecológica, Química Verde, Ecologia Industrial, Responsabilidade Social, Educação Ambiental, Eliminação da Pobreza. Sem querer enumerar o supérfluo, reivindicamos o necessário para todos os habitantes do planeta: água potável, alimento e saneamento ambiental. n John Emilio Garcia Tatton é professor de Ecologia Urbana no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e Presidente da AGUA – Associação Guardiã da Água (www.agua.bio.br). Texto publicado em www.ecodebate.com.br (22/03/2011) O M S I N A B R U Hadsie Cidades da periferia: a nova ordem econômica e social por Doug Saunders Um terço da humanidade está trocando o campo pela cidade na maior migração da história humana, um evento gerador de novos espaços – pontos focais de conflito e de mudanças neste século. Embora estigmatizadas, as “cidades da periferia” se convertem em centros de febril atividade, de remodelamento urbano, social e econômico. Descubra o como e o por quê desta irreversível tendência mundial com o autor do best-seller Arrival Cities Cities. D entro da cidade existe outra cidade, instalada na periferia de nossa visão e além dos guias turísticos. Cenário do próximo capítulo da história mun dial, as cidades periféricas (“arrival cities”) são movidas à força de vontade e de esperança, golpeadas pela violência e pela morte, estranguladas por negligência e incompreensão. A história está sendo escrita – e em grande parte ignorada – em locais como Liu Gong Li, na periferia de Chongqing Chiem, China; em Clichy-sous-Bois, nos arredores de Paris; na Dharavi de quase um milhão de habitantes, em Mumbai, Índia; e em Compton, no entorno de Los Angeles. Esses locais são habitados por indivíduos oriundos do campo, e funcionam como molas propulsoras para acesso ao establishement urbano e base de recepção e apoio à próxima leva de migrantes em busca de uma vida melhor na cidade. Cidadania&MeioAmbiente 25 Jitendra Hassija Ao redor do mundo, esses locais são conhecidos por muitos nomes: favelas, slums, bustees, bidonvilles, ashwaiyyat, shantytowns, kampongs, aldeias urbanas, gecekondular, bairros do mundo em desenvolvimento, e também bairros de imigrantes, bairros étnicos, subúrbios problemáticos, Chinatowns, Little Índias, bairros latinos, favelas urbanas e subúrbios de migrantes nos países ricos. A cada ano esses núcleos absorvem dois milhões de indivíduos, principalmente os oriundos de zonas rurais dos países em desenvolvimento. do, exceto em zonas de guerra, encontram-se famílias rurais mudando em massa e de uma só vez para a cidade. Nada disso ocorreu quando a Europa e a América do Norte foram urbanizadas por populações rurais no século 19. Hoje, a população mundial ruma para os centros urbanos numa onda oscilante de vaie-vem de indivíduos e de grupos de campesinos, puxada e empurrada pelas marés da agricultura, da economia, do clima e da política UMA CIDADE FRACASSADA Shenzhen, ao sul da China continental e vizinha de Hong Kong, é a maior Quando olhamos para as “cidades cidade do mundo propositadamente Mumbai, os casebres da da periferia” tendemos a vê-las como construída como “cidade de chegada”. entidades estáticas. Nada mais que “cidade de chegada” abrigam os milhões Em 1980, Shenzhen não passava de um aglomerado de moradias de baiuma aldeia de pescadores de 25.000 de indivíduos que migram da zona xo custo habitado por gente pobre, almas até que o então presidente Deng geralmente em condições insalubres. Xiaoping a declarou primeira Zona rural para a cidade. No jargão dos urbanistas e de alEconômica Especial, isenta de restriguns órgãos, esses enclaves são amiúde defini- PARTINDO DA ALDEIA ções ao deslocamento geográfico de trabalhadores dos como apêndices malignos e tumores cance- Em Mumbai, a cada junho, jovens homens ma- e livre para a prática do capitalismo. Shenzhen rosos na cidade saudável. Seus moradores são gros arrastam-se para fora de pisos de concreto e rapidamente inchou em um pólo industrial com vistos, nas palavras do ex-presidente Fernando buracos em calçadas, de casebres de lata e de ca- população que, no final do século 20, alcançou Henrique Cardoso, “como um grupo ecologica- banas de plástico, ou seja, de todos os pontos da oficialmente quase nove milhões, sendo mais promente definido, não como parte integrante do densa malha de bairros ao norte da metrópole. vável uma estimativa de 14 milhões devido às massistema social.” Às centenas de milhares, eles habirtam a perife- sas de migrantes rurais semipermanentes que cheria, a “cidade de chegada”. Ainda não são resi- gam de toda a China para embalar os “dormitóriNo Ocidente, tais conceituações têm provocado dentes de pleno direito por se considerarem cida- os”. Shenzhen gerou uma classe média próspera, trágicas políticas habitacionais, do tipo que le- dãos de suas aldeias. E neste começo de junho, ao tornou-se líder no setor de alta tecnologia e abriga vou Paris a explodir em motins, em 2005, aos se iniciar a colheita da maior safra de arroz, eles uma das melhores universidades do país. É o lugar confrontos em Londres na década de 1980, e à tornam-se novamente camponeses. Em massa, onde são fabricados iPods, Nike, roupas de grife violência assassina em Amsterdã, na primeira convergem para as plataformas lotadas de Dadar ocidental e eletrônica de ponta. Não obstante tudo década deste século. E leva ainda a políticas mais Station, onde com pilhas de surradas rupias pa- isso, Shenzhen é hoje uma “cidade de chegada” desastrosas em cidades da Ásia, da África e da gam o bilhete de terceira classe (US$ 1 para ida e sem capacidade para oferecer emprego, com centeAmérica do Sul, via projetos de erradicação de outro para a volta) embarcam no lento comboio nas de milhares de trabalhadores migrantes voltanfavelas nos quais o futuro de dezenas ou cente- Konkan – lotando os bancos , cabeças para fora do aos vilarejos de origem. nas de milhares de pessoas é desconsiderado de das janelas gradeadas – para ajornada de oito hoforma imprudente. ras rumo ao sul, margenado o mar da Arábia, até Não é necessário passar muito tempo entre a as florestas de bambu e os arrozais do sul rural do mão-de-obra migrante de Shenzhen para perceHá ainda outra visão alternativa, a oferecida estado de Maharashtra. ber qual é o problema. Há milhões de trabalhanos livros e filmes populares, nos quais as “cidores que compraram apartamentos em edifícidades de chegada” são apresentadas como ex- Para quem quiser desvendar essa grande migra- os altíssimos e com altíssima densidade demotensões contíguas de um “planeta de favelas” ção, ver as primeiras etapas de sua formação e gráfica, gente que trouxe família e fixou residêndistópico, um submundo homogêneo em que sua transformação num movimento de transfe- cia – quase todos trabalhadores qualificados (técos pobres são confinados a bairros-prisão, vi- rência de um terço da população rural para a nicos, gestores ou gente com formação pós-segiados por uma polícia hostil , abusados por cidade, a providência correta é aderir à maré hu- cundária). Mas para o operariado, tal sonho é corporações impiedosas e vitimados por religi- mana que, em trens, barcos e microônibus faz o inacessível: eles não conseguem abrir uma loja ões evangélicas parasitas. Este é certamente o caminho de volta ao campo na época da colhei- ou iniciar uma fabriqueta rudimentar, como ocorre destino de muitas “cidades de chegada” ao se- ta. É neste movimento de retorno que os novos com os imigrantes das “cidades de chegada” em rem privadas de sua estrutura fluida ou aban- habitantes urbanos estão mais unificados, com outras localidades. donadas pelo Estado. No entanto, considerar maior probabilidade de construir redes de relacitais visões como o estado normal de tais núcle- onamento que culminarão na migração perma- Em outras cidades chinesas, incluindo Pequim e os é ignorar o grande sucesso destes núcleos da nente, todos cientes de sua impotância política Chongqing, antigos habitantes da zona rural se periferia. Tanto nos países em desenvolvimen- e econômica. A chegada deste contingente hu- cristalizam em autoconstruídos “vilarejos” de mito como no rico Ocidente, elas são o instru- mano à cidade é parte de um processo rural, lhares ou dezenas de milhares de pessoas, princimento-chave para a criação de uma nova classe regulado pelas estações, através do qual cada palmente quando oriundos da mesma região – média ao abolir tanto os tormentos da pobreza indivíduo tem a oportunidade de criar links e como Liu Gong Li. Aqui, eles podem conseguir vigente nas zonas rurais quanto a desigualdade. comunidades maiores. Em nenhum lugar do mun- uma primeira residência – simples, mas suportá- “ 26 Em ” Só que em Shenzhen, esses bairros autogerados não existem mais. Em 2008, tentei visitar uma dessas últimas “aldeias”, de nome Min Le (“Aldeia de Gente Feliz”), situada na fronteira noroeste da cidade. Encontrei nada mais que uma estreita faixa de terreno desbravado por bulddozers e transformado em canteiro de obras para a construção de novos arranha-céus de alta densidade habitacional. “ A favela de Kibera garante um fluxo vital de dinheiro para as aldeias do conturbado Quênia e dos países vizinhos. Em todo o mundo, os estudiosos da questão e os agentes governamentais estão começando a perceber que os bairros de imigrantes das zonas rurais são cruciais para o futuro de uma cidade, não um problema a ser eliminado. A última década assistiu a uma dramática mudança nos pareceres oficiais. Ainda assim, a demolição de favelas nas “cidades de chegada” é prática muito comum em urbes como Mumbai e Manila. Estas eliminações sistemáticas arruínam o funcionamento econômico e social da “cidade de chegada”. Mesmo nos casos em que os moradores expulsos das favelas recebem apartamentos simples em conjuntos habitacionais – prática comum na Ásia e na América do Sul –, já não lhes é mais possível criarem lojas, restaurantes e pequenas indústrias para atender as necessidades da comunidade, ou formar redes de relacionamento orgânico entre a aldeia e a cidade. As pessoas se tornam dependentes e suas comunidades ficam engessadas. FAVELA OU “CIDADE DE CHEGADA”? À semelhança da maioria das favelas africanas, Kibera é uma verdadeira “cidade de chegada”. Embora já exista a sudoeste de Nairobi há 90 anos, tendo sido criada quando a administração colonial queniana concedeu algumas glebas de terra aos veteranos Núbios sem-teto da Primeira Guerra Mundial, nas décadas pós-colonial Kibera tornou-se um instrumento vital de urbanização, carreando vilarejos e distritos para a cidade. Apesar de suas condições dramáticas, Kibera garante um fluxo vital de dinheiro para as aldeias do conturbado Quênia e dos países vizinhos, e também consegue transformar seus habitantes em moradores urbanos. “Agora sou residente de Nairóbi, falo a língua e sei como ser uma mulher daqui”, diz Eunice, que cresceu cultivando milho, mandioca e batata no seco noroeste do Quênia. No campo, toda a família vivia em uma cabana de palha, e via de regra fazia uma refeição por dia – apenas mingau. À diferente. Hoje, seus pequenos bangalôs são pintados e muito bem conservados, os belos jardins e canteiros são delimitados por novas cercas de ferro forjado e hortas no quintal. Suas avenidas são agora ativas e coloridas, com muitas lojas, pequenas indústrias, mercados animados e restaurantes, tudo decorado com exuberância de cores. O bairro nunca será bonito, nem completamente seguro, mas tornou-se muito mais agradável, feliz e otimista. Agora, ele é povoado principalmente por migrantes rurais: seis em cada 10 pessoas que ali vivem nasceram em uma aldeia da América Latina, muitas vezes a mesma que seus vizinhos. As idas mensais dos salvadorenhos que ali vivem à agência da Western Union são quase certamente a maior fonte de renda da pequena aldeia de El Palón. São as remessas de centenas de dólares que mudaram a aparência e a qualidade das habitações daquela aldeia em El Salvador, que ganhou eletricidade e TV. Os membros da comunidade salvadorenha de West Adams ajudaram-se entre si a migrar, alugar apartamentos, arranjar emprego, poupar, criar pequenos negócios, contratar mais mão-de-obra e comprar casas. Esta rede de relacionamento cidade-vilarejo, entre centenas de outras assemelhadas, conectam ruas e quarteirões adjacentes a remotos distritos rurais em Honduras, Guatemala, El Salvador e México. O bairro tornou o centro-sul e o sul de Los Angeles numa colcha de “cidades de chegada”. E esses quarteirões não só transformaram as aldeias da América Central em lugares melhores, como também tornaram os filhos e filhas dos imigrantes em americanos respeitáveis. Khym54 vel – e abrir um pequeno negócio, restaurante ou até mesmo uma fabriqueta aberta para a rua, como fazem os moradores das “cidades de chegada” em todo o mundo. ” medida que se propagou o apelo da cidade e as sucessivas ondas de fome dizimaram aaldeia natal, ela e o marido perceberam que a única chance de manter os filhos vivos era criar um link com a cidade, a 400 quilômetros de distância. ALDEIA AMERICANA A área no entorno do cruzamento das avenidas South Redondo e West Adams, em Los Angeles, não pode ser confundida com uma village. É uma faixa estreita de bangalôs com gramados em miniatura interrompida por blocos de edifícios industriais e comerciais nas avenidas principais, tudo à sombra do elevado Santa Monica Freeway. Chamada de West Adams pela administração local e por muitos Angelenos como o extremo norte de South Central, trata-se de um bairro cinzento e quente, coalhado de carros, sem qualquer tipo de parque ou de espaço verde, um dos bairros mais densamente povoados da cidade. E também um dos mais pobres. Historicamente, foi um gueto afro-americano com alto índice de criminalidade, uma zona onde os Angelenos brancos não ousavam se aventurar. Não tinha nenhuma economia, e os letreiros publicitários da avenida anunciavam apenas os fortemente vigiados estabelecimentos de venda de bebida alcoólica e de desconto de cheque. Em 1992, ela explodiu em violência – os motins de Rodney King incendiaram dezenas de edifícios e deixaram dezenas de outros saqueados. Os homens se postavam nos gramados minúsculos à frente das vitrines gradeadas de suas lojas com armas de grosso calibre para defender a todo custo seus espaços alugados, sempre gritando entre imprecações que se mudariam para outra parte da cidade logo que pudessem. No entanto, quase duas décadas após os motins, este canto da cidade tornou-se completamente NA PERIFERIA DE TEERÃ A metrópole de Teerã desdobra-se das alturas nevadas das montanhas Alborz às planícies de sal do deserto de Dasht-e Kavir. E ao longo deste caminho, as moradias de aço e vidro se transformam em outras, de pedra e madeira, areia e lama. Quando se viaja ao limite sul da cidade e, em seguida, continua-se o trajeto por vários quilômetros do mais puro inferno industrial até a orla do deserto, chega-se a um perímetro zumbindo de atividade: construção de moradias, vaivém constante, veículos com placas de províncias distantes. São os novos assentamentos humanos, que poucos conhecem, a emergir da areia. Foi nesse local que a revolução islâmica de 1979 encontrou sua base de sustentação e sua causa motivadora. E agora, neste estabelecimento humano da periferia mais distante, a nova geração iraniana busca um lugar ao sol, um despontar urbano, e experimenta profunda frustração com os fracassos do governo islâmico. Talvez ali estejam Cidadania&MeioAmbiente 27 rua debruada por gramado espesso e árvores, e tudo isolado da agitação da cidade por um grande parque florestal costurado por pistas elevadas. sendo plantadas as sementes da próxima grande reviravolta. No verão de 2009, esta improvisada extensão de Teerã tornou-se o que Ao ser criado, em 1960, em substinão se esperava: um ponto de dissituição de um bairro industrial arrasadência. No entanto, nos meses mais do por bombardeios, Slotervaart e o conturbados que se seguiram à condistrito de Overtoomse Veld constitestada segunda vitória eleitoral do tuíam uma cidade-dormitório para presidente Mahmoud Ahmadinejad, trabalhadores holandeses. Seus pelá não ocorreram manifestações de quenos apartamentos eram servidos protesto, não foram penduradas por apenas algumas lojas na avenida bandeiras nas janelas nem prédios principal, a fim de se garantir uma foram ocupados. Os protestos convida doméstica tranquila e livre das centraram-se principalmente nos influências maléficas do consumo e bairros de classe média do centro e do capitalismo. Entre os edifícios hado norte de Teerã, liderados por esvia inúmeras praças públicas projetudantes que tinham menos a pertadas para o uso de pedestres. Como Em Amsterdã, o conjunto urbanístico der (embora alguns tenham perdido bairros urbanos periféricos a vida). Aqui, algo muito menos viplanejado de Slotervaart transformou-se muitos europeus, Slotervaart tomou como sível aconteceu. Depois que o sol se num campo de isolamento inspiração as concepções de Le Corpunha naquelas noites de verão, os busier e dos Congrès Internationaux habitantes de toda a periferia sul gapara imigrantes. d’Architecture Moderne, que consinhava os telhados que se debruçam deravam a estrita separação funciosobre as ruas e entoavam em coro lento: “Allahu akbar, Allahu akbar” – Deus é empregada informalmente (motoboys, empre- nal entre as zonas de trabalho e as de habitação e grande, Deus é grande. Para um forasteiro, isso gados domésticos, pedreiros e operadores de call- lazer a chave para a qualidade de vida. Assim, poderia soar como demonstração de fé e de center), e o abuso de drogas ilícitas continua a Slotervaart recebeu um zoneamento rígido. Nas apoio ao regime islâmico. Mas no Irã daquele ser um problema visível em alguns pontos. Mas, maquetes arquitetônicas, as praças públicas eram momento, tal manifestação era um ato de dissi- agora, já se verifica uma mudança fundamental. decoradas com pequenos grupos de pessoas de dência e proibido. A rua principal, outrora uma faixa de biroscas, pele clara, conversando e parecendo desfrutar as agora está repleta de lojas de móveis e eletrodo- benesses do ar livre. OS SUBÚRBIOS mésticos, restaurantes, sorveterias e shoppings. Les Pyramides, fruto da maior competição arqui- Nesta comunidade, cada família tem uma média “À primeira vista, parecia um lugar perfeito”, diz tetônica europeia da década de 1960, é a mais de 1,5 televisores, um terço tem aparelhos de Mohamed “e em muitos aspectos é um bom lugar utópica das muitas utopias de planejamento ur- DVD, metade possui telefone celular, um terço para se viver. Mas, após apenas algumas semanas bano oficial que circundam em anel o perímetro dirige carro próprio e 14% dispõem de compu- em Slotervaart notei que havia algo de muito errade Paris. Les Pyramides foi construído para abri- tador, metade deles com internet banda larga. do. Aquilo não passa de uma lixeira para imigrangar uma classe média urbana francesa em expan- Todas as casas são feitas de tijolos; dois terços tes, que ali são segregados e isolados de tudo.”n são, que supostamente buscava escapar ao con- têm investido na expansão ou melhoria de suas gestionamento do centro de Paris do pós-guerra, moradias, e cerca de um terço delas têm reboco e mas que foi ocupado, quase desde o início, pelo exterior pintado (reboco e pintura são emblemas grupo precisamente oposto: um contingente rural mundiais de disponibilidade financeira). não francês, que luta para encontrar seu espaço. Quando se chega ao sítio do empreendimento, as ZONEAMENTO CAMBIANTE pirâmides ficam menos utópicas: suas paredes de Mohamed Mallaouch desembarcou do vôo que o estuque estão manchadas pela chuva, a sombra trouxe de Marrakech no aeroporto de Schiphol, do concreto projeta-se nas ruas de pouca segu- pegou o trem rumo à periferia oeste de Amesterrança para os 12.000 habitantes, e as praças cen- dã, e se maravilhou com os padrões geométricos trais são ocupadas por pequenos grupos de ho- verdes que desfilavam diante dos olhos. Depois Doug Saunders – Chefe do escritório euromens jovens, que nada mais tem a fazer do que das aldeias de argila que pontilham seu lar monta- peu do jornal canadense Globe and Mail e quaficar ali sem fazer nada. nhoso ao norte do Marrocos e dos bairros confu- tro vezes agraciado com o National Newspaper sos de Marrakech, aquela era uma maneira com- Award (o Pulitzer Prize canadense). O texto CHEGANDO MAIS UMA VEZ pletamente diferente de viver. A seus olhos, pare- publicado em www.foreignpolicy.com foi transEm 1996, o Jardim Ângela, na periferia de São cia uma cidade artificial, construída por criança crito pelo autor do best-seller que acaba de Paulo, ficou conhecido como a mais violenta com blocos de Lego e feltro verde. Contrastando publicar – Arrival City: The Final Migration comunidade da Terra. Mas, ao longo dos últi- flagrantemente com a densidade de edificações and Our Next World (título canadense) ou Arrival City: How the Largest Migration in History mos 15 anos, ali surgiu uma próspera classe mé- que bordam os canais dos famosos bairros do is Reshaping Our World (título nos EUA, Grãdia. Dependendo da fonte de informação, entre centro da cidade, pouco mais adiante o conjunto Bretanha e Australásia). As reflexões de um quinto e um terço da população do bairro arquitetônico planejado de Slotervaart forma uma Saunders sobre palpitantes questões internaciconseguiu amealhar o suficiente para se tornar grade regular de prédios largos e baixos, com gran- onais podem ser lidas em http:// proprietário. Jardim Ângela continua a ser um des extensões de área verde entre si, cada edifício dougsaunders.net/. Tradução e adaptação de bairro pobre, com a maioria dos que ali vive separado do outro por uma sinuosa e tranqüila Cidadania & Meio Ambiente. “ 28 ” Cidadania&MeioAmbiente 29 MrsMinifig Não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma profunda revisão dos conceitos, fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária. Entrevista com Henrique Cortez CONSUMO ÉTICO & CIDADANIA IHU ON-LINE – O CONSUMO ÉTICO E A ECONOMIA ATUAL PODEM SE RELACIONAR HARMONICAMENTE? O CONSUMO ÉTICO EXIGE UMA NOVA ECONOMIA? Henrique Cortez – Comumente, associamos o consumo ético a um ato individual de consciência, uma opção pessoal, mas ele também deve ser considerado em suas dimensões econômicas e políticas. Vivemos em um planeta finito e com recursos naturais igualmente finitos. No entanto, o nosso modelo econômico é baseado em produção e consumo infinitos. É evidente que este modelo não funciona por muito tempo. Além de ambientalmente irresponsável, este modelo também é socialmente injusto e economicamente excludente porque apenas atende à sanha consumista de uma fração da população. Dois terços da população mundial estão muito abaixo desta linha de consumo, nada usufruindo, mas arcando com os custos sociais e ambientais da degradação do meio ambiente e do esgotamento dos recursos naturais. IHU – EM QUE SENTIDO VOCÊ SE DECLARA DEFENSOR CRÍTICO DO CONSUMO ÉTICO INDIVIDUAL? H. C. – O que hoje se convenciona chamar de consumo ético deve ser encarado como conservador em relação à manutenção do modelo consumista. Assim, posso consumir irrestritamente porque me justifico através do consumo ético. É uma forma de “indulgência” ao “pecado” do consumo. O consumo ético só será transformador se ele questionar o modelo consumista, assumindo sua dimensão coletiva e política em relação ao modelo econômico, às formas de produção e ao sistema político de sustentação. É necessário questionar a quem serve este modelo e a quem ele beneficia. A crise alimentar, por exemplo, também deve ser entendida dentro do contexto de consumo. A produção agrícola mundial é, comprovadamente, mais do que suficiente para alimentar toda a população do planeta. Mesmo assim enfrentamos uma inaceitável crise alimentar. Pesquisas indicam que o total da produção mundial de alimentos já seria suficiente para alimentar nove bilhões de pessoas. Portanto, o problema da fome episódica ou crônica não está na falta do que comer, mas nos recursos financeiros para o pleno acesso ao alimento, cada dia mais caro. IHU - EM QUE MEDIDA O MOVIMENTO PELO CONSUMO ÉTICO QUESTIONA A SUSTENTABILIDADE DO PLANETA, O COMÉRCIO JUSTO, A SOLIDARIEDADE SOCIAL E OS DIREITOS DO CONSUMIDOR ENQUANTO DIREITOS DE CIDADANIA? H. C. – Volto à crítica do consumo ético individual, porque isoladamente nada questionamos, além de nossas escolhas pessoais. É necessária uma atitude politicamente ativa, lúcida e responsável que realmente questione o modelo atual. Não é fácil nem simples, porque serão exigidas profundas transformações, que modificarão as relações de trabalho e consumo. Na realidade, precisamos construir uma nova sociedade, com um novo modelo econômico. Voltando ao tema central, não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma profunda revisão dos conceitos, fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária. Redesenhar a economia mundial seria um feito inédito e só poderia acontecer com maciço apoio social, e realizado coordenadamente por todos os países. Ou seja, não irá acontecer. De qualquer forma, precisamos debater estes temas e encontrar as alternativas mais viáveis enquanto ainda temos tempo. IHU - ACREDITA QUE O MOVIMENTO COLETIVO PELO CONSUMO ÉTICO PODE SER UMA FORMA DE AÇÃO POLÍTICA? NESSE SENTIDO, ELE TERIA PODER DE PROVOCAR TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DA ECONOMIA? H. C. – Nossa compreensão de desenvolvimento é completamente diferente do que aí está. Queremos um desenvolvimento que seja sustentá- 30 vel, economicamente inclusivo, socialmente justo e ambientalmente responsável. Se não for assim, não é sustentável. Aliás, também não é desenvolvimento. Esta compreensão, se coletiva, é política e transformadora. O consumo é um ato político e econômico e, neste sentido, deve ser ético, responsável e sustentável. O consumo só é ético se for sustentável, e isto só ocorrerá com uma gigantesca redução do consumo global. Também não tenho esta pretensão e nem de longe tenho as respostas. Aliás, acho que ninguém tem. Fica, no entanto, o alerta de que este modelo não irá funcionar por muito tempo, na exata medida em que os recursos naturais se esgotam e que as mudanças climáticas podem colocar a economia e a sociedade diante de uma catástrofe planetária. O planeta, por exemplo, já soma mais de um bilhão de veículos, das scooters aos megacaminhões. Vamos imaginar, além do consumo de combustíveis e emissão de gases, o que esta frota significa em termos de energia, água, mineração, siderurgia, recursos naturais consumidos etc. Isto é insustentável sob qualquer perspectiva. Então, este novo modelo deve significar uma nova forma de organização, produção e consumo. Se isto tornar-se uma posição firme e clara por parte da sociedade, ocorreriam grandes transformações sociais, políticas, econômicas e ambientais. Assim, talvez, consigamos chegar ao século 22. IHU - DIANTE DA CRISE ATUAL E DA CRISE DO CAPITALISMO, A PROPOSTA DO CONSUMO ÉTICO PODE SUSCITAR UM DEBATE SOBRE UM POSSÍVEL “NOVO CAPITALISMO”? H. C. – O capitalismo é injusto, ganancioso, especulativo e insustentável por natureza e um “novo capitalismo” também o seria. Precisamos encontrar um novo modelo, uma nova concepção e o capitalismo, qualquer que seja a sua maquiagem, é a resposta errada. Pessoalmente, sou um ecossocialista e não tenho qualquer proximidade com a esquerda reformista que propõe um novo capitalismo, o que é uma desonestidade intelectual e uma fraude ideológica. Acredito que o ecossocialismo, sua compreensão de um novo mundo, de uma economia solidária e sustentável, será o caminho para a esquerda superar a crise atual. IHU - EM QUE SENTIDO A CRISE INTERNACIONAL PODE NOS LEVAR A PENSAR ALTERNATIVAS EM RELAÇÃO À NOSSA CULTURA DO CONSUMO? H. C. – A crise pode ser uma grande oportunidade de mudança. Vou usar a questão do consumo insustentável como exemplo. O modelo produção/consumo precisa vender cada vez mais, em escala maior do que o crescimento populacional. Para isso, investe pesadamente no marketing, produzindo uma onda consumista sem paralelos na história. Ao mesmo tempo, todos os produtos devem ficar obsoletos o mais rápido possível, justificando sua substituição, mesmo que desnecessária. O desperdício é incentivado e o consumo desenfreado, endeusado. É evidente que isto demanda cada vez mais recursos naturais e energia, logo, nossa pegada ecológica fica cada vez maior. Vamos imaginar que abolimos a obsolescência, ao mesmo tempo em que, por programas de eficiência energética, reduzimos a energia agregada ao produto. O primeiro impacto seria a redução da demanda de recursos naturais e de energia, mas, ao mesmo tempo, também reduziria a demanda industrial e, com ela, a oferta de empregos na indústria. Menos empregos e produção também reduziriam a arrecadação de tributos, o que poderia enfraquecer toda a rede de proteção social oferecida pelos governos. Com esse argumento, os desenvolvimentistas são ferrenhos defensores do crescimento da produção, do consumo e, evidentemente, da carga tributária. Segundo eles, o resultado seria uma catástrofe econômica em escala global. Mas esta catástrofe não é necessariamente necessária. Uma grande parte deste modelo de desenvolvimento é virtual e meramente especulativo, como ficou demonstrado na atual crise financeira internacional e na crise alimentar. Muitas empresas obtêm mais da metade de seus lucros no mercado financeiro e, para isto, tornam-se grandes investidores nas bolsas de valores, especulando mais do que produzindo. Enquanto Wall Street, a economia virtual, esteve desconectada de main street (a economia real), o cassino especulativo enriqueceu muita gente. Mas agora, com a crise, quando os papéis perderam a gordura especulativa e retornaram ao seu valor real, a conta ficou com o contribuinte. É da essência deste capitalismo especulativo que o lucro seja privado e o prejuízo seja socializado. É isto que está em questão, o que realmente deve ser entendido como desenvolvimento, como deve ser medido e incentivado. Um tema em aberto, com grandes questões e poucas respostas. IHU - QUAIS SERIAM AS TRANSFORMAÇÕES ESSENCIAIS NA BASE DA CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE PARA CHEGARMOS A UM CONSUMO ÉTICO REALMENTE COERENTE? H. C. – A primeira mudança será, evidentemente, na educação, que deve, além de ensinar, ajudar a compreender e assumir todas as nossas responsabilidades, individuais e sociais. Ninguém nasce intolerante, preconceituoso, racista, homofóbico, supremacista, anti-semita, islamofóbico, consumista etc. Estas são atitudes que aprendemos desde o berço, herdadas da intolerância, aberta ou camuflada, de nossos antepassados. Se não tivermos capacidade crítica de compreender nossos próprios preconceitos e superálos, iremos, certamente, reproduzir o modelo, contaminando o berço de nossos descendentes. Muitos desafios se apresentam neste novo século, com destaque para as mudanças climáticas, aquecimento global, hiperconsumo, esgotamento de recursos naturais, crise alimentar, refugiados ambientais etc. São desafios globais, que devem ser enfrentados por todos indistintamente e, mais do que nunca, precisamos uns dos outros, valorizando o que nos une e desprezando o que nos distancia. Se não nos esforçarmos para sermos melhores do que nossos antepassados, os novos desafios deste século serão muitos maiores e mais poderosos do que todos nós. n Henrique Cortez é ambientalista, cientista social formado pela USP, com especialização em gerenciamento de riscos ambientais pela Northwest University, EUA, além de consultor e coordenador do Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br) e subeditor de Cidadania & Meio Ambiente. É autor de Cidadania Ambiental - Água (Editora Baraúna, 2010 - vendas pela internet www.editorabarauna.com.br), obra que apresenta informações, conceitos, ideias e sugestões sobre as questões aquecimento global, mudanças climáticas e recursos hídricos. Entrevista de Graziela Wolfart em IHU On-line (Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, em São Leopolod, RS (01/06/2009) Cidadania&MeioAmbiente 31 saveas.new Nunca antes na história da evolução humana o contexto ambiental e psicossocial sofreu tão dramáticas alterações como nos últimos 50 anos. Mudanças que ganham a velocidade da luz nesta era informacional. Confira – e prepare-se – para o que o futuro próximo nos reserva 10 TENDÊNCIAS por Wishard Van/World TrendsResearch que mudam a cena global 1 2 GLOBALIZAÇÃO - A modernização, a urbanização e a globalização da China, Índia e de outras nações asiáticas será o evento mais dinâmico e explosivo das próximas décadas. Milhões de pessoas terão suas vidas pessoais e coletivas transformadas em maior grau e num mais curto espaço de tempo do que qualquer ser humano já experimentou. GEOPOLÍTICA - O mundo busca uma nova configuração geopolítica. Estamos no final de um período de 500 anos em que as nações centradas no Atlântico dominaram as questões econômicas, políticas e militares. Pela primeira vez na história moderna, China e Japão tornaram-se países com economias maiores do que a poderosas nações e, juntamente com a Índia, poderão se tornar o centro mundial de inovação tecnológica e de produção. TEMPO ACELERADO - O ritmo acelerado da vida tornou-se hoje um problema crítico de saúde mental. A ênfase na mudança constante criou um choque entre diferentes escalas de tempo. Aquela criada pelo choque tecnológico não corresponde à da natureza. O tempo sem pressa é essencial para o crescimento natural. No entanto, a velocidade – que vem a ser a compressão forçada do tempo – é cada vez mais necessária à economia contemporânea. Já se fala até mesmo que ultrapassamos a “era da velocidade” e entramos na do “tempo real”. Existiria agora, dizem, apenas um único “tempo mundial”. 3 4 INFORMAÇÃO ONLINE - O ambiente informacional em que o indivíduo vive foi radicalmente alterado. Ao longo da história, a transmissão de informações, idéias e imagens ocorreu lentamente, levando semanas e até meses para se deslocar ao redor do mundo. Um ritmo tão lento de trânsito informacional dava às pessoas tempo para se adaptar psicologicamente ao novo ambiente e às novas informações. Hoje, zapeamos informações, idéias e imagens em todo o planeta em nanossegundos. As pessoas não têm tempo de se adaptar, nem de assimilar as novas informações de modo coerente. O resultado é a insegurança e a desorientação. 32 5 DESSOVIETIZAÇÃO DO LESTE EUROPEU A Eurásia continuará a ser uma fonte de incerteza e até mesmo de possível instabilidade. A Rússia ainda não entrou verdadeiramente na era “pós-comunismo”, já que a maior parte de sua liderança política e industrial foi moldada no regime comunista. Até mesmo o Moscow Times observou: “Não se pode negar que a Rússia contemporânea é em sua essência um produto da herança soviética. Todas as instâncias de nossa vida ainda são moldadas pelas expectativas de estilo soviético. Nossos governantes pensam sovieticamente.” Recentemente, as autoridades russas se reuniram com a elite da Rússia “roqueira” para garantir que uma situação como a ocorrida em Kiev, onde muitas estrelas do rock ucraniano apoiaram a Revolução Laranja, não se repetiria em Moscou. Essa providência apenas confirma que do ponto de vista psicológico ainda será preciso uma geração para a Rússia se livrar realmente da herança de 74 anos de regime comunista. Cidadania&MeioAmbiente 33 DESESTABILIZAÇÃO MUNDIAL Uma ameaça de desestabilização mundial representa potencial efervescência política que, se não for abortada, pode conduzir à anarquia global. A arena para esta possibilidade não se encontra apenas no Oriente Médio, mas nas nações da antiga União Soviética, que formam um cinturão do sul da Rússia e através da Ucrânia até o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Uzbequistão e o Turquemenistão. Os povos destes Estados estão despertando para as privações causadas pelos arcaicos sistemas econômicos e políticos, bem como percebem que tal realidade não pode nem precisa perdurar. Não obstante EUA, Europa e outras grandes potências possam ajudar a melhorar esta situação, tal preocupação ainda não norteia a atenção e prioridade, o que não deixa de ser vital para a futura segurança mundial. 6 7 - 9 DESCOMPASSO CIÊNCIA X HOMEM - A ciência está em processo de redefinir nosso entendimento sobre os conceitos “vida”, “natureza” e “humano”, que nos foram passados desde o alvorecer da consciência humana. Cada vez mais os cientistas subordinam os seres humanos à tecnologia. Em essência, podemos estar abdicando de nosso capital psicológico de “ser” para delegá-lo ao computador. Os cientistas nos dizem que quando a inteligência artificial e humana forem fusionadas, entraremos na era do “pós-humano”. Por volta de 2030, poderemos ter atingido o ponto onde a questão principal será: “Para que servem os humanos num mundo com capacidade tecnológica auto-replicante e totalmente independente do controle humano?” Portanto, enfrentamos uma crise política e humana sem precedentes históricos. 8 CULTURAL - A globalização tem ocorrido muito além da economia e das finanças, atingindo agora o estágio no qual as concepções políticas, sociais, culturais e filosóficas ocidentais gradualmente se infiltram no resto do mundo. Os americanos, por exemplo, acreditam que o que é bom para os EUA também é bom para todas as nações, esquecendo-se de que as peculiaridades culturais entre os EUA e as outras nações apresentam profundas diferenças psicológicas. A questão crucial para a globalização das nações é: “Como modernizar sem perder as tradições representativas das próprias raízes psíquicas?” Por isso, os americanos precisam ser muito mais sensíveis aos agudos traumas emocionais que as nações estão experimentando ao enfrentar os diversos efeitos da globalização. Van Wishard – Consultor e conferencista especializado em análise e síntese de tendências globais da World Trends Research. Autor de Between Two Ages: The 21st Century and the Crisis of Meaning, The American Future e principal colaborador da Encyclopedia of the Future (Macmillan & Company). Texto original publicado em http://vanwishard.com Tradução livre de Cidadania & Meio Ambiente. 34 duke.roul PASTEURIZAÇÃO 10 MIGRAÇÃO HUMANA - O maior fenômeno migratório da história está mudando a face das nações. Na China, cem milhões de pessoas estão mudando do campo para a cidade. No Ocidente, a União Europeia precisará nas próximas três décadas de 180 milhões de imigrantes para manter sua população no patamar de 1995, bem como a atual relação entre aposentados e trabalhadores. Em Bruxelas, mais de cinqüenta por cento dos bebês nascidos são muçulmanos. Na Alemanha, a taxa de mortalidade superou a de natalidade durante décadas, o que agora obriga o governo a encher aviões com quadros técnicos indianos apenas para manter estrutura de alta tecnologia germânica. Na Inglaterra, há agora mais muçulmanos praticantes do que anglicanos. A Igreja Católica está enfrentando a possibilidade (probabilidade?) de nos próximos anos ver o Islã tornar-se a maior fé europeia. Nos próximos anos, o significado de ser francês, alemão, italiano ou inglês vai mudar tão radicalmente quanto o que significou ser americano nas últimas quatro décadas. RECONQUISTA ESPIRITUAL - Há algum tempo o mundo passa por uma reorientação psicológica e espiritual que gera crescente incerteza e instabilidade. Esta tendência é mais bem exemplificada não por pesquisas de opinião sobre o percentual da população que acredita em Deus, mas pelo caráter da cultura pós-moderna do Ocidente. Para compreender a extensão dessa reorientação espiritual, basta consultar a seção religião em qualquer livraria. Além de obras sobre Cristianismo, abundam as que versam sobre espiritualidade, Nova Era, Budismo, Nostradamus, ioga, fundamentalismo, anjos, milagres, filosofia oriental, vício, saúde psíquica, misticismo, auto-ajuda e as que ensinam a encontrar o “sentido da vida”. Todas evidenciam a enorme incerteza espiritual e a busca por algum alívio espiritual. A reorientação psicológica pode ser detectada na fratura dos símbolos coletivos e das imagens internas da própria integralidade. Houve tempo, por exemplo, em que “céu” anunciava o reino transcendente, a eternidade, a morada dos deuses. Agora só se fala de “espaço”, o que implica em nenhuma conotação espiritual. Antes, quando à noite olhávamos para o alto víamos a lua no céu. Agora, pisamos na Lua e vemos a Terra no céu. Céu e Terra se tornaram uma coisa só, e, assim, nosso sistema de imagens simbólicas ficou embaralhado. Como a função dos símbolos e das imagens míticas é relacionar nossa consciência às raízes de nosso ser e de nosso inconsciente, esta perda de símbolos históricos deixa pouco substrato para sustentar a vida interior do indivíduo. E aí nos voltamos para todos os tipos de substitutos químicos e para as pseudo-religiões. Cidadania&MeioAmbiente 35 36
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