Carolina Zuccarelli Soares Segregação Urbana, Geografia de

Transcrição

Carolina Zuccarelli Soares Segregação Urbana, Geografia de
Carolina Zuccarelli Soares
Segregação Urbana, Geografia de Oportunidades e Desigualdades
Educacionais no Rio de Janeiro
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do grau de Mestre em
Planejamento Urbano e Regional.
Orientador: Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Co-orientadora: Mariane Campelo Koslinski
Rio de Janeiro
2009
1
FICHA CATALOGRÁFICA
Z94s
Soares, Carolina Zuccarelli.
Segregação urbana, geografia de oportunidades e
desigualdades educacionais no Rio de Janeiro / Carolina
Zuccarelli Soares. – 2009.
106 f. : il. color. ; 30 cm.
Orientador: Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro.
Co-orientador: Mariane Campelo Koslinski.
Tese (mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional, 2009.
Bibliografia: f. 92-97.
1. Segregação urbana. 2. Rede de relações sociais.
3. Igualdade na educação. 4. Sociologia educacional.
5. Rio de Janeiro (RJ). I. Ribeiro, Luiz Cesar de
Queiroz.
II. Koslinski, Mariane Campelo. III. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional. IV. Título.
CDD: 370.19
2
Carolina Zuccarelli Soares
Segregação
Urbana,
Geografia
de
Oportunidades
e
Desigualdades
Educacionais no Rio de Janeiro
Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Aprovado por:
_______________________________________
Prof. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro – IPPUR/UFRJ (Orientador)
________________________________________
Prof. Mariane Campelo Koslinski – FE//UFRJ - (Co-orientadora)
_________________________________________
Prof. Fatima Cristina de Mendonça Alves – Puc / RJ
__________________________________________
Prof. Orlando Santos Junior – IPPUR/UFRJ
Rio de Janeiro
2009
3
À minha mãe, meu exemplo de vida.
4
Agradecimentos
Estes agradecimentos são às pessoas que, através da colaboração e entusiasmo,
tornaram esta dissertação possível.
A primeira pessoa que justifica estas palavras é o orientador desta dissertação.
Tenho plena certeza de que se não fosse por sua paixão pela academia e pela constante
troca de ideias sobre os mais diversos assuntos que tive o privilégio de ter com ele,
minha trajetória acadêmica talvez fosse mais curta do que até agora. O professor Luiz
Cesar de Queiroz Ribeiro é o grande mentor de meus trabalhos e a quem eu devo
sinceros agradecimentos.
Co-orientadora do estudo, Mariane Campelo Koslinski, além de orientar minhas
leituras, a organização do texto, ajudar na descoberta do meu objeto de estudo, tornouse uma sincera amiga. Tenho orgulho em dizer que, em sua primeira co-orientação,
Mariane se mostrou fundamental para meu crescimento acadêmico e sei que temos uma
longa trajetória de estudos em parceria (assim espero).
Gostaria também de agradecer aos dois participantes da banca de qualificação e
defesa: Fatima Cristina Alves, que forneceu os dados para a dissertação e compartilhou
as diversas fases de construção da problemática como verdadeira entusiasta do tema das
escolhas e a Orlando Alves dos Santos Junior que, através de diversas discussões sobre
as ideias da pesquisa, contribui imensamente com o crescimento da mesma. Tenho o
privilégio em dizer que Junior é um verdadeiro amigo e colaborador das nossas
pesquisas no Observatório das Metrópoles.
Ao integrantes do Observatório das Metrópoles, rede da qual faço parte desde
2004, que foram especialmente importantes no decorrer da minha trajetória e que posso
dizer que também são amigos especiais.
Aos amigos da turma de mestrado, aos funcionários e professores do IPPUR,
meus sinceros agradecimentos.
Aos companheiros da pesquisa território e educação, meu muito obrigada pela
possibilidade de compartilhar bons momentos nos trabalhos de campo que realizamos e
nas discussões realizadas semanalmente. Em especial a querida professora Maria
Josefina Gabriel Sant’Anna que acompanha desde o início a pesquisa sobre o efeito do
território sobre os resultados escolares. Agradeço a todos os companheiros desta
pesquisa, aqueles que passaram e aqueles que ficaram. Devo, no entanto, enfatizar os
5
amigos de diversos trabalhos, especialização e mestrado, Ana Carolina Christovão e
Gabriel da Silva Vidal Cid que tornaram essa trajetória certamente bem mais prazerosa.
Aos moradores da Comunidade Canal do Anil e da Gardênia Azul que
possibilitaram o trabalho de campo de forma sempre receptiva, meus sinceros
agradecimentos e o registro de que sem sua valiosíssima ajuda essa dissertação não seria
viável.
À minha família e à minha grande companheira da vida, Cristina Zuccarelli,
minha mãe, um exemplo de vida e a quem dedico esta dissertação.
Por fim, a David da Costa Aguiar de Souza. Sem sua companhia e atenção
certamente este trabalho e todos os outros que desenvolvi ao longo destes cinco anos em
que estivemos juntos não teriam sido feitos de forma tão natural e prazerosa.
A todos, meus sinceros agradecimentos.
Carolina Zuccarelli Soares
6
Resumo
Este estudo tem como objetivo investigar as diferentes estratégias de
escolarização utilizadas por famílias de segmentos populares na Gardênia Azul, bairro
da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. A ideia é buscar entender de que forma as
redes de relações sociais conformadas na vizinhança podem afetar a percepção dos
indivíduos ao escolherem a escola onde vão matricular seus filhos. O conceito de
geografia de oportunidades foi fundamental nesse sentido, pois relaciona o processo de
tomada de decisões com o contexto geográfico dos indivíduos. A hipótese é de que
existem variações tanto objetivas quanto subjetivas associadas a esse processo. Dessa
forma, buscou-se averiguar de que forma as redes de relações sociais podem funcionar
como uma fonte de informações e de circulação de recursos que impacta na geografia
subjetiva de oportunidades e que possibilita, tendo em conta a geografia objetiva de
oportunidades, a circulação dos indivíduos na rede de ensino do Rio de Janeiro.
Palavra chaves:
Segregação Urbana; Geografia de Oportunidades; Estratégias Familiares; Redes de
Relações Sociais
7
Abstract
This study aims to investigate the different strategies used by families for
schooling popular segments on Gardenia Azul, the neighborhood west of the city of Rio
de Janeiro. The idea is to seek to understand how networks of social relations shaped in
the neighborhood can affect the perceptions of individuals to choose the school where
they enroll their children. The concept of the geography of opportunity has been
instrumental in this sense, because it relates the process of decision making with the
geographic context of individuals. The hypothesis is that there are variations both
objectively and subjectively associated with this process. Thus, we sought to investigate
how the networks of social relations can function as a source of information and
movement of resources impacting on subjective geography and allowing opportunities,
taking into account the geography objective opportunities, the movement of individuals
in education network in Rio de Janeiro
Keywords:
Urban segregation; Geography Opportunities; Family Strategies, Networks of Social
Relations
8
Sumário
Introdução .....................................................................................................................12
Capítulo 1. Território e Oportunidades Educativas...................................................19
1.1 Relação família-escola...............................................................................................19
1.2 Efeitos da segregação urbana sobre a educação........................................................22
1.3 Capital social: revisão sobre conceito e forma .........................................................24
1.4 Segregação Urbana: consequências sobre o capital social........................................29
1.5 Geografia de Oportunidades : território e ação dos indivíduos.................................32
Capítulo 2. Oportunidades Objetivas no Rio de Janeiro ..........................................42
2.1 Desigualdades Educacionais no Território................................................................42
2.2 Território e decisão ...................................................................................................46
2.3 Breve Histórico do Processo de Segregação Urbana Brasileira................................47
2.4 Particularidades que definem o modelo carioca de segregação urbana.....................49
2.5 Gardênia Azul............................................................................................................51
2.5.1 Um pouco da história de Jacarepaguá.........................................................52
2.5.2 Histórico de ocupação da Gardênia Azul...................................................53
2.5.3 A Comunidade do Canal do Anil................................................................54
2.6 O bairro do Anil.........................................................................................................58
2.7 Barra da Tijuca..........................................................................................................59
2.8 Gardênia Azul, Anil e Barra .....................................................................................60
Capítulo 3. Geografia de Oportunidades e Escolha do Estabelecimento de
Ensino.............................................................................................................................65
3.1 Observações sobre o campo......................................................................................65
3.2 Impressões sobre a Gardênia Azul............................................................................66
3.3 Impressões sobre a Comunidade do Canal do Anil...................................................68
3.4 Uma proposta teórica de entendimento.....................................................................70
3.5 Trabalho de campo....................................................................................................72
3.5.1 Primeira entrevista......................................................................................73
9
3.5.1 Segunda entrevista......................................................................................75
3.5.1 Terceira entrevista.......................................................................................79
3.5.1 Quarta entrevista.........................................................................................82
3.6 Análise das entrevistas...............................................................................................84
4. Considerações Finais.................................................................................................88
Referências Bibliográficas ...........................................................................................92
Lista de Gráficos
Gráfico 01: Ideb das escolas no município do Rio de Janeiro em 2005 .........................44
Lista de Tabelas
Tabela 01: Desempenho escolas Barra, Gardênia Azul e Anil........................................63
Lista de Mapas
Mapa 01: Média dos Idebs da escolas localizadas por área de ponderação ..................45
Mapa 02: Mapa da Tipologia Socioespacial do Município do Rio de Janeiro por ÁREAIPPUR – 2000 ..................................................................................................................50
Mapa 03: Mapa de detalhe da Tipologia Socioespacial segundo o Clima Educativo –
RMRJ por APOND – 2000..............................................................................................60
Mapa 04: Localização dos Alunos e Escolas do Anil e da Barra da Tijuca ...................62
Lista de Imagens
Imagem 01: Gardênia Azul, Comunidade do Canal do Anil e Comunidade Jardim do
Anil..................................................................................................................................54
Imagem 02: Trajeto Vidinha............................................................................................75
Imagem 03: Trajeto Marcela...........................................................................................79
Imagem 04: Trajeto Ariel................................................................................................82
Imagem 05: Trajeto Mateus.............................................................................................84
Anexo 1 - Fotos
Foto 01 – Escola da Barra da Tijuca................................................................................98
Foto 02 – Escola do Anil.................................................................................................98
10
Foto 03 – Escola da Gardênia Azul.................................................. ..............................99
Foto 04 - Associação de Moradores da Comunidade do Canal do Anil........................99
Foto 05 – Chico City.....................................................................................................100
Foto 06 – São Sebastião.................................................................................................100
Anexo 2 – Roteiro de Perguntas ................................................................................101
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# Introdução
Até meados do século XX predominava, na comunidade acadêmica e até mesmo
no senso comum, um certo otimismo que associava a escolarização a um processo de
superação do atraso econômico, de construção de uma sociedade meritocrática, moderna
e, principalmente, democrática. Acreditava-se que, através de um ensino público e
gratuito, o acesso a educação estaria resolvido e, dessa forma, garantida a igualdade de
oportunidades entre todos os cidadãos.
Nas décadas de 50 e 60 a Sociologia da Educação é firmada como campo de
pesquisa nos países industrialmente desenvolvidos. Os principais produtores de
pesquisa são França, Inglaterra e Estados Unidos. Um novo ideário relativo ao papel
social da educação aparece com força. São discussões a respeito das desigualdades
educacionais (desigualdades de acesso, de desempenho, de trajetórias escolares) e das
condições para a democratização das oportunidades escolares. (Nogueira, 1990)
Na década de 50 havia a noção, baseada em teorias do capital humano, que
atribuía à educação um papel fundamental para o desenvolvimento econômico. Essa
teoria tem sua origem em meados dos anos 50 e tinha em Theodore W. Schultz o
principal formulador da ideia de capital humano. A noção era de que, para ampliação da
atividade econômica e, consequentemente, das taxas de lucro do capital, o trabalho
humano deveria ser qualificado por meio da educação. Sua aplicação no campo
educacional gerou uma visão tecnicista, quando vinculou a educação ao pressuposto do
desenvolvimento econômico assim como do próprio indivíduo que, ao educar-se
“valorizaria” a si próprio, seguindo a mesma lógica de valorização do capital. A
educação era um “valor econômico”, e deslocava para o campo individual os problemas
de inserção social, de emprego e desempenho profissional. A teoria do capital humano
legitimou também a tese de que os investimentos em educação fossem determinados
pelos critérios perversos do investimento capitalista, já que a educação era considerada
essencial para o desenvolvimento. (Schultz,1963).
Destaca-se ainda, neste período, os estudos que seguem a vertente do estrutural
funcionalismo, principalmente nos Estados Unidos, com ênfase nos trabalhos de
Parsons. O autor define a educação a partir de dois aspectos: como espaço de
socialização e como instância de seleção social que contemple uma divisão social do
trabalho cada vez mais complexa. Parsons associava modernização, racionalização e
12
educação e afirmava que, o processo educacional contribuiria para o processo de
individualismo institucionalizado e de manutenção da integração social. Dessa forma, a
educação passou a ser valorizada como instrumento de desenvolvimento e integração.
(Ferreira, 2006)
Em 1960 houve uma crise dessa concepção da escola, principalmente por conta
das pesquisas surgidas no final da década de 50 que transformaram o olhar sobre a
educação. Na Inglaterra, a chamada “Aritmética Política”; nos Estados Unidos, o
Relatório Coleman; e pesquisas do INED da França ajudaram a mostrar o peso da
origem social sobre o desempenho escolar (Nogueira, 2007). Essa primeira geração de
estudos revelou a incapacidade da escola em reverter as desigualdades socioeconômicas
de origem.
No final da década de 70 esse tipo de abordagem foi questionado, e surgiram
novos estudos voltados para a compreensão da dinâmica interna da escola, estudos que
buscavam desvendar a “caixa-preta” da instituição escolar. Dentre estes estudos
destacamos aqueles conhecidos como efeito-escola e escola eficaz e que, contrapondose ao discurso de que “a escola não faz diferença”, difundida a partir do Relatório
Coleman, buscam provar que as diferenças nos resultados escolares não devem ser
buscados apenas na família e no contexto extra-escolar do aluno. Para estes estudiosos
“a escola faz diferença”.
E uma terceira geração de estudos, realizados principalmente nas duas últimas
décadas, conjugam abordagens da sociologia urbana e da sociologia da educação e
tratam dos fatores relacionados à organização social do território e suas consequências
sobre as oportunidades educacionais. (Ribeiro & Koslinski, 2008)
Associado a essa mudança no olhar sobre a educação, tem-se os efeitos da
massificação do ensino, que acabou por se tornar um dos principais pontos de discussão
entre os analistas da educação. Se, na década de 70, países como Estados Unidos,
França e Inglaterra já se preocupavam com a melhora na qualidade do ensino, no Brasil
a questão é mais recente. Dada a tendência à universalização do acesso ao ensino
fundamental, ocorrida apenas no final da década de 90 no Brasil, a discussão se localiza
não tanto no acesso, mas, especialmente, para a melhoria da qualidade da educação
como eixo principal das políticas educacionais. (Schwartzman, 2002)
A literatura sobre o tema muito tem nos dito a respeito das características do
núcleo familiar que poderiam pesar sobre os processos educativos: escolaridade dos
13
pais, nível socioeconômico, ocupação dos pais, capital cultural e social. Muito tem nos
dito também a respeito do funcionamento da escola. No entanto, a dimensão espacial
fica um tanto quanto reduzida nessas análises, muitas das vezes até presente, mas
escondida pelo aspecto estrutural das ideias que não possibilitam aos autores
enxergarem em seus próprios trabalhos a dimensão territorial.
Nosso trabalho vem sendo desenvolvido de forma a incorporar a dimensão
territorial nos estudos sobre as oportunidades educacionais e busca, entre outros,
desvendar que mecanismos concorrem para a reprodução da desigualdade social e da
pobreza, através da organização social do território.
...
O interesse em estudar a relação entre educação e território começou em 2004
quando fui bolsista de iniciação científica do Observatório das Metrópoles, orientada pelo
professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, na pesquisa Segmentação Social, Segregação
Urbana, e Desigualdade Social: o “efeito vizinhança” e o “efeito escola” na explicação
do desempenho escolar dos estudantes de quarta série do ensino fundamental. Com o
intuito de melhor entender os processos desiguais pelos quais passa a educação brasileira,
a pesquisa desenvolvida pelo Observatório das Metrópoles buscava verificar, para além
do efeito escola e de atributos familiares, o efeito do lugar sobre o desempenho dos
estudantes da quarta-série.1 A proposta da pesquisa era avaliar de que forma as tendências
ao isolamento sócio-territorial das camadas sociais em situações de fragilização social frente ao mercado de trabalho, à família e à habitação - podem atuar no sentido de anular o
“efeito escola”2.
Em 2006 ingressei no curso de Especialização em Planejamento e Uso do Solo
Urbano no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR/UFRJ) onde
qualifiquei a monografia O efeito do lugar e a escolarização de crianças em
1
Para isso, a pesquisa estudou, nos anos de 2005 e 2006, na região metropolitana do Rio de Janeiro, um
total de 16 escolas, nas quais foram aplicados questionários aos diretores, professores, pais, assistente de
pesquisa, assim como provas de matemática e português a serem respondidas pelos alunos da quarta-série
no início e no fim do ano.
2
A capacidade que a escola organizada institucionalmente tem, pelo menos em parte, de reduzir as
diferenças de posição social dos alunos sobre seu desempenho escolar. (Barbosa, 2005)
14
estabelecimentos públicos3, um estudo de caso sobre uma escola municipal no Leme.
Por fim, em 2007 comecei o mestrado em Planejamento Urbano e, como produto, surge
essa dissertação que traz consigo algumas das experiências e inquietações vividas ao
longo desse tempo em contato com o tema.
A questão central aqui apresentada é: quais as características do bairro, tanto
objetiva quanto subjetiva, que podem influenciar nas diferentes estratégias de
escolarização perseguidas pelos responsáveis. A ideia é buscar entender de que forma a
rede de relações sociais conformadas na vizinhança pode afetar a percepção dos
indivíduos ao escolherem a escola onde vão matricular seus filhos.
O estudo busca apreender as diferentes estratégias postas em prática pelos
responsáveis no que tange à relação com a escolaridade dos filhos. Para isso, o conceito
de “geografia de oportunidades” (Flores, 2008) nos é fundamental, pois relaciona o
processo de tomada de decisões com o contexto geográfico dos indivíduos. A hipótese é
de que existem variações tanto objetivas quanto subjetivas associadas a esse processo. A
“geografia objetiva de oportunidades” se refere aos dispositivos urbanos que variam
entre uma zona e outra como, por exemplo, sistemas sociais, mercados e instituições. A
“geografia subjetiva de oportunidades” trata dos valores, aspirações, preferências e
percepções subjetivas acerca das oportunidades e dos potenciais resultados da tomada
de decisões.
A geografia objetiva de oportunidades se relaciona aos equipamentos urbanos e
a forma como eles são distribuídos pelo território. A ideia se aproxima de um modelo
institucional defendido pelas teorias do efeito vizinhança que buscam entender de que
forma a pobreza afeta os resultados individuais. (Mayer & Jencks, 1989)
Podemos dizer que a sua forma subjetiva também se relaciona com os aspectos
do território se pensarmos na maneira como o capital social se distribui espacialmente e
na forma como a segregação residencial impacta na aquisição deste. Para este estudo, é
fundamental a percepção dos indivíduos e a capacidade que tem em participar de
processos de adaptação e resistência ao espaço que habitam. De fato, os indivíduos
processam, de maneiras diferentes, os mecanismos relacionados ao bairro. (Small,
3
ZUCCARELLI, Carolina. O efeito do lugar e a escolarização de crianças em estabelecimentos
públicos. 2006. 24 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização) – Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
15
2004). A experiência individual da segregação urbana em termos da geografia de
oportunidades tem potencias efeitos na tomada de decisões
A hipótese é de que as redes de relações sociais podem funcionar como uma
fonte de informações e de circulação de recursos que impacta na geografia subjetiva de
oportunidades e que possibilita, tendo em conta a geografia objetiva de oportunidades, a
circulação dos indivíduos na rede de ensino do Rio de Janeiro.
A pesquisa só é viável dentro do sistema de ensino carioca uma vez que este
possibilita aos responsáveis pelos alunos matriculados na rede municipal, caso estes não
queiram seguir a orientação da CRE (Coordenadoria Regional de Ensino), matricularem
seus filhos na escola de preferência.4
Por consequência, os alunos podem transitar pela rede de ensino carioca,
independente do lugar de moradia. A rede de ensino no Rio de Janeiro é uma rede
altamente segmentada quando consideramos as diferenças no setor privado e no público
dentro do próprio sistema municipal. Essa segmentação que se dá dentro da mesma rede
de ensino é o mais surpreendente: no Rio de Janeiro existem escolas municipais com
bons índices de desempenho ao passo que existem outras com péssimos resultados
educacionais.5
A oferta dessas escolas se distribui seguindo uma lógica diferenciada pelo
território. Por isso, pensar o território para além da estrutura social objetivada, ou seja,
pensar na relação entre as estruturas do espaço social e as estruturas do espaço físico
(Bourdieu, 1997) nos ajuda a entender o papel que o território ocupa neste estudo.
Desse modo, tendo em vista a oferta de boas escolas em determinadas áreas do território
e a possibilidade de matricular seus filhos nestas escolas, mesmo que longe da
residência, buscamos investigar por que alguns indivíduos de segmentos populares
optam em matricular os alunos numa escola longe de casa e outros matriculam na escola
próxima.
Vale lembrar que o debate sobre a escolha do estabelecimento de ensino pelas
famílias vem ganhando cada vez mais espaço nos estudos sociológicos, principalmente
4
Em outras regiões do país, como em Belo Horizonte / MG por exemplo, as inscrições são feitas no
correio mediante a apresentação da conta de luz. Dessa forma, os alunos são matriculados na escola
próxima a residência, limitando a decisão dos responsáveis no ato da matrícula.
5
A existência de avaliações como o Saeb, Prova Brasil e IDEB são instrumentos recentes para avaliação
das oportunidades educacionais, possibilitando estudos que busquem entender a qualidade do ensino.
16
na sociologia norte-americana e inglesa . A discussão ainda é incipiente no Brasil, dada
a ausência de políticas que estimulem as escolhas das escolas, mas, nem por isso, menos
importante.
...
Este estudo traz dados do trabalho de campo realizado no bairro da Gardênia
Azul e na comunidade do Canal do Anil, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro,
onde alguns alunos estudam na escola próxima ao bairro e outros se deslocam cerca de
10 quilômetros para uma escola com melhores resultados educacionais na Barra da
Tijuca.
Neste trabalho, será de fundamental importância a pesquisa desenvolvida pela
professora do Departamento de Educação da PUC - Rio, Fátima Alves, que busca
investigar o efeito das escolhas familiares de instituições de ensino sobre a
aprendizagem de alunos de diferentes origens sociais nas séries ou ciclos iniciais do
Ensino Fundamental na cidade do Rio de Janeiro6.
A análise dos dados mostrou uma acentuada concentração de estudantes da
escola da Barra que residem na Gardênia Azul e na Comunidade do Canal do Anil. Nos
indagamos a respeito do por que da opção em matricular alunos em uma escola longe da
residência se, tanto na Gardênia Azul quanto no Anil (bairro vizinho) o ensino
fundamental municipal é ofertado. Será que os responsáveis pelos alunos tem acesso a
informações oficiais (como a que estamos usando) e fazem uma escolha orientada para
a escola? Que recursos disponíveis no bairro eles tem acesso, em especial no que diz
respeito as redes de relações sociais? Será que esses recursos incluem informações que
circulam nas redes de relações sociais conformadas na vizinhança? Que tipo de
estratégia de escolarização eles estão adotando?
Para buscar entender as diferentes estratégias, tendo em vista a oferta de escolas
municipais de ensino fundamental tanto no bairro da Gardênia Azul como no do Anil,
foram feitas quatro entrevistas com moradores da região. Das quatro entrevistas, duas
6
As informações relativas aos resultados escolares, localização da escola e, principalmente, o endereço
dos alunos só foram possíveis graças a colaboração da professora Fátima que é uma das coordenadoras da
pesquisa “Estudo Longitudinal da Geração Escolar 2005 – Projeto GERES”, uma das fontes de dados
deste estudo.
17
foram realizadas com responsáveis que matricularam o filho na escola da Barra da
Tijuca e duas que matricularam na escola do Anil.
Portanto, no capítulo 1 apresento o quadro conceitual da pesquisa. Primeiro,
abordando a importância da relação entre família e escola para, em seguida, explorar a
relação da vizinhança com essas duas esferas, levando em conta os efeitos da
segregação urbana sobre os resultados escolares. Feito a discussão sobre família, escola
e vizinhança, apresento um resumo das teorias sobre o capital social buscando trabalhar
a forma como o capital social pode afetar a percepção do indivíduo. Por fim, discuto a
geografia de oportunidades e a forma como ela pode influenciar nas estratégias e
decisões dos responsáveis no ato da escolha do estabelecimento de ensino.
Feita a exposição teórica, no capítulo 2 apresento a forma como a geografia de
oportunidades se coloca no município do Rio de Janeiro, não sem antes apresentar as
características do modelo de segregação carioca. Apresento também os três bairros
envolvidos no estudo: Barra da Tijuca, Anil e Gardênia Azul. Como o estudo tem seu
foco na Gardênia Azul e na Comunidade do Canal do Anil, especial atenção será dada a
formação, história e características atuais das localidades em questão. Finalmente, os
três bairros serão postos em comparação para a elucidação dos aspectos educativos que
tangenciam as escolas neles inseridas.
A análise das redes sociais locais conformadas na vizinhança e seus impactos
sobre a percepção dos indivíduos inicia-se no terceiro capítulo, onde trago as quatro
entrevistas realizadas na Comunidade do Canal do Anil. Em primeiro lugar, faço
algumas observações sobre o campo, especialmente sobre a Gardênia Azul e a
Comunidade do Canal do Anil. Após apresentar as entrevistas, faço um esforço de
análise dos relatos, à luz das teorias discutidas no capítulo 1.
Por fim, realizo uma síntese dos resultados apreendidos, relacionando-os com as
principais teorias discutidas ao longo do trabalho, enfatizando a importância de novos
estudos sobre o tema das estratégias familiares.
18
Capítulo I. Território e Oportunidades Educativas
A primeira parte deste capítulo trata da relação família, escola e território,
fundamentais para introdução ao tema das estratégias familiares. Em seguida, é feita
uma revisão sobre o conceito de capital social e sua aplicabilidade na conformação da
geografia de oportunidades.
O conceito de capital social é relacionado com o de geografia de oportunidades:
a) na sua forma objetiva, como o território, provido de valores e funções de utilidade,
pode impactar na disponibilidade espacial dos recursos e b) na forma subjetiva como o
capital social dá forma as aspirações, valores, preferências e percepções subjetivas
acerca das oportunidades objetivas.
Muito se tem escrito a respeito de como ele afeta tais oportunidades no mercado
de trabalho7. Gostaríamos de trazer para o debate a forma como o capital social afetas as
oportunidades educacionais. Nesse sentido, a adoção do conceito de capital social nos é
útil para pensar a organização social do território de maneira “apropriável”, ou seja,
pensar em uma rede de relações viável, intermediada pelo território, que possibilite o
acesso a informações e recursos subjetivos que fundamentaria as “decisões” dos
responsáveis pelos alunos por nós estudados. Por isso, ainda neste capítulo, é feita a
discussão a respeito das diferentes estratégias postas em prática pelos responsáveis no
que tange a relação com o estabelecimento de ensino.
1.1 Relação família-escola
Nas
décadas
de
50
e
60,
o
empirismo
metodológico
já
tratava
macroscopicamente a relação entre família e escola. No período que seguiu a Segunda
Guerra Mundial, os principais países ocidentais industrializados tiveram um grande
crescimento de seus sistemas nacionais de ensino possibilitados, em grande parte, pela
prosperidade econômica dos “trinta gloriosos” e pela constituição do “Estado de bemestar social”. Uma forte corrente de pesquisas surgiu para analisar a relação entre o
sistema escolar e a estratificação social. Para tanto, foram feitos grandes levantamentos
de dados, destacando-se o relatório Coleman (Estados Unidos), a aritmética política
(Inglaterra) e a demografia escolar (França). Essas pesquisas empíricas viram no meio
7
Kaztman (2001) e Granovetter (1983)
19
familiar de origem um poderoso fator explicativo das desigualdades educacionais.
(Nogueira, 2005).
Essas pesquisas apontavam para o fato de que as vantagens econômicas tinham
um efeito menor sobre o desempenho escolar do que fatores socioculturais tais como
nível de instrução, atitudes e aspirações dos pais, hábitos lingüísticos, clima familiar,
entre outros. Dessa forma, algumas famílias possuíam características socioculturais
mais capazes do que outras de estimularem o êxito escolar de seus filhos, o que levou
Floud a cunhar o termo famílias educogenas. O autor verifica que estas famílias tornamse mais comuns quando subimos na escala socioeconômica, mas não aprofunda seus
estudos sobre os mecanismos a partir dos quais estas famílias exercem impacto sobre
oportunidades educacionais.
A década de 1970 é marcada pelo paradigma da reprodução difundido
principalmente por Bourdieu e Passeron (1982). Foi um período onde os sociólogos
postularam a transmissão, pela família, de uma herança (material ou simbólica) que
seria determinante para os resultados escolares do indivíduo.
De fato, a tradição francesa contribuiu, seguindo esta perspectiva, à crítica a
educação em sua relação com a dinâmica da estrutura social. Os trabalhos
desenvolvidos por Bourdieu e Passeron, diante da constatação empírica das diferenças
entre as trajetórias educacionais de jovens de diferentes setores sociais, sugerem que a
socialização no contexto familiar dotam os alunos de atitudes e ferramentas cognitivas
que nem sempre se adaptam as exigências explícitas ou implícitas da escola. Essa
diversidade de situações resulta num desajuste entre o habitus e as competências
herdadas, por um lado, e o tipo de destrezas e disposições necessárias para participar das
práticas educativas, tal como estão estruturadas, por outro. Os autores buscam
demonstrar que a escola atribui títulos e reconhecimentos educativos a quem pertence a
situações culturais, sociais e econômicas privilegiadas e que, deste modo, reforçam e
legitimam as desigualdades sociais de origem. (Bourdieu e Passeron, 1982)
Se
considerarmos
seriamente
as
desigualdades
socialmente
condicionadas diante da escola e da cultura, somos obrigados a
concluir que a equidade formal à qual obedece todo o sistema escolar
é injusta de fato, e que, em toda a sociedade onde se proclamam ideais
20
democráticos, ela protege melhor os privilégios do que a transmissão
aberta dos privilégios. (Bourdieu, 1999, p.51)
Nogueira (2005) afirma que essas análises, de caráter macroscópico, não
analisavam o comportamento interno das famílias uma vez que eram medidos a partir da
constatação de seus efeitos sobre os destinos escolares: “Significa dizer que o
funcionamento interno das famílias – em suas relações com a escola – permanecia como
uma caixa preta intocada.” (2005, pp. 567)
O período atual, iniciado na década de 1980, é caracterizado por uma análise
microscópica da esfera social, que reorganizou os métodos investigativos, possibilitando
novos enfoques e objetos para a sociologia da educação. Nesse contexto que tem origem
um novo campo de estudos que se ocupa das trajetórias escolares dos indivíduos e das
estratégias utilizadas pelas famílias no processo de escolarização. O termo “estratégia”
passa a ocupar uma posição central para se pensar a problemática família-escola. São
estudos que se preocupam com a compreensão das diversas estratégias adotadas pelas
famílias diante da escolarização dos filhos, como por exemplo, a escolha do
estabelecimento de ensino. Os pesquisadores passam a se ocupar com a diversidade das
famílias de um mesmo meio social e até mesmo com a heterogeneidade existente no
interior do próprio grupo familiar para compreender a influência da origem social.
Para Nogueira (2005) o debate atual em torno da relação família-escola diz
respeito à natureza das lógicas que regulam as estratégias familiares no que diz respeito
aos processos de escolarização:
De um modo geral, os estudos sociológicos se dividem entre duas
ênfases: aquelas que sublinham o caráter utilitarista das práticas
familiares, acentuando as condutas de investimento que buscam a
rentabilidade econômica e ocupacional dos produtos da escolarização
(diploma, distinção profissional), e aqueles que acentuam a dimensão
identitária das ações das famílias, que encontram sua lógica na
mobilização em favor da constituição da identidade social e da
aquisição de qualidades morais requeridas para uma boa integração a
certos meios sociais. (Nogueira, 2005, pp.569)
21
O que mais chama a atenção, no novo contexto, é o intenso aprofundamento dos
laços que unem família e escola, com a escola reconhecendo cada vez mais a
importância da família como parceira para a realização de suas atividades de formação.
Por fim, Nogueira (2005) aponta para três processos que respondem pelas
metamorfoses na relação entre família e escola atualmente: o primeiro é o que chama de
aproximação entre essas duas esferas; o segundo, decorrente do primeiro, é o de
individualização da relação e o terceiro processo é o da redefinição de papéis (divisão
do trabalho educativo entre as duas partes).
1.2 Efeitos da Segregação urbana sobre a Educação
Para além da relação família e escola, o bairro se apresenta cada vez mais como
foco de estudos dos pesquisadores da sociologia urbana. Estes estudos ajudam a pensar
a relação entre segregação urbana e resultados escolares, não só no que diz respeito a
concentração de pobreza do bairro e sua relação com os resultados escolares como
também na tentativa de compreender os mecanismos pelos quais a segregação
residencial impacta tais resultados.
São diversos os mecanismos desencadeados por processos de segregação urbana
que influenciam no resultado educacional de estudantes. A idéia é de que haveria
algumas características particulares a vizinhança que afetariam no resultado escolar de
crianças e jovens em idade de escolarização.
A hipótese é de que alguns processos como a segmentação do mercado de
trabalho, o enfraquecimento dos regimes de bem-estar social, as transformações
territoriais decorrentes da liberalização do mercado de trabalho, entre outros, gere uma
tendência ao isolamento social dos segmentos mais fragilizados em relação aos circuitos
sociais e econômicos da cidade. Dessa forma, a concentração territorial dos segmentos
vulneráveis
transforma-se
em
segregação
residencial,
podendo
“desencadear
mecanismos de reprodução da pobreza e das desigualdades sociais, tornando mais difícil
a manutenção da sociedade como um coletivo de indivíduos integrados sob os
desejáveis princípios da equidade social.” (Ribeiro & Kaztman, 2008, pp.17)
Diante dessa constatação, fica claro a existência de mecanismos invisíveis de
injustiça que atuam sobre crianças e adolescentes decorrentes da combinação de
famílias com frágeis laços com o mercado de trabalho; bairros com composição social
homogênea e isolamento territorial, sociocultural e político com o restante da cidade.
22
Wilson (1987) explicita a hipótese de que viver em uma vizinhança com alta
concentração de pobreza afeta negativamente as chances de vida de uma pessoa,
independente do nível de pobreza do indivíduo. As hipóteses do efeito vizinhança
estudadas pelo autor sugerem que viver em uma vizinhança pobre resulta, por exemplo,
numa redução do controle social e contribui para o isolamento social o que, por sua vez,
favorece baixos resultados educacionais assim como resultados ocupacionais.
As autoras Ellen e Turner (1997), identificam seis mecanismos que podem
influenciar nos desempenhos individuais. O primeiro refere-se à qualidade dos serviços
locais – reconhecer que o bem-estar individual pode ser afetado pela disponibilidade e
qualidade dos serviços oferecidos na vizinhança, como por exemplo, escolas,
hospitais,...; o segundo mecanismo é a socialização através dos adultos, essencial para o
monitoramento e suporte às atividades das crianças, portanto, para sua socialização; o
terceiro diz respeito à influência dos pares, entendendo-se que valores e
comportamentos de jovens são moldados ou influenciados pelos seus pares; o quarto
mecanismo são as redes sociais, que podem servir de apoio ao conhecimento individual
sobre serviços de suporte social, bem como de oportunidades econômicas, em especial
oportunidades de trabalho; o quinto trata da exposição ao crime e à violência; o sexto e
último mecanismo através do qual as condições de vizinhança podem influenciar
desempenhos individuais é identificado através das idéias de distância física e
isolamento.
Kaztman (1997) já apontou para as três esferas em questão como instâncias
socializadoras de crianças em idade escolar. O diagrama abaixo nos mostra a relação
entre a vizinhança, a família e a escola sob a perspectiva de socialização das crianças
em idade escolar.
23
Diagrama 01 – Principais âmbitos de socialização de crianças em idade escolar.
Para este estudo interessa compreender especialmente a relação entre a
vizinhança e família, a forma como a rede de relações sociais conformadas no território
pode funcionar como uma potencial fonte de informações, circulação de recursos (sejam
eles materiais ou simbólicos) que impactem nas estratégias de escolarização por parte
destes responsáveis.
Mais sobre a importância da vizinhança será retomada ao longo deste estudo.
Vejamos agora de que forma o capital social pode impactar na geografia de
oportunidades subjetiva, primeiro fazendo um apanhado sobre as teorias do capital
social para depois trabalhar a forma como este pode afetar a percepção do indivíduo.
1.3 Capital Social: Revisão sobre Conceito e Forma
Diversos autores já escreveram sobre a noção de capital social sob diferentes
perspectivas, principalmente no que diz respeito ao seu papel no controle social, no
apoio familiar e nos benefícios mediados por redes extrafamiliares. Para este estudo o
que mais interessa é a forma como o capital social pode se transformar em recursos que
circulam nas redes de relações, principalmente no bairro.
24
Nos últimos anos assistimos a difusão do conceito de capital social. No entanto,
o termo não incorpora qualquer idéia nova para os sociólogos. De fato, como afirma
Portes (1998),
que o envolvimento e a participação em grupos pode ter
conseqüências positivas para o indivíduo e para a comunidade é uma
noção corrente, remontando a Durkheim e à sua insistência na vida
em grupo enquanto antídoto para a anomia e a autodestruição, e à
distinção efetuada por Marx entre uma “classe em si” atomizada e
uma “classe para si” mobilizada e eficaz. (Portes, 1998, pp. 03)
A ideia mais geral sob o conceito, tal qual nos fala Coleman (1993), afirma que
os indivíduos se envolvem em diferentes tipos de redes de forma a ampliar os recursos
disponíveis. O capital social visto dessa forma supõe a criação de um tipo de “contrato
social” informal, baseado na confiança mútua (mecanismos de reciprocidade), garantido
por um processo mais ou menos explícito de construção de normas e sanções. Para o
autor existe um mecanismo determinante que fornece o contexto para a apropriação do
capital social: a organização social “apropriável”. Seu pressuposto encontra razão no
fato de que o capital social será maior na medida em que as interações correspondam a
redes de relações densas, a laços fortes. Talvez por isso, os exemplos mais
emblemáticos do conceito se relacionem às redes de capital social no âmbito da família,
parentes e amigos.
Para Bourdieu (1982) a noção de capital social centra-se nos benefícios
adquiridos pelos indivíduos em virtude da participação em grupos, onde as redes
sociais, não sendo um dado natural, devem ser construídas por estratégias de
investimentos que institucionalizam as relações do grupo.
A intangibilidade do capital social é salientada tanto por Bourdieu quanto para
Coleman. Para possuir o capital social, o indivíduo precisa se relacionar com outros, a
verdadeira fonte de seus benefícios. A motivação de terceiros para tornar recursos
disponíveis em termos concessionários não é uniforme, pode se distinguir entre
motivações altruístas e instrumentais (Portes, 1998).
25
Tal qual as fontes, as consequências do capital social são diversas, onde destacase três funções básicas do conceito: a) fonte de controle social; b) fonte de apoio
familiar; c) fonte de benefícios através de redes extrafamiliares.
O capital social criado por redes comunitárias geralmente resulta no controle
social e encontra sua fonte na solidariedade confinada e na confiança mútua. Sua
principal função é tornar inúteis os controles formais ou explícitos. Portes (1998)
relembra o discurso de Coleman à American Sociological Association, em que lamenta
o desaparecimento das estruturas familiares e comunitárias informais que davam
sustentação a esse tipo de capital e procurava a substituição dessas instâncias por
organizações construídas pelo Estado para este fim, a chamada engenharia social, que
substituiria as formas tradicionais de controle por incentivos materiais e de status
racionalmente criado.
Enquanto fonte de apoio familiar, muitos estudo mostram a importância do tipo
de estrutura familiar para a aquisição do capital social. Famílias intactas e na qual um
dos progenitores tem como principal tarefa criar os filhos possuem em maior quantidade
esse tipo de capital do que àquelas famílias monoparentais ou em que ambos os pais
trabalham. O apoio familiar pode ser ainda um contrapeso a perda de laços
comunitários. Deixar uma comunidade tende a destruir os laços construídos e o apoio
parental busca suprir a perda de laços mais fortes nas redes extrafamiliares.
A fonte de benefícios mediados por redes exteriores é a que se atribui de forma
mais comum ao capital social. Para Bourdieu, o apoio familiar se constitui no capital
cultural ao passo que o capital social se refere a recursos acessíveis mediante a inserção
em redes de relações. É nesse aspecto que a noção de estratificação social encontra
maior campo, frequentemente explorada para a explicação ao acesso a empregos,
mobilidade através de oportunidades profissionais, entre outros. O argumento central é
de que os laços pessoais são instrumentais na promoção da mobilidade individual.
Dois dos conteúdos mais importantes que participam da estrutura do capital
social são a informação e os contatos. Na medida que a informação e os contatos podem
ser considerados como bens de qualidade variável, sujeitos a mecanismo de exclusãoinclusão, o acesso a informação e a melhores contatos pode se constituir em um
poderoso atrativo para a participação nas redes sociais, independente do nível de
envolvimento dos participantes no sistema de normas e nas relações de reciprocidade.
(Kaztman, 1997). Sendo assim, nem todas as formas de capital social residem na
26
natureza dos laços fortes. Pouco se tem escrito a respeito da natureza dos laços frágeis
do capital social. Granovetter (1983) foi um dos pioneiros na questão quando escreve a
respeito da “fortaleza dos laços frágeis” no mercado de trabalho: é mais provável que os
indivíduos encontrem trabalho através de vínculos mais frágeis como, por exemplo,
antigos colegas de estudo, do que com indivíduos que mantenham laços fortes, como
amigos próximos e familiares. Isso porque quanto mais estreito são os vínculos, menor é
o acesso a informação e contatos adicionais.
O autor afirma ainda que os setores populares tendem a estabelecer relações
fortes, homogêneas e pobres, o que não necessariamente gera uma mobilidade
ascendente. O encerramento da estrutura de interação “entre iguais” se dá mais por uma
capacidade de sobrevivência do que propriamente a incorporação a uma estrutura de
oportunidades mais ampla.
Neste processo, a mobilidade geográfica tem um papel decisivo. Umas das
principais estratégias na aquisição de ativos é justamente o abandono do local de
residência em busca de oportunidades em contextos mais dinâmicos. Buscar melhores
oportunidades longe do local de moradia onde provavelmente será estabelecido um
novo contexto de relações sociais é possivelmente a estratégia encontrada pelos
responsáveis dos alunos da escola da Barra.
Kaztman (1997) elabora uma tipologia na qual busca entender a natureza do
capital social vista como a combinação entre as dimensões do grau de força dos
vínculos e o grau de heterogeneidade da rede. O esquema fica assim:
Grau de Heterogeneidade da Rede
Baixo
Grau de Força
dos Laços
Fraco
Forte
Alto
3
1
2
4
(Fonte:Kaztman, 1997)
27
Já falamos um pouco a respeito do grau de força dos vínculos. No que diz
respeito a dimensão da heterogeneidade, esta pode ser entendida como um atributo da
rede derivado de sua composição no sentido de maior ou menor igualdade entre seus
membros. A heterogeneidade tem um sentido e uma direção que depende do
posicionamento dos membros em relação aos recursos. Supõe-se que a heterogeneidade
é relevante porque está positivamente correlacionada com a diversidade de recursos que
circulam dentro da rede (Kaztman, 1997). No entanto, vale salientar que redes
homogêneas, onde os recursos que circulam nessas redes são “apropriáveis”, ou seja,
alto capital social, cultural e econômico, também agem de forma positiva sobre os
indivíduos.
...
As investigações sobre o capital social costumam ressaltar suas consequências
positivas; no entanto, este mesmo recurso pode trazer resultados menos desejáveis,
como por exemplo: exigência excessiva a membros do grupo; exclusão dos nãomembros, restrições à liberdade individual e normas de nivelação descendente (Portes,
1998)
No primeiro caso trata-se do fechamento do grupo ou comunidade restringindo o
êxito das iniciativas de seus membros. Portes (1998) destaca o estudo de Geertz em Bali
quando do constante assédio por familiares que procuravam emprego na empresa de um
dos membros da comunidade. As exigências eram pautadas nas normas que impunham
a assistência no interior da sociedade. A consequência era a transformação de empresas
promissoras em empresas de cunho assistencialista.
O segundo efeito negativo do capital social advém de laços fortes que geram
benefícios para os membros do grupo, mas que podem, também, barrar o acesso a
terceiros. O contrário do primeiro, neste caso as relações sociais que fundamentam as
normas do grupo restringem aqueles que lhes são estranhos.
O terceiro efeito produz a redução da privacidade e da autonomia dos
indivíduos.
Por fim, em quarto lugar, situações em que as relações do grupo são
fundamentadas em uma experiência comum de adversidade e de oposição às tendências
dominantes da sociedade podem acabar por minar a coesão do grupo. Depois de
28
iniciada, essa perspectiva normativa pode ajudar a perpetuar a própria situação que a
denuncia. (Portes, 1998)
Putnam (2000) fala da distinção entre as duas formas que o capital social pode
assumir: bridging (inclusivo) e bonding (exclusivo). O primeiro é baseado na “força dos
laços fracos” - numa clara referência a obra de Granovetter8 - e reúne pessoas com
diferentes características e valores. O segundo, voltado para dentro, refere-se a redes
sociais compostas por grupos homogêneos e exclusivos. Pode ser eficaz quando se
refere a um tipo específico de reciprocidade e de capacidade de mobilização. No
entanto, no geral, o capital social bonding reforça a tendência a identidades excludentes.
A discussão sobre as diferentes formas que o capital social pode assumir nos
ajuda a pensar para além das consequências positivas proporcionadas pelo acesso a
informações e pela rede de relações: devemos também ter em conta os resultados
negativos trazidas pelo acesso ao capital social.
1.4 Segregação Urbana: consequências sobre o capital social.
Kaztman (2001) destaca a coexistência da segmentação do mercado de trabalho,
a progressiva redução dos espaços públicos que possibilitam o estabelecimento de
contatos informais entre diferentes segmentos de classes sociais, e a crescente
concentração dos pobres em espaços urbanos segregados, como uma tradução do
isolamento social dos pobres urbanos no que diz respeito as demais classes da
sociedade. Quase como uma homogeneização social do espaço urbano, nas grandes
cidades, há um processo de isolamento dos setores mais pobres do restante da
sociedade.
Nesse sentido, o autor entende que a alta concentração territorial da pobreza
acarreta, por um lado, numa debilidade dos vínculos com o mercado de trabalho,
atingindo os trabalhadores de baixa qualificação, e por outro, num progressivo
isolamento dos pobres urbanos do restante da sociedade. Aliado a esses fatos tem-se a
segmentação do trabalho, da educação e a segmentação residencial.
O autor afirma que a segmentação do trabalho diz respeito à redução da
interação social entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados,
8
GRANOVETTER, Mark. The strength of weak ties: a network theory revisited. Sociological Theory,
v1, p. 201 – 233, 1983
29
restringindo estes últimos a adquirirem um possível capital individual que resultaria
dessa troca.
Já a segmentação da educação é vinculada ao enfraquecimento do processo de
constituição de redes de estudantes de composição social heterogênea que, em sua
análise, contribuiria para a equidade na distribuição de ativos9 de capital social, como
veremos a seguir.
A segregação residencial - o processo pelo qual a população da cidade vai se
localizando em espaços de composição social cada vez mais homogênea - agrava esse
quadro, levando ao crescente isolamento dos pobres urbanos. A proximidade física entre
ricos e pobres evita o isolamento social e, segundo a hipótese de Kaztman, teria
potenciais efeitos positivos no sentido de produzir atitudes e comportamentos mais
adequados ao modelo dominante de integração social.
Para o autor, tanto a segmentação residencial – que isola os pobres em espaço de
composição social homogênea - quanto à segmentação do trabalho e a da educação que reduzem os âmbitos da sociabilidade informal com pessoas de outras classes sociais
- conduzem ao isolamento social. Em contrapartida, uma vizinhança com uma estrutura
social heterogênea teria potenciais efeitos integradores.
Diferente dos autores vistos acima, Small (2004) investiga como viver em uma
vizinhança pobre pode ser associado ou não a um baixo capital social.
O autor, em seu estudo sobre Villa Victoria – Boston / EUA, busca entender
como viver em uma vizinhança pobre pode afetar o capital social dos indivíduos. A
análise visa compreender quais são os mecanismos que fazem com que pessoas que
moram em vizinhanças pobres vivenciem uma diminuição da participação local da
comunidade, redução dos laços com a classe média e mantenham laços fortes na
vizinhança. A análise do autor mostra que em Villa Victoria as características espaciais
da região reforçam, mais do que determinam, a diferença entre os residentes e os não
residentes da região, onde a combinação particular de elementos como o espaço, raça e
classe proporcionam para os residentes de Villa uma espécie de “cerca invisível”. Para o
9
Katzman (2001) define como ativos: o capital social individual referido à capacidade que uma pessoa
tem de mobilizar a vontade de outras pessoas em seu benefício; o capital social coletivo que se refere à
capacidade que tem de mobilizar as vontades de muitos na direção de uma meta coletiva; e o capital
cívico referido à capacidade que tem de sentir e de compartilhar problemas e destinos de outras pessoas.
30
autor, a ideia de capital social está diretamente relacionada com a possibilidade de
contato com diferentes classes sociais. Nesse sentido, afirma que quando as condições
do espaço reduzem tais oportunidades, diminui o capital social e as possibilidades de se
estabelecer “networks”.
O autor afirma que, ao manter essas “networks”, os residentes de Villa Victoria
podem ser expostos a “modelos de referência” e ter acesso a informações sobre recursos
que possibilitariam a mobilidade social. Uma de suas questões centrais é, por que viver
em uma vizinhança pobre limita a interação com a classe média. A hipótese é de que a
pobreza da vizinhança, independente da pobreza individual, resulta numa desconexão
com o mainstream.
No entanto, a relação que os autores fazem na qual viver em uma vizinhança
pobre necessariamente implicaria num isolamento da classe média precisa ser revista. A
literatura sobre o tema nos mostra onde os indivíduos vivem e onde eles trabalham.
Entretanto, a vida social não é limitada ao trabalho e a casa. Small (2004) afirma que
examinar onde os indivíduos vivenciam o restante dos dias é indispensável para quem
quer estudar capital social. Os elementos do comportamento social podem ser uma das
fontes mais ricas para se capturar a relação entre a vizinhança pobre e a geração do
capital social, principalmente no que diz respeito a interações informais. O autor mostra
que a relação entre vizinhança pobre, recursos e capital social em Villa Victoria é
perpassada por dois paradoxos: a relação entre vizinhança pobre e recursos e a relação
entre os recursos e o isolamento social. Parece razoável supor que uma vizinhança pobre
também seja pobre na oferta de seus recursos. Entretanto, uma observação mais
cuidadosa mostra que o contrário é possível.
Apesar de uma alta concentração de pobreza, Villa Victoria possui uma boa
oferta de recursos (escolas, igrejas, mercados, centros comunitários, hospital). Essa
oferta tem o efeito paradoxal de limitar as oportunidades dos residentes de Villa de
interagir com a classe média. O efeito positivo da oferta de recursos contribui para o
resultado negativo do isolamento social.
Mais do que se perguntar qual o tipo de relação estabelecida entre os indivíduos,
o mais importante para Small é questionar quem terá a oportunidade de estabelecer essa
relação. As chances dos residentes de Villa Victoria em conhecer pessoas de outras
classes são dramaticamente diminuídas frente a oferta de recursos na vizinhança.
31
Conforme a oferta de recursos cresce, o capital social fica limitado assim como aumenta
o isolamento social.
Mais uma vez vale lembrar que os indivíduos processam, de maneira diferente,
os mecanismos relacionados ao bairro. A percepção e a capacidade dos indivíduos de
participar do processo de adaptação e de resistência ao espaço varia de acordo não só
das características individuais e familiares, mas também daquelas relativas ao espaço
que habitam.
Logo, como buscaremos demonstrar, alguns indivíduos optam por percorrer
longas distâncias em busca de uma melhor oferta dos serviços essenciais, como a
escola, numa clara demonstração da importância em reconstruir as motivações dos
agentes e refletir sobre o fato social em questão como um resultado não apenas da
estrutura social mas também das ações individuais.
1.5. Geografia de Oportunidades : território e ação dos indivíduos
Em seu trabalho sobre segregação residencial e resultados educacionais em
Santiago – Chile, Flores (2008) destaca as teorias sobre o efeito bairro referentes às
consequências que as características contextuais tem sobre os processos e tomadas de
decisões individuais. Em contextos onde a pobreza está espacialmente concentrada
existem certos elementos situados geograficamente no bairro, particularmente nas redes
sociais locais, que afetam negativamente as pessoas que ali habitam. No entanto, a
autora enfatiza a importância da posição dos indivíduos nestas redes como fator que
potencializa ou diminui o efeito do bairro.
Sobre as teorias que estudam o efeito bairro, a autora aponta para três elementos
presentes na comunidade, que são chaves para o processo de socialização do indivíduo
que ali habita. São eles: eficácia normativa, no sentido da importância do consenso da
comunidade acerca de normas e atitudes assim como a supervisão ativa das crianças por
parte dos adultos da comunidade permitindo a transmissão de normas que são
incorporadas pelas crianças em seu processo de desenvolvimento; mecanismos de
informação, onde a informação disponível no contexto residencial explica, por exemplo,
comportamentos como disciplina, hábitos de estudo, delinqüência, etc, relacionado com
o que a literatura vem chamando como, de um lado, “efeito pares”10 e de outro,
10
O “efeito pares” está relacionado a um processo de contágio ou difusão de comportamentos entre uma
criança e outra.
32
“modelos de papéis”11; oportunidades locais, ou seja, a qualidade das escolas, os
recursos disponíveis e a capacidade de gestão tanto interna quanto externa, numa
relação entre as instituições e a comunidade.
Uma das mais importantes contribuições do estudo para este trabalho se refere
ao que a autora chama de “geografia de oportunidades” que, como dito anteriormente,
busca relacionar o processo de tomada de decisões com o contexto geográfico dos
indivíduos.
A geografia objetiva de oportunidades se refere a disposição dos equipamentos
urbanos no território. Harvey (1980) trata esses equipamentos como recursos e afirma
que sua disponibilidade depende da acessibilidade e da proximidade. Para o autor as
decisões locacionais aumentam a disponibilidade espacial dos recursos:
Uma asserção geral da teoria da localização e da teoria da
interação espacial é a de que o preço local de um recurso ou
proximidade é função de sua acessibilidade e vizinhança para o
usuário (...) O domínio sobre os recursos (...) é assim função da
acessibilidade e proximidade locacionais. (Harvey, 1980, pp 56)
Small (2004), ao tratar da geografia objetiva de oportunidades, divide os
dispositivos urbanos em recursos essenciais e recursos não-essenciais12. O primeiro diz
respeito a serviços que todos precisam: escolas, hospitais, postos de polícia (serviços
que os indivíduos terão que obter de todo modo). O segundo se refere a serviços não
essenciais tais como recreação, shoppings, parques, entre outros. De acordo com o
autor, os indivíduos dificilmente percorrem grandes distâncias para obter serviços
essenciais que eles possuem na vizinhança.
O contexto do bairro desempenha um papel central na conformação da geografia
subjetiva de oportunidades. De fato, como afirma Flores (2006)
A percepção subjetiva do indivíduo que toma decisões sobre a
estrutura de oportunidades sobre a qual deve decidir será criticamente
afetada pela informação disponível, que cria um filtro da percepção
11
A influência dos adultos pode funcionar ou não como exemplos a serem seguidos.
12
No original critical e nonciritcal resources
33
por meio do qual as oportunidades são entendidas e avaliadas. Este
filtro da percepção das oportunidades disponíveis – que restringe as
oportunidades realmente acessíveis – forma-se graças à informação
proveniente de duas fontes principais: os meios de comunicação de
massa e as redes locais sociais (Flores, 2006, pp. 203)
Os autores Galster e Killen (1995) afirmam que as normas dominantes no grupo,
os valores, os padrões de conduta aceitáveis e as trajetórias de vida esperadas para
crianças e jovens variam segundo o contexto, e com ele variam também o tipo de
informação ao quais os indivíduos têm acesso. Segundo esses autores, estas informações
provêm principalmente das redes sociais locais, como a família, vizinhança, grupo de
pares, instituições locais e outros. Sob esta perspectiva, as redes locais têm um papel
fundamental na socialização dos indivíduos na medida em que proporcionam
informações e ditam os parâmetros para o uso dessas informações. Wilson(1987)
salienta que as redes locais podem reforçar ou invalidar certas normas e valores, e atuar
diretamente nas aspirações dos jovens.
Dessa forma, a informação disponível no bairro afeta diretamente a percepção
subjetiva do indivíduo acerca da estrutura de oportunidades sobre a qual deve tomar
uma decisão. Pode-se afirmar então que a segregação urbana dá forma a geografia de
oportunidades, tanto em sua forma objetiva quanto subjetiva, ou seja, a segregação
urbana permite predizer a existência de piores oportunidades a nível local, o que afeta
os indivíduos na maneira pela qual eles enxergam essas oportunidades.
Nesse sentido, a escolha do estabelecimento de ensino se coloca de forma
diferenciada para os indivíduos que moram no mesmo bairro. Por isso, vale destacar a
importância da posição dos indivíduos nas redes sociais que podem funcionar como um
fator que potencializa ou diminui o efeito do bairro.
As disposições construídas pela geografia de oportunidades no que tange a
relação com a escolha do estabelecimento de ensino acarreta em diferentes estratégias
postas em práticas pelos responsáveis. De fato, diante de uma organização mais
complexa das redes escolares, as famílias tem a possibilidade de definir um projeto
educativo e traçar estratégias para a escolha do estabelecimento de ensino. No entanto,
as famílias são desigualmente equipadas no que concerne às condições para a “boa”
escolha do estabelecimento de ensino. Os critérios usados para a escolha podem variar
34
de natureza quando se passa de um meio social para outro ou ainda pode variar de uma
família para outra no interior de uma mesma condição social e espacial, conforme
veremos adiante.
Nogueira (1998), em revisão sobre o debate da escolha do estabelecimento de
ensino pelas famílias, aponta para conclusões gerais as quais chegaram autores ingleses
e franceses preocupados com a questão.
Na vertente inglesa Nogueira (1998) destaca Ball, Gewirtz & Bowe. Inseridos
num contexto de políticas educacionais neoliberais, vigentes desde os anos 1980 na
Inglaterra, e que estimulava as famílias a cultura da escolha, os autores criticam a noção
de que o mercado é neutro e o modelo de pai/mãe ideais (detentores das predisposições,
habilitações e meios materiais para o exercício da escolha). Para eles, a escolha do
estabelecimento de ensino e a competição por ele se dá dentro do “campo” educacional
onde os difetentes tipos de capital (social, cultural e econômico) são utilizados como
estratégias. Dessa forma, entendem que a escolha é concebida como parte da luta de
classes simbólica, descartando o que chamam de “visão ingênua” de uma escolha
concebida como ação individual. Concluem que a escolha do estabelecimento de ensino
é diretamente relacionada a posição sociocultural da família e ainda que, em países
afetados pelas políticas educacionais neoliberais, a escolha do estabelecimento de
ensino é um fator de fortalecimento das desigualdades de oportunidades educacionais.
Na vertente francesa, Nogueira (1998) abre espaço para quatro autores. Neste
país, desde 1963 existe uma lei para rede pública que determina que a criança deve
estudar no setor geográfico de seu domicílio. Frente a pressão da população, no início
dos anos de 1980 a lei é flexibilizada, de modo que hoje as famílias podem, através de
recursos jurídicos, revogar essa obrigação. É neste contexto que François Héran
desenvolve suas pesquisas. Diante da possibilidade de matrícula em “escola particular”,
“escolha pública escolhida” e “escola pública aceita”, o autor afirma que, para as duas
primeiras alternativas trata-se de “escolhas ativas” em contraposição a última “escolha
passiva”.
Sua
pesquisa
mostrou
que
o
comportamento
da
escolha
varia
significativamente de um grupo social para outro: os favorecidos cultural ou
economicamente fazem a “escolha ativa” (com diferenças internas segundo as
categorias profissionais) ao passo que as famílias desfavorecidas geralmente aceitam o
estabelecimento imposto, a “escolha passiva”. Para a “escolha ativa” é necessário um
bom conhecimento do funcionamento do sistema de ensino. As forma de obtenção de
35
informação sobre os diferentes estabelecimentos variam também de acordo com o meio
social: se, por um lado, os mais favorecidos buscam a informação consultando o ranking
das escolas (fornecido pelo órgão oficial do governo) por outro, as famílias das camadas
populares obtém a informação principalmente através do boca-a-boca.
Langouet & Leger são mais dois autores franceses utilizados por Nogueira
(1998) para tratar do tema das escolhas. Os dois autores optaram em usar a noção de
estratégia recusando a definição do individualismo metodológico e se aproximando
mais do ponto de vista bourdieusiano que entende como estratégia as respostas
prováveis dos indivíduos de acordo com as predisposições adquiridas no meio social de
origem. No fim concluíram que a noção de estratégia deve ser usada com cautela pois
envolve fatores que são extremamente associados á posição social ocupada o que faz
com que a existência de estratégias e a possibilidade de escolhas estejam desigualmente
acessíveis às diferentes classes sociais. Nogueira (1998) destaca três estratégias
observadas no estudo de Langouet & Leger: estratégias de evitamento, famílias que
evitam determinados estabelecimentos localizados em bairros populares ou com
clientela de nível socioeconômico baixo; estratégias preventivas, que antecipam
problemas esperados como, por exemplo, a mudança de escola com certo nível de
dificuldade acadêmica para outra mais fácil na tentativa de evitar o fracasso escolar;
estratégias de distinção, própria das elites, assegura a frequência a estabelecimentos
seletivos e prestigiosos.
Para Nogueira (1998) o nome de Robert Ballion é intimamente associado ao
tema das escolhas do estabelecimento de ensino. Trabalhando com pesquisas sobre a
relação entre a oferta de escolarização e a demanda, Ballion constata que a atitude das
famílias frente a escolha da escola mudou consideravelmente ao longo das últimas
décadas. Para ele, os pais atuais são “consumidores de escola” que buscam adequar o
serviço educativo as suas demandas, de acordo com a oferta no mercado. Aponta para
dois grandes tipos de conduta: as “condutas avaliatórias” reservam a escolha da escola
por suas características educativas e/ou pedagógicas; as “condutas funcionais” ou
“motivações domésticas” são escolhas de conveniência prática como proximidade
geográfica, facilidade de transportes, etc. Quanto mais elevada a posição social, mais
frequente são as condutas do primeiro tipo.
36
Todos os autores acima citados reconhecem o papel central do capital cultural
familiar na escolha do estabelecimento, especialmente do capital de informações sobre
o funcionamento do sistema de ensino.
As estratégias e a possibilidade de escolha se colocam de forma diferenciada
para as famílias. O objetivo deste estudo é apreender as diferentes estratégias postas em
práticas pelos responsáveis no que tange à relação com a escolaridade dos filhos tendo
em conta o conceito de geografia de oportunidade que, como já visto, relaciona o
processo de tomada de decisões com o contexto geográfico dos indivíduos.
O diagrama abaixo resume a idéia de como a geografia de oportunidades pode
influenciar o processo de tomada de decisão dos indivíduos.
O diagrama nos mostra a importância da relação entre família e vizinhança para
o acesso a estrutura de oportunidades disponíveis a nível local e sua consequente
relação com as estratégias familiares.
A importância da relação entre família e vizinhança já foi descrita por Elias
(2000) no estudo que fez em Winston Parva sobre a relação entre grupos já
estabelecidos e grupos outsiders. Falaremos agora um pouco a respeito deste estudo pois
ele será de fundamental importância ao tratarmos da Comunidade do Canal do Anil e da
37
Gardênia Azul e da possibilidade das relações estabelecidas no interior destas
comunidades
influenciarem
significativamente
no
processo
da
escolha
do
estabelecimento de ensino.
...
Elias (2000) faz um trabalho de campo de três anos em Winston Parva,
cidadezinha no interior da Inglaterra. Seguindo os indicadores sociais correntes (renda,
educação, tipo de educação), Winston Parva era uma comunidade relativamente
homogênea. Porém, na percepção daqueles que ali moravam existia um grupo que se
percebia como establishment e outro que se percebia como outsider. Estes grupos não
diferiam quanto à classe social, nacionalidade, ascendência étnica ou racial. Sua única
diferença era quanto ao tempo de moradia no local.
O fator que diferencia os dois grupos não se baseia em qualquer critério étnico,
racial ou socioeconômico: está fundado num vínculo inalienável que se estabelece entre
os dois grupos, com base na possibilidade de ampliação dos excedentes de poder por
parte dos estabelecidos. Esta possibilidade se fundamenta na coesão social dos
estabelecidos, que permite que estes reservem para si as ocupações de maior prestígio
social, em detrimento à falta de coesão e anomia identificados nos outsiders que, desta
forma, não conseguem se organizar para fazer frente a subordinação imposta pelo grupo
de estabelecidos.
O grupo reconhecido como estabelecidos tem a identidade social construída a
partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência e baseiam seu
poder no fato de serem um modelo moral para os outros, um grupo social coeso. Já
os
outsiders formam um conjunto heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais
menos intensos.
A forma como o indivíduo, integrante de um determinado grupo, se percebe,
sua auto-imagem, deriva do caráter geral do grupo ou do conjunto de características que
o define como um grupo estabelecido ou outsider. Os estabelecidos, além de se
subjugarem superiores e mais poderosos, contribuem para uma imagem negativa dos
outsiders, fazendo-os se sentirem inferiores, carentes de virtudes. Os estabelecidos
excluem os membros do outro grupo de todo o contato social não profissional através de
38
mecanismos de controle social como as fofocas elogiosas atribuídas a si e a ameaça de
fofocas depreciativas contra os outsiders.
O grupo estabelecido tende a atribuir ao grupo outsider as características “ruins”
de sua porção anômica ao passo que modela sua auto-imagem com base em seu setor
mais exemplar. Dessa forma, os outsiders são vistos como anômicos, ausentes de
normas de controle dos aspectos em âmbitos grupal e individual. O contato travado
entre os dois grupos faz pairar sobre os estabelecidos a ameaça de uma “infecção
anômica” já que enxergam os outsiders como indignos de confiança, indisciplinados e
desordeiros.
A chegada dos outsiders representa um ataque triplo contra a hegemonia dos
estabelecidos: contra seu monopólio das fontes de poder, contra seu carisma coletivo e
contra suas normas grupais. Por isso a resistência e o revide dos últimos se dar de forma
tão evidente.
O que está em jogo é o fato dos dois grupos estarem intimamente ligados numa
dinâmica onde um possui muito mais recursos de poder do que o outro, não sendo
determinante para isso a cor da pele ou a origem étnica. A sociodinâmica das relações é
determinada por sua forma de vinculação e não por qualquer característica que os
grupos tenham.
A antiguidade e a tradição familiar representam elementos de forte ampliação do
status social nas sociedades tradicionais. A novidade do estudo de Elias (2000) é a
aplicabilidade deste modelo as classes operárias. Antigo e novo representam os
principais fatores de hierarquização. As entrevistas realizadas revelam que existe um
conjunto de crenças e normas dominantes que exerce forte coesão na perspectiva
individual de cada membro. Este conjunto se constrói com base na permanente troca de
ideias entre os indivíduos dentro dos grupos e o constante reforço das posições através
de mecanismos como a fofoca. Em regra, as comunidades estabelecidas esperam que os
novatos se adaptem as suas normas e crenças, que se submetam as suas formas de
controle social e demonstrem, de maneira geral, a disposição de “se enquadrar”.
Nesse contexto, os termos “velho” ou antigo” não se referem apenas a
quantidade de anos de existência de um bairro comparado com outro. Refere-se a uma
configuração social específica, que indica que o patrimônio já não é mais uma condição
essencial da “antiguidade” sociológica, como costumava ser. Já não se trata mais de
herança de bens mas sim da “monopolização de posições-chave em instituições locais,
39
da maior coesão e solidariedade, da maior uniformidade e elaboração de normas e
crenças, e da maior disciplina externa e interna que lhes é concomitante” (Elias, 2000,
pp. 170)
As comunidades e bairros formam um tipo específico de configuração.
Invariavelmente as famílias de uma mesma comunidade logo são ligadas umas as outras
pelos “fios invisíveis” da vizinhança. Na verdade, a natureza da estrutura familiar e os
laços de família não podem ser entendidos como se as famílias vivessem num vazio
comunitário ou como se a estrutura determinasse a estrutura das comunidades que
vivem. O estudo de Elias em Winstom Parva possibilitou a comparação entre
localidades de tipos diferentes. Essas comparações mostraram o quanto a estrutura
familiar de um determinado bairro era altamente dependente da estrutura do bairro em
que as famílias moravam. Elias percebeu que, ao falar em termos de uma “estrutura
familiar”, deveria se referir também às estruturas das relações entre as famílias – à
estrutura da vizinhança. Para o autor,
Vez por outra, as famílias são representadas como entidades
autônomas ou até como os elementos fundamentais – os “tijolos” –
com que se constroem as sociedades. Mas até mesmo no âmbito deste
pequeno estudo as diferenças entre os tipos de relações familiares
encontradas nos diferentes tipos de comunidades de cada bairro foram
suficientemente marcantes para sugerir que a idéia da “família” como
unidade básica e primária da sociedade e como essencialmente
autônoma e dispensando explicações constituía uma concepção
equivocada ... Sem dúvida, ela é a unidade primária, do ponto de vista
da criança. Mas, quando se observa que as configurações de pessoas a
que nos referimos como “famílias” variam enormemente, tanto em sua
estrutura quanto em seu tipo, e quando se indaga sobre a razão dessa
variação, logo se descobre que as forças responsáveis por essas
diferenças não se encontram no interior das próprias famílias. Só
podem ser encontradas nas unidades maiores de que elas fazem parte.
É impossível compreender por que as formas predominantes de
famílias eram diferentes nas três zonas de Winston Parva sem fazer
referência ao desenvolvimento e à estrutura dessas zonas e da
comunidade que elas compunham em conjunto.” (Elias, 2000, pp 90)
40
O estudo das redes de relações no bairro também adquire importância no estudo
de Elias (2000). O autor aborda a questão das famílias matrifocais, situadas nas zonas
dos estabelecidos. Estas famílias primavam pelo seu alto status e estimulavam a morada
de seus parentes na vizinhança, o que permitia uma maior coesão e estabilidade para
estas famílias. O estreitamento dos laços sociais e a forte coesão possibilitavam
“favores” como, por exemplo, deixar os filhos na casa do vizinho, o que não acontecia
no loteamento, uma vez que os outsiders não desenvolveram uma rede forte de
relacionamentos.
É justamente a forma como a rede de relações sociais fundamentadas no bairro,
sua conseqüente incidência sobre o processo de escolha e a relação que mantém com a
estrutura social da Gardênia Azul e da Comunidade do Canal do Anil que nos interessa.
Portanto, no próximo capítulo é apresentada a geografia de oportunidades objetivas
nessas localidades para em seguida ser relacionada às relações de interdependência
estabelecidas entre os indivíduos das diferentes localidades.
41
Capítulo 2. Oportunidades Objetivas no Rio de Janeiro
Neste capítulo apresento os estudos de caso realizados e a metodologia utilizada.
Na primeira parte, procuro mostrar a estrutura de oportunidades objetiva no município
do Rio de Janeiro, traçando um panorama do funcionamento do seu sistema de ensino e
revelando suas desigualdades internas e a forma como se apresenta no espaço físico. Na
segunda parte apresento o território onde realizei o estudo de caso e suas características,
dando especial atenção a Gardênia Azul e a Comunidade do Canal do Anil.
2.1 Desigualdades Educacionais no Território
A municipalização do ensino fundamental vem ocorrendo, em diferentes graus
de amplitude, nas várias regiões brasileiras. O município do Rio de Janeiro, devido a
seu passado de capital federal, tem o ensino fundamental praticamente todo
municipalizado13. A estrutura desse sistema municipal de ensino possibilita a escolha
das escolas caso seja a vontade do responsável pelo aluno.
No que diz respeito a distribuição dos alunos, a secretaria municipal de
educação, através de portaria14 que regulamenta a matrícula no Ensino Fundamental,
determina que é de responsabilidade das Coordenadorias Regionais de Educação (CRE)
e das Unidades Escolares o planejamento e organização das matrículas. Dessa maneira,
cabe a E/CRE a alocação dos alunos nas respectivas unidades escolares. No entanto é
possível, de acordo com o mesmo documento, que o responsável pelo aluno escolha a
unidade escolar de preferência, cabendo ao mesmo a procura pela efetivação da
matrícula.
Como já dito acima, dentro da rede municipal carioca, existem notórias
diferenças relativas ao desempenho das escolas. O sistema educacional do Brasil hoje
13
O prazo para a municipalização do Ensino Fundamental no Rio de Janeiro - que, inicialmente, estava
marcado para terminar no ano de 2008 - foi estendido até 2010 (Lei 5.311/08).
14
Portaria E/ATP n°18 disponível no endereço eletrônico
http://www.rio.rj.gov.br/sme/noticias/downloads/portaria18ATP19122007.pdf
42
apresenta um Ideb/ 200515 de 3,8, para a primeira fase do ensino fundamental. A média
para o Rio de Janeiro é de 4,4 pontos. Algumas escolas estão acima desse valor, e outras
muito abaixo.
Vale ressaltar que o desenvolvimento de sistemas nacionais de avaliação
permitiram observar diferenças marcantes na qualidade da educação pública,
especialmente após a implementação do Prova Brasil e do Indicador de
desenvolvimento da educação básica (Ideb).
A literatura costuma apontar para a segmentação escolar no que diz respeito a
diferença entre a qualidade das escolas privadas e públicas. E ainda dentro do sistema
público a diferença entre escolas federais e as demais. Entretanto é interessante notar
que mesmo dentro do sistema público da rede municipal observamos uma distribuição
desigual das escolas com grande diferença nos resultados. O gráfico a seguir, feito com
base nos resultados do Ideb / 2005 para o município do Rio de Janeiro, nos mostra essa
disparidade:
15
O IDEB é um índice que busca reunir num só indicador dois conceitos importantes para a qualidade da
educação: fluxo escolar e médias de desempenho nas avaliações, obtidos através do Censo Escolar e da
Prova Brasil, respectivamente.
43
Gráfico 01: Ideb das escolas no município do Rio de Janeiro em 2005
60
Escolas
50
40
30
20
10
0
2,1 2,5 2,8 3,0 3,2 3,4 3,6 3,8 4,0 4,2 4,4 4,6 4,8 5,0 5,2 5,4 5,6 5,8 6,0 6,2
IDEB 2005 - 4ª serie
Fonte: Ideb
Podemos perceber a variação entre a menor nota – 2,1 – e a maior – 6,2 numa
clara demonstração da desigualdade que opera dentro da rede. Diante de uma rede
insatisfatória qualitativamente, a motivação em buscar melhores escolas acaba sendo a
estratégia encontrada por alguns responsáveis.
No intuito de observar como estas diferenças, que claramente representam
oportunidades objetivas diferenciadas, se distribuem no território resolvemos
georreferenciar esse resultado no mapa abaixo que mostra a média dos Idebs da escolas
localizadas em cada área de ponderação :
44
Mapa 01: Média dos Idebs da escolas localizadas por área de ponderação
Fonte: Observatório das Metrópoles / Ideb / IBGE
O mapa nos ajuda a redimensionar a escala da segregação no Rio de Janeiro.
Conforme afirma Lago (1999) , na década de 1970, havia uma divisão mais clara no
território carioca- a zona sul da cidade com as áreas de maior prestígio econômico e,
conforme se afastasse dessa área, concentração de pobreza, na clássica visão dual da
distância física entre pobres e ricos. O argumento do modelo centro-periferia já não dá
mais conta da estrutura territorial de hoje. Existem áreas periféricas no centro e áreas
centrais na periferia. Neste mapa podemos perceber o quão diferenciado encontra-se a
distribuição das oportunidades pelo território. Os pontos mais claros no mapa são
aqueles que apresentam o melhor índice no IDEB. Quanto mais escura a cor, pior o
índice. A diversificação desse índice espacializado no mapa nos mostra como a cidade
do Rio de Janeiro apresenta um território um tanto quanto diferenciado e um potencial
locus de estudo dos interessados em políticas públicas na área do planejamento urbano e
da educação.
Com a ajuda do mapa, temos uma clara indicação de que o território exerce um
importante impacto sobre as oportunidades objetivas na oferta das escolas.
45
Quando nos referimos a geografia objetiva de oportunidades, falamos da
possibilidade em usufruir dos equipamentos urbanos próximos ao local de moradia. Se
uma das facetas da segregação urbana é justamente a crise da mobilidade que atinge
mais fortemente os trabalhadores informais (Ribeiro, 2007) e se lembrarmos a
afirmação de Small (2004) quando do uso daquilo que chama como serviços essenciais
“residents are unlikely to travel far distances to obtain services they can obtain near
home” (pp. 134) podemos nos questionar a respeito da decisão de alguns pais em
matricular seus filhos longe da residência em busca de melhores escolas.
Entretanto não só as oportunidades objetivas dariam conta de explicar o acesso
diferenciado/segmentado a equipamentos de educação.
2.2 Território e Estratégia
Se o capital social conformado no território pode funcionar como uma potencial
fonte de informações e de recursos devemos então investigar as características desse
território que influenciam na decisão dos indivíduos.
Para isso, optamos em estudar quatro famílias da amostra GERES16 moradoras
do bairro da Comunidade do Canal do Anil, na Gardênia Azul, onde foi possível
perceber a presença de alunos que estudam na escola do entorno, mas também alunos
que se deslocam cerca de 10 km para uma escola no bairro da Barra da Tijuca, também
municipal. A ideia é isolar alguns efeitos que já é sabido exercerem impacto sobre os
processos educativos: escolaridade dos pais, nível socioeconômico, profissão dos pais,
bens econômicos, recursos culturais, entre outros, controlando pelo NSE dos alunos.
Isolando esses efeitos tentamos investigar apenas como o território impacta no processo
de tomada de decisão.
16
O Projeto GERES vem sendo desenvolvido desde 2005, em cinco grande aglomerados urbanos (Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Campinas, Salvador e Campo Grande) e é um estudo longitudinal que
acompanhou, ao longo de quatro anos, a evolução do aprendizado em Leitura e Matemática de uma
amostra de cerca de 21.000 alunos em início do processo de escolarização. O projeto leva em conta os
fatores escolares e sócio-familiares que incidem sobre o desempenho escolar. Foram realizadas cinco
“ondas” ou avaliações de alunos (março/2005, novembro/2005, novembro/2006, novembro/2007,
novembro/2008) onde foram aplicados questionários às famílias, professores e diretores das escolas. Uma
das maiores contribuições do projeto está na sua perspectiva de pesquisa longitudinal e, com informações
referentes ao domicílio, na possibilidade de compreendermos melhor o contexto social no qual as crianças
em idade de escolarização estão expostas.
46
A opção em estudar alunos que estavam cursando a quarta-série do ensino
fundamental deve-se ao fato de que o primeiro segmento do ensino fundamental
costuma receber alunos, em sua maioria, da vizinhança, o que torna sua composição
social altamente dependente da composição social do bairro onde se instalam. (Kaztman
& Retamoso, 2007) De fato, um estudo realizado por Alves (2008) revela que apenas
15% dos estudantes do primeiro segmento do ensino fundamental percorrem mais de
1.500 metros na ida para a escola. Os 85% restantes estudam a menos de 1.500 metros
de casa.
Buscamos responder quais são os motivos que levam os responsáveis desses
alunos em matriculá-los nas escolas em questão: são decisões de cunho contingencial,
ou de fato há um investimento por parte do responsável ao matricular o estudante em
uma determinada escola?
Será que as famílias dos responsáveis pelos alunos tem acesso a informações
oficiais (como a que estamos usando) e fazem uma escolha orientada para a escola? Que
tipo de estratégia de escolarização elas estão adotando? Que recursos disponíveis no
bairro elas tem acesso, em especial no que diz respeito as redes de relações sociais? Será
que esses recursos incluem informações que circulam nas redes de relações sociais
conformadas na vizinhança?
Optamos em realizar entrevistas na casa das quatro famílias selecionadas. Como
em nossa hipótese o território exerce um papel fundamental, apresentaremos nos
próximos itens características relevantes dos bairros da Gardênia Azul e da Barra da
Tijuca. Para isso, é necessário falarmos um pouco das características do processo de
segregação urbana brasileiro para depois detalharmos o caso específico do Rio de
Janeiro.
2.3 Breve histórico do processo de segregação urbana brasileira
Notoriamente o Brasil é um país que concentra a maior parte de sua população
vivendo em cidades. Dados do Censo Demográfico 2000/IBGE mostram que é de 138
milhões a população urbana em oposição a 32 milhões da população rural, uma
proporção de quase 80% de pessoas vivendo em cidades. Em 1940 a população rural era
maior que a população urbana, mas sob o impulso da industrialização e da
desruralização produtiva do campo, o Brasil transformou-se num território
majoritariamente urbano, desigualmente distribuído em suas dimensões territoriais.
47
Por volta de 1990, a inserção brasileira na economia globalizada proporcionou
dinâmicas políticas, econômicas e sociais que reforçaram o processo de fragmentação
social brasileiro e que contribuíram para os efeitos crescentes da segregação urbana. De
acordo com Ribeiro (2007) são três os processos que contribuem para o incremento da
segregação urbana: a segmentação do mercado de trabalho; a crise da mobilidade
urbana que atinge mais fortemente os trabalhadores informais; e a crise do sistema de
previsão de moradias.
A segmentação do mercado de trabalho encontra sua centralidade num vasto
contingente de trabalhadores que exercem ocupações precárias, informais e transitórias,
principalmente no setor de serviços pessoais e domésticos. Como alguma das
conseqüências, vale destacar a natureza instável dos laços com o mercado de trabalho
que fragiliza a função socializadora do trabalho, principalmente entre os mais jovens.
E, ainda, a perversa relação entre inserção no mercado de trabalho e território. Como
afirma Ribeiro (2007): “A segmentação do mercado de trabalho no sentido aqui
utilizado torna os laços com o território o suposto da condição urbana, do direito à
cidade, tanto em termos da integração à redes sociais quanto do acesso a oportunidade
de ocupação e renda.” (pg. 31)
Altamente relacionado a segmentação socioterritorial está a imobilidade urbana
dos trabalhadores diante de um processo de imobilização territorial nas grandes
metrópoles, bloqueando a acessibilidade a territórios onde se concentram as
oportunidades de ocupação e de renda.
A conseqüência da combinação desses dois processos é a pressão pela ocupação
das áreas mais centrais gerando a segmentação sócio-territorial das metrópoles e a
conseqüente expansão do habitat precário onde se concentram as camadas de maior
renda. Daí o crescimento das favelas como a expressão da solução para os problemas da
segmentação do mercado de trabalho, da imobilidade urbana e do déficit na provisão de
moradias. De fato, como afirma Ribeiro:
A estrutura demográfica resulta das disputas entre classes e
grupos pelo uso e ocupação do território da metrópole, cujo
fundamento é o acesso aos recursos urbanos que se acumulam. Estes
recursos incidem sobre a qualidade de vida das pessoas, quando se
trata de bens de consumo coletivo (equipamentos e serviços urbanos),
48
e sobre as possibilidades de auferir renda monetária, quando se trata
do sistema de infra-estrutura urbana que permite a mobilidade da
população entre os locais de residência e de trabalho. Da dinâmica de
apropriação destes recursos resulta a divisão social do espaço,
comumente conhecida como segregação urbana. (Ribeiro, 2001 , p.
03)
2.4 Particularidades que definem o modelo carioca de segregação urbana
O Rio de Janeiro conforma um modelo de segregação sócio-territorial marcado
pela combinação entre proximidade física e distância social entre as diferentes classes
sociais. Como afirma Ribeiro & Kaztman (2008): “Trata-se de um caso excepcional de
uma cidade-metrópole, ocupando lugar de destaque no ranking do sistema urbano
mundial, mas na qual não ocorreu o processo clássico de separação territorial dos
grupos e classes sociais, próprios das grandes cidades da era da industrialização.”
A dinâmica demográfica da cidade do Rio de Janeiro combina traços de grandes
cidades dos países pouco desenvolvidos com características que marcam importantes
metrópoles dos países ricos. Se, por um lado, algumas das áreas da periferia carioca
crescem fortemente, por outro, bairros das áreas centrais e suburbanas conhecem
movimentos de perda de população, numa espécie de movimento do “núcleo para a
periferia”. (Ribeiro & Santos Junior, 2007)
As áreas chamadas de subúrbio próximo e subúrbio distante17 mostram
comportamento similar às áreas centrais da cidade. Já a Zona Oeste e os bairros da
Região Administrativa de Jacarepaguá e Barra da Tijuca mostram-se claramente como
as principais frentes de expansão do município, com elevados índices de crescimento.
Os dados demográficos do censo 2000 indicam que a R. A. de Jacarepaguá18
cresceu à taxa de 16%, na década de 1990, o equivalente a cerca de 80 mil novos
habitantes. Esse marcante aumento populacional na segunda metade da década passada
é resultante das altas taxas de crescimento verificada em alguns bairros, principalmente
17
Subúrbio Próximo: Portuária, São Cristóvão, Ramos, Inhaúma, Ilha do Governador, Jacarezinho,
Complexo do Alemão e Maré . Subúrbio distante: Penha, Irajá, Anchieta e Pavuna.
18
Anil, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Jacarepaguá, Pechincha, Praça Seca, Tanque, Taquara,
Gardênia Azul e Vila Valqueire
49
na Gardênia Azul (49%).19 Voltaremos a falar mais adiante do crescimento da Gardênia
Azul, mas vale dizer que chama a atenção de quem anda pelas ruas do bairro o sem
número de construções financiadas principalmente pela milícia que atua na região,
como foi dito pelos moradores e por jornais cariocas.
Os dados acima confirmam a tendência a estagnação demográfica das áreas
centrais e a emergência de pólos dinâmicos de expansão urbana na região oeste da
cidade.
O mapa abaixo, com destaque para o bairro Gardênia Azul, nos mostra a
espacialização do convívio entre as diferentes classes sociais. Ele é feito com base na
tipologia socioespacial elaborada pelo Observatório das Metrópoles que se caracteriza,
de maneira sucinta, como uma hierarquização social do espaço da cidade do Rio de
Janeiro construída a partir de variáveis relativas a ocupação das pessoas residentes na
cidade carioca.
Mapa 02: Mapa da Tipologia Socioespacial do Município do Rio de Janeiro por ÀREA-IPPUR – 2000
19
Informações retiradas do site
http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/interna.php?n0=1&n1=4&n2=6&rn0=8&rn1=1
50
O mapa nos mostra uma forte relação entre estrutura social e divisão espacial.
Uma primeira evidência diz respeito a concentração das categorias “superiores” na zona
sul, área que possui maior concentração de empregadores e trabalhadores dirigentes,
intelectuais. A área se estende pela parte central da cidade e parte da zona oeste, muito
por conta do bairro da Barra da Tijuca. Poderíamos falar da formação de um espaço
central que imporia distâncias sociais até as periferias cariocas. Contudo, é interessante
notar que duas situações rompem com essa lógica: a primeira é a presença de traços
médio-superiores e médios na zona oeste da cidade bem como em alguns bairros do
subúrbio carioca, o que expressa uma forte tendência a diversificação social de parte da
periferia; a segunda evidência ocorre da presença de favelas – tipo popular e operário –
nas áreas superiores, característica do modelo carioca de segregação urbana.
No destaque do mapa, o bairro Gardênia Azul, é praticamente tomado pela
tipologia popular. No entanto, a sua margem direita apresenta uma mancha mais escura,
da categoria popular inferior, a última das tipologias socioespaciais. É nessa mancha,
que fica a Comunidade do Canal do Anil. Vejamos agora um pouco mais sobre o bairro
e a comunidade que faz fronteira com ele.
2.5 Gardênia Azul
O bairro Gardênia Azul fica na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro e
pertence a XVI Região Administrativa de Jacarepaguá que conta ainda com mais dez
bairros: Anil, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Jacarepaguá, Pechincha, Praça Seca,
Tanque, Taquara e Vila Valqueire.
A Região de Jacarepaguá é limitada pelas encostas atlânticas do Maciço da
Pedra Branca, a leste, pelo Maciço da Tijuca, a oeste, pelas lagoas de Jacarepaguá,
Camorim e Tijuca, ao sul, e pela Serra do Valqueire, ao norte. Estas lagoas formaram-se
após um processo de assoreamento marítimo que resultou na restinga onde se situa a
Região Barra da Tijuca. A Região Jacarepaguá apresenta alta densidade de drenagem,
formada pelos rios Guerenguê e Passarinhos provenientes do Maciço da Pedra Branca,
pelo Rio Grande (maciços da Tijuca e Pedra Branca) e pelos rios Pedras e Anil (Maciço
da Tijuca).
51
2.5.1 Um pouco da história de Jacarepaguá
Até as primeiras décadas do século XX a Região de Jacarepaguá ainda era zona
rural, no início com uma agricultura de exportação e, posteriormente, como fornecedora
de alimentos à população da metrópole que já se mostrava como potencial mercado
consumidor.
Nascida de antigas sesmarias doadas a grandes senhores pelo rei de Portugal, a
Baixada de Jacarepaguá foi, em grande parte, domínio da sesmaria de Estácio de Sá. No
entanto, também faz parte desta história não apenas os parentes de Estácio de Sá mas
também a família do juiz Teles de Menezes e dos Taquaras, seus herdeiros. Em 1824 o
engenho da Taquara pertencia ao comendador Francisco Pinto da Fonseca, delegado de
Jacarepaguá, e a Dona Maria Teles de Menezes, pais do futuro barão de Taquara. Além
do engenho tradicional, o Barão de Taquara (falecido em 1918), possuía ainda o
engenho d’água, onde seu filho, o vereador e médico Francisco Pinto da Fonseca, o
Pitutinha, criaria cavalos e fundaria o bairro da Gardênia Azul. (Brasil, 1965)
Até meados do século XIX dominou, nesta região, a monocultura da cana-deaçúcar, uma agricultura de baixada que visava a exportação. Com o início do ciclo do
café e a exigência de solos bem drenados e arejados, a lavoura subiu para as encostas
das serras, principalmente de Campo Grande, deixando a região numa prolongada fase
de estagnação econômica. As atividades na região durante esse período foram a
exploração do carvão e da lenha, indústrias caseiras e pequenas lavouras de
subsistência. O relato desta época é muito bem feito por Brasil (1965) que, ao falar do
então chamado “sertão carioca”, o faz de maneira minuciosa, ilustrando a evolução
desse Jacarepaguá antigo, de fazendas e engenhos tão prósperos a decadência do açúcar
e do café. Centenas de oleiros, tamanqueiros, vassoureiros e outros pequenos
comerciantes deram vida a uma indústria doméstica variada que só desapareceu após
começarem os grandes loteamentos.
Na terceira década do século XX a região passa a ser produtora de banana
destinada ao mercado externo, possível por conta da drenagem e do saneamento das
baixadas ocorridos no início da década de 1930, o que possibilitou também o cultivo de
hortaliças, ainda para abastecimento da cidade do Rio de Janeiro.
52
Curiosamente, as mesmas obras de engenharia que possibilitaram a agricultura
na região, provocaram a expulsão do cultivo da banana e das hortaliças para dar lugar a
pequenos lotes que passaram a ser vendidos aos habitantes da cidade.
Dessa forma a região passa a ser incorporada como “franja urbano-rural” da
cidade do Rio de Janeiro e por volta da década de 50, começa a ocorrer sua ocupação,
de forma gradativa, acompanhando principalmente o desenvolvimento dos meios de
transporte como o trem e o bonde. (Fontes, 1984)
2.5.2 Histórico de Ocupação da Gardênia Azul
Em 1953, com o loteamento e a venda das terras de José Padilha Coimbra, que
iam da Estrada do Engenho D’Água até a Avenida Tenente Coronel Muniz de Aragão,
teve início a ocupação da Gardênia Azul. O nome do bairro surgiu em função das
plantas ornamentais que José Padilha cultivava em seu jardim. Neste período, o pedreiro
Severo Silveira Maciel construiu grande parte das casas na região tornando-se,
posteriormente, líder comunitário. No início da década de 80, houve uma invasão de
terras ao final da Avenida Tenente Coronel Muniz de Aragão (Vale, 2006). Essa
invasão deu origem a uma comunidade de baixa renda, que se diferencia dos demais
aspectos da Gardênia Azul.
A Gardênia Azul apresenta-se com um bairro fundamentalmente residencial com
construções, em sua maioria, de um pavimento que ocupam o terreno todo. No entanto,
o crescimento na região é visível, muitas construções em andamento e novos prédios
surgindo na região, financiados, de acordo com os moradores, pela milícia que atua na
zona oeste.
Chama a atenção no bairro a grande quantidade de pequenos comerciantes que
atendem a população local: são farmácias, padarias, armarinhos, quitandas, lojas de
material de construção, salões de beleza, pequenos restaurantes, bares. Muita das vezes
esse comércio é aberto no primeiro andar das casas, como uma continuação de seus
lares.
No ano de 1999 existiam cinco grandes indústrias no bairro. A fábrica de Linho
e a fábrica da Antártica fecharam e hoje existem apenas três: Guaravita (setor de
bebidas), Canonne (setor alimentício / confeitaria) e a Beton. Alguns funcionários são
moradores na região mas, de acordo com o gerente de produção da Canonne, esse
53
número vem caindo substancialmente, principalmente por conta da automação da
indústria e de sua consequente necessidade de mão de obra especializada.
Na Gardênia existe apenas uma escola municipal de ensino fundamental, a que
chamamos aqui de Escola da Gardênia Azul. No anil, bairro vizinho, existem mais cinco
escolas municipais de ensino fundametal: Marechal Canrobert Pereira da Costa, Victor
Hugo, Naturalista Augusto Ruschi, Jorge Amado e Maria Florinda Paiva da Cruz. Para
cursar o Ensino Médio é necessário um deslocamento maior para Freguesia, Barra da
Tijuca, Taquara ou Rio das Pedras.
2.5.3 A Comunidade do Canal do Anil
A descrição do bairro até agora ficou no que podemos chamar da parte “nobre”
da região. Existem notórias diferenças entre duas partes da região da Gardênia Azul. Na
parte de acesso ao bairro, a parte “nobre”, encontram-se construções regulares,
pavimentação, ruas nomeadas e numeradas...
Caminhando pelo bairro, na sua parte final, começam a aparecer construções
apenas de tijolo misturadas com casas pintadas e com fachada. O limite não é bem
delimitado mas, quando menos se espera, já estamos na comunidade do Canal do Anil,
como é conhecida a parte mais desprivilegiada que faz fronteira com o bairro. É nessa
comunidade que escolhemos os estudos de caso. O acesso a ela pode ser feito pela
Avenida Canal do Anil ou pela Rua Izabel Domingues.
Imagem 01: Gardênia Azul, Comunidade do Canal do Anil e Comunidade Jardim do Anil
54
Vale (2006) em estudo sobre o desenvolvimento local na Comunidade do Canal
do Anil fez um levantamento a respeito do início e formação da comunidade. Constatou
que o histórico de ocupação dessa parte do bairro é relativamente recente. Em 1957
havia apenas duas casas feitas de sapê na margem do rio, que era apenas um fio de água
límpida com cerca de cinquenta centímetros de largura que desaguava na lagoa de
Camorim. O caminho até essas casas era estreito e de terra mas foi se alargando
conforme a comunidade foi crescendo. Hoje esse caminho é a Avenida Canal do Anil. O
riacho transformou-se no rio por onde trafegavam canoas e barcos em direção a lagoa.
Em 1966 a margem esquerda do rio foi loteada e vendida. A comunidade começou a
crescer, primeiro pela margem esquerda e depois pela margem direita do rio. No final da
Avenida Canal do Anil formou-se uma colônia de pescadores com sede na Rua Melo
onde hoje se encontra a Associação de Moradores. A sede da colônia foi transferida
para o final da Avenida Canal do Anil.
Com a coordenação de dois líderes comunitários, foi construída a Capela de São
Pedro, padroeiro dos pescadores. Na década de 1970 havia uma festa em homenagem ao
santo e os pescadores enfeitavam seus barcos, navegavam pelo rio até a lagoa em
direção a Barra da Tijuca. Os moradores participavam da festa montando barraquinhas e
ouvindo música.
Em 1976 houve um novo loteamento de terrenos que deu origem ao lugar hoje
chamado de Chico City. No entanto, tratava-se de uma propriedade privada e em 1979 o
governo quis desapropriar as casas. Aconteceu então a primeira grande mobilização da
comunidade. As pessoas fizeram barricadas para que as máquinas da prefeitura não
passassem e fizeram uma comissão para negociar com o prefeito Julio Coutinho e com
o governador Chagas Freitas. A comunidade conseguiu evitar o despejo dos moradores.
A água e luz chegam a comunidade em por volta de 1967, por intermédio de um
líder comunitário que obtinha lucro com os serviços. Mobilizadas em acabar com a
lucratividade do líder, em 1977, 20 mulheres se uniram e, em 1980 fundaram a
Associação de Moradores da comunidade. Entre 1982 e 1986, durante o governo
Brizola, a Associação conseguiu que o fornecimento de luz e água fosse feito direto
pelas companhias.
A região é considerada uma área de risco para construção por ser insalubre e
estar sujeita a inundações. Em 1996 houve uma grande enchente na comunidade do
55
Canal do Anil que causou inúmeras perdas para os moradores. Após a enchente a
prefeitura iniciou uma obra de alargamento e canalização do rio Anil. Para dar
continuidade a obra, foi necessário a remoção das casas do lado esquerdo do rio ao
longo de toda a Avenida do Canal do Anil. Como em toda obra que envolve remoção
das famílias já estabelecidas no local, houve muita dúvida e insegurança por parte dos
moradores afetados, pois a prefeitura indenizaria as pessoas pela casa. Com o valor
conseguido era impossível a compra de outro imóvel na região. Após a organização dos
moradores, a prefeitura optou em construir novas casas num terreno próximo, onde hoje
é a Comunidade do Jardim do Anil. Alguns aceitaram a indenização e saíram da
comunidade, outros juntaram um pouco mais de dinheiro e por lá permaneceram e
outros se mudaram para as novas casas, entregues em 2002. A associação de moradores
da Comunidade do Jardim do Anil está de tal forma organizada que possui um site na
internet, com atualizações frequentes. Nele podemos ver o histórico de construção da
Associação e as atividades que desenvolvem no local como aulas de futebol e atividades
para a terceira idade. A Associação é declarada como pessoa jurídica e conta ainda com
estatuto que regulamenta a associação.20 Essa nova comunidade possui melhor infraestrutura de água, esgoto, luz e asfalto. As casas são bem construídas, as ruas asfaltadas,
tendo uma ampla área verde onde são realizadas as atividades da associação da
Comunidade do Jardim do Anil.
Cruzando o Jardim Anil, chega-se ao Jardim Clarice, um condomínio de alto
padrão habitacional e que permite o acesso a Estrada de Jacarepaguá. Existe uma grande
diferença entre as comunidades apesar de sua proximidade geográfica como podemos
observar na foto acima.
Para pegarem o transporte coletivo regular, é necessário que os moradores da
Comunidade do Canal do Anil percorram cerca de 1,5 Km para chegar ao centro da
Gardênia Azul, ou a Estrada do Engenho D’água ou ainda a Avenida Ayrton Sena,
lugares de ponto dos transportes regulares da cidade. Na falta de transporte perto, as
kombis e vans ocupam um lugar de destaque na mobilidade dos moradores. O
movimento nesses transportes é regular, fazendo o trânsito na Rua Izabel Domingues e
na Avenida Canal do Anil bastante intenso. Como não existem calçadas nem ciclovias
na região, o trânsito de pedestres tem que ser feito em meio a vans, kombis, carros e
20
Informações retiradas do site www.amaja.org.br
56
muitas, muitas bicicletas. Existe um comércio local que atende os moradores da
Comunidade do Canal do Anil e que se distingue daquele encontrado na Gardênia Azul.
Nesse caso são comerciantes de menor porte, a maioria biroscas, alguns salões de
cabeleireiro, casas de material de construção e de gêneros alimentícios. Para outros
serviços a população recorre ao comércio do centro da Gardênia, do largo do Anil e, em
último caso, da Freguesia.
A comunidade do Canal do Anil cresceu ao longo da margem do Rio Anil. Sua
expansão, atualmente, segue em direção a Avenida Ayrton Senna. No estudo que fez
sobre a comunidade, Vale (2006) identificou cinco subdivisões: Avenida Canal do Anil
(início), Avenida Canal do Anil (meio, na altura da Rua Melo), Avenida Canal do Anil
(final), Chico City e São Sebastião. No levantamento realizado na época de seu estudo,
Vale (2006) contabilizou vinte e cinco mil moradores na região.
As casas localizadas na Avenida Canal do Anil possuem maior valor econômico.
As pessoas que moram na primeira parte da Avenida não gostam de ser relacionadas aos
moradores da Comunidade do Canal do Anil, buscando realizar suas atividades no
centro da Gardênia Azul ou no Anil. Para um observador que tenha chegado
recentemente na comunidade, fica difícil estabelecer divisões dentro dessa comunidade.
Ela lembra muito o estudo feito por Elias (2000) em Winston Parva: assim como
naquele estudo, aqui temos uma forma distinta de estratificação social. As diferenças
entre a comunidade dificilmente podem ser taxadas como diferenças de classe. Na
verdade, podemos falar de diferença na posição social do lugar. Numa tentativa de
hierarquização dos valores dos imóveis na região, de acordo com os moradores, é a
seguinte: Avenida Canal do Anil, início, meio e fim; Chico City; e São Sebastião. Esta
última foi a de ocupação mais recente e, talvez por isso, trate-se da parte mais
desprivilegiada da região.
Apesar de ser aparentemente uma zona uniforme, na Comunidade Canal do Anil
é notável a hierarquia interna de status na região. Contem “subzonas de status superior”
e outras de “status inferior”, apesar de não ser possível presumir de antemão quais
famílias ocupam posição mais elevada que outras residentes na região: “Ali como
noutros lugares, excetuadas as camadas mais alta e mais baixa, a classificação
hierárquica das famílias e indivíduos desafiava qualquer tentativa de simples
representação numérica” (Elias, 2000).
57
Mais adiante, na parte do trabalho de campo, retomo o caso da Comunidade do
Canal do Anil. Por hora, vejamos sinteticamente as características do bairro do Anil e da
Barra da Tijuca, onde ficam as escolas também objeto deste estudo.
2.6 O bairro do Anil
O Anil é um bairro de grandes contrastes, dividido entre pequenas favelas e vilas
de baixa renda e entre condomínios com elevado padrão econômico, nos moldes dos
conhecidos na Barra da Tijuca.
Assim como quase toda a região de Jacarepaguá, no início do século XVIII, o
Anil foi tomado pela plantação de café. Antes, porém, o bairro era tomado por arbustos
nativos, as anileiras, que produziam uma tinta azulada através de seus frutos, daí o nome
do bairro.
Contando com uma população de aproximadamente 21 mil habitantes, o bairro
ainda reserva ares coloniais em seu interior. Suas vias principais são a Estrada do
Engenho D’água e a Estrada de Jacarepaguá e tem em seu limite a Estrada Coronel
Muniz Aragão. É justamente nessas vias e no seu entorno que fica a maior parte do
comércio do bairro. São bancos, farmácias, grandes redes de supermercados, correios,
postos de gasolina, entre outros. A população da Gardênia Azul e da Comunidade do
Canal do Anil usualmente recorrem ao comércio do Anil.
De acordo com a tipologia elaborada pelo Observatório das Metrópoles, o Anil
apresenta concentração da categoria “média”. A renda média da população moradora do
Anil é de 8 salários mínimos e a taxa de alfabetização no bairro fica na média entre 95 a
96%. Os bairros da Cidade de Deus, Jacarepaguá e Gardênia Azul possuem a menor
taxa de alfabetização, de 84 a 87%.21
O mesmo quadro feito para população com nível superior revela que o Anil
apresenta uma concentração de 15 a 23 % ao passo que a Gardênia Azul apresenta uma
variação de 2 a 3% de pessoas residentes com nível superior, marca equivalente apenas
a Cidade de Deus.
21
Informações extraídas do Plano Estratégico da Cidade, em que foram analisados os dados extraídos de
fontes oficiais, de reuniões regionais e da Pesquisa de Percepção da População.
http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/
58
Na conversa com os moradores da Comunidade Canal do Anil, era notória a
posição que o Anil ocupava na percepção dos entrevistados: na maior parte dos casos, a
aspiração para uma vida melhor era primeiro a mudança para o centro da Gardênia Azul
e depois para o Anil, bairro de “gente com dinheiro e mais bem cuidado”.
A seguir, a caracterização da Barra da Tijuca, bairro em que se localiza a escola
para onde vão alguns dos alunos da Comunidade do Canal do Anil.
2.7 Barra da Tijuca
A Barra da Tijuca é um bairro que concentra uma população com alto nível
socioeconômico, grandes shoppings e condomínios de casas e prédios de elevado
padrão de sofisticação. A região é de recente ocupação22 e é caracterizada,
principalmente, pela grande quantidade de condomínios fechados.
A renda média no bairro fica entre 24 a 46 salários mínimos, uma das maiores
taxas da cidade. A população residente que tem nível superior é de 28 a 57%23, taxas
consideravelmente superiores quando comparadas aos bairros por nós estudados.
Diversos estudos já apontaram para o aspecto autossegregador do bairro e para o
surgimento de uma nova espacialidade urbana. Trata-se de um lugar marcado pela
privatização do espaço público, a partir da presença de condomínios fechados das
camadas sociais mais abastadas. Caldeira (1997) fala de enclaves fortificados, que seria
uma alternativa para a vida urbana das camadas superiores e que estabeleceria uma nova
sociabilidade e um novo estilo de vida. Nesse novo estilo de vida, baseado num
movimento de autossegregação das camadas sociais superiores, é notório o conteúdo
social homogêneo que funciona de acordo com dinâmicas próprias e possui em comum
um estilo de viver que difere do restante da cidade.
Os espaços fechados dos condomínios residenciais da Barra revelam um novo
padrão de organização espacial urbano, que se fundamenta na qualidade de vida e na
segurança para sua reprodução e valorização imobiliária.
Nesse novo modo de viver, existe uma lei que que regulamenta a cessão de área
e obrigação de construção de escola como condição para o licenciamento de
grupamento de edificações, ou condomínio fechado.24
22
Na década de setenta, começa a construção de condomínios residenciais horizontais e verticais na
região
23
Informações retiradas do Plano Estratégico da cidade do Rio de Janeiro
59
2.8 Gardênia Azul, Anil e Barra
Como visto acima, estamos trabalhando com oportunidades no território em três
localidades: Gardênia Azul, Anil e Barra da Tijuca. Já vimos como esses bairros
diferem consideravelmente entre si, formando uma hierarquização em suas
características sociais e econômicas que ficaria assim: Gardênia Azul, o mais pobre dos
bairros; Anil, que possui ainda uma diferenciação interna bastante forte e Barra da
Tijuca, quase homogeneamente um bairro de alto prestígio econômico.
Podemos observar também a mesma hierarquização no que diz respeito ao clima
educativo nessa região no mapa abaixo. Nele, observamos que a Gardênia Azul aparece
com o pior índice, seguido pelo Anil e Barra da Tijuca.
Mapa 03: Mapa de detalhe da Tipologia Socioespacial segundo o Clima Educativo – RMRJ por APOND
– 2000
Fonte: Observatório das Metrópoles
Mais uma vez nos indagamos a respeito do por que da opção em matricular
alunos em uma escola longe da residência se o bairro da Gardênia Azul oferece o ensino
24
A lei existe desde 1976 no Regulamento de Zoneamento aprovado pelo Decreto N. 322 de 3 de março
de 1976, que sofreu modificações nos artigos referentes a essas obrigações em 1984.
60
fundamental na escola do bairro. Será que os responsáveis pelos alunos tem acesso a
informações oficiais (como a que estamos usando) e fazem uma escolha orientada para
a escola? Será que trata-se de informações que circulam nas redes de relações sociais?
Ou será que estamos diante de escolhas de cunho contingencial, ou seja, trabalho no
lugar que tem escola perto e aproveito e matriculo meu filho nesta escola?
Essas perguntas podem ficar inexplicáveis se esta investigação ficasse restrita às
medições estatísticas de variáveis. No entanto, foi imprescindível fazer uso de tais
medidas para chegarmos ao trabalho de campo em questão. Com a ajuda dos dados
fornecidos pelo GERES, foi possível averiguar a grande incidência de alunos moradores
da Gardênia Azul e da Comunidade Canal do Anil que estudavam na escola da Barra e
na do Anil.
O mapa que segue mostra o lugar de moradia dos alunos que estudam na escola
da Barra e na escola do Anil. Os pontos verdes no mapa são os alunos que estudam na
escola da Barra e os pontos azuis os que estudam na escola do Anil. Podemos observar a
concentração dos estudantes da escola da Barra na Gardênia Azul.
61
Mapa 04: Localização dos Alunos e Escolas do Anil e da Barra da Tijuca
Fonte: Observatório das Metrópoles / GERES / IBGE
O mapa nos mostra também a concentração dos chefes de família com até 4 anos
de estudo por áreas de ponderação. A Gardênia Azul apresenta o pior desempenho, com
uma taxa que gira em torno de 20 a 32% dos chefes de família com até 4 anos de estudo.
Já no Anil e na Barra da Tijuca esse índice cai para 1,3 a 6,5%.
Podemos observar nele a geografia objetiva de oportunidades escolares disposta
em cada bairro. No Anil existem quatro escolas e na Gardênia Azul apenas uma. Como
não temos informações para todas as escolas no banco de dados do Prova Brasil25
25
Os motivos para que não haja aplicação do Prova Brasil: A escola (ou a rede) tem que ter participado da
Prova Brasil, já que essa participação se dá por meio de adesão das redes (estadual ou municipal) de
educação 2. Número mínimo de alunos matriculados nas séries avaliadas. Em 2005, esse número mínimo
era de 30 alunos. Em 2007 foi de 20 alunos por série. 3. Escolas localizadas em rede rural não participam
da avaliação. 4. Municípios devem ter redes próprias de ensino nas séries avaliadas pela Prova Brasil. 5.
Número significativo de alunos participantes da Prova Brasil com relação ao número de matriculados na
série. As escolas em que a participação dos alunos no dia da aplicação do exame foi muito pequena não
tiveram seu desempenho divulgado.
62
utilizamos o banco de dados do Prova Rio de Janeiro26. Abaixo tabela que indica as
notas das escolas do Barra da Tijuca, da Gardênia Azul e do Anil.
Tabela 01: Desempenho escolas Barra, Gardênia Azul e Anil
Escola
Escola da Barra da Tijuca
Escola da Gardênia Azul
Escola do Anil
Matemática
206,355
193,7909
186,0764
Português
202,1945
174,6399
160,2497
Fonte: Banco de dados do Prova Rio de Janeiro
Notamos que a que apresenta um pior desempenho é a escola do Anil.
Curiosamente, os casos escolhidos dos alunos que estudam nessa escola tem em seus
responsáveis a percepção de que esta é uma escola melhor do que a da Gardênia Azul.
Não é o que nos mostra a tabela. De outra maneira, a escola da Barra apresenta um
resultado significativamente superior aos demais. Mais a frente voltaremos a falar sobre
esse aspecto.
A escola da Barra se localiza dentro de um condomínio de alto padrão de casas e
prédios. A escola do Anil fica em uma tranquila rua, bem perto da Gardênia Azul. Por
sua vez, a escola localizada neste bairro fica em frente a um campo de futebol no início
do bairro. (ver fotos 1, 2 e 3)
A escola do Anil possui uma estrutura diferente das escolas da região. O
primeiro aspecto a chamar a atenção é o muro baixo da escola que também não possui
grades. Localmente conhecida como “brizolinha”, a escola é pequena mas reserva um
pequeno pátio em seu interior para os intervalos dos alunos. O alunado é composto por
moradores do Anil, da Gardênia Azul e da Comunidade do Canal do Anil. A maior
proporção fica entre os moradores do próprio bairro.
Já a escola da Gardênia Azul chama a atenção para a grande quantidade de
carros parados no portão da frente, indicando que os professores certamente não são
moradores do bairro. Os muros da escola são altos e o portão está sempre fechado. Bem
em frente a escola fica uma outra escola, particular de ensino fundamental. O barulho é
grande na rua e os alunos da escola municipal costumam usar o campo em frente a
26
Nesse banco dispomos das notas de português e matemática aplicadas a alunos da rede municipal em
2001.
63
escola para a prática da educação física. Seu público é formado majoritariamente por
crianças da Comunidade do Canal do Anil e, em menor proporção, da Gardênia Azul.
Além de um elevado desempenho nas diversas avaliações realizadas para a
escola da Barra, sua infra-estrutura e equipamentos estão em ótimo estado. (Zuccarelli,
Christovão & Cid, 2007). A escola atende a alunos de diversos bairros do município que
exercem uma situação periférica à Barra. No entanto é notória a concentração desses
alunos nos bairros do Anil e da Gardênia Azul.
Nos indagamos a respeito dessa relativa aglomeração nesses dois bairros, como
podemos notar no mapa acima. Será que diz respeito a formação de uma rede de
relações concentrada nessa área, possibilitada pela acumulação do capital social
disponível dos bairros? Faz parte da geografia subjetiva de oportunidades possibilitada
por esse acesso ao capital social?
Qual o tipo de informação que circula nas redes? Quem tem acesso a elas?
Como são internalizadas essas informações pelos indivíduos? Para responder essas e
outras questões optamos em realizar um estudo qualitativo. No próximo capítulo
exploraremos esse estudo e a forma como a geografia subjetiva de oportunidades afeta a
escolha das escolas.
64
Capítulo 3 – Geografia de Oportunidades e Escolha do Estabelecimento de
Ensino
Neste capítulo apresento os estudos de caso realizados nas quatro famílias
moradoras da Comunidade do Canal do Anil. O objetivo principal foi investigar de que
forma as redes de relação estabelecidas no bairro podem influenciar na decisão dos
responsáveis ao procurarem a escola para matricular seus filhos. Para melhor elucidar a
questão, optei por entrevistar quatro famílias que morassem próximas mas que
experimentam a vivência no bairro de forma diferente.
Duas famílias matricularam os filhos na escola da Barra da Tijuca e duas na
escola do Anil.
Conforme visto anteriormente, o problema da definição do estabelecimento
escolar é um fenômeno emergente no Brasil uma vez que essa definição, para os pais da
geração passada, não se colocava. Uma organização mais simples das redes escolares
(uma rede mais homogênea) limitava a necessidade de se fazer escolhas. No entanto,
tendo em vista as novas políticas educacionais e a crescente heterogeneidade das redes
de ensino, as famílias agora encontram um campo maior de possibilidades para fazer a
escolha do estabelecimento de ensino. (Nogueira, 1998)
É justamente esse o caso das famílias entrevistadas: diante de um campo maior
de possibilidades, algumas optam em matricular seus filhos longe de casa em busca de
uma “escola melhor” ao passo que outras famílias matriculam naquela mais perto de
casa. Neste caso, tendemos a achar que a escola mais próxima a residência é aquela que
fica no próprio bairro. Entretanto, a diferença da distância percorrida para chegar tanto
na escola da Gardênia Azul quanto na do Anil é pequena: de um ponto central da
Comunidade do Canal do Anil até a escola da Gardênia Azul são aproximadamente
1.400 metros; até a escola do Anil 1.500 metros.
3.1 Observações sobre o campo
Para elucidar as questões postas pelo nosso estudo, optamos em coletar os dados
através do trabalho de campo onde, além das entrevistas com os responsáveis pelos
alunos selecionados, foi feito um estudo sistemático sobre o bairro em questão com a
ajuda de alguns depoimentos feitos pelos moradores da região.
65
A preocupação em desvendar os fenômenos urbanos sob o viés da antropologia
vem de uma época recente: de acordo com Velho (2003), foi sobretudo a partir da
década de 1970 que se incorporou, de forma mais sistemática, a cidade ao campo de
investigação antropológico. Observar o familiar tornou-se um dos problemas de ordem
teórico-metodólogia que se impunha aos pesquisadores que investigavam universos tão
próximos ao seus. Na verdade, é extremamente importante o exercício do pesquisador
de estranhar o familiar mesmo havendo a dificuldade de desnaturalizar noções,
categorias e impressões.
O fato é que hoje já são inúmeros os estudos sobre o próximo, o amigo, o
vizinho. Nesse sentido, a proposta de um estudo de cunho etnográfico torna-se viável
para o entendimento da cidade como um todo: deixa-se de lado a perspectiva macro,
que pensa a cidade como “ resultado de forças econômicas transnacionais, das elites
locais, de lobbies políticos, variáveis demográficas, interesse imobiliário” (Magnani,
2002) e privilegia-se as redes de sociabilidade e a apreensão de determinados padrões
de comportamento de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem da
cidade e depende de seus equipamentos. Dessa forma, alguns aspectos da dinâmica
urbana que passariam despercebidos das visões mais globais da cidade, podem aqui ser
apreendidos através do viés antropológico e da mudança de foco que ele possibilita.
Aquela dicotomia que nos grandes centros urbanos opõe os indivíduos e as instituições
urbanas aqui serão postas de lado.
3.2 Impressões sobre a Gardênia Azul
As informações que eu tinha a respeito do bairro Gardênia Azul eram aquelas
recolhidas no Observatório das Metrópoles que me informava que tratava-se de um
bairro popular e que, pela visualização do satélite, apresentava diversas construções
irregulares. Um colega de pesquisa foi comigo em minhas primeiras idas ao campo, não
apenas pelo seu interesse acadêmico, mas também para oferecer uma ajuda caso
houvesse maiores complicações ao longo do estudo.
Procurei na internet informações sobre o bairro e rapidamente encontrei o
contato de uma Igreja católica na região. Diogo, meu companheiro de campo, entrou em
66
contato com a Igreja e marcamos o encontro na manhã de uma quarta-feira. Procurei no
google maps27 a melhor forma de chegar lá (depois descobri que era a pior).
Nos encontramos com a secretária de escola que foi bastante receptiva as nossas
questões. Nos disse que poderíamos andar livremente pelo bairro pois, apesar de ser
pobre, não oferecia riscos a quem não conhecia a região e nem era conhecido por seus
moradores. Logo em seguido o padre da Igreja reforçou a indicação da secretária.
Partimos então para uma primeira impressão do bairro tentando conhecer toda
sua área. Como o bairro não é muito grande (aproximadamente 1,23 Km²)28,
procuramos andar por toda sua extensão.
A primeira coisa a chamar a atenção no bairro é a quantidade de construções que
surgem na paisagem urbana. São inúmeros prédios, com no máximo 5 andares, a
maioria kitinets que se concentram na parte mais central do bairro (foto 04). Quase no
final do estudo, questionei um senhor que mora há mais de 25 anos no bairro a respeito
das construções. Sua resposta: “ É um bom negócio caso você tenha um dinheiro
guardado. Compra o terreno, o pessoal financia e depois você aluga. Pode alugar por
R$250,00 até R$300,00, dependendo do estado do imóvel. Pode até se aposentar e viver
de renda.” O pessoal ao qual o morador se refere é a milícia da região que financia a
construção dos novos prédios.
As milícias são bandos armados, grupos paramilitares formados em geral por
policiais da ativa ou ex-policiais, bombeiros, entre outros. Constituem um novo tipo de
domínio nas favelas. Impõe-se pela força mas tem menos rejeição moral do que os
bandos de traficantes. Os moradores da localidade onde a milícia atua geralmente a
classificam como tranquila e provida de proteção contra a violência, caso da Gardênia
Azul e da Comunidade do Canal do Anil. (Machado, 2008)
Mas, apesar do boom de construções, o bairro se caracteriza pela construção de
casas de um pavimento (poucas tem dois andares), comércio local de pequeno porte,
muitas biroscas, quitandas, oficinas, salões de cabeleireiros. Não vi um único banco no
bairro, a não ser por um caixa 24 horas em frente a uma loja popular de móveis (no
estilo das grandes lojas no mercado que oferecem crediários a perder de vista com alta
27
Serviço de pesquisa e visualização de mapas e imagens de satélite gratuito fornecido pelo google
28
Informação retirada do site http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/
67
taxa de juros). Também não tem correio, hospital, clínicas médicas, laboratórios, quase
nada além do que pode ser construído na parte da frente das casas.
O bairro lembra muito alguns bairros do subúrbio carioca, muitas pessoas nas
ruas, as portas abertas como numa extensão da casa para a rua, vizinhos conversando na
porta das casas. O movimento aumenta bastante com o cair da tarde.
Passado o primeiro impacto da descoberta da Gardênia Azul, me senti segura o
suficiente para seguir sozinha no trabalho de campo. Meu companheiro de trabalho me
acompanhou ainda a mais três incursões ao local, depois passei a ir sozinha.
Apesar da desmistificação do lugar, ainda me preocupava algumas coisas no
bairro. Não tirava fotos quando havia muito gente na rua, procurava usar calça comprida
e blusas em tons cru e sempre tentar passar um ar de naturalidade nas minhas
caminhadas pela região. Nem ao fim da pesquisa consegui me desvencilhar da
precaução em andar nas ruas da Gardênia Azul e, principalmente, da Comunidade do
Canal do Anil.
Havia uma parte do bairro, que surgia aos poucos, onde eu interrompia minhas
caminhadas e conversas. Era um lugar visivelmente mais pobre, com construções ainda
no tijolo, bastante amontoadas. Era a Comunidade do Canal do Anil e seu acesso
apresentava uma forte barreira social e econômica para mim.
Não tinha nenhum contato na Comunidade então achei por bem enviar cartas aos
responsáveis explicando a pesquisa e dando o telefone da minha casa e do meu celular
caso eles desejassem entrar em contato para esclarecimentos. Enviei vinte cartas e
apenas um responsável retornou minha ligação. Era Dona Elizabeth interessada em
saber mais sobre a carta. Aproveitei sua ligação e marquei um encontro com ela em sua
casa na semana seguinte.
Ainda não havia entrado na Comunidade do Canal do Anil. Antes de chegar a
casa de Dona Elizabeth me informei com uma balconista de uma loja de biscoitos sobre
o endereço e ouvi da atendente que “o lugar era tranquilo, sem violência, que apesar de
pobre eu poderia andar lá a vontade”. Segui em direção a casa de Dona Elizabeth.
3.3 Impressões sobre a Comunidade do Canal do Anil
A rua principal que leva a Comunidade, a Avenida Canal do Anil, é pavimentada
e tem um relativo fluxo de carros, principalmente por conta das fábricas situadas em sua
parte inicial. Na parte central esse fluxo diminui e na parte final ele praticamente não
68
existe mais. Trataremos aqui apenas da parte central e final da Avenida, onde fica a
Comunidade.
As ruas que desembocam na Avenida são de pavimentação antiga, estreitas e
bastante esburacadas. Lá também existe um comércio nos moldes da Gardênia Azul só
que em menor porte. Alguns moradores equipam a parte térrea de suas casas e abrem
comércios. Nessa região destaca-se a grande quantidade de vendinhas que
comercializam produtos alimentícios. Quanto mais entramos no miolo da Comunidade,
notamos piores construções, ruas de terra e quase mais nenhum comércio. Chama a
atenção a quantidade de jovens, principalmente homens, conversando nas ruas. Não fui
parada por ninguém uma única vez para saber o motivo da minha ida ali mas nem por
isso me senti a vontade para bater fotos no local. As que bati, foram em lugares de
menor movimento com quase ninguém olhando.
O lugar também é bastante barulhento, as pessoas escutam música em casa em
alto volume muita das vezes de porta aberta. Ouve-se muito funk e algumas músicas
evangélicas. As vielas da Comunidade são estreitas, o sol não bate e são bastante
úmidas. O dono de uma vendinha de doces disse que é comum ratos na região,
principalmente nessas vielas. Para ele, os ratos tem seus ninhos na viela, aguardando a
noite para se espalhar pela comunidade.
O esgoto é lançado in natura para o Rio do Anil o que acarreta em um mau
cheiro constante na região.
Cheguei a me perder diversas vezes pela Comunidade. Na procura pelos
endereços dos responsáveis, percebi como as ruas são conhecidas por nomes dados pela
Comunidade e a necessidade de placas é quase nula para aqueles que ali moram. Na
maior parte dos casos, as ruas não tem nome e seguem uma numeração desordenada.
Para conseguir achar as casas selecionadas, tive que ir perguntando nos bares, padarias,
vendinhas da região. Como só conhecia o nome do aluno, ficava difícil pedir a
informação. Era perguntada pelo nome do adulto ou apelido. Só consegui achar as casas
que eu procurava com a ajuda de Dona Elizabeth, meu primeiro contato na
Comunidade.
Seguia andando até perceber que a rua era sem saída. Em uma dessas vezes fui
avisada por um morador que estava sentado em frente a sua casa numa cadeira de sol de
que a rua era sem saída. Era por volta de meio dia e fazia bastante calor. Primeiro ele
pediu desculpas pra mim e depois afirmou que eu não era daquele lugar. Parei para
69
conversar com esse senhor, que devia ter por volta de uns 75 anos e descobri que ele foi
um dos “fundadores” da comunidade: “São tempos que não voltam mais, as festas com
barcos no rio, a comunidade junta, todo mundo se conhecia. Agora é isso, passo os dias
aqui, vendo o movimento, de vez em quando conversando com um e outro. Sou uma
relíquia aqui do Chico City”.
3.4 Uma proposta teórica de entendimento
Antes de começar os relatos das entrevistas realizadas, retomo brevemente a
discussão sobre a escolha dos estabelecimentos de ensino.
O campo ajudou a responder quais os critérios utilizados para a escolha do
estabelecimento de ensino. De acordo com Nogueira (1998) estes variam
significativamente de acordo com o meio social e até mesmo de uma família para outra
no interior de uma mesma condição social. Famílias de diferentes meios sociais são
desigualmente equipadas no que concerne às condições necessárias à escolha do
estabelecimento escolar.
Para a autora, embora falem de estratégias para relacionar as condutas familiares
de escolha, os diversos autores que tratam sobre o tema são facilmente divididos em
duas concepções: aqueles que vêem as condutas de escolha como “estratégias de
classe”, que visam a manutenção das distinções sociais e educacionais, sob influência
das idéias de Bourdieu e aqueles que analisam as condutas como “estratégias de
consumo”, adequando “produtos oferecidos a necessidades experimentadas”, alinhado à
corrente do individualismo metodológico.
Em revisão sobre o debate acerca do tema, Nogueira (1998) fala sobre algumas
das conclusões a que chegaram atores franceses e ingleses preocupados sobre a questão.
Na Inglaterra, destacam-se três autores que discutem a política educacional do país. São
eles: Stephen Ball, Sharon Gewirtz e Richard Bowe. Diante da política educacional
neoliberal vigente no país a partir dos anos 80, que adotou as forças de mercado como
solução para os problemas escolares, as famílias se viram diante de uma poderosa
ideologia de mercado e de uma cultura de escolha por parte dos pais. O modelo assentase na ideia de que o mercado é neutro e de pais e mães ideais, ou seja, detentores das
predisposições necessárias para o exercício da escolha, reduzindo o ato de escolher a
uma questão de competências individuais.
70
Na análise sobre o trabalho de Ball, Gewirtz e Bowe, Nogueira (1998) ressalta a
crítica que esses autores fazem a ideia de escolhas através de competências individuais à
luz da teoria de Bourdieu. Os autores consideram que a escolha do estabelecimento
escolar e a competição por eles estão inseridas dentro do “campo” educacional onde os
diferentes tipos de capital são utilizados como estratégias de classificação / distinção
social. Pensada como uma dimensão da luta de classes simbólica pela apropriação dos
bens culturais, a escolha é uma adequação entre o habitus familiar e o habitus escolar.
Para demonstrar essas ideias, é feita uma pesquisa empírica nos anos de 1991 e 1994 em
três áreas da cidade de Londres onde os autores entrevistam os pais no momento que
precedia a escolha do estabelecimento secundário. Após a análise do discurso dos pais
em torno de suas escolhas, os autores construíram uma tipologia na qual identificaram
três tipos ideais. Nos deteremos na explicação destes tipos ideais pois acreditamos
identificar alguns dos casos por nós entrevistados nas categorias a seguir:
1.Privileged / skilled choosers: de acordo com Bourdieu, esses são os “herdeiros” do
sistema educacional. Composto por pais profissionais liberais e pela classe média,
possuem uma maior propensão à escolha e valorizam o ato de escolher. A maior posse
de recursos culturais, aliado a rede de relacionamentos da família (ou o capital social, de
acordo com Bourdieu) e econômico, os possibilita “decodificar” o sistema escolar, ao
mesmo tempo em que os habilita a lidar com várias fontes de informação. Vale ressaltar
que, para esses pais, a composição social da clientela do estabelecimento é um fator
decisivo para a escolha.
2. Semi-skilled choosers: é um grupo socialmente misto composto por pais nas mais
variadas ocupações: são comerciários, motoristas, donas de casa, etc. Apesar de
mostrarem uma forte inclinação para a escolha, essas famílias possuem pouca
capacidade de discriminar e de escolher o estabelecimento de ensino justamente porque
conhecem mal seu funcionamento. Por serem desprovidas dos recursos culturais e das
relações sociais que funcionariam como fonte de informações, essas famílias são tidas
como “outsiders” em relação ao sistema de ensino. Com frequência tomam suas
decisões baseadas em opiniões alheias, colhidas através de pessoas que julgam ser mais
entendidas na questão. Chegam a lamentar o excessivo número de colégios sobre os
71
quais podem escolher por não possuir critérios objetivos e seguros para o fazer. Como
no primeiro grupo, valorizam a composição social do público do estabelecimento.
3. Disconnected choosers: composto por pais da classe operária, geralmente possuem
baixo grau de instrução. Fracamente ligados ao mercado escolar, pouco inclinados a
escolher e a participar da escolha, operando na “estrutura superficial da escolha”. Sua
escolha é regida por lógicas práticas, tais como: distância da residência, segurança,
facilidade de locomoção e transporte. Não que esses elementos não estejam presentes
nos dois grupos anteriores mas aqui eles ocupam uma posição central. As fontes de
informação das quais são expostos são limitadas e informais baseadas na rede de
relacionamentos locais da família (amigos, parentes, vizinhança). São famílias mais
dependentes do contexto local e, apesar de exprimirem o desejo de uma “boa”
educação, não manifestam a intenção de buscar isso em outros lugares.
À luz destes três tipos ideias elaborados por Ball, Gewirtz e Bowe, trago agora
as entrevistas realizadas. Elaborei um roteiro de perguntas para que cada entrevista
pudesse revelar as mesmas questões. As famílias entrevistadas foram selecionadas tendo
em vista não apenas o fato de estarem muito próximas no bairro mas também de
possuírem quase o mesmo nível socioeconômico.29
Para cada casa que fui, percorri o caminho feito pelas crianças até a escola com
o auxílio do GPS que gravava todos os pontos pelo qual passava. As imagens dão uma
dimensão do deslocamento feito pelos alunos para a escola.
3.5 Trabalho de Campo
Todos os relatos abaixo são de moradores da Comunidade do Canal do Anil,
lugar onde a pobreza está espacialmente concentrada. No entanto, existem certos
elementos situados geograficamente no bairro, especialmente nas redes sociais locais,
que afetam as pessoas que ali habitam. Vamos levar em conta a posição que o indivíduo
ocupa nestas redes, como fator que potencializa ou diminui o efeito do bairro.
29
O nível socioeconômcio engloba as seguintes variáveis: bens econômicos, educação e ocupação dos
responsáveis
72
3.5.1 Primeira entrevista
Cheguei por volta das 15 horas de uma segunda-feira, horário combinado com
Dona Elizabeth30, e estacionei o carro na praça central do bairro. Andei um bom pedaço
até chegar a casa de Da Elizabeth, que fica no Chico City. Para chegar a casa da
primeira visita, tive que adentrar pelas diversas ruas curvilíneas que cortam a
comunidade. O chão é de terra e nota-se algumas casas já pintadas, outras ainda no
tijolo. Entrei no beco onde faria a entrevista, um beco escuro e bastante úmido.
A casa de Dona Elizabeth é bem pequena, de dois andares. No primeiro andar
ficam a sala e a cozinha (do tipo americana) bastante arrumadas, contando com diversos
eletrodomésticos em bom estado de conservação. Não conheci o andar de cima mas sei
que são dois quartos, um para o casal, outro para as meninas. Moram na casa a mãe, o
pai e as duas filhas, uma de 21 anos e Vidinha, de 11. O pai, seu Raimundo, possui o
ensino fundamental incompleto, é autônomo, trabalha com engessamento e tem uma
renda que gira em torno de R$3.000,00. Da Elizabeth possui o ensino fundamental
completo e ajuda o marido nas faxinas da empresa. A filha mais velha, após repetir três
vezes o terceiro ano do ensino médio e pegar o diploma, aguarda para começar em julho
um curso de enfermagem. Na verdade, sua vontade é fazer uma faculdade de
fisioterapia. A mãe espera que ela trabalhe para pagar seus estudos. A filha mais velha
já não mora mais com os pais, é casada e tem um filho de três anos. Chegou ao final da
entrevista. A mais nova, que durante a entrevista estava na escola da Barra, estuda lá
desde os 5 anos. A menina carece de atenção especial, pois tem alguns problemas de
saúde e, de acordo com a mãe, déficit de aprendizado.
Já sendo a exceção das 20 cartas que enviei aos responsáveis, Da Elizabeth e seu
marido se mostraram um tanto quanto preocupados com a educação de seus filhos. As
duas primeiras estudaram na escola que fica na Gardênia Azul e, por isso mesmo, de
acordo com seus responsáveis, não tiveram êxito na trajetória escolar. A mais velha nem
concluiu o ensino médio. Quiseram fazer diferente com Vidinha. Após conversar com
seu vizinho sobre a escola da Barra e fazer uma visita as instalações da instituição, Da.
Elizabeth ligou para o diretor da escola na ocasião, por intermédio de seu vizinho, e
conversou a respeito da matrícula de sua filha. No dia seguinte Vidinha passou a
frequentar o colégio. Antes, a menina estudava numa escola particular do bairro. Como
30
Todos os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
73
a situação financeira da família piorou, o vizinho indicou a escola e o transporte para a
mesma. Como não teria mais que pagar as mensalidades da escola, Da Elizabeth
prontamente passou a pagar R$90,00 para o ônibus escolar da Tia Soninha. Devido ao
fato de morarem em uma casa de difícil acesso, o ponto de busca e entrega de Vidinha é
em frente a fábrica do Guaravita, uns 5 minutos de caminhada.
Diferente do que imaginava, a matrícula na escola, de acordo com Da Elizabeth,
é bem fácil. “O vizinho falou tem vaga,vou falar com o Paulo. Depois me deu o telefone
do diretor e eu liguei. Fui lá, fiz a matrícula e no dia seguinte a Vitoria foi pra escola. A
matrícula foi fácil demais.”
Na verdade, pelo fato de a escola ser na Barra e exigir um certo investimento
para que as crianças se desloquem até lá, muita gente não matricula seus filhos nesta
escola, apesar de saberem que o ensino é bom. Preferem matricular na escola do bairro
ou na escola do Anil.
Para Da Elizabeth, o ensino da escola é bom pois “Por ela ser na Barra, ela é
obrigada a ter um nível de ensinamento de particular. Eu acho que é uma boa escola até
porque eu não endento nada do que a Vidinha trás para casa, até pago uma menina pra
ensinar pra ela. Com as minhas outras filhas eu ainda ajudava, a Vidinha, já no 3° ano
eu já não conseguia ensinar ela...”
Apesar de morar no bairro desde os 11 anos, Dona Elizabeth não gosta do lugar.
Em suas palavras: “Aqui tem acesso a lugares rápidos mas gostar, gostar daqui eu não
gosto não. Da vizinhança, não gosto da falta de educação das pessoas. Eles botam uma
música alta, cheia de palavrão.” Notoriamente o relacionamento de Dona Elizabeth com
seus vizinhos não é dos melhores. Dentre seus relatos, destaca-se o vizinho da frente
que, ao limpar sua casa, jogou água de esgoto para dentro da casa de Dona Elizabeth
que prontamente revidou jogando ovos na casa em frente. Seu marido diz não dar
atenção para essas coisas pois diz saber que não vale a pena. Diferente de sua mulher,
Seu Raimundo gosta de morar no bairro que vive desde os vinte e poucos anos e onde
conheceu sua mulher. Para ele “O lugar não é o que eu sonhei mas dentro da realidade...
É bom, você não depara com bandido. Viciado tem, mas tem em tudo quanto é lugar.
Eu gosto. Fui criado em São João de Meriti. Sai daqui e vai pra lá que você vai ver o
que é a realidade da vida... Eu gosto daqui.”
Suas filhas não podem ficar na rua e chegam a ser chamadas de metidas por não
“se misturar”. Para o pai, “criança que fica muito na rua aprende besteira”. Um dos
74
motivos da matrícula de Vidinha na escola da Barra foi a possibilidade de conviver com
crianças que não são da Gardênia Azul. No dia anterior, domingo, Dona Elizabeth disse
que três amiguinhas de Vidinha foram em sua casa para brincar e ressaltou que o pai de
uma delas fez questão de levar e buscar de carro as meninas.
A imagem abaixo mostra o trajeto feito por Vidinha de sua casa para a escola da
Barra. São 9.500 metros percorridos na ida e 8.040 metros na volta num total de 17.540
metros percorridos. Em vermelho, o caminho da ida. Em azul, o da volta.
Imagem 02: Trajeto Vidinha
3.5.2 Segunda entrevista
Por volta de 09:00 horas da manhã de uma quarta-feira cheguei a Gardênia Azul
para tentar fazer mais algumas entrevistas. Não havia nada programado, não tive a sorte
de ter nenhum outro responsável me telefonando. Logo, dessa vez, teria que bater na
casa das pessoas na expectativa da recepção. Era um dia chuvoso, havia poucas pessoas
na rua. Os endereços que tinha constavam o nome da rua, a quadra, o lote e o número da
casa. Do endereço só consegui localizar o nome da rua, os demais componentes
pareciam não seguir lógica alguma. Resolvi então entrar no açougue e buscar
75
informação. O dono do estabelecimento não soube me indicar o endereço mas
perguntou alguma referência de quem eu estava procurando. Como só possuo o nome
do aluno, percebi que ficava difícil fornecer alguma outra informação que pudesse fazer
com que os moradores me ajudassem a encontrar as casas que eu havia selecionado para
as entrevistas.
Tentei ainda com outros moradores, mas não conseguia a informação que
buscava. O único lugar que consegui achar (e esse foi sozinha) foi a casa que ficava na
Avenida Canal do Anil mas não havia ninguém para me receber.
Chovendo, sem informações, sem conseguir as entrevistas, resolvi voltar em um
outro dia talvez mais proveitoso.
Na semana seguinte usei uma nova estratégia para tentar fazer as entrevistas: fui
na hora do almoço, horário de saída e entrada das escolas municipais da região. De fato,
como já esperava, havia muitas crianças de uniforme nas ruas, algumas indo pra casa,
outras brincando no campinho, soltando pipa, andando de bicicleta. Cheguei a casa de
meu segundo entrevistado, na Avenida Canal do Anil próximo a fábrica do Guaravita
(assim era seu endereço nas informações que peguei do GERES). Não havia campainha
na porta então tive que bater palmas e chamar “ô de casa” para ser atendida. A casa é
de dois pavimentos e tem um muro que tampa a fachada inteira, tendo apenas uma
pequena porta por onde entrei. Quem abriu o portão foi o irmão mais velho de Marcela,
João Vitor. João, de 13 anos, havia acabado de chegar da escola. Expliquei a ele quem
eu era e pedi que chamasse o responsável naquele momento. Veio até a porta então a
mãe dos meninos. Mais uma vez expliquei quem eu era, o que fazia ali e perguntei se
ela concederia alguns minutos para responder minhas perguntas. Dona Sonia
prontamente se colocou a disposição para responder minhas perguntas contanto eu
ficasse com ela na cozinha pois estava finalizando o almoço. Enquanto terminava de
cozinhar o arroz, conversei com Dona Sônia.
Sonia (como preferiu ser chamada) é uma mulher de 33 anos que tem três filhos:
João Victor, de 13, Marcela de 12 e Fernando de 3 anos. Presentes na hora da entrevista
estavam, além de Sonia e João Victor, Marcela. Fernando passa o dia na casa da avó,
que mora bem próximo, para que a mãe possa realizar as atividades domésticas.
Os dois filhos de Sonia estudam na escola do Anil, “como quase todas as
crianças da região”. Segue afirmando que “a escola é muito boa, tem o ensino bom e
professor também.” Para Sonia a escolha foi natural. A escola é perto de sua casa e seus
76
filhos vão e voltam com os amigos. Questionada o por que de não ter matriculado seus
filhos na escola da Gardênia Azul, responde: “Nem pensei em matricular o João e a
Marcela lá. Acho que a escola deles é mais perto e o pessoal daqui estuda lá. É só pegar
esse retão aqui (a Avenida Canal do Anil) virar a direita que já sai na escola. É bom que
eles vão e voltam com os amigos”.
Sonia concluiu o ensino médio e vê na educação uma possibilidade de
mobilidade social para seus filhos. No entanto, a universidade pública não se mostra
como uma opção viável: “Já falei com João Victor, assim que ele acabar os estudos vou
botar ele pra trabalha junto com o pai na churrascaria pra ele pagar uma faculdade pra
ele. Trabalha de dia e estuda a noite, isso não é nenhuma vergonha não.”
Nessa hora Fernanda interrompe a entrevista e diz que nunca vai trabalhar com o
pai em churrascaria muito menos sendo garçonete. Diz que está treinando pra ser
jogadora de futebol. A mãe dá um sorrisinho e diz que ela treina no campinho ali perto
e, logo em seguida, manda a menina subir e deixar ela em paz com a “pesquisadora da
UFRJ.” Nesse momento ela me pergunta qual a contribuição da minha pesquisa para o
futuro do Brasil. Respondi que faria uma dissertação sobre o tema e me comprometi a
entregá-la o resultado final do trabalho. Achei o momento oportuno para lhe entregar o
kit que montei com caderno, lápis, caneta, borracha e apontador. Por sorte tinha três em
mãos e pude dar para as três crianças da casa.
Sonia gosta de morar na Comunidade Canal do Anil mas diz que já sofreu muito
com as inundações que antes ocorriam ali. Agora, depois da obra da prefeitura, não
enche mais e ela diz que lugar melhor pra morar que aquele não há: “Aqui não tem
bandido, é perto do trabalho do Gumercindo, eu pego serviço nas casas aqui da
Freguesia, as crianças tem escola boa perto. O ruim mesmo é a pobreza do lugar, aqui é
feio, tem um monte de cachorro na rua, você tá vendo né? Tenho certeza de que onde
você mora é mais bonito que aqui.”
Diz ainda que os amigos dela e de seus filhos são todos da Comunidade ou dos
arredores. Para Sonia, a convivência com crianças da vizinhança é benéfica pois “eles
falam a mesma língua, se vestem igual, brincam das mesmas coisas”.
No primeiro pavimento da casa tem a cozinha, espaçosa comparada com os
demais cômodos da casa, uma sala e a área onde fica seu cachorro vira-latas. Na parte
de cima ficam dois quartos e o banheiro e ela diz que só não me convidou para subir e
conhecer pois “a casa tá uma zona, nem as camas tive tempo de fazer”.
77
Gumercindo não concluiu o ensino fundamental, parando de estudar na antiga 3°
série. O marido de Sonia é garçom numa famosa churrascaria na Barra da Tijuca. Ela
diz que ele ganha bem, principalmente com as gorjetas, e que dá pra viver bem e ainda
ter lazer. Perguntei então qual era o lazer deles: “Agente gosta mesmo é de fazer
churrasco com os vizinhos no fim-de-semana. Sempre tem um que chama, aí é bom que
agente divide as carnes e a cerveja, muita cerveja e as crianças ficam brincando pela
rua”. Como a maior parte dos garçons da cidade do Rio de Janeiro, Gumercindo é
cearense e está no Rio tem mais de 20 anos. Sonia é nascida em Belford Roxo mas
assim que sua mãe conseguiu juntar um dinheiro se mudou para a Comunidade do
Canal do Anil, na década de 1980, em busca de melhores oportunidades de emprego.
Como pude perceber a relação de Sonia com seus vizinhos é boa mas a porta de
sua casa está sempre fechada. Ela diz que tem que saber dividir a casa da rua e que tenta
sempre ensinar isso pros filhos: “Tem a hora de ficar em casa, estudar, ver tv e tem a
hora de brincar na rua”. O horário de brincadeira na rua é sempre restrito e sob os
cuidados de Sonia. Ela diz que por voltas das 18 horas bota a cadeira em frente a casa,
conversa com os vizinhos e fica de olho nos filhos. Como o horário do marido é incerto,
às vezes trabalha de dia, às vezes de noite, Sonia diz preferir não incluí-lo na rotina das
crianças: “Quando dá agente tentar almoçar ou jantar juntos mas tem vezes que
Gumercindo demora demais, parece até que se perde no caminho...”
O percurso percorrido por Marcela totaliza 2.600 metros, feitos a pé. Abaixo a
imagem.
78
Imagem 03: Trajeto Marcela
3.5.3 Terceira entrevista
Entusiasmada com o êxito da primeira entrevista, pedi ajuda a Sonia para
encontrar o outro endereço. Por sorte, tratava-se de uma colega de sala de Antonio
Carlos. A casa de Ariel, nossa terceira entrevista fica bem no final da Comunidade do
Canal do Anil, numa rua transversal a principal. Já vimos que quanto mais pro final da
comunidade, piores são as condições estruturais do ambiente. Pois bem, cheguei
acompanhada de Sonia e encontrei Ariel, em casa, sozinha. A mãe de Ariel, Guiomar, é
diarista e trabalha de segunda a sexta, às vezes sábado também. Ariel é filha única de
uma mãe que veio do norte em busca de trabalho há 20 anos. Para Ariel não ficar
totalmente sozinha, Guiomar paga R$50,00 a vizinha que, de vez em quando, vai ver
como está Ariel. Liguei para Guiomar de sua casa e consegui marcar uma entrevista
para sábado, às 16 horas. Conversei um pouco com Ariel sobre a escola e o bairro mas
não consegui nada além de respostas monossilábicas. Tive sorte de ter Sonia o tempo
inteiro ao meu lado pois, caso contrário, acho que Ariel nem abriria a porta para mim.
Às quatro horas do sábado estava batendo na porta de Guiomar para começar a
entrevista. Me recebeu uma mulher de uns 40 anos, bem magra e um pouco desconfiada
79
de minha presença. Após explicar a pesquisa e minha ida a sua casa, começamos a
conversa. A casa de Guiomar é de um pavimento. A cozinha é bem pequena, assim
como a sala. No único quarto da casa dormem Guiomar e Ariel na cama de casal. Uma
casa com televisão de 29 polegadas, um sofá confortável de dois lugares, plantas pela
sala, quadros expostos, dando um certo ar de aconchego no ambiente. Guiomar me
oferece um pedaço de bolo de laranja que parece ter sido feito para me aguardar. Assim
que chegou do norte, Guiomar foi trabalhar em uma casa de família no bairro da Tijuca,
zona norte da cidade. Ali conheceu o pai de Ariel, sobrinho do porteiro do prédio.
Guiomar chegou a viver com ele por algum tempo na casa que ele morava com a mãe,
também na Tijuca. A casa era de uma senhora de quem a sogra de Guiomar tomava
conta. Quando a senhora morreu, todos se mudaram para a Comunidade do Canal do
Anil, onde a sogra de Guiomar tinha uma casa. Depois de uma briga em que saiu
machucada, Guiomar alugou uma casa na Comunidade e desde então vive lá. Diz que
não pode se afastar da família do pai de sua filha pois conta com sua ex-sogra para
ajudar a olhar Ariel. Guiomar já morou em diversas casas da comunidade, mas já mora
há cinco anos em sua casa atual.
Da família da Tijuca, Guiomar ainda faz faxina para duas pessoas. Os outros
dias são ocupados por pessoas indicadas por essa família. Seu trabalho se divide entre a
Tijuca e a Barra. Para Guiomar ir para Barra é mais fácil, para Tijuca tem que pegar
dois ônibus.
Como a sogra trabalha durante a semana e ela não tem mais com quem contar,
Guiomar dá R$50,00 para a vizinha olhar Ariel. Ela diz que Ariel não pode brincar na
rua e que esse dinheiro é basicamente para a vizinha ver se realmente Ariel tem ficado
em casa. Ela diz que paga também “explicadora” para a filha três vezes por semana, por
R$100,00 ao mês. A vizinha, que também tem filho estudando na Naturalista, leva e
busca Ariel. Perguntada o por que de Ariel não estudar na escola mais próxima,
Guiomar, que estudou até a antiga 4° série, responde: “A Ariel foi para a escola do Anil
porque os primos dela estudaram lá. Eu também acho a escola boa, o ensinamento lá é
bom e é perto daqui também né?” Diz não gostar que a filha brinque na rua porque tem
“gente com ideia ruim na cabeça, tem menino que quer fazer mal, engravidar e sair fora,
tem gente que oferece tóxico, na rua tem de tudo.” A menina só pode brincar com a
filha da vizinha, em casa, e por pouco tempo. Ariel não sabe fazer nada em casa, ela só
esquenta o almoço que a mãe deixa pronto. Guiomar diz que o tempo dela é pra estudar
80
mas que na verdade ela sabe que a menina passa o dia em frente a televisão por conta de
suas péssimas notas.
Guiomar se relaciona bem com alguns de seus vizinhos, mas diz “odiar” os
evangélicos que moram perto dela. Contou algumas histórias de perseguição que sofre
por parte deles por ser sozinha com uma filha. Diz que já chegaram a ficar fazendo
despacho nela enquanto ela ia para casa. Por essa e por outras, Guiomar diz selecionar
os vizinhos com quem mantém amizade. Desses poucos nutre uma amizade verdadeira e
diz que no mundo todo só tem a filha para contar. O ex-marido, segurança de uma
empresa privada, casado novamente e com dois filhos, dá uma pensão de R$110,00 para
Ariel. Guiomar diz cobrar, em média, R$60,00 por faxina, tendo uma renda de
R$1.500,00 por mês. O aluguel de sua casa é R$200,00. Acostumada com a pobreza de
sua cidade natal, Guiomar diz que “tá quase virando uma princesa, só falta mesmo o
príncipe.”
A milícia da região prometeu a ela um terreno para que ela pudesse construir sua
casa: “ O terreno é aqui por perto, ainda não sei aonde mas é só eles me darem que eu já
subo o muro pra garantir a terra”. Ariel resmunga um pouco essa hora e diz que eles
deveriam dar um terreno num lugar melhor pra elas.
Ariel, presente a entrevista inteira e um pouco mais falante agora, diz gostar da
escola em que estuda e do bairro que mora. Mas diz ter um sonho: ser enfermeira e
poder comprar uma casa num lugar melhor para ela e para mãe, longe da comunidade
do Canal do Anil, “pode ser até mesmo na Gardênia”, numa clara distinção entre a
Comunidade e o bairro constituído.
O caminho percorrido a pé por Ariel, ida e volta somam 3.398 metros. Abaixo a
imagem de percurso.
81
Imagem 04: Trajeto Ariel
3.5.4 Quarta entrevista
Sai da casa de Guiomar e fui a casa do responsável de meu quarto e último
entrevistado, Mateus, 12 anos. Já sabia um pouco sobre a criança pois ele estuda na
mesma sala da minha primeira entrevistada, Vidinha. Por intermédio de Dona Luciana,
sabia que Mateus ficava a semana inteira sob os cuidados da avó pois a mãe trabalha
como doméstica numa casa na Barra da Tijuca onde ela tem que dormir, retornando
apenas nos fins-de-semana. Para chegar a casa de Mateus, passei antes na de Dona
Elizabeth que prontamente me levou até lá. Antes, fui alertada para a “metideza” da mãe
de Mateus.
Já escurecia quando cheguei na casa de Dona Nadir, a que pior me recepcionou
de todas as entrevistas.
Permaneci o tempo inteiro fora da casa, onde fiz a entrevista em meia hora (as
demais duraram, no mínimo, 1 hora). A casa de Dona Nadir fica no início da
Comunidade Canal do Anil, na Rua Isabel Domingues. O início dessa rua é na Avenida
Ayrton Senna e percebemos que, quanto mais próximo da Avenida Canal do Anil,
piores são as construções. A casa em questão fica bem em frente a fábrica do Guaravita,
82
margeando um córrego que parece um esgoto a céu aberto. É uma casa de tijolos, sem
muro ou quintal. Na casa moram Dona Nadir (nos fins-de-semana), Mateus, André (22
anos), irmão de Mateus, a avó de Mateus (Dona Geralda) e a tia de Mateus com seus
dois filhos.
Dona Nadir trabalha há mais de dez anos em uma casa num condomínio de luxo
na Barra da Tijuca, o mesmo onde fica a escola da Barra da Tijuca. Ela diz que Mateus
estuda ali pois, além de ser uma escola boa, que “dá matéria e cuida das crianças, que os
professores não faltam”, é uma oportunidade de ela vê-lo sempre na hora do almoço,
quando ele está chegando na escola. Mateus estuda na escola da Barra desde o jardim.
No início, quando ainda não dormia na casa de seus empregadores, Dona Nadir buscava
o filho na escola e pagava transporte escolar de ida para levá-lo. Agora Mateus vai no
mesmo transporte de Vidinha, o ônibus escolar da Tia Soninha.
O irmão de Mateus trabalha como ajudante de serviços gerais em um escritório
da Barra da Tijuca e, assim que puder pagar, começará um curso técnico na área de
desenhista. Dona Geralda é aposentada e cuida de Mateus na ausência da mãe. A irmã e
os sobrinhos estão passando um tempo na casa (que já dura dois anos) para ver se tem
volta o casamento ou então para ela decidir o que vai fazer da vida. Dona Nadir diz ter
certeza de que eles nunca mais saem de sua casa, que é própria e foi comprada as custas
de muito esforço dela e da mãe.
Dona Nadir não fala no pai de Mateus, mesmo quando eu pergunto, ela diz
preferir não tocar nesse assunto.
Gosta de morar na Gardênia Azul, diz ser um bom lugar para criar os filhos.
Afirma que a vizinhança é livre de violência e de tráfico de drogas. Seus amigos são
quase todas da Comunidade e diz que Mateus tem muitos coleguinhas da escola da
Barra que moram ali. Para ela, essas crianças são diferentes das demais da Comunidade
pois “só pelo interesse da mães em matricular os filhos fora daqui é porque já demonstra
que elas querem coisa melhor. Prefiro que o Mateus brinque com elas mas agora, por
exemplo, ele tá na casa de nem sei quem jogando vídeo game. Aqui é tranquilo assim,
não tem que ficar na neurose não”.
Diz que gostaria que Mateus estudasse em universidade pública e tivesse um
diploma. Dona Nadir, que concluiu o ensino médio, é uma espécie de “governanta” na
casa onde trabalha. Diz gerenciar outros dois empregados da casa, graças ao estudo e ao
jeito correto de falar e de se posicionar. De fato, Dona Nadir se expressa muito bem
83
mas, nem por isso, levou a conversa adiante. Disse que tinha um compromisso
agendado, eu entendi, agradeci pela entrevista e fui embora, esbarrando com Mateus na
saída que chegava da casa de um amiguinho ali perto.
Mateus percorre um total de 16.840 metros de ônibus escolar. Em vermelho a
ida com 9.140 metros e em azul a volta com 7.700 metros.
Imagem 05: Trajeto Mateus
3.6 Análise das entrevistas
Nos relatos acima, encontramos casos de forte pertencimento a comunidade
local e outros que buscam se desvencilhar das redes locais de sociabilidade.
A família de Dona Elizabeth, o primeiro caso, é composta por ela, o marido e as
três filhas (uma já não mora mais na casa mas permanece na Comunidade do Canal do
Anil com seu marido e filho). Dona Elizabeth possui o ensino fundamental e Seu
Raimundo tem o ensino fundamental incompleto (ele não soube detalhar em qual série
parou de estudar). Dona Elizabeth deixou claro não gostar do lugar em que vive e nem
da vizinhança, impossibilitando as filhas de estabelecerem relações com os moradores
da Comunidade. O oposto é seu marido que diz gostar da Comunidade do Canal do Anil
84
pelo lugar ser central e livre da ação de traficantes. No entanto os critérios de avaliação
parecem ser diferentes: seu Raimundo analisa a posição estratégica do bairro e a
ausência de violência ao passo que Dona Elizabeth parece estar mais preocupada com a
rede de relações as quais suas filhas podem ser expostas. Apesar de sua restrição a
Comunidade, Dona Elizabeth obteve a informação sobre a Escola da Barra graças a seu
vizinho de porta. No seu entendimento, a escola é boa por ser na Barra e, por isso,
oferece um ensino de qualidade. Nesse aspecto a mobilidade geográfica é fundamental:
apesar da distância, a Barra da Tijuca se apresenta como um lugar de fácil acesso aos
moradores da região.
O abandono do lugar de moradia em busca de melhores oportunidades e de
contextos mais dinâmicos é uma das principais estratégias de aquisição de ativos. Um
novo contexto de relações é estabelecido, como fica claro nas amizades de Vidinha, que
não são moradoras da Comunidade. No entanto, a circulação da informação no bairro,
que proporcionou a Dona Elizabeth inclusive ter acesso ao telefone do diretor da escola
assim como o telefone da Tia Soninha, que faz o transporte escolar na região, é um forte
indício de como a geografia subjetiva de oportunidades age. Nesse caso, a percepção
subjetiva do indivíduo que toma a decisão foi diretamente afetada pela informação
disponível no bairro, gerando um filtro de percepção das oportunidades objetivas (Dona
Elizabeth conhecia a escola da Gardênia Azul e do Anil). Conforme nos fala Flores
(2006), esse filtro de percepção das oportunidades disponíveis é formado, neste caso,
pelas redes sociais locais.
A inserção no bairro de nossa segunda entrevistada é bem diferente da primeira.
Sonia, que matriculou seus filhos na escola do Anil, se relaciona muito bem com os
vizinhos e parece estar extremamente enraizada em sua comunidade. Casada com o pai
de seus três filhos, Sonia concluiu o ensino médio e ajuda o marido pegando serviço
(roupa pra passar) nos bairros próximos, como a Freguesia. Gumercindo, garçom numa
churrascaria grande da Barra, não concluiu o ensino fundamental, parando de estudar na
terceira série. A escolha em matricular seus dois filhos na Escola do Anil foi a opção
natural para Sonia: tanto os vizinhos quanto os primos das crianças estudam lá. Apesar
de ter um resultado inferior a Escola da Barra e da Gardênia Azul, Sonia considera a
escola de seus filhos boa. Aprova a relação deles com os vizinhos, a maioria estudantes
da escola do Anil, pois afirma que eles compartilham do mesmo padrão normativo
vigente na Comunidade. As fontes de informação a qual está exposta são limitadas e
85
informais, baseadas na rede de relacionamentos locais. Trata-se de um caso de uma
família altamente dependente do contexto local e, apesar de desejar uma boa educação
para seus filhos, dificilmente buscaria isso em outros lugares.
Esse caso nos lembra Granovetter (1983) quando fala a respeito do encerramento
da estrutura de interação “entre iguais”. Para o autor isso acontece mais pela capacidade
de sobrevivência do que pela incorporação a uma estrutura mais ampla de
oportunidades. Parece que estamos diante de uma forte rede de relação sociais na
vizinhança mas que nem por isso implica na possibilidade de se adquirir ativos. O autor
afirma que os setores populares tendem a estabelecer relações homogêneas, fortes e
pobres.
Guiomar, a terceira entrevistada, se assemelha bastante com o caso acima,
excetuando o fato de não deixar a única filha brincar na rua com os vizinhos. Matriculou
sua única filha na escola do Anil porque os primos estudam lá. Migrante nordestina,
sem ter o apoio familiar e separada, Guiomar estabeleceu uma rede de relações um tanto
quanto fraca tanto na sua Comunidade quanto no ambiente de trabalho. Esse é um bom
exemplo para a “fortaleza dos laços frágeis”: em uma das casas onde trabalha, Guiomar
recebe assistência dentária para ela e para a filha e diz receber apoio para estimular os
estudos da filha. A estratégia de investimento da explicadora também é um exemplo de
como a vivência com pessoas de outro meio social pode ser benéfica para a educação de
sua filha. Guiomar, que estudou até a quarta-série, pensa em matricular a filha em um
cursinho para que ela tente prova para o Colégio Militar, onde estuda um dos filhos de
sua patroa. Guiomar possui baixo grau de instrução e pouco conhece sobre o sistema
educacional. Considera o ensino na Escola do Anil de boa qualidade mas é pouco
inclinada a escolha, opera na chamada “estrutura superficial da escolha”, regida por
lógicas práticas tais quais distância da residência e segurança para ir e vir.
Por fim, o último caso é aquele de uma escolha quase contingencial: a mãe
trabalha perto da escola da Barra e matricula seu filho nela. Separada do marido, de
quem se recusou a falar, Dona Nadir passa apenas os fins-de-semana na Comunidade:
durante a semana fica na casa de seus empregadores no condomínio onde fica a Escola
da Barra. Apesar de não deixar claro, como Dona Elizabeth, a posição de não gostar que
seu filho brinque com as crianças da vizinhança, Dona Nadir diz preferir que seu filho
brinque com os colegas da Escola da Barra. Para ela, o investimento das famílias em
86
optar pela matrícula nesta escola representa um diferencial que é benéfico para as
relações sociais estabelecidas pelo seu filho no âmbito da escola.
Mas, vale lembrar, as oportunidades locais estão postas para essa mãe: o ônibus
escolar da Tia Soninha, por exemplo, faz parte do fluxo de informações que circulam
pela Comunidade. Ela só soube desse transporte pela sua vizinha que também tem filho
estudando na escola da Barra.
Em comum, todos os entrevistados têm parentes residindo no bairro. Elias
(2000) já chamou a atenção para a relação entre a estrutura familiar e a estrutura da
vizinhança da qual faz parte. De fato, não podemos analisar as entrevistas sem levar em
conta as diferenças entre os tipos de relações familiares encontradas e que podem ser
explicadas, dentre outros, por conta de uma unidade maior da qual fazem parte: a
comunidade. E, ainda que morando muito próximos, na mesma comunidade, os
indivíduos têm uma vivência diferenciada no bairro. Small (2004) já havia observado
como as características do bairro, ou o isolamento social afetam, de maneiras diferentes,
diferentes grupos sociais moradores de um mesmo bairro. Os quatro casos estudados
revelam que, de fato, os indivíduos são afetados de forma desigual pela experiência no
bairro.
87
4. Considerações Finais
Já sabemos da forte correlação entre o estabelecimento de ensino e a posição
sociocultural da família. O que buscamos trazer neste trabalho foi compreender como a
geografia de oportunidades pode alterar a correlação entre o estabelecimento de ensino e
a posição sociocultural da família.
As decisões dos indivíduos ganham consistência a partir do delineamento do que
a geografia de oportunidades possibilita. A viabilidade de suas realizações vai depender
de diversos fatores em ação no campo das escolhas.
Existe uma corrente de estudos que, ao recorrer a ideia de estratégia dos
indivíduos, remete a noção de estratégias racionais, ou seja, a elaboração de um cálculo
custo-benefício que visa a maximização dos investimentos. É o caso do individualismo
metodológico de que nos fala Boudon (1981), que busca reconstruir as motivações dos
agentes e refletir sobre o fato social em questão como um resultado das ações
individuais. De encontro com a teoria da escolha racional, a hipótese é de que as
decisões individuais incorporam aspectos desligados de situações estratégicas e de
interesse pessoal. Para Boudon (1981), as decisões individuais são aspectos
relacionados a dimensões sociais que estão, de certa forma, fora do controle dos
agentes. Nesse sentido, o plano metodológico dessa teoria não pressupõe que se
analisem as sociedades como conjuntos de átomos independentes, mas que busque
entender a relação entre as atitudes e o espaço social, pois somente essa relação
possibilita identificar e justificar uma ação como racional.
Importa, entretanto, ressaltar que a escolha do estabelecimento de ensino é uma
tentativa de se aliar as oportunidades dispostas no território, a geografia objetiva de
oportunidades, a percepção subjetiva sobre a qual o indivíduo modela suas estratégias.
Nesse sentido, ainda que como uma opção generalizadora, os tipos ideais nos
servem para uma aproximação daquilo que foi originalmente pensado. Naturalmente,
lendo os relatos das entrevistas, tendemos a enquadrá-los naquele grupo socialmente
misto composto por pais em diferentes ocupações e desprovidos de recursos culturais. A
escolha, nesse caso, seria tomada com base em opiniões alheias, fortemente
relacionadas as redes de relações. De fato, o primeiro tipo ideal construído por Ball,
Gewirtz e Bowe, os “herdeiros” do sistema educacional, dificilmente se enquadraria nos
nossos casos. A baixa incidência ou a falta de recursos culturais e econômicos faz com
88
que esses pais não sejam profundos conhecedores do funcionamento do sistema
educacional, impossibilitando-os de “decodificar” o sistema escolar. Apesar de possuir
pouca capacidade para discriminar e escolher o estabelecimento de ensino, o único caso
que pode ser considerado como uma escolha é o primeiro. Apesar de ter obtido a
informação através de seu vizinho, Dona Elizabeth, antes de matricular sua filha, foi até
a escola conhecer sua infra-estrutura e clientela. Só após aprová-las, matriculou sua
filha nela. O caso do outro aluno que também estuda na escola da Barra é relacionado a
uma escolha de cunho contingencial, onde a matricula numa escola longe do bairro não
se deu por um conhecimento do sistema, mas sim por questões operacionais. Os outros
dois casos parecem ter sido regidos por lógicas práticas, principalmente relacionada a
distância, facilidade de locomoção, transporte e informações obtidas na vizinhança.
Ainda que presente nos casos da Escola da Barra, nos outros dois eles ocupam posição
central. São famílias mais dependentes do contexto local e, apesar de buscarem uma
“boa educação”, não se mobilizam para fazê-lo fora de sua vizinhança.
Mais uma vez, temos que reconhecer a importância do capital familiar para se
fazer as escolhas, em particular para optar, dentre a oferta das escolas, aquela na qual
matricular seus filhos. Temos que reconhecer também a importância do capital de
informações sobre o funcionamento do sistema de ensino. Uma das fontes de aquisição
deste capital pode ser encontrada no bairro, principalmente nas redes sociais locais.
Nesse sentido, a percepção subjetiva do indivíduo que faz a escolha sobre a estrutura de
oportunidades é criticamente afetada pela informação disponível no contexto do bairro,
que cria um filtro de percepção no qual as oportunidades são entendidas e avaliadas.
(Flores, 2006)
A inserção no bairro, as formas pelas quais os indivíduos se sociabilizam nas
redes sociais locais podem diferenciar um dos outros na forma com a qual fazem a
escolha. O grau de reciprocidade nessas redes pode ser benéfico, mas também pode ser
desvantajoso. Conforme visto no primeiro capítulo, a combinação entre as dimensões do
grau de força dos vínculos e o grau de heterogeneidade da rede pode resultar em
diferentes práticas para os indivíduos. No que diz respeito a dimensão da
heterogeneidade vale lembrar que ela tem um sentido e uma direção que depende do
posicionamento dos membros em relação aos recursos disponíveis.
A noção mais corrente é a de que a heterogeneidade é relevante porque está
diretamente relacionada com a diversidade de recursos que circulam na rede. De fato,
89
Kaztman e Retamoso (2008) constatam que “crianças que provêm de lares de escassos
recursos, têm melhores resultados acadêmicos quando moram em vizinhança de
composição social heterogênea, do que aquelas que vivem em vizinhanças onde a
grande maioria dos domicílios tem poucos recursos.”
Diante de uma realidade social homogênea e de recursos redundantes, a
combinação entre baixa heterogeneidade nas redes sociais e um forte grau de força nos
laços sociais se mostrou desvantajosa para os moradores da Comunidade do Canal do
Anil. Dentre aqueles que optaram em fazer a escolha mais tradicional, era notório o grau
de inserção no bairro e a redundância das informações na rede dos quais faziam parte.
Amigos, vizinhos, familiares funcionaram como potencial fonte de informações para a
escolha da Escola do Anil.
Por outro lado, um fraco grau da força nos laços sociais combinado com a baixa
heterogeneidade da vizinhança resultaram em um desfecho diferente no tocante as
estratégias familiares. Se a informação foi obtida através do vizinho, não implica em
dizer que estamos diante de uma forte relação estabelecida na vizinhança.
Dentre as diferentes estratégias postas em práticas pelos responsáveis, a opção
em matricular os alunos na escola particular que fica em frente a Escola da Gardênia
Azul pode representar também a “fuga do lugar” por parte de algumas famílias da
Gardênia Azul. Não houve tempo hábil dentro da pesquisa para investigar quem é o
público desta escola. Supõe-se que sejam alunos moradores da Gardênia Azul e que
seus responsáveis, ao optarem em matricular na escola particular, possam estar traçando
estratégias de diferenciação para com os moradores da Comunidade do Canal do Anil
evitando, dessa forma, o contato com os outsiders da região. De fato, como afirma Elias
(2000):
era graças a seu maior potencial de coesão, assim como à ativação
deste pelo controle social, que os antigos residentes conseguiam
reservar para as pessoas de seu tipo os cargos importantes das
organizações locais, como o conselho, a escola ou o clube, e deles
excluir firmemente os moradores da outra área, aos quais como grupo,
faltava coesão. Assim, a exclusão e a estigmatização dos outsiders
pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último
preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os
outros firmemente em seu lugar (Elias, 2000, pp. 22).
90
A estrutura de oportunidades está posta para os responsáveis da Gardênia Azul e
da Comunidade do Canal do Anil.
A experiência no campo mostrou como as redes sociais locais podem influenciar
no que diz respeito a escolha do estabelecimento de ensino. Costa e Koslinski (2008)
perceberam a existência de um forte quase-mercado educacional na rede municipal de
ensino fundamental na cidade do Rio de Janeiro, identificando a acirrada competição
por escolas públicas, mesmo entre aquelas que não são tradicionalmente consideradas
escolas de padrão comparável ao das boas escolas privadas ou federais, destacando a
importância das redes de contatos sociais. Para Alves (2008) as escolhas familiares
representam ações voltadas para a superação ou moderação da estratificação
educacional.
De modo que, como visto, as famílias processam de maneiras diferentes as
oportunidades objetivas do sistema escolar. São esses mecanismos desiguais de
estratégias para a escolha do sistema de ensino que começam a se tornar alvo de
pesquisas no âmbito da sociologia da educação.31 Fica o desejo e incentivo para que
novos estudos sejam feitos nessa direção e desvendem os mecanismos, ainda um tanto
quanto ocultos, das estratégias familiares para a escolha do estabelecimento de ensino.
31
Diversos estudos têm sido feitos nessa direção. No Rio de Janeiro, Fatima Alves estuda as escolhas
familiares no contexto da estratificação educacional e residencial. E, ainda no Rio de Janeiro, Mariane C.
Koslinski e Marcio da Costa estudam o quase-mercado e a disputa por escolas públicas. Em Minas
Gerais, Maria Alice Nogueira estuda a influência da família no ato de escolha do estabelecimento de
ensino.
91
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97
Anexo 1 - Fotos
Foto 01 – Escola da Barra da Tijuca
Foto 02 – Escola do Anil
98
Foto 03 – Escola da Gardênia Azul
Foto 04 – Associação de Moradores da Comunidade do Canal do Anil
99
Foto 05 – Chico City
Foto 06 – São Sebastião
100
Anexo 2 – Roteiro de Perguntas32
INFORMAÇÕES ESCOLARES
ESCOLA _________________________________________________
CRIANÇA________________________________________________
Mês e ano de nascimento da criança: ___/___/_____
Esta criança esteve na creche? Se sim, por quantos anos?
Esta criança esteve na pré-escola? Se sim, por quantos anos?
Esta criança repetiu alguma série? Se sim, qual?
Em qual escola seu filho estuda agora?
Em que série esta criança começou a freqüentar a escola da Barra ou Anil?
A senhora ou outra pessoa costuma ajudar seu filho em seus deveres escolares?
E qual a frequencia com que a senhora verifica se o dever de casa foi feito?
Desde o início deste ano, quantas vezes a senhora ou outra pessoa da família conversou
com a professora desta criança sobre assuntos da escola ou desta criança? Foi sua
iniciativa ou da professora / direção?
A senhora diria que em geral a escola ensina ao seu filho:
(0) – Nada.
(1) – Pouco.
(2) – Muito.
(3) - Não sei
CONHECIMENTO DO FUNCIONAMENTO DA ESCOLA
A associação de pais é organizada pelos próprios pais. A senhora (o senhor) sabe se
existe associação de pais na escola de seu filho? A senhora (o senhor) sabe se existe um
colegiado ou conselho na escola de seu filho? (Se sim) Já participou de reuniões do
colegiado/conselho ou é membro do colegiado/conselho?
O (a) Diretor(a) da escola do seu filho foi escolhido (a) através de eleição?
GRAU DE ENVOLVIMENTO DO RESPONSÁVEL COM A ESCOLA
A senhora (o senhor) participa das atividades da escola? Por exemplo, festas, Atividades
cívicas, Eleições, reuniões?
A senhora (o senhor) sabe se são aplicados testes pela Secretaria nos alunos da escola de
seu filho?
32
O roteiro a seguir serviu como orientação para as entrevistas e para observações no domicílio.
101
A senhora (o senhor) verifica os resultados obtidos pela escola do seu filho nestes
testes?
EXPECTATIVA / CONHECIMENTO DO SISTEMA ESCOLAR
Que nível de escolaridade a senhora gostaria (idealmente) que seu filho completasse?
Que nível de escolaridade a senhora avalia que ele (ela) vai de fato completar?
O que é uma boa escola, na sua opinião?
Em sua opinião, quais as melhores escolas do Rio de Janeiro?
Em sua opinião, quais as melhores faculdades do Rio de Janeiro?
Como foi a escolha da escola para sue filho no 6° ano? Quais fatores foram levados em
conta? E o ensino médio, a senhora já pensou?
Para você, o que é mais importante em uma boa escola?
(0) boa infra-estrutura (quadra esportiva, laboratório, biblioteca
(1) bons métodos de ensino e aprendizagem
(2) disciplina e formação moral
INFORMAÇÕES DO BAIRRO
Nome do bairro: _____________________________________
O que você acha de morar nesse bairro?
O que você mais gosta do bairro onde você mora?
E o que você menos gosta?
Percebe alguma diferenciação interna no bairro? (lugares melhores ou piores)
Como você se relaciona com os seus vizinhos imediatos?
Você tem parentes residindo no bairro (ou nas proximidades)?
Quando necessita que alguém cuide de seus filhos, conta com quem?
Quando necessita que alguém lhe empreste dinheiro em caso de emergência, conta com
quem?
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A quantidade de pessoas moradoras do bairro que pede para você cuidar dos seus filhos
é?
A quantidade de pessoas moradoras do bairro que lhe pede dinheiro é?
INFORMAÇÕES RELATIVAS A ESCOLHA DA ESCOLA
Quais foram as razões que levaram a senhora a matricular seu filho na escola em
questão?
Opções de Resposta
(0) Foi escolhido pelo horário das aulas
(1) Foi escolhida pela qualidade de ensino
(2) Foi escolhida pela recomendação de parentes
(3) Foi escolhida pela recomendação de amigos que possuem filhos estudando na
escola
(4) Foi escolhida por sua localização
(5) Foi escolhida pelos alunos que lá estudam (influência dos pares)
(6) Outro. Especifique
S2: Se a resposta for 1, como soube da qualidade da escola?
(0) Pelos amigos (amigos que tem filhos que estudam na escola?)
(1) Pelos vizinhos (vizinhos que tem filhos que estudam na escola?)
(2) Informações midiáticas (qual tipo de mídia?)
(3) Outros. Especifique.
S3: Se a resposta for 3, de onde são os amigos? A senhora tem conhecimento da
clientela da escola?
(0) Da vizinhança
(1) De infância
(2) Do trabalho
(3) Da comunidade religiosa
(4) Outro. Especifique
S4: Se a resposta for 4:
(0) Perto do trabalho
(1) Perto da residência
(2) Longe da violência?
(3) Longe / perto – influência dos pares.
(4) Outro. Especifique.
S5: Qual a PRINCIPAL razão para a escolha dessa escola:
(0) Horário das aulas / funcionamento da escola
(1) Qualidade de ensino
(2) Recomendação de parentes
(3) Recomendação de amigos que possuem filhos estudando na escola
(4) Localização
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S6: Antes de matricular o aluno desta escola, você (ou outro responsável) realizou
alguma das ações abaixo?
(0) Telefonou para a escola para obter informações
(1) Visitou a escola para conhecê-la melhor
(2) Conversou com alguém da escola (diretor, professores)
(3) Conversou com vizinhos, parentes ou outros pais de alunos da escola
(4) Informou-se sobre a escola através dos meios de comunicação
(5) Outro. Especifique
A senhora sabe alguma coisa sobre o desempenho escolar da escola (ranking no enem,
notas do prova brasil, etc)? (a análise possui critérios objetivos ou subjetivos?
S7: Como se deu o processo de matrícula na escola? Precisou da ajuda de alguém para
conseguir a vaga?
A senhora conhece a escola? Como considera o aspecto físico dela?
S8: É possível ir a pé para a escola de seu filho?
S9: Seu filho vai sozinho à escola?
APENAS PARA ESCOLA DA BARRA
Por que seu filho não estuda na escola pública do bairro?
Como é o deslocamento dele para a escola?
CARACTERISTICAS DA FAMÍLIA
Profissão dos pais
Quantos irmãos? Idade? Escolaridade?
- Para análise do pesquisador
CARACTERÍSTICAS DO DOMICÍLIO
D1: Quantas pessoas moram nesse domicílio? (1); (2); (3); (4); (5); (6); (7); (8); (9);
(10); (mais)
D2: Quantos cômodos têm esse domicílio? (1); (2); (3); (4); (5); (6); (7); (8); (9); (10);
(mais)
D3:Quantos são utilizados como quarto? (1); (2); (3); (4); (5); (6); (7); (8); (9); (10);
(mais)
D4: Tipo de residência:
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(1) casa
(2) casa em vila
(3) apartamento
(4) sobrado
(5) outros
D5: Este terreno é:
(1) próprio com escritura
(2) próprio sem escritura
(3) cedido
(4) invadido/ocupado
(5) não se aplica
(6) ns/nr
D6: Este domicílio é:
(1) próprio (adquirido - comprou terreno/casa)
(2) próprio (auto-construído – comprou só o terreno)
(3) alugado
(4) cedido por empregador
(5) cedido por particular
(6) invadido/ocupado
(7) ns/nr
D7: Se for próprio, qual é o valor atualizado aproximado deste imóvel ?
_____________________
D8: Se for alugado, qual o valor do aluguel? _____________________
D9: Há quanto tempo você mora nesse domicílio? (ANOS)
(1) Menos de 1 ano
(2) 1 ano
(3) 2 anos
(4) 3 anos
(5) 4 anos
(6) 5 anos
(7) de 5 a 10 anos
(8) mais de 10 anos
E4: Quanto a senhora (o senhor) gasta diariamente em transporte do (a) seu (sua)
filho(a) para a escola? _______________________________.
E5: O seu (sua) filho (a) recebe da Secretaria ou da escola algum dos seguintes tipos de
ajuda:
a) Bolsa escolar
(0) Não (1)Sim
b) Transporte escolar
(0) Não (1)Sim
c) Ajuda para uniforme
(0) Não (1)Sim
E9: Qual é a cor da criança? _________________________________.
E10: Qual é a cor da mãe da criança? ___________________________.
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E11: Qual é a cor do pai da criança? ____________________________.
F1: Qual a relação de parentesco do chefe de família com a criança da 4ª série?
(1) Pai
(2) Mãe
(3) Irmão(ã)
(4) Tio(a)
(5) Avô(ó)
(6) Padrasto
(7) Madrasta
(8)
Outros
–
Explique:
___________________________________________________________________
F18: Atualmente o (a) senhor (a) vive com companheiro ou cônjuge?(0) Não;
F19: Se sim, é casado:
(1) Civil;
(2) Religioso;
(1) Sim
(3) União Consensual
F20: Há quantos anos o (a) senhor (a) vive com esse companheiro ou cônjuge?
____________
Qual a sua religião e de seu marido? Frequencia a igreja:
Qual cidade nasceu? Há quanto tempo vive no RJ?
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