A Cidade dos Sete Mares
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A Cidade dos Sete Mares
A Cidade dos Sete Mares Victor Eustáquio 1 Em memória da minha mãe, que não teve tempo para odiar este romance, mas que continuaria a amar-me 2 Título original: A Cidade dos Sete Mares © Autor: Victor Eustáquio © Todos os direitos para a publicação desta obra reservados pelo autor Correio electrónico: [email protected] Lisboa, Fevereiro de 2013 3 “Una enorme montaña se elevó del seno de la tierra y del ápice se escapaban llamas que continuaron ardiendo durante diez y nueve días. Una inmensa cantidad de peces cubría las playas. Del mar erigían columnas de humo y llamas. Tronaba horriblemente” Don Andrés Lorenzo Curbelo 4 I. O funeral da mãe não se arrastou durante muito tempo. Foram cumpridas todas as formalidades, incluindo o carpido habitual entre os mais dados a manifestações de pesar, sentida ou por que calha, sempre que a certeza da morte sorteia mais um. Mas Tiago Penha não chorou. Ao invés, fumou cigarro atrás de cigarro enquanto decorria a tradicional reencenação das exéquias que nem sequer foram objecto de qualquer pomposidade. Não é que ele não tenha ficado consternado com a notícia, e a obrigação de participar na cerimónia fúnebre e agradecer respeitosamente o extenso rol de condolências que se enfileirou, tanto à entrada como à saída do cemitério. A questão é que Tiago há muito que estava convencido de que quanto mais depressa se concretizasse o inevitável desfecho, melhor seria para a mãe. Algum tempo antes, havia assistido a um outro funeral que acabou com desmaios, troca de sopapos e a chegada da polícia para pôr fim à bestialidade daquele festim de ódio e intrigas familiares induzido por questões de partilhas mal resolvidas. O corpo do defunto chegou mesmo a ser abandonado à sua sorte, dentro de um caixão que rebolou para dentro da sepultura por descuido dos coveiros, mais interessados em atentar nos pormenores do reboliço do que zelar pelos bons ofícios que merece um morto à beira da cova. Nada disso sucedeu, porém, com a mãe. Ou com o que restava dela no interior do ataúde, no qual havia já dormido um dos funcionários da agência funerária numa noite de farra. Se Penha o soubesse, não teria ido na conversa daquela empresa com larga experiência no sector que garantia construir todas as suas urnas de forma ecológica, sem metais, vernizes sintéticos ou outros materiais nocivos ao ambiente. Contudo, o episódio nunca havia chegado ao conhecimento de terceiros, pelo que tudo decorreu de forma normal, se é que o adjectivo é aceitável em contexto fúnebre, considerando que, não obstante a morte poder ser normal, é sempre percepcionada de forma anormal. Já para não referir que falar de normalidade ou anormalidade presta-se a muitos equívocos. Vestido de forma casual, como está na moda dizer, até porque no caso dele decerto nunca ninguém o apanharia de fato e gravata, fosse lá para o que fosse, apesar dos inúmeros embaraços que já havia vivido pela sua condição de programador, sobretudo nas reuniões empresariais para a discussão de grandes projectos, (“Devemos apostar na web dinâmica: HTML5, CSS3 e javascript. O flash está a morrer. Não faz sentido nenhum insistir em coisas moribundas”, havia dito recentemente, mal sabia que estava prestes a reformar-se, perante um painel empertigado de executivos engravatados que o olhava de soslaio, não tanto pelo cabelo seboso e desgrenhado ou a barba esbranquiçada e mal cuidada, toda eriçada, mas pelo rego do cu à mostra e os boxers vermelhos com carrinhos brancos estampados, que a barriga não permitia um melhor aperto do cinto e as calças no lugar devido) com uma camisa azul escura empalidecida, jeans debotados e um blusão preto de cabedal, arrematado num leilão na net, Tiago pôs-se a pensar em Cuba. Estranhas cogitações para tão solene momento; solene, porque se confundia com a evidência de 5 que ele, Tiago Penha, continuava vivo. Se bem que ultimamente a ideia de envelhecer andasse a atormentá-lo. Não tinha filhos, nem tencionava perpetuar-se. Pelo menos assim. De resto, por essa via, não chegara a permitir à mãe a possibilidade de uma vingança. Uma criança restabelece a ordem; acelera a contagem regressiva da vitalidade existencial dos pais, apazigua o desenlace da existência dos avós, finalmente refeitos da desilusão de tão curta passagem pela vida pela simples razão de que, através dos netos, podem depositá-la nos filhos. Quer dizer, a desilusão. Uma outorga cíclica da condenação à morte que se traduz no derradeiro sentimento de desforra. Por convicção ou omissão. É claro que nem para todos é assim. Há ainda quem padeça de altruísmo e invoque trivialidades como os laços de amor ou bizarrias mais sofisticadas como a teia da vida xamânica de Oyasin, que vai dar no mesmo: teia de relações, troca de amor. Orai e vigiai! Sempre com a aranha por perto. O tarô da desordem da condição humana que não consegue reconhecer a acidez da convicção e o desterro da omissão. A filosofia do aracnídeo ao serviço da retórica da genealogia. O dogma do génesis de cunho divino como paliativo para o adultério molecular. (Web Forum: Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Citação de Lavoisier, seguida de uma nota: Por alguma razão isto lembra-me a frase de abertura de «L'étranger», que li em Lisboa no remotíssimo ano de mil novecentos e sessenta e sete; reminiscência de Camus) Penha lembrou-se de Cuba, provavelmente por carência ontológica. É que, de momento, a negociação antropológica dos sentidos da ritualização não lhe interessava. Lembrou-se de Cuba e do amigo de Matanzas que havia recebido na sua casa em meados dos anos mil novecentos e noventa naquela que foi a primeira e única saída daquele da ilha de Fidel. Sociólogo de formação, ocupação profissional: o costume. Pouco importava. Tiago massacrou-o durante vários dias sobre o que o caribenho realmente pensava de Cuba e, ao fim de uma semana, lá conseguiu. Com lágrimas nos olhos, cabisbaixo, o amigo cubano disse-lhe apenas: “Crees que vives mejor que yo?” A pergunta continuou a intrigar Penha por muito tempo, sobretudo por ter vindo de um homem que, aos cinquenta anos, comprou um relógio pela primeira vez na vida numa feira do velho continente, uma imitação rasca de uma marca qualquer. Extasiado, ele só queria saber: “Es hermoso, no? Crees que debo comprar?” Tiago não soube o que lhe dizer, depois de no dia anterior ter sido desafiado: “Crees que vives mejor que yo?” Quer dizer, ainda resmungou qualquer coisa como “Tu é que sabes! Se gostas, porque não?” O amigo voltou a Cuba e nunca mais saiu do País. Já se disse. Mas os dois continuaram a manter o contacto. Através de turistas portugueses que iam de férias para Varadero e Havana. De quando em quando, Penha recebia telefonemas dos mais variados pontos de Portugal com mensagens do caribenho, decerto sussurradas num recanto qualquer, longe de olhares e ouvidos delatores. Por que razão pensava Tiago naquilo, à medida que se afastava do cemitério e dos carpidos pela morte da mãe? Não fazia ideia, tal como quase de certeza o próprio amigo cubano também não faria ideia do que o levava a querer manter contacto com Penha. Na noite em que embarcou de regresso a casa, após uma viagem de carro dos dois entre Lisboa e Madrid – fora Tiago quem fizera questão de o levar pessoalmente até Barajas, o único ponto da geografia migratória permitida ao sociólogo de Matanzas (VaraderoMadrid-Varadero) – na despedida, o amigo era um homem abatido. Quer dizer, para Penha, que já julgava saber avaliá-lo. Mas no rosto, a expressão era outra; ao mesmo tempo que dançava e perdia-se em sorrisos, cantava: «La Vida Es Un Carnaval». Foi a última imagem que Tiago Penha guardou do caribenho. 6 Na realidade, desde que Tiago havia visto dois músicos cubanos em Havana, alguns anos antes de conhecer o seu amigo, a cantar «Quero cheirar teu bacalhau», rendera-se: La Vida Es (mesmo) Un Carnaval... Por que haveria de ser diferente no funeral da mãe? Já quanto à ideia da velhice, a história era outra. Quanto menor era o prazo da sua validade como ser humano, percepção assustadoramente presente pela irritante insistência das sinapses em curto-circuito que o impeliam a pensar no assunto, maior era a indecisão na acção. Resultado: crescente incapacidade de concentração e de empenho no cumprimento das tarefas necessárias para a conquista dos objectivos por que tanto almejava, naturalmente inatingíveis (pois é disso que se trata a felicidade); planos eternamente adiados, engavetados numa torre de caixas corrediças sobrepostas que passava a vida a abrir e a fechar, sem ousar em determinar por qual delas deveria começar. Com efeito, sentia-se cada vez mais a rastejar pela vida, cheio de ideias e poucas certezas. Se houvesse sido bafejado pela genialidade – como chegou a acreditar em tempos idos, nos tempos em que tudo parecia possível, porque a curva do tempo ainda se encontrava numa fase ascendente e, por conseguinte, de evolução lenta – decerto que estaria longe dos ténues e efémeros entrelaces sociais que desatou a estabelecer na web, em rigor, nas redes de comunicação horizontal, após ter iniciado a contragosto a descida do zénite dos quarenta; ao invés, mergulharia sem hesitar no êxtase de outros prazeres, provavelmente todos aqueles que as elites burguesas se permitem experienciar pela sua condição de excepção: é que tanto o prazer como o privilégio de o usufruir também têm cor. A paleta social não é disposta ao acaso. E quem subscrever o contrário, só o faz para esconder no acaso tudo o que não compreende, como o infinito ou a insanidade. Talvez quem supusesse conhecê-lo bem, se aventurasse em afirmar que Tiago Penha era cínico, despudorado, emocionalmente obsceno. Mas a impudência desta figura singular tinha um carácter normativo de uma extrema racionalidade. Fria e dura como o aço. Feita de carbono e ferro, bem entendido. Ou não fosse ele um artista dos bytes, um mestre da lógica, por infortúnio, tanto tecnicista como empírica, também ele depositário do ethos industrial do Ocidente moderno. Não será fácil, porém, decifrar o alcance e os limites da escala de valores em que se movimentava. Será realmente cínico pensar durante o funeral da mãe que La Vida Es Un Carnaval e recordar um caso de vida com um caribenho que, em boa verdade, mal conheceu? Penha ainda se sentiu na obrigação de pôr no rosto a desejável amabilidade com que devia receber algumas condolências de última hora, à medida que a comitiva fúnebre se dispersava, até conseguir enfiar-se no carro e abandonar de vez o cemitério rumo à capital, via A8, para onde se mudara após o cansaço de viver na pequena cidade da sua adolescência que se havia transformado num mero dormitório de Lisboa, impessoal, com uma inusitada identidade que não entendia; uma profunda mutação no mapa da sedimentação social, devido à proximidade com o admirável mundo novo de possibilidades da grande metrópole, lamentável eufemismo para a sede do antigo império pluricontinental português, fruto de um empreendimento marítimo colonial tão corajoso quanto patético no limite da sua implosão. (Web Forum: Entre os portugueses nunca faltaram críticas negativas para se dizer mal de todos e de tudo. Primeiro era porque a monarquia era má para a governança de um País e assim se instalou uma república que matou reis – pai e filho; depois dos “republicanos” instalados na governança, era porque Portugal se afundava e assim, como já tinham assassinado dois reis, em pouco tempo assassinaram Sidónio Pais, e a instabilidade do País e as revoltas eram tantas que foram pedir duas vezes a um economista e professor da Universidade de Coimbra que assumisse como primeiroministro: António de Oliveira Salazar. Foi ele que, ao longo de anos, pagou a dívida 7 externa do País, nacionalizou as maiores companhias inglesas que exploravam os portugueses, avançou com a construção de escolas para alfabetizar os portugueses, melhorou as estradas, portos e aeroportos e defendeu-nos das potências estrangeiras nas nossas ex-colónias ultramarinas e afugentou os comunistas e evitou que o comunismo se instalasse em Portugal. A que se segue mais um longo e inflamado comentário na mesma linha: Concordo totalmente, mas há mais. É bom não esquecer. O Dr. Salazar ainda teve de se equilibrar para evitar que Portugal entrasse na Segunda Grande Guerra e criou um racionamento com senhas distribuídas aos chefes de família de acordo com o número de pessoas em cada lar para que todos, ricos e pobres, tivessem acesso a alimentos, sem passarem fome. Criou um abono de família para que os trabalhadores recebessem um valor de acordo com a quantidade de dependentes – filhos – para que os curtos salários da época fossem complementados para minorar a pobreza de milhares de famílias. Em resumo, chamaram-lhe ditador. O seu substituto, Marcelo Caetano, e os ditos democratas e comunistas de mil novecentos e setenta e quatro derrubaram o seu Governo e causaram a catástrofe e a entrega das colónias sem qualquer protecção ou organização para que tudo acontecesse em paz para todos e que o progresso que se verificava naquelas possessões continuasse de forma tranquila e amiga, após as suas independências. Ao contrário disso, semearam o caos também nelas, como no jardim à beira-mar plantado chamado Portugal continental e insular. Segue-se um desafio: Por que não fazem outra revolta, não uma nova edição com cravos nos canos das espingardas, mas com balas reais? Por que não acabam com os políticos corruptos e todos aqueles aos quais deram altas posições com astronómicos salários, sugando nas mamas do Estado e o dinheirinho que para lá vai saído do trabalho e do suor do povinho? E mais uma réplica de indignação, desta vez com sinal contrário, embora pareça ir dar no mesmo: Para mim, tenho como certo que não foi para isto que os capitães de Abril lutaram. O ciclo fecha com um remate lapidar: Isto é tudo uma farsa! Ainda noutro dia vi na televisão o Obama no Museu do Holocausto, em Washington, aos abraços ao Elie Wiesel, Nobel da Paz e sobrevivente de Auschwitz, Buna e Buchenwald. Três campos de concentração, reparem bem. O homem sofreu, é verdade, e ninguém tinha o direito de fazer o que lhe fizeram. A ele e a milhões de outros judeus. O problema é que são todos iguais. Então não é que este vira-casacas que está na Casa Branca saiu-se com esta: ‘Vou estar sempre do lado de Israel. Evitar o genocídio é um objectivo possível no mundo moderno.’ Ai é? E então os palestinianos? São o quê? Ovelhas a pastar, um rebanho esquecido por Deus? E os desgraçados dos pretos em África?) Em Torres Vedras, a pequena cidade na qual Tiago Penha havia vivido uma parte considerável da adolescência – também ela, a cidade, situada bem perto do epicentro da história monárquica imperialista – não conhecia ninguém ou mal reconhecia quando se cruzava com rostos estranhos que sabia fazerem parte de um passado já muito distante. Em casa, no coração da metrópole, perto da Cidade Universitária, bem longe do local, na época suburbano, onde havia nascido – entre uma colmeia de bairros de lata que, com os anos, havia dado lugar a uma nova paisagem de betão ainda mais concorrida do que dantes (virtude camarária do acolhimento social a baixo custo para arrumar os desalinhados, uma estratégia política de impotência de blocos que faliu, como era bom de ver) – Maria Clara aguardava-o com ar impaciente. Após horas a fio de espera. Que ela tinha a obrigação de adivinhar. Quando Tiago pôs a chave à porta de entrada, já o esperava. Para ele, sempre havia sido complicado perceber como as relações se complicam pelo padrão de desvio de interesses e modos de olhar. A distância podia não parecer imediata, mas o certo é que crescia à medida que esse mesmo padrão adensava o sobressalto de perspectivas. 8 Ainda assim, não obstante todas as cautelas em face dos prenúncios que pensava ter avaliado com uma prudência esclarecida, Penha só foi capaz de começar a descodificar os sinais quando caiu de costas, desemparado, numa tentativa desesperada de se agarrar a qualquer coisa que pudesse suster o seu corpo pesado e balofo. Tropeçara num novelo de malas depositado no vestíbulo, que se abria à esquerda e à direita para dois longos corredores e à frente directamente para a sala; na verdade, uma pequena antecâmara virada para um espaço rectangular sempre com as portas envidraçadas abertas de par em par. — O que é que te dói mais? — perguntou ela do fundo da sala sentada num recanto mal iluminado. — As costas, a nuca, eu sei lá. — Tens de ser mais específico. — Não consigo. — Como não consegues? Precisas! — Preciso mas é de uma cura. Ela olhou-o de soslaio, brincou com o papel amarrotado entre os dedos e suspirou. Acabou por se levantar e pôs-se a observar a rua pela janela. — Não tenho interesse — rangeu Maria Clara entredentes, enquanto mantinha os olhos presos no vazio distante da azáfama que lá fora se desenrolava. — O quê? — quis saber Tiago, erguendo-se também para se encaminhar na direcção dela. Fê-lo calmamente, arrastando os pés. Quer dizer, deslizando, praticamente em silêncio, se bem que isso pouco importasse. Os dados estavam lançados e a morte rodopiava com ar desinteressado, falsamente desinteressado, que o móbil de abutre entranhava-se-lhe em toda a sua textura. — Não percebi — disse Penha, por fim, já ao lado da mulher, agora também ele a mirar o exterior sem ver. — O que é que disseste? Não tens interesse?! Mas de que raio estás tu a falar? — sublinhou, denunciando o seu crescendo de exasperação. Ela não reagiu. Pelo menos de imediato. Terá demorado alguns segundos, mas pareceu uma eternidade. Demorado, porque o que vinha a seguir era, afinal, imprevisível. Desconcertante. O que Tiago sempre soubera, porém. — Parto hoje. — Hoje? — soltou ele, mais encolerizado. — Mas tu garantiste. Ela virou-se e fez o caminho de regresso à cadeira de verga almofadada que jazia no recanto da sala. Inexpressiva, indecifrável, sentou-se e voltou a suspirar. Penha seguiu-lhe os movimentos com o olhar mas permaneceu junto à janela. Expectante. À espera de uma justificação, de uma qualquer tentativa de desagravo, que seria de bom tom para aplacar os instintos de ódio que sempre se desprenderam daquele corpo gaseado, agora mumificado, em queda livre como a vida que se esvazia a cada impulso de ansiedade, a cada desejo de mudança que não se concretiza, a cada sopro de paixão que esbate contra o silêncio da indiferença, esse gosto mórbido pelo sofrimento fugidio, escorregadio, escrito com palavras de passagem, sob olhares desconhecidos e promíscuos que desafiam a intriga que escondemos sob a camada da personificação do pretendemos ser aceitável, para conforto próprio e dos demais. A vontade assim o determina. Como o desejo, mas Tiago estava já a repetir-se mentalmente. A ensaiar uma sinfonia de enfado, a mesma que tinha tocado durante toda a vida, mesmo nos momentos em que julgava não o fazer. — Afinal qual é a razão para esta partida, agora, passados tantos anos? — rosnou ele, após o silêncio que se havia prolongado em razão de nada haver para dizer. — Do que estavas à espera? 9 — Sei lá. Não sei. Talvez de algo mais… Não sei explicar. — Mais… — Promissor? — Perguntas ou afirmas? — Na verdade, contava com alguma mudança. — Um fluxo e um refluxo. — O quê? — Como as marés. Também pode ser um refluxo e um fluxo. — Não percebo nada do que dizes. Tem de ser sempre esta merda? Não podes ser mais eloquente? — Uau! Eloquente. Palavra chique, hein. — Bardamerda. Foda-se! — Pronto. Já baixaste o nível. — Porra, o que queres, merda? — disparou Penha, sabendo bem que o caminho do insulto não passava da velha fórmula sinuosa de inverter o sentido da razão. A armadilha sempre fora perfeita. E ele lá caía na mesma. Igual a si própria, propícia à tal queda livre, sem apoios; um corpo pesado num movimento descendente com o sabor amargo do desfecho bem à vista. Inevitavelmente evidente. Tragicamente iminente. Irremediavelmente imutável. E, logo, irrecuperável. — Está bem. Saio primeiro — anunciou Tiago. — Já processei a mensagem. Estou ligado, entendes? — Ainda com tiques do Brasil? Olha lá! E as borbulhas? — indagou ela. — As borbulhas?! – indignou-se ele. — E não perguntas pelo funeral? Como correu? — Nunca morri de amores pela tua mãe. Tu sabes bem disso. (Pois é, se calhar és tu quem deve morrer. Devias decidir morrer pelo teu desamor) — E então perguntas-me pelas borbulhas — disse Penha, por fim. — Exacto. Não têm andado a atormentar-te tanto? Era verdade. E ele lembrou-se. De tudo. De tudo o que estava por esclarecer. E do nada aterrador que conseguira perceber. 10 II. O caso havia acontecido cerca de dois meses antes, em rigor, um dia depois de Tiago Penha ter sentido finalmente o avião a preparar-se para aterrar na Portela (Mais uma volta, mais uma viagem! O poço da morte! Ouvira algures ao imaginar uma aterragem abortada com a aeronave a acelerar de repente, a empinar o nariz e a subir de novo, quando devia fazer-se à pista. A cena repete-se: mais uma volta, mais uma viagem! O poço da morte!) após a longa estada no outro lado do Atlântico, em trabalho e em prazer, que os gringos também gozam. Já recuperado do cansaço da viagem, e dos sobressaltos que o atingiam sempre que sobrevoava a linha do equador – latitude zero, o que não é rigorosamente certo devido à rotação do eixo da Terra e às irregularidades do geóide, para não falar na importância da altitude, a terceira coordenada geográfica, fundamental, mas tão frequentemente esquecida – e, um pouco mais a Norte, o arquipélago de Cabo Verde, Tiago Penha estava a almoçar na baixa pombalina, assim chamada em memória de Sebastião José de Carvalho e Melo, esse nobre e ilustre déspota iluminado que reconstruiu a cidade após o terramoto de mil setecentos e cinquenta e cinco, quando sentiu pela primeira vez a borbulhagem no pescoço. A descoberta fora fruto daquele gesto maquinal de levar a mão à cabeça para coçar qualquer parte do couro cabeludo, onde não há qualquer comichão mas que dá sempre jeito para disfarçar o nervosismo e a imobilidade confrangedora que resulta dele. Pelo menos para Tiago era assim que funcionava. Podia também cruzar e descruzar as pernas, remexer nas hastes dos óculos encavalitados na cana do nariz aliviando o peso por instantes, afagar a barba esbranquiçada no queixo sob um som áspero, torcer o dorso à espera do pequeno estalido de uma qualquer vértebra ou cartilagem amassadas pela inércia, e, claro está, acender um cigarro e deitar cá para fora umas longas baforadas de fumo, que lhe rendia pelo menos uns cinco minutos de companhia tão virtual quanto cancerígena. Penha odiava aquele ritual diário de ter de almoçar. De almoçar sozinho num qualquer restaurante de fast food sobrelotado, que o tempo não dava para mais, sem ninguém com quem conversar, remetendo-se para uma apatia forçada enquanto escutava e observava as conversas e os movimentos alheios. Nunca havia conseguido habituar-se a Lisboa e entabular relacionamentos que expressassem mais do que uma mera e superficial convivência profissional. Sempre preferira o estrangeiro. Talvez porque a maior parte da sua existência havia sido vivida fora. Feitas as contas, sempre foram breves e escassas as estadas em Portugal desde que tinha começado a trabalhar. Pelo que não chegara a dar ensejo à tentativa de compreender as regras da sociabilidade em terras lusitanas. Eram pequenas bolhas na pele que cediam sob a pressão dos dedos de Tiago. Pelo tacto, pareciam formar uma espécie de colar à volta do pescoço. A princípio, não se apercebeu bem da extensão da borbulhagem. Parecia ter descoberto qualquer coisa de novo no seu corpo, algo com que podia brincar, ensaiando gestos inovadores contra a imobilidade. 11 Deslizou os dedos da mão direita sobre o tapete de empolas e nem sequer se preocupou muito em tentar perceber o que seria aquilo. Quando voltasse ao escritório, olhar-se-ia no espelho da casa de banho e verificaria se era algo com que se devia realmente preocupar. Trata-se definitivamente de borbulhas. Incapaz de as contar, Penha percebeu, todavia, que eram muitas. Passou a mão pela cara para ver se o mesmo destino havia sido reservado àquela outra parte do seu corpo. Mas nada. Além do tufo da barba, nada mais sentia. É evidente que, dado o diminuto tamanho das borbulhas, também lhe seria difícil. Se ainda conseguisse esgravatar a barba, tacteando à flor da pele, talvez houvesse algo lá por baixo. Teria de ser mesmo no escritório, em frente ao espelho que encimava um lavatório de louça que havia já conhecido melhores dias. Ninguém se inquietava muito com o estado dos lavabos da empresa. Para quê, afinal? Só serviam para mijar e cagar. Quer dizer, para expelir urina da uretra e expulsar excrementos pelo ânus. Ou para pôr ou tirar as lentes de contacto, porque comprar novos óculos estava fora de questão e aqueles eram simplesmente odiosos. Ofuscavam todo o brilho dos seus olhos azuis; davam-lhe uma aparência pesada, de um qualquer idiota ultrapassado pelo tempo. Que podia esperar ele depois de derrapar em queda livre pelo zénite dos quarenta? Disseram-lhe várias vezes que havia novas armações, com hastes mais leves e um design mais moderno e confortável. Mas Tiago insistia na relutância em mudar de óculos. Se tinha de gastar dinheiro, que o gastasse com lentes de contacto e soluções de limpeza, para eliminar proteínas e outras substâncias químicas, gasosas e líquidas, lipídios e componentes inorgânicos, principalmente o cálcio e mucina, oriundas da lágrima. Óculos novos é que estavam fora de questão. Voltou a mexer no pescoço e deu-se conta que lá continuavam todas aquelas borbulhas, aquele estranho e inesperado matagal de bolhas. Seria uma doença? Podia ser uma infecção sistémica causada por bactérias associadas ao intestino. Ou talvez varicela ou escarlatina. Não se lembrava de haver tido alguma vez em miúdo aqueles males. Riu-se interiormente. Seria estranho apanhar agora, naquela idade, uma doença típica de crianças. E se fosse contagiosa? Teria mesmo de ver o que era aquilo. Mas ao invés de voltar ao escritório, na República – com várias estações de metro pelo meio e uma mudança de linha no Marquês – e adiar por uns vinte a trinta minutos a investigação cutânea que teria de encetar, movido por um impulso fugaz, dirigiu-se para as instalações sanitárias do restaurante que ficavam lá em baixo, numa cave pestilenta e sórdida, à qual se acedia por umas escadas estreitas e íngremes ao fundo do salão de refeições. Quando se olhou no espelho, reconheceu de imediato aquele rosto que o fitava no reflexo. Aparentava ser mais velho: a barba branca e os óculos, aqueles malditos óculos, não ajudavam nada. Abriu ligeiramente o colarinho da camisa e, de lado, tentou divisar o pescoço no reflexo do espelho. Lá estavam elas: dezenas, centenas, pequenas bolhas encarniçadas a cobrir a pele. Tinham um ar achacado. — Que merda! — praguejou, entredentes. Puxou a camisa para cima, que usava sempre solta ou à solta, fora das calças, e descobriu, estupefacto, que as borbulhas cobriam-lhe o peito e a barriga. Tinham alastrado por todo o lado. Sentiu um calor súbito, como se de repente as empolas tivessem acordado para começar a atormentá-lo. Aquilo não era normal. Teria de ir às urgências de um hospital qualquer. Podia ser contagioso, podia abraçar-se ao corpo dele de forma galopante para o prender a um qualquer desígnio desconhecido. Que raio de porra seria aquilo? Onde teria apanhado aquela porcaria? Baixou a camisa e voltou a olhar-se no espelho, desta vez de forma expressiva, manifestando a sua estupefacção e uma certa raiva. 12 — Só me faltava esta! — desabafou mentalmente, fixando no espelho o reflexo dos seus olhos escondidos por detrás das lentes dos óculos, emoldurados por um longo tufo de barba branca. Passou o resto da tarde a pensar naquilo, enquanto cumpria maquinalmente os seus deveres profissionais. Uma porcaria de uma base de dados com importação de fotografias via FTP, redimensionamentos vários pela medida maior e publicação nas páginas web, tudo gerado de forma automática através da indexação dos campos de metadados IPTC e EXIF. A sorte é que já havia feito algo semelhante no Brasil, pelo que tinha de alterar apenas algumas linhas de código. Mal chegaram as seis da tarde, que naquele dia Penha não estava para mais, arrumou à pressa as suas coisas sobre a secretária, desligou os dois computadores que tinha à sua frente e preparou-se para sair. Tinha de ir ao hospital. Mas qual? E para quê? Um perto de casa, talvez o de Santa Maria ou o Pulido Valente, para tratar do diagnóstico associado àquele misterioso assalto de bolhas assanhadas? Ou o da mãe, na pequena cidade a norte da grande metrópole, para reavaliar o paradigma crucial da existência humana? Decidiu-se pelo segundo. Ao volante do carro começou a sentir-se mal disposto. Não sabia ao certo de que indisposição se tratava, mas algo não estava bem com ele. Além da sensação de formigueiro, que podia muito bem derivar daquele ataque de borbulhagem, por enquanto de natureza desconhecida, sentia também uma certa ansiedade. À medida que conduzia a sua viatura pelas ruas empedradas e cheias de trânsito de Lisboa, naquele labirinto paralelo às avenidas novas, para chegar à Calçada de Carriche e abandonar de vez a cidade, fustigada por uma chuva miudinha que irrompera nos céus logo após o almoço, a ansiedade dava lugar a qualquer coisa mais séria. Talvez um ataque de pânico. Seria perfeitamente normal. Psicossomático. Mas não. Havia mais. As mãos tremiam-lhe ao volante, sentia uma dor aguda no peito, provavelmente uma contracção muscular em consequência de um impulso eléctrico errado do sistema nervoso central, e o corpo agitava-se de modo independente, como se Tiago tivesse perdido o controlo sobre o seu próprio invólucro material e estivesse à beira de entrar numa espécie de transfiguração espiritual e incorpórea. Talvez viesse aí uma tempestade eléctrica. O céu estava cada vez mais carregado de nuvens escuras e, à medida que a noite começava a cair, Penha ia divisando os clarões de relâmpagos, lá longe, sobre o cabeço de Montachique, ainda bastante espaçados entre eles. Uma trovoada distante e surda, afinal própria da época. Não fazia muito frio e os meteorologistas estavam confiantes de que aquele Inverno seria menos rigoroso que o anterior. Um ano antes, havia nevado em Lisboa, imagine-se. Nunca na vida Tiago tinha visto algo parecido. Nevar em Lisboa? Todos pareceram incrédulos mas saíram à rua, aos magotes, para registar nas suas pequenas câmaras digitais aquele que seria decerto um momento único na vida deles. Isto é, se o aquecimento global não trocasse as voltas entretanto. Efeito Estufa, subida mundial média da temperatura, degelo das calotas polares, gases poluentes, Protocolo de Quioto, furacões, ciclones, toda uma panóplia de vaticínios desastrosos para a condição humana de que se andava para aí a falar sem que ninguém realmente prestasse atenção. Acompanhado por estes pensamentos, Tiago Penha saiu finalmente de Lisboa e começou a rolar na auto-estrada em direcção a Norte, aumentando por conseguinte a velocidade, não obstante o piso molhado e os perigos do aquaplaning. Confiava na fiabilidade do seu carro em matéria de segurança e capacidade de resposta a qualquer perigo. Talvez em excesso. De resto, a auto-estrada estava praticamente vazia. Só de vez em quando ultrapassava uma viatura mais vagarosa ou via os faróis de outros carros a aproximarem-se, do outro lado da via rápida, em sentido contrário. Ainda bem que se decidira pelo hospital onde a mãe agonizava em vez de se dirigir a algum dos 13 metropolitanos onde teria de esperar horas para ser atendido, após a triagem, já o sabia, de tão caóticos que eram os bancos de urgências daquelas unidades de cuidados de saúde, apesar de um novo e revolucionário sistema informático que permitia, diziam os criadores da aplicação, uma melhor gestão dos pacientes e uma maior eficácia no atendimento dos mesmos. Sempre gostava de analisar como havia sido implementada. Quanto tinha custado ao erário público? Quem havia adjudicado o desenvolvimento? Pouco importava. O sistema era bom, estava apenas em fase de testes. É certo que assim, pelo menos Tiago estaria perto do seu lar, doce lar. Quer dizer, do seu novo lar. Porque, bem vistas as coisas, doce era aquele onde havia passado a adolescência, na pequena e pacata cidade a norte da capital, famosa pelo Carnaval, e a sua longa história, ligada às Linhas de Torres, o extenso conjunto de linhas fortificadas erguidas em absoluto segredo em mil oitocentos e nove, por ordem do duque de Wellington, linhas que garantiram a defesa de Lisboa e do seu porto perante o ataque invasor das tropas napoleónicas durante a Guerra Peninsular. Estava tudo no Google. E nos velhos livros de História. Velhos, porque ele se considerava um verdadeiro netizen, filho da revolução digital e da desmundialização, esse controverso substantivo – perdão, conceito – olhado por uns como uma interpretação fascista da globalização e, por outros, paradoxalmente, como um apelo revolucionário para o regresso às origens do compromisso ideológico com o socialismo científico marxista. Como sempre, ninguém se entende quando a proposta de uma ruptura epistemológica ainda não teve tempo de transitar para o passado e dar lugar a novas discussões que terão o mesmo destino. O pensamento está sempre fora dos espaços de debate de que supostamente é objecto. (Web Forum: O pensamento deveria ser um lugar organizado, limpo, sempre com espaço livre para a circulação e uma boa entrada de luz. A frase é de uma amiga: o pensamento cria o espaço. O espaço só está lá para o que vier. Ele aceitará tudo. Inclusive o pensamento sobre ele próprio. Ninguém é moderno de si próprio) Aquela cidade era, com efeito, uma das povoações mais antigas da região com despojos da forte presença de civilizações pré-históricas, romana e árabe, e até aparecia nos manuais escolares, como se isso valesse alguma coisa. Aliás, com um Carnaval tão intenso, regado por milhares de litros de cerveja, quem se interessava pelo assunto? O importante era mesmo o hospital. E o seu estado, que passou de caótico a lastimoso, um progresso significativo. Talvez tivesse de reconsiderar. Dois não é a conta que Deus fez, mas estava a soar-lhe bem. Dois hospitais numa só noite; visitaria a mãe e regressaria a Lisboa para passar pelo Pulido Valente. Mesmo que demorasse a noite inteira, mesmo que estivesse de estar acordado até às tantas da madrugada, para ser diagnosticado e devidamente medicado, Tiago havia decidido e assim estava decidido: determinado a lá ir, ou não fosse aquele ataque de borbulhas tomar conta de todo o seu corpo, obrigandoo a vergar-se ao peso de uma qualquer doença bizarra e mortífera. Quais eram mesmo os sintomas do Ébola? Febre, dores de cabeça e conjuntivite. Depois diarreia, náuseas e vómitos, por vezes com sangue. Talvez tivesse febre. Dores de cabeça por enquanto não. Ou Sida. Não, não tinha, sabia que apesar do calor que emanava das bolhas, a temperatura do corpo estava normal. Quanto ao vírus da imunodeficiência, há muito que se convencera de que não o atacaria. Fazia sempre sexo seguro, embora com pessoas inseguras, e mesmo assim nem por isso era muito regular nessa actividade a dois, porque tendia mais a consumá-la a um, ou seja, sozinho, agora que o tempo passara e havia já envelhecido demais. Mas tanto quanto sabia, bater uma punheta ainda não era passível de infecção com o vírus da Sida. Contudo, que não estava a sentir-se bem, lá isso não estava. Hipocondria? Não, o mistério era outro e assomou-lhe sob a forma de uma luz, que rasgou de súbito o céu encrespado de nuvens densas e o impeliu a afrouxar a marcha até imobilizar por fim o 14 carro, do lado direito, fora das faixas de rodagem. Havia qualquer coisa de etéreo ali. A luz era intensa e avermelhada, e apontava directamente para ele. Contudo, Penha não se assustou; ao invés, sentiu uma enorme e, por conseguinte, inexplicável atracção por aquela forte luz vinda do céu que incidia sobre ele. Quase que o cegava. Tentou tapar os olhos com o braço, desviar o olhar, mas a cabeça não se mexia. E ei-lo ali, sentado ao volante do automóvel, com a cabeça levantada em direcção à luz no céu e a chuva a fustigar o pára-brisas. É claro que tudo sucedeu de forma muito rápida, não dando tempo a Tiago para ordenar os pensamentos ou questionar-se sobre a origem daquela inusitada aparição luminosa. Já não sentia o formigueiro nem a ansiedade. Agora, eram náuseas – se se lhe juntasse a diarreia podia mesmo ser aquela terrível febre hemorrágica – e a dor no pescoço, resultante daquela posição da cabeça, imóvel, virada para o céu, como se nada mais pudesse fazer e se estivesse a preparar para a transição do seu mundo para outro, um mundo qualquer desconhecido, de uma diferente natureza dimensional que não aquela que sempre conhecera. Instantes depois, que a Penha pareceram uma eternidade, tal era o seu desarranjo mental, a intensidade da luz diminuiu e ele pôde ver o que se escondia por detrás dela: um engenho em forma de disco, vermelho, que de repente, mal a luz perdeu a força, subiu nos céus a uma velocidade colossal. Tiago conseguiu acompanhar com os olhos o movimento daquela estranha máquina e por fim mexer ligeiramente a cabeça e o pescoço. Lá em cima, nos céus, a uma altura considerável, o engenho em forma de disco expeliu de repente duas bolas de fogo azul, que começaram a cair até iniciarem um movimento circular em volta de Penha, quando deveriam estar a cerca de cinquenta ou cem metros de altura. Ele não conseguia avaliar a distância. Foi então que ouviu uma voz, suave, mas misteriosamente audível considerando que deveria partir daquelas bolas de fogo lá no alto, no céu. — Não tenhas medo! — tranquilizou a voz. — Sai do carro e ouve com atenção. Tiago abriu a porta da viatura, para sair cá para fora e ficar de pé, à chuva, com a cabeça levantada na direcção das bolas de fogo, e o corpo a empapar-se de água. — Esta luz que acabaste de ver é apenas um instrumento de navegação e comunicação — prosseguiu a voz. — Mas não tenhas medo. Somos teus amigos. É difícil perceberes que não fazemos parte do teu mundo, mas não tencionamos fazer-te mal. Pelo contrário, precisamos de ti. Penha foi acometido por uma necessidade imensa de beber qualquer coisa e a voz, curiosamente ciente da sede dele, reagiu em conformidade. — Tens sede? — indagou a voz oriunda das bolas de fogo. E de súbito, sem mais nem menos, vindo do nada, apareceu um cálice de prata em cima do capô do carro. Sem medo, invulgarmente calmo, Tiago agarrou na taça prateada e ingeriu o líquido que estava lá dentro. Era incolor e inodoro como a água, mas tinha um sabor diferente, algo indescritível que ele nunca havia experimentado. No espaço, entre as bolas de fogo, que continuavam a desenhar círculos perfeitos em volta de Penha, lá em cima, apareceu um ecrã em três dimensões, bastante luminoso. E nele Tiago vislumbrou, absorto na estupefacção que o subjugava totalmente, uma silhueta de uma criatura humana, a meio corpo, escura, na qual se viam apenas uns olhos enormes e brilhantes. Penha depositou de novo o cálice sobre o capô do carro, o qual desapareceu logo de seguida. 15 — Há séculos que andamos a vigiar o teu planeta — continuou a voz. — A Lei Cósmica impede-nos de fazer qualquer revelação sobre o assunto mas a Terra está em perigo e temos de agir de imediato. Mal acabou de soar a última palavra, o ecrã desapareceu, como se tivesse sido cortada uma qualquer fonte de alimentação eléctrica e, novamente num momento repentino, as bolas de fogo azul regressaram ao engenho em forma de disco. Que porra de lugar-comum para tão estranha aparição, ele que nunca tivera vocação para pastor! Foi a última coisa que Tiago pensou antes de cair no asfalto, sem sentidos, metralhado pela chuva que se precipitava agora abundantemente sobre a auto-estrada deserta. Na Argentina, também houve quem visse o mesmo, até descobrir que tudo não passava dos destroços de um satélite da NASA que se havia despenhado; não confundir com a região com o mesmo nome no sudeste de Minas Gerais, no Brasil. Ao acordar, sem conseguir perceber quanto tempo decorrera entretanto, veio-lhe logo à memória aquele inesperado encontro de terceiro grau, mas tão depressa se lembrou do episódio quanto se apercebeu que já não estava na estrada, debaixo de chuva, mas algures, deitado em cima de qualquer coisa fofa, esponjosa, num local que lhe pareceu ser uma enorme sala, totalmente banhada pela mesma luz avermelhada e absorvente que contemplara aquando do inexplicável aparecimento do engenho em forma de disco. Olhou em redor e confirmou a primeira impressão que os sentidos lhe apresentaram. Estava com efeito numa sala imensa, debaixo de um dos muitos halos vermelhos que iluminavam vários pontos. Havia algumas pessoas nuas a dançar, homens e mulheres, de modo lento e arrastado, em transe, enquanto se ouvia oriundo de algures o som de tambores com batidas num compasso lento, sempre iguais, guiadas por um metrónomo invisível. Penha soergueu-se naquilo que lhe parecia ser um pufo mole e notou as cores das paredes e do chão. Vermelho vivo na vertical e um tapete de mármore axadrezado, a preto e branco, na horizontal. — Estás vivo? Tiago olhou da direcção da voz, que tinha vindo do seu lado esquerdo, e deteve-se a observar uma mulher morena, também nua, deitada ao lado dele, aninhada na cova que o corpo dela fizera no pufo que ambos partilhavam. Um pufo preto, de pele, como Penha pôde descobrir entrementes. Pela sala, entre nuvens de fumo geradas por dezenas de cigarros acesos, espalhavam-se vários outros pufos, todos eles ocupados com pessoas deitadas. Estava toda a gente nua, incluindo Tiago. Mas o local não era frio, pelo contrário; era abraçado por ondas de calor que se incrustavam no corpo de Penha, não obstante estar nu e recordar-se do frio que tinha sentido, embora não soubesse bem quando. Não havia sido durante o encontro cósmico, porque ainda se lembrava com clareza da estranha apatia com que vivera tudo aquilo. Completamente paralisado. Portanto, não houvera lugar a impressões físicas. Todavia, algures na consciência, agitava-se uma remota memória da sensação de frio. Algo de glacial, gélido, que lhe enregelara os ossos. Mas quando é que isso tinha acontecido? Decerto que havia desmaiado. Houvera um apagão qualquer e talvez tivesse sido nesse momento que foi atacado pelo gelo. As bolas de fogo azul haviam regressado ao disco. Quase que conseguia vê-las agora. A imagem daquela ascensão veloz era extremamente nítida. Mas a partir daí tudo se tinha tornado confuso. O que havia sucedido depois? E como fora ali parar? Que lugar era aquele? Atacado por um súbito sentido de pudor, potenciado pelo desconforto da nudez, procurou as suas roupas ou algo que pudesse usar para se tapar, mas não havia mais nada na sala, a não ser aquela nudeza absoluta, todos aqueles corpos em hipnose, a dançar ou deitados nos pufos espalhados pelo chão axadrezado, cheiro intenso a tabaco 16 e álcool e o som compassado das batidas de tambores sob as várias auréolas avermelhadas. — O teu corpo está cheio de borbulhas encarniçadas — prosseguiu a mulher, a olhar para o tecto, sem se mexer. — Deve ser a peste vermelha — e desatou a rir, desta vez virando-se para ele. A mulher soltava umas gargalhadas sonoras, dementes, que se sobrepuseram ao som dos tambores. Tiago notou o batom vermelho em excesso que ela tinha nos lábios e, por um momento fugaz, no meio daquela risada enlouquecida, como se fosse um insert posto à frente dos seus olhos por um qualquer director de cinema sádico, pareceu-lhe ver em grande plano a laringe da mulher, um órgão fibromuscular nada bonito de se olhar se visto de tão perto. De resto, toda ela era de uma fealdade angustiante. É difícil descrever uma pessoa feia. Que nos parece feia. Porque não há qualquer entusiasmo que nos mova a procurar os adjectivos certos. Não basta registar a fisionomia e dizer que a mulher tinha cabelo preto intensamente oleoso, uns olhos pequenos e mortiços envoltos num torpor feito de álcool ou qualquer outra droga, ou um nariz curvo, bastante adunco como o bico de uma águia. Como se narra os atributos da fealdade? (Web Forum: A fealdade, seja ela qual for, é isenta de atributos, penso eu. A que se segue a evocação de um poema épico grego: A primeira descrição física pormenorizada da literatura ocidental é a de um homem muito feio, o grego Tersites. Veja-se a Ilíada, II.211-219. Na tradução de Frederico Lourenço. “Era o homem mais feio que veio para Ílion: tinha as pernas tortas e era coxo num pé; os ombros eram curvados, dobrando-se sobre o peito. A cabeça era pontiaguda, donde despontava uma rala lanugem.” Alguém pergunta: E o coração seria bonito? Resposta imediata: Pelo contrário, é uma figura antipática, o que vai de acordo com as teorias antigas, segundo as quais havia uma correspondência directa entre o corpo e a alma) Na verdade, o que mais saltava à vista era aquela boca de lábios finos com contornos mal definidos, carregados de batom vermelho, que lhe entrava pela boca e manchava os dentes. Havia ali qualquer coisa de vampírico, que se assemelhava a sangue, como se a mulher tivesse saciado já a sua sede daquele líquido espesso constituído por plasma e células que nos faz viver, e agora consumasse com risos diabólicos a sua sorte e condição de predadora. Penha levantou-se de rompante, meio estonteado, consciente do ridículo da sua nudez. Nada daquilo fazia sentido. A realidade havia perdido todo o sentido de verosimilhança a partir do momento em que havia começado a vislumbrar nos céus aquela luz singular. As gargalhadas ruidosas e demoradas da morena continuaram a fazer-se soar, mas ninguém prestava atenção. Tiago ensaiou alguns passos vacilantes pela sala à procura de uma saída. Mas parecia tudo igual. Luzes vermelhas projectadas no chão de xadrez e o som dos tambores, com uma multidão de gente nua a dançar. E pufos pretos, dezenas deles espalhados por aquele salão que não parecia ter fim. Sempre o mesmo cenário obscuro, profundamente tenso com a falsa aparência de serenidade, uma bonança falaciosa induzida pela alienação. Seria uma casa de swinging? Ou de alterne com características muito invulgares? Uma sala de chuto? Uma casa de ópio? Tiago Penha sabia bem que o uso de ópio mascado ou fumado, que se espalhou no Oriente, provoca euforia, seguida de um sono onírico. Mas não havia por ali qualquer sinal do cheiro típico desagradável daquele suco resinoso. Não adiantava muito pensar no assunto. Qual era a direcção que havia de tomar para sair dali? Teria forçosamente de abrir caminho por entre os bailarinos em transe e talvez tropeçar, aqui e ali, nos pufos, roçando o seu corpo coberto de borbulhas, fruto da tal misteriosa erupção cutânea, pelos 17 corpos dos outros. Nudez absoluta e hedionda, de corpos suados e odores vários, tudo ao som de um frenesim melódico do tipo tribal e gargalhadas dementes. O chão estava frio, completamente gelado. Começou a andar, devagar, em boa verdade mais a cambalear do que a andar. Optou por uma direcção sem saber aonde o levaria. À medida que avançava pelo meio daquele festim carnal e enquanto via, atónito, várias pessoas em êxtase a rebolar pelo chão, apercebeu-se do som de gemidos e gritos, cuja natureza rapidamente identificou. Do som e de um cheiro asqueroso, uma essência odorífera genital complexa resultante de um cocktail de esperma e líquidos vaginais. Um pouco mais à frente, dezenas de homens e mulheres, amontoados desordenadamente, copulavam de modo desenfreado e diabólico, uns em cima dos outros, selvagens, uma orgia alucinante e infernal, que nauseou e desnorteou Tiago ainda mais. Foi nesse momento que sentiu uma dor profunda e lancinante no maxilar inferior. E o sabor a sangue que quase o asfixiou por instantes, de tão rápido que havia sido expelido pelos lábios rasgados para o interior da sua garganta. Cheio de vertigens, Penha tentou equilibrar-se sobre as pernas titubeantes, mas não conseguiu. Uma pancada violenta no estômago deitou-o por terra, fazendo com Tiago embatesse com a cabeça contra o chão de mármore. Vinda debaixo dela, uma mancha escura e viscosa começou a deslizar vagarosamente por um dos quadrados brancos até se perder num quadrado preto. 18 III. Há uma dor no lugar onde devia haver prazer, confidenciou várias vezes Tiago Penha sempre que admitia ser um viciado em sexo, a única dependência totalmente inofensiva para o corpo; a possibilidade de entender que o sentido da vida não passa do mero suprimento de necessidades, da satisfação das necessidades primárias biológicas. E a ideia de prazer era a melhor forma de o traduzir. É evidente que Tiago não escondia uma certa vontade venenosa de tentar contaminar os fundamentos do funcionalismo de Malinowski, tanto mais que reconhecia que o desejo de prazer pode ter danos colaterais. Mas logo os remetia para o plano incorpóreo, pelo menos enquanto uma manifestação directa de causalidade. Mal sabia ele que seria precisamente pelo prazer que Maria Clara, já na etapa final da demência dela, lhe desferiria o golpe capital. Maria Clara nem sempre fora assim. Quando se conheceram, era uma mulher tímida e insegura. Mas o tempo dilatou-lhe as veias do opróbrio e Maria desatou num crescendo de raiva permanente e degradação moral a todos os níveis. Contra ela própria, contra a família, contra os amigos, contra o Mundo. Quanto ao móbil, esse, Penha conhecia bem: ele mesmo, Tiago, o adúltero, Tiago, o cabrão, Tiago, o depravado, um professo da ignomínia, da infâmia e da torpeza, que andou a esquadrinhar com particular empenho o interior da vagina de uma colega de trabalho quando Maria estava grávida dele. Antes de abortar. Antes de tomar a dolorosa decisão de matar a vida dentro do seu útero. Para sempre. Renegando as Leis de Mendel e a possibilidade de cumprir a palavra do Senhor, pela qual se apaixonaria mais tarde. Tarde demais. Bem sensatos são os militares ao insistirem que colegas são as putas. Demorou mais de duas décadas, mas a sentença acabou por ser proferida. E cumprida. Tiago Penha foi vítima de homicídio por envenenamento. Com diligências várias, e após uma investigação exaustiva mas secreta sobre o verdejante mundo dos alcalóides venenosos extraídos de plantas facilmente acessíveis a um olhar botânico mais atento, Maria Clara, uma mulher apetrechada que a princípio – mas só apenas e rigorosamente no princípio, antes de descobrir a reiterada e abjecta prática de infidelidade conjugal do marido – se apresentava como fogosa e nunca se opunha aos criativos desejos carnais de Penha, que incluíam práticas sexuais um tanto ao quanto invulgares, decidiu untar a vagina com cicutina, uma substância tóxica mortal insípida com a aparência de um óleo amarelado. Extraída da cicuta, uma planta apiácea também conhecida como abioto, a cicutina, ou em rigor, a cicutoxina – que ficou inscrita na História como «o veneno de Sócrates» – provoca o colapso do sistema nervoso central e, por conseguinte, a morte, que, por sinal, não é coisa bonita de se ver. Pelo menos desta forma, já que a mors, no sentido da mitologia greco-romana, até pode assomar de modo exuberante, como uma bela e flamejante imolação por fogo. Mas não é o caso. Que o diga o filósofo grego, se ainda falasse, ou escrevesse, após a famigerada ingestão do chá de cicuta que lhe arrefeceu e enrijou o corpo. É certo que o ataque tóxico não foi imediato. Sócrates ainda teve tempo de andar às voltas pelo quarto, mergulhado nos seus profundos e derradeiros 19 pensamentos até que começou a sentir as pernas pesadas. E aí sim, depressa passou das voltas pelo quarto ao quarto às voltas, desaire locomotor que obrigou o pensador ateísta, um malévolo instigador da corrupção moral dos jovens gregos, a deitar-se de costas. Os seus carrascos examinaram-lhe os pés e as pernas até se certificarem de que o filósofo havia deixado finalmente de as sentir. Seguiram-se as carícias mitigativas da toxina no coração e o princípio do fim da existência cartesiana, ontológica e epistemológica do enigmático pai da filosofia ocidental. “E agora chegou a hora de nós irmos, eu para morrer, vós para viver; quem de nós fica com a melhor parte ninguém sabe, excepto Deus”, ter-se-á despedido Sócrates, o ateu, que aparentemente acreditava no Senhor, como relata o seu discípulo Platão, lançando a dúvida sacrossanta dos filósofos, que pouco tem de sagrada para o venerável e sacro conhecimento daqueles que condenaram o pensador à morte em nome da santidade. E provavelmente de alguma, ou muita, necessidade de sanidade religiosa para tempos tão adversos. Foi pois sob «o veneno de Sócrates» que Tiago Penha sucumbiu entre as pernas da mulher, com os lábios ainda molhados de sucos vaginais. E de uma dose letal de cicutoxina. Uma mise-en-scène clitórica indigna para um homem que sempre se havia mostrado como um arauto do prazer na sua dimensão mais funcional e, por conseguinte, mais pura, condenado, também ele, a ser imortalizado, pelo menos ao olhar de Maria Clara, com a boca caída sobre a púbis aloirada da mulher e o corpo retesado, nu, de rabo para o ar. Quem deles ficou com a melhor parte ninguém sabe, ele que partiu para morrer, ela para viver, mesmo enclausurada. Na loucura. E num hospício. A cumprir a pena decretada pelo tribunal. Sem possibilidade de redução da mesma por bom comportamento, que ali não era coisa boa de se ajuizar. Na prática, absolvida do crime, por inimputabilidade, mas condenada a pagá-lo perante a sociedade, como é bom de ver, sob a forma do internamento compulsivo por tempo indeterminado e em regime fechado para tratamento psiquiátrico, ou não fosse o mal propagar-se de forma epidémica contagiando as demais, outras mulheres que porventura do mesmo se queixem e o mesmo desejem fazer. Porém, Maria pouco se importava com a questão pelas razões de que estava convencida ter, razões essas que, do seu ponto de vista, legitimavam em absoluto a prática daquele nefasto gesto assassino. Não deixa de ser curioso, contudo, no quadro deste bizarro crime vaginal, que alguns investigadores forenses tenham perdido imenso tempo, na fase das entrevistas periciais, a tentar descobrir se a expedita companheira marital de Tiago Penha, que acreditava ser tanto a esposa de Cristo como a esposa do Senhor – o que vai dar ao mesmo, embora a Igreja diga que não – terá chegado a atingir o orgasmo de tão excitada que estava em atentar de forma definitiva e irremediável contra a integridade física do esposo. A avaliar pelos fulgores a que costumava dar-se no acto do amor – no princípio, antes dos crimes originais, o adultério e a asfixia de um feto, como várias fontes próximas da homicida corroboraram – é bem provável que tenha chegado a sentir as universalmente almejadas contracções reflexas ritmadas dos músculos perivaginais e perineais que circundam a vagina, a intervalos de zero vírgula oito segundos. Para isso, e não obstante estar consciente de que o seu centro gravitacional de prazer ocultava um alcalóide altamente venenoso, Maria Clara terá de ter sentido uma vasocongestão e o início da lubrificação vaginal, com os pequenos lábios ingurgitados a assumir uma coloração intensa arroxeada ou cor de vinho e uma retração do clitóris em posição protuberante a colocar-se por trás da sínfise pubiana. São meras suposições fisiológicas, mas a ciência forense a tal se viu obrigada em busca da validação das suas descobertas, tantos mais que era delas que dependia, em parte 20 considerável, uma boa acusação judicial e a conveniente condenação da ré. Que não se verificou a instâncias da inimputabilidade. Quanto a Tiago Penha, apesar de não ter sido tarefa fácil remover-lhe da boca e da língua os restos de pêlos púbicos da mulher, pelo menos o seu corpo não apresentava um tom cor-de-rosa, como sucedia com os judeus. É sabido que os nazis não resistiam a dar umas boas gargalhadas sempre que abriam as câmaras de gás. E entende-se. Corpos e mais corpos, todos amontoados, todos rosados. Não é por acaso que a diáspora judaica escolheu o azul – felizmente apenas a cor, ao invés de bolas de fogo azul – para o centro da sua bandeira nacional, a estrela de David, que traduz a primeira territorialização soberana sionista: o Estado de Israel. Pelo menos é a tese defendida por alguns especialistas que, melhor do que ninguém, sabem explicar estas coisas, embora não esteja ainda muito claro o porquê do azul em prejuízo de outra cor primária como o amarelo ou o vermelho. É certo que o azul é a cor da espiritualidade, da abóboda celeste – ou a ilusão da mesma, que no espaço a imensidão de negritude bem que poderia ser o paraíso cosmológico das mais variadas diásporas subsarianas, faltava aqui Isaac Newton para o sugerir – a cor de um céu limpo e imaculado, o que faz supor uma predisposição para uma maior proximidade com as divindades que erram pelo universo; mas remete também o pensamento e, já agora, para um grupo de artistas de inspiração expressionista, curiosamente germânico, o Der BlaueReiter, ou O Cavaleiro Azul. Poder-se-á aduzir o argumento de que o azul simboliza a lealdade, a fidelidade, a personalidade e subtileza. Trata-se, com efeito, de uma cor romântica, talvez porque lembre a cor do mar, mas está igualmente associada à falta de coragem ou monotonia. Por seu lado, o amarelo transmite calor, luz, descontracção; é uma cor cheia de energia, activa, associada à prosperidade e que transmite optimismo. Tal como o vermelho, a cor da paixão e do sentimento, do amor e do desejo, do orgulho e da violência, da agressividade e do poder. Mas os hebreus assim decidiram, e está decidido. Para acabar de vez com a humilhação da morte cor-de-rosa, e a fragilidade, delicadeza e o pendor feminino que lhes são inerentes. Até nisso o nacional-socialismo alemão foi cruel: chacinou a praga judaica sob o ditame da efeminação. De certo modo, também foi este o destino de Tiago Penha: nu, de rabo para o ar, com a língua enfiada na vagina ardente e possessa da mulher, com o corpo inerte e sem vida. Um homem desvirilizado na hora definitiva e irreversível da partida. Por efeito do seu desejo mais primitivo e animalesco – na verdade uma necessidade primária biológica – atacado selvaticamente por um clítoris venenoso. O doce veneno do escorpião, esse temível aracnídeo que nem no Zodíaco escapa de ter fama de má rês. Um invertebrado artrópode cujo móbil gravitacional é tão-só o prazer e a posse na sua relação com o outro; o sexo e a paixão possessiva; o amor e o ódio; sempre pronto a atacar. Não foi este o animal enviado por Apolo para matar Órion, enciumado com a relação entre este e a sua irmã Ártemis? Não está cientificamente demonstrado que as estrelas de Órion desaparecem do Ocidente quando as do escorpião nascem no Oriente? O sexo oral sempre teve destes problemas. Foi justamente através de um pequeno vídeo caseiro, no qual se via uma mulher a lamber à força os baixios vaginais de uma adolescente – à força é como quem diz, porque a menor estava inconsciente – que Karla Leanne Homolka (a retratada no filme) e o marido Paul Bernardo, um casal de serial killers canadiano, foram apanhados pela polícia. Após dezenas de casos de abusos sexuais e assassinatos violentos de mulheres adolescentes que se arrastaram durante três longos anos. Aliás, esta onda de produção de vídeos ditos caseiros com imagens de natureza sexual mais ou menos explícitas tem muito que se lhe diga. Sobretudo quando caem na rede. 21 Não é de supor, apesar de tudo, que valha a pena perder muito tempo com o tema. Tanto mais que o mesmo está devidamente documentado e até se transformou numa prática comum com intuitos nem sempre muito claros. Os visados tendem a queixar-se, com ameaças várias em conformidade com a natureza e a dimensão da publicidade dada às imagens, mas o protagonismo mediático que decorre destes já célebres vídeos leva a crer que o fenómeno digital, que enferma de contornos claramente neuróticos – poderse-á dizer, embora se remeta a questão para quem melhor seja capaz de a avaliar – será bem mais objectivo, nos efeitos que visa produzir, do que um mero e subjectivo fetiche, posicionado a montante, como alguns defendem. Tudo somado, o certo é que, a jusante, o resultado é o mesmo. Para delícia dos cibernautas adeptos deste voyeurismo pastoral. O que parece dramático é o crescente apetite pela inocência roubada, uma liberdade eufemística a que aqui se se dá ao luxo de recorrer para sublinhar a problemática da devassa da intimidade por meios ilegítimos (ou quase, porque nestas coisas da legitimidade a zona cinzenta é extensa e pantanosa). Devassa, pois não se trata de gente adulta, ou no limite legalmente emancipada, a sopesar, lamber, sugar, tilintar, penetrar ou deixar penetrar as protuberâncias e os orifícios erógenos e ejaculadores dos seus corpos suados e tensos, no precipício do prazer supremo; mas de menores, seres humanos ainda a caminho da consciência plena da sua sexualidade. No Chile, o caso «Wena Naty» é paradigmático. A história começou com as imagens amplamente divulgadas, sobretudo na Internet, de uma jovem de catorze anos, estudante de um colégio católico, a abocanhar o falo erecto de um rapaz num dos parques mais frequentados de Santiago, à luz do dia, enquanto um amigo da dupla, ou amigos – há várias versões – registava às escondidas o famigerado felaccio juvenil. As provas materiais da degustativa felação levaram milhares de visitantes ao sítio que as publicou online e as autoridades locais a investigar o assunto depois de considerarem que havia fortes indícios da existência de um grupo organizado de adolescentes que se dedicava à produção de material pornográfico. Wena Naty, a rapariga da garganta prematuramente funda, ficou conhecida em todo o Mundo, tal como o nome dela, que entrou inclusive para o património lexical daquele País sul-americano. «Dicese de la mujer ke le gusta lamer una y otra vez el miembro inferior masculino, sin importarle de kien es», «cabra culia q le chupa el pico a todos los compañeros» ou «pequeña prostituta que le gusta hacer mamadas en plazas y ser exhibida en youtube» são algumas das definições que podem ser encontradas para a expressão «Wena Naty». De resto, foi precisamente com este nome que se popularizou o sítio que divulgou os três vídeos malditos da perversa filha da blasfémia, entretanto removidos pela Justiça. Sublinhe-se, todavia, que a perfilhação demoníaca nunca chegou a ser estendida ao coprotagonista masculino, uma vez que, crê-se, em terrenos da Igreja e da fé – a Católica Apostólica Romana, que as outras não são para aqui chamadas – quem manda são os homens. É que, apesar de todos os encantos do misterioso feminino tão exaltados pelos vários movimentos intelectuais fruto do romantismo europeu, as mulheres servem para pouco. Basta lembrar o que o Senhor Deus disse no acto da criação: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe um ajudante”. Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e trouxe-os ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. Mas entre todos eles não havia para o homem um ajudante à altura. Então o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre o homem e ele adormeceu. Tirou-lhe uma das costelas e fechou o buraco com carne. Depois da costela tirada ao homem, o Senhor Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem. E o homem exclamou: “Desta vez sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Chamar-se-á mulher porque foi tirada do homem”. 22 Está tudo escrito no Antigo Testamento, e pena é que nunca tenha constado também nos manuais eugénicos para a devida beatificação do Terceiro Reich. Quem somos nós para contrariar os desígnios do Senhor Deus, nosso pai? Primeiro, há o homem. Depois há os animais e as mulheres, cada uma das espécies com os seus respectivos deveres e obrigações para com o homem, em nome da vontade divina. Após o felaccio da jovem chilena, Wena Naty, o sítio da web, mostrou mais. Ainda chegou a aventurar-se pela libidinosa adrenalina do bullying, mas os falos erectos e robustos abocanhados por pequenas e pueris bocas femininas é que faziam sensação. Daí que se seguiu mais um caso, de novo num colégio, agora franciscano, um pouco mais distante do centro nevrálgico da capital, mas situado ainda nos limites da região metropolitana de Santiago. Desta vez, o protagonista central foi um estudante, igualmente de catorze anos, um aluno problemático e, por conseguinte, repetente, que conseguiu derramar as sementes líquidas das suas glândulas reprodutoras sobre as línguas e os lábios de pelo menos de três raparigas de doze anos. A diferença é que o fez, entre ruidosos gemidos, em plena sala de aulas à frente de toda a turma. Uma, duas, talvez três ou mais vezes, inquinando a conta que Deus fez. Por estranho que pareça, ninguém sabe ao certo quantas foram nem as condições em que foi possível que os supostos factos ocorressem e de forma tão reiterada. Mas há imagens que o provam, captadas com telemóveis. As alegadas vítimas acusaram o rebelde de as ter forçado a tão ignóbil prova oral perante o olhar impassível e complacente dos restantes alunos, tanto rapazes como raparigas. Em contrapartida, o presumível autor dos desenfreados crimes sexuais alegou que as bocas das meninas abriram-se milagrosamente, com o devido consentimento, para receber a jeito e com prumo o seu membro viril, determinado a distribuir esperma pelas demais, que se infiltrava pelas narinas e corria em longos fios gelatinosos pela boca e o queixo de cada uma das raparigas. A Nação chilena ficou chocada. Os media promoveram intensos e numerosos debates sobre o assunto com psicólogos, psiquiatras, profissionais de educação, investigadores policiais e até representantes do Governo; ouviram os testemunhos dramáticos das jovens chupadoras de pénis, alegadamente à força, mediante a exigida e conveniente protecção de identidade; ouviram os pais chorosos das supostas vítimas, que deram a cara e deitaram por terra o anonimato das filhas amadas; e, por fim, ouviram igualmente o presumível coleccionador exibicionista de felaccios. Ouviram, condenaram, mas ninguém foi sentenciado. A mise-en-scène brochante não passou disso mesmo. De um fait divers que acabou por brochar com o tempo, não obstante os protagonistas do caso ou, em rigor, o próprio caso em si ter ficado mundialmente conhecido. Ou quase. O que parece dramático, insiste-se, é que há mais, muito mais. Que se cite apenas mais um caso, ainda no Chile, referenciado aqui sem qualquer objectividade geográfica, aproveita-se para sublinhar, mas tão-somente devido à profusão de notícias que do País chegam e que muito têm contribuído para a história recente do sexo oral na sua dimensão paludosa: uma adolescente de quinze anos foi filmada num quarto, também com telemóveis, com a boca a saltitar entre os pénis de três amigos, com idades compreendidas entre os vinte e cinco e os trinta anos, e houve rumores de que teria feito o mesmo com um outro homem, uma fricção labial culminante que terá sido igualmente registada em formato digital. O sexo oral sempre teve destes problemas, repete-se, embora o essencial da questão não resida na modalidade sexual em si. Esta constitui, aliás, uma prática saudável para a vida íntima de qualquer casal – excepto para Tiago Penha – que até pode ser potenciada quando exercida em simultâneo, numa desafiante amálgama de sucos vaginais e nacos de esperma, com as variantes homossexuais, transexuais, lésbicas e mesmo grupais e 23 transgénicas, para arredar de vez a monotonia mórbida das paixões missionárias. O problema está no apetite pela inocência roubada, movido por desejos erráticos censuráveis e altamente condenáveis. Não admira, pois, que Maria Clara andasse tão convencida de ter razões, e de sobra, para usar, em sede de sexo oral, a mesma arma na versão feminina, após um curto mas doloroso período de cedências esbraseadas aos mais variados desejos carnais de Tiago Penha. Um ataque vaginal fulminante contra a integridade da vida do marido, um chefe de família que fingia pisar convicto – embora não o manifestasse no plano racional mas tão-somente no moral (coisa estranha e contraditória, que à frente se perceberá melhor, sobretudo através de Hipócrates) – os terrenos da Igreja e da fé, onde quem manda são os homens, mesmo sem uma costela, retirada à força pelos propósitos divinos para dela fazer a espécie da mulher, uma vez criada a espécie dos animais. E quem disto tem dúvidas, por eventualmente identificar nos textos sagrados um sentido apócrifo, é bom lembrar os ensinamentos de Hipócrates, o insuspeito “pai da medicina” da gloriosa cidade-Estado de Atenas. O estudioso da Grécia antiga, um homem com uma total integridade ética, que até legou o famoso «Juramento de Hipócrates», encontrou uma forte causalidade exógena no pólo de explicação da maioria das doenças e outras enfermidades. A malária, papeira, pneumonia e tuberculose, que assumiram por vezes um carácter epidémico, são disso um bom exemplo ao aparecerem nas proposições hipocráticas inelutavelmente relacionadas com factores climáticos, raciais e mesmo dietéticos, denominadores comuns que fazem avultar a importância da escala de valores em que cada povo se posiciona e o modo como cada um conduz a sua vida, física e espiritual. A dicotomia é evidente e inevitável: está-se do lado das forças do bem ou das forças do mal. E a isto ninguém escapa, pois não há meio-termo. É aqui que entram as mulheres. Com efeito, Hipócrates demonstrou de forma cabal e inequívoca – suprima-se a redundância pleonástica – como a mulher é uma espécie inferior, equivalente à dos animais; é o que se pode inferir da sua análise sobre a histeria, um desarranjo mental tipicamente feminino. Com base num extenso e demorado trabalho de pesquisa científica – e aqui estão os fundamentos do padrão moral que guiava Tiago Penha, isto é, a natureza muito peculiar dos terrenos da Igreja e da fé, mas só esta e nada mais, que ele escolhera para pisar com convicção – embrionário é certo, mas longe do empirismo áspero e penoso do polímata egípcio Imhotep (por vezes citado como Immutef, Im-hotep ou Ii-em-Hotep), Hipócrates concluiu que, quando as mulheres não podem ter filhos, o útero descai, impede-as de respirar e faz com as que as angústias lhes subam à cabeça, o que explica os devaneios histéricos e a necessidade de cumprir a palavra do Senhor. “Sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela”, disse Deus a Noé e aos filhos deste, aquando da nova oportunidade dada ao homem após o fracasso pré-diluviano de toda a descendência de Adão, a quem o Senhor havia recomendado o mesmo. Quer isto dizer que, sendo a histeria uma maleita das virgens e das estéreis, mulheres com ausência de ovulação, lesões nas trompas de Falópio, endometriose ou problemas do colo do útero e, portanto, desnecessárias, as mulheres, entenda-se, o sexo com fins procriadores, e com mulheres férteis – sublinhe-se – apresenta-se como uma obrigação de qualquer homem, tanto mais que só assim se cumpre a palavra do Senhor, que Tiago respeitou com empenho mas só pela metade, a que lhe interessava. Não se pode deixar de estranhar, todavia, que Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis, e até de algumas invisíveis, o mesmo que no Jardim do Éden deu ao homem a liberdade total, incentivando a reprodução por via sexual sem nunca referir que podia haver meios que não serviam os fins, tenha olhado pouco tempo depois para o planeta e determinado, por um misterioso silogismo, que o 24 mesmo estava corrompido, quer dizer, ferido de uma certa ordem moral que, em boa verdade, nunca foi muito inteligível, pelo menos de forma consensual entre toda a raça humana. Por outras palavras, o cumprimento das ordens primeiras deu lugar afinal à percepção divina da existência da Babilónia, a Grande, morada de meretrizes sentadas no dorso de uma fera cor de escarlate, com sete cabeças e dez chifres – argumento que voltaria a ser recuperado na Era pós-cristã. E, por isso, foi necessário julgar o homem e abater sobre a cabeça deste um dilúvio apocalíptico, na senda da violenta destruição de Sodoma e Gomorra, na senda da ira original contra Adão, que não resistiu a desobedecer a Deus e comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. “No dia em que dela comeres, certamente morrerás”, disse o Senhor a Adão. Mas o aviso não foi suficiente. Resultado: Adão e Eva, que dantes andavam nus, perderam a inocência, passando a cobrir os seus órgãos genitais, tal como perderam a imortalidade. E mais: o parto, símbolo derradeiro da vontade celestial, que devia ser um momento de prazer supremo, foi condenado ao sacrifício da dor. “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua concepção; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele dominará”, ditou o Senhor à mulher. E a Adão disse: “Deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirão; e comerás a erva do campo.” Por que razão se tornou Deus num ser tão vingativo e maldosamente hediondo? Por que razão voltou Deus com a palavra atrás para encarar o acto do amor como um gesto de pecado? Pode ser mais um dos mistérios divinos, mas aos olhos dos seres terrestres não parece fazer grande sentido, tanto mais que Nosso Senhor acabou por dar uma nova oportunidade ao homem e repetir a Noé e aos seus filhos o que tão claramente havia ordenado a Adão. “Sede fecundos e multiplicai-vos!” Terá sido a bestialidade do sexo demais para o olhar puro e imaculado dos anjos, os guardiões e mensageiros do céu? Estaria implícito nas palavras do Senhor que a procriação deveria ser apenas um acto missionário, mecânico, fastidioso, enfadonho? Que não deveria haver prazer mas apenas sentido de missão? Se assim foi e assim é, compreende-se que a sodomia, a masturbação e todo e qualquer outro gesto de manipulação de órgãos genitais, do próprio ou de outrem, sejam condenáveis. Como se tem vindo a dizer, e volta-se a insistir, para que se diga e assim fique dito, o sexo oral sempre teve destes problemas, pelo que não admira que Maria Clara tenha feito da sua vulva uma arma mortífera perante a qual sucumbiu Tiago Penha de forma traiçoeira e grotesca. Com «o veneno de Sócrates» disfarçado com fragrâncias vaginais a corroer-lhe a língua e os lábios. Após uma dança clitórica tão diligentemente conduzida. E pensar que tudo se deveu à velha problemática da misogamia, que se agrava com a disfunção intelectual. Pode parecer excêntrica e contundente, mas nem por isso se trata de uma conclusão desajustada. Com efeito, ao longo da história da existência humana, centenas, milhares, milhões de misógamos só descobriram sofrer da patologia muito tempo após terem cedido aos pergaminhos da união marital. Pelos bons ofícios da Igreja e do legislador, a dissolução do contrato matrimonial já não é uma tarefa tão árdua como em tempo idos. Ainda assim, manda a sensatez e os bons costumes olhar para a questão com redobradas cautelas. É certo que há a separação de credos, a separação de bens e acordos prénupciais; o problema é o património comum que resulta de tão nefasta empreitada, sobretudo quando a patologia se revela tardiamente. Tanto mais que não é de fácil diagnóstico. De resto, os activos e os passivos entretanto gerados pela relação conjugal podem ser um quebra-cabeças pouco benemérito, sobretudo se estiverem em causa 25 poderes paternais – o que não sucedeu com Tiago e Maria – e compromissos fiduciários. Daí que o misógamo sinta por vezes o dever de se obrigar a expedientes vários para apaziguar o seu desânimo e descrédito na boa sorte do que desejaria ultimar, longe de serem devidamente pundonorosos. Pode até estender laços transversais que perturbem outras ligações de amor e boa-fé, acumulando novos pecados à já sua tão perturbada fonte de problemas: a misogamia, em sede de vínculo conjugal, abre assim a porta a patologias emergentes às quais urge pôr cobro. É que quem por esta porta ousar entrar, saberá decerto que vai encontrar recostado a um canto, no escuro, debruçado sobre uma mesa com as mangas do casaco puídas, um ser humano cabisbaixo, agastado pela dor da perfídia. A eterna dor dos seres humanos que insistem em contrariar a condição selvagem com que Deus os dotou, a mesma entidade omnisciente que sacralizou a comédia do amor, ditando desígnios contraditórios aparentemente apenas por mera diversão. Uma estratégia insana que mais não faz do que provar que a fé é afinal tão-somente um dilema de aritmética química. É como a disfunção intelectual; tal como a disfunção eréctil, afecta um número crescente de ilustres membros das elites intelectuais e caracteriza-se pela impotência de manter erecto um pensamento coerente. A verborreia e a presunção, associadas a comportamentos característicos de disfunção social, são sintomas evidentes desta doença que, lamentavelmente, contagiou de forma epidémica todas as redes de comunicação, tanto verticais como horizontais. E este, decerto, foi um dos problemas da relação entre Tiago Penha e Maria Clara: um processo de comunicação contaminado por um cavalo de Tróia, um trojan vulgar, mas tão trágico quanto infantil com o simplismo típico dos script kiddies. 26 IV. Uma das grandes ironias da buliçosa e controversa existência de Tiago Penha foi o suicídio. Depois de ter sentido a força do impacto e o airbag a explodir-lhe na cara; nesse momento, soube que o suicídio era a única opção. Precisamente por acreditar que não é um acto de coragem nem de cobardia; é tão-somente o derradeiro insulto da imperfeição do acto de existir. Não se tratava de nenhum sentimento de culpa ou necessidade de infligir qualquer forma de punição. Não estava sozinho na viatura, é certo, mas ambos haviam escapado ilesos. Ou quase, que ele ainda foi parar ao hospital com uma fractura no ombro do lado esquerdo, na omoplata, e duas costelas partidas. Quatro dias de internamento, com muitos sedativos à mistura, a que se seguiram várias e demoradas sessões de fisioterapia. Quanto a Maria Clara nada sucedeu a não ser o enorme susto que apanhou. O mesmo não se pôde dizer do carro, cuja troada metálica assolou o espírito de Tiago durante muitos meses. Não é que o suicídio tivesse a ver com a pessoa que seguia ao lado dele; tinha ver com ele próprio. E o acidente havia sido apenas o catalisador dessa pulsão suicida. Aliás, nem era um impulso ou uma força criadora de efeitos. Foi simplesmente o aviso para a medida da sentença. Para Penha, matar-se era a única opção. Matar o corpo, os pensamentos, a depressão, a raiva. Eram tantas as febres. Amordaçadas. Coladas à pele como sanguessugas de tal forma que Tiago deixou de conseguir disfarçar o esgar de desespero que lhe esculpia o semblante. Se conduziu grande parte da sua vida de forma desregrada, não o fez intencionalmente, mas a matriz punitiva da sua coabitação contratual com Maria Clara, mais formal do que material, como é fácil imaginar na sequência da violação de uma das regras mais basilares da união marital e logo exercida no início da mesma – cujas motivações a montante devem merecer, aliás, algumas palavras no seu devido tempo – transmutou-se numa filiação moral de imoralidade que acabaria por estruturar o curso dos acontecimentos que experienciou desde então. Não é que não houvesse igualmente uma certa predisposição de libertinagem inscrita no seu código genético, mas a fonte uterina só encontrou espaço para se expandir a partir do momento em que Tiago sentiu não haver outra opção. De resto, desde que saíra da universidade e o trabalho em engenharia informática começara a correr-lhe de feição, ao serviço de uma poderosa multinacional sediada em Atlanta, nos Estados Unidos, mas sob ordens do centro de operações de Londres, obrigando-o a ausentar-se no estrangeiro cada vez mais e por maiores períodos de tempo, graças à sua mais-valia ibérica, ideal para intervenções nos mares latinos – lusitanos, hispânicos e afins, aonde quer que se encontrassem além-mar – Penha descobriu a possibilidade de uma vida dupla, se bem que se trate de uma matéria que merece algumas cautelas de análise. Se em Portugal era confrontado em permanência com a obrigação de se penitenciar, mesmo que daí não resultasse mudança alguma, quando seguia viagem overseas, o mundo tingia-se subitamente de vermelho e amarelo; enchia-se de calor, luz, descontracção; um banho de energia e optimismo, de paixão e sentimento, de amor e desejo, de orgulho e poder. 27 As duas cores primárias não eram suficientes, contudo, para aplacar tão volumosa carga de culpabilidade; na prática, agia num sentido, mas pensava noutro. Fingia não ter passado, o que abria campo para uma conduta censurável, ao mesmo tempo que, sempre que se encontrava a sós, em segredo, era incapaz de afastar a dolorosa sensação do peso das mãos sujas, a pressão da racionalidade. Se se libertava pela acção, não deixava de ser prisioneiro de si próprio pelo pensamento. É certo que, ao longo dos anos e em vários lugares do planeta, fez algumas tentativas para sublimar o paradoxo, mas todas elas acabaram por agravá-lo ainda mais. Até porque grande parte desses ensaios de fuga localizava-se tão-somente no plano da imaginação, se bem que, regra geral, Penha os concretizasse materialmente mas não nessa qualidade. Talvez seja melhor clarificar: mais do que propriamente ensaios de fuga, os actos de Tiago Penha e a essência da conduta que os presidia resultavam de um conflito inerente à sua própria natureza multifacetada, enquanto depositário e intérprete de uma luta feroz entre duas forças opostas. A ideia de fuga, essa, podia e devia ser encontrada noutra dimensão: a dos meros exercícios de criação ficcional; vontade de viver diversos papéis como um actor. Como se fosse possível recomeçar a vida sempre que assim o desejasse, da forma que bem entendesse. Dir-se-ia, pois, que era este o carácter distintivo da sua vida dupla, em rigor, da vida dupla que julgava ser protagonista. Como um interlocutor privilegiado da reinvenção permanente da fortuna e da sorte. Para fintar o interlúdio do ocaso, os propósitos omniscientes e ubíquos do destino, não fosse dar-se o caso dos mesmos existirem na realidade, esse triste fado tridimensional, de aura dourado-esverdeada, traçado – supõem alguns ou talvez muitos – pelas divindades que coabitam erraticamente na incerteza celestial. E se apanhasse um avião para Havana, pensava às vezes Tiago Penha, e se instalasse algures num local recatado, mas suficientemente perto do pulsar incandescente da cidade, no qual pudesse chafurdar assim que lhe apetecesse, talvez num pequeno pardieiro junto à praia, a viver de sexo, rum e charutos? Ou Vitória, entre o Rio e a Bahia, uma pequena ilha tropical rasgada por curvas e curvas de água salgada com uma baía aberta ao azul do Atlântico, agitada pelos ritmos frenéticos do seu Vital e os calores irresistíveis da cópula social descomprometida enxertada durante vários séculos de miscigenação? Teria a vantagem de ser um lugar onde se fala a mesma língua, onde o custo de vida é suportável e a condição de descendente dos antigos colonos portugueses ainda pesa nas regras da atracção dos capixabos, não pelo sotaque mas sobretudo pela geografia da economia e a misteriosa divinização do mundo eurocêntrico, como se a agonia deste nunca houvesse acontecido. Sempre havia a hipótese de Ushuaia, La Ciudad del Fin del Mundo, La Tierra del Fuego, perdida nos confins da Argentina em clima oceânico sub-polar, onde se pode viver tranquilamente de filet mignons e do generoso fado do Cabernet Sauvignon. Tiago havia lá estado uma vez em trabalho durante algumas semanas. Com Simão Saraiva, o seu skin buddy para facelifts mais complexos, como o chamava por brincadeira, já que HTML, JavaScript e outras ferramentas afins de scripting não eram propriamente uma grande paixão para Penha. Simão e Tiago desenvolveram ao longo dos anos durante os quais trabalharam lado ao lado – dois crânios portugueses descobertos pela multinacional norte-americana por força do notável percurso académico que haviam tido, chamando várias atenções internacionais pela revolução do raciocínio algorítmico que ambos começaram a implementar, se bem que em universidades distintas – uma relação muito estreita de amizade. Apesar de andarem a ouvir falar um do outro há muito tempo e conhecerem alguns pormenores do trabalho de cada um, só travaram conhecimento pessoal em Londres e, para espanto dos dois, a empatia mútua foi imediata, coisa curiosa quando 28 em Portugal até parecia que se odiavam, sempre que sucedia manifestarem junto de terceiros opiniões sobre os desempenhos de cada um. Decerto que a carreira aliciante que lhes foi proposta, com a possibilidade e a obrigação de dar a volta ao mundo literalmente, e mais do que uma vez, e um pacote salarial irrecusável, terá ajudado a fundar esta súbita cumplicidade; mas também não deixa de ser verdade que, vencidos os caprichos iniciais da coabitação em terras portuguesas, vá-se lá saber porquê, embora não seja novidade para ninguém, depressa a relação profissional e pessoal tornou-se bastante saudável. Às vezes acontece. Quando o inimigo é comum. E os dois tinham pela frente um enorme desafio, justamente com ameaças comuns. Companheiros para a vida, amigos para sempre, ou quase, a filosofia entranhou-se-lhes em poucos meses, não obstante as estranhas e inesperadas ausências de Saraiva, que dava em desaparecer com alguma frequência sem deixar rasto por períodos que chegavam a atingir um ou dois meses. Incontactável, perdido algures nalgum recanto da imensidão terrestre, talvez para retemperar as forças, algo que Tiago nunca compreendeu mas também não quis perguntar. Também houve alguns arrufos pontuais, relacionados sobretudo com o gosto obsessivo de Simão por armas de fogo, que acabou, aliás, por se interpor entre eles a partir do momento em que Penha decidiu que o suicídio era a única opção. Quer dizer, após o homicídio em Goa, na Índia, o único a que assistiu, apesar de suspeitar de que poderia haver outros crimes, e um episódio em particular, registado precisamente em Ushuaia, que agora, olhado à distância, parece ser sintomático do azedume que começou a desprender-se de Tiago. Ter-se-iam passado umas duas ou três semanas desde a chegada da dupla àquele remoto arquipélago da Patagónia, tempo suficiente para Saraiva ter a arte de adquirir, por portas e travessas – que nisso era bastante expedito – uma nova arma. Para o que desse e viesse. É que, em matéria de defesa pessoal, ou de ataque, conforme a disposição – que, aliás, já lhe tinha valido alguns problemas com a Justiça, de que foi (mau) exemplo a indiana, em Goa, como se referiu, onde matou um muçulmano a sangue-frio numa praia virada para o Mar Arábico, por sorte àquela hora despejada de vacas sagradas e vendedores de camisas de seda, regra geral crianças, permitindo-lhe a veleidade de se desfazer do corpo sem grandes parcimónias e com muita frieza, em boa verdade, como muita eficácia até, senão provavelmente ainda estaria a bater com os costados nas grades metálicas e enferrujadas de um qualquer cárcere como o de Margão – Simão não brincava em serviço, tais eram os territórios inóspitos que ele e o colega estavam habituados a calcorrear. Em nome da era digital e da democratização das novas tecnologias de comunicação em rede, disponível a todos os povos do Mundo desde que houvesse petrodólares em quantidade suficientemente atractiva ou outras moedas similares, regra geral ensanguentadas, que assim até sabiam melhor. (Web Forum: Matou e acalmou-se para respirar fundo e pensar que ar é vida) Ao certo, Penha nunca chegou a saber, como adivinhava não saber muitas outras coisas a respeito de Saraiva, como é que o colega tinha conseguido munir-se daquele novo revólver, que obviamente teria de deixá-lo lá, assim que concluíssem o projecto pago pelo erário público via Município de Ushuaia, mas também não se empenhou muito no assunto de tão acostumado que estava àquelas iniciativas do amigo, por onde quer que passassem. Naquela noite, no hotel, após mais um jantar de carne em sangue, regado, e bem, pelo néctar da distinta, vigorosa e irresistível vinífera tinta, resultado de uma engenhosa combinação aromática de pimentão verde, violeta, amora, cássis, ameixa, coco, baunilha, couro, cacau e tabaco – no Sertão brasileiro, entre Pernambuco e a Bahia, faziam o mesmo, mas só até à maturação da uva, que as restantes artes, entre macerações e trasfegas para amadurecimento e envelhecimento, eram confiadas às 29 vinícolas da Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul, mais um dos tristes destinos dos nordestinos, porque Nordestino não é gente, façam um favor, matem um nordestino afogado!, escreveu na web uma tal de “Sophia Fernandes”, paulista, claro – Tiago Penha e Simão Saraiva decidiram sair para dar uma volta e desentorpecer as pernas, conveniente eufemismo para barriga cheia e cabeça vazia (ou quase) – faltava citar Tao Te Ching, ou O Livro do Caminho e da Virtude, recuperado séculos mais tarde por Maquiavel, o florentino, o desventurado arquitecto do poder. Desentorpecer as pernas e brincar com o revólver, do qual Saraiva fazia questão de não se separar. Obstinadamente. Meteram-se no carro e andaram a circular durante quase meia hora, devagarinho, sem rumo definido. Do alto da montanha, Simão avistou um vale, onde se aninhava um pequeno lago congelado, e decidiu descer por um caminho sinuoso até lá abaixo. — Emprestas-me a tua arma? Estavam os dois de pé, à beira do lago, a olhar para um penhasco fustigado pela nevada. Ao formular a pergunta, Penha imaginou a história completa: após o suicídio, o companheiro sairia dali, a caminhar sobre aquele extenso sobrado de neve, com resíduos de pólvora «sem fumaça» nos dedos, enquanto o cadáver de Tiago ficaria estendido no chão, embebido em gelo e sangue. Não seria bem um suicídio. Mas antes um acto de misericórdia para com ele próprio, julgava ele, Penha. — Para que a queres? — devolveu Simão Saraiva, num tom aparentemente enfadado. Havia percebido, porém, um certo empolgamento na voz de Tiago ao fazer o pedido e sentiu o corpo a deslizar por uma vaga de frio induzida pela queda moderada mas incessante de cristais de gelo. Flocos de neve de formato hexagonal com o aspecto de pequenas estrelas a precipitarem-se sobre aquele vale abraçado por um conjunto sólido de montanhas rochosas. Saraiva olhou para o seu revólver de calibre 357 Magnum, uma arma de fogo manual mais temível que muitas pistolas semiautomáticas, dependurado na mão direita, e contraiu os músculos para o agarrar com mais firmeza. — Para me matar! — atirou Tiago. Simão crispou ainda mais os dedos. — Só deves matar quem te anda a matar. — Eu sei. Mas apetece-me — disse Tiago, voltando-se para ele com um ligeiro sorriso de bonomia. — Não sejas idiota — censurou Simão, pouco seguro do registo ingénuo ensaiado pelo amigo. — Não vale a pena o esforço. Usa as tuas forças para expedientes mais inventivos. O revólver continuava bem seguro na mão de Saraiva, com o cano apontado para o chão e o depósito de cartuchos carregado, pronto a disparar. — Dá-me um exemplo — prosseguiu Tiago, que recuou um passo e virou-se de novo para o penhasco com as mãos nos bolsos do seu casaco de poliéster acolchoado com capuz, semelhante ao que Simão vestia. — Não estás a ouvir os latidos dos cães lá em cima? Não ouves o sopro rouco do vento? — Acabo de ouvir um carro a arrancar — retorquiu Tiago, agora com um ar desinteressado, ao notar o barulho do motor a espraiar-se pela noite à medida que se afastava rolando célere pelo asfalto no alto daquelas escarpas. — É esse o teu problema: não prestas a devida atenção ao que te rodeia — comentou Saraiva, sossegando-se um pouco. — Concordo. Sempre me disseram que sou mau observador — e riu-se. — E mau ouvinte! Foi a vez de Simão sorrir, não obstante manter a arma cravejada na mão. A pele da cara luzia com a humidade. De capuz na cabeça, pouco mais se via do seu rosto. O mesmo 30 sucedia com Tiago, com as lentes dos óculos embaciadas e a barba branca, por aparar, com os pelos enrolados em farrapos de neve. — Contudo aqui estamos — observou Penha. — De língua entaramelada num diálogo de surdos — avaliou Saraiva, afastando-se lentamente a arrastar as botas pelo gelo. — Admites então que também tu és mau ouvinte… — Sou mais para o impaciente. Mas diz-me: se te emprestasse a minha arma, irias mesmo usá-la para te matares? Ou dizes isso apenas por dizer? Afinal, para que a queres? — Já to disse. Para me matar – insistiu Tiago, que deixou escapar por breves momentos um olhar soturno. Simão não o levou a sério e desatou às gargalhadas, aliviando ligeiramente a pressão dos dedos sobre o revólver. — Lérias. — Bem podes dizê-lo: tretas, lengalenga, tricas – notou Penha, abrindo os braços para reforçar gestualmente o uso fastidioso de tantos sinónimos. — Ou um ponto de croché. Decoraste o dicionário? — Referes-te ao conjunto de vocábulos de uma língua dispostos por ordem alfabética com a respectiva significação? — observou Tiago. — Vês? Não te dizia. Definitivamente não vais usar a arma contra ti. Ainda se tivesses coragem de a usar contra quem te anda a matar… Penha arrastou também as botas pelo gelo na direcção de Simão e estacou a um metro dele, de novo com um ar sombrio. — Que mais queres que diga para te convencer? Preciso dela. Só isso. — Olha que o suicídio é pecado e não dá direito a entrar no Reino dos Céus — afirmou Saraiva, entre o gracejo e o circunspecto. — Já cá faltavam, Cristo e a redenção dos homens. Deus é uma invenção conveniente dos judeus comunistas e o paradoxo sanguinário da ditadura cristã, pior que as ideologias totalitárias. E digo-te mais: pelo menos o suicídio não é nenhum dos Sete Pecados Mortais. — Também não é nenhuma das Sete Virtudes. — Patientia. Eis a locução latina adequada e uma das tuas Sete Virtudes: a resistência a influências externas e moderação da própria vontade. Ipsis verbis do épico «Psychomachia», tão célebre na Idade Média. — Se é assim, não respeita porém um dos Dez Mandamentos — atalhou Simão Saraiva. Tiago Penha fez um esforço para se controlar. A emergência de um gesto sociopata começava a sufocá-lo. — Então por que andas com uma arma? Se não matarás… És ridículo! — Ridícula é esta conversa, caralho! — decretou Simão, também ele assaltado por súbitos sentimentos de ódio, dando consigo a pensar nas vastas estepes russas sem saber por que razão. Ou talvez soubesse. Mas deveria antes rememorar o incidente de Goa, que era, de momento, o que andava a incomodá-lo mais. — Vou-me embora — fez saber Penha. Saraiva respirou fundo. Toda aquela conversa não passava de um grande disparate. Já nem sabia como tinham chegado àquele ponto. Tudo por causa de um simples revólver? Majestoso, é certo, mas não deixava de ser uma arma de fogo. Que ele nunca havia disparado. Pelo menos aquela. Ainda assim, seria justo condená-la pelos crimes do mundo? Teria ele sangue nas mãos pelo facto de possuir um instrumento, que tanto podia ser de ataque como de defesa, num planeta poluído de milhões de armas, essas sim, cobertas de pecados e outras maldades? Goa fora apenas um acidente. Goa e alguns 31 outros casos, mas de somenos importância porquanto não houvera vítimas mortais, o que não era verdade, como se saberia mais tarde, e ele já o sabia bem, mas fingia tanto acreditar nisso que quase perdia a consciência da mentira. — Vais-te embora? — tentou confirmar Simão, incrédulo. — No meio deste deserto branco a esta hora da noite? Para onde irias a pé? Queres morrer enregelado? A expressão do rosto de Tiago mudou, resvalando do sombrio para o pensativo. Conservava-se a um metro de distância do companheiro, mas deixou tombar o olhar no vazio. — Não me referia agora. Quero dizer que vou deixar tudo. Está na hora de mudar. Há muito que deixei de ouvir as vozes dos amantes. — Sempre foste um lírico — rosnou Saraiva com uma ponta de sarcasmo. Penha levantou os olhos e neles algo de diabólico brilhou suavemente. No interior dos bolsos, tinha agora os punhos cerrados. Tal como Simão havia feito a princípio com o revólver. Mas ainda com mais força. Enterrando as unhas nas palmas das mãos. E com os nós dos dedos a vibrar. De dor. De raiva. — Um indivíduo sonhador com fraco sentido da realidade?! — quis saber Tiago, reeditando a ironia de Saraiva. — Lá estás tu! Foda-se! O deslocamento das massas de ar adensou-se, gerando um assobio caliginoso que varria a alta velocidade toda aquela cadeia montanhosa que circundava os dois homens. Um sopro lúgubre em crescendo, associado ao incómodo da precipitação dos flocos de neve, que passou de moderada a intensa. O rugido da tempestade tornou-se medonho. Com o peso da noite e a sensação de vertigem induzida pela imensidão daquela planície gelada. Simão pôs a arma no bolso do casaco e sacou de uma lanterna. O foco iluminava de forma ténue os farrapos de nevoeiro branco perante uma visibilidade quase nula. O efeito do álcool estava já a passar. — Vá lá. Empresta-me a arma — insistiu Penha. — Já te disse que não. Estás doido? — Tenho de usar a força? — Tens! Mas tal como te disse para expedientes mais inventivos. — És um imbecil. Ainda não percebeste que perdi o uso da razão? Que sou um servo da demência? — Que linguarejar tão rebuscado, homem! — brincou Saraiva. — Pretensioso ou requintado? — Aprimorado. — Queres dizer perfeito? Insigne? — Notável. — Notável é a tua arma e o uso que dela vou fazer — proferiu Tiago Penha, em tom de sentença. — Pelo menos, posso dizer-te uma coisa: em teoria, ninguém tem o direito de tirar a vida a qualquer outra pessoa, seja por que razão for; na prática, há sempre razões para o fazer — declarou Simão com um sorriso zombeteiro. (Web Forum: A Lei existe exactamente para administrar esse abismo...) Mas as palavras não produziram efeito, acabando por se perder no meio do bramido da intempérie. Por qualquer razão, tanto um como o outro decidiram calar-se. E prolongar o silêncio até à eternidade possível. Afinal, tudo havia sido potenciado pelo consumo excessivo de carne em sangue e a cobiça de um vinho requintado. A empreitada para o desentorpecimento das pernas cessou ali, abruptamente, sem graça, com o eixo de rotação longe do costumeiro centro gravitacional que animava o companheirismo entre Tiago e Simão. 32 Saraiva voltou a pensar em Goa; Penha na mulher, Maria Clara, a autora da nefasta dança clitórica que ele viria a conhecer. E a experienciar, mais tarde. Algum tempo mais tarde. Se ao menos abrisses os braços, me desses a cheirar um pouco da tua bondade, há muito abandonada a favor da permanente exigência para que cumpra a sentença, talvez eu tivesse como medir o ódio e arrancá-lo à força, num gesto súbito, inesperado, um golpe rápido e firme. Para conter as desculpas. E as lamúrias. E as justificações. Talvez pudesse aniquilar de vez essa maldita extirpe de comiseração. Vá lá, mostra-me o caminho. Um carro não é tudo. Sei que o embate poderia ter sido fatal. Sei que nada daquilo era suposto ter acontecido. Mas aconteceu. E eu soube logo que não me restava outra saída senão o suicídio. Lamento que tenha de ser assim. Lamento não ter sido o homem que esperavas, o ser indestrutível que manejava as forças do bem e do mal manietando todas as sombras do infortúnio. Empresta-me o teu corpo para que não tenha de me matar. Sei que o tom soa a lânguido, um gemido arrastado de dor, mas é fruto da sentença. Dói-me a cabeça de tanto pensar que já não me apetece procurar as palavras certas, esculpir esta narrativa mental com o esmero de um artista dedicado. Só quero escapar ao tiro, à navalhada, à forca, ou seja lá do que for. Não é que o suicídio em si me interesse. Esta mecha de cabelos e pele é demasiado frágil, pelo que decerto não será difícil de encontrar um sentido épico para a forma da sua extinção. É a sentença que me apoquenta. Não, nem sequer é a sentença, mas o desejo sanguinário que está por detrás dela, escondida na penumbra, por ter sido esconjurado, banido da ordem natural das coisas. Onde param os teus oráculos? Pois é, quase me esquecia. E os demónios? Que é feito deles? Gostava de poder fechar os olhos e recostar-me na cadeira, a cadeira de verga almofadada no recanto mal iluminado da nossa casa, e apagar a luz que exalta a consciência. Afinal, não somos todos nós medíocres? Estou cansado. Tenho a boca seca. Tento engolir mas há aquele gosto acre a tabaco, a escorrer pela garganta. Bebi um café e terei fumado quatro ou cinco cigarros. Tenho os olhos fechados. Talvez adormeça. Com a brisa do final de tarde a bater-me na cara e o silêncio dos carros que passam a embalar-me. Há alguns ruídos estranhos afinal. O ronco de um motor sobressalta-me, arrancandome desta espécie de torpor para o qual deslizei suavemente. Malditos carros. É terrível como a imagem do acidente, que permanece tão viva e não me larga. Estava a conversar contigo, lembras-te? Caía aquela chuva miudinha e intrigante que me tinha obrigado a ligar os médios e as escovas de limpeza do pára-brisas. Não ia depressa e, apesar do piso apresentar irregularidades suficientes para adivinhar alguns sobressaltos, sentia-me tranquilo, descontraído. Até que, sem mais nem menos, a viatura atravessou-se na estrada. É bizarro. Porque não senti nenhum puxão, nenhum movimento repentino. Apenas um deslize suave. Mas já era tarde demais. A força bruta de um carro desgovernado sobre uma camada fina de água no asfalto é imparável. Da sensação de deslize passei à da impotência avassaladora perante a violência do imprevisto. É difícil rememorar as coisas. Há momentos em que sei que o cérebro estava ligado. Há outros em que se intrometem brancas totais. Vazios. Nada para dizer. Depois, a um dado momento, tive o pressentimento de que ia morrer. Não sabia ao certo de quê, mas esperava um impacto tremendo a qualquer instante. A pancada poderia ser fatal, ou 33 não, pelo que, por mais misterioso que possa parecer, tive tempo suficiente para vislumbrar mentalmente possíveis cenários de corpos despedaçados, cobertos de sangue e da imobilidade da morte. Terá havido decerto uma forte descarga de adrenalina. Preparei todos os meus músculos e tecidos nervosos para o impacto. Contudo, a par dessa inusitada e demorada percepção da tragédia mais que provável, tive também a impressão de que o corpo se havia enrolado, como se estivesse a retornar ao claustro maternal, como se fosse possível que a minha massa muscular, os meus tecidos e tendões, toda a estrutura óssea e demais elementos de substâncias gordurosas, pudessem adquirir uma posição fetal. Quer dizer, como se eu pudesse encolher de repente e voltar a mergulhar nas águas aprazíveis da bolsa de gestação. Só pode ter sido óleo derramado na estrada. Noutro dia, ao volante de outro carro, a caminho do trabalho, vi do lado oposto da estrada uma longa caravana de automóveis parada na berma. Tornou-se evidente muito rapidamente que se tratava do cortejo de convidados de um casamento em marcha lenta para a festa, depois da celebração religiosa. E, com efeito, na extremidade da caravana, lá estava a noiva a acenar, pendurada na janela de um carro preto, com o véu branco acobreado pela força do vento. Só então me apercebi de que já havia visto um rapaz metido num fato escuro, deveras atípico no quadro do guardaroupa que deveria usar por hábito, indiciando tratar-se efectivamente de um casório. Por que só o percebi ao ver a noiva, cheia de sorrisos, abraçada por uma enorme nuvem de felicidade, a acenar, e não antes, mal vislumbrei o rapaz? O prenúncio de morte já havia sido ditado quando senti o impacto. Vários meses antes. Em que escapei ileso de um acidente, embora soubesse que o suicídio era a única opção. Tenho vontade de cagar. Mas vou esperar mais um pouco. Já não estou recostado na cadeira da nossa casa e acabou o silêncio dos carros que passam. Agora, ouço-os bem, tal como vejo pela janela uma loira de cabelos compridos a caminhar na calçada. Não é que me interessem muito os cabelos. Ao invés, são aquelas calças de ganga que me atraem. Estranho! Não passa de tecido. Mas lá dentro adivinho qualquer coisa que me seduz e enleva. Ela anda devagar, só a vejo de costas, mas há ali uma carga erótica a deambular. Pelo menos para mim, é claro, porque não tarda nada e sairá do meu campo de visão. Há também árvores. Dentro do meu campo de visão, entenda-se. Não faço ideia de que espécies são. Mal sei distinguir um pinheiro de uma árvore de fruto. Sou um ignorante e, mais grave, pouco observador. Não me sai da cabeça. O impacto, o acidente, tu sentada ao meu lado, a sentença, a minha ignorância e a afirmação peremptória de que procuro ser quem não sou, embora não me apeteça porque o suicídio é a única opção. Afinal, como começou esta história? E trata de quê? Onde estou eu exactamente? Sim, neste momento? Sentado, ora recostando-me à cadeira, ora endireitando-me nela, com sono e cansado, ou a olhar para a rua através da janela? Deixei mesmo de ouvir o silêncio dos carros que passam para observar o erotismo a vaguear, emoldurado por árvores cuja espécie desconheço? O dramático é que parece ser tudo realidade. Não, pelo contrário. Aconteceu de facto. E mais: continua a acontecer. Com efeito, esta história ainda não terminou, nem sei bem quando é que isso irá ocorrer. Não disse que, quando senti a força do impacto e o airbag a explodir-me na cara, soube de imediato que o suicídio era a única opção? Há aquela troada metálica do carro a embater contra um separador na auto-estrada. E a certeza de que a pancada poderia ter sido fatal. Se calhar, foi. Terá sido?! 34 Maria Clara estava longe, muito longe para ser capaz de ouvir os pensamentos de Penha. No espaço e no tempo. Pelo que restou a Tiago pôr-se a meditar sobre a possibilidade de não pensar. Naquilo ou no que quer que fosse. É que a compaixão mais não é do que uma máscara para a incapacidade de sentir amor-próprio. Quem luta contra sofrimentos alheios não sente piedade; mas ódio. E ódio não é compaixão. É a energia da aversão, o poder da mudança. 35 V. Ela fingia estar feliz, mas ter esperma a infiltrar-se-lhe pelas narinas e a correr em fios gelatinosos pela boca e o queixo não deveria ser uma sensação particularmente agradável, tanto mais que havia aquele odor sexual intenso que lhe era estranho. No entanto, sorria. Com os lábios e os olhos. Ofegante, após ter deixado sair do seu corpo, encharcado em suor, longos compassos de gemidos de prazer. Falso prazer, como a falsa bonomia do seu sorriso de felicidade. — Me parece que has gozado mucho — comentou, em castelhano usando uma expressão brasileira. O tecto espelhado reflectia a imagem dos dois corpos nus, que se espraiavam pelo colchão no meio de um quarto vazio, com as paredes totalmente escondidas por detrás de longos cortinados franzidos, de um vermelho vivo e sanguinolento. Pelo chão frio atapetado de azulejos pretos com estrelinhas brilhantes, avivadas pelo foco ténue de um projector de luz com um filtro azul-claro, espalhavam-se várias peças de roupa e dois pares de sapatos tirados à pressa, na antecâmara da cópula, reinventada como urgente à força de dólares. Ou pesos argentinos, que Tiago Penha já não se lembrava bem qual havia sido a moeda discutida para a transacção. — También gozei — informou ela, em murmúrio. A mulher parecia falar uma mistura de espanhol com português do Brasil. — No me crees? — quis saber, à medida que remexia na roupa à procura de algo com que se limpar. O espelho no tecto reflectia agora as nádegas e as costas esguias da mulher, estendida de bruços à beira da cama. — No sé qué me pasó — continuou, à medida que limpava a cara com um lenço de papel e apertava as narinas, uma de cada vez, para soltar o esperma entranhado nas cavidades nasais. — Hay algo en ti… Cuando te besé en la boca allá abajo. Quería darte un beso. Así, de repente. Penha, que se encontrava deitado de barriga para cima, exausto, aquiesceu com a cabeça e falou pela primeira vez desde que havia ejaculado na boca dela. Definitivamente era castelhano. — Pareceu-me estranho também. Não é comum, mas sei lá. Não faço a ideia de como funciona aqui na Argentina. No Brasil também é bem diferente da Europa, pelo que me parece. — Diferente? Diferente como? — indagou a mulher, deitando-se ao lado dele, também de barriga para cima. No lugar das nádegas e costas da mulher, desta vez via-se no tecto o reflexo dos mamilos dela e das púbis de ambos, pontos escuros que sobressaíam da brancura viscosa dos seus corpos. Tudo filtrado pela luz pálida do foco azul-claro, com a estranha mistura de feixes luminosos muito subtis produzidos pelo vermelho vivo dos cortinados. Havia ainda dois tufos de cabelo castanho e loiro, dele e dela, que emolduravam mais 36 quatro pontos luminosos, os olhos deles, a juntaram-se ao brilho das estrelas no chão de azulejos. A mulher fez uma bola com o lenço de papel, cheio de esperma, e arremessou-a para longe, para o chão. — Tengo que ir al banheiro — prosseguiu ela. — Pero dime: diferente como? Curioso: outra expressão brasileira. — Já estiveste na Europa? – respondeu ele com uma pergunta. — No, sólo no Brasil. Además, ter llegado a Buenos Aires ha sido una aventura. — Uma aventura? — Sí — confirmou a mulher. – Soy de Ushuaia, La Ciudad del Fin del Mundo. Has oído? — e hesitou. — Falar? – Não — mentiu Penha, tentando disfarçar o súbito e aterrador sentimento de atarantação pelas bizarras e mais que improváveis coincidências da existência humana. Lembrou-se de imediato de uma viagem de comboio que fizera pela Europa, de mochila às costas, já lá iam quase três décadas, no tempo em que havia começado a aventurar-se pela descoberta do Mundo. Estava a fotografar os impressionantes complexos arquitectónicos do norte de Berlim, que havia já percebido na Potsdamer Platz, durante um passeio turístico de barco pelo rio Spree – uma boa forma de ter uma ideia mais ou menos geral daquela cidade gigantesca que, ao contrário da maioria das grandes capitais europeias, se espalha na horizontal – quando decidiu usar um casal com um ar muito enamorado como primeiro plano para dar profundidade de campo às imagens. Imaginese o espanto de Tiago, cinco dias mais tarde e já com uma paragem em Praga pelo meio, ao dar de caras com a mesma dupla à saída de um restaurante no centro de Viena. Qual seria a probabilidade estatística daquele acontecimento tão improvável? No mesmo local, à mesma hora, quase uma semana depois, a cerca de setecentos quilómetros de distância entre um ponto e outro. — La Tierra del Fuego. Deberias saber. Parece que es alguien que pasa su vida viajando. Es un viajero? Tiago riu-se, mas não respondeu. Por onde andaria Simão Saraiva? E como estaria Alexanderplatz, não a da minissérie dramática da televisão alemã dos anos mil novecentos e oitenta ou a do enfadonho romance publicado em mil novecentos e vinte e nove por Alfred Döblin, mas a imponente praça no coração da antiga Berlim Leste, perto da qual havia ficado hospedado? — Como foste parar ao Brasil? – inquiriu, ao invés. — E ainda por cima para o Recife? Ela fitou-o por momentos com um olhar sonhador e levantou-se. — Mi amor, tengo que ir. Hemos gastado nuestro tiempo — e encaminhou-se para a casa de banho. — Si lo quieres, podemos seguir hablando, pero que tiene de ser allá abajo. Penha olhou para os dois preservativos usados, abandonados no chão, e o lenço de papel enrolado embebido em esperma, que ela havia arremessado, e começou a vestir-se. Sem saber porquê, lembrou-se da sua chegada ao aeroporto de Ezeiza, naquela manhã, a trinta e cinco quilómetros da cidade, vindo da Patagónia, em escala demorada a caminho de São Paulo. Para trás, ficara Simão Saraiva e o revólver. Na Tierra del Fuego. Tiago conhecia bem o caso de Goa. Também lá havia estado, hospedado a sul, em Galgibaga Beach, num hotel de cinco estrelas de uma cadeia britânica, com acesso a uma praia privativa e saída de piroga para atravessar o estuário do rio Talpona. Na verdade, Penha tinha observado de perto, ainda que a contragosto, os contornos do incidente. É que apesar de se ter tratado de um homicídio, e o termo expressa tudo – é crime – houve atenuantes que provavelmente levariam outra pessoa, no limite com um temperamento próximo do de Simão, a fazer o mesmo. Se tivesse uma arma de fogo à 37 mão. E a frieza violenta que o companheiro mostrou ter. Contudo, a mera evocação do crime, mesmo que em silêncio, mesmo que apenas de forma mental, por mera associação de ideias, produzira em Saraiva qualquer coisa de novo. Dir-se-ia que, de todos os silêncios que incomodam, os indecifráveis são decerto os mais indigentes de espírito. E aquele era um bom exemplo. Com efeito, nada voltou a ser como dantes desde aquela noite, no pequeno lago congelado abraçado por um conjunto sólido de montanhas rochosas. De objectivo pouco havia; de substancial apenas uma troca de palavras implicitamente azeda por efeito do abuso de álcool e talvez do aumento do volume de tensão induzido por aquele clima sub-polar bastante agreste. Tiago Penha havia tido uma sensação que possivelmente se poderia assemelhar àquela, pelas dificuldades de aclimatação, aquando de uma breve estada na estância de Les Deux Alpes e, sobretudo, da visita a um vale perdido algures no maciço glaciar, perto do Monte Branco, já a mais de três mil metros de altitude, após uma longa subida de teleférico. A forte dor de cabeça acompanhada por um crescendo de ansiedade e uma percepção geral de mal-estar levaram-no a regressar rapidamente a Lyon, onde apanhou um voo para Nice e para os excêntricos prazeres da Côte d'Azur, que começam logo no aeroporto, a sete quilómetros da cidade, para quem aprova e adere; o sexo animal a troco de euros em plena luz do dia como cartão de visita. De Les Deux Alpes, conservava apenas a memória aprazível da empregada do bar do hotel a confirmar: “Un Jack Daniel?”, dito à portuguesa com sotaque francês. À falta de uísque a sério, restavalhe o bourbon do Tennessee, que sempre era à confiança. Em Buenos Aires, havia ficado hospedado no bairro de Palermo, uma das áreas mais seguras e policiadas da cidade, mas naquele momento não fazia a mínima ideia de onde estava, sobretudo depois de ter andado às voltas de táxi pelas ruas da capital durante cerca de uma hora, incluindo a Nueve de Julio, uma das avenidas mais largas do mundo com os seus cerca de cento e quarenta metros de lado a lado e dezoito faixas de rodagem para o trânsito que, nalguns pontos, chegam às vinte e duas. Até nisto os brasileiros e argentinos se opõem com os primeiros, especialmente os candangos, como é bom de ver, a reclamar a existência de uma avenida ainda mais larga em terras de Vera Cruz: o Eixo Monumental de Brasília, no Distrito Federal, que se estende entre a Praça Municipal e a Praça dos Três Poderes. Nesta, a largura atinge os duzentos e cinquenta metros. Contudo, defendem alguns, o problema é que o Eixo Monumental tem apenas doze faixas de rodagem, sendo apenas mais largo por causa do enorme canteiro ajardinado entre elas. Assim sendo, só deve ser considerada a avenida útil em si, ou seja, onde os carros circulam. (Web Forum: A avenida mais larga do mundo, na minha opinião, é a avenida nove de Julio em Buenos Aires. O Eixo Monumental é a mais larga contando o canteiro. A nove de Julio é a mais larga contando apenas pista. Ora, acho que é mais justo que a nove de Julio leve o título porque você pode fazer duas ruas de uma faixa, colocar um canteiro gigantesco no meio e dizer que é a avenida mais larga do mundo. Resposta: Meu amigo, você nunca visitou a cidade de Itu? Você tem que ver o tamanho do farol do semáforo e a cabine telefónica pública... coisas para gigantes.... E a discussão continua: É! O Brasil adora recordes. O maior estádio do Mundo; a maior usina hidrelétrica do Mundo, a maior rodovia do Mundo, a Transamazônica. Somos grandes em tudo, principalmente na miséria. E sobe de tom, virando-se para o nacionalismo: Recordes?! Minha gente, o Brasil é o País que mais acolhe, gentilmente, os estrangeiros, sem barreiras e sem preconceitos. Dividindo seus empregos com eles) Matéria acalorada e absorvente, mas com quase duas garrafas de Cabernet Sauvignon bebidas – sempre a mesma sinfonia vinícola de que não abria mão; até na capital paulista, terra de chopes, tanto em dias quentes como em frios, havia descoberto belos 38 exemplos daquela opção vinífera de que ingeria uma garrafa todas as noites, sozinho, enquanto jantava no seu flat arrendado no último andar de um hotel pomposo em Bela Vista – Tiago Penha queria lá saber da Nueve de Julio, do Obelisco ou da Plaza de la República, ou da eterna contenda entre argentinos e brasileiros. E assim foi. À saída do restaurante em Palermo, um estabelecimento de luxo e requintado onde se comia que nem um alarve por meia dúzia de pesos, pronto para se aventurar na noite, havia dado apenas uma indicação ao motorista: Chicas! Voltou a ver a puta no dia seguinte. Esfumou-se na memória o nome dela, bem com os traços do seu rosto. Recordava-se apenas de que tinha olhos verdes, como os dele, cabelos loiros e que lhe parecia bonita. Realmente bonita, sensual, alguém que Tiago podia amar. Na madrugada anterior, haviam trocado números de telemóvel, manifestada a vontade mútua de novo encontro, que aquele tinha de acabar, já a aurora despontava e eram horas da boate encerrar portas, (Logo à noite há mais uma volta, mais uma viagem! O poço da morte!) para arrumações e certas limpezas, bem entendido, que boate não passava de um embuste linguístico de néones e ecos de tango para esconder a verdadeira natureza daquele espaço de diversão nocturna, uma casa de putedo com pista de dança no piso térreo e quartos de cópula no primeiro andar, acanhados e supostamente secretos, quer dizer, objectos de um pudico secretismo, pelo menos para quem não ousava em entrar, uma boate que até tinha uma certa aparência respeitável, se é que respeitosamente assim se pode designar uma actividade empresarial de prestação de serviços sexuais, efectivos, tanto consumáveis como consumíveis, tal como as que havia encontrado em Madrid, os propalados e inúmeros bares de copas y pubs que agitam a capital espanhola, e não uma casa de alterne decadente, como essas que se desmultiplicam como formigas nos locais mais recônditos de terras lusitanas, casas de putas como dizem, mas onde não se fode nem se se pode pôr em cima, as brasileiras e as eslavas são nisso umas privilegiadas, basta uns esfreganços, eventualmente uma punheta, e lá se vai o rendimento mínimo numa só noite, numa garrafa de champanhe, que compra trinta minutos de conversa da treta, o negócio assim o dita, que a vida de puta é à comissão e o dinheiro ganho não estimula aventuras vaginais, orais ou anais, só para referir as mais comuns. Não deixava de ser intrigante: tal como sucedera em Buenos Aires, também em Madrid Tiago Penha trocara contactos com uma equatoriana, que fazia lembrar a actriz norteamericana Claire Danes em versão morena. Não era bem o seu género; preferia as nórdicas, como aliás pôde confirmar de modo conclusivo em Copenhaga ao deambular eufórico e extasiado por aquele paraíso ariano, uma paisagem abrasadora pintada de azul, branco e dourado – curiosamente uma cor terciária que se obtém com vinte por cento de magenta, sessenta de amarelo e outros vinte de preto – morada de tentações supremas que foi adivinhando por um processo de crescente embranquecimento no sentido da pureza angélica à medida que avançava de carro entre Hamburgo e a capital dinamarquesa, com uma transposição marítima pelo meio, num ferryboat. É certo que paraíso ariano é uma expressão que se presta a equívocos e, em Copenhaga, nem sequer corresponde à verdadeira dimensão do Jardim do Éden terreno, que se situa supostamente mais a Norte, algures na Finlândia ou na Suécia. De resto, a questão é controversa, especialmente para os ufologistas. De acordo com uma pesquisa em sede de academia sobre a tipologia de entidades biológicas extraterrestres, os arianos não lideram o ranking de popularidade entre a vida terráquea, apesar de figurarem na lista dos visitantes alienígenas considerados inofensivos para a integridade geológica do nosso planeta. Até porque a forma de comunicação destes obstinados aventureiros do cosmos assenta na telepatia, como asseveram os investigadores universitários, tal como 39 acontece com os orion greys. Apenas não se pode dizer o mesmo dos greys e dos zeta reticuli greys, que recorrem fortemente à abdução. (Web Forum: Muitos arianos também foram vítimas. Devemos tanto a Heidegger. E tenho amigos alemães, colegas da turma de Kabbalah em Israel, que só de pensar dáme vontade de abraçar de novo. Réplica: Acho que essa bandeira, de subscrever a verdade sobre Heidegger, já foi brilhantemente adoptada por Hannah Arendt, que nunca negou a sua paixão por ele. Aprendi um pouquinho, não muito, ao ler a obra quase completa dos dois, que admiro muito – assim como Husserl e Kant – a cujos pensamentos eles deram uma digna sequência. Contra-réplica: É sumariamente infantil pensar em superioridade racial em termos de cor de pele. Com analogias esotéricas pueris ou fora delas. Meditação: Mas de que raio andam para aí a falar? Será possível que uma simples palavra como «ariano» se preste a tantas interpretações diferentes? Remate, ou quase: Gosto do Mundo com cor; odeio, porém, que a cor defina o Mundo. Ora aí está. E uma nova catadupa de comentários…) Sempre temas e debates acalorados e absorventes. Que obrigam a recuperar problemáticas epistemológicas como a extensão geográfica subalternizada dos vários saberes, esse tão popular quanto desconhecido modelo de hierarquização de padrão ocidental, a ego-política subjacente numa lógica de conflito norte-sul, o multiculturalismo identitário, a colonização disciplinar, as epistemologias descoloniais, as revisões críticas da perspectiva histórica, da perspectiva ontológica, da perspectiva epistémica, para renegociar as definições do ser e dos seus sentidos, a transmodernidade, o etnocentrismo, tendencia emocional que hace de la cultura propia el criterio exclusivo para interpretar los comportamientos de otros grupos, razas o sociedades, faltava a jovem equatoriana para o dizer, mas é de supor que ela não consultasse com frequência o Dicionário da Real Academia Española. O certo é que apesar de não fazer o género de Penha, a beldade de Quito, latitude zero (o que não é rigorosamente verdade, nunca é demais relembrar) era dotada, porém, de uma beleza singular. No rosto, na expressão ferozmente encantadora que nele se desenhava. E nisso Tiago reparou num ápice, ao mesmo tempo que sentiu igualmente uma inesperada empatia por parte dela, reeditando em tudo o jogo improvável da troca de afectos violentos com a loira de olhos verdes da Tierra del Fuego. Talvez tivesse algo a ver com o filme «Romeu + Julieta» ao qual Claire Danes emprestou uma brisa intensa de sedução angelical. Numa e noutra, o mesmo olhar, tão cândido quanto provocador, mais ainda precisamente por essa qualidade de imaculabilidade, a que acrescia o fetiche da possibilidade imaginária de trocar beijos, afagos e outras intimidades com uma estrela de Hollywood. A necessidade de entabular diálogo em castelhano ou em espanhol (que nisto são poucos os que se entendem, pois a língua pode ser oficial mas os nomes que se lhe dá nem por isso) não abonava muito a favor da vontade em deitar por terra os fundamentos cartesianos da paixão, que pretendem questionar o inquestionável. Também não deixava de ser verdade, após uma apreciação mais atenta, quando ela se levantou, desta vez a caminho dos servicios – e não do banheiro – que a equatoriana estava longe de possuir as curvas sumptuosas do genótipo latino, como a colombiana Sofia Vergara ou a cubana Eva Mendes. Só para citar duas. Mas esse era um assunto a que Tiago havia deixado de dar muita importância, depois dos desaires com uma mexicana balofa que lhe apareceu à porta do quarto de um hotel em Paris e de uma italiana escanzelada e amulatada em circunstâncias semelhantes em Hamburgo. Por estas e por outras, no meio de tantas actividades localizadas na outra margem da sua existência, imaginada como uma vida dupla pela presumível sede de interpretar os papéis mais diversos, como um actor – vida que de dupla, bem vistas as coisas, nada 40 tinha, a não ser a dualidade em conflito inerente à sua própria essência multifacetada e turbulenta, uma luta titânica entre duas forças, no limite entre as do bem e as do mal, já aqui se disse – Penha acabou também por nunca chegar a decorar o nome da equatoriana (Buenos Aires queixava-se do mesmo!), não obstante as quatro tardes e as quatro noites em que privaram activamente em todos os sentidos. Como chegou a dizer uma vez por graça a um amigo que brincava com letras, em rigor pleonástico, um director editorial de uma editora, o saudoso Roberto Cavalcanti, ou RC, como era conhecido, que viria a morrer prematuramente de forma fulminante, vítima de leucemia, um homem brilhante e cáustico ligado à famosa família brasileira de origem florentina, espalhada sobretudo pelo nordeste do País e também por Portugal, Tiago dava consigo próprio a pensar se figuras de estilo não seriam, afinal, as silhuetas dos corpos humanos que tão ardentemente se deseja ou abomina. Pedaços de carne, com ou sem charme, para transaccionar nos becos sombrios da irracionalidade por onde vagueiam os agarrados ao ópio sexual. Quanto dás por esta metáfora? Troco por uma boa onomatopeia. Não quero nada disso! Orienta-me aí mas é umas anástrofes ou uns hipérbatos. Fico louco de tesão. Tesão?! É só um substantivo. Ou queres a coisa em sentido figurado? Curioso: Tiago Penha não chegou a ir a Puerto Madero. 41 VI. Escusado será dizer que Maria Clara nunca soube nada disto. Nem precisava. Até porque não faria diferença alguma, mesmo que imaginasse. Mesmo que suspeitasse de que poderia haver uma mexicana balofa, uma italiana escanzelada e amulatada, uma russa hirsuta com cara de bolacha mas exímia nas artes da felação, que grande chupadela numa cama larga de umas águas-furtadas transformadas em quarto de hotel numa rua estreita e sinuosa perto da Gorokhovaya, por onde erraram Dostoyevsky e o seu amigo Rodion Raskolnikov, em São Petersburgo, bem entendido – benditos rublos russos sem cobrança de extras, quer dizer, sem crime nem castigo ou sem qualquer ponta de sentimento, que o pior inimigo da mulher não são as outras mulheres mas a mão do homem, resta saber se a esquerda ou a direita, faltava afirmar uma falsa puritana, não a do pudoratus mas a da mais rigorosa e presbiteriana genuinidade, ao sair em defesa da prostituição, e até mesmo do lenocínio, numa diatribe obstinada e confusa contra o preconceito, a discriminação, a segregação e outras coisas que tais, seja lá com que base for, na raça, no credo, nas economias paralelas ou nos vários rodízios que abrem pernas e dão a ver as excrescências erécteis das vulvas, pois sexo é sexo e há mais putas que putedo, aquelas que fingem não querer ser pagas em numerário mas que fodem os homens e as mulheres e a vida a toda gente, grandes cabras filhas de uma grandessíssima puta (o que vai dar tudo no mesmo) – ou uma Claire Danes do Quito. Ou uma ninfa de olhos verdes da La Ciudad del Fin del Mundo. Todas umas putas ou filhas de uma grandessíssima meretriz – e lá se está no mesmo – que está para nascer uma mulher séria e imaculada. Não é que alguém lhes possa atirar a primeira pedra, como Cristo Nosso Senhor deixou ficar bem claro com aquela rameira de nome Madalena. Mas depois do pecado original, o de Eva, (confira Eva sendo comida na cozinha sem dó! Me visitem no Face, obrigada, espero vocês. Beijo) que quis comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, sabedoria não parece ser coisa que Deus goste de ver nos seres que criou à sua imagem, nada voltou a ser como dantes, embora os Livros Sagrados digam que não, tal como dão o dito por não dito, com Sodomas e Gomorras pelo meio, Babilónias e cavaleiros vingativos, em número de sete, que seis seis seis é coisa do Diabo, com selos numa mão e uma espada na outra, pelo menos estes não são inimigos da mulher de tão ocupadas que andam as mãos. As mãos e os dedos. Dedos que não brocham, tal e qual como o estranho título de um livro – curiosamente da autoria de uma baiucha, nome dado aos gaúchos que migram para a Bahia – a cujo lançamento Tiago assistira em Minas Gerais. As voltas que o mundo o dá. Até com dedos que não brocham, pois mineiro come quieto, lá diz o ditado. Queripodos inundados de tendões. Para tocar e sentir. Os mesmos que Maria Clara nunca mais quis sentir perto dela, os de Penha, bem entendido, tal como de todos os outros afinal, que qualquer contacto deixa uma marca, incapaz de combater a ferocidade querelosa em que mergulhou desde que decidiu matar a vida dentro do seu útero. Para não ter de carregar a cruz do Calvário, não o de Cristo senão teria de aceitá42 lo para que pudesse tornar-se sua discípula – coisa que, porém, acabaria por fazer mais tarde, apesar de em sede de desaprumo mental, à porta de um frenocómio (lendário Meneghetti) donde não voltou a sair – mas daquele que Tiago conseguiu reinventar ao prostrar-se diante das promessas de vida eterna no paraíso (não o vindouro com a ressurreição dos mortos e a entrada triunfal dos cento e quarenta e quatro mil eleitos na Nova Jerusalém, após o Juízo Final – que nessa matéria há muita discórdia – mas o terreno, sem demoras, sem compromissos de fé ou fidelidade, um novo Jardim do Éden ou a possibilidade de uma ilha na terra do pecado, o paraíso vestido de verde, a cor da vida e das forças da natureza em plena harmonia e equilíbrio, sem igrejas nem castiçais, sem selos nem cavaleiros do Apocalipse) exaladas pelos baixios vaginais de uma colega, é recomendável que se sublinhe, com Maria em estado de graça a caminho da desgraça. Bem vistas as coisas, Nosso Senhor até é capaz de ter razão: é que nada de lícito ou aprazível é de se esperar do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A ignorância é uma virtude. E para quem a larga não há retrocesso possível. Que o diga Maria Clara, obrigada a abandonar o imaginário dos príncipes e princesas, que é disso que o amor se faz, o primeiro, coagida à insensibilidade e à frigidez total como se de uma condenação se se tratasse. É claro que tudo poderia ser diferente, se ela tivesse optado por mandar Penha à merda e seguido um outro caminho, uma fuga para a frente, para se afastar da encruzilhada da vitimização. Mas não foi capaz. Nem para tal estava preparada, tanto mais que naqueles tempos mandavam os bons costumes o silêncio da mulher diante um marido putanheiro (um homem de respeito que por acaso frequenta prostíbulos e consome prostitutas, na verdade, um homem moderno sempre disponível para una agradable velada de vanguardia putanheirista), haveria de lhe passar, o tempo tudo sossega, para que a vergonha não fosse maior, havia acabado de casar, com pompa e altar, tudo seguido à risca de acordo com a tradição, levada pela mão do pai ao retábulo do digníssimo mandatário da entidade suprema, espartilho e vestido de noiva a condizer, valha-me Deus, que desgraça, já não bastava estar prenhe e agora queria desunir o que a Igreja havia unido, até que a morte vos separe – o que ainda não era o caso – que andar a foder fora do leito conjugal com a mulher grávida, poucos dias após a sacralização do matrimónio, pode ser pecado, mas não mortal, está tudo bem representado e devidamente documentado por Bosch (o caricaturista holandês e não o industrial alemão, é bom que não se confunda, senão com mais ou menos palavras a «Nau dos Loucos» ainda se transforma num qualquer Boesch 970 St. Tropez, com um motor de duzentos e oitenta cavalos e capacidade para sete pessoas), apesar da jurisprudência canónica – que sempre condenou, por exemplo, o sexo com vegetais – ter acabado por considerar que o adultério não deveria ser apenas uma transgressão venial, passível de um bilhete de ida para o Purgatório, mas definitivamente mortal, já que incorpora o frémito pecaminoso da luxúria, desde que verificados, é claro, os devidos requisitos que consubstanciem o princípio do nexo de causalidade. Resultado: ao invés da revogação do contrato marital, Maria Clara calou-se, fingiu a audácia altruísta do perdão, em nome de uma nova oportunidade, que a coisa não podia repetir-se, como é evidente, mas lá no fundo – quer dizer, não tão fundo quanto isso, porque sentia a humilhação à flor da pele e a devassa do misterioso encanto feminino, alimentado durante anos e anos pela dinâmica romanesca das histórias de príncipes e fadas, da graciosa harmonia desses distantes reinos e principados – ditou a sentença: doravante sentir-se-ia sempre a respiração ofegante do cobrador. Uma espécie de sopro na nuca, uma leve aragem cuja intensidade foi aumentando; a brisa amena inicial deu 43 lugar à ventania e a ventania deu lugar à tempestade ciclónica, a um bafo insuportável de enxofre vulcânico. Foi pois por estas veredas que Maria Clara passou a caminhar, um atalho para o acesso rápido à diabolização do objecto do pecado com vista ao exorcismo do mesmo, com a falsa roupagem do perdão, belo engodo que seduziu Tiago Penha, na expectativa de que ainda era possível recuperar o irrecuperável. Mas o irrecuperável é assim mesmo; perdido para sempre, pelo que nada voltou a ser como dantes. (Em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará) Ainda assim, Tiago nunca conseguiu perceber ao certo a razão e aonde Maria Clara foi arranjar coragem para uma decisão tão radical. As discussões violentas ou os silêncios prolongados até à eternidade possível seriam de esperar. Mas matar o bebé e a própria capacidade de gerar vida dentro dela, quase imediatamente após a inesperada resignação – em boa verdade só na aparência – de Maria Clara à infidelidade de Penha, permaneceu para sempre um mistério, que se estendeu para além da morte, para além do aluimento clitórico que ditou a extinção capital de Tiago e finalmente o apartou da mulher. (Deus perguntou-lhe: Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses? Ao que respondeu o homem: A mulher que me deste por companheira deu-me a árvore, e eu comi) É enorme a controvérsia sobre as consequências da histerectomia. Acredita-se, porém, de forma mais ou menos generalizada, que o útero está associado ao conceito de feminilidade. Daí que pode ser importante considerar a percepção que cada mulher tem da sua sexualidade e da possibilidade de procriação. É que parece ser grande o risco de desajustes emocionais e sexuais após a remoção do útero. A qualidade do vínculo conjugal aparenta ser também de extrema importância para o bem-estar psíquico e sexual após a cirurgia. (Web Forum: Quando o útero é extraído, os períodos menstruais param e é impossível engravidar. Mas não é verdade que as histerectomias fazem uma mulher engordar ou mudam a sua personalidade. Réplica no feminino: Não fazem? Fazem sim. Há uma alteração do estilo de vida que nos vai tornando cada vez mais sedentárias com a perda natural da massa muscular. A que se segue uma outra observação: E ainda não falaram da morte do orgasmo intravaginal e clitoriano. Ou da diminuição da lubrificação vaginal. Com que vontade vai a mulher fazer sexo?) A discussão é longa mas decerto inconclusiva, já que os estudos não parecem ter encontrado ainda o seu verdadeiro objecto, apresentando resultados meramente exploratórios e, nalguns casos, até mesmo contraditórios. O certo, porém, é que para os dois, Maria e Tiago, naquele momento pouco importava todo esse vasto mundo a jusante. Na prática, a percepção dos factos, apesar de alicerçada em razões diferentes, resumia-se a pouco: nem a montante nem a jusante, mas tão simplesmente o presente; o confronto com uma nefasta experiência de morte, entendida quase em todos os sentidos, em todas as dimensões do que lhe é inerente. Uma dupla morte, a bem dizer, com a remoção do útero mas também com a remoção do feto. Porque não podia nascer. Com vida. E o resultado foi inevitável, não obstante ter acabado por se mascarar sob o ónus das obrigações profissionais, pelo menos na imagem projectada fora da privacidade da vida conjugal (se é que se podia designá-la assim, porquanto soa a um estranho eufemismo para uma convivência claramente mais formal do que material, assente numa distância que doravante se aprofundou, no tempo e no espaço). Tanto mais que, entre a infidelidade de um e a decisão unilateral do outro para a remoção do útero e a sentença de morte para o feto, a trajectória da culpa assumiu contornos de contradição. Se podia haver um nexo de causalidade, existia igualmente um profundo dissentimento quanto ao peso das transgressões, avaliadas no contexto das respectivas consequências. 44 Com efeito, como prerrogativa ou imposição (depende do ponto de vista), Penha viu-se a partir daí a calcorrear meio mundo: porque aceitou, nunca alegando constrangimentos de natureza familiar; porque lhe convinha. A sorte estava ditada mas não havia solução à vista, não se sabe se por falta de coragem ou por mero expediente de protelar o inadiável na indecisão do amor, afinal a mesma que tinha levado Maria a não mandar de imediato Tiago à merda, para que a vergonha não fosse maior, que o tempo tudo sossega. Tempo gasto entre locais inóspitos e sumptuosos, cosmopolitas e desterrados, em terras que Penha não desejava conhecer e outras que sempre havia sonhado sopesar, mas também lhe escaparam destinos que talvez o enlevassem. Nessa roda-viva entre o ir e vir, entre o ficar e o querer voltar, ou simplesmente partir, Tiago Penha foi descobrindo que o planeta tem cores a mais. Tantas quanto os códigos que teve de aprender a manobrar. Se tudo se reduzisse ao preto e branco, bastar-lhe-ia decorar, ele que estava habituado a lidar com expressões matemáticas complexas, combinações tão básicas como 255 255 255/#FFFFFF, ou 0 0 0/#000000. Mas havia o vermelho, a cor da paixão e do desejo (255 0 0/#FF0000), ou o azul, a cor do mar e da fidelidade (0 0 255/#0000FF), ou a humilhação da morte cor-de-rosa com que os nazis tentaram eliminar a praga judaica (255 192 203/#FFC0CB), entre tantas outras e mais um semnúmero de gradações. Na verdade, a cor foi sempre um problema. E para Tiago, com a mulher distante, um problema crescente, à medida que foi descobrindo os fragmentos dispersos desse misterioso espectro luminoso que varre o universo nos destinos a que vida o conduziu, revelações inesperadas sob a forma de meteoros convulsivos; escalas de valores sitiadas entre visões parcelares, orgulhos étnicos, vaidades tradicionais, discursos fundamentalistas, despesismos desenvolvimentistas e um sem-fim de outros jargões ideológicos em permanente e violenta agitação em shakers de luxúria empírica – não os da Sociedade Unida dos Crentes na Segunda Aparição de Cristo, mas os populares recipientes para cocktails, é bom que se distinga. Entre tantos códigos estranhos, no limite adversos (pela profunda dissonância em relação aos quais estava habituado), Penha acabou por começar a sentir-se cansado; farto de observar inúmeras pequenas tragédias ditadas precisamente pela cor. A cor das ideias, a cor do território, a cor da pele e dos olhos, a cor da existência humana, como se houvesse a possibilidade de habitar um mundo monocromático apartado da diferença. Mesmo que desejável ou condenável. Na verdade, tornou-se tão cansativo como sentir a obrigação de pensar sobre o assunto, a obrigação de tomar partido, de situar o seu posicionamento num lado ou noutro, ou entre os dois, ou fora deles, quando a razão da cor é a sua ausência, a sua própria negação. Afinal, para quê discutir uma ilusão óptica? É que procurar sentidos no ângulo de reflexão e refracção da luz mais não é do andar em círculos até à infinitude. Em Kinshasa, quase na recta final do reinado de Mobutu Sese Seko, em vésperas do conflito armado entre hutus e tutsis – de malas feitas para abandonar à pressa a Avenue Batetela e o célebre Grand Hotel, cinco estrelas mas decrépito, por ironia a poucos metros da Embaixada da Índia, para apanhar a porra do primeiro avião que saísse de N'Djili, a cerca de trinta quilómetros a sudeste do centro, que bem podiam ser cem ou duzentos, no meio daquele inferno – a cidade das crianças-feitiçeiras onde nunca conseguiu superar a indecisão de determinar se estava ainda ou não nas terras descritas por Henry Morton Stanley, Roger Casement, Joseph Conrad, V. S. Naipul, entre outros, havia passado horas a olhar para uma fotografia com um casal a posar: (Que pensez vous de cette couple? On ne voit que ses dents et ses yeux…) ele preto, ela branca, ambos sorridentes. Preto, porque negro pode ser ofensivo, se nele se evidencia uma certa dose de paternalismo imperialista e eurocêntrico. É claro que a 45 mesma regra é aplicável ao uso do preto, não da cor mas da expressão, se nele se evidencia uma certa dose de saudosismo imperialista e eurocentrista. Já para não falar da inversão dos termos da dicotomia, situando o paradigma do etnocentrismo nos mesmos pressupostos mas de natureza afrocentrista, em tudo igual ao eurocêntrico, como muitas diásporas têm preconizado. Embora questionável, pela retórica fácil que da imagem facilmente podia emanar, Tiago não conseguia deixar de olhar para ela e imaginar como seria o ser humano se fosse possível passar uma borracha por cima de todos os discursos e deixar respirar, pura e simplesmente, aqueles dois sorrisos. Em liberdade. Sem juízos de valor. Respeitando o silêncio. Que gritava naquela fotografia, afinal tão vulgar. E, por conseguinte, sem qualquer razão de se distinguir de qualquer uma outra que retratasse um casal de brancos ou de pretos. No Congo ou onde quer que fosse. (Web Forum: O amor não tem cor nem nacionalidade. A que se segue a concordância: O que importa é que o amor é lindo, seja de que cor for. Resposta dissonante: Para os homens maus importa a cor da pele sim, infelizmente! Nova discordância: Não, quando se ama com o coração não se vê o rótulo; só o conteúdo. A que se segue um novo comentário: O mundo seria outro se não fossem os rótulos culturais de que a sociedade não consegue se livrar. Estes dois são humanos e nada mais importa. Assim é que deveria ser. E ainda outro: Preto ou negro tanto faz. Hoje em dia aceitamos para dar volta ao preconceito. Antigamente negro era usado para escravos mas hoje em dia aceitamos sim, assim como aceitamos carapinha. No entender de muita gente ignorante, tudo o que é preto dá azar, muita desgraça. O engraçado é que nós também chamamos os europeus pessoas de cor. São coisas da vida. Somos pretos, negros, carapinha ou escurinhos com muito orgulho. Finalmente, com um remate: A questão apresentada da cor só é um problema para os complexados. Preto e negro são sinónimos e nada mais. Para evitar constrangimento a cidadãos complexados dessa cor ou raça chame-se-lhes africanos, euro-africanos, etc. Quando for necessário. Já é tempo de cada um assumir com realidade o que realmente é. Com a intenção de agradar a negros e mestiços até já falam em marrom. Mas só existe a raça humana. Chega de distinções de branco, preto, amarelo e vermelho) Pois é, o velho problema da cor. Afinal, quem teve a ideia de dar nome à cor?, perguntaram-lhe uma vez, ainda Penha estava a pensar nas recomendações dos serviços consulares portugueses que havia lido quando a empresa decidiu enviá-lo com Simão Saraiva para Kinshasa. «Desaconselham-se as viagens não essenciais ao Congo, nomeadamente todo o tipo de viagens turísticas. É totalmente desaconselhado viajar para o leste e nordeste do País. Este desaconselhamento aplica-se a toda e qualquer entrada através do Uganda, do Burundi e do Ruanda. Recomenda-se que o viajante não se desloque ao Congo sem que antes celebre um seguro médico que envolva designadamente a possibilidade de evacuação por ambulância aérea, dadas as deficiências da rede saúde local.» Contudo, tanto para este, o da cor, como para outros problemas, há algo que deve ser dito. Provavelmente nem todos param para perceber que a realidade que pensamos percepcionar, a realidade física e tridimensional, reduz-se ao despotismo da sintaxe, à arbitrariedade das relações de concordância e dependência incondicionais; uma realidade possível em que cremos como certa pelas informações que nos são dadas pelos sentidos do corpo humano; uma realidade ancorada na disposição estrutural mais ou menos ordenada e harmoniosa, e igualmente funcional, de unidades, números, símbolos, como o sujeito e o predicado, na linguística, orações sintácticas, que tanto servem para as frases da linguagem como para as frases musicais. 46 Este é o mundo cacofónico em que vivemos ou que, pelo menos, julgamos viver. Por mais cantos e recantos que esquadrinhemos nas viagens que ao longo da vida vamos fazendo, na redoma doméstica, local, próxima, com a qual temos a inclinação de nos identificar mais facilmente, ou na aridez selvagem do globo terrestre, percorrendo um conjunto indeterminado de pontos distantes na imensidão intercontinental, não há forma de escapar. Nasce-se com a marca e com ela se coabita até ao fim: a marca que nos caracteriza como seres de mumificação lenta. É costume dizer-se que quem viaja muito e conhece vários países e diferentes formas de organização e estruturação social e cultural, tende a ser mais feliz, de espírito aberto, com manifestações regulares de uma energia contagiante, uma pessoa activa e desprendida com um enorme amor pela diversidade global e, por conseguinte, paradoxalmente, mais desapaixonada pelas tais pequenas tragédias da existência humana. É claro que o índice de felicidade é altamente discutível, que numa escala de um a cinco, por exemplo, o três de um pode ser igual ao quatro de outro, já que a expectativa e a própria concretização da suposta felicidade varia no alcance que à mesma cada um dá. Mas esse nem sequer é o essencial da questão. Com efeito, a problemática deve ser equacionada de um outro modo, por sinal bastante simples: entre as abóbodas celestes e as abóboras terrenas não há grande distância. A não ser que o firmamento seja uma mera ilusão óptica, tal como a cor. É que a forma é a mesma, bem como a função: alimentar quem tem fome. Será fome de poesia? É que quando olhamos para o céu, o firmamento, e contamos as estrelas e apreciamos a luz da Lua, algo de mágico nos acontece e somos capazes de criar o mais lindo poema ou cântico. Quanto às abóboras terrenas, alimentam um outro tipo de fome: a que dói nas entranhas de um corpo cansado de um dia exaustivo de trabalho; a fome que não deixa as crianças dormir, coisa que não é nada poética, por sinal. Por isso, devíamos perguntar: do que é que temos fome? Da poesia, que alimenta a alma, ou de comida, que alimenta o corpo? Fome de poesia?! Se ao menos abrisses os braços, me desses a cheirar um pouco da tua bondade… Onde param os teus oráculos? Tiago Penha bem sabia que há muito que Maria Clara não fazia parte da equação. Dos inumeráveis códigos de cor. Do admirável mundo dos dígitos binários. Das combinações complexas de bits para processamento simultâneo, transformando-as em sistemas. Nem Maria nem Kinshasa. O projecto rendeu dinheiro – um dos mais rentáveis, aliás, em território subsariano, até mais do que em Angola – mas querer voltar a fazer negócios na cidade invisível seria como construir estâncias de golfe no meio dos musseques de Luanda, como no Cazenga, ou das favelas do Rio de Janeiro, como na Rocinha. Ou nas villas de emergencia de Buenos Aires, como em Lugano. Curioso: Para quem havia viajado tanto como ele, onde parava a sua energia contagiante? Ter-se-ia ele tornado uma pessoa activa e desprendida com um enorme amor pela diversidade global e, por conseguinte, mais desapaixonada pelas pequenas tragédias da existência humana? Tiago desconfiava que não. E essa suspeita adensavase à medida que ia envelhecendo. O que queria dizer que, afinal, havia razões para começar a ceder ao sentimento de angústia. 47 VII. Pelas contas do médico – ginecologista e obstetra – faltava pouco mais de um mês para o parto quando deixou de ouvir, com surpresa e sobressalto, as batidas cardíacas fetais. Submerso em líquido amniótico contaminado de sangue, o bebé havia deixado de respirar. De se mexer. Um peso morto afogado no interior do ventre de Maria Clara. Tiago quis saber o que se passava, perceber o que teria sucedido, tentar compreender o terror, como se fosse possível minimizá-lo através da percepção de actos e consequências. Mas o terror é apenas terror; não tem razões nem objectivos. Podia ter sido um caso de polícia, mas os exames médicos apontaram noutra direcção e o que urgia era salvar a única vida que restava: a da parturiente, que não chegou a sê-lo. É certo que ficou muito por esclarecer, sobretudo para Penha, mas valeria a pena? Meses antes, mal Maria soube estar grávida e pôde confirmá-lo, foram escolhidos de imediato os nomes para o bebé, um para menina, outro para rapaz, por comum acordo, rara e curiosa concordata numa relação que sempre fora e continuou a ser dissonante, como se tem visto. Não é que se tratasse já propriamente de um bebé, mas aquele embrião de milímetros era um esboço promissor do que poderia vir a ser. À medida que se desenvolveu, o milagre da multiplicação, celular e molecular, tornou-se cada vez mais sedutor. Até que chegou o dia em que souberam, Tiago e Maria, que seriam pais de uma estrela, o correspondente hebraico de Ester, em rigor de Hadassah (que também serva para murta, uma planta do tipo das mirtáceas), ao que parece de origem persa, prima e filha adoptiva de Mordechai, lê-se na Torá, que chegou a rainha ao desposar o rei Ahasuero. Bons agouros para a viagem que haviam planeado fazer, nesse ano fatídico de dois mil e um, a última a dois – que definitivamente foi mesmo a última, embora isso não estivesse nos planos – tanto como despedida dessa condição, a da vida em par, quanto como festejo do ímpar pelo anúncio da chegada do primogénito, fruto do que Deus uniu, o homem e a mulher, acto de amor e a palavra do Senhor a ressoar, “Sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela.” «Hendaye, Setembro um, dez e quinze Querida Ester, É para ti a primeira palavra. Já estamos em França. Atravessámos a fronteira de Hendaye há quase uma hora. Para trás, já lá vão aqueles pensamentos iniciais aquando do princípio da jornada, pensamentos de angústia que começaram logo a caminho de Santa Apolónia. Pensei se a tua mãe estaria a sentir o mesmo. Quer dizer, não posso falar por ela, mas decerto que a percepção de angústia era semelhante. Embarcámos sem qualquer percalço. Teve piada saber que a tua mãe nunca havia estado em Santa Apolónia. Sair de Lisboa no mítico Sud Express já nada tem de mítico. Nem mesmo sendo da tão histórica quanto caduca CP, já vão longe as gloriosas “regenerações” governativas de Fontes Pereira de Melo por volta dos anos mil oitocentos e cinquenta e troca o passo. Agora é como qualquer partida, um comboio vulgar que inicia marcha sem pompa e atravessa provavelmente a zona mais degradante e deprimente de Lisboa. 48 O comboio é igualmente deprimente. Estão longe os tempos em que Santa Apolónia era notícia, em que os magotes de emigrantes, acotovelados, assustados, apareciam na televisão, ainda a preto e branco, a oferecer ao País as suas emoções, as suas despedidas embaraçadas. Em fuga consentida da Guerra de Ultramar ou de outros infortúnios do Estado Novo. Hoje, ainda são muitos os emigrantes, os portugueses que vão e vêm de França; a história ainda soa a “mala de cartão”, mas os tugas misturam-se com os turistas, os miúdos do InterRail e os menos miúdos do InterRail, como nós. Tivemos ontem o primeiro incidente, com três miúdas francesas. Foi coisa ligeira – um pequeno episódio de má educação, insultos em francês à espera de que ninguém perceba, um certo pedantismo – mas pôs-me a pensar no mosaico cultural com que nos confrontamos sempre que viajamos. Em contrapartida, conhecemos um casal curioso, simpático, de algures perto da Figueira da Foz. Ela simples, ele um tanto pintarolas, mas solícitos. Conseguimos uma couchette e lá deixámos as parvas das francesas à vontade. Desde Vilar Formoso até Hendaye estivemos metidos numa carruagem-cama. Senti-me estar dentro de um galinheiro. Parecia ir a caminho de Auschwitz e até tive de pagar para isso cento e noventa francos. Mas valeu a pena. Fiquei com a sensação de ter passado toda a noite acordado, mas a tua mãe disse-me de manhã que estive a ressonar. Ainda bem. Sinto-me amassado, mas saber que ressonei é revigorante q.b. Estamos agora no TGV. É a primeira vez que andamos neste comboio ultra-sónico. Na verdade, não tem nada de especial. É mais simpático que o de ontem e, pelo menos, não provoca a sensação de que estamos a saltar, como aconteceu ontem no vagão-restaurante. A imagem é romântica, mas a realidade é mais uma comédia… Estou cansado. Gostava de produzir um discurso mais bonito, mas não sou capaz. O cansaço é terrível e absorve a lucidez.» Foi esta a primeira entrada deixada por Tiago Penha no diário de bordo que havia combinado escrever com Maria Clara, que ela faria o mesmo – outra rara e curiosa concordata numa relação sempre desafinada – ao longo da viagem pela Europa, programada para durar cerca de três semanas, de mochila às costas e os devidos preparos com vista à predisposição física e mental para o improviso em face das adversidades, que é disso que se faz a aventura, sempre construída à medida de cada um, que nem para todos é igual. Um breve périplo por algumas das principais capitais do velho continente, de norte a sul, mas confinado a latitudes geodésicas centrais com um epicentro mais ou menos definido, não fosse dar-se o caso de serem desejadas, por impulso do momento, certas e determinadas dispersões territoriais que só atrapalhariam a harmonia do empreendimento. Tanto mais que estava em causa (havia sido essa a justificação subscrita pelos dois para este movimento exploratório intra-continental) o corte eufónico e parcimonioso do cordão umbilical – uma liberdade metafórica bem a propósito aliás – que os unia à vida de outrora, a dois, à vida consumada até então, antes dos prenúncios do advento da idade da razão (se é que Sartre não se enganou e ela nem sequer existe, quer dizer, a razão). (Web Forum: Eu diria que ela nunca chega completamente e de forma definitiva. Mas há um momento em que passamos a poder optar por usá-la; em que deixamos de ser reféns do puro desejo. A que se segue uma réplica: Pois é capaz... de ter razão... E uma nova observação: No meu entendimento a razão existe; nas na verdade nunca chegamos a ela. Resposta: Eu diria que chegar, chegamos. Ficar nela é que são outros quinhentos. A razão total seria para os deuses – não os gregos, puro desejo e paixão – se existissem. Mas é possível ponderar o desejo e o acto. Ou seja, usar um pouco de razão. Por isso não saímos o tempo todo para roubar, matar, estuprar. Enfim, usamos a razão para controlar e dirigir os nossos actos. E novo comentário: É isso que me chateia, sabe? Pessoas que têm consciência da razão, mas não a seguem por pura estupidez. Remate: Se a razão é a liberdade de pensamento, bom, até posso pensar, 49 ainda não fui privada disso, mas concretizar é impossível neste mundo de falsidade moralista. Eu só queria ser livre) «Hendaye, Setembro um, dez e quinze Partimos ontem de Santa Apolónia mais ou menos às seis da tarde, com uns minutos de atraso. É uma sensação estranha. Por um lado, com vontade de partir, por outro, com grande angústia. O comboio era sujo (para vergonha de todos os portugueses) e, para ajudar a festa, apanhámos na carruagem umas francesas parvas, pitinhas mas arrogantes. Só faltou desatarmos à estalada. Felizmente que conseguimos uma couchette. Não consegui pregar olho, mas foi como se me saísse a sorte grande, embora a carruagemcama também fosse um nojo. Ficámos nas camas de cima. Em baixo, havia três emigrantes portugueses que dormiram toda a noite. Por volta das oito da manhã vieram acordar-nos e regressou o pesadelo. Agora a ida à casa de banho. Porca, sem água, enfim, condições próprias de outros tempos que não os de agora. Às nove e meia da manhã mudámos para o TGV. Uau! Será que estou a sonhar ou dei um salto no tempo? Et voilà! France. Foi como se de repente passássemos da terceira para a primeira classe. Bancos confortáveis, bar agradável e ar condicionado. E pensei na Ester. Estamos ansiosos para que o tempo passe. Como seria bom que ela já cá estivesse fora e pudesse viver esta experiência ao nosso lado. De resto, até aqui, a viagem até tem sido interessante. Apanhámos o regresso dos emigrantes portugueses a França, histórias curiosas de outros tempos, já lá vão trinta anos, de como faziam para chegar a França clandestinamente. São-me bastante familiares estas histórias mas gosto sempre de as ouvir e, sobretudo, passar pelos locais em que decorreram. Imaginar que, enquanto agora transpomos facilmente a fronteira entre Espanha e França, há trinta anos estes homens faziam-no a salto. Provavelmente bem perto da zona que acabámos de atravessar. Ouvimos as histórias sentados à mesa, durante um jantar que era suposto ser “romântico” no vagão-restaurante do famigerado comboio português que nos trouxe até aqui. Só para lá chegar foi uma aventura. Não sei quantas carruagens percorremos, mas foram muitas. Durante o percurso, entre os vários módulos do comboio, parecia que se abriam novos mundos. Cada um diferente, conforme fosse a carruagem. Emigrantes portugueses aos magotes, mas também imensos africanos com quinhentos mil bebés a chorar. E alguns franceses e ingleses de pé, descalços, a passear pelos corredores. Com bagagens pelo meio e até uma bicicleta. E muitos a dormir no chão. Amontoados. Tudo metido naqueles corredores estreitos de difícil circulação. Quando chegámos por fim ao “famoso” restaurante, que está precisamente na última carruagem, na retaguarda, lá se foi a imagem romântica de um jantar num comboio, como vemos nos filmes. Aquilo era um número de malabaristas: os empregados a tentar manter as bandejas em equilíbrio, sempre com bons reflexos, de tanto que a carruagem abanava. Na verdade, senti que estava mais num barco à deriva no mar alto, no meio de uma tempestade, do que propriamente num comboio. Com todas aquelas travessas a passar de um lado para o outro, quase com a comida a cair em cima das pessoas, pratos a tremer sobre as mesas, copos à beira de cair no chão. Tínhamos que comer com uma mão e segurar com a outra tudo o que não se encontrava devidamente preso à estrutura do vagão. O casal ao nosso lado olhava-nos e sorria, encolhendo os ombros. E depois desatou a desfiar as histórias do passado. Naquele carrossel de solavancos e ruídos metálicos.» Maria Clara e Tiago Penha tinham ainda pela frente quase oitocentos quilómetros (que acabaram por percorrer em menos de cinco horas) para chegar a Paris, para eles o verdadeiro ponto de partida desta viagem. Quer dizer, depois do transbordo da Gare Montparnasse para a Gare du Nord, qual delas a pior. Tudo somado, foram milhares e milhares de quilómetros e dezenas de horas dentro dos mais variados tipos de comboios, uns modernos, outros nem por isso, alguns bastante rápidos, a maioria decrépita a 50 arrastar-se pelos carris em marcha lenta. Daí que Maria e Tiago aproveitassem o tempo para se dedicar a mapas e guias de viagem – que além do período de três semanas e das latitudes geodésicas fixadas para o périplo, nada mais haviam querido programar – e aos diários de bordo. É interessante seguir os dois caderninhos de bolso com as páginas presas por argolas, um de capa azul, a cor da monotonia e da falta de coragem, outro de capa cor-de-rosa, a cor da maldição hebraica, uma vez que a maior parte das entradas foi escrita ao mesmo tempo, reflectindo pensamentos diferenciados sobre experiências comuns e, por conseguinte, o carácter e a variação de humor de dois olhares sobre a mesma paisagem temporal. «Berlim, Setembro quatro, vinte e uma e quarenta e cinco Querida Ester, Amanhã partimos para Praga. Completámos o nosso ciclo berlinense. Foram três dias muito interessantes. É claro que chegámos cansados depois de dois dias de viagem, depois de dois longos dias enclausurados em comboios. Aparentemente estive a ressonar durante o troço entre Paris e Frankfurt. A tua mãe diz que não dormiu nada e que os outros passageiros da couchette passaram a noite a bater-me na cama. Ao que parece, ninguém conseguiu dormir. Pela minha parte, dormi como uma pedra. O truque é simples: despir-me e vestir o pijama. É claro que pode ser estranho para muitos. De pijama numa couchette partilhada com quatro pessoas que não se conhece de lado algum? Até podiam ser cinco, se não contasse com a tua mãe. Essa pelo menos conheço. Quer dizer, julgo que conheço. Mas adiante. Acordei em Frankfurt com um nevoeiro denso e a estranha sensação de estar na Alemanha nazi. Tínhamos apenas quinze minutos para fazer o transbordo para o comboio com destino a Berlim. Mas como bons franceses que são, le train de nuit da SNCF chegou on time. E o primeiro alemão, funcionário da DB Euregiobahn, a quem perguntei pela linha para Berlim pareceu-me simpático. Acabámos por partir sem qualquer sobressalto. O comboio era espectacular. Andei pela primeira vez na vida a duzentos e cinquenta e um quilómetros por hora. Havia em cada carruagem um placar digital com a indicação da velocidade em tempo real. É um tanto ao quanto estranho pensar nisso, mas nem nos apercebemos. Os comboios na Alemanha – este era um do tipo intercidades – são fabulosos. Houve uma ligeira confusão com os lugares, mas nada que nos inquietasse particularmente. Não é todos os dias, pelo menos para nós, portugueses, que se está a bordo de um verdadeiro TGV alemão. E de novo chegámos a horas, desta vez a Berlim. Afinal, a pontualidade britânica não parece ser prática comum apenas em terras de Sua Majestade. Em França e na Alemanha tout au point. Pelo que vi até agora, só mesmo em Portugal é que deslizam carroças pelos caminhos-de-ferro. As mesmas que insistem em rodar por Castela e pelo País Basco. Berlim é tal e qual como a imaginava, tal e qual como nos filmes de Wim Wenders: fria, cinzenta, em largura e não em altura. Contudo, o cartãode-visita, ou de chegada, chame-se-lhe lá o que se quiser, foi mau. O primeiro alemão ao qual pedi informações sobre a ligação a Praga, mal percebeu o meu inglês. Pareceume antipático. O segundo, junto de quem tentei fazer uma reserva para Praga, foi definitivamente antipático. Disse uma zurrada qualquer em alemão do género “desaparece daqui”. Fomos parar directamente à zona leste de Berlim. Mas até lá, desde a estação, tivemos de andar a pé quilómetros a fio, porque tinha um objectivo: Alexanderplatz. Gastei mais de meia hora no comboio, antes de chegar, com o mapa da cidade: a decifrá-lo, a memorizá-lo. O nosso destino tinha de ser Alexanderplatz. Uma mania por causa do livro do Döblin. Mas conseguimos chegar cerca de uma hora depois. Pode parecer que não é muito tempo, mas com o peso brutal das mochilas às costas não é assim tão fácil. Procurámos um hotel e acabámos no Ibis lá do sítio. Que 51 merda! Estou mesmo cansado. Desculpa, Ester, mas amanhã de manhã, quando estiver no comboio a caminho de Praga, conto-te o resto. PS. Voltei a ter uma discussão com a tua mãe. Bebi uísque e estou deprimido. A vida nem sempre é o que queremos. Estou a ver ou ouvir, nem sei bem se é uma coisa ou outra, um canal de televisão polaco. Pelo menos não me parece que haja sinais de campos de concentração. É passado; já não interessa.» Pouco antes, Maria Clara também havia começado a escrever, produzindo desta vez um extenso texto sobre Berlim. Penha, por seu lado, só o retomou no dia de seguinte, de manhã, no comboio a caminho de Praga, pela primeira vez em escrita isolada, isto é, sozinho, que Maria parecia continuar ainda encrespada após a discussão da véspera. Uma quezília, das muitas que sempre tiverem, à qual, aliás, não fez qualquer referência na sua segunda e longa entrada no diário de bordo cor-de-rosa, a famigerada cor dos corpos dos judeus amontoados nas câmaras de gás nazis. «Berlim, Setembro quatro, onze Chegámos anteontem a Berlim às onze e meia da manhã exaustos da viagem. Mais uma noite sem dormir. Não sei o que se passa comigo. Dantes dormia em qualquer lado, agora não consigo pregar olho. Ao entrar na cidade, não senti nada de especial (tal como previa), ao contrário do que sinto quando chego a outros destinos como Paris, Madrid ou Londres. Se calhar, é porque já vinha com a ideia preconcebida de que passaria bem sem conhecer Berlim. No entanto, à medida que me fui ambientando acabei por me apaixonar. E não foi preciso muito tempo para que esta cidade monstruosa, no sentido de grandeza, com todo o peso da História que carrega, me conquistasse. São onze da noite e amanhã partimos para Praga muito cedo. Mas confesso que adoraria ficar por aqui durante mais alguns dias, sobretudo para tentar perceber melhor esta realidade que não é assim tão óbvia quanto pode parecer à primeira vista. Dizem que a reunificação de mil novecentos e oitenta e nove transformou a cidade numa única só, sem diferenças entre Ocidente e Oriente. Mas não me parece. É verdade que vinha com a ideia tradicional de que haveria contrastes evidentes entre a zona leste e a oeste. É certo que nestes dozes anos grandes obras foram feitas. Exteriormente. Em Berlim leste, já se vêem carros de modelos acabados de sair, os edifícios estão bem conservados. Porém, não consegui perceber (não houve tempo!) alguns aspectos e vou-me embora com muitas questões na cabeça. Como é que as pessoas se sentem com esta mudança, especialmente as que viviam e vivem a leste do antigo muro? Estarão realmente integradas no modelo cultural ocidental tão diferente daquele em que viveram durante décadas? São simpáticas, ao contrário do que pensava dos alemães da antiga RDA, embora não saiba se são-no mesmo assim no geral, na realidade. Fazem um enorme esforço para nos compreender. Foi uma surpresa: é raro aquele que percebe ou fala inglês. Fomos hoje a um restaurante cheios de ideias para comer um prato tipicamente alemão, desta zona. Estávamos a pensas nas famosas salsichas. E pedimos, mas o que apareceu foi um bife panado. Não deixou de ter piada, até porque a empregada esforçou-se para nos agradar, apesar do problema de comunicação. Ementa em alemão e nada de inglês, escrito ou falado. Ainda assim, o resultado final foi uma grande desilusão. De resto, as pessoas têm um ar muito simples. Até se vestem um pouco fora de moda. Fazem-me lembrar um povo dos anos oitenta. O metro, por exemplo, é bastante curioso. Adorei os placards que aparecem em todo o lado sempre com informações actualizadas quanto aos minutos previstos para a chegada do próximo comboio. As carruagens são antigas, mas muito coloridas. E chamou-me particularmente a atenção o facto de se ouvir música clássica em todas as estações. Fomos dar um passeio de barco pelo rio Spree e foi aí que tive a real percepção da grandeza da cidade. Percorremos o rio durante duas horas e apenas fizemos metade do 52 caminho que é navegável no interior de Berlim na zona norte. Mas deu para perceber bem as diferenças entre a parte ocidental e a parte oriental. A influência do que poderíamos chamar de um certo tipo de arquitectura nazi é bem evidente nos edifícios e sobretudo nas pontes. De resto, prosseguem as obras por todo o lado. Muitas gruas, muito entulho. O norte de Berlim, na área que percorremos, tem uma mistura de barroco com o pós-industrial. É engraçado ver lado a lado um enorme monumento e um arranha-céus todo espelhado por ali cima. Contudo, no meio disto tudo, o que mais me impressionou foi o contraste entre o ritmo pacato da vida na zona leste e agitação na parte oeste. Num lado, quase não se vê ninguém nas ruas. Não há sinais de stress, aquele fervilhar habitual que encontramos nas grandes cidades e, claro está, também na área oeste de Berlim com os seus McDonald’s e todas as outras cadeias de fast food e franchises de tudo o que é possível vender. Ficámos hospedados num hotel espectacular. Uma noite. Depois tivemos de mudar para o Ibis, porque estava completo no dia seguinte e não tínhamos feito qualquer reserva. Nunca tinha entrado num hotel que me impressionasse tanto. Fazia lembrar as casas imponentes dos anos vinte ou trinta. Muito antigo, mas extremamente acolhedor e cheio de bom gosto. Senti-me emocionada quando visitámos um antigo posto de controlo fronteiriço, o famoso checkpoint Charlie. Ficámos parados a olhar durante uma eternidade e a imaginar tudo o que aquilo representava. As barbaridades que ali foram cometidas. Depois, entrámos em euforia e desatámos a querer registar o momento com dezenas de fotografias. Parecíamos os turistas chineses que fotografam tudo o que mexe. Não sei quantos filmes gastámos. Mas vai ser uma fortuna revelar e imprimir tantas imagens. Do muro nem sombra. Aliás, vimos à venda em tudo o que é loja pedaços de pedra, supostos pedaços de betão do muro de Berlim. Rimo-nos imenso. Como é que é possível, doze anos depois, haver à venda tantos pedaços do muro? Será que daqui a vinte anos ainda haverá pedras para vender? Parece a história da cruz de Cristo. Se se juntassem todos os bocados de madeira espalhados pelo Mundo que alegadamente pertencem à cruz não sei quantos metros de altura dariam. Mas decerto que teríamos uma cruz mais alta do que o World Trade Center. No checkpoint Charlie há ainda uma placa a avisar: “você está a sair do sector americano”. É estranho ler aquilo. Tão estranho como ver os novos edifícios construídos precisamente na linha onde estava o antigo muro. E além das pedras, há também à venda os mais diversos acessórios da Guerra Fria como chapéus de oficiais alemães, julgo que da antiga RDA. Grande Berlim! Ficará para sempre na minha memória como uma bela recordação. Quando regressar a Portugal, tenciono rever com mais atenção as “Asas do Desejo” do Wenders. Agora, quando ouvir falar de Berlim, sei que vou percepcionar as coisas de outra forma. Certamente que me vou envolver. Tenho saudades de casa. Tenho vontade de chorar.» 53 VIII. «Berlim, saída de Ostbahnhof a caminho de Praga, Setembro cinco, nove e quarenta e cinco Querida Ester, Estamos a sair de Berlim. Finalmente um dia bom com sol. Os três dias em Berlim foram cinzentos, chuvosos, péssimos para fotografar. Adorei Berlim. Há ainda uma diferença abismal entre as duas partes da cidade. É claro que, após doze anos de reunificação, a zona leste está aparentemente integrada. O parque automóvel é ocidental, a vida comercial é a mesma. A diferença passa pelo movimento de pessoas. Na zona oeste, em Zoo por exemplo, a vida é bem mais agitada e ocidentalizada, como seria de esperar. Do ponto de vista arquitectónico, também se notam diferenças. A parte leste tem um ar moscovita, apesar das enormes construções de tipo pós-moderno que existem a norte. Em síntese, é uma bolsa sitiada de betão e metal a par de todo o cinzentismo que a caracteriza. O curioso são as pessoas. De um modo geral, são simpáticas e não soturnas, como imaginava. E é claro que mal nos percebem. Ontem à noite, num restaurante na Alexanderplatz, pedimos umas salsichas alemãs e apareceramnos bifes panados. Valeu o vinho do Chile. Fabuloso. Uma nota: servem uísque rigorosamente com doses de dois centilitros. Nem uma gota a mais. Fizemos uma viagem de barco fantástica. Durante duas horas atravessámos o Spree, que permite ter uma noção da dimensão da cidade, quer dizer, da parte norte e centro. Não fomos ao sul. É gigantesca esta cidade. Ontem à noite discuti com a tua mãe. É estranho. A quase quatro mil quilómetros de casa, o quotidiano, no que de mais negativo tem, assome com uma indiferença desconcertante. Estamos a caminho de Praga. Não temos qualquer referência da cidade. O comboio é rasca e está cheio de alemães. Começo a ficar farto de andar de comboio. E de ver alemães.» Foi este o sentimento que Tiago Penha levou para Staroměstské náměstí, por onde vaguearam Kafka e o seu companheiro de longa data Josef K, em Praga, já lá vão quase duas décadas (Tiago e não Kafka, como é bom de ver), encerrando de vez os comentários sobre Berlim, Wim Wenders e os bifes panados no seu diário azul, a cor da sabedoria e da lealdade, a cor da fé e da noite, que conservou durante muitos anos perto de si (o diário, entenda-se) numa gaveta da secretária onde trabalhava na República, em Lisboa, das raras vezes que lhe sucedia lá estar. De resto, chegou a reler algumas vezes, ao calhas, de quando em quando, vários excertos deste relato desembuchado à pressa com função multiusos, tanto pela opção do registo em forma de diário, para a devida inscrição de todas as particularidades (consideradas mais significativas) daquela singradura por terras da Europa central, como pelo uso dado ao mesmo; um conjunto de folhas presas por argolas com espaço suficiente, considerando a extensão temporal do périplo, para uma prosa epistolar comprometida com duas variações do jornalismo literário: a biografia e a narrativa de viagens. 54 Na prática, memórias e comunicação. Problemáticas pelas quais Tiago viria a interessarse mais tarde quando sentiu necessidade, por razões que serão apresentadas a seu tempo, de se meter pelos caminhos sinuosos do webtracking e media metrics, verdadeiros desafios, aliás, para um trovador de linhas de código, mais computacionais do que propriamente líricas – é bom que se distinga, ou não fosse Penha programador, que volte a constar na acta dos acontecimentos – quando trilhados, os caminhos, em contexto de social media. E trilhados é a expressão certa, não por que possa sugerir a debulha, mas tão simplesmente a bulha, o rebuliço das pegadas, rastos e vestígios, que todo o contacto deixa uma marca, sempre pouco recomendáveis para todos aqueles que se dedicam às artes do tracking e do hacking em domínios de bytes ligados em rede. Roberto Cavalcanti, ou RC, como era conhecido, o amigo de Penha que brincava com letras, em rigor pleonástico, um director editorial de uma editora, que aqui já se referiu e nada tem a ver com Simão Saraiva (mas com as figuras de estilo que poderão ser, afinal, as silhuetas dos corpos humanos que tão ardentemente se deseja ou abomina, como lhe havia dito Tiago por graça), comentou numa outra ocasião, em jeito de réplica, que a coisa escrita, uma vez lida, acende a inspiração de quem a lê, que é o mesmo que afirmar que a coisa escrita, uma vez lida, instiga a possibilidade da apropriação para fins diversos da mensagem veiculada. E acesa a inspiração, é difícil voltar atrás. Tal como sucede com a ignorância, uma virtude que, para quem a abandona, não é possível recuperar. Eis o drama da escrita, do que se comunica por palavras; tanto pode ser objecto de inspiração como convite à usurpação, à fraude do gozo de uma coisa de outrem. Ou convite ao gozo da fraude por que essa é a própria natureza incondicional da escrita. Quando lida. Tanto mais que toda a escrita é uma forma de comunicação. Como sublinha Peter Sloterdijk – e lá voltam os alemães, sempre estes bastards deutsch na vanguarda do saber – a escrita que ambiciona ser lida é como o envio de cartas a literatos desconhecidos. Na verdade, como chegou a explicar RC, se os gregos não tivessem mandado tantas cartas para o futuro, os romanos nunca teriam existido. Quem escreve, partilha sempre o que vê e aquilo com que se cruza. É certo que pode descrevêlo de formas diversas mas fá-lo tendencialmente reinventando a realidade. O que não quer dizer que a nova realidade descrita seja menos real do que aquela que se quis reproduzir ficticiamente. Com efeito, na maioria dos casos, a ficção é apenas uma nova forma de construir a realidade, uma realidade moderna, porquanto é uma reconstrução do futuro pelo simples efeito de ter sofrido a intervenção de um interlocutor a jusante. (Web Forum: Toda a escrita ambiciona ser lida, como toda a palavra ambiciona ser ouvida, como todo o olhar ambiciona ser correspondido. Saber-se sabido, conhecido, está para a Humanidade como a Terra está para o sol, dependente. Alguém pergunta: Bem dito. E quanto a ser moderno ou pós-moderno? Resposta: Essa é uma questão de recepção, da recepção do lido. Aqui enveredamos pelos caminhos tortuosos da subjectividade nascida da objectividade diária que acoberta, desvela, revela o que a ela interessa. Comentário jocoso: Para mim, o que interessa é que escrevi um livro que reconheço ser mau, mas se puser no cinema com o Al Pacino no papel principal ganha um óscar de certeza. E uma observação lapidar para o remate final: Com isto tudo, o que eu acho é que são cada vez mais os idiotas que querem escrever sem saber ler) A frase ficou a ecoar-lhe no alçapão da mente: se os gregos não tivessem mandado cartas para o futuro, os romanos nunca teriam existido. Não é que fosse muito importante, quer dizer, desde que situada na justa proporção do fascínio que Penha reservava ao tema, tanto mais que, nesta fase, era a ideia de velhice que tendia a ocupar mais os seus pensamentos, e preocupações, o prazo da sua validade como ser humano, cada vez mais reduzido, em contagem acelerada, a culpa é da reprodução sistemática dos mesmos passos, cuja razão nunca percebemos, mas insistimos em fazê-lo, falsas 55 aparências, porque em tudo há lentidão, tanto antes como depois do zénite dos quarenta, ao contrário do que se diz, são ilusões, quimeras, sentidos enganados, porque em boa verdade a verdade é só uma: a morte rasteja em silêncio. A diferença reside na valoração que se lhe dá. À morte e à marcha lenta. É que é sempre mesmo o compasso, o compasso certo do seu desígnio, uma sinfonia de cadência regular que, afinal, apenas se presta a dissonâncias pela forma desditosa com que a queremos ouvir. Porque sabemos que é incontornável e logo se torna temível. Tão temível quanto o esvaziamento do vigor no acto sexual que Tiago começou a sentir à medida que foi envelhecendo. E esse era um mau presságio, já que validava precisamente a convicção de que a morte rasteja em silêncio. É certo que Penha mantinha o desejo, a vontade, mas a erecção deixara de perdurar o tempo que desejava. E, às vezes, bastava qualquer contrariedade, por mínima que fosse, para brochar de imediato. A actividade sexual começou a conhecer períodos de interrupção cada vez maiores. É claro que a isto também não era alheia a recorrente recusa da mulher que sempre se esquivou (quando privava com ela, o que era raro, extremamente raro, perante tantas e prolongadas ausências no estrangeiro, onde aliás consumia as cada vez menores chamas luxuriantes da libidinagem). O que lhe parecia estranho é que, decorridos vários dias, com o desejo a aumentar, aumentava igualmente aquilo que ele julgava ser o amor. Ficava com mais vontade em mostrar-se carinhoso, em procurar o toque de Maria Clara, em tentar beijá-la, em fazer afinal tudo aquilo que concorre para a dança de uma relação saudável a dois (que nunca existiu e sempre foi recusada – um outro mau presságio: o crescendo de desespero e angústia). Contudo, esgotada a cópula e chegada a ejaculação, quando finalmente acontecia, com outras mulheres, desaparecia de imediato o hálito do amor. Tiago Penha ficou intrigado. Se o sexo depende do amor, neste caso era o amor que dependia do sexo, o que deitava por terra todos os lugares-comuns que foi ouvindo ao longo da vida. Para uma puta, a questão deveria ser ainda mais complexa. Porque decerto que não estaria espoliada da capacidade de amar, apesar de tanto sexo vendido, de tanto abandono do corpo a troco de uns trocos para tão generosa oferta. Onde estaria a mente? E que relação se estabeleceria entre esta e o corpo? As putas também amam? (Web Forum: Por que razão uma prostituta não seria capaz de amar? Segue-se um comentário na mesma linha: Claro que amam. Ser prostituta não é algo que se deseje ser. Ninguém acorda a querer mudar para essa profissão. E a primeira opinião discordante: Depende de cada caso. Conheci uma moça que era prostituta por opção. Ainda que fosse muito bem empregada – era secretária executiva de um cargo de segundo escalão no Estado – e tivesse um belo salário, era prostituta por gostar de ser paga para fazer sexo. Quanto ao espaço para o amor, não é uma questão de se existe isso num sector profissional específico. Conheço mulheres e homens que fazem a apologia da relação casual, do sexo sem envolvimento emocional, da não-relação. O amor interpessoal parece ter uma importância cada vez menor, quanto mais o discurso migra para a necessidade do amor-próprio, do amar-se a si mesmo. Parece-me que existe uma tendência para a construção de uma sociedade de auto-amantes, ou seja de masturbadores. Após algum silêncio, alguém arrisca: Creio que se pode separar amor e sexo e que uma prostituta domina essa arte, a de separá-los. Isso não quer dizer que não almeje uni-los. O problema é que a maioria não sabe fazê-lo e não compreende que, para isso, não é necessário ser prostituta. Réplica imediata: Todos nós nos prostituímos quando não fazemos o que a nossa alma almeja mas apenas tentamos sobreviver) E o que dizer da paixão que sempre parecera ser, para Tiago, um outro patamar intermédio das regras da atracção? Não tinha respostas; e o pior é que a sede sexual era 56 cada vez maior. Ou menor. Nisto andava confuso. Mentalmente. Porque na cama começava a ser exasperante perante a capacidade (ou incapacidade) para se vir, fosse com quem fosse, por mais engenhosos expedientes que lhe apresentavam para manter o pénis erecto. Decorria daqui uma outra questão: a da punheta. Não a do bacalhau cru, desfiado e temperado com cebola, azeite e vinagre, mas a da estimulação do falo, com a mão ou outra coisa qualquer, que naquele momento tudo era válido, para a tão desejada conquista do ponto G, ou ponto de Gräfenberg (cunhado em homenagem ao ginecologista Ernst Gräfenberg – porra, outro fucking German!), o auge do prazer sexual, um belo e portentoso jacto de líquido seminal, cor de leite, esbranquiçado e fecundante (para os que fecundam), pólen da vida, o milagre da germinação. É que remetido para a lascívia mental, Penha percebeu que mais facilmente se vinha a masturbar-se com os olhos postos num qualquer vídeo porno na web do que durante um broche ou fosse lá o que fosse. De resto, preferia até que lhe batessem uma punheta. E talvez até fizesse algum sentido. O cabrão de um outro médico germânico afirmava que masturbar-se ou fazer sexo (não é clara aqui a distinção) pelo menos uma vez por semana ajuda no desenvolvimento do ponto G e evita doenças de pele, além de promover o combate contra os diabetes e certos males que atacam o coração. (Web Forum: Depois de ler por aí que o ponto G da mulher está no ouvido, não duvido de mais nada) Tiago lembrava-se de um episódio recente em que, perante tanta dificuldade em vir-se, a punheta que alguém se sentiu na obrigação de lhe bater foi tão prolongada e violenta que acordou no dia seguinte aterrorizado a olhar para a estranha batata intumescente que ocupava o lugar do pénis. Chegou mesmo a considerar a hipótese de procurar um médico de tão feia que estava a coisa. Felizmente que o pinto lá acabou por voltar à volumetria normal dois ou três dias depois. Dois ou três longos dias de observações permanentes e atentas àquele tubérculo intrusivo que não parecia querer desaparecer. Definitivamente o processo estava a ficar demasiado intricado na cabeça, a que pensa. Numa palavra, acabou por render-se à evidência de que já preferia bater punhetas a foder. Aliás, tinha mesmo que controlar-se para evitar a ejaculação precoce, o que evidentemente lhe parecia um paradoxo abjecto. Caso contrário, vinha-se em poucos minutos. Bastava uma olhadela para uma foda à cão, um cu de mulher, não daqueles rabos escanzelados, sem curvas. Uma bela foda a pegar de quatro com uma bunda cheia, arredondada, daquelas que se conseguem agarrar com a mão sem sentir os ossos das ancas, mas sim carne, carne de mulher. Esta tornou-se, de resto, a sua posição preferida. Tanto na net, quando batia punhetas – algo que misteriosamente até conseguia fazer duas ou três vezes por dia, sempre a vir-se em minutos, se bem que à terceira já só lhe saísse uma pequena aguadilha – ou na cama como uma mulher, não uma qualquer – havia começado a ser mais selectivo, na verdade mais cuidadoso para evitar estar com quem pudesse brochar para não passar por embaraços desnecessários, embora alegasse que apenas queria mulheres que reunissem os requisitos básicos, ou seja, um belo cu cheio de carne. Ainda assim, exigia-se certas cautelas, ou não lhe fosse suceder o mesmo que a um adolescente de dezasseis anos, do interior do estado de Goiás, antiga morada da comunidade indígena guaiá, no centro sul do Brasil, que morreu após ter batido quarenta e duas punhetas sem parar num espaço de vinte e quatro horas. Está tudo documentado num jornal local: «O adolescente virou a noite toda fazendo sequências de masturbação sem dar intervalo. Terminava uma e começa outra. No seu computador foi encontrado cerca de dezassete milhões de vídeo eróticos e seiscentos milhões de fotos de mulheres nuas ou fazendo sexo.» 57 (Web Forum: Ay Dios mio, que cosa mas extraña? Comentário no masculino: Que saudades de quando era criança! Tanta proibição, que certos actos se tornavam maravilhosos. A que se segue uma outra observação: Mas é óbvio. Todos começaram assim, e os homens principalmente. Não há que ter vergonha de dizer que um dia tivemos as nossas descobertas. É biológico) Senti-las molhadas também ajudava. Desde que não exalassem odores desagradáveis. Nada melhor do que uma pachacha bem oleada. Das muitas mulheres de passagem com que Tiago Penha fez sexo, houve uma que o surpreendeu particularmente nessa matéria. Nunca tinha estado com alguém que lubrificasse a vagina daquela forma. A princípio excitou-o profundamente, mas depois a coisa complicou-se. O cheiro era demasiado intenso e a sensação de que por ali escorregava tudo, não importava o tamanho, fê-lo brochar. Ela bem se esforçou com a sua longa chupadela. Abocanhava-o diligentemente, apertando bem o pénis entre os lábios que faziam subir e descer o prepúcio. Se lhe tocasse na vulva, a boca tornava-se ainda mais competente. Tinha o pénis cheio de saliva, de cuspo. Mesmo com os gemidos dela, cuja intensidade aumentava à medida que lhe enfiava os dedos e, por fim, até o punho pela vagina adentro. Foi demais para ele. Foi gozação mesmo... Muita gozação! Em excesso, mata! Mais valia bater uma punheta; ele próprio bater uma punheta. A mulher ainda se pôs de gatas, esfregou-se toda nele, com uma saraivada de ais e come-me, fode-me, quero chupar-te o pinto e beber toda essa porra que está para sair, ou esporra, porque porra tanto pode ser esperma como irritação, sémen como desagrado, mas Penha acabou por confrontar-se, humilhado, com a porra do pénis a murchar, o que quer dizer com a esporra a mirrar de tanta cólera e acerbo que a rondava. Uma gaja esbraseada a seu lado e ele só pensava em bater uma punheta para se vir e acabar de vez com aquela merda. Dizem que, para que a vida sexual entre um casal funcione, a mulher deve ser uma puta na cama; mas o certo é que com uma puta daquelas, pois na verdade ela estava a comportar-se como tal sem o ser contudo, a porra do sexo não estava a funcionar. Bem pelo contrário; a um dado momento, até se sentiu enojado. Mais: a puta ali era ele próprio, a fazer o frete do exibicionismo machista da virilidade, quando o que desejava era pôr-se a milhas dali. Voltou a questionar-se: as putas também amam? Se assim é, a única puta que anda aqui sou eu próprio que pago para oferecer o meu corpo. Mas pra quê? Se tudo é fingido, se a função é fazer vir o cliente, por que razão o cliente insiste em querer fazer com que a puta se venha, quando sabe que é tudo uma encenação, quando sabe que é ele próprio quem não é capaz de se vir? Foi assim que Tiago Penha se apercebeu, com uma enorme sensação de frustração, de que tinha atingido uma idade em que a mais velha profissão do mundo já não lhe bastava. (Web Forum: Que emoção ler este fragmento… A vida e as suas transformações) Um desconchavo, pela simples razão de que não valia a pena evocar o amor, ele que só conseguia amar quando ambicionava concretizar o desejo de sexo. A vontade de se vir. Era, aliás, mais do que uma vontade; era uma necessidade. Se não ejaculasse todos os dias, fosse de que forma fosse, era acometido por ataques de perversão. Via sexo em tudo, até nas menores, dessas quase a atingir a emancipação, ou talvez não, que hoje já não se percebe a idade de tão cedo que elas se produzem e reproduzem, algo que, ainda assim, Tiago sempre havia repudiado. Sexo sim, mas com mulheres crescidas e devidamente vacinadas. O problema é que sentia a verga a agitar-se dentro das calças mal via uma fêmea. Desde que fosse da classe dos mamíferos e humana, bem entendido. O par de mamas que adivinhava por baixo de uma camisola, um fio dental a comer as 58 nádegas de um rabo mais visível por força de uma qualquer vestimenta transparente, o cheiro do corpo de mulher, um sorriso, a pele, um olhar mais atrevido ou intenso, com poder de sugestão, mesmo que não passasse de uma mera invenção dele. Estaria a resvalar para um qualquer problema de natureza mental? Desvios sexuais como manifestação de distúrbios psiquiátricos? Afinal, que raio de loucura poderia ter ele, um homem com um largo e forte sentido de pragmatismo, que sempre se sentira são, às vezes até demais, para quem não havia dúvidas de que tudo se reduzia à ideia de preto no branco? Ou seria branco no preto? Um quadrado preto no chão coberto por um tapete de mármore axadrezado com uma mancha escura e viscosa a deslizar vagarosamente? E o corpo de Penha caído por terra? Após ter sentido uma dor profunda e lancinante no maxilar inferior e uma pancada violenta no estômago, ao som do toque de tambores, um frenesim melódico do tipo tribal, e gargalhadas dementes, tudo sob a presença de uma essência odorífera genital complexa e intensa resultante de um cocktail de esperma e líquidos vaginais? Com dezenas de homens e mulheres, amontoados desordenadamente, a copular de modo desenfreado, uns em cima dos outros, selvagens, uma orgia alucinante e infernal? Curioso: tudo isto por causa de Berlim? Diz-nos a História que, tal como o colono branco receava o negro, tentando pôr cobro ao seu terror de insurreição com a imposição da humilhação – a escravatura – e a diabolização da mesma, Maquiavel bem mostrou o caminho (com o beneplácito de Napoleão, mais tarde), também Hitler adoptou uma estratégia semelhante, de que pode ser exemplo uma afirmação doutrinária extraída do seu maldito «Mein Kampf»: «De um corpo gangrenado, mesmo servido por um brilhante espírito, nada de grande é lícito esperar». Ao olhar para os israelitas quando assinalam o seu Holocaust Remembrance Day, em memória dos seis milhões de judeus assassinados pelos nazis durante a Segunda Grande Guerra, parecem ser mais que aceitáveis os equívocos que afirmações destas podem gerar. Contudo, fica a dúvida: não será censurável a “censura” sobre um objecto ideológico que conduzia, entre muitas outras coisas censuráveis, justamente à censura? Expurgando a dimensão diabólica do nacional-socialismo alemão, o nazismo, não terá sido Hitler bastante certeiro aqui? Na literatura, «Lolita», de Vladimir Nabokov, tanto foi considerado como um dos melhores romances do século vinte como um devaneio literário de um “pedófilo”. Com «Partículas Elementares», Michel Houellebecq tanto foi acusado de defender a integração dos muçulmanos “assimilados” na sociedade francesa, escreveram alguns críticos mais moderados (provocando reacções violentas entre os sectores conservadores), como por preconizar uma total desagregação da sociedade humana pela via de uma segregação radical de natureza darwinista. Mas Houellebecq não ficou por aqui. Com «Plataforma», choveram novas críticas por supostamente o autor francês promover e exaltar o turismo sexual em países asiáticos como a Tailândia. Em ambos os casos, apenas para citar dois, ninguém saiu a público para agitar a bandeira de persona non grata, não obstante problemáticas como a pedofilia ou a segregação racial serem profundamente sensíveis e susceptíveis de grandes ódios. Para aqueles que se sentiram visados ou não, para aqueles que se sentiram ofendidos ou não, a tolerância perante vozes dissonantes foi mais forte. Até porque Nabokov e Houellebecq pagaram, ou pagam, o posicionamento do que quiseram afirmar. O mesmo já não se pode dizer de Salman Rushdie. Khomeini decidiu “condená-lo” à morte porque não gostou do que leu nos «Versículos Satânicos». A história é célebre e não vale a pena repeti-la. O mundo islâmico foi convidado à intolerância. 59 No cinema, Stanley Kubrick foi criticado por promover a violência e traçar um quadro pessimista sobre a dimensão animalesca dos seres humanos, enquanto uma condenação e uma componente “incurável” da condição humana em «Laranja Mecânica». Já Sylvester Stallone, com a saga «Rambo», optou por mostrar mercenários sanguinários que lutam heróica e estoicamente para salvar cristãos às mãos dos infiéis (que por aí andam nestes países subdesenvolvidos e “fanáticos”, fora do Mundo Ocidental, claro está). Muitos mais poderiam ser os exemplos, mas que se cite apenas estes dois. Em ambos os casos, ninguém saiu a público para agitar a bandeira de persona non grata, não obstante problemáticas como a violência gratuita e a selvajaria contra seres humanos, em nome de valores nem por todos partilhados, serem profundamente sensíveis e susceptíveis de grandes ódios. Há quem goste, há quem não goste. Kubrick e Stallone pagaram e pagam a factura. O mesmo já não se pode dizer de «O Código Da Vinci», de Ron Howard, que antes de chegar a Cannes provocou tumultos e boicotes em vários locais onde foi exibido, tal como havia sucedido dois anos antes, em dois mil e quatro, com «A Paixão de Cristo», de Mel Gibson. O que provocou tanta polémica? Os ataques ao cristianismo? Ou a intolerância a falar mais alto perante alguém que ousa em desafinar? O cineasta soviético Andrey Tarkovsky terá sentido o mesmo ao ser cilindrado pela crítica em mil novecentos e sessenta e dois no Festival de Cinema de Veneza após a projecção de «A Infância de Ivan». De que tratava o filme? Dos traumas nas crianças causados pela Segunda Grande Guerra. O problema é que o enredo centrase numa família soviética… Sartre teve de sair a terreiro para defender Tarkovsky. O que também não foi uma grande ajuda, porque o célebre filósofo francês era um homem de esquerda. E uma boa parte dos italianos, decerto verdadeiros e convictos filhos de Mussolini, não perdoou. Mostrando o quão intolerante poderá ser a paixão por causas. Perante tudo isto, por que razão, afinal, Lars von Trier foi considerado uma persona non grata na edição de dois mil e onze do Festival de Cinema de Cannes? Falou-se em boicotes, censura, proibição da exibição do seu novo filme, «Melancholia». Por quê? Porque o realizador confessou que até compreende o ponto de vista dos alemães que viveram a exaltação da grande Nação impulsionada por Hitler, após a humilhação imposta pela Primeira Grande Guerra. E deixou escapar uma certa admiração pelo nazismo. As afirmações são condenáveis pelo que do nacional-socialismo resultou. Inaceitáveis para quem tem, como artista, responsabilidades acrescidas em razão da maior capacidade em influenciar a opinião pública. Mas há uma lógica no argumento de Lars von Trier, não obstante tratar-se de uma problemática profundamente sensível. Contudo, a intolerância voltou a falar mais alto perante alguém que ousa em desafinar. Não deveria Lars von Trier pagar a factura tal como Nabokov, Houellebecq, Kubrick ou Stallone? Negar a liberdade de expressão é negar um dos valores fundamentais da sociedade livre que o Mundo Ocidental acredita defender. Se age com as contradições do fundamentalismo que tanto condena, quando o tema é tabu, em que difere daqueles que tanto critica? (Web Forum: Só existirá uma sociedade verdadeiramente livre quando cada ser humano adquirir uma consciência planetária. Réplica: Ou um Governo planetário, o que não passa de uma utopia. Aliás, mesmo que fosse possível, já se viu no resulta. Os soviéticos bem tentaram… E um novo comentário: O problema está em validar e aplicar para todos o que parece ser bom para alguns. Com mais uma réplica, desta vez em castelhano: Hay dos entidades que, a estos efectos, se contraponen: el interes social y la dignidad humana. El progreso del interes social, muchas veces y solo en teoria, exige el sacrificio de los intereses individuales. Sobre este tema, Bertrand Russell escribio un libro en el cual planteaba la posibilidad de una sociedad cientifica, un Estado mundial tecnocrata, y justamente Russell invita a pensar en la injusticia que 60 seria asesinar a las personas debiles o enfermas por el mero hecho de serlo y con la excusa del bien comum. Abre-se uma nova frente no debate: Platão e Aristóteles admitiam que matar pessoas com deficiência e enfermas seria coerente com a visão de equilíbrio demográfico, aristocrático e elitista, principalmente quando a pessoa com deficiência fosse dependente economicamente. A que se segue uma citação do filósofo grego: “Quanto aos corpos de constituição doentia, não lhes prolongava a vida e os sofrimentos com tratamentos e purgações regradas, que poriam em condições de se reproduzirem em outros seres fadados, certamente, a serem iguais aos seus progenitores (...) Também que não deveria curar os que por frágeis de compleição, não podem chegar ao limite natural da vida, porque isso nem é vantajoso a eles nem ao Estado”, Platão, 429-347 a.C. Observações finais: Se mapearem a história com a visão matemática perceberão que absolutamente nada mudou, ainda que a tecnologia seja um estandarte contemporâneo. E a segunda: A exclusão também pode ser uma solução... Tudo o que é diferente ou que receamos tem um destino: o dever de morrer) Uma discussão controversa, só falta pôr Rochefoucauld a falar através de aforismos como “nous avons tous assez de force pour supporter les maux d'autrui” ou “everything is reducible to the motive of self-interest”, mas impõe-se trazer de volta o dilema da censura. E Lars von Trier, o móbil de tanta discórdia. Afinal, anti-semita ou vítima das contradições do mesmo fundamentalismo que o condena? É que, bem vistas coisas, o cineasta dinamarquês não trouxe nada de novo. O mesmo Lars von Trier já havia causado controvérsia em Cannes, dois anos antes, ao apresentar «Anticristo», filme que acabaria por valer a Charlotte Gainsbourg a distinção como Melhor Actriz, apesar da crítica contra a película ter sido violenta. Ainda assim, Cannes sempre mostrou ter uma profunda admiração por este cineasta. Em mil novecentos e oitenta e quatro, Lars von Trier ganhou o seu primeiro prémio no festival com «Forbrydelsens Element». O mesmo aconteceu em mil novecentos e noventa um com «Europa»; em mil novecentos e noventa e seis com «Ondas de Paixão»; em mil novecentos e noventa e oito com «Os Idiotas»; em dois mil com «Dancer in the Dark»; em dois mil e três com «Dogville»; em dois mil e cinco com «Manderlay»; em dois mil e nove com «Anticristo»; e em dois mil e onze com «Melancholia». Todos os filmes, sem excepção, foram candidatos à Palma de Ouro. Uma foi conquistada em dois mil com o musical «Dancer in the Dark». O que mudou desde então? O discurso de Lars von Trier ou o nível de tolerância num mundo assustado por poderes erráticos, que vê ameaças ao dobrar de cada esquina? Não será isto que David Moody quis avisar no seu romance «Ódio»? Que vivemos no dilema do medo, da necessidade de matar antes que nos matem? Apesar da problemática estar a jusante na narrativa, o que quer dizer no futuro, numa etapa temporal mais recente do que aquela em que Tiago Penha se localizava de momento, era algo, porém, em que ele andava já a meditar. Especialmente depois do incidente com a Polícia Militar em São Paulo. O fórum de discussão na web ainda não existia para ele, mas era como se existisse, porquanto todas aquelas palavras bailavam com frequência no seu pensamento. Como estava a acontecer naquele preciso instante. Uma coincidência notável, com Tiago sentado à secretária de frente para o seu laptop. Só nada escreveu porque ainda não havia chegado esse tempo, na narrativa, insiste-se. Mas foi a cogitar sobre o dilema do medo e o ódio que abandonou a secretária para se sentar no sofá, mesmo ao lado. Acendeu um cigarro e pôs-se a olhar pela janela, sem ver, o manto de nuvens negras e encrespadas no céu, mordido por milhares de antenas no topo dos arranha-céus que se acotovelam nos bairros contíguos à avenida Paulista e a azáfama de helicópteros que passam o dia a sobrevoar a cidade. Estava hospedado há já alguns meses naquele pequeno apartamento de duas divisões no último piso do hotel, o décimo nono, em Bela Vista, que deveria ter uma área de trinta a 61 trinta e cinco metros quadrados: um quarto com cama de casal e uma janela a toda a largura do mesmo, de vidros duplos; e uma pequena sala, que se podia tornar independente se estivessem fechadas as portas de correr, equipada com um fogão eléctrico, um forno de microondas, máquina de café de coador (como manda a tradição brasileira) e armários de cozinha, com louças e talheres para duas pessoas, mais acesso à Internet, ar condicionado, televisão por cabo e um segundo sofá individual giratório. Além da secretária e do sofá de dois lugares, onde se encontrava agora afundado, existia uma segunda janela, a tal que lhe fez perder o olhar, que ocupava igualmente toda a largura da sala. O quarto possuía ainda uma outra porta lateral, que dava acesso a um pequeno vestíbulo, com a parede totalmente espelhada, entre a sala e a casa de banho. A decoração era simples, sóbria e moderna, onde predominavam tons beges. Com efeito, todo o flat era muito confortável e tinha um certo ar de luxo, ou não fossem os aposentos parte integrante de um hotel de quatro estrelas. Para Penha, já era quase como a sua casa. De tal modo, que até sentia saudades sempre que se ausentava. Como havia acontecido na semana anterior. Em Buenos Aires. Tiago havia voltado ao Brasil naquela manhã, via Guarulhos. Simão Saraiva permanecia em Ushuaia, La Ciudad del Fin del Mundo. Simão e muito provavelmente o revólver, sempre por perto, bem aconchegado a ele. 62 IX. Foi ela quem ligou. Para o novo telemóvel de Tiago Penha. Agora argentino, que roaming era coisa que de ele fugia a sete pés, embora esteja ainda por demonstrar como pode um homo sapiens correr de tal forma sendo bípede. Ela, a de olhos verdes, a filha da Tierra del Fuego que havia estado em Recife, no Brasil, ainda com essa aventura em terras de Vera Cruz por contar, algumas horas depois, no início da tarde. Esgotado o descanso após o reboliço da madrugada anterior na boate sem nome, casa de putedo situada algures em Buenos Aires, talvez em La Recoleta, os porteños dizem que é o melhor da cidade, morada de chicas, tal como Penha havia pedido ao taxista à saída de um restaurante em Palermo (por sinal bastante solícito, mas apenas quando percebeu que o gringo não era brasileiro, mas português, da terra do fado, do sentimento e do destino, e não da arena de meretrizes tresmalhadas, cabritas, que nem são pretas nem índias, sem aquele savoir-faire, o charme sedutor e diabólico do velho continente), mas não se lembrava, nem queria se lembrar, não umas chicas quaisquer, mas daquelas cabras que chupan el pitos, de preferência putas tristes sem memória, embora possam ser de extremos, putas de primeira muito baratas a cobrar cento e cinquenta pesos e outras muito caras a pedir trezentos dólares, haviam trocado os números de telemóvel, tinha cabelos loiros e parecia-lhe bonita, realmente bonita, sensual, alguém que Tiago podia amar. (Web Forum: Recomendo a Agustina, atende próximo da Galeria Pacífico, na rua 5 de Mayo, quase esquina com a Cordoba, por cinquenta e cinco dólares, bandou bem no oral e beija forte, ainda fez uma massagem nos pés no fim, sem frescura e sem neuras, no Brasil uma puta dessas me cobraria algo em torno de cento e cinquenta a duzentos reais. Segue-se outro depoimento: Tem a Sheila também, mas aí marquei tudo pelo MSN, a foto não corresponde a ela, o que foi uma surpresa agradável, pois é muito mais bonita do que na foto, ela não é tão branca como a modelo da foto, e os seios são siliconados, diz ela que colocou há dois meses, novinhos em folha, é magrinha do tipo mignon, tem uma bunda jeitosa nem grande nem pequena, muito simpática, começou fazendo um senhor boquete, no começo parecia que não ia ser bom, foi devagarinho, devagarinho, até que se mostrou uma boqueteira de primeira, pelo jeito gosta da coisa, começou a gemer, e ficou toda molhadinha, tem uma ótima lubrificação natural, colocou a camisinha e veio por cima, ficou um pouco e ela mesmo sugeriu a mudança de posição, peguei de quatro, geme bastante, finalizei a primeira aí, um pouco de conversa, e me mandou para o banho para o segundo round, mais um pouco daquele boquete maravilhoso, camisinha e fomos para o papai-mamãe, no começo devagarinho, aí peguei ela firme e levantei a bunda dela, começou a rebolar igual uma louca, tudo indica que gozou, vai saber, né? Grande puta é sempre grande puta, profissional, finalizei e relaxei total, ainda ficou mais um tempo jogando conversa fora, apesar de marcarmos uma hora, ela não regula no tempo, pelo preço acho que compensa. E um aviso com muitas palavras em caixa alta: Cuidado, Buenos Aires não é para principiantes, fui lá na semana passada com um amigo, logo após nossa chegada ao 63 hotel saímos para andar e tomar uma cerveja, tinha um privê na mesma rua do hotel, e um cara nos abordou, mostrou um folheto e insistiu para que entrássemos para conhecer o local, dissemos que no momento não e fomos embora, na volta o mesmo cara nos abordou novamente, e começou a insistir para que a gente entrasse para ver, falámos que tínhamos que ir primeiro ao hotel, mas o cara insistiu tanto falando que era sem compromisso, somente mesmo para conhecer que entrámos pela porta e subimos uma escada até o local, chegando lá, já veio duas putas feias e nos puxou para um salinha, nós falamos que não íamos fazer programa, só entrámos para conhecer o local, para não desagradar as chicas, falámos para elas que iríamos ao hotel pegar dinheiro e que voltaríamos, claro que não íamos voltar, naquele momento, chegou bebidas pra nós e para as putas, falámos que não pedimos bebida alguma, e que estávamos de saída, um cara nos abordou e disse que tínhamos que pagar a bebida e a hora das garotas, o valor da bebida, coca-cola, quatrocentos e vinte pesos, equivalente a duzentos e dez reais e mais o tempo da garota, somando seiscentos pesos equivalente a trezentos reais cada um, ou seja seiscentos reais os dois, falámos que não fizemos programa e nem pedimos bebida, mas não deixaram a gente sair se não pagasse o valor, ficámos com medo do que poderia acontecer e decidimos pagar e sair fora, só que não tínhamos tanto pesos, e o cara falou que aceitava real, quando fui fazer as contas, pois o real vale o dobro do peso, ele falou que a cotação deles era um por um, ou seja um peso por um real, daí começámos a discutir, pois ia levar toda grana da nossa carteira, mas por estar num lugar distante, e sem saber o que podia acontecer ali dentro, esvaziámos as carteiras e fomos embora, acredito que não só este privê, mas vários aplicam este tipo de golpe em estrangeiros, então muito cuidado!) — Hola, mi amor. Quieres ir a tomar una copa y hablar? — ouviu Tiago do outro lado da linha, a voz ainda sonolenta mas com um toque de meiguice, a sério ou a fingir, que dólares ou pesos argentinos também compram sonhos e fantasias. — Que bom teres ligado. Tencionava fazê-lo também, mais tarde, quando acordasse. — Estabas durmiendo? Perdóname. Yo no sabía — disse ela, agora com a voz um pouco mais clara. — Não faz mal. Já estava na hora de acordar mesmo. Mas olha, não vais trabalhar? Ou é um encontro para fazer tempo? — Que dices? — Não vais trabalhar hoje? — repetiu Penha. — Hoy no, yo quiero estar contigo. — Como queres fazer? Vens aqui ter ou encontramo-nos nalgum lugar? — Sabes dónde está la Plaza Cortázar? Es muy bonito. Muchos bares y restaurantes. Se encuentra cerca de teu hotel. — Sabes onde fica o meu hotel?! — Sí, has me dijo. En Palermo Soho. No te acuerdas? — Okay — sossegou Tiago, recordando-se dos prazeres do Cabernet Sauvignon e do uísque. — Eu dou com o lugar. A que horas? — Bueno, cuando quieras. — Deixa-me ver que horas são — e esticou-se para a mesa-de-cabeceira para agarrar no relógio de pulso. Passavam já das cinco da tarde. — Às sete? — propôs. — Sí, puede ser. Voy a estar na esplanada de un bar. Se puede ver facilmente. — Combinado. Penha desligou o telefone e voltou a estender-se na cama, pondo-se a observar o quarto, como se fosse a primeira vez. Simples, pequeno, um tanto ao quanto claustrofóbico. Com a porta e uma janela viradas para um terraço, onde se podia fumar, que na Argentina também a lei anti-tabaco estava a fazer as primeiras mossas, apesar do olhar 64 reprovador das recepcionistas (durante o dia eram sempre duas), não havia um único cinzeiro cá fora, naquele rectângulo a espaço aberto, cercado por cubos de quartos, todos iguais, um hotel em forma de soft loft de dois andares, colorido e sofisticado, caro mas pouco acolhedor. Porém, estava bem situado. E bastante policiado. O hotel bem como a malha de ruas dispostas em quadrados lá fora. Estranho. Deveria ter sido ele a telefonar e não ela. Se para aí estivesse virado. Supostamente, na noite anterior, tudo não havia passado da encenação do costume a troco de pesos, reais ou dólares. Ou também ali a condição de gringo pesaria assim tanto nas regras da atracção? Evidentemente que sim. E mais: agora falava apenas em castelhano; o pouco do português do Brasil que metia na conversa de vez em quando havia desaparecido por completo. Estaria ela fora de serviço ou haveria um novo taxímetro à espera dele? Pelo menos assertividade não lhe faltara. Depois de ter olhado para o mapa de Palermo e pedir informações na recepção do hotel, a Plaza Cortázar parecia de facto não estar muito longe. Sempre a direito. Mas quando deu por si, precisou de quase uma hora a pé para lá chegar. Em cada esquina, um polícia ou mais, alguém lhe havia dito que muitas telenovelas argentinas são rodadas naquele bairro, e nas ruas uma tranquilidade absoluta, mas também inquietante, cada vez mais tensa à medida que a noite começava a assomar. A noite e o mundo da noite. Ou a noite do mundo na qual aos poucos, em tempos idos, mergulhava uma carga insana sem rumo de dementes, escorraçados dos muros das cidades, uma nau de leprosos – os incuráveis e loucos do mundo medieval, que seriam substituídos pelas vítimas de doenças venéreas no mundo clássico – à deriva pelo mar, a deambular sem norte. A “Narrenschiff” de Brant ou a “Nau dos Loucos” de Bosch, transformadas agora nas cargas migratórias céleres, com ida e volta, de outros depositários da cegueira, vítimas ou carrascos – já nem vinha ao caso – da célebre política de aquartelamento social a baixo custo para arrumar os desalinhados. Favelas, mosseques, ali chamavam-se villas de emergência ou asentamientos, conglomerados de miséria, de pobreza mas também de avareza, tão mesquinha quanto cega, a cegueira feita de escassos recursos, onde cada um tem de dar um jeito, e que se lixem as ONGs, os direitos humanos e todos os projectos de reabilitação, reinserção ou regeneração, porque o ódio é ancestral e a medida da capacidade de mudança, afinal uma forma de vida para a qual não há fórmulas nem modelos nem tipologias que se apliquem, que sejam eficazes, roubar ou matar pode ser pecado, mas enche o estômago, mesmo que barriga cheia signifique cabeça vazia, tanto mais que crime foi a aliança com Hitler, para acolher na rua Garibaldi, no bairro de San Fernando, Ricardo Klement, nome falso de Adolf Eichmann – descobriu o Mossad – um escândalo, guarida secreta ao burocrata nazi que desenhou a Endlösung der Judenfrage, a solução final para o genocídio dos judeus, já para não falar das sucessivas ditaduras militares e do general José Félix Uriburu, e dos generais Arturo Rawson, Pedro Pablo Ramírez e Edelmiro Farrell, e dos generais Eduardo Lonardi e Pedro Eugenio Aramburu, e de José María Guido, e dos generais Juan Carlos Onganía, Marcelo Levingston e Alejandro Lanusse, e do general Jorge Rafael Videla, e do general Reynaldo Benito Bignone. Não admira que a taxa de criminalidade seja tão elevada e que inclua super-heróis, como os homens-aranha, os célebres assaltantes argentinos que escalam torres de apartamentos para invadir os domicílios de gente pobre, mas não tanto, caso não encontrem um gradeamento na janela de um vigésimo quinto ou trigésimo andar. Desnecessário será dizer que a história é a mesma em cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro. O que difere são as expressões que designam estas actividades, como os tiroteios frequentes na “faixa de Gaza”, em rigor no bairro de Manguinhos, na zona 65 norte da capital carioca, ou os “arrastões” no túnel da Rocinha, na zona sul, a ligação rodoviária mais rápida entre as áreas nobres do Leblon e Ipanema e a Barra da Tijuca. Ao chegar por fim à Plaza Cortázar, Tiago Penha não precisou de muito tempo para descobrir a filha da Tierra del Fuego sentada de perna traçada numa pequena esplanada à porta de um bar, tal como ela havia descrito. Com botas de cabedal (talvez demasiado quentes para aquela época do ano, início do Verão austral), collants, minissaia e um blusão reduzido de pele com o fecho puxado até acima, deixando ver apenas as pontas de uma camisa branca em baixo, que se agitavam suavemente ao sabor da brisa ligeira que corria pela praça. A única cor de contraste naquele conjunto dominado integralmente pelo preto. Uma decisão cromática para opor mistério à inocência, a incerteza do infinito à pureza. É que o preto evoca uma força feminina passiva e enigmática, associada ao constrangimento, à solidão, ao isolamento. Já o branco remete para ideias aprazíveis como a virgindade, no sentido da genuinidade e diafaneidade, e perfeição, apesar de envolver também a solitude, tal como o preto, e a frieza, o que sugere tibieza e, por conseguinte, fraqueza. Que impressão poderia querer ela dar Tiago não sabia, se é que tencionava dizer de facto alguma coisa, com o que escolhera para vestir. De resto, Penha estava mais interessado na linguagem corporal e nas mensagens que talvez conseguisse captar através daqueles olhos verdes brilhantes e intensos, vistos agora, não propriamente à luz do dia, que havia já anoitecido de novo, mas pelo menos afastado do elogio das memórias tristes de um privê de diversão nocturna, reservado a adultos destemidos que coram de vergonha quando se torna público que, para foder, precisam de pagar. É claro que neste devir dos apetites do contacto humano – entre a sedução, a eventual paixão e porventura amor, e a necessidade biológica primária da peleja de corpos contra corpos – há sempre um preço a pagar. Que até pode ser bem mais ostensível e proibitivo se ocorre haver emoções que se prestam a cobranças extra. E nem os argumentos do consentimento ou do arrebatamento lírico servem para iludir o problema. Na verdade, em matéria de suprimento de necessidades biológicas, a diferença é só uma: o papel que os protagonistas decidem assumir; o de animal, puro e verdadeiro, igual a si próprio, ou o do falso animal, que tenta arguir razões que lhe permitam aspirar à proximidade com uma entidade superior, não terrena, e de certo modo etérea. Numa palavra, qual é o preço do galanteio, da fineza, da amabilidade, do obséquio? É tudo uma questão de aritmética: trezentos dólares num privé ou a soma das contas do restaurante, do bar ou discoteca e do quarto de hotel? (Web Forum: A economia dos afectos parece não dar conta de medir essa fome animal, de bichos que devoram a própria natureza, comentário no feminino) — Te gusta? — perguntou ela em jeito de saudação, quando Penha se sentou junto à pequena mesa à porta do bar, redonda, tão acanhada e diminuta que parecia ter sido feita propositadamente para os fulgores dos amantes, os dois quase colados um ao outro, com as pernas a roçarem-se, quer dizer, a esfregarem-se e prestes a encaixarem-se como acto sexual de exemplar harmonia anatómica. Os rostos, esses, estavam a escassos centímetros um do outro; Tiago sentia-lhe o hálito, mergulhava no brilho dos olhos dela e podia beijá-la sem praticamente se mexer na cadeira. — Sim — respondeu ele finalmente, sublinhando a aquiescência com a cabeça. — Muito! — acrescentou, imprimindo na voz um tom que podia ser entendido em vários sentidos. Penha pediu uma cerveja e acendeu um cigarro, tabaco norte-americano, que os locais são intragáveis, imitando-a, se bem que ela tivesse já o copo a meio e três garrafas vazias em cima da mesa, além de um cinzeiro cheio de beatas, o que fazia pressupor que 66 teria chegado há já algum tempo. Pelo menos não eram garrafas de um litro, de Brahma ou Bohemia, que tanto o haviam surpreendido em São Paulo na primeira vez em que saiu para tomar um chope, qual chope qual carapuça, que aquilo era mais uma maratona de fim de tarde com corridas de cinco em cinco minutos para mijar, não é que sentisse o estômago pesado, que o calor convida a ingerir muitos líquidos e aquelas cervejas cumprem bem a função, mas a bexiga tem limites, especialmente a lusitana, até porque em terras de iberos, misturados com celtas, fenícios, gregos e cartagineses, o que conta é a pança, já dizia Cervantes, porque dá nas vistas, e não a formusura das vísceras, que não se vêem. — Es esta plaza el corazón del barrio que hoy se conoce como Palermo Soho, así llamado gracias a la gran cantidad de artesanos y artistas que se concentran en este lugar, especialmente los findes de semana, cuando un número importante de artistas plásticos exponen sus obras — começou a explicar ela, demasiado depressa para a capacidade de Tiago em compreender castelhano. — La placita, como se la conoce en la zona, es además un centro de actividades culturales, de tiendas comerciales y de diseñadores argentinos que marcan las pautas de las nuevas tendências — prosseguiu a mulher, aparentemente sem se dar conta do problema da língua. Penha olhou em redor e foi meneando com a cabeça em sinal de concordância, embora lhe estivesse a escapar a maior parte do discurso. — Es un buen lugar para los turistas. — Não sou turista. — Aquí es y tienes que actuar como un, tonto. Además tienes una atractiva mezcla de bohemia y modernidad, se puede comprar, pasear, recalar en las atractivas propuestas de bares y restaurantes. Ela falava com paixão, vivacidade – e também como uma guia turístico – à medida que estreitava ainda mais o contacto físico com Tiago. Era realmente bonita, sensual, alguém que ele podia amar, não se cansava Penha de repetir nos seus pensamentos. O que a teria levado a trabalhar na noite? E por que razão não se calava com a porra da praça? — Fue durante muchos años La plaza Serrano. Popularmente aún así se la llama, aunque a partir de mil novecientos noventa y cuatro, adoptó el nombre de Plaza Cortázar, al cumplirse diez años del fallecimiento del escritor argentino. Referia-se a Julio Cortázar, mas Tiago nunca havia lido nada dele. Nem estava para aí virado. — Porque quiseste sair comigo? — atalhou Penha, para acabar com a aula de turismo, e ir directo ao assunto. — Como he dicho: tomar una copa y hablar. No podemos ser amigos? También podemos hacer sexo, si quieres. Tiago percebeu um relâmpago de aço a passar pelo olhar dela. Arrependeu-se imediatamente de a ter interrompido. Porém, o gelo acabou por ser apenas um vislumbre fugaz. — Me quieres? — Se te desejo? — Sí — respondeu ela, com um sorriso. Penha sorriu também enquanto fez um breve compasso de espera para tentar decifrar as condições atmosféricas do olhar daquela mulher, que exalava, toda ela, um enlevo inquietante. Sensação misteriosa para Tiago, pois a filha de Ushuaia não passava de uma rameira. As putas também amam? O que faria Simão Saraiva? — Muito — acabou Penha por dizer, novamente, pela segunda vez. 67 Se o amigo sentisse estar a ser vigiado por um chulo decerto que não hesitaria. Mesmo que fosse muçulmano. Na verdade, havia atirado a matar, a sangue-frio, numa praia virada para o Mar Arábico. Foram mil rupias para o galheiro. Como sempre, Saraiva tinha recorrido aos seus engenhosos expedientes para obter o que desejava. Uma arma havia já conseguido, mas daquela vez deu-lhe também para os prazeres exóticos da diferença. É que ir para a cama com uma muçulmana ou uma hindu no subcontinente indiano não é coisa que se faça todos os dias. Quer dizer, para um ocidental, que sexo não faltará entre aquele fervilhar de saris, burkas e kurta pajamas, pelo menos garantem os demógrafos, apesar de, em rigor, a sexologia não ser a sua especialidade. A verdade é que Simão Saraiva estava determinado. E excluídas as servas goesas do Vaticano, que essas conhecia bem, não as goesas mas as servas, calhou-lhe uma fiel islâmica, ou quase, como se verá, o que até não foi mau de todo, em tempos de violência religiosa em nome da supremacia hindu, que a pacificidade do sincretismo indiano não passa de uma mentira turística, basta lembrar cinco atentados à bomba contra igrejas no espaço de pouco meses, crimes contra o Estado (e a memória lusitana – vá-se lá saber se, ao invés da inspiração anticolonialista ou da libertação nacionalista, não foi mais uma manobra de diversão para mostrar à China quem manda, a exemplo do que sucedeu em mil novecentos e sessenta e um com a queda das Terras do Fim do Mundo), dois padres assassinados e um missionário católico australiano queimado vivo com os filhos, de oito e dez anos, dentro do carro. O negócio foi tratado no Galgibaga Beach, o tal hotel de cinco estrelas de uma cadeia britânica, com acesso a uma praia privativa e saída de piroga para atravessar o estuário do rio Talpona, quase no extremo sul daquele Estado. Na cidade de Panjim, em Nova Goa, seria tudo mais fácil, excluindo o bairro das Fontainhas, que aí ainda se fala português, de tão ocidentalizados que estão os costumes, os bons e os maus, embora os homens continuem a não falar directamente para as mulheres estrangeiras, não se sabe se por hábito, sob o peso da tradição esclavagista e talvez da lógica das castas, ou se por crença secular de que a condição feminina situa-se ao nível da dos animais, já dizia Deus Nosso Senhor, o que é estranho, porque são terras de tantos credos, as mulheres indianas nisso são diferentes, pelo menos as servas do Vaticano, as outras ainda se tapam com burkas ou saris, sempre cabisbaixas, impossível de lhes sacar um sorriso ou um simples contacto de olhares, como será na hora da procriar?, talvez a coisa só se aplique mesmo aos peregrinos estrangeiros e aos outros, que antes da República da Índia, em Goa, primeiro são todos goeses, e depois talvez indianos, e a culpa é desses oportunistas que de toda a União migram para ali à caça de libras e dólares. É claro que afirmar que seria mais fácil em Panjim é querer aligeirar as coisas. Pode ser a mais velha profissão do mundo, o que quer dizer que, além de velha, pratica-se à escala planetária, por mais sagrados e imaculados que sejam alguns recantos da imensidão do globo terrestre, mas Nova Goa não é propriamente Bollywood, lá para os lados de Bombaim, mais a norte, ou Nova Deli. Ainda assim, o Bangladesh parece ser um bom emissor de menores para actividades promíscuas na capital, a que se junta a vaga migratória de prostitutas de toda a República bem como outras gentes de má rês, os goondhas, vindos principalmente de Maharastra e Kerala, em busca das promessas das economias informais, que droga não falta, e a procura é muita, já lá vão décadas de ocupação hippie, desde os anos de mil novecentos e setenta, com as comunidades perdidas da hippie trail, instaladas originalmente nas praias de Anjuna, Vagator ou Calancute, em ambiente tropical e paradisíaco, que acabaram por atrair os acidfreaks europeus e as subculturas do psy trance em nome de uma espécie de Ibiza asiática, numa palavra, a Goa trance ao som do trance psicadélico. 68 (Web Forum: É uma vergonha. A beleza fulgurante de outrora, do tempo dos portugueses, desapareceu das ruas dando lugar aos “garddos” onde até vendem abertamente “guttka”, drogas proibidas por Lei. Os condutores nas ruas atropelam, matam e fogem. Se forem apanhados são postos em liberdade aguardando um julgamento que nunca chega a ter lugar. Segue-se outro comentário de indignação: Goa foi invadida por todo o tipo de doenças. Infestam as ruas de Panjim, Mapuça e Margão. Há pedintes por todo o lado a dormir nos passeios. E quando chega a época dos turistas, o que brilha é o rio Mandovi com os seus barcos de cruzeiro engalanados com luzes de néon onde não faltam cantares e danças aldrabadas de Portugal ao sabor de música ruidosa e desafinada. Enquanto as famílias de goeses ficam sem água e luz) Tiago Penha nunca soube bem como chegaram a vias de facto. Quer dizer, no negócio para a prestação de serviços a horas tardias, que calhava bem para arrancar uns sorrisos trocistas dos vigilantes e seguranças do Galgibaga Beach. Tinham acabado de vir do hotel Mandovi, em Panjim, de uma reunião com executivos de uma empresa de informática do Estado vizinho de Karnataka, num tuk-tuk vermelho, como eram conhecidos os riquexós motorizados, um verdadeiro exército, com táxis à mistura, a circular pela capital de Nova Goa, depois do preço devidamente regateado, se querem cem oferece-se dez e a coisa fecha-se pelas quinze rupias, conduzido por um hindu barbudo de tez escura, torrada, como grãos de café, decerto de uma casta inferior, com os olhos vidrados, que àquela hora já deveria ter fumado mais de um quilo de erva, sempre com um sorriso estampado na cara e a cabeça a abanar em jeito de não, mas que quer dizer sim, um verdadeiro “nim”, e os portugueses é que trocam tudo, já não bastava aquele odor intenso e agonizante a rosas a pairar por todo o lado, desde que Penha e Saraiva haviam desembarcado no aeroporto de Dabolim, também chamado Vasco-daGama que passara a ser cognome e omisso, um fragância que aparentemente se deve à forte presença de pau de sândalo, uma árvore da família das santaláceas, em rigor o santalum album, alguém lhes explicou, embora estivesse por explicar como é o que o raio do cheiro dos arbustos se entranhava na comida, no hotel até as pizzas sabiam a rosas, e já não bastava aquele calor sufocante que arrastava consigo enxames de mosquitos e o suor a escorrer pelo corpo durante todo o dia. Todo o dia e toda a noite. O suor e a massa gordurosa de repelentes de insectos, nada devia ficar a descoberto, senão ainda se era vítima de uma qualquer estranha e indesejável reacção encefálica, com o crânio a inchar em forma de capuz caído sobre a testa, tipo «O Homem Elefante» de Lynch, sucedera a um turista belga, que havia decidido andar a correr pela praia, sem chapéu ou boné, atrás das vacas sagradas, uma garreada asiática que lhe valeu uma corrida de táxi de trezentos quilómetros vindo algures do Norte para lhe trazer uma lamela de comprimidos, que no hotel não havia e o médico britânico de serviço desesperava com tão esparsos meios, com tantas diarreias e gente a ser encaminhada para o hospital Bandare, à beira da desidratação ou de estômago vazio, porque era normal recusar comer, tudo sabia a rosas, já se disse, e picante, chamas diabólicas de especiarias várias, nada de servia implorar “less spicy, please, very light, everything light, no spices, please!” Quando chegaram ao Galgibaga Beach, Simão Saraiva dirigiu-se para um indiano baixinho, com uma camisa de seda multicolorida e cigarro na boca, que aparentemente o aguardava à entrada do hotel, muros brancos em arco com um enorme portão de ferro e câmaras de vigilância. Tanto o amigo como Tiago estavam já um pouco bebidos, pelo que Penha não prestou muita atenção à conversa. Falavam em sussurro, mas dava para perceber que se tratava de números. Não de bytes mas de rupias. O regateio durou algum tempo, mas os dois homens lá acabaram por chegar a acordo, como sempre sucede na Índia, manda a boa tradição mercantil, que negócio sem regateio não é 69 negócio. O indiano seguiu com eles para o interior do Galgibaga Beach. Atravessaram vários jardins e os blocos de pequenas residências que se estendiam até ao edifício principal, onde se encontravam os serviços do hotel, área que mais parecia uma duty free shop, tal era a panóplia de restaurantes e lojas misturadas com salas de lazer e descanso. — Vamos para a praia. Queres vir? — indagou Saraiva ao aproximarem-se de um outro portão, que dava acesso ao areal privativo do Galgibaga, com uma placa ao lado, na parede, onde se podia ler qualquer coisa como isto: «If you cannot resist to eat on the illegal beach restaurants, the hotel informs that has at your service a doctor 24 hours a day.» — Para a praia? — repetiu Penha, com ar hesitante. — Little private party — intrometeu-se na conversa o indiano, com um sorriso e um tom de voz cheios de malícia. — Quanto? — quis saber Tiago. — Mil. — Mil dólares?! — Não, mil rupias — sossegou Simão. — Quantas? — Uma. Para os dois, se quiseres — informou Saraiva. — Aqui segundo o nosso amigo, é muçulmana. Não te agrada a ideia? Ou preferias uma gaja com uma pintinha vermelha na testa? — No hindu. Devil in the body and your soul lost forever — voltou a falar o indiano. — Devil and soul, sim senhora, ó café torrado! E o Alá também vem? — provocou Penha, agastado com a ideia mas prestes a resignar-se. — Ya harmuk Allah! Please don’t play with God. Not cafe. Love is sacred. You pay and love. Beautiful women in the world. Amtullah! — That's okay, my friend. Let's have some fun! — tentou pacificar Simão, pondo-se a caminho. O homem e Tiago entreolharam-se e fizeram o mesmo: o primeiro com um sorriso, o típico sorriso dos indianos, supostamente comprazido mas que nada diz; o segundo com um encolher de ombros, bem mais expressivo. O tempo passou depressa, mas a conversa nunca esmoreceu. Em Buenos Aires, terra de filet mignons e do generoso fado do Cabernet Sauvignon. Ao lado de La Tierra del Fuego, em forma de olhos verdes e cabelos loiros. Mas sem nome. Por mais que se esforçasse, Tiago Penha nunca voltou a conseguir lembrar-se, razão pela qual, aliás, acabou por perdê-la irremediavelmente, no tempo e no espaço, sobretudo depois de ter perdido o papel no qual anotara o número do telemóvel dela, ao regressar a São Paulo onde pensou e tentou falar com a sensual e inesquecível filha de Ushuaia. Se ao menos tivesse os olhos azuis, a cor da fé e da noite… Foi uma perda frustrante, irritante, algo que, porém, lhe colocava um problema: por que razão passava a vida a tentar contactar pessoas que se haviam perdido no passado? Entre muitas palavras perdidas, decerto tanto para um como para o outro, no fluxo e refluxo do português e do castelhano, Penha ficou a saber que ela havia sido mãe muito cedo, aos dezasseis anos, acabara por casar com o pai da criança, mas em Ushuaia o caso nunca tinha sido aceite muito bem. De resto, o matrimónio durou pouco. Aos dezoito, ficou sozinha com a filha. O marido, cuja idade Tiago não chegou a perceber bem, fartou-se de repente da Tierra del Fuego e largou tudo. A Patagónia, a Argentina, e mudou-se para o Brasil. Quanto a ela, sufocada pelo opróbrio da situação, cada vez mais denso, que a tradição e os bons costumes da Ciudad del Fin del Mundo – donde ironicamente Penha tinha acabado de chegar, aquelas estranhas coincidências que não 70 parecem fazer parte deste mundo – não coabitavam bem com condutas blasfemas desta natureza, acabou por decidir fazer o mesmo. Ao que parece, tinha um familiar ou uma amiga ou amigo, outra parte que Tiago não conseguiu entender ao certo, em Recife e foi para lá que também seguiu viagem. Todavia, a adaptação não foi fácil. A começar pelo problema da aclimatação, que Penha conhecia bem e havia já experienciado. É que viajar para a asfixia tropical do Estado de Pernambuco, no nordeste brasileiro, depois de vinte anos nos confins da Argentina em clima oceânico sub-polar, não é uma tarefa fácil. Houve também o problema da língua, dos costumes, da desigualdade – só não se refere assimetria que o substantivo já ilustra bem os luxos linguísticos a que muitos se dão para falar em pobreza e miséria – e até da localização exacta do destino migratório, que afinal não era Recife, mas Olinda, um pouco mais a Norte, mais parece Portugal do que Brasil, sempre cheia de luz, chamas luminosas que se vislumbram a milhares de pés de altura, lá de cima, quando os Airbus da TAP, da Iberia, da Air France, da British Airways ou da Lufthansa abandonam terras de Vera Cruz e decidem cruzar o Atlântico quase na horizontal, sobre o Equador, para se encostarem à costa ocidental de África, ali para os lados de Cabo Verde, pouco mais de três horas a ligar dois mundos outrora tão distantes. A partir daí a história tornou-se confusa. Quer dizer, oralmente, pois castelhano com álcool nunca havia sido uma arte bem dominada por Penha, sobretudo se o interlocutor arrastasse as palavras, como era o caso, discurso que voltou a incluir recursos semânticos da gíria brasileira (dialectos de rua que misturam de forma complexa o argot português, francês, norte-americano e até o castelhano). Ainda assim, era bom de ver que nada havia de particularmente singular no passado daquela mulher, cuja história de vida não passava de um relato semelhante a tantos que Tiago já ouvira, com mais ou menos variações, mas idênticos no essencial, que a filha da putice arrasta sempre atrás de si uma tragédia comum, pelo que não era difícil adivinhar o jeito que ela havia dado, a mulher, para se virar e com o qual aparentava não se dar mal, ou não tivesse ela levado consigo a prática e os saberes do amor tresmalhado no seu regresso à Argentina. — Por que é que voltaste? — quis saber Penha. Estavam de mãos dadas por baixo da mesa, a esquerda dele e a direita dela, já se tinham beijado, trocado carícias e afagos, como se se amassem, um caso de amor recriado à pressa porque convinha naquele momento, para dar cor às emoções, provavelmente o azul, o corante da fé e da noite, e também dos olhos dele, que os dela eram verdes, ambos aninhados no conforto da clausura uterina daquele confessionário sem credos, alheios à azáfama festiva da Plaza Cortázar, cada vez mais ruidosa à medida que a noite avançava e o torpor alcoólico ampliava a possibilidade de ser feliz, de poder imaginar «there's no heaven, no hell below us, no possessions, no need for greed or hunger, all the people, sharing all the world.» Está tudo bem assim e não podia estar melhor. — Porque has voltado? — repetiu Tiago, também ele a submergir na comoção dos sentidos, talvez porque o momento a isso o convidava, talvez porque o álcool nisso o ajudava, a tentar derrubar os fundamentos estuporados da Torre de Babel, a esperança de chegar ao céu pelo seu próprio pé na remota eventualidade dessa ser a verdade, «above us only sky», a Pirgos tēs Babél do Antigo Testamento, paradoxalmente uma virtude teológica transformada em pecado capital, o da soberba, tão grandioso e reprovável que Tomás de Aquino até quis reservar-lhe uma atenção especial embora a Igreja tenha dito que não, peremptoriamente, que o génesis do pecado é na qualidade de sete e nada mais. Ela baixou a cabeça e ficou em silêncio. Sem responder. Por momentos, Penha teve a impressão de lhe ver os olhos lacrimejados. Mas se calhar foi mesmo só uma impressão. 71 Porque apesar da arritmia do tempo, própria de condições de excepção – quando se desenrolam emoções de forma desordenada, quando o estado de consciência se modifica à força de substâncias orgânicas intrusivas, quando é o mundo exterior que tenta bater o compasso – depressa ela voltou a levantar a cabeça, após um breve encolher de ombros, de novo com um sorriso na cara, velado, tímido, encimado por um olhar brilhante. Um olhar luminoso, não de lágrimas mas de cumplicidade afectiva, coisa estranha, sendo ela puta e ele um putanheiro, amarem-se de uma noite para a outra, logo a seguir à devassa mútua da intimidade a troco de dinheiro, bem fungível, que se gasta com o uso, e depois acaba e nada resta. Estranho, mas possível. Porque acabaram a noite no quarto de Tiago. Desta vez a fazer amor. Com vontade. Com desejo. Sem pedir nada em troca senão prazer em abandono total. Com os corpos despedaçados em suor. A cama revolta e molhada. Com cabelos loiros e pêlos pretos espalhados pelos lençóis. Com gemidos abafados pela tesão estonteante de uma cópula desaforada e pungente. Da cama saltaram para o chão e continuaram, sem pressas mas com pressa em desafiar os limites da capacidade sensorial. Até que ela se pôs de cócoras, com os joelhos enterrados na alcatifa povoada por uma comunidade imensa de ácaros, e olhou Penha nos olhos de forma intensa, impondo um breve compasso de espera. — Me pone en el culito — sussurrou, em jeito de prece. Tiago não percebeu. Sentia os pêlos brancos da barba cheios de saliva. Dele e dela. Tinha a verga dura embebida num líquido viscoso. E hesitou. Sem saber ao certo o que lhe estava a ser pedido. — Quiero que me has folle mi culo. Quiero sentirte dentro de mí — insistiu ela. — Me gusta así. Por atrás. Parecia estar a suplicar. Com o corpo rendido a latejos violentos. (Web Forum: É por essa e outras que você merece estar nessa vidinha de merda, o que os outros fazem contra você acho pouco. Filha da puta! Tem que se foder mesmo. Otária!) E Tiago Penha deu consigo a pensar mais uma vez no mesmo: ela era realmente bonita, sensual, alguém que podia amar. Curioso: não havia chegado a ir a Puerto Madero. Nem à La Boca. 72 X. Foi durante o jantar, pouco antes do início do espectáculo, com orquestra, bailarinos e cantores ao vivo, ao som de tango, música para a dança da carne e do desejo, na «Esquina Carlos Gardel», o antigo «Chanta Cuatro», precisamente onde a travessa Carlos Gardel desemboca na rua Manuel de Anchorena, no bairro do Abasto, que Tiago Penha se pôs a pensar em Maria Clara. Uma reflexão intrusiva que o incomodou. Porque poderia ter uma origem ígnea e isso não seria coisa boa. Mas acabou por perceber a ligação e sossegou-se. Quer dizer, tentou, pois sossego com a cabeça em Maria Clara e no Reduta Jazz Club, em Praga (uma mera associação de ideias induzida decerto pelos dois espaços de música ao vivo em ambiente de meia-luz), não era de todo a palavra mais adequada. Memórias de uma viagem a dois, nesse ano fatídico de dois mil e um, um breve périplo por algumas das principais capitais do velho continente que ficou devidamente registado em dois diários de bordo, um azul, o dele, o outro cor-derosa, o dela; a distinção entre a eternidade, ou o desejo de se eternizar, o dele; e o altruísmo, o dela. O altruísmo e a verdade, que as cores contam muito e nunca são escolhidas ao acaso. Mas ali, em Buenos Aires, ainda com o sabor na boca da ninfa de Ushuaia, talvez fosse preferível cogitar sobre o Quito e a beldade equatoriana do bar de copas madrileno, uma Claire Danes em versão morena, com quem teve uma relação assustadoramente tão semelhante à vivida com a mulher de olhos verdes da Tierra del Fuego. O único problema é que esse encontro estava agendado para mais tarde, e lá volta a narrativa a tentar fazer umas ultrapassagens para trocar os passos do tempo, como a querer afirmar que o destino não é o futuro programado mas tão-somente o que se pretendeu inventar. Na incerteza de se concretizar. O destino. Quer dizer, o destino que agora se conhece, porque se a existência fosse providencial o livre arbítrio seria uma mentira suprema, e talvez até não o seja, não o livre arbítrio mas a vida ao ritmo da providência, tantas são as coincidências improváveis que vamos registando no diário do fervilhar humano, esse devir delirante que escapa a todas as regras da razão criada à imagem do Homem, isto é, a possibilidade do ser racional intuir a causa e o efeito, identificar e operacionalizar conceitos em abstracto, reformulando-os, por coerência ou contradição por via de um conjunto de premissas e suposições, numa palavra, através da inteligência, o denominador comum da natureza humana que define o Homem como tal. Desde que não se troque os encantos do misterioso feminino vindos da linha do equador (latitude zero, o que não é rigorosamente certo, nunca é demais repetir) pelas tentações tão publicitadas do bar de copas “Déjate besar”, em Salamanca, o lugar perfeito para quem procura one-night stands, garantem os frequentadores, os poucos que assumem lá ter ido, embora sejam mais homens que mulheres, e o ambiente bastante snobe, o que levanta a suspeita de que o convite ao beso pode não ser necessariamente heterossexual. E se a referência soa a descabida, que se recorde os tempos em que Penha se embriagava com bagaço e cerveja, tão esparsos eram na época os seus recursos, aos vinte anos com cem escudos a bebedeira era garantida, o truque consistia no célebre 73 “submarino”, não o amarelo, a cor do açafrão e da memória e das ideias claras, mas a do copo de bagaço enfiado dentro da imperial, uma mistela intragável mas explosiva, entre a fermentação e a destilação, que não conduzia a ideias claras, mas apenas à neblina mental, que um amigo sentado à sua frente já ia na terceira rodada e começou a vomitar enquanto falava, sem se aperceber, directamente para o interior do copo de imperial, o mesmo que a seguir levou à boca, com bagaço e os restos do vomitado, como se nada fosse, perante o olhar impassível de Tiago, na verdade ambos com os olhares vidrados e tão bêbedos que mal conseguiam beber o que já haviam regurgitado. Nessa noite, Penha chegou a casa descalço, vá-se lá saber onde havia perdido os sapatos, pelo caminho com certeza, a princípio impedido de entrar pelos pais, que era uma vergonha, um rapaz tão novo e já metido nestas coisas, ficou retido nas escadas onde adormeceu e desatou a ressonar, na rua estava frio e o barulho acordou os vizinhos, o que finalmente lhe conferiu a tão desejada permissão para pernoitar em aposentos paternos, mas não sem antes confundir o bidé com a sanita, na casa de banho, deixando no primeiro uma bela cagadela amarelada, a cor da inteligência e da gema do ovo, até que se deitou de uma vez por todas na cama do seu quarto. De uma vez por todas, porque nas horas seguintes não voltou a ter forças para se levantar, acabando por vomitar mais uma vez, não na sanita, que não teve tempo nem coragem para lá chegar, faltavam-lhe as forças, já se disse, mas no chão, ali mesmo ao lado da cama, em cima de um tapete que a mãe havia comprado numa feira de ciganos sem possibilidade de devolução por defeito de fabrico, uma chatice já que na manhã seguinte o padrão do mesmo que tanto a encantara havia mudado para um outro que desconhecia, um tanto ao quanto estranho, além de que o cheiro também não era igual. Decerto que havia sido enganada mais uma vez pelos sacanas dos ciganos, era preferível ter ido à loja da esquina, onde conhecia a proprietária, uma velha rabugenta que não percebia que negócio sem regateio não é negócio. Eis, pois, como a vida apresenta tantas contrariedades, que é preciso estar atento e não trocar os “bês” pelos “vês”. Não obstante a regra não ser aplicável ao castelhano, tanto quanto se sabe, pois são muitas as variações e igualmente complexo o seu argot, pelo que Tiago Penha talvez pudesse pôr-se a pensar em Praga, sentado sozinho numa mesa de recanto naquele enorme salão, no piso térreo da «Esquina Carlos Gardel», que passar por Buenos Aires e não assistir a um espectáculo de tango seria tão pecaminoso como curtir a noite no Bairro Alto, em Lisboa, sem pedir um “pontapé na cona” no Arroz Doce, com a tia Alice aos gritos por detrás do balcão: “Saem três na cona!” Na ementa gourmet, em español, english e português, Penha escolheu como entrada uns rolls de mozzarella de búfala fiada com presunto cru, tomates frescos e alinho de manjericão, seguindo depois para um ravioli de lombo e espinafre, molho de tomates assados e presunto torrado, e um bife de chorizo com batata puré dourada (erro de tradução evidentemente, que até à data Tiago só havia conhecido puré de batata e não batata puré, embora pudesse dar-se o caso de em solo argentino o batatal produzir logo o puré em vez da batata, que assim poupar-se-ia tempo na descasca e na liquidificação, fosse ela manual ou eléctrica), e ainda atacou uma mousse de chocolate sobre biscoito bretom e calda de pistaches. Tudo acompanhado por um tinto San Felipe, um chardonnay amadurecido e envelhecido a cerca de cem quilómetros a norte da capital chilena, terras de mamadas e picos chupados, de mujer ke le gusta lamer una y otra vez el miembro inferior masculino, sin importarle de kien es, expressões que ficaram célebres depois do caso «Wena Naty», de que aqui já se falou. Para digestivo, pediu um uísque de malte que ali lhe iria custar os olhos da cara – embora considerasse que, ainda assim, os seus olhos valiam mais – nada de especial, apenas um Cardhu, doze anos, escocês, sempre era melhor que o bourbon do Tennessee 74 que havia sido obrigado a beber aquando da passagem pela estância de esqui Les Deux Alpes, lá para os lados de Lyon, do outro lado do Atlântico, estranho como a disponibilidade de uísques também pode trocar a lógica das coordenadas geográficas, incluindo a terceira, fundamental mas tão frequentemente esquecida, a altitude. Apetecia-lhe fumar um cigarro. E aquele salão histórico estava mesmo a pedi-lo, o mítico «Chanta Cuatro», hotel e restaurante, que abriu portas em mil oitocentos e noventa três, mais de um século ao serviço de estômagos cheios e cabeças vazias, mas a lei anti-tabaco estava ainda na fase dura da imposição dolosa, e dolorosa, e mais não se deve dizer, que na Argentina, com tantos generais, todo o cuidado é pouco. (Web Forum: En Argentina el Gobierno se encarga de armar un aparato bien represivo de la libertad de expresion, podes estar seguro de eso. Y en los ultimos tiempos ha dado pasos decisivos con ese objetivo. A que se segue de imediato uma discordância no feminino: Creo que estas hablando muy mal del Gobierno Argentino que dio mas libertad de expresión en los últimos ciento cincuenta años. Me parece que deberías retroceder todo ese tiempo para despedir semejante retórica. O visado prepara-se para responder, ou talvez não, já que se intromete uma outra interlocutora para elogiar, não o Governo, mas as pizzas da Argentina, o que merece o aplauso da primeira: Cuando vuelvas a Buenos Aires prometo que te llevo a pasear por alguna pizzería bien rica, mais la de minha mae es muito boa tamben. E finalmente a réplica do primeiro comentador, também uma aprovação, resta saber se com convicção ou com ironia: Tenes razon. Las pizzas argentinas son muy buenas. As observações sobre o Gobierno é que não voltam ao fórum) Tiago Penha arranjou coragem para se levantar e enfiou-se à pressa nos servicios de mijas masculinas, numa galeria fora do salão de jantar e do espectáculo (não confundir com a pequena cidade a sudoeste de Málaga, na Costa do Sol, na sierra de Mijas, onde naturalmente tudo envolve o substantivo mictório, incluindo a designação de pueblo das mijas, embora se desconheça se em Mijas é elevado o índice de problemas da próstata), para dar umas longas, demoradas e saborosas baforadas de nicotina. Quando regressou à solidão da sua mesa de recanto, tendo de atravessar mais de metade do salão, o lugar que lhe coubera estava bem perto do palco, do lado de esquerdo, a meia-luz havia sido trocada por um manto de penumbra, que o espectáculo de tango estava prestes a começar. Tango clássico, com uns toques de Piazzolla, para estabelecer uma ponte de cumplicidade entre a sonoridade de Gardel e de Astor, muitos “cortes”, “quebradas” e “paradas”, um escândalo para a época, com os pares a dançar colados, os dois bailarinos a esfregarem-se ritmicamente um no outro, a melodia da carne e da paixão, já lá ia a primeira vaga de miscigenação musical, uma mistura explosiva de habanera, milonga e de temas populares levados em tempos idos pelos emigrantes europeus. À medida que o som começou a ribombar no salão, de forma cada vez mais forte e intensa, e a agitação foi enchendo o palco, Tiago deixou-se envolver, como se também ele fosse um dos protagonistas, como se fizesse parte daquele banquete, agora de sexo e música, que entesa o corpo e enleva a alma. Cores não faltavam, muitas, tantas que se tornavam indecifráveis; na verdade, mais parecia uma orgia de corantes e luzes reflectidas sobre corpos em movimento, com cadências ora ritmadas ora desiguais, tão paradoxal como a dança do amor, por detrás de uma cortina transparente, que mais não é do que a interpretação do que cada um vê, ou quer ver. Mas faltava o cheiro intenso a tabaco e álcool, pessoas nuas a dançar entre o público, homens e mulheres, em transe, em êxtase, faltava aquela fêmea nauseabunda carregada de batom, às gargalhadas, com um ar alucinado, a falar em borbulhas encarniçadas e na peste vermelha. Malditas bolhas assanhadas! Só faltou referir-se às duas estranhas bolas 75 de fogo azul. E o som dos tambores. E o rum e os charutos. E a cachaça de alambique. Havana ou Vitória? E a tequila pura. E a becherovka checa. No Reduta Jazz Club, em Praga, podia-se fumar à vontade. Pelo menos naquela época, mesmo depois da passagem de Bill Clinton e da sua jam session com o saxofone novo em folha oferecido por Václav Havel, em mil novecentos e noventa e quatro. Um antigo reduto comunista para admiradores secretos da dixieland de New Orleans. Quando saiu da «Esquina Carlos Gardel», na Anchorena, no final do espectáculo, misturado com casais e vários grupos de outras pessoas que também lá tinham estado, a rirem-se, felizes, bem-dispostos, a recordar com vozes animadas os momentos mais extasiantes que haviam experienciado durante aquelas últimas três ou quatro horas, Tiago Penha sentiu-se de repente sozinho, severamente sozinho, numa cidade que afinal lhe era desconhecida, passava pouco da uma da manhã, e com vontade, muita vontade de contar, de partilhar com alguém as emoções que acabara de viver, porque também ele havia ficado encantado com aquela noite de tango. Francamente maravilhado e rendido. Mas hesitou. Voltara a rever a imagem de Maria Clara, em rigor, a imagem que conservava dela, porque em boa verdade desconhecia qual seria a imagem real que ela teria agora, naquele momento, depois dele estar mais uma vez ausente no estrangeiro há várias semanas, mais uma viagem para aprofundar a distância e o agastamento corrosivo em que assentava aquela relação, algo que, aliás, nem era bem assim. Bem pelo contrário. Falar em relação ou ter a presunção de afirmar que a mesma assentava em qualquer coisa não passava de uma efabulação, de uma fantasia caprichosa que talvez pudesse ser conveniente para ambos nalguns momentos de menor resistência pessoal à intempérie da desilusão. À intempérie do próprio nada. O nada a que possa dar a devida forma de algo escrito. Ou pensado. Ou sentido. Que também assim se narram histórias. Da possibilidade de um nada. É claro que, apesar de tudo, Penha podia ligar-lhe, ou pelo menos tentar. Mas havia a questão do fuso horário. Não sabia ao certo quantos horas de diferença seriam. Mas para ser quase uma da manhã ali, era de madrugada em Portugal continental. E acordá-la a meio da noite não seria propriamente uma boa ideia. É que, bem vistas as coisas, nada havia para dizer. Nem mesmo a possibilidade de um nada. Podia tentar a ninfa de Ushuaia (a mulher que fugira para Olinda, no nordeste brasileiro, onde aprendera que ter olhos verdes, um culito rico y apretadito listo para ser follado e disponibilidade para chupar picos dá para encher a barriga e para outras extravagâncias consumistas, que em terra de pobres e miseráveis tudo o que não é pão é estroinice). Tiago ainda não havia perdido o número do telemóvel dela. Mas para quê? Para fingir que tencionava saborear aquele corpo, que decerto àquela hora estaria noutras mãos a render pesos ou dólares? Para voltar a sentir o sabor acre de quem mais nada sabe fazer do que desfiar as memórias tristes de viver a vida em privês de diversão nocturna, reservados a adultos sem graça, que é o mesmo que dizer gente desgraçada, infeliz, desprezível? Ela era realmente bonita, sensual, alguém que ele podia amar. Mas também era uma puta. E mesmo que as putas possam amar nunca deixarão de ser putas, pois sexo é sexo e há mais putas que putedo, já aqui se disse e que ninguém ouse em discordar, pois são igualmente putas aquelas que fingem não querer ser pagas em numerário mas que fodem os homens e as mulheres e a vida a toda gente, grandes cabras filhas de uma grandessíssima puta. Ficou claro: Penha estava farto da escala na «capital mais europeia da América Latina». De resto, tinha trabalho e muito, e esse estava em São Paulo à sua espera, pelo que estava na hora de regressar a casa, perdão, à casa que Tiago havia inventado como tal na capital paulista, porque ter de ficar preso a uma cidade durante tanto tempo sem sentir um lar por perto é coisa que ninguém merece. Foi com este estado de espírito amargo que Penha começou a andar em direcção ao mercado de Abasto onde se pôs a olhar para 76 a enorme estátua em bronze de “Carlitos”, também conhecido como “El Zorzal”, entre outros cognomes, nascido na cidade francesa de Toulouse (embora os uruguaios digam que foi em Tacuarembó, no norte do País, já bem perto da fronteira com o Brasil) e vítima mortal, aos quarenta e quatro anos, de um acidente de aviação em Medellín, na Colômbia, na década de trinta do século passado. Definitivamente, o sorteio da certeza da morte não tinha sido muito favorável àquele homem. Se bem que nisto da lotaria da vida nunca se sabe quem fica com a melhor parte. Aqueles que ficam, para viver, ou aqueles que vão, para morrer, falta Sócrates, o ateu, que aparentemente acreditava no Senhor, como relata o seu discípulo Platão, para o recordar, quando se rendeu, e de vez, às carícias mitigativas no coração da cicutoxina, uma toxina mortífera que fez jus à sua natureza letal. No meio de tantos pensamentos que começavam a assumir um carácter febril, pois sentia-se sozinho, severamente sozinho, sem ninguém com quem poder partilhar as emoções que acabara de viver, Tiago Penha ocupou-se ainda de um outro assunto, conhecidas que estavam e visitadas duas das grandes cidades da América do Sul. É que uma coisa parecia certa (ou melhor dito, incerta) agora que Tiago parecia estar decidido a partir, enquanto muitos outros ficariam. Com villas de emergencia, homens-aranha, histórias rocambolescas de generais, ditaduras e repressões, com Gardel e Piazzolla, com Puerto Madero e La Boca, com pizzas e bifes de chorizo, permanecia a dúvida: Buenos Aires teria razão para invocar o estatuto da capital mais europeia da América Latina? Quer dizer, com traços europeus até poderia ser, tal como, aliás, ensina a História ibérica sobre a ocupação colonial de toda a América do Sul e até de alguns territórios da América central. Mas capital? Como capital, São Paulo parecia mais interessante e provavelmente até seria mais justo, já que, em matéria de cosmopolitismo, o centro urbano da sede financeira brasileira não parecia ficar atrás. Talvez a coisa se pudesse resolver: cidade europeia para os Argentinos e capital para os brasileiros. Que tal? (Web Forum: Acredito que Buenos Aires é uma apenas caricatura do que eles pensam que é a Europa, comentário em brasileiro a que se segue uma réplica vinda igualmente de terras de Vera Cruz, curiosamente do Rio de Janeiro, esgotada pelo menos aqui a eterna contenda bairrista entre cariocas e paulistas: A Argentina está em decadência há oitenta anos. Carlos Gardel já dizia em uma música sua da “vergonha da Argentina ter sido e agora já não ser mais”. Junta-se às duas observações um remate, um quase, em português, que o assunto parece ser melindroso, ou não fossem tantos os silêncios perante um tema aparentemente bastante controverso: Muito já se disse da arrogância argentina em dizer que Buenos Aires é uma cidade com características europeias. Mas eu, que conheço muitas capitais e cidades importantes da América latina, assim como da Europa, posso afirmar que essa pretensão argentina não está longe da verdade. Claro que temos que considerar que Buenos Aires não tem tantos anos quanto, por exemplo, Madrid, em minha opinião, o modelo que idealizo. A arquitectura portenha, por conseguinte, não tem lugares tão preciosos como, por exemplo, a Plaza Mayor. As características europeias dadas a esta cidade são forjadas pela forte presença migratória de espanhóis e italianos neste País e, claro, em Buenos Aires. Sobrenomes como Lopez, Martinez, Garcia, Morelli, Boto, Pizzuto, chegam a ser comuns e, claro, destas raízes nascem as semelhanças. Mas caminhe pela Avenida de Mayo, da Praça de Mayo até a Praça do Congresso, e verá com muita facilidade a sua semelhança com a Gran Via, uma das mais conhecidas avenidas de Madrid. E para não ser injusto, conheço uma única cidade que pode, na América latina, ter essa mesma característica: Montevideu. Porém, essa cidade já não pertence a esta discussão. Mas pode pertencer, como espelha um comentário final no feminino, vindo desta vez de São Paulo: Na 77 minha visão solitária, sempre achei que o País mais europeu da América Latina é o charmoso Uruguai. Seu elevado índice de desenvolvimento humano nos ensina que “as veias abertas da América Latina” podem ser fechadas. É lá que quero dançar o tango que aprendi na Argentina) Sempre curiosas, as afirmações, pena é que não tenha havido uma voz argentina para as rebater. Estas declarações merecem, porém, uma breve nota apenas para recordar que quando o comentador português se refere à Gran Via, fá-lo em relação à famosa avenida nevrálgica da capital espanhola, como parece ser evidente. É que tanto Barcelona como Zaragoza também têm uma Gran Via. Não se sabe se por acaso, uma daquelas coincidências providenciais – embora neste mundo nunca o pareçam ser, tão grande é o descrédito atribuído à providência – ou se em resultado de mais uma acha atirada para a fogueira das vaidades e contrariedades que anima e desanima a longa contenda entre catalães e castelhanos, aqui com aragoneses à mistura (que, por sinal, além do aragonês também falam catalão). E mais não se diz, deixem lá os galegos sossegados, porque já se viu que nesta manta de retalhos que é o Reino de Espanha o silêncio imposto pela política da canhoneira sempre imperou, e assim se deu novos mundos ao velho mundo, salvo junto dos bascos, mas essas são gentes de outra extirpe. Tiago Penha continuava junto à estátua de bronze de Carlos Gardel no mercado de Abasto, agora menos concorrido à medida que a noite avançava. Mas mais uma vez voltou a pensar em Praga. Em Praga e em Maria Clara. Não deixava de ser intrigante: tinha-lhe sucedido o mesmo recentemente, numa das suas últimas e breves passagens, que andavam cada vez mais espaçadas no tempo, pela metrópole lusitana. Estava no seu escritório na República, no centro de Lisboa. Deveriam ser umas nove da noite, mas ainda fazia um calor dos diabos. De todos esses seres maléficos esconjurados que a fé, ou a falta dela, vê de tantas formas diferentes, dando-lhes nomes diversos conforme as necessidades desse admirável novo cosmos da geopolítica da economia. E das vontades ideológicas tão prosaicas quanto intransigentes. Era sério o assunto, mas não era para ali chamado, pelo menos naquele momento. Penha acendeu um cigarro e deteve-se a olhar para as ondas de fumo que subiam à sua frente, iluminadas por um pequeno candeeiro de estanho que conservava em cima da secretária, entalado entre dois monitores ligados às respectivas máquinas de processamento de bytes e contrabytes. Mais megas e contramegas, e os gigas, esse propalado prefixo que multiplica uma unidade por dez elevado a nove, já para não falar em teras. É um lugarcomum, mas um cigarro dá sempre jeito. Sobretudo para fazer o compasso narrativo de quem quer, mas não sabe ainda se lhe apetece contar. Narrar. Confessar. Admitir. Os factos. O facto. Fumá-lo é, porém, outra história, porque ainda não se sabe quem fica com a melhor parte: quem fuma ou quem declina o prazer cancerígeno em nome de outros prazeres distantes, regra geral, prometidos, mesmo que à beira da esquina haja um carro pronto a atropelar quem ousa em aproximar-se. (Web Forum: Existo... logo escolho!) Da janela de correr, quase fechada, não circulava praticamente ar algum, pelo que as cortinas permaneciam penduradas, qual muralha entre o mundo de Tiago, ali dentro, e o mundo dos outros, lá fora, sem se mexerem. Estavam impregnadas do cheiro da nicotina. E de um tom amarelado disforme que decerto não correspondia ao desiderato estético do fabricante, nem o colorante, que tonalidades de açafrão mais parecem remédio do que cor. Por sinal, um medicamento emenagogo, para restabelecer a flora menstrual, feito a partir dos estigmas desta planta bulbosa da família das iridáceas. Além disso, a calha por onde supostamente as fitas deveriam deslizar de modo gracioso e funcional começava a ficar enferrujada. 78 Penha passara o dia a trabalhar. Justamente em cima daquele teclado infestado de cinzas que se infiltravam por todos os orifícios nos quais lhes era permitido o acesso. Um spray resolveria aquilo, mas como o resto da secretária também estava cheia de cinzas, e algumas beatas que o cinzeiro tinha resolvido lançar fora para cima do tampo, o melhor era não ligar. Sob o halo de luz do candeeiro havia fios de cabelo espalhados, que o tempo não perdoa, até para o couro cabeludo, e duas chávenas de café sujas, uma delas virada de lado, com manchas nos rebordos e despojos de açúcar desfeito no fundo. Tiago tinha ainda sobre o tampo da secretária uma pequena caneca com água. E mosquitos a sobrevoá-la. Havia acabado de enviar um último e-mail e continuava indeciso. Devia pegar no telemóvel e ligar-lhe para acabar de vez com toda aquela charada comunicacional assente nos SMS e mensagens electrónicas enviadas de um lado e a esbarrarem com o silêncio total, absurdo e manifestamente total, do outro. Manifestamente porque não seria de esperar. Quer dizer, Penha não esperava; não contava com o que lhe parecia ser um evidente e derradeiro desinteresse que, aí chegado, não conseguia qualificar. É claro que, em relação ao outro lado, apenas podia tentar adivinhar, mas estava quase em crer que a sua destemida e patética manifestação de disponibilidade para o diálogo não era igualmente esperada. Evidentemente que não e Tiago bem sabia porquê, embora não fizesse a mínima ideia de como havia sido encarada. Até porque já lá ia muito tempo. Apagou o cigarro por fim. Mais uma beata à beira de um ataque de nervos, pois isto de conviver com fios de cabelo perdidos e possíveis ataques de pequenos e improváveis seres esvoaçantes não agoirava nada de bom. Mesmo para uma beata. Não das que se ajoelham à frente de uma qualquer relíquia sagrada, que de sacra pouco tem a não ser o revestimento de ouro, quando o existe – Penha receava que pudesse ser essa a motivação sublimada de tanta devoção, a expectativa secreta de uma troca de favores espirituais pela concessão divina de benesses materiais, que roubar aos ricos não é pecado, já dizia o sétimo mandamento (ou quase, depende da interpretação) – mas a porra da ponta de um cigarro. A tal beata que acabou por resvalar do cinzeiro, cheio em abundância de restos mortais similares, e aterrar no tampo da secretária. Tiago desistiu. Ainda deitou um olhar de soslaio para o telemóvel, também ele a laborar na chafurdice da secretária, mas deixou-o estar. Sossegado. Amanhã seria outro dia. Igual àquele. Igual a todos os dias. Igual a todos aqueles anos de serena passividade perante o sucesso – ou deveria dizer insucesso? – de uma carreira sem paragens. Sem destino. E, por conseguinte, sem sentido. Tratava-se de uma morte lenta sem dor. Apenas com o sofrimento do tumor da inércia, uma indolência perfeitamente estéril. E o pior é que todo o processo era racional. O que agravava ainda mais as coisas. A inércia multiplicada por dez elevado a nove dá um resultado verdadeiramente giga insensato. Tiago nunca havia sido muito adepto de advérbios de modo, tal como tinha pavor do uso do gerúndio (que transforma a ortografia num triste desacordo), mas às vezes dava jeito: sublinha, amplifica, subleva, e imprime dramaticidade narrativa e ritmo oratório – o que é sempre bom, especialmente para as cada vez mais numerosas tertúlias sociais de reconhecimento da arte de bem prosar. Mas o abuso da técnica, a tentadora utilização em excesso dos advérbios de modo, conduz a fastidiosas excentricidades sintácticas que nada abonam a favor do prazer da leitura. Porque se escrever pouco tem de aprazível, excepto para aqueles que rabiscam pobres exercícios de criação literária, quem lê deve poder fazê-lo com deleite, gozo, sentir-se enlevado, deliciado, extasiado, à beira do orgasmo. O que conduz a um problema: o leitor goza, o autor abre as pernas. Foi precisamente o que Penha acabara de fazer se os seus pensamentos estivessem a ser transpostos para o papel. Estaria no parágrafo anterior. E ninguém lhe pagaria um tostão 79 para isso. Outro problema: é que, além de abrir as pernas, até dá a sensação de que o autor gosta. Tiago estava com vontade de beber mais um café. Mas não. Já eram horas de seguir em frente, trilhando o seu tão bem conhecido percurso de serena passividade e inércia. O dia tinha corrido mal. Havia produzido pouco, passível de se traduzir numa compensação pecuniária proporcional, e a merda do impulso tresloucado – reconhecia – em ligar-lhe, em falar-lhe, não lhe havia dado tréguas durante todo o tempo, várias horas, mais de dez (mas não elevado a nove), em que manteve o cu sentado numa cadeira esponjosa, cheia de pó e nódoas, sabe-se lá donde tinham vindo. Levantou-se, afinal sem desligar os benditos processadores da infinitude, ou da infinidade, cada um que escolha, de dados integrais de computação, átomos sem fim de representação de símbolos, letras e números, apagou a luz do escritório e desceu as escadas aos saltos, para desentorpecer as pernas, até chegar à rua, ao mundo dos outros, agora lá fora. O bafo de calor, que havia pressentido já no interior da sua sala de trabalho, atacou-o com redobrada violência. Não era muito tarde, mas a avenida estava praticamente deserta. Na estrada, contavam-se pelos dedos os carros que passavam. Na calçada, apenas meia dúzia de pessoas, fumadores, a encher os pulmões de chumbo e de dezenas de outras substâncias cancerígenas à porta de um café. Penha pensou duas vezes no rumo a seguir até que se lembrou de que tinha trazido o carro. O novo, porque o outro havia ficado estampado contra a berma metálica de uma auto-estrada. Tinha sido um momento aflitivo, mas também decisivo. Era como o desejo de lhe ligar. Não conseguia esquecer. Aqueles baixios vaginais que tantas memórias lhe traziam. Talvez pudesse remexer no passado e recompô-lo porventura, embora soubesse que era mentira; não era isso que queria. «Praha, a caminho de Wien, com vinte minutos de atraso, Setembro sete, quinze e quarenta e cinco, hora local Querida Ester, Estamos finalmente a sair de Praga. Escrevo finalmente porque foi atribulada esta passagem pela capital checa e tanto eu como a tua mãe já estávamos ansiosos por sair desta cidade que tanto seduziu Václav Havel. A experiência salda-se sobretudo pela surpresa, negativa, positiva, mas tocante, não permitindo qualquer tentação de indiferença. Talvez arrisque a dizer que o sentimento de desagrado é o mais forte. Agora mesmo, depois de todos os contratempos e sobressaltos que vivemos em Praga, os quais aqui vão ficar registados enquanto rumamos para terras austríacas, fui testemunha e actor de um acontecimento insólito. Na verdade, dois, se bem que o primeiro seja apenas ilustrativo dos ataques de nervos que os checos provocam. Na estação ferroviária de Holešovice, a mesma que serviu para chegarmos de Berlim e partir agora para Viena, não me deixaram ir à casa de banho porque não tinha comigo umas famigeradas vinte korunas checas. O dinheiro checo que nos resta está na mochila da tua mãe e, no momento em que me senti apertado, ela não estava por perto; tinha ficado na plataforma dois, onde supostamente chegaria o comboio que teríamos de apanhar. E eu fui para a área dos toilets, do outro lado das plataformas, voltando a percorrer, agora em caminho inverso, os túneis subterrâneos de comunicação entre os caminhos-de-ferro e o edifício propriamente dito da estação (na prática, um armazém envidraçado, impessoal, sem qualquer afirmação identitária). À porta das casas de banho, uma velha antipática e imunda a controlar os acessos. Implorei-lhe que me deixasse entrar, mas ela, no seu intransigente e desagradável checo, reduziu-se a um lacónico nein! (imaginei eu, porque nein é alemão e a velha deve ter falado em checo com um ne!), a que acrescentou um trejeito de enfado perante a minha insistência quase como a dizer qualquer coisa do tipo “desaparece daqui, seu capitalista maldito!” Porra: é que estava mesmo à rasca para 80 mijar. Mesmo à rasquinha. E quando assim é, ainda custa mais: a bexiga parece que vai rebentar. Tentei encostar-me a um canto qualquer, mais escuro ou recatado da nádraží, mas ali, com tanta gente a cirandar, era impossível satisfazer ao ar livre qualquer necessidade fisiológica. De resto, lá resisti à tentação, e digo tentação porque era o que me apetecia fazer de tão irritado que me sentia, de mijar à porta da esquadra da polícia, mesmo ao lado da estação ferroviária, que era provavelmente, de todos os lugares impossíveis, o menos impossível. Mas tive de me resignar e lá regressei à plataforma, voltando a descer e a subir o túnel, devagarinho, para ver se a bexiga aguentava tanta pressão. Mas estava furibundo, cheio de pensamentos xenófobos. Tudo por causa da merda de vinte coroas checas?! Ela não percebeu que eu era estrangeiro e estava de partida? Que não tinha trocos, aliás, em respeito pela regra de nunca levar divisas locais de um País estrangeiro? Ou fez questão de tentar a derradeira caça ao dinheiro de mais um perfect stranger? É curioso como, perante uma pequena contrariedade do género desta, assome de repente um sentimento tão perturbante e estranho para mim. O da xenofobia. Tenho de meditar sobre o assunto. Para agravar as coisas, o comboio que vinha de Berlim (exactamente o mesmo que tínhamos apanhado dois dias antes, quer dizer, igual) chegou com um atraso de vinte minutos. Só mesmo aqui. Parece que voltámos ao terceiro-mundismo de que tanto me queixo em relação a Portugal. É que estava mesmo desesperado para urinar, mas só me restava esperar pelo maldito comboio, que raramente ultrapassa a velocidade de cem quilómetros por hora e parece estar sempre a parar. E agora entramos finalmente no episódio insólito. Uma coisa absolutamente anormal. Escusado será dizer que, mal entrei no comboio, corri para a casa de banho. Parecia uma torneira. Depois, a sentir-me bastante melhor, já aliviado daquele peso, dou de caras com algo que, no princípio, deixou-me perplexo: um passaporte. Perdido. Em cima do lavatório, molhado. Verifiquei-o, um pouco a medo, e percebi tratar-se de um documento de um septuagenário austríaco. Confesso que a primeira tentação que tive foi largá-lo, deixá-lo ali, porque podia dar problemas. Mas depois, movido por uma leve ponta de civismo e, talvez, por uma certa vontade exibicionista em poder, afinal, tornar-me um herói naquele dia, ou pelo menos protagonista de uma história invulgar, acabei por levar o passaporte comigo. Quando me sentei na carruagem, eu a tua mãe examinámos o documento mais em pormenor. Austríaco, nascido em mil novecentos e vinte e oito, com uma passagem por um País árabe qualquer, os carimbos não eram muito legíveis mas dava para perceber pelos arabescos, óculos com aros de massa, cabelos grisalhos e um semblante austero, como imagino que têm todos os austríacos. Ainda pensei em conservar o passaporte em meu poder e entregá-lo ao revisor quando passasse. Mas o meu espírito aventureiro não me deu tréguas. Tinha de procurar o indivíduo e porventura, caso o encontrasse, devolverlhe o documento. E não é que o encontrei mesmo! Tinha tentado decorar-lhe as feições para não me enganar no destinatário e depositário do meu acto cívico, mas quase que não foi preciso. Três ou quatro compartimentos à frente, lá estava ele. Ele e a mulher, aparentemente nervosos e irrequietos, a revolver as malas. Quando cheguei, com o passaporte na mão, não precisei de dizer nada. Ele olhou para mim, com um olhar aliviado mas também desconfiado (talvez por pensar, suponho, que pudesse ser eu o autor da nefasta “brincadeira”). E desatou a falar muito depressa naquela língua cheia de sons agrestes. Não percebi nada, claro. Pus na cara o ar mais inocente do mundo e expliquei-lhe em inglês (no meu péssimo inglês, diga-se) o que tinha acontecido. Pelos gestos dele e o olhar da mulher, pareceu-me que ele não parava de dizer que tinha sido roubado. Pediu-me que lhe mostrasse o local onde eu havia encontrado o passaporte e lá o fiz, sempre com o seu “interesting”. Explicou-me então que lhe tinham roubado a carteira antes da paragem em Praga – pelos vistos, vinha de Berlim – e que, quem quer 81 fosse, devia ter largado o documento na casa de banho do comboio. Pediu-me para que eu fosse testemunha, no caso de fazer queixa à polícia. Disponibilizei-me, claro está. Depois, levou-me com ele à procura do revisor e, quando o encontrámos, voltou a contar a história toda. Pelo que consegui perceber, foi-lhe dito que o carteirista provavelmente ter-se-ia apeado em Praga. E agora só a polícia checa é que poderia tratar do assunto. Não valia a pena, como é evidente. Mas lá tentei deixar com o homem o meu nome e o contacto. Ele recusou. Estava resignado; sabia que não havia nada a fazer. Pelo menos tinha recuperado o passaporte. Agradeceu-me por fim, sem grande entusiasmo mas de forma correcta, com um aperto de mão e despediu-se. Começo a pensar que os austríacos devem ser todos assim, comedidos na manifestação das suas emoções. Agora, de volta à minha cadeira, ou banco, sei lá como é que esta coisa se chama, ponho-me a pensar no que terá perdido aquele homem. A esta hora, o cartão ou os cartões de crédito, não faço ideia, devem estar em plena actividade. Terá sido um checo? Talvez, é provável que sim. Acredito nisso porque corresponde exactamente à imagem com que fiquei dos checos, uma imagem bastante negativa. É um País desconcertante, quer dizer, a cidade de Praga. Mas também o País. Em primeiro lugar, pressinto que há um fosso enorme entre os que vivem em Praga (a única cidade checa que parece ser merecedora desse nome) e os outros. Depois de termos atravessado a fronteira alemã, observei o ar desgraçado dos jovens checos, adolescentes, que entretanto foram entrando no comboio. Com roupas completamente fora de moda, antigas, do tempo das avozinhas. Estou a lembrar-me daquele rapaz, que parecia ser um estudante universitário, pela idade que aparentava ter, com um caderno rasca e um lápis quase no fim, todo gasto, como instrumentos de estudo. Aliás, quando chegámos a Holešovice, o nosso “apeadeiro” em Praga, senti um baque. Uma estação decadente, suja, confusa, a começar pelo facto de que mais parecia um armazém, tipo entreposto de mercadorias. Talvez com o seu quê de pitoresco por fazer lembrar, no meu imaginário, o universo do Leste europeu da Guerra Fria, das terras sob a ocupação soviética. À saída do comboio, havia um autêntico formigueiro de pessoas a oferecer milagrosas accommodations de última hora. Para quem não tinha qualquer reserva. Tive receio de que, no meio daquela balbúrdia, alguém me roubasse ou à tua mãe. O enxame de novos “empresários” por conta própria, à boa maneira (imagino eu!) dos antigos anos do charme venenoso soviético, continuou pela estação fora. Troquei marcos alemães por coroas checas e tentei orientar-me por entre toda aquela desorientação. Aproveitei para fazer logo a reserva do comboio para Viena e metemo-nos no metro. Outro baque: um mergulho em catacumbas soviéticas, como se estivéssemos a fazer uma visita a prisioneiros políticos enfiados em buracos imundos no subsolo. O som da língua checa, o ar soturno das carruagens de metro, das estações, das pessoas, tudo me fazia lembrar a cidade de Moscovo que imagino, aquela imagem com que se fica dos filmes da Guerra Fria. Ao chegarmos a Můstek, à superfície, caminhámos em direcção à Praça Venceslau (que fica, aliás, a cinco minutos a pé da Old Town Square, uma das ex-líbris de Praga) e nova impressão de desalento. Ou seja, só por ali, dá para perceber rapidamente que, sendo a cidade uma autêntica feira de vaidades arquitectónicas, é também uma enorme e aterradora montra do capitalismo desenfreado. Sem exagerar, são milhares os turistas que andam acotovelados na Praça Venceslau, a célebre Václavske náměstí (palco da “Revolução de Veludo”, já lá vão quase onze anos), que mais parece a Quinta Avenida de Nova Iorque. É um paradoxo assombroso para quem chega desprevenido, como era o nosso caso. Numa palavra, a cidade é de facto maravilhosa, linda, mas depois do deslumbramento inicial o que resta é a sensação de que se está num centro comercial gigantesco. Marcos alemães, coroas checas, eurocheques, dólares americanos (“Money is money”, disse-me uma empregada de uma loja), tudo se vende e compra em Praga. 82 Os sinais de uma possível memória colectiva da ocupação soviética, que poderiam constituir – para nós, ocidentais, no verdadeiro sentido da palavra, do extremo ocidental da Europa – o principal atractivo turístico, para quem se interessa por essas coisas, claro está, depressa se desvanecem e se convertem tão-somente num supermercado à escala da cidade, um só e sempre o mesmo supermercado do tamanho da capital checa. Desvirtua tudo o que de bom a cidade poderia oferecer. Para mim, claro. Ainda por cima, e de uma forma geral, os checos são abrutalhados; só pensam no lucro fácil e estão sempre prontos para enganar os turistas e os viajantes. Até compreendo, ou tento compreender, esta corrida alucinada, esta sede descomedida de padrões capitalistas na forma de estar e negociar, depois de tantas décadas de privações e opressão. Mas precisava de entrar na cabeça dos checos para perceber esta súbita vocação comunista pelo capitalismo imperialista. O problema é que a minha cabeça é outra e tudo isto parece extravagante e completamente descontrolado. A História repete-se. Ou, no limite, algumas histórias da História. Só muda a paisagem; porque a lógica e os efeitos deste frenesim em nada diferem da corrida ao ouro e às terras selvagens do Oeste norteamericano no século dezanove. Resta saber quem faz aqui o papel dos nativos americanos que foram atacados e expulsos dos seus territórios tradicionais.» Curioso: palavras escritas quatro dias antes do onze de Setembro. 83 XI. Tiago Penha nunca foi muito dado à História. Era curioso, astuto, interessava-se por procurar ter uma visão mais ou menos global do mundo em que vivia, mas sofria inevitavelmente de profundos hiatos de conhecimento, tanto mais que, por razões profissionais, havia sido obrigado a absorver o intricado universo dos bytes e contrabytes, e nem esse dominava com a segurança que desejava. Nada de extraordinário para um homem que tanto se consumia a trabalhar como a tentar reordenar a desordem da sua vida, a suposta vida dupla de que acreditou ser protagonista até um determinado momento, o avanço da idade e, por conseguinte, a mumificação lenta trocaram-lhe as voltas, e por culpa dele, e da sua pressa exagerada em assumir a desproporção, entre o que era e o que fingia ser, como desculpa, uma forma cínica de garantir a falsa coerência, porque tudo o que era como ser humano fundava-se numa venerável catadupa de aparências. E de ilusões. Para os outros e para ele próprio. Pela incapacidade em aceitar, pela teimosia em recusar. O mais estranho é que acabou por render-se e de forma prematura. Como se houvesse decidido de repente atirar a toalha para o chão e dizer que este jogo não lhe interessava mais. Estou velho, mas ainda não estava, e estou farto, o que também não era verdade. É certo que pode parecer confuso e contraditório; porém, é disto mesmo que se fazem os paradoxos. Se servidos por um carácter normativo de uma extrema racionalidade. Que era o caso de Tiago. Uma racionalidade fria e dura como o aço. Feita de carbono e ferro, bem entendido. Não obstante a impudência e todo o cinismo que se captavam no exterior dele próprio, pelos seus actos. Na verdade, e dito de forma simples, quase numa palavra, tudo o que Penha fazia era simplesmente esconder-se, a todo o custo, sem vontade de aceitar o ónus da infelicidade que havia resultado das pequenas e efémeras felicidades que passara a vida a perseguir. Tão-somente para esquecer o supremo infortúnio, o crime original e a matriz punitiva que daí decorreu para o resto da sua vida. Se não tivesse traído Maria Clara, se não tivesse perdido a filha – que nunca o chegou a ser na realidade, pois não passou de um peso morto afogado no interior do ventre da mãe, submerso em líquido amniótico contaminado de sangue – se não tivesse insistido na vocação de experienciar uma estranha forma de masoquismo, mantendo uma relação condenada, se não amasse esse próprio relacionamento envenenado, é bom que se sublinhe, ao mesmo tempo que amava o veneno de relações proibidas, se não tivesse passado a vida a fugir, e a fingir, amarrado à monotonia da diversidade que tanto rejeitava como pela qual se deixava seduzir, se não tivesse confiado o seu destino aos maus costumes, para foder as mágoas que o fodiam em busca de orgasmos que nunca haviam sido orgasmos a sério mas apenas pequenos frémitos de prazer fugidio, se não tivesse escorregado na convicção de que a desilusão é eterna e insolúvel, talvez não se entregasse, quando chegou o momento, ao pretexto de estar velho e agastado, quando tudo o que fazia, sublinha-se mais uma vez, dizia o contrário. Quer dizer, não propriamente o contrário, mas uma inflexão; a debandada, desta vez total. A demissão de existir. O que também era mentira. Porque continuou a foder as mágoas que o 84 fodiam, porque continuou a confiar nos maus costumes, porque continuou a amar a relação moribunda que sempre havia mantido com Maria Clara. Entre a história do Mundo e as histórias dos homens, esta era a história ininterrupta e, afinal, tão tristemente linear de Tiago Penha. A história que devia ter registado também naquele caderninho de bolso com as páginas presas por argolas, de capa azul, a cor do céu e do espírito, o diário de bordo que havia combinado escrever a duas mãos com Maria Clara naquela viagem pela Europa, nesse ano fatídico de dois mil e um, despedida da vida em par para preparar a vida ímpar com o anúncio da chegada do primogénito, Ester, a estrela hebraica. Contudo, tanto Tiago quanto Maria estavam longe de supor o que se seguiria. Não é que não fosse difícil de adivinhar, mas o desejo da bem-aventurança tem sempre um encanto hipnótico de natureza alienante. E aquele não era o momento para crises de fé. O que até pode ser lamentável, porque ao invés do relato por vezes tão extenso e fastidioso que só aos dois parece interessar, pelo menos nalguns trechos desta longa sinfonia em duplicado, uma azul, outra cor-de-rosa, a cor das emoções e dos sentimentos, talvez tivéssemos agora mais chaves para abrir novas portas destas duas vidas, caído o pano sobre o palco, após uma dança clitórica tão diligentemente conduzida, com a morte imediata de um e a morte a prazo de outro. É que, ao contrário do que sucedeu com a ligação Lisboa-Paris-Frankfurt-Berlim, objecto de uma descrição relativamente equilibrada na justa proporção do interesse que podem suscitar os factos narrados, Praga rendeu uma verdadeira praga de palavras. Com um substantivo comum, repetido exaustivamente: desilusão. É certo que talvez a pena estivesse já a deslizar melhor, que isto de escrever arranca aos solavancos mas quando motor o pega não pára. Talvez o milagre da multiplicação dos fenómenos observados, e vividos, estivesse a motivar comoções e reflexões cada vez mais longas, com a fluidez perturbada pelo cansaço, gerando mais duplicações e passos em volta. Ainda assim, provavelmente extirpando o que para alguns poderá ser enfadonho, as entradas nos diários de bordo não deixam de ser esclarecedoras. Além do relato supracitado, Penha deixou ainda várias notas à margem sobre a capital checa. Quanto a Maria Clara, as impressões de Praga foram lançadas no seu caderno cor-de-rosa a uma velocidade estonteante, com muitas rasuras e partes quase ilegíveis, tudo de uma assentada, escritas à mesma hora que Tiago, no comboio a caminho de Viena. Possivelmente com o feto aos saltos no seu ventre, a Ester uterina em explosão celular. Uma Ester livre, pelo menos tanto quanto se sabe, de ter também no seu próprio ventre um outro feto. A bizarria pode não fazer qualquer sentido, mas não é o que dizem na República Socialista do Vietname, em Hanói, onde no sagrado ano de dois mil e cinco, quatro anos depois da viagem de Penha e Maria, um bebé de sete meses teve de ser submetido a uma operação de três horas para que lhe fosse removido da barriga um feto de quase meio quilo. Era o irmão gémeo do bebé vietnamita que, ao que parece, havia confundido tudo no útero da mãe. Definitivamente foi um período fervilhante em matéria de excentricidades. Nesse mesmo ano, afinal tão sagrado quanto profano, a cineasta indiana Deepa Mehta decidiu contar a história de Chuyia, uma menina que aos oitos anos não só já havia casado como também enviuvado, sem nunca ter conhecido o marido. «Praga, Setembro sete, quinze e trinta Acabámos de partir de Praga para Viena. Desilusão, desilusão, desilusão. Não de Praga, mas dos checos. Quando chegámos, logo na estação ferroviária, uma avalanche de pessoas com ar duvidoso cercou-nos e não nos largou mais com milhares de ofertas de locais para a nossa estada. Dizíamos que não, mas insistiam. Pareciam cola. A estação, essa, era simplesmente horrível. Suja, feia. Estas pessoas que nos cercaram enquadravam-se perfeitamente no cenário. Enfim, parecia que tinha entrado noutra 85 dimensão. Parecia-me mais um País subdesenvolvido, de Terceiro Mundo, algures dos confins do hemisfério sul. Sinceramente não estava à espera de uma recepção destas. No entanto, ainda havia mais. Quando saímos da estação de metro, no centro da cidade, e demos de cara finalmente com Praga propriamente dita, ficámos sem reacção, boquiabertos. Será que nos tínhamos enganado na cidade? Estávamos a falar de Praga, aquela que vemos nos folhetos turísticos? Devia ser engano de certeza. Aliás, não consigo encontrar uma outra palavra que se aplique: engano. Fiquei sem conseguir respirar. Mas é preciso explicar melhor: na verdade, até demos de caras com uma cidade monumental, lindíssima. Mas inundada de pessoas, de turistas. E quando digo inundada significa literalmente inundada de pessoas. A tal ponto que quase não conseguimos andar no meio da multidão, todos aos encontrões, uma confusão total. E acabou por ser uma grande desilusão à medida que fomos andando para o centro. A cidade está transformada num grande centro comercial para turistas. Lojas de marca, lojas de recuerdos de Praga, há de tudo à venda. E cuidado: todos os checos a tentar enganar ou a iludir os estrangeiros com as ofertas mais mirabolantes. Mesmo que nos afastemos do centro, não se consegue andar sem ser interceptado constantemente por um checo a oferecer locais para dormir, moeda local a taxas de câmbio mais baixas, etc. Praga é uma aventura. Começou logo no hotel. Enquanto estava a discutir o preço da diária com o Tiago, porque me pareceu muito cara, o recepcionista vira-se de repente para nós e, com sotaque brasileiro, pergunta-nos em português se somos de Portugal. Aparentemente, tudo mudou ali. Arranjou-nos logo um quarto com um preço mais baixo e prometeu-nos que no dia seguinte arranjaria um outro com vista para a praça, para a Old Town Square onde ficámos. Uau! Fantástico! Afinal, nem tudo é mau nesta cidade, pensei eu. Engano. Foi sol de pouca dura. Mas foi mais tarde, no final da noite. Primeiro, fomos jantar. Curiosos os restaurantes, todos em caves, subcaves, às vezes três ou quatro pisos abaixo do solo, mesmo lá em baixo, a uma profundidade medonha. Asfixiante. A explicação que nos deram é que a cidade está cheia de túneis subterrâneos e caves profundas que serviam de abrigo e esconderijos por altura da invasão dos comunistas russos. Após a comidinha, decidimos ir a um bar de jazz. É o mais antigo e o mais famoso de Praga, onde o Clinton tocou quando visitou a cidade. No regresso ao hotel, já sem o brasileiro, agora com uma recepcionista provavelmente checa, com um inglês medonho, ficámos a saber que havia um pequeno problema. É que o hotel tinha um acordo com uma agência de viagens, a qual já tinha feito uma reserva antes de chegarmos, pelo que estava completamente cheio. Ou seja, afinal não tínhamos quarto. Nem para as traseiras nem virado para a praça. O hotel estava esgotado. Mas que não nos preocupássemos. Já tinham arranjado uma solução. Havia um outro hotel com quartos disponíveis e tinham tomado a liberdade de nos reservarem um. Liberdade? Que hotel? Onde? Não adiantava muito. E lá fomos nós de mochilas às costas, já era de madrugada, a caminho do tal hotel, seguindo as instruções que a recepcionista nos deu. Pelo nosso pé, claro, que não havia ninguém para nos acompanhar. Nova surpresa. O hotel ficava perdido num beco no meio daquelas ruelas estreitas e sujas, longe de tudo, e acolhedor não era propriamente a expressão aplicável para o caracterizar. Conseguia ser bem pior que o primeiro. Ao qual fomos, aliás, pelo aspecto não deveria ser muito caro, precisamente para não gastarmos muito dinheiro na diária. Mas agora este nem sequer era um hotel. Era uma residencial, tipo pensão, mas mesmo daquelas rascas. Na manhã seguinte, precisámos de trocar mais dinheiro e dirigimo-nos a um banco na esperança de não cairmos no engodo das compras de coroas na rua. Mas mais um problema: exigiram-nos os passaportes. Não os temos connosco. Estão guardados no hotel. Azar. E cometemos o nosso primeiro erro. Fomos a uma loja de câmbios. Usámos novamente marcos alemães para comprar coroas e ficámos com a sensação de que as contas não 86 batiam certo. Mas com tantas moedas diferentes, sempre a fazer o câmbio mental para o escudo, hesitámos. Saímos da loja e cá fora, com mais calma, voltámos a fazer as contas. Pelas taxas de câmbio que tínhamos visto, tanto no banco como na loja, deveríamos ter recebido cerca de onze mil coroas. Mas a rapariga que estava lá no balcão deu-nos apenas nove mil e oitocentas coroas. Insisti com o Tiago, voltámos ao banco para conferir mais uma vez as taxas e confirmou-se: as nossas contas estavam certas. O que quer dizer que estávamos a ser roubados em mil e duzentas coroas. Mais uma voltinha, de novo agora até à loja de câmbios. E a rapariga explicou-nos que estava tudo escrito na placa afixada à porta. Em letras pequenas, cá em baixo. Ou seja, punham ao bolso mais ou menos três coroas por cada marco. Fiquei furiosa. Mas tive de engolir. Afinal, a burrice tinha sido nossa. E eles aproveitaram-se. Claro. Temos de estar muito atentos com esta gente. Pouco educada, aliás. Foi um pormenor que me saltou à vista. Os checos são, na sua maioria, extremamente mal-educados e muito brutos. Mesmo assim, o dia acabou por não correr muito mal. Andámos quilómetros. De manhã passámos pelo mercado de Praga, já sem surpreender: degradante, do pior que se possa imaginar. Bancas pouco convidativas a condizer com as pessoas que lá estavam a vender. Comprámos apenas dois CDs que nem sequer conseguimos ouvir porque no mercado não há como. Pareceu-me música tradicional checa. Resta saber se os CDs têm mesmo alguma coisa gravada. Mais uma desilusão. E é este o maior mercado da cidade! Uma nota: invadido por dezenas de sem-abrigo. À tarde, decidimos visitar o famoso castelo de Praga, construído no século dezoito, o mais antigo da cidade e um dos principais pontos de atracção turística. Tive de parar para pensar se ainda estava na capital checa. Que contraste! Aqui estava uma realidade completamente diferente. Monumentos lindíssimos. O castelo, a catedral de Týn (vi no guia do Lonely Planet, que o nome é mais complicado: Church of Our Lady before Týn, na versão inglesa), a ponte de Carlos ou Charles (tem de ser em inglês, que em checo não lá vamos), magnífica, sem dúvida a mais bela das muitas que cruzam o rio Vltava. Deste ponto de vista, é realmente fantástico. Quase ficava sem palavras a observar este ou aquele detalhe. Seja qual for o monumento, há sempre pormenores arquitectónicos espantosos. O problema, claro, são os turistas, mas quanto a isso não há nada a fazer. Sempre multidões, grandes grupos em correria pelas grandes atracções da cidade. A começar pelo célebre Orloj, o precioso relógio astronómico medieval, na torre gótica da Old Town Hall. É de fazer parar a respiração. Século quinze. Não deixa de ser curioso. A ideia com que fiquei é que Praga só parece ser uma excepção em relação ao resto do País precisamente pelo património histórico, pelos monumentos. É o seu sinal distintivo. Pelo menos pelo que pude perceber ao percorrer uma parte do território checo a partir de Berlim. Não parece haver mais nada. A República Checa é Praga e ponto final parágrafo. Olhei para as pessoas que entravam no comboio: com um ar cabisbaixo, humilde, subserviente, com roupas velhas e usadas, já fora de moda. E em Praga toda a gente altamente produzida. Especialmente as mulheres, bastante provocadoras, com os últimos gritos da moda. Onde é que já vi coisas parecidas? Em países que enriquecem depressa? À custa do turismo, abrindo ainda mais o fosso entre pobres e ricos, aqui neste caso, separados entre a capital e o resto do País? Em Praga, percebe-se perfeitamente que só lhes interessa o dinheiro e não olham a meios para conseguirem obtê-lo. O dia acabou com um episódio curioso: quando regressávamos de metro ao hotel, à saída, fomos barrados literalmente por um cordão humano. Ainda pensámos que devia ser mais um grupo tresloucado de homens a querer vender qualquer coisa. Tentámos evitá-los, mas eles insistiram e não nos deixaram passar. Depois, pelo ar carrancudo deles, desconfiei de que devia tratar-se de outra coisa qualquer. Um deles mostrou-nos um crachá, que não deu bem para perceber do quê, mas aparentemente eram revisores, inspectores, ou algo 87 do género ao serviço do metro (embora tudo aquilo tivesse realmente um ar muito duvidoso), a controlar os bilhetes. Segundo erro: não tínhamos bilhetes. Quer dizer, o passe de um dia que tínhamos comprado havia expirado há três horas. Resultado: oitocentas coroas de multa. O curioso é que, além da intransigência total, tipo tolerância zero, percebia-se que se tinham espalhado pela galeria do metro de forma estratégica, ou seja, apenas para barrar quem tinha ar de ser turista. Azar o nosso. Pelos vistos encaixámos no perfil. Mas era evidente o intuito. Ao olharmos à nossa volta, de facto só tinham mandado parar turistas, pessoal com mochilas, sacos de compras, etc. Ainda restam dúvidas? Tínhamos de sair de Praga o mais rapidamente possível. Metem-me nojo estes checos. Respirei de alívio há bocado quando me sentei neste comboio a caminho de Viena. Mas mesmo assim ainda tinha de haver mais uma: a história do passaporte que o Tiago encontrou. Um austríaco vítima de um carteirista alegadamente checo que vinha de Berlim. Sem palavras. Sinto-me irritada. E ao mesmo tempo começo a ficar aliviada por sentir finalmente que vou livrar-me destes checos repugnantes.» Palavras duras de Maria Clara, tão duras quanto a contundência que presidia ao sentimento que levava de Praga. A mulher tímida e insegura que Tiago Penha tinha conhecido começava a dar os primeiros sinais do seu crescendo de raiva permanente, ainda que prematuros, pois aparentemente nada havia que os justificassem, que o tempo para lhe dilatar as veias do opróbrio ainda estava para vir. Se Penha houvesse tido a oportunidade de ler esta entrada no diário de bordo da companheira decerto que se interrogaria. É certo que ele próprio também não havia ficado com boa impressão dos checos e revia-se em parte nalgumas observações de Maria Clara, mas a desproporção e os excessos do desagrado dela teriam outros motivos que talvez só pudessem encontrados por quem soubesse ler nas entrelinhas. É que muito do que viveram ao longo destes dias de viagem não foi dito nem nunca ficou escrito. E o mais estranho é que grande parte das omissões está relacionada precisamente com Praga, o que faz sugerir não só uma intenção deliberada nesse sentido como a possibilidade de ter ocorrido algum episódio particularmente marcante que tenha induzido tantas lacunas descritivas. Como a passagem pela antiga prisão de Karlovo náměstí, no centro da cidade, bem perto da Praça Venceslau, que Václav Havel bem conheceu, ou pelo angustiante centro prisional de Pancrác, que aparece em vários folhetos turísticos como um destino a não perder sob o slogan “visite Praga, uma cidade de sonho”. Ou pelo número vinte e dois da Rua do Ouro, onde viveu Kafka, no castelo de Praga – a que Maria se refere, acrescentando apenas o encanto que sentiu perante a catedral de Týn, mas omitindo misteriosamente a sedução medieval daquela rua de casas coloridas, que tanto faz lembrar o centro histórico de Rouen, na Normandia, onde queimaram Jeanne d'Arc, a bruxa e guerreira de Orléans – ou pelo hospital Bohnice, com vista para o rio Vltava, um centro psiquiátrico que foi palco de grandes atrocidades em nome de uma “cura” para os loucos. É de facto muito estranho, deve-se insistir, porque provavelmente foram estas as experiências mais significativas vividas pelos dois em Praga e que deveriam dar azo a muitos comentários nos cadernos de bolso com as páginas presas por argolas. Estranho porque nem Maria Clara nem Tiago Penha fazem qualquer alusão às mesmas. Se Penha não tivesse falado sobre o assunto mais tarde com Simão Saraiva, nunca se chegaria a saber que a passagem por Praga não se havia resumido praticamente à Old Town Square e à Praça Venceslau, no centro da cidade. Afinal, conheceram mais do que dizem ou escreveram. O que poderá indiciar, repete-se aqui pois nunca é demais, que experienciaram algo que não quiseram que se soubesse. Mesmo tratando-se de diários 88 que supostamente seriam apenas para leitura exclusiva dos respectivos autores. O que torna tudo bastante enigmático. Qual terá sido a verdadeira razão para tamanha ferocidade contra os checos que Maria Clara manifesta no seu diário? Não terão sido decerto as abordagens constantes nas ruas de Praga com convites para espaços de diversão nocturna com sexo ao vivo, para casas de swinging ou outras actividades inovadores de sexo a três, a quatro ou a cinco, em pé ou deitados, em caves ou em pontes ou em torres, que nisso os checos são bastante engenhosos e inventivos, desde que haja coroas, marcos ou dólares, e agora também euros, em quantidade suficiente. Aparentemente, nem Maria nem Tiago estavam para aí virados. Ou ter-se-á sentido por perto o doce veneno do escorpião, esse temível aracnídeo que nem no Zodíaco escapa de ter fama de má rês? O mesmo invertebrado artrópode que atacaria mais tarde o relacionamento deles, aliás, em boa verdade pouco tempo depois? É que o escorpião tem um móbil gravitacional que é tão-só o prazer e a posse na sua relação com o outro; o sexo e a paixão possessiva, o amor e o ódio. Sempre pronto a atacar. Quando descobriu as aventuras de Penha pelos baixios vaginais de outra mulher, estava Maria Clara ainda grávida de Ester, a estrela hebraica, antes desta se afogar no líquido amniótico da mãe, fingiu a audácia altruísta do indulto, a falsa roupagem do perdão, quando na verdade havia ditado a sentença, a tal espécie de sopro na nuca que aqui já foi referida, uma leve aragem cuja intensidade foi aumentando; a brisa amena inicial deu lugar à ventania e a ventania deu lugar à tempestade ciclónica, a um bafo insuportável de enxofre vulcânico. Na prática, um atalho de Maria Clara para o acesso rápido à diabolização do objecto do pecado com vista ao exorcismo do mesmo. À medida que foi cedendo à demência. Porque não era possível recuperar o irrecuperável. E assim sendo, mais vale ser louco e feliz, do que são e infeliz. Tanto mais que não é fácil discernir a linha que separa a sanidade da insanidade, ao contrário do que sucede com a felicidade, seja ela feita de pequenas felicidades, porventura as mais reais, ou a plena bem-aventurança que definitivamente não faz parte do mundo dos sãos, como é bom de ver. Terá sido culpa de Bohnice, morada de doidos, malucos e loucos? Oitenta e oito edifícios e pavilhões, dispostos radialmente a partir de um parque ajardinado em estilo inglês com uma igreja com características típicas da art nouveau? (Web Forum: Não compreendo quem fala mal de Praga. É uma cidade linda! A que se segue outro comentário, também no feminino: Europa do Leste é linda sim! E ainda outro, em brasileiro, de alguém que reside em Itália: Estive em Praga e fiquei fascinada com a História, o povo, a gastronomia exótica, o idioma complicado. Mas entendem inglês, além de que amam o italiano. Sucede uma observação em português, desta vez no masculino: Também conheço bem Praga e o hospital de Bohnice. Apesar de um certo ambiente de abandono – ou talvez por causa disso – uma visita àquele hospital é uma óptima forma de passar uma tarde solarenga. As portas estão abertas, e o visitante, depois de passar pelo edifício da recepção – não há necessidade de se identificar ou de interagir com alguém – estará perante a igreja e um amplo espaço verde onde berços de flores lhe sorriem. Depois, é explorar. Os edifícios, ou pelo menos a maioria deles, são palacetes da antiga nobreza, trinta e seis deles pavilhões para albergar doentes. E uma nova réplica, de alguém que igualmente parece conhecer bem Bohnice: Concordo totalmente. O silêncio, a calma e a serenidade dominam todo aquele espaço. É o local ideal para procurar algum isolamento, para ler, escrever ou criar, de uma forma geral. Todo o hospital respira uma majestosidade centenária, só estragada de vez em quando com alguns eventos bizarros como por exemplo o festival de rock de Bohnice, que se realiza todos os anos, geralmente em Maio, e que já é um 89 clássico de Praga. Mas depois, além de tudo isto, há imensos cafés e esplanadas. O único senão é que, a partir de uma determinada hora, julgo que às sete da tarde, deixa de ser permitida a venda de bebidas alcoólicas nestes estabelecimentos) Fica claro. Ou nem por isso, pois jamais se saberá o que se passou em Praga, se é que tudo isto não passa de mera especulação. Tiago Penha deixou ainda umas breves notas sobre a cidade, escritas pouco depois da primeira entrada. «Praha, a caminho de Wien, Setembro sete, notas à margem Os checos praticamente só bebem água gaseificada. Os restaurantes estão localizados em subcaves; parecem abrigos contra uma guerra nuclear. As carruagens de metro circulam numa profundidade ainda maior, por inspiração decerto de Jules Verne. E têm por hábito fazer travagens bruscas e imobilizarem-se por completo no meio da escuridão dos túneis. Sem qualquer explicação aparente. As escadas rolantes movem-se a uma velocidade muito superior à que costuma ser normal. Não sei se é por uma questão de libertar rapidamente os passageiros mais dados à claustrofobia ou pela tensão fervilhante que agita a cidade: lançar depressa os turistas na rua para que gastem muito dinheiro. Putas ao pontapé e à descarada por tudo o que é sítio, incluindo os locais “sagrados” do turismo checo. Ou talvez mesmo por isso. Tanto de dia como de noite. É um País curioso esta República Checa. Devia ter estrangulado a funcionária do Bureau de Change que nos roubou quase dez contos numa transacção de apenas setecentos marcos. O melhor é recostar-me na cadeira e apreciar a paisagem e a sensação agradável de estar prestes a abandonar a terra de Kafka. Com esta breve experiência, penso que agora percebo melhor por que razão um funcionário de uma companhia de seguros especializada em acidentes de trabalho escreveu livros como O Processo ou A Metamorfose, em alemão, claro.» Kundera fez o mesmo, mas em francês. Dizem os especialistas que a língua checa não se presta muito à criação literária, pelo que, apesar de dominar o idioma, Franz Kafka sempre escreveu em germânico e mesmo assim foi o cabo dos trabalhos para ser traduzido, ou não fosse ele dado a frases tão extensas que chegavam a ocupar duas e três páginas; uma única frase, em alemão, imagine-se. Em tempos do império AustroHúngaro, onde tanto se falava checo como eslovaco, polaco, ucraniano, esloveno, sérvio, croata, bósnio, italiano, romano e até árabe e yiddish, além do alemão e do húngaro, as línguas “oficiais” do Estado, não laico, mas católico. Que o Vaticano sempre deu o seu beneplácito, dir-se-ia régio, a desejos expansionistas conducentes a governações de modelo imperialista. Desde que se mantivessem, claro está, sob os bons ofícios do bom serviço a Nosso Senhor. Pela fé e a conversão dos infiéis. Rezar e conquistar, pregar e ocupar. “Deus eterno, Criador de todas as coisas, lembrai-Vos que as almas dos infiéis são obras de vossas mãos, e que são feitas à vossa imagem e semelhança”, orava São Francisco Xavier, o Apóstolo do Oriente e das preces pela indulgência, entre Cruzadas e outras benfeitorias cristãs, como mandavam os bons costumes dos missionários de São Paulo. À cautela, Kafka bem poderia ter tentado também o prussiano, que sempre cairia nas boas graças dos soviéticos, apesar de ainda tardar a invasão da Checoslováquia, muito depois do incidente de Sarajevo e da nova vaga da ocupação nazi. Tudo coisas que não viu, nem sentiu, a não ser a derrocada do ancien régime Austro-Húngaro, que lhe passou ao lado. O mesmo não puderam dizer as irmãs, e respectivas famílias, deportadas para o ghetto polaco de Łódź, onde foram mortas. A mais nova, Ottla Kafka, andou a saltitar entre outros campos de concentração: primeiro no de Theresienstadt, ainda no norte de território checo, depois em Auschwitz, o célebre campo de extermínio em massa de judeus e cidadãos afins. Também foi morta. Por estas e por outras, considerando o carácter intempestivo que dele se tem vindo a conhecer, Simão Saraiva costumava dizer que judeus e árabes é tudo a mesma praga. 90 — Não vês aquela merda da Palestina? É como o ovo e a galinha. O que é que nasceu primeiro? E o mais irónico é que os judeus não aprenderam a lição. Diz-me lá se eles não estão a fazer aos palestinianos o mesmo que lhes foi feito pelos nazis? Acossados pela Europa, os tipos entram por ali dentro com a cavalaria americana a reclamar as terras santas e põem os outros desgraçados em ghettos. Tal e qual como faziam os cabrões dos alemães — afirmou Saraiva uma vez, quando começaram a trabalhar em Madrid, estava ele e Penha numa casa de putas em Recoletos, que são agora chamadas de bar de copas para despedidas de solteros (um eufemismo bem ataviado, digno do sentido de humor que grassa por Zarzuela, embora estas atracções turísticas não devem ter atraído e traído El Rey, nascido Infante Juan, em Roma, não sendo ele solteiro nem muito dado, dizem as más línguas, a copas, sobretudo quando andam perdidas num baralho ainda com muitas cartas por dar). Estranho: Recoletos, tal como La Recoleta, em Buenos Aires, que os porteños classificam como o melhor da cidade, enquanto morada de senhoras distintas e discretas mães de crianças, disponíveis para amar e dar a conhecer o seu culito a troco de un poquito de cariño y mucha plata. (“Entregas el culo por plata?”, poderia ter perguntado, se soubesse hablar español. Ao que ela talvez respondesse: “Sí, estoy buscando un hombre para que me rompa el culito. La verdad es que busco alguien mayor que me encanta para que me desvirgue el culo.” Não, não tinha sido assim. Ele lembrava-se bem; ela disse outra coisa: “Me gusta así. Por atrás.”) — Acho que a ideia da ONU era a divisão do território em dois Estados: um árabe e um judeu. Mas ao que parece os árabes nunca viram a coisa com bons olhos — articulou Tiago a custo, subitamente com os pensamentos baralhados, mal sentiu a intromissão da ninfa de olhos de verdes da Tierra del Fuego. Por que razão voltara a pensar nela? Com efeito, se medisse bem o pulso da noite, talvez tudo se encaixasse. Recoletos e La Recoleta, Ciudad del Fin del Mundo e Simão Saraiva, e a filha de Ushuaia, que fugira para Recife, aliás Olinda, a ressuscitar nas memórias de Buenos Aires. Tudo com a ajuda preciosa de um destilado de cevada escocês, cujo nome desconhecia, fora Simão quem escolhera, e da atmosfera hormonal a atiçar os esteróides, esses louváveis controladores do tráfego químico, glândulas endócrinas que passam a vida num vaivém de mensagens, para que não se descoordene a actividade das diferentes células dos organismos multicelulares, enfim, coisas dos sistemas hormonais, mistérios científicos da tal química do amor que, se evocada sem alguns fulgores poéticos, torna-se bestialmente fastidiosa, além de que requer alguns cuidados, não vá dar-se o caso de se confundir sexo com amor, objectividade com subjectividade, que nestes delírios da intimidade e do carinho basta recordar o que sucede com os chimpanzés pigmeus, que afinal fazem sexo por prazer e não apenas com fins reprodutivos, ou mesmo com os golfinhos e pinguins, sendo certo que estes merecem cuidados ainda mais redobrados, já que a afeição entre eles é tão forte que acabam por não ser totalmente heterossexuais. Os golfinhos e os pinguins, entenda-se. Trata-se, aliás, de um sério revés para todos aqueles que apregoam a homofobia científica – que nada tem a ver com o socialismo científico, deixem lá Engels permanecer imaculado, mesmo sendo alemão, e lá voltam os germânicos – pois se é doença, não a homofobia mas a homossexualidade (pelo menos aqui), está na hora de a estender também a estas espécies animais, ou não se entregassem elas a práticas de sodomia e incesto, com variantes homossexuais e bissexuais, já para não referir os equívocos da identidade transgénica. É que entre gays, lésbicas e trans, o reino animal a tudo se presta, e bem ilustra como muitas mentes continuam atrofiadas, à mercê do preconceito transgressivo, nem mesmo Darwin resolveu o problema, tanto mais que 91 apesar de não ser professo do cristianismo era, porém, um moralista tão ortodoxo que até dava dó, também ele incapaz de compreender que a objectividade do sexo e a subjectividade do amor, ou da paixão, nunca é demais sublinhar, sempre foram conceitos de animais racionais e não daquelas espécies que ele quis catalogar, e tipificar. Mas os golfinhos e os pinguins aí continuam, que é o mesmo que dizer que se conservam no mesmo estado ou persistem numa qualidade sem mudança, no seu mundo de afectos, para alguns abjectos, com uma vida sexual solidária assente na tolerância e na amizade em estado puro, sem pruridos, manifeste-se ela de forma homossexual, bissexual, transexual ou meramente heterossexual, mesmo com actividades de sodomia e incesto à mistura, é tudo uma questão de amizade, neste caso particularmente aquática, que aliás condiciona os prazeres do sexo solitário, a submersão em água e a própria constituição anatómica destes seres, para sorte dos hermafroditas, como os caracóis, que nisto não precisam de dar explicações a quem quer que seja. — A ONU? O que é que é essa merda? Quem são os gajos que financiam aquilo? Não são os americanos? — indagou Simão Saraiva de forma retórica, num tom que misturava com requinte a vociferação com a bonacheirice. Penha sentiu-se perdido, sem conseguir retomar o fio da meada. — Sentes-te bem? Estás apático. Bem, pelo menos não está pálido — prosseguiu o amigo, com um sorriso rasgado no limite de dar a impressão de uma gargalhada. — Deve ser do uísque. Estava com a cabeça a viajar — desculpou-se Penha, atabalhoado. — Desde que deixes aqui o corpo ou pelo menos a carteira com o guito, podes levar a cabeça para onde quiseres — observou Simão, desta vez a rir-se mas sem esconder a inclinação para a zombaria, ao mesmo tempo que esvaziava o copo com uísque. — Viajar? De viagens está o mundo cheio. Não é o que tu dizes? Come-se que nem um alarve, bebe-se que nem um cacho e depois ficamos com a cabeça vazia. Sabes o que mais? Deixa mas é lá estar a cabecita sossegada que aqui tens muitos buracos para a enfiar. Só não fiques é com o cu espetado no ar — e voltou a rir-se, cada vez de modo mais estridente, com a gargalhada a prolongar-se durante uma eternidade. A música da casa de copas, canções ciganas de puro sangue da Andaluzia tocadas no coração de Castela, abafava, contudo, uma parte considerável dos ruídos produzidos por Saraiva. De vez em quando alguns clientes deitavam-lhe um olhar pouco amistoso, tal como um segurança que se encontrava em pé, tipo estátua, encostado ao extremo do balcão do bar, junto à porta de saída. Um longo balcão do lado esquerdo, na vertical, de frente para os canapés estofados dispostos pela sala rectangular até lá ao fundo, que não se conseguia divisar bem a partir dali, nos quais Tiago e Simão se sentaram quase à entrada. Deveriam ser uns “privados”, claro está. Sala a meia-luz em tons de vermelho com uma mescla mais ou menos organizada de sofás individuais e sofás de três e quatro lugares. Algumas das mulheres que cirandavam pela casa, sem clientes, também deitavam olhares para Saraiva, tal como para Penha, provavelmente indecisas. Contemplações de avaliação, umas mais veladas que outras, algumas definitivamente sobranceiras, se bem que parecia a Tiago que, no seu caso, as vistas que nele recaíam tinham um toque mais ligeiro, o que queria dizer que, naquele espaço, ele poderia ainda fazer parte do rol de alvos a atingir. Em troca de uma bebida (sempre a custar os olhos da cara, embora ele continuasse seguro de que os seus valiam mais) e conversa de chacha. Ainda por cima em língua oficial espanhola, é bom sublinhar. Valeria a pena? A questão colocava-se de ambos os lados. Com efeito, Penha e Simão pareciam já ter a sua conta, especialmente Simão, e a continuarem assim decerto que acabariam no olho da rua, que ali, mesmo para uma casa de maus costumes, imperavam os bons costumes, 92 e que se lixe a contradição pois negócio é negócio e não se pode espantar a clientela, a que está disposta a gastar dinheiro e a dar de comer a muita gente. — Mas olha lá: tenho ou não tenho razão? — voltou Saraiva à carga. — O quê? — A ONU, foda-se! Uma morena metida numas leggings de licra preta transparentes, sem mais nada por baixo, e um decote vertiginoso num trapito a fingir que era um top de alças, bastante alta e bem torneada – e tonificada, diga-se – depositou mais dois copos com uísque na mesinha com um tampo de vidro que se interpunha entre eles e sorriu antes de se afastar. — Era esse o pressuposto. Sei lá, uma resolução qualquer — acabou Tiago por dizer. — Mas deu merda. Os árabes não foram na conversa. — Pudera, com os judeus a querer logo a independência de Israel — Simão deu um longo trago do poderoso destilado de cevada escocês. — E depois foi o que se viu. Toca a fugir. Uns para um lado, os outros para o outro. E os ingleses puseram o rabinho de fora. Com os americanos a mandar a cavalaria, pois dava um jeito do caraças ter um aliado na região. Um aliado? Uns paus-mandados! — É complicado. E já é ancestral. O ódio passou de geração em geração. A conversa parecia ter readquirido fluidez, apesar do turbilhão de pensamentos que agitava os ânimos e desânimos de Penha. — Só te digo uma coisa, Tiago: é tudo uma grande treta. Se aquilo era dos árabes, azar dos judeus. Os gajos que fossem para a América. Não se têm lá dado bem? — e emborcou o resto do uísque no copo, apenas com o segundo gole, acenando em direcção a uma das chicas com um sinal a pedir mais uma rodada, que já lhe havia perdido a conta. — O que fode tudo é a merda que os árabes também andam a fazer por todo o lado. É como te digo: é tudo uma grande treta — repetiu Simão, aparentemente em jeito de conclusão, recostando-se por fim no sofá, dando ares de pretender ficar calado durante alguns momentos. Penha examinou com atenção o companheiro, que estava visivelmente embriagado. Tinha os olhos turvos, se adormecesse de repente não surpreenderia Tiago, e suava abundantemente. Pela testa e pelo peito. Mesmo com a camisa desabotoada quase até meio, notava-se uma mancha feia de se ver que alastrava pelo tecido fino de algodão. Todo empapado até à zona da barriga. (Web Forum: O silêncio é uma seca, mas falar demais provoca inundações; resta saber se é melhor morrer desidratado ou afogado. Réplica no feminino: Desidrato-me regularmente, mas fico seca pra afogar certas bestialidades que não respeitam nem as carnes descascadas ao sol) Tiago Penha e Simão Saraiva haviam desembarcado em Barajas na madrugada anterior. Durante o dia, passaram por uma longa e penosa reunião com os administradores de uma cadeia de supermercados, num hotel algures perto da Plaza de España. Tinham ali trabalho para algumas semanas. Sistemas hackeados, utilização de cartões de crédito clonados e o histórico contabilístico à vida. Nem os sistemas de backups haviam escapado, embora todo o contacto deixe uma marca e há sempre resíduos por onde agarrar. (Web Forum: Viver é deixar marcas... Com outra réplica no feminino: E se não marca é porque não chegou realmente a haver contacto. E ainda outra: Marcado feito gado no pasto...) Mas que raio de segurança foram os gajos arranjar, matutava Tiago sempre que lhe vinha à cabeça o imbróglio que tinham de resolver. Uma verdadeira dor de cabeça é o que era, com a agravante de meter a polícia pelo meio, o que era uma chatice. Ter de 93 trabalhar com bófias que se armam em especialistas de informática era sempre uma experiência de merda. A dupla tinha vivido uma situação semelhante em São Petersburgo, terras de Dostoyevsky e do seu amigo Rodion Raskolnikov, com os sacanas dos russos a querer meter o nariz em tudo. Os sacanas da FSB (em rigor da Federal Security Service, para que não se confunda com um front-side bus ou com uma Federation of Small Businesses ou um Florence Savings Bank) e também da Interpol, que andavam igualmente interessados no assunto. Resultado: um problema que podia ter sido resolvido com a restauração do sistema, mas desta feita trancado a sete chaves, transformou-se num quebra-cabeças com tantas reservas e “segredos de Estado” que Penha e Saraiva acabaram por ficar retidos na cidade durante quase dois meses. Benditos rublos russos, benditas águas-furtadas naquela rua estreita e sinuosa perto da Gorokhovaya. Com aquela loira hirsuta com cara de bolacha mas exímia nas artes da felação. Que calaram o torpor de tanto tempo mal perdido. De regresso ao hotel, e após o jantar, os dois decidiram sair para a noite madrilena. Ainda equacionaram a possibilidade de contratar os serviços de duas escorts escolhidas à la carte, mas acabaram por partir à aventura, que companhia não lhes seria difícil de desencantar. Bastava ter euros à altura. Pesetas já não serviam. — Não vês agora o que os gajos estão a fazer na Dinamarca? Tiago sobressaltou-se; Simão recomeçara a falar subitamente, após aquele breve interregno durante o qual parecia ter quase adormecido. — Os judeus? — Não, caralho! Os árabes. Ainda bem que já demos de frosques de Copenhaga — comentou Saraiva, voltando a acenar para pedir mais álcool. — Não peças para mim — advertiu Penha, que tinha dois copos à sua frente ainda para beber, um deles a meio. — Mas diz lá. Afinal, o que é que se passa na Dinamarca? — Cento e cinquenta assaltos a residências nos últimos quatro meses. São putos de um ghetto islâmico em Odense. Roubam, vandalizam e é tudo escolhido a dedo. Parece que escolhem as casas pelos nomes das caixas de correio. Se não és árabe, estás fodido. Levas com um grupo de alógenos muçulmanos. Diz o Jihad Watch, é um blog americano contra a islamofobia, com bastante influência, aliás, que, no Islão, os muçulmanos têm o direito a roubar os não muçulmanos. Mas a história já vem de trás, desde que o Maomé concedeu o direito ao saque para atrair combatentes pela causa islâmica. Os dinamarqueses andam-lhes com um pó. Aquilo ainda vai dar merda. — Odense é aquela cidade lá para o Norte? — quis confirmar Tiago. — Sim, a terceira maior da Dinamarca — e fez um breve compasso de espera para mudar de tom. — Terra do Lego e dos vikings! Terra desses nobres e intrépidos guerreiros do Atlântico Norte! — exclamou repentinamente com um brado despropositado, parecia um trovão, com a agravante de acentuar o descomedimento, que palavra mais feia, com uma batida ruidosa do punho contra o tampo da mesa, dando por terminada a encenação com um sorriso patético. O olhar do segurança voltou a cair em Simão, desta vez grave, quase como a querer dizer que não tardaria a tomar medidas. Definitivamente estava bêbedo, não o segurança mas Saraiva; e de certa forma irreconhecível. Aquele não era o Simão com quem Penha privara ao longo de tantos anos. É verdade que desde Ushuaia, naquele arquipélago perdido nos confins do Mundo, no extremo sul da Argentina, as coisas não voltaram a ser como dantes, algo que aliás Tiago nunca havia percebido bem, tanta era a cumplicidade que os unia, tantos os momentos, bons e maus, que tinham partilhado. Voltaram a ver-se apenas dois meses depois – embora não fosse a primeira vez que Saraiva desaparecia sem dar notícias ou explicar tantas demoras e eclipses abruptos – num escritório acanhado e sem graça, mas 94 com uma renda exorbitante, e mesmo assim em duplicado com os custos do condomínio, no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, estivera Penha sozinho em São Paulo a braços com trabalho até à exaustão, tirando a breve passagem por Buenos Aires, de Londres haviam ligado, queriam saber onde parava Saraiva, e Tiago sem nada saber, com certeza que a brincar aos cowboys na Tierra del Fuego, a meter férias sem aviso prévio, mas lá voltou por boas instâncias do headoffice em terras de Sua Majestade, senão era despedimento certo, tanto mais que Penha não conseguia dar conta do recado. Ainda assim, Simão hospedou-se em Copacabana, de frente para o calçadão, perto de uma esplanada sempre em agitação numa roda-viva de negociatas entre gringos e mulheres de extirpe duvidosa vindas dos morros, de todos os morros no Brasil, que em terras de Vera Cruz é coisa que não falta, excepto o pão na mesa e uma classe média, e assim se fez o turismo carioca da cidade maravilhosa, morada das casas do homem branco, falta os índios tupi recordar, o equívoco do elogio da ocupação colonial, de bunda cheia em biquíni reduzido sob o olhar circunspecto do Cristo Redentor, enquanto Tiago, ao invés de por ali também ficar, podendo degustar o bondinho do Pão de Açúcar e as vistas calientes dos areais, preferiu permanecer no seu flat em Bela Vista, cercado do betão paulista, também ele num carrossel sem governo em ponte aérea diária entre Congonhas e Santos Dumont, a bordo dos prestáveis e irrequietos Boeings da Gol. Aos poucos, lá acabaram por retomar algumas afinidades no trato, apesar do eixo de rotação ter continuado longe do costumeiro centro gravitacional que havia animado o companheirismo entre os dois. De um modo geral, dir-se-ia que decidiram reinventar a convivência, por ser necessário, fingindo reviver os velhos tempos, por que assim convinha, mas no fundo, no íntimo desassossegado de cada um deles, havia intempéries por apaziguar, com Goa a ditar o compasso da cumplicidade e o caso da arma na Patagónia, na verdade nem sabiam se era um caso, a ditar o compasso da distância. Estranho desenlace para um incidente cujo alcance nunca conseguiram compreender. Mas era o compromisso possível. Traído apenas pelo novo expediente de Simão, que começou a abusar do álcool. E disso Penha apercebeu-se logo na capital carioca. A princípio, ainda acreditou que podia ser só um hábito adquirido nas terras geladas da Ciudad del Fin del Mundo, mas quando regressaram a São Paulo, quer dizer Simão, que Tiago andava já num vaivém entre as duas cidades, tornou-se evidente que existia um novo problema. Que se adensou. Voltaram a Lisboa, finalmente, após a longa temporada sul-americana, embarcaram juntos mais uma vez para Paris, Rue de Rome, na área de Saint Lazare, a poucos quarteirões a nordeste dos Champs-Élysées, um paraíso para quem se interessa por instrumentos musicais clássicos, na prática, um museu à venda, porta sim porta sim, sem turistas, rua aparentemente desconhecida, irresistível para um demorado e tranquilo window shopping spree, mas sem o shopping, como é evidente, retornaram à capital portuguesa e fizeram-se à estrada de novo, agora com destino a Madrid. Em nenhum momento, Penha conseguiu rever o companheiro totalmente sóbrio. Mas calou-se e nada disse. À espera de ver no que daria, embora tivesse a certeza de que não seria boa coisa, pois a emborcar álcool desalmadamente de manhã à noite é sinal de desarranjo, e sério, porquanto ninguém bebe assim a não ser que já não acredite em consertos e remendos, quando a vida não está a ser fácil e o melhor é devolver os pergaminhos da santidade à falta de sanidade, quando é grande e sedutoramente irrecusável a vontade de conduzir em contramão. Mesmo sob o risco de, mais tarde ou mais cedo, sentir a força do impacto e o airbag a explodir na cara, que a colisão de um carro desgovernado é coisa dura e violenta, Tiago sabia-o bem. — Lo siento, pero tu amigo no puede quedarse aqui. 95 Penha virou-se na direcção da voz e deu de caras com um homem de bigode, com ar sério, de colete vermelho e laço preto, ligeiramente inclinado como se estivesse a segredar. O que de facto estava a fazer, embora não passasse de uma atitude diplomática para que o outro o escutasse e decidisse por bem abandonar o local sem grandes alaridos. — O quê?! Não posso ficar aqui?! — protestou Simão, incrédulo, zangado e bêbedo. — Lo siento mucho — insistiu o empregado de balcão, sem olhar para Saraiva. — Usted puede quedar aqui, pero tu amigo esta muy borracho. Simão sentiu-se embaraçado, sem saber o que fazer. Ou dizer. O homem tinha razão. E, com efeito, também ele estava a começar a fartar-se das fanfarronices de Simão. Pelo menos naquela noite. Apetecia-lhe recostar-se no sofá a beber tranquilamente o seu uísque, que já ia em dois copos por deitar abaixo. Beber, fumar e olhar, através dos óculos embaciados. Aquela penumbra turva, aquele engenhoso composto químico hormonal prestes a explodir ou a implodir, ou nem uma coisa nem outra, depende de como se olha e vê. — C’um caralho! Nem numa casa de putas um gajo pode beber à vontade — resmungou Saraiva. — Uma casa de putedo, ouviste? — acrescentou, dirigindo-se ao empregado com um dedo levantado no ar. O segurança aproximou-se da mesa, Tiago lembrou-se de Goa e das armas, essa misteriosa fixação do amigo e sentiu-se inquieto, preocupado. — Que se foda! Esta merda também não vale um caralho. Só dá é sono — rosnou Simão. — Bar de copas — rectificou o empregado, desnecessariamente, embora mais parecesse um pretexto para encarar de frente, por fim, a raiva e o entorpecimento de Saraiva. A discussão continuou entre lo siento mucho, casa de putas, muy borracho, bar de copas, vámonos, para a puta que te pariu, ahora, e outras coisas do género, incluindo cabras e muchas madres, todas putas, como é bom de ver, com Saraiva a evocar o conhecimento dos sete mares e precisar de ir a Madrid para assim ser tratado, equívoco medieval tanto árabe como europeu, que afinal eram nove e não sete, os mares – mas ainda assim, deu nome à cidade mais remota do Mundo, dizem, Edinburgh of the Seven Seas, no extremo noroeste da ilha Tristão da Cunha, no Atlântico Sul, anglicana e católica, sob a dependência da Coroa britânica, apesar de ter sido descoberta por um ilustre explorador quatrocentista de nacionalidade portuguesa – pelo meio ainda houve uns caralhos e uns carajos, embora não pareça que alguém quisesse evocar a banda de hard rock argentina (que subiu ao palco pela primeira vez em dois mil e um, exacto, nesse fatídico ano de dois mil e um, no Whisky a GoGo, em Buenos Aires, para apresentar ‘La guerra y la paz’, um Tolstoy metálico em versão castelhana, se parece confuso que se consultem os anais da História mas sem Nin, que aqui nada há de erótico, e lá voltaram as estepes russas em que Simão pensava de vez em quando sem saber porquê). Pela sala foi notório o burburinho geral, clientes e funcionárias, empregados e seguranças, a trocar olhares com os mais variados desígnios semânticos, mas Saraiva lá acabou por aceder, por sorte não estava armado, mas ali era melhor não desafiar a sorte, que nunca se sabe, a diatribe não cessou, mas contrariamente ao que se poderia esperar foram todos muito pacientes, coisa louvável em contexto de maus costumes e muita impaciência, que o tempo corre e é preciso fazer negócio, e levantouse e puxou as calças para cima e encaminhou-se para a saída, sob o peso de um corpo trôpego e a escolta do staff local, após mais uma troca azeda de palavras com Tiago, já que definitivamente as coisas não eram como dantes. — Não vens? — perguntou Simão a Penha ao decidir por fim aceitar o convite para abandonar o local, sob o argumento de estar muy borracho, expressão que lhe fazia 96 lembrar borracha e esse sinónimo execrável de crimes contra a Humanidade, ironicamente em terras ibéricas, precisamente donde partiram as primeiras expedições para a extracção de látex que a tantas barbaridades conduziu em terras de África e América do Sul, vencidos estes sete mares, que não eram sete mas nove, do mundo medieval. — Vou ficar mais um bocado — devolveu Tiago, de forma seca, apressando-se, porém, a acrescentar uma justificação. — Só até acabar estas bebidas — e apontou para os dois copos com uísque. — Não te preocupes com a conta. Pago eu. — Tu é que sabes, hombre — declarou Saraiva, aparentemente desinteressado, com um encolher de ombros resignado, mas com as pupilas dilatadas, por causa da meia-luz da sala e do sentimento de irritação, que tem sempre um brilho especial, para quem o consegue decifrar, como era o caso de Penha. — Mas é como te digo: é tudo a mesma merda. — O quê? — Judeus e árabes. Tenho ou não tenho razão? — e começou a dirigir-se para a porta de saída. — Viva Recoletos! A sala voltou a sossegar-se. Tiago acendeu mais um cigarro e deu um novo gole de uísque, recostando-se por fim nas costas almofadadas do sofá. Suspirou fundo. E pôs-se a pensar por que razão não quisera ir com Simão. Noutros tempos, a camaradagem falaria mais alto. Sem qualquer vacilação. O som das canções ciganas da Andaluzia continuava a ecoar, mas agora parecia que de forma menos intensa, praticamente em surdina. — No te preocupes. Mañana no recuerda nada. Voltara a ser um sussurro em castelhano, mas no feminino. Penha soergueu os olhos na direcção da voz, mais uma vez, e viu. Claire Danes. Em versão morena. Com uma expressão no rosto ferozmente encantadora. Tão cândida quanto provocadora. De pé, à sua frente, com um sorriso, à espera do convite para se sentar no lugar que Simão Saraiva havia deixado desocupado. 97 XII. Da besta nasce o abutre, que não deixa de ser besta, mas passa a viver sob a forma de uma ave de rapina, de grande envergadura, obtendo com isso uma identidade. Ora, se é na identidade que reside a circunstância de um ser ser aquele que diz ser ou aquele que outrem presume que ele seja, o abutre humaniza-se e, nesse sentido, perde a sua dimensão de besta. Contudo, se por definição a besta corresponde a uma forma de existência sob a sua característica mais desfavorável, de constrangimento, de apetites depravados, de violência e estupidez, apenas para enumerar algumas das suas dimensões, o abutre continua a ser, paradoxalmente, uma nova forma de existência corpórea semelhante à da besta. A distinção reduz-se apenas à identidade que humaniza o primeiro. É uma hipótese, mas se assim for, a identidade é a forma bestial de humanizar a estupidez. O que não deixa de ser irónico, porque o confronto de identidades passará a assentar assim no engenhoso processo natural da humanização da bestialidade. Ou seja, da brutalidade. O que provavelmente explicará, se um ser é aquele que diz ser ou que outrem presume que ele seja, a desumanidade da luta pela identidade. Na prática, o elogio supremo da crueldade. Neste quadro, talvez seja de concluir que o milagre do nascimento nada tem de próspero, porque traduz tão-somente essas luta violenta entre as forças que querem afirmar a identidade a todo o custo e as forças da humanização da bestialidade, que se escondem no paradigma da crueldade. Foi com estes pensamentos intricados e complexos sobre a natureza do mal, como condição inalienável da existência humana, que Tiago Penha apanhou o voo de regresso à Europa no aeroporto de Dabolim, ou Vasco-da-Gama, pouco importa, na Índia, deixando para trás os odores enjoativos do pau de sândalo, o sabor a rosas que impregna tudo o que se come e o suor e a massa gordurosa dos repelentes de insectos, cruciais para afastar o risco de contrair uma qualquer doença tropical, como a malária ou o paludismo, duas formas de designar a mesma enfermidade crónica transmitida pela picada de algumas espécies de mosquitos, uma chatice porque havia sido desaconselhado a tomar resoquina, que dá cabo do estômago e era desnecessário, desde que não saísse do Estado de Goa, mentira porque os jornais locais davam conta de vários surtos epidémicos da doença em território goês. A “little private party” prometida pelo indiano baixote na praia privativa do Galgibaga Beach não correra como o previsto. Das “beautiful women in the world” nem uma apareceu e Simão, bem bebido e, por conseguinte, bastante irritado, quis as mil rupias de volta, mas o muçulmano insistia. — You pay and love — não parava de repetir, a tentar levar a conversa para um monólogo surdo e imperceptível, quando era evidente que não havia forma de escapar. É certo que o indiano poderia ter sido enganado e estar com problemas em resolver o assunto, já que de proxenetismo não parecia perceber muito, mas a recusa em devolver 98 o dinheiro a Saraiva era completamente incompreensível, tanto mais que altruísmo e negócios do sexo não parecem ser coisas que combinem bem. (Web Forum: Discordo, ambos têm a mesma meta. A que se segue outro comentário igualmente no feminino: Também acho! E por fim uma observação que, numa primeira leitura, parece não vir a propósito, mas até vem, bem vistas as coisas: A ausência de base política explica o tamanho fracasso literário e artístico, complementados por programas escolares em níveis avançados que não evoluem. Na melhor das hipóteses, restam apenas circuitos marginais e/ou alternativos, ou a necessidade de enfrentar a ideia de que o nosso tempo já passou, o meu no caso) Escusado será dizer que a negociata entre os dois resvalou para o campo das ameaças verbais, numa troca de ofensas em jeito de batalha linguística, entre o árabe e o inglês, que depois passaram às físicas, com a ousadia do goês em puxar de uma faca, mal sabia ele que o seu oponente estava munido de uma arma de fogo, coisa estranha para estrangeiro e de passagem – qual era Tiago Penha não sabia, pois nada percebia sobre o assunto, só soubera que na Argentina se tratava de um revólver de calibre 357 Magnum porque Saraiva lho dissera, tão grande parecia ser o orgulho deste pela posse, mesmo que temporária, daquele modelo – e depois a vias de facto. Lá por ser lingrinhas, evidenciar que mal percebia a conversa, não parar de abanar a cabeça em jeito de não, mas que é um sim, o tal “nim” indiano, e dar ares de que mil rupias fariam por ele tão grande diferença, enquanto para Simão não passavam de trocos, não queria dizer que pudesse escapar incólume. Não é que não tivesse um semblante que até podia suscitar algum impulso de comiseração, o que decerto lhe seria mais favorável, mas querer fazer passar Saraiva por idiota e, ainda por cima, sob a ameaça de uma arma branca, mais não era do que estar a pedi-las. Com o azar de não haver testemunhas, a não ser a presença de Penha, que dos seguranças do Galgibaga Beach nem um sinal. Àquela hora estariam a dormitar num canto qualquer, tantos deveriam ser os canabinóides que lhes haviam subido à cabeça, a fazer jus à ladainha que se ouvia em qualquer rua de Goa, hash, marijuana, change money. De resto, com mais de cem quilómetros de costa marítima, só naquele Estado indiano, por que raio haveria alguém de querer ir para aquela pequena praia solitária à noite? Sem luz, que tanto jeito dá para excitar o frenesim festeiro, sem vacas – sagradas, entenda-se – sem turistas, que esses andavam por outros espaços mais agitados, provavelmente ao som do trance psicadélico com epicentro mais a Norte, sem bares ou restaurantes clandestinos, os tais barracões de madeira que alguns profissionais de restauração mais expeditos erguiam de manhã para serem destruídos ao final do dia pela polícia, ao pontapé e à paulada com a ajuda de alguns bulldozers, claro está (a incidência do incidente situava-se na média de quatro vezes por cada mês, como havia testemunhado Tiago durante a estada na Índia), e afinal sem putas, nem muçulmanas, nem hindus, nem católicas, que atractivo poderia haver? O que Penha não contava era com o desfecho. No desequilíbrio entre uma faca e uma pistola, entre o prometido e o não cumprido, entre o enriquecimento ilegítimo e a possibilidade iminente da punição desse crime, o natural seria que o indiano desistisse; o natural seria que devolvesse o dinheiro e desatasse a fugir dali a sete pés, embora esteja ainda por demonstrar, nunca é demais recordar, como pode um homo sapiens correr de tal forma sendo bípede. — Devil in the body and your soul lost forever. Foram as últimas palavras do proxeneta, repetindo a frase que já havia pronunciado a propósito das suas incompatibilidades com hindus, antes de ser baleado três vezes. Definitivamente como alcoviteiro não parecia ser grande coisa. A trinta e seis mil pés de altitude, quase no limite superior da troposfera, e em velocidade cruzeiro, a caminho de Londres, com a aeronave a ser sacudida por uma 99 enorme turbulência devido a uma tempestade de areia no deserto saudita, Tiago lembrou-se das noites na costa ocidental indiana em que o mar parecia ser sopa. Água morna e praticamente sem ondulação. Noites serenas de frente para um mar adormecido, ou talvez morto. Penha permanecia sentado e com o cinto de segurança apertado, por indicação das hospedeiras – naquela época ainda não se falava em assistentes de bordo, nem sequer havia comissários a não ser os pilotos, homens que a pouco e pouco foram ocupando uma profissão até então exclusivamente feminina, substituindo os odores subtis do estrogénio pelos da testosterona – e da explosão de luzes na sinalética que encima os passageiros, sempre confusa e exagerada, quem sabe se não é para criar a ilusão de uma viagem espacial, enquanto Simão insistia em transgredir, ao andar no corredor para trás e para a frente na parte traseira, a zona reservada para fumadores, já lá vão os tempos em que esse luxo era permitido. — C’um caralho! É sempre a mesma merda. Que grandes filhos da puta estes árabes! Até nos céus nos fazem a vida negra — resmungava ele, de cigarro na boca e em calções, com uma voz interior aos berros, a massacrar-lhe os nervos: Ya harmuk Allah! Ya harmuk Allah! Ya harmuk Allah! Uma prece inusitada, porquanto fora tudo muito simples e prático. Com efeito, não havia tempo, nem lucidez, nem ferramentas para activar um plano Hollywoodesco com laivos mais macabros como o esquartejamento do cadáver. Saraiva limitou-se a arrastar o corpo até à beira-mar, enfiou-se a custo nos baixios do Índico e largou o indiano. A princípio, o sacana não parecia querer seguir viagem. Poucas ondas, pouco vento. Mas lá acabou por entrar na noite. E desapareceu. Supostamente devia ter aparecido algures, talvez mais a sul, alguns dias depois. Mas o cadáver do muçulmano, atingido à queima-roupa com dois tiros no peito e outro no pescoço, nunca deu à costa, ou pelo menos nunca disso houve notícia. Soprava a monção de Nordeste, que talvez tenha ajudado, como chegou a ajudar em tempos idos as naus e caravelas lusitanas a caminho do cabo da Boa Esperança nas arriscadas viagens de regresso a Lisboa. Longas travessias que demoravam uma eternidade, animadas pela vontade do regresso a casa, para a maioria supõe-se, que talvez para alguns não houvesse retorno, nem vontade, precisamente o mesmo dilema que Tiago Penha teve de enfrentar, quando a mãe adoeceu e ele começou a sentir-se velho, ou a envelhecer, o que vai dar no mesmo, a rastejar pela vida, cheio de ideias e poucas certezas, dominado pela angústia. Quando decidiu voltar a casa, em definitivo, pondo um ponto final nas extravagâncias de uma existência nómada, sempre em movimento pelos sete mares, que são nove. Cansado de observar tantas tragédias, pequenas e grandes, ditadas pelos desígnios da besta e do abutre. Porque se esta é a história da crueldade e do mal, a história de forças em conflito – a desumanidade da luta pela identidade – tanto cogitou ele sobre o assunto durante o voo entre Goa e Londres, ponto de escala para o regresso a Portugal com uma breve passagem pelo headoffice da companhia, que às vezes era necessário prestar contas, deixando para trás o cadáver de um muçulmano perdido no Índico, talvez seja de concluir que a história do abutre é afinal a história que perpassa por todas as páginas dessa mescla de livros sacralizados que o mundo cristão chama de Bíblia, se bem que no Brasil o substantivo pode denominar um indivíduo protestante, o que torna tudo ainda mais obscuro, até porque também evoca a ideia de colecção, colecção de livros ou mesmo de cromos, para fazer da Bíblia uma caderneta, ainda falta alguém aparecer com a ideia, a «Última Ceia» à da Vinci partida em quadradinhos, troco-te o do Santo Graal pelo do Judas, o Iscariotes, que desses já tens muitos repetidos. Se lhe juntarmos o xamanismo cósmico, o misticismo cabalístico ou o desafio retórico da cientologia, que defende ser possível despertar no homem uma consciência imortal e poderes 100 semelhantes aos dos deuses da mitologia grega, só para citar três exemplos do vasto e complexo sistema de crenças, rituais e simbologias exotéricas que povoam o ocidente cristianizado, decerto que acabaremos por subscrever o que Maquiavel tão lucidamente escreveu no século dezasseis, com o mundo mergulhado no obscurantismo medieval, o tal mundo dos sete mares, que são nove, nunca é demais insistir: «Mais vale ser temido do que amado; é mais prudente ser cruel do que compassivo». Esta é uma das verdades possíveis, terrivelmente odiosa para aqueles que se desdobram em mensagens de paz, acções de solidariedade e de beneficência, ao mesmo tempo que enchem os centros comerciais e lojas de artigos de luxo prontos a gastar o que têm e o que não têm. Uma das verdades possíveis, que se repita, porque na verdade a verdade é um problema. É que, tal como sucedeu com Tiago Penha e com quase a maioria dos seres humanos, chega um momento na vida em que a dúvida que mais incomoda é saber o que é a verdade. De tudo o que vivemos e recordamos ter vivido, pelo que contamos ou pensamos, que nem tudo se conta, há sempre uma área cinzenta, uma espécie de sótão, pequeno ou talvez grande, que tendemos a fechar para nele deixar tudo aquilo que não queremos ver mas de que não conseguimos abrir mão, deitar fora, esquecer, destruir. São lacunas que acabamos por tentar preencher com supostas vivências, que não correspondem necessariamente à verdade ou, no limite, nem sequer são nossas. São de outros, histórias que ouvimos, conhecimento de terceiros, que à força de ser repetido, se transforma numa memória. E numa verdade. Um verdade em perspectiva, pois é mentira. Pura mentira reinventada à nossa medida como uma verdade absoluta. E se concluirmos que isto é possível de acontecer com alguém, teremos forçosamente de acreditar que acontece igualmente com muitos outros. O que significa que nem a própria verdade de outrem, apropriada como uma verdade nossa, se funda necessariamente na verdade. Ela própria pode ser uma mentira, transformando-se assim numa dupla mentira. Quem conta um conto acrescenta um ponto. E de ponto em ponto preenchemos os vazios que quisemos deixar em aberto com mentiras. E de ponto em ponto edificamos o Mundo alicerçado numa mentira colectiva. Colectiva, por se estender a muitos, mas não comum, por que cada um intervém nela com uma reinvenção individual. Também chega um momento na vida em que a dúvida que mais incomoda é saber o que é mais importante. O que projectamos para o futuro, que alimenta uma labuta com objectivo na esperança de atingir uma recompensa subjectiva, na medida em que não sabemos se seremos bem-sucedidos? Ou o que temos mesmo ao nosso lado, ou à frente, que não valorizamos, porque damos como certo, quando é certo que o certo facilmente se torna incerto, o certo que não apreciamos, porque acreditamos que há ainda muito tempo? E se o tempo nos escapa? E se o tempo nos troca os passos? É que o tempo é tão incerto que fundar certezas nele não passa de uma mera questão de fé. A fé que se esvai com facilidade se um contratempo dita a incerteza e a tristeza de não ter agarrado na certeza no tempo certo. De não ter vivido o que certamente poder-se-ia ter vivido, pois estava ali, mesmo ao lado ou à frente, à nossa espera, a pedir o nosso tempo, a nossa atenção, o nosso interesse. Infelizmente também chega um momento na vida em que a dúvida que mais incomoda é saber se soubemos aproveitar e viver, na justa proporção daquilo que nos possa parecer razoável no dia em que nos sentirmos velhos, os ciclos naturais da existência, já para não falar nos imponderáveis do acaso, que rasgam, devassam, aniquilam esses mesmos ciclos, encurtando-lhes a duração, moldando-lhes a sua própria natureza, o que resulta igualmente numa sequência de ciclos, mas atípica, por ser inesperada. Na verdade, nem será muito atípica, porque o inesperado assome tantas vezes que o que parece anormal 101 acaba por adquirir, também ele, um carácter de tipicidade, que só aparenta ser disforme pela forma atípica como percepcionamos o que chamamos de atípico. É destas dúvidas que nasce a dor e a revolta contra com o que designamos por fado, destino ou má-sorte. Como a fé, artifícios simplistas e folclóricos para a conquista da sensação de conforto, ou para nos escondermos, ou para explicar o acaso e o infortúnio, quando é certo que não se tratou, nem tratava, de nada disso. Apenas passámos ao lado, apenas falhámos o alvo, pecados que são duros de assumir, pelo que inventamos desculpas, máscaras, razões alheias, para afirmar como dogma a impossibilidade de controlar o destino, quando na verdade o destino não existe; mas tão-somente a derrapagem, a colisão, o acidente, o trauma, o drama que é dispor de livre arbítrio sem saber o que fazer com ele. Chega um momento na vida em que tudo isto se torna um fardo tão difícil de carregar que preferimos morrer, mais uma vez com uma desculpa: a de que estamos velhos demais, cansados demais para continuar a viver, quando na verdade o que desejávamos era a vida eterna, poder voltar atrás, talvez na esperança de encontrar alguém que pudesse ajudar-nos a interpretar uma outra sinfonia da existência, voltar atrás para aplacar a fúria odiosa da dor dos “E Se’s”, das más escolhas nas encruzilhadas, más porque nos penitenciamos por elas, desvios por outros trilhos com a inequívoca impossibilidade de corrigir a trajectória. Dá-me agora o teu amor que depois pode ser tarde. Goza o que tens que depois pode ser tarde. Vive o que a vida te deu que depois pode ser tarde. E tantas outras coisas. E se? E se? E se? E tantos outros “E Se’s”. Um turbilhão de “E Se’s” tão tempestuoso como o desgosto, o sofrimento, a dor profunda que lhe é inerente, a procelosa agonia de saber, ou suspeitar, de que tudo o que fizemos não terá passado de uma longa e endiabrada derrapagem pela vida. É certo que se trata de um discurso pessimista e apagado. Na iminência da derrota, submerso tanto na resignação como no rancor, um ódio secreto e inconfessável que decerto serve para que alguns possam dizer, com um sorriso entredentes, que as coisas não são bem assim, para que afirmem que tudo isto é tão-somente mera poesia, palavras sem nexo de gente fraca, daqueles que não conseguem vencer o sabor da desdita ou a ele se entregam. Porque é mais fácil. Mas se por acaso for o caso, não o das palavras sem nexo, mas o da agonia da derrapagem, como seria possível verbalizá-la sem poesia? Não é na exaltação dos sentimentos que descobrimos a possibilidade de pensar? Ya harmuk Allah! Ya harmuk Allah! Ya harmuk Allah! As últimas palavras do indiano, na sua derradeira prece ao ser assassinado à queimaroupa numa praia deserta e escura, por causa de mil rupias e de uma puta muçulmana que nunca deu sinais de vida, ecoaram durante anos no íntimo de Simão Saraiva e Tiago Penha. Porém, sem grande exaltação poética. Durante muitos anos, na prática para sempre, o que não deixa de ser uma ironia para dois europeus desmundializados. Condenados a ouvir repetidamente uma oração em árabe desfiada sem fim. Pela voz de um indiano baixinho de tez castanho-escura, a cor da Terra, a cor da consciência e da responsabilidade, a mesma cor com que Penha e Saraiva desembarcaram no aeroporto da Portela, morenaços a caminho do negro, como só é possível ficar sob o sol intenso e fervoroso da Índia. Um regresso a casa com o peso de muitos pecados, como prenúncio do estado de espírito que Tiago levaria consigo, anos mais tarde, no retorno definitivo a Lisboa, quando a mãe adoeceu e ele começou a sentir-se velho. Se bem que já em dois mil e um, no fatídico ano da viagem com Maria Clara, em Viena, ao entrar na recta final do breve périplo a dois por algumas das principais capitais do velho continente, de norte a sul, confinado a latitudes geodésicas centrais com um epicentro mais ou menos definido, é bom recordar – antes do início da roda-viva que experienciaria durante mais de duas 102 décadas, entre o ir e vir, entre o ficar e o querer voltar, ou simplesmente partir, a percorrer a aridez selvagem do globo terrestre, na imensidão intercontinental, entre locais inóspitos e sumptuosos, cosmopolitas e desterrados, em terras que ele não desejava conhecer e outras que sempre havia sonhado sopesar – Tiago Penha deu sinais, dir-se-ia hoje à distância, premonitórios de que a ânsia de se perder na cidade dos sete mares não estaria ausente de uma sensação de angústia e, como veio a revelar-se, de carácter contínuo. Afinal, a que casa queria ele voltar? E assim começava o primeiro paradoxo: o da mumificação lenta. «Viena, Setembro nove Querida Ester, É curioso. Estou em Viena há dois dias, a poucas horas de seguir viagem para Veneza, e ainda me ocorre a imagem do recepcionista brasileiro daquele hotel checo. Talvez tenha saudades de ouvir falar português, talvez comece por ser assaltado pela vulgaridade do saudosismo lusitano. É estranho para quem sonha dar a volta ao mundo, para quem passa a vida a querer viajar e a imaginar longas e extensas incursões pelos países mais remotos. Mas é o que sinto e, para já, não há nada a fazer: tenho saudades de casa, do meu universo de referências, que por estas terras não as há ou não consigo encontrá-las. Provavelmente quando voltar, depressa terei vontade de voltar a seguir viagem e lá continuarei a idealizar novas expedições, a viver na permanente nostalgia da partida e da descoberta. Mas neste momento a angústia é o sentimento que predomina. É tempo de te falar de Viena. Mas antes ainda mais umas palavras sobre Praga, ainda sobre aquele comboio que nos fez sair da terra de Kafka e nos trouxe ao feudo austríaco dependente da indústria de Mozart, ignorando por completo a memória de Hitler. Até me parece aceitável, mas não sei se é melhor assim; sublinho apenas o facto. É claro que, em vez de toda esta feira de vaidades à volta de Mozart, preferia respirar a lição da História, de aprender o que devíamos saber sobre as origens do pesadelo nazi. Mas falemos do comboio, porque nele parece que não havia mais nada de estranho para acontecer. Puro engano. Depois da história do passaporte e do velho austríaco que vinha de Berlim desesperado a remexer na bagagem, assistimos a outro caso insólito: a uma detenção policial em plena viagem com o comboio a rolar rápido em direcção a Viena. Da parte das autoridades checas, o controle de passaportes decorreu como uma operação rotineira, diria mesmo fastidiosa para os agentes dos serviços de fronteiras, que pareciam estar a fazer um frete. Mas quando os oficiais austríacos entraram em cena, o caso mudou de figura. Um indivíduo que não teria mais que uns trinta anos, sentado à nossa frente, dois bancos depois, foi logo marcado. Primeiro os agentes austríacos pareceram não ter ficado convencidos com o passaporte dele. Não faço ideia se a validade havia expirado ou se se tratava de um documento falso. O que sei é que desataram a fazer-lhe perguntas em inglês. Vai para Viena? Fazer o quê? Esteve na Coreia?! E mais um sem-número de questões, todas elas formuladas em tom de interrogatório policial mesmo à séria. Resultado: o homem puxou de um segundo passaporte. E aí o caldo entornou-se. Foi detido imediatamente. Algemaram-no à frente de toda a gente e levaram-no logo para outra carruagem. O tipo e a bagagem – um saco desportivo – enquanto um dos oficiais ficou no local a passar a pente fino toda a zona onde o indivíduo havia estado. Mais um episódio a bordo de um comboio checo, quer dizer, alemão, que liga Hamburgo a Viena, via Berlim e Praga. Por aqui, em terras de Freud, o que não corresponde bem à verdade, porque apesar dele ter tido nacionalidade austríaca nasceu em território checo durante o famigerado império Austro-Húngaro, tudo calmo e tranquilo. Primeira impressão: os austríacos não parecem ser tão maus quanto pensava. São altivos, um pouco austeros, mas correctos e, de quando em quando, até são capazes de mostrar uns laivos de simpatia. Imagina um polícia a sair de uma 103 esquadra vienense, todo sorridente, para nos indicar o caminho, bastante intricado por sinal, para o hotel onde queríamos ficar hospedados! É um hotel no coração da cidade aconselhado pelo guia do Lonely Planet. De resto, come-se bem, a cidade não é muito grande, pelo que é possível deslocarmo-nos com facilidade por todo o lado e, em cada esquina, respira-se cultura. Mas é tudo muito caro e o clima extremamente instável. Está descansada que não vou pôr-me a falar do tempo! Ontem à noite, jantámos por mil xelins (qualquer coisa como quinze contos). Foi o jantar mais caro da nossa vida, pelo menos até agora, e também um dos mais inquietantes. Eu e a tua mãe voltámos a tocar naquele assunto e voltámos a acabar onde sempre acabamos: no ponto de partida. Amoa verdadeiramente, mas é tão difícil conservar esta relação. Ela mostra-se cada vez mais irrascível e intransigente. As coisas podiam ser tão diferentes. É profundamente difícil conviver com toda esta turbulência. Melhores dias virão? Provavelmente não. A dúvida reside na minha capacidade em lidar com a questão. Os dados estão lançados há muito tempo e ela continua a cobrar implacavelmente. Estamos de partida. Sinto-me ansioso por entrar no comboio com destino a Veneza. Sinto-me ansioso por poder virar mais uma página desta viagem.» Ansioso por partir, ansioso por regressar a casa; enlevado pelo desejo desmedido de conhecer os quatros cantos do mundo, aquele que os portugueses uniram e desuniram, derrotado pelas saudades dos quatro cantos do seu pequeno mundo. Portugal? Essa pátria que desconhecia, terra onde nasceu sem saber se pertencia a algo ou alguém? A Nação tão grande e tão pequena, tão imperialista como provinciana, ancorada na vulgaridade do saudosismo? Demoraria tempo para Tiago Penha perceber que era filho de uma Nação sem Estado e de um Estado sem Nação, filho de um empreendimento marítimo colonial tão corajoso quanto patético no limite da sua implosão. Tal e qual como haveria de conduzir a sua própria vida. Com efeito, a sua história pessoal confundir-se-ia com a história do seu próprio País, quer dizer, com o território com fronteiras geográficas delimitadas no qual aconteceu nascer. Não basta dizer que a Nação é uma realidade sociológica, subjectiva, anterior ao Estado, podendo existir sem ele, como sucede quando várias Nações formam um só Estado; não basta dizer que o Estado é uma realidade jurídica, objectiva, na medida em que traduz a organização política de uma Nação, ou parte dela, uma vez que uma Nação pode formar vários Estados. Em boa verdade, a realidade formal é uma coisa, a realidade material é outra. E o poder dos factos – que tende a ser normativo, ou seja, a consagrar o material em formal, a transformar o que se faz na prática naquilo que deve ser feito em nome da Lei – diz-nos que Portugal não é uma coisa nem outra. Tanto para os que se expatriaram como para os que tentaram se repatriar, permanecendo apátridas, na Nação que julgavam ser a sua, no Estado que os reclamou como seus ao mesmo tempo que os abandonou à sua sorte. E quem disto tiver dúvidas que aprenda a olhar e a ver. Não a realidade formal, mas a material: a definição do ser e dos seus sentidos, o ser português. Porque é nele, no ser, e nos seus sentidos, que se funda a imagem que uma sociedade faz de si mesma: um grupo de pessoas a quem compreendemos e por quem somos compreendidos. Não admira, pois, que já em dois mil e um, com pouco mais de vinte anos, Tiago Penha tenha pressentido o segundo paradoxo da existência que tanto viria a massacrá-lo no futuro: a desumanidade da luta pela identidade. Curiosamente na véspera de dar início, por fim, à sua longa travessia pela aridez selvagem do globo terrestre, que durou mais duas décadas, por supostas razões profissionais, que até existiam mas também lhe convinham, razão pela qual nunca alegou quaisquer constrangimentos de natureza familiar, já que a sorte estava ditada e não havia solução à vista, não se sabe se por falta de coragem ou por mero expediente de protelar o inadiável na indecisão do amor, é 104 sempre bom lembrar, afinal a mesma que tinha levado Maria Clara a não mandá-lo de imediato à merda, para que a vergonha não fosse maior, que o tempo tudo sossega. Mas esta entrada no seu diário de bordo merece uma outra observação, porquanto enferma de uma singularidade, que aqui já se assinalou, aliás, a propósito das palavras anteriores relativas a Praga: a omissão, a esquivança, a manifestação de um novo e estranho estado de espírito. Estranho pela dissonância e pela ruptura abrupta com o entusiasmo e a riqueza de pormenores com que descreveu a primeira metade desta viagem pelo velho continente, com Maria Clara, o que volta a reforçar a suspeita de que, desde a capital checa, algo particularmente marcante aconteceu, algo que terá sido experienciado pelos dois. Se em Praga as experiências mais significativas vividas pela dupla foram suprimidas de ambos os cadernos de bolso com as páginas presas por argolas, um de capa azul, outro de cor-de-rosa – para opor a cor da fé e da noite à cor dos corpos dos judeus amontoados nas câmaras de gás nazis, afinal as cores nem sempre dizem a verdade – indiciando que Tiago e Maria viveram em terras checas qualquer coisa que não quiseram que se soubesse, mesmo tratando-se de diários que supostamente seriam apenas para leitura exclusiva dos respectivos autores, o caso de Viena ainda é mais paradigmático pela flagrante e inesperada economia de palavras. Com efeito, Penha quase nada diz sobre a capital austríaca, mas lança mais uma dúvida ao referir-se a um “assunto” – que assunto seria? – que, aparentemente, azedou o memorável jantar de mil xelins. Algo que Maria nem sequer refere, limitando-se também ela a uma breve e desapaixonada narrativa. «Viena, Setembro nove, quinze e quarenta e cinco Chegámos a Viena ontem. Cidade-monumento, capital da música. A primeira impressão é que está realmente muito frio. E o mau tempo acabou por influenciar o nosso percurso pela cidade. Ontem de manhã apanhámos imensa chuva. Contudo, não foi suficiente para nos fazer parar. Fomos visitar um mercado tradicional vienense onde pudemos apreciar, de um lado, a imensidão de ofertas de alimentos deliciosos, alguns já confeccionados e, do outro, uma espécie de feira da ladra, na qual pouca coisa se aproveitava. As poucas peças de que gostámos eram extremamente caras. Sim, em Viena é tudo muito caro. Uma refeição para os dois ronda no mínimo os dez contos. Salva o facto de ser tudo muito bem servido. Os vienenses, esses, são indivíduos curiosos. Distintos, bem-educados, a espelhar o bom nível de vida que têm. São no entanto um pouco altivos. Andam sempre muito direitos, tipo militares, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás. Ainda assim, não me parecem rudes nem arrogantes. Diria que são apenas muito sérios, sisudos, mas educados e até acessíveis. Ao entrar em Viena sente-se nitidamente a influência barroca na arquitectura da maioria dos edifícios, como se estivéssemos ainda nos tempos de Mozart. Talvez seja essa a magia de Viena; faz-nos sonhar com esse período louco e áureo da música erudita. De resto, há inúmeros edifícios históricos transformados em casas-museu. Devem ter o seu encanto com certeza, mas confesso que estou a começar a ficar cansada de visitar tantos monumentos. Já não tenho a disponibilidade que tive no início para poder apreciá-los. De qualquer modo, tentámos pelo menos registá-los ao máximo. O Tiago fartou-se de fotografar. Ao contrário de Praga, o ambiente aqui parece-me mais homogéneo, à excepção de algumas estações de metro onde se vê pessoas com um ar mais duvidoso, sobretudo drogados e adolescentes de raça turca (julgo) com muito mau aspecto. Mas no geral parece-me uma cidade segura. Ainda assim, tenho de admitir: Viena não me provocou grandes emoções, nem grandes surpresas. É exactamente como a imaginava. Uma cidade-monumento, bonita, organizada, onde se prega o culto da música clássica. É uma cidade agradável, tirando o frio horrível que se faz sentir, o qual, como disse, acabou por condicionar o nosso estado de espírito ao ponto de, no segundo dia, já não 105 nos apetecer ver mais nada e ansiarmos que chegasse a hora da partida. Não se pode estar na rua com tanto frio, vento e chuva. Neste momento, enfiámo-nos numa gelataria onde estamos a deliciar-nos com um batido de chocolate quente. São fantásticos. Aliás, os vienenses são peritos nos doces. Há tartes e bolos de todos os sabores e feitios que enchem o olho. E a vista não se desilude com o sabor. Excelentes. Ontem tentámos encontrar um amigo nosso na Embaixada portuguesa. Quer dizer, um conhecido, que passava a vida a dizer: “Se vierem cá, não se esqueçam. Liguem-me, a sério, para conversarmos e poder mostrar-vos a cidade.” Palavras de circunstância, como de costume e que, aliás, pudemos constatar. Porque na verdade ainda tentámos chegar à fala com ele. Depois de termos ligado várias vezes para um telefone que ninguém se dignou a atender, o que parece incrível, um número geral de uma Embaixada (bela vida a de diplomata!), não desistimos e fomos até lá, já agora para ver o que se passa numa Embaixada portuguesa e perceber se realmente alguém trabalha nesta representação diplomática. Uma experiência interessante. A Embaixada fica num segundo andar de um edifício que aloja várias empresas de serviços. Curioso. Tocámos à campainha e apareceu-nos um homem, com um ar bastante assustado, que só abriu a porta porque insistimos. Explicou-nos de forma atabalhoada que estava ali por acaso, que não era habitual. O que se passava é que tinha deixado algum trabalho pendente. E como estava sozinho, estava com receio de abrir a porta. Estranho. Em Viena? Estamos a falar de uma Embaixada. Não é suposto estar disponível para os cidadãos do seu País se for necessário? Deixámos uma nota escrita para o nosso amigo, quer dizer, conhecido, a informá-lo de que estávamos em Viena, caso quisesse encontrar-se connosco, e seguimos a nossa visita pelas ruas da cidade. Escusado será dizer que ele não deu sinais de vida. A Ester continua a estar muito presente por onde quer que passo. Fomos ver um enorme parque infantil. Cheio de carrosséis e insufláveis mesmo no centro de Viena. E tentei imaginá-la ali, a brincar. Iria adorar. Ela e eu. Uma outra curiosidade de Viena é o funcionamento do comércio. Chegámos no sábado e as lojas estiveram abertas até às cinco da tarde. No domingo, a surpresa foi igual. Mas ao contrário: tudo fechado, à excepção do centro da cidade onde havia alguns restaurantes e cafés abertos. O que me leva a concluir que os vienenses não parecem estar particularmente preocupados com o turismo ou condicionados pelo mesmo. Pura e simplesmente, levam a sua vida a um ritmo normal.» E mais não escreveu, ansiosa por seguir viagem para Veneza, a cidade do amor onde viveria dois dias depois o terror, mal ela sabia, o terror de assistir em directo ao colapso das torres gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque, ataques suicidas como nunca dantes vistos no mundo moderno, quer dizer, no novo século e no novo milénio, pelo aparato mediático e a morte ao vivo em terras do Tio Sam, no epicentro do sonho americano, acção cobarde, torpe e obscena que estava mesmo a pedir uma “Guerra ao Terror”, como se até então o Mundo já não a conhecesse tão bem, e a diabolização de Osama bin Laden e da Al-Qaeda, tarefa ingrata para a Administração Bush, que se viu obrigada a punir as ovelhas tresmalhadas da família saudita, gente de bem e de dinheiro, embora tudo acabasse por ficar bastante nublado e turvo, atiçados o ódio e opróbrio, com Saddam Hussein e os talibãs a entrarem na equação, a NATO bem o avisou, era tempo de travar a ameaça islâmica. Quem sabe se aquele indivíduo que foi detido pelas autoridades austríacas no comboio entre Praga e Viena não estaria envolvido? Ou aqueles drogados turcos e islâmicos – é bom sublinhar – que se arrastavam por algumas estações de metro no centro de Viena, raça que não é carne nem é peixe, com a identidade perdida algures nas profundezas da fissura que tanto une como separa a Ásia e a Europa? Com um mundo assustado por tantos poderes erráticos, cada vez mais intolerante perante as ameaças que espreitam a 106 cada esquina, o medo transformou-se num dilema e o ódio numa forma de vida: a certeza de que é mais ajuizado matar primeiro antes que nos matem. Seriam estas algumas das impressões com que Tiago Penha e Maria Clara se confrontariam em Veneza, deixando para trás os silêncios de Viena, como se a cidade da música assim o exigisse, em sinal de respeito. Pelos imortais que venceram barreiras geográficas, culturais, sociais e até económicas, ao democratizarem o acesso à arquitectura estética dos sons, à harmonia do ruído, à poesia da cadência melódica. Se bem que se deva dizer que, embora Viena talvez assim o exija, os silêncios da dupla nada tiveram a ver, porém, com esses predicados históricos da cidade-monumento, expressão que Maria repetiu várias vezes no relato registado no seu diário. Mais uma vez, se Penha não tivesse falado sobre o assunto mais tarde com Simão Saraiva, muitas coisas ficariam por contar e, mesmo assim, decerto que algumas ficaram. O que volta a ser um enigma, pois há fotografias e em número considerável que atestam que esta aparente passagem amorfa por Viena não se limitou ao centro da cidade com incursões por um mercado tradicional, o Naschmarkt (cujo nome nunca é referido nos seus pequenos cadernos de bolso com as folhas presas por argolas), e um parque infantil, ou à deslocação à Embaixada portuguesa feita de metro a partir do hotel onde se instalaram, seguindo à risca as recomendações do guia do Lonely Planet. Com efeito, foi durante o famigerado jantar de mil xelins, por exemplo – que terá azedado por terem tocado no tal “assunto” (que se mantém desconhecido) – que reviram com grande surpresa o casal que Tiago havia fotografado em Berlim durante um passeio turístico de barco pelo rio Spree. Qual seria a probabilidade estatística daquele acontecimento tão improvável? No mesmo local, à mesma hora, quase uma semana depois, a cerca de setecentos quilómetros de distância entre um ponto e outro. Que razão terá levado ambos a não fazer qualquer referência ao episódio? E a não chamar as coisas pelo nome? Estiveram no Naschmarkt, já se disse, o maior e mais popular mercado ao ar livre de Viena, com uma atmosfera única feita de cinco séculos de história, e onde Penha ia sendo agredido por um vendedor que não gostou nada de ser fotografado. Passaram horas numa das várias pontes sobre o Danúbio a observar o rio, bastante lamacento e avermelhado, a cor da raiva e da impaciência, e a imaginar a violência da batalha de Aspern-Essling, no primeiro decénio do século dezanove, que representou a primeira derrota do exército napoleónico em dez anos às mãos das tropas comandadas pelo arquiduque Carlos da Áustria-Teschen. Vaguearam pela movimentada rua de Kohlmarkt, destino obrigatório para quem quer fazer compras ou sentar-se numa esplanada a apreciar o famoso café vienense (resta saber a que se deve a fama, de tão mau que é), com vista para a cúpula dourada do palácio Hofburg, o que melhor representa a diversidade arquitectónica de Viena com a combinação de elementos renascentistas e barrocos, na zona histórica do Ring, por onde circulam os tradicionais coches vienenses cheios de ornamentos. Deixaram-se encantar pela catedral gótica de St. Stephen's, sobretudo pelos seus telhados multicoloridos, passearam pelos jardins do Belvedere e pelo Stadtpark, viram ciganos e freiras a andar de metro, violinistas a tocar nas ruas e homens-estátua no meio das praças a sinalizar o tráfego de transeuntes, que para isso, mas só para isso, se podem mexer. Uma paisagem linda e maravilhosa, monumental em todos os sentidos, com um sem-fim de notas de rodapé para aprender, a história, claro está, mas que assim ficou, que Penha e Clara já não estavam para aí virados, tanto mais que em Viena as memórias parecem ser demasiado selectivas, feitas à medida da Áustria, que decerto prefere evocar a sua condição de berço de alguns dos mais famosos compositores eruditos do mundo para esquecer e, porventura, tentar apagar as humilhações sofridas no século vinte: a derrota na Primeira Grande Guerra, com a derrocada do império Austro-Húngaro, a anexação nazi, na Segunda Grande 107 Guerra, e as reincidências conservadoras e, em muitos casos, ditatoriais, mesmo em sede de República Federal Parlamentar, que não mostrou ser suficiente para aplacar os sucessivos escândalos de corrupção e as constantes crises governamentais. De resto, a dependência de Berlim, num País em que noventa por cento da população fala alemão, o alemão austríaco, que para isso há uma distintivo gramatical, não deixando de ser o linguarejar germânico o idioma oficial, torna tudo claro, mesmo onde também se fala croata, húngaro e esloveno e vários outros dialectos, ainda assim inteligíveis para a maioria dos austríacos, à excepção do Vorarlberg, semelhante ao alemão suíço que dá nome ao Estado no extremo mais ocidental da Áustria, uma região montanhosa e particularmente pantanosa conhecida como o “Tirol brasileiro”, tantos são os santa catarinenses descendentes de austríacos que decidiram regressar às terras dos antigos bávaros e eslavos. As voltas que o mundo dá: faz lembrar Freud, que nasceu checo, mas foi reclamado como austríaco, como Hitler, que nasceu austríaco e supostamente judeu, mas quis ser alemão e anti-semita. Afinal, quase não precisavam de ter ido a Viena. Está tudo escrito e à distância de um clique. Na Internet. É certo que em dois mil e um, as comunicações em rede não eram o que são hoje, como hoje também não são o que dizem ser, bandas largas em velocidade cruzeiro com débitos estonteantes, sem que a maioria consiga explicar que download e upload são coisas bem diferentes, que para isso existem acessos dedicados e simétricos, já para não falar dos vícios de forma e de prática das taxas de contenção associadas a tortuosos backbones de localização duvidosa tendencialmente omitida. Mas havia livros, revistas, guias e um número infindável de outras publicações onde facilmente poderiam ter encontrado toda a informação que quisessem, a que não relataram, por ser tão fastidiosa quanta a apatia com que se arrastaram pela cidade, ansiosos por partir e poder virar assim mais uma página da viagem. Mas a ansiedade nem sempre é amiga da pontualidade e Penha e Clara acabaram por perder o comboio no qual tinham planeado embarcar. O próximo, um nocturno, só sairia seis horas mais tarde e demoraria um tempo sem fim a chegar a Veneza. Mas nada havia a fazer. Cansados, e exasperados, de mochilas às costas, que condicionou, e em muito, a mais leve vontade de se fazerem de novo a Viena, pelo menos pelas cercanias, para matar o tempo e a cólera, não a bactéria que se aloja nos intestinos e provoca diarreias, intensas e ardentes, mas a sensação irritante da contrariedade, inoportuna e sem anúncio prévio, o que a situava no polo oposto da urgência imposta pela ansiedade. Descrição rebuscada e enfadonha, que ilustra bem o aborrecimento de ter que gastar um quarto de um dia, uma eternidade para uma viagem tão longa em tão curto espaço de tempo, seis horas preciosas, com uma preguiça indesejada e uma certa impaciência pelos corredores e pelas salas da estação ferroviária de Wien Westbahnhof, espaços arejados e modernos, os mesmos que tinham servido, dias antes, para a convicção do adeus definitivo a Praga. Sentada no chão, encostada a uma parede atapetada de azulejos brancos, a cor da paz e do conforto, bem como da solidão e do frio, Maria Clara tentou ler, mas pôs-se a pensar em quão farta estava de procurar sentidos para aquela relação tão degastada, com um bebé a caminho, Ester, a estrela dos hebreus, não sabia se por descuido ou por um desejo secreto e inconsciente do degelo. Para arrefecer as feridas. E penitenciou-se. Má sorte a da criança, que ao mundo virá para tentar calar os gritos dos pais, com todos os brados que os pulmões lhe permitam soltar, queixumes de inquietação e indignação, que a culpa não é dela nem nunca será, à falta de um plano traçado, quiseram concebê-la no abismo do prazer e agora não sabem o que fazer, desistir ou remediar, fugir ou remendar, quando não há retalhos que possam cobrir essa dívida tão avultada da devassa do misterioso encanto feminino, uma vez derrotado o imaginário dos príncipes e princesas, que é disso que o amor se faz, o primeiro, pela sede romanesca das histórias 108 de príncipes e fadas, da graciosa harmonia desses distantes reinos e principados, páginas ternas e acolhedoras golpeadas por um arpão que não se sabe de onde veio, mas dói e faz sangue, e não se cura, mesmo com um coágulo de fibrina. Sentado do mesmo modo no chão com a mochila à sua direita, que é com a mão esquerda que o Diabo come, do outro lado da sala de espera, Tiago Penha também tentou ler, mas pôs-se a pensar na forma como Maria Clara se lhe entregara no hotel em Viena, esbaforidamente, após o memorável jantar de mil xelins, não obstante o azedume com que haviam regressado ao quarto, coisa que já não vivia há muito, longe iam os tempos em que se amavam por tudo e por nada. Com paixão. E muitas discussões de permeio ao mesmo ritmo. Sem nunca perceberem a razão. Com o tempo, entre o amor e o ódio, entre a guerra e a paz, acabaram por se habituar. Sem igualmente conseguirem perceber por que razão teriam de se acostumar a tanto desassossego emotivo, abolida que estava a época em que se escolhiam os companheiros até que a morte os separasse, em que se dizia às mulheres que com o tempo aprenderiam a amar, enquanto os homens se perdiam por outros amores em prostíbulos vários, traindo e sendo traídos, na roleta russa das más inclinações. Meditabundos, enquanto sentiam as batidas abafadas do extenso compasso de espera pelo comboio com destino a Veneza, os dois fitavam o vazio com os respectivos livros abertos em cima das pernas. A sala estava praticamente vazia. Havia mais dois casais com ar de turistas, talvez também viajantes com problemas de pontualidade, que nisso a fleuma austríaca parecia não perdoar, e um homem a um canto com cerca de quarenta anos, com um semblante taciturno – seria turco? – a ler um jornal. Eram horas de jantar, mas aparentemente nem Tiago nem Maria tinham fome. Apenas sede de partir. E assim permaneceram. Durante a longa espera, os seus olhos nunca se cruzaram. A não ser quando chegou a hora. De arrumar as coisas, de se levantarem e encaminharem-se para a plataforma indicada no placar electrónico das partidas. Um olhar que se encavalitou um no outro, dir-se-ia por acaso, mas deu-se o caso de ser prolongado, manifestamente expressivo, embora ambos não soubessem ao certo o que expressava, tal foi o silêncio absoluto que se lhe juntou. Uma espécie de silêncio dos amantes. Como se as palavras não tivessem lugar naquele inesperado abraço de almas. 109 XIII. Desde que havia sido obrigado em criança a saltitar entre os mais diversos credos religiosos, na forma de seitas e outros obscurantismos apocalípticos, pela indecisão da mãe na busca incessante da verdade, a única, pois para ela era inconcebível que houvesse mais do que uma, senão de nada valia escolher, a verdade órfã e soberana que daria o direito a entrar no Reino dos Céus, mas terreno, que céu é coisa que não existe, inversamente ao que o Vaticano anda por aí a apregoar, não obstante os seus representantes conhecerem bem a estratosfera, que o diga o Papa quando se eleva aos altos do Mundo para sobrevoar o planeta, e a troposfera, e a mesosfera, e a termosfera, e a exosfera, e o espaço sideral, que já nada tem a ver com estas atmosferas, Tiago Penha deixou de se interessar, criando até uma certa antipatia, por questões celestiais, esotéricas e outras de natureza semelhante, apelos e exaltações do além, que estão mais para lá do que para cá, portanto lá longe na parte de lá, que é como quem diz além, no além, e, por conseguinte, a resvalar para fora dos limites da vida de cá, o que obriga à cegueira da fé, quando não é possível explicar o inexplicável, que nestes mundos do além muitos são os dogmas que não se entendem a não ser à força da crendice ou da crença, depende de quem olha, contrariamente a Maria Clara que, aos poucos e poucos, foi preenchendo o vazio deixado pela ausência do marido – e ainda bem que assim era, não fosse ele forjar outra ameaça intempestiva, uma nova e oprobriosa tempestade de maus costumes que nisso era exímio, na vergonha e na infâmia – com a presença de Nosso Senhor, encontros secretos num crescendo de sedução, talvez da paixão se passasse ao amor, e Cristo a quisesse desposar, mesmo já sendo casada, o que não decerto não seria pecado, pois a Santíssima Trindade se encarregaria de resolver o problema, até porque são três, a conta que Deus fez, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é sempre melhor três a pensar do que apenas um a ruminar, e Jesus também nunca foi muito dado a grandes monogamias, para isso os desígnios divinos são insondáveis, e o mistério da doutrina cristã assim o exige. É claro que isto de contrair matrimónio com a Trindade pode dar azo a grandes confusões, mesmo sendo santa, a Trindade, bem entendido, pois a suspeita da poliandria associada à forte probabilidade de ocorrerem actividades de cunho orgíaco parece ser uma evidência, que é o mesmo que imputar ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo sérios indícios de práticas condenáveis, e disso se queixam as freiras, ou pelo menos algumas, casadas com os três ao mesmo tempo, embora a título de alegações iniciais, em sede de audiência de discussão e julgamento, se para tal a Santíssima Trindade se dignasse a prescindir da sua tão elevada imunidade, se possa arguir que o fundamento é platónico, meramente espiritual, uma relação a dois ou a quatro, ainda está por decidir, que nesta cama só entram espíritos, não importa quantos, porque o propósito é apenas um: livrar a carne das tentações e do mal, dos interesses materiais e dos mundanos; ou seja, da matéria e das coisas deste mundo; ou seja, aceitar o que vem do além, o que até pode ser um caso de possessão e aqui há um problema, pois para haver posse tem de haver espírito mas também carne, e desejo, de possuir, claro está, o que nos leva ao princípio dos princípios, “Sede fecundos e 110 multiplicai-vos!”, coisa estranha para uma Trindade que impõe a castidade e a carne imaculada. É o santo mistério do três em um, ainda que não multiplicado por dez elevado a nove, que a miríade de dúvidas já é suficientemente grande, pena é que não haja determinação em reexaminar as setes virtudes e os setes pecados sob a frieza racional desses processadores orgânicos que Tiago Penha tão bem conhecia, processadores da infinitude, ou da infinidade, insiste-se na opção, de dados integrais de computação, átomos sem fim de representação de símbolos, letras e números. E assim anda o mundo, o de cá, que no do além a história é outra: cego para ver, desperto para olhar sem ser capaz de perceber. (Web Forum: Pois é, ter a percepção das coisas já é outra história. Primeiro passo de um diálogo a dois, primeiro ela, depois ele: De um modo geral, em algum tempo, alguém certamente viveu, vive ou viverá uma condição semelhante a esta. Depende do contexto. Olhamos sem ver e não nos apercebemos. Mas do quê? Pergunto-me qual será a resposta mais adequada. E ela: Mas isso é comum, só percebemos algumas situações depois do tempo passar, quando dizemos “como foi possível não ver isto a acontecer?” ou “como pude ser tão ingénua ao não ver isto?”, são os contextos do diaa-dia. E ele: A vida é tão simples, nós é que a complicamos. E ela: Complicar faz parte do viver esta vida. E ele: Até pode ser uma das verdades, mas qual será a melhor? E ela: Discordo. Como posso saber que estou a dificultar algo que ainda estou a viver? Somente quem está de fora é que consegue ver e saber que, por vezes, os problemas são tão simples de resolver. Depende da situação, mas na maioria dos casos somos incapazes de, por nós próprios, conseguir distinguir o simples do complicado. E mais não se disse, pois nada mais havia a dizer) Foi sempre este o problema de Tiago; não havia nada a dizer: Tiago, o adúltero, Tiago, o cabrão, Tiago, o depravado, um professo da ignomínia, da infâmia e da torpeza, que andou a esquadrinhar o interior da vagina de uma colega de trabalho quando Maria estava grávida dele, nunca é demais recordar. Antes de abortar. Antes de tomar a dolorosa decisão de matar a vida dentro do seu útero. Para sempre. Renegando as Leis de Mendel e a possibilidade de cumprir a palavra do Senhor. Não se sabe ao certo como se processou esta transição entre a ferocidade querelosa em que Maria Clara mergulhou, depois de ter decidido matar a filha, e o desaprumo mental que depois aceitou, ao aceitar Cristo e tornar-se discípula deste, fazendo uso de toxinas letais, como a cicutina, que lhe proporcionaria uma mise-en-scène clitórica tão degradante para a vítima, Tiago Penha, como para ela própria, que a condenaria ao desterro eterno num frenocómio, não pela prática de homicídio, que desse crime foi absolvida por ser inimputável, mas pela razão da inimputabilidade, de que apenas podia resultar o internamento compulsivo em regime fechado para tratamento psiquiátrico. Assim o determina a Lei da Saúde Mental, de mil novecentos e noventa e oito, ao abrigo da Constituição da República Portuguesa, de mil novecentos e setenta e seis, e do princípio nela consagrada, pela redacção de dois mil e cinco, da salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Um internamento sob tutela judicial num velho edifício datado do princípio do século vinte e remodelado na década de quarenta, para dar lugar ao novo manicómio de Lisboa, bem diferente do hospital Bohnice – o tal paraíso na terra de oitenta e oito edifícios e pavilhões, dispostos radialmente a partir de um parque ajardinado em estilo inglês com uma igreja com características típicas da art nouveau, com vista para o rio Vltava – em Praga, mas no resto em tudo semelhante, que a “cura” dos loucos sempre se prestou a grandes equívocos, basta lembrar Jeanne d'Arc, queimada até à morte atada a um poste em Vieux-Marché, hoje centro histórico de Rouen, na Normandia, onde se ergue uma majestosa catedral com vitrais multicoloridos e um sem-fim de postais e livros à venda 111 sobre as aventuras e desventuras da donzela de Orléans; bruxa e guerreira, que chegou a liderar um exército de quatro mil homens aos dezanove anos. E a ouvir vozes desde os treze. Dizem os manuais de diagnóstico diferencial que os comportamentos agressivos são normais e comuns, quando se trata de violência associada a uma descarga emocional e à activação do sistema nervoso simpático, que se manifesta fisicamente com a dilatação das pupilas, o aumento das batidas cardíacas e do ritmo respiratório e a segregação de adrenalina. Contudo, no caso de um sociopata, a violência tem uma natureza diferente. É semelhante à agressão predatória, sem emoções, ou seja, a sangue-frio. Neste particular, é comum distinguir o paranóide psicótico, que pode ser esquizofrénico, e o assassino psicopata, que apresenta uma personalidade manifestamente anti-social. É impulsivo, instável, não se sente culpado, age pela repetição e com rituais obsessivos. Apesar do tema ser controverso, porquanto a máscara da sanidade presta-se a muitas indecisões – desde o diagnóstico à aplicação de psicoterapias e soluções quimioterápicas – dir-se-ia que estas são, de um modo geral, algumas das condições psiquiátricas que caracterizam e fundamentam as perturbações sociopáticas ou psicopáticas de personalidade de tipo paranóide ou dissocial, formas de personalidades extremas cujo mapa sintomatológico, estando no limite, ajuda a localizar a génese de determinados distúrbios sociopáticos ainda em estado embrionário ou estacionário. Daí que seja prática comum partir da indagação das sobrecargas emocionais e, porventura, da susceptibilidade genética a vulnerabilidades patológicas. A neurose de angústia, por exemplo, pode derivar de uma privação sexual imposta. A neurose cardíaca, outro exemplo, por sinal bastante comum, pode confundir-se com a primeira e evoluir para rituais obsessivos, o que pressupõe uma conduta fóbica e, claro está, a existência de um objecto fóbico bem como de um contrafóbico. Se Tiago Penha não houvesse estado tão ausente, tão ocupado a conduzir a sua vida de forma desregrada, filiado na libertinagem, por predisposição genética, justificação um, por considerar que não havia outra opção, justificação dois, e por que lhe apetecia, verdade primeira, já não lhe bastava ter as mãos sujas, por que razão haveria de se penitenciar para o resto da vida, ou a tal ser obrigado, verdade segunda, talvez tivesse percebido que, quando Maria Clara começou a acusar, e a tentar ocultar, alguns dos tradicionais transtornos psicossomáticos associados a ataques de pânico e ansiedade, que no caso dela assomaram sob a forma de episódios irregulares de taquicardia e sudorese, que tão depressa apareciam como desapareciam – é natural, desde que a incidência não suba vertiginosamente, como sucedeu – mais não estava do que a observar as primeiras manifestações clínicas da síndrome serotoninérgica. Se Tiago Penha não houvesse estado tão preocupado em tudo fazer para conseguir vencer a matriz punitiva da sua coabitação contratual com a mulher, entregando-se à solidão de uma forma de vida sempre concorrida, que para isso podia contar com Simão Saraiva – os dois sempre prontos para se perderem entre multidões de autóctones na imensa multidão que é a raça humana espalhada pelo planeta, enquanto remendavam os algoritmos de um mundo cada vez mais ligado em rede, e mais excedentário na produção de velharias e desperdícios, a ciência da computação assim o dita, para o bem crescente de quem a domina e com ela ganha dinheiro, porque modernizar é também envelhecer, inovar para caducar, que seria de nós sem novas necessidades, especialmente as descartáveis, pois sem sucedâneos não haveria progresso, nem miséria, nem riqueza, para o tempo parado já basta o Butão, ou a Terra do Dragão, esse estranho reino feudal encravado nos Himalaias entre a China e a Índia, ou as tribos perdidas na floresta amazónica ou nas regiões montanhosas da Papua Nova Guiné, o Círculo do Fogo do Pacífico – talvez tivesse percebido que, quando Maria Clara começou a flutuar, 112 e depois a submergir, e depois a afundar-se nos mares profundos dos psicotrópicos, ainda que com prescrição médica, bem entendido, mais não estava do que a observar o colapso do sistema nervoso dela, a derrocada das torres bioquímicas e fisiológicas cerebrais que sustentavam o seu equilíbrio psíquico, a mesma derrocada que, com terror, ele havia assistido em directo em Veneza, em dois mil e um, o colapso das torres gémeas do World Trade Center. E já agora que comam merda aqueles que se apressam a pensar em demagogias e eventualmente a ver aqui uma comparação grotesca, fácil e sem sentido, e que tomem no cu aqueles que pensam mas que não sabem pensar, porque não conhecem a dor, nem o sabor, Veneza também é um Carnaval, mas estas são outras máscaras, quando a sanidade se confunde com a insanidade, mesmo que não se saiba o que as separa, tal como sucede na cidade do amor, com os seus mil e um canais e pequenos mares de água turva, às vezes nem mexe, para que cheire e dê a cheirar, o odor fétido da morte lenta, a fragrância da loucura, se é coisa do Diabo ainda está por descobrir, mas que é aroma de merda lá isso é. (Web Forum: Envelhecer fisicamente é um processo natural da vida. Mas é melancólico quando as ideias envelhecem junto. A que se segue uma réplica: Por mais que a ciência avance, com os seus danos colaterais, estamos sempre condenados ao envelhecimento. Mas a matéria não vive de tempo nem envelhece. E talvez seja nesse estado que o homem vai aprender um dia a viver em comunhão) Os psicofármacos têm destas coisas: aliviam, mas não curam; adiam, mas não destroem. Meros paliativos para mitigar as dores, os males da cabeça, embustes, mentiras ardilosas, velhacas, que é como quem diz “devil in the body and your soul lost forever”, sejam antipsicóticos ou ansiolíticos, sejam antidepressores ou antidepressivos, quem quiser que escolha, antiepilépticos, barbitúricos, sedativos e benzodiazepinas, inibidores selectivos da recaptação da serotonina e da noradrenalina, tão longa é a denominação que até tem uma sigla, ISRSN, para que não haja confusões de tantos que são os compósitos químicos, da clozapina à cloropromazina, e depois a flufenazina, e depois a pimozida, e depois o sertindol, e a tioridazina, e a carbamazepina, e o cotrimozaxol, e depois o cloranfenicol, mas há também sulfonamidas e citostáticos, e a fluoxetina, e a fluvoxamina, e depois a paroxetina e a sertralina, o zopiclone e o zolpidem, e ainda a buspirona, e depois a valeriana, que mais parece o hash, marijuana, change money, da Índia do pau de sândalo e do calor sufocante, da Índia dos mosquitos e da agonia do cheiro a rosas. Da Índia de Simão Saraiva e de um cadáver a boiar no Índico, desenlace lutuoso mas possível a qualquer momento entre aqueles que vivem da alcovitaria, ou da putice, e lá volta o pudor a baralhar a verdade sintáctica, que em Madrid aconteceu o mesmo, embora o companheiro de Penha estivesse diferente, dera-lhe para beber todos os dias, de manhã à noite, beber até cair, ou ser corrido de um bar de copas, quer dizer, de uma casa de putas, e lá regressa a linguística a querer impor regras e preconceitos, desafios de boca e de língua, que até apetece meter pelo meio umas cunilínguas, embora não tenha sido o caso, já que a jovem equatoriana não deixou, pelo menos ali, até porque, bem vistas as coisas, não era paga para ser chupada mas para chupar. Se para aí estivesse virada. E esse foi o traço distintivo que seduziu Tiago de imediato. Em Recoletos, a reeditar La Recoleta dos porteños e a loira de olhos verdes cujo nome se lhe havia esfumado, se é que chegou mesmo a sabê-lo alguma vez, porque se houvesse sido o caso afinal não era um problema de memória mas simplesmente de falta de atenção, isto é, de curiosidade, ou da falta dela. Coisa estranha perante uma mulher realmente bonita, uma mulher que ele podia amar, ao som de tango, música para a dança da carne e do desejo, na «Esquina Carlos Gardel». Perdeu-lhe o nome e o contacto 113 telefónico, mal regressou a São Paulo, já se sabe. E o irónico é que em Madrid, nunca é demais repetir, sucedeu o mesmo. — Achas? — Sí, por supuesto — respondeu a Claire Danes em versão morena, que continuava de pé à frente de Tiago Penha, com um sorriso suave no rosto, aparentemente à espera do convite da parte dele para se sentar no lugar que Simão Saraiva havia deixado desocupado depois do lo siento mucho, putedo que não vale um corno, muy borracho, vámonos, para a puta que te pariu, ahora, e outras palavras afins, com cabras e muchas madres à mistura, todas putas, claro está, todas filhas de uma grandessíssima puta. Tiago apagou o cigarro no cinzeiro, deu mais um trago no uísque e fez por fim um sinal com a cabeça para que se sentasse, caso assim ela o entendesse, quando estava já tudo mais do que bem entendido. De resto, aquela mulher de olhar angelical, tão cândido quanto provocador, tinha razão; provavelmente Saraiva não se lembraria de nada do dia seguinte. Caso não acordasse ao relento, deitado no chão empedrado num recanto de uma ruela qualquer perto da Puerta de Alcalá, suja e malcheirosa, como a maioria das artérias do centro histórico de Madrid, por não ter conseguido dar com o hotel, o que não seria a primeira vez, aliás, desde que havia mudado de hábitos, desde que começou a mostrar ter um novo amor, o do abuso de álcool, no Rio de Janeiro, recém-chegado possivelmente da Patagónia ou de outra região na Argentina, por onde andou de paradeiro incerto durante cerca de dois meses. — En una casa de copas, es la regla de oro: no beber mucho — disse ela, num tom brando, quase neutro. — Para não foder o dinheiro e acabar sem foder, certo? — Antes o despues, la plata siempre se gasta — afirmou a morena sem acusar o toque. — Pero el problema es saber lo que quieres. Si quieres las cosas bien hechas — prosseguiu, ao deixar-se cair no sofá almofadado, dando a ver a Penha as pernas e nada mais, porque em vez de usar uma minissaia, por exemplo, através da qual pudesse sugerir o que tinha ou não vestido por baixo, optara por uns calções curtos de ganga desbotada. Uns calções e um top transparente, esse sim, não a insinuar mas a exibir, e com ostentação, a ausência do sutiã: mamilos espetados e os peitos em toda a sua volumetria expostos por debaixo do tecido de algodão, se bem que fossem relativamente pequenos. Em boa verdade, na justa proporção do corpo que Tiago lhe adivinhava, longe de possuir as curvas sumptuosas do genótipo latino. Faltava ali carne, algo a que se agarrar. Ao invés, o que nela abundava era uma constelação de ossos revestidos por membranas e tecidos musculados que, por muita harmonia estética que pudesse ter aos olhos de quem dita as regras da perfeição e do belo, com as suas várias geometrias femininas, graciosas, encantadoras e porventura sedutoras, definitivamente não fazia o género de Penha. — E para que isso aconteça é preciso o quê? — Mira, si te agrado y estás borracho no es difícil hacer dinero contigo. Es sólo un trabajo de paciencia. Es lo que tu quieres de mi? — quis saber ela, mantendo o mesmo tom de voz enquanto puxava de um cigarro. Tiago debruçou-se sobre a mesinha com o tampo de vidro que se interpunha entre eles e estendeu-lhe a mão com um isqueiro aceso. Uma pequena chama bruxuleante que a morena aproveitou para atear fogo à nicotina e aspirar uma bola de fumo, fazendo com que a ponta do cigarro se iluminasse com o clarão momentâneo de um vermelho incandescente, um pontículo de luz que se inflamou por escassos momentos, como se estivesse a afirmar a sua vivacidade entre os fios de vapor da combustão cancerígena, a glorificar a sua singularidade activa no meio do mesmo tom, se bem que não tão fogoso, como é bom de perceber, que se espalhava pela sala a meia-luz. 114 Foi a vez dela de se recostar no sofá e cruzar as pernas, sem nunca tirar os olhos de Penha. Com uma expressão no rosto ferozmente encantadora. Tão cândida quanto provocadora. — Sei lá o que quero de ti! Ainda mal começámos a falar. Para já é isso: conversar. Tiago voltou a pôr o isqueiro em cima da mesinha e pensou que provavelmente teria já bebido demais: primeiro havia ficado incomodado com a ausência de geometrias femininas acentuadamente curvilíneas na mulher que se sentara à sua frente, embora algo lhe dissesse que, naquele caso, não deveria ser o mais importante, preocupação invulgar porque as formas nunca tinham sido impeditivas do que quer que fosse; depois, houvera aquela sensação esquisita de um silêncio súbito, uma espécie de apagão repentino, uma ensurdecência total, enquanto a morena mais não fazia do que acender um cigarro, um gesto tão maquinal e espontâneo que, paradoxalmente e com grande estranheza, lhe parecera uma representação em câmara lenta, cinema mudo mas a cores, a mostrar uma cena comum com toques de poesia, gestos poéticos e eufemísticos, como se fosse possível ver na incandescência da ponta de um cilindro de papel e tabaco um lampejo de excitação, de calor, reverberações de ardor, de impulsividade e arrebatamento, tudo sob o predomínio visual do vermelho, a cor do poder e da paixão, a cor do desejo e da vida em brasa. — Hablar aquí cuesta dinero. Puedes gastar la plata en otras cosas. A morena alta e robusta de serviço às mesas, a das leggings de licra preta transparentes, sem mais nada por baixo, voltou a aparecer para recolher os copos vazios e apontou para o único que ainda tinha algum uísque, como que a perguntar a Penha se queria um reforço, talvez pudesse ajudar. Como resistir ao mundo portentoso das sevícias hormonais metido numa só mulher? Tiago sabia que deveria já ter bebido demais, mas se ainda pensava nisso era porque não havia perdido a conta, pelo que podia dar mais algumas voltas, poucas é claro, no admirável carrossel dos destilados de cevadas. E foi o que fez. Pedindo mais um uísque. Mas que estava baralhado, lá isso estava. Havia descartado a possibilidade de contratar os serviços de duas escorts escolhidas à la carte para partir à aventura pela noite madrilena com Simão Saraiva, enfiaram-se naquela casa de putas para beber uns copos, descontrair, relaxar, talvez foder alguma, se calhasse, que nestas coisas dos prazeres extraviados nunca se sabe, a merda é que o companheiro andava a encharcar-se em álcool e acabou por ser posto na rua, de forma polida é certo, em jeito de convite, mas expulso, o que até não havia sido tão despropositado quanto isso pois era o que ele estava a pedir, e Penha bem que precisava de uns momentos a sós, sem grandes conversas ou fanfarronices, a sós como quem diz, talvez assomasse algo apetecível que pudesse comprar, mas calhara-lhe uma morena que definitivamente não fazia o seu género e agora estava a discutir. A discutir o quê? E para quê? E porquê? Havia aquela expressão no rosto. Demolidora. Abrasadora. Ferozmente sedutora. Mas a roupa, a roupa também não ajudava muito. A mulher não percebia que aqueles calções não se prestavam à exaltação de atributos que ela podia fingir ter, eventualmente escondidos? Não bastava andar por ali de mamilos espetados sem sutiã com um top transparente. Até porque as mamas não eram grande coisa. Pequenas. Sem carne. E nisso Tiago era irredutível. Sempre havia insistido. Regra de ouro: algo que se possa agarrar. Qual é o prazer de afagar ossos? Mas mais: acrescia a obrigação de ter de entabular conversa em castelhano, quer dizer, ela, que ele falava português e mais nada. O portunhol é para idiotas, para essa escumalha toda que anda por aí sem perceber que os espanhóis passaram a vida a tentar tramar-nos. É que Olivença não é um assunto arrumado. É verdade que não foram só os espanhóis. Os muçulmanos também andaram lá a afocinhar. Mas os nuestros hermanos são outra história. 115 (Web Forum: Em algumas situações o portunhol é inevitável. A que se segue um comentário da Galiza no feminino: Pois gracias pela parte que toca a mim. Não sei se rio ou choro. Mas creio que não há motivos para choros, pois com meu bom portunhol estou indo muito bem, obrigada. E outro da Catalunha, no masculino: Conhecendo melhor o castellano, como o conheço hoje e bem, es impossível falar perfeito. Quem entende o que é um perfeito castellano se ele dentro de um mesmo País muda? E sabemos que as diferenças são ainda maiores de País para País. No meu caso, onde vivo, todos falam o castellano mas preferem a língua madre que es o catalan e ambos os idiomas têm muito do português. Do outro lado do Atlântico, soa uma voz discordante em versão carioca: Não falo bem Inglês e “arranho” o "português cá do Brasil” com todas as variáveis. No entanto, discordo da ideia. Nada do que pode ser usado para comunicar pode constituir-se em idiotice! A compreensão do ser humano na sua totalidade é o objectivo da humanidade, e a comunicação, ainda que precária, faz parte da cadeia evolutiva de todos nós. Estamos juntos no mesmo barco e, portanto, sujeitos às instabilidades convencionais. E outra réplica, agora em português: Bom. É óbvio que os espanhóis foram sempre ao longo da História uns vizinhos pouco amigáveis embora aparentemente tudo se passasse de forma polida. Os portugueses são um pouco melhor em quase tudo, penso eu. Até na simpatia com que acolhemos as pessoas de outros países. Vamos a Espanha, pedimos uma simples cerveja e o senhor que nos atende faz uma cara de quem não está a entender ou traz-nos algo para beber completamente diferente. Também são péssimos a falar inglês. Pelo menos nisso os portugueses aparentam estar em melhor forma. Claro que os espanhóis nos tiraram o que era nosso, aqui e ali, nesta ou naquela circunstância. Mas o essencial da questão não está no que eles nos tiram, mas sim na nossa passividade. Fomos nós próprios que deixámos. A opinião é subscrita por outro comentador lusitano: O nosso Governo, como sempre, nunca teve tomates para exigir o que nos pertence, de que é um bom exemplo Olivença. Como não tem tomates para defender Portugal e a sua cultura no exterior. Actualmente a situação ainda se tornou mais grave, uma vez que o nosso País é um caixote do lixo perfeito para os países considerados mais desenvolvidos. Nesta perspectiva, Olivença até é um pequeno problema comparado com a roubalheira a que os portugueses estão sujeitos por parte de todos os países que querem fazer do nosso território uma autêntica casa de banho! E nós indecisos, alienados, cegos, escravos, ineptos, nem o cheiro imundo nos incomoda. Não sei onde anda o espírito de justiça, guerreiro e aventureiro dos portugueses! O que gera um comentário dissonante: Tenho viajado por Espanha e, de um modo geral, gosto e aprecio a forma como os espanhóis têm mantido a sua “integridade” cultural face à integração europeia. De nós já não podemos elogiar isso, porque temos a tendência de imitar, muitas vezes mal, como que cultivando um sentimento de “inferioridade”, um complexo que tentamos ultrapassar com certos laivos de “saloiice”, que não caem bem. É pena! O remate volta ao Brasil: Não percebem que tudo isto é apenas uma falácia provocatória para captar argumentos inteligentes?) Discussão interessante que Tiago Penha deveria acompanhar. É que, como se não bastasse a conversa cruzada entre castelhano e português, havia ainda o registo cauteloso, como ele estava a pressentir. Que esta senhora era uma puta fina. Um desconchavo era o que era, um perfeito e completo disparate; um desatino, um absurdo, uma tolice, uma imprudência, só despropósitos para quem estava a pagar a conta e não sabia como exigir os direitos que o desembolso em numerário lhe conferia. Que raio! Não diz a tradição das boas práticas comerciais que o cliente tem sempre razão? Não era ele quem teria de pagar a conta? Na verdade, aquilo não era bem o que lhe apetecia 116 naquele momento. Contudo, Tiago não podia esconder que havia ali qualquer coisa profundamente tentadora que não conseguia definir. Talvez fosse do uísque. — Estou a ver. Diz-me então: quanto custas? — disparou ele, mal a empregada se afastou, fitando com intensidade, e alguma agressividade, os olhos da Claire Danes em versão morena. A sensação de silêncio havia desaparecido por completo. Voltara-se a ouvir o burburinho dos convivas, eles e elas, e os acordes das canções ciganas da Andaluzia. — No es la pregunta correcta. Lo que deberías querer saber es si me gustas — respondeu ela com um sorriso, mantendo a voz macia, tão suave que começava a irritálo. — Mas não é este o teu trabalho? Não sou só um cliente que tem de pagar se quiser determinados serviços? — De esa manera, tenemos el primer gran problema: no le quieres saber — sentenciou ela, apagando o cigarro num cinzeiro atolado de beatas ao mesmo tempo que Penha acendia outro e emborcava o resto do uísque num só gole, à espera que a distinta senhora das leggings de licra preta transparentes, sem cuecas e com os pêlos púbicos quase à mostra, amassados pelo tecido, lhe trouxesse mais uma dose. — Espera lá que estou a ficar confuso. Sou eu que tenho que te agradar?! De saber… De saber o quê? Se gostas de mim? Porra, não estamos numa casa de putas?! Os ruídos de Tiago, ligeiramente exacerbado, chamaram a atenção do segurança, que lhe deitou um olhar de poucos amigos, tal como havia sucedido com Simão Saraiva. — Una casa de copas — insistiu ela, quase a sussurrar. Penha percebeu que tinha de se aquietar e baixou o volume da voz, mas sem deixar de manifestar a sua impaciência. — E vocês a darem-lhe com a casa de copas. Isso é o quê? Sexo de extrema-direita? Sexo nacionalista espanhol? — Lo siento. Soy del Ecuador, de Quito — e riu-se. — España es un accidente de la vida. Tiago recostou-se no canapé e suspirou fundo. Rendido ao encanto daquele riso. E sorriu. E riu-se também. — Que quieres saber? — voltou ela a murmurar, com uma inesperada inflexão no discurso. Mantinha o sorriso e uma expressão no rosto ferozmente encantadora. Mas havia agora cumplicidade, que se confundia com proximidade, como se de repente os dois houvessem passado a falar a mesma língua, sem barreiras geográficas ou sociais, como se fossem amantes e não seres desconhecidos que haviam acabado de se cruzar, ele a chegar, ela a partir, por acidente, como se tudo aquilo não tivesse passado afinal de um pequeno teste prévio, preliminares de amores tresmalhados, antes da dança da paixão, o sexo selvagem em estado puro, tão intenso quanto breve, apenas de passagem a troco de uns trocos, de preferência em euros. Multiplicados por dez elevado a nove. Se se desse o caso das putas amarem. Tudo e nada, terá pensado Penha na resposta que não deu ao acabaram a noite no hotel onde ele estava hospedado, perto da Puerta de Alcalá. A foder, claro está. Num quarto quente e abafado com uma ventoinha no tecto e o zumbido permanente das pás a varrer o ar. Mas também com troca de afectos. Até porque o sexo não era grande coisa, não é que a equatoriana não se esforçasse ou não tivesse a mestria determinada em forçar o prazer, as artes de causar o deleite aprendidas à força pela força de tantos e repetidos encontros com desconhecidos, mas faltava-lhe no corpo o que tinha no rosto, a brisa intensa de sedução, o êxtase e o deslumbramento, na ausência de curvas e de carne a 117 que Tiago se pudesse agarrar, que o amor é coisa da alma, mas na hora dos instintos primários é o animal que se revela, e esse só com selvajaria se sacia. (Web Forum: Talvez seja assim para aqueles que não conhecem o amor de verdade… Com uma réplica dissonante no feminino: “Sem o corpo a alma não goza”. Penso que quem o escreveu foi a Adélia Prado. E mais um comentário, igualmente no feminino: “A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”, palavras de Jean-Paul Sartre. O que gera uma observação lacónica: Já vi discussões melhores. E o remate: É justo ficarmos escravos de instintos primitivos, levados pelo impulso do desejo? Em determinados momentos, será preciso ligar o botão do autocontrole, porque às vezes, por uma série de motivos, o corpo diz sim, mas a mente diz não. É um confronto de gigantes) Com efeito, que estranho negócio aquele, jogo mais que improvável, porque a beldade de Quito, latitude zero (o que em rigor não é verdade, nunca é demais relembrar), podia ser fascinante a muitos títulos mas definitivamente não fazia o género de Penha. Mesmo se olhada sob o fetiche da possibilidade imaginária de se trocar beijos, afagos e outras intimidades com uma estrela de Hollywood. Todavia, a tentação da imaculabilidade não era suficiente para aplacar os apetites do corpo de um apaixonado pela generosidade sumptuosa do genótipo latino ou, no limite, por mais contraditório que possa parecer, pela frieza misteriosa do paraíso ariano, já se sabe, na verdade ele até preferia as nórdicas, uma paisagem abrasadora pintada de azul, branco e dourado, o que tende a ser uma nova contradição, pois frio e brasas, por muito mistério que queiram ter, não parecem ser sinónimos, mas nestas coisas do devir carnal há sempre causas ocultas, dogmas que aparentam ser inexplicáveis, segredos que a razão humana não pode compreender, sobretudo quando não há razões mas tão-somente crenças, o que significa que tudo acaba por ser uma questão de fé, ou de fidelidade, já não basta a batalha titânica entre as forças do espírito e as forças da arimética, a alma e o corpo em perfeito desatino, ou o desvario da falta de tino, que é o mesmo que dizer a mente e os seus delírios. E lá volta o paradigma da insanidade quando não há sanidade que baste, e a fatuidade, e os fogos-fátuos, e Clark Kent e Krypton, e já agora os Simpsons, desde que se mantenha a versão original, que isto das dobragens é tão fatal como a fatalidade do destino, presumindo que seja coisa que exista. O destino, bem entendido. Tiago Penha e a equatoriana do bar de copas de Recoletos voltaram a ver-se na noite seguinte. E na outra. E ainda em mais uma. Quatro noites em que privaram activamente em todos os sentidos. Na cama e fora dela. Encontros à margem do bar de copas para despedidas de solteros, com passeios a dois ao final da tarde pelo Real Jardín Botánico, entre o museu do Prado e Atocha, ou pela praça de Cibeles, sempre animada por turistas em busca da mãe da vida e da fertilidade, a deusa Cibele esculpida em forma de fontanário, ou pelas calles agitadas que desembocam na praça da Puerta del Sol, o coração nevrálgico de todos os verdadeiros madrilenos; com jantares íntimos e dispendiosos, ao som de flamenco, outra música misteriosa da paixão e da sedução, na praça Tirso de Molina ou na praça da Chueca, morada de extravagâncias da comunidade gay de Madrid; com passagens pelas catedrais do house e do techno, nas mesmas cercanias entre Atocha e del Sol, a contragosto de Penha, que aquilo era demais para ele, sobretudo os olhares mortíferos que a equatoriana deitava para tudo o que era espécie humana, homens ou mulheres (se essas dessem sinais nesse sentido), parecia ter as sondas de prospecção sempre a laborar, sempre pronta para foder o próximo, frenética e incansável, ao mesmo tempo que o mimava até à exaustão; e com os regressos de táxi à Puerta de Alcalá, àquele quarto quente e abafado para cópulas calmas e demoradas, finalmente em aterragem, ou em despenhamento, vá-se lá saber. Intimidades que Tiago Penha afinal já não desejava. Bastava-lhe falar, bastava-lhe fingir 118 que amava aquela mulher que nem sequer era o seu género. Mas ela insistia, doce, em castelhano, não se sabe se por desejo ou por obrigação, talvez por não ter vida senão aquela. A que fora obrigada a aprender para sobreviver. Longe de Quito, longe das ruínas escondidas da cidade dos Incas e das memórias contraditórias de Atahualpa, o último Sapa Inca que o Equador conheceu. Com efeito, mais parecia o início de uma relação, quando na verdade tanto era falsa como verdadeira esta estranha forma de amar, se é que o amor pode entrar numa equação em que o sexo não é grande coisa, já se sabe, tanto mais que o animal revelou-se mas não estimulou o objecto desejado; era apenas para falar, insiste-se, mas o tempo paga-se, e escasseava, claro que havia um prazo, que as despesas eram muitas e havia que ganhar a vida. Ela. E ele. — Aparte de todo me siento derrotada, frustrada, enganada — disse-lhe ela uma vez, nua, encharcada em suor, deitada ao seu lado, a olhar para a ventoinha no tecto que muito barulho fazia mas pouco ventilava. — Como quito esta tristeza que me esta matando? Tiago encolheu os ombros. Talvez em sinal de impotência ou simplesmente de mera indiferença, porque conhecia bem aquela história. A morena do bar de copas, cujo nome Penha nunca chegou a decorar, ou se calhar a saber, havia deixado a latitude zero e o vale das terras altas com o novio em busca de melhores dias. Mas na metrópole, na capital do antigo império espanhol, a história – a que Tiago sabia bem – transformou-se rapidamente na do costume. Tal como o Estado pluricontinental se fragmentou em repúblicas independentes e num reino com comunidades autónomas acossadas pelo terror de movimentos separatistas, também a vida da jovem equatoriana se reduziu a pedaços, e depressa, mal chegou a terras de Espanha. O novio, pouco experimentado em novos mundos, deixou-se encantar pelos resquícios da movida madrilena e mergulhou na noche que nunca duerme rendido aos prazeres da MDMA, DOB, speed e de toda a amálgama das club drugs. Aos prazeres e aos vícios, que logo deram lugar à dependência de ter de fazer dinheiro à pressa. Repentinamente. “Madrid me mata”. E ela? — No tenía dinero para regresar a casa — comentou por fim, justificando-se, como se lhe houvesse sido pedido, o que não foi o caso (apenas ficara suspenso no ar a jusante, interrogação natural após o breve relato sobre o percurso madrileno do novio). — No pudo hacer nada más que hacerme daño — acrescentou ainda, mas sem mostrar qualquer emoção na voz. (Web Forum: Vende-se o que se tem para comprar o que se não tem. Qual é o problema? O comentário gera uma réplica no feminino: Tenho dó dessa lógica de maisvalias aplicada ao próprio corpo e ao gozo do cliente. E um novo comentário a subscrever a primeira observação: Faz ela muito bem. Que sobreviva por muito tempo, independentemente do que faz para o conseguir) Ela levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Aparentemente, além de defender que não se deve beber mucho en una casa de copas, a beldade do Quito tinha aprendido uma outra regla de oro: nunca acordar no leito de clientes. Na verdade, nas quatro noites que durou aquele jogo improvável de troca de afectos a troco de uns trocos multiplicados por dez elevado a nove, mesmo naquelas que estavam prestes a desvanecer-se para ceder o lugar à aurora, fez sempre questão de se ir embora assim que sentia, por razões que Penha nunca conseguiu perceber, que o encontro havia terminado. Tiago recostou-se na cama. Ouviu o som do autoclismo, viu-a sair dos servicios privativos do seu quarto, abalroado continuamente pelo zunido penoso da ventoinha que nada servia para apaziguar o calor que ali se fazia sentir, e pôs-se a observar com 119 atenção a geometria harmoniosa do corpo dela enquanto a equatoriana se vestia vagarosamente. Feminina, graciosa, provavelmente bela, embora ele só conseguisse ver uma constelação de ossos revestidos por membranas e tecidos musculados. Evidentemente que era sensual, evidentemente que era tentadora, apetecível, jovem, talvez com metade da idade dele, com uma pele luzidia e sedosa, peitos pequenos mas proporcionais para a sua estatura média, barriga lisa, um pequeno tufo de pêlos púbicos escuros recortados na vertical a encimar uma região que um ginecologista decerto diria ser perfeita, ancas e pernas magras e ausência de qualquer sinal de celulite. Bem vistas as coisas, um corpo sem defeitos com os bons ofícios de um rosto angelical, afinal um compósito orgânico multicelular tão cândido quanto provocador com o traço da imaculabilidade, coisa estranha para quem passava a vida a emprestar-se aos outros. Quando a beldade do Quito ficou pronta para sair, Tiago Penha deu consigo a pensar pela enésima vez: de facto, ela era ferozmente encantadora, alguém que podia amar. Mas faltava ali carne, algo a que se agarrar. Definitivamente não fazia o seu género. (Web Forum: Isto é tudo tão relativo. Cada sociedade tem a sua forma de se comportar. Talvez o que é gordo para mim, é magro para uma outra pessoa. Comentário primeiro de uma conversa cruzada e extensa no feminino, entre Portugal e Brasil, sobre a eterna questão das mulheres, as curvas, o peso, a boa forma e a gordura: Os valores estão a ser invertidos. Nem sempre magreza é sinal de beleza. A que se segue uma observação lacónica: O que há é muita gordura de espírito! E outra: E distorção corporal. E mais comentários: Apesar do corpo poder ser gordo, a mulher ou um homem não são apenas um corpo. O corpo é um mero acessório e um acessório não nos define. Réplica: Então fica bem gordinha e vai pedir um emprego a uma empresa. Depois, se possível, gostava de saber o resultado. E outra: Infelizmente é a realidade. O mundo define-nos pela nossa aparência. Segue-se uma nova observação: Se não fosse assim, pessoas tão maravilhosas mas com uma má constituição física não despertariam desconfiança e outras coisas. Está longe o dia em que as pessoas poderão andar com bem entendem sem serem julgadas por isso. Detesto que isso aconteça, mas é o que vejo por aí. E mais outra: Conheço mulheres que param de comer e não é por culpa delas; é o mundo que o exige das mulheres. O mundo exige anorexia. Com uma tese: Não percebo esta discussão. O mais importante é ser linda. É isso que conta. E outra: Mas a idade não perdoa e mesmo as que não são gordas acabarão por sê-lo inevitavelmente. E novo comentário: Bem, eu preciso de fechar os olhos para certas comidas e abrir para outras. O curioso é muitas pessoas dizem que fazemos isso para agradar os homens. É mentira. Fazemos isso por que nos faz sentir bem; sentimo-nos felizes por dentro e por fora. Ser magra não é só estético, é também complicação. E mais um: Toda a mulher quando se olha no espelho sempre acha que está com uns quilinhos a mais do que realmente tem, ainda que a balança mostre o contrário. Mulher gosta de complicar. Com um remate em tom de desafio: O motivo certamente é o mesmo que leva os escritores a terem sempre protagonistas altas, loiras, cintura de sessenta centímetros. Mas pergunto-me: uma heroína baixinha com sentido de humor, sensibilidade e sensualidade, com oitenta quilos de peso, inteligente e arguta, venderia menos livros?) 120 XIV. A procura de sentidos para convicções tão voláteis e duvidosas como sensualidade ou beleza não era propriamente um assunto pelo qual Tiago Penha se interessasse, depois de tantas vidas experimentadas na imensidão do globo terrestre. E de amores marginais, ou legítimos, que o fracasso foi sempre o mesmo. Por que razão havia de pensar em objectos de arrebatamento e êxtase se estava a ficar velho? Por que razão havia de reinventar escalas de prazer e satisfação, ou porventura de alegria e felicidade, se estava a ficar cansado? Cansado e farto da sanidade em domínios tão insanos. Não é que não houvesse deixado de ser um viciado em sexo, como tantas vezes admitiu para justificar a possibilidade de entender que o sentido da vida não passa do mero suprimento de necessidades, da satisfação das necessidades primárias biológicas, mas aperceber-se de que havia atingido uma idade em que a mais velha profissão do mundo já não lhe bastava, que as outras para isso nunca serviram, era um mau presságio, sobretudo porque preferia bater punhetas a foder, tão frágil se havia tornado o seu vigor sexual, uma enorme sensação de frustração, pela simples razão de que não valia a pena evocar o amor, ele que só conseguia amar quando ambicionava concretizar o desejo de sexo ao mesmo tempo que se sentia a derrapar para o desfiladeiro do desaprumo mental, tal era a obsessão pelos apetites da carne. Com efeito, estava cada vez mais convicto de que a morte rasteja em silêncio, pelo que matar-se era a única opção – matar o corpo, os pensamentos, a depressão, a raiva – na ausência de presenças fungíveis, das que se gastam com o tempo mas que podem ser substituídas, no vazio que enchia a sua vida, uma cratera de desgraças e calamidades, ruínas e má sorte, assim a olhava, embora percebesse que talvez estivesse a dramatizar, fazendo jus à sua natureza lírica, própria de a quem acontecera nascer com o genótipo do fado lusitano, e que gosta de comover, embora percebesse que também havia ali qualquer coisa de anormal, irregular, a afastarse das normas, que é o mesmo que dizer a caminho da alucinação do espírito, quando o corpo não tem juízo e se deixa alienar e corromper, e tudo o resto se subverte. Com a morte da mãe e o regresso a casa, em definitivo, a lucidez de Penha – ele que era um artista dos bytes, é bom sublinhar, um mestre da lógica, tanto tecnicista como empírica, depositário do ethos industrial do Ocidente moderno – começou a tornar-se precária, e a degradar-se, com as gradações do misterioso espectro luminoso que varre o universo a perderem-se num mundo crescente de sombras, da intensidade do brilho ao prisma da opacidade. Se a vida tingia-se de vermelho e amarelo quando Tiago embarcava a caminho de um qualquer outro lugar fora de Portugal, enchendo-se de calor e descontracção, de energia e optimismo, de paixão e orgulho, em Lisboa, perto da Cidade Universitária, sentado na cadeira de verga almofadada num dos cantos da sua sala quadrilátera com amplas janelas envidraçadas num dos lados, acorrentado à coabitação com Maria Clara, só divisava, e a custo, roxo e cinzento, as cores da tristeza e da angústia, do medo e da depressão, do frio e da ansiedade, como se as folhas de papel da história da sua existência tivessem sido rasgadas, queimadas, reduzidas a 121 cinzas. Repentinamente. Na curva descendente do lado de lá do zénite dos quarenta, um corpo pesado e balofo em queda livre, desamparado, à espera do fim. Tiago sabia que tinha de travar essa cobardia da entrega do destino à providência, em que nem sequer acreditava, quer dizer, nos sábios desígnios de uma ordem preestabelecida, quando o que imperava era a desordem e a inexistência de algoritmos que a consertassem; sabia que tinha de conquistar tempo, e a coragem necessária para o desafiar; sabia que tinha de combater a opacidade que se instalara na sua vida e reviver as cores que tanto a animaram ao longo dos anos, nem que fosse apenas e só mais uma vez. A última, a derradeira, para saber quem fica com a melhor parte: os que vão ou os que permanecem. Roberto Cavalcanti, o seu amigo que brincava com letras bem lho tinha dito uma vez, numa carta que lhe escreveu de um hospital em São Paulo, pouco antes de morrer, vítima de leucemia, quando Penha estava ausente algures numa terra distante da imensidão do globo terrestre: é urgente reconciliar-nos connosco próprios, de tão breve que é a vida. «A vida é um hiato; um espaço entre o primeiro choro e o último suspiro. Entre ambos, há uma prisão. Uma prisão chamada sociedade, cercada pelos muros altos das mentiras, das ilusões, das farsas e da escravidão. Se fossemos seres minimamente conscientes, faríamos de tudo para romper com todas as paredes, muralhas, trancas e portas que nos aprisionam, tanto por dentro, nas nossas mentes, almas e corações, como por fora, nos nossos corpos, dominados pelo consumo, pela subserviência ao desejo de ter tudo de que pensamos precisar, sem realmente precisarmos. Somos fantasmas, sombras pálidas e difusas de algo maior que nunca saberemos o que é. Somos fantasmas que habitam carcaças disfuncionais que depressa deixam de existir. Deveria ser pois essa a nossa maior meta, destruir este mundo desumano que parece ser humano.» Daí que Tiago decidiu pôr-se a remexer no passado, a tentar contactar as figuras femininas que se haviam perdido noutros tempos. Era uma ideia disparatada. Mas por que não, se nada de melhor lhe ocorria? É certo que da estranha empreitada, regra geral, nada resultava. Mas servia para Penha tentar apaziguar o desânimo, revirar o tempo perdido em busca de sentidos, que tempo, afinal, parecia ser coisa que não conseguia preencher, e com a morte a rastejar em silêncio, a morte lenta de que não é possível escapar, talvez conseguisse perceber, por fim, o que movera a percorrer a trajectória que o conduzira até ali, aparentemente ponto de chegada da longa travessia pela cidade dos sete mares, que são nove. Contudo, depressa descobriu, sem ter pensado nisso, que não se tratava de uma tarefa fácil. Talvez muitas dessas mulheres já tivessem morrido. Vítimas de uma qualquer bactéria. Ou se calhar simplesmente desejassem que ele não ousasse em voltar a invadir as vidas delas, entrelaçadas com outros cordéis, pois os nós do passado assim devem ficar. Querer desatar memórias e tentar trazê-las de volta, para um presente entrelaçado com outros nós, mais não é do que querer fintar o tempo; o desespero ufano de desejar a reedição das regras de um jogo que ficou suspenso algures num outro espaço, no passado. Ainda assim, Tiago insistia. E percebe-se porquê. Não é que desejasse voltar atrás, como é bom de ver; ao invés, o que procurava era meter tudo no mesmo saco temporal. Toda a vida num só momento: o presente. Para que o naipe de opções fosse enorme. Um extenso baralho de jogadas possíveis. Para controlar a existência, o sentido da sua própria existência. E foi o que fez, ou tentou fazer, com a japonesa que tinha conhecido em São Paulo, da qual mal falou nas conversas sobre o assunto com Simão Saraiva, uma invulgar economia de revelações que surpreendeu o amigo, mas tudo ficou por aí; com a loira de Buenos Aires e a morena de Madrid, essas sim, exaustivamente descritas; e até com a famigerada colega de trabalho, outro hiato – que se manteve eterno – no enredo 122 demencial das suas aventuras à margem da falácia conjugal, provavelmente porque foi essa, quer dizer, essa mulher quem fizera desabar a sua união com Maria Clara, logo no início. Um mês depois de formalizado o contrato, após quase quinze anos de relacionamento. Aliás, na véspera do casamento, Tiago Penha havia chegado a fazer uma nova despedida de solteira. Secreta. A sós, sem amigos. Para acabar a madrugada enfiado num carro com uma mulher com a qual apenas trocou beijos e carícias. O sexo não tinha espaço naquela hora. O que seria feito delas? Teriam casado? Mudado de lugar? De vida? Teriam filhos? Ainda estariam vivas? Seriam parecidas com a imagem com que ele ficara delas, lá atrás, em tempos idos? Começou por recuperar contactos telefónicos, poucos, que a maioria havia perdido, bem como os respectivos nomes, mas não houve respostas. Números alterados, números silenciados, números e mais números, sem que do outro lado da linha houvesse uma voz que fosse para ouvir ou responder. Zero. Resultado nulo. Um nítido nulo em que não valia a pena insistir. Seguiu-se a Internet, através da qual supostamente tudo seria mais fácil. Mas o rasto desses anos não passava pela rede. Se tivesse nascido duas décadas depois, aí sim, seria capaz de bloquear alguns vestígios. Mas assim tinha de se limitar à escassez de informação; eventuais mudanças de apelido, fraca adesão às redes sociais e, mesmo nesses casos, surgia sempre o fantasma do anonimato, a velha mania daqueles, ou daquelas, que se escondem atrás de personagens fictícias, de se se passarem por quem não são. A coisa transformou-se num quebra-cabeças e Penha acabou por chegar à conclusão de que definitivamente não teria sucesso. Todas as tentativas de desatar os nós do passado revelaram-se infrutíferas, que a árvore do conhecimento não é para todos e o fruto do pecado confunde-se facilmente. Como os cogumelos. Onde pára o veneno? A japonesa tinha um apelido aparentemente singular. Mas depressa descobriu que, afinal, assim não era. Experimentou várias redes sociais e a listagem de utilizadores com aquele nome era infindável. Como aplicar um sistema eficaz de webtracking? Tinha o mesmo problema sempre que lhe pediam soluções de ROI metrics. Não é que, neste particular, fosse assim tão complicado. Mas no social media, se o output que se ambiciona encontrar situa-se fora desta tipologia, tudo se complica. Uma coisa é analisar a popularidade de um produto, traçar perfis de consumidores; outra coisa é inverter o processo para procurar pessoas concretas, com nome, com rosto, com traços que havia decorado no passado. O processo de registo de incidências não lhe parecia aplicável, já que as mesmas estavam inacessíveis ou, quando surgiam, eram tão esparsas que pouco significado tinham. Tiago dava voltas à cabeça: repensava nas técnicas e ferramentas para o social media analysis e nada funcionava; não eram conteúdos, eram os autores dos conteúdos. Procurar autores/pessoas de A a Z, sem ter a alavanca dos conteúdos que produziam, inquinava tudo o que já conseguira fazer até então em projectos com características semelhantes e, inclusivamente, com uma complexidade bastante superior. Zero. Resultado nulo. Novo nítido nulo. Tão nítido que exasperou Penha. Tantos e tão intricados algoritmos, dezenas e dezenas de linhas de código, a cruzar linguagens, aplicações, scripts e tudo descobria menos o que queria. Como era possível que toda uma existência só vivesse na memória sem que dela houvesse qualquer rasto tangível? Não deixava de ser irónico, uma charada tragicómica; de tudo o que queria recordar havia apenas aqueles dois diários, dois cadernos de bolso com as páginas presas por argolas, um de capa azul, a cor da fé e da noite, outro de cor-de-rosa, a cor dos corpos dos judeus amontoados nas câmaras de gás nazis. Registos da famigerada viagem pela Europa com Maria Clara em dois mil e um, no fatídico ano de dois mil e um, nunca é demais recordar, de mochila às costas, a última a dois com Ester à beira de se afogar no 123 interior do ventre da mãe e o princípio do fim a ser escrito, o que não é verdade, o fim havia já sido ditado meses antes quando Tiago decidiu ocupar-se dos baixios vaginais de uma colega, com a mulher grávida, embora o contrato marital não tenha sido revogado, que vergonha, mas a sentença fora proferida, não obstante a eternidade que levaria a ser cumprida, ou aplicada, em forma de homicídio na mesma morada genital com a ajuda de uma dose letal de cicutoxina. “Very romantic!” Tiago Penha lembrava-se bem da frase, murmurada por um norte-americano de cabelo grisalho, com um sorriso na cara, ao passar por ele numa outra gôndola em Veneza. Já lá iam quantos anos? Na verdade, por mais tempo que se passasse, aquela era uma recordação impossível de arrumar numa qualquer gaveta onde se amontoam os despojos das pelejas que se travam ao longo da vida. Foi ao início da tarde, um dia depois dele e Maria Clara terem chegado de comboio à cidade do amor, vindos de Viena. “Very romantic!”, não parava de dizer o súbdito de Mr. Bush, enlevado por aquele momento único, que tragicamente se tornaria ainda mais singular. O turista norte-americano terá repetido as palavras duas ou três vezes quando Tiago começou a ouvir o gondoleiro, em pé, por detrás do homem, aos gritos para os camaradas de profissão que se cruzavam com ele: “Centocinquantamila morti in America!”. “Cosa?”, quis saber o gondoleiro de Penha. E o outro insistiu: “È una tragedia. Centocinquantamila morti!”. Só podiam estar a brincar! Acabara de gastar vinte contos no célebre passeio romântico em Veneza, que em boa verdade nem meia hora dura e anda por ali às voltinhas, e cai o World Trade Center?! “Puttana di vita!”. Tinha de ser uma piada de mau gosto, que nisso os gondoleiros eram exímios. Mas não era. O anúncio circulava de boca em boca. “Centocinquantamila morti in America!”, gritava um para o outro que depressa reencaminhava a mensagem para o seguinte. Naquele momento, ainda não se percebia ao certo se realmente algo de grave havia acontecido, mas sentia-se um certo rebuliço um pouco por todo o lado. E um clima de tensão a adensar-se à medida que o curso normal das romarias turísticas se subvertia, com muitos a abandonar as gôndolas à pressa, e outros a correr pelas ruas sinuosas à beira dos canais. Os vaporettos começaram a acostar rapidamente; o mesmo sucedia com todas as outras espécies de embarcações. “Centocinquantamila morti!” O telemóvel de Penha começou a tocar. E foi aí que pressentiu, ou teve mesmo a certeza, de que estava a experienciar um momento trágico. Distante, é certo, mas também ali a sacudir a cidade, que não parece insular, embora tenha, só no centro histórico (uma pequena área que nem chega a oito quilómetros quadrados), cento e dezassete ilhas, cento e cinquenta canais e quatrocentas e nove pontes. Era uma chamada de Lisboa. Para confirmar a notícia. Sinistra, severamente sinistra, para quem ainda mal estava a descobrir os encantos de Veneza. As torres gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque, haviam acabado de desabar. Tiago desligou o telefone e pôs-se a observar Maria Clara, sentado na gôndola no canal grande com o sol a bater-lhe de frente nos olhos. «Veneza, a caminho de Florença, Setembro doze, dez e cinco Querida Ester, Tragédia em Nova Iorque. É mais uma coincidência notável desta viagem. A sensação de catástrofe ficará para sempre na memória. Sempre que alguém se recordar do dia em que o World Trade Center veio abaixo, lembrar-me-ei que nesse momento estava ao lado da mulher que amo, ou penso que amo, não sei, numa gôndola em Veneza. Passei o resto do dia colado à CNN. E mesmo agora, a caminho de Florença e com o USA Today nas mãos, estou ansioso por chegar a um hotel e ligar de novo a CNN para ver o 124 desenvolvimento da história. Mas esta passagem pela cidade do amor começou antes. A ligação entre Viena e Veneza foi um pouco morosa, como era suposto ser. De qualquer modo, consegui arranjar uma couchette. Bom negócio paralelo este a bordo dos comboios internacionais. Ajudou a passar a noite, tanto mais que acabámos por ficar sozinhos (numa cabine para quatro), depois da tentativa de um “penetra” austríaco em ficar por lá. Perguntou-me se as camas de baixo estavam livres. Achei estranho, mas disse que sim. E a verdade é que, pouco depois, apareceu o supervisor da carruagemcama e mandou embora o austríaco, que não tinha título de viagem para estar ali. De manhã, a meia hora de Veneza, começámos muito mal o dia, eu e a tua mãe. As coisas do costume, mas suficientes para azedar aquele momento por que tanto ansiávamos. Quer dizer, pensava eu, porque o impacto da chegada a Veneza foi simplesmente arrebatador. Ainda não se viu nada e já sentimos toda aquela beleza mágica que gera um inevitável e irresistível efeito anestésico. Chegámos cedo à estação ferroviária de Santa Lucia. Estava frio, como as manhãs entre mim e a tua mãe, mas bem longe do ar cortante e gélido de Viena. E afinal até foi fácil encontrar um hotel. Surpreendentemente fácil. Seguimos as indicações do nosso precioso Lonely Planet, mas estávamos apreensivos e mesmo na disposição de seguir para Pádua em caso de insucesso. Contudo, bastaram duas tentativas: hotel Spagna, três estrelas, diária de duzentas mil liras, quarto simpático e espaçoso. Parecia bom demais. Tanto o quarto como a sorte que tivemos em arranjá-lo. Veneza é na realidade mágica, muito mais do que imaginava e sem nada daqueles disparates que alguns dizem; uma cidade malcheirosa, confusa, etc. É mentira. É claro que temos de estar preparados para nos perdermos nas ruelas, mas creio que isso faz parte do processo natural da descoberta de Veneza. De resto, não é assim tão difícil orientar-nos. Basta apanhar os vaporettos, especialmente os da Linha Um que atravessam o Grande Canal. A chegada à Praça de São Marcos, Piazza San Marco, como eles lhe chamam, é outro baque. Linda de morrer, monumental, gigantesca. Provavelmente é difícil de descrever tudo o que se sente ali. Não consegui parar de disparar a minha máquina fotográfica. Subimos à torre panorâmica, o campanário da Basílica de São Marcos, e mais um impulso desenfreado para fotografar tudo o que via. Passámos pelas ilhas do Lido na região do Véneto, no sudeste (as praias são privativas), Murano (a sede do vidro) – que na verdade é um arquipélago de sete ilhas, duas artificiais, na Lagoa de Veneza – e Burano (outra jóia de beleza que voltou a extasiar-nos), também um pequeno arquipélago na Lagoa, de quatro ilhotas com pequenos canais a interligá-las, uma vila pitoresca de pescadores com todas as casas pintadas de cores diferentes. Maravilhosa e bem mais calma que Veneza. A sete quilómetros. Come-se mal nesta cidade. Pouco, caro e mal servidos. O passeio de gôndola foi o que se viu. Mas também teve aspectos positivos. O preço é proibitivo, vinte contos, tanta quanta a diária do hotel, a viagem é curta, não passou dos vinte minutos, provavelmente terá tido a ver com o que sucedeu, mas é uma experiência única. Faz-nos sentir dentro do rio ou do mar, nem sei bem que água é aquela, vemos a cidade de baixo e parece que estamos noutra época. O clima entre mim e a tua mãe não anda nada bom, já se sabe, mas creio que por momentos houve um clique, algo de especial espoletado por todo aquele ambiente. E até tivemos sorte: só nós os dois numa gôndola para cinco. Estamos na etapa final desta viagem. Já sucederam imensas coisas. Muitas histórias, muitos episódios. Tem sido enriquecedora a todos os níveis, mesmo do ponto de vista emocional, já que serve para testar o que sentimos e do que sentimos falta. Próxima paragem: Florença. Se não houver mais contratempos como este dos Estados Unidos.» E não houve, quer dizer, mais contratempos desta natureza, mas este foi o suficiente para ensombrar aquele que era suposto ser o momento áureo da viagem. Uma 125 coincidência notável, se olhada no tempo, em perspectiva: um ataque terrorista feroz no preciso momento em que Tiago e Maria passeavam de gôndola por Veneza. Em boa verdade, só alguns dias depois é que ambos perceberam com clareza que recordariam para sempre que a possibilidade de elevar um gesto comum e por tantos experienciado à epifania do romantismo – de materializar o sonho do amor dos cartões-postais numa experiência pessoal, a dois; de aplacar, mesmo que por momentos, o tumulto de uma relação condenada – havia ficado indelevelmente marcada pelos ecos de uma tragédia com a ameaça de efeitos à escala global. Se fosse uma metáfora, dir-se-ia que foi precisamente na cidade do amor que Penha e Clara assistiram, sem saber, à derrocada precoce das torres que já mal sustentavam o peso da paixão e do ódio que ditava o rumo da sua estranha forma de coabitação conjugal, quando até, com alguma ironia, mais não estavam do que a despedir-se da vida em par no prenúncio da alegria do ímpar com a chegada do primogénito, Ester, a estrela hebraica, fruto do que Deus uniu, o homem e a mulher, acto de amor e a palavra do Senhor a ressoar, “Sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela.” Com efeito, avizinhava-se uma grande guerra, mas não propriamente aquela de que Maria Clara dá conta no seu diário ao referir-se ao incidente em território norteamericano enquanto ela e Tiago deambulavam pelo mapa labiríntico das ruas e canais de Veneza. «Veneza, Setembro doze, dez e quarenta e cinco Estamos no comboio com destino a Florença. Sinto que estamos na etapa final desta pequena aventura. Estivemos três dias em Veneza e, para mim, não foi suficiente. Tenho a sensação de que ficou muita coisa para ver, pelo que parto com a promessa, ou pelo menos a vontade, de cá voltar. Veneza, grande Veneza, terra dos meus sonhos que não me desiludiu. Pelo contrário, superou até todas as expectativas. Ampliou todas as minhas emoções. Atravessámos becos sem fim, com ar medieval, com construções que datam de há muitos séculos e que, aparentemente, permanecem intocáveis, sem alterações. A sensação de estar em Veneza parece ser semelhante a uma viagem no tempo, como se recuássemos para outras eras do passado. Fez-me sonhar com a época medieval. Os canais são lindíssimos e o ambiente – salvo mais uma vez os milhares de turistas a cirandar com frenesim, acotovelados e sempre apressados – é propício ao encanto, à nostalgia. No primeiro dia percorremos algumas das ruas menos centrais, que são um autêntico labirinto, e pudemos apreciar os traços arquitectónicos das casas, a maioria em muito mau estado, mas mesmo assim deslumbrantes, cercadas por aqueles milhares de canais. E pontes. Imensas pontes, quase todas iguais. Como as ruas. Sem referências, sem traços distintivos, facilmente se se perde nelas. Mas é tudo simplesmente encantador. Depois, começámos a aproximar-nos das áreas mais centrais e desembocámos na Praça de São Marcos. De facto, é uma praça magnífica cheia de grandes monumentos em estilo gótico veneziano. Pena é a enorme confusão causada pela impaciência doentia dos turistas. De qualquer forma, a beleza da praça acaba por se sobrepor ao desconforto de sentir que andamos a atropelarmo-nos uns aos outros. Fiquei tão extasiada que até tive receio de pisar os milhares de pombos que por ali param. Aliás, essa é também uma das atracções curiosas da Praça de São Marcos, uma imagem de postal. Um bando gigantesco de pombos misturado com a multidão de pessoas, que se divertem imenso com as aves. A alimentá-las. Há dezenas de bancas com comida para pombos à venda. E, claro está, todo o resto do comércio habitual que se instala em locais de grande afluência turística como este. Lojas e mais lojas, onde se pode comprar de tudo, incluindo as peças de vidro caríssimas das ilhas de Murano. Vale a pena sentarmo-nos numa das esplanadas da praça. Um café custa uma fortuna, mas sempre há música ao vivo. Um violonista, por exemplo, a querer dar aquele toque de requinte e 126 romantismo, o que não deixou de ser curioso para nós, acabados de chegar de Viena, a capital mundial da música erudita onde não faltam violonistas e sinfonias urbanas para exaltar a quinta-essência da arte da sedução. Veneza é uma cidade pequena, mas muito rica em termos de património histórico e artístico. Não tivemos tempo para explorar as fabulosas igrejas onde existem pinturas de época. Entrámos numa, a de São Roque, no Campo San Rocco, e foi extraordinário. Fantástico é também o trânsito fluvial, algo que talvez só seja possível ver em Veneza. Não estou certa. Mas é extremamente interessante para quem, como nós, está habituado a que se faça tudo por terra. Ali, para circularmos de um lado para o outro, temos de andar nos famosos vaporettos, normalmente a abarrotar de pessoas. Há também bombeiros, carteiros, táxis, ambulâncias, tudo em forma de pequenas embarcações a deslocarem-se pelos canais. É engraçado. Até na água, os condutores (se é assim que se chamam) circulam à boa maneira italiana, como se vê nos filmes, de forma caótica e confusa, sempre a barafustar uns com os outros. E o mais impressionante é que no meio da desordem não há acidentes. Toda a gente acaba sempre por arranjar um caminho para passar ou um canto para acostar os barcos. Afinal, tudo decorre na normalidade, embora seja uma normalidade muito peculiar. Ao que parece, os italianos são mesmo assim. Na verdade, são acessíveis, simpáticos, apesar de normalmente nos confundirem com os espanhóis. E, ao contrário do que pensava, temos alguma dificuldade em entendê-los. Já para não falar nas liras que, para nós, foram uma grande dor de cabeça. Se não estivermos atentos, facilmente nos enganamos com todos aqueles zeros. Todas as contas são feitas em milhares, o que é estranho para aqueles que estão habituados à numeração decimal. A decepção foi na comida. É extremamente cara. E os pratos são normalmente mal servidos. Demos um passeio por algumas ilhas nas redondezas, como Murano e Burano, a terra dos bordados em linho. Perdi-me totalmente. Apetecia-me comprar tudo, porque são lindíssimos. E tivemos, claro está, que desmistificar o célebre passeio de gôndola. Dez mil liras por pessoa, com gondoleiros que ignoram por completo os turistas. Contudo, esta viagem foi muito particular e inimaginável. Aí a meio do passeio, um gondoleiro passou pelo nosso a dizer que tinham morrido cento e cinquenta mil pessoas na América. E o nosso começou a fazer o mesmo. Não parava de repetir a informação sempre que se cruzava com outros colegas. No início, não percebemos bem o que se estava a passar. Aquilo não fazia qualquer sentido. Mas pouco tempo depois, quase que por coincidência, ligaram para o telemóvel do Tiago. Era um colega dele, em Lisboa, a confirmar a notícia. Segundo este primeiro relato, fundamentalistas árabes tinham feito um atentado suicida contra as torres do World Trade Center, em Nova Iorque, e o Pentágono, na Virgínia. O caos e o terror dominavam os Estados Unidos. Quatro aviões com cerca de novecentas pessoas a bordo, no total, tinham sido usados como bombas contra os edifícios. Supunha-se que milhares de pessoas estavam mortas. E agora sabemos que já se fala na iminência de uma grande guerra. Ameaça dos americanos que querem punir os responsáveis por este trágico acontecimento. A ver vamos o que vai suceder. Mesmo aqui em Itália há alguma tensão devido às bases militares americanas instaladas no País. Pelo menos é o que escrevem os jornais italianos. Falam em estado de alerta e em Itália como um alvo possível de novos ataques. Por agora, estamos de partida para Florença. E já com saudades de Veneza. Cidade belíssima. Adeus Veneza. Até à próxima. Prometo que voltarei um dia.» A promessa não foi cumprida nem o será, sabe-se agora, mas chegaram a Florença são e salvos. Chegaram e saíram, com rumores de guerra, embora não se percebesse onde, para isso servem os tablóides sensacionalistas, a instigar o ódio e a confusão, de Florença, e de Pisa, a caminho de Génova, já no percurso de regresso a casa, com breves passagens por San Remo, na Riviera italiana, e pelo faustoso principado do Mónaco, na 127 Riviera francesa, e uma longa escala na estação ferroviária de Irún, no País Basco, uma pequena cidade fronteiriça com França, para novo embarque no mítico Sud Express, que já nada tem de mítico, como os dois se aperceberam no início da viagem, de volta ao ponto de partida, Santa Apolónia, em Lisboa, desfecho do breve périplo por algumas das principais capitais do velho continente e do troço final a bordo de um comboio decrépito e vagaroso, cheio de emigrantes e turistas de pé-descalço, malas e mais malas, com gaiolas e galinhas, bicicletas, triciclos e garrafões de vinho, que naquela época ainda era assim, no início do novo século, no princípio do novo milénio, tal e qual como nos tempos da história da “mala de cartão” e da fuga consentida da Guerra de Ultramar ou de outros infortúnios do Estado Novo. As últimas palavras registadas por Penha e Clara nos seus respectivos diários de bordo, escritas em Irún, são evasivas, muito vagas em relação ao que observaram e experienciaram na etapa final da viagem, provavelmente devido ao desgaste e à canseira de tão longa romaria em tão curto espaço de tempo por tantas cidades-monumento, por tantas vistas, correrias e outras moléstias da perseguição tresloucada das pegadas da História, onde as havia, não fosse dar-se o caso de se esfumarem mesmo antes de lá chegarem, sempre pejadas de turistas e outros viajantes, atrofiadas pelo frenesim dos mapas, dos guias, das máquinas fotográficas, das bagagens, das economias paralelas, vendedores de rua e ruas de vendedores, das feiras da ladra às lojas de luxo, e às de câmbio, lojas e bancas, e bancos, e bancadas, o hash, marijuana, change money, a modos que traduzido em todas as línguas do Mundo, a Pirgos tēs Babél do Antigo Testamento – muito antes de Penha descobrir do que se tratava, que Goa só se cruzaria com ele mais tarde – línguas e dialectos, linguarejares e todas as outras formas de dizer, ou de calar, que o silêncio também fala quando só ocorrem palavras amargas, como era o caso, entre o interlúdio da busca e o prelúdio da marcha à ré, à vida já encontrada, a vida real, à espera de ser retomada. “Temos de repensar esta relação”, disse Maria a Tiago à saída de Florença naquele comboio acanhado e apinhado de gente que os levou até à cidade de Pisa. «Decerto que ela o pensará algumas vezes, mas não acredito que o tenha dito com o alcance que parece estar encerrado nesta afirmação lacónica e dolorosa. De qualquer modo disse-o, e fiquei com uma sensação desagradável; é evidente a inquietação que a violenta», escreveu Penha. «Tenho vontade de abraçá-la e dizer que a amo. Tenho um desejo enorme de que ela faça o mesmo de forma espontânea. Mas sei que nada disso vai acontecer», acrescentou, acabando assim, com um pessimismo extremo, o relato inscrito no seu caderno de bolso com as páginas presas por argolas, de capa azul, a cor da noite e da fé, o que deve ser mentira, porque não é possível acreditar em algo que não se sente. Nem se vê. «Querida Ester, não sei o que se passa comigo, mas sinto um vulcão de emoções dentro de mim. Só espero que isto não nos venha a afectar», escreveu Maria Clara, por seu lado, dirigindo-se pela primeira e única vez à filha que carregava no útero, sem explicitar, porém, a que “nós” estava a referir-se. Foi a última frase que deixou no seu caderno de bolso, de capa corde-rosa, a cor do amor e da entrega total. O que também deve ser mentira, porque não é possível amar com tanta entrega, que a posse corrompe. O que, aliás, nem sequer era o seu caso, perante tantas incertezas e prognósticos reservados. (Web Forum: No amor não há razão para tanta desconfiança. Ou haverá? Ao primeiro comentário no feminino segue-se outro, no mesmo tom. Também não entendo. Que espécie de amor é este?) Dúvidas. E mais dúvidas. Questões sem resposta. Algumas retóricas, outras nem por isso, bem que podia haver alguém que acendesse a luz do quarto em que aqueles dois seres pareciam estar, na infinidade, a tactear-se um ou outro. Às escuras. O que terá acontecido em Praga? E em Viena? 128 Tiago nunca contou o que quer que fosse a Simão Saraiva, quando lhe sucedia evocar aquela viagem singular, mas o hiato era evidente, o hiato da vida, faltava Roberto Cavalcanti recordar, o amigo de Penha que brincava com letras e que com elas morreu, vítima de uma leucemia galopante. As pessoas são assim; inventam escuridões para obscurecer e desculpar o que lhes desagrada naquilo que se vê e não se pode esconder. Talvez por isso Tiago tenha criado aquele site, aquele fórum na web, farto dos nítidos nulos, dos insucessos do webtracking, agastado por não conseguir remexer no passado, por ser incapaz de chegar à fala com as mulheres que se haviam perdido noutros tempos, por falhar nas tentativas desesperadas de desatar memórias. Disfarçado de espaço de discussão, estupidamente para não encontrar mas para ser encontrado, pensava ele, depressa se transformou num avatar de confissões, primeiro a uma voz, depois a muitas, que a popularidade do sítio cresceu inesperadamente, afinal não era só ele que precisava de preencher o tempo, quando a morte rasteja em silêncio, e as verdades que se desabafam são universais, pelo que a todos tocam, ou a quase todos, mesmo os que não comentam mas só observam, e lêem, e pensam, era mesmo isto que eu queria dizer, era mesmo isto que eu estava a sentir, mas discordo, os amigos são falsos e a Internet só serve para ampliar o jogo do quarto escuro, não há ninguém que acenda a luz, porque convém, como as cortinas e os compartimentos que separam os penitentes em confissão e os sacerdotes de Deus, a santidade do sacramento assim o dita, o sacramento da reconciliação para tudo o que é irreconciliável. Tiago Penha bem o sabia, há mais de duas décadas que pagava a mesma dívida pelo pecado de se perder pelos baixios vaginais de uma colega quando a mulher estava prenhe, resultando no desfecho que se conhece. “Glória ao pai, ao filho e ao Espírito Santo... Oh Maria sem pecado (entra o órgão e o coro)... Pai Nosso que estás nos Céus... Seja feita a Tua vontade...” E todos repetem a ladainha. (Web Forum: Valeu a pena?, pergunta alguém a propósito da revelação feita no fórum. Talvez tenha chegado a hora de começar tactear pelo menos as paredes escuras do quarto, sugere outra voz a que se segue um comentário para insistir no princípio da discussão: Com esta capacidade de memorização, não seria aconselhável decorar também os duzentos e noventa e seis artigos da Constituição portuguesa? Ou os oito mil e oitocentos e dezasseis versos dos «Lusíadas»? Pertinente, mas a acabar com um remate estranho, no feminino, vindo do coração da Amazónia, em Manaus, a truncar toda a história, embora pareça ser, afinal, a citação de um texto de um terceiro. Assinado Ana Carolina: E juntos fugiram durante uma estação do ano. Ele a ensinou a respirar as horas sem ter que pensar nas consequências. Ela apresentou a ele alguns sentimentos medidos. Os prazos não foram subestimados e as horas desaceleraram. Seus passos se desajustaram. O desejo consumiu algumas palavras e confundiu os sentimentos novatos. Ele apaixonou-se. Ela morreu de amor) Por que razão o fizera num momento que não podia ser mais inoportuno? Penha tentou encontrar respostas durante anos. Que era um putanheiro (um homem de respeito que por acaso frequenta prostíbulos e consome prostitutas, na verdade, um homem moderno sempre disponível para una agradable velada de vanguardia putanheirista), sempre o soubera. Que julgava ser protagonista de uma vida dupla, porque o desejava, como se assim fosse possível aplacar as contrariedades da natureza humana, sempre o afirmara. Que não conseguia lidar com a mudança súbita na sua forma de viver, de repente casado e à espera de ser pai, confinado a quatro paredes e a uma só mulher, ao prazer monogâmico para toda a eternidade, a dele, sem poder desunir o que a Igreja havia unido, até que a morte os separasse, quando o que queria era navegar pelos sete mares, que são nove, da cidade dos homens, sempre o alegara. Mas seria mesmo essa a verdade? É certo que, à força de o repetir, Tiago chegou a estar persuadido de que assim 129 era. Contudo, justificar o opróbrio da mulher que amava, ou julgava amar, e a morte da possibilidade de ser pai pela incerteza de ter ser o que talvez não quisesse ser não parecia ser muito convincente. Mesmo para ele próprio, que acreditava estar convencido. Sobretudo porque traíra, não por amor, mas tão-somente pela oportunidade, afinal mais uma, de sexo de passagem com alguém que nem sequer fazia o seu género, como aliás passou a ser a matiz da trajectória sexual com que conviveu desde então. Morena, baixa, cabelo preto e curto, voz rouca e um tanto ao quanto rude, olhos castanhos, tão brilhantes quanto aflitivos, de quando em quando distantes, tantas e sucessivas eram as inflexões de humor, fisicamente desproporcionada, sem peitos mas cheia de carnes no baixo-ventre, assim não, que é muita coisa para agarrar, vê-la nua que pavor, embora chupasse e lubrificasse bem, por vezes até em demasia para os fulgores de que ele era capaz, apesar de ser inteligente, carinhosa e apaixonada, uma mulher com quem se podia conversar, justiça lhe seja feita, o problema era a taquicardia, e a sudorese, nas mãos e no resto do corpo dela, sacudido por nervos à flor da pele e um pendor natural para a impaciência, como também o problema era a escuridão, quer dizer, não a que se vê pois não é coisa que se veja mas a que se revela, que tudo acontecia às escondidas, verdade seja dita, sair à rua de mãos dadas era penoso e humilhante, exaltando nele um desdém que nunca havia conhecido. Acontece, quando não se ama e o objecto do desamor não faz o género nem se presta à cobiça alheia. É que tanto os homens como as mulheres gostam de possuir o que os outros invejam, mesmo sendo um pecado capital, ou vários, que para aqui também devem ser chamadas outras transgressões, veniais ou mortais – matéria confusa e muito dada à discórdia – como a soberba, a luxúria ou a ganância. Definitivamente o amor está talhado para o pecado, não obstante Nosso Senhor ter exigido a fecundidade e a multiplicação, sacralizando com desígnios contraditórios a comédia das paixões e dos apetites pela carne. (Web Forum: O Ego não é completamente consciente… Ao comentário no masculino, segue-se uma observação no feminino: O ser humano na sua multiplicidade vai muito mais além dessa ideia do bem e do mal plantada pela religião. Esse maniqueísmo faz com que alguns fiquem inertes, sem capacidade de reacção diante sentimentos mesquinhos, próprios da condição humana, impedindo um mínimo que seja de evolução) Estranho fado este, quando com Maria Clara era tudo tão diferente. Filha acidental, por expatriação geográfica, da frieza misteriosa do paraíso ariano, que a tantos equívocos se presta – ou não fosse o arianismo uma grande dor de cabeça para explicar, desde a doutrina cristológica de Alexandria, no Egipto, que nega a unidade e consubstancialidade da Santíssima Trindade ao pilar ideológico nazi que afirma a superioridade racial germânica, quando a língua original do povo ariano é proto-indoiraniana e o grupo étnico é de origem indo-europeia, designadamente o subgrupo indiano que se estabeleceu no planalto iraniano – olhos azuis-claros, celestes (bem mais intensos que os de Penha, que esses permaneciam escondidos por detrás das lentes dos óculos e das sombras de um longo tufo de barba branca), expressivos e ternos, se se dava o caso da ternura ocupar o lugar do ódio e da acidez, pestanas compridas, sobrancelhas muito finas e aloiradas, nariz pequeno e curvo, e avermelhado, no meio de toda aquela brancura caucasiana particularmente encantadora, e uma boca luxuriante, grande, contornada por lábios carnudos, um rosto perfeito emoldurado por cabelos loiros compridos perpassados por reflexos de vários tons, todas as cores do Mundo numa só pessoa, e não apenas a paisagem abrasadora, pintada de azul, branco e dourado, a morada de tentações supremas em terras da Escandinávia. Mas havia também as formas curvilíneas e generosas do genótipo latino; nos seios fartos e empertigados, nas 130 pernas longas e tonificadas, no rabo arredondado e firme. Uma mulher de sonho, dependurada numa mensagem perigosa aos olhos de quem julga com perversidade, eterno alvo de cobiça e inveja, um mapa vibrante e complexo de sensualidade. Com efeito, Maria Clara era realmente bonita, a mulher que Tiago Penha amava, que ele talvez sempre tenha amado, mesmo sem saber se paixão é amor, mesmo quando lhe acontecia perder-se pelos sons de outras músicas na sua busca incessante de novas danças da carne e do desejo, que o mal estava feito e não havia volta a dar, havia acabado de casar, com pompa e altar, que vergonha, que desgraça, andar a foder fora do leito conjugal com a mulher grávida, sem saber porquê, de um dia para o outro casado e à espera de ser pai, enclausurado numa outra forma de vida que não era a dele, sendo um putanheiro, sem conseguir dizer não a qualquer oportunidade de sexo de passagem, mesmo com alguém que não fizesse o seu género, quando o que queria, ou acreditava que queria, era apenas conhecer os setes mares, que são nove. “Crees que vives mejor que yo?”, perguntou-lhe o sociólogo de Matanzas, o amigo caribenho que, na despedida do mundo fora de Cuba, no aeroporto de Barajas, em Madrid, parecia ser um homem abatido ao mesmo tempo que dançava e cantava, cheio de sorrisos e com lágrimas escondidas: «La Vida Es Un Carnaval». 131 XV. A primeira sensação que teve foi de terror, um pavor imenso que se lhe abraçou ao corpo mal acordou, por não conseguir mexer-se, levantar-se da cama, estava coberto de ligaduras, e havia aquela pressão esponjosa sobre o peito, cheio de eléctrodos e ventosas, e as picadas na pele, um formigueiro que lhe subia pelo braço, devia ser por causa daquele tubo de plástico transparente e fino agarrado à mão direita por um adesivo, que escondia uma agulha encravada nas veias. Seguiu-se o pânico, e o desespero, e a angústia, ao perceber a existência de uma máquina ao lado dele com várias luzes a piscar, um engenho mecânico e electrónico que Tiago Penha divisava a custo por entre aquela névoa inexplicável que se interpunha entre os olhos e o que queria ver, de tão pesadas que estavam as pálpebras, a quererem fechar-se, e a boca que nada dizia, tentava falar mas era incapaz de articular som algum, queria gritar mas nada saía dos pulmões, queria chamar aquela pessoa de bata branca que julgava ter avistado ao fundo da sala, mas a imagem era confusa, tanto lhe parecia tridimensional, com contornos definidos e profundidade de campo, como bidimensional, uma silhueta difusa recortada pela luz intermitente dos trovões, que soavam lá fora, algures, feixes luminosos brancos – a cor da paz e do conforto, o que era mentira porque nada disso era possível sentir ali – que atravessavam as persianas corridas de uma janela. Assustou-se. Respirou fundo. Tentou sossegar-se. Mas o peito continuava aos saltos, sentia claramente as batidas cardíacas em compasso acelerado, ainda que ritmado, a martelar os músculos, os tendões e todos os tecidos nervosos do seu corpo em desassossego, só lhe faltavam as borbulhas encarniçadas, aquela misteriosa erupção cutânea que tanto o atormentara, embora naquele momento não conseguisse precisar quando, nem como, nem onde, e luzes vermelhas projectadas no chão axadrezado, e o som de tambores, com uma multidão de gente nua a dançar. — Tens sede? — perguntou alguém, ao mesmo tempo que ouviu algo a roçagar. Tiago virou a cara para o outro lado. E viu. Duas bolas de fogo azul em movimento circular junto ao tecto, e depois fora dele, a cerca de cinquenta ou cem metros de altura, não dava para perceber, que de repente já não havia tecto, mas apenas céu, e chuva, que se precipitava abundantemente sobre a cama à qual Penha estava agarrado, e o som de carros a passar, parecia ter voado para uma auto-estrada. Sentia-se encharcado de água. A chuva glacial e gélida deveria ter-lhe enregelado os ossos. Mas não, era estranho mas não tinha frio. Pelo contrário, estava quente. E nu. Subitamente. Completamente despido, sem nada a tapá-lo. Continuava deitado; porém, debaixo dele deixara de haver um colchão para dar lugar a algo irregular, mole, talvez um pufo. E a sala também não era a mesma; era maior, com algumas pessoas nuas a dançar, homens e mulheres, de modo lento e arrastado, em transe, enquanto se ouvia o som de tambores com toques em compasso lento, sempre iguais, guiados por um metrónomo invisível, bem diferentes da intensidade das batidas cardíacas que havia sentido instantes antes, bem diferentes da espécie de ansiedade cacofónica que o tinha acometido. Com efeito, aquelas pancadas tinham qualquer coisa de melódico, um sentido de harmonia, como se se tratasse de 132 música, música para a carne e para a paixão, de efeito hipnótico, sons tribais para ritualizar instintos primários, os mais selvagens e, por conseguinte, os mais genuínos da natureza humana, uma festa psicadélica, em transe, para exaltar os fulgores do sexo em estado puro e animal. As picadas na pele tinham desaparecido igualmente. Tal como a agulha enfiada nas veias da mão direita, presa por um adesivo, e o tubo de plástico transparente e fino, e os eléctrodos e as ventosas agarradas ao peito. Tiago voltou a sentir as pálpebras pesadas, duras como aço, e os olhos prestes a fecharem-se. E deixouse arrastar para a escuridão do mundo, sem cores, apenas sons, e os batuques em surdina que começaram a afastar-se. A fazerem-se ouvir cada vez mais distantes. Lentamente. Até à inconsciência. E ao vazio. Silêncio. Ausência. O nada. — Há séculos que andamos a vigiar o teu planeta. A Lei Cósmica impede-nos de fazer qualquer revelação sobre o assunto mas a Terra está em perigo e temos de agir de imediato. Sentiu um puxão. De algo que o agarrou. Com força. Para o arrancar ao nada. E acordou mais uma vez. Ou pareceu-lhe ter acordado. Com o som da voz. E as batidas dos tambores, que voltaram a ressoar, primeiro distantes, depois a aproximarem-se, do refluxo ao fluxo. Penha tentou abrir os olhos, mas as pálpebras permaneciam pesadas. Estivera inconsciente? Se sim, sabia que agora não estava a sair de um sono vulgar. Qualquer coisa dramática acontecera. Ficou imóvel à espera de arranjar coragem para se mexer. Não se atrevia a fazer qualquer esforço para saber da sua sorte. E, contudo, ansiava por saber. Só que o temor era enorme. Titubeava, quase sentia o corpo a tremer de indecisão. Mas tinha de o fazer. Tinha de abrir os olhos. E foi o que fez, após uma longa hesitação, aos poucos, calmamente. Com esforço. De tão pesadas que continuavam as malditas pálpebras, como se estivessem coladas. A névoa havia regressado. Entre os olhos e o que queria ver. Pelo que não percebeu donde veio. A pancada. Ficou com a impressão de que fora um soco. Violento, rápido, inesperado. Tinha sido atingido por qualquer coisa. Não fazia sentido. Mas sentiu a dor profunda e lancinante no maxilar inferior. E o sabor a sangue que quase o asfixiou por momentos, de tão célere que havia sido expelido pelos lábios rasgados para o interior da garganta. Uma explosão feroz de brutalidade que o atordoou ainda mais. Seguiu-se outra pancada. Veloz. Intensa. Dolorosa. E a sensação de começar a cair, tão estranha para quem julgava estar deitado, um corpo pesado em queda livre. E a cabeça a bater no chão. Num tapete duro e axadrezado de mármore. Com um baque surdo. Talvez houvesse mais sangue. Uma mancha líquida e espessa debaixo da nuca. Que começou a deslizar de mosaico para mosaico, de quadrado para quadrado, ora branco, ora preto, um fio vermelho-púrpura irregular a alastrar pelo pavimento. Vagarosamente. — O teu corpo está cheio de borbulhas encarniçadas. Deve ser a peste vermelha. E ouviram-se gargalhadas sonoras e dementes, que se sobrepuseram ao som dos tambores. Uma risada enlouquecida a sair da boca de uma mulher, com os lábios carregados de batom vermelho, esborratados, e um grande plano da laringe a vibrar, um órgão fibromuscular de uma fealdade angustiante. Tiago pensou que estava de novo a caminho da inconsciência, do vazio, da ausência, mas sabia que não levaria consigo aquelas bolhas assanhadas na pele. Era impossível. Tinha a certeza de que havia combatido e vencido o ataque de borbulhagem. Fora uma reacção alérgica. Quando a mãe morreu e ele decidiu regressar a casa em definitivo. Lá atrás, no passado. Já lá ia algum tempo e o tempo não saltita, tem uma ordem, mesmo na desordem, tem um sequência, o antes, o agora e o depois, e aquele era o presente, nem passado nem futuro, mas o agora, a presença, mesmo a resvalar para a ausência, sem cartas escritas para os que virão, códigos em série, ininterruptos e eternos, de instantes limitados, circunscritos, concretos, precisos, sem viagens temporais, que essas 133 resultam num nítido nulo, já se sabe, porque é falsa a possibilidade de recuperar o que já foi como determinar o que será, por mais desígnios que inventem e reinventem, providenciais ou não, à falta de fé e de crenças, são meros códigos binários, a dicotomia multiplicada por dez elevado a nove, entre o bem e o mal, a ordem e a desordem, ou a anarquia, eminente ou iminente. Como a iminência da morte, depois de ter sentido a força do impacto e o airbag a explodir-lhe na cara, é que a escrita que ambiciona ser lida é como o envio de cartas a literatos desconhecidos, é como a porra de um acidente de carro, que tanto pode ser esperma como irritação, quer dizer a porra, ou a esporra, o sémen ou o desagrado, tanto mais que se os gregos não tivessem mandado cartas para o futuro os romanos nunca teriam existido, por isso o suicídio era a única opção, música vadia para gentes de más inclinações, a ironia perfeita e definitiva da imperfeição da existência, com a viatura a curvar, sem movimentos repentinos, sem puxões, a desviar-se, a atravessar-se na estrada, decerto que em aquaplaning, a deslizar sobre uma camada fina de água no asfalto, de água e de óleo derramado, era evidente, tão cristalino como o vidro, ou a camada vítrea sobre o piso molhado deixada pelos farrapos de chuva que caíam, e a troada metálica da colisão frontal contra um separador lateral na auto-estrada, um embate brutal e impetuoso pela força do peso bruto de um carro desgovernado. Maria Clara, que seguia ao lado dele na viatura, nada sofreu a não ser um enorme susto. O mesmo não se pode dizer de Tiago Penha que ainda foi parar ao hospital – não o de Santa Maria ou o Pulido Valente, em Lisboa, a que tantas cogitações haviam dado azo aquando do ataque de borbulhas e do internamento da mãe em Torres Vedras, meses antes – mas ao dos Covões, na margem esquerda do Mondego, em Coimbra, com uma fractura no ombro do lado esquerdo, na omoplata, e duas costelas partidas, não é demais recordar. Quatro dias de internamento, com muitos sedativos à mistura, a que se seguiram várias e demoradas sessões de fisioterapia. Quanto ao automóvel, sobrou uma teia incongruente de pedaços de chapa e estilhaços de vidro, um mistifório de ferro com geometrias complexas. O painel da frente da viatura ficou completamente esmagado. Bem como todo o lado esquerdo. A jante dianteira do mesmo lado dobrou-se e retorceu o pneu sobre ele próprio, acabando na forma de um oito. Com efeito, grande parte do carro não passava de um monte de chapa deformada e amolgada. Pela estrada, espalhava-se também uma amálgama de destroços, que pareciam ter vindo do nada, que se misturava com mais cacos de vidro e manchas de óleo. Estranhas cascatas de vidro despedaçado e escória metalizada. No ar, remoinhavam gases vários e farrapos de fumo. Com o despiste, a viatura apontou de início para o separador central, dando a impressão de que iria colidir de frente com aquela barreira de cimento, o que sugeria a forte a possibilidade de saltar para as faixas de rodagem em sentido contrário, sabe-se lá com que voltas sobre si própria. Mas acabou por endireitar-se ao roçar pela superfície dura do separador, levantando atrás de si uma coluna de lama. Ouviu-se um barulho metálico infernal, o ruído da chapa a ser rasgada contra a barreira de cimento e o das fagulhas a desprenderem-se. Depois, voltou a atravessar-se na estrada apontando desta vez para a muralha metálica lateral da autoestrada contra a qual acabou mesmo por chocar. Quem olhasse de longe, a observar o acidente, uma derrapagem tão disparatada quanto inesperada, aparatosa e definitivamente violenta, não poderia deixar de imaginar o pior quando o carro bateu, vergando até meio o separador lateral, com o motor a saltar e a partir-se em três, a conta que Deus fez, e a abundante amálgama de destroços a elevarse no ar como uma explosão: eventualmente a caixa torácica do condutor empalada na coluna de direcção e um pulmão perfurado pela maçaneta da porta, ou as fracturas 134 expostas dos fémures esmagados contra a alavanca das mudanças, ou a cara desfigurada e coberta de cacos de vidro laminado. Mas não foi o que aconteceu. “Olhei para o céu e vi aquela cor púrpura brilhante, de trovoada, um céu carregado de electricidade estática”, contou Tiago Penha ao perito da seguradora, quatro dias depois do acidente, no átrio do hospital, pronto finalmente para regressar a casa após a estranha viagem pelo poço da morte à força de um arsenal de sedativos, hipnóticos, analgésicos, anti-inflamatórios e sabe-se lá mais o quê. “Estava a chover, coisa pouca, uma chuva miudinha. Liguei os médios e as escovas de limpeza do pára-brisas. Não ia depressa e sentia-me tranquilo, descontraído. Aliás, estava à conversa com a Maria. Íamos para o norte, já não sei porquê, talvez para o Porto ou Braga. Até que, sem mais nem menos, a viatura atravessou-se na estrada. É bizarro. Porque não senti nenhum puxão, apenas um deslize suave. Só que já era tarde demais. Da sensação de deslize passei à sensação da impotência. Sabia que ia chocar contra qualquer coisa. Agora o quê, não sabia. E isso foi o mais angustiante. É difícil rememorar as coisas. Houve momentos em que o cérebro estava ligado, e lembro-me, e outros em que só existem brancas totais. Depois, de repente, tive o pressentimento de que ia morrer. Não sabia ao certo de quê, mas estava à espera a qualquer instante de um impacto tremendo. A pancada poderia ser fatal, ou não. Não sei. Foi tudo muito rápido e ao mesmo tempo vagaroso. Até deu para imaginar corpos despedaçados cobertos de sangue. Mortos, claro está. Cadáveres. A colisão poderia ter sido fatal. Mas o mais aterrador de tudo foram aqueles ruídos metálicos. Um terror absoluto.” Enquanto o perito fazia algumas perguntas, num tom monocórdico e desinteressado, e preenchia umas folhas de papel amarelo, a cor do luxo e da energia, tal como a do açafrão e da gema do ovo, e do enxofre, os dois sentados no átrio daquela unidade de cuidados de saúde, no meio da azáfama de batas brancas e macas a circular, Tiago deu consigo a lembrar-se, ou a tentar lembrar-se, ou talvez a ser assaltado por memórias intrusivas, dos momentos que se seguiram ao acidente, com dificuldade, pela intermitência das imagens, sem saber ao certo o tempo de permeio ou mesmo a sequência dos mesmos. Houve um baque, provavelmente do seu corpo a ser atirado para o interior de uma ambulância, o barulho das sirenes, uma porta de correr a fechar-se, os ruídos dos amortecedores da viatura, aos solavancos, com as lanternas vermelhas no tejadilho a girar, e uma voz histérica, com gritos e um choro convulsivo, e gemidos de dor, quase de certeza a de Maria Clara. “Senti uma descarga muito forte de adrenalina”, retomou Penha, perante o representante da seguradora, que se manteve calado e silencioso. “Acho que, apesar de ter sido tudo muito rápido, tive tempo para preparar os meus músculos e os tecidos nervosos para o impacto. Sabia que vinha aí uma tragédia, mas tive também a impressão, embora possa parecer estranho, de que o corpo se tinha enrolado, como se estivesse a voltar ao claustro maternal, como se fosse possível que a minha massa muscular, toda a estrutura óssea e as substâncias gordurosas, pudessem adquirir uma posição fetal. Quer dizer, como se eu pudesse encolher de repente para conseguir caber na barriga da minha mãe. Só pode ter sido óleo derramado na estrada. Não há outra explicação”, conclui Tiago, por fim, a pensar de novo no suicídio como a única opção perante a evidência de que não é um acto de coragem nem de cobardia, mas tão-somente a derradeira ironia da imperfeição do acto de existir. Uma certeza assustadora e inquietante, porquanto o ser torna-se insustentável e assim mais vale não ser. Com Maria Clara, as coisas seguiram o seu rumo normal de anormalidade, apesar de no íntimo de Penha ter havido qualquer coisa que mudou. Como se visse no acidente um prenúncio de algo que, ainda assim, ele não conseguia identificar. Um catalisador da tal pulsão suicida? Um aviso para a medida da sentença? Eram questões que não podia 135 colocar pois estava longe de supor o que iria suceder. Incapaz de prever, impedido de reagir. E, no entanto, a decisão estava em marcha. Com a coabitação forçada, e agora mais estreita, ou sob pressão, desde que ele havia voltado de vez, jogos cruéis de silêncio e apatia, que as discussões estavam roucas, especialmente para Maria, pelo desgaste de tantas trocas de palavras azedas, pelo receio do medo sem objectivo, era evidente que havia novas regras, uma queda livre e desamparada para abraçar o desaprumo mental em prejuízo da ferocidade querelosa, fingida que estava a audácia altruísta do perdão na impossibilidade de recuperar o irrecuperável. Viviam-se os tempos do fim, com Clara à beira de se afundar nos mares profundos dos psicotrópicos, ao mesmo tempo que Tiago investia cada vez, o tempo, o gosto, a vocação e o desespero, no avatar de confissões que havia criado, não obstante sentir-se cansado às vezes. Não é que se queixasse da miséria da vida, como é bom de ver, mas tão-somente da miséria da sua própria vida. Esgotada por fim a oportunidade de prosseguir a sua circum-navegação, que a idade pesava e sentia-se velho. Penha cumpriu à risca todas as recomendações médicas, fisioterapia e uso de fármacos vários, para recuperar em conformidade, e depressa, mesmo sabendo que, afinal, não valia a pena procurar sentidos para as coisas porque o único sentido que nelas reside é a possibilidade de as sentir, de as viver. Não vá dar-se o caso da morte desatar a correr em vez de rastejar. E, aparentemente, terá sido por isso mesmo – pelo menos foi o que Tiago pensou – que Simão Saraiva deu sinais de vida de repente, após longos meses de silêncio durante os quais nada soube dele. É certo que Penha há muito que estava habituado às estranhas e inesperadas ausências de Saraiva, que dava em desaparecer com alguma frequência sem deixar rasto por períodos que chegavam a atingir um ou dois meses, já se sabe. Incontactável, perdido algures nalgum recanto da imensidão terrestre. Mas desde que Tiago havia decidido sair da poderosa multinacional sediada em Atlanta, nos Estados Unidos, ao serviço da qual estivera durante quase duas décadas, Simão nunca procurou chegar à fala com ele ou, no mínimo, enviar-lhe uma simples mensagem electrónica. Os laços haviam começado a quebrar-se naquele arquipélago remoto, perdido nos confins do Mundo, no extremo sul da Argentina, a que se seguiu a turbulência no Rio de Janeiro e, por fim, o despenhamento em Madrid. Contudo, podia ter havido qualquer tentativa de desagravo, por mais que ténue ou frágil que fosse, tantos tinham sido os anos em que os dois trabalharam e viveram lado a lado, sempre em correria pelos quatro cantos do mundo, o que, em rigor, só seria verdade se ele, o planeta, fosse quadrado ou rectangular – o que não parece ser o caso, tão forte foi o costume das práticas do adultério aristotélico que acabou por se transformar numa norma válida, a do adultério e da abolição geocêntrica na forma quadrilátera, entenda-se, tanto mais que uma terra plana seria literalmente chata, sem desavenças gravitacionais e cisões eclesiásticas – mas que caminharam incessantemente pelos sete mares, que são nove, lá isso ninguém lhes pode negar. Vindo do nada, o telefonema de Saraiva mais pareceu um já não desejado regresso d’além-mar de El-Rei D. Sebastião, embora naquele dia não houvesse nevoeiro nem a Nação precisasse de ser salva – que a crise dinástica há muito que havia sido remendada, ainda que de modo brumaceiro, como seria de esperar – tal foi a surpresa com que Penha ouviu as palavras lacónicas do antigo companheiro, com aquele tom de voz que lhe era familiar, a célebre mescla requintada, e mais que improvável, de vociferação com bonacheirice, se bem que não tenha sido tão audível e impulsiva como sucedia dantes, que a vertigem do álcool deveria andar a fazer das suas. Na verdade, houve momentos até, no pouco que durou aquele contacto telefónico, em que Tiago teve a sensação de que Saraiva se limitou a ser uma caricatura de si próprio, ou seja, 136 imitando-se, ou reinventando-se, porventura numa tentativa de recuperar o que havia perdido para fingir que ainda era o que tinha deixado de ser. E tanto assim parecia que Penha notou, com um certo desapontamento, que Simão omitiu qualquer referência ao acidente, embora soubesse com certeza, porque todos sabiam, não se dignando a fazer qualquer pergunta sobre o seu estado de saúde ou como estava a decorrer a recuperação, o que, bem vistas as coisas, até poderia ser, paradoxalmente, um indicador de que Saraiva talvez continuasse igual a si próprio, pelo menos em parte, nalgumas dimensões da sua massa crítica existencial. — Mais uma volta, mais uma viagem — e riu-se, sem graça, por falta de razões, pelo menos na aparência. — Lanzarote. Estou à tua espera. — Estás a falar de quê, Simão? Não estou a perceber — hesitou Tiago. — Oh minha ratazana velha! Não te faças de parvo. Mete-te num avião e vem cá ter comigo. — Mas vou aí fazer o quê? — Porra! Acabei de dizer: ter comigo. Ou já estás mumificado? Nem a conversa nem o desafio faziam qualquer sentido, mas Penha não declinou de imediato; ao invés, continuou à espera de que Saraiva concretizasse. Tiago conhecia-o demasiado bem, ou julgava conhecê-lo, para concluir que Simão jamais faria aquele telefonema se não houvesse algo sério, pelo menos na cabeça dele, para justificar aquela deslocação. Mesmo que não verbalizado, que Saraiva sempre havia preferido o implícito ao explícito. Mas Lanzarote? Que raio estaria ele a fazer nas Canárias? E lembrou-se de súbito. Das Montañas del Fuego. E de “El Diablo”. Não da churrasqueira vulcânica, que também há lá, no Parque Nacional de Timanfaya, mas da estranha escultura de César Manrique. — Espero-te amanhã para almoçarmos juntos — desligou Simão, sem mais nem menos. A primeira impressão foi de perplexidade. Mas depressa as sinapses aceleraram a fundo com a sua teia gigantesca e complexa de envio e recepção de impulsos químicos e eléctricos. Acontece o mesmo com os criminosos, os bad boys que a sociedade decidiu tipificar como tal: dopamina e testosterona. Quanto mais melhor. E que Malinowski vá à bardamerda. Curioso: após as exéquias no dia do funeral da mãe, já lá ia algum tempo, ao chegar a casa, no coração de Lisboa, perto da Cidade Universitária, e tropeçar num novelo de malas depositado no vestíbulo, nem Maria Clara chegou a ir embora, como anunciou, nem Tiago Penha, como prometeu e tencionava cumprir. Por estranho que pareça, e apesar do azedume do colóquio conjugal, acabaram na cama. Literalmente. A tentar foder. Com a bagagem à porta. Coisa estranha para quem os dedos brochavam, para quem se recusava a ser tocada, que os fulgores a que costumava dar-se no acto do amor faziam parte do passado. De um passado bastante distante. E nada mais. Não fizeram amor porque continuavam sem conseguir localizar a paixão, e lá saíram da cama pouco depois, maquinalmente, indiferentes à desilusão de uma união para sempre desunida, embora houvesse algures, sabe-se agora, um novo segredo a rastejar em silêncio; também não se reconciliaram, que esse era um desiderato irrecuperável, mas voltaram a forçar a coabitação pela enésima vez, para que a vergonha não fosse maior, jamais se saberá se por falta de coragem ou por mero expediente de protelar o inadiável na indecisão do amor, nunca é demais sublinhar, que essa sempre foi a matriz punitiva da relação, tanto mais que, em silêncio, para Maria – que Tiago nada podia saber, sob pena de não ser possível fazer com que ele passasse de carrasco a vítima – havia uma outra variável, nunca é demais recordar, que tinha já adquirido forma e força, a possibilidade do castigo na forma de um clítoris venenoso, um crime vaginal que reporia a ordem moral, se se concretizasse de forma tão selvática quanto a selvajaria que se havia 137 incrustado naquele solstício matrimonial desde a traição primeira, a conhecida, a decisiva, a que precipitara o princípio do fim de Ester, a vida por nascer, que assim ficou, sem nascer, uma estrela que nunca brilhou, mesmo sendo hebraica; o mesmo terrorismo, disfarçado de danos colaterais de quem se propôs a atravessar os sete mares, que são nove, que acabaria por provocar mais tarde, quase três décadas depois do famigerado passeio de gôndola pelo Grande Canal de Veneza e os centocinquantamila morti in America, a derrocada das torres bioquímicas e fisiológicas cerebrais que sustentavam o equilíbrio psíquico de Clara. Não admira pois que Maria, “chumbada” por força de um arsenal de psicotrópicos, que o floating já não oferecia qualquer solução de regeneração das suas condições psiquiátricas, mal tenha reagido ao anúncio de mais uma ausência de Penha no estrangeiro, se bem que desta vez fosse particularmente curta, ele que estava reformado e havia voltado a casa de vez. Habitavam os dois num só apartamento, continuavam casados, mas na verdade apenas partilhavam, e mal, o mesmo espaço físico. Tudo o resto era vivido paredes-meias, no fluxo e refluxo dos humores diários. Tiago sentia-se velho e cansado sem saber porquê, e ansiava por encontrar novos sentidos, embora soubesse que só devia aceitar o que a vida lhe oferecia, na impossibilidade de desatar memórias e perante a evidência de que o sentido da existência era esse mesmo; Maria sentia-se amorfa e insípida, mas mantinha-se na vigília, tão desperta quanto possível, à espera de uma oportunidade para fazer cumprir a sentença, como havia tentado sem sucesso há alguns meses no dia em que o corpo da mãe de Penha foi devolvido à terra, para que a palavra do Senhor também assim se cumprisse, “do pó nascemos e ao pó voltaremos”, mãe e filho de uma só vez. A reserva do voo foi feita pela Internet nesse mesmo dia, o do telefonema inesperado de Simão Saraiva, e na manhã seguinte Penha embarcou para as Canárias. Apanhou um avião para Madrid bem cedo, ainda era de noite, e após uma hora de espera em Barajas, viu-se a entrar pela cauda de um DC-10 da Ibéria, uma porta entalada entre a imponência de dois reactores gigantes. A aeronave não inspirava grande confiança, tão funesto era o historial de acidentes daquele modelo desenvolvido pela McDonnell Douglas, mas que se lixasse, que Tiago havia vivido já o tempo suficiente para ser capaz de desconfiar do medo. Ao aproximar-se do aeroporto de Arrecife, sobrevoou a superfície lunar de Timanfaya, no sudoeste da ilha, negra e vermelha, um mar vulcânico de dunas e penedos, areia e rochas, como se a Lua estivesse ali e não no espaço, fora da órbita terrestre. Seguiu-se a aterragem, que mais pareceu uma amaragem, tão estreito é o namoro entre os mares do Atlântico e as pistas de cimento de San Bartolomé. À saída do aeroporto, lá estava um indivíduo, encostado a um Volkswagen Polo verdeescuro, atento à movimentação nas portas do terminal das chegadas, cidadão português, oitenta metros de altura e setenta e quatro quilos de peso, cabelo castanho-escuro, comprido e ondulado à solta sobre a cabeça, olhos igualmente castanhos e pele clara, caucasiano, em boa forma física, ligeiramente musculado, com calças de ganga, uma tshirt branca e ténis cinzentos de fivela. Apesar do céu encrespado varrido por uma enorme mancha de nuvens cumuliformes, o que fazia prever a iminência de chuva forte, sentia-se um calor abafado e seco, longe da “Primavera eterna” que os folhetos turísticos anunciam, devido à proximidade do continente africano, a cerca de cem quilómetros, pode ler-se em qualquer um, e ao efeito do choque entre as altas temperaturas sarianas e a corrente do Golfo do México. — Passaste aqui a noite? Saraiva sorriu e avançou na direcção de Tiago, que trazia consigo, como bagagem, apenas um pequeno saco desportivo, tal como o desconhecido que havia sido detido pela polícia austríaca há mais de vinte anos na viagem de comboio entre Praga e Viena. 138 — Conheço-te bem. Não conseguirias resistir. E depois foi só fazer contas — explicou Saraiva, visivelmente satisfeito com a chegada do companheiro. — Vindo de Lisboa, e de um dia para o outro, só chegarias aqui neste avião — e abraçou-o, para alguma surpresa de Penha. Enfiaram-se no carro e seguiram para nordeste para a Costa Teguise. Simão estava sóbrio, ou parecia estar. Do mal o menos, pensou Tiago. — Já cá tinhas estado? — indagou Saraiva com a mão direita no volante, enquanto segurava um cigarro com a esquerda. Penha também se pôs a fumar, depois de ter baixado até meio o vidro da porta da viatura, do seu lado. — Não. Mas é-me familiar. — A quem não é? — observou Simão. — Mas o tipo já está morto. E nós ainda cá estamos. Resta saber por quanto tempo e quem é que ficou melhor — acrescentou, de forma obscura. — Deixemos o Saramago, que afinal sempre voltou para Portugal, senão até nisto os espanhóis levavam vantagem, e passemos a coisas práticas. Marcaste o voo de regresso? — E eu a pensar que estavas a referir-te ao César Manrique. — Porra, não me fales nesse gajo. Está por todo o lado. Se há deuses na Terra ele é um deles. Pelo menos aqui. — Vítima mortal de um acidente de viação — recordou Tiago, sem produzir qualquer efeito em Saraiva. — Regresso amanhã, mais ou menos a esta hora — acrescentou. — Óptimo. É o suficiente. — Pelo que vejo, continuas a falar por enigmas — notou Penha. — E tu continuas a ser um mau observador. Mesmo vendo. Olha para esta paisagem fantástica! Aprecia esta visão — e apontou para o mar de enxofre que deslizava pelas montanhas a caminho dos respectivos sopés arrastando-se depois até à pequena autoestrada da cidade de Arrecife. — Mau observador e mau ouvinte — replicou Tiago. — Só espero que desta vez não tenhamos um diálogo de surdos — afirmou Saraiva num tom vago, embora fosse clara e de certa forma extemporânea a evocação do incidente de Ushuaia, na Ciudad del Fin del Mundo, a memória daquela noite funesta em que os dois, já bem bebidos, abraçados por um vale de gelo a deambular sobre um lago congelado, desataram a discutir por causa de uma arma de fogo, um revólver de calibre 357 Magnum. Não deixava de ser curioso: La Tierra del Fuego e Montañas del Fuego. A primeira perdida nos confins da Argentina em clima oceânico sub-polar, as segundas situadas numa área quase diametralmente oposta, numa ilha subtropical colada à costa ocidental africana. Tiago começou a cogitar se não haveria ali qualquer associação ou representação simbólica cujo alcance lhe estava a escapar, algo que talvez andasse a bruxulear na mente de Simão, talvez a busca de sentidos para certos sentimentos ou emoções, ou pensamentos intrusivos e por conseguinte inquietantes, a procura de uma lógica algorítmica que validasse as intimidades da vida e determinados actos com os quais nem sempre é possível conviver bem, vencida que estava a travessia dos sete mares, que são nove, e iniciada a contagem regressiva da existência. Em boa verdade, se calhar era precisamente aí que residia a explicação para aquele reencontro em Lanzarote após tanto tempo de silêncio. Aproximaram-se por fim de um enorme edifício branco, com centenas de janelas e varandas viradas para o mar dispostas em forma de arquibancada, o majestoso hotel Grand Teguise Playa, onde Saraiva estava hospedado. Majestoso, pelas suas dimensões faraónicas, tanto em altura como em largura, uma barreira artificial gigante construída 139 pela mão do homem para apartar aquilo que a Mãe Natureza havia unido; de um lado o paraíso azul das piscinas e do oceano, do outro, nas traseiras, o deserto vulcânico de rochas negras. Penha conseguiu uma suíte no quarto andar, o mesmo piso onde se alojara Simão. O companheiro quis saber se ele tinha fome, talvez quisesse almoçar, mas Tiago disse que não, que já o tinha feito a bordo do DC-10 da Ibéria, pelo que não perderam mais tempo. Entraram no elevador panorâmico, que dava a ver durante a subida o enorme átrio do hotel, cheio de plantas exóticas e cascatas de água, e seguiram para o quarto de Saraiva. — Vê isto! — pediu Simão, entregando a Tiago um envelope com uma folha de papel A4 dobrada lá dentro. Encontravam-se os dois sentados no sofá da suíte, um canapé largo e confortável. Penha tinha ainda consigo o saco desportivo que trouxera de Lisboa. Saraiva ligou o laptop que havia posto em cima das pernas e aguardou. Tiago Penha sentiu um arrepio e não foi necessário ler muito. Na verdade, não passou do primeiro parágrafo. Processado por computador, com uma fonte e corpo comuns (aos quais, no momento, como seria de esperar, não prestou a mínima atenção), o texto era sinistro. «Podia ter segurado a cabeça com as mãos, mas decidi remover-lhe o cérebro como faziam os antigos sacerdotes egípcios: enfiar um gancho no nariz do cadáver e forçá-lo até rasgar o osso etmóide, que destrói a cavidade craniana e a nasal. Depois, é só retirar aquela massa esponjosa aos bocados. Parece o miolo de uma noz.» Simão explicou que havia encontrado a carta à entrada do quarto. Supostamente havia sido metido debaixo da porta por um funcionário do hotel. Já tinha ido à recepção para tentar descobrir quem tinha deixado a mensagem. Se não tinha remetente, alguém a entregara por mão própria. Mas ninguém conseguiu responder-lhe. — E tu? O que achas que é isto? — indagou Tiago. Simão Saraiva acendeu mais um cigarro e recostou-se no sofá enquanto dava uns bafos longos e demorados. Pensativo, com um ar grave, deitou uma olhadela pela janela, para o azul do mar e a linha do horizonte que se estendiam lá longe, e tardou em falar, prolongando o silêncio até à eternidade possível, tal como lhes havia acontecido, há vários anos, naquela noite de temperaturas agrestes em Ushuaia. Levantou-se e encaminhou-se para o mini-bar donde retirou uma garrafinha de uísque. — Queres? Penha fez um gesto com a mão a dizer que não. Saraiva vazou o uísque num copo e deu um trago. — Há coisas que posso contar, há outras que não — retomou finalmente, mas mais uma vez de forma obscura e enigmática. Tiago estava confuso, perplexo, sem conseguir perceber o que quer que fosse. Se não tivesse pela frente Simão Saraiva, diria que tudo aquilo era absolutamente inverosímil. E uma perda de tempo. E de dinheiro. Deslocar-se a Lanzarote para ver uma folha de papel com um texto bizarro e ambíguo só podia ser uma brincadeira de mau gosto. Mas conhecendo, ou julgando conhecer, o carácter do companheiro, Penha sabia que estava apenas no preâmbulo de um drama, no qual teria de desempenhar um papel que desconhecia por enquanto. — Na História não faltam relatos de guerreiros que punham a sua espada ao serviço de quem pagasse mais — prosseguiu Simão, exalando ondas de fumo à medida que fumava. — Dir-se-ia que eram homens sem honra, exércitos de mercenários sedentos de sangue e fortuna. Mas o que é a honra? Uma distinção honorífica? A expectativa de granjear o respeito e porventura o temor pela dignidade dos seus actos? Ou 140 simplesmente o sentimento de dever? O problema é quando olhamos à nossa volta. O que vemos? Os carros de luxo do jovem Teodoro Obiang empilhados na garagem do seu hotel particular na Avenue Foch, enquanto a Guiné Equatorial continua mergulhada na miséria, na ignorância e no silêncio forçado? O Robert Mugabe a festejar o seu aniversário com cinco mil garrafas de uísque e cem quilos de camarão, enquanto o Zimbabué vive com mais de um milhão de portadores do vírus da Sida? — Aonde queres chegar? O que é que queres contar? — atalhou Tiago. — Estou a falar da honra. Ou da falta dela. Mesmo quando é necessário que assim seja. — E de ditadores. Depois de teres falado em mercenários — Penha apagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se. — É uma ligação evidente, embora pareça ser um bocado demagógico e um lugar-comum desatares para aí a evocar os suspeitos do costume. Porra, toda a gente sabe o que se passa em África. — Sabe ou pensa que sabe? Olha. Mas será que vê? — Continuas na demagogia. Esse é um discurso estafado. Há séculos que andamos nisto. A cor, as ideias e o abuso das ideias. — São chavões, mas a verdade é que continuam a cegar. — E continuarão. Tencionas mudar o Mundo? — desafiou Penha, que andava a circular pela pequena sala da suíte com vista para o azul cristalino das piscinas e do oceano, a cor do espírito e do pensamento. — Há uma coisa que sempre apreciei em ti. Fazes poucas perguntas. És mais do género intuitivo, uma pessoa que não precisa de muitas explicações para perceber o que se passa. Contudo, nunca quiseste saber. O que te leva a ser um mau observador. E a ignorar coisas que são fundamentais. — Saber o quê? — Tralhámos juntos durante quantos anos? — Uma eternidade. — O suficiente para poder dizer que, no fundo, és um snobe. A tua percepção é selectiva; fazes tábua rasa de tudo o que não te interessa — sentenciou Saraiva, enquanto foi buscar mais uma garrafinha de uísque ao mini-bar. Voltou ao sofá, repetiu o gesto de vazar o destilado de cevada no copo e emborcou-o todo de uma só vez. Depois, sacou de uma pequena pen preta do bolso esquerdo das calças e ligou-a ao laptop. — Talvez tenhas razão. Pouco me importa. — Precisamente. Por que razão é que achas que nunca foste recrutado? — inquiriu Simão, com um ar estranhamente ausente, mais atento à cópia vários ficheiros da hard drive do computador para a pen. — Recrutado?! — Foda-se! O que pensas que andámos a fazer todos estes anos? — ripostou Saraiva, indignado, levantando a cabeça de repente para fitar Penha nos olhos com intensidade e alguma ferocidade. — Julgas que os russos ou os indianos, e toda a cambada de gente que conhecemos, precisavam de nós para alguma coisa? Pensa! Pelo menos uma vez na vida pensa no que não te interessa. O Congo, caralho! Cabe na cabeça de alguém que Kinshasa precise de engenheiros informáticos? — Fiz apenas o meu trabalho. — Pois foi. E fizeste-o bem — disse Simão, baixando o tom de voz ao mesmo tempo que tirava a diminuta flash drive da porta USB do laptop. — Portanto estás a dizer que a empresa é uma fachada. — Não estou a dizer a nada. Só a pedir-te que penses. — Precisas de mim para quê? — perguntou Tiago, a dar ares de alguma irritação e enfado com toda aquela charada. 141 — O meu prazo de validade expirou. Penha riu-se e acendeu mais um cigarro. A névoa de fumo adensava-se, tal como o cheiro forte do tabaco. — O meu também. Há muito tempo — comentou Tiago, que também voltou a sentar-se no sofá. — Porém, ainda aqui estou. Simão Saraiva estendeu-lhe a pen. — É um cheque endossado. Faz com ele o que entenderes melhor. Penha ficou a olhar durante alguns instantes para aquele pequeno dispositivo preto, pensativo. — É valioso? — Depende do uso que lhe deres — respondeu Saraiva. Tiago Penha acabou por agarrar na pen e enfiá-la por sua vez no bolso das calças. — E a que se deve esta dádiva? — quis saber Penha. — Às putas que comemos juntos. E a todos os outros desgraçados pelos quais nos apaixonámos. É sempre bom lembrar como o Mundo é uma bosta. 142 XVI. Quando Tiago Penha voltou a sobrevoar o Parque Nacional de Timanfaya e aquela estranha paisagem lunar negra e vermelha com cerca de trezentos vulcões, de novo a bordo de um DC-10 da Ibéria com destino a Madrid en route para Lisboa, lembrou-se da dramática descrição deixada pelo padre Don Andrés Lorenzo Curbelo, que assistiu em meados do século dezoito ao terror das erupções e do mar de lava que jorrou do interior do planeta durante dois mil e cinquenta e três dias seguidos, sem parar, seis anos de violentos confrontos entre a terra e o mar, um dos acontecimentos mais impressionantes de toda a história do vulcanismo mundial. “Una enorme montaña se elevó del seno de la tierra y del ápice se escapaban llamas que continuaron ardiendo durante diez y nueve días (...) Una inmensa cantidad de peces cubría las playas. Del mar erigían columnas de humo y llamas. Tronaba horriblemente”, pode ler-se nos diários do sacerdote. Palavras tão pungentes quanto o doloroso estado de espírito que Tiago levava consigo, à medida que se afastava de Lanzarote. Com o pensamento a rodopiar vertiginosamente, de tanta confusão que se acotovelava lá dentro. Balbúrdia, reboliço, revelações e contradições, coisas que não lhe pareciam possíveis, outras em que não queria acreditar, embora talvez se houvesse feito luz sobre muitas dúvidas com que conviveu ao longo dos anos, ou porventura não, nada parecia claro ou distinto, nem sequer a catadupa de palavras que se atropelavam na cabeça, que ele articulava mentalmente na vã tentativa de ordenar o que estava em desordem, de aplacar o tumulto e o motim sináptico que se desenrolava ferozmente. Apertava com força a pen que conservava no bolso das calças sem fazer a mínima ideia da informação que transportava e lhe fora confiada por Simão Saraiva. Que o companheiro, ou em rigor, o ex-companheiro era um indivíduo peculiar e imprevisível já o sabia, sempre o soubera, mas não esperava que lhe reservasse agora mais uma razão ou motivo de sobressalto, ele que estava cansado e velho, ele que queria simplesmente resguardar-se no pundonor da sua errância. Porque era secreta, pessoal e intransmissível. Ou pelo menos tentava que assim o fosse, que nesta coisa das errâncias nunca se sabe, o destino é por mais que incerto, caso se assuma o princípio de que há desígnios, como é evidente, algo que também não o convencia e tornava tudo ainda mais estranho, instável, vacilante, ininteligível. Não é que temesse qualquer desaprumo mental, a instâncias da loucura, que permanece sempre à espreita e de porta aberta, como se sabe. Até porque, por enquanto, o mundo das efabulações era mais um feudo de Maria Clara, imune que estava ele, por ora, insiste-se, a esses esbraseamentos do espírito, pobres almas em delírio, que profunda injustiça, para que servirá Deus se nada faz quando a barriga está cheia e a cabeça vazia, incapaz de suster as ventanias do demónio, esse sim que bem que sabe separar o trigo do joio e escorraçar das cidades todos aqueles que caem em desgraça, oferecendo-lhes a vida eterna em troca da descida aos infernos, se é que não houve um engano e o paraíso caiu dos céus, com a terra do pecado a elevar-se até aos cumes dos montes, esses enormes caldeirões de bronze com água a ferver, que alguns identificam como vulcões, chamuscados por labaredas de 143 fogo, para atiçar as dores das mulheres, dependuradas pelos seios, e as mágoas dos homens, com os ventres pútridos e os lábios iguais aos dos camelos, obrigados a alimentar-se de restos de carne putrefactos, uma infâmia ingloriosa para quem se propõe a vaguear pelo mar de efebos e pelos santuários de ninfas, que dizem haver lá em cima, junto a Nosso Senhor, não se sabe se Deus, Cristo ou o Espírito Santo, ninfas com grandes olhos, semelhantes a pérolas verdadeiras, eternamente jovens e virgens, divindades femininas graciosas e formosas, daquelas que não mirram com a idade e se tornam feias e desprezíveis. É tudo uma questão de militância, pouco importa se a fé reside nos deuses ou nos homens, desde que se combata e defenda, com convicção e firmeza, mesmo que nada pareça o que é, ou se caia na tentação de ousar em questionar o inquestionável, porque militar é agir, servir e pelejar, com honra e sentido de dever. (Web Forum: Sentido de dever é lutar contra a humilhação. O grito de revolta no feminino dá lugar a um outro, agora no masculino e em brasileiro: Precisamos de uma nova contra-revolução, contra a esquerdopatia corrupta, incompentente, mitómana, tirânica, despudorada e alienadora. A seita satânica socialista está a cubanizar, a chavinizar, a saquear, a tiranizar, a fragilizar, a corromper e a destruir o País. É tempo de acordar! Precisamos urgentemente de apear esta quadrilha do poder. E a nossa força é o voto. A que se segue uma discordância igualmente no masculino: Chavinizar?! Mas por que razão é que passam a vida a falar no Hugo Chávez? Já se esqueceram de que ele é um dos poucos chefes de Estado com coragem para se opor fortemente à política imperialista dos Estados Unidos? Rompeu relações com o Estado criminoso de Israel, defende a soberania e a independência do Irão, da Síria, de Cuba e de outros países ameaçados pelo Império. Com o seu exemplo, conseguiu dar o mote e influenciar a eleição de outros presidentes de esquerda na América Latina, ao mesmo tempo que criou um bloco económico e político solidário que reúne países mergulhados na miséria como a Bolívia, a Nicarágua, Cuba ou o Equador. Réplica em português: Com tantos elogios a Chávez, não tarda nada em afirmar que o Irão é o exemplo perfeito da democracia representativa. A que se junta um novo comentário do segundo interveniente: Ser pobre num mundo capitalista ainda nos dá alguma dignidade. Ser pobre num mundo socialista transforma o resto de dignidade que sobra em humilhação. Enquanto os pobres saqueiam, invadem e levam cacetada, os poderosos assistem dos seus casarões. O socialismo é a maior mentira que já existiu depois do cristianismo. Aliás, são bem parecidos. Os argumentos induzem uma réplica do participante anterior: Sou comunista com muito orgulho e não consigo aceitar tanta pobreza de espírito. Desde quando é que ser pobre num mundo capitalista ainda nos dá alguma dignidade? Veja-se o que Hugo Chávez fez na Venezuela. Isso é que é dignidade. Expropriou mais de quatrocentas empresas, reduzindo a jornada de trabalho para quarenta horas semanais, levou os serviços de assistência médica às favelas, com a colaboração de médicos cubanos, controla os preços dos produtos e o abastecimento nos supermercados, beneficiando a população. E tudo isto depois de ter derrotado uma tentativa de golpe de Estado conseguindo manter o regime democrático no País. Nova indignação com sinal contrário: São umas belas pérolas essas. Com palavras carregadas de tantos chavões, mais parece que está a reescrever o manifesto do Partido Comunista. Uma coisa é defender ideias políticas, outra é deixar-se cegar pelo partidarismo das ideias. Sucede-se a réplica: Isso é a conversa mole da Imprensa burguesa. E uma contra-réplica: E o homem a dar-lhe com o Chávez! Porque é que não fala do Brasil, já que admira tanto o modelo venezuelano? Resposta de uma voz brasileira: Nem precisa muito. Basta falar de São Paulo. A polícia fala que tem total controle. Mas ter controle não é ter bola de cristal. Não tem como prever quando e 144 onde um vagabundo vai atacar na covardia um policial em seu dia de folga, ou vai queimar um ônibus. Bandido não bate de frente com a polícia, só age na covardia. Em São Paulo quem manda é a ROTA, não bandido. Quando a ROTA sai nas ruas, vagabundo treme. Esse povinho da periferia anda ouvindo muito funk. Tem a cabeça cheia de cocó e sai por ai falando asneira. São Paulo nunca perdeu para o crime. E a discussão acaba por degenerar numa troca de insultos, rematada com uma observação de desagravo: Chutei o balde hoje, literalmente... Até rachou no meio. Tive que comprar outro no mercado antes que a patroa visse, mas foi legal viu. Recomendo!) Que tanto que apetecia a Tiago Penha fumar um cigarro. Regra geral, aguentava-se bem, mesmos nos voos de longo curso. Mas daquela vez estava a ser complicado. Sentia-se ansioso, invulgarmente impaciente, com o corpo massacrado pelo medo. Não é que receasse o que a pen pudesse conter, tanto mais que não sabia ainda se lhe iria dar uso ou sequer consultar os dados que nela estavam guardados. O problema residia mais no regresso e na súbita ausência de coordenadas para o efeito. Provavelmente aquela teria sido a última vez que havia de ver Simão Saraiva. O seu prazo de validade havia expirado, pelo que tudo fazia sentido e nada fazia sentido. No dia anterior, após o breve mas decisivo colóquio no quarto de Saraiva, Tiago seguiu para a sua suíte onde tomou um duche e tentou não pensar em nada. Mas era difícil. Muito difícil. E ele sabia bem porquê. Contudo, nada disse. Como sempre havia feito ao longo da vida. Nem mesmo quando ele e Simão desceram para jantar, decorrido já o tempo necessário para digerir todas aquelas informações inesperadas. Passaram o resto da noite num dos bares do hotel a emborcar uísque. A fazer tempo, que Penha estava prestes a partir e, entre eles, parecia ter deixado de haver vontade ou razão para partilhar más inclinações e desejos selvagens. Foi uma espécie de despedida, talvez definitiva, com a conversa anódina a correr solta, falar por falar, porque o que havia para dizer já tinha sido dito. Houve instantes em que Simão Saraiva parecia ser um homem abatido, mas eram fugazes e praticamente imperceptíveis. Talvez só Tiago os conseguisse identificar, ou pensar que identificava. É que durante toda a noite, mesmo quando o álcool subiu até à vertigem, o companheiro mostrou-se igual a si próprio, sem se dar por vencido, revelando a sua habitual mescla requintada de vociferação com bonacheirice. Apenas faltou dançar e cantar, cheio de sorrisos e com lágrimas escondidas, como sucedera com o amigo caribenho de Tiago Penha, momentos antes de embarcar em Madrid para o regresso pouco desejado a Cuba: «La Vida Es Un Carnaval». Com efeito, Penha compreendia agora melhor o incidente de Goa. E o de Ushuaia. E provavelmente outros aos quais não prestou a devida atenção. Bem como as súbitas e prolongadas ausências do colega de trabalho. E a extravagância dos seus excessos etílicos. O que não compreendia era aquela tentativa de justificação, sem que Penha lha tenha pedido. Nem aquela partição envenenada de dados. Porque nunca fez questão de questionar o inquestionável. Porque nunca quis saber, era verdade, de tão ocupado que andava com a sua solidão egoísta no meio de toda aquela multidão de povos que aprendeu a reconhecer, sem conhecer, com a mãe a morrer e Maria Clara a arrastar-se pela vida, sobraçada pela contumácia com que Tiago se entregava aos prazeres de amores tresmalhados. O avião começou a oscilar e a retorcer-se entre turbilhões de massas de ar. Por cima da cabeça de Tiago, no tecto da aeronave, iluminaram-se os símbolos que codificam a ordem para apertar os cintos, uma explosão súbita de dezenas de luzinhas, acompanhada por aquele som electrónico enervante igual ao que precede a abertura automática das portas metálicas de alguns elevadores. E ouviu-se a voz do comandante a explicar o que era evidente: haviam entrado numa zona de turbulência. E os ecos de outras vozes, distantes, do Web Forum. 145 (Quem mais sofre com assalto é o povo da periferia. Trabalhador classe C e D é roubado todo dia, perde celular, carteira, leva tapaço na cara e chute no rabo de brinde. Vai na delegacia, o delegado ri, da cara dele e nem quer registrar ocorrência, estamos sem escrivão, essa é a desculpa. Morre gente todo dia. Estudante, trabalhador, dona de casa. Mas não repercurte na mídia) As luzes apagaram-se de repente, embora a fuselagem se mantivesse iluminada pelos clarões azuis dos relâmpagos que cintilavam à volta do aparelho no meio do mar encrespado de nuvens negras. (O que me deixa puto é o absurdo que acontece em certas regiões. Corrupção generalizada e explícita, terras sem lei, xerifes “nomeados”, enriquecimento ilícito dos governantes. O povo elege bandidos, troca voto por comida e acaba na miséria. Daí o que acontece? Vem para as cidades. E encontra emprego, e descobre o que é um semáforo, um metro, um hospital ou uma escola pública. Mas depressa está já a reclamar das longas filas de espera em tudo o que precisa de fazer e culpa o Governo) Apesar do baque de susto, porque é invulgar, o apagão não durou muito tempo. As luzes no interior do avião voltaram a acender-se no preciso momento em que Penha foi sacudido por uma sensação de mergulho que o colou ao assento. Penha e os outros passageiros. Fizeram soar-se alguns gritinhos e o ambiente a bordo tornou-se tenso. (Um professor de economia disse que raramente chumbava um aluno, mas revelou que já tinha uma vez reprovado uma turma inteira, por esta insistir que o socialismo funciona: “Ninguém seria pobre e ninguém seria rico, tudo seria igualitário e justo”, alegavam os alunos. O professor desafiou-os então para viverem uma experiência socialista, mas ao invés de usarem dinheiro teriam de usar as notas das frequências. As mesmas seriam atribuídas com base na média obtida pela turma, de forma a que fossem justas e igualitárias. Resultado: a média dos primeiros exames situou-se em seis valores. Quem estudou com dedicação ficou indignado, pois considerou ser merecedor de mais, mas aqueles que não se esforçaram ficaram muito felizes com a nota. Aquando do segundo exame, os preguiçosos estudaram ainda menos, pois contavam com as notas dos outros. Contudo, aqueles que haviam estudado bastante para o primeiro exame decidiram aproveitar-se também desta vez da média das notas. O resultado baixou para cinco valores. É claro que ninguém gostou, sobretudo porque, no terceiro exame, a média geral ainda baixou mais, para dois valores. Começaram as desavenças entre os alunos à procura de culpados. A exigência de notas igualitárias e justas transformou-se num motor de inimizade e de sensação de injustiça. Feitas as contas, todos deixaram de estudar, pois não queriam beneficiar terceiros, pelo que a turma inteira acabou por chumbar. A experiência socialista havia falhado, explicou o professor, porque fundava-se no menor esforço possível dos participantes. É o que acontece na sociedade. Quando metade de uma determinada população descobre de que não precisa de trabalhar, pois a outra metade irá sustentá-la, e quando esta, a que trabalha, percebe que afinal não vale a pena trabalhar pois está sustentar quem não trabalha, chegamos ao fracasso de uma Nação) De súbito, a aeronave entrou numa zona de ventos verticais e caiu como uma pedra durante alguns segundos intermináveis até embater contra uma corrente de vento ascendente. Foi como se tivesse colidido contra uma parede de tijolo. Pregado à cadeira, Tiago virou a cara na direcção da janela embaciada e olhou para a asa. Estava a dobrarse lentamente para cima num ângulo assustador. (Repara bem nesta cena. Há luzes a brilhar, multicolores, as batidas compassadas da música de dança, que não sei bem se gosto ou não. Tenho alguns preconceitos nessa matéria. Ideias estúpidas, se calhar susceptíveis de alguma irracionalidade. Mas tudo bem. Agora repara! Lembro-me que estava a fumar. Claro! Ondas de fumo a enrolar146 me, assim como um santo círculo de protecção contra olhares alheios e investidas indefinidas. Estou recostado no sofá, com um copo com uísque à minha frente, um cinzeiro já cheio de beatas, e gozo. Cuidado com a expressão se se trata do Brasil, que é o caso. Estamos a falar de privilégios, do estatuto de excepção e intocável de gringo. Quer dizer, intocável como quem diz, pois não corresponde à realidade objectiva. É excessivo e nalguns casos até pernicioso. Um bocado perigoso, percebes? Porque faznos perder a percepção do alcance desse poder. É que na verdade esta coisa de gringo até é pejorativa. Significa alvo a abater; gajo de quem se pode tirar vantagem. Fica esperto!, avisaram-me. É melhor vestir outra pele. A de gringo transformada na bonomia respeitável da identidade lusitana. Que nestas terras conta muito. Para quem sabe, como é óbvio. Estrangeiro traduz sempre a ideia de grana e estar a fim de transar, de fazer programa, acima do pricing normalmente praticado. Sim, é evidente que é preciso ficar esperto. Trezentos reais?! Hã, oi, está falando de quê? Pirou de vez, cara? Que trezentos c’um caralho. Fodeu, né? Oi, menina, cento e cinquenta e já é um valor legal. Cento e cinquenta? Cara, só saio por duzentos! E se fosse ali na casa ao lado só me pegava por duzentos e cinquenta mesmo. Como é? Vai dar uma de esperto? Que nada, apenas estou fixando o valor. Ai é, cara, é mesmo isso. Duzentos e você vai ficar maluco! Duzentos?! Já falei para você: ali ao lado, você só pega menina por trezentos, no mínimo. Mau! Primeiro eram duzentos, agora são trezentos e não topas os cento e cinquenta? Você é português mesmo? Teu sotaque parece de argentino... Ou a música está muito alta ou não entendes um caralho da língua portuguesa! Foda-se, isto parece-te castelhano? E acendo mais um cigarro. Quantos já fumei? Quero lá saber. Agora repara bem nesta cena. O cinzeiro está cheio de beatas, estou sem tesão, mas curto aquela coisa do regateio. É como aquele baque marado de entrar numa casa de alterne – alto! – aqui é boate. Exactamente. Que coisa é essa de – como você disse? – alterne? Esquece miúda. Miúda?! Chamo o garçon. Estás a ver? Diz lá se não é gira esta mistura de francês, inglês, português e dialectos indígenas? E aí, como é? Agito o copo para o empregado. Já lhe tinha posto uma nota de vinte reais na mão mal entrei, que me deu direito a sentar e a mandar sair uns paulistas sem grana daquele lugar, que aqui sítio é coisa do campo, cena rural, mais a outra nota que deixei cair por milagre no breve aperto de mão que troquei com o porteiro. E aí? Tudo em cima? Você já sabe como é. Fica tranquilo. Por aqui, o povo todo já o conhece. Bacana! – disse eu, a tentar converter na hora os vinte reais para euros para perceber a merda do dinheiro que estou a gastar. O garçon traz novamente a garrafa do meu uísque e enche-me o copo. Topas? Garrafa do meu uísque. Ah, pois é. Não é como essas merdas das casas de putas em que te estampas em minutos. Aqui é coisa fina. E nada desses preços absurdos. Gastas algum dinheiro, mas – foda-se, meu! – tá-se como um lorde. O garçon troca o cinzeiro e inclina-se na minha direcção para segredar qualquer coisa ao ouvido. Para segredar? Para gritar, com aquela música toda a bombar. Você é que manda, patrão! Se a menina não agrada é só dizer. Tem aqui muita mulherada. Você fala para mim: é aquela que eu quero e eu mando vir a menina até aqui, valeu? Fica tranquilo, aqui você está em casa. Que coisa deliciosa. Nunca me senti em casa em lugar algum. Ou devo dizer sítio? Aqui não, já te expliquei, aqui tem mesmo que ser lugar. Oi! Sabes uma coisa? Não vai rolar, entendes?, grito eu no meio de todo aquele mar de som e luzes, com bola de cristal e tudo, para a garota. Convém referir que à minha frente existe uma espécie de passarela com mais de vinte mulheres praticamente nuas a dançar, a maioria com os olhos postos em mim: olha aí, gringo com bala! A mulher, moça, ou sei lá como as chamam, cuja cara ou qualquer outro pormenor não consegui reter, acaba por se afastar. Finalmente! Dá um espaço, né! Agora posso apreciar melhor a montra de sexo que dança à minha frente. Quer dizer, algumas até 147 dançam; as outras arrastam-se. Pedradas. Com uma moca tão grande que se lhes desse um sopro espalhavam-se ao comprido na carpete. Trambolhão directo da passarela para o chão. Dá para acreditar? Tanta mulherada praticamente nua à tua frente, pronta para se vender por – quanto mesmo? – duzentos ou cento e cinquenta reais? Divide por três e faz as contas em euros, mais coisa menos coisa. Sim, cinquenta euros e estás a comer a gaja que quiseres. Gostas de mamalhudas? Peludas? Mulatas? Pena que não haja asiáticas. Porque só te posso dizer, meu irmão: na cama, são foda. Come uma japonesa e vem depois falar comigo. Se ainda não fodeste uma japonesa, meu, esquece que eu existo. E repara que não é coisa de estereótipo. É sexo! Sexo, entendes? De resto, se vens para aqui à procura de uma ficante esquece. Eu tive uma ficante, mas a miúda era marada dos cornos p’ra cacete. É outra história. Fica para mais tarde. É do caralho! A mulherada toda come-te com os olhos à medida que se pavoneia, com as mamas de fora, algumas quase com a pachacha à mostra, em cima daquela porra, tipo passarela improvisada. Uma mama para aqui, um fio dental para acolá, outra gaja de tanga com os pintelhos de fora, outra com o rego do cu a bambolear-se à tua frente. Junta-lhe a mordomia de gringo mas não gringo – topas? – por força dos reais que foste espalhando entre a porta e o sofá onde estás sentado, o uísque, os cigarros – se curtes fumar – e diz-me se o cocktail não é explosivo. Foda-se! Esta merda acorda a pichota até de um cadáver. E repara que aqui não é esquema. As miúdas fodem mesmo. Se quiseres, vais logo para a cabina. E aí espetas-te com os cento e cinquenta reais. A merda é que fodes sentado ou de pé, por detrás de uma cortina, com o som todo a bombar. Agora, se quiseres sacar a menina para o teu hotel, a conversa é outra. E aí tens de ficar esperto, senão esfolam-te vivo. Olha só o que me aconteceu. Parado feito estúpido na maior avenida de São Paulo com um puta aos gritos, a ameaçar-me de morte a reclamar pelos seus devidos honorários. Aí fodi-me, porque estava sem grana em moeda local. E o porco do chulo, proxeneta ou cafetão – que se foda! – do outro lado do passeio, com um ar ameaçador, pronto para a mocada, que é o mesmo que dizer facada, tiro ou sei lá. Aqueles caralhos são doidos. Matam tudo o que mexe por uma merda qualquer. E aí tenho os gajos da Polícia Federal a pedirem-me a identificação e a perguntar à puta qual era o problema. Afinal, qual era a natureza da dívida? É claro que aí estás safo. Como é que a gaja vai explicar o assunto? Mas és um grande otário se pensas que, com a Polícia Federal, estás em boas mãos. Só te digo uma coisa: aqui, a tua vida vale um caralho! Okay, outra história. Já agora, e só em jeito de aparte, nessa noite da cena da Polícia Federal, fiz o número de levar duas gajas para o hotel. Que coisa mais marada! E sabes que mais? A miúda que foi a reboque foi uma puta de uma foda. Que coisa mais quente! Feia p’ra cacete, com ganchos no cabelo, sopinha de massa, sem mamas, mas a foder, meu irmão, vou-te contar. Foi uma puta de uma surpresa. A preta que levei, e que pensei que seria a foda da noite, montou-se em cima de mim e pôs-se com a merda de uns “ais, ais”, como se estivesse numa audição para um filme porno de série E ou F – que inventei agora, só para perceberes a merda que era. Mas quanto à outra, nem te vou falar. Agora é a minha vez!, disse ela, saltando para cima de mim na cama, eu já brocheta – consulta o dicionário da putice, versão brasileiro-português, e que vão todos para a puta que os pariu aqueles que inventaram a porra do acordo ortográfico. Mas aquela pachachinha ardente! Nem quero lembrar-me; ressuscita o maior brocheta do mundo. Com ganchos ou sem ganchos no cabelo. Está tudo bem?, pergunta-me o garçon. Beleza!, disse eu, ainda sem ter encontrado uma gaja daquelas tipo Boeing no meio daquela mulherada toda. Continuei a emborcar uísque. Daqui a pouco, o brocheta não levanta nem um pintelho, tenha a gaja ganchos ou não no cabelo e seja a foda do século. Continuei a fumar cigarros, uns atrás dos outros, e a tentar apreciar, assim já com a vista meio 148 nublada, aquele monte de pêlos púbicos que dançava à minha frente. Escusado será dizer que não me apetece descrever o ambiente que me envolvia, o aspecto do resto dos clientes, o tipo de música que rolava, as cores dos projectores que iluminavam a sala, enfim toda a merda que faria disto um romance. Agora repara! Fumo o meu cigarro, que é foda, porque estou a fumar tabaco nacional brasileiro, que para aqui só vêm cigarros americanos e poucos, vou beberricando o meu uísque de malte, que aqui dá para ter esse luxo, e à minha frente, em troca de meia dúzia de euros, tenho quilos de gajas que posso escolher para foder à vontade. Mas toma atenção: é importante o tipo, a localização e o número de estrelas do hotel onde estás hospedado. No meu caso, as gajas ficavam húmidas só de subir a escadaria do meu hotel de cinco estrelas na zona mais cara da cidade. Bom, se não ficavam molhadas, ficavam pelo menos a escorrer pelos dólares que poderiam sacar de alguém hospedado num lugar daqueles. Não é que seja muito importante, mas não imaginas o número de gajas que ficaram o resto da noite no quarto que eu ocupava e me davam o número do telemóvel, ou celular – em brasileirês – para eventual futura prestação de serviços. Meu, até tive de comprar a merda de um telemóvel brasileiro só para registar a catrefada de contactos pessoais que as putas me davam e receber tantas chamadas das gajas. Ah, pois! Nada de roaming. Senão é a doer. Estás marado ou quê?) Estás marado ou quê?, repetiu a voz, mas Penha sabia que não era bem uma voz, mas apenas o som desordenado da sua mente a fazer eco de memórias, de frases que tinha lido, comentários que havia seguido, com paixão, com irritação, furibundo, extasiado, enlevado, naquele site, naquele fórum na web que havia criado, farto dos nítidos nulos e dos insucessos do webtracking, um espaço de discussão que depressa se transformou num avatar de confissões, primeiro a uma voz, depois a muitas, que a popularidade do sítio cresceu inesperadamente e atraiu multidões de penitentes em confissão, a busca do sacramento da reconciliação para tudo o que é irreconciliável, a tão desejada subida aos céus, até com relâmpagos e faíscas ou a possibilidade do paraíso já se ter despenhado, talvez em Fátima, algures entre Valinhos, Aljustrel e a Cova da Iria, tantos nomes e sempre a mesma peregrinação, para visitar as casas dos pastorinhos, e a Via-Sacra, e o Calvário, e os locais das aparições, não de alienígenas ou de outras entidades biológicas extraterrestres, mas de Nossa Senhora, o Anjo da Paz, Quereis oferecer-vos a Deus?, grita-se no santuário, ao lado de um pedaço de betão do muro de Berlim, ali chegado pelos bons ofícios de um emigrante português na Alemanha como “grata recordação da promessa feita por Deus para derrubar o comunismo”, obra do demo e de Karl Marx, que tanto se queria vingar daquele que governa lá em cima, mas acabou lá em baixo, enterrado, numa catedral subterrânea, como as grutas de Mira de Aire, afinal ali tão perto, do santuário e da subida aos céus, a viagem ao centro da terra, no País a que Tiago estava prestes a regressar, a sua pátria e gloriosa nação, nação valente e imortal, entre as brumas da memória, sobre a terra e sobre o mar, tudo à roda num remoinho, com a poeira levantada pelo vento, e o som do pandemónio de trovões, e o bater do granizo nas superfícies de metal do avião. Houve momentos em que o aparelho parecia abrandar e ficar parado no ar. Mas Penha acabou por desistir de tentar distinguir as subidas das descidas. Doíam-lhe os ouvidos por causa das mudanças repentinas da pressão. E o corpo. E a alma. E o espírito. E tudo o que fazia dele um ser vivo e racional. Porque a tempestade, a verdadeira tempestade, não residia naquele cenário grotesco de faíscas arrancadas das profundezas das nuvens. Mas na longa e desprezível farsa que havia sido a sua existência. Ainda se lembrava bem, embora nunca o tenha revelado a alguém, daquele homem fardado de polícia que o mandou encostar-se à parede, de costas voltadas para ele, e lhe agarrou a nuca com 149 força para lhe pressionar a cara contra a argamassa irregular no sopé do enorme edifício de escritórios que Tiago sabia que se erguia acima dele. — Fica quieto e cala a boca! — rosnou-lhe o militar, enquanto um outro, prostrado mais atrás, na berma do passeio da avenida, mantinha o dedo de uma mão no gatilho de uma metralhadora HK MP5 K apontada à cabeça dele e a outra sobre uma pistola, uma Glock 18 também de nove milímetros, enfiada no coldre preso ao cinto. – Mãos na cabeça! – voltou a ordenar o primeiro com um tom de voz ríspido, ao mesmo tempo que tentava sacar de um par de algemas. À volta dos dois agentes da Polícia Militar, havia-se juntado uma pequena multidão de transeuntes, acotovelada, com olhares tão curiosos quanto assustados, enquanto assistia com uma distância cautelosa, ditada pelo medo e uma cultura de violência, à detenção daquele desconhecido em plena rua à luz do dia, no centro nevrálgico de São Paulo. Uma ordem de prisão aparatosa porque parecia ser desproporcional, entre a atitude submissa e passiva do visado e o alarde do uso de armas de fogo para o efeito. Acrescia o SUV preto da PM, com vidros fumados e à prova de bala, imobilizado com o motor a trabalhar a poucos metros do local, em cima da calçada. Lá dentro, viam-se vários outros agentes, aparentemente em grande agitação. Na estrada, com três faixas de circulação para cada um dos dois lados, o trânsito estava completamente parado. Uma fila enorme de viaturas paralisadas no asfalto, em ambos os sentidos, embrulhada num cogumelo ascendente de fumo e gases de combustível e reflexos desiguais, de intensidade e direcção, da luz solar. Um mupi digital com informações sobre a temperatura e a hora, plantado no piso calcetado ao lado do segundo agente da PM, indicava de forma intercalada 13:34 e 42°C. Penha meditava à velocidade da luz sobre o que havia de fazer. Mas não precisou de muito tempo. Ouviu-se o silvo de um projéctil e o homem fardado de polícia, que se preparava para o algemar, tombou de joelhos e acabou por ficar estendido por terra. Havia sido atingido na cabeça por uma bala. Uma mancha escura e viscosa começou a deslizar vagarosamente pelas pedras da calçada e pelos pedaços de massa encefálica que, com o impacto, se encontravam espalhados no passeio junto à parede do edifício, também manchada com espirros de sangue. Seguiu-se o som de uma rajada de metralhadora. E gritos. E troca de tiros. Tiago atirou-se para o chão e sentiu uma dor forte nos cotovelos e antebraços pela forma pesada com que se deixara cair. Uma nova rajada da HK MP5 K. Disparos vindos do SUV. Alguns bursts. E a pequena multidão de pessoas a correr desordenadamente, atropelando-se, tropeçando sobre corpos já sem vida. Na estrada, soavam baques metálicos; viaturas a chocar umas contra as outras, o ronco dos motores em aceleração máxima misturado com a chiadeira de pneus a escorregar sob o asfalto, incapazes de se moverem. E mais uma turba de gente a saltar dos carros, em fuga, igualmente em gritaria. Até que lentamente as coisas começaram a sossegar. A bordo do DC-10 da Ibéria. À medida que se fazia à pista de Barajas, em Madrid, deixando para trás, lá em cima nos céus, o manto encrespado de nuvens. Agora só faltava o voo para Lisboa e o penoso recontro com Maria Clara. A pen que Simão Saraiva lhe havia confiado permanecia guardada no bolso das calças. © Victor Eustáquio, Lisboa, Fevereiro de 2013 150