CORREA, LMS, FREITAS, MC, LIMA, CMC Crianças com queixas
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CORREA, LMS, FREITAS, MC, LIMA, CMC Crianças com queixas
CORREA, L.M.S, FREITAS, M.C., LIMA, C.M.C. Crianças com queixas de linguagem e procedimentos usuais de avaliação de habilidades lingüísticas In Caleidoscópio: Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada, Porto Alegre, Editora da UNISINOS, v.1, nº 1, 2003, p.43-67. Crianças com Queixas de Linguagem e Avaliação de Habilidades Lingüísticas Language-impaired Children and Language Assessment Procedures Letícia M. Sicuro Corrêa ∗ Maria Cláudia de Freitas∗∗ Cristina Maria Costa Lima∗∗∗ Resumo: Este artigo apresenta os resultados de um levantamento conduzido com o intuito de caracterizar o perfil de crianças falantes de português com queixas de linguagem e de analisar os instrumentos usualmente utilizados na avaliação de seu desempenho lingüístico. Constata-se que tais instrumentos dificultam a identificação de problemas específicos do domínio da língua/gem. A necessidade de uma abordagem teórica para problemas de linguagem que leve em conta a possível dissociação de domínios da cognição é enfatizada. Aspectos da língua/gem passíveis de estarem comprometidos no desenvolvimento lingüístico são considerados à luz da concepção de língua como sistema cognitivo encaixado em sistemas de desempenho. This paper presents the results of an inquiry intended to provide a characterization of language-impaired children and an analysis of tests currently used in the assessment of their linguistic performance. It is argued that these tests make it difficult for language specific problems to be identified and that a theoretical approach to the assessment of linguistic performance is required, in which possible dissociation between cognitive domains is assumed. Aspects of language likely to be impaired in language development are considered in the light of the view of language as a cognitive system embedded in performance systems. ∗ Prof. Associado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Pesquisador CNPq; Coordenadora do Grupo de Pesquisa do LAPAL (Laboratório de Psicolingüística e Aquisição da Linguagem - PUC-Rio); Responsável pelo Projeto FAPERJ E26 150.885/99 ao qual o presente artigo está vinculado. ∗∗ Doutoranda PUC-Rio; integrante do Projeto FAPERJ E26 150.885/99. ∗∗∗ Fonoaudióloga, colaboradora do Grupo de Pesquisa do LAPAL. O LAPAL se ressente do recente falecimento de Cristina, que sempre incentivou e propiciou a aproximação entre pesquisa teórica e prática clínica. Sua sensibilidade às queixas de crianças, sua amizade e otimismo estarão sempre na memória do Grupo. Palavras-chave: desenvolvimento lingüístico; transtornos de linguagem; déficit especificamente lingüístico; testes de linguagem; modularidade. Key-words: language development; specific language impairment, language tests; modularity. 1. Introdução Crianças com queixas de linguagem apresentam um quadro de desenvolvimento lingüístico defasado ou de desempenho lingüístico atípico. Muitos fatores podem acarretar dificuldades no desempenho de crianças em tarefas dependentes da linguagem verbal – lesão cerebral localizada, hidrocefalia, epilepsia, surdez, otite recorrente, dificuldades de memória, dentre outros. Contudo, grande parte das crianças com queixas de linguagem encaminhadas a um atendimento especializado não apresenta um histórico que possa apontar para causas desse tipo. Essas crianças podem ser portadoras de um déficit específico do domínio da linguagem ou, mais especificamente, da língua.. O DEL (Déficit Especificamente Lingüístico)1 é, atualmente, um dos principais tópicos da pesquisa em aquisição da linguagem e desenvolvimento lingüístico (Leonard, 1998; Jakubowicz, 2002; no prelo). Diferentes hipóteses têm sido formuladas sobre o DEL (Jakubowicz, 2002; no prelo). Ainda que sua natureza não esteja ainda suficientemente clara, há evidências que sugerem que comprometimentos associados ao DEL tenham origem genética (Gopnik & Crago, 1991; van der Lily & Stollverck, 1996; Lai et al, 2001). 1 Déficit Especificamente Lingüístico (DEL) é o termo utilizado em Português, como equivalente ao termo SLI (Specific Language Impairment) do inglês, amplamente utilizado na literatura em aquisição e desenvolvimento da linguagem, para designar um conjunto de sintomas que apontam para um comprometimento lingüístico primário, ou seja, não decorrente de problemas que possam ter efeito na linguagem. Crianças identificadas como portadoras de DEL representam 7% da população em idade escolar, conforme dados obtidos nos Estados Unidos (Tomblin 1993, apud Leonard 1998) percentual maior do que o de crianças com Síndrome de Down nesta faixa etária. Crianças com DEL apresentam dificuldade no desempenho escolar e necessitam de um atendimento especializado (Haynes & Naidoo, 1991). Não temos conhecimento de dados a esse respeito no que concerne às crianças em idade escolar no Brasil, onde a pesquisa sobre DEL é incipiente2. A identificação de crianças diagnosticadas como DEL no Brasil constitui uma dificuldade para a pesquisa nesse tópico. O presente artigo foi motivado pela constatação dessa dificuldade e da necessidade de um atendimento terapêutico/pedagógico direcionado ao tipo de problemas que crianças portadoras de DEL apresentam, as quais deverão se beneficiar de um melhor entendimento dessa síndrome. Um levantamento inicial numa amostra de fonoaudiólogos atuantes na região do Rio de Janeiro foi conduzido no período de 1999-2000, como etapa inicial de uma pesquisa, em desenvolvimento, sobre avaliação de habilidades lingüísticas de crianças com queixas de linguagem e caracterização das manifestações do DEL em Português (Corrêa, 1999; 2000; 2002). Pretendia-se caracterizar o perfil das crianças com queixas de linguagem que recorrem a atendimento fonoaudiológico, a natureza das queixas e o modo como suas habilidades lingüísticas são avaliadas, com o intuito de identificar crianças diagnosticadas como portadoras de DEL, assim como necessidades da área clínica, no que concerne à avaliação de habilidades lingüísticas. Constatou-se que não há encaminhamento regular de crianças com queixas de linguagem para avaliação de suas habilidades lingüísticas, nem um procedimento 2 O primeiro estudo que focaliza o DEL em Português Brasileiro apresenta uma avaliação de quatro crianças com suspeita de DEL, cujo desempenho corresponde ao padrão de crianças com DEL em outras línguas (Silveira, 2002). padronizado para o diagnóstico do DEL, tal como ocorre em países onde este vem sendo intensamente estudado. Os procedimentos de avaliação de habilidades lingüísticas de crianças em atendimento terapêutico podem ser apenas informais e testes complementares para um diagnóstico de exclusão do DEL não são necessariamente solicitados. Constatou-se, ainda, em etapa subseqüente da pesquisa (Silveira, 2002), que há um considerável desconhecimento acerca do estudo do DEL por parte de terapeutas da linguagem. O fato de problemas relativos à linguagem poderem acarretar dificuldades no desempenho escolar é usualmente tomado como indicativo da impossibilidade de dissociação entre o domínio da língua de outros domínios da cognição. Essa visão encontra o respaldo de teorias em que o desenvolvimento lingüístico é tido como subsidiário de um desenvolvimento cognitivo geral (Piaget, 1976; Karmiloff-Smith 1985, 1992) ou do desenvolvimento de habilidades comunicativas pré-verbais (Bates & Macwhinney 1982). Tais teorias encontram-se mais difundidas entre terapeutas e educadores do que os resultados de pesquisas recentes no âmbito das ciências cognitivas, os quais apontam para a dissociação entre domínios cognitivos, fazendo prever deficiências específicas no domínio da língua/gem ou mesmo déficits seletivos nesse domínio (Fodor, 1983; Ferreira & Clifton,1986; Spelke, 1991; Rondal, 1995; Smith & Tsimpli, 1996; Hahne & Friederici, 2002). Diante desse quadro, consideramos pertinente divulgar os resultados daquele levantamento inicial e os pontos relevantes de uma análise conduzida nos testes padronizados de avaliação de habilidades lingüísticas preferidos pelos profissionais da amostra. Procuramos demonstrar a necessidade de um procedimento sistemático para o diagnóstico do DEL, levando em conta, não obstante, as dificuldades inerentes a um diagnóstico de exclusão e à delimitação de um déficit de linguagem. Consideramos ainda relevante apresentar a perspectiva teórica que justifica a busca por um déficit específico no domínio da língua/gem. O objetivo deste artigo é, portanto, chamar a atenção de pesquisadores, terapeutas e educadores para dificuldades observadas na avaliação de habilidades lingüísticas de crianças com queixas de linguagem e no diagnóstico do DEL. Procuramos, desse modo, aproximar a pesquisa lingüística e psicolingüística da prática clínica e pedagógica, com vistas a favorecer o estudo de manifestações do DEL no Português do Brasil e o desenvolvimento de procedimentos de intervenção terapêutica mais direcionados às dificuldades específicas que crianças com queixas de linguagem apresentam. Este artigo está organizado da seguinte forma: Na primeira parte, apresenta-se uma breve caracterização do DEL e a perspectiva teórica para a investigação de deficiências da linguagem que nos parece promissora. Na segunda parte, apresentam-se os resultados do levantamento inicial do perfil das crianças que procuram atendimento fonoaudiológico, do tipo de queixa de linguagem que apresentam e dos procedimentos de avaliação de habilidades lingüísticas que servem de base à intervenção terapêutica. A apreciação dos testes padronizados mais comumente utilizados entre os profissionais que colaboraram com a pesquisa aponta para a necessidade de elaboração de um instrumento de avaliação teoricamente embasado, com objetivo explícito de se distinguirem manifestações de um déficit especificamente lingüístico. Parte 1. Dissociação de domínios da cognição e problemas específicos da língua/gem Transtornos específicos do desenvolvimento da linguagem constituem um tipo de patologia reconhecido3 e o estudo de crianças com queixas de linguagem tem sido objeto de interesse desde o século XIX (Leornard, 1998; Jakubowizc, no prelo). Essas manifestações vêm sendo nomeadas de formas distintas ao longo do tempo, sendo que o termo disfasia do desenvolvimento tem sido dos mais utilizados. A partir da década de 80, contudo, o termo SLI (Specific Language Impairment) (DEL em português) vem sendo usado, na literatura em aquisição e desenvolvimento da linguagem, de forma a padronizar a referência ao conjunto de sintomas associados a problemas específicos de linguagem, desvinculando-os da conotação neurológica sugerida pelo termo disfasia. Um crescente interesse pelo DEL pôde ser observado a partir dos anos 70, em função do desenvolvimento de pesquisas no âmbito das ciências cognitivas em geral e do campo da aquisição da linguagem em particular. O que se caracteriza como um transtorno da linguagem, ou o que pode ser incluído como manifestação do DEL, não é, contudo, algo precisamente delimitado. Uma dificuldade nesse sentido reside na ambigüidade do termo linguagem. Sabese que este pode referir-se a qualquer forma de expressão de pensamentos, estados emocionais ou intenções e, particularmente, ao modo verbal de expressão dos mesmos. Nesse sentido, um comprometimento da linguagem pode, em princípio, incluir qualquer dificuldade na expressão verbal ou na compreensão do que é transmitido por esse modo 3 Código Internacional de Doenças (CID) F.80: Transtornos nos quais as modalidades normais de aquisição da linguagem estão comprometidas desde os primeiros estádios do desenvolvimento. Não são diretamente atribuíveis a anomalias neurológicas, anomalias anatômicas do aparelho fonador, comprometimentos sensoriais, retardo mental ou a fatores ambientais. Os transtornos específicos do desenvolvimento da fala e da linguagem se acompanham com freqüência de problemas associados, tais como dificuldades da leitura e da soletração, perturbação das relações interpessoais, transtornos emocionais e transtornos comportamentais. (Extraído da página do SUS). de expressão. Esse sentido do termo validaria, pois, considerar-se como um problema de linguagem qualquer dificuldade de produção – desde dificuldades de articulação a dificuldades de adequação de um enunciado a um dado contexto discursivo; assim como qualquer dificuldade de compreensão -- desde a percepção do sinal acústico até a integração de informação semântica no processamento do discurso. Por outro lado, o termo linguagem pode remeter diretamente a língua. Nesse caso, o déficit lingüístico estaria circunscrito à capacidade da criança de formular enunciados bem formados, de estabelecer distinções gramaticalmente relevantes, de lidar com restrições estruturais à interpretação semântica de elementos da sentença e/ou de conduzir esses processos reiteradamente nos limites da capacidade da memória de processamento. Dificuldades relativas à produção ou à compreensão em termos mais amplos poderiam ser, nesse caso, manifestações secundárias de dificuldades no domínio da língua ou complementares a estas. A literatura sobre DEL tende a assumir que dificuldades manifestas no domínio da língua são essenciais à caracterização do DEL. Há, contudo, divergência com relação à caracterização dos demais tipos de dificuldade no domínio da linguagem como manifestações primárias ou secundárias do DEL (Leonard, 1998). Outra dificuldade advém do fato de o diagnóstico do DEL ser de exclusão. Crianças que apresentam um desempenho abaixo do esperado em testes padronizados de habilidades lingüísticas, concomitantemente com um desempenho tido como normal em testes de inteligência não-verbal, e que não apresentam histórico de lesão cerebral, surdez, otite recorrente, ou outro problema passível de ser associado a um desempenho lingüístico precário, são diagnosticadas como DEL. Esse tipo de diagnóstico apresenta dificuldades tanto para o estudo do DEL quanto para o tipo de abordagem a ser adotado numa intervenção terapêutica ou pedagógica em crianças com queixas de linguagem. Um déficit lingüístico pode se apresentar concomitantemente com dificuldades em outros domínios, sem que haja uma relação causal entre eles. Assim sendo, o número de crianças portadoras de DEL pode ser maior do que o estimado por meio de um diagnóstico de exclusão. Além disso, os instrumentos padronizados de avaliação de habilidades lingüísticas não são sensíveis o suficiente para que se distingam as dificuldades que a criança apresenta, como veremos adiante. Ao mesmo tempo em que aspectos relevantes para a detecção de dificuldades lingüísticas não são explorados (ou o são de forma insatisfatória), habilidades dependentes do “conhecimento de mundo” da criança ou de seu grau de escolaridade podem ser confundidas com habilidades lingüísticas, provendo um quadro distorcido do desempenho lingüístico da criança. De qualquer forma, o diagnóstico de exclusão é o primeiro passo para o estudo desse déficit e para a possibilidade de uma intervenção teoricamente embasada no desempenho lingüístico da criança. Em países onde as habilidades lingüísticas de crianças são regularmente avaliadas por volta dos cinco anos de idade, crianças diagnosticadas como portadores de DEL são identificadas por pesquisadores e submetidas a testes que se utilizam de procedimentos experimentais desenvolvidos no estudo da aquisição da linguagem. Estes testes visam a refinar a avaliação das habilidades lingüísticas das crianças, a testar hipóteses acerca da natureza das manifestações do déficit lingüístico observadas, assim como a avaliar procedimentos de intervenção (Caramata, Nelson, Caramata, 1994; Leonard, 1996; 1998). No Brasil, a falta de uma avaliação regular do desenvolvimento lingüístico dificulta a identificação de portadores desse déficit para que sua manifestação no Português Brasileiro (PB) seja investigada. Além disso, a falta de pesquisa sobre o DEL limita os meios disponíveis de intervenção terapêutica, uma vez que o diagnóstico inicial, baseado em instrumentos padronizados de avaliação de habilidades lingüísticas, não é posteriormente refinado e os testes padronizados são concebidos na ausência de uma teoria lingüística e/ou de uma perspectiva teórica que faça prever dissociações por domínios cognitivos ou comprometimentos seletivos no domínio da língua. Muitos dos instrumentos ainda em uso foram elaborados antes dos desenvolvimentos das ciências cognitivas nas últimas décadas, durante os quais hipóteses acerca da arquitetura funcional da mente humana, assim como do desenvolvimento cognitivo em geral e lingüístico em particular, vêm sendo exploradas. Duas principais abordagens podem ser identificadas nesse contexto: uma abordagem generalista, que supõe domínios cognitivos amplamente compartilhados, processos de aprendizagem de natureza analógica ou probabilística independentes de domínio (Plunkett & Marchman, 1991) ou a emergência de funções especializadas a partir de procedimentos gerais de aprendizagem (Karmiloff-Smith, 1991; Elman et al., 1996; MacWhinney, 1999); e uma abordagem modularista, que supõe estrutura e processos diferenciados por domínio cognitivo e especialização de funções num mesmo domínio da cognição, em decorrência da configuração biológica da espécie -- o que faz prever processos de desenvolvimento diferenciados em diferentes graus (Fodor, 1983; Mehler & Dupoux, 1990; Chomsky; 1995; ver capítulos em Dupoux, 2002)4. O debate sobre a dissociação entre os diferentes domínios cognitivos, especialmente no que concerne à possibilidade de dissociação entre um sistema especificamente lingüístico no âmbito da cognição, não é novo. Segundo a abordagem piagetiana tradicional, a linguagem seria uma decorrência necessária do desenvolvimento e das construções da inteligência sensório-motora, fazendo parte, portanto, de uma capacidade cognitiva geral (Piaget, 1976). Desse modo, as habilidades cognitivas relativas à coordenação de ações, desenvolvidas ao longo do primeiro ano de vida, comporiam os pré-requisitos para a aquisição da linguagem e o modo de operação do sistema lingüístico estaria regido pelo modo de operação de um sistema lógico-matemático, o qual caracterizaria a cognição humana. Uma versão mais fraca dessa hipótese considera que a língua a ser adquirida apresenta à criança um “espaço-problema” específico, embora o modo de a criança lidar com esse espaço-problema possa ser dependente de estratégias cognitivas e/ou de processos reorganizacionais independentes de domínio (KarmiloffSmith 1985, 1987). Alternativamente, ainda numa concepção generalista, os pré-requisitos para a aquisição da linguagem seriam atribuíveis a habilidades comunicativas desenvolvidas no primeiro ano de vida, não havendo, sob essa ótica, necessidade de supor uma programação biológica específica para o domínio da língua (Bates & MacWhinney 1982; Bates 1992). A visão generalista vem sendo, não obstante, desafiada pela hipótese de que o ser humano dispõe de uma faculdade de linguagem que o torna capaz de adquirir naturalmente qualquer língua humana, uma vez exposto a ela, a qual orienta a pesquisa lingüística gerativista (Chomsky, 1965; 1986; 1995); por resultados de pesquisas psicolingüísticas que demonstram habilidades precoces de processamento lingüístico, as quais parecem pressupor um modo de operação caracteristicamente lingüístico (Gerken 1993; Jusczyk, 4 Para uma discussão sobre a natureza dos modelos do modo de operação da mente humana ver Pinker & Mehler, 1988; Marcus, 2001. 1997; Shafer et al. 1998; Mehler, Christophe & Ramus, 2000; Mattys Jusczyk 2001; Mattys, Jusczyk et al. 1999; Christophe 2002; Corrêa e Name, 2003; Name e Corrêa 2003; Gout, A. & Christophe, (no prelo)); e por resultados da pesquisa em desenvolvimento cognitivo, os quais apontam para capacidades cognitivas diferenciadas desde os primeiros meses de vida da criança. Esse tipo de evidências tem levado à revisão da concepção de desenvolvimento cognitivo nos termos de Piaget (Gelman, 1991; Spelke, 1991). Déficits seletivos também constituem evidência empírica a favor da dissociação de domínios cognitivos. Raros casos de pessoas com déficits altamente seletivos sugerem fortemente que a hipótese da dissociação de domínios e subdomínios da cognição é promissora no sentido de prover um entendimento da arquitetura e funcionamento da mente humana. Christopher (Smith & Tsimpli, 1995; 1996) é um desses casos raros. Apesar de incapaz de realizar tarefas simples como fazer a barba, e de levar uma vida independente, fala, compreende e traduz de 15 a 20 línguas. Possui QI 75 5 e apresenta problemas nas tarefas piagetianas clássicas de conservação de número, por exemplo. Os casos de Laura (Yamada 1990) e de Françoise (Rondal, 1995) também dão suporte à hipótese de uma dissociação entre domínios cognitivos, particularmente do domínio da linguagem e dos que constituiriam uma inteligência mais geral. No caso de Laura, profundos déficits mentais coexistem com uma linguagem preservada. Igualmente incapaz de levar uma vida independente, com QI 55 6, Laura utiliza estruturas verbais ricas quanto à sintaxe e à morfologia. Sua fala contém, por exemplo sentenças passivas passiva, com e sem agente explícito, assim como orações complexas, com coordenação e subordinação. 5 6 QI avaliado por meio de Raven’s Matrices. Neste teste, a média do QI costuma ser 100. QI avaliado por meio do teste Stanford-Binet. São freqüentes orações adjetivas (relativas) e construções interrogativas com o uso de pronomes tais como Quem, Qual, Que, as quais evidenciam complexidade sintática. Além disso, observa-se, em sua fala, o uso de concordância verbal, a presença de verbos auxiliares e marcação de número (plural). Nem todas as áreas da linguagem estão, contudo, igualmente preservadas em Laura. As habilidades semânticas e pragmáticas aparecem prejudicadas, visto que sua fala é repetitiva, pouco informativa e muitas vezes não adequada ao contexto. Da mesma forma, em tarefas não lingüísticas envolvendo classificação, construção hierárquica e criação de regras (habilidades muitas vezes associadas à linguagem), o desempenho de Laura é muito fraco. Assim como Laura, Françoise, portadora de Síndrome de Down, apresenta um quadro compatível com a proposta de que os componentes computacionais da língua - a sintaxe e a fonologia - são autônomos, enquanto que aspectos relativos ao léxico, à semântica e à pragmática podem ser dependentes de capacidades cognitivas compartilhadas. Portadores da síndrome de Williams, um distúrbio genético raro, também apresentam um perfil cognitivo de déficits seletivos. Com um quadro de retardo mental que vai de severo a moderado, portadores da SW, assim como Christopher e Laura, são incapazes de levar uma vida independente. Contudo, apresentam habilidades lingüísticas preservadas, contrastando com profundos distúrbios na cognição espacial (Bellugi et al. 1993, Freitas, 2000). Já os portadores do DEL, como visto anteriormente, apresentam um perfil oposto. Em um contraste de resultados obtidos em tarefas de compreensão de linguagem com portadores da SW e com suspeita de DEL7, verificou-se que habilidades dependentes de restrições de ordem sintática (compreensão de reflexivos, em contraste 7 Pacientes em atendimento fonoaudiógico com desempenho lingüístico compatível com o quadro do DEL, os quais não foram, contudo, submetidos aos procedimentos usuais para o diagnóstico do DEL por exclusão. com pronominais) e de operações sintáticas, tais como movimento (compreensão de sentenças na voz passivas), permitem diferenciar o comportamento desses grupos. Enquanto os suspeitos de DEL mostraram dificuldades na interpretação do reflexivo e na compreensão de passivas reversíveis8, os portadores da SW lidaram com essas estruturas sem problemas. Para estes, contudo, a compreensão de formas pronominais, cuja interpretação não é unicamente restringida pela sintaxe, apresentou maior dificuldade (Freitas, Silveira & Corrêa, 2003). Ainda no que diz respeito ao DEL, a despeito da grande heterogeneidade entre as crianças assim diagnosticadas, quanto à extensão da deficiência exibida, aos subsistemas lingüísticos que estariam envolvidos e à forma de desempenho (produção ou compreensão) que seria mais afetada, é possível identificar aspectos caracteristicamente comprometidos nessa síndrome. Silveira (2002) apresenta uma revisão da literatura sobre as manifestações do DEL em diferentes línguas onde se identificam dificuldades comuns, independentemente do grau de parentesco entre elas, tais como dificuldades com passivas, reflexivos e interrogativas com QU. Observam-se, ainda, dificuldades comuns a línguas românicas assim como a línguas com morfologia rica em geral, que dizem respeito, particularmente, a determinantes, clíticos e formas flexionadas. Diante dessas evidências, é difícil sustentar uma concepção generalista para o funcionamento da mente humana e para o domínio da língua em particular. Estas são compatíveis com a hipótese de que a língua constitui um sistema cognitivo específico, 8 Sentenças na voz passiva em que o sujeito possui traço semântico [+animado], o que satisfaz ao requisito semântico de argumentos com papel de agente. A compreensão desse tipo de sentenças apresenta dificuldades para crianças com idade inferior a 5 anos (Bever, 1970) e para pacientes com afasia adquirida (Mauner et al, 1993). ainda que o exercício da linguagem (como expressão de pensamentos, sentimentos em diferentes contextos) possa envolver habilidades cognitivas gerais ou compartilhadas entre domínios. A concepção de língua apresentada no Programa Minimalista (Chomsky, 1995) permite expressar o que seriam os limites de um domínio especificamente lingüístico. Nesse contexto, língua (interna) é entendida como um domínio da cognição que comporta um léxico, constituído de unidades mínimas ou traços (formais -- semanticamente interpretáveis, ou apenas necessários para a computação; fonológicos e semânticos – sendo os traços semânticos accessíveis a outros sistemas cognitivos) e um sistema computacional, comum à espécie humana, que opera sobre os traços formais do léxico na geração de expressões lingüísticas. Essas expressões deverão ser passíveis de articulação em som da fala9 e de interpretação semântica. Estas são concebidas como pares, constituídos de uma representação de propriedades fonéticas dos traços fonológicos dos elementos do léxico sintaticamente combinados, e de uma representação das propriedades semânticas desses elementos (traços semânticos e traços formais semanticamente interpretáveis) e das relações semânticas que mantém entre si. Essas representações funcionariam como interfaces – fonética e semântica (de som e sentido) com os demais sistemas envolvidos no exercício da linguagem, os quais podem ser compartilhados com outros domínios. A informação disponível na interface fonética seria captada por sistemas perceptuais no processamento da fala ou serviria de instrução para processos articulatórios na produção de enunciados verbais. A informação disponível na interface semântica, por sua vez, seria acessível ou compartilhada por sistemas conceptuais e intencionais, viabilizando, dessa forma, a referência no discurso e a integração da informação veiculada pela língua com representações relativas ao “conhecimento de mundo” do indivíduo. Dessa forma, a língua, como sistema cognitivo, estaria embutida em sistemas de produção e de compreensão da linguagem (Chomsky & Lasnik, 1993) . Um problema de linguagem pode, portanto, em princípio, se localizar em qualquer ponto do processo de produção e de compreensão. Hipóteses que apontam para dificuldades de ordem perceptual no DEL (Leonard, McGregor & Allen, 1992; Leonard et al, 1997; Tallal, Stark & Mellits, 1985; Tallal et al, 1996) situam o problema na interface fonética/perceptual da língua. Hipóteses que apontam para propriedades de traços formais do léxico e para a condução da computação lingüística (Jakubowicz; 2001; 2003; no prelo; van der Lely 1997, 1998) situam o DEL no domínio específico da língua. Por outro lado, dificuldades relativas à referência no discurso, à integração de informação semântica ou mesmo à adequação pragmática, podem remeter a processos pré ou pós-computacionais, dependentes da ação de outros sistemas cognitivos sobre a informação que se apresenta na interface semântica. Um instrumento de avaliação de habilidades lingüísticas deve ser sensível a essas diferenciações. Isso não é, contudo, o que se observa em testes padronizados de avaliação de habilidades lingüísticas correntemente em uso, como será visto adiante. Parte 2: Crianças com queixas de linguagem e a avaliação de suas habilidades lingüísticas 9 No caso de falantes de línguas de sinais, as expressões deverão ser passíveis de realização em gestos/expressões faciais. Assim sendo, sempre que se disser som, fala, processos articulatórios, entendase que os conceitos podem ser estendidos para os correlatos em línguas de sinais. Nesta seção, são apresentados resultados de um questionário distribuído para 50 fonoaudiólogos em atividade (em clínicas particulares e/ou hospitais públicos) na região do Rio de Janeiro, entre outubro de 1999 e março de 2000, os quais voluntariamente se dispuseram a colaborar com a pesquisa. Esse levantamento teve os seguintes objetivos: (i) caracterizar o perfil de crianças que recorrem a uma terapia da linguagem; (b) identificar o tipo de queixa de linguagem que usualmente leva ao encaminhamento da criança a um profissional de reabilitação; (c) identificar o tipo de procedimento utilizado na avaliação de deficiências da linguagem e identificar os instrumentos padronizados de avaliação mais comumente utilizados. Os terapeutas deveriam preencher cinco formulários solicitando informações relativas a: a) características da criança em termos de idade, sexo, tipo de encaminhamento, história patológica pregressa ou outra informação relevante; b) dificuldades observadas na produção oral, incluindo dificuldades na formulação de enunciados (problemas de omissões de constituintes, concordância obrigatória, ordenação das palavras); c) dificuldades de compreensão; d) dificuldades de produção escrita; e) dificuldades de leitura e f) diagnóstico. Foi caracterizado um total de 116 crianças a partir de 22 questionários integralmente preenchidos. A Figura 1 apresenta a distribuição de crianças com queixas de linguagem. Observa-se que a busca por atendimento terapêutico predomina entre os 3 e os 7 anos de idade, período em que normalmente a aquisição da língua materna atinge um estado estável, no que concerne a aspectos gramaticais. Figura 1 A Figura 2 demonstra que, exceto no primeiro grupo etário (em que se constata encaminhamento médico), predominam as queixas de linguagem sem história patológica que possa explicar sua causa. As faixas dos 5 aos 6;11 e dos 7 aos 8;11 anos de idade apresentam a maior incidência de queixas exclusivas da linguagem. Figura 2 Observa-se, na Figura 3, que as crianças com queixas de linguagem sem história patológica são predominantemente do sexo masculino, tal como constatado na literatura sobre DEL em diferentes línguas. Figura 3 Considerando-se apenas as crianças que apresentam queixas exclusivas de linguagem, constata-se, na Figura 4, que as queixas concentram-se na produção e na compreensão de enunciados verbais em língua oral. Figura 4 No que concerne ao tipo de avaliação das habilidades lingüísticas dessas crianças, constatou-se que procedimentos informais e formais (por meio de testes padronizados) co-existem, sendo que a avaliação das habilidades de produção oral é feita predominantemente por meio de testes padronizados. Na compreensão da língua oral, predominam os procedimentos informais, os quais se tornam quase exclusivos na apreciação de habilidades relativas à língua escrita, como demonstra a figura 5. Figura 5 Uma variedade de testes foi citada como instrumento de avaliação das habilidades lingüísticas das crianças. O quadro 1 abaixo apresenta a listagem dos testes mencionados no levantamento. Dentre os não exclusivamente fonéticos, os testes Gessel, UTAH e Peabody são os mais citados (por cerca de 50% dos participantes da pesquisa), seguidos do ITPA. Esses testes são aqui analisados, acrescidos do WISC e do CELF-R. Os últimos, embora não muito utilizados pelos profissionais de reabilitação da linguagem da amostra, são dos mais utilizados na literatura sobre o DEL – e o CELF -R foi recentemente adaptado para o português. Quadro 1 Consideram-se aqui os aspectos que imediatamente se apresentam como problemáticos para uma avaliação de habilidades lingüísticas de crianças nos testes padronizados em uso corrente10. Gessel (A. Gessel e C. S. Armatruda, 1974). O teste Gessel, embora não seja um instrumento de avaliação exclusivamente de linguagem, possui uma "escala de linguagem", que inclui a observação das chamadas “condutas de linguagem”. Estas dizem respeito a condutas comportamentais de bebês, tais como "face expressiva, olhar....", assim como habilidades articulatórias. Observa-se que o termo linguagem está sendo tomado no sentido amplo de forma de expressão ou de comunicação, o que inclui expressões faciais, direcionamento do olhar e manifestações vocais. Não há, portanto, uma diferenciação entre habilidades comunicativas e habilidades de natureza especificamente lingüística, no sentido de relativa à língua. Para crianças mais velhas, já a partir dos 3 anos de idade, perguntas específicas que requerem resposta verbal são introduzidas, como: "O que você faz quando está com frio?" ; "O que você faz quando está com fome?"; "O que você faz quando está com sono?" . Em outro subteste, é avaliada a compreensão de relação Ação - Agente. A criança deve responder a perguntas do tipo: "o que arranha?"; "o que bóia?"; "o que grunhe?"; "o que faz doer?". Tais perguntas reúnem diferentes variáveis lingüísticas, assim como fatores não pertinentes ao domínio da língua. No que diz respeito à língua, a compreensão de perguntas desse tipo envolve habilidades de natureza essencialmente sintática, como a de lidar com sentenças interrogativas com movimento da palavra interrogativa (QU) para a posição mais à esquerda, e com o processamento de orações adverbiais; habilidades que dizem respeito à relação entre estrutura argumental no léxico e sintaxe, como no caso de estruturas causativas (em faz doer), assim como habilidades que remetem a uma interface semântica, como a de lidar com referência genérica (nesse caso vinculada ao tempo presente e modo indicativo do verbo). O desenvolvimento desse tipo de habilidades segue um curso próprio a partir do contato da criança com a língua, sendo largamente independente da experiência individual. Nenhuma dessas habilidades é, entretanto, especificamente focalizada na avaliação do desenvolvimento lingüístico. As respostas tomadas como corretas no teste são, ao contrário, dependentes do conhecimento de vocabulário de uso restrito (como grunhir), que pode variar em função de experiência individual e de escolaridade, e principalmente, são dependentes de conhecimento de 10 O material analisado foi cedido por fonoaudiólogos que colaboraram com a pesquisa. mundo relativo àquilo que está sendo perguntado, o que, além de não possuir um curso de desenvolvimento padrão, não diz respeito à língua/gem. Ainda em relação ao teste Gessel, no subteste "Repetição de palavras", a criança deve repetir sentenças que acabou de ouvir. As sentenças são divididas em três grupos de três, sendo que o critério para a categorização parece ser o comprimento médio das sentenças do grupo. Dessa forma, nada além da memória para sentenças parece estar sendo avaliado. Observa-se, contudo, que não há controle das estruturas sintáticas investigadas ou padronização entre os itens que compõem os três grupos. Conseqüentemente, a aferição da capacidade memória obtida não pode ser vinculada com qualquer variável lingüística. O quadro abaixo permite ilustrar esse ponto. Grupo I: 1.Olha o gato. 2.José é bom. 3. Onde está mamãe? Grupo II: 1.Eu tenho um cachorrinho. 2. No verão faz calor. 3. O cachorro corre atrás do gato Grupo III: 1.Este menino se chama João; ele é bom. 2.Quando passar o trem, vamos escutar o apito. 3.Nós vamos nos divertir muito no campo. Diante dessas observações, constata-se que o teste Gessel, apesar de apresentar uma "escala de linguagem", não pode prover uma medida de desenvolvimento lingüístico. Os subtestes que se propõem a investigar aspectos relacionados à linguagem aferem primordialmente conhecimento de vocabulário ou “de mundo” e capacidade de memória. Teste Peabody (M. Dunn, 1965). Trata-se de um teste de avaliação de vocabulário, no sentido de acesso ao significado de palavras. Nele, a criança deve apontar para a figura que corresponde à palavra que acabou de ouvir. Apesar de amplamente usado, sua utilidade é limitada numa avaliação de habilidades lingüísticas. Observa-se que não há padronização entre as palavras, isto é, categoria gramatical não é uma variável manipulada nem controlada no teste e nenhuma propriedade semântica ou sintática dos nomes ou dos verbos é especificamente considerada na avaliação. Há 72 nomes e 18 verbos em formas nominais, sendo 12 no infinitivo, 5 no gerúndio e 1 no particípio. Logo, não é possível avaliar se o vocabulário da criança é predominantemente de nomes ou de verbos nem o modo como os verbos seriam flexionados. Além disso, existem itens lexicais cuja expressão, por meio de desenhos, é difícil, como “descontentamento”, “amostra”, “convergência”, “coagir”, do mesmo modo que determinados contrastes são de difícil expressão pictórica (“construção” X “construir”). Assim sendo, o mapeamento do significado lexical com o desenho pode ser o maior obstáculo da tarefa. Conseqüentemente, uma resposta errada por parte da criança pode não indicar limitação de vocabulário. Observa-se, ainda, que há itens lexicais cujo conhecimento é altamente dependente de escolaridade (acesso à língua escrita, registro formal ou a tópicos específicos), por serem de baixa freqüência na língua, como é o caso de “lóbulo”, “adorno”, “adornar” e “letárgico”11. O não reconhecimento de tais itens lexicais não pode, portanto, ser tomado como um indicativo de problemas de compreensão de linguagem, visto que muitos adultos, sem qualquer tipo de distúrbio de linguagem, podem não ter conhecimento dessas palavras. Essas observações levam a crer 11 Comparamos a freqüência das palavras exemplificadas com a freqüência de palavras de uso freqüente na língua, em uma base de dados de cerca de 24 milhões de palavras (NILC/São Carlos). O número de ocorrências de palavras de uso freqüente na língua, como homem, casa, trabalhar e feliz, na base de dados, é 7707, 13825, 3279 e 1260, respectivamente. O número de ocorrências das palavras lóbulo, adorno, adornar e letárgico, é 29, 17, 6 e 4, respectivamente. Considerando-se que o banco de dados é de língua escrita, supõe-se que a freqüência de uso dessas palavras na língua oral, a que crianças têm acesso, seja ainda menor. que, mesmo restrito a uma aferição do vocabulário de crianças, o teste não provê uma medida confiável de desenvolvimento lingüístico. UTAH – Teste de Desenvolvimento da Linguagem (edição revista) (Mecham, J., Jex, L., Jones, D., 1967). Este teste apresenta como objetivo geral “medir as capacidades de expressão e recepção verbal da linguagem em crianças normais e deficientes“, e toma como base teórica Jakobson 1956 (Fundamentals of Language). Uma avaliação da linguagem da criança com base nesse instrumento não incorpora, portanto, os desenvolvimentos teóricos da Lingüística e da Psicolingüística nos últimos quarenta anos. O teste é composto por 51 itens, os quais englobam habilidades cognitivas não dependentes de linguagem. Dentre os itens do teste, podemos destacar os seguintes: desenhar uma figura simples, mas reconhecível como homem, animal, casa e árvore; reconhecer cores; reconhecer dinheiro; copiar uma cruz; copiar um losango; copiar um quadrado; repetir 5 dígitos; contar até 50; dizer os dias da semana; responder a perguntas que requerem conhecimento dos pontos cardeais, como “Para que lado você deveria voltar sua faca de tal maneira que sua mão esquerda ficasse voltada para o leste?”. Os testes que demandam reconhecimento de cores e dinheiro remetem a habilidades de percepção visual.Os que envolvem cópia de figura e desenho, requerem habilidades gráficas. Os demais, ainda que realizados verbalmente, têm como foco não a língua ou linguagem mas sim outras capacidades cognitivas como memória, seriação, raciocínio dedutivo, além de conhecimento de mundo específico. Certamente a resolução das tarefas por parte da criança requer que ela compreenda as solicitações verbais. Contudo, o teste não está formulado de modo a que as propriedades lingüísticas dessas solicitações sirvam de parâmetros na avaliação do desempenho lingüístico da criança. Conclui-se, portanto, que um desempenho fraco em qualquer um dos itens citados não pode remeter a um distúrbio de linguagem. Os subtestes que mais se aproximam de habilidades lingüísticas podem ser divididos entre os que verificam a compreensão de itens lexicais (aferição de vocabulário) e os que requerem a repetição de enunciados lingüísticos. Aos primeiros, cabem as mesmas críticas feitas ao teste Peabody: muitas palavras têm seu significado difícil de ser expresso por meio de desenhos, além de serem, algumas vezes, de baixa freqüência em língua oral, o que torna seu conhecimento dependente de escolaridade, como “glutão”, “arriscar-se”, “derrotado”, “pedestre”, “nutrição” e “exibição”, entre outros. Aos segundos, aplicam-se as observações feitas ao Gessel, no que concerne ao subteste de repetição de palavras. A crescente complexidade dos enunciados a serem repetidos pela criança deve-se exclusivamente a um aumento no número de sílabas, o que leva a crer que apenas a capacidade de memória de curto-prazo estaria sendo considerada. Contudo, o fato de a estrutura lingüística não ser controlada compromete esse tipo de avaliação. Por exemplo, quando é pedido que a criança repita dois enunciados com um total de dezesseis sílabas, um destes pode corresponder a uma sentença complexa (período composto) enquanto o outro a uma sentença simples. Tendo em vista que as demandas de processamento de sentenças simples e complexas são distintas, é prevista grande variabilidade de desempenho entre os dois enunciados de uma mesma categoria (definida pelo total de sílabas). Diante dessas observações, constata-se que esse instrumento de avaliação, a despeito de apresentar-se como “teste de desenvolvimento da linguagem”, não permite que se avaliem as habilidades lingüísticas da criança. ITPA -Illinois Test of Psycholinguistic Abilities (Edição Revisada 1968). A despeito de o título conter o termo psicolingüística, o teste não é fundamentado em teorias psicolingüísticas. Na verdade, sua formulação precede à constituição da Psicolingüística como ciência cognitiva, a partir meados da década de 60, e não é pautado por questões pertinentes a esse campo de investigação (ver Garman, 1990; Scliar-Cabral; 1991; Tannenhaus, 1994; Corrêa, 2000). O teste tem como objetivo o "diagnóstico, prevenção e intervenção das dificuldades vinculadas aos processos de comunicação, base da aprendizagem global e específica", e é concebido em termos de recepção, expressão e associação – termos vinculados a um paradigma associacionista/comportamentalista e não em termos de percepção/compreensão e produção e processamento de informação, como seria esperado de abordagem psicolingüística.” O teste apresenta 12 subtestes: Recepção auditiva; recepção visual; memória seqüencial visual, associação auditiva; memória seqüencial auditiva; associação visual; closura12 visual; expressão verbal; closura gramatical; expressão manual; closura auditiva; combinação de sons. Deste total, podemos considerar que apenas três subtestes avaliam habilidades relacionadas à linguagem – habilidades léxico-semânticas (recepção auditiva e associação auditiva) e habilidades discursivas (expressão verbal). Estes têm a seguinte forma: Subteste 1: Recepção auditiva - Avalia a compreensão oral de perguntas do tipo sim/ não, do tipo: As cadeiras comem? / Os mosquitos picam? / Os pássaros migratórios se deslocam? As respostas a essas perguntas requerem não apenas conhecimento das restrições semânticas de verbos de ação ao argumento sujeito (como em As cadeiras comem, onde a presença do traço semântico animado no sujeito levaria a uma resposta negativa), como também conhecimento de natureza “enciclopédica”, já que, nos demais exemplos, o traço semântico animado do sujeito não é suficiente para que uma resposta positiva ou negativa seja dada. Subteste 4: Associação auditiva - Avalia a capacidade de a criança realizar o que é chamado de "analogias verbais". O sujeito deve completar frases do tipo: O papai é grande. O bebê é......../ O mato é verde. O açúcar é........... Essa tarefa, mais do que vocabulário e conhecimento de relações semânticas, requer capacidade de raciocínio dedutivo para sua realização – ou seja, a criança tem de deduzir o que está sendo solicitado para decidir com que adjetivo deverá preencher os predicados em função de analogias entre os enunciados do par. Subteste 8: Expressão verbal - Avalia a capacidade de a criança descrever verbalmente objetos (bola, botão, envelope e cubo). Além da habilidade descritiva, este subteste avaliaria domínio de vocabulário, particularmente, de adjetivos, caso este fosse tomado como um parâmetro de desenvolvimento lingüístico. Subteste 9 - closura gramatical – Este subteste se propõe a avaliar a capacidade de a criança utilizar determinadas "regras" gramaticais13, como formação de plural. Por exemplo: Diante da figura de uma cama, diz-se para a criança: “Aqui você vê uma cama. Diante de outra figura com duas camas, diz-se: Aqui você vê duas _____.”, esperando-se que ela complete com o nome flexionado camas. 12 O termo “closura” é utilizado na versão em português como tradução para “closure”. A idéia de que a aquisição da linguagem envolve a aquisição de regras foi há muito superada no âmbito da teoria lingüística (Chomsky, 1981) mas ainda é assumida no tratamento da aquisição da linguagem no âmbito da Psicologia do Desenvolvimento. 13 Este subteste é o que mais diretamente focaliza uma habilidade lingüística. Na Parte 1, viu-se que os morfemas flexionais são particularmente afetados no caso de DEL. Assim sendo, esse tipo de avaliação pode ser informativo com relação a deficiências da linguagem. Contudo, observa-se que, no caso do número gramatical, a marca morfológica crucial em português encontra-se no determinante (diferentemente do inglês, língua de referência do teste original, em que a flexão de número só se realiza no nome). Assim sendo, crianças falantes de português que completassem o exemplo acima com o nome não flexionado não estariam necessariamente incorrendo em erro, visto que, em diferentes dialetos, a marca morfológica de número no nome ou não se realiza ou tem sua realização sujeita ao efeito de diferentes variáveis (Scherre, 1996). Uma vez que o teste não leva em conta as propriedades do sistema de número do português nem o dialeto falado pela criança, é possível que se obtenha um quadro distorcido, atribuindo-se à criança um problema de linguagem quando esta faz uso de um dialeto diferente do padrão. WISC - Wechsler Intelligence Scale for Children (D. Wechsler, versão traduzida em 1974). O teste WISC é composto de uma Escala Verbal, em que a resposta esperada deve ser dada verbalmente, e de uma Escala de Execução, em que a resposta esperada é um procedimento executado. Avaliam-se aqui apenas os subtestes da Escala Verbal, quais sejam: Informação, Compreensão, Semelhanças, Vocabulário, Aritmética e Números. Observe-se que um desempenho fraco no chamado teste de inteligência verbal, concomitantemente a um desempenho na média padronizada como normal no teste de inteligência não verbal, é usualmente tomado como indicativo de um diagnóstico de DEL. No subteste Informação, avalia-se o domínio de conhecimento de mundo específico por meio de respostas verbais. Logo, o foco da avaliação reside na correção das respostas no que diz respeito ao seu “conteúdo” proposicional e não necessariamente à sua formulação. O sujeito da avaliação deve ser capaz, por exemplo, de responder a perguntas do tipo "O que é um hieróglifo?" ou "Qual é a capital da Grécia?" ou ainda "De onde vem o petróleo?". No subteste Compreensão, avalia-se a capacidade de o sujeito prover uma solução para uma situação-problema apresentada verbalmente e de expressá-la verbalmente. Ele deve ser capaz de responder a perguntas do tipo "Que é que você faria se visse um trem se aproximando do lugar onde o trilho está quebrado?", ou "Por que é que as mulheres e as crianças têm de ser salvas em 1o lugar, quando um navio afunda?", "Por que é melhor pagar as contas com cheque do que com dinheiro? "Nesse subteste, fica bastante aparente a dificuldade que crianças pequenas, crianças pertencentes às camadas sociais menos favorecidas, ou mesmo a culturas diferentes da que serviu de base à elaboração do teste original, teriam em fornecer respostas adequadas, sem que esse mal desempenho pudesse ser tomado como indicativo de problemas de linguagem. No subteste Semelhanças, os sujeitos devem ser capazes de agrupar itens em determinadas categorias lexicais, ou de descrever a semelhança entre as palavras apresentadas: "em que se parecem a laranja e a manga?" ou "em que se parecem o gato e o rato?". Esse tipo de pergunta envolve predominantemente habilidades cognitivas não lingüísticas tais como as de identificação de semelhanças em função de forma, cor, ou outros atributos. No subteste Vocabulário os sujeitos devem ser capazes de definir quarenta palavras, tais como "prejuízo", "disparate", "campanário", "lastro", "acético", "vésper". O teste focaliza a capacidade de o sujeito expressar conceitos declarativamente. Ainda que esse modo de expressão constitua uma habilidade lingüística, uma avaliação dessa habilidade ficaria prejudicada por limitação de vocabulário e/ou ausência de conhecimento acerca do conceito em questão. Os outros subtestes da Escala Verbal, Aritmética e Números, dizem respeito a habilidades lógico-matemáticas. Assim sendo, é o fato de as respostas serem expressas verbalmente que faz com que o teste seja utilizado como instrumento de avaliação de uma “inteligência verbal”. Contudo, não há parâmetros lingüísticos definidos para que o modo de formulação verbal das respostas seja avaliado. O que é aferido diz respeito a domínios cognitivos diferentes da linguagem. CELF – R - Clinical Evaluation of Language Fundamentals: Revised (Semel, Wiig, & Wayne, 1986). De todos os testes analisados, o CELF-R é o único que apresenta claramente seus pressupostos (Bloom & Lahey, 1978) e, diferentemente da maior parte dos demais, não se restringe a uma aferição de vocabulário. Bloom e Lahey (1978) descrevem linguagem/língua como a interação entre conteúdo (semântica), forma (fonologia + sintaxe + morfologia) e uso (pragmática), cabendo ao CELF-R explorar apenas conteúdo e forma. O CELF-R pretende ser uma ferramenta na avaliação de habilidades orais de crianças em idade escolar14. Por limitação de espaço, são analisados aqui apenas alguns subtestes do CELF-R, especificamente aqueles cujas demandas lingüísticas podem ser questionadas. 14 É preciso ressaltar que a padronização do teste foi feita com crianças matriculadas nas escolas públicas americanas. Não houve padronização com base em amostra de crianças matriculadas em escolas brasileiras. No Subteste 2: estrutura da palavra (que explora a forma), é avaliada a aquisição de “regras” morfológicas, coma formação de plural (regular e irregular) assim como o uso de pronomes pessoais e passado simples. Como observado anteriormente, no que diz respeito à expressão morfológica do número gramatical, o Português Brasileiro admite variantes que muito se distanciam da chamada língua culta. No que diz respeito ao sistema pronominal, o Português falado no Brasil (PB) vem sofrendo mudanças diacrônicas, processo que, segundo a análise de Kato (1999) diz respeito à perda do sujeito nulo (mantido no Português Europeu). Uma das principais características do PB diz respeito à neutralização da 2a e 3a pessoas do discurso (tu/você e ele(s)) assim como da 1a pessoa do discurso plural (a gente) na 3a pessoa do paradigma verbal (tu/você(s)/ele(s)/a gente canta). Outras dizem respeito ao desaparecimento de clíticos (como o; a) e à possibilidade de objeto nulo sem as mesmas restrições do Português Europeu (Galves, 2001). Tendo em vista que a norma culta não incorpora muitas dessas mudanças, uma avaliação de habilidades lingüísticas relativas ao sistema pronominal, tal como de habilidades relativas ao número gramatical, pode ficar prejudicada quando a normal culta é tomada como único padrão de referência. O Subteste 4: instruções orais. Este subteste tem como objetivo avaliar a habilidade de a criança interpretar, lembrar e executar comandos orais de tamanho e complexidade crescentes. O conceito de complexidade assumido não se encontra claramente explicitado. As instruções orais em questão sugerem, contudo, que complexidade diz respeito a demandas cognitivas não necessariamente lingüísticas, como em “Mostre o último quadrado branco grande e o último círculo preto pequeno”. Deste modo, crianças sem problemas de linguagem podem ter dificuldade na realização dessa tarefa e esse desempenho pode ser erroneamente interpretado como uma deficiência lingüística. No Subteste 8: montagem de frases avalia-se a habilidade de a criança reunir palavras e grupos de palavras em sentenças gramatical e semanticamente aceitáveis. Esse processo, por se diferenciar do processo natural de formulação de enunciados, envolve estratégias cognitivas próprias. Dificuldades na execução de tais estratégias não implica a existência problemas de produção de linguagem. Outros problemas, agora de ordem metodológica, poderiam ser aqui apontados. Por exemplo, a avaliação das habilidades focalizadas baseia-se em um pequeno número de instâncias de cada condição de observação e, algumas vezes, variáveis se sobrepõem. Como ilustração, observa-se que no teste CELF-R, apenas duas instâncias de sentenças na voz passiva servem de base para a avaliação da compreensão dessa estrutura. Contudo, uma dessas sentenças é negativa. Dessa forma, o número de instâncias que serve, de fato, para uma avaliação da compreensão de sentenças na voz passivas cai para um, pois o erro no outro caso pode decorrer de problemas com a negação ou da interação entre esses diferentes fatores (estrutura passiva e estrutura de negação). Diante dessas observações, torna-se evidente que os instrumentos que avaliam habilidades lingüísticas de crianças não são satisfatórios para a detecção de dificuldades específicas do domínio da língua/gem. O fato de o DEL apresentar um quadro tão diversificado quanto o que a literatura apresenta pode ser uma conseqüência da falta de critérios de base lingüística e psicolingüística nos instrumentos padronizados de avaliação do desempenho lingüístico de crianças. No Brasil, tem-se como agravante o fato de os testes mais utilizados serem traduções e adaptações de material feito em função do inglês e de outra realidade cultural. A tradução/versão desses testes não necessariamente leva em conta diferenças lingüísticas, sociais e culturais, o que acarreta o uso de enunciados lingüísticos pouco familiares para crianças brasileiras. Além disso, o fato de a língua culta ser implicitamente tomada como padrão de referência pode levar a um quadro distorcido das habilidades lingüísticas de crianças, particularmente, no que concerne a número gramatical e ao sistema pronominal. Vimos, anteriormente, que procedimentos formais (testes, como os analisados) e informais, baseados na intuição e experiência clínica do profissional, servem de base para o diagnóstico de crianças com queixas de linguagem em atendimento terapêutico, de acordo com o levantamento aqui apresentado. Com base nas observações registradas nos questionários, pudemos identificar 35 crianças (30% do total de crianças da amostra) passíveis de ter um diagnóstico de DEL, ou seja, crianças que, dentre as que não apresentam histórico patológico, tiveram registro de dificuldade de produção e/ou de compreensão em língua oral. A figura 6 apresenta a distribuição dessas crianças em função do tipo de diagnóstico fornecido. Figura 6 Observa-se que a maior parte das crianças foi diagnosticada como sendo portadora de dislalia ou de um distúrbio de aprendizagem. No caso do diagnóstico de dislalia, as dificuldades de ordem fônica se sobressaíram a outras em diferentes aspectos da produção. As crianças diagnosticadas como portadoras de um distúrbio de aprendizagem apresentam um quadro semelhante ao de crianças diagnosticadas como com atraso de linguagem (sem diagnóstico concomitante de dislalia) e como disfásicas (duas destas com idade inferior a três anos). As crianças diagnosticadas como disléxicas apresentaram dificuldades no domínio da língua escrita além das dificuldades no âmbito da língua oral. Diante dessa distribuição, constata-se que os instrumentos utilizados não permitem distinguir atraso de linguagem e disfasia do desenvolvimento de distúrbio de aprendizagem quando se observam dificuldades na produção/compreensão de língua oral, não restritas a aspectos fônicos. O fato de os instrumentos de avaliação não focalizarem explicitamente os aspectos mais vulneráveis em casos de um déficit especificamente lingüístico, tais como sentenças passivas, relativas, interrogativas com movimento, morfemas flexionais e palavras funcionais em geral, e de avaliarem conhecimento dependente de escolaridade pode explicar a variedade de diagnósticos obtidos15. Os pontos aqui levantados demonstram que há urgência na aproximação entre a pesquisa lingüística e psicolingüística sobre aquisição da linguagem normal/desviante e a prática clínica. É necessário que se considere que a busca pela dissociação entre domínios e/ou processos cognitivos é vantajosa para um entendimento da natureza dos problemas que a criança apresenta no domínio da linguagem. Uma avaliação de habilidades lingüísticas que parta do pressuposto da dissociação e que focalize os aspectos com mais chances de serem atingidos no caso de um distúrbio específico da língua, e/ou das relações de interface da língua com outros sistemas cognitivos, deverá promover um diagnóstico mais preciso e uma intervenção terapêutica imediatamente direcionada às dificuldades específicas que a criança apresenta. 15 Os quadros clínicos aqui considerados foram formados a partir das observações fornecidas nos questionários. É possível , não obstante, que a avaliação informal, por parte do terapeuta, o leve a uma distinção entre distúrbios de aprendizagem e os demais tipos de diagnóstico, em função de observações que o questionário não pôde captar. Conclusão Este artigo teve como objetivo chamar a atenção de pesquisadores, terapeutas e educadores para a possibilidade de um déficit específico do domínio da língua/gem, assim como para dificuldades observadas na avaliação de habilidades lingüísticas de crianças com queixas de linguagem. Partimos de uma breve caracterização do chamado DEL e da perspectiva teórica que nos parece promissora na abordagem de problemas da linguagem. Constatamos que o perfil das crianças com queixas de linguagem, sem história patológica, na amostra analisada, não se distingue do perfil de crianças diagnosticadas como portadoras de DEL na literatura – os afetados são predominantemente do sexo masculino, a busca a atendimento terapêutico intensifica-se por volta dos 5 anos, quando o desenvolvimento lingüístico normal se faz estável, as queixas concentram-se na produção oral, sendo, algumas vezes, perceptíveis na compreensão, e diferentes aspectos do desempenho lingüístico podem estar afetados. 79 crianças sem histórico patológico que pudesse explicar os problemas de linguagem apresentados foram identificadas, numa amostra de 116, e 35 destas revelaram problemas na formulação de enunciados em língua oral, captados por meio de instrumentos padronizados de avaliação e/ou de uma apreciação informal, por parte do terapeuta. Três crianças foram diagnosticadas como disfásicas e seis com atraso no desenvolvimento lingüístico. Em ambos os casos, as crianças poderiam ser consideradas como portadoras de DEL, caso submetidas a testes que justificassem o diagnóstico de exclusão, adotado em países onde o DEL vem sendo investigado. Observou-se, não obstante, que desempenhos semelhantes nos testes considerados podem dar origem a diferentes diagnósticos. Assim, não é claro se o que é tomado como distúrbio de aprendizagem são poderia apontar para um caso de DEL, dado que um distúrbio da linguagem pode comprometer o desempenho cognitivo mediado pela língua. Não é surpreendente, portanto, que o pesquisador que busque crianças diagnosticadas como portadoras DEL, para investigar a manifestação dessa síndrome no Português do Brasil, encontre dificuldades para compor sua amostra. O uso de instrumentos de avaliação de habilidades lingüísticas que não permitem dissociar dificuldades no domínio da língua/gem de dificuldades em outros domínios da cognição assim como a pouca divulgação dos resultados da pesquisa sobre o DEL entre educadores e terapeutas podem ser apontados como possíveis causas da dificuldade de se identificarem crianças com problemas específicos da língua/gem.. Crianças portadoras de um déficit especificamente lingüístico tendem a apresentar dificuldades secundárias (ou seja, decorrentes daquele) no desempenho escolar, assim como dificuldades de ordem social e afetiva, na interação com colegas de mesma idade ou mesmo com os pais. Uma intervenção terapêutica mais direcionada às dificuldades que a criança apresenta é dependente de um maior conhecimento acerca da natureza do DEL e suas manifestações numa dada língua. Torna-se necessária, portanto, uma maior aproximação entre a pesquisa acadêmica no âmbito das ciências cognitivas – a Lingüística e a Psicolingüística em particular, e a prática clínica. Como seguimento do estudo aqui relatado, a elaboração de um instrumento de avaliação de habilidades lingüísticas de crianças, à luz de hipóteses sobre a natureza do DEL e de evidências empíricas disponíveis em diferentes línguas, se faz necessária. Esse tipo de instrumento, ao avaliar o desempenho da criança na produção/compreensão de estruturas tais como passivas, relativas, interrogativas assim como de relações de concordância, dentre outras, deverá facilitar a identificação de crianças portadoras de um déficit especificamente lingüístico e dos aspectos da língua/gem comprometidos16. Do ponto de vista do pesquisador, uma avaliação voltada para aspectos da linguagem com mais chances de estarem comprometidos, independentemente da língua da criança, deverá facilitar a identificação de portadores do DEL para o estudo suas manifestações específicas no Português do Brasil. Do ponto de vista da prática terapêutica/pedagógica, tal instrumento poderá contribuir para uma intervenção direcionada aos problemas de língua/gem que a criança apresenta. Referências: Bates, E. (1992). Language development. In E. Kandel and L. Squire (Eds.), Special Issue on Cognitive Neuroscience. Current Opinion in Neurobiology, 2, 180-185. ________ & B. MacWhinney. (1982) Functionalist approaches to grammar. Em E.Wanner & L. Gleitman (Eds.) Language Acquisition: The State of the Art. New York: CUP. Bellugi, U., Marks, S., Bihrle, A. e Sabo, H. (1993). Dissociation between language and cognitive functions in Williams syndrome. In: Bishop, D. & Mogford, K. 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