LARA - Questão de Gênero
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LARA - Questão de Gênero
Arthur Hunold Lara Tribos Urbanas: transcendências, rituais, corporalidades e (re)significações Tese apresentada ao Programa de PósGraduação da Escola de Comunicações e Artes da USP em Ciências da Comunicação, área de concentração Comunicação, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor. Orientadora: Profª. Drª. Solange Martins Couceiro de Lima São Paulo 2002 Arthur Hunold Lara Tribos Urbanas: transcendências, rituais, corporalidades e (re)significações Tese apresentada ao Programa de PósGraduação da Escola de Comunicações e Artes da USP em Ciências da Comunicação, área de concentração Comunicação, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor. Orientadora: Profª. Drª. Solange Martins Couceiro de Lima São Paulo 2002 2 BANCA EXAMINADORA _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ 3 RESUMO O presente estudo analisa as transcendências e a corporalidade do tribalismo urbano de São Paulo sobre o prisma da comunicação, tece suas dinâmicas, relações temporais e vertentes espaciais. Discute as transformações perceptivas que afetam esses grupos na relação com o tecido urbano e verifica a suas identidades, resistências, transcendências e territórios. Tece, ainda comparações com o tribalismo internacional das festas raves, discutindo seus estados alterados de consciência o uso das novas drogas. Dessa comparação identificamos algumas (re)significações e (re)elaborações do sentir em seus ritos tribais. SUMMARY The present study analyzes the transcendency and the corporality of São Paulo’s urban tribes unther the prism of communications and weaves their dynamics of temporary relationships and spaces . It discusses the perceptive transformations that affect those groups in the relationship with the urban tissue and it verifies their identities, resistances, transcendency s and territories. Then it makes comparisons with the international tribalisme of the rave parties, discussing the altered states of conscience by the new perception and the use of new drugs. From this comparison we identified some re-significances and re-elaborations in the feeling in their tribal rites. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço a todos os meus mestres, professores e orientadores pela paciência, tolerância, e especialmente à minha orientadora Solange C. Lima e aos meus mestres de Capoeira Eli Pimenta, Alcides de Lima, Belisco e Pedro Pedreiro. O presente trabalho não seria possível sem a colaboração do meu grupo de maracatu Baque Bolado, dos Pais-de-Santo Euclides, do Maranhão, Domingos, da Ilha de Itaparica (BA) e de todos os terreiros, centros, mosteiros, grupos musicais e pessoas que se dispuseram a ceder imagens fotográficas, gravações e fornecer entrevistas. A influência, companheirismo e participação de Luciene Beleboni, Fábio Duarte, Eneus Trindade, Dema, Sabrina Cunha, Sandro Canavesi, Stella Carrozo e do músico André Bueno que tornaram possível o acesso a lugares especiais e fundamentais para o desenvolvimento da presente pesquisa. Gostaria, ainda, de lembrar que este trabalho teve seu início com jovens que sofrem diferentes tipos de perseguições e discriminações e encontram, na rua, na circulação dos signos-idéias, nos muros, viadutos e fachadas, um lugar para a sua identidade-errante ou um “espelho” para que suas tribos resistam, ascendam e transcendam. Aos meus pais pela inspiração, à Maria do Carmo C. S. Lara pela dedicação e amor. 5 SUMÁRIO Resumo ------------------------------------------------------------------------------------------ 4 Summary ---------------------------------------------------------------------------------------- 4 Agradecimentos -------------------------------------------------------------------------------- 5 1 – Introdução Metodológica ---------------------------------------------------------------- 8 Apresentação do Problema ----------------------------------------------------------------- 8 Objetivos ------------------------------------------------------------------------------------- 16 Justificativas --------------------------------------------------------------------------------- 18 A Pesquisa ----------------------------------------------------------------------------------- 27 As Hipóteses --------------------------------------------------------------------------------- 38 Justificativa das Hipóteses ---------------------------------------------------------------- 38 Coleta de Dados ---------------------------------------------------------------------------- 42 Como foi Desenvolvido o Corpo da Pesquisa ------------------------------------------ 48 Discussão e Referencial Teórico --------------------------------------------------------- 52 Foco da Pesquisa --------------------------------------------------------------------------- 57 Metodologia --------------------------------------------------------------------------------- 61 Capítulo 1 -------------------------------------------------------------------------------------- 64 Território, Corpo e Corporalidade das Turbas ---------------------------------------- 64 O lugar das Turbas ------------------------------------------------------------------------- 64 As Turbas Nômades e a Consonância Musical ----------------------------------------- 65 Implicações da Harmonia na Estética e no Corpo em Transe ----------------------- 70 O Corpo e a Identidade em trânsito------------------------------------------------------ 73 Das Turbas Pitagóricas às Tribos Eletrônicas ----------------------------------------- 75 CAPÍTULO 2 ---------------------------------------------------------------------------------- 83 O Urbano: As Tribos e os Grupos -------------------------------------------------------- 83 A História da Formação das Cidades como Proteção e Transcendência dos Valores Temporais -------------------------------------------------------------------------- 83 A Revolução Nas Ciências e a Visão Espaço-Tempo Moderna ---------------------- 89 A Revolução Nas Ciências e a Visão Espaço-Tempo Pós- Moderna --------------- 91 6 O Urbano e a Sociedade Transmoderna ------------------------------------------------ 94 A formação das Tribos e dos Guetos Urbanos --------------------------------------- 100 Capítulo 3 ------------------------------------------------------------------------------------ 105 O GRUPO URBANO BAQUE BOLADO E O TRANSE ---------------------------- 105 Influências e raízes do Transe Xamânico Possessivo ------------------------------- 105 A relação entre as tribos e o território urbano --------------------------------------- 115 A Experiência com a Tribo Urbana do Grupo Baque bolado ---------------------- 120 A relação do grupo com os Territórios Iniciáticos ---------------------------------- 123 A relação entre grupos estudados e os Meios de Comunicação ------------------- 132 Conceito de Identidade / Realidade-Mestiçagem-Modismo / Meios de Comunicação ------------------------------------------------------------------------------ 134 CAPÍTULO 4 -------------------------------------------------------------------------------- 136 Os Ritos e a Sublimação Das Tribos --------------------------------------------------- 136 Os Ritos e os Meios de Comunicação-------------------------------------------------- 136 Rito sem Mito ------------------------------------------------------------------------------ 139 Rito com Mito------------------------------------------------------------------------------ 143 Rito com Culpa ---------------------------------------------------------------------------- 145 Ritos de Passagem ------------------------------------------------------------------------ 148 Rito do Podium ---------------------------------------------------------------------------- 152 Rito de Sublimação ----------------------------------------------------------------------- 156 QUADRO SONORO COMPARATIVO ---------------------------------------------- 160 Considerações Finais----------------------------------------------------------------------- 166 Referências Bibliográficas ---------------------------------------------------------------- 172 7 1 – INTRODUÇÃO METODOLÓGICA APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA Com o advento da energia elétrica, a produtividade e a atividade humanas aumentaram, pois tornaram-se independentes da luz do dia e dos fenômenos da natureza. Já a população das redes digitais possibilita que as informações mantenham-se 24 horas por dia no ar, e estejam acessíveis a um imenso público que, em conseqüência, passa a ter novas necessidades. Essas tendências globalizantes levam os habitantes dos grandes centros a utilizar ao máximo seu tempo e sua potencialidade cognitiva1, desmontando o mundo físico em função das novas emoções do dia prolongado e da vida virtual. A tecnociência, por meio das novas propriedades da imagem-conhecimento - interativa; rápida e instantânea -, acaba deslocando a realidade das cidades para o mundo unificado que a comunicação e a informação originaram. O corpo físico passa a ser dependente dos meios digitais: a inteligência artificial, os gestores, as realidades virtuais, os celulares inteligentes, as TVs a cabo, os games e os avatares descortinam um universo no qual a cidadania não tem fronteiras. 1 A ciência cognitiva trata da potencialidade da mente humana, e as novas teorias advindas de descobertas recentes e multidisciplinares possibilitam a implementação de novos tratamentos, terapias e remédios, que ampliam a saúde mental, potencializam nossos sentidos e têm forte influência em nosso sistema educacional, que é tradicionalmente refratário a novos métodos e teorias. Autores como Popper & Eccles, Damásio, Del Nero, Howard Gardner, Jourdain e Oliveira abordam os estados mentais, as memórias e a cognição humana. 8 Novas tendências são (re)elaboradas2 a partir de gestores DM (data mining)3, mineradores de informações inteligentes que associam relações e tendências invisíveis ao olhar físico-analógico. Assim, os “supermercados inteligentes”, que colocam elementos aparentemente sem nenhuma ligação – como fraldas descartáveis e cervejas – tiveram suas vendas aumentadas. Tais elementos - que, ao olhar analógico não guardam relação entre si - foram associados pelo cruzamento de dados “minerados”, que “enxergaram” a tendência a buscar alguns minutos de prazer após a troca de fraldas dos bebês. Tendências cruzadas e avaliadas trazem desde novas informações sobre as galáxias distantes de nosso planeta até informações sobre o funcionamento interno do corpo. Quando mineradas e analisadas, transformam-se em conhecimento observáveis somente pelo olhar “homem-máquina”: um olhar estudado, qualificado e “potencializado” por meticulosos cientistas, médicos, psicólogos e engenheiros, que consegue “traduzir” dos meios de informação novos conhecimentos e analogias, ou confirma teorias que anteriormente restringiam-se ao plano das idéias e das 2 O parêntese aqui colocado representa uma dinâmica dos fenômenos urbanos imbricados, que têm elaborações cíclicas e dialéticas: ao mesmo tempo em que são colonizadas; colonizam, em que elaboram, são reelaboradas. 3 Os data mining (DM) são ferramentas com softwares de rede neural e inteligência artificial (IA), que têm a capacidade de correlacionar coisas aparentemente desvinculadas. (Rezende, 1999) assim define DM DATA MINING: “o volume de dados disponíveis cresce a cada dia e desafia a nossa capacidade de armazenamento. Uma nova onda de ferramentas de "mineração" pode nos conduzir A expressão "data mining", está relacionada com lógica, inteligência artificial (IA) e redes neurais, além de poder se relacionar também com o assunto banco de dados. Os programas de "data mining" são instrumentos com altíssimo grau de sofisticação tecnológica e que lançam mão de recursos avançados como os de IA e redes neurais, sendo capazes de extrair deduções, levantando hipóteses que os seus clientes e/ou usuários jamais poderiam imaginar, como o clássico exemplo da cerveja e fraldas descartáveis. Ou seja as ferramentas de "data mining" têm capacidade para correlacionar coisas aparentemente desvinculadas. Com previsões bem feitas, os negócios podem lucrar milhões de dólares. A análise de dados históricos para identificação de padrões, que possam esclarecer o presente, é chamada de "data mining". "Data mining" não só responde a previsões de negócio, mas pode também revelar os atributos mais importantes que influenciam essas previsões. Um software de rede neural é um modelo matemático computacional complexo que abstrai o modo como as células cerebrais, os neurônios, operam -isto é, aprender através da experiência, desenvolver regras e reconhecer padrões. Redes neurais são projetadas para reconhecimento de padrões entre elementos de dados complexos. Para operar efetivamente, uma rede neural requer uma considerável preparação dos dados” (p.52-53). 9 suposições. Para a ampla maioria, as “imagens-conhecimento” trazem apenas facilidades: a diversão, o lúdico, a sensação de movimento, a comunicação rápida, a auto-ajuda etc. Já uma pequena minoria, excluída e expropriada, a ação dos meios de comunicação é um fator de (re)associação. Ao longo deste estudo veremos como as tribos urbanas desenvolvem uma virtualidade dentro do espaço tecnológico democratizado, e como se dão tais associações. Se o impacto dessa nova tecnologia é fortíssimo na economia, não será diferente em outras áreas do conhecimento, nas quais grandes esforços têm sido envidados para adequar as leis e a ética aos novos procedimentos, que vão do clone humano às plantas geneticamente modificadas. Países com industrialização dependente, urbanização acelerada e graves problemas domésticos – como fome e desemprego - têm suas economias, culturas e hábitos globalizados. Na maioria da vezes estão atrelados às tecnologias estrangeiras, que são (re)colonizadoras, hegemônicas, virtualizadoras, especulativas, (re)combinativas aos novos eixos econômicos atados às infovias, aos ataques especulativos, à banalização e à individualização egocêntrica do cotidiano, às oscilações da moda e do “gosto internacional”, aos hábitos e costumes neocolonizadores. A dependência da comunicação origina-se do desequilíbrio comercial e tecnológico e atinge as esferas educacional, gerencial e governamental, esfacelando a cultura própria de cada região que, atacada, passa a reformular suas significações. No meio urbano, em que as relações são reflexos do cotidiano, há a superposição de funções. Grandes mudanças são verificadas, sobretudo nas pessoas 10 ou grupos que, de alguma forma, já tinham tendências, perturbações ou desvios de ordem psicológica. A cognição ligada à informação induz a processos identificatórios: alguns grupos urbanos - carecas, funkeiros, skatistas, cybernautas, sem-teto, grafiteiros, rappers e outros – unem-se para vencer dificuldades ou buscam novas associações, que se originam no tecido urbano de características semelhantes. Alguns mais voltados à cultura externa, outros tentando resgatar elementos da cultura primitiva, e outros buscando escapar do anonimato e da padronização da mídia. Dentre esses grupos, aqueles que tentam se aproximar da música folclórica nordestina – pois nela identificam um elemento unificador e legitimador de seus anseios e visões de mundo - merecem uma investigação mais aprofundada, pois tecem novos caminhos no meio urbano paulistano. Alguns centros urbanos são formados com base em planos diretores cujas regras são rígidas e estruturadas pela sociedade através das prefeituras, dos agenciamentos e da divisão da propriedade. Tais competências contemplam o direito, o uso, a circulação, o saneamento e a ocupação das estruturas que compõem esses centros. São Paulo é um grande centro urbano cujo crescimento é desordenado. Assim a qualidade de vida vai se deteriorando, em decorrência da expansão demográfica, da velocidade dos carros, da violência, e do inchaço populacional provocado pelos fluxos migratórios. Muitas tentativas têm sido feitas para recuperar o centro e adequar o uso das estruturas da cidade. Essas tentativas têm, como principal objetivo, democratizar e revitalizar a cidade como um todo. As gangues, as torcidas, as galeras, os grupos e as tribos urbanas são um fenômeno recente e pouco estudado. 11 Assim, o presente estudo analisa o meio urbano de São Paulo sob o prisma da comunicação, pela observação e análise dos movimentos das tribos urbanas permeáveis à globalização. Essas tribos, não restritas às estruturas rígidas, (re)elaboram suas significações criando territórios dinâmicos, mantêm fortes ligações com suas raízes, e recebem e assimilam rapidamente novas influências, o que as faz voláteis e associativas. A dinâmica da cidade não acompanha o desenvolvimento das tribos que, de posse de novos meios de comunicação, tornam-se violentas, agressivas e se impõem desafiando a estrutura da cidade. Comandos, justiceiros, torcidas organizadas, gangues e galeras têm sido objeto de estudo e/ou ação direta de sociólogos, psicólogos, urbanistas, jornalistas, e tumultuam a cena contemporânea das grandes cidades. Neste trabalho, optamos por analisar um grupo urbano que pertencente à tribo “nordestina-percussiva”, constituído por pessoas mais abertas, menos violentas e próximas à música percussiva e ao lúdico. Para facilitar a compreensão do leitor esclarecemos que entendemos tribo como um conjunto de forças que deslocam o “estar junto” dos grupos para um determinado vetor cultural, enquanto grupo é o deslocamento do Eu individual para um sendo em trânsito, até formar a conscientização do “estar junto”. As dinâmicas das vertentes do grupo estudado, e suas relações temporais e espaciais, mostraram uma característica nova em relação aos outros grupos urbanos: a música percussiva. Os fatores comuns das tribos são: a questão das identidades múltiplas, da resistência cultural, das transcendências e dos territórios que estão normalmente ligados à discriminação e à marginalidade. A música percussiva dos 12 anos noventa agrega novos valores e visibilidades através da música eletrônica, da musica étnica ligada à cultura dos terreiros e da música iniciática. Salvador e Recife são grandes exemplos: depois de Carlinhos Brown e Chico Science, a quadra, os blocos e a rua dessas cidades perderam o estigma da violência e puderam afirmar seus valores culturais pela música que mudou o modo de ser, de pensar e de agir de toda uma geração. A mudança musical alterou comportamentos, atitudes, e despertou a indústria cultural para o movimento do gueto, dando visibilidade à música afrodescendente. Os elementos que vão do lúdico à comoção - ligados à música folclórica nordestina – são relativamente novos em São Paulo, e careciam uma investigação mais aprofundada. Até que ponto eles estão ligados à cultura urbana ou são cópias importadas de “fora” e incorporadas à cidade? Os grupos baianos de Salvador - como a Timbalada, os blocos e os trios - têm essas mesmas ligações, que mudaram significativamente a cena e os costumes soteropolitanos, ganharam espaço nas as gravadoras e foram superexpostos na mídia, o que provocou o nivelamento e a dissolução da essência do movimento. Mas, ainda que massificado, o movimento musical baiano motivou alguns grupos paulistanos a buscarem o mesmo caminho: uma visibilidade através da música percussiva. O grupo aqui estudado era inicialmente constituído por migrantes do norte e do nordeste, que viam no folclore e na música percussiva uma possibilidade de (re)elaboração de seus significados na grande cidade paulista. O fato novo é que esse grupo se mantém distante da importação de modelos externos, ao contrário do que ocorre com os grupos ligados ao Rock, ao Hip Hop, ao Funk e ao Rap. 13 A maioria dos problemas sociais - como violência urbana, consumo de drogas, evasão escolar e vandalismo - tem como pano de fundo os novos agenciamentos das tribos e grupos urbanos, que resistem à difícil assimilação do indivíduo “rebelde” à família, à cidade ou à “ordem instituída”. A “ordem instituída” discrimina o vício, o viciado e também não admite as valorizações culturais dos colonizados: o caboclo, o índio e o africano. Essas instituições hegemônicas tradicionalmente protegem e corrigem o diferente, o infrator, o migrante, o estrangeiro, o desajustado mas, quando não têm êxito nessa empreitada, deixam que a rua, os amigos, os grupos e as tribos encarreguem-se do problema. Na rua, na cidade e no urbano as identidades das pessoas são diluídas, a metrópole age sobre o indivíduo modificando o seu “Eu” individual e egocêntrico para o “Sendo” em trânsito, em grupo, em tribo: polifônico. “O segundo Eu” grupal é competitivo, dinâmico, associativo e volátil. Formam-se, desta maneira, os guetos, as turmas, as gangues e os grupos que, dependentes das potencializações promovidas pela urbanização e pelo contato facilitado da tecnologia, passam a ter vontade própria e a ditar as suas próprias regras de comportamento formando tribos que, na maioria das vezes, chocam-se com a ideologia da cidade e das outras tribos. Desta maneira, o comportamento das tribos não é o mesmo que o de seus indivíduos ou da sociedade em que eles vivem. Dependendo das forças sociais, essas tribos tumultuam a normalidade e adquirem forças descontroladas que levam à banalização da violência. Nosso problema foi estudar como esse grupo, mais musical, percussivo e aberto, encontra a sua tribo, delineia seu território e sua organização e promove a 14 virtualização - que amplia seu território de ação, possibilitando que seus integrantes sobrevivam exclusivamente do seu trabalho, da força e da união coletivas e grupais -, o que o faz respeitado e escutado pela sociedade. Durante dois anos de convivência com o Baque Bolado, desde a sua formação - quando tinha o nome de Maracatu do Baque Bolado - até seu estabelecimento definitivo no cenário urbano paulistano, a presente pesquisa acompanhou a busca de valores que identificassem o grupo e seus aliados, e sua transformação até o lançamento do seu primeiro CD – quando já se intitulava Cia. do Baque Bolado. Verificamos, nesse percurso, que o grupo procurava novos estados de consciência, na tentativa do grupo de (re)ver seus valores culturais. Esses estados potencializados do corpo e da mente são difundidos por estilos e comportamentos internacionais impulsionados pelas tribos da worldmusic e da etnomuisic - amplamente difundidos pela mídia e pela massificação do som eletrônico nos anos 90 -, que provocam dependência pelo êxtase e pela comoção decorrentes da exposição do corpo ao som e à imagem sincronizados e cadenciados. Nos anos 90 as festas, principalmente aquelas em que a música eletrônica era a tônica, ganharam um público internacional. Tais festas tiveram seu início com as tribos urbanas de Berlim quando da queda do muro que a dividia em duas: Berlim Ocidental e Berlim Oriental. Os jovens de Berlim Oriental foram expostos à mídia ocidental - através da TV e do rádio - propositalmente. Quando o muro deixou de ser um obstáculo, as discotecas ocidentais foram o palco de intermináveis shows e festas. Nelas, os DJs e os VJs alemães desenvolveram a música eletrônica que proporcionava o êxtase, logo batizada de trance. Essa elaboração da música das 15 discotecas berlinenses coincidiu com a evolução dos mixers4, dos sintetizadores e da bateria eletrônica. A Rolland (fábrica de sintetizadores) vinha desenvolvendo, desde a década de 70, uma série de equipamentos eletrônicos com Ikutaro Kakehashi. Deve-se a Ikutaro a integração entre a bateria e o sintetizador que originou o sampler, equipamento capaz de gravar, alterar e reproduzir sons e associá-los ao teclado, o que permite que sejam executados durante a performance musical. No decorrer desta tese veremos como o Baque Bolado, sob as influências da cultura musical eletrônica e da percussão brasileira e africana, é motivado a penetrar no mundo fechado do xamanismo brasileiro. A percussão, as músicas xamanísticas, os VJs e os DJs elaboram uma sofisticada relação entre sons e imagens que age sobre os nossos centros perceptivos. Essa ação altera os estados de consciência, e é a nova mola agenciadora das tribos urbanas em diferentes cidades cosmopolitas do mundo globalizado: Nova Iorque, Berlim, Rotterdam, Paris, Barcelona e Roma. Por sua vez, tais cidades modelam os comportamentos das grandes metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife e Fortaleza. OBJETIVOS Os objetivos do presente estudo foram: Investigar como se dá a transcendência à banalização e à espetacularização do cotidiano, do vestir e do sentir em grupo, revisitando as origens, (re)ritualizando e (re)elaborando os signos do presente. Os grupos urbanos têm, como elemento 4 Mixers ou MIXAR é o mesmo que “Misturar”;. na técnica do DJ significa juntar as batidas de duas ou mais músicas na mesma velocidade, nas mesmas bpms (batidas por minuto), buscando a passagem de um vinil ou cd a outro, ou a fusão de uma música com outra. 16 unificador, a busca de uma essência, uma valorização etnológica que se contrapõe à massificação homogeneizadora, à cópia, à repetição e à imitação de modelos e maneiras, que fazem os lugares e as pessoas ficarem semelhantes. Diagnosticar como se dá a territorialização de conteúdos grupais na identificação do nicho, do gueto como condição de permanência e de proteção e preparando um terreno fértil para a transmissão dos significados cultuados: a comoção e a emoção, através da percussão que assimila os “pontos” de “terreiro” e mescla-os à festa profana urbana, verificando suas (re)elaborações e (re)valorizações na volatilização do território tribal. Esses pontos serão desenvolvidos adiante, em capítulos que analisam as roupas, a corporalidade, os códigos, os territórios, as influências e os comportamentos do grupo Baque Bolado em São Paulo e suas ligações com a cultura nordestina e os outros grupos paulistanos que formam uma tribo percussiva que preenche o vácuo originado pela morte do músico pernambucano Chico Science 5 e seu estilo manguebeat6. 5 O músico sofreu um acidente automobilístico - seu Fiat abalroou um poste na divisa entre as cidades de Recife e Olinda no dia 2 de fevereiro de 1997 -, que encerrou sua promissora carreira aos 31 anos de idade. 6 O jornalista pernambucano José Teles (Teles, 2000) descreve como foi criado o termo manguebeat: "Sons negros no Espaço Oásis", este foi o título de uma matéria publicada em 1° de junho de 91, no JC, em que a palavra "mangue" apareceu pela primeira vez na imprensa para designar um estilo musical (e também a primeira foto de Chico Science publicada na imprensa). Chico veio à redação divulgar uma festa chamada Black Planet, que ele produzia e que teria participações dos DJs Mabuse e Renato L, e um grupo de sambareggae, o Lamento Negro, com o qual ele havia começado a trabalhar. Espaço Oásis ficava em Casa Caiada, bairro de 0linda. O desconhecido Chico Science foi recebido como normalmente se recebem artistas em início de carreira em redações: com pressa. Geralmente, o repórter atende com o pensamento voltado para a matéria que redigia ao ser interrompido. O fato de ser amigo de Fred Montenegro, o Fred 04, então jornalista da TV Jornal, e de Renato L, também do ramo, contribuiu para que ele não amargasse um chá de banco, ou uma raquítica notinha. O jornalismo é uma profissão cruel. Pior ainda, aquele rapaz amulatado, de estatura mediana, franzino, com um sotaque arrastado, não tinha pressa, e ainda arrotou arrogância nas explicações sobre o que seria um novo gênero que "teria " inventado: "O ritmo chama-se Mangue. É uma mistura de samba-reggae, rap, raggamuffin e embolada. O nome é dado em homenagem ao Daruê Malungo (que em iorubá significa companheiro de luta). Um núcleo de apoio à criança e à comunidade carente de Chão de Estrelas ". Chico era o que em Pernambuco, entre o povão, taxa-se de "baixinho invocado". Achando pouco ter assumido a paternidade de um ritmo” (p.263) 17 JUSTIFICATIVAS Na cena contemporânea, a volatilização territorial do neotribalismo promove alterações e conotações bárbaras, primitivas e neocanibalescas: a violência. O espaço tradicional da cidade abriga diferentes tensões sociais em uma mesma área física, e a exposição às mais recentes ferramentas da informação provoca novas tensões e associações, que utilizam o novo espaço em rede de diferentes maneiras. A contenção, encaminhamento ou solução dessas forças é uma tarefa da sociedade e de seus legisladores. Quando abrimos espaços virtuais, tais forças tornam-se passíveis de outros agenciamentos, invisíveis ao olho físico e social. São inúmeros os casos de homicídios, rebeliões, vandalismo, alterações de comportamento, trocas de identidade, formação de guetos, apropriação de novos territórios, valorização de antigos preconceitos e novas discriminações, que compõem as forças cotidianas normalizadoras das metrópoles pós–modernas e induzem a processos de descolamento das identidades, doravante intituladas forças de volatilização. Utilizamos também o conceito de tribo semelhante à ótica sociológica de Maffesoli (2000), cujo eixo social-filosófico está centra-se na costura teórica baseada no pensamento de Max-Weber, Durkheim, Simmel, E. Morin, W. Benjamin, J. Baudrillard e Perniola. Maffesoli analisa as tribos sob o declínio do individualismo moderno frente às mudanças pós-modernas provocadas pela TV a cabo, o computador e a moda. Para o autor, a tribo procura um ser/estar junto, coletivo, transcendente e em êxtase. No que concerne à comunicação, formulamos o conceito de grupo, agrupamento, agenciamento ou gangues que, em sua maioria, são cópias ou importações rápidas, pressionadas pela moda ou por vetores culturais globalizantes. 18 Quanto a tribo, esta é composta por um ou mais grupos de pessoas associadas por uma afinidade comum. No presente trabalho analisaremos os grupos paulistanos que se unem afinados pela mesma vertente musical-percussiva do folclore nordestino: o Bumba-meu-boi7, o Coco8 e o Maracatu. Uma tribo pode ser constituída por um ou mais grupos que trocam similaridades. O Baque Bolado, grupo escolhido para este estudo, apresenta tais características em relação ao estar junto em êxtase. Aprofundaremos como o transe brasileiro - que tem ligação com o terreiro e com o carnaval - é incorporado à musicalidade do grupo. A discriminação, a segregação, a violência e o comportamento segmentado fazem com que a tribo seja uma fuga, uma saída que ameniza os problemas raciais e sociais comuns à sociedade brasileira, em que o racismo e a mestiçagem são dissimulados. A pesquisa com o grupo paulista Baque Bolado procurou, propositalmente, manter-se distante da violência, da discriminação racial e da mestiçagem. O Baque Bolado é um grupo aberto, democrático e pacífico que, por meio da música, utiliza o urbano como elemento transformador do território, apresentando relações complexas com a origem e o meio. Simultaneamente, o grupo molda novos comportamentos, que acabam transbordando o seu próprio território e tornam-se internacionais. Desta forma, tentaremos mostrar que as tribos são 7 Bueno (2001), p.27: “O Bumba-meu-boi constitui uma dança dramática de representação social que articula valores de etnia, cultura e classe. É reinterpretado comunitariamente Brasil adentro, em variantes do Maranhão, Piauí, Pará, Amazonas, Ceará, Paraíba, Pemambuco, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de ]aneiro, São Paulo e Santa Catarina, entre outros Estados, seja no ciclo ]oanino, seja integrado ao ciclo natalino do Reisado. Há comunidades, sabidamente de São Paulo e Alagoas, que o apresentam no Camavar. Ocorre até no Benin, entre famílias de africanos retomados da Bahia, trazendo o nome de" Buriyan ", a Burrinha que acompanha o Boi, feita personagem principal em processo similar ao do "Cavalo Marinho" de Pemambuco. É familiar também aos habitantes dos grandes centros urbanos, pelos meios de comunicação de massa, mais como a figura de pano e fita do que como o foco central de uma narrativa musicalizada e dançada.” 8 Dança e canto afro-brasileiros ligados a mutirões de levantamento de casas e de quebra de cocos. A tradiçaõ oral registra a importância desses cantos de trabalho já no século XVII, nos Quilombos de Palmares. Sua rítmica espalhou-se pelo nordeste e colaborou na formação dos Baianos(Baião) e Forrós. 19 influenciadas por forças que mantêm relações mais fortes com o aparato cognitivo sensorial do que as forças sociais ligadas à violência e a discriminação racial ou de classe. De posse dessa “visão antropológica” das tribos é possível compreender a “democratização dos espaços” centrais da cidade em territórios “livres”, onde há proteção e terreno fértil para o agenciamento e o crescimento das tribos. O centro paulistano permite novas resistências, identidades, virtualidades e volatilidades. Assim ele se transforma rapidamente em palco de gangues, comandos, grupos de menores carentes, malandros, traficantes de crack, carecas, sacoleiros, ambulantes, assaltantes, rappers, funkeiros, skatistas etc. Cada tribo em seu território defendendo seu lugar ao sol. A diversificação e a popularização das novas classes sociais na cidade leva a classe média hegemônica para a periferia - onde se abriga em condomínios fechados -, o que possibilita maior diversificação social nos centros urbanos. A infra-estrutura rígida do centro não acompanha essa fuga da classe média. Ela, que investiu e construiu o centro vê-se agora obrigada a abandoná-lo, levando-o à rápida deterioração ou à necessidade de novos investimentos, que atendam às necessidades das classes que chegam do campo, de cidades menores, dos estados vitimados pela seca, dos bairros afastados ou, até mesmo, daqueles que fogem dos caros aluguéis dos bairros de classe média. Por outro lado, os condomínios cercados e privatizados são objeto de investimentos voltados à segurança e à infra-estrutura: luz, esgoto, saneamentos e até tratamento privado de água potável. Esse movimento de falência dos centros, aliado 20 à tecnologia da informação, subverte a noção de cidade (principalmente aquela dos países em desenvolvimento) como um único centro cortado por grandes artérias de fluxo de carros. A nova cidade é constituída por vários centros, polarizados por áreas periféricas isoladas próximas a pequenos centros comerciais, auto-estradas ou rodovias. O fluxo da informação segmenta a cidade em pequenos guetos, pequenos nichos, e as identidades dos grupos são (re)agrupadas pela imitação do “outro”. Assim, o fluxo informacional não passa por nenhum centro ele é (re)direcionado para os segmentos da sociedade (grupos). Pequenos centros assumem o papel do centro único e articulam-se entre si, formando uma malha caótica e complexa de relações. Dentro dos pequenos centros, a informação converge para o indivíduo inerte e sedentário que, em sua poltrona, navega rapidamente pela rede. “De fato, se a melhoria da definição espacial das lentes ópticas das objetivas das câmaras promove a visão dos contrastes e aumenta a luminosidade da imagem habitual, a recente melhoria da definição temporal dos processos de captação de imagem e de transmissão eletrônica aumenta a nitidez, a resolução das imagens videoscópicas. Deste modo, a velocidade audiovisual serve para ver, para ouvir, ou por outras palavras para avançar na luz do tempo real, como a velocidade automóvel dos veículos servia para avançar na extensão do espaço real de um território”. 9 Inverte-se, desta forma, conforme Virilio, o que o automóvel proporcionou: um “devir” através de ruas e avenidas e seu deslocamento individualizado sobre o tecido urbano. A era do automóvel modificou o andar entre os signos da cidade, acelerando o urbano até que as ruas se transformassem em grandes vitrines, barulhentas e cheias de anúncios luminosos que invadiram as fachadas, saltaram 9 Virilio (1993), p.21. 21 sobre as ruas e expulsaram os moradores para lugares com menor movimento e barulho. A era da informação altera radicalmente essa tendência, pois permite outro tipo de locomoção e agenciamentos ligados às telas dos computadores, às microtelas dos celulares - totens eletrônicos urbanos –, e aos mixers de imagens e sons digitais. Agora, essas máquinas digitais concentram sua potencialidade para o indivíduo, acelerando sua motricidade, mudam a cognição, excitam novas memórias, trazem novos prazeres, novos territórios, reflexos, condicionamentos e agenciamentos. Mesmo os desplugados acabam sofrendo com as mudanças sociais e espaciais da cidade. O exemplo é a plastificação do dinheiro. É praticamente impossível ver o dinheiro no banco, pois ele se volatilizou e está disponível em todos os caixas eletrônicos. Ir ao banco, atualmente, tem um significado diverso daquele de há dez anos. Da mesma forma, os presídios brasileiros não se preocuparam em isolar o acesso à telefonia celular. Tal despreocupação possibilitou que os presos organizassem rebeliões de âmbito nacional e sofisticada organização, garantida pela potencialidade desse veículo. Surgiram grupos organizados - mediados por novas tecnologias e agenciamentos -, que se adiantaram velozmente, enquanto o controle, as prisões, não são capazes de aprisionar o “corpo virtual delituoso”. No Rio de Janeiro o Comando Vermelho (CV), e em São Paulo o Primeiro Comando da Capital (PCC)10, promoveram rebeliões, fugas e motins sem precedentes na história 10 A sigla PCC (PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL) identifica é um comando de presos nascido em 1993. A primeira ação do grupo - o assassinato no de dois outros presos no - ocorreu em agosto de 1993:. Desde então, os integrantes do grupo foram sendo transferidos, disseminado suas convicções e formas de ação pelo sistema e fomentando rebeliões. Na Casa de Detenção de Sorocaba, Geleião comandou um motim em 28 de dezembro de 1997: nessa ação, tornou reféns parentes de presos e ameaçou explodi-los com botijões de gás. A revolta terminou três dias depois, com um detento e um visitante mortos. Depois dessa rebelião, o governo transferiu as lideranças do PCC, internadas em Taubaté, para o Paraná, onde fundaram o PCP (Primeiro Comando do Paraná), e o movimento ganhou dimensão nacional. 22 carcerária brasileira. Tais comandos tentam identificar seus territórios por letreiros luminosos colocados nos morros, pichações das suas iniciais nos muros, e intimidam a população a não vestir a cor do grupo rival. A cada rebelião os líderes requisitam uma “transferência” para outros presídios e, em poucos meses, assistimos a uma generalização dos motins, que passaram da esfera regional para a esfera nacional. Assim, os comandos, as gangues, as tribos e as galeras aprendem - pela necessidade de sobreviver - a utilizar a volatilidade, e fixam-se em nichos específicos, que formam seu território. O Baque, embora afastado da violência, busca na volatibilidade uma maneira de fugir da proibição policial - devida ao barulho ensurdecedor - de executar seus tambores aos domingos nas ruas da Vila Madalena e passa a ensaiar, a cada domingo, em uma praça além de buscar, nas casas noturnas, um espaço para o aprendizado e a manutenção do grupo. Através de seu site, convoca e mobiliza rapidamente seus trinta integrantes, o que garante uma fluidez que possibilita a sobrevivência e a permanência do grupo. Atrasada em relação a esses novos agenciamentos, a cidade, da mesma forma que a polícia carcerária, adapta-se lentamente às novas informações: criam-se tardiamente regras de utilização, serviços especiais de controle e vigilância que, ao serem implementados, já se tornaram obsoletos. Acessos mais seguros e rápidos à Internet e ao celular aumentam essa velocidade e permitem que o rádio, o telefone e o jornal tornem-se produtos híbridos, incorporando as vantagens desses novos meios. Nas esquinas surgem enormes painéis eletrônicos, totens informatizados, vitrines e serviços de informação instantânea que conferem ao cidadão a imersão digital obrigatória e dependente. Paulatinamente o espaço real é vazado por túneis legais e 23 ilegais, que minam o espaço lógico tido como normal. O processo de “tunelagem” tem relação com a nova física descrita pelo professor inglês Roy Ascott (Ascott, 1997), ou seja, as virtualidades: “A tunelagem, através de microtubos, está lincada na minha cabeça a uma outra metáfora muito sugestiva da física que é útil na discussão sobre os rumos da arte, que é a metáfora do buraco de minhoca (wormhole). Os buracos de minhoca são encontrados em tunelagens na espuma quântica (quantum toam). Na topologia do espaço, um buraco de minhoca é uma "alça" que conecta dois lugares extremamente separados em nosso universo, permitindo assim o rápido trânsito das partículas e das pessoas que agora estão sendo debatidas, de uma camada de realidade para outra, de uma estrutura de tempo para outra, de uma galáxia para outra, em microssegundos ou, virtualmente, em tempo algum. A espuma quântica (quantum toam) pode não significar muito para nós em nosso nível cotidiano de experiência, mas a tunelagem naquilo que se poderia chamar de espuma de dados(datatoam), de uma camada hiperlincada para outra, lançar os buracos de minhoca de uma telepresença para outra, de um website para outro, realmente zapear de uma cabeça para outra, e mais rápido que a velocidade da luz possa permitir, é uma aspiração perfeitamente razoável para todos nós que vivemos e trabalhamos no universo telemático pós-biológico. Para o artista isso está se tornando uma necessidade criativa”.11 O espaço físico é corroído por “buracos” que se ligam à parte virtualizada do mesmo espaço. Da mesma maneira, o hipertexto potencializa palavras que estão ligadas ou linkadas a novos conteúdos. Os “túneis virtualizantes”: portais, painéis eletrônicos, totens informatizados e celulares inteligentes bombardeiam o espaço real com um mar de informações, tornando-o múltiplo, instantâneo e interativo. O corpo também é virtualizado pela inércia, e encontra uma fuga na “tunelagem” imposta ao espaço real-físico. Essa fuga ajuda a liberar o corpo real da prisão física da gravidade. Pessoas com doenças imobilizantes ou desvios psicológicos mergulham no mar de informações fluido, ganhando cinestesia e novas facilidades: ir às 24 compras, ao banco e às lojas pela internet tem auxiliado a vida de muitas pessoas. Adiante veremos como o “corpo duplificado” se neotribaliza e navega nesse novo meio através da rede e da música percussiva. Assim, nosso grupo do Baque estabelece uma relação com grupos distantes, (re)configurando suas influências e raízes. Mantém relações on-line com o mundo da música, que também soube apropriar-se dessas facilidades eletrônicas. As grandes gravadoras sofrem uma ação devastadora com a cópia, o plágio, a pirataria, e são obrigadas a se manterem atualizadas e vigilantes nesse meio. Há muitas informações, e não há distinção entre as boas e as ruins. Cabe ao receptor escolher ou desenvolver a capacidade de discernir, nesse mar de informação, a sua identidade e as suas necessidades, o seu nicho e o seu novo espaço antropológico12 - que não invalida sua relação étnica, mas acaba re-ordenando, dissimulando e polarizando tendências identificatórias que, às vezes, derrubam antigos preconceitos ou formam novos. Dinâmicas semelhantes permeiam outras tribos, formando novos territórios e agenciamentos. Os processos tribais, por serem pontuais, são mais rápidos que a sociedade e, ao estudá-los, é possível visualizar forças que aparentemente são confundidas com a violência, o vandalismo e a banalização dos costumes e tradições. 11 Ascott (1997), p.340. 10 Citando Lévy (1999), que formula o conceito de espaço antropológico: “(...) Vivemos em milhares de espaços diferentes, cada um com seu sistema de proximidade particular (temporal, afetiva, lingüística etc.), de modo que uma entidade qualquer pode estar próxima de nós em um espaço e bem distante em outro. Cada espaço possui sua axiologia, seu sistema de valores ou de medidas específico.(...) (...) Os espaços antropológicos estendem-se ao conjunto da humanidade. São constituídos, por sua vez, de uma multiplicidade de espaços interdependentes. A Terra, o Território, o Espaço das mercadorias ou o Espaço do saber são engendrados pela atividade imaginária e prática de milhões de seres humanos, por máquinas antropológicas transversais presentes nas obras dos sujeitos, como no detalhe das técnicas e agenciamentos das instituições.(...)”. (p.127). 25 O grupo musical Baque Bolado distancia-se da violência e tem uma (re)elaboração cultural, rítmica e territorial complexa. Essa mudança motivou a alteração do nome - do qual foi retirada a palavra maracatu – e a reorganização do grupo, para se manter aberto e aprimorar o estudo rítmico de suas tendências. A reorganização vinculada à tecnologia só foi realmente implementada quando o grupo comprou computadores e mudou seu sistema interno de organização. Atualmente, também as empresas brasileiras têm adotado a (re)engenharia, que enxuga suas estruturas e torna-as mais competitivas e reduz seu custos fixos. As empresas vêm democratizando o poder de decisão distanciando-se do regime autoritário e familiar, cuja característica é a concentração do poder. Para sobreviver no mundo globalizado, as empresas que necessitam de máquinas mais sofisticadas e da (re)elaboração de sua estrutura decisória. Isso também acontece com os agrupamentos urbanos que, expostos ao novo meio, sofrem modificações na sua estrutura de decisão e atuação. O homem interage com a máquina criando novas interfaces, que modificam a sensibilidade e alteram a transmissão e a assimilação de valores. Com o conceito de máquinas antropológicas proposto por Lévy explora-se a fronteira da cognição individual, da capacidade do cérebro humano de interagir com essa nova velocidade do fluxo de informações. De acordo com a teoria da coevolução, essa nova fronteira é explorada pelo feedback positivo; ou seja, a evolução humana já não depende apenas da seleção natural ou genética, mas da interface homem-máquina-cultura e das capacidades motoras adquiridas; do tempo de exposição aos fluxos da informação; do desenvolvimento dos programas e softwares, aliado aos avanços da imagem computadorizada. 26 A PESQUISA Nosso primeiro contato com a temática urbana e seus efeitos sobre o comportamento dos jovens foi realizado durante o trabalho de mestrado (cinco anos), no qual estudamos as várias gerações do grafite urbano paulista, o que originou a dissertação intitulada: Grafite Arte Urbana em Movimento13. O estudo foi conduzido de forma participativa e ativa. O movimento grafite dos anos 80 moldou uma geração, e preparou terreno para o tribalismo dos anos 90. Ao final da citada pesquisa, constatamos que as novas gerações dominavam jogos eletrônicos, videogames, e já utilizavam o suporte eletrônico-digital em rede. Os suportes tradicionais, como muros e portas de lojas pareciam insuficientes, o que levou à escalada para locais mais altos e inacessíveis, como o alto dos edifícios, os viadutos, os cartazes de propaganda etc. Estabeleceu-se uma diferenciação equivocada entre pichação e grafite. Essa corrida distanciou o grafite (graffiti) urbano das artes plásticas, e sua aproximação com a música foi fortemente influenciada pelo movimento Hip Hop. Um grafismo hermético, com variações da inscrição (Tag) ao muralismo neo-realista-suburbano. O mencionado trabalho já detectara os elementos sensoriais que agiam sobre o comportamento dos jovens, tornando-os presos à atividade de inscrição anônima. Alguns chegavam a mudar de hábitos, trocando a vida normal pela vida noturna das pichações; outros viciavam-se em games eletrônicos formando novas tribos, que se enfrentavam nas máquinas, nos muros e nos encontros de “grafiteiros”. Dessa forma, 13 Lara (1996). 27 o movimento grafite mudou das páginas culturais dos periódicos para as páginas policias. Diógenes (1998), em Gangues, Galeras e o movimento Hip Hop, aprofunda a territorialidade da violência, sob a ótica sociológica de Hobsbawn (1978), Guatarri & Rolnik (1996), Benjamin (1975) e Morin (1996). A autora analisa os movimentos, as brigas, a linguagem e o comportamento das “turmas”, da “cruzetagem” dos “rebeldes urbanos” ligados ao movimento do Hip Hop na cidade de Fortaleza (Ceará). Diógenes ressalta o limite entre as gangues de Hip Hop e a definição de cruzetagem: “quebra dos pactos territoriais”, que também utilizaremos na abordagem das tribos urbanas. O mapeamento elaborado por essa estudiosa é bastante aprofundado e fornece uma ampla visão das galeras de Fortaleza: “O cruzeta, tipo significativo na definição dos limites entre áreas, é reconhecido, consensualmente entre as gangues, como o indivíduo que desrespeita os pactos e as fronteiras, "ele quebra os contratos feitos e avança os limites das áreas" (participante da Gangue das Goiabeiras). O cruzeta cristaliza no imaginário das gangues a dimensão da traição dos pactos territoriais que delimitam os limites de fidelidade entre as turmas. Como o território é um referente em movimento, que transcende barreiras estritamente geográficas, o cruzeta representa a possibilidade de formação de uma identidade amalgamada e diluída por múltiplas marcas e sinais. O cruzeta põe em xeque a possibilidade de uma filiação fixa, compactuada, reconhecida e registrada entre os enturmados. Por tais razões, ser acusado de "cruzeta", "cabuete", "tesoura", "cacoete" é o risco que correm as gangues quando realizam incursões em outros bairros da cidade, o risco que correm os seus integrantes de perderem suas marcas, suas instituições de reconhecimento. „Tem uns que anda noutra área e tem de outras áreas que não pode andar aqui. Quando acontece isso, tem uns que vai com maldade, diz que a gente tá cruzetando. Aí quer quebrar a gente, quer botar pra sair do ar, pra não andar com maldade (Integrante da FIEL)‟. A cruzetagem é uma forma de quebrar pactos estabelecidos entre as gangues, de desobedecer princípios acordados internamente, e a iniciativa de praticá-la recebe uma sanção drástica, como medida de manutenção do grupo e da 28 dinâmica produtiva da existência da gangue como tal. Qual seria então a forma de visitação encontrada pelas gangues para seu registro em outros espaços da cidade, como cruzetar de forma permitida?”14. Tomamos aqui direção oposta àquela de Diógenes, com base na comunicação e na aproximação antropológica. A “cruzetagem” será focada como uma associação tribal, norteada por direções comuns aos grupos que se alinham em vetores culturais tribais. O grupo ora estudado busca a autenticidade brasileira, fugindo do nomadismo dos jovens urbanos violentos que importam modelos, soluções raciais e adaptações musicais exteriores à nossa cultura. A experiência e a vivência adquiridas em campo, no período em que desenvolvemos nossa dissertação de mestrado, apontaram para a necessidade de um estudo e uma discussão mais cuidadosos dos conceitos espaciais que envolvem as diferentes tribos. À medida que se verificava a forte influência da música em alguns grupos urbanos, foram identificadas forças que os assimilavam ao sistema, padronizando os comportamentos e uniformizando os discursos. Uma vez que esses grupos são repetitivos e de difícil aproximação, escolhemos aqueles que tinham características novas e que se diferenciavam do movimento Hip Hop15 - que se tornou popular e apresenta elementos culturais externos de minorias americanas (EUA), que reivindicam espaço político defendendo-se da violência e da discriminação, também presente no cenário brasileiro. Além disso, tais grupos sofrem forte influência da matriz americana, que molda comportamentos e atitudes divulgando seus líderes em estampados, revistas, programas de TV, fanzines e HQs 14 Diógenes, op. cit., p.151. 15 Ver a instigante análise de Diógenes (1998) que contempla, sob o prisma da exclusão, o movimento jovem das grandes cidades brasileiras e, por meio do contato e da observação das gírias, das roupas e das coreografias, decifra o imaginário e as redes de significados dessas tribos. 29 disseminando, por toda a parte, um culto mítico à personalidade de alguns grupos. Os grupos mais novos, ligados à cultura brasileira, careciam de estudos mais aprofundados. Assim, elegemos o maracatu urbano em comparação à cultura rave. Os dois movimentos são semelhantes no que concerne ao êxtase e à sublimação pela música - obtidos pelos ritmos intencionalmente cadenciados -, mas o primeiro tem forte ligação com a riqueza e a diversidade culturais brasileiras. Essa tribo trouxe novas contribuições ao processo de busca por estados alterados da percepção induzidos pelo cadenciamento, fenômeno que não é novo na metrópole: os grafites da “figuração livre” e da stencil-art16 já continham elementos repetitivos, de vez que adotavam carimbos, criações de ícones e personagens retirados das HQs ou das cenas cotidianas da cidade. Tentamos, desta forma, penetrar nas inter-relações culturais, no mapeamento dos espaços cognitivos virtuais e reais da tribo urbana que utiliza a música percussiva, e suas relações com os rituais de “transe”, de “possessão” e de “comoção”. Comparamos e entendemos as diferenças territoriais e culturais do grupo Baque Bolado, suas transcendências, assimilações e (re)elaborações na cidade de São Paulo. A globalização promove a destruição e a compressão das culturas locais pelos mercados internacionais, que modificam os costumes e o cotidiano. Os rituais e as singularidades perdem a sua identidade ou são massificados, gerando induções a comportamentos e necessidades coletivizantes ligadas a movimentos internacionais, que movimentam grandes fortunas com os lucros advindos do consumo e da distribuição do “novo comportamento”. Dos carros computadorizados às bebidas 16 Estilo que produz imagens a partir de uma máscara (molde de papelão duro vazado). 30 energéticas, das músicas hipnóticas das festas rave ao hambúrguer light, das passarelas da moda às discotecas, o consumo global procura dar ao corpo uma maximização individualizada de suas potencialidades, solitária e desconectada da cultura e da sua própria identidade local. Verificamos que, no grupo escolhido, há elementos que mantêm relações profundas com os terreiros e, por isso, apresentam resistências à cultura do corpo globalizado. Isto porque são diretamente influenciados pelas culturas afro-brasileira e indígena. O sangue nordestino carrega em si essas duas culturas, nas quais se verifica uma preocupação diferente com o corpo - que serve de vestimenta, de veículo para atingir a virtualidade pela possessão. Quando o êxtase é atingido coletivamente (e não individualmente), o mestre (pajé ou pai-de-santo) procura trazer todos à normalidade de modo seguro. Os lanceiros do maracatu rural pernambucano, por exemplo, preparam-se durante todo o ano o ano para a sua “saída” no carnaval. Dias antes há uma reclusão iniciática, uma introspecção que busca a “força”. O saber e a experiência adquiridos do “lado de fora” nas festas e possessões são presenciados por todos, coletivizados em rituais, em curas, em purificações. Assim, o indivíduo tem a sua sorte encaminhada, a sua doença curada e estancada, uma vez que a fonte causadora do mal é identificada. A partir daí, ele (indivíduo) deve prestar favores, oferecer recompensas para “pagar” a graça alcançada, e estabelece um “elo” com o “mundo paralelo”, com a mediação do pai-de-santo ou do pajé. Houve, no grupo, uma tomada de consciência sobre o significado do maracatu em relação ao significado das letras, dos ritmos e das viradas. Elaborou-se uma espécie de rodízio entre as posições de comando e os instrumentos mais difíceis de 31 tocar, a fim de melhor direcionar o cortejo e não evitar que se tornasse uma festa ou uma “salada” percussiva. Os integrantes mais experientes forma misturados aos mais, facilitando a manutenção do ritmo certo. Paralelamente, aqueles que se dedicavam às pesquisas ganharam maior liberdade e mais tempo para empregar nas oficinas e nos contatos com os outros grupos (cruzetagem). As influências e outros ritmos foram trazidos e incorporados pelo Baque. O presente trabalho, que contempla o grupo Baque Bolado, segue o formato utilizado em nossa dissertação de mestrado. Aquela dissertação foi desenvolvida com jovens do movimento grafite da cidade de São Paulo, e teve um caráter participativo, atuante e modificador da cena urbana. No decorrer da investigação foram realizadas três mostras17, que envolveram diferentes segmentos do movimento grafite paulista. Ocorre que, presentemente, a cidade globalizada abriga grupos ainda mais fechados, às vezes até herméticos ao pesquisador e opacos ao olhar científico analítico. Assim, a entrada nesses grupos urbanos só é permitida às pessoas ativas, o que impossibilita a aproximação passiva e acadêmica que, muitas vezes, é comprometida pela lente e pelo filtro socioculturais do pesquisador. Já o grupo Baque Bolado - formado por jovens que buscaram o maracatu nordestino - foi vivenciado de perto, de maneira participativa, durante dois anos. Tal aproximação possibilitou a ampliação do olhar investigador que faz parte do corpo deste trabalho. Potencializar nossas capacidades físicas, mentais e sensoriais tornou-se corriqueiro graças à velocidade com que as informações trafegam através das fibras 32 ópticas, dos satélites, dos cabos submarinos, que interligam a telemática a organismos para os quais a informação é vital - como bibliotecas, centros de pesquisa, auto-estradas, centros de controle de tráfego (aéreo, terrestre ou hidroviário), pedágios, centros urbanos, centros universitários, centro hospitalares, grandes lojas, centros comerciais, grandes companhias – e deve ser precisa e atualizada. A velocidade dos signos atinge a sociedade como um todo, atingindo até mesmo aqueles que ficam à margem do sistema - os desplugados -, que são influenciados pela geografia moldada pelos eixos econômicos conectados via fibra óptica (infovias). Essas novas rotas do dinheiro, voláteis e às vezes especulativas, exploram alguns e beneficiam outros, mas infelizmente abraçam a todos. Nos locais beneficiados pela convergência da informação os indivíduos têm suas jornadas de trabalho reduzidas para evitar o stress, o desgaste e o desequilíbrio do corpo biológico, que levam a erros e danos físicos às pessoas. Já aqueles que atuam em lugares em que não há esse tipo de controle apresentam maior incidência de alterações e de disfunções comportamentais ou motoras (LER)18.Os bastidores de telejornais e os camarins de estações de televisão são povoados por seres que parecem não habitar nosso planeta - brilham com suas maquiagens, seus silicones, seus corpos nus, suas roupas sintéticas - e assemelham-se à tela mutante da TV, que imprime um ritmo acelerado à transformação do corpo em não-corpo: um misto de máquina-homem, enfim, seres trans-humanos. 17 As Mostras Paulistas de Grafite foram realizadas anualmente no MIS (Museu da Imagem e do Som) em São Paulo de 1992 a 1994. 18 Lesões por Esforços Repetitivos (LER) não são uma doença, mas a classificação de um conjunto de males provocados pelas atividades que a pessoa executa durante o trabalho. Esses problemas afetam o chamado sistema muscular-esquelético, que engloba os membros superiores e inferiores, a coluna cervical e a região lombar. 33 “O nu realizado eletronicamente não tem mais nada a ver com o corpo: ele levou ao extremo, de modo positivo, a pulsão de despir da Reforma e do Maneirismo. Em tese, nada impede a realização eletrônica de imagens perfeitamente realistas de nus de madeira, de ferro ou de vidro. Assim, despe-se o corpo até mesmo da aparência da carne. A subversão no mundo das formas vem acompanhada por uma produção potencialmente ilimitada de imagens. “19 O texto acima, do filósofo italiano Perniola, explica como o corpo se desprende da carne e assume uma nova roupa virtual. O Baque, da mesma forma, procurou incorporar o transe ao ritmo do maracatu, dando-lhes roupagem nova e urbana que distanciou-o da postura real do maracatu nordestino. No nordeste, o maracatu rural ou “de baque solto” é mais ritualístico e difere do maracatu “do baque virado” ou de “nação”, que é um maracatu mais comovente e urbano. O maracatu é um ritmo carnavalesco que sai às ruas em cortejos. O cortejo é constituído pela realeza, e tem um caráter sincrético religioso e cultural elaborado pelos afrodescendentes, os indígenas e os católicos portugueses que se estabeleceram em Pernambuco. As entidades referendadas são reis e rainhas africanos que foram trazidos com os escravos africanos. No maracatu, os afrodescendentes cultuam a celebração ao casal real: esse rei e essa rainha teriam vindo ao Brasil, mas cada um teria habitado uma determinada região e, aparentemente, jamais se encontraram. O cortejo do grupo paulistano foi radicalmente alterado, ganhou pernas de pau, roupas sintéticas divertidas e coloridas, assumindo sua urbanidade. Essa “desconfiguração” do cortejo - que não tem o casal real, a boneca e os vassalos tradicionais dos maracatus pernambucanos - provocou muitas críticas ao grupo. 19 Perniola (2000), p.123. 34 A música percussiva e a música eletrônica em movimento provocam o êxtase e a volatibilidade, gerando um desprendimento do corpo físico e liberando o corpo virtual num espaço sem gravidade, distância e materialidade. A volatibilidade e a cinestesia também podem ser geradas pelos meios eletrônicos em rede. O corpo virtualizado, sem fronteiras ou amarras, age dialeticamente sobre o corpo real, criando preocupações quanto ao seu desempenho, como se ele fosse “potencializado” para carregar o corpo virtual e seus novos desejos. O inverso também pode ser ocorrer, provocando uma crise no corpo real20. Assim se forma o “duplo eletrônico”, que assume maior importância que o corpo real ao transferir a identidade para um “self” virtual que origina o “segundo Eu”, que estudaremos em profundidade. Também o grupo Baque não se sentia bem no corpo físico, pois queria provocar um impacto visual que só foi possível quando incorporou roupas e chapéus de EVA que trouxeram “brilho” ao espetáculo. 20 A crise do “duplo eletrônico” é colocada pelo grupo ativista alemão Critical Art Ensemble DISTÚRBIO ELETRÔNICO (2001), p.62-63: “Considere o seguinte cenário: uma pessoa (P) entra em um banco pensando em conseguir um empréstimo. De acordo com a estrutura dramatúrgica dessa situação, é necessário que a pessoa se apresente como uma candidata a empréstimo responsável e confiável. Sendo uma boa atriz, e sentindo-se à vontade no papel, (P) se vestiu adequadamente colocando roupas e jóias que indicam um bom nível econômico. (P) segue adequadamente os procedimentos para pedido de empréstimo, e utiliza boas técnicas de montagem, com os apertos de mão adequados, levantando-se e sentando-se de acordo com as expectativas sociais e assim por diante. Além disso (P) preparou e memorizou um roteiro bem escrito que explica totalmente sua necessidade de um empréstimo, assim como sua capacidade de pagá-lo. Por mais cuidadosa que (P) seja em se ajustar aos códigos da situação, logo fica claro que sua performance em si não é suficiente para garantir o empréstimo. Tudo o que (P) conseguiu com a performance foi convencer o funcionário a entrevistar seu duplo eletrônico. O funcionário levanta seu histórico financeiro no computador. É esse corpo, um corpo de dados, que agora controla o palco. Ele é, na verdade, o único corpo que interessa ao funcionário. O duplo eletrônico de (P) revela que ela atrasou o pagamento de empréstimos no passado, e que está envolvida numa disputa financeira com outro banco. O empréstimo é negado: fim da performance.” 35 Figura 1 Banda Virtual Os Gorillaz www.gorillaz.com Desta forma, o “duplo eletrônico” concorre com o real e rouba-lhe a cena, seja individual ou coletivamente - a banda musical “Gorillaz” (Figura 1)21 é um bom exemplo: os músicos “reais” permanecem nas coxias22, e seus “duplos eletrônicos” é que vão ao palco; o público aplaude somente o corpo virtual, exibido em telões. As músicas do grupo dependem exclusivamente do corpo dos cantores (letras musicais, partituras, voz), e as imagens digitais (desenhos, efeitos cinéticos, ruídos) provêm das máquinas. O grupo de maracatu urbano aqui estudado sentia-se capaz de alterar os significados do maracatu, adaptando-os às necessidades da cidade de São Paulo. O descolamento das raízes era uma questão de liberdade e o visual foi modificado, embora a referência rítmica tenha permanecido intocada, pois alterá-la implicaria perda de comoção e de transe. E, sem a comoção e o transe não ocorreria a alteração 18 Sobre a banda virtual encontramos comentários na home page www.submarino.com: “...Gorillaz: a face animada de Damon Albarn e cia. “Os gorilas bem-sucedidos, na verdade, são os "Gorillaz", uma banda virtual representada por quatro divertidos personagens animados e produzida pelo guru do hip hop, o americano Dan "The Automator" Nakamura. Na verdade, o mistério rondava este "quarteto virtual" desde o lançamento, no dia 27 de novembro do ano passado, de seu primeiro EP (uma espécie de mini-disco), "Tomorrow Comes Today", pelo selo inglês Parlophone Records. A música título invadiu rapidamente as rádios independentes da Inglaterra (e também as rádios virtuais) e conquistou fãs que nem sequer sabiam quem eram os músicos da banda. A única pista era o belíssimo site oficial (www.gorillaz.com), lançado simultaneamente com o EP. Trata-se de uma divertida viagem pelo quartel-general dos Gorillaz e que apresenta um a um os membros do grupo: Murdoc (baixista), Russel (baterista), Noodle (scratches/guitarra) e 2D (vocal). Na verdade, a apresentação não esclarece muito, já que estes "músicos" não passam de personagens desenhados por Jamie Hewlett, criador da personagem cult britânica Tank Girl...” 22 Coxias são as partes laterais, ao fundo do palco, por onde se entra em cena. 36 dos estados cognitivos e a volatilidade do grupo não seria concretizada: o grupo permaneceria no chão, sem decolar. Adiante veremos como foi estabelecido o “vôo” do grupo, que lhe possibilitou cativar e aumentar seu público. Atingir estados potencializados e maximizados explorando o limite do corpo físico é uma situação de risco, pois beira um ataque de nervos ou uma explosão. Há aqueles que literalmente atravessam a fronteira e esquecem de retornar ao corpo em seu estado natural. Também estudaremos uma característica que tanto os grupos rave quanto os grupos de música percussiva do maracatu têm em comum: o distanciamento do “Eu” provocado pelo “duplo em comunhão”. Em ambos os casos há uma corporalidade, uma maneira de vestir e de sentir potencializada que virtualiza a identidade para uma identidade paralela, em êxtase e tribal. 37 AS HIPÓTESES 1. A potencialização do aparato cognitivo acaba desprendendo o “Eu” para o seu “duplo” em trânsito: eletrônico ou não, virtual ou real, mas em tribo. Essa virtualização, promovida pela comunicação, adquire vida própria, competindo com o corpo físico e moldando um “Eu Coletivo” que procura novos territórios e identidades, às vezes contraditórias, incontroláveis, agressivas e voláteis. As alterações dos estados perceptivos fazem que os grupos desenvolvam uma nova maneira de se relacionarem e se comportarem em sociedade. Vamos verificar como o grupo urbano Baque Bolado atinge esses estados somente com a música percussiva, e delinear sua trajetória urbana. 2. O grupo Baque Bolado digere a novidade da etnomusic com a “música percussiva”. Ao mesmo tempo, (re)elabora as suas raízes respondendo ao neocolonialismo com uma espécie de neocanibalismo que tem, na sedimentação cultural plural, uma vasta experiência com novas espacialidades e novas realidades temporais, uma cosmologia rica e significativa, um nomadismo estratégico e apenas visível às suas necessidades primordiais: a visibilidade e a sobrevivência. JUSTIFICATIVA DAS HIPÓTESES A abordagem do duplo eletrônico e do corpo volatilizado pode explicar a “cruzetagem” e a segmentação das tribos dos grandes centros em nichos e guetos. Formam-se grupos dependentes da mesma cognição, ou que têm processos 38 semelhantes. Novos “agenciamentos urbanos” - com cognições sensoriais semelhantes - unem-se e efetuam suas traduções e resistências, delineando seus novos territórios. A cor de pele e o tipo de roupa já não são elementos fundamentais na formação desses grupos. “O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através da apreensão da identidade black, não é que elas sejam, cultural, étnica, lingüística ou mesmo fisicamente, a mesma coisa, mas que elas são vistas e tratadas como “a mesma coisa” isto é não-brancas, como o “outro” pela cultura dominante. É a sua exclusão que fornece aquilo que Laclau e Mouffe chamam de “eixo comum de equivalência” dessa nova identidade. Entretanto, apesar do fato de que esforços são feitos para dar a essa identidade black um conteúdo único unificado, ela continua a existir como uma identidade ao longo de uma larga gama de outras diferenças”23 O distanciamento lingüístico, cultural e étnico sugerido por Hall levou-nos ao distanciamento de outras abordagens, que tratam o urbano24 e o xamânico25 com o auxílio da lingüística, da semiótica sobre a apreensão urbana e mística, contrapondo o “uso” ao “projeto”, os “hábitos” à “sedimentação e predicação ambientais” Trabalhos que adotam a linha de análise do discurso, dos interpretantes e das representações mentais, como a primeiridade (do signo em relação a si mesmo, sintaxe), a segundidade (do signo em relação ao objeto, semântica, ícone, índice e símbolo) e a terceridade (do signo em relação ao interpretante) de C. Pierce (1995) são insuficientes para o estudo das dinâmicas voláteis urbanas. O usuário virtual e seu interpretante ficam sujeitos ao improvável, às conexões, ao acaso mas dependentes do espaço real concreto, finito e lógico Para o espaço mágicoperceptivo, a semiótica da cultura ajusta-se melhor à trama de “incoerências e 23 Hall (2000), p.86. 24 Referimo-nos às hipóteses do trabalho de Ferrara (1999). 25 Referimo-nos a Araujo (1999). 39 “suspeitas”, postula Geertz (1989). Aqui utilizaremos a palavra tendência para uma aproximação das volatilidades dos grupos nesse terreno pantanoso das tramas urbanas ligadas à musica percussiva. O presente trabalho distancia-se daqueles que focam o conflito de classes, escolhem o lado do oprimido ou analisam a violência étnica com a máscara do pragmatismo. Buscamos uma nova abordagem e aproximação dos territórios urbanos recolonizados pelo “trans” e pelo “multi-sensorial polifônico”, em que ocorre o desprendimento virtual do sujeito – que adquire novas identidades, novos corpos fluidos e voláteis que, em grupo ou individualmente, estão presos ao real. A virtualidade aqui não é apenas a imersão nas redes de comunicação, mas são processos simultâneos e híbridos relacionados à expansão sensorial e cultural promovida pela música percussiva, o estar em grupo e em trânsito no ambiente de contrastes, competitivo e informatizado de uma cidade cosmopolita. “O Terra Brasilis é polifônico. Nessa "terra " existe a expressão polimórfica de um sincretismo arquitetônico. Ela se insere naquela corrente multicultural e multiétnica que constitui o desafio cultural por excelência: conjugar, explicitar, jogar com os processos simultâneos e contraditórios de mundialização e de localização dos códigos. E contradiz as lúcidas sínteses urbanas que se transformaram no que realisticamente são: uma "inviabilidade" ordenada, uma ideologia subjacente de caráter totalitário, um domínio holístico, etnocêntrico e etnofóbico”26. Canevacci vê a imago brasilis paulistana como uma “assimetria beirando a inviabilidade”. O “cruzamento desordenado, as montagens e colagens, as existências e gnoseologias” fazem parte do seu método antropológico urbano polifônico. 26 Canevacci (1993), p.147. 40 Há uma fuga, um mimetismo falsificador e plagiador em que a cópia é a (re)elaboração do original. Dialeticamente, a linguagem, a palavra e o signo adquirem valores novos no discurso, no “ato falho” que é indicial na formação dos departamentos cognitivos cerebrais do indivíduo, pontual em relação ao “outro” ou à “história familiar”, em um plano físico e real. O problema é que o “duplo eletrônico” provoca um novo discurso e novas associações, que independem do plano e do corpo físico. Até os anos 90, as análises do discurso priorizavam o estudo dos signos e a transferência do ponto de vista para entrar no mundo do oprimido. As características individuais desvendadas eram transferidas para um coletivo, uma cidade e uma metrópole, e tinham nexo porque estávamos operando apenas com o “outro” ainda fixo. A relativização do indivíduo em relação ao “outro” e seu “duplo eletrônico” virtualizado exigem uma abordagem antropológica na qual o referencial, o objeto, o ponto de vista seja relativizado fisicamente. A fenomenologia, a física relativista, a geometria fractal, a nova concepção cosmológica, os ambientes semi-inteligentes e o espaço virtual, posicionam melhor o usuário em dimensões múltiplas sob vários pontos de vistas em tempo e espaço cognitivos, (re)combinantes e voláteis. Não há espaço para um “usuário fixo interpretante” porque sempre é possível estabelecer um novo ponto axiomático que seria um fator redundante, com múltiplas e expansivas linhas de novas interpretações, que tenderiam ao infinito e não levariam a lugar algum. Há múltiplas tendências a analisar, bem como contradições, pontos em comum, características gerais a serem verificados. 41 COLETA DE DADOS A criação de tendências, eixos comuns, equivalências e características gerais organizou a coleta de dados. Sob a óptica do pensamento complexo o grupo estudado apontou vetores culturais semelhantes ao das tribos xamânicas - Uma relação com o passado e com a cura -;tentamos retirar dessas dinâmicas alguma relação com o xamanismo da música eletrônica. Essas comparações serão feitas na discussão do presente trabalho Elementos disjuntos foram revelados pelo “olhar homem-máquina”, o que possibilitou a formação de um quadro sonoro comparativo que aponta as similaridades e as tendências das tribos urbanas. “Há, efetivamente, necessidade de um pensamento: - que compreenda que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e que o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes; - que reconheça e examine os fenômenos multidimensionais, em vez de isolar, de maneira mutiladora, cada uma de suas dimensões; - que reconheça e trate as realidades, que são, concomitantemente solidárias e conflituosas (como a própria democracia, sistema que se alimenta de antagonismos e ao mesmo tempo os regula); - que respeite a diferença, enquanto reconhece a unicidade. É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto.”27 Morin tenta, com o pensamento complexo, “costurar” elementos aparentemente disjuntos, contraditórios e relativos, encontrar um eixo comum de 27 Morin (2001), p.88-89. 42 equivalências entre as partes dependentes de um todo. E, para a nossa coleta de dados no ambiente polifônico das tribos urbanas, o pensamento complexo parece adequado, pois respeita a volatibilidade e a multiplicidade do ambiente urbano de São Paulo. Aparentemente, há um “eixo comum” visível apresentado pelas tribos urbanas dos anos 90, formadas a partir de determinadas tarefas ou funções: ritos, religiosidades, profissões, afinidades musicais, esportividade etc. Esses grupos querem ultrapassar a normalidade, a superficialidade e a mesmice cotidiana ditadas por regras fixas e imutáveis. O trabalho identifica e analisa alguma dessas relações, e mostra como o grupo Baque Bolado estabelece fronteiras com outros grupos vizinhos, mantendo integrantes que habitam dois ou três grupos simultaneamente. Optamos por um “olhar focalizador” vivenciado no calor dos ensaios do grupo, afim de obter uma visão próxima, continuada e íntima de seus integrantes. Por outro lado, utilizamos também o olhar potencializado de uma câmera de vídeo digital de ultima geração (3 ccd). Essa câmera, conectada ao computador, permite enxergar e escutar mais longe, além da capacidade humana. Todas as entrevistas e oficinas foram digitalizadas, possibilitando algumas comparações sonoras e visuais elaboradas pelos softwares dos DJs e VJs Verificamos que o grupo flutuava constantemente, ou seja, havia uma grande rotatividade de pessoas. O grupo teve início quando um professor de percussão não compareceu à primeira aula de uma turma, e os alunos passaram a tocar “o que sabiam” e a ensinar “o que sabiam” uns aos outros. Como a turma tinha alunos oriundos do norte e do nordeste, o ritmo do maracatu agradou à maioria; essa 43 primeira experiência originou novos encontros, que se constituíram na gênese do Maracatu do Baque Bolado. Ninguém sabia ao certo como tocar o maracatu, e o que este significava. Todos se ajudavam e passavam os toques mais simples. O maracatu de baque virado é um cortejo urbano que sai às ruas de Pernambuco durante o carnaval e tem uma formação tradicional para os diferentes instrumentos. Os instrumentos de timbre mais agudo - gonguê (agogô ), ganzás (caxixis - tipo de chocalho- também de timbre bem agudo) e tarol (caixa) – abrem o cortejo, seguidos pelos instrumentos percussivos - surdos (alfaias de timbre grave). O maracatu de baque virado apresenta, além das toadas (loas), o desfile da corte: o rei e a rainha, os vassalos e uma boneca (calunga) que representa os orixás. Alguns maracatus mais ricos têm uma ala constituída por instrumentos de sopro. O maracatu rural ou de baque solto apresenta os lanceiros com seus surrões (mortalhas de cores vivas delicadamente bordadas durante o ano), seus grandes e pesados chocalhos (sinos feitos de ferro) e suas lanças coloridas. O maracatu rural também apresenta os cablocos de pena, figuras que tiveram origem no contato entre as populações rurais e os índios. O ritmo do maracatu rural é mais acelerado, e o transe e a possessão estão mais presentes: os lanceiros “atuados” usam óculos escuros para esconder seu olhar “virado”. No início, os ensaios do Maracatu do Baque Bolado eram abertos a todos, e a participação e a freqüência eram livres. Tais reuniões eram realizadas sempre aos domingos, no Mangue28 da Vila Madalena, e tinham a duração de três horas, após as quais os integrantes saíam em cortejo pelas ruas do bairro. Logo alguns moradores da 28 O Mangue é uma rua sem saída, com pequenas casas populares, e localiza-se no final da Rua Fidalga, na Vila Madalena. 44 área mais rica – constituída majoritariamente por edifícios – passaram a reclamaram do barulho e a chamar a polícia. O Baque já era um grupo e teve que se organizar ainda mais para mudar constantemente de local para ensaiar. Roupas, oficinas e aulas foram elaboradas, para melhorar e afinar as apresentações que se dava em bares, eventos e casas noturnas. Os integrantes não eram fixos e a grande maioria freqüentava outros grupos da tribo da música percussiva paulistana, às vezes rivais do Baque, o que afetava a dinâmica e dividia ainda mais as pessoas. Depois de várias brigas e discussões, esses integrantes tiveram que optar entre permanecer no grupo Baque Bolado ou se afastar. O grupo como um todo também passou a discutir-se e posicionou-se com relação a outros grupos. As pessoas que optaram por permanecer no Baque tiveram que adotá-lo como uma nova família. Os problemas de identidade, coletados em entrevistas e vivenciados nos ensaios e apresentações durante dois anos, serão expostos adiante. No que concerne à corporalidade, vejamos a trajetória do Baque até se estabelecer como um grupo paulista de percussão. O estudo e as influências dos outros grupos fizeram com que outros ritmos fossem incorporados ao repertório do Baque. Tais ritmos continham elementos novos relacionados ao transe e ao contato com o terreiro, e foram referenciais para as entrevistas realizadas no interior de São Luiz e Pernambuco, por meio das quais procuramos identificar as matrizes culturais do transe brasileiro. O trabalho participativo ia, paulatinamente, encontrando as relações que existem entre a comoção proporcionada pela música percussiva, as alterações de comportamento e os novos estados perceptivos, levando à conscientização do “Eu 45 duplificado”. Assim, novas descobertas e mundos concebidos eram criados em grupo e compartilhados. A expansão do corpo físico com os ritmos, as danças e o público criava uma comunhão. Pessoas das mais variadas formações sentiam a alegria de participar dançando e, após essa experiência, decidiam entrar para o grupo. Essas são as formas de identificação e re-elaborações das tribos na cena contemporânea que não têm, necessariamente, relação com a violência. As pessoas experimentam novas vivências, que promovem a sensação de união, de contemplação do outro, mesmo que essa união dure apenas alguns dias, horas ou segundos. “Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e <<fechadas>> de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de “Tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou “puras”; e essas, conseqüentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins29 (segundo Homi Bhabha) chama de tradução30.” A tradução não é fixa ou permanente e, no ir e vir, no emigrar e no imigrar, das raízes à superficialidade, do espaço real ao espaço partilhado com o “outro”, do interior à cidade grande, o corpo mostra sinais de dependência. Primeiro como uma inércia ou demora em se adaptar às novas identidades, depois como dependente da 29 Robins (1991). 30 Hall, op. cit., p.87. 46 química gerada pelas modificações sensoriais: as endorfinas31. O trânsito entre esses estados disjuntos - saudade-novidade - modifica a espacialidade da mente contemporânea, trazendo lugares neutros ou de descompensação. Lugares que não podem remeter a nada: devem ser parecidos, idênticos. Promovem uma higenização e são um conforto para os olhos do viajante, que reconhece sua similaridade ao mesmo tempo em que distingue pequenas variações. O uso de materiais como o aço inox e as cores neutras lembram um ambiente hospitalar ou uma cozinha industrial. Não há nada de pessoal, as distâncias são confundidas porque nada promove a identificação local: tudo se parece e aflora numa confusão espacial. Auge (1994) estabelece uma relação de crise de representação do mundo: cada vez mais há lugares de passagem (não lugares)32 e lugares não permitidos, uns para não serem utilizados, outros montados como cenários para brilhar durante o espetáculo das tribos e desmontados no dia seguinte, voltando à rotina e à vida banal. Estabelece, ainda, o conceito de linguagem da alteridade – aquela que não é boa nem má, ambígua e fora da identidade de classes, estabelecendo relações entre as pessoas ou com o “outro”33. 31 As endorfinas ou encefalinas são substâncias semelhantes à morfina. Elas excitam os centros encefálicos supressores da dor (hipotálamo e tronco cerebral), ou seja, fazem o controle da dor por feedback cerebral. Na acupuntura, por exemplo, os sinais sensoriais produzidos pelas agulhas podem provocar a liberação de encefalinas/endorfinas nos centros supressores da dor. Os centros supressores da dor não a inibem pelo bloqueio de sua transmissão no próprio encéfalo, pelo contrário: ao longo das vias nervosas da medula espinhal são transmitidos sinais que se projetam para os pontos em que a dor penetra na medula, trazida pelos nervos periféricos. As terminações nervosas desses feixes secretam o inibidor serotonina, inibe as sinapses de dor nas pontas posteriores, o que diminui, de forma muito acentuada, a sensibilidade da pessoa à dor (Guyton, 1984). 32 Auge (1994), p.88-89. 33 Auge (1997), p.96. 47 Os conceitos do autor - carta roubada, evidências e impedimento34 nortearam a coleta de dados e as entrevistas, e orientaram o método no que concerne à interpretação e à seleção das danças e ritos. À medida que a comoção da música percussiva induzia os estados de comunhão, o grupo se solidificava e buscava suas raízes, estudando os ritmos pernambucanos em profundidade. Foram organizadas oficinas, os toques foram sendo aperfeiçoados, e as relações com outros grupos trouxeram novas descobertas rítmicas e influências – como o coco e o bumba-meuboi - relacionadas aos estados alterados de consciência: a repetição, os timbres agudos e graves, as viradas rítmicas ou “pontos”, os gestos ligados à dança de terreiros, o xamanismo e a cura. COMO FOI DESENVOLVIDO O CORPO DA PESQUISA No presente trabalho, debruçamo-nos sobre um grupo urbano paulista envolvido com a música percussiva e analisamos suas relações, influências, mediações e relações tribais – ou seja, as relações que mantêm com os outros grupos que têm o mesmo tipo de agenciamento ligado à música. Por meio de um mapeamento dos territórios ocupados pelos diferentes grupos, estabelecemos comparações entre o grupo estudado e aqueles com os quais se relaciona mais proximamente ou que apresentam comportamentos semelhantes ao dele. Também investigamos as influências, as raízes que modificam as experiências subjetivas de expansão da percepção e os estados alterados de consciência desses grupos. Esse mapeamento aponta nítidas diferenças entre as tribos urbanas. Algumas tribos, como a do Baque Bolado, são influenciadas pela cultura africana e indígena e, em suas 34 Auge, op. cit., p.70. 48 manifestações, utilizam ritmos, timbres, instrumentos e vestes multicoloridas - que emitem reflexos e brilhos - associados à movimentação cadenciada do maracatu, do afoxé etc. A associação desses elementos promove um espetáculo sensorial indescritível, que motiva a todos aqueles que se envolvem com essa massa sonora e colorida. Mesmo utilizando a tecnologia e habitando o ambiente urbano, tais tribos buscam um “fundamento” em suas raízes culturais e aprimoram, na cidade, os ensinamentos que não foram trabalhados em seus lugares de origem. E foi justamente a busca por fundamentos que motivou a exclusão da palavra “maracatu” do nome do grupo que, assim, poderia tocar outros ritmos, como o boi, e as outras variações do próprio maracatu: baque virado, rural e outros. O Baque recebeu então o nome de Baque Bolado e, a seguir, optou pela denominação Cia. do Baque Bolado; essas transformações serão devidamente analisadas no decorrer do trabalho. As manifestações de grupos ligados à cultura brasileira, quer de influência indígena (consumo de ervas35 e raízes36), quer de influência africana (consumo de azofre37 e fumo38) têm em comum a celebração coletiva e, por vezes, mantêm fundamentos das culturas iniciáticas - que se perpetuaram até hoje graças à marcada presença dos terreiros, dos pais-de-santo, dos rituais, das músicas, das festividades, 35 Algumas raízes são transformadas em pó ou chá de plantas alucinógenas e estimulantes. O guaraná foi utilizado inicialmente como estimulante e energético nas tribos do norte amazônico e, mesmo depois que seu principio ativo passou a dar sabor aos refrigerantes brasileiros, o consumo, em pó ou bastão, com finalidade estimulante permaneceu. 36 Raízes com poderes alucinógenos são consumidas por pajés, que vêem a cura distanciados do mundo físico e, assim, podem elaborar os remédios depois dessas visões extra-sensoriais nas quais o mal é identificado. Algumas seitas, como o Santo Daime, utilizam cipós alucinógenos com fins espirituais em reuniões coletivas. Tais alucinógenos são administrados por “fardados” vestidos de branco que entoam hinos ritualísticos aos presentes. 37 Mistura ritual de pinga, pólvora e mercúrio que produz estados alterados de consciência, permitindo ao lanceiro do maracatu rural vários dias ininterruptos de brincadeira no carnaval. 38 O fumo de charuto, sob a forma de cigarro de palha, é consumido às baforadas nos terreiros de candomblé ou umbanda, ofertado em macumbas. Identifica a pessoa tomada pelo transe espiritual, que assume a fala e o comportamento da entidade ou santo que incorporou (baixou). Essas entidades representam espíritos 49 dos cultos e dos mitos - que influenciam até mesmo aqueles localizados nas grandes metrópoles e distantes dessas origens. O tribalismo pós-moderno assimila as descobertas dos grupos tradicionais e (re)elabora seus conteúdos. Esse vetor (re)elaborador foi detectado no grupo estudado, que será comparado a outros grupos que têm esse “eixo comum”. Tivemos o cuidado de estudar a cultura rave, que utiliza mantras indianos misturados a ritmos eletrônicos e, sob canhões de luzes, toma a consciência de seus súditos de surpresa, levando-os ao transe inesperado ou à dança compulsiva - que pode levar horas, atingindo seu ápice ao amanhecer. Essas raves utilizam sofisticadas técnicas de mixagem sonora e visual, e os participantes consomem energéticos e/ou entorpecentes (consumo de energéticos39, ecstasy40, special K41, hidratação com presentes nas forças da natureza e assumem cores, posturas e formas relacionadas à história de seus feitos, transmitido aos mais novos pela fala. 39 Alguns energéticos são vendidos em escolas que proíbem o consumo de álcool e fumo. Algumas marcas - por não mostrarem a composição do seu conteúdo - foram proibidas, mas a enorme pressão financeira acabou liberando o consumo desses produtos, facilmente encontrados em postos d gasolina e em quase todas as escolas. 40 Ecstasy ou MDMA (metileno-dioxometanfetamina) segundo o médico Lapate (2001), p.223.: “É uma anfetamina metoxilada, sintética, produzida em laborat6rio.É conhecida popularmente como êxtase -ecstasy ou "droga ou pílula do amor". Nos EUA, é chamada de X e no Reino Unido, E. Outros nomes são ADAM, XTC, MDM, etc. Hist6rico O ecstasy foi sintetizado e patenteado pela Merck em 1914, inicialmente utilizado como medicamento moderador do apetite e abandonado por mais de sessenta anos por seus efeitos indesejáveis. Nos anos 70, ressurgiu quando um grupo de psiquiatras começou a utilizá-lo em psicoterapia, acreditando que a droga facilitava a comunicação com o paciente, reforçava sua auto-estima e melhorava o humor. No final desta mesma década, começou a ser usada por pessoas jovens, como droga de festa. Em 1985, o DEA (Drug Enforcement Agency), órgão governamental norteamericano, colocou o ecstasy na lista das substâncias proibidas. Segundo a ONU, o ecstasy tem potencial para se tornar a pior droga do século XXI. No Brasil, é uma droga de uso relativamente recente e esporádico, mas com um potencial crescente, como outras sintéticas utilizadas mundialmente. A maior parte da droga consumida no Brasil é proveniente da Europa. Há indícios de que traficantes estão sintetizando o ecstasy em laboratórios clandestinos.Os EUA são o país que mais consome o ecstasy no mundo. No período de outubro de 1999 até junho de 2000, a alfândega americana confiscou 4 milhões de pastilhas de ecstasy. Estima-se em 3,4 milhões o número de usuários americanos, sendo o uso máximo na população colegial. Pesquisas em 1998 constataram que 5,8% dos estudantes americanos haviam experimentado o ecstasy no ano anterior. No ano de 1999, cerca de 8% tiveram essa experiência. A droga é facilmente encontrada nos clubes noturnos, danceterias, etc.” 41 A substância quetamina produz alucinações e pode ser encontrada nos anestésicos Ketafen ou Ketalar, de uso veterinário. Há registro de casos de óbitos de jovens que utilizaram a quetamina em raves. Sua comercialização no Brasil não é objeto de grande controle e a substância é vendida livremente nas lojas de produtos veterinários. 50 água42). Raízes de culturas externas - diluídas pelos processos histórico e social e por procedimentos eletrônicos - têm, ainda que de maneira oposta à grupo do maracatu, a celebração com o “outro”, que altera a identidade e leva à comunhão coletiva. A tribo das raves é mundialmente conhecida pela sua música, que induz ao transe e é consumida em diferentes países. A total falta de conhecimento sobre processos de comoção induzidos pelas imagens e sons eletrônicos associados às novas drogas fazem com que haja inúmeros casos de óbitos decorrentes de overdose, atropelamentos por desorientação espacial e fobias e depressões crônicas ligadas aos efeitos colaterais das drogas, principalmente quando ingerida com o álcool. Além disso, há carência de estudos científicos sobre o assunto, uma vez que o objeto de investigação é proibido. A maioria das informações é obtida através de sites que, ou valorizam a cultura rave43, omitindo os verdadeiros efeitos da droga, ou são radicalmente contrários às suas manifestações. Da mesma forma que evitamos abordar aspectos referentes ao oprimido e à violência, também distanciamo-nos das drogas, mantendo o foco do presente trabalho nas características sonoras e imagéticas que induzem ao transe. E, como investigamos as origens do transe percussivo brasileiro, consideramos importante coletar mais informações sobre as festas rave e suas origens. Para essa empreitada, entrevistamos e visitamos os estúdios de DJs e VJs para conhecer como tais 42 A hidratação é utilizada para amenizar os efeitos da elevação da temperatura produzida pelo ecstasy nas raves. Esse comportamento é malvisto pela indústria das cervejas, que tenta introduzir e controlar a cultura rave, que não consome álcool em suas manifestações porque a sua ingestão com o MDMA é extremamente perigosa. 43 Rave, rave fest e cultura rave: Sinônimo de música eletrônica pulsante que mistura equipamentos eletrônicos: sintetizadores, softwares musicais, bateria eletrônica e seqüenciadores de luz e som. Os sincronismos ritmo entre imagem e som provocam estados alterados: êxtase coletivo, perda parcial ou total da temporalidade e espacialidade. Os estilos que estão diretamente ligados ao transe (trance em inglês) são: TECHNO TRANCE PSICODÉLICO e GOA TRANCE nascido em Goa (Índia –1988), da fusão de hippies sobreviventes da primeira onda. A música é repetitiva e transporta para 51 profissionais mixam imagem e som e para obter informações sobre os estados alterados de consciência. Para melhor compreender os principais elementos envolvidos na colagem sonora e imagética, coletamos entrevistas em estúdios brasileiros e europeus, mais especificamente em Rotterdam (Holanda) e em Berlim (Alemanha), que são grandes centros urbanos de população diversificada e plural, e que iniciaram a procura pelos ritmos das raves. Nessas entrevistas, procuramos verificar o modo de produção e a tecnologia utilizada na mixagem, e o modo de produção das festas rave DISCUSSÃO E REFERENCIAL TEÓRICO Tentaremos abordar as relações da informação e da comunicação que não se prendem aos blocos hegemônicos e assumem uma característica transnacional, espalhando-se rapidamente pelo planeta como “ondas”. Para essa empreitada, a melhor abordagem é a da nova antropologia, que procura entender as culturas como um corpo maleável e complexo que se modifica pela presença ou telepresença da tecnologia e, ao mesmo tempo (re)elabora-se. “Hoje, passada uma década da queda do Muro de Berlim, está claro que estamos mais uma vez nesse lugar e nesse momento. O mundo em que vivíamos desde Teerã e Potsdam, ou, a rigor, desde Sedan e Port Arthur -um mundo de potências compactas e blocos antagônicos, de arranjos e rearranjos de macroalianças - não existe mais. O mundo que existe, em vez disso, e a maneira como devemos refletir sobre ele, porém, são coisas nitidamente menos claras. Um padrão muito mais pluralista de relações entre os povos do mundo parece estar emergindo, mas sua forma ainda é vaga e irregular, feita de retalhos, ameaçadoramente indeterminada. O colapso da União Soviética e as medidas atrapalhadas da Rússia que a sucedeu (e que não é nem espacialmente idêntica outros estados psicológicos. Um grande Mistura descoberta por jovens israelenses que se refugiaram em Goa, buscando uma terapia para o corpo organizando concertos de tecno, meditações pelo transe e projeções astrais. 52 à que a precedeu) trouxeram em sua esteira uma onda de divisões obscuras e estranhas instabilidades. O mesmo fizeram o reavivamento das paixões nacionalistas na Europa Central e Oriental, as angústias hachuradas que a reunificação da Alemanha estimulou na Europa Ocidental, e o chamado Retraimento Americano: a capacidade decrescente (e a disposição decrescente) dos Estados Unidos de comprometerem seu poderio em regiões distantes do mundo -os Bálcãs ou o leste da África, o Magreb ou mar da China Meridional. As crescentes tensões internas de muitos países, surgidas de migrações culturalmente discordantes e em larga escala, o aparecimento de movimentos religioso-políticos, armados e apaixonados, em várias partes do mundo, e o despontar de novos centros de riqueza e poder no Oriente Médio, na América Latina e na margem asiática da costa do Pacífico só fizeram contribuir para o sentimento generalizado de inconstância e incerteza. Todos esses fenômenos, assim como outros induzidos por eles (as guerras civis étnicas, o separatismo lingüístico, a "multiculturalização" do capital internacional), não produziram a sensação de uma nova ordem mundial. Produziram um sentimento de dispersão, particularidade, complexidade e descentramento. As temidas simetrias da era do pós-guerra desarticularam-se, e nós, ao que parece, ficamos com os pedaços.”44 A linha sugerida por Geertz contempla a desmontagem, sem reduzir as pluralidades a um padrão comum, “enfrentando quadros confusos e conflitantes de um mundo que já não é satisfatoriamente descritível”. A convivência grupal urbana não isola o indivíduo: ele evolui rapidamente com o novo meio, desenvolvendo habilidades e um sistema cognitivo complexo. Procura parcerias, territórios, proteção, e busca aperfeiçoar as novas características adquiridas: estados alterados que potencializam o corpo e a mente, questionamentos, lutas ou buscas por elementos identificatórios. Dessa maneira são formadas as tribos, que crescem e se desenvolvem de acordo com suas novas habilidades e polarizações, aglutinando forças e vencendo dificuldades sociais, genéticas, comportamentais e territoriais. 44 Geertz (2001), p.192. 53 O conceito transmoderno de tribo é diferentes daquele dos grupos pósmodernos contratuais, em que os indivíduos têm uma função específica e vínculos “reais”. Acrescentando mais um eixo ao esquema maffesoliano, veremos os pequenos grupos com aspecto pontual desprendendo-se do real e aproximando-se do “outro” (proxeme); com o “estrangeiro”. Assim, o neotribalismo assume uma solidariedade “partilhada-virtual” superior ao imaginário coletivo, às regras de condutas sociais e à realidade física-urbana. Figura 2 Esquema da movimentação das Tribos no tecido social com o Duplo Eletrônico O esquema inicialmente formulado por Maffesoli45 foi por nós atualizado. A ele incorporamos o “deslocamento do Eu” de Turkle (1989), tratando os novos agrupamentos-agenciamentos no seu tempo “afetivo” concreto-virtual que, em seus 45 Maffesoli (2000), p.9-37 54 “fluxos”, põe fim aos seus destinos individuais e funcionais para adquirir uma compulsão coletiva. O tédio, o niilismo e a insignificância do homem moderno/pósmoderno serão substituídos pelo “ethos” centrado na proximidade virtual-coletiva e mística que molda lugares e regiões “abertas”: c@fés, c@barés e outros esp@ços públicos em rede, nos quais é possível dirigir-se aos “outros”, nos quais há circulação de bebidas e alimentos que comungam um “sair de si’, um “ext@se” cotidiano” criando a “aura” específica - “cimento” do neotribalismo - e sua relação com o nomadismo. Nossos objetivos são relacionar as volatilidades e as tendências virtualizadas urbanas analisando um grupo paulista urbano, sua tribo e as relações de comunicação da música percussiva. Sobrepondo-se às trocas e ao contato oral e étnico-cultural das tribos há o fenômeno midiático-musical que procura massificar, de forma abrasadora, os nichos musicais novos de Salvador, São Luiz e Recife e suas relações com o eixo Rio-São Paulo. Para analisar esse movimento vamos utilizar o trabalho de Guerreiro (2000)46, que realiza uma profunda investigação sobre as influências da música afro-pop de Salvador e suas relações com a “quadra”, a “rua”, “os terreiros”, os “circuitos”, “os trios”, “as bandas” e seu conflito com a religiosidade baiana “dos terreiros” e do profano do carnaval de rua de Salvador. No caso do afro-pop baiano, afirma esse autor, há uma acomodação no padrão negociado com a indústria fonográfica que assimila a música de Salvador e a 46 Guerreiro estabelece uma relação entre a música soteropolitana e a música africana: Não raro, o samba-reggae é considerado uma versão standard das fusões que deram origem à juju music ou ao afro-beat de Youssou N'Dour, FeIa Kuti, Salif Keita ou Dodou Rose, músicos africanos que dialogam com ritmos latinos e anglosaxões como a salsa, o calipso, o pop-rock e o rhythm'n'blues. A ausência de pesquisa musical e a acomodação numa fórmula de sucesso podem ser as grandes responsáveis pela pobreza estética que desgasta o ritmo afrobaiano, e coloca a falta de criatividade como pauta do dia. Esse desgaste é um prato cheio para aqueles que insistem em rotular as diversas formas de expressão musical da Bahia como "música baiana". 55 projeta internacionalmente. Os modelos musicais mestiços ganham em pesquisa, em sonoridade, e sofisticam-se. A pesquisa rítmica e melódica traz a inclusão dos instrumentos harmônicos nas bandas de samba-reggae, por exemplo, e eleva o status da percussão, freqüentemente desconsiderada no plano musical. De posse das informações de Guerreiro sobre essa associação com a mídia – que, ao mesmo tempo em que valoriza, desgasta – a pesquisa de campo aqui desenvolvida tece relações entre as tribos e desenvolve uma estratégia metodológica que se aproxima da cartografia47 do desejo, do pulso, verificado por Rolnik e Guattari (1986). Nos anos noventa, a música nordestina passou por uma sofisticada evolução rítmica. A busca por elementos de revalorização cultural, e as novas influências como o Reggae e a música moderna africana - agregam elementos que permaneciam latentes nos terreiros. Esses elementos, que vão da gestualidade das danças rituais à pintura corporal, (re)elaboram as ligações com a “África Tribal”. Essa busca pela africanidade por meio da música teve início ao final dos anos oitenta, com a explosão da worldmusic, do reggae e da música africana moderna. Guerreiro também identifica essa tendência no carnaval de Salvador, lembrando que o Ara Ketu foi o primeiro bloco afro a mesclar, em 1991, o som acústico dos tambores à instrumentação elétrica 48. 47 “Cartografia é um método com dupla função: detectar a paisagem, seus acidentes, suas mutações e, ao mesmo tempo, criar vias de passagem através deles. A cartografia se faz ao mesmo tempo que o território. A cartografia se distingue do mapa(...) pois acompanha a transformação da paisagem. É para isso aliás que ela serve “ (Rolnik & Guattari, 1986, p.6). 48 Guerreiro assinala: “Durante os anos 80, enquanto a relação com o bairro era bastante intensa, os carros alegóricos do bloco eram confeccionados na praça central de Periperi e nos domingos de carnaval o desfile acontecia na Avenida Suburbana, que liga o bairro à zona central da cidade. O Ara Ketu realizava também um conjunto de atividades no bairro de Periperi, relacionadas com o universo cultural negro, como a capoeira, entendida como uma filosofia de vida: "Mostramos para crianças e adolescentes que a capoeira 56 O processo de possessão e seus fundamentos serão aprofundados em capítulos subseqüentes, permitindo uma nova compreensão dos fenômenos urbanos de segmentação, desritualização, absorção e dinamização das linguagens, o que possibilita um novo enfoque sobre os agrupamentos na metrópole paulistana. Os conceitos de espaço-tempo e alma desenvolvidos no eixo Platão-AristótelesPitágoras-Descartes-Kant-Heidgger serão lembrados, auxiliando a relacionar a evolução do espaço, do tempo, do ser, do sentir com a geometria, a perspectiva, o pensamento complexo49 e a cosmologia da nossa atual sociedade até o afloramento dessas questões na cultura brasileira, sempre rica em sincretismos e em experiências de apropriações e aculturações. FOCO DA PESQUISA As relações tribais não se limitam à pesquisa rítmica. Elementos da dança, do gesto e do transe possessivo das manifestações do terreiro passam a ser coletivizados para as festas, os trios e as bandas, e revelam-se no modo de vestir e falar baiano, que procura cores fortes, valorizando a vestimenta africana tradicional. O afrodescendente de Salvador começa a ter consciência na quadra, nos blocos e no sucesso musical exportado para o mundo. A Lambada, a Timbalada e a Axémusic ajuda muito na formação das pessoas. E estamos trabalhando basicamente com o pessoal das invasões [favelas] [...] A gente está trabalhando também com dança, com teatro e estamos promovendo o futebol de praia de Periperi, cuja liga estava desativada ", diz a presidente. Este trabalho social voltado para a comunidade se assemelha ao conjunto de atividades desenvolvidas pelo Ilê no Curuzu-Liberdade. Mas nem tudo é semelhança entre os blocos afro. Enquanto o Ilê Aiyê se volta para uma " África-tribal ", o Ara Ketu se espelha numa " África moderna ". É para os grandes centros urbanos do continente negro, como Dacar, no Senegal ou Lagos, na Nigéria, que os diretores do Ara Ketu viajam, a fim de pesquisar a modernidade musical africana, que não dispensa uma tecnologia altamente sofisticada...” (p.37) 49 Cientistas, pensadores e autores da Teoria do Complexo, como Ilya Prigogine, Freeman Dyson, Paul Davies e Murray Gell-Mann - quase todos do Santa Fe Insitute -, colocam o “efeito borboleta (butterfly effect)”, ou seja, a forma com que pequenas condições iniciais são amplificadas extraordinariamente (feedback positivo), como uma das idéias chave dessas novas ciências. 57 propagam-se para o exterior e ganham espaço na mídia. Esses novos ritmos carregam em si elementos e batidas dos terreiros, que são tidos como profanação e diluição de seus verdadeiros propósitos. Os novos toques, batidas ou pontos não se restringem à música soteropolitana, mas permeiam a nova música nordestina, que também tem suas estrelas: Rita Ribeiro e Zeca Baleiro no Maranhão, e Chico Science, da Nação Zumbi, com o Manguebeat. Para melhor compreender a busca por toques e timbres que levem a estados alterados de consciência necessitaremos de conceitos próprios das cartografias mentais da consciência, no capítulo em que a cidade cerebral trata da consciência humana em níveis cognitivos por meio da indução por drogas e por outros procedimentos. Atualmente, os estudos voltados aos processos cognitivos vêm sendo aprofundados – com o auxílio da tomografia computadorizada - por cientistas, psicólogos, psiquiatras, físicos, matemáticos e filósofos. Tais investigações ampliaram o conhecimento sobre o pensamento complexo - identificando a existência de múltiplas memórias e redes complexas de transmissão de dados no cérebro -, o que se refletiu em outras áreas do conhecimento - como a lingüística, a neuromedicina, a computação, a ciência da cognição, a pedagogia e a filosofia – e permitiram um conhecimento multidisciplinar do cérebro humano e suas potencialidades. De posse desse conhecimento, é possível comparar comportamentos ligados à nova percepção sensorial e ao uso das novas drogas 50, que convergem para 50 Alguns pesquisadores afirmam que o excesso ou a falta da substância serotonina provocam alterações nos processos normais do sistema nervoso central. A deficiência ou a abundância, congênitas ou provocadas, dessa substância provoca “desordem mentais”: visões coloridas, alucinações, esquizofrenia e ligações “estranhas” entre os departamentos cerebrais. A abertura dos departamentos cerebrais pode ser induzida pelas drogas sintéticas como o LSD (amplamente utilizado na década de 70), as novas drogas dos anos 90 e as anfetaminas (Benzedrina / Dexedrina). Essas drogas foram utilizadas em pacientes melancólicos, epilépticos, catalépticos e depressivos, e tiveram bons resultados no tratamento do delirium tremens, mas apresentaram efeitos colaterais desagradáveis, como perda do apetite, do sono e fobias (Ropp, 1997). O exctasy ou MDMA é uma droga do tipo da anfetamina, produzida sinteticamente e liberada nos anos 30 para trabalhar na estimulação de depressivo nos EUA. Nos últimos vinte anos ganhou popularidade pelos seus efeitos psicoativos e neurocondutores: que estimulam a mente agindo nos neurônios alterando sinapses (ligações). Provocam por algumas horas 58 o mesmo ponto: adquirir um estado de transe e entrar em comunhão com o “outro” ou o seu “segundo Eu”. As relação que as tribos ancestrais tinham com o transe - de busca da cura e das premonições - são agora (re)elaboradas pelas tribos urbanas – que buscam se fortalecer e demarcar seus territórios. As entrevistas e a captação de imagens contemplaram a tribo urbana do Baque Bolado em suas oficinas e festas, e viagens aos estado de Pernambuco e Maranhão, onde há terreiros e festas que apresentam estreitas relações com o grupo. Semelhanças, comparações e deduções entre os grupos urbanos e os grupos folclóricos serão apontadas nos próximos capítulos. Entretanto, todo esse esforço não explica, ainda, as complexas relações entre os timbres, as harmonias, as dissonâncias, as sonoridades musicais e os estados alterados de consciência, que escapam ao foco do presente estudo. Assim, tentamos compor um aglomerado de tendências em que o desenvolvimento das novas pesquisas em relação ao cérebro humano, mais especificamente a teoria da cognição e sua crítica, encontra paralelo nos acontecimentos verificados em campo. Informações - complementares e não referenciais - sobre a química e o funcionamento do cérebro e sua relação com os nossos sentidos (visão e audição) foram encontrados em autores como Del Nero51, efeito de hipersensibilidade, ativam as memórias, a comunicação, sensação de bem estar empatia e ativam experiências espirituais. Com efeitos colaterais graves, principalmente se misturada ao consumo de álcool. A droga foi proibida quando se observou que na sua ausência os efeitos eram acumulativos, provocavam depressão e perda do apetite, alteravam os movimentos dos olhos, provocavam tremores e depressões profundas e, ainda, alteravam a temperatura do corpo elevando à níveis muitos altos para o metabolismo do corpo humano. 51 Henrrique Shützer Del Nero é coordenador do grupo de ciência cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da USP e médico psiquiatra, bacharel e mestre em filosofia pela USP, e conclui sua tese de doutorado na Escola Politécnica (USP). Em seu livro o Sítio da Mente compara nossos sistemas e estruturas mentais ao computador, e mostra como reage nossa mente aos estímulos externos e como essa informação é processada, à luz das modernas teorias cerebrais. 59 (1997) e Jourdain (1997)52 e contribuíram para a compreensão dos processos seletivos e analíticos dos nossos sentidos, seu funcionamento químico-fisiológico e suas relações com a estrutura lingüística, no que se refere às construções e processamentos de redes neurais dos estímulos sensoriais. Sem essas informações, o rumo deste trabalho seria completamente outro e, ficaríamos limitados ao estereótipo da beleza das festas, e não enxergaríamos as relações aqui apontadas. Essas novas investigações contêm elementos e teorias que esclarecem porque os grupos têm necessidade de buscar, nos ritmos e nos movimentos repetitivos, uma experiência virtual-coletiva que é corriqueira em grupos iniciáticos (terreiros de Candomblés), de folguedos afro-brasileiros e de cultura indígena. Nos autos e ritos brasileiros presentes no Maracatu, nas Congadas e Folias de Reis, danças e rituais indígenas existe uma força de união, comoção e êxtase: um sair do corpo rumo à virtualidade transcendente em busca da cura, da união do grupo, das soluções de problemas, do cumprimento de promessas, um fortalecimento dos rituais e dos mitos presentes na nossa cultura. Também constatamos semelhanças entre o vestir ritualístico do grupo estudado e aquele de seus similares não-brasileiros. Esse vestir ritual busca a sensualidade, o êxtase coletivo, e diferencia-se em muito do vestir moderno, que busca a banalização da experiência ritualística. De um lado temos o vestir possessivo do transe, da alma possuída (tido ingenuamente como demoníaco), e de outro o vestir invólucro que cobre a espiritualidade do nu (DEIFICADO). O corpo objetificado 52 Robert Jourdain, pianista profissional e compositor, há 20 anos trabalha com inteligência artificial, dedicando-se ao desenvolvimento de esquemas conceituais para a representação do conhecimento. Em seu livro Música Cérebro e Êxtase, analisa a misteriosa química interna dos nossos sentidos, com fundamentos da psicoacústica e da teoria musical. 60 será abordado em capítulo no qual mostraremos suas ligações arquétipicas e ritualísticas. Aqui, Perniola comenta o estudo de P. Klossowsky: “A doença do mundo moderno não consiste na prevalência da exterioridade sobre a interioridade, da veste falsificadora sobre a verdade nua, e sim no fato de o espiritual não poder mais encarnar-se, na falta da possibilidade de possessão”.53 METODOLOGIA Só a vivência e o contato direto, interno aos grupos, revelam os segredos escondidos à percepção externa; a formulação de um novo ponto de vista sobre a problemática abordada foi resultado de anos de contato e da convivência participativa e atuante. Esse é um aspecto original e transformador desta pesquisa, que se alimenta de trocas perceptivas e investigativas, tendo como pano de fundo a transformação da percepção dos anos noventa, que rompe com o individualismo e segmenta-se em guetos, em tribos, em modismos mutantes e voláteis. Dentro dessa óptica, no início do trabalho deu-se a aproximação atenta com o grupo de maracatu e o contato com a cultura pernambucana remanescente em São Paulo pelos fluxos migratórios. Nessa fase, observações sobre a cultura musical originaram questionamentos e reflexões, que exigiram estudo e sistematização para serem compreendidos e serviram para a construção de um quadro de referências conceituais que estruturou a análise das experiências vivenciadas pelo autor. 53 Perniola, op. cit, p.98. 61 O contato com o grupo de maracatu revelou que ele guardava fortes ligações com grupos musicais das cidades de Recife e de São Luiz, que freqüentemente visitavam a cidade grande. Esses músicos oferecem oficinas, workshops e apresentações aos grupos nordestinos estabelecidos na metrópole, e promovem um estreito relacionamento com a origem dos ritmos e festas nordestinas. Assim, esta investigação permitiu-nos tomar contato com os fundamentos e as influências desses grupos aqui em São Paulo e em sucessivas viagens ao nordeste. Verificamos, ainda, o estreito relacionamento desses grupos regionais e urbanos com os terreiros de candomblé. Desta forma, ao penetrar na cultura dos rituais e das festas, foi possível visualizar que tais relações distribuem-se em territórios e em pequenos nichos categorizados, que permitem que a cultura oral preserve seus ensinamentos e suas dinâmicas e mantenha seus mitos, ritos e celebrações mesmo dentro da globalização dos mercados. Conhecendo as relações dessas tribos com o transe, com a musicalidade étnica e com os “estados alterados”, vamos compará-las às tribos da música eletrônica, que também se servem dos mesmos elementos, e vêm disseminando uma nova cultura comportamental, em âmbito mundial, pelo fenômeno das raves. Os fenômenos midiáticos dos grupos, no que concerne à movimentação, à cor e ao som, serão analisados sob o ponto de vista da percepção e a da capacidade fisilógica-mecanicista do corpo humano e suas potencialidades, desenvolvidas nos agenciamentos nômades elaborados a partir dos anos noventa. Ressaltamos a necessidade do transe e do êxtase como elemento de ligação entre a comunhão grupal e o individualismo urbano. Levantamos algumas 62 características das tribos urbanas dos anos noventa, que apresentam novas relações com sua identidade e seu território. Para interpretar a conduta do “Eu” urbano utilizaremos o trabalho sobre a identidade do “Segundo Eu” de Turkle 54, elaborado a partir de estudo com jovens e máquinas no MIT (Massachusets Institute of Technology). Nesse trabalho – cuja amostra era constituída por integrantes da primeira geração de jovens programadores - a autora discorre sobre a antropomorfização das máquinas e suas relações com a identidade dos adolescentes. O domínio, a personalidade, o virtuosismo e a mecanização da mente são novas características do “estado alterado de consciência”, muitas vezes considerado vício, obsessão e desvios. Tais estados podem ser atingidos pela ingestão de substâncias alucinógenas ou pela exposição às máquinas que utilizam o som e a imagem digital – aí se inserindo os jogos eletrônicos, a música eletrônica, os computadores e a TV. A comparação desses estados alterados de consciência, induzidos pelo comportamento urbano, permite o estabelecimento de um novo olhar sobre os movimentos das metrópoles, derrubando preconceitos e teorias que não mais se adaptam aos agenciamentos formados nas grandes cidades, expostas aos meios eletrônicos que se expandem de forma acelerada e aos grandes investimentos mercadológicos globalizados, que colocam culturas inteiras sob a custódia de um novo individualismo-coletivizante. O grupo aqui analisado tem características que se moldam externamente aos movimentos internacionais, mas apresenta resistências e (re)elaborações da nossa música percussiva iniciática que leva a esses estados coletivamente, cujos conteúdos são ainda desconhecidos. 54 Turkle (1989), p.13-24 / 234-260. 63 CAPÍTULO 1 TERRITÓRIO, CORPO E CORPORALIDADE DAS TURBAS O LUGAR DAS TURBAS Turba, segundo o dicionário Aurélio, significa multidão, desordem e vozes que cantam em coro. No mesmo dicionário, o verbete turbar é definido como revolver, agitar, inquietar, desassossegar, toldar-se, sentir grande comoção, comoverse, abalar-se, inquietar-se, tornar-se sombrio, carregado, turvar-se. A definição que se aplica ao presente trabalho é a de sentir grande comoção - êxtase. Vamos, imprudentemente, associar a palavra turba às tribos nômades dos desertos norte-africanos e centro-asiáticos. Essas turbas mantêm todo o corpo coberto para que o suor resfrie o corpo ao evaporar. Além de colorações e estilos próprios, os turbantes definem também a etnia das tribos. Cada tribo utiliza cores diferentes em seus turbantes: no Saara central, por exemplo, os homens azuis usam um turbante azulado. As roupas sempre foram um elemento de identificação para as turbas, como assinala Souza (1997): “UXOR é a manta que os asiáticos chamaram a seu uso, e já vimos que o auxílio tirado de longe transformou-se em CIPPO FUNERÁRIO (ARA). Que os pelasgos foram como a agulha que cerziu as peles de colorações diferentes das raças africanas, prova-se ainda pelo nome do ATLAS dado ao sistema de montanhas que orla e atravessa o continente negro. Ninguém atinou ainda com o sentido dissimulado da palavra ATLAS, que se resolve em ACUS AIRAE LAXITATIS (agulha do espaço negro) designando, ao mesmo tempo, o 64 afrouxamento das fibras produzido pelo clima tórrido e o das cores primitivas por efeito da fusão étnica (HARMOGE). ATL, no egípcio significa região, e no asteca ÁGUA. Ora, região traduz-se por POPULUS (povo) e água por UNDA (multidão em movimento ), donde se conclui que os pelasgos, saídos da África, são prolongamento desse cordão umbilical (umbilicus acus) que, segundo nos disseram, se prende à massa carnuda do território africano, circundado pelo ATLAS. O nome mauritano do ATLAS é DYRIS, palavra que aglutina os termos DURA RES (coisa cruel, inexorável) e, conseqüentemente, repete o tema envolvido pela palavra INVENTRIX, aproximada de BELONE. E assim como as cordas da crista do ATLAS divide as águas que correm para o Mediterrâneo ou para as terras baixas do Saara, o nome dos pelasgos assinala uma repartição semelhante das multidões barba ras, que emigraram da África para o mundo, ou da Mauritânia para o centro do continente”55. Neste estudo assinalaremos apenas a importância da montanha ATLAS – localizada ao norte do Marrocos - e de suas”turbas”, que provavelmente originaram o transe de possessão brasileiro, muito similar ao transe do povo berber, que veremos adiante. É possível que tais turbas tenham saído da África em direção à Ásia central pelas montanhas Atlas, e posteriormente tenham ocupado a Índia e a Europa. Muito se tem descoberto com os novos achados arqueológicos, que indicam a presença africana em território brasileiro. Mas o movimento das turbas escapa do nosso foco, que é o transe xamânico brasileiro. AS TURBAS NÔMADES E A CONSONÂNCIA MUSICAL As turbas transitaram por regiões remotas, inóspitas e desérticas em rotas de escravos e suprimentos do mundo antigo, que percorriam desde a Ásia até a Europa. Ao longo da história, sua constante movimentação contribuiu significativamente para a formação da Babilônia, do Império Persa, do Egito antigo e do povo Berber, que 55 Souza (1997), p.42-43. 65 ocupava as montanhas Atlas localizadas ao norte da África. Provavelmente as turbas se movimentavam pelo deserto navegando pelas estrelas. As noites frias e limpas do deserto facilitavam a observação dos astros e suas freqüências elípticas, desenvolvendo, desta maneira, a matemática desses povos nômades. Os astros marcavam as variações do clima - as estações verão, outono, inverno e primavera - e também os eclipses lunar e solar. Para definir a data correta era preciso entender as defasagens astronômicas: uma acomodação de seus ciclos, a "coma astronômica”. A física oscilatória consegue explicar as acomodações entre os ciclos elípticos dos astros (lua, sol e planetas) que definem as estações, eclipses e mares em nosso planeta há milhões de anos. Aos olhos humanos esses fenômenos são exatos. Assim, o homem dividiu o tempo com base em dias e meses regulares e exatos quando, na realidade, existe uma “coma”, uma irregularidade a ser ajustada. Entre a música e as nossas sensações com relação a ela também há uma “coma”: por questões culturais e cognitivas, temos que ajustar as oscilações acústicas que possibilitam que escutemos a música. As consonâncias musicais não são exatas, e provocam-nos uma “coma” - uma irregularidade a ser ajustada - decorrente do temperamento dos instrumentos que produzem as vibrações; esse desajuste guarda estreita relação com a tonalidade do sistema musical culturalmente aceito. Vejamos uma comparação entre as “comas” astronômicas e as tonalidades musicais: “Após 19 anos, tem-se 235 ciclos lunares com precisão notável assim como após 7 oitavas, obtemos 12 ciclos de quinta com significativa precisão. Cabe ainda ressaltar que a "coma astronômica" exigirá uma distribuição ao longo dos 19 anos, assim como a coma pitagórica reparte-se ao longo das escalas de distintas formas nas tentativas de construção de escalas. No caso da astronomia, temos 235 = 19 x l2 + 7, o que levou Meton, ateniense do século IV a.C., a promover um grande progresso ao repartir os 7 meses restantes ao longo dos 19 anos, 66 considerando portanto 12 anos normais de 12 meses e 7 anos gordos de 13 meses (Cartier, 1995, p.754), o que se comprova matematicamente no fato de que 19x12 + 7 = (12+7) x 12 + 7 = 12 x 12 + 12 x 7 + 7 = 12 x 12 + 13 x 7. Gerando conflito de interpretações, a analogia construção de escalas/calendários propicia insights, lubrifica e insemina de afeto os conceitos -a princípio distantes -referentes a escalas, associados principalmente à aptidão musical ao mesclá-los com propriedades astronômicas, em geral mais "colonizadas" no espaço do saber e pertinentes essencialmente às aptidões lógico-matemática e espaciais. Nesse sentido, tal comparação dá subsídios para trazer à tona a manifestação de um significado, cujo sentido encontra-se ainda encoberto através do trilhar de um atalho analógico permitindo sentir o conhecimento, na acepção de Ricouer”56. Os fenômenos acústico-auditivos devem-se à vibração, pois os componentes do ouvido humano reagem à vibração. Na pré-história, o homem obteve acomodação auditiva ao perceber as diferenças dos sons produzidos por um simples arco. Descobertas arquelógicas mostram que os ossos transformados em flautas guardavam a mesma proporcionalidade entre as distâncias dos furos que produzem o som. Assim, há uma relação auditiva-física que acomoda o ouvido humano à “cor” (timbre - nota musical) do som produzido pela flauta, mas foram necessárias algumas centenas de anos para que o homem compreendesse essa sutil relação entre nota musical e freqüência. O som produzido por uma corda esticada em um arco está relacionado ao comprimento dessa corda. Pitágoras foi o primeiro a registrar a relação de tom musical produzido pela corda: “Pitágoras observou que pressionando um ponto situado a 3/4 do comprimento da corda em relação a sua extremidade -o que equivale a reduzi-la a 3/4 de seu tamanho original - e tocando-a a seguir, ouvia-se uma quarta acima do tom emitido pela corda inteira. Analogamente, exercida a pressão a 2/3 do tamanho original da corda, ouvia-se uma quinta acima e a 1/2 obtinha-se a oitava do som original. A partir de tal experiência, os intervalos mencionados passam a denominar-se conssonâncias pitagóricas. Assim, se o comprimento original da 56 Abdounur (1999), p.244. (grifo nosso) 67 corda for 12, então quando reduzimo-lo para 9, ouve-se a quarta, para 8, a quinta e para 6, a oitava. O princípio subjacente a essa experiência mostra-se presente em qualquer instrumento de corda ao escutar-se o som emitido pela corda solta, por 3/4, 2/3 e metade da corda. A descoberta da relação entre razão de números inteiros e tons musicais mostrou-se significativa naquela ocasião, gerando uma dúvida fundamental para o pensador de Samos, bem como para o desnrolar da relação matemática/música: Por que às consonâncias musicais subjazem razões de pequenos números inteiros? Qual é a sua causa e qual o seu efeito?”57 Por ter estudado com os sábios da Babilônia e do Egito, Pitágoras tinha conhecimentos de cálculo, e associou as consonâncias perfeitas (mais apropriadas ao ouvido humano) - oitava, quinta e quarta - às relações simples de 1/2, 2/3 e 3/4. E justificou a subjacência dos números inteiros às consonâncias explicando que os números 1, 2, 3 e 4 - envolvidos nas frações acima - geravam toda a perfeição. Essas idéias, originárias da filosofia greco-romana, influenciaram toda a civilização ocidental. A matemática, a religião e a música foram desenvolvidas inicialmente pelas culturas nômades porque estas estavam sempre à mercê da força da natureza, de vez que não se apegavam facilmente a nenhum lugar e não contavam com abrigos fixos, cavernas ou cidades. O convívio com as noites claras do deserto, as dificuldades de localização nas dunas e as tempestades de areia fizeram com que esses povos desenvolvessem seus sentidos, a astronomia, a navegação e a seleção genética dos cavalos, dos camelos e das plantas. A música, a poesia e as parábolas dessas civilizações também tinham um significado oculto denso, e eram a forma de comunicação e difusão de sua cultura. Adiante estudaremos os sufistas derviches e sua relação com o transe. 57 Abdounur , op. cit., p.4-5. 68 O primeiro a recolher e aproveitar esses conhecimentos “nômades” de forma ímpar foi o grego Pitágoras. Natural da ilha de Samos, estudou durante dez anos no Egito Antigo e na Babilônia e formou sua própria “turba”. Foi perseguido por causa do pensamento revolucionário que propunha, e que mantinha seus discípulos unidos e convivendo à margem da sociedade grega. Os conhecimentos adquiridos com os povos nômades ajudaram Pitágoras a estabelecer semelhanças entre as proporções da natureza e da música. Como explicamos, Pitágoras descobriu a relação entre as oitavas musicais, as notas musicais, e abordou a incompatibilidade das escalas, a “coma pitagórica”. Além das notas e consonâncias, descobriu as relações de proporcionalidade entre os lados do triângulo: o teorema de Pitágoras Hipotenusa² = a²+b². As “relações de ouro” decorrentes do conhecimento que detinha da matemática, da física e da geometria compunham a não proporção, a beleza e a harmonia e ditavam as regras da sua “turba”. À sua maneira parabólica e hermética Figura 3 Os números 1, 2, 3 e 4 para Pitágoras associados a um ponto , uma reta, um triângulo e um quadrado. de transferir o conhecimento, Pitágoras dizia: Tudo é Número, Deus é Número! “Mas o que Pitágoras queria dizer exatamente com "tudo é número"? Sua idéia de número era bem complexa. Concebia o número 1 como um ponto, o 2 como uma linha, o 3 como uma superfície e o 4 como um sólido. Em diagrama seria: 69 Os números têm formas que de algum modo constituem o mundo. Ecos dessa idéia persistem até hoje na matemática -na nossa noção de elevar um número ao quadrado ou ao cubo, na idéia de três dimensões e assim por diante.”58 Se Pitágoras vivesse por mais dois mil anos, veria sua teoria confirmada pelos números de base dois (binários), que são a base da computação. Veria ainda que a molécula de carbono tem quatro átomos - formando o tetraedro - que constituem a base dos organismos vivos e da molécula do diamante. Outro paralelo a essa teoria poderia ser feito em relação às dimensões: 1 associada ao ponto, 2 associada aos eixos x e y, 3 associada a x, y e z e 4 associada à quarta dimensão, ainda impossível para a matemática atual. IMPLICAÇÕES DA HARMONIA NA ESTÉTICA E NO CORPO EM TRANSE Pitágoras é importante para o nosso estudo porque ele formula, além da matemática, relações harmônicas e de comportamento que fundamentam uma doutrina filosófica mesclada pelos vários ensinamentos que apreendeu no Egito, na Pérsia e na Babilônia. A maneira como viviam Pitágoras e seus discípulos foi melhor conhecida quando do descobrimento um templo pitagórico de Cláudio (41 a 54 d.C.), sob os trilhos da estrada de ferro que liga Roma a Nápoles. Pitágoras foi importante no sul da Itália, mas não deixou nada escrito e suas postulações foram muito combatidas. Se hoje temos informações sobre o pitagorismo, devêmo-lo aos seus seguidores Timeu, Arquidas, Filolau, Teodoro, Sócrates e Platão. 58 Strathern (1998a), p.40. 70 Suas investigações meditativas eram realizadas no fundo de cavernas escuras, após a ingestão de sementes com mel, e sob estado de transe: “Era costume entre os gregos que estavam para se submeter à iniciação ingerir esse preparado que, na verdade, era o sagrado kykeon dos mistérios de Elêusis. A papoula era consagrada à deusa Deméter, cujas estátuas sempre aparecem coroadas com ela; a papoula não era usada apenas para afastar a fome e produzir uma sensação de bem-estar na obscuridade e no mistério das cavernas e dos santuários dos deuses; ela proporcionava também um estado de intensa vigília por mais de oito horas, bem como alucinações visuais que preparavam o iniciado para a chegada dos deuses. Em seus últimos estágios, a papoula leva a um estado místico, na fronteira entre a vigília e o sono, no qual aparições fantásticas, tanto visuais como auditivas, começam a se manifestar. Finalmente, depois desse estado quase que de transe das horas precedentes, o iniciado adormece e sonha. Era no sonho que se dava a epifania, quando o deus aparecia ao iniciado. Esse era o procedimento usual nos templos do deus da cura, Asclépio, cujos devotos recebiam a cura adormecidos. As propriedades da antiga albarrã são desconhecidas,mas provavelmente era mais um narcótico que ajudava a suportar o medo em face dos terrores das trevas. Contudo, o ingrediente mais importante desse preparado, mencionado da primeira vez por Porfírio, era a papoula. Pitágoras conhecia as medidas exatas de cada ingrediente da poção, uma arte que mais tarde ele utilizou ao administrar drogas medicinais e que aprendera com os magos persas”59. A relação entre o transe meditativo e a cura é um aspecto importante para o presente estudo sobre as tribos urbanas paulistas, mas também é importante analisar como essa relação provoca mudanças no comportamento e na noção de beleza, levando a mudanças de hábitos alimentares e corporais. Proibições eram impostas à turba de Pitágoras, algumas aparentemente absurdas, como a de não comer feijão. Entretanto, se pensarmos a estética do corpo como algo puro e em harmonia com a natureza concordaremos com a proibição, pois essa imagem não é compatível com os gases que o feijão produz. A música era utilizada para transmitir o conhecimento, 59 Gorman.(1995), p.97. 71 unir e curar. Pitágoras era o único integrante da turba capaz de escutar a música cósmica, e utilizava seus poderes para manter uma aura de mistério entorno de si. Para o pensador de Samos a relação de harmonia é constituída pelo ajustamento entre os opostos: aspectos qualitativos que se simetrizam e em movimento (khiasma). “Jamais foi bem compreendido o sentido da krásis pitagórica. A união dos contrários foi entendida do modo mais vulgar, e não se percebeu que há uma transimanência, pois a krásis não é apenas uma reunião de contrários, mas uma superação formal, que dá surgimento a uma nova tensão. Desse modo, a krásis, o kosmesein pitagórico, é considerado como sendo apenas um vínculo, que reúne os elementos opostos das coisas. A krásis seria apenas a harmonia. Assim, o que constitui as coisas são os números (como elementos materiais) e a harmonia, que os coordena. O universo é, apenas, a harmonização dos números, uma espécie de unidade de múltiplos (quase atomizados, senão atomizados). 60” A harmonia coordenada remete-nos aos ritmos e à relação entre tempo e espaço na realidade percebida, ou seja, fluxo. Assim, para os pitagóricos ritmo é a experiência do fluxo ordenado de um movimento. Para eles, harmonia era o ideal máximo, e os números eram entidades intermediárias entre o Ser Supremo e o que não é numero: os outros seres. As tríades inferior e superior consideram o conjunto das formas e as coisas sensíveis. Para o Ser Supremo, a díada (o número um) é a harmonia cosmológica em movimento, um fluir que leva acordância aos discordantes: “Exige, ainda, a harmonia que os contrários tenham, além de um logos contrário, ou pelo menos, distinto, que os elementos componentes de um dos pares de contrários, analoguem-se entre si, ou que tenham, em certo aspecto, um logos que os identifique, formalmente, sob esse aspecto, como um punhado de 60 Santos (2000), p.103. 72 homens, que se analogam como soldados de um grupo, como combatentes de um grupo, e, como tais, eles se identificam, apesar das diferenças, das heterogeneidades que os distinguem entre si. Mas, funcionalmente, se fusionam num logos, que aponta a funcionalidade do grupo. No grupo contrário, há a mesma funcionalidade, e uma analogia correspondente. O combate entre os grupos os analoga num logos, que é o embate entre forças adversas, que buscam prevalecer e dominar a outra. Há, assim, no combate, uma harmonia. (Escolhemos este exemplo, porque seria o que mais parece aos olhos como desarmônico, e que serve bem para explicar o conceito de harmonia pitagórica).61” Também no combate urbano está presente a acordância entre discordantes. As partes atacam e defendem, as atitudes volatilizam-se na cruzetagem e nos pontos em comum, formando as tribos. Os grupos se analogam no logos da batalha pela sobrevivência e pela visibilidade. Uma harmonização que é a luta travada entre o real e o não-real, o virtual. Os contrários analogados e obedientes a uma norma real, e desobedientes virtuais a uma norma não-real, aglutinadora e polarizante. Assim o corpo urbano transita, no limite físico da pele exposta, entre o corpo e o não-corpo, harmonizando espaços e tempos múltiplos. O CORPO E A IDENTIDADE EM TRÂNSITO O princípio de identidade urbana passa pela observação das outras identidades observadas. Observar o corpo (real ou não) dos grupos e das tribos é fundamentar a sua identidade. Vejamos o que Michel Serres nos diz sobre as questões ontológicas e a identidade: “O encontro de A e de não-A é descrito cuidadosamente por um conjunto de identidades: no mesmo tempo, na mesma relação, em geral, sob condição de mesmas determinações. Curiosa necessidade que só pode ser imposta sob um 61 Santos, op.cit., p.163. 73 completo universo de condições. O princípio de identidade advém se e somente se outras identidades forem observadas: de tempo, de relação, de determinações em geral. Curiosa definição que requer como condição o definido si mesmo. O primeiro princípio reduzir-se-ia a uma petição de princípio? A um retorno à própria identidade? A partir daí, podemos retomar Aristóteles e Leibniz, dizendo: nas mesmas circunstâncias, é impossível que o que é A seja não-A. Observamos de imediato que o famoso princípio, cuja universalidade ou pretendida necessidade pulveriza-se sob a pressão das condições, avizinha-se de um outro, mais familiar, o do determinismo: nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Ora, como todo mundo ignora o estatuto das causas e dos efeitos, como a filosofia da causalidade pode muito bem ser posta entre parênteses tanto quanto a lógica atributiva, mais acima, resulta que: nas mesmas circunstâncias, os mesmos x produzem os mesmos y. Ou melhor: pela identidade das circunstâncias, há a identidade, ou estabilidade da experiência, possibilidade de repeti-la à vontade. Ou: por um recorte idêntico, as experimentações continuam invariantes.62” 62 Serres (2001), p.290. 74 DAS TURBAS PITAGÓRICAS ÀS TRIBOS ELETRÔNICAS As conjecturas filosóficas de Pitágoras fizeram com que o pensador de Samos fosse obrigado a esconder o significado de suas teorias, pois à sua turba foi imposta a lei do silêncio. Àquela época, apenas quatro sólidos geométricos regulares eram conhecidos: o tetraedro (pirâmide triangular); o cubo, o octaedro (oito faces iguais) e o dodecaedro (doze faces iguais). Acreditava-se que o universo era um globo constituído por dodecaedros, e os conhecimentos matemáticos de harmonia, proporção e beleza eram mantidos em segredo, assim como os números irracionais como a raiz quadrada de dois. Os números irracionais não podiam ser calculados, e contradiziam toda a estrutura do pensamento pitagórico. “Os babilônios consideravam o pehtagrama símbolo de saúde, física e espiritual. Suas propriedades eram relacionadas à Divina Proporção (mais tarde Figura 4 Pentagrama inserido no pentágono regular. conhecida como Razão de Ouro). Para corresponder a essa razão, uma linha deve ser dividida de tal forma que a razão de sua parte menor em relação à maior seja a mesma que à da maior para o todo. No diagrama precedente, a razão de Y Z para Y X é a mesma que de X Y para X Z. Essa razão, relacionando as partes divididas e o todo, assumiu imenso significado simbólico para os babilônios. Continha o segredo da constituição do mundo -como suas partes se encaIxavam umas as outras e como a soma dessas partes se relacionava ao todo, como os seres humanos tomados individualmente se relacionavam à humanidade como um 75 todo e como a humanidade se relacionava ao mundo -e muitas outras relações simbólicas. Como tal, a Razão de Ouro –harmonia última- veio a ser encarada com mística reverência. E quando se descobriu que o pentagrama era forma do segundo a Divina Proporção (ou Razão de Ouro) isso também assumiu um status místico”63. O pentagrama escondia relações matemáticas e estéticas que para os pitagóricos era uma filosofia, mas essas relações eram mantidas em segredo, e só mais tarde foram aperfeiçoadas por Arquitas. Pitágoras não conseguiu explicar a incompatibilidade das notas musicais e adotou uma relação forçada, com constatamos nas suas frações. Arquitas desenvolveu uma aproximação acústica levando em conta como as ondas sonoras que se propagam e as relações entre altura, força e velocidade do som. “Cabe ressaltar que o intervalo de terça maior obtido por Arquitas concorda com aquele presente na Série Harmônica. Tal fenômeno levar-nos-ia a imaginar que Arquitas possuísse um ouvido sensível ao perceber que a terça correspondente a (4/5) -mais baixa que a pitagórica, (64/81) -soava mais natural, uma vez que se fundia exatamente dentro dos harmônicos naturais de uma nota. Enquanto Pitágoras calcula frações subjacentes à escala utilizando apenas percursos de quintas, Arquitas considera fortemente cálculos de médias aritméticas e harmônicas na geração de seu sistema musical. Revelando uma estrutura de pensamento poderosamente proporcionalista, o pensador tarentino redistribui as relações de comprimentos subjacentes à escala pitagórica, obtendo diferentes frações tais como (4/5) correspondente ao intervalo de terça, outrora associado a (64/81) por Pitágoras”64. Posteriormente os gregos desenvolveram a acústica, que garantiu aos teatros uma ótima sonoridade. Essa sonoridade foi investigada, mais adiante, pelo arquiteto romano Vitrúvio. Os diferentes aspectos que envolvem a consonância foram estudados no ocidente durante os dois mil anos da era cristã. Em 1910 os futuristas 63 Strathern, op. cit., p.53. 76 italianos passaram a associar às composições musicais notas aleatórias produzidas por máquinas. Nos anos 40, músicos negros dos Estados Unidos eletrificaram o blues, o spirituals, e o gospel, inventando o rhythm and blues. Desta forma as notas musicais foram associadas à eletricidade, e a consonância foi adaptada aos aparelhos elétricos e à fita magnética. A música eletroacústica abriu novas possibilidades de experimentação. A composição aleatória de Cage65 e a experimentação musical foram intensas na década de setenta. Com James Brown e Sam Cooke, ainda em sessenta, o gospel foi transformado em música profana, conhecida como soul, o pai do funk. Nas festas de rua do Bronx, gueto negro nova-iorquino, DJs como Grand Master-Flash e Afrika Bambaataa aprendem as técnicas de scratch66 do jamaicano Kool Her. Na década de setenta temos os DJs do Bronx sampleando67 pedaços de músicas de outros músicos e o grupo alemão Kraftwerk, que lança Trans-Europe Express utilizando a bateria eletrônica. O resultado da mistura entre a música e a eletrônica faz enorme sucesso, das festas do Bronx às festas clubbers, da Inglaterra à 64 Abdounur, op. cit., p.17. 65 As experimentações do músico Cage alimentaram na década de oitenta o movimento underground que assumiu uma vínculo “aberto” com as drogas, segundo Xiberras (1989),p.114.: “Tal não significa porém que o underground não tenha cobrado existência real. Atendendo aos dados da nossa história mais recente, ele configura antes de mais uma corrente musical e pictórica consubstanciada no hiper-realismo não convencional de Andy Warhol. O agrupamento musical Velvet Underground reune cantores como Lou Reed e Nico. Alguns dos títulos dos seus discos evocam uma sensibilidade comum à experimentação dos novos produtos: heroine, white light, white heat, etc. Será nestas brechas, no interior destes hiatos da cultura ocidental que o consumo da droga vai encontrar refúgio, sujeitando-se à imagem que lhe é devolvida pela sociedade em que os indivíduos se inserem: a imagem do toxicómano, detrito da modernidade ocidental, caixote de lixo da história, que urge votar ao mais completo desprezo. Enquanto a geração anterior se esforçara por redescobrir drogas «planantes», o underground dá preferência a produtos que lhe permitem manter-se num mundo inferior e aceitar a sua decadência como um fenómeno perfeitamente normal. Nestas condições, é natural que a tomada de contacto com os Hypnotica viesse a transformar-se numa verdadeira paixão. Muito particularmente a heroína, produto da tecnologia avançada, reúne todas as características necessárias a ocupar o centro da ribalta. O pó branco constitui, com efeito, uma poderosa arma de combate..., e não esqueçamos que o underground declarou o estado de guerra de todos contra todos”. 66 Scratch é a utilização do toca-discos como instrumento musical, editando e "arranhando" as músicas, indo e voltando na pista sonora do disco de vinil (Long Play). 67 Samplear é colar eletronicamente uma música ou ruído nos sintetizadores. Assim o músico pode fazer uma colagem de diferentes trechos musicais e ruídos tocando o sintetizador, previamente abastecido ou programado. 77 Alemanha. São colocados no mercado os samplers, o Midi68 e os microcomputadores pessoais. A vanguarda parte de duas cidades americanas: Em Chicago, os DJs dos clubes freqüentados principalmente por negros e gays inventam a house69. Em Detroit, um veterano da Guerra do Vietnã, que gosta de ser chamado pelo número 3070, apresenta para os DJs Juan Atkins, Derrick May e Kevin Saundersono o livro A Terceira Onda, de Alvin Toffler. Nesse encontro que nasce a música techno70. Uma possível solução para o desajuste entre as notas temperadas e não temperadas é diminuir o número de notas. Assim, algumas tribos utilizam apenas cinco notas (sistema Figura 5. Espiral com as motas temperadas e não temperadas. pentatônico)71, o que possibilita o ajuste do som em intervalos aproximados. O gráfico (figura 5) apresenta a distribuição de infinitas 68 Midi é um protocolo que possibilita que as máquinas eletrônicas conversem entre si compartilhando notas musicais. 69 House é um estilo de música eletrônica. Iniciado em 1986 pelo DJ Frankie Knuckles em Chicago (EUA), esse estilo evoluiu e saiu da fusão de elementos da soul music com a disco e as batidas das baterias eletrônicas. Formam-se subgêneros, como o garage (com bastante vocal gospel), o deep house (o subgênero mais elegante do house, com linhas melódicas, melancólicas e minimalistas acima das batidas), e o jazzy house (batidas com um instrumento solo - quase sempre um sax virtuoso), dentre outros (acid house, disco house, tribal hous, french housee). 110 a 128 bpms (batidas por Minuto). 70 Techno - no início dos anos 80, em Detroit (EUA) Derrick May, Kevin Saunderson e Juan Atkins fazem uma fusão entre o som do Kraftwerk e as batidas funk de George Clinton. O resultado é uma batidas seca, repetitiva, 4 por 4, sem vocais. O Kraftwerk é considerado um grupo Prototechno, por ser referência à produção da Techno Music. 130 a 140 bpms. 78 notas em uma espiral, que se desenvolve para fora a partir de um círculo. As notas temperadas são as doze notas que se assentam sobre o círculo. A redução das notas da espiral em direção ao círculo pode formar um conjunto de notas (menores da espiral) que se assentam próximas ao círculo (figura6). Figura 6. Detalhe do círculo (notas temperadas em preto) próximo as notas da espiral (notas não temperadas ). Aspectos importantes, como o temperamento musical, a polifonia e as músicas tonal e atonal, não poderão ser analisados no curto espaço de que dispomos, mas vale pena ressaltar a relação corporal e estética que a harmonia musical implica, 71 O diretor Spielberg no filme Contatos Imediatos do 3.º Grau utiliza notas musicais para se comunicar com os alienígenas. Em São Paulo, esses tons do filme são utilizados para anunciar a passagem do caminhão de gás nas ruas. 79 pois ela nos auxilia a compreender a afinação brasileira e as diferenças de escala e de dissonâncias musicais entre o sul e nordeste brasileiros. Parte significativa da nossa herança cultural musical vem da região sul européia, que sofreu a influência árabe graças às invasões dos mouros. Outra de nossas influências musicais vem da África que tem um sistema musical pentafônico, constituído pela polifonia e pelas dissonâncias - e misturou-se à musicalidade indígena brasileira desde o período colonial. Os hinários do Santo Daime são exemplo da fusão dessas duas culturas na Amazônia brasileira. Assim como em todos os aspectos da cultura brasileira, a mistura de sistemas musicais é muito significativa, e tanto as línguas como as músicas de origem africana foram preservadas. É fácil, desta forma, entender porque a dissonância da Bossa Nova72 e a música atonal de Arrigo Barbarnabé73 provocaram tanto escândalo e turbulência aos ouvidos tradicionais e europeizados. Estendendo a linha de pensamento entre os opostos e a relação de trânsito ou avizinhamento, atingimos a noção de erótico entre o humano e o divino estabelecida por Platão. O pensamento de Perniola sobre o platonismo revela um corpo erotizado entre o belo e o feio: “Parece ter sido Platão o primeiro a intuir que o eros seja algo de intermédio entre os opostos: em O Banquete, de fato, Diotima (sacerdotisa lendária de 72 Bossa Nova: em 1957, o compositor Tom Jobim trabalhava nos arranjos do novo disco de Elizeth Cardoso. Certa noite, o fotógrafo Chico Pereira chegou ao seu apartamento na Rua Nascimento Silva, em Ipanema, acompanhado de João Gilberto. João mostrou a ele duas músicas da sua autoria, Bim Bom e Obalalá, cujo ritmo deixou Jobim muito impressionado. Ele convenceu Vinícius de Moraes e Elizeth - que andava estranhando os ares intelectualizados do projeto e temia não dar conta do recado - a aproveitar o músico baiano em três faixas, Chega de Saudade e Outra Vez. No disco, João Gilberto gravou pela primeira vez a batida do violão em 4/4, que se tornaria a marca registrada da Bossa Nova - a batida de samba normalmente é executada em compasso 2/4. Posteriormente a Bossa Nova foi influenciada pelo jazz (1962), distanciando-se do samba (http://www3.estado.com.br/edicao/especial/bossa/historica.html). 73 Músico nascido no Paraná, estudou composição na Universidade de São Paulo (ECA). Tornou-se um dos líderes da vanguarda paulista, baseando seu trabalho na experimentação da música atonal e demonstrando influências do dodecafonismo erudito. Participou do Festival Universitário da TV Cultura nos anos 70 com "Diversões Eletrônicas", e em 1980 gravou o primeiro LP independente: Clara (1980). Fez trilhas sonoras para os filmes Cidade Oculta (1986) e Ed Morte (1997). 80 Martinéia e mestra de Sócrates), uma mulher de Mantinéia, versada em coisas erÓticas, define o eros como algo entre o mortal e o imortal, um intermediário entre o humano e o divino, um grande demônio que garante as relações entre os homens e os deuses. Essa definição de eros, entretanto, ficou, seja no tempo de Platão, seja na reflexão neoplatônica que veio a seguir, como algo um tanto marginal e substancialmente não pensado, porque prevaleceu o conceito de amor como conciliação, união, harmonia, o que O Banquete platônico a maioria dos outros interlocutores defende. Se a conciliação deve ser pensada como consonância entre elementos semelhantes ou elementos dessemelhantes, ou como uma composição harmoniosa do idêntico consigo mesmo, esse é um problema que pertence precisamente à história da noção de amor, a qual tem pouco a ver com a idéia do eros como intermediário, como metaxú; não por acaso, tanto para a maior parte dos outros interlocutores de O Banquete platônico, como para Plutarco, o amor não é um demônio, mas um deus. 74” Para o platonismo o corpo está em trânsito entre o bem e o mal, entre a sabedoria e a ignorância. A beleza parte do corpo e ascende às ciências e às instituições, dissolvendo a noção de transcendência e de cura elaborada por Pitágoras. O corpo em trânsito desloca-se no espaço em direção da ascendência ao divino em algum ponto do futuro, perdendo a ligação com o tempo mítico passado. Para Pitágoras a caverna é transcendente, meditativa e traz a cura reveladora e visionária (para trás). Para Platão a caverna75 - a sociedade - está aprisionada às sombras do real, da ilusão e da ignorância e deve, heroicamente, enxergar com sabedoria (para a frente). Assim, para os pitagóricos o medo é meditativo e, para os platônicos o medo é fantasmagórico. 74 Perniola (2000), p.62-64. 75 Platão viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou (no Livro VII de A República, um diálogo escrito entre 380-370 a.C.) todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente. O que veriam então? A seguir supôs que existissem alguns prisioneiros, que carregavam para lá e para cá, sobre suas cabeças, estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outros vasilhames, por detrás do muro que encarcerava os demais. Havia também uma escassa iluminação, que vinha do fundo do subterrâneo. Para o filósofo, que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o bruxuleio das sombras dos objetos, surgindo e se desafazendo diante deles. Era assim que viviam os homens, concluiu ele: acreditavam que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos) eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. A sua existência era, assim, inteiramente dominada pela ignorância (agnóia). 81 Configura-se, desta forma, uma ruptura entre as duas maneiras de pensar e analisar o mundo. Para os pitagóricos a harmonia da natureza é a unicidade xamânica e está relacionada ao divino; a identidade humana volta-se ao passado e, através do onírico harmoniza-se à natureza e revela a sua sabedoria; a identidade é uma acordância entre as discordâncias. No platonismo a harmonia é o corpo erotizado que deve, heroicamente, superar-se e elevar-se ao divino e não pode identificar-se com o amor ou com a violência; a identidade transita na desigualdade entre o divino e o homem, entre a imortalidade e a mortalidade. Neste estudo, a abordagem do transe xamânico aproxima-se do pensamento de Pitágoras, que se (re)alinhou ao pensamento xamânico e influenciou todo o pensamento grego e romano, formando a base da cultura ocidental. As noções de sabedoria, saúde do corpo e comportamento estão relacionadas com a harmonia musical, e constituem-se em uma forma de se relacionar com o mundo percebido. Entender o transe meditativo e ligado à cura é um meio de compreender a nossa cultura popular que, com sua sabedoria, mantém o xamanismo como a única possibilidade de unir e fortalecer a sua comunidade. 82 CAPÍTULO 2 O URBANO: AS TRIBOS E OS GRUPOS A HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DAS CIDADES COMO PROTEÇÃO E TRANSCENDÊNCIA DOS VALORES TEMPORAIS Os primeiros agrupamentos humanos tinham formações que até hoje se mantêm. Os indivíduos se agrupam basicamente para vencer as dificuldades impostas pela meio ambiente. Uma vez dominada a natureza, a tendência é valorizar as heranças culturais que carregam e, principalmente, preservar o meio social que formaram. A fim de melhor entendermos a complexidade das tribos urbanas e seus territórios, o presente capítulo apresenta um breve traçado histórico – da época medieval até a contemporaneidade – da vinculação entre dissonância musical e relação espacial-temporal. O solo ritualizado de que nos fala Eliade (1996) sempre teve um valor agregador da identidade e fortificador do grupo e, desde as mais remotas civilizações, guarda uma estreita relação com as comunidades locais.76 76 Eliade (1996), p.119: “O costume de depor o recém-nascido no solo é ainda mais difundido. Em certos países da Europa ainda se costuma, hoje em dia, colocar a criança no chão, logo que esteja lavada e enfaixada. Em seguida, a criança é erguida pelo pai (de terra tollere) em sinal de reconhecimento. Na China antiga, "o moribundo, como o recém-nascido, é deposto no solo... Para nascer ou morrer, para entrar na família viva ou na família ancestral (e para sair de uma ou outra) há um limiar comum, a Terra natal... Quando se coloca sobre a Terra o recém-nascido ou o moribundo, é a ela que cabe dizer se o nascimento ou a morte são válidos, se é necessário tomá-los como fatos consumados e regulares... O rito da deposição na Terra implica a idéia de uma identidade substancial entre a Raça e o Solo. Essa idéia traduz-se, com efeito, pelo sentimento de autoctonia -o mais vivo que se pode captar nos primórdios da história chinesa...” 83 Território, lugar ou solo são elementos que sempre estiveram ligados aos ritos da morte, do nascimento e do surgimento de uma raça. Explicam-se, assim, os ritos da Terra-Mãe (Terra Mater), relacionados à imagem feminina, à agricultura, ao cultivo, ao novo alimento e ao novo indivíduo. Eliade(1992) demonstra que, em algumas culturas, os cerimoniais de fertilidade, riqueza e celebração da colheita tinham um caráter orgiástico, de libertinagem77. A água, o barro e a lama são tidos como elementos primordiais em muitas religiões porque, de alguma forma, abrigam o sentido do rito da Terra-Mãe. Os ritos, lendas e cultos associam os vetores temporais ligados à fecundidade, à vida e à morte ao solo, à floresta, ao o rio e ao cosmo. Para melhor compreender as mudanças de comportamento provocadas pela primeira de mudanças vivida pela sociedade – que dessacralizaram a fecundidade do solo ligada à figura feminina -, vejamos as considerações de Toffler (1998): “Começando com a simplíssima idéia de que o aparecimento da agricultura foi o primeiro ponto decisivo do desenvolvimento social humano, e de que a revolução industrial foi a segunda grande ruptura, olha cada um destes acontecimentos não como um discreto evento no tempo, mas como uma onda de mudança avançando a uma certa velocidade. Antes da Primeira Onda de mudança, a maioria dos seres humanos viviam em pequenos grupos, freqüentemente migradores, e alimentavam-se pilhando, pescando, caçando ou pastoreando. Em algum ponto, aproximadamente há dez milênios, começou a 77 Eliade, op cit., p.122-123: “A orgia ritual em favor das colheitas também tem um modelo divino: a hierogamia do deus fecundador com a Terra-Mãe. A fertilidade agrária é estimulada por um frenesi genésico ilimitado. De certo ponto de vista, a orgia corresponde à indiferenciação de antes da Criação. É por isso que certos cerimoniais do Ano-Novo comportam rituais orgiásticos: a “confusão” social, a libertinagem e as saturnais simbolizam a regressão ao estado amorfo anterior à Criação do Mundo. Quando se trata de uma “criação” ao nível da vida vegetal, a encenação cosmológico-ritual se repete, pois a nova colheita equivale a uma nova “criação”. A idéia de renovação- presente nos rituais do Ano Novo, em que se tratava ao mesmo tempo de renovação do Tempo e da regeneração do Mundo - é encontrada novamente nas encenações orgásticas agrárias. Aqui também a orgia é uma regressão à Noite Cósmica, ao pré-formal, Às “Águas”, a fim de Assegurar a regeneração total da Vida e, por conseqüência, a fertilidade da Terra e a opulência das colheitas.” 84 revolução agrícola, que avançou lentamente através do planeta, espalhando aldeias, colônias, terra cultivada e um novo modo de vida. A Primeira Onda ainda não se tinha exaurido pelo fim do século XVII quando a revolução industrial irrompeu através da Europa e desencadeou a segunda grande onda de mudança planetária. Este novo processo -a industrialização- começou a marchar muito mais rapidamente através de nações e continentes. Assim, dois processos de mudança, separados e distintos, rolavam através da terra simultaneamente, a velocidades diferentes. 78 Surge aí o rompimento com o Rito da Terra-Mãe e a relação territorialtemporal modifica-se: o solo passa a ser comercializado, e a proteção e a acumulação do “produzido” tornam-se a grande preocupação do homem. Turbas que anteriormente viviam no nomadismo fixam-se, assumindo comportamento sedentário; o território passa a ser o paradigma do sangue, que legitima a relação familiar com o solo fértil produtivo e discrimina o “outro”, que não tem “sangue azul” e, portanto, deve pagar impostos, mora fora da cidade e não tem proteção da família “real”. A base da formação da cidade murada sedentária está na apropriação do tempo e do solo: o tempo da colheita e o plantio do solo. O muro divide, segmenta o território entre aqueles que têm sangue azul (corte) e aqueles que não o têm (plebe), entre aqueles que guardam a colheita (senhores da terra) e aqueles que plantam (trabalhadores). De posse desse tempo-território a cidade medieval fortifica-se, acumula. A técnica bélica e a militarização da cidade murada protegem a família real e a corte. Surgem os períodos de desfrute e deleite decorrentes da abundância de alimentos e o os períodos de amargos e dor provocados pela escassez de suprimentos, pelas guerras e pelas pestes. O conflito entre a “alma” e a “mente” 78 Tofller (1998),. p.27. 85 ganha uma forma dualística que é a origem da racionalidade técnica e objetiva que alterou as relações espaço-tempo da civilização ocidental. Vejamos como Werthein (2001), que analisou a Divina Comédia de Dante, explica esse dualismo medieval entre corpo-espaço e alma79: “...Um dos traços mais comentados da cultura ocidental é que, pelo menos nos últimos três mil anos, nossas filosofias e religiões foram dualistas, cindindo a realidade em matéria e espírito. Herdamos esse dualismo tanto dos gregos antigos quanto da cultura cristã. Para os gregos, o homem era uma criatura de soma e pneuma, corpo e espírito. Pitágoras, Platão e Aristóteles, todos viram não só os seres humanos como o cosmo em termos bipolares. Na era cristã primitiva, o pneuma grego foi integrado ao pensamento judaico e essa amalgamação das correntes intelectuais grega e judaica deu origem à noção teologicamente complexa da alma cristã. Ao longo dos mil anos da era cristã medieval -grosso modo, da queda do Império Romano no século V ao início do Renascimento no século XV -, a cultura intelectual ocidental caracterizou-se amplamente por preocupações relativas à alma. Pelo menos, é fundamentalmente por isso que a cultura medieval é lembrada. Até as grandes realizações físicas dessa era, como suas magníficas catedrais, eram projetos religiosos, cujo objetivo último era o enriquecimento da alma cristã. Mas no último meio milênio -a partir do Renascimento e, de maneira mais acentuada, da "revolução científica" do século XVII -, ocorreu uma profunda mudança, tendo a atenção ocidental se desviado cada vez mais do conceito teológico de alma para a concretude física do corpo. Desde o Iluminismo, no século XVIII, vivemos numa cultura que tem sido esmagadoramente dominada por preocupações não espirituais, mas materiais. Em suma, no Ocidente moderno vivemos numa era profundamente materialista e fisicalista...” 79 Werthein, op. cit., p.23. 86 Tomando o partido da “alma”, o período medieval concebe o espaço cosmológico de maneira finita: Deus ao centro e uma hierarquia entre plantas, homens, divindades e todos os seres “celestes”. Os pilares medievais são abalados quando o homem se apercebe de que há algo mais além da alma: o “vazio” é muito grande e, no que concerne à fé, a concentração de todos os poderes celestiais em uma única figura ou pessoa passa a ser questionada. Os avanços da ciência estendem o espaço ao infinito, conflitando com a visão finita do cosmo. O mundo passa a ser entendido como uma vasta e complicada máquina, o espaço é entendido perceptivamente de maneira lógica, racional, e promove novas mudanças religiosas. A dúvida e o questionamento lançados por Descartes com seu método cartesiano e seu cogito inauguram uma época científicapragmática. Com relação a Descartes, Werthein assinala que esse filósofo foi caracterizado como arqui-racionalista. No entanto, como todos os fundadores do mecanicismo, Descartes era um homem profundamente religioso, que acreditava sinceramente na alma cristã. Para conciliar sua ciência mecanicista à sua crença na alma, Descartes deu um passo filosófico radical. Propôs que a realidade era separada em duas categorias distintas: a res extensa - o domínio fisicamente extenso da matéria em movimento -, e a res cogitans - domínio imaterial dos pensamentos, sentimentos e da experiência religiosa. O objetivo da nova ciência mecanicista era descrever apenas as ações de corpos materiais no espaço físico; assim, aplicava-se unicamente à res extensa. 87 Fica claro, desta forma, que o mecanicismo foi uma filosofia de natureza genuinamente dualista. Tal como o pensamento medieval, conferia realidade tanto ao corpo quanto à alma. Descartes duvida da realidade objetiva e insiste que tudo não passa de ilusão e que, de alguma forma, “sonhamos sentir a realidade”. Para colocar um ponto final nessa dúvida do sentir, estabelece o método cartesiano e busca um ponto paradigmático, estabelecendo: “Finalmente, considerando que os mesmos pensamentos que temos quando acordados podem ocorrer-nos quando dormimos, sem que haja então um só verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que outrora me entraram no espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo depois, observei que, enquanto pretendia assim considerar tudo como falso, era forçoso que eu, que pensava fosse alguma coisa. Percebi, então, que a verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que nem mesmo as mais extravagantes suposições dos céticos poderiam abalá-la. E, assim julgando, concluí que poderia aceitá-la sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que buscava”80. Com Descartes, o “Eu” é colocado em dúvida com o sentir “real”. Ao fim da Idade Média o conceito de “alma” era impregnado por “emoções”, ainda não havia a noção de “psique”, e o purgatório constituía-se em um trânsito, uma “entidade” entre inferno e céu. No inferno medieval as “almas” permaneciam imobilizadas, congeladas; o purgatório, àquela época, era o “local” em que os pecados eram purgados, levando as almas a adquirirem mobilidade, libertando-as do “peso” do corpo, da carne; no “céu” medieval as almas não tinham matéria e circulavam livres dos pesados entraves da terra. 80 Descartes (2001), p.41-42. 88 A REVOLUÇÃO NAS CIÊNCIAS E A VISÃO ESPAÇO-TEMPO MODERNA A noção de espaço que prevalecia na Idade Média vinha de Aristotóles, que tinha horror ao vácuo, ao vazio que hoje chamamos de espaço vazio. O “nada” era inconcebível, e um “nada” com volume era ainda mais assustador. Assim, a noção de espaço como superfície resolvia os problemas, e tudo aquilo que envolvia os objetos era tido como superfície espacial. Para Aristóteles, não havia vácuos com volumes e profundidades. Até mesmo a atmosfera da terra era fonte de questionamento e de dúvidas para o homem medieval. A noção de profundidade e de perspectiva ganha força com os pintores renascentistas, e conceitos de matemática e de geometria são estabelecidos sobre o assunto. As cruzadas cristãs, implementadas na Idade Média, praticamente impossibilitaram a civilização ocidental de conhecer a matemática do mundo árabe, que de há muito mantinha contato com outros povos que admiravam e estudavam o cosmo, como os babilônios e os egípcios. Mas, graças às invasões dos mouros, as regiões localizadas ao Sul da Europa Ocidental tiveram contato com a filosofia, a poesia, a astronomia81 e a geometria dos povos árabes. Do contato europeu com a cultura árabe possibilitou a fundação das universidades francesas e espanholas. Com o renascimento a Europa afasta a influência árabe e conhece um grande avanço cientifico. A cisão entre o nomadismo e o sedentarismo separa as turbas dos agrupamentos urbanos e o xamanismo, a magia e a cura ficam subjulgados e ofuscados pelo renascimento científico. 81 Os turcos, mouros e árabes tinham conhecimento da navegação através da geometria astronômica medidas com pequenas madeiras e mapas estrelares assim conseguiam verificar o ângulo dos astros em relação a Terra, obtendo a latitude e longitude no mar. 89 O Renascimento altera a visão de mundo: a função físico-mecânica toma o lugar da visão mística. Com o italiano Galileu Galilei o espaço deixa de ter a função única de ascender a Deus. Os “corpos” percorrem o espaço vazio sem emoções ou sentimentos, mas observados por um ponto de vista físico - “um olhar de fora” -; o espaço torna-se homogêneo, e sofre a ação de forças puramente físicas. Para Galileu tudo era matéria e vazio, massa e movimento, em um espaço e um tempo puramente físico-euclidianos. A base dessa visão cosmológica – que ainda hoje norteia nossas vidas - foi fundamental para o renascimento, e enterrou a dualidade medieval entre espaço terrestre e espaço celeste. As primeiras postulações do grego Pitágoras sobre a escala musical foram (re)elaboradas pelos seus seguidores, como Zarlino e Galileu: “Zarlino provavelmente percebeu que o pitagorismo não explicava satisfatoriamente as consonâncias musicais; porém, a fim de não ir de encontro a esta concepção, estabeleceu o Senário como uma generalização da idéia pitagórica que "explica”', segundo a idéia de racionalidade para o autor italiano, as consonâncias imperfeitas. A estrutura de pensamento de Pitágoras não difere substancialmente daquela subjacente às idéias de Zarlino. Apesar de suas inovações, esse novo modelo respeita, ainda, a idéia de um sistema musical sustentado por relações de frações simples, cerne do pitagorismo no âmbito dessa arte, ao mesmo tempo que explica as consonâncias, ampliando o domínio matemático subjacente à música. A luz da organização teórica apresentada no capítulo II, poder-se-ia interpretar que o dogmatismo a ritmético de Pitágoras "trunca” regiões da rede até que idéias tais como a concepção de consonância de Galileu "gatilhassem" o desenvolvimento dos conceitos matemático-musicais rumo à construção do conceito de Temperamento. Como analogias implícitas, o momento científico/artístico vivido por Zarlino propiciou-lhe estabelecer modificações na abordagem da ciência/música de então. A matematização, a experimentação e a mecanização, assim como possíveis outras características da Revolução Científica, contribuíram de maneira significativa para a insatisfação produzida pelo Senário de Zarlino, tanto na definição como 90 justificativa da questão da consonância. Com a ressonância desses três novos pontos de vista científicos em distintos campos, o problema da consonância.”82 O Renascimento coloca definitivamente o “olho/mente” sobre os astros através do telescópio, que afeta o calendário e o próprio território. Um “novo mundo” é descoberto: o comércio com as colônias é ampliado e nasce a ciência que tem, como paradigma espacial, os círculos celestes elípticos e o sol ao centro. A matemática e a música assumem novas afinações, consonâncias e temperamentos83. O heliocentrismo destrói a distinção entre terra e céu do período medieval, e coloca a visão moderna de um espaço físico concreto. As cosmologias de Copérnico, Kepler, Galileu e Descartes serão completadas por Newton, com sua teoria de atração entre os corpos: a gravidade. Onde há matéria há gravidade; onde há gravidade deve haver massa. A REVOLUÇÃO NAS CIÊNCIAS E A VISÃO ESPAÇO-TEMPO PÓS- MODERNA O conceito newtoniano de espaço foi questionado por Hubble, que lançou a teoria do dinamismo cósmico, que postula que as estrelas afastam-se da terra a grandes velocidades. Hubble mediu a distância entre as nebulosas e a terra através do brilho das estrelas pulsantes, que funcionam como fita métrica cósmica. Dessa maneira, conseguiu medir a luz avermelhada das nebulosas afastando-se dos planetas, atingindo um diagrama que traçava a expansão cósmica. Essa descoberta despedaçou a visão estática do universo pois, se as galáxias afastam-se umas das 82 Abdounur (1999), p.232. 83 O temperamento é uma acomodação entre os tons das notas musicais, os instrumentos e as escalas musicais. No piano de cauda, por exemplo, as teclas obedecem a uma relação entre tons e semi-tons compatível com as oitavas: por isso a cauda tem a mesma aparência de um gráfico logarítmico. Para que os instrumentos se afinem entre si eles têm que ter o mesmo temperamento musical. 91 outras, elas devem ter tido algum “inicio”, quando provavelmente eram únicas – o Big Bang. Também Einstein, com o “ponto de vista relativo” do universo em movimento e suas equações, colocou em cheque a teoria do cosmo absoluto de Newton. Einstein descobriu que o espaço adquire “dobras” que podem distorcer o tecido temporal. Tais “dobras” estão relacionadas à massa do espaço: quanto mais matéria ele tem, maior sua curvatura; se não há matéria, ele tende a se abrir. Mais recentemente, Stephen Hawking lançou a teoria dos “buracos negros”, que postula que as depressões espaciais “sugam” a matéria; essa teoria foi mais tarde confirmada pelo telescópio espacial Hubble, lançado pela NASA. Hoje, a visão cosmológica vem confirmando teorias formuladas anteriormente sem as lentes do Hubble, que ampliaram significativamente o conhecimento do homem sobre o universo. “A teoria da relatividade se aplicaria em ambos os sentidos. À medida que o campo gravitacional se intensificasse, o espaço-tempo, a matéria e a radiação se concentrariam. À medida que o campo gravitacional se expandisse e se debilitasse, o espaço-tempo se desprenderia e a matéria se espalharia. Hawking conseguiu demonstrar que deve ter havido, no passado distante, uma singularidade que originou o tempo. E se o universo parasse de se expandir e começasse a se contrair, finalmente explodiria e terminaria em uma singularidade -o famoso “big crunch". Já não se tratava do que acontecera antes do começo do universo ou do que iria acontecer depois que ele terminassepois nessas circunstâncias não havia tempo. O espaço também seria nãoexistente, assim como a matéria”84. Heisemberg e Bohr demonstraram que é impossível a um observador medir um objeto sem interferir sobre ele. O objeto não é mais o mesmo depois de aferido. O “real“ é (re)elaborado pela física quântica. Matéria e não-matéria trazem de volta o 84 Strathern (1998b), p.42. 92 dualismo que, agora termodinâmico, mostra o universo em desequilíbrio e irreversível. As teorias da irreversibilidade, da casualidade e da relatividade abalaram a física clássica newtoniana e mostraram que o universo é um sistema entrópico e dinâmico. Cria-se a noção de outras dimensões, e surge uma nova dualidade - muito semelhante àquela da separação entre alma e matéria do período medieval - entre matéria e não-matéria (energia). Iniciamos o hightech ou transmodernismo, com mais de dez dimensões descobertas pelas equações matemáticas e confirmadas pela física moderna. Neutrinos, antimatéria, espaços moleculares, dobras do tempo, flecha do tempo, microdimensões e superforças integram um conjunto de equações da matemática atual e de teorias que vêm ocupando os filósofos, físicos e matemáticos. O mundo de hoje é bem mais complexo do que imaginávamos, mas a alma humana permanece no medievalismo dual, agora em conflito entre o corpo do espaço físicomatemático e seu “duplo eletrônico” do espaço virtual. A melhoria dos sistemas de telepresença e tele-realidade permuta teletopologicamente o espaço real, como afirma Virilio: “Fusão/confusão das aparências transmitidas e das aparências imediatas, luz indireta capaz de suplantar em breve a luz direta, luz artificial da eletricidade, é claro, mas antes de mais e essencialmente luz natural, com as revoluções perceptivas que tal pressupõe... O advento do trajeto instantâneo e ubíquo é, portanto, o advento da luz do tempo, desse tempo intensivo da eletro-óptica que suplanta definitivamente a óptica passiva tradicional. O mais provável, no entanto, é que o estatuto da realidade não resista por muito tempo a esta súbita iluminação dos lugares, dos fatos e dos acontecimentos. De fato, se a melhoria da definição espacial das lentes ópticas das objetivas das câmaras promove a visão dos contrastes e aumenta a luminosidade da imagem habitual, a recente melhoria da definição temporal dos processos de captação de imagem e de transmissão eletrônica aumenta a nitidez, a resolução das imagens videoscópicas. Deste modo, a velocidade audiovisual serve para ver, 93 para ouvir, ou por outras palavras para avançar na luz do tempo real, como a velocidade automóvel dos veículos servia para avançar na extensão do espaço real de um território”85. Segundo o autor, a velocidade audiovisual – agora com a transparênciaaparência eletroóptica - avança no tempo e no espaço com a velocidade do automóvel. A transparência e a luz numérica dos sistemas digitais “iluminam” globalmente os ambientes, criando a ilusão de “falso dia”. Essa angústia “iluminada” desprende o “duplo eletrônico” para outros espaços “proxêmicos”, estabelecendo novos laços com o corpo e, portanto novas identidades. Ocorre que as novas identidades podem estranhar o corpo físico ou “somatizá-lo”, potencializando suas habilidades. A imersão digital promove a “angústia” ou o “distúrbio eletrônico” do corpo, que sente seu peso físico e suas limitações. Da mesma forma, o que acontece ao corpo pode ser transferido para a sociedade, e uma sociedade que se virtualiza rapidamente tende a potencializar a “angústia”. Entretanto, ainda há sociedades e pessoas excluídas da imersão digital, que têm habilidades motoras diferentes e cognições distintas, o que pode levar-nos a uma visão romântica e equivocada, considerando-as atrasadas, mas felizes. O URBANO E A SOCIEDADE TRANSMODERNA Influenciado pela geometria não euclidiana e pelos artistas franceses do cubismo, Marcel Duchamp é o primeiro artista “urbano” preocupado com o ser e o sentir urbanos, em busca da “quarta dimensão”. Refugiado na Nova Iorque do pósguerra, o intelecto sofisticado de Duchamp elabora o Grande Vidro - uma gênese 85 Virilio (1993), p.20. 94 dividida ao meio: na metade superior está a noiva, e na metade inferior está a máquina de solteiros. Inspirado pelo seu errante vagar entre ruas, barracas de feira e vitrines dessa cidade - com vitrines impessoais, grandes anúncios de supermercados, promoções e estrelas do cinema hollywodiano - Duchamp compôs secretamente sua obra, que é o “reflexo” da solidão urbana sob a óptica de um inteligente aristocrata europeu86. No grande vidro está colocadas em “reflexo” o “eu-maquímico”, que pode ser traduzido por urbano-industrial. Essa obra espelha uma sociedade que acelera seus signos sob ruas, feiras, vitrines e supermercados: o esfacelamento do “eu” provinciano e aristocrata para o “eu urbano” solitário, anônimo e dinâmico. Duchamp adotou pseudônimos para colocar sua obra nos museus tradicionais, que odiava . Soube construir, através de seus readymades, uma espécie de anti arte, um signo invertido: uma informação trocada propositalmente, semelhante aos vírus cibernéticos, muito antes de surgir o primeiro computador. A sobreposição de signos diferentes acabava por anular o próprio significado dos objetos que, uma vez 86 Paz (1997), p.31: “...A Noiva despida por seus celibatários é um vidro duplo, de dois metros e setenta centímetros de altura e um metro e setenta centímetros de largura, pintado a óleo e dividido horizontalmente em duas partes, O idênticas por um fio de prumo. Na parte mais alta da metade superior, domínio da Noiva, flutua uma nuvem de cor acinzentada. Via Láctea. Segundo Carrouges também é uma crisálida, forma anterior da Noiva-libélula; Roché, por outro lado, vê na nuvem uma espécie de crocodilo gasoso. A Via Láctea envolve três tabuletas, semelhantes às que se usam nos estádios para marcar a "pontuação" das equipes ou nos aeroportos para avisar a chegada e saída dos aviões. Estas tabuletas são o Letreiro de Cima; sua função consiste em transmitir aos solteiros as descargas da Noiva -seus mandamentos. Para Roché são o "Mistério Original, a Causa das Causas, uma Trindade de caixas vazias". Um pouco abaixo do Letreiro de Cima, na extrema esquerda, aparece a Noiva.t!. uma máquina (agrícola, esclarece Duchamp; alusão a Ceres?}. Também é um esqueleto, um motor, um corpo oscilante no espaço, um inseto terrível, uma encarnação mecânica de Kali e uma alegoria da Assunção da Virgem. Duchamp disse que é a sombra em duas dimensões de um objeto de três dimensões que, por sua vez, é a projeção de um objeto (desconhecido) de quatro dimensões: a sombra, a cópia de uma cópia de uma Idéia. A esta visão platônica se superpõe outra: Lebel pensa que a quarta dimensão designa o instante do abraço carnal durante o qual o par funde todas as realidades em uma -a dimensão erótica. Omito a descrição da complicada morfologia dos órgãos que compõem a Noiva, tais como o emissor e o receptor de ondas dirigido para o grupo de solteiros. Na extrema direita da parte superior há uma zona de pontos: são os disparos dos solteiros. Duchamp não pintou outras duas partes: a roupa da Noiva sobre o fio de prumo e, para o centro e a direita, o Vigilante ou Maquinista da Gravidade. ..” 95 colocados em “contato” com o observador, assumiam uma outra “entropia”, e irreversivelmente corrompiam, a noção de espaço, de museu e de crítica. Duchamp conclui: “A figura engendrada pela linha geratriz, qualquer que seja ela, não pode ser chamada direita ou esquerda do eixo. E há mais: à medida que o eixo gira, o verso e o anverso adotam "uma significação circular". O fenômeno afeta não somente o interior e o exterior, mas o próprio eixo, que deixa de ter "uma aparência unidimensional". O signo da concordância, ao girar sobre si mesmo, anula-se como aparência: entra em si mesmo e resolve-se numa pura possibilidade. f: a outra dimensão. Lugar de convergência do erotismo, da metaironia e da meta física, o signo de concordância, engloba-nos também: é o vidro que nos separa do objeto desejado e que, simultaneamente, torna-o visível. Vidro da alteridade e da identificação: não podemos quebrá-lo nem iludi-lo porque a imagem que nos revela é nossa própria imagem no momento de vê-la vendo. De certo modo, as Possibilidades e a própria aparência dependem de nós e nós delas. Entre os "vários fatos" que, "sob certas leis", condicionam "o instantâneo Estado de Repouso ou Aparência alegórica”, estamos nós observando através do vidro ou dos furos da porta. A mesma oposição/conjunção entre o espectador e a obra, o olho e o objeto olhado, estabelece-se entre a linha que desenha a mão e o signo que traçam o compasso e a régua.Duchamp desvaloriza a Arte como ofício manual em favor da Arte como Idéia mas, por sua vez, a idéia vê-se sem cessar negada pela ironia. Os objetos visuais de Duchamp são a cristalização de uma idéia e sua negação, sua crítica. A ambivalência do vidro, o signo que é separação /união, aparece também neste domínio.”87 Para Werthein, a quarta dimensão de Duchamp fundamenta que a procura por “outras dimensões” está relacionada à crise da física clássica, ao advento das novas geometrias e aos movimentos artísticos sintonizados com essa “procura” espacialtemporal. 87 Paz, op cit., p.93-94. 96 “O pintor que levou esse desafio mais a sério foi Marcel Duchamp. Originalmente associado aos cubistas, Duchamp logo se desviou por suas próprias sendas peripatéticas. Sua obra mais famosa, como a de Malevich, foi também inspirada pela quarta dimensão. The Bride Stripped Bare By Her Bachelor, Even, muito conhecida como The Large Glass, é certamente uma das obras do cânone moderno que suscitam mais reflexão; e desta vez temos extensas notas do artista detalhando o processo de gênese. Especificamente, sabemos que, ao se preparar para esse trabalho, Duchamp se lançou no estudo das geometrias não-euclidiana e hiperdimensional. O resultado final desse esforço foi uma obra complexa, dividida em duas metades distintas: na metade de cima está a noiva, e na de baixo a "máquina de solteiros". Segundo as notas de Duchamp, a noiva seria uma entidade quadridimensional, enquanto os solteiros são tridimensionais. Flutuando acima de seu séquito, essa esposa hiperespacial paira enigmaticamente num mundo só dela”88. Quando a teoria da relatividade incorporou subitamente o conceito de quarta dimensão à realidade física, a especulação artística, literária e mística voltada a ela produziu uma deliciosa sensação de sincronia. Essa harmonização entre matéria e não matéria modificou a visão cósmica do mundo, a física, a matemática, as artes e a filosofia. A busca solitária por outra geometria e - por analogia - por “outra dimensão” faz parte da inquietação de Duchamp, artista da vanguarda intelectual francesa perdido no “reflexo impessoal das vitrines”, no estereótipo das estrelas de sucesso rápido do cinema, nas famosas ruas de Nova Iorque que, ao invés de nomes são identificadas por números, para facilitar sua localização pelo “estrangeiro”. Nasce aqui a crítica ao “gosto retiniano”, contra a marca da “fábrica”, da “linha de montagem”, contra os cânones “esteticamente corretos”, que jogou por terra os pedestais da arte e da crítica mercadológica. 88 Werthein, op cit., p.147. 97 Inicia-se, também, a luta pelo higienicamente identificatório, por uma identidade pessoal contra a corrente de signos acelerados, da “arte sensação” contra a “arte mercadoria”. A nova cognição - gestor das novas vanguardas e das novas tribos - une Duchamp à música (John Cage), à performance, à “vivência da obra” estabelecendo uma multiciplidade de “pontos de vista” do observador-artista. A obra de arte passa do retiniano (pintura) para a performance, em que os objetos são vivenciados dentro de seu contexto neutro, sem a repetição degradante do “estilo”. “A repetição do ato acarreta uma degradação imediata, uma recaída no gosto. ( Algo que esquecem com freqüência os imitadores. ) Desalojado, fora de seu contexto original -a utilidade, a propaganda ou o adorno – o ready-made perde bruscamente todo significado e se transforma em um objeto vazio, em coisa em bruto. Só por um instante: todas as coisas manipuladas pelo homem têm a fatal tendência a emitir sentido. Mal se instalam em sua nova hierarquia, o prego e a prancha sofrem uma invisível transformação e se tornam objetos de contemplação, estudo ou irritação. Daí a necessidade de "retificar" o readymade: a injeção de ironia ajuda-o a preservar o seu anonimato e neutralidade”89. Ora, o que o urbano faz é reduzir todos a um grau zero de anonimato, à neutralidade hierárquica dos “bens sucedidos”, dos que “se deram bem”. A “retificação” do ready-made é uma busca pela não-significação neutra, carregada de um significado oculto, ou seja, a busca de um “outro olhar”, uma nova perspectiva, uma nova definição espacial-temporal. Justifica-se, dessa forma, a busca por outras dimensões e por uma nova geometria. Esse “gestor” do novo olhar-identificatário estará presente nas vanguardas pós-modernistas, cuja produção artística incorpora novos pontos de vista, inclusive o do observador. Só o humor refinado e sutil de Duchamp e a música aleatória de Cage poderiam romper com a pintura e a música de 89 Paz, op. cit., p.24. 98 deleite, abrindo caminho para o signo acelerado, extracotidiano e de difícil intelecção: a performance. Esse rompimento com o temperamento e a harmonia musical e pictórica induz ao retorno do xamanismo e do tribalismo. “Na música, o público escuta o intérprete, que por sua vez escuta o compositor, que escuta, ele mesmo, os sons. Mas ouvir os sons é finalmente o que o público está fazendo. E se fizermos um curto-circuito? Fazendo música de maneira a simplesmente ouvir os sons sem escrevê-los, sem seguir as regras da justaposição e da superposição de sons exigidas pelos próceres da música. Compor a partir da própria qualidade de cada som, e não das relações que eles acabam criando uns com os outros, pode ser uma alternativa estimulante... Na música tradicional ocidental, as durações são interpretadas como múltiplos ou frações numéricas. É um espelho da teoria dos harmônicos, que deu nascimento a valores racionais, suscetíveis de serem medidos e controlados. Nas músicas não métricas (Cage, Feldman, Wolf o fizeram em 1950), durações não devem ser controladas, e sim os sons escutados, sem ter de se pensar que um som está ligado a outro, seja por relações lógicas ou hierárquicas, seja por linhas estruturais concernentes ao que se segue ou ao que lhe precede. Não será melhor simplesmente “entrar" no som e deixá-lo ter sua própria duração?”90. O vagar errante sob a aceleração dos signos de Duchamp em solo estrangeiro é o mesmo das tribos urbanas. O não ajustamento e o vagar dos migrantes nordestinos em São Paulo submetem-nos à solidão, à falta dos amigos e à pressão da cidade urbana cosmopolita e sua velocidade. Embora a obra de Duchamp tenha sido realizada solitariamente, abriu caminho às vanguardas, levando as artes plásticas a unirem-se à música casual e à performance. O pós-guerra em Nova Iorque, com Duchamp, permitiu a aproximação entre a propaganda e a arte, entre a performance artística e a política, entre a música e o corpo em “angústia” e dinâmico. A performance é uma maneira que o indivíduo (ou o grupo) tem de se fazer visível e impor sua presença ao anonimato da cidade. Os grupos urbanos sabem muito bem territorializar suas roupas, modos, gírias e mostrá-los de maneira imperativa ao “outro”, que contempla tanto as outras tribos como a própria cidade, promovendo um diálogo sem mediações com os instintos viscerais: o corpo. 90 Silva (1996), p.76. 99 A FORMAÇÃO DAS TRIBOS E DOS GUETOS URBANOS As cidades sedentárias confinam e protegem ao mesmo tempo. Com a urbanização e os novos meios de comunicação, a velocidade, o tempo e o espaço urbanos são modificados. Ocorrem a atomização e a individualização da sociedade que há muito tempo age egocentricamente, induzida pela cultura de massa e pelo consumo de produtos alienantes. Um movimento contrário faz com que surjam grandes centros comerciais nos quais, individualmente, sentimos a presença dos outros: Aliás é possível que os centros comerciais pós-modemos tenham assumido um modo de descarregar essa tensão. Esses centros não exercem uma função simplesmente utilitária. Certamente vai-se a eles para fazer compras, mas não se deixa de ir lá também para trocar símbolos. Uma análise do fórum des Halles, em Paris, ressalta bem essa dimensão simbólica. Isso merece tanto mais atenção por se tratar de um espaço matricial, ainda mais por ser um subterrâneo, um refúgio e um lugar de exílio para o nômade pós-modemo. Através dos objetos expostos como espetáculos, do ambiente específico que criam, e certamente dos encontros, ou simplesmente do roçar de corpos que aí se dá, esse nômade vive uma espécie de embriaguez: a da perda de si num conjunto quase cósmico. Em seu sentido mais forte, esse espaço urbano, síntese da cidade, resumo do mundo, é um perfeito cadinho: lugar onde se cria raiz e a partir do qual a pessoa cresce e se evade. Lugar onde se expressa a empatia em relação aos outros, lugar de onde se escapa, imaginariamente, para atingir a alteridade absoluta”91. Os jovens, revoltados pela falta de espaços em que possam desenvolver atividades de lazer cultural e pela feroz vigilância dos pais 92, muitas vezes apelam 91 Maffesoli (2001), p.89. 92 Tappscott em A Geração Net (1999), fala da diminuição do espaço para brincadeiras: “...À medida que aumenta a densidade populacional, o espaço livre para as crianças diminui. Há um século, o típico menino americano tinha um espaço médio para brincar de 15 quilômetros quadrados de florestas ou pradaria. O espaço vem diminuindo a um ritmo constante ao longo das décadas.... .... Os meninos parecem ser mais afetados por essa diminuição de espaço do que as meninas. “Os folguedos das meninas tradicionalmente sempre ocorrem sob supervisão materna e são direcionados ao desenvolvimento de habilidades domésticas femininas” diz o Prof. Jenkins... ...Grande parte do desenvolvimento dos meninos como indivíduos dependia 100 para o radicalismo, assumindo comportamentos coletivos e estereotipados que chocam, mutilam, segregam e discriminam. O espaço urbano, sempre constituído de signos acelerados, adota e recolhe as tribos, as hordas de moribundos, os sem-teto, os camelôs, os condomínios, as favelas, os mocambos, os desempregados e os excluídos. Os excluídos e seus patrões constituem as cidades sedentárias: um corpo protegido, uma cultura e uma moeda a se fortificar e espalhar suas fronteiras. E, nesses mesmo espaço surgem as tribos urbanas, constituídas por pequenos grupos cujos integrantes têm afinidades, como o comportamento anômalo e as tendências nômades e polarizantes. O fato é que as cidades incorporam vários “quotidianos”, que acabam por formar um mosaico urbano de tendências variadas. Essas tendências moldam um corpo visível em seus cidadãos, e os quotidianos são trocados onde há comunicação, convergências. Para Heller (2000), a vida quotidiana apóia-se nos conceitos de espontaneidade, pragmatismo, economicismo, andologia93, precedentes, juízo de atividades que suas mães desaprovassem e que eles pudessem fazer sem o conhecimentos delas. Agora, eles estão jogando videogames na sala de estar e suas mães sabem de tudo....” (p.107). 93 Andologia Agnes Heller é a movimentação da individualidade relativa e autônoma do indivíduo na sociedade: “o indivíduo (a individualidade) contém tanto a particularidade quanto o humano-genérico que funciona consciente e inconscientemente no homem. Mas o indivíduo é um ser singular que se encontra em relação com sua própria individualidade particular e com sua própria genericidade humana; e, nele, tornam-se conscientes ambos os elementos. É comum a toda individualidade a escolha relativamente livre (autônoma) dos .elementos genéricos e particulares; mas, nessa formulação, deve-se sublinhar igualmente os termos "relativamente" .Temos ainda de acrescentar que o grau de individualidade pode variar. O homem singular não é pura e simplesmente indivíduo, no sentido aludido; nas condições da manipulação social e da alienação, ele se vai fragmentando cada vez mais "em seus papéis". O desenvolvimento do indivíduo é antes de mais nada -mas de nenhum modo exclusivamente -função de sua liberdade fática ou de suas possibilidades de liberdade. A explicitação dessas possibilidades de liberdade origina,em maior ou menor medida, a unidade do indivíduo, a "aliança" de particularidade e genericidade para produzir uma individualidade unitária. Quanto mais unitária for essa individualidade (pois essa unidade, naturalmente, é apenas tendência, mais ou menos forte, mais ou menos consciente , tanto mais rapidamente deixa de ser aquela muda união vital do genérico e do particular a forma característica da inteira vida. A condição ontológico-social desse resultado é um relaxamento da relação entre a comunidade portadora do humanogenérico e o próprio indivíduo, o qual -já enquanto indivíduo -dispõe de um certo âmbito de movimento no 101 provisório, ultrageneraliazação, mímese e entonação. Vejamos o que a autora nos traz sobre a mímese e a entonação: “Não há vida cotidiana sem imitação. Na assimilação do sistema consuetudinário, jamais procedemos meramente "segundo preceitos", mas imitamos os outros; sem mimese, nem o trabalho nem o intercâmbio seriam possíveis. Como sempre, o problema reside em saber se somos capazes de produzir um campo de liberdade individual de movimentos no interior da mimese, ou, em caso extremo, de deixar de lado completamente os costumes miméticos e configurar novas atitudes. Naturalmente, existem na vida cotidiana setores nos quais não é necessária a individualização da mimese, bem como épocas nas quais ela se toma supérflua; ademais, os tipos e os graus de individualização são necessariamente diversos nas várias esferas vitais, nas diferentes épocas e situações. A entonação tem uma grande importância na vida cotidiana, tanto na configuração de nosso tipo de atividade e de pensamento quanto na avaliação dos outros, na comunicação, etc. O aparecimento de um indivíduo em dado meio "dá o tom" do sujeito em questão, produz uma atmosfera tonal específica em torno dele e que continua depois a envolvê-lo.94” Desta forma, a identificação feita pela repetição, pela imitação e pela entonação induzem a polarização, fechando um grupo que “se vê” em conjunto. A polarização é constituída pelo somatório de “eus”, que formam elos que podem assumir caráter identificatório, como arte e moda, comportamentos agressivos e violentos, gírias e comportamentos fechados, comandos, galeras e outras tribos. Vejamos como Martin Heidegger trata a questão do ser-estar-existencial com seu conceito de “débito”: qual pode escolher sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no interior das possibilidades dadas. A conseqüência disso é uma certa distância, graças à qual o homem pode construir uma relação com sua própria comunidade, bem como uma relação con1 sua própria particularidade vivida enquanto "dado" relativo”(p.22). 94 Heller (2000), p.36. 102 “De imediato, a compreensão cotidiana toma o “ser e estar” no sentido de uma “dívida”, de “ter o rabo preso com alguém”. Deve-se restituir a outrem algo a que ele tem direito. Esse “estar em débito” no sentido de “ter dívidas” é um modo de ser-com os outros no âmbito da ocupação são também o retirar, o tomar emprestado, reter, roubar, ou seja, de algum modo, não satisfazer o direito de posse dos outros. O ser e estar em débito dessa natureza refere-se ao que é passível de ocupação” 95. Na polarização urbana motivada pela “angústia” os grupos mantêm-se por meio de “dívidas”, “compromissos” e “tarefas” que são cobradas e nunca se findam, mantendo o indivíduo preso à tribo. Dessa forma, sempre há “o que poderia ser”, distante do “real”. O conceito de débito torna-se ontológico e justifica a existência, conforme postula Heidegger. O deslocamento do “ser-fundamento de um nada” faz com que o reconhecimento da existência seja justificado pela carência do “eu” espelhado na “exigência do outro”, que não é a sua. Esse “não-seu” motiva as tribos a uma busca de identidade através do primordial. As tribos se formam deslocadas do território-instituído e despatriadas, buscam um solo materno atrás e o vetor cultural que as identifique é procurado no passado. O território da tribo por nós estudada - calcada na música percussiva - é a “Terra Mãe”. Esse processo de inversão urbana é um fator de polarização. A inversão urbana que se iniciou com Duchamp contesta de forma “angustiada” o sistema que a gerou. A arte moderna, por princípio, contesta e se manifesta contra a mercadoria, contra o sistema, contra o próprio corpo. As performances pós-modernas são escatológicas e viscerais. No meio urbano o processo é o mesmo: a formação dos guetos e das tribos está ligada à rebeldia e à contestação da ordem estabelecida, à busca por outros estados cognitivos, que aliviem a “angústia” e possam preencher o 95 Heidegger (1993), p.69. 103 cotidiano. Vimos, de Pitágoras a Duchamp, que o aprofundamento da geometria e da matemática leva ao aprofundamento estético que explica o mundo percebido. Esse fato sutil motivou-nos a analisar a questão da “busca às raízes” dos grupos urbanos ligados ao maracatu e à música percussiva. Comparando essas tendências com a música dos grupos das raves, identificamos um vetor cultural ligado à música tribal xamânica, que induz e provoca êxtases por causa do ritmo, do timbre, das dissonâncias, do contraste entre sons graves e agudos e da repetição. Assim, elaboramos um quadro sonoro comparativo, adiante apresentado, para identificar as relações entre o transe e a música. 104 CAPÍTULO 3 O GRUPO URBANO BAQUE BOLADO E O TRANSE INFLUÊNCIAS E RAÍZES DO TRANSE XAMÂNICO POSSESSIVO Nos capítulos anteriores vimos a relações espaciais-temporais e as implicações da consonância e da geometria das turbas até a transmodernidade. Observamos o dualismo medieval da “alma”, e como a humanidade chegou ao materialismo. Debruçamo-nos sobre a “angústia” urbana, e vimos como o corpo se une aos grupos para encontrar no “outro” a sua identidade, estabelecendo o “duplo” em tribo. Neste capítulo tentaremos entender como o xamanismo vem sendo retomado pelas tribos urbanas na transmodernidade. Para melhor compreender o transe no grupo Baque Bolado, é necessário conhecer a influência africana, cuja cultura tem forte ligação com as montanhas Atlas, localizadas no norte do Marrocos. A vinda forçada de escravos africanos trazidos por portugueses, ingleses, espanhóis e franceses às Américas durante o período colonial - garantiu a influência da África sobre o transe possessivo no Brasil e no Caribe. As etnias africanas eram muitas, e foram dispersas ao longo da costa Atlântica. Alguns escravos eram seguidores do islamismo, e tentaram manter e fortificar suas crenças no Brasil. A revolta dos malês, que ocorreu em Salvador, é um 105 exemplo de rebelião de escravos de cultura islâmica. O sufismo96 é uma das correntes do islamismo. Originário da Ásia Central, disseminou-se pelas antigas rotas das turbas nômades do Egito até norte da África (Argélia, Tunísa, Líbia e Marrocos). Após trocas, naufrágios, saques e guerras, as populações que seguiam essa linha foram trazidas às terras atlânticas no período colonial. Dentre as práticas sufistas está a música que, pela sua repetibilidade e pelos giros hipnóticos dos derviches, conduz ao transe . Como anteriormente mencionamos, as músicas, cantos, danças e rituais que induzem ao êxtase acompanharam as turbas nômades, no tribalismo e em algumas religiões anteriores ao cristianismo, que até hoje persistem nas culturas chinesa, japonesa, indiana e tibetana. Tais religiões – como o hinduísmo, p islamismo e o budismo97, contemplam inúmeras ramificações. Dentre as correntes do islamismo há aquela dos sufistas derviches 98 (os vermelhos)99 das regiões desérticas da Ásia Central, que desenvolveram o treinamento da mente. Para eles, as verdades e realidades espirituais eram conhecidas com a alteração dos estados de consciência, obtida por meio da intuição, das parábolas, dos versos e das músicas e danças entoadas e recitadas de maneira repetitiva e ritualística. A sabedoria sufi busca a purificação do “corpo energético”, 96 Sufismo - o nome sufi deriva da palavra árabe sáf, "puro". Os sufis foram chamados por insistirem na busca da purificação e pela iluminação. A filosofia sufi é transmitida pela recitação, pela dança e pela música iniciática, que tem função purificadora e é utilizada como meio de chegar a Deus. 97 O budismo é um sistema ético, religioso e filosófico fundado pelo príncipe hindu Sidarta Gautama (563 a.C. 483 a.C.), o Buda, por volta do século VI a.C. O budismo ensina como superar o sofrimento e atingir o nirvana (estado total de paz e plenitude) por meio da disciplina mental e de uma forma correta de vida. Em parte, o budismo pode ser considerado uma rebelião contra certas características do hinduísmo. 98 Para os derviches sufistas, a meditação se dá por meio da dança e do giro. Essa corrente remonta ao tempo de Maomé. Para os sufistas, a música e os giros são muito importantes, no que se assemelham aos hassids, uma seita judaica. 99 Para os sufistas, a conotação vermelha tem duplo significado: em relação ao manto de carneiro ou ao sacrifício desses animais nos rituais. 106 libertando o corpo físico do peso dos pensamentos ruins, do terreno impuro e dos costumes cotidianos levianos. No século XIII, os sufistas “emprestaram” do budistas da Ásia Central o Zikr100. O zikr é um rito repetitivo e invocação do “Perdão de Deus” ensinado pelo profeta Maomé do Islamismo, onde as rezas são repetição diárias (70 vezes ao dia). O Muláh ou Mestre utiliza palavras mágicas no zikr; essas palavras são mantidas em segredo, e repetidas em voz baixa e entoadas mentalmente. Os versos, palavras ou frases rítmicas são relacionadas a uma cor específica, a um movimento físico e a uma imagem mental dos centros espirituais do corpo: o coração, o peito, o umbigo e a cabeça. Assim, por exemplo, sentado com as pernas cruzadas enquanto pronuncia as palavras, o Muláh inclina a cabeça à direita, depois declina-a na direção do umbigo, e inclina-a à esquerda, para o centro do coração, libertando toda a energia retida nesse centro; nesse momento profere o nome divino...O som se parece com “hum” (Allah,hu, huwa, “Ele”). Há muitos tipos de zikr, mas os principais são o zikr falado ou jahri e o zikr silencioso ou khafi. O zikr sofreu forte oposição do mundo islâmico radical, e foi proibido em vários países. Originou-se nas regiões de língua turca, como a Turquia, o Uzbequistão, o Tadjikstão, o Kasaquistão e o norte do Afeganistão. Recentemente, na Kabul “libertada” pela aliança do Norte, o zikr voltou a ser entoado livremente pelos sufistas em rituais de meditação mostrados ao mundo, ao vivo, pela rede de televisão CNN (Canal de TV americano de alcance Global). Pela etimologia das palavras, é possível encontrar pistas do movimento dessas turbas das montanhas Atlas do norte da África ao mar, conforme nos mostra Souza 100 A palavra Zikr significa chamar, referir-se a Deus de forma a perdoar-se ou purificar-se. 107 “Por isso que o nome Áfricá termina pelo dissílabo Rica (Véo ), que se liga às significações de Nebula e Obumbratio (Nuvem-Escuridão ), entre as quais se destaca a de bagatelas, ninharias sonoras (Nebulae). Se examinarmos o nome dado à África pelos Turcos, Efrikia, veremos que ele significa principalmente limpar, esfregando, como exatamente praticam aqueles colonizadores ferozes num mundo impuro e habitado por eunucos (castrare-reparare-redere). O termo Frik (de Efrikia), prende-se a Frigor-calafrio, e a civilização muçulmana na África pode ser comparada ao frio sintomático das febres palustres que atacam por acessos, deixando o organismo debilitado e cansado. Motio-Calafrio dá, contudo, a idéia de movimento, agitação que degrada e abate em vez de virilizar e enaltecer; enquanto Horror-Calafrio fala de alguma coisa que faz tremer, como o temor religioso associado ao espanto produzido pelo som estridente das trombetas. A terminação IA (de Efrikia) designa uma das filhas de Atlas como responsável dessa degradação de uma raça jovem; mas, o que ninguém crerá sob palavra, os autores do crime assinalado são originários do Continente africano, e para ele deveriam regredir, como os suportes caucásicos da Europa. O pavilhão turco da cor de sangue exibe a imagem de uma estrela crescente. Samguis (sangue) diz o mesmo que gérmen, Origo, Stirps (procedência, origem, raça) e, portanto, prende os muçulmanos da Europa e da Ásia aos vermelhos da África designados pelo crescente (Luna Acuta). Luna-Lua diz o mesmo que noite, trevas, ignorância (Nos, Tenebra); e a idéia traduzida por Acuta fala da forma pontuda, qual a da África, da cor viva como a da bandeira; do frio agudo e penetrante como das febres palustres (Penetrantes). Logo, o termo Frik se ajusta perfeitamente ao conceito enunciado por Luna Acuta (Crescente) o qual, por sua vez, se trata estreitamente como de Genisis-Estrele, também expresso por Semina-Origem”.101 O sufistas são um dos braços mais importantes do islamismo. A respiração, as melodias, as danças e o conteúdo dos textos sagrados formam uma vasta filosofia com poderes curativos e purificadores - pouco conhecida no ocidente. Por sua posição política de país “neutro” - semelhante à da Suíça - em relação aos conflitos e guerras do mundo árabe, e também por abrigar as montanhas Atlas, onde o isolamento físico e cultural é garantido, O Marrocos conseguiu manter a concentração de várias etnias e rituais, com liberdade de expressão e convivência 101 Souza (1997), p.33-34. 108 pacífica. O festival de música e poesia mística sufi reúne durante dez dias anualmente, em Fez (Marrocos), diferentes “escolas” e culturas. A poesia e os ritmos entoados nos rituais facilitam o estado de transe e o êxtase. Os movimentos e a música do giro hipnótico dos derviches sufistas provoca alterações em seus estados internos de consciência, que levam ao êxtase. A tribo Gnaua (Gnawa) apresenta um sincretismo religioso semelhante ao brasileiro. Descendentes das fraternidades sufis, ergueram os primeiros templos e santuários em Maghrib (Tunísia). Os Gnawa têm uma ligação mais próxima com a cura do que com o perdão e a purificação sufis, e sacrificam animais. Na Argélia, mais especificamente em Constantine, eles são conhecido como Usfan ou escravos, e na Tunísia são chamados Stambali ou Sudani. Em Djerba (Tunísia) e Tripoli (Líbia), os Gnawa estão desaparecendo rapidamente. Por outro lado, comunidades de Gnawa ainda são relativamente numerosas no Marrocos, tanto no centro do país - em Meknes, Fez e até mesmo em Casablanca - quanto no sul - em Essaouira, Marrakesh, Tafilalet e Tamesloht. Sua música pentafônica é conhecida por encantadores de cobras, curandeiros e pelo povo Berber. O Hãdra102 é um ritual de cura semelhante ao candomblé brasileiro e caribenho com sacrifícios de animais, música, êxtase e possessões O sintir (alaúde longo de três cordas e construído com pele de camelo), o qarkabeb (castanhola metálica grande) e o tbel ou ganga (tambor de lado grande e pele de cabra) são alguns dos instrumentos ritualísticos Gnawa. Em suas manifestações, os Gnawa usam tecidos de cores brilhantes e vibrantes, fazem movimentos acrobáticos e mantêm, durante todo o tempo, um ritmo hipnótico 102 Cerimônia dos Gnawa de possessão realizada anualmente após o do Ramadan (período islâmico de reclusão, jejum e orações). 109 dirigido por um único canto forte - de mulher ou homem - e seus harmônicos. Esse ordenamento ritualístico apresenta evidências mais fortes de ligação entre as manifestações de origem sufi, do gnawa marroquino e do candomblé brasileiro. As semelhanças Figura 7. Hassan Hakmoun com seu sintir são físicas, movimentos repetitivos semelhantes à convulsão epilética, sonoras (timbres agudos e graves a mais de 130bpm), afinação em quinta e terças. O sintir é um instrumento ritualístico marroquino de som grave e da mesma família da viola. Com as invasões mouras, o sul da Europa assimilou a cultura árabe, e a constituição do sintir foi modificada: a caixa de ressonância passou a ser revestida de madeira, e não mais pele de camelo. Atualmente o músico étnico Hassan Hakmoun difunde o som do antigo sintir no ocidente. Na África o sintir tem outros instrumentos aparentados como as harpas (de Figura 8 Rabeca Marroquina( 4 cordas) poucas cordas) e berimbaus (uma única corda). A harpa de três cordas é utilizada, ainda hoje, pelos pigmeus Bayaka. Também o alaúde ibérico – que originou o violino - pode ser um “descendente” do sintir. O Brasil sofreu duplamente a influência árabe: pelos portugueses e pelos escravos Figura 9. Mondumé harpa africanos (malês). Aqui foram desenvolvidos diferentes Bayaka (pygmeus) tipos de violas 110 devido à criatividade e às dificuldades técnicas de obtenção de instrumentos e materiais adequados para a confecção dos instrumentos musicais. Também verificamos que os instrumentos utilizados pelos berberes apresentam grande semelhança construtiva, e sonora com os instrumentos brasileiros utilizados nos terreiros e nas danças folclóricas populares do nordeste brasileiro. Soler (1995) explica a história e as influências que deram versatilidade à viola: “A vihuela, ou viola como era chamada em terras galaico-portuguesas, distingue-se do alaúde apenas no formato da caixa: em lugar do fundo bojudo, de „meia pera‟, ela apresenta dois tampos planos, um inferior e outro superior, interligados por altas ilhargas. Estes tampos, além do mais, não têm forma oval, como acontece com os do alaúde, senão apresentam um estreitamento central, uma cintura quase idêntica a do atual violão. Este tipo de viola, já perfeitamente definido e muito popular no Portugal renascentista, é o que veio para o sertão e o que é conhecido, hoje, com o nome de „viola sertaneja‟. Com idêntico conjunto de cordas e idêntica afinação que a antiga. Tão similar, aliás, que qualquer música escrita para "vihuela" ou alaúde nos séculos XVI e XVIII, na Europa -o repertório é muito grande- pode ser tocada na viola sertaneja sem qualquer adaptação prévia. Uma perfeita sobrevivência, neste caso também, das deixas musicais arábico-ibéricas: perdidas lá, conservadas aqui. Os instrumentos de cordas friccionadas com um arco eram desconhecidos na Europa, até os árabes introduzirem o rabab (ou rebab), que eles adotaram dos persas. Muito parecido ao primitivo alaúde, o arcaico modelo do rabab apresentava a caixa piriforme e vinha coberto por um couro, na parte anterior. Mais tarde, o couro foi também substituído por uma peça de madeira fina. Constava de duas cordas, afinadas em quinta e tocava-se encostado no chão mediante um espigão ”103. 103 Soler (1995), p. 108. 111 As violas brasileiras apresentam inúmeras formas, número de cordas e processos construtivos diferenciados, resultando em várias afinações104 e sonoridades. A Viola de Cocho do Mato Grosso regrediu até mesmo no que concerne à construção: é Figura 10. Viola de Cocho sem furo e viola Caipira feita de um único tronco cavado, e perdeu inclusive o furo por onde o som se propaga ao ambiente - os pantaneiros descobriram uma madeira porosa (figueira), que eliminava a necessidade do furo evitando, assim, a entrada de bichos no interior do instrumento. Entretanto, as dificuldades de execução fizeram com que a viola tradicional voltasse a ser utilizada, e sua sonoridade foi mantida graças à grande variedade de madeiras encontradas no pantanal. A viola nordestina sofreu processo semelhante, preservando grande parte das características da viola portuguesa. O mesmo ocorre com as castanholas de madeira espanholas, que lembram o qarkabeb (castanhola metálica dos Gnawa). Pretendemos tão somente assinalar como os instrumentos podem guardar muitas características sonoras e musicais independentemente da evolução, do tempo, das culturas que os assimilaram e incorporaram. As afinações das violas e os tambores são um assunto delicado, todos as afinam “de ouvido” e, no Brasil, esse procedimento é transmitido oralmente: infelizmente não há partituras ou mecanismos que auxiliem a compreender a relação entre a afinação e a consonância musical. Encontramos fortíssimas evidências da relação entre os ritmos, as escalas, os instrumentos e o transe. Essa relação advém das influências culturais dos índios, dos escravos e dos portugueses, sinalizando a riqueza da formação sincrética religiosa e 104 A afinação dos instrumentos tem uma relação direta com a voz cantada. No Brasil encontramos cerca de 16 112 cultural brasileira. Exemplos vivos dessas sedimentações e transformações são a Festa de Reis, a Festa do Divino (Cururu e Siriri), os hinários do Santo Daime, o Tambor de Mina, o Cavalo Marinho e o Bumba-meu-Boi, além das festas “profanas” do carnaval, como os Maracatus, o Samba de Roda, a Timbalada, os Trios Elétricos, a Axé-Music, o Frevo e a Capoeira. O número de participantes cresce a cada ano, e observa-se a marcada ligação que essas festas têm com o transe coletivo, popular, arrastando multidões às ruas. Também nos foi possível constatar a forte influência da cultura maranhense no transe urbano paulistano: o músico Tião Carvalho, do grupo Cupuaçu105, mantém a tradição das festas do Bumba-meu-boi no Morro do Querosene, em São Paulo. O xamanisno maranhense, além de influenciar diferentes ritmos brasileiros, mantém em funcionamento os terreiros mais antigos do Brasil. Durante esta pesquisa visitamos Pai Euclides, e pudemos ver de perto a influência e a força do transe dos encantados na comunidade de São Luiz. Os voduns106, como mostra o trabalho de Araújo (1999), influenciaram o xamanismo cabloco da Amazônia pelo seu vasto conhecimento das plantas e do transe alucinatório ligado à cura: tipos diferentes de afinações de acordo com os sotaques das regiões brasileiras. 105 Segundo o músico André Bueno o grupo já conta com vinte anos de existência. Criado pelo músico e compositor maranhense Tião Carvalho, quando se radicou em São Paulo, e era professor de ritmos e danças no Teatro Vento Forte. A partir de 1990 o grupo inicia o seu Bumba-meu-Boi atraindo outros maranhenses radicados na cidade. Em 1997 o grupo lançou CD com toadas de Bumba-meu-Boi e em 2001 André lança, pela editora Nankin, o livro CD Bumba-Boi Maranhense em São Paulo. 106 Prandi (1997), p.110: “Além dos orixás, outras divindades foram trazidas da África pelos escravos. Os inquices dos povos bantos, praticamente esquecidos e substituídos pelos orixás nagôs nos candomblés bantos, e os voduns originários de povos euê-fom, de região do antigo Daomé, hoje república do Benim, designados jejes no Brasil. O culto aos voduns sobreviveu na Bahia e no Maranhão. Em Salvador e cidades do Recôncavo, a religião dos voduns é denominada candomblé jeje-mahim. No Maranhão recebeu o nome de tambor-de-mina. Na Bahia é pequeno o número de grupos de culto jeje em comparação com o número de casas de orixá. No Maranhão os voduns estão presentes em praticamente todas as casas de culto afrobrasileiro e os orixás ali cultuados nas casas de vodum são igualmente chamados de voduns, às vezes com a referência de que se trata de um vodum nagô e não jeje.” 113 “Irineu Serra e Sebastião Mota viveram na floresta tropical amazônica e basearam-se nos próprios conhecimentos dos nordestinos de seu tempo, para elaborar lições sobre o cotidiano com a floresta, com a natureza. Lições estudadas nos rituais com a bebida oaska, pois a natureza, para os daimístas é divina e sagrada. lrineu Serra começou a receber hinos, poemas, depois dos 40 anos. Quando morreu, aos 79 anos, tinha recebido 132 hinos que formam os hinários "O Cruzeiro" e a "Santa Missa". Ele construiu a doutrina do Santo Daime: hinos, bailados, música, vestimenta, ritualística, normas de conduta. Uma construção que soube fazer coletivamente. Criou um conjunto de conhecimento que é resultado de sua herança cultural afro-maranhense, influências ameríndias; catolicismo, judaísmo e outras formas de hibridações. Ele nasceu em São Vicente Ferret, município do interior do Maranhão, em 15 de dezembro de 1892. Filho de ex-escravos pertencia a uma família que cultuava os orixás, o Tambor de Mina, que ali no Maranhão sofre forte influência do catolicismo. 0 culto aos orixás foi para a cultura negra, durante o 300 anos de escravidão na América, uma espécie de laço comunitário secreto: a marca religiosa comum a todas as nações negras era o voodoo. As formas rituais do voodoo se caracterizam pela utilização da dança, da percussão e do canto como técnicas que abrem caminho para os transes, possessões e incorporações de entidades divinas. Segundo Sérgio Ferreti (1995), em estudo sobre culto aos Orixás e Tambor de Mina, citando Chester Gabriel (p. 146-149), temos diversas informações sobre migrações de nordestinos e de terreiros do culto aos orixás para a Amazônia. Ferreti cita Irineu Serra. Vejamos: "um negro maranhense de São Vicente Ferret, lrineu Serra, que se diz ter freqüentado casas de tambor de mina, migrou para o Acre, por volta de 1910, e a partir da década de 30 foi o iniciador da doutrina do Santo D'Aime, hoje muito divulgada em vários regiões do país". (FERRETI-1995, p. 122). lrineu Serra foi para o Acre atraído pela possibilidade de enriquecer. Como de resto, pensamos, a maioria dos nordestinos. Trabalha muito tempo como seringueiro na fronteira com a Bolívia. Foi nestas condições que tomou contato com a bebida oaska e com o xamanismo caboclo amazônico”107 107 Araujo, op. cit., p.88-89. 114 Entretanto, assim como no que concerne aos instrumentos musicais brasileiros, a investigação aprofundada das plantas de poder e de sua ação sobre o transe excedem o curto espaço desta tese. Os conhecimentos iniciáticos requerem no mínimo dez anos, pois são transmitidos de forma oral e participativa nos terreiros. A RELAÇÃO ENTRE AS TRIBOS E O TERRITÓRIO URBANO São Paulo abriga vários espaços destinados a festas populares, e bairros cujos calendários contemplam datas festivas, das quais a comunidade participa ativamente, preparando a decoração, as roupas e o cardápio com meses de antecedência. A Bela Vista (Bixiga), por exemplo é um bairro - situado na região central da cidade – originariamente marcado pela presença dos italianos que imigraram para o Brasil no início do século. Na festa de Nossa Senhora da Acquirupita as ruas são tomadas por barracas e danças: a população prepara essa festa durante todo o ano. Assim, a igreja católica mantém um forte vínculo com as comunidades em que se aloca, promovendo eventos calcados no calendário religioso que, a cada ano, ganham maior número de participantes e, conseqüentemente, maior divulgação pela mídia. A partir da década de quarenta, as famílias de imigrantes italianos que fugiram da guerra – ou da exploração a que eram submetidas na região agrária do Estado de São Paulo – fixaram-se em pequenas casas assobradadas, e estabeleceram pequenos comércios, na maioria constituídos por restaurantes e armazéns, nos quais ainda hoje é possível encontrar pães italianos e vinhos de boa qualidade. Em contrapartida, a cidade é relativamente pobre de festas - religiosas ou profanas – ligadas às culturas africana e indígena. O carnaval paulistano – que, 115 originariamente era constituído por blocos de “rua” (chamados de “sujos” numa miscelânea sincrética que abrigava brancos, mulatos e afrodescendentes sob ritmos e atitudes característicos da metrópole) – “incorporou” (mas não tem poder de fogo para tanto) os movimentos dos estados que mais fortemente sofreram a influência africana, como Rio de Janeiro, Recife ou Bahia. Assim, e dadas as suas características específicas, resume-se a alguns blocos – talvez uma tentativa de fazer (re)surgir os carnavais de outrora – e muitas escolas de samba – que, em um confronto, perdem, de longe, para aquelas de terceira linha do Rio de Janeiro. Outro bairro paulistano formado por italianos – que haviam imigrado para trabalhar na lavoura (interior do Estado de São Paulo) - e portugueses comerciantes é a Vila Madalena. Inicialmente considerado periferia da cidade, abrigava os imigrantes mais pobres, e foi influenciado pelas culturas que o formaram. Essas famílias adquiriram pequenos lotes em ruas íngremes, e construíram sobrados cujo andar térreo era ocupado pelos armazéns que lhes garantiam a sobrevivência. Atualmente o bairro é conhecido pelos inúmeros bares e restaurantes que abriga (a boemia). Em 1968, devido à invasão do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP) pelos militares, a Vila Madalena – que recebeu esse nome por causa da maior igreja do bairro – passou a ser ocupada por estudantes. Os estudantes, que acharam no bairro tranqüilidade e aluguéis baratos, formaram uma comunidade jovem, e algumas cantinas foram transformadas em pequenos teatros, produtoras de filmes, galerias e ateliês. A Vila não tem tradição de grandes festas populares de rua nem de carnaval. A escola de samba Pérola Negra ensaia nas ruas do bairro mas desfila no 116 sambódromo, na Marginal Tietê e na “Folia-na-Faria”, na Av. Faria Lima, evento marcado pela apresentação de grupos de Axé-Music. A vida cultural é o ponto forte do bairro e tornou-o cult. As livrarias, os bares e as lanchonetes contribuíram para aumentar a característica de pólo cultural que o bairro tem. Considerando a sua proximidade aos bairros de classe média alta – como Alto de Pinheiros e Lapa - as empreiteiras iniciaram a especulação imobiliária, construindo edifícios de apartamentos cujos preços não são pequenos. Nos anos oitenta, a Vila tornou-se, por assim dizer, um centro de grafiteiros e de artistas plásticos. O conflito entre a agitada vida noturna do bairro e a tranqüilidade em que viviam seus antigos moradores intensificou-se, e a prefeitura viu-se na contingência de aplicar a lei do silêncio a inúmeros bares. A fama dos bares atraiu o público de outros bairros, e a vida pacata da Vila Madalena findou-se. Nos anos noventa, apenas o Baque resistia em permanecer na rua. O bairro manteve algumas tradições, com as festas religiosas, mas no carnaval apenas alguns blocos e pequenos grupos ensaiam na rua. Figura 11. Bloco do Baque Bolado tocando com surdos metálicos. No início da formação do Baque Bolado, a música do maracatu causava um estranhamento, e logo foi associada ao barulho e à baderna. De início os ensaios contemplavam vinte pessoas e uns cinco surdos, ainda feitos de metal. Depois de um ano esse número aumentou 117 para trinta, com dez alfaias108 (surdos). O diálogo com os moradores, que não entendiam a necessidade de ensaios fora do carnaval, era difícil. A polícia era chamada, o que levou os ensaios a serem realizados de forma itinerante pelas praças da Vila Madalena. O grupo passou então a se movimentar no território da Vila, passando por casas noturnas, sem ter um local fixo para suas manifestações. Atento às mudanças que o bairro sofreu com essa exposição aos jornais e a TV, o Baque reviu sua postura procurando modificar suas toadas, instrumentos e melhorar seus “passos” na direção de conquistar mais fundamento com as raízes do maracatu. A movimentação cultural Vila teve sua expressão máxima quando a “feira da Vila” e outras atividades passaram a receber enorme número de pessoas e vários grafiteiros, músicos e artistas estampavam nos jornais uma nova atitude: “o movimento punk109”. As tribos foram se formando em torno dos bares e dos “points” e casas noturnas que abrigavam os músicos e os artistas da Vila Madalena. A falta de um lugar determinado para os ensaios - que levava o grupo a uma movimentação constante - fez com que a busca pelas raízes e fundamentos dos ritmos pernambucanos fosse maior que as influências urbanas. O grupo fragmentouse, e passou a ter problemas com outros grupos, que se estruturavam como ONGS 108 No início do grupo as baquetas (com bolas de algodão colorido) de e os surdos (de alumínio) eram os mesmos utilizados pelas escolas de samba. O Baque se espelhava no grupo de Maracatu Nação Pernambuco (RecifePE) que não é muito considerado, em Recife, pela falta de “fundamento” com as tradições. O grupo do Baque adotou, após muitas críticas, as alfaias que são instrumentos mais pesados feito de madeira (da palmeira Macaíba -que apresenta um tronco em forma de barril- ou madeira laminada coberto com couro de cabra e esticadopor cordas de cizal) e baquetas de madeira sem bolas nas pontas. A sonoridade dos instrumentos tradicionais do maracatu são diferentes e tem uma função em relação ao transe e a “proteção” porque o sair para a rua implicava em demonstrar a força da nação (terreiro) e muitas brigas aconteciam. Um mestre de maracatu forma um círculo com as alfaias entorno da pessoa indesejada levando-a ao transe. Por esse motivo o maracatu é tido como uma “brincadeira séria”e há todo um cuidado com a sonoridade de todos os instrumentos e a postura dos componentes do cortejo. 109 O movimento punk influenciou a arte alternativa musical e artística com a livre figuração e um estilo descompromissado e desafinado de cantar trazendo o gestual, o cotidiano e gíria falada tanto para as artes plásticas como para a música que se desdobraram em vários movimentos: Rap, Hip Hop, Funk, Reggae Samba-reggae. 118 (Organizações Não Governamentais) e recebiam o apoio da comunidade. Iniciou-se então uma certa cruzetagem com os grupos Cachuera110 e Cupuaçu, situados no Morro do Querosene. O Baque ensaiou durante alguns meses nesse bairro, e a troca de informações foi inevitável. Na época, o grupo do boi (Cupuaçu) do Morro do Querosene e o grupo Cachoeira estavam se institucionalizando e estabelecendo um maior vínculo com a comunidade local, que não se importava com as festas ou com o barulho dos tambores porque estes traziam um retorno certo em dinheiro. Assim, toda a comunidade ajudava na organização e na montagem das barracas que vendiam comida e bebida. O Morro também se configurava como um território participativo porque a maioria das pessoas envolvidas nos grupos moravam próximas, e eram membros atuantes da comunidade. Já o Baque, que não tinha um território físico, teve que se aprofundar mais no estudo dos ritmos pernambucanos, a fim de se legitimar perante os outros grupos, que tiveram maiores facilidades para se estabelecerem. Essa oportunidade foi aproveitada tanto pela nossa pesquisa como o grupo que estabelecemos fortes ligações com os grupos nordestinos e os terreiros. A utilização de ferramentas virtuais teve (e tem ainda) importante papel na comunicação entre os integrantes do grupo: inicialmente o “bip”111 era utilizado para informá-los sobre os locais de ensaio e as apresentações do Baque; a seguir, o celular e a Internet passaram a ser adotados para manter o contato, tanto entre os componentes do grupo quanto entre este e outros grupos do Nordeste e de São Paulo. 110 Grupo formado em 1992 na pesquisa de campo no Sudeste por Paulo Dias, André Bueno, Marcelo Mauzati e coralistas-percussionistas da USP. Ocupassam-se dos ritmos Bauque Paulista de umbigada e do Congado Mineiro. A partir de 1999 é formada a ONG “Cahuera” abrindo sua sede para consulta pública do acervo, apresentações regulares e eventos musicais. 111 O bip é um aparelho que transmite textos via telefone e foi muito utilizado antes da popularização da telefonia celular que, quando de sua implantação, era cara e não cobria a cidade inteira devido à sombra dos prédios de São Paulo, que dificultava a transmissão. 119 A EXPERIÊNCIA COM A TRIBO URBANA DO GRUPO BAQUE BOLADO Como mencionamos na Introdução deste estudo, o BLOCO DO BAQUE BOLADO teve início quando um professor de percussão não compareceu à primeira aula de uma turma, e os alunos passaram a tocar “o que sabiam” e a ensinar “o que sabiam” uns aos outros. O resultado dessa experiência foi mostrado na IX Feira de Arte da Pompéia, em 1996, como uma brincadeira descompromissada. A bateria agradou e foi chamada de “baque”, seguindo a tradição do ritmo contagiante do Maracatu A idéia foi se materializando, e novas pessoas integraram-se ao grupos: outros músicos, artistas plásticos, bailarinos, cenógrafos, jornalistas, médicos, fotógrafos etc. O Baque Bolado passou a ter identidade própria, emprestando de Pernambuco a dança e o ritmo tradicional do baque-virado, assumindo sua naturalidade paulistana - caracterizada pela profusão de línguas, caras, cores e crenças – e mantendo o interesse pela arte e o resgate do folclore brasileiro. Nas apresentações de rua, era comum os músicos pernambucanos trocarem informações sobre o ritmo e a maneira de tocar com os integrantes do Baque. Posteriormente, essas trocas informais estimularam a contratação de músicos pernambucanos, que mostraram ao grupo o verdadeiro e autêntico ritmo do maracatu e sua complexidade. Depois dessas oficinas, realizadas na rua, o grupo decidiu retirar de seu nome a palavra maracatu, passando a denominar-se Baque Bolado. Isso possibilitou-lhe a liberdade de misturar outros sons e, ao mesmo tempo, eliminou o compromisso com o ritmo maracatu – bastante complexo e fortemente ligado aos terreiros. Essa alteração de nome decorreu das informações dos músicos de Recife, que mostraram que as manifestações do Baque não poderiam ser chamadas de 120 maracatu. O nome maracatu tem outros adjetivos - de nação, de baque solto (rural), de baque virado –, e o som produzido pelo grupo distanciava-se do ritmo tradicional. Após as oficinas, ficou evidente que tocar maracatu implicava várias outras relações com a cultura pernambucana e uma postura em relação ao instrumento, ao ritmo e aos significados das loas. Nesse clima que foi criada a primeira Loa do Baque112, que continha algumas células rítmicas e palavras do maracatu tradicional de Recife. Depois de aprender a tocar, a virar113, e de cantar a Loa, o grupo assumiu a diversidade cultural, optando por manter o maracatu como mais um ritmo. Passou então a intitular-se Cia. Baque Bolado, e adotou elementos circenses em suas performances. Nos anos 90, a Vila Madalena - uma espécie de Soho114 brasileiro - mantinha um círculo de artistas e músicos voltados ao grafite e às performances. Nessa época a participação no grupo era livre e aberta a todos do bairro. O Baque Bolado tinha como principais dirigentes Marici Brasil e Leandro Medina, que são bailarinos e compositores oficiais do grupo. Maurici lecionava em várias oficinas da prefeitura, e mantinha contato com jovens da periferia da cidade. A proposta artística do Baque mistura elementos de cenografia e coreografia a ritmos musicais nordestinos, de uma 112 Vejamos a Loa do Baque: “Baque Bolado desceu a ladeira subiu na poeira e depois sumiu (2X) // Concreto rachou estrela caiu o mar desabou e ninguém fugiu (2X) // Clareou clareou a estrela da vila brilhou // Resplendor resplendor olha o baque bolado chegou // Baque Bolado desceu a ladeira subiu na poeira e depois sumiu (2X) // Concreto rachou estrela caiu o mar desabou e ninguém fugiu (2X) // Clareou clareou a estrela da vila brilhou//Resplendor resplendor olha o baque bolado chegou.” A palavra “estrela” remetia ao grupo Estrela Brilhante tradicional maracatu do Recife e teve que ser retirada da toada do Baque. 113 Virar ou dobrar no maracatu tradicional é o ponto máximo do cortejo onde as alfaias assumem sonoridades e ritmos diferentes: uma dobra outra marca. Muitos músicos bons nesse momento erram porque entram em transe e perdem o ritmo. O mestre tem a responsabilidade de conferir as alfaias de melhor sonoridade àquele em quem deposita confiança para não desandar o ritmo. 114 Bairro boêmio nova-iorquino. 121 maneira aberta e ingênua; paulatinamente, foi incorporando elementos circenses, como pernas de pau e acrobacias. Como mencionamos anteriormente, os ensaios ocorriam na rua aos domingos, e os moradores chamavam a polícia com freqüência. Os tambores, as alfaias, emitiam um barulho enorme, repetitivo e ensurdecedor, o que obrigava os músicos a utilizarem abafadores auriculares para proteção da audição. A fuga da rua para lugares sonoramente abrigados coincidiu com a evolução musical do grupo e com o contato com grupos de diferentes propostas: circenses, musicais, folclóricas, forró, capoeira etc. À medida que o grupo mudava o local dos ensaios, novas influências eram incorporadas, promovendo uma formação eclética que ajudava a cativar novos participantes O maracatu e suas influências rítmicas são desconhecidos na cidade de São Paulo, e o sucesso do grupo levou à formação de um grupo menor, que era responsável pelas apresentações, e tinha como incumbência organizar o transporte dos instrumentos – o que demandava uma perua Kombi - e contatar os integrantes do grupo – cujo número oscilava entre 20 e 30. Em apresentações menores o grupo era dividido, o que gerava descontentamentos e motivou a organização de um grupo menor, inicialmente chamado de Banda do Baque. A Banda tinha maior agilidade, e assim conseguiu gravar suas primeiras fitas, e logo a seguir o primeiro. Posteriormente o grupo esbarrou em dificuldades burocráticas, sendo então criada a Cia. de Artes do Baque Bolado, juntamente com um website e toda a documentação exigida para colocar o CD à venda: assim a institucionalização do 122 grupo foi inevitável. A partir daí, o Baque passou a restringir a participação, e a oferecer oficinas pagas e dirigidas pelo pessoal da Banda, que tinha mais experiência que os demais integrante do grupo. Em 2001, a Cia. de Artes do Baque Bolado definia-se como uma “troupe” de artistas que movimentava a criatividade urbana a partir da diversidade da cultura brasileira. A “troupe” uniu bailarinos, músicos, atores, artistas plásticos e circenses; brasileiros de todos os cantos, movidos pela vontade de brincar com a maravilhosa fusão musical nordestina. Em seus espetáculos, a comunhão de cores, tambores e crenças estampada nos figurinos, assim como a diversidade étnica de seus integrantes, é a verdadeira emblemática da Companhia que, em seus cinco anos de existência, vem colocando para a cidade de São Paulo a possibilidade de contato com a cultura pernambucana. Nesse período, o grupo pesquisou manifestações populares e, aos poucos, foi trazendo para as ruas as brincadeiras restritas aos grupos iniciáticos escondidos pelo Brasil. Nas apresentações de rua havia cerca de 30 integrantes, e a Banda ficou restrita aos shows interativos em casas fechadas e às aulas e workshops oferecidos a pessoas de todas as idades. A troca de informações com outros grupos do nordeste começou a tomar vulto, como veremos adiante. A RELAÇÃO DO GRUPO COM OS TERRITÓRIOS INICIÁTICOS 123 O contato do Baque com os outros grupos musicais folclóricos nas ruas nunca foi tranqüilo. As relações desses grupos folclóricos com o candomblé eram camufladas e dissimuladas, e não poderiam ser expostas a todos os componentes. Temia-se uma interpretação equivocada das relações folclóricas com as religiões brasileiras ou, a perda ou fuga de alguns componentes por motivos religiosos. Faz Figura 12. Arrastão(cortejo) do Baque na Vila Madalena Foto Luana B. Capobianc parte da disciplina iniciática não revelar os conteúdos, as palavras ou as interpretações aos novos componentes e pessoas estranhas ao grupo. O contato do figurante (do cortejo) com o público é contido e velado: é expressamente proibido uma pessoa entrar na “brincadeira” e tocar. Entre os mestres há uma relação conflituosa, competitiva, e os conceitos são transmitidos verbalmente (quando e se o são) e permanecem somente entre os grupos que efetuam um “contato produtivo”. 124 Os conteúdos revelam experiências oníricas, visões, curas, limpezas, purificações, proteções e direções que são dádivas das entidades ancestrais, que vivem em um “tempo” à frente, cosmologicamente diferente do nosso. Na música popular brasileira há o caso de Gilberto Gil, que foi impedido, por um pai-de-santo de Salvador, de cantar músicas que continham “pontos” e “toadas” de seu terreiro. Profanar as músicas ritualísticas tirando-as do seu contexto tem sido uma constante nas novas apropriações dos movimentos musicais regionais baianos e nordestinos. Às vezes os músicos agem intencionalmente ou “de ouvido”, alguns têm forte relação com os terreiros e pedem autorização para divulgar as toadas e os pontos. Nesses casos, o pai-de-santo tem que consultar os espíritos, liberando- os para “agir” fora do terreiro. Toninho Macedo, diretor do Balé Folclórico de São Paulo (grupo Abaçai) e que manteve contato com o Baque nos seus primeiros anos, chegou a negar categoricamente, nesta investigação, a relação entre o maracatu e o transe. Alguns mestres e professores de capoeira também não revelam que as músicas de capoeira contêm “pontos” e podem levar as pessoas à possessão. É comum “ver”, sentir e ficar “tomado” durante apresentações de capoeira, maracatu, samba, reggae, timbalada, frevo e em outros eventos em que a música africana ou indígena é utilizada. O maracatu é uma fusão desses vetores culturais, que se somam e penetram até mesmo em ouvidos estrangeiros às culturas que formaram e mantêm tais ritmos vivos. Embora não seja um fato corriqueiro, se uma pessoa entra em transe - seja no terreiro, na capoeira, na folia rua ou nas quadras - o pai-de-santo é consultado, e somente ele é capaz de identificar se é “caso de médico” ou de “incorporação” de entidades: possessão. Nesse segundo, caso o pai-de-santo deve colocar a pessoa 125 deitada, rezar, e em conversa com o espírito (incorporado), retirar a possessão escutando seu “desejo”, atendendo à sua “vontade” - paga com promessas e despachos -, fazendo com que a pessoa retorne à realidade. Também há conflitos internos entre os “terreiros”, que não querem ver seus conteúdos diluídos pela “festa” profana. O cortejo do maracatu é ritualístico e não deve ser confundido com uma brincadeira. Em Recife, é comum utilizar a expressão em “brincadeira séria”. Os movimentos, a dança e as toadas contêm uma forte referência à corte, à realeza, razão pela qual os grupos freqüentam a Igreja Nossa Senhora do Rosário, marcada pelo sincretismo entre as religiões católica e os cultos africanos. Verificamos que, em Recife, os grupos de maracatu nação115 utilizam roupas e indumentárias que guardam uma “visão onírica do pai-de-santo” que dirige espiritualmente sua “nação” (território iniciático que vai do terreiro à comunidade). A concorrência, o encantamento, a competição pela melhor apresentação e visibilidade remontam ao período das irmandades coloniais e seu difícil relacionamento com a Igreja Católica. Atualmente, no Grande Recife, em Olinda, em Salvador, no Rio de Janeiro e em São Paulo, são históricas as brigas e polarizações que também se formam entre maracatus, escolas de frevo, escolas de samba, samba reggae, timbaladas, bailes funk, grupos de Axé-music, de Hip Hop e terreiros e suas 115 Maracatu Nação ou Afoxés: “Esses dois cortejos possuem, na estreita ligação com os terreiros nagôs, a sua característica comum essencial: os xangôs do Recife, para os Maracatus, e os candomblés de Salvador, para os Afoxés. Outros elementos comuns podem ser apontados. Mas as diferenças também existem, a começar pela origem dos Afoxés. Referindo-se a cortejos nigerianos, efetuados em celebração a Oxum (por ocasião do Domurixá, ou seja, Festa da Rainha), Manoel Querino atribuiu-lhes grande influência sobre os Afoxés do final do século passado. Afinal, havia grande semelhança nos dois tipos de cortejo, sem contar o aspecto carnavalesco. Mas Edison Carneiro, como já vimos, pensava de maneira diferente.Maracatu e Afoxé foram exportados para outros centros, além de suas cidades de origem. Fortaleza recebeu a ambos e o Rio de Janeiro apenas o Afoxé. É possível mesmo que um tenha exercido algum tipo de influência sobre o outro, conforme Raul Lody, em pesquisa efetuada no terreiro do famoso Pai Adão, no Recife. Procuraremos assinalar, aqui, sobretudo as relações de similitude entre os Maracatus Africanos ou de Nação (ou, ainda, de "baque virado"), do Recife, e os Afoxés da Salvador do final do século passado. Vale notar que muitas vezes esses pontos de semelhança são marcados pela oposição; sobretudo se levarmos em conta o caráter matriarcal dos Maracatus e patriarcal dos Afoxés.” (Gonzales (1984), p.144 ) 126 linhagens. É comum um pai-de-santo dirigir ou direcionar uma escola de samba, um grupo de timbalada, um grupo de afoxé, um grupo maracatu e outras brincadeira de rua, estabelecendo uma forte ligação entre o terreiro, a quadra, a rua e os palcos de festas e shows. Na Vila Madalena - território do Baque - os integrantes da Escola de Samba Pérola Negra criavam tumultos quando o grupo passava perto de seus ensaios; além disso, não gostavam que os integrantes de sua bateria desfilassem no Baque. Da mesma forma, os grupos de Recife que mantinham contato com o Baque tinham que se justificar pela difusão de palavras referenciais que o Baque utilizava nas suas loas116 em São Paulo. A palavra “estrela brilhante”, por exemplo, foi proibida de ser utilizada pelo Baque, para não comprometer e relação que se estabelecia entre os dois grupos. No centro velho de Recife, localizamos o grupo Estrela Brilhante pelo ritmo e timbre dos tambores - tocados numa pequena viela em preparação para o desfile de carnaval -, pois a concentração era realizada em local não revelado. Os grupos folclóricos envidam grandes esforços para esconder, ao longo do ano, características musicais, letras, timbres, ritmos, harmonias e melodias que serão apresentados como novidades no carnaval. Em Olinda há uma espécie de confraternização entre os grupos de Maracatu Rural117, em frente à casa de Mestre Salustiano118: Em Recife, 116 Loas e toadas são músicas, com vimos na letra da Loa do Baque, mas também assinalam as variações de ritmos e harmonias no maracatu. 117 Maracatu de baque solto ou maracatu rural: “O maracatu de baque solto é marcado principalmente pela desenvoltura dos caboclos de lança, que produzem um espetáculo de cores, brilho e som. Os caboclos de lança são chamados por alguns estudiosos como guerreiros de Ogum (Olímpio Bonald Neto, em "Os caboclos de lança- Azougados Guerreiros de Ogum"). São os protetores dos cortejos dotados de lanças afiadas e adornados com fitas coloridas. Os Maracatus Rurais apresentam as mesmas características dos de Nação, outros elementos que se relacionam à pratica do catimbó. Nesse sentido, a tipos de personagens marcam os seus desfiles: os "caboclos de lança" ou "caboclos lanceiros africanos", que, segundo consta, brincam atuados" (em transe); e os "caboclos de pena" ou "tuxauas", reconhecidamente catimbozeiros que, pelo simples fato de vestirem sua curiosíssima indumentária, ficam imediatamente "atuados" (daí usarem grandes óculos escuros, supõe-se, para que seus olhos não sejam vistos). (Gonzales, op. cit., p.114.). 127 na noite dos tambores silenciosos119, todos os grupos de maracatu rufam as alfaias à meia noite. Alguns integrantes do Baque foram a Recife tocar no carnaval (1999), e foram bem recebidos pelo Estrela Brilhante120. O Estrela tem um integrante, Eder, o “Rocha121”, que ministrou aulas ao Baque, e “pertencia” aos dois grupos. Quando a visibilidade do grupo passou a comprometê-lo no terreno conflituoso das relações e influências que existem no carnaval, Eder afastou-se do Baque. As oficinas do “Rocha” deram um novo impulso no grupo do Baque, que aprimorou suas toadas e iniciou um aprimoramento musical que motivou a formação da Banda do Baque que, como vimos, apresenta-se nos espaços fechados das casas noturnas, bares e shows. O contato com Eder foi fundamental para o Baque e para a pesquisa, pois nas oficinas aprendemos a não cruzar o talabarte122, a fazer uma rotatividade123 com os 118 Segundo entrevista coletada pela pesquisa com o artista plástico olindense Adão Pinheiro: “O mestre Salú foi cortador de cana, chofer de caminhão até ser respeitado como líder do Maracatu Piaba de Ouro que tem uma forte liderança entre vários outros maracatus rurais que no carnaval desfilam na praça em frete a sua casa na Cidade Tabajara (bairro de Olinda PE). O Dr. Salú também lidera um grupo de Bumba-meu-Boi, mas atualmente se converteu ao protestantismo, como muito acontece com outros mestres pernambucanos e, para piorar, está com marca-passo no coração...sorte que seu filho Maoelzinho, excelente dançarino, já é mestre também...” 119 Cerimônia realizada à meia-noite da segunda-feira de carnaval, em frente à Igreja do Rosário (Recife), r Reúne integrantes dos grupos pernambucanos de maracatu de baque virado, que entoam loas e cantigas. 120 Segundo entrevista concedida à pesquisa pelo músico André Bueno: “O Maracatu Nação Estrela Brilhante Antigo maracatu pernambucano que passou para um novo grupo comunitário, incorporando com Mestre Valter França um nova gama de toques que ampliaram o Baque Virado Antigo. Mestre Valter reuniu experiência com maracatu tradicional e com escola de samba, o que resultou num grande vigor percussivo da atualidade. O Estrela apresenta essas inovações e aspectos rítmicos e melódicos, devido à influência externa do samba, do afoxé e do coco. Podemos constatar que a influência do samba é nítida em algumas toadas (loas), no que diz respeito à métrica poética e a condução melódica propriamente dita. Na parte instrumental percebe-se que no batuque o caixa também "puxa", nas suas variações, o padrão rítmico do samba. A partir da temática das loas poderemos analisar o elemento africano em palavras, e nas melodias” 121 Eder Rocha é percussionista do Estrela Brilhante e do grupo Mestre Ambrosio e, no início da formação do Baque Bolado foi apresentado ao Baque pelo músico André Bueno. Atualmente conduz regularmente “oficinas de maracatu” na Nau de Ícaros, na Vila Madalena e na USP, em São Paulo. 122 Faixa de pano que ajuda a segurar junto ao corpo do músico o instrumento. 123 A rotatividade dos instrumentos tem um caráter iniciático de estabelecer um forte vínculo entre o mestre, os alunos e a comunidade. No início do Baque os instrumentos eram jogados e não tinham afinação. Saber simplesmente tocar não é interessante para o grupo mas sim conhecer todos os instrumentos em profundidade sem se especializar em determinado instrumento. A dança, o ritmo, os passes, os gestos, os personagens do 128 instrumentos, cantar as toadas e loas pensando nas variações rítmicas e viradas do maracatu (os diferentes toques e viradas têm um que aos poucos foi revelado). Além de pertencer ao Estrela Brilhante - que aglutina influências do maracatu, do coco e do samba -, Eder toca no Mestre Ambrósio, grupo que leva o nome de um personagem do Cavalo Marinho124, ritmo pernambucano que tem forte presença de instrumento melódicos, ritmo hipnótico, repetitivo e desafiador que lembra uma mistura entre a capoeira e o coco. A união do transe do maracatu a outros ritmos que contêm uma sonoridade rítmica e melódica que induzem a estados alterados ligados ao terreiro abriu uma porta, tanto para a presente pesquisa quanto para o Baque. De posse desse conhecimento, o Baque iniciou seu “vôo” nas apresentações. Anteriormente nossas performances eram lineares e continham apenas a “virada” do ritmo, como na maioria dos outros grupos de maracatu. Algumas pessoas do grupo tinham mais experiência musical e sabiam “virar”, momento em que atingíamos o ponto máximo do “show”. O “vôo” foi “roubado” do contato com a escola de samba Pérola Negra, cuja bateria diminuía a “força” e colocava seus instrumentos no chão para, em seguida, voltar a tocar até a máxima intensidade. Pessoas que tocavam na Pérola Negra integravam o Baque rapidamente adaptaram o “vôo” da Pérola ao maracatu: no meio do cortejo, após o grupo “virar”, o comando era dado pelo apito e todas as alfaias tocavam mais baixo até todos, músicos e platéia, ficarem abaixados rente ao chão; ao sinal de “vôo” todos tocavam e pulavam com toda a intensidade possível. O contágio da platéia era evidente, e assim nossas performances combinavam vários maracatu tem funções especificas e representam “entidades” que desfilam em conjunto com os figurantes do cortejo. 129 momentos com “climas” musicais, melódicos e variações rítmicas do maracatu, até atingir o “vôo”, que envolvia todas as pessoas. O contato do percussionista Eder possibilitou a compreender melhor a influência dos maracatus e ritmos pernambucanos, em relação aos fundamentos iniciáticos. À medida que o grupo tomava consciência disso e retirava do nome maracatu adotava-se outros ritmos (como o coco, samba-reggae e o boi) abriram-se os contatos com outros grupos no Maranhão e em Pernambuco. Assim gravamos algumas apresentações de boi no Maranhão e conhecemos o terreiro de Pai Euclides, em São Luiz. Os grupos Cachuera e Cupuaçu (Tião Carvalho), ligados a Pai Euclides e à “brincadeira do boi” ganhavam, nessa época, visibilidade na mídia e se organizavam como ONGs: mantinham ensaios, oficinas e apresentações regulares e também trocavam experiências com o Baque. No Morro do Querosene125 a tradição musical folclórica afro é bastante forte, com grupos de Capoeira, Bumba-meu-boi, Tambor de mina126 e Coco. É território de artistas, músicos como Tião Carvalho, nascido em Cupuaçu (MA); Dinho Nascimento, nascido em Salvador (ganhador do premio Sharp de música com o CD 124 Teatro-Dança Dança praticado na Zona da Mata de Pernambuco e Paraíba, como uma elaboração detalhada dos Bumba-meu-Bois antigos- É apresentado entre o Natal, dia de Reis(6/01), São Sebastião (20/01) e Nossa Sra. Das Candeias(2/02). 125 O 'Morro do Querosene localiza-se próximo à Vila Madalena, do outro lado do Rio Pinheiros, e também está próximo à Universidade de São Paulo (USP). 126 Tambor de Mina em relação a região africana Costa da Mina entre Gana e Benin segundo Prandi (1997), p113. “Em São Luís e outras cidades do Maranhão, a religião dos voduns recebeu o nome de tambor-demina, alusão à presença constante dos tambores nos rituais e aos escravos minas, como eram ali designados os negros sudaneses. Trata-se de religião iniciática e sacrificial, em que os sacerdotes são ritualmente preparados para "receber" as divindades em transe. As entidades manifestadas, que podem ser voduns ou encantados (espíritos), vêm à terra para dançar em cerimônias públicas denominadas tambor. As entidades são assentadas (fixadas em artefatos sacros) e recebem sacrifício, com oferta de animais, comidas, bebidas e outros presentes. Segundo tradição africana que se manteve no Brasil, cada humano pertence a um vodum, sendo para ele ritualmente consagrado em cerimônias iniciáticas, como ocorre no candomblé dos orixás. O tambor-de-mina, assim como outras modalidades religiosas afro-brasileiras, apresenta forte sincretismo com o catolicismo e suas festas têm um calendário colado ao da Igreja Católica. No Maranhão, festas e folguedos populares de caráter profano, como o bumba-meu-boi e o tambor-de-criola estão muito associados ao tambor-de-mina”. 130 Berimbau Blues)127.e outros. As festas do Morro do Querosene, a cada ano maiores e melhor organizadas, possibilitam o intercâmbio entre os grupos e o público de São Paulo. O público foi se habituando às brincadeiras “sérias” do maracatu, do boi, do coco e do Tambor-de-crioula. Dançando, cantando e batucando, as pessoas participavam das festas até o amanhecer, quando as mulheres dançavam o tambor, encerrando a brincadeira128. A fundamentação e a pesquisa musical, sonora, melódica e rítmica da tribo percussiva atraiu empresas de instrumentos musicais interessadas em melhorar a sonoridades dos instrumentos produzidos em série. A Cia. Golpe intensificou a troca de informações com o Baque mas, à medida que os contatos com Recife foram se solidificando, possibilitando a “importação” de instrumentos com boa sonoridade, esse vínculo inicial desapareceu. A visibilidade das “troupes musicais” direcionou o modelo de organizações não governamentais de produção independente de CDs vídeos e sites para a Internet. O Baque conseguiu rapidamente mudar seu nome para Cia. do Baque Bolado e lançou seu primeiro Figura 13 Alfaia de madeira, baquetas CD. Aqui o Baque já tocava maracatu com sem bolas e gonguê de ferro. 127 Além de capoeirista, Dinho estudou piano, e incorporou ao berimbau um captador eletrônico com corda de contrabaixo, trazendo novas sonoridades ao instrumento. 128 Tambor-de-crioula é um folguedo de “rua”, não é o mesma coisa que o Tambor de Mina de “terreiro”(com transe possessivo). Na “brincadeira” Tambor-de-crioula (sem transe), as mulheres dançam e os homens tocam tambores, feitos de um tronco único e afinados (aquecidos) à fogueira. 131 todos os instrumentos tradicionais: alfaias, conguês, tarol (caixa) e ganzá (caxixis)129. As oficinas não se restringiam à parte musical, mas trabalhavam a voz, a dança e a confecção das roupas e chapéus130. Aos poucos fomos tomando contato com a complexidade do maracatu e os procedimentos necessários que constituíam a totalidade da “nação”. Concluímos que os fundamentos seriam preservados e reelaborados pelo grupo, procedimento que seria adotado também para os outros ritmos. A abordagem do transe tema é complexa, difícil e pode levar a erros, por causa do preconceito, da transmissão verbal dos ensinamentos, do isolamento dos terreiros e da escassa literatura existente sobre o assunto. Assim, optamos por analisar somente os fatores que influenciaram o maracatu pernambucano na composição dos instrumentos, harmonias e ritmos. Ainda assim, as gravações, as viagens, as leituras e as vivências consumiram o limite de tempo de quatro anos, de que dispúnhamos para a realização deste trabalho. A RELAÇÃO ENTRE GRUPOS ESTUDADOS E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO No Brasil, o transe influenciado pela sedimentação das culturas indígenas, africanas e árabe-européia esteve restrito aos terreiros - candomblé, umbanda -, aos ritos iniciáticos indígenas (Santo Daime), à Capoeira e ao carnaval até os anos 80, quando ocorreu explosão dos ritmos baianos que libertaram os tambores do terreiro. Anteriormente o transe guardava relação direta com os povos orientais, e estava associado ao relaxamento e à meditação. Na década de noventa - principalmente com 129 Os instrumentos tradicionais do maracatu de baque virado são: conguê (agogô), tarol (caixa), alfaias (surdos) e, em alguns casos, instrumentos de sopro. 130 Os chapéus do Baque são elaborados com espuma sintética (EVA) muito utilizada na cenografia (por ser fácil de cortar) e conferiam um colorido especial ao grupo. 132 a explosão da música étnica e as raves -, ele é incorporado à sonoridade musical ocidental. A evolução dos sintetizadores é um marco relevante, pois estes passaram a captar a sonoridade dos tambores, e a “batida afro” passou a ter maior visibilidade. O mercado fonográfico soube aproveitar esse momento e acolheu a nova percussãoharmônica, que trouxe novo sentido ao transe musical. Um novo estilo musicaleletrônico passa a roubar a “cena eletrônica” o trance. Suas principais caraterísticas: um estado de êxtase que prolonga as festas e desloca o ouvinte a estados alterados de consciência. Figura14 Percpan 1994-Foto Ricardo Ivanov Os músicos percussionistas Alceu Valença, Naná Vasconcelos e Chico Science (PE), Papete e Zeca Baleiro (MA), Carlinhos Brown e Dinho Nascimento (BA) incorporaram o êxtase folclórico (contagiante e energético) da percussão ao blues e ao samba-reggae, possibilitando novas variações e associações rítmicas e 133 trazendo visibilidade internacional à musica e aos novos instrumentos percussivos, antes restritos às ruas. Quando a percussão saiu da “cozinha”, como assinala Guerreiro (2000), o percussionista ganhou status de músico, o que culminou com a realização de festivais de percussão internacionais (Percpan)131. Isso ocorreu graças à força da worldmusic e da etnomusic, e à ascensão da axé-music, da lambada, da timbalada e do reggae. Naná chegou a trazer um grupo de músicos pigmeus ao Brasil, e a integração entre estes e os músicos brasileiros foi o ponto alto do Percpan. CONCEITO DE IDENTIDADE / REALIDADE-MESTIÇAGEM-MODISMO / MEIOS DE COMUNICAÇÃO O contato com a mãe África restabeleceu-se de forma diferente: a música africana ganhava visibilidade na Europa, e o Brasil soube receber a música africana, incorporando suas sonoridade melódica ao ritmo percussivo e aprimorando o sistema de gravação. Guerreiro lembra a primeira grande mudança em relação à sonoridade das ruas, quando o grupo Ilê Aiyê gravou seu primeiro disco: “Na Bahia, a mudança de intenção, que coloca os tambores em posição central na sonoridade registrada, começa a emergir nos anos 80. A primeira experiência foi a gravação do disco de estréia do Ilê Aiyê, Canto Negro, em 1984. Depois de dez anos utilizando somente a rítmica acústico-percussiva para fazer música na comunidade negra, o bloco afro pioneiro passa a circular no universo eletrônico de um estúdio de gravação. Seus tambores foram captados numa área externa do estúdio. Era uma tentativa de registrar o som dos instrumentos num espaço mais próximo daquele onde a forma musical foi concebida: as ruas da cidade e as quadras de ensaio dos blocos afro”132. 131 PERCPAN (PANorama PERCussivo): Idealizado, desenvolvido e produzido pela Socióloga Elisabeth Caires, o primeiro PercPan aconteceu em março de 1994 e sua realização consumiu cerca de 8 meses de pesquisa. Foram realizados shows, workshops e oficinas, tendo sempre o Teatro Castro Alves como palco principal. Na sua última edição o PercPan também ganhou as ruas, invadindo a praça e devolvendo ao povo o que ele próprio criou, o ritmo. É maior festival de percussão do mundo. http://percpan.terra.com.br/hist.asp 132 Guerreiro, op cit., p.118. 134 E mostra as dificuldade e a evolução dos estúdios e produtoras soteropolitanos para gravar a nova sonoridade dos tambores com qualidade: “Essa tecnologia foi desenvolvida pela WR, a única gravadora de salvador, cujos estúdios produziram cerca de 90% de todo o material fonográfico que, naquela época, saiu da Bahia para o mercado nacional. Além de ter sido peçachave na configuração de um mercado fonográfico local, ela é responsável pelo aperfeiçoamento da técnica que permite gravar, em estúdio, a percussão como elemento sonoro central. Por isso, a WR ocupa um lugar de destaque na história da música afro-baiana. A captura da percussão se deve a um alto investimento do dono dos primeiros estúdios de gravação de Salvador, Wesley Rangel. „Nós começamos a investir num estúdio mais profissional. Tudo era muito difícil, porque os equipamentos de boa qualidade tinham de ser importados e havia uma taxação muito alta. E a gente teve que ir investindo aos poucos, até chegar ao estúdio de 24 canais. Aí alcançamos uma estrutura com 5 estúdios, criando um novo espaço de mercado para todos, um mercado geral.‟ O projeto de sofisticação tecnológica de Wesley Rangel trouxe a possibilidade de registrar o som dos tambores ao vivo e a produção musical baiana passou a exibir toda a potência dos seus instrumentos percussivos, com o recurso da amplificação, através de microfones ligados a uma mesa de som.133” Aproveitando esses movimentos da indústria fonográfica aberta à percussão, que modificaram a cena musical brasileira, o grupo do Baque ganhou espaço em casas noturnas, eventos e shows dentro do Estado de São Paulo. O grupo se estruturou musicalmente e operacionalmente, o que tornou possível que seus integrantes - músicos, dançarinos e artistas da região da Vila Madalena - vivam exclusivamente da dança e da música étnica. Vimos as influências que o grupo estudado sofreu das raízes e dos novos meios de comunicação. A seguir, passaremos a discutir os rituais das tribos e sua ligação com a música eletrônica. 133 Guerreiro, op cit., p.118. 135 CAPÍTULO 4 OS RITOS E A SUBLIMAÇÃO DAS TRIBOS OS RITOS E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Uma inquietação surge das diferenças dos grupos estudados, mais precisamente no que concerne ao transe e ao êxtase nos rituais, ao uso do território à força dinâmica dos signos e às suas relações tribais. Antes de aprofundarmo-nos nas relações de territórios e no dinamismo dos signos, teceremos algumas considerações sobre o pensamento ritual-tribal e sua ligação com as sociedades consideradas “primitivas”, “primárias”, “selvagens” etc. Anteriormente observamos as diferenças entre o transe divino e revelador (Pitágoras), o transe purificador (sufi) e o transe curativo-possessivo (gnawa e voduns). Também verificamos as influências que os grupos paulistas recebem das raízes nordestinas, e a profanação do transe possessivo do terreiro nas festas populares. Assim, vejamos como os rituais se modificam, desde suas raízes até atingirem as cidades. Para manter a união dos grupos que a compõem a tribo estabelece uma relação com os ritos. Em São Paulo o ritual se dilui: o grupo por nós estudado, por exemplo, está fisicamente distante dos grupos originários e das danças, dos ritmos e dos fundamentos dos terreiros. O que impressiona é que ainda hoje exista uma dicotomia entre sagrado e profano, popular e erudito. Essa polarização dificulta uma aproximação isenta de maniqueísmos, mas a metrópole paulistana contempla a 136 mistura de credos, comportamentos, aculturações e outras associações inéditas e peculiares, que trazem componentes do pensar ritual ainda não desmistificados, carregados de fundamentos e conteúdos iniciáticos, que nos provocam grande emoção. E foi exatamente a hipnose provocada pelo ritmo do maracatu, nas saídas do grupo pelas ruas de São Paulo (arrastões) e em várias apresentações em clubes e bares – cuja sonoridade e cuja dança carregadas de elementos rituais provocam forte impacto - que despertou nosso interesse pelas relações entre o maracatu e os terreiros. A TV, os jornais, as revistas e a mídia em geral apresentam somente as manifestações profanas das festas religiosas brasileiras - com sua riqueza de cores, ritmos e sabores -, mas não temos acesso ao processo interno dessas festas, um contato direto com a fonte, com os mestres, com os pais-de-santo, com as baianas e com os curandeiros. Uma difícil e lenta aproximação a essas fontes foi necessária para compreendermos a complexidade do transe e dos estados alterados de consciência de nossos ritos, bem como sua cosmologia. Seus relacionamentos com a comunidade e com os costumes e sua espacialidade territorial sinalizaram que havia longo caminho a ser percorrido e vivenciado. O transe possessivo representa o “lado escuro”, de difícil aproximação e abordagem, porque o “incorporado” não tem consciência de seu próprio “eu”: ele é “alugado” por “entidades” ou pelo “outro”, e necessita de um intérprete ou intermediário. A “obrigação”, os procedimentos e os rituais dos terreiros dificultam a análise e a pesquisa a um observador “estranho” ao processo. Não obstante, a relação 137 entre os terreiros é conflituosa e interpretativa, dando margem a afirmações e convicções equivocadas e competitivas e a facções e descendências de toda ordem. No breve espaço deste capítulo tentaremos entender as diferenças e particularidades do pensamento ritual brasileiro, que aponta para algumas considerações territoriais e espaciais sobre os grupos estudados. Os afrodescendentes do Brasil sofrem a influência de diferentes culturas – católica, greco-romana, muçulmana, judaica e protestante, esta última majoritária em nossa condição de país em desenvolvimento -, que fizeram e fazem parte de nossa história. Em outro ângulo paradigmático, aprofundamos o estudo das sociedades indígenas e negras africanas (Kêtu, Nagô, Bantu) cujas influências, embora minoritárias no Brasil, são bastante fortes no grupo de maracatu estudado. As influências de culturas milenares japonesa, chinesa e tibetana - não serão apontadas, dada a complexidade que existe, nessas culturas, entre os estados alterados da mente e a respiração, a concentração e a movimentação. O transe meditativo distancia-se do transe dos grupos estudados (maracatu, boi e raves) pois depende basicamente da entonação de mantras134. No transe meditativo a palavra tem uma enorme importância: quando perfeitamente pronunciada e aliada à respiração e à cadência do mestre ou monge que dirige a sessão religiosa, sua vibração induz a estados que podem ser compartilhados coletivamente. Nesse terreno delicado do transe e de suas manifestações encontramos um ambiente culturalmente fértil. As tribos urbanas buscam informações e experiências 134 O trabalho de Holtzman (1994) mostra a importância da pronúncia correta do mantra e a vibração interna repetitiva que chega ao cérebro provocando o transe meditativo. 138 que podem iluminar um novo caminho educacional, ou a boa interpretação dos sedimentos culturais que formam a índole do brasileiro. Na cidade de São Paulo os centros os templos, os terreiros de umbanda e candomblé, e as casas de estudos de diferentes religiões convivem pacificamente, ao contrário do que ocorre em outras metrópoles, em que há conflitos de rua, perseguições, motins e guerras. A presença desses diferentes credos influencia até mesmo os nossos dirigentes, que consultam videntes, pais-de-santo etc. para desvendar o futuro e garantir sorte a seus governos. Mas mesmo o multiculturalismo não impede que certos movimentos sofram forte discriminação, embora esse assunto não seja objeto do presente trabalho. Árdua é a tarefa de verificar como certos movimentos urbanos tornam-se populares e são assimilados e desmistificados, e de que forma eles utilizam matrizes culturais enraizadas em culturas distantes para ampliar suas sensações sensoriais e afetivas. RITO SEM MITO Era comum, na fundação das cidades gregas e romanas, a realização de rituais destinados a acalmar os deuses e protegê-las do infortúnio, do mau-olhado, das pestes e dos inimigos. Nesses rituais o labirinto era literalmente demonstrado nas danças, nos movimentos e nos gestos, realizados de forma dualística para iludir, confundir o “que vinha de fora”. E a figura do labirinto está ligada tanto à idéia de morte quanto à idéia de vida, de renascimento, de florescimento. “Em Roma, todos são estrangeiros, começando por Rômulo, que vem de Alba Longa, por Tito Tácio e pro Numa, que são sabinos, por Mamúrio 139 Ventúrio, que é osco... a nova cidade não nasce de laços tribais já existentes, e sim da reunião dos sem pátria que se congregam no refúgio aberto pro Rômulo. O próprio rito da fundação da cidade é ensinado a Rômulo por especialistas etruscos chamados expressamente para a ocasião. Contudo , entre a fundação das cidades etruscas e a cidade de Roma, intui-se a mesma relação de trânsito do mesmo para o mesmo que existe entre o escudo caído do céu e aqueles reproduzidos pela arte de Mamúrio135. Roma é desde o início uma cidade simulada, que, no entanto indiscernível de uma cidade verdadeira”. 136 Não é necessário muito esforço para identificar a semelhança entre Roma e São Paulo, pois ambas foram fundadas por estrangeiros. Em São Paulo o estrangeiro não é um turista, é um trabalhador. Em São Paulo é possível o anonimato, pois o crescimento econômico imprime um ritmo acelerado e impessoal aos indivíduos. No Rio e em outras cidades menores todos acabam se conhecendo, as turminhas reúnemse em pontos específicos, em bares e nas praias. Já em São Paulo, ao contrário, os locais tomam a forma de suas tribos e identificam seus usuários. Os movimentos tribais não são exclusividade de São Paulo; eles existem em todas capitais brasileiras, e assumem características próprias e regionais. Nossa cidade também é simulada, repetitiva, labiríntica e impessoal. Aqui somos todos estrangeiros, as pessoas não se cumprimentam, os vizinhos não trocam olhares ou afagos, nem mesmo nos elevadores. Há espaço para a individualidade, há territórios férteis e sem controle (livres) para as tribos se desenvolverem. “A arte do ferreiro Mamúrio não é, portanto, uma criação original, independente e autônoma, nem a imitação falsificadora do modelo divino, mas uma repetição tão exata que anula o protótipo ao mesmo tempo que o preserva. 135 Mamúrio, o ferreiro, por encomenda do Rei Numa, teria feito onze cópias do escudo caído do céu para que ninguém pudesse roubá-lo. Essas cópias foram tão bem feitas que ficou impossível Numa reconhecer o original. O escudo caído do céu é objeto de veneração e fato cultural, transformando-se na unidade temporal do mês: os doze meses do ano do calendário de Numa. 136 Perniola (2000), p.224. 140 A sua arte não se opõe ao que é dado pelos deuses, pela natureza, nem aceita um papel subordinado ou dependente: ela se põe ao lado de tudo que é oferecido, multiplicando-o, deslocando-o, introduzindo-o num trânsito do mesmo para o mesmo. O triunfo da cópia é também extrema fidelidade ao signo enviado pelos deuses, porque nenhuma variação é permitida; no entanto, essa fidelidade elimina a excepcionalidade prodigiosa do exemplar único, o torna normal, regular, cultural. O sucesso da atividade humana é por isso destituído de arrogância e de orgulho, é sem culpa, inocente”.137 A convivência harmoniosa de vários credos em São Paulo deve-se ao tamanho, à repetição e à multiplicação da cidade ao infinito. Tais características diminuem a força da natureza, e conseqüentemente a ação divina é diluída, desmistificada, empobrecida. Por outro lado, aqui o sucesso da atividade humana é inocente. Apenas crescemos, de forma desordenada, involuntária e ingênua. A semelhança, a cópia, a adaptação têm caráter dissimulador, preservando conteúdos opacos ao primeiro olhar. “ Ars e urbs, operação artística e ordem política, têm seu ponto de encontro no rito, que é o eixo da religião e da sociedade romana arcaica. Contrariamente à concepção mais difundida na antropologia cultural e na história das religiões, que considera o rito dependentemente do mito, a religião romana oferece o exemplo de um rito sem mito, de uma repetição extremamente precisa e escrupulosa de atos culturais cujo significado originário é calado, esquecido, ignorado” 138. Verificamos também em São Paulo, exatamente a estratégia romana de manter unificada, na mesma cidade, estrangeiros de várias procedências sem dar margem a atritos, cultivando a desmistificação da ação mítica e social. Perniola prossegue em sua análise: 137 Perniola, op. cit., p.222. 138 Perniola, op. cit., p.230 141 “.A orientação que está na base de tal desmitificação, tão diferente da desmitificação realizada pelo judaísmo, que considera a historia o âmbito no qual se desenvolve a ação de Deus, aspira a instauração de uma “ordem“ suscetível de múltiplas determinações. O esvaziamento, a separação entre rito e mito é a própria condição de ordem, que é tal apenas se reproduz tão bem o protótipo a ponto de dissolvê-lo”139 Extraídos de um campo limitado de referências, os ritos ou atos simbólicos têm estruturas fixas, os rituais nunca são novos: são reinventados, otimizados, traduzidos e até caçados entre as culturas das sociedades marcadas pelo espetáculo. Em sua ativação pela mídia os rituais criam um êxtase coletivo e temporal que perdura enquanto as forças simulacrais estiverem agindo. Podem assumir caráteres que vão do banal ao frívolo ou do religioso ao multi-sensorial. Na década de 60, marcada pela contracultura, por grandes transformações sociais e pelo movimento estudantil, os comportamentos conservadores – como os rituais clássicos do batismo, do casamentos, os títulos, os prêmios etc. - eram repudiados. Não vamos nos deter nesses ritos sem mitos ou na sua aversão, efetuada ainda hoje pelos grupos mais jovens. Tampouco vamos celebrar aqui os mitos, contradizendo o objetivo da pesquisa. Apresentaremos algumas matrizes dinâmicas de grupos aculturados, de rituais que permaneceram à margem da sociedade desenvolvidos em seitas fechadas, em territórios isolados – e que influenciam os grupos estudados, principalmente o do maracatu. Alguns não chegam a se tornarem mitos, permanecem escondidos na periferia do olhar. A cosmologia desses grupos que influenciam o maracatu e sua relação com o presente, o passado e o futuro são fundamentais para entender a possessão do corpo: 139 Perniola, op. cit., p.230-231. 142 a riqueza de timbres e de cores assume um significado mítico e promove o transe. Um sair do corpo que necessita de “tradutores” ou “intérpretes” para o “possuído” entender a mensagem, a profecia, a cura ou desfazer o mau olhado, o mal-estar ou o encantamento. Esses feitos e visões são entoados nas “loas” (cantigas) que trazem os feitos em suas letras as histórias, dando força e emoção ao cortejo. Já conhecemos a loa urbana do Baque Bolado e seu esforço para preservar e adaptar as transformações da estrutura rítmica e dos signos coreográficos, que levaram a (re)elaborar o ritual do maracatu na cidade grande. RITO COM MITO Nas sociedades tidas como primitivas, os ritos são um elemento central e aproximam-se do mágico e do religioso, quando não do transcendental. Muito distantes, portanto, dos nossos ritos presos ao mundo profissional, político, lógico e cartesiano. Para entender essa cosmologia, podemos citar como exemplo os Nagôs, que no período colonial estiveram presentes em Recife e na Bahia: “Na diáspora, o espaço geográfico da África genitora e seus conteúdos culturais foram transferidos e restituídos no “terreiro” . Fundamentalmente, a utilização do espaço e a estrutura social dos três “ terreiros” tradicionais Nagôs mantiveram-se sem grandes mudanças. Por sua extensão, reputação e organização complexa, o Àxé Òpo Afònjá da “roça” de São Gonçalo d Retiro constitui um modelo exemplar”140. Santos mostra os espaços dos terreiros, que nasceram e se protegeram no urbano e hoje estão nas periferias das cidades, conservando a força e a coesão social 140 Santos (1986),p.33. 143 entre os pais (pais-de-santo, mestre), seus filhos (grupo de iniciantes e de cabeça feita) e os “de fora” (visitantes e amigos). No presente estudo, abordaremos a concepção dos Nagôs sobre os planos existenciais que convivem com o real e imprimem novos significados à morte, ao futuro e ao passado. Essas categorias são de fundamental importância para o entendimento do transe e da possessão do corpo, e são a chave para compreendermos os cultos dos Eguns141, que possuem as vestes (e não o corpo) sem carne, sem possessão com o afastamento do Ego (self). “Os Nagô concebem que a existência transcorre em dois planos: o àiyé, isto é, o mundo, e o òrum, isto é, o além. O àyé compreende o universo físico concreto e a vida de todos os seres naturais que o habitam, particularmente os ará-áyé ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. O òrum é o espaço sobrenatural, o outro mundo. Trata-se de uma concepção abstrata de algo imenso, infinito e distante. É uma vastidão ilimitada- ode òrumhabitada pelos araorum, habitantes do òrum, seres entidades sobrenaturais”. 142 Os afro-brasileiros convivem com um mundo sobrenatural que aceita trocas, presentes e que, no exercício do jogo de búzios, elucidado o presente pelo passado, onde as ações já ocorreram. Podemos imaginar o tempo como um vetor que sai do presente em direção ao atrás, aos ancestrais. Sob esse ângulo, o transe possessivo africano assemelha-se ao transe revelador dos pitagóricos, que também direcionavase para trás no tempo. Cosmologicamente, as culturas africanas e afrodescendentes 141 Os Eguns ou Egunguns são entidades entre a Terra e as divindades ligadas aos nossos ancestrais. Durante a pesquisa, estivemos na casa do Pai-de-Santo Sr. Domingos, em Itaparica (BA), que nos informou que a energia de um Egun vem à terra agradecer o Oru (festa cantada na porta da Igreja aos orixás); depois do Oru arranca-se a bandeira (estava colocada no mar), e algumas pessoas levam uma vela a Salvador, em homenagem ao Senhor do Bonfim. No sábado é realizada a festa do Babá, em que os Eguns saem. A energia deles é forte e não pode ser tocada, razão pela qual, nessa festa, as pessoas utilizam varinhas de madeira para se protegerem dos Babas. Durante a festa as vestimentas são movimentadas somente pela força do espírito dos Eguns.. Eles oferecem força, saúde e felicidade. A festa não pode ser vista por todos. É necessário ter uma relação de parentesco ou receber um convite para poder participar do evento. 144 têm uma outra relação com o tempo presente: o transe é o elemento unificador que elucida o “agora” por meio da incorporação das entidades. A música evocativa e possessiva funciona como um “elo” possibilitador, facilitador e unificador dessas potencialidades, conferindo ordem, coesão e disciplina ao terreiro. RITO COM CULPA Para os índios da selva amazônica os rituais com transe promovidos pela ingestão de cipós alucinógenos assumem caráter incestuoso com forte conotação sexual. Esses povos acreditam que, no “transe”, as visões evocam o início do mundo, quando os seres habitantes da selva foram criados: “Segundo os Tukano, depois de uma fase inicial de luminosidade indefinida, de formas e cores em movimento, a cena se aclara e se definem detalhes significativos. Vê-se a Via-láctea e o reflexo longínquo e fertilizador do sol; vêse a primeira mulher surgir das águas do rio e formar-se o primeiro par de ancestrais. Vê-se o dono sobrenatural dos animais da selva e das águas; os protótipos gigantescos dos animais de presa; a origem das plantas, da vida em si. Também aparecem os princípios do Mal; os jaguares e as cobras, os representantes das enfermidades e dos espíritos da selva que assediam o caçador solitário”143. Aqui o transe novamente remete-se ao passado mítico (para trás), aos ancestrais e à cura, por outras vias, mas o que ele tem de inovador é o seu conteúdo sexual, erótico. Reichel-Dolmatoff (1976) aprofunda essa etapa simbólica do transe indígena: “A experiência alucinatória é, para o indígena, essencialmente uma experiência sexual. Sublima-la é passar do erótico, sensual, a uma união mística 142 Santos, op. cit., p54. 143 Reichel-Dolmatoff (1986), p.80. 145 com a etapa mítica, a etapa intra-uterina, é o objetivo final alcançado por alguns, mas desejado por todos”. 144 “Em primeiro lugar, é evidente que na interpretação que o indígena faz de sua alucinações, operam processos de projeção e de feedback, de experiências culturais prévias, quer dizer, de uma memória visual e circunstancial O indivíduo viu, desde sua infância, duas categorias de modelos, a saber, os oferecidos pela natureza e os que estão representados pelos artefatos humanos. Os modelos oferecidos pelo meio ambiente físico são: a vegetação da selva pluvial amazônica; os rios; as praias de areia; as nuvens; flores; frutos; mariposas e algumas aves. Na interpretação das alucinações, as flores e frutas figuram com freqüência e fala-se em pétalas, cipós , ramos , cachos e outras formas vegetais; também se mencionam certas aves e fenômenos tais como os astros , o arco –íris, a Via-Láctea e outros mais. Também se deve ter em conta que, na semi-obscuridade da selva, as cores vivas de um jaguar são muito chamativas, e que muita cobras Têm um colorido forte. De outro lado estão os objetos manufaturados. Desde a sua primeira infância o indivíduo viu os motivos decorativos na cerâmica, nas entrecascas pintadas ou nas casas adornadas com grandes desenhos, e seu significado lhe é explicado. Os adolescentes que ainda não tomaram yaé já tem um vago conhecimento dos signos mais comuns: masculino, feminino, incesto, exogamia. Pode-se pensar que em um estado de alucinação, a pessoa protege sua memória cultural-visual sobre a confusa tela de cores e formas e “veja” então certos motivos e personagens. As alucinações não formam entre os Tukanos, um aspecto íntimo, secreto; pelo contrário, são discutidas livremente, e mais, durante as alucinações, ocorre que uma pessoa descreve suas visões e pergunte a outra o seu significado. Essa livre comunicação de experiências poderia levar a um consenso, a uma fixação de certas imagens, e, desse modo, qualquer que seja a visão, sua interpretação se adaptaria a um modelo cultural” 144 Reichel-Dolmatoff, op. cit., p.81. 146 Figura 15 Motivos codificados dos Tukanos: 1 - Masculino; 2 - feminino; 3 - fertilizado; 4 - Útero como passagem; 5 - Gotas de sêmen; 6 - Anaconda-canoa; ,7 - Frataria, * Grupo de fratárias*; 9 - Descendência; 10 - Incesto; 11 - Exogamia; 12 - Caixa de adornos; 13 - Via-Láctea; 14 - Arcoíris; 15 -Sol; 16 - Crescimento vegetal; 17 - Pensamento; 18 - Bancos; 19 - Maracas; 20 Forquilhas de charuto. Podemos concluir que a cultura indígena, assim como as culturas africanas, também socializa as suas experiências e depura seus significados à medida que o grupo fortalece os vínculos que mantém entre seus integrantes, e entre o grupo e as entidades desse mundo virtual-mágico ligado às suas origens míticas. Observamos aqui um equívoco da cultura ocidental, que não compartilha o transe e segrega historicamente a loucura e a magia. Verificamos, com entusiasmo, que no Brasil, para nossa sorte, a miscigenação das culturas africanas e indígenas conserva certos pontos axiomáticos que formam paradigmas para entender o significado dos adornos, dos territórios e da presença da 147 água (feminino) no estabelecimento contato com as entidades (para ter “força” ou ver o “saber” e a “cura”). Esses vetores culturais já foram (re)valorizados em várias sedimentações ao longo de nossa história: no canibalismo indígena, nos quilombos, nos terreiros, no canibalismo modernista e agora no neocanibalismo. Adiante aprofundaremos esses aspectos, inter-relacionando tais experiências com a virtualidade, a espacialidade e temporalidade do transe possessivos, e comparando-as com o transe coletivo-individualista da cultura rave. Assim, por opção paradigmática, atribuímos maior importância para à “curatranse” do que ao canibalismo, para não confundir esses “estados” com a violência e o sentido “atrasado” que possam vir a ter. Somente culturas milenares apresentam uma relação profunda com o transe (principalmente o transe meditativo), e estamos bem longe de compreender essa ligação. RITOS DE PASSAGEM Os comportamentos e os estereótipos assumem a importância dos ritos de passagem, que marcam etapas a serem cumpridas socialmente. Nas sociedades de cultura eminentemente oral, os ritos assumem grande importância porque assinalam passagens que transformam as hierarquias: o rito de passagem exorciza o perigo das fases intermediárias, separa-as e são uma forma de negociação. Nas sociedades africanas os ritos de iniciação marcam rupturas com o passado. Os “iniciandos” são submetidos a privações de toda ordem, para adquirir os conteúdos e terem moldados novos esquemas de pensamentos. 148 Alguns ritos são secretos, iniciáticos. Suas máscaras, drogas, cânticos, danças e conteúdo não podem ser vistos ou presenciados por todos, para evitar que o conteúdo seja diluído ou que o “saber” caia em mãos erradas ou despreparadas para assumir tal responsabilidade. As cerimônias, às vezes, restringem-se à família, mas mesmo nesses rituais íntimos há presença de crianças e de idosos. O sobrenatural adquire um caráter educativo, medicinal, unificador, tecendo e fortificando os laços culturais da família e, ao mesmo tempo, ajudando os ancestrais a identificarem e protegerem todos os membros daquela comunidade: “Polo chamou-me do outro lado da rua e eu entrei na cassa do cugu. Somente as pessoas da família estavam lá: uma mulher de meia-idade usando pequenas botas de homem e fumando um pequeno cachimbo de barro, uma moça bastante gorda e uma adolescente. A mulher explicou-me que ela era a “dona” do cugu; era a dona da casa e seu primo, que tinha vindo a Trujillo para a feira, estava tendo a oportunidade de oferecer um cugu aos pais dela, ambos nascidos em Trujillo” “Vejo que você tem um método diferente em seu trabalho. O gule não deveria ser um pequeno monte de terá? Ou isso é o gule? Ele me disse que era o gule, mas que, geralmente, ele não trabalhava assim, somente neste caso particular, em que “ a senhora estava em trânsito”, um verdadeiro gule não podia ser construído. “Por quê?” “É muito problemático.”. “Você quer dizer, chamar a mulher mais velha da família para cuidar disso?.” Novamente a mesma risada satisfeita. “Sim”, respondeu ele”essa é uma das coisas, a dona do gule”“145 Cerimônias realizadas em Cuba, em Honduras e em outros países de forte presença africana têm rituais protegidos ou mesclados à cultura católica. Embora 145 Coelho (2000), p.238-239. 149 bastante semelhantes nos conteúdos, é necessário um grande esforço etimológico para identificar as diferenças e as origens geográficas desses cultos. Em São Paulo, algumas festas populares realizadas por afrodescendentes apresentam elementos semelhantes e, da mesma maneira, são famílias que ordenam os cultos. Os rituais de passagem, cultos e “agradecimentos” fortificam dos laços familiares e da comunidade. No dia de Cosme e Damião, a comida é elaborada coletivamente, e as crianças são as primeiras a serem servidas. É costume receberem balas, doces e presentes. A culinária também é regida pelo “gosto” do santo da pessoa, e algumas tarefas são obrigatórias para agradar o santo . É comum que as pessoas que patrocinam as festas de transe possessivo tornem-se responsáveis por tudo. Geralmente essas pessoas têm deveres para com a comunidade, ou temem por sua saúde caso não cumpram as obrigações e os preparativos. Assim, as cerimônias tornam-se ainda mais fechadas porque há verdadeiros “donos”, que acabam privatizando as festas. Nosso conhecimento sobre as cerimônias marcadas pela religiosidade afrobrasileira - Carnaval, festa de Iemanjá, festa do Divino, Bumba-meu-Boi, Folia de Reis, Maracatu etc. - são estereotipados. Como anteriormente expusemos, a TV, o rádio e os jornais difundem somente o aspecto profano dessas festas, mas há rituais de passagem e relações territoriais ocultas que lhes imprimem significados iniciáticos. A cultura brasileira é composta por elementos provenientes das culturas africana, indígena e portuguesa. Em decorrência da sujeição a que foram submetidos no período colonial, e da concorrência entre as diferentes irmandades - que 150 encantavam os grupos rivais, impedindo-os de saírem à rua -, os negros tiveram que ocultar ou mesclar seus conhecimentos146. Coelho (200) conclui, em seu diário de campo: “A propósito do culto do gubida, ele me disse que esta palavra é na verdade o nome de um poeta da antigüidade. As pessoas começaram a chamar o dogo, que foi instituído por ele, de «dança do Gubida» e , com o passar do tempo, tornou-se dança gubida, sem maiúscula. “Você sabe quem era este Gubida?” “Não.” “Maomé”147 Engoli isso pasmo,mas não tive nenhum comentário inteligente148” Esse diálogo indica que os espíritos, os encantados e outras formas de possessão guardam estreita relação com o islamismo e, portanto, atravessaram desertos, montanhas, matas e oceanos, influenciando seus discípulos durante séculos, em diferentes culturas e em territórios distintos. Assim, mesmo sem conhecer a dança do Gubida, podemos deduzir que ela é composta por giros, repetições e timbres agudos – emitidos pela voz ou por instrumentos metálicos -, pois o transe possessivo tem raízes africanas e está ligado ao transe purificador sufista. A cultura brasileira pode ser comparada às rochas localizada no fundo dos lagos e dos oceanos, cujas camadas escondem fósseis de uma vida rica e intensa que ocorreu em outras eras. O aparente deserto de nosso povo e de sua cultura guarda verdadeiros fósseis 146 Em Cajuru (MG), colhemos o depoimento do Sr. Luiz sobre os Ternos de Congadas: “Eu cheguei aqui em 13 de maio de 1927... nasci em Portugal em 16 de abril 1904 às 8 horas da manhã. Em Portugal, Figueira da Foz, distrito de Coimbra Não tinha aquelas coisas que o povo falava... Aquele tempo até chorava na despedida da festa.... hoje o povo não tá tão chorão...Cada um grupo de terno queria ser melhor que o outro...eu já não alcancei muito essas coisas, esse tempo...enfim... hoje tá tudo mudado, né? O outro ia lá e desamarra ele... batia caixa tá! tá! tá! Sai daí Perrenho... Vai embora, é isso aí! Tá amarrado... Tá amarrado... Prá lá da ponte meu pai pegou a caixa e bateu!... Uma amarração: quando a festa acabou, tinha acabado um terno de fora... tinha acabado... Ele reclamava que tinha que não ir tomar conta da Igreja... Mas era um terno (terno de Congada e de Reis são grupos de músicos) do Paraíso... Tava amarrado, não saía... Hoje não existe mais dessas coisas...” 147 Grifos nossos. 148 Coelho, op. cit., p.265. 151 vivos que esforçamo-nos por documentar, mas cuja análise, infelizmente, excede os limites do presente trabalho. RITO DO PODIUM A investigação das (re)elaborações dos rituais possessivos nas diferentes miscigenações ocorridas no Atlântico poderia ser objeto de outro estudo, e esclareceria muitas sutilezas e aperfeiçoamentos entre a consonância musical, a matemática, as nossas cognições e os estados alterados de consciência. Para simplificar, admitamos que houve a preservação e a evolução do transe relacionado à cura. Em regiões afastadas e distantes, ele permaneceu “protegido” geograficamente, e pôde se desenvolver à margem das interferências da sociedade ocidental, que geralmente distorce seus conteúdos ao retirar os ritos do âmbito da comunidade e da família. Os meios de comunicação venceram o isolamento geográfico, e apropriaramse do transe com a etnomuisic, a worldmusic e a música eletrônica. Veremos, inicialmente, como alguns ritos, próprios do meio digital, também promovem a socialização e a transmissão de conteúdos. A seguir, discorreremos sobre a apropriação dos conteúdos iniciáticos pelas tribos da música eletrônica. O entendimento do ritual do podium ou do feito talvez seja a contribuição mais importante de nossa investigação. A sociedade divulga amplamente, através dos meios de comunicação, as ações das tribos urbanas: rebeliões, pichações, linchamentos, vandalismo, invasões de computadores e outras atitudes da 152 “decadência urbana”. Essa divulgação audiovisual torna-se uma propaganda, e o resultado obtido é inverso àqueles esperado. As tribos urbanas colecionam seus feitos, que são transmitidos verbalmente. Analisando o comportamento dos primeiros hackers Turkle (1989) relata que a marca de cereais matinais Crunch fornecia um apito de brinde nas embalagens. Um Hacker descobriu que o apito oscilava na mesma freqüência dos ramais telefônicos, permitindo ligações à longa distância. O Hacker recebeu o apelido de Capitão “Crunch” que ao. inciar uma chamada telefônica, apitava e conseguia “abrir” o complexo sistema telefônico americano. Com esse apito, era possível fazer inúmeras ligações gratuitamente: “0 Crunch fez experiências com o apito durante vários anos. As suas proezas tomaram-se cada vez mais extraordinárias, cada vez mais lendárias. O seu «feito» mais mitificado ficou conhecido por «a chamada à volta do mundo». Crunch sentou-se numa sala com dois telefones, na Califórnia. Utilizando o apito e os seus conhecimentos de circuitos e de códigos telefônicos internacionais, pegou no primeiro telefone e marcou o número do segundo. A chamada começou na Califórnia, passou por Tóquio, Índia, Grécia, Pret6ria, Londres, Nova Iorque c voltou à Califórnia - O segundo telefone tocou- Ele falou para o primeiro telefone e ouviu-se no segundo, vinte segundos mais tarde. Mas até isso se tomou monótono e precisou de variantes- Vencer significa tomar o sistema e o desafio cada vez mais complexos. Por fim, havia quatro telefones e ele telefonava a si próprio, à volta do Mundo, simultaneamente em dois sentidos149”. 149 Turkle,. op. cit.,p.193. 153 Figura 16 Colourphon As imagens do projeto Herança Nacional foram produzidas fotografando 100 pessoas diferentes. As fotografias selecionadas eram (re)-criadas para produzir oito pessoas não-existentes. A carne foi doada por estudantes da Artec, seus amigos e familiares. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera casualidade. Nós não pagamos nenhuma conta de cirurgião plásticos 150 . Assim como Descartes, o Capitão Crunch estabeleceu uma máxima: “virtualizo, logo existo!” Ao sentir sua voz atravessando o planeta nada, mas fez que sentir seu corpo virtual se deslocar no espaço sem o peso do corpo real. Esse feito não teria sentido algum se permanecesse no âmbito individual. Ao subir ao podium, os feitos virtualizados devem ser devorados em conjunto. Os meios de comunicação ocupam o lugar do podium, o neotribalismo é devorador de seus próprios feitos mesmo a trás das máscaras e dissimulações. 150 Projeto National Heritage do artista multimídia londrino Mongrel Harwood et al.: Colourphon The images in the National Heritage paper were produced by photographing 100 different people. The separate photographs were then selectively cross-bred to produce eight non-existent people. Flesh was donated by students at Artec and by friends and family. Any resemblance to persons living or dead is tough. We pay no plastic surgeon bills. (www.mongreal.org.uk) 154 O corpo virtual independe da carne real: as imagens acima formam um nãocorpo, que questiona o preconceito racial. Assim, o corpo virtualizado é expatriado, volátil, e tende a achar seu grupo ou sua comunidade independentemente do corpo real. De maneira inversa, um corpo exposto à iluminação óptica ou digital torna-se volátil, e é devorado pelos corpos reais atados ao cotidiano massificado. Os noticiários de TV que circulam na Internet têm maior liberdade. Assim, uma emissora russa optou por despir seus âncoras nos noticiários divulgados pela rede, e obteve sucesso e prestígio, rompendo o ostracismo a que os países anteriormente comunistas estão submetidos na mídia. Programas televisivos, como o Big Brother e seus clones expõem pessoas normais, em uma casa aparentemente normal, à volatilização midiática. Dentro da casa o rito do podium é estabelecido, com inúmeras tarefas banais a serem cumpridas. A presença daqueles que estão dentro da casa é comandada, virtualmente, por aqueles que estão do lado real (de fora). Quando saem da casa, “os eliminados” comentam o que realmente aconteceu nos bastidores, quando seus corpos foram compartilhados. Alguns momentos fora da iluminação óptica são extremamente valorizados. Os segredos desses momentos são revelados em infinitas matérias sobreexpondo o corpo e a imagem reais - e acabam destruindo qualquer relação anteriormente existente entre essas pessoas, ou formam novos agenciamentos pósvirtualidade. Sobe ao podium a pessoa que consegue domar o corpo virtualizado coletivamente, e fazer com que sua personalidade seja bem degustada. 155 RITO DE SUBLIMAÇÃO Alcançar o corpo virtualizado, coletiva ou individualmente, é uma meta das tribos urbanas. O grupo estudado - Baque Bolado - tem uma forte relação com o transe possessivo, obtido pela música percussiva. No decorrer da pesquisa, presenciamos rituais de sublimação coletiva em várias apresentações: ao som das alfaias, o corpo real deixava seu posto e juntava-se ao corpo coletivo (músicos/platéia), formando o “Eu coletivo”. A maioria das pessoas do Baque tem consciência dessa comunhão coletiva e sempre, ao término das apresentações, o corpo real entra em estado de exaustão. A sensação de prazer é comungada e sublimada por todos, e compensa os demorados ensaios e preparativos para as apresentações. Sentir o “outro” através da música é uma experiência de sublimação que provoca profundas alterações no corpo. Sentíamos uma necessidade compulsiva de sempre melhorar as apresentações, e de darmos o melhor de nós. Essa sublimação motivou algumas pessoas a trocarem o grupo pela própria família, e notamos que os ensaios duravam mais de oito horas. O tempo para atingir a afinação entre os trinta integrantes do grupo era cada vez maior, exigindo uma renúncia das vidas individuais em função das necessidades coletivas. Essa sublimação também foi detectada na cultura da música eletrônica. Os DJs são os responsáveis pelo “vôo” da platéia: a sublimação. Mas o transe da música eletrônica não é o mesmo que o do grupo Baque. Nas raves, a função do DJs e dos VJs é a de bombardear sons rápidos e imagens, na tentativa de ocupar os cinco sentidos da pessoa. O DJ e artista plástico Angelo Palumbo151 explicou-nos a 151 Angelo Palumbo foi entrevistado pela pesquisa é programador visual, artista plástico e VJ. Foi unsdos primeiros artistas brasileiros a utilizar a técnica de plotagem em quadricromia. A técnica semelhante a um xerox colorido na década de oitenta era cara, mas permitia a reprodução de imagens em adesivos, hoje a 156 diferença entre a repetição quotidiana e a repetição da música eletrônica, associada às imagens icônicas. “Tente imaginar uma situação que te acelere ou diminua seu batimento cardíaco, ou então acelera ou diminua o nível de serotonina 152 na corrente sanguínea. Então, a repetição acaba funcionando como uma hipnose. Ela, justamente porque a. mente está ocupada em decifrar o código repetido velozmente, entendeu, ela fica presa àquilo e àquela freqüência (...) subindo e descendo. Aquilo te mantém em um estado elevado de consciência, um estado alterado de consciência. A rotina do dia-a-dia não tem nada a ver com a repetição de um batimento, a rotina do dia-a-dia é muito mais um narcótico que te deixa sentado, cômodo... O ser humano precisa... O estado natural do ser humano é de se sedentarizar, ficar sedentário, procurar estar numa situação estável... Estabilidade.... Quando ele alcançou aquela estabilidade, ele quer que aquilo se repita... Nada pode acontecer... O vulcão não pode estourar... Isso vai tirar a estabilidade (...) A partir do momento que perdeu a estabilidade, ele vai ter que se mexer... Você vai ter que se preocupar com comida... Então, o que acontece se você ocupar sua mente com teu trabalho diário, com a mesma novela? Ela vai te dar essa garantia de estabilidade, mas não é verdade É confortante você ter aquela garantia que tudo está na rotina. A rotina que te mantém ocupado numa freqüência...” propaganda utiliza essa técnica para personalizar carros, vidros e placas sinalizadoras. Atualmente desenvolve seu trabalho com imagens rápidas associado ao som da música eletrônica. 152 Segundo Lapate op. cit., p.37: “A serotonina é encontrada nas formações reticulares, nas estruturas do sistema Límbico e sua concentração é máxima na região hipotalâmica A serotonina age inibindo as atividades e comportamentos. Está associada aos sentimentos de prazer e bem-estar. Manifestações da produção baixa: alterações de humor, comportamento compulsivo e outros comportamentos inadequados. O LSD interage com os receptores de serotonina”. Os trababalhos de Junqueira et al. (1985), p. 186-170.,sobre a ação da serotonina: “ A serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT) é encontrada na glândula pineal dos mamíferos, é um inibidor sináptico que diminui de forma muito acentuada, a sensitividade da pessoa à dor. Atua como mediador químico nas terminações nervosas pós-ganglionares do sistema simpático. Entre os neurônios ocorrem as ligações sinápticas, que fazem com que os estímulos cheguem ao cérebro. Sinapse: Quando um ponto do axônio é estimulado artificialmente, o impulso nervoso é conduzido em ambas as direções, a partir do ponto estimulado. Todavia, o impulso que se transmite em direção ao corpo celular, atravessando-o e se encaminhando até as porções finais dos dendritos, não é capaz de excitar outros neurônios. Esta excitação só ocorre com o impulso que se dirige à arborização final do axônio, o telodendro. Pode-se dizer que, geralmente, cada neurônio transmite impulsos apenas através do seu telodendro e só os recebe de axônios de outros neurônios. A cada transmissão do impulso nervoso de um neurônio para outro depende de estruturas altamente especializadas, as SINAPSES. Estas se encontram nos locais de contato de um axônio com os dendritos ou pericário(s?) de outros neurônios. Embora a maioria das sinapses se estabeleça entre o axônio e o dendrito (axodendrítica), ou entre o axônio e o pericário ou corpo celular (axossomática), há também sinapses entre denários (dendrodendríticas) e axônios (axioniônicas). Há uma tendência recente de considerar também como uma sinapse a terminação nervosa em células efetoras, tais como células glandulares e musculares”. 157 Assim, podemos verificar que o transe das raves não remete ao passado, mas agem no presente, saturando os sentidos com imagens e sons bombardeados em alta freqüência, que ocupam a mente. O transe das tribos da música percussiva, apesar de profano e (re)elaborado, tenta uma comoção coletiva que estimula os sentidos visual e auditivo. Entretanto, ambos buscam uma sensação extra-cotidiana, e procuram estímulos que desprendem o indivíduo da rotina. A velocidade, a freqüência e os ritmos “atuam” no corpo humano em uma sublimação coletiva, característica dos anos 90. As substâncias psicotrópicas ou psicoativas não são exclusivamente “drogas” algumas substâncias são naturais e tem propriedades pertubadoras da atividade cerebral. A dependência não está circunscrita ao toxicômono mas, à toda a sociedade mediatizada do esportista ao espectador de TV: a produção da dopamina153, noroadrenalina154 eacetilcolina155 são substâsncias presentes naturalmente nas endorfinas. E Palumbo acrescenta: 153 Segundo Lapate op.cit. , p.35: “A dopamina dá prazer e entusiasmo. Pode ser elevada por um abraço, um beijo -assim como pelas sensações que vêm das drogas. Não é apenas uma química que transmite sinais de prazer, mas pode, de fato, ser a molécula-mestra do vício. Ela também desempenha um poder extraordinário sobre a capacidade de aprender e a memória. É encontrada em altos níveis no sistema límbico -e principalmente ao nível dos gânglios basais. Sabe-se que existem cinco receptores principais de dopamina: d I, d2, d3, d4, e d5. Nas psicoses e esquizofrenia, eles agem sobre a dopamina. A função psicótica está principalmente nos receptores d2. E os medicamentos que atuam nos receptores d2 têm se comprovado como os de maior eficácia e menores efeitos colaterais. Efeitos provocados: sua concentração pode influir na excitabilidade, na euforia Read Montague (Centro de Neurociência Te6rica da Escola de Medicina Houston's Baylor) sugere que se pense na dopamina como um prêmio que o cérebro distribui com parcimônia às redes de neurônios para se aumentar as escolhas de sobrevivência. Manifestações do excesso de produção: associado ao comportamento psicótico, incluindo alucinações e paranóia, e pensamentos bizarros da esquizofrenia. Manifestações da baixa produção: nos gânglios basais, ocasionando tremores relacionados com o Mal de Parkinson. O que une todas as drogas que alteram o humor é a; incrível capacidade de elevar os níveis de dopamina no cérebro.” 154 Lapate op.cit., p.36 “Noradrenalina Encontra-se em diversas partes do encéfalo. Sua concentração é máxima na região hipotalâmica, sendo encontrada também no sistema límbico, no tálamo, e nas projeções do córtex frontal e cerebelo. Efeitos provocados: vivacidade, concentração, emoções positivas e a analgesia (supressão da dor). Manifestações do excesso de produção: comportamento impulsivo e ansiedade. Manifestações da baixa produção: depressão, dificuldade de concentração “ 155 Lapate, op. cit. p.37: “Acetilcolina É encontrado nos terminais dos neurônios motores periféricos, nos nervos que estão associados aos músculos do esqueleto e que permitem o movimento voluntário. No sistema nervoso central a acetilcolina é encontrada no c6rtex motor e numa área conhecida como núcleo basal que está abaixo do tálamo. A acetilcolina está relacionada à vivacidade, à capacidade de aprendizagem, ao humor e ao sono. No Mal de Alzheimer, há uma perda de acetilcolina e de suas estruturas dependentes. Há perda de funções associadas, como a memória. A nicotina imita os efeitos da acetilcolina”. 158 “Tudo funciona para o DJ na velocidade... Não é só a questão do ritmo, mas (do) volume de som... Se você confina um cara num volume de som alto prá caralho, ele vai sentir uf, uf, uf, uf, o pulsar do negócio, então isso vai tá influenciando ele... Entendeu? São (...) essas coisa que influenciam também o estado alterado de consciência. Por exemplo: um estado alterado de consciência muito insignificante pode ser causado até pelo próprio carro... Quando você guia um carro numa estrada, a uma alta velocidade, você esta viajando (...) nervoso, ou com pressa de chegar.. Não sei se você já sentiu essa energia chegando em casa... Tá meio louco eufórico... Tá meio..... você sabe que o pneu girando capta energia com o atrito no asfalto: ele faz com que o carro acumule energia, e o carro transmite. Tanto é que algumas fábricas criaram uma borracha que vai batendo no asfalto para descarregar essa energia, não é? Então tudo pode te dar sensação, algumas pesadas outras mais brandas, como essa que eu estava falando”. Identificamos que a repetição da música eletrônica tem função diferenciada da música percussiva do Baque e dos outros grupos. Assim, desenvolvemos um quadro comparativo para entender essas pequenas diferenças que vão nos permitir estabelecer uma rica diferenciação do transe ligados às tribos dos anos noventa. 159 QUADRO SONORO COMPARATIVO Decidimos analisar seis músicas gravadas por profissionais utilizando CD comerciais. A pesquisa obteve em campo gravações com boa qualidade sonora, mas não teve acesso as músicas étnicas de outros países. Para efeitos de equalização e nível sonoro buscamos as referências sonoras brasileiras também em CD descartando as gravações feitas. Inicialmente testamos vários softwares sonoros que faziam estatísticas de freqüência (Sound Forge, Vegas, Cooledit), mas os resultados que apresentaram eram incompreensíveis. Assim, optamos por analisar as músicas com um software utilizado pelos DJs para mixar as músicas. Essa ferramenta permitiu a visualização da música como um todo, e possibilitou a ampliação da onda sonora digitalizada. Selecionamos seis músicas que têm relações diretas com o transe ou com estados de consciência alterados e as digitalizamos: 1. Baques de Maracatu do CD Manifesta da Banda do Baque Bolado.(Mestre Valter França e Banda do Baque), faixa 08 com 2´27´´. Homenagem a Mestre Valter e ao Maracatu estrela Brilhante. 2. Boyobi música cerimonial noturno para os espíritos Yadoumbé quando recebe o Bobé do povo Bayaka (pygmeus) das florestas da África Central..Boyobi at Spear-Hunting Camp (part one) CD Ellipsis Arts. Faixa 03 com 5´52´´, Sarno(1995). 3. Pedra Rolando ritmo coco do CD Zambê Projeto Nação Potiguar - RN faixa 03.com 2´47´´. 4. Procession Aãda (Le´fu) do CD Maroc Hãdra des Gnaoua d´Essaouira. Radio France. Faixa 01 com 5´18´´. 5. Zkir by Naqshbandi Sufis of Turkestan, CD Trance 2- Musical expeditions Ellipsis Arts. Faixa 01 com 19´37´´. 6. Rave Experience DJ Rica Amaral- Trama, sem título. Faixa 07 com 7´02´´. 160 Em seguida à digitalização o computador pode calcular as bpm (batidas por minuto) Os resultados obtidos foram mostrados na tela do computador: Figura 17 Relação das músicas em função dos batimentos por minuto (bpm). Para essa empreitada o software escolhido foi o MixMeister. A primeira música com maior bpm, entre as demais músicas, foi Pedra Rolando que é um coco do grupo Zambê de Natal (RN). A segunda foi uma música eletrônica, sem título, mixada pelo DJ Rica Amaral. Essas duas músicas obtiveram os maiores índices de bpm. Para comparar as freqüências e os pulsos das duas músicas ampliamos o som digitalizado. As ondas sonoras digitalizadas apresentaram semelhanças entre os pulsos e na sua configuração. O quadro também mostrou as músicas do grupo Baque Bolado e a música dos Gnawa com bpm próximas, e pulsos semelhantes. As elipses (figura 18) mostram “picos” parecidos e podemos observar a regularidade dos picos da música eletrônica que são de forma repetitiva. 161 Nas duas músicas, com bpm mais altas, observamos a mesma semelhança entre a visualização das ondas sonoras digitalizadas: ambas apresentam uma regularidade de pulsos com formas semelhantes esses pulsos estão na média de 140 bpm. Figura 18 Os picos dos pulsos apresentam formas regulares e desenhos semelhantes. Analisando os picos de freqüência das músicas com bpm semelhantes, identificamos uma similaridade acentuada entre os pulsos. Apenas a música dos pigmeus não apresentou o mesmo tipo de configuração regular (figura 19) entre a dinâmica, os pulsos e a freqüência. Esses picos na música dos Bayacas apresentam a 162 configuração em forma de patamar, indicando talvez a dissonância utilizada pelo povo Bayaca. Não tivemos acesso a um software que analisasse as dissonâncias. Figura 19 Pulsos em forma de patamar revelam uma dissonância Comparado as músicas do Baque Bolado com o Hãdra percebemos que elas apresentam um número próximo de bpm. Analisando seus picos de freqüência observamos a mesma semelhança do coco dos Zambes com a música eletrônica: pulsos regulares com a mesma configuração. 163 Figura 20 Pulsos da música do Baque com o Hãdra Marroquino apresentam semelhanças O computador permite essas comparações visuais do som, que podem ser interpretadas. Há semelhanças entre pulsos (batidas) por minutos entre as músicas selecionadas. Sabemos que, em nossos ouvidos, as batidas da música influenciam os batimentos cardíacos e quanto mais alta for a sua freqüência, a tendência é de aumentar os batimentos cardíacos e há a liberação das endorfinas na corrente sanguínea. Concluímos que o coco, por ser uma música de trabalho, ajuda à liberação das endorfinas com sua alta pulsação que, por sua vez, possibilita a suportar a dor física do trabalho repetitivo. Confirmamos pelas entrevistas com os DJs e pela 164 participação em várias raves, que a música eletrônica (de pulsação alta) também estimula a liberação de endorfinas, ajudando transportar ao estdo de êxtase e ao esforço prolongado da dança. Nas raves é há um lugar especial para uma pausa onde se recupera a normalidade do fôlego e dos batimentos cardíacos. Vejamos a comparação das músicas com os estados físicos156 e a freqüência em bpm: Figura 21 Comparação entre as músicas, a freqüência cardíaca e os estados físicos máximos. 156. Guyton (1989), p. 210- 211. “A freqüência rítmica da contração das fibras musculares no nodo SA humano é de aproximadamente 72 batimentos por minuto, enquanto que o músculo atrial humano tem ritmo da ordem de 40 a 60 batimentos por minuto e o ventrículo de apenas 20 batimentos por minuto. Visto que o nodo SA tem freqüência mais elevada do que qualquer outra região do coração, os impulsos originados no nodo SA são propagados para os átrios e para os ventrículos, estimulando essas regiões tão rapidamente que nunca conseguem ficar lentificadas até seus ritmos naturais. Como resultado, o ritmo do nodo SA passa a ser o ritmo de todo o coração, razão por que o nodo SA é chamado de marcapasso do coração. Repouso - não treinado- Débito sistólico: 75 ml- Freqüência: 75/min. Repouso – treinado- Débito sistólico: 105 ml- Freqüência: 50/min. Máximo - não treinado -Débito sistólico: 110 ml- Freqüência: 195/min. Máximo – treinado- Débito sistólico: 162 ml -Freqüência: 185/min. A eficácia do bombeamento cardíaco de cada batimento é de 40 a 50% maior no atleta muito treinado do que na pessoa não treinada, mas, em repouso,ocorre uma redução correspondente da freqüência cardíaca”. 165 CONSIDERAÇÕES FINAIS No início da pesquisa, conhec íamos somente o transe que ocorre em cerimônias religiosas protestantes que é fartamente divulgado pelas rádios e TVs “religiosas”. O transe protestante dessas seitas procura “espantar os demônios” e purificar a alma dos fiéis ao custo de valiosos dízimos. Muitos mestres de Maracatu, Congadas e Terno de Reis sentem dificuldades de manter suas companhias -como o Seu Salustiano- e infelizmente, acabam se rendendo ao protestantismo. No presente estudo, buscamos identificar e registrar outros tipos de transe, mapeando os territórios da tribo percussiva. O transe de comoção dessa tribo guarda fortes ligações com os transes possessivos e de “cura” dos terreiros. Os sons, timbres e ritmos gravados em campo apontam algumas relações entre o aparato sensorialvisual-auditivo humano e o êxtase. Desta forma, selecionamos cinco músicas com as características mencionadas, e comparâmo-las à música eletrônica, que provoca o transe pela anestesia dos sentidos. Tal comparação permitiu-nos constatar que as músicas percussivas aqui investigadas - como o coco - procuram, tanto quanto a música eletrônica, desligar a mente, promovendo a sensação de união que fortalece o grupo. Uma das características das tribos dos anos noventa é sua preocupação em promover manifestações que levem ao êxtase coletivo. Diferentemente dos agenciamentos estudados por Maffesoli (2000) - relacionados à força motriz de grupos que apresentam condutas sociais de exclusão e de identificação, como a máfia italiana – não nos ativemos, neste trabalho, aos aspectos ligados à exclusão, à 166 violência e à religião, optando por investigar a influência da consonância musical, e suas implicações físicas e matemáticas, sobre o aparato cognitivo humano. A investigação mostrou que: 1. Os sons de alta e baixa freqüências, as harmonias e as dissonâncias repetitivas e cadenciadas promovem os Estados Alterados de Consciência (EAC). Isso explica a presença de vozes agudas, femininas ou de crianças, e de tambores harmônicopercussivos nos rituais e festas das tribos estudadas. A necessidade de obter timbres metálicos foi um dos fatores que motivou os povos africanos e árabes a desenvolverem a metalurgia. As características apontadas estão presente nas canções dos pigmeus, nos ritos possessivos africanos, nos rituais indígenas brasileiros, nos terreiros de candomblé e umbanda, nas folias de reis, no bumbameu-boi e em outras manifestações sonoras. Assim, estudos mais aprofundados, que analisem especificamente essas freqüências e harmonias dissonantes que alteram nossos sentidos, devem ser implementados. 2. A exposição a esse tipo de timbre não ocorre somente nos ritos iniciáticos, mas no contato direto e indireto com os meios eletrônicos de última geração - das festas rave ao videogame. A massa sonora e visual digital é elaborada propositalmente para ocupar os cinco sentidos dos indivíduos, provocando evidentes alterações psicológicas e modificações no aparato motor-cognitivo, o que leva a novas associações e (re)elaborações de espaços e territórios: essa é a base do neotribalismo. O processo de aprendizagem humano é permeado pela interação com o(s) grupos(s) ou comunidade(s) e com o meio em que o indivíduo habita. Inicialmente, a organização social era calcada no plantar, no caçar e no colher. A proteção e o abrigo garantidos pelas cidades originaram novos agenciamentos, até a angústia duchampiana: a velocidade dos signos e sua impessoalidade. Criamos máquinas 167 complexas, que interagem com o nosso processo de evolução. A coevolução a partir do feedback positivo157 incide sobre a nossa carga genética. Assim, temos que: “quanto maior o valor de sobrevivência de uma variação, maior a contribuição que ela dá para o aumento da probabilidade de sobrevivência e reprodução do indivíduo em que se manifesta, e conseqüentemente também é mais intensa a pressão seletiva a seu favor”158. O grande feedback positivo e agenciador das tribos em seus novos territórios voláteis é o transe promovido pela música eletrônica. Para melhor entender esse processo, é necessário compreender, sob a óptica do pensamento complexo, as diferentes forças que atuam sobre o tecido urbano e que não podem ficar confinadas à visão estreita da violência e da exclusão. Não que não haja violência nesses processos sociais, mas, se nos restringirmos a esse aspecto, será impossível entender as tribos não violentas, como é o caso do Baque, que se assemelha a muitos outros grupos urbanos que lutam pela sobrevivência na cidade grande. O estudo e a análise dos diferentes processos levaram-nos a concluir que, na área de comunicação, as investigações devem ter um caráter multidisciplinar; que não podemos hesitar em utilizar as novas teorias e máquinas, que auxiliam a mente aguçada do pesquisador a encontrar novos horizontes. A velocidade de crescimento do cérebro humano ao longo da evolução da espécie assusta aos paleontólogos159 que, comparando-a à velocidade média de crescimento cerebral de outras espécies, concluem que essa “anormalidade” humana 157 Feedback positivo é a informação decorrente da soma entre a informação genética, o feedback das máquinas e a cultura. 158 Oliveira (1999), p.85. 159 Há 4 milhões da anos nosso cérebro tinha um volume de 400 a 600cc. Por volta de 200.000 – 100.000 anos a.C. surge o Homo sapiens, dotado de habilidades como construir ferramentas, elaborar linguagens, conceber mitos e implementar uma complexa organização social. 168 pode ser explicada pelo feedback positivo postulado pela teoria da coevolução. Outros fatores também contribuíram para a evolução do homem, como sua condição de bípede (a adoção da postura ereta), a capacidade de fabricar ferramentas, o desenvolvimento da linguagem e o polegar opositor (capacidade de pegar os objetos com os dedos e não com as mãos). O fato é que o homem que hoje existe sofreu uma coevolução que lhe forneceu capacidades e potencialidades, mas seu aparelho genético não sofreu grandes alterações ao logo dos milhares de anos de sua presença na terra. Isso provoca inúmeras controvérsias que não serão aqui explicitadas, mas vale ressaltar que a capacidade que o homem tem de acumular informações assemelha-se ao hardware dos computadores. A caixa craniana desenvolve-se durante a infância, e os cuidados maternos, a boa alimentação e a influência cultural são fatores determinantes para o desenvolvimento das aptidões adquiridas, formando um conjunto de potencialidades. A fala e a escrita são dependentes da cultura e do desenvolvimento lingüístico da sociedade em que o indivíduo nasce. A fala está ligada às aptidões geneticamente desenvolvidas, o que não ocorre com a escrita, que pode ou não ser desenvolvida pois integra o quadro das aptidões potencializadas. As aptidões que podem ser desenvolvidas culturalmente (escrita, música etc.) não modificam o nosso código genético a curto prazo, mas influenciam a velocidade de crescimento cerebral, potencializando nosso cérebro a conceber melhores cognições entre os hemisférios, a guardar cada vez mais informações, a estabelecer níveis densos de raciocínio. No século XXI, o cérebro do homem tem a novidade de ser auxiliado por redes telemáticas (Internet, inteligência artificial, VRML etc.), o que leva à formação de um verdadeiro sistema homem-máquina sobreposto ao 169 mundo real, um verdadeiro hipercortex160 virtual. Os estados alterados de consciência são a mola propulsora de novos agenciamentos, e logo integrarão o nosso dia-a-dia, levando-nos a absorver a riqueza que a cultura brasileira apresenta nesse aspecto. A música vem fazendo bom proveito dessa fonte há muito tempo. Assim como nos distanciamos da semiótica, do discurso do excluído e da sociologia, procuramos neste trabalho, visualizar as tribos urbanas em relação ao tempo e ao espaço. Essas duas categorias físicas têm imbricações com a filosofia e a cosmologia, razão pela qual debruçamos-nos sobre as tribos que têm como referencial a busca pelas raízes brasileiras. Nesse momento deparamo-nos com a delicada questão das drogas, e verificamos que o som percussivo age, sobre alguns neurotransmissores, de maneira semelhante a elas161. Na sociedade atual, a imagem tem sido privilegiada, em detrimento do texto e do som, que são relegados a um plano secundário. Os DJs e VJs estão bastante adiantados no que concerne ao processo de integrar o som à imagem, e de retirar dessa fusão os EAC que permitem a indução ao êxtase coletivo das raves. As investigações realizadas na área de comunicação não acompanharam o grande salto dado pelas tribos urbanas dos anos noventa e essa questão tem, a nosso ver, aproximações equivocadas. Concluímos o presente estudo verificando as hipóteses formuladas, e visualizando o “eu coletivo” volatilizado se agrupando e formando tribos. O corpo virtualizado movimenta-se pela mímese: como no trânsito urbano, às vezes sem 160 Ascott (1997). 161 Lapate op. cit., p.35: “Neurotransmissores: são substâncias químicas (aminas), presentes no tecido nervoso, que emitem sinais, produzidos no interior dos neurônios e liberados pelas pontas alongadas e finas, os axônios. Os sinais recebidos estimulam a membrana dos neurônios. os axônios influenciam a atividade cerebral em muitas regiões, inclusive no nucleus accumbens, a estrutura primitiva que é uma das chaves dos centros cerebrais do prazer. os neurotransmissores estão expostos a todos os pensamentos e emoções, e aprendizado; eles carregam os sinais entre todas as células nervosas do cérebro, ou neurônios.Todos os estados de ânimo são sintomas do funcionamento de neurotransmissores”. 170 pensar, acabamos imitando os movimentos de outro carro ou de outra pessoa. Esse “vagar” em trânsito é o cimento dos novos agenciamentos e dos novos estados perceptivos das tribos. A cultura rave acerta quando diz que as novas drogas não fazem parte da “festa”: elas são complementares. A toxicomania não é a mola propulsora dos novos estados perceptivos. O que faz “festa” é a interação entre a música ritmada e as imagens digitais processadas pelo computador. O grupo Baque Bolado não utiliza as máquinas e a música eletrônica, mas apropriou-se do transe xamânico e tornou-se visível no território volátil das tribos. Esperamos que o esforço despendido na realização deste trabalho auxilie futuras investigações sobre a questão urbana, com menor carga de preconceitos e maior profundidade. Finalizando, cumpre-nos ressaltar que tomamos alguns cuidados para não revelar aqui os conteúdos xamânicos de forma inapropriada. Desta forma, as imagens obtidas foram alteradas digitalmente, com o objetivo de preservar o verdadeiro tesouro constituído pela cultura iniciática brasileira. 171 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABDOUNUR, O. J. Matemática e música. o pensamento analógico na construção de significados. São Paulo: Escrituras, 1999. ARAUJO, J. R.. O discurso do xamã e do lugar de onde fala: estudo de comunicação e mediações em culturas excluídas. São Paulo. ECA-USP. 1999. ART ENSEMBLE. Distúrbio eletrônico / critical. Tradução Leila S. Mendes. 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