o papel do senado federal no controle difuso de
Transcrição
o papel do senado federal no controle difuso de
O PAPEL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE Luiz Filipe Fernandes Carneiro da Cunha¹ RESUMO A Constituição Federal define, no bojo do art. 52, X, a competência privativa do Senado Federal para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade. Parcela importante dos juristas pátrios tem sustentado uma nova perspectiva para a atribuição senatorial, entendendo que a inserção dos institutos da súmula vinculante, da repercussão geral e da súmula impeditiva de recursos no ordenamento jurídico brasileiro (resultado da tendência de jurisprudencialização do direito e do respeito ao precedente judicial), a necessidade de salvaguarda dos princípios da força normativa e supremacia da Constituição e a inércia da Casa da Federação, quando instada a desempenhar referido mandamento constitucional, ensejam a mutação do artigo 52, X, da Carta Magna, de forma a desencadear a abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade. O presente artigo científico pretende analisar a citada mudança de interpretação no âmbito do controle concreto, cuja finalidade é tornar o Senado Federal órgão apto tão somente a conferir publicidade às decisões definitivas do Pretório Excelso, que, por sua vez, desde seus pronunciamentos, já possuiriam eficácia geral. Palavras-chave: Senado Federal. controle difuso. mutação constitucional. ABSTRACT The Federal Constitution defines, in the midst of art. 52, X, the exclusive authority of the Federal Senate to suspend in whole or in part the execution of any law or normative act declared unconstitutional by a final decision of the Supreme Court, when doing a diffuse control of constitutionality. A significant portion of the national legal experts has sustained a new perspective to the senatorial assignment, understanding that the inclusion of the institutes of the binding precedent, the general repercussion, the appeal-barring summulas in the Brazilian legal system (as a result of the tendency to respect judicial precedent and the increased use of the jurisprudence in our law system), the need to safeguard the principles of normative strength and supremacy of the Constitution and the inertia of the House of Federation, when asked to play such constitutional law, causes the receivership mutation of the Article 52, X, of the Constitution, in a manner that renders abstract the effects of diffuse control of constitutionality. This scientific article intend to analyze the aforementioned change of interpretation regarding the concrete control of constitutionality, whose purpose is to make the Senate an institutional body designed only to give publicity to the final decisions of the Supreme Court, which would possess overall effectiveness since their pronouncements. Keywords: Federal Senate. diffuse control. constitutional mutation. 1. INTRODUÇÃO O presente artigo científico, intitulado “O papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade”, está inserido na área do Direito Constitucional, surgindo com o desígnio de discutir os efeitos da declaração definitiva de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando instado a se pronunciar pela via concreta ou difusa. Com efeito, na Constituição Federal de 1988, o art. 52, X, define a competência do Senado para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, quando em exercício do controle concreto de constitucionalidade. No que concerne à natureza constitucional da atribuição do Senado Federal de conferir eficácia geral às decisões em sede de controle incidental, existe divergência doutrinária e jurisprudencial, notadamente se tal competência seria discricionária ou juridicamente vinculada. Os defensores da discricionariedade da capacidade suspensiva do Senado Federal afirmam que nem o art. 52, X da Lei Fundamental nem muito menos o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal fazem alusão a qualquer prazo para o pronunciamento da Casa da Federação. ¹Advogado. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Pós-graduando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG. 44 LEXMAX - revista do advogado Argumenta-se, ainda, que a intervenção do Senado Federal consiste em um mecanismo jurídico-político de atender à teoria da separação dos poderes², posto que, na prática, suspender a execução de determinada norma consiste em revogá-la, competência tal direcionada apenas a outra lei emanada do mesmo órgão legiferante, em privilégio ao princípio da simetria das formas jurídicas. Contudo, restará demonstrado, na esteira do enunciado por respeitável parcela da doutrina pátria e em recentes entendimentos de alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal e de outros Tribunais superiores, a plausibilidade da mutação constitucional do art. 52, X, da Lex Mater, como forma de tornar a competência do Senado juridicamente vinculada, necessária apenas para conferir publicidade ao decisum do Pretório Excelso, que já possuiria, desde seu gênesis, eficácia erga omnes. 2. O PAPEL DO SENADO FEDERAL, CONFORME A LITERALIDADE DO ART. 52, X, DA CONSTITUIÇAÕ FEDERAL No escopo precípuo de sanar a incongruência existente na aplicação da doutrina norte-americana do judicial review em sistemas carentes de stare decisis, as Constituições brasileiras, a partir da Carta de 1934, positivaram a competência do Senado Federal para suspender a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, como forma de atribuir efeito erga omnes às decisões prolatadas no controle de constitucionalidade. Com efeito, a Constituição Federal proclama, no inciso X do art. 52 que, afora as funções típicas , compete privativamente ao Senado: Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: [...] X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal; Com isso, o constituinte de 1988 considerou que o Senado Federal, por ser o representante dos interesses dos Estados da federação e histórico mediador da estabilização constitucional, seria o legítimo órgão congressual para exercer a competência de suspensão de execução de lei ou ato normativo no controle difuso de constitucionalidade. Embora a Constituição Federal tenha se referido apenas à lei, o melhor entendimento é aquele que advoga no sentido de que a expressão legislativa sintoniza com o ato normativo de qualquer categoria (lei formal ou material) declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Aliás, esse entendimento vem desde a Constituição de 1934, que previa a competência do Senado Federal para suspender a execução de lei, ato, deliberação ou regulamento declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário . A referida competência senatorial restringe-se às decisões proferidas pelo Pretório Excelso no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, não se aplicando, dessa forma, na sistemática de atribuição de efeitos do controle concentrado, conforme tese inicialmente encampada pelo Ministro Thompson Flores. Por outro lado, no que tange à natureza da atribuição senatorial de conferir eficácia geral às decisões em sede de controle concreto, existe divergência doutrinária e jurisprudencial, notadamente se discricionária ou juridicamente vinculada. Para a vertente da discricionariedade, cabe ao Senado Federal não apenas examinar o aspecto formal da decisão declaratória, atestando se ela foi tomada por quorum suficiente e de forma definitiva, mas também analisar a conveniência da suspensão, em atinência ao princípio republicano do checks and balances in government, insculpido no art. 2º da Constituição Federal. Oportuno asseverar que o próprio Senado Federal já se recusou a conferir efeito erga omnes à decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no RE 150.764-1/PE, que declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da contribuição para o Finsocial. Entretanto, respeitável parcela da doutrina pátria, além de recentes entendimentos de alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal e Tribunais superiores, vêm admitindo uma nova interpretação da competência senatorial expressa no art. 52, X, da Constituição Federal. Pelo relevante lastro argumentativo, cogente a análise pontual da proposição de mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal, cujo objeto incide na tendência de abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade. ²A terminologia “separação dos poderes”, usada, historicamente, pela doutrina, é equivocada, porque, em verdade, o poder que resvala da soberania é uno e indivisível. O que se reparte são as funções realizadas por esses poderes, de acordo com o que fora estipulado pela Constituição de cada país. A rigor, o Poder Legislativo é o único ao qual a Constituição Federal atribuiu duas funções típicas, de igual relevância, a saber: a função de elaborar atos normativos primários e a função de fiscalizar o Poder Executivo, sobretudo quando em exercício da atividade administrativa. As Constituições de 1946 e 1967, inclusive com a Emenda n. 01/69, referiam-se à “lei ou decreto”. LEXMAX - revista do advogado 45 2 . MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ART. 52, X, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL A cláusula que atribui ao Senado Federal a competência para suspender a execução de qualquer lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal faz parte da tradição constitucional brasileira, tendo sido consagrada desde a Constituição de 1934. Naquela oportunidade, o dispositivo que subordinava a eficácia geral das decisões do Supremo Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade das normas à resolução do Senado Federal foi alvo de diversas críticas. Na Assembleia Constituinte que culminou com a promulgação da Constituição de 1934, o então Deputado Federal Godofredo Vianna apresentou proposta de Emenda, no sentido de abstratizar os efeitos do controle difuso de constitucionalidade, quando o Supremo Tribunal Federal se pronunciasse pela inconstitucionalidade de um mesmo dispositivo por duas vezes. Não obstante a plausibilidade jurídica da tese exposta, a referida Emenda não foi acatada pela maioria dos parlamentares constituintes, de modo que permanece até os dias atuais a competência senatorial de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Variados são os fundamentos que ensejam a guinada interpretativa da natureza da competência da Casa da Federação insculpida no art. 52, X, da Lex Mater, dividindo-se em três perspectivas, a saber: legislativa, doutrinária e jurisprudencial. O primeiro ensejo para a mutação constitucional proposta encontra-se na repercussão jurídica representada pela criação do instituto da súmula vinculante e consequente inserção de mecanismos de respeito ao precedente judicial na Constituição Federal e no Código de Processo Civil, resultado da tendência de jurisprudencialização do direito brasileiro (case-law method). O art. 103-A, caput, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004 , assim dispõe: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. O instituto da súmula vinculante surgiu com o desiderato de reforçar a necessidade de unificação da interpretação do texto constitucional ou legal, de maneira a garantir a aplicabilidade prática dos princípios da segurança jurídica, unidade da Constituição e igualdade das decisões. Por meio da edição de verbete de súmula, o Supremo Tribunal Federal pode conferir eficácia vinculante ao entendimento sedimentado nas reiteradas decisões proferidas ao longo da atividade jurisdicional, sem afetar, diretamente, a vigência de leis declaradas inconstitucionais no controle incidental. O que se observa atualmente, em virtude da inserção de diversos dispositivos constitucionais e legais que conferem importância ao precedente judicial, é que a súmula vinculante passa a deter, também, eficácia erga omnes, o que acaba por esvaziar o significado da Resolução suspensiva do Senado Federal no controle concreto de constitucionalidade. O efeito erga omnes gera consequências genuinamente processuais, impossibilitando que a questão decidida pelo Supremo Tribunal Federal seja rediscutida por outro interessado em nova demanda, sendo consequência imanente das decisões em sede de controle abstrato (v.g., ADI e ADC). Enquanto isso, o efeito vinculante impõe obediência, por parte dos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública (direta ou indireta), nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal), para além da parte dispositiva do julgado do Pretório Excelso, isto é, transcendendo seus motivos ou fundamentos determinantes. Martins (2009, p. 337) assevera que o efeito vinculante circunscreve-se, igualmente, à ratio decidendi (fundamentos jurídicos que embasam a decisão), projetando-se, por via de consequência, para além da parte dispositiva do julgamento, ante a possibilidade de ser aplicada em outras situações análogas. Por isso, o entendimento de que o efeito vinculante seria um complemento à eficácia erga omnes. A eficácia erga omnes da súmula vinculante não advém de mandamento legal, mas sim da atual tendência de jurisprudencialização do direito e consequente consagração do precedente judicial como princípio, o que, de certa forma, aproxima o ordenamento jurídico brasileiro, de índole eminentemente romano-germânica (civil law), ao sistema do common law anglo-saxão. Importante destacar, todavia, que a mesma ratio que resultou na criação do instituto da súmula vinculante pela EC nº 45/04 é visualizada no art. 2º do Decreto n. 6.142/1876, a partir do qual o Superior Tribunal de Justiça passou a deter a competência de editar assentos com força de lei, como forma de dirimir divergências sobre o alcance das normas no âmbito do Poder Judiciário, ainda sob a vigência da vetusta Constituição de 1824. 46 LEXMAX - revista do advogado O método do case-law se encaixa perfeitamente no sistema do stare decisis, na medida em que, neste último, identificandose casos análogos já decididos no passado, torna-se possível extrair a regra de direito (ratio decidendi) que deverá ser utilizada como parâmetro vinculante para a solução da situação em litígio (binding precedent). É imanente ao case-law, e não haveria porque imaginar algo diverso com relação à valorização do precedente judicial, a possibilidade de não aplicação da tese firmada na decisão anterior, com base na diversidade dos fatos no caso concreto (distinguising), ou mesmo a superação do precedente diante de uma nova realidade jurídica ou fática (overruling). Exemplo disso são as previsões para revisão e cancelamento das súmulas vinculantes, conforme o disposto no § 2.º do art. 103-A da Constituição Federal. Aguilar (1998, p. 60), fulminando qualquer arguição de possível engessamento do Poder Judiciário, observa que, hodiernamente, o Direito Constitucional já não é apenas o que prescreve o texto da Lei Maior, mas também, sobretudo, a bagagem de padrões hermenêuticos desse bloco normativo, incorporado na jurisprudência da corte constitucional. Portanto, não há que se falar em engessamento do Poder Judiciário, ou mesmo diminuição da liberdade do Magistrado para proferir uma decisão judicial, uma vez que o próprio sistema de valorização do precedente prevê a possibilidade de superação, desde que fundamentada, dos parâmetros da decisão paradigmática. A comprovação prática de que a súmula vinculante define entendimento a ser seguido em diversos casos (espécie de eficácia erga omnes), norteando a aplicação do texto constitucional ao sistema jurídico como um todo (treat like cases alike), é a previsão da súmula impeditiva de recursos, cuja base teórica se encontra na transcendência dos motivos determinantes. O art. 518, caput e § 1.º, e o art. 557, caput e § 1.º-A, ambos do Código de Processo Civil, assim prescrevem: Art. 518. Interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a recebe, mandará dar vista ao apelado para responder. § 1. o O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1.o-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. A aplicação do art. 518, § 1.º e do art. 557, § 1.º-A, dispositivos do Código de Processo Civil, mesmo que de forma tímida, denota que o sistema jurídico está estruturado para conferir eficácia geral ao verbete de súmula vinculante, uma vez que prevê, como requisito intrínseco de admissibilidade recursal (cabimento), a compatibilidade com o entendimento sumulado do Supremo Tribunal Federal, sob pena de não conhecimento do recurso manejado. Igualmente, vislumbra-se a valorização do precedente judicial na possibilidade de o relator do agravo contra decisão denegatória de recurso especial ou extraordinário conhecer do agravo, para dar provimento diretamente ao recurso cujo seguimento foi negado, se a decisão recorrida conflitar com súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, conforme o disposto no caput do art. 544, § 4.º, alíneas “b” e “c”, do Código de Processo Civil: Art. 518. Interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a recebe, mandará dar vista ao apelado para responder. § 1. o O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1.o-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. LEXMAX - revista do advogado 47 Em outra oportunidade, o legislador infraconstitucional prevê, no caput do art. 285-A do Código de Processo Civil, a possibilidade de prolação de decisão inaudita altera par em casos onde a petição inicial dispuser sobre matéria unicamente de direito e no Juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outras demandas idênticas, evidenciando, mais uma vez, a consagração do princípio do precedente judicial e do método case-law de resolução de lides. O caput do art. 285-A do Código de Processo Civil assim preleciona: Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. Ainda, o legislador infraconstitucional, ao positivar a inaplicabilidade do Reexame Necessário quando a sentença combatida estiver em consonância com jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou em súmula do Pretório Excelso ou mesmo de qualquer Tribunal Superior, proclama, novamente, a importância do respeito ao precedente judicial no ordenamento jurídico brasileiro. O art. 475, caput, § 3.º, do Código de Processo Civil, prevê: Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: [...] § 3.º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente. Os exemplos de jurisprudencialização do direito pátrio definem a obrigatoriedade de respeito ao enunciado de súmula vinculante ou jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de maneira a suprimir a necessidade de pronunciamento do Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Pretório Excelso, no controle difuso de constitucionalidade. Por oportuno, salutar a lição de Leonel (2001, p. 95): O fortalecimento da jurisprudência sumulada tem trazido expansão da eficácia dos precedentes dos tribunais superiores. São exemplos disso: (a) a possibilidade de o relator do agravo de instrumento negar provimento a recurso que conflite com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF, ou de tribunal superior; ou então dar provimento ao recurso se a decisão recorrida conflitar com súmula ou jurisprudência dominante do STF, ou de tribunal superior (art. 557, caput, e respectivos §1.º-A do CPC, redação dada pela Lei 9.756, de 17.12.1998); (b) a possibilidade de o relator do agravo contra decisão denegatória de recurso especial ou extraordinário, no STF ou STJ, conhecer do agravo para dar provimento diretamente ao recurso cujo seguimento foi negado, se a decisão recorrida conflitar com súmula ou jurisprudência dominante do STF e do STJ (art. 544, § 4.º, II, “b” e “c”, do CPC, redação dada pela Lei 12.322, de 09.09.2010); (c) dispensa do reexame necessário nos casos em que, mesmo vencido o Poder Público, a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em súmula deste tribunal ou do tribunal superior competente (art. 475, § 3.º do CPC, acrescentado pela Lei 10.352, de 26.12.2011); (d) a possibilidade de o juiz negar seguimento a recurso de apelação quando a sentença impugnada estiver amparada em súmula do STJ ou do STF (art. 518, § 1.º do CPC, redação da Lei 11.276, de 07.02.2006. Não só as decisões judiciais, mas também os atos emanados da administração pública, direta e indireta, das três esferas de governo, devem se vincular ao mandamento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, tanto em virtude do caput do art. 103-A da Constituição Federal, como pela possibilidade de interposição de Reclamação Constitucional ao Pretório Excelso. Consoante o art. 7.º, § 1.º, da Lei n. 11.417/06, o ato administrativo, ou a omissão da administração pública, que contrarie súmula vinculante, só podem ser alvo de Reclamação ao Supremo Tribunal Federal depois de esgotados os requerimento nas vias administrativas. 48 LEXMAX - revista do advogado O art. 103, caput e § 3.º, da Constituição Federal, assim disciplina: Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: [...] § 3.º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. Como se vê, eventual entendimento acerca da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, se considerado reiteradas vezes em sede de controle difuso no Supremo Tribunal Federal, pode vir a ser sumulado, o que teria o condão de conferir eficácia vinculante e geral à inconstitucionalidade atinada, mesmo antes da publicação de qualquer Resolução suspensiva do Senado Federal, o que denota a obsolescência da atribuição da Casa da Federação, disposta no art. 52, X, da Lex Mater. Entendendo que a súmula vinculante possui, também, eficácia geral, expõe Mendes (2010, p. 1252): Desde já, afigura-se inequívoco que a referida súmula conferirá eficácia geral e vinculante às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal sem afetar diretamente a vigência de leis declaradas inconstitucionais no processo de controle incidental. E isso em função de não ter sido alterada a cláusula clássica, constante do art. 52, X, da Constituição, que outorga ao Senado a atribuição para suspender a execução de lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. E conclui: Não resta dúvida de que a adoção de súmula vinculante em situação que envolva a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo enfraquecerá ainda mais o já debilitado instituto da suspensão de execução pelo Senado. É que essa súmula conferirá interpretação vinculante à decisão que declara a inconstitucionalidade sem que a lei declarada inconstitucional tenha sido eliminada formalmente do ordenamento jurídico (falta de eficácia geral da decisão declaratória de inconstitucionalidade). Tem-se efeito vinculante da súmula, que obrigará a Administração a não mais aplicar a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade (nem a orientação que dela se dessume), sem eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade. Moraes (2002, p. 715), defensor da discricionariedade, arremata, admitindo que o exercício da competência extraída do art. 52, X, da Constituição Federal não será mais necessária, tendo em vista a inserção da súmula vinculante pela EC nº 45/04 e a consequente formalização da sistemática de respeito ao precedente judicial: Não será mais necessária a aplicação do art. 52, X, da Constituição Federal – cuja efetividade, até hoje, sempre foi reduzidíssima –, pois, declarando incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, o próprio Supremo Tribunal Federal poderá editar Súmula sobre a validade, a interpretação e a eficácia dessas normas, evitando que a questão controvertida continue a acarretar insegurança jurídica e multiplicidade de processos sobre questão idêntica. LEXMAX - revista do advogado 49 Assim, os verbetes com efeito vinculante e eficácia geral não podem ser considerados meras fontes secundárias do direito, mas, sobretudo, devem ser visualizadas como fontes principais, uma vez que alteram diretamente nosso ordenamento jurídico positivo, estabelecendo condutas de observância obrigatória para toda a administração pública e para o próprio Poder Judiciário. A Emenda Constitucional n. 45/04 originou outro azo legislativo que, conjuntamente com a súmula vinculante, tenciona modificar a interpretação ortodoxa atribuída ao art. 52, X, da Constituição Federal, qual seja: o instituto da repercussão geral. O art. 102, § 3.º da Lei Fundamental positiva um dos requisitos intrínsecos de admissibilidade recursal , tornando obrigatória a demonstração da repercussão geral das questões constitucionalmente discutidas no recurso extraordinário. Embora tenha sido introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Emenda Constitucional n. 45/04, foi apenas a Lei n. 11.418/06 que a regulamentou, inserindo os artigos 543-A e 543-B no Código de Processo Civil. No próprio Supremo Tribunal Federal, a repercussão geral é prevista no art. 322 do Regimento Interno, com redação dada pela Emenda Regimental n. 21, de 30.04.2007. A repercussão geral possui significado amplo, consubstanciando-se na exigência de que o recorrente demonstre a relevância da questão constitucional veiculada no recurso extraordinário, sob o prisma econômico, político, social ou jurídico, a fim de ensejar o conhecimento do recurso pelo Supremo Tribunal Federal, em razão do superior interesse da preservação do direito objetivo. Nesse sentido, assim prescreve o art. 543-A, caput e § 3.º do Código de Processo Civil: Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. [...] § 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. Por sua vez, o caput do art. 543-B do Código de Processo Civil define a forma de resolução de idênticas controvérsias: Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. [...] § 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. A exegese de tal dispositivo consiste em permitir que os recursos extraordinários selecionados pelo juízo de origem sirvam de paradigma a respeito da existência, ou não, de repercussão geral acerca da questão constitucional discutida nos recursos repetitivos, devidamente sobrestados. Com efeito, apregoa o § 2.º do art. 543-B: § 2.º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos. Por outro lado, reputada existente a repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal poderá negar provimento ao recurso extraordinário ou dar-lhe provimento. No primeiro cenário, o § 3.º do art. 543-B dispõe: § 3.º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se. Os outros requisitos intrínsecos para a interposição do recurso extraordinário são: cabimento, legitimidade recursal, interesse recursal e inexistência de fato extintivo ou impeditivo do direito. 50 LEXMAX - revista do advogado Assim, os recursos extraordinários que se encontram sobrestados no Juízo de origem poderão ser considerados prejudicados, uma vez que, em se tratando de recursos similares e havendo pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, não se justifica a remessa dos autos àquela Corte, para que seja proferida decisão de idêntico teor. Na segunda hipótese, pode o órgão de origem retratar-se da decisão proferida em sentido contrário a do Supremo Tribunal Federal (art. 543-B, § 3.º). Não o fazendo, os recursos extraordinários sobrestados deverão ser remetidos ao Pretório Excelso, que poderá cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada nos recursos extraordinários paradigmas. Nessa toada, percebe-se que o recurso extraordinário passou de uma via recursal de ponderação de interesses subjetivos para assumir um papel de defesa da ordem constitucional objetiva, podendo repercutir na esfera jurídica de diversos jurisdicionados. A objetivação do recurso extraordinário condiz com o papel constitucionalmente atribuído ao Supremo Tribunal Federal, qual seja: preservar e interpretar as normas da Constituição Federal, uniformizando os entendimentos contrários. Com efeito, as decisões do Supremo Tribunal Federal, mesmo no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, despontam como paradigmáticas, devendo ser seguidas pelos demais tribunais da federação. Cabe ao Pretório Excelso, assim, a última palavra sobre a controvérsia constitucional, sendo incoerente e desnecessária a espera da manifestação política do Senado Federal para que, só então, a decisão, no controle concreto de constitucionalidade, possua eficácia erga omnes. Portanto, o Supremo Tribunal Federal possui, além da já aclamada súmula vinculante, o mecanismo da repercussão geral para definir as balizas de determinada questão constitucional relevante, independentemente de qualquer manifestação do Senado Federal, o que torna obsoleta a ratio da competência estampada no art. 52, X, da Constituição Federal. Outro argumento para a mutação constitucional encontra-se no controle de constitucionalidade das ações coletivas (v.g. mandado de segurança coletivo, ação coletiva ou ação civil pública), em que a decisão do Supremo Tribunal Federal, mesmo proferida incidentalmente, repercute na esfera jurídica de vários indivíduos, sendo difícil justificar a necessidade de comunicação ao Senado Federal da decisão proferida, a não ser para apenas dar-se publicidade à mesma. Desse modo, certo que o Supremo Tribunal Federal vem se firmando, paulatinamente, como o legítimo guardião da Constituição, cabendo a ele, e tão somente a ele, decidir o sentido e a interpretação das questões constitucionais, por razões que tendem a modificar a interpretação do art. 52, X, da Constituição Federal. A polêmica acerca do papel do Senado Federal na atual configuração do controle de constitucionalidade no Brasil vem sendo travada, também, pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente a partir da Reclamação Constitucional 4335-5/AC, cujo relator é o Ministro Gilmar Ferreira Mendes. No julgamento do Habeas Corpus 82.959/SP, conhecido como “Caso Oséas”, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Melo, o Supremo Tribunal Federal, aparentemente, conferiu efeito erga omnes à decisão proferida em um processo constitucional subjetivo, deixando consolidada a inconstitucionalidade, com eficácia geral, do § 1.º, do art. 2.º, da Lei n. 8.072/90, que proibia a progressão de regime aos condenados por crime hediondo, por estar em dissonância com o art. 5.º, XLVI, da Constituição Federal. Na verdade, o Pretório Excelso não estava decidindo o caso concreto, mas a constitucionalidade do dispositivo que impunha o cumprimento da pena, no caso da prática de crimes hediondos, em regime integralmente fechado. Todavia, ainda vigora no Brasil o ortodoxo e incongruente entendimento de que a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade, possui apenas eficácia inter partes, carecendo de pronunciamento discricionário do Senado Federal para alcançar a eficácia erga omnes. 3 . MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO DO SISTEMA DE CHECKS AND BALANCES A mutação constitucional nada mais é do que a alteração semântica de determinado preceito da Constituição sem operar-se a adulteração do corpo do dispositivo, em decorrência de modificações no prisma hitórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a aplicação. Em lição preciosa, Hesse (2009, p. 151) assim define o fenômeno da mutação constitucional: Tanto o Tribunal Constitucional Federal como a doutrina atual entendem que uma mutação constitucional modifica, de que maneira for, o conteúdo das normas constitucionais de modo que a norma, conservando o mesmo texto, recebe um significado diferente. Portanto, em alguns casos, os vocábulos da norma conservam-se imutáveis ao longo dos tempos, mas a sua acepção sofre um processo de corrosão, ou, melhor dizendo, enriquecimento, através da interferência de fatores diversos que vêm amoldar a letra da lei a um novo espírito, inovando a direção dos enunciados jurídicos. Os princípios da certeza e segurança jurídica estariam comprometidos se os aplicadores do direito, em nome da abertura e da riqueza semântica dos enunciados normativos, pudessem atribuir-lhes qualquer significado, à revelia dos cânones hermenêuticos e do comum sentimento de justiça. Nesse ínterim, sob pena de instauração de espécie de “ditadura do Poder Judiciário”, é imprescindível o estabelecimento de parâmetros objetivos de controle e racionalização da interpretação constitucional. Entrementes, uma teoria jurídica sobre os limites da mutação constitucional só é possível com o sacrifício dos pressupostos metódicos básicos do positivismo, sustentado na estrita separação entre Direito e realidade, assim como na rejeição de qualquer consideração histórica e filosófica do processo de argumentação jurídica. Destarte, quando a guinada interpretativa impossibilitar a compreensão lógica do texto constitucional ou quando aparecer em LEXMAX - revista do advogado 51 clara contradição com a literalidade do dispositivo, impossível e ilegítima a mutação constitucional intencionada. Nesse sentido, Hesse (2009, p. 151) afirma que o limite da mutação constitucional é a própria força normativa da Constituição. Qualquer coisa além disso representará quebra da ordem constitucional ao invés de modificar a interpretação do texto: Tudo o que se situe mais além dessas possibilidades já não será mutação constitucional, e sim quebra constitucional ou anulação da Constituição. Pode ser que de fato se imponham ‘os acontecimentos históricos que transformaram os fundamentos do Estado fora do Direito’, as usurpações, e as revoluções. Isto nenhuma teoria dos limites da reforma constitucional ou da mutação constitucional poderá impedir. Porém, dentro do estrito âmbito aqui demarcado, assegura-se melhor a defesa da Constituição diante de perigos de ‘mutações constitucionais’ ilimitadas do que pela renúncia prévia, explícita ou implícita à elaboração de limites que possam ser respeitados na prática. Disso é que se trata, e não de uma – talvez não intencional – legitimação dos fatos consumados. Diante dessas premissas, certo é que a mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal não impede sua compreensão lógica, em razão de permanecer a atribuição do Senado Federal de suspender a execução de lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O que há, de concreto, é apenas e tão somente a mudança da natureza da competência do Senado Federal, que passará de essencialmente política e discricionária para juridicamente vinculada, necessária para conferir publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade. De outro lado, a mutação constitucional indicada não representa contradição ao texto da norma objeto da guinada interpretativa, uma vez que o art. 52, X, da Constituição Federal não nos remete, em nenhum momento, à discricionariedade da competência do Senado, se omitindo em relação a tal questionamento. Em verdade, os defensores do caráter discricionário da competência do Senado Federal se baseiam em uma leitura histórica da Constituição, embasada no respeito à teoria da separação dos Poderes (em sua conotação rígida) e consequente preservação do equilíbrio do sistema de checks and balances, positivado como cláusula pétrea no art. 60, § 4.º, III, da Constituição Federal. Lastreiam-se, ainda, na infiel percepção sobre o real significado do ativismo judicial, vislumbrando-o, erroneamente, como mecanismo de usurpação da competência do Senado Federal, em virtude da suposta hipertrofia do Supremo Tribunal Federal e consequente atrofia do Poder Legislativo. O ativismo judicial, no entanto, é fenômeno amplo, inserido dentro da perspectiva do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo por encontrar vínculo com a força normativa da Constituição, com a expansão da jurisdição constitucional e com o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Decerto que o ativismo judicial encontra respaldo na flexibilização da teoria da separação dos Poderes, ao passo que permite que o Supremo Tribunal Federal exerça a guarda da Constituição, sem, com isso, deturpar as competências constitucionais direcionados ao Poder Legislativo. Não se está consagrando, com isso, a desnecessidade de existência do Senado Federal, órgão que, ao longo de quase duzentos anos, posicionou-se como mediador da estabilização constitucional brasileira, representando a voz dos Estados da federação nas questões de relevo nacional. O que ocorre, de fato, é que a competência haurida do art. 52, X, da Constituição Federal precisa ser reinterpretada, face às modificações legislativas e jurisprudenciais ocorridas recentemente no Brasil. Aliás, insta ressaltar que o art. 60, § 4.º, III, da Constituição Federal proíbe qualquer mudança “tendente a abolir” a separação dos poderes, o que não impede a variação de interpretação sobre a natureza de dada competência do Senado Federal. Assim, não se pode falar que a mutação constitucional do art. 52, X, da Lei Fundamental tende a abolir a cláusula pétrea estampada no art. 60, § 4.º, III, da Constituição Federal, em razão de apenas alterar a natureza da competência do Senado Federal, o que, obviamente, não viola, de forma alguma, a independência entre os Poderes Judiciário e Legislativo. Apesar da legalidade e possibilidade jurídica da mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal, não se sabe, ao certo, se o Senado Federal entenderá tal mudança como uma intromissão do Supremo Tribunal Federal, o que poderia desaguar em uma crise institucional entre os Poderes da República, ou se a Casa da Federação aceitará a modificação da natureza de sua competência no âmbito do controle difuso de constitucionalidade. A análise da possível reação do Senado Federal à mutação do art. 52, X, da Carta Magna não pode ser realizada ao arrepio do contexto em que se inseriu o Supremo Tribunal Federal hodiernamente, qual seja, ator secundário do processo legislativo, ante a ausência de produção legiferante do Congresso Nacional como um todo. O que se observa, há de se ressaltar, é que o Supremo Tribunal Federal vem assumindo posições originariamente conferidas pelo legislador constituinte ao Senado Federal, seja pela desídia do órgão legislativo em exercer suas competências legais, seja pelas mudanças fáticas e jurídicas ligadas a mutações constitucionais. Além da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, observa-se a atuação positiva do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Injunção n. 670, onde restou consolidado o direito de greve dos servidores públicos civis, em que pese a inexistência de lei regulamentadora. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o direito fundamental de greve, constitucionalmente garantido no art. 9º, §1.º, da Constituição Federal, não poderia deixar de ser respeitado em virtude, unicamente, da mora legislativa em regulamentar o dispositivo de eficácia contida, cabendo ao Supremo Tribunal Federal “legislar” sobre o tema, o que seria, teoricamente, função típica do omisso e inerte Poder Legislativo. Não obstante a ausência de debate, entre os senadores, sobre a abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitu52 LEXMAX - revista do advogado cionalidade, a reação do Senado Federal à mutação constitucional do art. 52. X, da Lex Mater poderá desencadear uma crise entre os Poderes Judiciário e Legislativo, diante da recente tendência de atuação positiva do Supremo Tribunal Federal em matérias de cunho eminentemente congressual (v.g., APDF n. 54 e MI n. 670), como também pode, ao revés, significar a ratificação e consolidação dessa tendência. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS No desiderato primevo de sanar a incongruência existente na aplicação da doutrina norte-americana do judicial review of legislation em ordenamentos carentes de stare decisis, as Constituições brasileiras, a partir da Carta de 1934, positivaram a competência do Senado Federal para suspender a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, como forma de atribuir eficácia geral às decisões prolatadas no controle difuso de constitucionalidade, o que está previsto no inciso X do art. 52 da ordem constitucional atual. Como visto, no que tange à natureza da atribuição senatorial de conferir eficácia geral às decisões em sede de controle concreto, existe divergência doutrinária e jurisprudencial, notadamente se tal atribuição deve ser exercida de forma discricionária ou vinculada. Os defensores da discricionariedade da competência suspensiva da Casa da Federação asseveram que nem o art. 52, X, da Lei Fundamental, nem muito menos o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal fazem alusão a qualquer prazo para o pronunciamento senatorial. Tal vertente sustenta que a intervenção do Senado Federal consiste em um mecanismo jurídico-político de atender à teoria da separação dos poderes, posto que, na prática, suspender a execução de determinada norma consiste em revogá-la, competência tal direcionada apenas a outra lei emanada do mesmo órgão legiferante, em privilégio ao princípio da simetria das formas jurídicas. Contudo, respeitável parcela da doutrina pátria, além de recentes julgados do Supremo Tribunal Federal e Tribunais superiores vêm admitindo uma nova interpretação da competência senatorial expressa no art. 52, X, da Lex Mater. Pela mutação constitucional proposta, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão definitiva de que a lei ou ato normativo é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal, para que, tão somente, haja a publicação do teor do decisum no Diário do Congresso. O que se observa atualmente, em virtude da inserção de diversos dispositivos constitucionais (arts. 103-A e 103, caput, § 3.º, da Constituição Federal) e legais (arts. 285-A, 475, caput, § 3.º, 518, caput, § 1.º, 544, § 4.º, “a” e “b” e 557, caput, § 1.º-A, do Código de Processo Civil) que conferem importância ao precedente judicial (processo de jurisprudencialização do direito nacional), é que a súmula vinculante passa a deter, também, eficácia erga omnes, o que acaba por esvaziar o significado da Resolução suspensiva do Senado Federal no controle concreto de constitucionalidade. Isso porque eventual entendimento acerca da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, se considerado reiteradas vezes em sede de controle difuso no Supremo Tribunal Federal, pode vir a ser sumulado, o que teria o condão de conferir eficácia vinculante e geral à inconstitucionalidade atinada, mesmo antes da publicação de qualquer Resolução suspensiva do Senado Federal, o que denota a obsolescência da atribuição da Casa da Federação, disposta no art. 52, X, da Carta Magna. Ainda, percebe-se que o recurso extraordinário passou de uma via recursal de ponderação de interesses subjetivos para assumir um papel de defesa da ordem constitucional objetiva (objetivação do recurso extraordinário), podendo repercutir na esfera jurídica de diversos jurisdicionados (arts. 543-A e; 543-B, do Código de Processo Civil), fato que contribui para o firmamento da posição do Supremo Tribunal Federal como legítimo guardião e intérprete da Constituição Federal. Ademais, no caso do art. 52, X, da Constituição Federal, plausível a atuação positiva do Supremo Tribunal Federal no afã de garantir a aplicabilidade dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados (força normativa da Constituição), que não podem esperar eternamente pela publicação de Resolução suspensiva no Diário do Congresso. Com efeito, a mutação constitucional indicada não representa contradição ao texto da norma objeto da guinada interpretativa, uma vez que o art. 52, X, da Constituição Federal não nos remete, em nenhum momento, à discricionariedade da competência do Senado, omitindo-se em relação a tal ponto. O que há, de fato, é apenas a mudança da natureza da competência do Senado Federal, que passará de essencialmente política e discricionária para juridicamente vinculada, necessária para conferir publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade. Não se está consagrando, com a mutação constitucional e consequente abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade, a desnecessidade de existência do Senado Federal, órgão que, ao longo de quase duzentos anos, posicionou-se como mediador da estabilização constitucional brasileira, representando a voz dos Estados da federação nas questões de relevo nacional. O que ocorre, em verdade, é que a competência insculpida do art. 52, X, da Constituição Federal precisa ser reinterpretada, face às modificações legislativas e jurisprudenciais ocorridas recentemente no Brasil. Por outro lado, a possível reação do Senado Federal à mutação do art. 52, X, da Carta Magna deve ser vislumbrada no contexto em que o Supremo Tribunal Federal está inserido hodiernamente, qual seja, ator secundário do processo legislativo, ante a ausência de produção legiferante do Congresso Nacional como um todo. Os entendimentos apontados e os ensejos da mutação constitucional estudada permitem concluir que o art. 52, X, da Constituição Federal merece ser reinterpretado, de maneira a tornar a competência do Senado Federal vinculada, necessária para conferir publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade, o que, de maneira alguma, apequena a valiosa contribuição da Casa da Federação na sistemática de estabilização e mediação constitucional brasileira. LEXMAX - revista do advogado 53 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUILAR, Juan Fernando López. Lo constitucional en el derecho: sobre la ideia e ideias de Constitución y ordem jurídico. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1998. BRASIL. Código de Processo Civil (Lei n. 5.869/73). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.htm.>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm.>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. Lei n. 7.347/85. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347 orig.htm>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 828.106/SP. Relator:. Ministro Teori Albino Zavascki, 1ª Turma. Data de julgamento: 02/05/2006. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&processo=828106&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. Supremo Tribunal Federal. ADI 3601 ED. Relator: Ministro Antônio Dias Toffoli. Data de julgamento: 09/09/2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/ portal/jurisprudencia/ visualizarEmenta.asp?s1=000164097&base=baseAcordaos>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. ADPF 54. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data de julgamento: 12/04/2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia .asp?s1=%28ADPF%24%2ESCLA%2E+E+54%2ENUME%2E%29+OU+%28ADPF%2EACMS%2E+ADJ2+54%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/a9mcpfe>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. HC 82959. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data de Julgamento: 23/02/2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ visualizarEmenta. asp?s1=000007924&base=baseAcordaos>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. MI 670. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Relator p/ Acórdão: Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Data de julgamento: 25/10/2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2018921>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. MS 16512. Relator: Ministro Oswaldo Trigueiro. Data de julgamento: 25/05/1966. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/ verProcessoAndamento .asp?incidente=1430293>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. RE 197917. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Data de julgamento: 06/06/2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ listarConsolidada.asp ?classe=RE&numero=197917&origem=AP>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. RE 442683. Relator: Ministro Carlos Velloso. Data de julgamento: 13/12/2005. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ visualizarEmenta.asp ?s1=000091292&base=baseAcordaos>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. RE 556664. Relator: Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Data de Julgamento: 12/06/2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/listar Consolidada.asp?classe=RE&numero=556664&origem=AP>. Acesso em: 01 ago. 2015. ______. ______. Regimento Interno. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/ legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_Dezembro_2013_versao_eletronica.pdf.>. Acesso em: 01 ago. 2015. HESSE, Konrad. Temas fundamentais de direito constitucional. Carlos dos Santos Almeida (Trad.), Gilmar Ferreira Mendes (Trad.), Inocêncio Mártires Coelho (Trad.). São Paulo: Saraiva, 2009. LEONEL, Ricardo de Barros. Reclamação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet (Org.). Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva/IDP, 2010. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002. 54 LEXMAX - revista do advogado