De Jure - Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Transcrição

De Jure - Ministério Público do Estado de Minas Gerais
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
DE JURE
Número 7
REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Julho/Dezembro de 2006
CIRCULAÇÃO NACIONAL
De Jure - Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais / Ministério Público
do Estado de Minas Gerais.
n. 7 (jul./dez. 2006). Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2006.
v.
Semestral.
ISSN: 1809-8487
Continuação de : Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
O novo título mantém a seqüência numérica do título anterior.
1. Direito – Periódicos. I. Minas Gerais. Ministério Público.
CDU. 34
CDD. 342
DE JURE
Número 7
REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Julho/Dezembro de 2006
SEMESTRAL
De Jure
Belo Horizonte
N. 7
jul./dez. 2006
DE JURE - Número 7
REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA
Procurador de Justiça Jarbas Soares Júnior
DIRETOR DO CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
Procurador de Justiça Jacson Rafael Campomizzi
CONSELHO EDITORIAL
PENAL Promotor de Justiça Adilson de Oliveira Nascimento
Promotor de Justiça Carlos Alberto da Silveira Isoldi Filho
Promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo
CIVIL E COLETIVO Procurador de Justiça Antônio Sérgio Rocha de Paula
Procurador de Justiça Geraldo Flávio Vasquez
Promotor de Justiça Gregório Assagra de Almeida
PÚBLICO Procurador de Justiça João Cancio de Mello Junior
Promotor de Justiça Renato Franco de Almeida
Procurador de Justiça Gisela Potério Santos Saldanha
EDITORAÇÃO Alessandra de Souza Santos
Christiane Junqueira Puliti Andrade de Barros
Fernando Soares Miranda
Luciano Alvarenga
REVISÃO Alessandra de Souza Santos
Dalvanôra Noronha Silva
Diogo Mesquita Maia
Isabel Cristina da Silva
Ivone Ribeiro da Silva
Joseane Fátima Barbosa
Maria das Graças de Souza Luz
Nirley Oliveira
CAPA Alex Lanza (FOTO DA CAPA) e Bernardo José Gomes
Silveira (ARTE)
Foto capa: escultura barroca em pedra-sabão representando a Justiça, cuja autoria é atribuída
ao português Antônio José da Silva Guimarães e datada como anterior a 1840. Faz parte da
obra que representa as quatro virtudes cardeais – Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza
– que se encontram na antiga Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência
de Ouro Preto.
A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.
Av. Álvares Cabral, 1690, 10º andar, Santo Agostinho, Belo Horizonte, MG, cep. 30.170-001
www.mp.mg.gov.br
[email protected]
SUMÁRIO
PREFÁCIO...........................................................................................................
11
APRESENTAÇÃO ...............................................................................................
12
SEÇÃO I – ASSUNTOS GERAIS ......................................................................
13
1. DOUTRINA INTERNACIONAL...................................................................
13
1.1 Extorsión: Vacuna de Vehículos en El Estado Zulia – ANA VICTORIA PARRA .......................................................................................................................... 13
1.2 La Garantía del Debido Proceso y el Plazo Razonable de su Sustanciación
-EDUARDO M. MARTÍNEZ ÁLVAREZ ............................................................. 32
2. DOUTRINA NACIONAL ...............................................................................
36
2.1 O Ministério Público e os Procedimentos de Jurisdição Voluntária – DJANIRA MARIA RADAMÉS DE SÁ ........................................................................... 36
2.2 Tutela Coletiva em Portugal: uma Breve Resenha – RODRIGO REIS
MAZZEI ................................................................................................................ 45
2.3 Reflexos do Direito Material do Ambiente sobre o Instituto da Coisa Julgada
- In Utilibus, Limitação Territorial, Eficácia Preclusiva da Coisa Julgada e Coisa
Julgada Rebus Sic Stantibus – MARCELO RODRIGUES ABELHA................... 87
2.4 O Direito Ambiental e as Ações Inibitória e de Remoção do Ilícito – LUIZ
GUILHERME MARINONI................................................................................... 93
2.5 O Sistema de Compensação Financeira na República Federal da Alemanha
– MÔNICA TESTA AMORIM .............................................................................. 122
3. PALESTRA ...................................................................................................... 147
3.1 Codificação ou não do Processo Coletivo? – NELSON NERY JUNIOR ....... 147
4. DIÁLOGO MULTIDISCIPLINAR................................................................ 157
4.1 Os Limites Jusfilosóficos da Previdência Social: a Questão da Felicidade
– ANDITYAS SOARES DE MOURA COSTA MATOS ...................................... 157
4.2 Linguagem, Cognição e Argumentatividade: a Construção de Sentidos no
Modelo de Espaços Mentais – RENATA AMARAL TEIXEIRA E MARIA REGINA DE CASEIRO OLIVEIRA.......................................................................... 168
SEÇÃO II – DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL ............................ 182
SUBSEÇÃO I – DIREITO PENAL.................................................................... 182
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 182
1.1 Moral e Justiça no Direito Penal – HÉLVIO SIMÕES VIDAL ...................... 182
1.2 Repensando a Função Retributiva da Pena Criminal – SIDNEI BOCCIA
PINTO DE OLIVEIRA SÁ .................................................................................... 208
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 226
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 227
3.1 Da Constitucionalidade da Receptação Qualificada, Descrita no § 1º do Art.
180 do Código Penal. - ANDREA MISMOTTO CARELLI ................................. 227
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL PENAL....................................... 234
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 234
1.1 Da Validade do Procedimento de Persecução Criminal Deflagrado por Denúncia Anônima no Estado Democrático de Direito – RODRIGO IENNACO .......... 234
1.2 Oito Razões que Determinam o Processamento dos Crimes de Abuso de
Autoridade Perante a Justiça Comum Estadual – PAULO ROBERTO SANTOS
ROMERO .............................................................................................................. 264
1.3 Sobre o Verdadeiro Papel do Ministério Público no Processo Penal em
Grau de Recurso Ordinário: Breve Estudo – JOSÉ FERNANDO MARREIROS
SARABANDO....................................................................................................... 283
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 292
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 300
3.1 Crimes Hediondos e Progressão no Regime Prisional – CARLOS HENRIQUE FLEMING CECCON ............................................................................... 300
4. TÉCNICAS ....................................................................................................... 318
4.1 Agravo de Instrumento em Recurso Extraordinário Criminal: Contra-Razões
– JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO .......................................... 318
SEÇÃO III – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL............................... 323
SUBSEÇÃO I – DIREITO CIVIL...................................................................... 323
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 323
1.1 Sucessão Legítima do Cônjuge e do Companheiro no Novo Código Civil
– DIMAS MESSIAS DE CARVALHO ................................................................. 323
1.2 Patrimônio Ambiental Cultural e Usucapião de Bens Móveis Tombados uma Análise em Busca da Efetividade Protetiva do Decreto-Lei n.º 25/1937 MARCOS PAULO DE SOUZA MIRANDA ........................................................ 334
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 348
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 349
3.1 Função Social de Empresa e Execução Fiscal – Sucessão – Responsabilidade
Tributária (Art. 133, I, do CTN) – BRÁULIO LISBOA LOPES .......................... 349
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL CIVIL......................................... 355
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 355
1.1 O Ministério Público como Substituto Processual e a Eficácia Subjetiva da
Coisa Julgada – ROBSON RENAULT GODINHO .............................................. 355
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 396
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 397
3.1 Ilegitimidade de Mutuários do Sistema Financeiro de Habitação para, Individualmente, Pleitearem o Pagamento de Débitos de Financiamento - MATHEUS
ADOLFO GOMES QUIRINO .............................................................................. 397
4. TÉCNICAS ....................................................................................................... 404
4.1 Do Pedido em Sede Recursal: Algumas Considerações – GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA E MARCELO FERNANDES MAGALHÃES DA ROCHA ....................................................................................................................... 404
SEÇÃO IV – DIREITO COLETIVO E PROCESSUAL COLETIVO ........... 406
SUBSEÇÃO I – DIREITO COLETIVO ............................................................ 406
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 406
1.1 Direito à Saúde da Criança – Incumbência do Poder Público, Intervenção
do Ministério Público e o Papel do Poder Judiciário – DÉCIO MONTEIRO
MORAES ............................................................................................................... 406
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 412
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 416
3.1 O Aspecto Imaterial e a Transindividualidade do Direito a um Meio Ambiente Dignificante como Justificativas para o Reconhecimento do Dano Ambiental
Coletivo Extrapatrimonial – LUCIANO JOSÉ ALVARENGA ............................. 416
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL COLETIVO .............................. 428
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 428
1.1 A Invalidação do Termo de Ajustamento de Conduta - MARCOS PEREIRA
ANJO COUTINHO ............................................................................................... 428
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 440
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 441
3.1 A Legitimidade do Ministério Público para Propor a Ação Civil Pública na
Defesa dos Interesses e Direitos Coletivos - ADIRSON ANTÔNIO GLÓRIO DE
RAMOS ................................................................................................................. 441
4. TÉCNICAS ....................................................................................................... 454
4.1 A Interpretação Aberta e Flexível do Pedido na Ação Civil Pública e a Possibilidade de sua Alteração depois de Saneado o Processo — Inaplicabilidade
do Disposto nos Arts. 264, 293 e 294 do CPC – GREGÓRIO ASSAGRA DE
ALMEIDA ............................................................................................................. 454
SEÇÃO V – DIREITO PÚBLICO...................................................................... 457
SUBSEÇÃO I – DIREITO CONSTITUCIONAL ............................................ 457
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 457
1.1 O Nascimento das Bases do Constitucionalismo – RICARDO FERREIRA
SACCO .................................................................................................................. 457
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 479
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 486
3.1 A Inconstitucionalidade da Súmula 735 do Supremo Tribunal Federal –
GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA E WELLINGTON PEREIRA .............. 486
4. TÉCNICAS ....................................................................................................... 492
4.1 Termo de Ajustamento de Conduta para Instalação de Coqueria – WALTER
FREITAS DE MORAES JÚNIOR ........................................................................ 492
SUBSEÇÃO II – DIREITO INSTITUCIONAL ............................................... 496
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 496
1.1 Cooperação Internacional para Recuperação de Ativos Provenientes de Lavagem de Capitais – ANDRÉA BEATRIZ RODRIGUES DE BARCELOS ........ 496
1.2 Inquérito Civil: Aspectos Práticos e sua Regulação Normativa Federal e no
Âmbito do Estado de Minas Gerais – MARCUS PAULO QUEIROZ MACEDO 519
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 538
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 540
3.1 Comentário à Decisão da Presidente do STF — Suspensão dos Efeitos de
Liminar n.º 134 – Promotores de Justiça – Possibilidade de Candidatura ao Cargo
de Procurador-Geral de Justiça - RENATO FRANCO DE ALMEIDA................. 540
4. TÉCNICAS ....................................................................................................... 546
4.1 Mandado de Segurança para a Preservação de Prerrogativas Inerentes ao
Cargo de Procurador-Geral de Justiça – JARBAS SOARES JÚNIOR ................. 546
SUBSEÇÃO III – DIREITO ADMINISTRATIVO .......................................... 564
1. ARTIGOS ......................................................................................................... 564
1.1 Estados, Direitos do Consumidor e Regulação – FERNANDO RODRIGUES
MARTINS .............................................................................................................. 564
2. JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................ 576
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA..................................................... 584
3.1 Averbação da Reserva Legal Florestal: Limitação Administrativa ao Uso
da Propriedade Rural e Expressão de Princípios Cardeais do Direito Brasileiro
– LUCIANO JOSÉ ALVARENGA........................................................................ 584
4. TÉCNICAS ....................................................................................................... 594
4.1 Antecipação de Efeitos da Tutela – ALEXANDRE BRASILEIRO DE
QUEIROZ, ALEX SOARES NACIF, ANA CAROLINA GARCIA COSTA,
LUIZ GUSTAVO DE MELO BELTRÃO, MARCELO DE OLIVEIRA MILAGRES E MARCOS PEREIRA ANJO COUTINHO.............................................. 594
SEÇÃO VI – INFORMAÇÕES VARIADAS .................................................... 603
1. Indicação da Coleção Del Rey Internacional ..................................................... 603
2. Normas de Publicação da Revista Jurídica De Jure ........................................... 607
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
PREFÁCIO
Com grande alegria, atingimos a edição n.º 7 da Revista De Jure - Revista Jurídica
do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, reconhecido instrumento dialógico
entre práxis e teoria. Como a efetiva defesa da ordem jurídica, do Estado Democrático
de Direito e dos interesses metaindividuais pressupõe um permanente compromisso
e adequação das instituições, é inquestionável a importância do Ministério Público
nesse processo de aprimoramento da Ciência Jurídica, estendendo a ela os saberes
relacionados às complexas atividades do Parquet.
O perfil da revista é o da diversidade dos assuntos. Seu caráter pluralista e democrático no acesso às informações compreende um espaço intelectual para se exercer a
autocrítica, indo ao encontro das necessidades prementes e mutáveis da sociedade
contemporânea.
Nesta 7ª edição, contamos com os preciosos trabalhos de Nelson Nery Junior, cuja
palestra discute a conveniência de se codificar ou não o Processo Coletivo; de Luiz
Guilherme Marinoni, Marcelo Rodrigues Abelha, Djanira Maria Radamés de Sá e
Rodrigo Reis Mazzei, entre outros.
Boa leitura e que a Revista De Jure continue a colaborar com o desenvolvimento do
Direito e aprimoramento profissional de seus leitores!
Jacson Rafael Campomizzi
Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional
Presidente do Conselho Editorial da Revista De Jure - Revista Jurídica do Ministério
Público do Estado de Minas Gerais
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
APRESENTAÇÃO
O Ministério Público desempenha um papel especial no atual cenário jurídico
brasileiro. Isso decorre não apenas da atuação transformadora de seus membros e
servidores, seguindo os parâmetros da Constituição da República Federativa do Brasil
(1988), mas também da perene reflexão teórica e crítica sobre os papéis desempenhados pela Instituição, num processo sempre voltado para a efetiva defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses metaindividuais (art. 127, caput,
CF/88).
O adequado cumprimento das atribuições que o constituinte confiou ao Parquet reclama, por um lado, a permanente busca de equilíbrio entre os aspectos teórico e prático
na atuação dos órgãos de execução. Em adição, não se pode descuidar da constante
reflexão crítica, destinada a interligar os dois aspectos mencionados com as relevantes
missões que o MP tem a cumprir. Como afirma Edgar Morin, na contemporaneidade,
a fidedignidade de um conhecimento, e da prática que com ele se articula, parte, em
grande medida, da autocrítica. Assim, cumpre ao MP exercer uma postura permanentemente auto-reflexiva, capaz de deixar a Instituição sempre aberta ao novo, às
constantes mutações sociais e jurídicas e, enfim, ao dinâmico processo de efetivação
da democracia.
Sob essa perspectiva, com grande alegria, publicamos o sétimo volume da Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a De Jure. Progressivamente,
a publicação consolida-se como um expressivo instrumento de divulgação não só do
pensamento jurídico, mas da produção científica brasileira de modo geral. Com efeito,
embora a revista enfoque os aspectos jurídicos do conhecimento (artigos, inovações
e comentários jurisprudenciais etc.), ela abre espaço para outros ramos do saber, permitindo uma visão panorâmica da ciência, num verdadeiro diálogo interdisciplinar.
Esperamos que a Revista De Jure possa continuar servindo como relevante instrumento de reflexão e aprimoramento teórico e prático da atuação dos membros do
Ministério Público e, por conseguinte, contribuindo para a realização dos mais nobres
ideais da República Federativa do Brasil.
Jarbas Soares Júnior
Procurador-Geral de Justiça
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SEÇÃO I – ASSUNTOS GERAIS
1. DOUTRINA INTERNACIONAL
1.1 EXTORSIÓN: VACUNA DE VEHÍCULOS EN EL ESTADO ZULIA1
ANA VICTORIA PARRA
Magíster Scientiarum en Ciencias Penales y Criminológicas
Profesora Asociado
Investigadora del Instituto de Criminología de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Políticas de
la Universidad del Zulia, Maracaibo, Venezuela
Resumen
En el trabajo se presentan los resultados de un estudio de campo cuyo objetivo principal fue analizar los factores involucrados en el origen y proliferación de contratos
entre algunos sectores de la población en el estado Zulia -hacia el oeste de Venezuela- y organizaciones que cobran para la protección sobre bienes, en particular de
vehículos. Se desarrollaron así en los Municipios Mara, Páez y Jesús Enrique Losada,
mecanismos de protección sobre vehículos al margen de la normativa vigente, generando durante su existencia amplia aceptación social, no obstante su administración
señalada de extorsionar a los afiliados a partir de cuestionadas formas de vinculación
con grupos delincuenciales. Se trabajó con la técnica de la Encuesta, mediante la
aplicación de un cuestionario especialmente preparado para describir la regularidad
del conocimiento y de las percepciones y opiniones de la población, afiliada o no a
las organizaciones aludidas. Se concluye que la población asume la existencia de
tales asociaciones como una alternativa al problema de inseguridad generalizada. Sin
embargo, tal protección termina siendo un mecanismo de extorsión no cuestionado
desde las comunidades en las que se asientan, ante una realidad social impregnada de
miedo, con marcada tendencia hacia la privatización del control social y caracterizada por la inoperancia de la acción institucional pública.
Palabras Claves: Violencia Delictiva, Robo de Vehículos, Extorsión y Vacuna
Introducción
El trabajo está organizado de forma que se plantea y delimitan las circunstancias fácticas y estadísticas del problema. Este se aborda en el marco de un clima de inseguridad personal y violencia que signa a nuestras principales ciudades. Realidad
(re)construida desde la opinión pública propiciando un sentimiento general de miedo
entre la población.
1
Este trabajo es un producto del proyecto “ACIDO Y GACE ¿asociaciones civiles de seguridad privada?”, financiado por
el CONDES N° VAC-CONDES 01257-99, en el marco del programa de Investigación intitulado: “Construcción Social del
Miedo y Mecanismos de Autodefensa”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Luego se presenta una descripción de los hechos o acontecimientos de orden públicos
sobre el surgimiento y actuación de las organizaciones que cobran vacuna para la protección de vehículos. Seguidamente se presenta la estrategia metodológica y luego los
resultados de la investigación con su respectivo análisis. Por ultimo se enumeran una
serie de reflexiones o consideraciones finales construidas desde la perspectiva teórica
de autores y corrientes cuyos conceptos y tesis facilitaron el abordaje del problema.
I.1. Una realidad Social Impregnada de Miedo e Inseguridad
Pocos asuntos de orden público tienen tanta incidencia sobre el ánimo colectivo como
el de la inseguridad personal y sus manifestaciones delictuales, seguramente por los
grados de riesgo de pérdida o menoscabo de la existencia vital que asalta el instinto
humano de sobrevivencia y la necesidad de seguridad ante el mundo externo. Aunque
los efectos de otros problemas de orden público son tan nocivos y pulverizadores del
tejido social e institucional, estos no revisten el dramatismo que impregna una atmósfera social cuyos miembros se ven potencialmente en situación de víctimas.
La inseguridad personal se ha instalado en la cotidianidad de los venezolanos. En la
última década las estadísticas delictivas se habían mantenido más o menos estables
mostrando poca variación interanual en cuanto al total general de los delitos registrados. Sin embargo, en el 2002 se presentó un incremento -respecto del año anterior- de
16% del total delitos generales y se ha dado un significativo aumento de los actos/
delitos violentos -robo con violencia, homicidio y secuestro-, de acuerdo con lo que
refleja el incremento en el territorio nacional de la tasa de homicidio por cada 100
mil habitantes que pasó de 13 en el año 1990 a 42 en el año 2002. Para el 2003 esta
tasa se incrementa un 18% en relación al año anterior. En el Estado Zulia la situación
es particularmente grave dado que La tasa fue de 83 homicidios por cada 100 mil
habitantes en el 2002.2
El estándar internacional convenido en relación con la tasa de homicidio establece
que cuando ésta se ubica sobre diez o más es considerado un problema de orden público, lo que indica que en este caso con unas tasas como las citadas anteriormente el
problema tiene visos de gravedad y se coloca, de acuerdo con este indicador, entre los
cinco países más violentos del mundo. Esto en el marco de un entorno regional que
ubica a América Latina como el continente más violento después de África, según
conclusiones de los organismos mundiales de desarrollo.(Cruz,1999)
El análisis de las estadísticas muestra que existe una base real en el temor al delito
o sentimiento de inseguridad presente en la población. Las formas emergentes de
violencia en los actos delictivos han generado gran impacto sobre el imaginario colectivo: el temor, el miedo, la incertidumbre, alimentan la percepción de alto riesgo de
ser víctima de un delito con grados variables de violencia. La sensación de vulnerabilidad e indefensión es reforzada por la deslegitimidad y desconfianza hacia los sis2
Estadística Delictiva. Ministerio de Relaciones Interiores y de Justicia. División de Estadísticas CICPC. Marzo 2003.
14
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
temas judiciales y los cuerpos policiales, no solo por su incapacidad para solucionar
el problema de la violencia delictiva, sino además por la participación, denunciada
y/o comprobada, de muchos de sus miembros en delitos -extorsión, robo, lesiones,
homicidio- por lo que son percibidos como una amenaza para la comunidad. (Parra
2000a)
Ante esta situación los ciudadanos optan por resolver sus problemas en instancias
ajenas a la administración de justicia generando mayor conflictividad social. En este
sentido, la “violencia criminal es indisociable de la violencia colectiva, expresada en
el estado de anomia que pone en peligro la convivencia ciudadana e induce a cada
uno a acudir a mecanismos de fuerza para resolver sus conflictos e intereses, sin
sentido de membresía de un conjunto social y un orden ciudadano”. (Santos, 1997:
32). El estado anómico de la sociedad junto a los mecanismos de segregación social
de amplios sectores en el acceso a la administración formal de la justicia, levanta
un manto de impunidad que termina traduciéndose en uno de los factores ligados al
comportamiento violento.
Una consecuencia del miedo como sentimiento generalizado es la legitimación del uso
de la violencia para protegerse. “Esta actitud defensiva al sentir que se está expuesto
a grave peligros –la delincuencia- desencadena mayor violencia en la medida que refuerza una dinámica que parece alimentarse a sí misma de “miedo colectivo-derecho
a protegerse” (Parra, 2000b:419).Crece así la tendencia a la solución violenta de los
conflictos –justicia por propia mano- ocurriendo en los hechos una privatización de la
seguridad. Por la vía hacia la “seguridad privada se ha traducido en una proliferación
de armas en la población civil con resultados contrarios a los esperados en la mayoría
de los casos. Más que disminuir los índices de delitos (robos, homicidios), esta disponibilidad de armas puede acrecentar y sin duda agravar las consecuencias de hechos
de violencia tanto social como doméstica puesto que la autodefensa puede aumentar
el riesgo de muerte de las víctimas” (Arraigada y Godoy, 1999:24).
La Seguridad Privada –formal o informal- viene ganando el espacio dejado por la
deslegitimidad e ineficacia del Estado. El control social se ha desplazado hacia el sector privado respondiendo a los intereses de particulares. El fenómeno es compartido
también con otros países de Latinoamérica, continente en el que se compran más de la
mitad de los seguros contra secuestros que se venden en el mundo. Las estadísticas del
Ministerio de Interior y Justicia señalan un incremento del secuestro en el territorio
nacional de un 76% en el 2002 en relación al año anterior, el incremento en el 2003
respecto de este último fue de 48%. Lo que significa que en los últimos dos años el
secuestro se incrementó en un 124%.
No obstante, todos los mecanismos de autoprotección utilizados -desde medidas y
acciones que van de simples precauciones como lo ha referido la teoría situacional del
delito hasta medidas defensivas violentas- la población no se siente segura, se percibe
desprotegida. En este clima de alarma social se acepta sin mayor cuestionamiento
cualquier iniciativa u organización que garanticen la seguridad de bienes y personas
15
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
aún cuando se formen al margen de la legalidad.
I. 2. Vacuna y Protección de Vehículos
En este escenario aparecen en el Estado Zulia hacia el oeste del país, provincia fronteriza con la Republica de Colombia, organizaciones ilegales dedicadas a la protección
privada de vehículos, utilizando mecanismos que responden a exigencias de pago en
forma de “vacuna”2-extorsión-, para garantizar la protección sobre el vehículo en un
espacio territorial determinado. (Parra, 1999). En Venezuela esta modalidad de pagos
en forma de vacunas –extorsión- se producían sólo en círculos de ganaderos o sectores adinerados quienes eran extorsionados con la amenaza de secuestros. Este delito
–poco frecuente- se registraba principalmente en zonas fronterizas con Colombia donde el secuestro ha adquirido connotaciones de industria bien organizada.
El cobro de vacuna aparejado históricamente con la posibilidad de secuestro –se atenta contra la vida y seguridad de la personas- resulta el modus operandi de bandas
organizadas y poderosas económicamente, que tienen los medios y mecanismos para
establecer el control por medio de la violencia de determinados espacios territoriales
donde no hay presencia ni acción policial o tiene un escaso impacto. Es reciente
la modalidad delictiva de cobro de vacuna por la seguridad y protección de bienes
–vehículos- y no por personas.
Desde el primer trimestre del año 1.999 los medios de comunicación regionales del
estado Zulia dieron cuenta de las acciones emprendidas por el poder ejecutivo regional para investigar y posteriormente desmantelar organizaciones civiles –GACE
y ACIDO3– que operaban en los municipios fronterizos Mara, Páez y Jesús Enrique
Lossada4 hacia el noroeste del Estado Zulia, resguardando y garantizando la seguridad
de bienes – vehículos e inmuebles – al margen de los mecanismos tradicionales de
control social del Estado.(Parra y Romero, 2002)
Las agrupaciones operaban como asociaciones civiles sin fines de lucro, inscribiendo
interesados con residencia o amplia permanencia diaria en los municipios referidos
a los fines de garantizar la propiedad y el dominio sobre los vehículos. Fijaban una
cuota de inscripción y pagos fijos mensuales, y sobre los bienes imponían un sello
adherible que advertía públicamente del resguardo sobre ellos. Según se ha indaga-
La “vacuna” es un término tomado del argot común para referirse al pago que hacen las personas para su protección – para
no ser atacadas- a los propios delincuentes.
ACIDO: Asociación de Comerciantes e Industriales Duros Organizados y GACE: Unión de Ganaderos, Agricultores,
Comerciantes, Empresarios.
4
Municipios fronterizos ubicados al noroeste del estado, en la costa occidental del Lago de Maracaibo. Aunque entre los
tres reúnen aproximadamente de 260 a 280 mil habitantes, presentan una baja densidad poblacional dada su extensión
territorial. Principalmente de economía rural sub-explotada, son asiento de actividad minera e hidrocarburífera – Mara y
J.E. Lossada – y de una alta participación indígena en la población, exclusivamente guajira o wayuu, del tronco Arawaka,
casi absoluta en el municipio Páez, pero de amplia presencia en los otros dos municipios.
2
3
16
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
do, este sello – calcomanía- actuaba como mecanismo disuasivo ante los eventuales
delincuentes, advirtiéndoles que el bien en cuestión se encontraba bajo protección de
esas organizaciones.
De acuerdo con las reseñas en los medios de comunicación eran una élite de empresarios de la zona, en unión con ex-agentes de seguridad pública y organizaciones /
bandas delictivas, con formas de operación cuasi-legal y “bien vistos cobros de cuotas
mensuales”- vacuna- por la protección de vehículos y en algunos casos de inmuebles.
Aunque no era una actividad o empresa aseguradora, garantizaban la recuperación de
los vehículos afiliados pudiendo, además, ejercer severas sanciones sobre los delincuentes que osaban violentar los bienes por ellos protegidos.
En sus inicios, los servicios eran ofrecidos sólo a productores e industriales de la
zona a los cuales se les pedía como único requisito identificarse a través de la respectiva documentación como tales; sin embargo, estos servicios fueron extendidos a la
población en general, por lo que se ensancha su misión, características y naturaleza,
convirtiéndose en un negocio lucrativo y en expansión. La forma como actúan las
organizaciones para la protección del vehículo es llegar a la presión que incluye la
amenaza directa a los delincuentes o mafias para que no violenten los bienes que
posean calcomanías o los sellos adherible, que los identifica como protegidos por las
organizaciones. En el caso de los vehículos “asegurados” –vacunados- que no son recuperados o ya están desvalijados al momento de encontrarlos, la organización reconoce parte del valor de la unidad, según lo establecido en el contrato con el cliente.
Otra forma de proceder de las organizaciones que cobran vacuna es “rescatando”
vehículos que no estaban protegidos -afiliados - al momento del robo, el propietario
puede recurrir a estas organizaciones para recuperar su vehículo; el rescate consiste
en un contacto –mediación- entre las organizaciones que cobran vacuna y los ladrones
del carro y negociar con ellos la recuperación del mismo. Tal negociación no se limita
al pago en efectivo del rescate exigido por los delincuentes, sino que también se puede acordar la entrega de otros bienes e incluso ofrecerle trabajo en la organizaciones
–ACIDO, GACE y otras- como “recuperadores”, en virtud de su relación con otras
bandas delictivas.
Contrario a lo que se esperaba hubiera ocurrido, conforme a las expectativas de comportamiento en una sociedad moderna ajustada a los valores y normas que le son
propias, se ha producido una alta demanda de la protección brindada que, aunada a la
aparente eficiencia en el cumplimiento de sus funciones, termina asimilando activa o
pasivamente su existencia, las funciones desempeñadas y sus mecanismos de actuación.
Aparentemente, las razones que justificaron su existencia se advierten asociados al
fracaso del control social formal para impedir el robo de vehículos y el asalto a los inmuebles particulares, a la ausencia de iniciativas eficaces de autoprotección surgidas
desde la propia comunidad y al sentimiento de inseguridad de los habitantes de los
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municipios Mara, Páez y Jesús Enrique Lossada del estado Zulia.
Cabe destacar que las constantes operaciones realizadas por los cuerpos de seguridad
para desmantelarlas no han tenido éxito5. Las organizaciones siguen funcionando con
otros nombres, con los mismos directivos o relacionados, y cambian las estrategias
de identificación o contraseña para evitar ser reconocidas por la policía. Más aún, se
han multiplicado, algunas utilizan los nombres de establecimientos comerciales para
que la calcomanía sea vista como publicidad y no despertar sospechas, las mas reconocidas son: Abastos y Víveres El Pique, PARE, El Zambo Mayor, Rancho Pancho,
Unicor, Milenio 2000, entre otras6; que ofrecen servicios de protección a vehículos de
cualquier ciudadano especialmente a empresarios, comerciantes y ganaderos, ya que
son quienes más las demandan en la medida que son blanco fácil para los ladrones
de automóviles y a su vez, por desarrollar sus actividades en municipios fronterizos
con la República de Colombia, en consecuencia potencialmente expuestos al robo,
secuestro, y actividades homólogas propias de la actuación de los grupos armados en
Colombia y la acción del narcotráfico.
La proliferación de estas organizaciones prácticamente ha hecho metástasis. No solo
se han mimetizado, además se extienden más allá de la geografía que inicialmente estaba cubierta. Se denuncian organizaciones ilegales de protección de vehículos con las
mismas formas de operación en la Costa Oriental, Sur del Lago y en la zona de Perijá.
Igualmente se conoce de su actuación en la actividad lacustre –lanchas-.
Vale señalar que el robo de vehículos se expande como industria y negocio. En el
año 2003 ocurrieron 56.873 casos conocidos de robo y hurto de vehículos, según las
estadísticas oficiales a nivel nacional, esta cifra representa un incremento de 22% en
relación con el año 2001. Es vox populi los nexos en el negocio de organizaciones delictivas con características de mafias organizadas con los cuerpos de seguridad pública. Y, si embargo, no se conoce de política medianamente coherente y consistente que
aspire recuperar gobernabilidad sobre la garantía de la propiedad sobre estos bienes.
En este contexto surgen varias interrogantes cuyas tentativas de respuestas, además
de su actualidad, novedad y devenir, justifican el esfuerzo investigativo. Tales interrogantes están planteadas con el fin de conocer la opinión de la población sobre,
¿Cuáles son los factores o elementos subjetivos que justificaron la existencia de estas
organizaciones?. ¿Cuales, las condiciones materiales que permitieron y propiciaron
que las personas se afilien?. El marco de análisis y los resultados de la información
que seguidamente se exponen, pretenden avanzar en la construcción de respuestas
posibles a tales interrogantes.
5
No existe política de seguridad –ni preventiva ni represiva- dirigida a controlar y desmantelar a las organizaciones que
cobran vacuna para proteger vehículos. El Estado se ha limitado a realizar operativos para quitar las calcomanías cuando
ya estas son de dominio público; pareciera inexistente la labor de inteligencia y las actuaciones de los organismos públicos
de seguridad constituyen reacciones a las denuncias hechas desde la opinión pública.
6
El cobro de vacuna sobre bienes ha expandido su ámbito de actuación , ya no se trata solo de vehículos, sino de establecimientos comerciales, viviendas, personas y hasta de las unidades de navegación lacustre - lanchas- con fines de pesca.
Aunado a esto la industria del secuestro tiene un repunte en el país, en especial en el estado Zulia.
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II. Metodológia
En la investigación se realiza un análisis de los factores involucrados en el origen y
proliferación de las organizaciones que cobran vacuna para protección de vehículos.
Para ello se estudiaron las percepciones y opiniones de la población sobre el surgimiento, y las razones de afiliación a estas organizaciones.
De orden exploratoria-analítica. La estrategia sobre la que está fundada descansa en
el uso y aplicación de la metodología cuantitativa. Se ejecutó en el Municipio Jesús
Enrique Lossada del Estado Zulia, Parroquia La Concepción, a partir de la selección
de sectores y urbanizaciones (llamadas campos) ubicadas en el casco central de la parroquia. Los entrevistados en cada familia fueron personas mayores de 18 años, con
vehículo propio y con residencia permanente en el municipio. La población estuvo
constituida por 2450 viviendas, para una muestra de 142 viviendas.
El instrumento de recolección de información para esta investigación fue un cuestionario constituido por 83 preguntas, en su mayoría cerradas, dicotómicas y de selección múltiple. El procesamiento de la información se realizó a través del paquete
estadístico SPSS, que permitió ordenar y cuantificar la información general y realizar cruces de variables a los efectos comparativos. El análisis se realizó en dos (2)
niveles: el primero porcentual, a partir de las tablas de distribución de frecuencia y
el segundo correlacional, mediante el cruce de variables que permitió establecer la
asociación entre estas.
III. Resultados
Entre tantos factores que motivan el surgimiento de las asociaciones, fue criterio
de la investigación enfocar el análisis en a) un elemento del entorno, como lo es el
desprestigio de los cuerpos policiales de seguridad; b) uno de orden circunstancial,
la eficacia en la actuación de las organizaciones dedicadas al cobro de vacuna en el
cumplimiento o garantía del objetivo o servicio prestado, a saber, la protección y resguardo del vehículo; c) las afectaciones sobre el sentimiento de inseguridad y miedo
en la población.
En el Municipio Jesús Enrique Lossada funcionó sin limitaciones, a sus anchas y con
amplia cobertura, la organización ACIDO. Lo que sigue resulta la descripción y el
análisis de los factores antes mencionados asociados al surgimiento, procedimiento,
apreciación y reconocimiento social en la población estudiada.
III.1. Aceptación y Afiliación
Su existencia como organización ilegal de seguridad privada resultaba de dominio
público. Así lo refirió el 82% de la población, dando cuenta del conocimiento de su
presencia y prácticas de exigencia de dinero para brindar protección a vehículos. El
mismo porcentaje (83%) señaló conocer de su existencia a través de amigos, vecinos
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o familiares.
Del porcentaje de encuestados –21%- que manifestó conocer a sus directivos, el 62%
se refería a los de la organización ACIDO. El resto señaló otras organizaciones que
a diferencia de aquella están activas, aunque no alcanzan el éxito, la extensión y la
magnitud de ACIDO. Referíamos antes que ACIDO y GACE fueron intervenidas por
los organismos regionales de seguridad del Estado, aunque su espacio de acción fue
ocupado por otras organizaciones de menor tamaño, menos visibles y mayor capacidad de mimetismo. Los directivos de las organizaciones, fueron identificados en
un 46,5% como comerciantes y ganaderos en busca de protección, y el 37,3% como
delincuentes organizados que operaban a través de la amenaza y extorsión.
El 30% de los encuestados manifestaron estar afiliados a algunas de las organizaciones existentes; las dos terceras partes lo estaba en “ACIDO”; afiliados a “PARE” y el
“Zambo Mayor” correspondieron el 11% y 9% respectivamente.
Entre los requisitos exigidos para la afiliación a la organización, el 38% señaló que no
se le condicionó su participación al status o condición gremial de ganadero o comerciante; ello induce a considerar que sólo interesaba la identificación y/o propiedad
sobre el bien protegido y el pago de la inscripción y las cuotas mensuales respectivas.
En ello se manifiesta que la actividad como negocio con fines de lucro comenzó a
imponerse respecto de las motivaciones particulares que le dieron origen, esto es mecanismo de protección de ganaderos, comerciantes e industriales.
En relación a los mecanismos que utilizan para el control, la protección y recuperación de los vehículos el 71% de los encuestados respondió escogiendo algunas de
las opciones presentadas, a saber: “rastreo por radio”, “comunicaciones con bandas
delictivas”, o “llamadas personales por los organismos a los afiliados”.
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III.2. ¿Por qué surgen?
El 89% de la población encuestada expresa como razones por las que surgen organizaciones como ACIDO, GACE, PARE, Abastos El Pique, El Zambo Mayor, Rancho
Pancho, entre otras, “la ausencia de la policía”, “el aumento de robo de vehículos” y
“el aumento generalizado de la inseguridad personal”. (Ver Gráfico N° 2).
II: 2.1. Sentimiento de Inseguridad y Robo de Vehículos
Aunque existe una base real que muestra un aumento de los actos delictivos violentos,
de acuerdo a investigaciones socio-criminológicas, la apreciación de la población sobre el aumento de robo de vehículos y el aumento de la inseguridad está más asociado al imaginario colectivo que a la objetividad del fenómeno (Cisneros y Zubillaga,
1997). A partir de los años noventa la inseguridad ha sido tan debatida y sentida que
ha llegado a formar parte de la cotidianidad de los venezolanos , si bien es cierto que
se cometieron más delitos que en décadas anteriores, con estos han aparecido formas
emergentes de violencia que ponen en riesgo la vida misma – secuestro-expres, homicidios, secuestros, robos con lesiones etc-. Este componente de violencia en los
delitos tiene repercusiones significativas en el animo colectivo de la población que se
siente temerosa, indefensa, en riesgo de ser víctima de un delito violento.
En este sentido, un factor que puede estar en la base de la afiliación a las organizaciones de seguridad privada de vehículos, podría estar constituido por la percepción que
las personas tienen acerca de las condiciones de seguridad existentes en la comunidad.
Así podría considerarse que las personas que sienten inseguridad y creen que pueden
estar expuestas a ser víctimas de delitos, serían las que están más dispuestas a recurrir
al mecanismo de la afiliación a una organización que le garantice la protección de sus
bienes ante el robo o hurto.
Más de la mitad de los entrevistados –57,8%- señala que su comunidad es insegura o
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muy insegura. (Ver Gráfico N° 3).
III.2.2. Ilegitimidad de los Cuerpos Policiales
Una de las bases sobre la que se soporta la legitimidad del Estado Moderno es su
función de garante de la protección y seguridad de bienes y personas, sobre la que se
funda la convivencia ciudadana. En última instancia el Estado delega su realización
en la acción eficaz -merecedora de reconocimiento público- de los cuerpos públicos
organizados de protección, vigilancia y seguridad. Los grados de aceptación social
de éstos refieren a una valoración de tales organismos por parte de la ciudadanía.
Valoración que dice mucho respecto de su potencial para atenuar o disminuir el sentimiento de inseguridad prevaleciente en la sociedad venezolana, del que dan cuenta
permanente los medios de comunicación y voceros académicos.
Existen Investigaciones (Santos Alvins, 1992; Briceño León, 1997; Parra, 2000 b;
Birkbeck y Gabaldon, 1990) que han puesto de relevancia la desvalorización de los
cuerpos de seguridad entre la ciudadanía que no se siente asistida por la actividad
policial, a la que además consideran de poca acción ante la abundancia delictiva, con
abierta extralimitación en sus funciones – al extremo de ser asumida como una fuente
segura de violación de derechos humanos – en fin, con tantas fallas y carencias que
la hacen cada vez menos confiable. Obviamente, se percibe un estado de indefensión
ante la impunidad con la que actúa la delincuencia, sin respuesta policial/oficial que
contrarreste su acción, erosionando día a día su condición de fuerza legitimadora del
orden, como consecuencia de la ineficacia y el desmérito público.
En relación a la percepción que la población tiene de los cuerpos policiales, se observa lo siguiente: a) el 86% considera que el gobierno es poco eficiente o deficiente
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en el resguardo de la seguridad personal; b) un porcentaje ligeramente superior – 95%
- califica con los mismos juicios la acción de la policía; c) dos terceras partes consideran como el peor servicio público la vigilancia policial, inclusive con una apreciación
negativa mayor sobre otros servicios generalmente calificados de pésimos como son
los casos de la educación y de los servicios conexos a la vivienda. Luego, cuando se
solicita seleccionar entre algunas afirmaciones para identificar a la policía con algunas de ellas, el 85% seleccionó las alternativas “no están capacitados ni dotados para
combatir la delincuencia”, “son pocos con relación al número de delincuentes” y/o
“que son igual o peor que los delincuentes”. (Ver Gráfico N° 4).
El temor a la violencia personal/delincuencial, asociado a una posible agresión o desaparición física, por encima de los juicios de valor sobre cómo se vive – viene aparejado a una percepción ampliamente negativa de la eficacia de los organismos policiales,
que se traduce en una opinión generalizada de precariedad institucional para realizar
su misión, expresada en términos de “no están dotados, ni capacitados”, “son pocos”;
pero también de juicios descalificadores que la homologan con la delincuencia o que
la perciben como el peor entre todos los servicios públicos.
A pesar de esta desvalorización de los organismos policiales y de su consideración
como cuerpos violadores de derechos humanos, su vigencia institucional no es rechazada por los encuestados como instancia legitima del orden público. Antes bien, existe
redundancia en las respuestas que apuntan en reconocer su eficacia a partir del fortalecimiento de su dimensión represora y el uso de la fuerza física para eliminar, detener
a quien delinque o resulte sospechoso de hacerlo. Así, el 87% estima pertinente el
uso de la fuerza para contrarrestar la actividad delincuencial, lo que puede interpretarse como el reconocimiento de la existencia de organismos que institucionalmente
sean los portadores de la acción violenta del Estado para salvaguardar la seguridad de
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bienes y personas, esto es, la propiedad privada y la vida. No aparece cuestionada en
las respuestas de los encuestados la institución policial, pero se deja en entredicho
la actuación y honestidad de estos cuerpos, aunque se demande extremar el uso de la
fuerza visto como mecanismo que potencia la eficacia de la policía.
Se aprecia una “ambivalencia del sentimiento colectivo sobre las instituciones de
control social: por una parte se tiene una desfavorable opinión sobre la eficacia y
honestidad de los organismos de seguridad y por la otra respaldan y exigen mayor participación policial y medidas represivas más severas” (Parra, 2000b:419). “Cuando la
comunidad se siente amenazada en su instinto de seguridad suele buscar chivos expiatorios, reclamar una represión más severa y exigir que el Estado ejerza vigorosamente
uno de sus más importantes atributos: el derecho a castigar” (Birkbeck, 1991: 13,14).
Con lo cual se corre el riesgo de excesos y abuso de poder que puede institucionalizar
una violencia desde el Estado.
La detención de sospechosos, -cuya designación viene cargada del sesgo y la estigmatización social, donde se asocia delincuencia y pobreza (Aniyar, 1987)- que imponen los intereses y valores del orden establecido, es aceptada por el 66% de los
encuestados como la acción que aprobarían realice la policía en presencia de una
acción delictual. Resalta la figura del ajusticiamiento como segunda opción entre estas
acciones, – 20% -. Obsérvese que una flagrante violación de derechos humanos es
validada como acción posible, evidenciando la primacía de la eficacia como elemento
de reconocimiento en la comunidad que se traduce en este caso en el exterminio del
delincuente, reconocido como sujeto sin derechos.
Según la apreciación de los encuestados la actuación policial resulta ineficaz, lo que
mina su legitimidad como institución social garante de la seguridad de bienes y de la
vida. Sin embargo, su existencia misma no resulta cuestionada y, antes bien, se le demanda mayor efectividad –presencia y represión- ante el auge delincuencial, aunque
ello signifique la justificación del uso de la fuerza en acciones como el atropello, la
detención arbitraria o el ajusticiamiento.
Existe una asociación entre la percepción de la inseguridad y la calificación de la
acción policial. De modo que, en la medida que la población piensa que hay mayor
inseguridad, también es mayor la calificación de ineficiente de las policía. Esto puede
configurar una situación en la cual las personas, en virtud de su percepción del riesgo,
generan un estado de vulnerabilidad o indefensión proclive a la aceptación y legitimación de cualquier iniciativa que responda a la demanda social de seguridad, aunque
ocurra al margen de la legalidad estatal.(Ver Tabla Nº 1).
En resumen, la ausencia de instituciones eficaces de control social unida al sentimiento de inseguridad generado por una percepción pública de incremento de la actividad
delictual, genera las condiciones objetivas y construye la disposición subjetiva en los
ciudadanos para justificar el funcionamiento de estas organizaciones. No importa los
mecanismos utilizados para alcanzar su propósito –persuadiendo o reprimiendo- el
cliente tiene su vehículo seguro y protegido por la calcomanía, o recuperado, si acaso
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llegare a ocurrir el hurto o robo.
III. 3. Confianza: Protección y Eficacia
Una de las razones para la afiliación a considerar es la confianza. La eficacia de las
organizaciones en la realización de su misión genera confianza en quien procura la
seguridad de sus bienes y legitimidad pública como mecanismo de control social. Al
respecto, un 49% de los entrevistados ubica a ACIDO entre aquellas organizaciones
que brindan mayor protección y seguridad al vehículo. Como segunda opción, en
ausencia de organizaciones como ACIDO existe preferencia por las compañías de
seguridad privada (42%). Ambas opciones por encima de la preferencia sobre los
cuerpos policiales.
La cantidad de personas afiliadas se expresa como un elemento que potencia la confianza en tales organizaciones – ACIDO, GACE y otras- Al respecto, el 52% de los
encuestados señala el número de inscritos como una demostración de confianza que
refleja la aceptación de la población. Además existe un elemento de reconocimiento
público implícito en la medida que durante un período considerable de tiempo desde
las instancias cercanas de poder público –Alcaldía, Jefatura civil y autoridades militares- no se cuestionó la experiencia y se permitió su expansión. Esta aceptación se ve
reforzada por la justificación que hace el 49% de los encuestados sobre la existencia
de estas organizaciones y/u otras similares y de las acciones que desarrollan en el
cumplimiento de sus objetivos. (Ver Gráfico N° 5).
Continuando con las manifestaciones de confianza, el 70% de los encuestados contestó que efectivamente el robo de vehículos ha disminuido a partir de la existencia
de las organizaciones aludidas. Las dos terceras partes –67%- considera excelente o
buena la labor de rescate realizada para la recuperación del vehículo robado; mientras
la tercera parte de los que asintieron estar afiliados fueron objeto de robos de vehículos antes de afiliarse, de las cuales posteriormente apenas el 4% fue nuevamente
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victima; sin embargo, logró la recuperación del vehículo por gestiones o acciones de
las organizaciones.
TABLA No. 1 (Fuente: Distribución de frecuencia Encuesta noviembre 2000)
Por supuesto, se acentúa esta opinión en la población afiliada, cuyo 83% fundamenta
en la “confianza” y la “eficacia”, las razones motivadoras de su adscripción. A su
vez el 94% estima que la afiliación le garantiza “protección” o “mucha protección”,
en virtud de la ostentación del sello adherible o calcomanía en un lugar visible de su
vehículo. (Ver Gráfico N° 6).
En concordancia con tal percepción, el 57% de toda la población encuestada reconoce
explícitamente en estas organizaciones una alternativa frente a la inseguridad; sin
embargo, no es despreciable el porcentaje de quienes aprecian su operación como una
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forma de vacuna o extorsión (40%). (Ver Gráfico N° 7).
La percepción que se tiene de las organizaciones está asociada a la afiliación. En este
sentido la mitad de los no afiliados la consideran una forma de vacuna y extorsión,
razón por la cual tal vez no se afiliaron, mientras que los afiliados (79%) ven en las
organizaciones una alternativa frente a la inseguridad.
En relación a los procedimientos o actuaciones de las organizaciones para recuperar
los vehículos, sólo el 6% manifestó conocerlos, aunque de estos apenas cuatro encuestados se atrevieron a referirlo: homicidios, negociaciones pacíficas y otras. Tal vez, el
escaso número de respuestas en este aspecto no permita apuntar conclusiones, pero
sin duda coincide con la opinión generalizada en la zona y en los municipios vecinos
de que actúan de manera violenta y causan daños físicos –algunas veces irreparablesa los delincuentes que se apropiaron del vehículo de un afiliado, llegando incluso al
homicidio. No obstante, no se tienen pruebas de ello. Se trata justamente -como se
observa antes- de la legitimación que alcanzan esas organizaciones en la medida que
le dan al delincuente el trato que la población espera. Esta situación es muy delicada
ya que tiene que ver con los niveles de tolerancia y aceptación de mecanismos de
agresión física como forma de resolución de los conflictos, para la recuperación del
bien, resarcimiento de la víctima y lección intimidatoria pública.
Consideraciones Finales
Qué implicaciones tiene el desarrollo de estas organizaciones para la gobernabilidad
del Estado sobre las distintas dimensiones del control social? ¿Qué consecuencias de-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
vienen de estas experiencias de protección privada de vehículos fundada en la extorsión sobre el ejercicio de la ciudadanía?. Presentamos unas breves consideraciones que
resumen nuestro intento por construir lecturas de interpretación ante esta particular
realidad que reta a esfuerzos mayores de investigación y comprensión.
¿Es la experiencia que analizamos un caso de informalización de justicia como las
presentadas en otras latitudes de América Latina? ¿Estamos en presencia de iniciativas susceptibles de asimilación como muestra de pluralidad de nuestro ordenamiento
jurídico? (Santos, 1991; Santos y Garcia, 2001). Pues bien, no estamos en presencia
de uno ni de otro. Estas experiencias son un caso particular de desviación que se mimetiza en medio de la legalidad formal; no es una forma alternativa de justicia porque
parte de la ideología dominante y participa lucrativamente del defecto del sistema
formal. No hay un sistema de valores distintos a los del sistema formal, cuyo marco
jurídico y orden social no se cuestiona. Si se identifica que los que brindan protección
son los mismos que roban, entonces hay un delito de extorsión. Esta forma de protección que aparentemente se presenta como una norma extendida, no es susceptible de
legitimidad, es antagónica a las propuestas venidas desde la legalidad alternativa que
propugnan otro orden de valores. Antes que alternativas puestas un paso adelante del
marco jurídico vigente, nos retrotraen hacia estadios sociales regidos por la inexistencia de un orden institucional de derecho.
En el Estado moderno la ciudadanía se expresa en derechos y deberes ante el orden
social y los otros ciudadanos. Si no existen las garantías de seguridad y protección
para su ejercicio se interrumpe el contrato social y se generan las condiciones para la
resolución de conflictos que privatizan un espacio estatal. En una comunidad donde
está ausente el Estado – en última instancia sus fuerzas de seguridad y orden, en este
caso la policía -, donde no se asoman rastros del mismo, no se puede pretender o exigir que la comunidad porte los valores del sistema jurídico-estatal si le es infuncional,
no tiene acceso al sistema de administración de justicia, está desprotegida y no tiene
garantizada su seguridad jurídica. Bajo esta premisa no se requiere de mucho análisis
para descubrir que la legalidad dista mucho de ser representación verídica de lo que
ocurre en la sociedad real. Por otra parte, puede afirmarse que si el poder legal no
es legitimado, no se construye una relación vinculante con la comunidad al carecer
de validez; al no ofrecer vasos de comunicación a partir de los cuales la comunidad
satisfaga su aspiración de seguridad, el estado de derecho corre el riesgo de ser desobedecido legítimamente. (Jacques, 1991).
Existe la disposición y voluntad de la población de hacer valer derechos ciudadanos
consagrados aunque sea al margen de la ley, procurándose protección y seguridad de
la que pueden disponer mediante arreglos privados ante el desamparo estatal, a pesar
de que la acción individual de unos afecta la condición ciudadana de otros.
Existe un reconocimiento de que la actividad de las organizaciones de seguridad privada discurre al margen de la legalidad, pero ello no importa si satisface una necesidad de garantía y el resguardo de la propiedad privada para la que el Estado se
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muestra insolvente. Ante la ausencia o ineficiencia de los mecanismos tradicionales
de control social, surgen iniciativas grupales, generalmente privadas, que adquieren
aceptación en la medida que son de rápida respuesta, eficaces, sencillas y de bajo
costo, aunque estén al margen de la ley. Esto se corresponde con el modelo de justicia
privada ampliamente estudiada entre las tendencias actuales de control social. (Del
Olmo 2000.; Gabaldón, 1999; Adamson, 1998; Baratta, 1998)
Se genera toda una dinámica de privatización de los conflictos que giran alrededor de
la seguridad de bienes, minimizando la acción del Estado en la producción de seguridad jurídica fáctica y su legitimidad, en la medida que tampoco ocurre producción
simbólica favorecedora de normas de la convivencia social. La ausencia del Estado
para garantizar la seguridad y la regulación de los conflictos, hace que las personas
resuelvan sus problemas de forma individual recurriendo a la violencia o avalando
cualquier iniciativa, así sea ilegal, que resuelva su problema inmediato de seguridad.
La irrupción de ésta práctica ocurre en el marco de la deslegitimación del sistema
formal de control social, la incapacidad de la institucionalidad representativa del Estado de garantizar bienes privados y el caldo de cultivo de una comunidad llena de
miedo (Berger y Luckmann, 1979; Cisneros y Zubillaga, 1997) y con percepción de
inseguridad sobre sus bienes y vida.
Sucede una aceptación de estas organizaciones de protección y seguridad privada
antes que la desprotección abierta. La deslegitimación de los sistemas formales de
justicia justifica la aparición de las organizaciones delictivas o mafias de extorsión y
vacuna como una salida pragmática a la necesidad de protección. Hay una aceptación
subjetiva frente a la necesidad de protegerse.
Ocurre una discriminación social, implícita en los mecanismos de seguridad privada,
entre quienes pueden pagar para su protección y quienes no están en condiciones de
hacerlo, lo que hace de la igualdad ciudadana una ficción jurídica ante las evidencias
reales.
Que un porcentaje importante de la población se afilie a organizaciones de extorsión
significa que quién no se afilia deviene en potencial víctima y está desprotegido por
partida doble: no tiene la seguridad del Estado y está a merced de las organizaciones
que lo extorsionan. Los procedimientos utilizados para captar a los afiliados, pueden
suponer el amedrentamiento e intimidación a los propietarios de carros con valor comercial y unidades de negocio rentables, para obligarlos a inscribirse en la asociación
y pagar la protección de éstos.
La vacuna reviste más gravedad que cualquier otra medida ilegal de seguridad privada que surge desde la población, en el sentido de que no solo se afecta la ciudadanía
propia y ajena – el otro que no está incluido en mi mecanismo de protección está en
condición de minusvalía ante los organizaciones de seguridad privadas – además se
potencia la violencia, pues quienes representan la amenaza terminan siendo los mismos que violentan la seguridad de bienes y personas de quienes pagan para la pro-
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tección. Sin dudas lo que se acepta como mecanismo de protección resulta un recurso
de extorsión para forzar el alineamiento de la población desasistida hacia el servicio
brindado por las asociaciones de seguridad privada, lo que resulta un reconocimiento
de la ausencia del Estado.
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31
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
1.2 LA GARANTÍA DEL DEBIDO PROCESO Y
EL PLAZO RAZONABLE DE SU SUSTANCIACIÓN
EDUARDO M. MARTÍNEZ ÁLVAREZ
Vicerrector Académico de la Universidad del Museo Social Argentino
Profesor Titular de Derecho Procesal - Parte General y Civil- Comercial
Seminario I del Doctorado en Derecho y Ciencias Sociales (UMSA)
Juez de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil.
2.1 Tribunal Europeo de Derechos Humanos (Tedh)
A) Caso König (sentencia del 28 de junio de 1978). Trató el tema de un profesional de
la medicina que había sido inhabilitado para ejercer por los tribunales alemanes. Apeló en 1967 y en 1971. Recurrió con posterioridad ante los órganos del Convenio por
excesiva demora de la justicia alemana y violación del art. 6.1 del Convenio Europeo
para la protección de los Derechos Humanos y las Libertades Fundamentales (Roma:
4-1-1950), que contempla el derecho de toda persona a que su causa sea oída equitativa y públicamente y que la sentencia sea pronunciada dentro de un plazo establecido
por la ley. El TEDH hizo lugar al reclamo considerando que los tribunales alemanes
suspendieron la causa sin justificativo atendible durante 21 meses.
B) Caso “Zimerman y Steiner” (sentencia del 13 de julio de 1983). Se trató la causa
de dos ciudadanos suizos que alquilaron sendos departamentos en las inmediaciones
del aeropuerto de Zürich y que reclamaron una indemnización por polución auditiva y
respiratoria. El reclamo se inició en agosto de 1975 y la Comisión Federal de Valoración lo rechazó en octubre de 1976. En abril de 1977 recurrieron ante el Tribunal Suizo. Pidieron pronto despacho en septiembre de 1978, marzo de 1979 y junio de 1980.
La sala I del referido tribunal, con las pertinentes disculpas por la tardanza al 15 de
octubre de 1980 desestimó el recurso. Los peticionarios reclamaron ante la Comisión
que los tres años largos transcurridos en la justicia suiza no podían ser considerados
como “plazo razonable”. Aquélla resolvió por unanimidad que se había violado el art.
6.1. el 9 de marzo de 1982. El TEDH, en julio de 1983, estableció la responsabilidad
del Estado Suizo por considerar que: 1) no había “complejidad del litigio”; 2) que no
existió retardo en la “conducta de los demandantes” y sí en el de las autoridades judiciales suizas y 3) lo que “arriesgaban y ponían en juego los accionantes”.
2.2 Tribunal Constitucional Español
“Recurso de amparo interpuestocontra la Universidad Complutense”. Ésta no remitió
en tiempo un expediente. La Sala II Cont. Adm. de la Audiencia territorial de Madrid
demoró más de un año en despacharlo, lesionando al pretendiente (ABC) en su derecho constitucional de obtener una tutela efectiva de los jueces (art. 24.1 de la C.E. que
preceptúa que la jurisdicción debe prestarse en plazo razonable, y el art. 24.2 de la
C.E. lo reafirma al consagrar un proceso público sin dilaciones indebidas y consideró
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
que no existía complejidad justificadora del retraso judicial ni demora de la parte (art.
6.1. del Convenio Europeo).
2.3 Corte Interamericana de Derechos Humanos (C.I.D.H.)
Constituyen normas rectoras en el tema del “plazo razonable” los arts. 8.1 y 25.1 de
la Convención Americana sobre Derechos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica
de julio de 1978) que afirman “el derecho de las personas a ser oídas, con las garantías
y dentro de un plazo razonable, por un juez o tribunal competente...” y el de acceder
“a un recurso sencillo y rápido o a cualquier otro recurso efectivo ante los jueces o
tribunales competentes que lo amparen contra actos de la autoridad que violen, en
perjuicio suyo, algunos de los derechos fundamentales consagrados constitucionalmente”.
2.3.1. Caso Cantos, José María, del 28 De Noviembre de 2002
En 1972, el actor planteó diversas acciones, denuncias penales y reclamos administrativos, en virtud de que Rentas de la Provincia de Santiago del Estero secuestró –por
presunta infracción a la ley de sellos– la totalidad de la documentación contable y
numerosa cantidad de títulos valores, sin practicar inventario, lo que provocó serios
perjuicios al actor. Éste, en 1982, llegó a un acuerdo con esa provincia, quien reconoció una indemnización pero incumplió su pago. Demandada la provincia y el Estado
Nacional en 1986, la Procuración del Tesoro autorizó un acuerdo transaccional con el
Ministerio del Interior ante la Corte en 1993, éste la intimó a pagar una tasa judicial
de 83 millones de pesos, bajo pena de multa. En 1996, la CSJN rechazó la demanda
y le impuso las costas al Sr. Cantos por 145 millones. En 1997, la Corte lo inhabilitó
para ejercer el comercio después de 24 años de proceso y le trabó embargo por los
honorarios regulados en el proceso. En mayo de 1996, Cantos denunció ante la CIDH
la violación de sus derechos de propiedad y de acceso a la justicia. El 28 de septiembre
de 2002, la CIDH condenó a la República Argentina por violación del derecho de acceso a la justicia, decidiendo que el Estado argentino debe abstenerse de cobrar la tasa
de justicia y la multa por falta de pago; fijar un monto razonable por los honorarios:
asumir el pago de los honorarios y las costas de los peritos y abogados del Estado y
de la Provincia de Santiago del Estero; levantar los embargos, inhibición e inhabilitación sobre Cantos y pagar los gastos del proceso internacional ante la CIDH a los
representantes de la víctima por U$S 15.000. Sin embargo, consideró que la conducta
procesal de Cantos, desde diciembre de 1989 hasta febrero de 1995, contribuyó por
su inactividad a prolongar indebidamente la duración del pleito, por lo cual no existió
violación del derecho a obtener justicia en un plazo razonable. El 21 de agosto de
2003, por Resolución 1404/2003 (cf. LL, ejemplar del día 16/9/03) tras las presentación efectuada por el Procurador del Tesoro de la Nación, a fin de que la CSJN instrumente el cumplimiento de la sentencia de la CIDH, el Tribunal cimero, por mayoría,
declina la intervención requerida por considerar, entre otros argumentos, la posible
infracción de cláusulas de raigambre constitucional cuya titularidad corresponde a
los profesionales intervinientes, quienes no fueron parte en el proceso desarrollado
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
en instancia internacional, lo que llevaría a la inicua y paradójica situación de hacer
incurrir al Estado Argentino en responsabilidad internacional por afectar garantías y
derechos reconocidos, precisamente, en el instrumento cuyo acatamiento se invoca.
2.4 Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina
Por normas rectoras en nuestro derecho el propósito preambular constitucional de
“afianzar la justicia” y el art. 18 de la Ley Fundamental, 8° del Pacto de San José de
Costa Rica y 6° del Tratado de Roma, además de los ya referidos artículos 34, inc.
5, ap. e) y 36, inc. 1 del CPCCN. El Alto Tribunal reconoció el peso de la dimensión
temporal en las causas sometidas a su conocimiento (FALLOS: 300-1102). Consideró
asimismo, que la buena marcha de las instituciones compromete el sentido de una
correcta administración de justicia, por lo que debe procurarse una rápida y eficaz decisión judicial (FALLOS: 256-941). Reafirmó, también, que la garantía de la defensa
en juicio no se compadece con la posibilidad de que las sentencias dilaten sin más
término la decisión de las cuestiones sometidas a los jueces y restringen con igual
latitud la libre disposición del patrimonio (FALLOS: 269-131) 5.
3. Test De Eficacia Judicial de la Cidh
Siguiendo en la ponderación del plazo razonable a la Corte Europea de Derechos
Humanos, la Corte de Costa Rica adoptó el siguiente test para examinar las irregularidades temporales en el trámite de los recursos:
a) la “complejidad del asunto”. Resulta obvio, que debe tenerse en cuenta además el
número de fojas, cuerpos, anexos, circunstancias de la causa. La CIDH exige, por otra
parte, que el Estado explique y pruebe los extremos que lo llevaron a demorar más
tiempo del razonable para arribar a la decisión de fondo.
b) la “actividad procesal del interesado”. Ésta debe ser diligente, activa, carente de
maniobras dilatorias, instrumentando sólo los actos procesales necesarios y en actitud
solidaria con el Tribunal.
c) la “conducta de las autoridades competentes”. Ésta debe ajustarse a los tiempos
contemplados en las normas adjetivas y sustantivas, en su caso, para determinar si
hubo o no transgresión del plazo razonable, sin considerar como atenuante la sobrecarga de trabajo de los tribunales o las habituales falencias humanas o técnicas.
4. Conclusión
De lo expuesto, se extrae que el proceso civil debe finalizar en un plazo razonable, sin
desmedro que el pronunciamiento que en definitiva recaiga, se ajuste a derecho, sea
debidamente fundado y equitativo. Es que, como lo recuerda Berizonce, remitiendo
a inveterada doctrina de la Corte Federal “hacer justicia, misión específica de los magistrados, no importa otra cosa que la recta determinación de lo justo en concreto” 6,
agregando de mi cuño, y que la decisión jurisdiccional arribe cuando verdaderamente
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
importe.
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35
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. DOUTRINA NACIONAL
2.1 O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS PROCEDIMENTOS
DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
DJANIRA MARIA RADAMÉS DE SÁ
Mestre e Doutora em Direito pela PUC/SP
Professora de Direito Processual Civil
Coordenadora do Curso de Direito da UNIMINAS em Uberlândia
Membro do IBDP e do IAMG
SUMÁRIO: 1. A intervenção do Ministério Público nos procedimentos de jurisdição
voluntária. 2. As propostas legislativas. 3. A natureza jurídica da denominada jurisdição voluntária. 4. Possível solução para o problema.
1. A Intervenção do Ministério Público nos Procedimentos de Jurisdição Voluntária
Consoante o disposto no artigo 1.105 do Código de Processo Civil, compete ao Ministério Público, com foros de obrigatoriedade e sob pena de nulidade, a intervenção
como custos legis nos procedimentos de jurisdição voluntária. Trata-se, aqui, de atividade necessária, inafastável, marcada pela inquisitoriedade em face de disposição
legal expressa, reveladora da presença do interesse público determinador da intervenção ministerial. Em razão da opção legislativa de vincular a eficácia da natureza
dos atos receptícios, probatórios, declaratórios, constitutivos, executórios e tutelares1
à chancela do Poder Judiciário, o interesse público a tutelar nos procedimentos de
jurisdição voluntária é presumido juris et de jure (NERY JÚNIOR, 1987), descabendo
a ilação de que, nos procedimentos de jurisdição voluntária, poderia o Ministério Público interpretar a regra do art. 1.105 conjuntamente com a do art. 82, III, e, discricionariamente, decidir-se pela presença do interesse público a proteger. Uma vez posta a
exigência legal expressa para as hipóteses de jurisdição voluntária, cabe ao Ministério
Público fiscalizar a observância da lei, exercendo função institucional voltada para
o controle dos atos e negócios jurídicos que interessam de forma direta ao Estado.
Cuida-se, então, de obrigatoriedade, não comportando a dicção do art. 1.105 do CPC
conjecturas em sentido diverso da imposição legal. Cabe ao Ministério Público a discricionariedade na avaliação da presença de interesse público na causa exclusivamente em face do disposto no art. 82, III, do CPC, norma de encerramento que confia ao
Parquet a aferição da necessidade de sua intervenção, sempre em consonância com o
entendimento do juiz da causa a esse respeito.
1 A classificação dos atos de jurisdição voluntária é de Greco (2003).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. As Propostas Legislativas
Proposta de alteração legislativa em trâmite no Congresso Nacional, no entanto, aponta para significativa alteração da disciplina normativa regulamentadora da atividade
do Ministério Público nos chamados procedimentos de jurisdição voluntária.
Invocada como motivação, a inexistência de razões de ordem jurídica, lógica ou prática, que justifiquem o processamento em juízo de atos de disposição de bens realizados
entre pessoas capazes, encaminhou o Poder Executivo ao Congresso Nacional, como
parte do chamado Pacote Republicano, o Projeto de Lei nº. 4.725/2004, dispondo
sobre o afastamento do Poder Judiciário da realização de separações consensuais,
divórcios consensuais e inventários de bens e respectivas partilhas que envolvam interessados capazes e concordes. Retirada do Poder Judiciário, a integração estatal a
esses atos inter volentes de natureza constitutiva passa a situar-se na órbita da responsabilidade notarial, cabendo ao tabelião a lavratura da escritura, eliminada a presença
do Ministério Público como fiscal da regularidade jurídica do ato de integração.
Projeto apensado pelo Deputado Léo Alcântara (PSDB/CE) amplia o objeto da separação e do divórcio, permitindo seu processamento por lavratura de escritura mesmo
existindo filhos menores, nela se dispondo sobre guarda e alimentos. Emenda aditiva
do Deputado Vicente Arruda (PSDB/CE) remete às mesmas vias extrajudiciais todas
as hipóteses de realização de atos inter volentes de natureza receptícia previstos na
Seção X, Cap. II, Título único, do Livro III do CPC.
A opção de lege ferenda revela a constatação de que os atos para os quais, tradicionalmente, exige-se a atividade do Poder Judiciário não são estritamente jurisdicionais,
mas administrativos, cabendo sua prática a agentes da Administração, no caso o notariado. A solução, no entanto, merece mais acurada reflexão no sentido de perquirir se,
dos órgãos administrativos, seria o notariado aquele afeto à função que se lhe atribui.
Encontrar a resposta para tal indagação implica analisar, primeiramente, se as atividades de jurisdição voluntária têm natureza jurisdicional ou administrativa para, em
seguida, e somente na hipótese de constatar-se a natureza administrativa da atividade,
adequar seu exercício à função respectiva.
3. A Natureza Jurídica da Denominada Jurisdição Voluntária
A polêmica em torno da natureza jurídica da jurisdição voluntária é secular, digladiando-se, nesse período, tanto no Brasil quanto alhures, doutrinadores de igual envergadura científica defendendo, um grupo, sua natureza administrativa e, outro, sua
índole jurisdicional.
A opção legislativa brasileira foi alocar os procedimentos de jurisdição voluntária no
corpo normativo do sistema processual civil voltado à tutela dos interesses individuais, deixando clara sua definição como jurisdicional, pelo menos do ponto de vista da
dicção legal.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Mudança de perspectiva aponta, no entanto, para a desjurisdicionalização de, pelo
menos, alguns desses procedimentos, não sendo suficiente, contudo, a simples escolha
do legislador para legitimar-lhe a feição.
Já em 1954, Marini alertava para a necessidade de precisar os reais contornos dos
procedimentos abrigados sob a denominação jurisdição voluntária, afirmando que:
“La più grande incertezza regna in dotrina non solo sulla natura della volontaria
giurisdizione, ma anche sul suoi confini.” (MARINI, 1954, p. 268).
Tais limites somente podem ser encontrados, segundo lição de Allorio (apud MARQUES, 2000, p. 16), na sistemática geral das atividades do Estado, dependente também da análise do conteúdo das atividades rotuladas de jurisdição voluntária a tarefa
de precisar sua natureza jurídica.
Atribui-se tradicionalmente ao Poder Judiciário a função integradora dos atos e negócios jurídicos praticados inter volentes sob a justificativa da necessidade da tutela
estatal em face da relevância do interesse público presente.
Para início da análise, idéia da qual não se pode afastar é a de que todos os poderes do
Estado são exercidos em razão do interesse público. Um dos postulados do moderno
Estado Democrático de Direito e pressuposto insubstituível de seu regular funcionamento, resolve-se o princípio da separação dos poderes na premissa da encarnação
de funções distintas em órgãos distintos, todos voltados à promoção e à realização do
interesse público. Verdade teórica da ciência do Estado, como indica Kelsen (1934, p.
333), erigem-se a separação orgânica dos poderes e a identidade entre os órgãos e suas
funções específicas como indispensáveis à organização estatal. No Estado Democrático de Direito, as três funções materiais de criação, execução e aplicação da norma
jurídica devem ser exercidas pelos órgãos que as expressam, visando o conjunto sempre ao interesse público de acordo com os ditames constitucionais.
Porém, como adverte Marques (2000, p. 33), “[...] a divisão de poderes não é operação
que se realize sem deixar restos”, o que remete à idéia de que a necessária harmonização dos poderes implica geração da possibilidade de interferências funcionais
limitadas, responsáveis pela existência de zonas intermediárias nas quais se situam
as funções estatais anômalas, ou seja, funções próprias de determinado Poder do Estado sendo exercidas por outro. A atual disciplina constitucional brasileira traz como
exemplos dessas interferências toleráveis o exercício de funções administrativas2 e
jurisdicionais3 pelo Poder Legislativo, de funções legislativas4 pelo Poder Executivo
e de funções administrativas5 e legislativas6 pelo Poder Judiciário. Implica o exercício
de tais funções estatais anômalas respeito aos limites precisos e justificáveis de inter2 Gestão administrativa das Casas do Congresso Nacional.
3 Processo de impeachment.
4 Edição de atos normativos como Medidas Provisórias e Decretos.
5 Gestão administrativa e disciplinar dos órgãos e membros do Poder Judiciário.
6 Edição de atos normativos internos, tais como Regimentos Internos dos Tribunais.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ferência, importando seu desbordamento em usurpação de poder.
A Constituição Federal atribuiu ao Poder Judiciário, como função material típica,
aquela afeta à aplicação da norma jurídica ao caso concreto, função essa decorrente
da inafastabilidade de seu controle sobre a lesão ou a ameaça de lesão a interesse protegido pelo ordenamento jurídico. A função desse Poder, portanto, é a jurisdicional,
pressupondo sua atividade a existência da lide, que faz nascer o direito de ação e,
com ele, o direito ao processo, cujo desenvolvimento, com a presença da parte à qual
se atribui a perpetração da lesão ou da ameaça leva ao pronunciamento jurisdicional.
Qualquer outra atividade atribuída ao Poder Judiciário que destoe desse contorno não
é, portanto, jurisdicional, mas judiciária.
Nesse passo, torna-se fundamental para realização do objetivo de determinar a natureza jurídica da assim chamada jurisdição voluntária, a análise do conteúdo dos atos e
negócios jurídicos submetidos à sua disciplina e, para tanto, vale-se ainda uma vez da
preciosa classificação desenvolvida por Greco (2003), que agrupa os procedimentos
por suas características e os classifica como receptícios, probatórios, declaratórios,
constitutivos, executórios e exclusivamente tutelares.
Receptícios são os procedimentos que envolvem a autoridade estatal para a finalidade
de receber e documentar a declaração dos interessados, deles sendo exemplos os protestos, notificações e interpelações, a rubrica de balanços e de livros obrigatórios. Por
procedimentos probatórios entendam-se os que se desenvolvem perante a autoridade
judiciária com a finalidade de produção de provas de fatos determinados para que,
assim conservadas, possam ser eventualmente utilizadas em futuros processos, deles
sendo exemplificativos a produção antecipada de provas e a justificação. Em face dos
procedimentos rotulados como declaratórios o juiz limita-se a verificar a concorrência
de todos os pressupostos legais, declarando, em caso positivo, a sua plena eficácia.
Nessa categoria contam-se a extinção de usufruto e de fideicomisso, o registro de
testamento e a posse em nome de nascituro. Determinados atos e negócios jurídicos
da vida privada das pessoas subordinam-se à autorização, à aprovação ou à homologação judicial para que possam produzir efeitos. São dessa espécie a emancipação,
a sub-rogação de gravames ou de bens inalienáveis, o arrendamento ou alienação de
bens dotais e de incapazes, a locação e administração da coisa comum, a separação e
o divórcio consensuais, a interdição, a especialização da hipoteca legal, a aprovação
dos estatutos das fundações, a homologação da transação extrajudicial, o arrolamento
sumário e a homologação do penhor legal, cuja integração se dá por meio de procedimentos constitutivos. Procedimentos nos quais a atividade do juiz é eminentemente
prática, preponderando a realização de atos que modificam o mundo exterior são os
executórios, tais como as alienações judiciais e a arrecadação, seja da herança jacente
ou vacante, de bens do ausente ou das coisas vagas. Restam, por fim, os procedimentos exclusivamente tutelares, pelos quais o juiz investe alguém no exercício de uma
função administrativa ou protetiva de interesses de outrem, como no caso da nomeação ou remoção de tutores ou curadores.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Em todos os casos listados sobreleva, inegavelmente, o interesse público em que a
realização dos atos ou negócios jurídicos se dê com a inafastável assistência estatal, mas, embora a escolha legislativa tenha recaído sobre o Poder Judiciário para o
exercício dessa atividade assistencial, é de ver-se que inexistindo nessas hipóteses
qualquer espaço para a realização da atividade jurisdicional, função material típica
atribuída a esse Poder do Estado, encontra-se o Poder Judiciário, na espécie, desenvolvendo função anômala que, por meramente judiciária, seria atribuível à esfera administrativa do Estado.
Exigem os procedimentos de jurisdição voluntária, unicamente, a assistência do Estado para a chancela dos atos e negócios jurídicos inter volentes, afastado, ipso facto,
o exercício da função jurisdicional por não se contar a assistência entre as atividades
tipicamente jurisdicionais, o que torna imperiosa a adoção de posicionamento conducente à conclusão de que a impropriamente denominada jurisdição voluntária não é
jurisdição.
Ainda assim, subsiste na doutrina teoria defensora da determinação da natureza jurisdicional da jurisdição voluntária. Na esteira do pensamento de Gian Antonio Michelli, parcela de doutrinadores em todo o mundo advoga a tese de que a justiça não
se limita à jurisdição propriamente dita, mas abrange também a jurisdição voluntária,
que serve, pelas suas comprovações autênticas, homologações e atos de controle, à
manutenção da ordem jurídica, para o que se tornam indispensáveis a independência
e a imparcialidade do juiz. Pautam-se, assim, por um critério teleológico, atribuindo
ao Poder Judiciário a inafastabilidade do controle da regularidade de certos atos e
negócios jurídicos privados. No Brasil, a teoria encontra eco, principalmente, na doutrina de Edson Prata, Costa Machado, Leonardo Greco, Ovídio Baptista da Silva, José
Maria Tesheiner.
No entanto, o critério a ser adotado para a exata configuração da natureza jurídica da
jurisdição voluntária deve ser ontológico, ligado à sua natureza funcional.
Adotando posicionamentos expostos por Zanzuchi, Segni e Liebman na doutrina italiana, esclarece Frederico Marques (2000, p. 70) que, quando o Estado intervém, através do juiz, para realizar as funções da jurisdição voluntária, não atua com o objetivo
de fazer atuar a ordem jurídica, nem para dirimir litígio ou pretensão, sendo, assim,
materialmente administrativa e somente do ponto de vista subjetivo, uma atividade
judiciária, nunca jurisdicional, no que lhe assiste inteira razão.
Desafia a necessidade da tutela jurisdicional por parte do Poder Judiciário a existência
de incerteza quanto a uma relação jurídica, seja por lesão, seja por ameaça de lesão.
Na jurisdição voluntária, ao contrário, a intervenção do juiz torna-se necessária, por
imperativo legal, para que uma relação jurídica possa constituir-se ou modificar-se, o
que configura uma assistência protetiva. Nela, o juiz não pratica atos materialmente
jurisdicionais, mas somente cuida, nos limites e condições estabelecidos pela lei, do
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
interesse público na administração dos interesses privados. Trata-se, assim, de atividade secundária do Poder Judiciário a qual nem sequer tangencia sua função primordial,
devendo-se classificá-la como materialmente administrativa, não jurisdicional. Chamando o Estado a si a responsabilidade de fiscalizar e administrar interesses privados
que considera de alta relevância, estabelece o interesse público como ratio essendi de
sua intervenção, só se podendo creditar a uma opção legislativa o fato de atribuir ao
Poder Judiciário essa função anômala, estranha à sua função principal de restauração
da norma jurídica em face da lesão ou da ameaça de lesão.
Assim também Liebman (1954, p. 14) entendia com acerto:
Dalla giurisdizione vera e propria deve distinguersi la giurisdizione volontaria, complesso di attribuzioni accessorie degli
organi giurisdizionali ordinari, che non rientrano nella loro
funzione tipica ed appartengono piuttosto alla funzione amministrativa, di cui costituiscono um ramo particolare.
Apesar de haver-se inspirado na doutrina liebmaniana a codificação processual civil
brasileira de 1973, optou o legislador por nela alocar os procedimentos de jurisdição
voluntária, o que importou em sua jurisdicionalização, apesar da advertência contida
na Exposição de Motivos de que o fazia por razões de tradição e conveniência.
Tais critérios, obviamente, deveriam passar ao largo da construção científica do sistema processual civil, que, voltado para a concreção de escopos não só jurídicos, como
sociais, políticos e axiológicos, não pode conter corpos estranhos a seus institutos
fundamentais – ação, defesa, processo e jurisdição – bastando evocar a percuciente
distinção operada por Carneiro (2004, p. 43) para verificar o equívoco em que laborou
o legislador de 1973.
Se à jurisdição propriamente dita, ou contenciosa, pertencem todas as características
configuradoras dos institutos fundamentais, elementos essenciais à construção do sistema processual, é de ver-se que, contrariamente, nenhuma delas contribui para a determinação da chamada jurisdição voluntária como integrante da jurisdição. Tomando
como base os institutos fundamentais do sistema processual, raciocine-se: a causa
da jurisdição é uma lide, dela decorrendo, inevitavelmente, a existência de partes
contrapostas; para a solução da lide, indispensável a iniciativa do autor por meio da
ação exercitada em face do causador da lesão ou da ameaça de lesão, o qual integrará
a relação jurídica processual opondo sua defesa; pela ação inicia-se o processo e provoca-se a jurisdição, tornando inafastável a manifestação do Poder Judiciário para a
restauração do ordenamento jurídico violado por meio de decisão dotada de força de
imutabilidade quando transitada em julgado. Em face da lesão ou da ameaça de lesão
a direito encontram-se, assim, coerente e consistentemente presentes e interligados
todos os institutos fundamentais do processo.
O mesmo, contudo, não ocorre diante da necessidade de integração, pelo Estado, de
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ato ou negócio jurídico. Presente unicamente o interesse em regularizá-los conforme
as exigências legais, não se configura lide alguma. Sem ela, não se pode falar em ação
nem em partes contrapostas mas, simplesmente, em requerimento formalizado para
buscar a concreção do ato. Inexistente a ação, inexistente também o processo que a
ela cabe instaurar. E porque inexistente a lesão ou a ameaça a lesão a direito, descabe
ao Poder Judiciário o exercício do poder jurisdicional para restaurar a norma jurídica
violada, o que, por sua vez, não gera o efeito de tornar definitivo e imutável o comando dele derivado.
Em conclusão, não desafiam os procedimentos equivocadamente denominados de
jurisdição voluntária a função material típica do Poder Judiciário, sendo mais apropriado chamá-los, como o faz Segni (1937, p. 393), “[...] administração pública de
interesses privados”.
4. Possível Solução para o Problema
Definida pelo Estado a necessidade de fiscalizar e administrar interesses privados
considerados de relevância pelo interesse público que encerram e verificada a circunstância de que, sendo administrativa, tal atividade não se encontra afeta à função
primária do Poder Judiciário, é de ver-se a que órgão estatal caberia a função. Para
isso, é mister analisar o elenco de qualidades exigidas do agente a ser encarregado da
integração pública do ato ou do negócio privado.
Cuida-se, no terreno da impropriamente denominada jurisdição voluntária, de que
a atividade estatal deva dar-se em razão da proteção ao interesse público, exigindose, para isso, que a integração se realize em respeito ao ordenamento jurídico, com
imparcialidade e independência. A concorrência de tais requisitos, aliás, encontrase presente na argumentação de tantos quantos defendem a tese de manutenção dos
procedimentos sob a égide do Poder Judiciário. No entanto, não é este o depositário
exclusivo dessas qualidades, visto que devem pautar-se pelos parâmetros da isenção
em face do interesse público todos os agentes encarregados de sua proteção.
Entre todos, porém, aquele a quem a ordem constitucional brasileira elegeu como tutor
natural do interesse público é o Ministério Público, cabendo-lhe a função institucional
de atuar, em juízo e fora dele, como representante desse interesse, seja fiscalizando
o estrito cumprimento do ordenamento jurídico ou atuando como parte nas hipóteses
legalmente previstas, mas sempre tendo em mira a relevância do interesse em jogo.
Órgão administrativo destinado ao controle dos negócios jurídicos que interessam
de forma direta ao Estado, realiza o Ministério Público, destarte, uma função tutelar
sobre os interesses jurídicos de ordem privada, constituindo esta a sua função, tanto
do ponto de vista orgânico quanto material, podendo afirmar-se que, topicamente,
encontra-se o Ministério Público na zona extrema da administração, justamente onde
esta confina com a atividade jurisdicional.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Ao Ministério Público reservou a Constituição Brasileira de 1988 a característica da
independência, dotando-o, para o exercício de seu munus público, dos critérios de
oportunidade, conveniência, justiça e imparcialidade.
O questionamento inevitável, então, consistiria em saber a razão pela qual não recai a
opção legislativa na responsabilização do Ministério Público pela administração pública dos interesses privados, já que não lhe faltam os requisitos para tanto e, mais que
isso, sua vocação institucional volta-se, justamente, para essa assistência protetiva.
Nos chamados procedimentos de jurisdição voluntária, o juiz, independente e imparcial, utiliza-se dos critérios de conveniência, justiça e oportunidade para a necessária
integração do ato ou negócio jurídico tal como determinado pela lei de regência.
Retomada a análise do conteúdo dos procedimentos de jurisdição voluntária constata-se desafiarem-nos: a) o recebimento e a documentação da declaração dos interessados; b) a produção de provas a serem posteriormente utilizadas; c) a declaração da
eficácia de atos ou negócios jurídicos em face da verificação da existência de pressupostos legais; d) a constituição de situações ou relações jurídicas; e) a prática de
atos executórios; f) a investidura de alguém em função administrativa ou protetiva de
interesse alheio.
Nenhuma dessas atribuições escapa à órbita de atuação do Ministério Público, nem
mesmo as que dizem respeito à prática de ato constitutivo, visto que o Parquet detém, por imperativo de ordem constitucional, a atribuição quanto ao estabelecimento
de Termo de Ajustamento de Conduta, instrumento que, voltado à proteção dos interesses transindividuais, gera também eficácia constitutiva de direitos e deveres. A
constatação leva, então, à interpretação sistemática de que lhe é permitido, também,
praticar atos de assistência protetiva de interesses individuais relevantes, consoante
o largo espectro de atuação a que corresponde sua função institucional revelada pela
Constituição Federal.
Já aos notários, por não gozarem das mesmas prerrogativas constitucionais, exorbitam
as funções de integração dos atos e negócios jurídicos, sendo de censurar-se a proposta legislativa de não só atribuir-lhes a responsabilidade sobre tais atos como de,
sobre eles, afastar a fiscalização hoje exercida pelo Ministério Público. Aos notários
poder-se-ia, quando muito, pelas próprias características de que se revestem tais atos,
atribuir o recebimento e a documentação da declaração dos interessados. Os demais
procedimentos de jurisdição voluntária, contudo, por exigirem a independência, que
é traço ausente no Notariado, escapam à sua esfera de atuação, não se lhe podendo
atribuir a responsabilidade sem grave lesão à concepção das funções estatais.
Conclui-se, então, ser o Ministério Público a instituição naturalmente vocacionada e
destinada à assistência protetiva que constitui o objeto dos assim denominados procedimentos de jurisdição voluntária, sendo de lamentar-se que, se, por um lado, encaminha-se o Poder Legislativo para a adoção de um correto posicionamento quanto
à sua natureza jurídica, cometa, por outro, o equívoco de atribuir a atividade a órgão
43
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
administrativo cujo perfil funcional não se revela adequado à gestão e à proteção dos
interesses considerados relevantes pelo Estado.
5. Bibliografia
MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a jurisdição voluntária. Campinas: Millenium, 2000.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 13. ed. São Paulo: Saraiva,
2004.
GRECO, Leonardo. Jurisdição voluntária moderna. São Paulo: Dialética, 2003.
KELSLEN, Hans. Teoria general del Estado. Barcelona: Labor, 1934.
LIEBMAN, Enrico Tulio. Manuale di Diritto Processuale Civile.2. ed. Milano: Giuffrè, 1957.
MARINI, Carlo Maria de. Considerazioni sulla natura della giurisdizione volontaria.
Rivista di Diritto Processuale, 1954.
MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a jurisdição voluntária. Campinas: Millenium, 2000.
NERY JÚNIOR, Nelson. Intervenção do Ministério Público nos procedimentos especiais de jurisdição voluntária, Revista de Processo, n. 46, 1987.
SEGNI, Antonio. Vb. Giurisdizione civile. In: Nuovo Digesto Italiano. Torino: UTET,
1937.
44
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2.2 TUTELA COLETIVA EM PORTUGAL: UMA BREVE RESENHA*
RODRIGO REIS MAZZEI
Professor da Universidade Federal do Espírito Santo
Professor do Instituto Capixaba de Estudos
Vice-presidente do Instituto de Advogados do Estado do Espírito Santo
Mestrando na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Advogado
SUMÁRIO: 1. Os Direitos Coletivos e a Sociedade Contemporânea. 2. Interesses
Individuais e Coletivos. 3. A Ação Popular Portuguesa. 4. O Objeto da Ação Popular
Portuguesa. 5. A Legitimidade para Propositura da Ação Popular. 5.1. A Figura do
Ministério Público. 5.2. O Regime Especial de Representação. 5.3. O Controle da Legitimidade Popular. 6. A Coisa Julgada na Ação Popular. 6.1. Coisa Julgada e Direito
de Auto-Exclusão. 7. Procedimento Cautelar na Ação Popular. 8. Das Ações Previstas
na Lei nº 24/96. 8.1 A Ação Inibitória e a Tutela de Interesses dos Consumidores.
8.2. Reparação de Danos. 8.3. A Legitimidade para a Propositura das Ações. 8.3.1.
Do Ministério Público e do Instituto do Consumidor. 9. Breve Comparativo entre a
Ação Civil Pública (Brasil) e a Ação Popular (Portugal). 9.1. Meios para Defesa de
Interesses Coletivos. 9.2. A Ação Popular no Brasil e em Portugal. 9.3. Interesses
Coletivos Passíveis de Proteção. 9.4. Critérios Classificadores. 9.5. Legitimidade. 9.6.
Coisa Julgada. 9.7. O Papel do Ministério Público. 9.8. Poderes do Juiz. 10. Breve
Fechamento. 11. Bibliografia.
1. Os Direitos Coletivos e a Sociedade Contemporânea
A tutela dos interesses coletivos está ligada diretamente a uma idéia de acesso à justiça tida não só como mera possibilidade de qualquer cidadão ter suas pretensões de
direito analisadas pelo Poder Judiciário (ou por qualquer órgão que exerça tal função), mas como um princípio que prescreva as vias mais rápidas, eficazes e justas1
para prover tutela jurídica em relação aos conflitos surgidos na sociedade. No caso
brasileiro, o primeiro ponto – a rapidez na prestação da tutela – é prejudicado por
uma litigiosidade galopante2 que vem tomando dimensão cada vez mais acentuada
* O presente estudo foi originalmente publicado em Mazzei e Nolasco (2005).
1
É sabido que o termo justiça é demasiadamente aberto, mas tomaremos aqui sua acepção sob um corte isonômico, idéia
positivada em nosso ordenamento jurídico pelo princípio da igualdade (art. 5º, CF/1988): a via mais justa é aquela que está
mais apta a colocar os litigantes sob paridade de armas dentro do processo.
2
Mendes (2000, p. 178-195) fez interessante estudo sobre a situação: “A simples enumeração de alguns dados é suficiente
para atestar o problema no Brasil. O Supremo Tribunal Federal recebeu, no ano de 1970, 6.367 processos; em 1980, foram
9.555; dez anos depois, 18.564; no ano de 1998 o número atingiu o montante de 52.636 processos recebidos; e até o dia
30.6.1999 já haviam entrado 26.187 feitos. Cabe lembrar que o STF, na essência, é a Corte Constitucional brasileira, composta de apenas 11 Ministros. Órgãos semelhantes, no cenário internacional, apresentam realidade completamente diversa.
A Suprema Corte Americana, em 1994, julgou 300 processos. Em Portugal, foram julgados 900. No Superior Tribunal de
Justiça brasileiro, nos anos de 1989 e 1990, foram distribuídos, respectivamente, 6.103 e 14.087 processos. Em 1994, o
número subiu para 3.670 e, em 1998, alcançou a quantidade de 92.107 feitos. No Tribunal Superior do Trabalho, por sua
vez, foram autuados, nos anos de 1990, 1994 e 1998, pela ordem, 20.276, 65.792 e 131.413 processos. Na 1ª instância
da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho, entraram, nos anos de 1990, 1994 e 1998, ao todo, 5.117.059, 5.147.652 e
10.201.289 processos, respectivamente”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
no passar dos anos.
Outro núcleo que influi diretamente na morosidade da justiça brasileira resume-se na
precária infra-estrutura relacionada a recursos humanos e materiais.3 De outra banda,
quanto à eficácia, que diz respeito à concretização fática dos direitos declarados/constituídos em sentença jurisdicional ou documento equivalente, a legislação tem evoluído bastante ao criar e ampliar a utilização de formas mais adequadas à efetivação
desses direitos. Em nível doutrinário, a nosso sentir, é de extrema importância a obra
de Guerra (2003, p. 103), que versa sobre a tutela executiva como um direito fundamental constitucionalmente garantido:
Mais concretamente, se pode afirmar que caracterizar como
um direito fundamental a exigência de que haja meios executivos adequados a proporcionar uma integral tutela executiva
de qualquer direito consagrado em título executivo significa o
seguinte:
a) o juiz tem o poder-dever de interpretar as normas relativas
aos meios executivos de forma a extrair delas um significado
que assegure a maior proteção e efetividade ao direito fundamental à tutela executiva;
b) o juiz tem o poder-dever de deixar de aplicar normas que
imponham uma restrição a um meio executivo, sempre que tal
restrição – a qual melhor caracteriza-se, insista-se, uma restrição ao direito fundamental à tutela executiva – não for justificável pela proteção devida a outro direito fundamental, que venha
a prevalecer, no caso concreto, sobre o direito fundamental à
tutela executiva;
c) o juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos que
se revelem necessários à prestação integral de tutela executiva,
mesmo que não previstos em lei, e ainda que expressamente
vedados em lei, desde que observados os limites impostos por
eventuais direitos fundamentais colidentes àquele relativo aos
meios executivos.
O grande foco direcionado à necessidade de ações supra-individuais é recente4 e seu
aparecimento tardio pode ser atribuído basicamente a três fatores:
a) o capitalismo primitivo, voltado a uma intensa e desregrada exploração dos bens
naturais e dos próprios seres humanos, pouco se preocupava em garantir direitos coleNo tema, com precisão, conferir: Tucci (1997, p. 105-110) e Dallari (1996, p. 156-157).
Entretanto, o tema relativo à tendência em direção à coletivização das relações jurídicas individuais é antigo, como percebemos através da lição de Duguit (1975, p. 239), originalmente publicada em 1922: “Si se protege la afectación individual
de una riqueza, es solo en consideración al individuo; la utilidad individual es lo único que se tiene em cuenta. Ahora bien,
hoy dia tenemos la clara conciencia de que el individuo no es un fin, sino un médio; que el individuo no es más que una
rueda de la vasta máquina que constituye el cuerpo social; que cada uno de nosotros no tiene razón de ser en el mundo
más que por la labor que realiza en la obra social. Así, pues, el sistema individualista está en flagrante contradicción con
ese estado de conciencia moderna.”
3
4
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tivos, como a proteção ao consumidor, ao meio ambiente saudável etc.;
b) com o decorrer dos anos, as agressões a esses bens coletivos se tornaram mais
intensas5 e a abertura democrática permitiu que tal situação fosse regulamentada juridicamente; e
c) por fim, o processo de globalização permitiu tanto o crescimento dessas relações
de massa como a própria conscientização dos sujeitos [coletividade(s)] prejudicados,
ensejando a jurisdicização desse fenômeno.
O reconhecimento jurídico dos interesses coletivos de certa forma reestruturou a figura do Estado contemporâneo. Nessa direção caminha a doutrina de Grinover (2000a,
p. 18):
O reconhecimento e a necessidade de tutela desses interesses
puseram em relevo sua configuração política. Deles emergiram
novas formas de gestão da coisa pública, em que se afirmaram
os grupos intermediários. Uma gestão participativa, como instrumento de racionalização do poder, que inaugura um novo
tipo de descentralização, não mais limitada ao plano estatal
(como descentralização político-administrativa), mas entendida
ao plano social, com tarefas atribuídas aos corpos intermediários e às formações sociais, dotados de autonomia e de funções
específicas. Trata-se de uma nova forma de limitação ao poder
do Estado, em que o conceito unitário de soberania, entendida
como soberania absoluta do povo, delegada ao Estado, é limitado pela soberania social atribuída aos grupos naturais e históricos que compõem a nação.
Problematizada a situação relativa aos interesses coletivos, que, pela evolução histórica, passou a ser protegida juridicamente por normas de direito material, restava
discutir ainda como se efetivariam tais direitos e que vias processuais seriam adequadas a defender esse tipo de interesses. Aqui entramos no terceiro item relacionado ao
acesso à justiça: a justa adequação das vias prescritas à defesa de direitos em juízo e,
especificamente, a adequação dessas vias processuais à defesa de direitos coletivos.
Há hipóteses em que as lesões individualmente consideradas são de pequena monta e
a relação custo-benefício desestimula o ajuizamento de ações reparatórias; entretanto,
essas lesões, quando observadas sob um amplo espectro, possuem relevante importância sócio-econômica, uma vez que a não-repressão desses atos deixa impunes aqueles
“Na verdade, a necessidade de processos supra-individuais não é nova, pois há muito tempo ocorrem lesões a direitos,
que atingem coletividades, grupos ou certa quantidade de indivíduos, que poderiam fazer valer seus direitos de modo
coletivo. A diferença é que, na atualidade, tanto na esfera da vida pública como privada, as relações de massa expandem-se
continuamente, bem como o alcance dos problemas correlatos, fruto do crescimento da produção, dos meios de comunicação e do consumo, bem como do número de funcionários públicos e de trabalhadores, de aposentados e pensionistas, da
abertura de capital das pessoas jurídicas e conseqüente aumento do número de acionistas e dos danos ambientais causados.
Multiplicam-se, portanto, as lesões sofridas pelas pessoas, seja na qualidade de consumidores, contribuintes, aposentados,
servidores públicos, trabalhadores, moradores etc., decorrentes de circunstâncias de fato ou relações jurídicas comuns”
(MENDES, 2002, p. 29-30).
5
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
que se aproveitam de brechas no direito processual para abusar da situação de vantagem, ignorando as prescrições contidas nas regras de direito material.
Frise-se ainda que, nessas relações jurídicas, o desequilíbrio entre as partes é outro
fator que serve de desestímulo ao ajuizamento de ações, pois geralmente o causador
da lesão está muito bem estruturado para o litígio, podendo usufruir de profissionais
de qualidade que, definitivamente, tornarão desproporcionais as possibilidades argumentativas e probatórias dos litigantes. A criação de meios apropriados (justos) para a
defesa desses direitos vem servir de instrumento para a implementação de um equilíbrio no processo, através do redimensionamento das forças conflitantes, em benefício
da parte mais fraca.
Outra problemática a respeito dos interesses coletivos é diretamente relacionada à
defesa de direitos indivisíveis em juízo – tanto os pertencentes a grupos específicos
e individualizáveis (direitos coletivos stricto sensu) ou como os outros, titularizados
pela coletividade em geral (direitos difusos).
Toda dificuldade gira em torno da exigência do devido processo legal, pois essa cláusula, presente em quase todos os ordenamentos jurídicos democráticos, reclama, para
que se atinja o patrimônio ou a liberdade das pessoas, que elas tenham sido chamadas em juízo para participar do processo, com possibilidade de utilização de todos
os meios e recursos inerentes à ampla defesa. Com base nesse princípio, toda vez
que algum direito indivisível fosse questionado, seria necessário que todas as pessoas
que pudessem ser afetadas diretamente pela sentença pacificadora do conflito fossem
trazidas para participar no processo; acontece que isso inviabilizaria a própria propositura da demanda porque, em processos coletivos, a dimensão subjetiva da lide é
geralmente muito grande.6
No desenvolvimento das citadas questões, a doutrina italiana teve um papel muito
importante, apesar de sua parca experiência jurisprudencial e legislativa.7 Nesse contexto, foram de fundamental importância as posições de Cappelletti (1988; 2001), que
demonstraram a inadequação da tradicional dicotomia entre o público e o privado para
a solução dos problemas da sociedade contemporânea, marcada por conflitos entre
interesses de massa. Anotando a existência dos chamados interesses difusos ou coletivos, que não pertencem às pessoas individualmente consideradas, mas à coletividade
em si, o autor defende a necessidade de uma adequação dos institutos processuais à
6
Segundo Morello (1999, p. 43): “¿Servirá a los fines de la tutela apelar al litisconsorcio o la acumulación de procesos?
La experiência indica que no son ellos funcionales para abastecer esas realidades frecuentes en las ciudades urbanas y
dinâmicas de fines del milenio. Insistir en esas sendas provocaria otra manifestación defasada de ‘más de lo mismo’, que
forzarían, a escala desproporcionada, figuras pensadas para ser utilizadas dentro de otras proporciones y que, si se las
lleva a um registro subjetivamente distinto, se las saca de madre, com resultados adversos a su razonable y circunscripto
ámbito de juego normal.”
7
Na Itália, a tutela relativa aos direitos coletivos lato sensu passou a ser destaque nos anos 70, movimento impulsionado
através da polêmica decisão prolatada pelo Conselho de Estado em 1973, que reconheceu a legitimidade da associação
ambientalista Italia Nostra para impugnar ato da província de Trento que autorizava a construção de uma rodovia na zona
circundante do Lago de Tovel. Um acórdão nesse sentido estimulou os processualistas italianos a se dedicarem mais sobre
o tema, fato que culminou com os congressos de Pavia, em 1974, e de Salerno, ocorrido em 1975.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tutela desses direitos, indicando quatro dificuldades principais relativas à garantia do
acesso à justiça, no tocante aos interesses coletivos, quais sejam:
a) Legitimação: Dada a impossibilidade ou inconveniência de
um litisconsórcio formado por todas as pessoas interessadas na
causa, o autor indica a necessidade de eleição de uma ou poucas
pessoas como legitimadas ativamente para a defesa daqueles
interesses coletivos. Destaca ainda que, como o processo coletivo não versa apenas sobre o direito do autor, dever-se-ia exigir
que o ideological plaintiff (autor ideológico) estivesse qualificado para o posto, de modo que pudesse exercer uma defesa
adequada. Cappelletti indica que a melhor forma de selecionar
o defensor ideal para a categoria foge dos esquemas tradicionais de legitimação, afirmando que a adoção de um critério ope
judicis, é a melhor opção (o magistrado deve ter uma ampla
margem de discricionariedade para identificar o representante
mais adequado a cada caso concreto).
b) Garantias processuais dos membros ausentes: Como os
membros da coletividade afetada pela decisão jurisdicional não
têm a chance de se defender em juízo, resta superar qualquer
resquício de garantismo individualista, escorando-se no instituto suficiente e necessário da representatividade adequada.
c) Limites da coisa julgada: O autor critica a idéia dos efeitos
da coisa julgada secundum eventum litis – adotada atualmente
em muitos ordenamentos – pela qual só tem o selo da definitividade a decisão favorável à coletividade, argumentando que
como ambas as partes estão devidamente representadas, não há
motivo para qualquer distinção entre os resultados do processo.8
d) Provimentos adequados: o jurista afirma que as sanções essencialmente repressivas e monetárias são insuficientes para a
satisfação dos direitos e interesses coletivos protegidos e, portanto, se fazem necessárias formas mais variadas e fortes de
provimentos, com caráter preventivo e até criminal, para casos
de inobservância. (CAPPELLETTI, 2001, p. 325).
Não sendo os aspectos globais da tutela coletiva o núcleo de nosso estudo, o panorama
apresentado já permite boa superfície para o desenvolvimento do objeto mor do presente texto, valendo, contudo, fazer pequeno destaque quanto à celeridade na emissão
8
Quanto às garantias processuais dos membros ausentes, colhemos a lição do argentino Morello (1999, p. 40): “El garantismo técnico y nada más que eso es un hacer de los operadores que olvida, cuando se desentiende de su verdadera finalidad, que el proceso es un medio civilizado y racional de alcanzar la solución justa al fondo de la disputa, sin quedarse
en la superficie – muchas veces frustratoria, como gusta expressar nuestra Corte Suprema – de la tutela constitucional
debida.”
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
dos provimentos.
Com efeito, a devida (justa) utilização de processos coletivos é uma das formas de
reduzir o afogamento do aparelho judiciário, por motivos óbvios: tanto o cúmulo subjetivo de ações9 como a prevenção de agressões a direitos difusos e coletivos10 podem
otimizar o trabalho dos magistrados, reduzindo o tempo de julgamento dos processos
ou evitando o seu próprio surgimento. Nesse sentido, com acerto arremata Mendes
(2002, p. 33):
A questão não deixa de ser, também lógica, pois, a priori, os
conflitos eminentemente singulares devem ser resolvidos individualmente, enquanto os litígios de natureza essencial ou
acidentalmente coletiva precisam contar com a possibilidade
de solução metaindividual. A inexistência ou o funcionamento
deficiente do processo coletivo dentro do ordenamento jurídico,
nos dias de hoje, dá causa à multiplicação desnecessária do número de ações distribuídas, agravando ainda mais à sobrecarga
do poder judiciário. Na verdade, são lides que guardam enorme
semelhança, pois decorrem de questão comum de fato ou de direito, passando a ser decididas de modo mecânico pelos juízos,
através do que se convencionou chamar de sentenças-padrão ou
repetitivas, vulgarizando-se a nobre função de julgar. É o que
vem ocorrendo, verbi gratia, na Justiça Federal brasileira. Nas
circunscrições do Rio de Janeiro e de Niterói, por exemplo, as
sentenças padrão representaram, no cômputo do total de sentenças cíveis de mérito dos últimos quatro anos e sete meses,
respectivamente, 62,5% e 73%. A atividade judicial descaracteriza-se com esta prática, por completo, passando a ser exercida
e vista como mera repetição burocrática, desprovida de significado e importância.
2. Interesses Individuais e Coletivos
O autor português Silva (2002, p. 25) define interesse como “[...] a relação que se
estabelece entre um sujeito (individual ou colectivo) e um bem que expressa a valoração que o sujeito faz como apto para a satisfação de uma sua necessidade. O interesse
Na linha, colhe-se do luso Sousa (2003, p. 91): “Numa análise econômica, a resolução jurisdicional dos conflitos deve
ser obtida minimizando os custos sociais que lhe são inerentes e que são suportados pelo demandante, pelo demandado
e pelo Estado. A tutela colectiva possui, nesta perspectiva, uma fácil justificação: esta tutela substitui acções individuais
que implicariam a repetição da apreciação dos mesmos factos e das mesmas provas, a atribuição de eficácia ‘inter partes’
à resolução de questões comuns a todos os lesados e, por fim, a afectação dos recursos financeiros do lesante, não para o
ressarcimento dos danos, mas para o pagamento dos custos daquelas acções.”
10
Segundo Sousa (2003, p. 106): “Deve ainda ser salientado que a solução de litígios relativos a interesses difusos através
dos tribunais não só assegura a observância das garantias próprias nos processos judiciais, como permite a produção de
certos efeitos que vão para além das incidências sobre o caso concreto. Estes efeitos gerais traduzem-se, quer na modificação dos comportamentos dos agentes e, portanto, na dissuasão de outras violações, quer na possibilidade de prevenção de
outros conflitos. Este último efeito é naturalmente desejado pelos titulares do interesse difuso tutelado, mas o demandado
também pode beneficiar de uma solução que é vinculativa para eventuais futuros lesados.”
9
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
assumirá a qualidade de jurídico a partir do momento em que seja reconhecido por
uma norma”.
Os interesses podem ser classificados como individuais ou coletivos conforme a divisibilidade ou indivisibilidade do bem apto à sua satisfação: (1) os bens divisíveis estão
sujeitos à possibilidade de apropriação individual e, por isso, os interesses relativos
a ele podem ser caracterizados como tal; e (2) os interesses coletivos em geral se
relacionam com bens indivisíveis, ou seja, aqueles com que, quando se satisfaz uma
necessidade, há de se satisfazerem todas as outras vinculadas a ele. Para Silva (2002,
p.57), os interesses coletivos podem ser:
a) difusos: quando, além da indivisibilidade, acresce-se a indeterminação do sujeito; e
b) coletivos em sentido estrito: quando, ao contrário do que
ocorre com os interesses difusos, além da indivisibilidade do
bem, vislumbra-se uma entidade concreta e provida de organização como centro de referência dos titulares do direito. Nessa
categoria é possível determinar os titulares do interesse.
Há uma categoria interessante denominada interesses individuais homogêneos. Esses
interesses, como fazem entender seus próprios nomes, são individuais, entretanto a
homogeneidade de conteúdos e o universo relativamente vasto de sujeitos afetados
ensejam o associativismo. Sua importância supra-individual surge quando a lesão,
que tem origem comum – e, devido a isso, implica a apreciação de um núcleo comum de matéria fática e jurídica –, demonstra pouco significado patrimonial no plano
estritamente individual, o que, dentro de uma relação custo-benefício, impede sua
tutela jurisdicional, mas, quando redimensionada globalmente, representa um grande
prejuízo social.11
Dessa forma, para se garantir o acesso à justiça – em reprimenda dos atos lesivos e
para a reparação das esferas jurídicas lesionadas – os interesses jurídicos eminentemente individuais que possuem alto grau de semelhança passam a ter um trato processual coletivo. No caso do sistema coletivo brasileiro, há no Código de Defesa do
Consumidor uma sistematização legal, diferenciando-se, no artigo 81 (através de seus
incisos), os interesses ou direitos difusos (I) dos interesses ou direitos coletivos (II) e
dos interesses ou direitos individuais homogêneos (III).
11
Didática a lição de Alvim nos Apontamentos sobre o processo das ações coletivas (texto inédito, gentilmente cedido
pelo autor): “Diferem os direitos individuais homogêneos dos direitos difusos porque estes têm indeterminação quanto aos
titulares e são indivisíveis; dos direitos coletivos porque estes também não têm titular individualizado, mas sim o grupo
identificado, e também têm natureza indivisível; já os individuais homogêneos, como visto, têm a titularidade perfeitamente individualizada”. Merece também registro a doutrina do capixaba Abelha (2003, p. 45), no sentido de que os interesses
individuais homogêneos devem ser analisados “[...] sob um ângulo qualitativo e outro quantitativo [...] O qualitativo é o
de que devem possuir uma origem comum (não necessariamente idêntica), compreendida sob o aspecto da causa de pedir
próxima ou remota. O quantitativo diz respeito ao fato de que tais interesses homogêneos devam possuir, efetivamente,
uma considerável extensão de indivíduos, de tal forma que seja lícito atribuir-lhes um caráter de ‘homogêneos’, portanto,
com dimensão social que, pois, justifique, um tratamento coletivo”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Apesar de o artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor estampar as nuances
das manifestações do direito supra-individual, nunca é demais trazer à baila – pela
didática construção – o quadro desenhado por Mazzili (2002, p. 50), despontando as
diferenças e semelhanças dos direitos e interesses supra-individuais:
Interesses (ou direitos)
Grupo
Divisibilidade
Origem
Difusos
Indeterminável
Indivisíveis
Situação de fato
Coletivos
Determinável
Indivisíveis
Relação jurídica
Determinável
Divisíveis
Origem comum
Individuais Homogêneos
Importante realçar, desde logo, que em Portugal, apesar de identificada a sistematização em foco, não há dispositivo legal que faça a diferenciação entre os direitos supraindividuais, não obstante a doutrina examinar a questão com posição muito próxima
ao disposto na nossa legislação.12
3. A Ação Popular Portuguesa
A Constituição da República Portuguesa (1976), inspirada na idéia de participação
democrática, positivou a seguinte prescrição, em seu artigo 52º, n.º 1:
Os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos
seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral.
Com esse dispositivo, o legislador constitucional previu – e prescreveu – a existência
de tratamento processual específico para a tutela de direitos coletivos.
O mesmo dispositivo versa sobre a ação popular, que inicialmente era apenas mencionada no texto da Carta Magna, mas teve seu conteúdo preenchido pela Lei Complementar n.º 1/89. Mais mudanças vieram com a edição da Lei Constitucional n.º 1/97,
que incluiu no objeto dessa demanda a tutela dos “[...] direitos dos consumidores e
a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”. Atualmente, o artigo 52º, n.º 3, da Constituição portuguesa, que prevê tanto o direito de
petição como o direito de ação popular, possui a seguinte redação:
12
Confira-se: Silva (2002, p. 15-70).
52
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Artigo 52º
(Direito de petição e direito de acção popular)
1. Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou
colectivamente, aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para
defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e bem assim o direito de serem informados, em prazo
razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação.
2. A lei fixa as condições em que as petições apresentadas colectivamente à Assembléia da República são apreciadas pelo
Plenário.
3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações
de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular
nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização,
nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial
das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do
património cultural;
b) assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
É curioso notar que, apesar de seu aparecimento em 1976, a ação popular só veio a ser
regulamentada em 1995 – quase 20 anos de ineficácia – pela edição da festejada Lei
n.º 83 (Lei de Ação Popular). Com a entrada em vigor desse diploma legal, superou-se
uma angustiante inconstitucionalidade por omissão,13 uma vez que a norma prevista
no artigo 52º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa era, por muitos, consideA ação de inconstitucionalidade por omissão está prevista na Constituição da República Portuguesa: “Artigo 283º (Inconstitucionalidade por omissão) 1. A requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autônomas, dos presidentes das assembléias legislativas regionais, o Tribunal
Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão de medidas legislativas necessárias para
tornar exeqüíveis as normas constitucionais. 2. Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente.”
14
Vale mencionar o Processo n.º 554/93, julgado pelo Tribunal Constitucional português, através do qual “[...] o Provedor
de Justiça veio requerer, em 8 de outubro de 1993, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 283º, ns. 1 e 2 da Constituição, que o Tribunal Constitucional aprecie e verifique o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas
legislativas necessárias para tornar exequível a norma do artigo 52º, n. 3, na qual se consagra o direito de acção popular”.
Após a notificação do Presidente da Assembléia da República (15.11.1993) e da conclusão das diligências instrutórias,
o relator do processo, em 23.5.1994, apresentou o projeto de acórdão que entrou na ordem de inscrição em tabela para
julgamento, propondo que o Tribunal decidisse no sentido de “[...] dar por verificado o não cumprimento da Constituição
por omissão da medida legislativa prevista no artigo 52º, n. 3, necessária para tornar exequível o direito de acção popular
ali consagrado”, e que se desse, em conseqüência, “conhecimento desta verificação à Assembléia da República”. Acontece
que a Lei de Ação Popular foi editada em 1995, antes do julgamento desse processo, tendo, então, o Acórdão n. 638/95
verificado “[...] que no articulado da Lei n. 83/95, se contém uma disciplina global, integrada e tanto quanto possível
completa do ‘direito de acção popular’ consagrado no artigo 52º, n. 3, da Constituição, devendo dizer-se que, com a sua
emissão, se deu cumprimento à incumbência cometida ao legislador naquele preceito constitucional. [...]. E assim sendo,
poderia eventualmente ter-se por verificada uma situação de inutilidade superveniente com a conseqüente extinção da
lide”. Transcreve-se, então, o provimento que decidiu o processo: “Nestes termos, decide-se não ter por verificada a omissão das medidas legislativas necessárias à exeqüibilidade da norma do artigo 52º, n. 3, da Constituição.”
13
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
rada inexeqüível por si mesma.14 Com base nessa lei, podemos afirmar que a efetiva
tutela dos interesses supra-individuais dentro da ação popular se consagra sob quatro
finalidades: a) prevenção; b) cessação; c) perseguição; d) indenização das infrações
contra esses bens jurídicos.
4. O Objeto da Ação Popular Portuguesa
Conforme se observa no próprio dispositivo constitucional, a ação popular tem por
objeto promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das agressões relativas a interesses jurídicos supra-individuais.15 Nada obstante, os artigos 22º16 e 23º17
da Lei de Ação Popular − LAP impõem o dever de indenizar o(s) lesado(s) pelos
danos decorrentes de violação dolosa ou culposa aos interesses supracitados, sem
esclarecer, contudo, se na ação popular pode ser deduzido o respectivo pedido.
Outro aspecto curioso em relação à Lei de Ação Popular aparece na hipótese em que
não seja possível identificar os titulares do direito à indenização (art. 22º, 2), caso em
que o valor da indenização deverá ser arbitrado globalmente. Há aqui duas omissões
relevantes: a) o legislador não estabeleceu se essa indenização global só pode ser
requerida pelo autor ou se é permitido ao juiz fixá-la ex officio; e, ainda, b) não estabelece o destino da indenização fixada. Pois bem, para solucionar o caso da possibilidade de pedido indenizatório na própria ação popular, Silva (2002, p. 110) afirma:
Considera-se, pois, que o n. 1 do artigo 22º da Lei de Ação Popular consagra o princípio geral de que os danos causados pela
violação dos interesses individuais homogêneos, colectivos e
difusos, que recaiam sobre o ambiente, qualidade de vida, patrimônio cultural e consumo de bens e serviços, são indemnizáveis através da acção popular. E que, quando os titulares destes
interesses estejam identificados, deve a indemnização ser fixada
individualmente e reclamada no prazo de três anos, revertendo,
decorrido esse prazo, a favor do Ministério da Justiça, que a
efectuará ao pagamento de procuradoria e no apoio ao acesso
aos tribunais dos titulares de acção popular.
Vale notar, para compreender a questão, a posição adotada pelo Supremo Tribunal de
Essa finalidade é repetida no artigo 1º da Lei de Ação Popular.
“Artigo 22° (Responsabilidade civil subjectiva). 1. A responsabilidade por violação dolosa ou culposa dos interesses
previstos no artigo 1° constitui o agente causador no dever de indemnizar o lesado ou lesados pelos danos causados. 2.
A indemnização pela violação de interesses de titulares não individualmente identificados é fixada globalmente. 3. Os
titulares de interesses identificados têm direito à correspondente indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil.
4. O direito à indemnização prescreve no prazo de três anos a contar do trânsito em julgado da sentença que o tiver reconhecido. 5. Os montantes correspondentes a direitos prescritos serão entregues ao Ministério da Justiça, que os escriturará
em conta especial e os afectará ao pagamento da procuradoria, nos termos do artigo 21°, e ao apoio no acesso ao direito e
aos tribunais de titulares de direito de acção popular que justificadamente o requeiram.”
17
“Artigo 23° (Responsabilidade civil objectiva). Existe ainda a obrigação de indemnização por danos independentemente
de culpa sempre que de acções ou omissões do agente tenha resultado ofensa de direitos ou interesses protegidos nos
termos da presente lei e no âmbito ou na seqüência de actividade objectivamente perigosa.”
15
16
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Justiça (PORTUGAL, 1997):
I - O artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, abrange não só
os ‘interesses difusos’ (interesses de toda a comunidade) como
ainda os ‘interesses individuais homogéneos’ (os que se polarizam em aglomerados identificados de titulares paralelamente
justapostos).
II - O direito de reparação de danos dos assinantes do serviço
telefónico por incumprimento de contrato inclui-se na categoria
dos ‘interesses homogéneos individuais’.
III - A ACOP (Associação de Consumidores de Portugal) tem
legitimidade para propor acção popular que tenha por objecto
o pedido de indemnização dos assinantes de contrato de serviço telefónico público por violação contratual da prestadora do
serviço.
Quanto à questão do destino da indenização global, em função da não-identificação
dos lesados, entende-se, com base no artigo 562º do Código Civil português,18 que
deve ser destinada à reconstrução da situação em que se encontrava; caso a situação
não possa ser restaurada, a doutrina lusitana tem entendido razoável aplicar solução
análoga à da hipótese de prescrição do direito às indenizações individuais com previsão no artigo 22º, 5º, pelo qual o Tribunal deve verificar o melhor destino a ser dado
ao montante, podendo, inclusive, seguir o exemplo do fluid recovery das class actions
norte-americanas.19
Por fim, vale ressaltar que, mesmo com toda sua amplitude, a ação popular não é o
único meio de defender os interesses coletivos no ordenamento português – embora
a Lei n.º 83/95 possa ser considerada como paradigma regulamentador do processo e
procedimento aplicáveis às ações coletivas, como será visto adiante.
5. A Legitimidade para Propositura da Ação Popular
Antes de esquadrinhar o instituto na Lei n.º 83/95, há de se apontar a preocupação dos
legisladores lusitanos com a tutela dos interesses coletivos, já que fizeram questão de
introduzir em seu Código de Processo Civil um dispositivo que guardasse a devida
harmonia com os princípios orientadores da ação popular:
Artigo 26º-A
(Acções para a tutela de interesses difusos)
Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saú18
“Artigo 562º (Princípio geral). Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não
se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”
19
No direito americano, caso o valor da condenação pecuniária seja maior que o da indenização devida, ou caso não haja
condições para se identificarem os membros da classe beneficiada, ou ainda, quando não há habilitação suficiente por parte
desses membros, o valor da condenação se reverte para o fluid class recovery, que destina o dinheiro para uma finalidade
que venha atender aos interesses da classe beneficiada.
55
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
de pública, do ambiente, da qualidade de vida, do patrimônio
cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo de seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos
interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público,
nos termos previstos na lei.20
Já transcrevemos o n. 3 do artigo. 56º da Constituição lusa, que confere a todos os
cidadãos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o
direito de ação popular. Esse dispositivo, isoladamente considerado, deixava dúvidas
em relação à possibilidade de um cidadão, pessoalmente, ser autor de uma ação popular quando não fosse detentor de um interesse direto na causa. Com tese de que seria
possível a legitimação mais ampla, Souza (apud SILVA, 2002, p. 112) sustenta:
[...] a titularidade do interesse difuso é suficiente para atribuir a
esse autor a legitimidade processual, não sendo exigível qualquer interesse individual e pessoal decorrente de uma ofensa,
efectiva ou potencial, à sua integridade física ou ao seu patrimônio.
[...] não significa esta solução que o interesse difuso seja reconduzido a um interesse individual e pessoal e que a legitimidade
para a propositura de uma ação de defesa de um interesse difuso
seja equiparada à legitimidade do titular de um direito subjetivo. O que antes sucede é que, na falta de qualquer outro critério, pode-se utilizar analogicamente o interesse em demandar,
referido no artigo. 26º n. 1, CPC, para reconhecer legitimidade
à parte que pretende a tutela de um interesse difuso. Portanto, essa solução não se compromete com qualquer equiparação
entre a legitimidade difusa e a individual: basta verificar que,
ao contrário do caráter exclusivo e pessoal desta legitimidade
individual, aquela legitimidade difusa não é exclusiva do autor
da acção e não se refere a interesses pessoais dessa parte.”
Felizmente, essa situação de incerteza foi superada pela edição da Lei de Ação Popular, que, em seu artigo 2º, n. 1, aponta:
Artigo 2°
(Titularidade dos direitos de participação procedimental e do
direito de acção popular)
1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo
dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações
defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.
20
Esse dispositivo foi inserido no Código de Processo Civil português pelo Decreto-Lei n.º 329-A, de 12.02.1995, e teve
sua redação final dada pelo artigo 180, de 25.09.1996.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Observa-se que o direito de ação popular é elaborado de forma completamente diferente do tradicional direito de ação: este pressupõe a titularidade de um interesse
direto na situação jurídica para a qual se pede tutela jurisdicional, enquanto aquele a
dispensa.21
Sobre a temática, é interessante observar o percurso constitucional da matéria, especificamente em relação às reformas do artigo 20º da Constituição portuguesa, que
versa sobre o direito de ação judicial. O artigo em debate, inicialmente, garantia “[...]
o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos”, mas foi alterado com a edição
da Lei Complementar n.º 1/89, que modificou sua redação, passando a garantir “[...]
direitos e interesses legítimos” como passíveis de serem defendidos perante os tribunais. Entretanto, essa redação, como já foi visto, causou polêmica acerca das questões
sobre legitimação para defesa de direitos coletivos – uma vez que transmitia a idéia
de que, para estar em juízo, o autor deveria vincular-se diretamente à titularidade do
direito. Para solucionar o problema, o legislador lusitano resolveu, através da Lei
Constitucional n.º 1/97, substituir a expressão interesses legítimos por interesses legalmente protegidos.
Atualmente, o artigo 20º da Constituição lusa possui a seguinte redação:
Artigo 20º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva).
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não
podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta
jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por
advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de
justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja
objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo eqüitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei
assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados
pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e
em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Em relação à legitimidade das pessoas coletivas para o ajuizamento de ação popular, o
legislador português não se demonstrou tão progressista quanto foi para a legitimação
individual.
Nesse sentido, Rego (1999, p. 50-51): “Consagra-se, no âmbito do processo civil, a legitimidade fundada, não na invocação de um interesse direto e pessoal na demanda, mas no exercício do direito de acção popular, previsto no artigo 52º, n.
3, da Constituição e regulado na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.”
21
57
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Com efeito, a Lei de Ação Popular estabeleceu que as pessoas jurídicas, para possuírem legitimidade processual coletiva, devem apresentar os seguintes requisitos:22 a)
possuir personalidade jurídica; b) incluir expressamente em suas atribuições ou objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa;23 c) não exercer qualquer tipo de
atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
As autarquias locais são legitimadas ativamente para propor ação popular apenas para
tutelar interesses que guardem a devida pertinência à sua circunscrição territorial. Assim prescreve o artigo 2º, n. 1 da Lei de Ação Popular: “São igualmente titulares dos
direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de
que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.”
5.1. A Figura do Ministério Público
Na Europa, há uma forte tradição de se vincular o Ministério Público às funções penais, restringindo-se, quase sempre, sua atuação em outras searas jurídicas. Com síntese, Leite (2001, p. 122) traça quadro que demonstra o status do Ministério Público
no direito comparado, com destaque para a Europa:
[...] como o próprio fenômeno da globalização, anteriormente
mencionado, estende suas teias não apenas aos aspectos meramente econômicos e políticos, como também, aos problemas
sociais, culturais e institucionais de todo o planeta, parece-nos
importante ressaltar as quatro tendências que vêm influenciando as legislações respeitantes ao Ministério Público de alguns
países do mundo ocidental. A primeira tendência reúne os sistemas dos países do common law e se funda, basicamente, nos
ordenamentos inglês e norte-americano, sendo certo que em
ambos a atuação de órgãos análogos ao Ministério Público se
resume quase que exclusivamente à matéria criminal. E isso decorre do fato de que, dado o alto grau de conscientização política e cultural da população desses países, bem como o elevado
respeito aos Poderes Públicos aos direitos fundamentais, não
sobra espaço para um Ministério Público do tipo providencialista como o nosso.[...]
A segunda tendência é observada em alguns países da Europa Continental, especialmente nos ordenamentos jurídicos da
França e Bélgica, onde o parquet é organizado como magistratura; Alemanha, Espanha e Holanda, que reconhecem-no como
um corpo de funcionários integrantes do Poder Executivo, embora destinatários de garantias e prerrogativas semelhantes às
dos magistrados. [...]
A terceira tendência é verificada na Itália contemporânea, onde
22
23
Todas as exigências constantes no artigo 3º da Lei de Ação Popular.
Esse requisito também consta no artigo 2º, n. 1 do mesmo corpo normativo.
58
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
o Ministério Público ‘ostenta hoje uma estrutura singular, concebida não como um magistrado ou como serviço, mas como
função, o que lhe garante uma posição singular no universo dos
‘parquets democráticos’. No ordenamento jurídico italiano, a
rigor, não há lugar para uma nítida distinção entre a magistratura judicante e a magistratura de parquet, pois ambos integram
a mesma carreira institucional. De toda a sorte, o escopo da
instituição ministerial, na Itália, reside, tal como nos sistemas
anteriormente mencionados, no combate do crime, mediante o
exercício de ação penal, inexistindo, portanto, previsão normativa para a sua atuação em prol dos interesses metaindividuais.
[...]
A quarta e última tendência é encontrada no atual sistema português, onde, segundo, José Joaquim Gomes Canotilho, há pluralidade de atribuições do Ministério Público, como órgão do
poder judicial, tais como: a) representar o Estado; b) exercer a
ação penal; c) defender a legalidade democrática; d) defender
outros interesses definidos em lei. Nos últimos anos, assegura
Eduardo Maia Costa, foram atribuídas ao Ministério Público
português ‘importantes competências na defesa dos interesses
difusos e coletivos, concretamente no que se refere à salvaguarda do meio ambiente, dos consumidores e do patrimônio histórico e cultural’.24
Assim, do panorama desenhado, tem-se que a figura do Ministério Público em Portugal tem contornos diferentes dos demais países da Europa Continental. Nessas condições, o Ministério Público tem participação relevante na ação popular portuguesa,
ainda que de forma bem mais tênue que o Ministério Público brasileiro nas ações
coletivas.25 Com efeito, através do artigo 16º, a Lei de Ação Popular reservou a esse
órgão, como regra geral, a fiscalização da legalidade, podendo apenas intervir nas
ações, sem, contudo, poder ajuizá-las.26
Excepcionando essa regra, o órgão pode, conforme disposição do mesmo artigo 16º,
1, 2 e 3, respectivamente: a) representação do Estado, dos ausentes, dos menores e dos
demais incapazes, quando estiverem figurando como parte na causa; b) representar
outras pessoas coletivas públicas quando tal for autorizado por lei; e c) substituir o
24
No texto transcrito, o autor citou os trabalhos de João Francisco Sauuew (1999), Canotilho (1993, p. 767) e Costa (1999,
p. 52).
25
No sentido: “O Estatuto do MP, aprovado pela Lei n.º 60/98, veio conferir-lhe intervenção principal (e subsidiariamente
acessória) com vista à defesa, nos casos previstos na lei, dos interesses colectivos e difusos (arts. 3º, n. 1 ‘e’, 5.º, ns. 1, ‘e’ e
5, ‘a’)” (REGO, 1999, p. 51). Eduardo Maia Costa não enfrenta especificamente a questão da ação coletiva e o Ministério
Público luso, tendo em vista que o foco de seu trabalho está mais a história e alterações administrativas da instituição
(Ministério Público em Portugal, in José Marcelo Vigliar; Ronaldo Porto Macedo Junior (Coords.), Ministério Público II
e democracia, p. 44-54).
26
Mendes (2002, p. 145): “A grandeza demonstrada na concessão de legitimidade aos indivíduos, associações e entes
públicos não se revela, todavia, em relação ao papel deferido ao Ministério Público. O problema não diz respeito à atuação
do ‘parquet’ português. Na Europa, em geral, a vinculação dos magistrados de pé ao Estado e as funções eminentemente
penais ainda é predominante.”
59
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
autor em caso de desistência da lide, de transação ou de comportamentos lesivos dos
interesses em causa. Assim, ainda que não haja legitimidade para propor demanda,27
conforme conjugação dos artigos 2º e 16º da Lei de Ação Popular, ao contrário do que
ocorre nos outros países da Europa – conforme destacado, o Ministério Público em
Portugal tem atuação em prol da defesa dos interesses supra-individuais
Importante salientar que a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96), editada em
data posterior à Lei n.º 83/95, prevê, em seu artigo 13º, a legitimação do Ministério
Público para propor as ações vinculadas àquele diploma legal. Dessa forma, nota-se
que há uma tendência de – cada vez mais – legitimar o Ministério Público em Portugal
para a defesa dos interesses supra-individuais, sendo possível, inclusive, o debate a
respeito da interpretação extensiva do artigo 13º, consoante abordaremos adiante no
item 8 e seguintes.
Há uma tendência muito grande de alteração das funções do Ministério Público em
Portugal, aumentando a suas funções, com legitimação para atuar ativamente. Nesse
sentido, em trabalho sobre os novos desafios da Justiça lusa, elaborado no âmbito do
Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ), através de programa de investigação efetuado com o Ministério da Justiça de Portugal, constatou-se:
As especificidades mais importantes do modelo português do
Ministério Público são sua autonomia face ao Poder Executivo
e o facto de seus agentes (também eles magistrados) desfrutarem dos direitos e deveres equivalentes aos juízes (princípio do
paralelismo) – inclusive a existência de um Conselho Superior
específico do Ministério Público, que constitui uma outra inovação do nosso modelo.
Outra das particularidades do nosso Ministério Público tem a
ver com as competências que lhe foram atribuídas, e que rompem com o anterior modelo, como sejam a direcção da investigação criminal e o exercício da acção penal, a promoção e
a coordenação de acções de prevenção criminal, controlo da
constitucionalidade das leis e regulamentos, a fiscalização da
polícia judiciária, para além da defesa dos interesses do Estado.
Se algumas destas tarefas já estavam consagradas em leis anteriores, o facto de se poderem exercer com autonomia conferelhes uma importância bastante acrescida.
A questão que se colocava, e que em parte ainda se mantém, é
se o Ministério Público seria capaz de exercer tão vasto rol de
competências, adoptando uma postura activa, em vez da tradicional postura passiva. Por que esta lei [Lei Orgânica do Ministério Público – Lei n.º 39 de 5 de julho de 1978] estabelece que
o Ministério Público passe a ter capacidade de iniciativa, o que
27
Na ação popular brasileira (Lei n.º 4.717/65), o Ministério Público também não possui legitimidade ativa para a propositura da ação (art. 1º), podendo contudo assumir o pólo ativo (art. 9º), caso o autor desista da ação ou der motivo a
absolvição da instância.
60
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
é diferente de exercê-la. (PEDROSO, 2003, p. 400).
Portanto, não será surpresa se for conferida a legitimidade para o Ministério Público
intentar a ação popular, abrindo-se o rol previsto na Lei n.º 83/95.
5.2. O Regime Especial de Representação
O artigo 14º da Lei de Ação Popular cria um regime especial de representação para a
ação popular:
Artigo 14º
(Regime especial de representação processual)
Nos processos de acção popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa,
todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa
que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no
artigo seguinte, com as conseqüências constantes da presente
lei.
Pode-se observar que a legitimidade na ação popular é aferida através de elementos
exclusivamente objetivos: basta ser supra-individual o interesse que se pretenda tutelar. A identificação subjetiva do autor com o direito material questionado é elemento
acidental e não fundamental, quando tratamos da ação popular portuguesa.28
Apesar de o artigo 14º estabelecer que o autor representa os interessados com dispensa
de mandato ou autorização, a rigor, observa-se que tecnicamente ocorre o contrário,
pois o artigo 15º, como gizado anteriormente, consagra que eventuais interessados na
causa podem intervir na ação popular para declarar se aceitam ou não a representação
do autor, sob pena de sua passividade valer como aceitação.
Restam ainda dois pontos problemáticos dentro desse sistema: (a) os interessados
podem não ter tido o conhecimento sobre a pendência da ação; (b) se houvesse efetivamente representação, como se explicaria a existência do regime da coisa julgada
segundo o evento da lide, uma vez que se ela existisse de fato, a decisão poderia produzir sua eficácia subjetiva total independentemente de ser favorável ou desfavorável? Por isso, Freitas (2003, p. 393), afirmando que as medidas que buscam contornar
o déficit de contraditório na ação popular portuguesa não são suficientes, defende:
No siendo vinculantes las definiciones legales, se debe apartar
la noción de representación baseada em la conducta omissiva
de los terceros interessados.
- Em princípio, la ley quiso sujetar a los terceros que, citados
28
Vale ressaltar que sempre haverá essa identificação subjetiva quando se estiver discutindo em juízo a agressão a um
direito difuso.
61
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
para ocupar la posición de autores, no lo hayan hecho ni se
hayan excluido de la causa, a las consecuencias, favorables o
desfavorables de la decisión a ser editada.
- Sin embargo, considerando la modalidad de citación necesariamente escogida (por medio público de comunicación) no
garantiza que la propuesta de acción haya llegado al conocimiento de todos los interesados, la constitución de caso juzgado desfavorable contra ellos, privándo-los del ejercicio del
derecho de acción, viola em términos inadmisibles el derecho
de acceso a la justicia, por lo que sólo será constitucional permitirles el aprovechamiento del caso juzgado favorable y que
nunca los afecte el caso juzgado desfavorable.
5.3. O Controle da Legitimidade Popular
Os critérios elencados anteriormente não são suficientes para garantir que, numa ação
popular, os autores proponentes da demanda sejam considerados legítimos. Os doutrinadores portugueses ressaltam que a legitimidade popular está sujeita a um duplo controle, o primeiro feito através de um caráter formal (análise dos requisitos previstos no
art. 2º da LAP), e o segundo feito substancialmente, através da observância de como o
autor exerce a representação no processo. No sentido, segundo Sousa (2003, p. 232):
A representação assumida pelo autor popular deve ser analisada
considerando dois fatores: esta representação permite que todos
os titulares do interesse difuso beneficiem do resultado da ação
popular, mas, ao mesmo tempo, a ausência daqueles titulares
desta acção pode favorecer que o autor assuma condutas prejudiciais aos interesses daqueles titulares e a falta de controlo
do demandante sobre o seu advogado também pode conduzir a
que este mandatário não defenda adequadamente os interesses
daqueles titulares. Na primeira situação, há um conflito (endógeno) entre os titulares do interesse difuso; no segundo, há um
conflito (exógeno) entre o mandatário do autor popular e os titulares do interesse difuso.
A segunda fase de controle – a substancial – pode ser exercida de duas formas:
a) Pelo Ministério Público, que, percebendo estar o autor praticando atos lesivos em
relação aos interesses em causa, pode substituí-lo, assumindo assim o pólo ativo da
relação processual, conforme autoriza o artigo 16º, n. 3 da Lei da Ação Popular; ou
b) pelo juiz que, fundado em motivações de cada caso concreto, pode restringir, apesar
62
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
da procedência do pedido, os efeitos da coisa julgada às partes da ação. Em outros
termos, o magistrado pode, naquele processo, não reconhecer a tutela de qualquer
interesse difuso ou coletivo.
6. A Coisa Julgada na Ação Popular
As sentenças proferidas em ações populares transitadas em julgado produzem eficácia
erga omnes e sobre elas operam-se todos os efeitos da coisa julgada29, situação excepcionada em duas hipóteses:
a) Quando o pedido for julgado improcedente por falta de provas, não se produzem
efeitos em face daqueles interessados que tiverem exercido seu direito de exclusão; e
b) quando o julgador deixar de atribuir tal efeito fundado em motivações próprias do
caso concreto.
6.1. Coisa Julgada e Direito de Auto-Exclusão
Os interessados na ação popular são chamados a intervir pela citação promovida por
anúncios públicos emitidos por edital ou quaisquer meios de comunicação, conforme
prevêm os ns. 1 e 2 do artigo 15º da Lei de Ação Popular.30 Esses interessados são autorizados a intervir na ação através da formação de um litisconsórcio ativo sucessivo
ou podem escolher sua auto-exclusão do procedimento, adotando tal procedimento
até o término da produção de provas ou durante fase equivalente, mediante declaração nos autos.31 Dessa forma, os interessados que não se auto-excluírem passam a
sofrer todos os efeitos decorrentes daquele processo. Com esse regime de citações, o
legislador permite salvaguardar o contraditório e destranca as vias para a produção de
todos efeitos erga omnes da sentença, ao final da causa. Nesse sentido, Silva (2002,
p. 115):
29
“Artigo 19° (Efeitos do caso julgado). 1. As sentenças transitadas em julgado proferidas em acções ou recursos administrativos ou em acções cíveis, salvo quando julgadas improcedentes por insuficiência de provas, ou quando o julgador deva
decidir por forma diversa fundado em motivações próprias do caso concreto, têm eficácia geral, não abrangendo, contudo,
os titulares dos direitos ou interesses que tiverem exercido o direito de se auto-excluírem da representação. 2. As decisões
transitadas em julgado são publicadas a expensas da parte vencida e sob pena de desobediência, com menção do trânsito
em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados no seu conhecimento, à escolha
do juiz da causa, que poderá determinar que a publicação se faça por extracto dos seus aspectos essenciais, quando a sua
extensão desaconselhar a publicação por inteiro.”
30
“Artigo 15° (Direito de exclusão por parte de titulares dos interesses em causa). 1. Recebida petição de acção popular,
serão citados os titulares dos interesses em causa na acção de que se trate, e não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo juiz, passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar, e
para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pelo autor ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer
como aceitação, sem prejuízo do disposto no n. 4. 2. A citação será feita por anúncio ou anúncios tornados públicos através
de qualquer meio de comunicação social ou editalmente, consoante estejam em causa interesses gerais ou geograficamente
localizados, sem obrigatoriedade de identificação pessoal dos destinatários, que poderão ser referenciados enquanto titulares dos mencionados interesses, e por referência à acção de que se trate, à identificação de pelo menos o primeiro autor,
quando seja um entre vários, do réu ou réus e por menção bastante do pedido e da causa de pedir.”
31
Assim prevê o n. 4 do artigo 15º da Lei de Ação Popular: “A representação referida no n. 1 é ainda susceptível de recusa
pelo representado até ao termo da produção de prova ou fase equivalente, por declaração expressa nos autos.”
63
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Assim, as sentenças têm, em princípio, efeitos que se estendem
a todas as pessoas titulares do interesse que não se auto-excluiram da lide, ou seja, a sentença não produz apenas efeitos
relativamente às partes, pois, como o interesse supra-individual diz respeito a um número determinado ou indeterminado de
indivíduos, se a decisão final da causa não fugisse aos limites
clássicos do caso julgado, de nenhum interesse se revestiria,
porquanto, a conflitualidade que a acção pressupõe continuaria a existir relativamente aos restantes titulares do interesse
supra-individual podendo estes intentar outras acções, com o
mesmo pedido e causa de pedir, com manifesto prejuízo para
a economia processual e, mais grave, a pluralidade de acções
poderiam originar casos julgados contraditórios, com prejuízo
para a certeza e segurança jurídicas.
Entretanto, esse sistema só é adequado para a tutela de interesses individuais homogêneos, pois, em relação aos direitos coletivos e difusos, que recaem sobre bens
indivisíveis, a decisão proferida afeta invariavelmente a esfera jurídica de todos os
interessados; em outras palavras, mesmo que o titular de um interesse dessa estirpe se
exclua, a decisão que resultar do processo produzirá efeitos em sua situação jurídica.
Aprofundando-se no tema, Sousa (2003, p. 214) chega à seguinte conclusão:
A verificação de que, em certas acções populares, não é admissível o exercício da faculdade do opting-out concedida pelo
artigo 15º, n. 1, LPPAP permite extrair uma importante conclusão. Tal como, no plano da legitimidade plural, se estabelece
uma distinção entre o litisconsórcio unitário e o litisconsórcio
simples [...] também no âmbito da representação inerente à legitimidade popular é possível distinguir entre uma representação
unitária e uma representação simples [...]. A importância desta
distinção radica na circunstância de que a representação unitária, porque é incompatível com a auto-exclusão de qualquer
titular do interesse difuso, é uma representação necessária: os
titulares do interesse difuso têm a faculdade de intervir na acção
popular (cfr. art. 15º, n. 1, LPPAP), mas não a de se auto-excluírem desta ação, pelo que, se não se decidirem pela intervenção
ficam necessariamente abrangidos pela representação assumida
pelo autor popular [...].
7. Procedimento Cautelar na Ação Popular
A Lei de Ação Popular não estabelece nenhum procedimento cautelar especial. A jurisprudência tem entendido que, em decorrência do princípio da adequação entre o
direito material e a ação destinada a efetivá-lo – previsto no artigo 2º, n. 2, do Código
32
Código de Processo Civil português: “Artigo 2º - [...] 2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário,
corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.”
64
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
de Processo Civil português32 –, às ações populares devem ser aplicados os procedimentos acautelatórios comuns. Nesse sentido, transcrevemos o seguinte sumário de
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (PORTUGAL, 1999):
A Lei 83/95, de 31 de agosto, que regula o direito de acção popular destinada a prevenir ou a fazer cessar as infracções contra
a saúde pública e contra a prevenção do ambiente e qualidade de vida conferido pelo n. 3 do artigo 52º da Constituição a
todos, pessoalmente ou através de associações, não contempla
quaisquer procedimentos cautelares especiais. Daí que hajam
de ser utilizados os procedimentos comuns, em conseqüência
do princípio da adequação entre o direito e a acção destinada
a fazê-lo reconhecer – artigo 2º, n. 2, do Código de Processo
Civil.
Ainda no Supremo Tribunal de Justiça (PORTUGAL, 1998) colhe-se a seguinte decisão pela admissibilidade de procedimentos cautelares, especificando seus requisitos:
II - Para o decretamento de uma providência cautelar não se
impõe uma indagação exaustiva do direito do requerente, basta
o juízo de probabilidade ou verosimilhança.
[...]
IV - A acção popular civil inclui a forma de procedimentos
cautelares particularmente vocacionados para a concretização
processual do princípio da prevenção.
Em paralelo, o artigo 18º da Lei de Ação Popular estabelece o seguinte:
Mesmo que determinado recurso não tenha efeito suspensivo,
nos termos gerais, pode o julgador, em acção popular, conferirlhe esse efeito, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação.
É pertinente neste ponto citar postura do Tribunal Constitucional português, que decidiu, no Processo n.º 1132/98, pela inadequação de meio processual acessório para
suspensão de eficácia de ato recorrido previsto no artigo 76º da Lei de Processos dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, tendo em vista o artigo 18º da Lei de Ação Popular, que prescreve a realização de tal pedido no próprio recurso. Pela importância,
confiram-se as partes mais importantes do citado acórdão:
II - FUNDAMENTAÇÃO:
4. Vem, assim, questionada nos autos, a possibilidade de, em
sede de acção popular para defesa dos interesses referidos no
artigo 52º, n. 3, da Constituição, se utilizar autonomamente o
meio processual acessório de suspensão da eficácia do acto re-
65
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
corrido, apesar do estabelecido no artigo 18º da Lei n. 83/95,
de 31 de agosto.
Esta norma tem o seguinte teor:
‘Artigo 18º
(Regime especial de eficácia dos recursos)
Mesmo que determinado recurso não tenha efeito suspensivo,
nos termos gerais, pode o julgador, em acção popular, conferirlhe esse efeito, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação.’
Segundo o recorrente, esta norma não pode ter como efeito a
eliminação, no caso, da opção pelo pedido de suspensão de eficácia previsto no artigo 76º da Lei de Processo dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (LPTA): a norma do artigo 18º só
pode ser concebida como um ‘mais’ e não como norma restritiva dos meios processuais já existentes. Qualquer outra interpretação como a que foi feita no acórdão recorrido, torna a norma
inconstitucional por violação dos artigos 2º, 20º, n. 5, 52º, n.3,
alínea a) e 268º, n. 3, todos da Constituição.
Vejamos se será assim.
5. A Constituição, na sua versão original, veio consagrar no artigo 49º e no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, a figura
da acção popular, remetendo para a lei ordinária a regulação do
seu exercício.
Com a revisão de 1997, atribuiu-se a todos os cidadãos o direito
de acção popular, por si ou através de associação de defesa dos
interesses em causa; os interesses indicados no preceito tanto
podem ser a saúde pública como os direitos do consumidor, a
qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património
cultural (n. 3, alínea a), do artigo 52º.
Entretanto, em 31 de agosto de 1995, foi publicada a Lei n.
83/95, pela qual se regulou o exercício do ‘direito de participação procedimental e de acção popular’, na qual se insere a
norma questionada. A acção popular, na vertente que agora interessa, traduz uma forma de participação do cidadão na vida
política do Estado, consubstanciando um meio de fiscalização
da legalidade de actuação dos órgãos da Administração em sectores tão sensíveis como os atrás referidos. A lei, para além de
regular a questão da titularidade do direito de participação e do
direito de acção popular, estabelece os requisitos de legitimidade das associações e fundações, o exercício da acção popular e
a responsabilidade civil e penal.
O legislador, no artigo 18º da Lei n. 83/95 estabeleceu um regime especial de eficácia dos recursos permitindo que, em acção
66
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
popular, mesmo aos recursos que, segundo o regime geral, não
tenham efeito suspensivo, o juiz possa conferir-lhes tal efeito,
desde que seja para evitar dano irreparável ou de difícil reparação. Trata-se, portanto, de um regime muito favorável para
o recorrente, dependendo tal decisão unicamente da alegação
(e, demonstração prima facie) do dano irreparável ou de difícil
reparação dos actos ou deliberação impugnados. Não pode deixar de acentuar-se que esta acção popular ‘especial’ regulada
pela Lei n. 83/95 visa a tutela dos chamados interesses difusos,
que se apresentam como fundamento suficiente de ‘um direito
de defesa’ com o correspondente direito de acção judicial. O
direito de acção popular, na perspectiva de tutela de interesses
difusos, admite, na sua consagração constitucional, a utilização
dos meios processuais necessários à plena e efectiva tutela das
posições jurídicas particulares (art. 20º, n. 5, da Constituição).
Em matéria de direito administrativo, a Constituição reconhece
e garante aos administrados ‘tutela jurisdicional efectiva dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos’, incluindo
nomeadamente a ‘adopção de medidas cautelares adequadas’
(art. 268º, n. 4, da Constituição).
No caso dos autos, do que se trata é de saber se a norma do
artigo 18º da Lei n. 83/95, se interpretada em termos de excluir
o recurso autónomo à suspensão de eficácia prevista nos artigos
76º e seguintes da LPTA é ou não inconstitucional, como alega
o recorrente.
6. A resposta não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, a Constituição assegura aos cidadãos para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais procedimentos
judiciais céleres, por forma a obter tutela efectiva e em tempo
útil contra ameaças ou violações desses direitos (n. 5 do art.
20º); assegura-lhes também a tutela jurisdicional efectiva dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos por formas diversas (reconhecimento judicial, impugnação contenciosa dos
actos administrativos que os lesem, etc.), entre elas a adopção
de medidas cautelares adequadas (n. 4 do art. 268º).
Porém, existindo diversos meios processuais para acesso ao
direito e ao tribunal, o princípio da tipicidade das formas, que
também vigora no direito processual administrativo, impõe
que os interessados utilizem o meio adequado para obterem a
protecção judicial que pretendem: caso incorram em impropriedade do meio processual deverá concluir-se pela rejeição do
pedido formulado.
Ora, no caso em apreço, o acórdão recorrido concluiu que se
estava perante um caso de impropriedade do meio processual. Entendeu-se que a opção pelo exercício da acção popular
nos termos previstos pela Lei n. 83/95 tem como conseqüência
67
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
que naquela lei se deverão procurar os termos processuais para
a tutela dos interesses nela referidos, designadamente nela se
devendo procurar ‘se na mesma estão previstas ou não ‘medidas cautelares adequadas’ a evitar as referidas infracções [...]’.
Nessa perspectiva, considerou-se que essas medidas cautelares
seriam precisamente as facultadas pelo artigo 18º agora em
apreciação. Em apoio da posição adoptada a decisão indicou o
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de julho de
1996, Recurso n. 40 030-A, ‘que se pronunciou no sentido da
inadmissibilidade do pedido de suspensão de eficácia, quando a
declaração de ilegalidade é pedida através de acção popular’.
Apurar se é esta a interpretação que melhor corresponde à razão
de ser do regime aplicável não cabe nos poderes de cognição do
Tribunal Constitucional, que tem de debruçar-se tão-só sobre a
respectiva conformidade à Constituição.
Sendo assim, releva para a apreciação da questão de constitucionalidade suscitada o sentido da decisão, claramente elucidado pela seguinte passagem: ‘Existindo um meio processual
adequado, para obter a providência cautelar, pretendida pelo
requerente, neste processo, que é o próprio recurso contencioso
previsto na Lei n. 83/95 e no qual é possível conferir efeito suspensivo às deliberações em causa, não é legítimo ao requerente
escolher outro meio processual, que não o mais adequado, mais
rápido e expedito, optando, antes, pelo pedido de suspensão de
eficácia’. E mais à frente: ‘[...] não é inconstitucional [...] que
a Lei n. 83/95, no seu artigo 18º, estabeleça que o meio mais
adequado para obter efeito suspensivo seja alcançado através
do pedido de suspensão formulado no próprio recurso contencioso, em que se pede a anulação do acto recorrido’, com o que,
efectivamente, se excluiu a admissibilidade do pedido de suspensão de eficácia deduzido por apenso ao recurso contencioso
simultaneamente instaurado.
Segundo Vieira de Andrade (A justiça administrativa: lições,
Coimbra, 1998, p. 108), ‘O tribunal rejeita a acção ou providência, porque e na medida em que a tutela efectiva pode ser conseguida através de outro meio, que tem preferência legal sobre
o meio escolhido’. A adequação do meio processual escolhido
constitui, assim, um pressuposto processual ‘decorrente de a lei
só admitir o uso de um certo meio subsidiariamente, isto é, se
não for possível utilizar no caso outros ou um outro’ (Vieira
de Andrade, ibidem, p. 173). É um pressuposto processual negativo que, segundo o mesmo autor também pode designar-se
como ‘previsão legal de meio preferencial’ ou ‘impropriedade
relativa do meio utilizado’.
Uma norma como o artigo 18º, da Lei n.º 83/95, que estabelece
um regime especial de eficácia dos recursos, acaba por criar
68
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
um meio processual especial, dentro do processo administrativo existente; ora, como se escreveu no Acórdão n.º 105/99
(ainda inédito), relativamente a uma outra norma do processo
administrativo, uma tal norma ‘[...] só seria inconstitucional, se,
com o estabelecimento desse pressuposto, tornasse impossível
ou particularmente onerosa a defesa contenciosa dos direitos ou
interesses legalmente protegidos dos particulares’. Em tal caso,
violar-se-ia o direito de acesso à via judiciária, no caso, à justiça
administrativa.
A norma em questão, ao consagrar um regime especial de eficácia dos recursos não impede nem torna particularmente onerosa
a defesa dos direitos e interesses em causa nos autos: muito ao
contrário visa facilitar e simplificar tal defesa, pelo que não é
inconstitucional. De facto, não viola o princípio do Estado de
direito, antes visa realizá-lo; não viola o direito de acesso, antes o realiza mais prontamente, na medida em que o efeito da
suspensão de eficácia pode ser conseguido, no caso de acção
popular, mesmo em recursos que, no regime geral não podiam
ter tal efeito, realizando assim mais proficientemente a tutela
jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados.
Inexistindo qualquer inconstitucionalidade na interpretação do
artigo 18º feita na decisão recorrida, tem de negar-se provimento ao presente recurso.
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em conseqüência, confirmar a decisão recorrida na parte.
Assim, apesar do entendimento de que é possível a invocação do artigo 2º, n. 2 do
Código de Processo Civil português na tutela coletiva, em especial na ação popular,
tem-se como inviável pedido “[...] deduzido por apenso ao recurso” para o fim de
conferir efeito suspensivo ao recurso contra sentença em ação popular, procedimento
esse que só será admissível se lançado no próprio recurso, através de interpretação
bem rígida do artigo 18º da Lei de Ação Popular.
8. Das Ações Previstas na Lei n.º 24/96
A tutela coletiva em Portugal não se limita à ação popular, sendo relevante a breve
análise da Lei n.º 24/96, que está vinculada às relações consumeristas. Com efeito, a
legislação em tela prevê em favor do consumidor a possibilidade de ajuizamento de
ação inibitória (arts. 10º e 11º) e de ação para reparação dos danos (art. 12º), fixando a
legitimidade para essas ações no artigo 13º. Para facilitar a análise, examinaremos as
33
Especificamente sobre os contratos tipo, em Portugal, o Decreto-Lei n.º 466/85 – alterado pelo Decreto-Lei n.º 220/95
– já havia consagrado a ação inibitória para proibir a utilização de cláusulas contratuais gerais abusivas.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
questões de modo separado.
8.1 A Ação Inibitória e a Tutela de Interesses dos Consumidores
A ação inibitória consumerista está consagrada no direito português no artigo 10º da
Lei n.º 24/9633:
Artigo 10º
(Direito à prevenção e acção inibitória)
1. É assegurado o direito de acção inibitória destinada a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos do
consumidor consignados na presente lei, que, nomeadamente:
a) Atentem contra a sua saúde e segurança física;
b) se traduzam no uso de cláusulas gerais proibidas;
c) consistam em práticas comerciais expressamente proibidas
por lei.
2. A sentença proferida em acção inibitória pode ser acompanhada de sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo
829º-A do Código Civil, sem prejuízo da indemnização a que
houver lugar.
Do dispositivo citado, vê-se que a ação inibitória tem por objeto a condenação na
realização de uma prestação positiva ou negativa – “[...] para prevenir, corrigir ou
fazer cessar praticas lesivas ao direito do consumidor” – e na indenização dos danos
individualmente sofridos e resultantes da atitude do demandado. A Lei de Defesa do
Consumidor veio concretizar uma ampliação do modelo de ação inibitória criado pela
aplicação do diploma relativo às cláusulas contratuais gerais e sua generalização às
ofensas aos direitos dos consumidores (ALMEIDA, 2001, p. 80).
O sistema previsto no nosso Código de Defesa do Consumidor, sem dúvida, é bem
mais completo. Isso porque o artigo 83 prevê expressamente a possibilidade de manejo de qualquer ação com utilidade e eficácia para a tutela coletiva. Contudo, muito
importante destacar que não está descartada a ação de obrigação de fazer na lei consumerista portuguesa, pois o artigo 12º faz essa previsão, consoante veremos a seguir.
8.2 Reparação de Danos
Dispõe o artigo 12º da Lei n.º 24/96:
Artigo 12º
(Direito à reparação de danos)
1. O consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito,
salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido
antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua
substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato.
70
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. O consumidor deve denunciar o defeito no prazo de 30 dias,
caso não se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de
bem imóvel, após seu conhecimento e dentro dos prazos de garantia previstos nos ns. 2 e 3 do artigo 4º da presente lei.
3. Os direitos conferidos ao consumidor nos termos do n. 1 caducam findo qualquer dos prazos referidos no número anterior
sem que o consumidor tenha feito a denúncia, ou decorridos
sobre esta seis meses, não se contando para efeito o tempo despendido com as operações de reparação.
4. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o consumidor
tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestação de
serviços defeituosos.
5. O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos
danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei. (grifo nosso).
A leitura da parte destacada demonstra que, em favor do consumidor, poderá ser ajuizada não só ação de ressarcimento, mas de tutela mais ampla que permita conceder
ao prejudicado a obrigação in natura. Em verdade, o artigo 12º tem um escopo maior
do que aparenta, já que a conjugação dos itens 1 e 4 informa que o consumidor tem a
possibilidade de rol maior de ações que, em hipótese alguma, estão limitadas às ações
condenatórias, como poderia se imaginar a partir de um perfunctório exame da cabeça
do dispositivo.
Portanto, mesmo que se diga que os artigos 10º e 12º da legislação portuguesa não
detêm a potência do artigo 83 do nosso Código de Defesa do Consumidor, a nosso
sentir, as ações mais comuns para a tutela do consumidor estão abarcadas pelo disposto nos artigos lusos, podendo-se vislumbrar facilmente a possibilidade de ajuizamento
de: a) ação condenatória para ressarcimento de eventual dano; b) ação inibitória; c)
ação de obrigação de fazer; d) ação de abatimento do preço; e e) ação de rescisão
(desconstituição) da relação contratual.
8.3. A Legitimidade para a Propositura das Ações
A legitimidade para ajuizamento das ações sob a égide da Lei n.º 24/96 é estruturada
de maneira diferente da ação popular e, no sentido, o artigo 13º da Lei de Defesa do
Consumidor cria o seguinte sistema.
Artigo 13º
(Legitimidade activa).
Têm legitimidade para intentar as acções previstas nos artigos
anteriores:
a) consumidores directamente lesados;
b) consumidores e as associações de consumidores ainda que
71
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de
agosto;
c) o Ministério Público e o Instituto do Consumidor, quando
estejam em causa interesses individuais homogêneos, colectivos ou difusos.
De plano, tem-se que o dispositivo prevê que, através da Lei n.º 24/96, é possível tanto
a tutela individual quanto a coletiva, em qualquer das ações previstas anteriormente
(arts. 10º e 12º). A tutela individual está disposta na letra “a”, e a tutela coletiva, via
ação popular, fica assegurada pela letra “b”, legitimando para seus fins qualquer consumidor, ainda que não diretamente lesado pelo ato ilícito, no gozo dos seus direitos
civis e políticos – já que há remição à Lei de Ação Popular na alínea “b” do artigo 13º
desse diploma.
Também são legitimadas para ajuizar ação coletiva associações de consumidores que
tiverem personalidade jurídica e tenham incluído em seus fins estatutários a defesa
dos direitos em questão e não exerçam atividade profissional em concorrência com
empresas ou profissionais liberais.
8.3.1. Do Ministério Público e do Instituto do Consumidor
A alínea “c” do artigo 13º da Lei comentada também atribui legitimidade ao Ministério Público e ao Instituto do Consumidor para tutelar direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos através da ação inibitória, quebrando a tendência européia
que restringe a atuação acusatória do Ministério Público em casos que não versem
sobre matéria penal.
Nota-se, pois, no particular, uma diferença entre o disposto no artigo 16º da Lei de
Ação Popular, conforme descrito neste trabalho no item 5.1. No ambiente da Lei de
Defesa do Consumidor lusa, nos termos do seu artigo 13º, confere-se legitimação para
o Ministério Público em grande avanço, que poderá ajuizar ações para a defesa dos
interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos. Na ação popular (art. 16º), o
Ministério Público não tem a possibilidade de ajuizar a ação coletiva, e sua atuação no
pólo ativo está limitada à situação de exceção. Sobre a questão, Almeida (2001, p. 16)
– com olhos na legitimação deflagrada pelo artigo 13º da Lei n.º 24/96 – comenta:
A atribuição de legitimidade activa para a representação destes interesses pelo Ministério Público e a um instituto público
– o Instituto do Consumidor – constitui um modelo exclusivo do legislador português. As experiências de outros Estados
repartem-se por: soluções que assentam na organização dos
consumidores (em grupos de interesse específicos, em associações estabilizadas ou em agrupamentos com vista à acção
judicial) – o sistema anglo-saxônico e francês; em ‘provedores
dos consumidores’ – o sistema escandinavo; na intervenção do
72
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Ministério Público – o sistema brasileiro. O sistema agora criado no nosso ordenamento jurídico faz coexistir a legitimidade
individual e associativa com a institucional – de um órgão de
justiça (o Ministério Público) e de um instituto público (o Instituto do Consumidor). Esta preocupação proteccionista conduz
à geração de espaços potencialmente conflituais – a possibilidade de defesa de interesses dos consumidores pelo Instituto do
Consumidor contra a Administração Pública; a intervenção do
Ministério Público em representação de interesses (no caso dos
interesses individuais homogéneos); a sobreposição da acção
de instituições de natureza pública. Concluir-se-á que o modelo
erigido pela nova Lei de Defesa do Consumidor terá perdido
em coerência, na exacta medida em que ganhou na demonstração de uma vontade mais acentuada de proteger os interesses
dos consumidores.
A anotação doutrinária não nos parece totalmente correta, diante do disposto no artigo
82 do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, já que, na nossa nação, a legitimação das ações coletivas não é exclusiva do Ministério Público. A previsão dos incisos
III e IV do artigo 82 demonstra que houve deslize na fala da professora portuguesa,
já que se admitem não só órgãos oficiais como legítimos à defesa dos interesses dos
consumidores, como também as associações com essa finalidade institucional.
Em verdade, o dispositivo de nosso ordenamento é muito mais abrangente que o artigo 13º da lei consumerista lusa, não só no campo da legitimação, mas também pela
formação de microssistema, pela interligação do Código de Defesa do Consumidor
com a Lei de Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/74/85), conforme disposto nos artigos
90 e 117 da nossa legislação consumerista34. Para tanto, salutar colher a doutrina de
Pizzol (1998, p. 145) examinando a interação do nosso Código de Defesa do Consumidor com os demais diplomas vinculados à tutela coletiva:
[...] antes do advento do Código de Defesa do Consumidor, já
havia leis que disciplinavam, de forma esparsa, a tutela dessa
categoria de direito e interesses. O legislador, ao estabelecer
normas materiais e processuais relativas aos direitos dos consumidores, sentiu a necessidade de criar mecanismo de adapta34
O artigo 117 do Código de Defesa do Consumidor inseriu o artigo 21 na Lei n.º 7.347/85: “Aplicam-se à defesa dos
direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu
o Código de Defesa do Consumidor”, ao passo que o artigo 90 do mesmo diploma deixa evidente a aplicação do Código
de Processo Civil e da ação civil pública no Código de Defesa do Consumidor: “Art. 90. Aplicam-se às ações previstas
neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n.º 7.347, de 24 de junho de 1985, inclusive no que respeita
ao inquérito civil, naquilo que não contraria suas disposições. Assim, cremos ser correta a afirmação de Eduardo Alvim
(Texto inédito): “Embora a ação civil pública tenha sido concebida originariamente para a tutela de interesses difusos ou
coletivos, em função da simbiose existente entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública (v. art.
21 da Lei n.º 7.347/85, acrescentado pelo art. 117 do CDC; e, em face do artigo 90, do CDC, em relação à aplicabilidade
da LACP ao CDC), presta-se, também, à tutela de interesses individuais homogêneos”.
35
A autora cita, no trecho transcrito, a doutrina de Nelson Nery Junior.
73
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ção entre os sistemas já existentes e o do Código, sob pena de
‘ensejar duplicidade de regimes ou, o que seria pior, conflitos
normativos com as disposições processuais do Código de Defesa do Consumidor.’ Por conta dessa interação entre o Código de
Defesa do Consumidor e esses outros diplomas legais, especialmente a Lei de Ação Civil Pública, foi dedicada a última parte
do Código à tarefa de adaptá-los, o que ensejou o surgimento de
um microssistema único, destinado à tutela de todos os direitos
e interesses ‘coletivos’, com base no qual se vem sustentando a
existência da denominada ‘jurisdição civil coletiva’.35
Assim, como na lei lusa não há previsão de criação de microssistema com a Lei de
Ação Popular, resta saber se, com base em interpretação extensiva do artigo 13º da Lei
n.º 24/96, irá se admitir uma legitimação do Ministério Público para intentar ações que
não tenham como fundo a defesa do consumidor.36
Pela letra legal, terá o Ministério Público português situação diferenciada apenas
quando a questão se tratar de direito do consumidor, em razão de não ter o legislador
português se utilizado de válvula legal próxima aos artigos 90 e 117 do Código de
Defesa do Consumidor brasileiro que, no particular, poderia expandir a legitimação
para a ação popular.
9. Comparativo Entre a Ação Civil Pública (Brasil) e a Ação Popular (Portugal)
Finalizando nosso estudo panorâmico, parece-nos salutar traçar comparativo da ação
popular portuguesa com a ação civil pública brasileira, tendo em vista os traços que as
marcam, seja pela semelhança, seja pela desigualdade.
A ação popular portuguesa, regulamentada pela Lei n.º 83/95, recebeu muita influência do sistema americano das class actions, especialmente no que se refere ao instituto
da coisa julgada, entretanto, há também, naquele instrumento coletivo de tutela jurisdicional, uma série de semelhanças com técnicas utilizadas pelas ações coletivas brasileiras37. Assim, neste item serão enumerados de forma sucinta os pontos divergentes
e convergentes entre os sistemas de tutela coletiva no ordenamento dos dois países.
36
Vale dizer que a Lei n.º 24/96 não só criou a legitimação do Ministério Público para mover as ações que envolvam interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos (art. 13º), como também atrelou definitivamente o mesmo ao direito
consumerista, conforme disposto no artigo 20º desse diploma (“Artigo 20º {Ministério Público}. Incumbe também ao
Ministério Público a defesa dos consumidores no âmbito da presente lei e no quadro das respectivas competências, intervindo em ações administrativas e cíveis tendentes a tutela dos interesses individuais homogéneos, bem como de interesses
coletivos ou difusos dos consumidores.”).
37
No sentido: Grinover (2000a, p. 48).
38
Regulamentada pela Lei n.º 4.717/65 e modificada pela Lei n.º 6.513/77.
39
Regulamentada pela Lei n.º 7.347/85 e ampliada pela Lei n.º 8.078/90.
40
O Título III (arts. 81 a 104) do Código de Defesa do Consumidor é aplicado às ações civis públicas, em virtude do artigo
21 da Lei n.º 7.347/85 (LACP): “Artigo 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais,
no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.”
74
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
9.1. Meios para Defesa de Interesses Coletivos
Em Portugal, o instrumento processual por excelência para a proteção de bens coletivos é a ação popular, regulamentada pela Lei n.º 83/95. Já no Brasil, há uma série de
instrumentos voltados para tal fim, entre os quais podemos citar o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX, da CF/88), a ação popular (art. 5º, LXXIII, da CF/88) 38
e a ação civil pública (art. 129, III, da CF/88)39. Vale lembrar que o sistema processual
coletivo brasileiro funciona em conformidade com o princípio da não-taxatividade ou
da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva, previsto no artigo 83 do Código
de Defesa do Consumidor40: “Artigo 83 - Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar
sua adequada e efetiva tutela”.
Nesse direcionamento, Almeida (2003, p. 344)):
Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor,
foi totalmente ampliado o campo de aplicabilidade da Lei de
Ação Civil Pública, seja no que tange ao seu objeto material,
seja em relação ao seu objeto formal. Pela completa interação
existente entre a Lei de Ação Civil Pública (art. 21) e o Código
de Defesa do Consumidor (arts. 83 e 90), qualquer tipo de ação
poderá ser utilizado para a tutela dos direitos e interesses protegido pela Lei de Ação Civil Pública. Com efeito, os pedidos
não mais se restringem ao que dispõe os artigos 3º e 11 da Lei
de Ação Civil Pública. Portanto, hoje são admissíveis o pedido
condenatório, o meramente declaratório (positivo ou negativo),
o constitutivo (ou desconstitutivo), o cautelar, o executivo e o
mandamental.
A Lei de Ação Popular portuguesa, em atitude similar, mas não tão ampla, em seu artigo 12, estabelece que a ação popular pode se revestir de qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil. Com base nesses argumentos, o sistema processual
coletivo brasileiro demonstra-se à frente do ordenamento português, uma vez que sua
maior maleabilidade permite a criação dos instrumentos processuais mais adequados
à efetivação do direito material coletivo.
9.2. A Ação Popular no Brasil e em Portugal
A ação popular brasileira tem por objeto a anulação de ato lesivo ao “[...] patrimônio
público ou entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”, tendo legitimidade para propor tal ação
qualquer cidadão, havendo para esse tipo de demanda isenção de custas judiciais e do
ônus da sucumbência, salvo se restar comprovada a má-fé do autor. Contudo, a Lei n.º
4.717/65, que regula a ação popular, prescreve o seguinte:
75
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Artigo 11. A sentença que, julgando procedente a ação popular,
decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os
beneficiários dele, ressalvada a ação regressiva contra os funcionários causadores de dano, quando incorrerem em culpa.
Se o pedido que for julgado procedente em sede de ação popular, enseja a prolação de
sentença final com os seguintes conteúdos, conforme Almeida (2003, p. 412):
[...] a) declaratório positivo, quando se pede e é acolhido o
pedido de nulidade do ato impugnado; b) constitutivo negativo, quando se pede e é acolhido o pedido de anulação do ato
impugnado; c) condenatório reparatório, quando se pede e é
acolhido o pedido de condenação dos responsáveis pelo ato invalidado, e dos que dele se beneficiaram, à reparação das perdas
e danos; d) condenatório preventivo, quando se pede a tutela
inibitória, ou seja, a condenação em obrigação de não fazer para
evitar a concretização de ameaça iminente a quaisquer dos bens
tuteláveis via ação popular.
Ainda no ordenamento brasileiro, temos a ação civil pública, que é o instrumento
mais amplo e maleável para a tutela dos interesses coletivos41. Em Portugal, como
foi visto, a ação popular tem por objeto a prevenção, a cessação, a perseguição e a
indenização das infrações contra os bens jurídicos coletivos protegidos por lei. Em
relação ao campo de incidência, tal ação possui grande familiaridade com a ação civil
pública brasileira. Entretanto, o sistema de legitimação dessas duas ações tem grandes
diferenças.
9.3. Interesses Coletivos Passíveis de Proteção
No Brasil, o legislador foi bastante cauteloso ao estabelecer que a lista de interesses
protegidos, prevista no artigo 1º da Lei n.º 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), é
exemplificativa42, enquanto que, em Portugal, o diploma não faz menção expressa
sobre a não-taxatividade do artigo 1º da Lei n.º 83/95 (Lei de Ação Popular).
9.4. Critérios Classificadores
Apesar de não haver claramente na legislação portuguesa uma classificação para os
interesses coletivos, observa-se colateralmente em certos dispositivos a existência de
Grinover (2000a, p. 49) afirma que “[...] é certo que, no Brasil, os âmbitos de incidência da ação popular e da ação civil
pública se tangenciam e por vezes se sobrepõem, mesmo porque recentes leis orgânicas do Ministério Público têm ampliado o campo próprio da ação civil pública, atribuindo ao parquet a titularidade de verdadeiras ações populares. Andou
bem, portanto, o legislador português ao estabelecer um único instrumento de tutela jurisdicional para os interesses meta
individuais que enumera.”
42
Afirma-se isso, pois, no mencionado rol, há indicação à proteção de “[...] qualquer outro interesse difuso ou coletivo”.
41
76
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
alguns critérios classificadores. Nesse direcionamento, cita-se Grinover (2000a, p.
50):
A lei portuguesa não distingue esses interesses, deixando claro, porém, que seus titulares podem ser identificados ou não
(arts. 22.2 e 22.3). Isso, no fundo, equivale ao reconhecimento
da existência de diversas categorias de interesses meta-individuais, pela titularidade mais ou menos difusa, chegando até a
possibilidade de identificação.
Por outro lado, encontra-se no mesmo artigo 22 da Lei n.º 83/95
a distinção quanto à modalidade da indenização, sendo ela fixada globalmente quando se tratar de titulares não individualmente identificados (art. 22º.2), ou dividida entre os titulares de
interesses identificados, nos termos da responsabilidade civil
(art. 22º.3). Daí a possibilidade de afirmar-se que a nova lei
portuguesa reconhece a existência de interesses indivisíveis, ou
divisíveis quanto a seu objeto.
O legislador brasileiro fez melhor, ao reconhecer a existência e classificar explicitamente as categorias de interesses coletivos nos incisos do parágrafo único do artigo
81 do Código de Defesa do Consumidor, que se aplicam às ações civis públicas, por
força do artigo 19 da Lei n.º 347/85.43
9.5. Legitimidade
O sistema de legitimidade para o ajuizamento de ação popular assemelha-se em um
ponto ao sistema processual coletivo brasileiro: não houve adoção do critério da representatividade adequada das class actions do direito norte-americano, pelo qual há
legitimação de qualquer pessoa física ou jurídica para o ajuizamento da ação de classe, devendo existir, entretanto, uma aferição por parte do Juiz acerca da seriedade,
credibilidade e disponibilidade do autor (critério ope judicis).44
Fique bem claro, contudo, que, apesar de o legislador português conferir ampla legitimação a todos os cidadãos portugueses, pessoas coletivas, autarquias locais e – em
43
“Artigo 19. Aplica-se à ação civil pública, prevista nesta Lei, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 5.869,
de 11 de janeiro de 1973, naquilo em que não contrarie suas disposições.”
44
Sobre o tema, ensina Araújo (2004, Inédito), em seu texto inédito, gentilmente cedido: “Com a observância da representatividade adequada, os membros ausentes estarão exercendo o seu right to be heard e terão o seu day in court, mas através
de uma terceira pessoa: o representante do grupo. Conforme bem destaca Antônio Gidi, por intermédio deste requisito, a
lei consegue atingir três resultados: (I) minimiza-se o risco de colusão; (II) cria-se um incentivo para a tutela vigorosa do
representante e do advogado do grupo; e (III) trazem-se os reais interesses de todos os membros do grupo. A delimitação
do conceito de representatividade adequada encerra-se em dois elementos principais: a inexistência de conflitos ou antagonismo dentro do grupo e a vigorosa tutela dos interesses dos membros ausentes. Estes dois elementos devem ser analisados
à luz das condutas de dois agentes: o representante do grupo e o advogado do grupo.”
45
“Artigo 82. Para os fins do artigo 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público; II
- a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou
indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por
este Código; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
situações excepcionais – o Ministério Público para a propositura da ação popular, não
deixou de criar instrumentos de controle ao mau uso desse direito, a saber:
a) O Ministério Público, percebendo estar o autor praticando atos lesivos em relação
aos interesses defendidos em causa, pode substituí-lo, assumindo assim o pólo ativo
da relação processual, conforme autoriza o artigo 16º, n. 3 da Lei de Ação Popular; e
b) o Juiz, fundado em motivações de cada caso concreto, pode restringir, apesar da
procedência da demanda, os efeitos da coisa julgada, inclusive limitando seus efeitos
às partes que integraram os pólos processuais da demanda.
O legislador brasileiro adotou uma medida objetiva pura (critério ope legis) para a
constatação da legitimidade nas ações coletivas. No Brasil, só aqueles sujeitos mencionados no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor45 e no artigo 5º, inciso
LXXIII, da Constituição Federal de 1988 podem propor, respectivamente, a ação civil
pública e a ação popular.
9.6. Coisa Julgada
No Brasil, a sentença proferida em ação civil pública faz coisa julgada em duas hipóteses:
a) Em caso de improcedência do pedido, após instrução probatória suficiente, a sentença coletiva faz coisa julgada ultra partes para atingir os titulares do direito supraindividual (difuso ou coletivo), o que impede os legitimados do artigo 82 do Código
de Defesa do Consumidor a propor novamente a mesma ação coletiva; entretanto,
ações individuais com intuito de tutelar direitos individuais (homogêneos ou não)
continuam podendo ser propostas, não estando vinculadas àquela decisão;
b) em caso de procedência, a sentença coletiva faz coisa julgada erga omnes ou ultra
partes para tutelar o bem coletivo e tem por efeito obstar que se possa propor outra
ação civil coletiva.46
Em caso de improcedência do pedido por insuficiência de provas, a sentença que
procede da ação civil pública não faz coisa julgada, pois, dada a relevância do bem
protegido, assim como pelas dificuldades inerentes à defesa desse bem em juízo, soa defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização assemblear.”
46
Arruda Alvim (2002, p. 456) resume as hipóteses acima descritas de forma extremamente concisa: “Em síntese, podese dizer que a eficácia da ação civil coletiva colima atingir todos os que estejam relacionados com a situação posta em
juízo através da ação civil coletiva; ademais, pela grandeza do bem jurídico perseguido, só haverá coisa julgada em duas
hipóteses: a) quando da procedência da ação; b) quando restar ‘comprovada’ a inexistência de lesão ao bem jurídico, de
que se dizia ter sido lesado; c) se não se houver logrado comprovar a lesão ao bem jurídico, mas se o juiz vislumbrar a
possibilidade de que possa existir prova (e, assim, consigne o fato na sua sentença ou dela deflua esse fundamento inequivocamente), não há coisa julgada, podendo ser proposta a mesma ação acompanhada de nova prova; d) mesmo no caso de
improcedência da ação civil coletiva, sem ter sido por insuficiência de provas, só existe óbice à propositura de ação civil
coletiva, pois o plano das ações individuais não é atingido pela eficácia dessa improcedência (salvo a hipótese do art. 94
c.c. o art. 103, § 2º, como já se disse).”
47
Para exemplificar, podemos citar os artigos 103, incisos I e II do Código de Defesa do Consumidor e o artigo 18 da Lei
n.º 4.717/65.
78
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
mente se justifica a ocorrência da coisa julgada quando o Magistrado entender que as
diligências probatórias necessárias para a devida solução do caso foram realizadas,
como prescreve o artigo 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor.
Em relação à coisa julgada, a Lei de Ação Popular portuguesa misturou critérios
oriundos do direito norte-americano com outros presentes no ordenamento brasileiro.
Em princípio, tanto para os casos de procedência como para os de improcedência, a
sentença decorrente de ação popular produz coisa julgada erga omnes, salvo quando
a improcedência for devida à insuficiência de provas (art. 19, n.º 1, da LAP). Esse
critério, como analisado acima, é característico das demandas coletivas brasileiras47,
que, por adotarem uma medida objetiva para a legitimidade do autor, precisam contornar o déficit do contraditório criado por tal opção, através da restrição na formação
de coisa julgada para casos de insuficiência probatória – evitando assim o risco de
colusão entre as partes.
Entretanto, é facultado aos cidadãos portugueses o exercício do direito de auto-exclusão em algumas ações coletivas (arts. 19º, n. 1, e 15º, n. 1, ambos da LAP). Segundo
esse critério, os sujeitos que optarem pela auto-exclusão ficam indiferentes aos efeitos
da coisa julgada coletiva – esse critério é próprio das class actions48 do direito norteamericano.
9.7. O Papel do Ministério Público
Como foi visto, em Portugal, o Ministério Público, como regra geral, atua como fiscal
da lei, podendo, em situações excepcionais, assumir o pólo ativo da relação processual.
Já no Brasil, a situação é diferente e a regra geral prescreve a legitimação do órgão
ministerial para a propositura de ações coletivas, já que a própria Constituição estabelece que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, CF/88)49 – inclusive,
estatisticamente, 90% das ações coletivas ajuizadas em nosso país são intentadas pelo
Ministério Público.
Segundo Araújo (2004, Inédito), em seu texto gentilmente cedido “Em sede de processo coletivo, os membros ausentes
do grupo podem ser considerados fictamente presentes através de três técnicas: (I) a presença compulsória; (II) o ‘opt in’;
e (III) o ‘opt out’. Na primeira hipótese, os membros ausentes são considerados fictamente presentes no processo, não
havendo a possibilidade de se excluírem. Na segunda hipótese, em princípio, os membros ausentes não estão sujeitos
aos efeitos da sentença coletiva, salvo se optarem por participar da ação. Na terceira hipótese, em princípio, os membros
ausentes estão sujeitos aos efeitos da sentença coletiva, salvo se optarem pela sua exclusão da ação coletiva. No sistema
norte-americano, o legislador fez uma opção por um sistema misto: nas ‘class actions’ das subdivisões (b)(1) e (b)(2),
adotou-se o regime de presença compulsória, enquanto nas ‘class actions’ das subdivisão (b)(3), a opção foi pelo sistema
do ‘opt out’. Assim, nas ‘class actions for damages’, os membros ausentes possuem o direito de se excluírem do grupo,
caso assim desejem.”
49
Mais especificamente temos o artigo 129, III da Constituição Federal de 1988: “São funções institucionais do Ministério
Público: [...] III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
48
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Parece-nos que o panorama em Portugal poderia ser alterado, passando o Ministério
Público português a ter postura mais atuante, caso levada a cabo interpretação extensiva do artigo 13º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96), aumentando o
espectro da legitimação ativa do Ministério Público luso, consoante célere abordagem
já efetuada no presente texto, ao longo do item 8 e seguintes.
9.8. Poderes do Juiz
Tanto na ação popular portuguesa como na ação civil pública, os Juízes são dotados
de amplos poderes, entre os quais podemos citar:
a) A possibilidade de ter iniciativa na colheita de prova, completamente desvinculada
da atitude das partes; esse poder-dever está consagrado no artigo 17º da Lei de Ação
Popular. No Brasil, essa matéria está prevista no artigo 130 do Código de Processo
Civil de 1973;
b) a possibilidade de o Juiz indeferir liminarmente a petição inicial que demonstrar ser
manifestamente improvável a procedência do pedido, nos termos do artigo 13º50. No
Brasil, não há essa possibilidade;
c) conforme prescreve o artigo 19º, n. 1 da Lei de Ação Popular, o Juiz, fundamentando-se em motivações próprias do caso concreto, pode restringir a eficácia geral das
sentenças provenientes de ação popular; esse poder não é atribuído aos Magistrados
brasileiros, ao julgar a ação civil pública;
d) o artigo 18º da Lei de Ação Popular determina: “Mesmo que determinado recurso
não tenha efeito suspensivo, nos termos gerais, pode o julgador, em acção popular,
conferir-lhe esse efeito, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação”. No Brasil, essa possibilidade está prevista no artigo 14 da Lei n.º 7.347/85.
Sobre os poderes do Juiz durante a condução da ação civil pública, Grinover (2000a,
p. 57) traz bom resumo:
Assim, apenas para exemplificar, o juiz pode conceder mandado liminar, ‘inaudita altera parte’ (art. 12, LACP); nas obrigações de fazer ou não fazer, pode julgar ‘extra petita’, aplicando
o regime das ‘astreintes’ ainda que o autor não o tenha requerido; e mais, no campo da tutela específica, o juiz pode determinar providências sub-rogatórias, mediante ordens impostas
ao devedor ou a terceiros para chegar a um resultado prático
50
“Artigo 13° (Regime especial de indeferimento da petição inicial). A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as
averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram”.
51
Atualmente, quanto à execução das decisões proferidas em ação civil pública, aplica-se o parágrafo 5º do artigo 461 do
Código de Defesa do Consumidor, que tem sua redação dada pela Lei n.º 10.444/2002: “Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas
necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
equivalente ao adimplemento (art. 11, LACP, ampliado pelo
CDC que, em seu art. 84, exemplifica, entre as medidas subrogatórias, mencionando a busca e apreensão, o desfazimento
de obra, a remoção de pessoas ou coisas, o impedimento da
atividade nociva, além de força policial). Este dispositivo, aliás,
foi incluído na reforma parcial do Código de Processo Civil de
1973, aplicando-se hoje a qualquer processo tendente à tutela
das obrigações específicas.51
10. Breve Fechamento
Não resta dúvida que a tutela coletiva no Brasil exerce influência no sistema português, especialmente pelo fato de possuirmos, nesse pormenor, certamente um ordenamento mais avançado, fincado em data anterior, que nos permite colher experiências
concretas. Exemplo claro do narrado está no julgamento (PORTUGAL, 1997), em
que – na ação coletiva movida pela Associação de Consumidores de Portugal − ACOP
contra a Portugal Telecom – reconheceu-se a viabilidade da ação popular para tutelar
os interesses individuais homogêneos.52
No entanto, a tutela coletiva em Portugal possui traços próprios, decorrentes não só do
texto das principais legislações vinculadas aos interesses supra-individuais, em que
aqui destacamos as Leis n.ºs 83/95 (Lei da Ação Popular) e 24/96 (Lei de Defesa do
Consumidor), mas em função de sua própria estrutura. Apenas como exemplo, registre-se que, pelo seu papel institucional mais cerrado, o Ministério Público naquela nação detém legitimidade muito mais limitada para o manejo ativo das ações coletivas.
Na verdade, o direito brasileiro acaba tendo uma influência muito maior, não se limitando a Portugal. Contudo, o leading case em foco demonstrou isso claramente. Nessa linha, como bem consignou Grinover (2000b, p. 22): “O sistema
jurídico brasileiro sobre a tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos tem exercido influência em
alguns ordenamentos da América Latina. Argentina e Uruguai introduziram, em suas respectivas legislações, a defesa dos
interesses difusos e coletivos, e a nova legislação argentina sobre as relações de consumo é toda moldada no Código Brasileiro. Também na Europa, e notadamente em Portugal, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor está colhendo seus
frutos. A lei sobre ação popular portuguesa, que se presta abertamente à defesa dos interesses difusos e coletivos, também
abre uma perspectiva sobre a tutela dos direitos individuais homogêneos, colhida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que
reconheceu sua tutelabilidade. A Associação de Consumidores de Portugal moveu ação popular contra a Portugal Telecom,
em defesa dos direitos individuais homogêneos dos usuários dos serviços telefônicos, visando a restituição das tarifas indevidamente cobradas nos meses de outubro a dezembro de 1994. A sentença de primeiro grau e o Tribunal de Relação de
Lisboa tinham indeferido liminarmente a petição inicial, este último por confinar o âmbito da ação popular aos interesses
difusos e afastando o caso ‘sub judice’ do campo extensivo dos referidos interesses. Mas a Corte Suprema, em setembro de
1997, reportando-se à doutrina e à legislação brasileiras, interpretou o artigo 1º da Lei n.º 83, de 31.8.1995, entendendo-o
compreensivo não só dos direitos difusos, mas também dos direitos individuais homogêneos e reconhecendo, em tese, o
direito à reparação dos danos dos consumidores, inclusive da referida categoria.”
Pela importância desse leading case, o julgamento encontra-se citado em vários estudos, destacando-se os textos de Mendes (2002, p. 136-138) e Araújo Filho (2000, p. 42-43).
53
Citamos, como exemplo, relatório do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (órgão vinculado ao Ministério
da Justiça de Portugal), que foi concluído em 2001, que traça diversas soluções para o aperfeiçoamento da Justiça portuguesa, após a aferição da ocorrência do direito em abundância e da incapacidade de resposta dos Tribunais Judiciais. Nas
soluções, não se cogita em aperfeiçoamento ou mesmo utilização da tutela de massa, fazendo-se uma análise basicamente
dentro de um espectro individual. A pesquisa (com as conclusões respectivas) foi transformada em obra (PEDROSO;
TRINCÃO; DIAS, 2003).
52
81
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Portanto, o estudo da tutela coletiva comparativa não pode desprezar esses dois fatos
concretos: a) nosso sistema é mais complexo; e b) a implantação da tutela coletiva em
Portugal está sendo efetuada com observância às suas realidades.
Talvez esse quadro, em que se verifica certo atraso do legislador português, em razão
da realidade brasileira, justifique o motivo de a tutela coletiva não ter despertado interesse em escala na doutrina lusa. Com efeito, ao contrário do que ocorre no Brasil,
não há em Portugal literatura farta que se debruce nos temas afins. A impressão que
ficou, a partir de nossas pesquisas, foi que, naquela nação, a tutela coletiva não recebeu – ainda – a importância que merece, não sendo vista como solução extremamente
útil para um Judiciário mais viável e efetivo.53
De todo modo, para nós há grande valia no labor, sendo necessário que a pesquisa
comparada continue, de modo que as soluções adotadas (e aprovadas) em outras nações possam permitir novas possibilidades ao sistema.
Ademais, pela massificação de culturas e anseios de uma sociedade cada vez mais
global, há uma tendência mundial de uniformização dos procedimentos, que se manifestará não apenas através de adoção de normas comunitárias54, mas de adoção de
regramentos assemelhados, respeitando-se algumas particularidades de cada Estado.
Dessa forma, a aferição do direito estrangeiro, para fins de análise comparada, toma
relevo de grande calibre, pois, como bem profetizou Cappelletti (2001, p. 102):
No mundo de hoje, todo o movimento válido de pensamento,
toda a concepção que efetivamente reflita as renovadas exigências sociais tende, ainda mais do que pudesse acontecer em outros tempos, a deitar por terra os limites dos países isolados ou
nacionais e a assumir um alcance de tendência universal. Em
resumo, há profunda e irresistível tendência para a unidade e
esta tendência se reflete necessariamente também no mundo do
direito e de seus substituídos.
Forçoso, pois, reconhecer a importância do contínuo estudo da tutela coletiva portuguesa, já que, pelas congruências, experiências poderão ser compartilhadas, criandose uma uniformização saudável naquilo que for viável e possível. A pretensão de ter
um sistema coletivo próprio, desprezando as influências e experiências comparadas,
importa em adotar uma posição que renega a própria essência da tutela de massa, que
é universal, e visa, acima de tudo, à prevalência do Estado Democrático, do prestígio
do homem como partícipe de uma sociedade. Por tal passo, ratificamos integralmente
as palavras de Couture (2003, p. 237) quando afirmou:
El derecho procesal de la democracia debe eliminar las bases del individualismo y formular todo un sistema que sea la
expresión misma de este régimen, que es el de la defensa de
54
Situação hoje bem evidente na Europa. No sentido, conferir: Patrício (2001); Rosa (2001).
82
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
nuestra propia condición humana. [...] Por dramático que sea,
debemos decidir nuestro destino justamente ante la angustia de
un mundo que se está derrumbando. El justo equilibrio entre el
poder y el hombre seguirá siendo, por siglos, la única fórmula
viva del derecho.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2.3 REFLEXOS DO DIREITO MATERIAL DO AMBIENTE
SOBRE O INSTITUTO DA COISA JULGADA − IN UTILIBUS,
LIMITAÇÃO TERRITORIAL, EFICÁCIA PRECLUSIVA
DA COISA JULGADA E COISA JULGADA REBUS SIC STANTIBUS
MARCELO ABELHA RODRIGUES
Mestre e Doutor pela PUC/SP
Professor de Direito Ambiental e Direito Processual Civil da UFES
Advogado-ES
SUMÁRIO: 1. Delimitação do Tema. 2. Técnica e Direito: um Link Necessário. 3.
Peculiaridades do Direito Ambiental que se Refletem no Regime Jurídico da Coisa
Julgada Material. 4. Os Reflexos na Coisa Julgada Ambiental
1. Delimitação do Tema
Embora o tema deste trabalho seja a coisa julgada no direito ambiental, antecipo ao
leitor que a nossa intenção não será comentar sobre a coisa julgada coletiva de forma
estanque e isolada, mas estabelecer um paralelo – um fio condutor, um link – entre
alguns aspectos do direito material ambiental e os reflexos sobre o instituto da coisa
julgada, ou seja, de que forma as peculiaridades do direito material ambiental influenciam nas características do sacrossanto instituto da coisa julgada material.
2. Técnica e Direito: um Link Necessário
Técnica e direito são, respectivamente, o instrumento e o fim a forma e a essência.
A técnica, digo, o processo, é a ferramenta ou método quase sempre necessário para
se obter a tutela jurisdicional. O que se quer é a solução e a tutela dada pelo Poder
Judiciário, e o caminho é o processo. Mas não se pense que ainda estamos naqueles
tempos em que a técnica era padrão para todo e qualquer tipo de direito. Não mesmo. Não estamos mais naquela época em que, por mais diferente que fosse o direito
material em conflito, o jurisdicionado deveria se valer do mesmo modelo processual,
tal como se estivéssemos numa sociedade de iguais. Enfim, para cada tipo de crise
jurídica levada ao Poder Judiciário, existe um tipo específico de técnica processual a
ser utilizada, e cabe ao jurisdicionado valer-se daquela que seja adequada (eficiente e
efetiva) à tutela de seu direito.
Essas tutelas jurídicas diferenciadas são pré vistas pelo legislador processual que as
coloca em moldura abstrata e as deixa à disposição dos jurisdicionados. A necessidade
de estabelecer tutelas jurídicas diferenciadas para atender as peculiaridades do direito
material em conflito decorre do próprio devido processo legal que deve ofertar ao
jurisdicionado um processo giusto e équo. Nesse particular, cabe ao legislador captar
as peculiaridades do direito material e prever, abstratamente, as regras processuais
que com elas sejam consentâneas e adequadas para se obter o acesso à ordem jurídica
justa.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Nesse particular, aproximando-se do nosso tema, temos que, diante da nova realidade
estabelecida pela Constituição de 1988, é preciso revisitar o clássico modelo liberal
do processo civil brasileiro – e isso tem sido feito pelo próprio legislador –, para diferenciar as técnicas processuais de acordo com as exigências do direito material. O
instituto da coisa julgada é um deles. Com as devidas cautelas e cuidados, deve ser
estudado e interpretado de acordo com as exigências do direito material. Lembre-se
que a coisa julgada é um instituto de índole política constitucional, mas que tem como
habitat o direito processual.
3. Peculiaridades do Direito Ambiental que se Refletem no Regime Jurídico da
Coisa Julgada Material
O Direito Ambiental se ocupa da proteção do equilíbrio ecológico. Este é o bem de
uso comum do povo a que alude o texto do art. 225 da CF/88. Este é o bem jurídico
(imaterial) que é essencial à vida de todos nós e que tem um regime jurídico de uso comum ou vulgar. Mas o equilíbrio ecológico é, na verdade, um produto da combinação
(química, física e biológica) de diversos fatores bióticos (fauna, flora e diversidade
biológica) e abióticos (ar, água, terra, clima, etc.). Portanto, embora o objeto de proteção do direito ambiental seja o equilíbrio ecológico (macrobem), ele também cuida,
inexoravelmente, da função ecológica exercida pelos fatores ambientais bióticos e
abióticos (microbens).
Assim, tanto o macrobem quanto os microbens ambientais são naturalmente indivisíveis. Dizer que são naturalmente indivisíveis significa afirmar que esses bens ambientais não se repartem sem que isso represente uma alteração das suas propriedades
ecológicas. São bens que foram dados ao ser humano, e que já existiam no planeta
antes mesmo da existência dos homens. Esses bens - e o resultado de sua combinação
(o equilíbrio ecológico) - são indivisíveis, e, por mais que os homens brinquem de ser
Deus, ainda não conseguiram reproduzir as mesmas funções ecológicas que naturalmente os bens ambientais produzem.
Mas não é só. Além de indivisível pela sua própria natureza, o bem ambiental é também ubíquo. A ubiqüidade significa que o bem ambiental não encontra fronteiras espaciais e territoriais. Em razão da interligação química, física e biológica dos bens
ambientais, não é possível ao ser humano estabelecer limites ou paredes que isolem
os fatores ambientais. Ora, quem nunca ouviu dizer que a poluição é transfronteiriça,
e aquilo que se faz no nosso quintal é sentido no quintal do vizinho e vice-versa ? Isso
decorre da ubiqüidade do bem ambiental, da sua onipresença.
Além de indivisível e ubíqüo, o equilíbrio ecológico é altamente instável, ou seja, é
um objeto extremamente sensível. Isso mesmo. Tão sensível que qualquer variação de
algum de seus componentes bióticos ou abióticos, ou uma simples variação de tempo
ou espaço pode lhe causar um sério desequilíbrio. Por isso, mesmo aquelas atividades
ou obras que normalmente apresentam mínimo ou quase nenhum impacto sobre o
meio ambiente podem, dependendo das circunstâncias de tempo e espaço, abalar o
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
equilíbrio ecológico. Tal como num copo cheio de água até o limite do derramamento,
será uma gota mínima – que isoladamente é incapaz de encher um milímetro do copo
– que terá o poder de derramar boa parte da água do copo. É assim que se passa com
o equilíbrio ecológico. Muitas vezes a mesma atividade, de mínimo potencial de impacto ambiental, desenvolvida no início de uma microbacia, não poderá ser a poucos
quilômetros dali. Tempo, espaço e variações dos fatores ambientais propiciam, por
menores que sejam, alterações e desequilíbrios ecológicos, em desfavor do ambiente.
Além de instáveis, os bens ambientais – porque não são frutos da criação humana,
já que surgiram antes da existência do homem – não são totalmente conhecidos pelo
ser humano, que dia após dia descobre neles novas potencialidades e características.
Todos os dias, as pesquisas científicas aprendem novas regras e funções dos bens
ambientais. O ser humano ainda não conseguiu dominar nem entender todos os papéis
desempenhados pelos bens ambientais. É o que poderíamos chamar de desconhecimento científico pela coletividade das funções realizadas pelos bens ambientais.
Outro aspecto importante para o desenvolvimento da nossa exposição é saber que os
bens ambientais pertencem a todos, ou seja, a titularidade do “equilíbrio ecológico”
(que resulta da combinação química, física e biológica dos componentes ambientais
bióticos e abióticos), segundo a determinação constitucional (art. 225, caput), é do
povo, e, por isso mesmo, é um direito metaindividual, em que as pessoas são indetermináveis e ligadas entre si pela circunstância de serem, obviamente, titulares do meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Por fim, a última consideração de ordem material que aqui é importante fazer para
refletir sobre o instituto da coisa julgada nas demandas ambientais diz respeito ao fato
de que, embora o bem ambiental seja indivisível e a sua titularidade seja o povo, o
regime jurídico de fruição desse bem (macro ou microbem) é de uso comum, porque é
ele essencial à sadia qualidade de vida. Exatamente porque esses bens ambientais são
essenciais à vida de todos os seres vivos e também porque esses mesmos bens são matéria-prima para tantas outras atividades artificiais (econômica, social e cultural) é que
não será incomum que a lesão ao equilíbrio ecológico cause por tabela (reflexamente)
lesão a outros direitos privados. Assim, se por ventura uma grande empresa exploradora de petróleo é responsável pelo derramamento de óleo numa praia, é possível que,
além do prejuízo ambiental (degradação do meio ambiente e do equilíbrio ecológico),
haja também lesão a direitos de índole privada, por exemplo aos pescadores que são
impedidos de exercer a profissão em razão da degradação, ou então às pessoas que se
contaminaram ao banhar-se nas águas contaminadas.
4. Os Reflexos na Coisa Julgada Ambiental
Expostas algumas peculiaridades tipificadoras do bem ambiental (indivisibilidade,
ubiqüidade, instabilidade, desconhecimento científico de todas as suas funções, inde-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
terminabilidade dos seus titulares e efeitos reflexos sobre outros direitos), passemos
então à análise de seus reflexos sobre o tradicional instituto da coisa julgada.
Como se disse, a indivisibilidade e a ubiqüidade do bem ambiental obriga que os efeitos da coisa julgada (sobre o que recai a autoridade da coisa julgada) recaiam sobre
todo o bem ambiental e o atinjam até onde ele estenda seus efeitos. Como se sabe,
considerando que os bens ambientais são indivisíveis pela sua própria natureza e que
não respeitam nenhuma limitação espacial, é absolutamente inócua, senão ridícula, a
limitação territorial da coisa julgada a que alude o art. 16 da LACP. Dizer que “a coisa
julgada fica restrita aos limites da competência territorial do órgão prolator” é algo
absolutamente insano em matéria ambiental porque os bens ambientais não podem,
jamais, ser limitados pelo ser humano. Não há como limitar o desequilíbrio ecológico
a esta ou àquela área, assim como não há como limitar o reequilíbrio ecológico a este
ou àquele limite espacial. Seria como dizer, por exemplo, para o peixe que nada no rio
o seguinte: “olha, você não passe daqui, porque a decisão judicial só vale daqui para
trás”. Por isso, tratando-se de proteção jurisdicional do meio ambiente, além das críticas que são feitas ao art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, insta dizer que, no presente
caso, pelo fato de os bens ambientais serem ubíquos e indivisíveis, inexoravelmente
a decisão judicial – independentemente da competência territorial do órgão prolator
– afetará toda a extensão do objeto tutelado, esteja onde ele estiver – e, quanto a isso,
nada poderá fazer o ser humano porque, como se disse, o bem ambiental não se contém nos limites ou fronteiras criadas pelo homem.
Também a questão da instabilidade do bem ambiental influencia diretamente no regime jurídico da coisa julgada. Bem se sabe que tal autoridade recai sobre a parte dispositiva da sentença, mas também que, por intermédio da eficácia preclusiva processual
(art. 474 do CPC c/c art. 468), todas as questões que poderiam ser (ou que foram) oferecidas visando ao acolhimento ou rejeição do pedido reputam-se rejeitadas e, por isso
estarão preclusas. Trata-se de uma espécie de imunização contra todas as questões deduzidas ou dedutíveis, em prol da preservação daquela pretensão julgada e carimbada
pelo selo da coisa julgada. Assim, considerando que os bens ambientais são instáveis
e sujeitos às alterações e variações no tempo e no espaço, deve-se ficar atento, porque
o fato de se ter sacramentado com a coisa julgada uma determinada situação jurídica
que envolva a tutela ambiental – por exemplo, o reconhecimento judicial de que uma
determinada atividade não é impactante –não quer dizer que essa atividade nunca será
impactante naquele meio ambiente. A cláusula rebus sic stantibus contida em toda
e qualquer sentença ganha extremo relevo em matéria ambiental, tudo por causa da
instabilidade dos bens ambientais. Imagine que hoje uma determinada atividade econômica não seja considerada poluente, mas amanhã, em razão de variações climáticas,
ou de pressão, ou de umidade, a atividade passe a ser considerada poluente. Mas, e se
já houver a autoridade da coisa julgada sobre a situação jurídica que antes era favorável, mas que agora é desfavorável ao meio ambiente?
Ora, se os fatos são outros, e supervenientes ao julgado, automaticamente não há que
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
se falar em autoridade da coisa julgada, e toda a questão envolvendo o impacto da
atividade poderá ser discutida pelo Poder Judiciário. Incide aí a cláusula rebus sic
stantibus, e, tal como acontece nas relações jurídicas continuativas, há a coisa julgada
material e a eficácia preclusiva da coisa julgada sobre o pedido e sobre os fatos deduzidos ou dedutíveis, respectivamente, mas não sobre aqueles que poderão surgir após
o julgado, em razão da instabilidade conatural dos bens ambientais. Enfim, o que se
quer dizer é que os bens ambientais são extremamente sensíveis, e, muitas vezes, o
objeto e a causa de pedir fixados em Juízo numa demanda ambiental não raras vezes
poderão no curso dela ser modificados ou alterados pela só instabilidade desses bens.
Se isso vier à tona no curso da demanda, aplica-se o art. 462 do CPC. Se após ela,
então não há que se falar em coisa julgada sobre a situação jurídica nova, resultante
da instabilidade dos bens ambientais.
Como foi visto, ao surgir o ser humano já encontrou os fatores bióticos e abióticos,
que, independentemente da sua vontade, misturavam-se entre si, produzindo o tal
equilíbrio ecológico. Mas, desde aí, o ser humano vem tentando dominar o meio ambiente, e, assim, passar a fazer o papel de Deus. Que pretensão a nossa. Pois é. Diante
disso, é evidente que o ser humano desconhece todos os papéis, as virtudes, as potencialidades das funções realizadas pelos bens ambientais. Também esse aspecto exerce
influência no regime jurídico da coisa julgada em matéria ambiental. Por exemplo, admita-se a hipótese em que o Juiz profira uma sentença considerando que determinada
atividade não é impactante ou que não teria causado o impacto ambiental “X”. Todas
as provas são trazidas aos autos, e o Juiz, convencido à saciedade, julga improcedente
a ação civil pública. O que fazer se meses ou anos depois, com o desenvolvimento
científico, descobre-se que aquela atividade, melhor estudada, é impactante para o
meio ambiente?
Veja que não é o mesmo caso comentado no tópico anterior. Aqui não houve uma
modificação da situação de fato em razão da instabilidade do bem ambiental. O que
teria havido é que aquela mesma situação de fato, provada nos autos, agora apresenta-se diversa diante de novos dados científicos. O que fazer se houve – e de fato
houve – a coisa julgada material sobre o pedido formulado? Nesse particular, é de se
questionar se teria havido a eficácia preclusiva da coisa julgada sobre essas questões,
que já existiam à sua época, mas que, pelo desconhecimento científico, nem sequer
foram alegadas. Tome-se de exemplo um determinado alimento transgênico que é
liberado judicialmente, sobre a decisão recai a autoridade da coisa julgada, mas anos
depois (portanto, depois do prazo de uma ação rescisória) descobre-se, com novos e
recentes estudos científicos, que o tal alimento transgênico degrada a qualidade do
meio ambiente. Nesse caso, será possível rediscutir o que foi decidido, valendo-se de
nova prova, se a coisa julgada foi obtida num caso de improcedência com suficiência
de provas? A questão, nos parece, pode ser solucionada com base na correta leitura
da eficácia preclusiva da coisa julgada. É que tal figura (eficácia preclusiva da coisa
julgada) só imuniza o julgado das alegações (argumentos e fundamentos) que foram
deduzidas ou que poderiam ser dedutíveis, tomando-se, por ficção, que todas teriam
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sido rejeitadas quando a sentença passasse em julgado. Entretanto, observe-se que,
naquele momento, ninguém poderia supor – em razão do desconhecimento ou incerteza científica – que tal atividade transgênica fosse poluente, e, por isso mesmo, não
poderia incidir a regra do deduzido e do dedutível contida no art. 474 do CPC. Nesse
caso, permite-se ainda que diante da mesma causa de pedir e no mesmo pedido, porém
fundando-se em nova prova, não se aplicar a regra do art. 464, e, assim, discutir a
causa valendo-se dessa prova que por razões científicas se desconhecia.
Ainda com relação à coisa julgada ambiental, merece ser dito que o fato de o bem ambiental – objeto de tutela – pertencer ao povo (segundo a dicção do art. 225, caput, da
CF/88), implica, inexoravelmente, que é inócua a tentativa do legislador de dizer que
a coisa julgada ficaria limitada à competência territorial do órgão prolator. Sendo um
bem indivisível e pertencendo ao povo, não há, definitivamente, como se pretender
que a tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado só atinja o povo que esteja
situado nos limites da competência territorial do órgão prolator da decisão sobre a
qual recairá a autoridade da coisa julgada. É ridícula e inócua a limitação territorial
pretendida pelo legislador. Nem o objeto nem os sujeitos titulares deixarão de ser atingidos, ainda que estejam fora dos lindes da competência territorial do órgão prolator.
Por fim, outro aspecto do direito material influencia no regime jurídico do instituto
da coisa julgada em matéria ambiental. É que, como se disse, em razão de os microbens ambientais (recursos ambientais) terem, ao lado de uma função ecológica, outras
funções – que chamamos de artificiais (econômica, social e cultural) –, é claro que a
ofensa à função ecológica desses bens normalmente acarretará, por via reflexa, uma
agressão às suas funções antropocêntricas. É o que acontece, por exemplo, quando a
emissão de poluição no mar, além de degradar o meio ambiente, causa danos à atividade econômica dos pescadores que dependem do mar para exercer o seu trabalho.
Assim, considerando o aspecto reflexo que o dano ambiental pode acarretar às funções econômicas e sociais, foi que o legislador criou a coisa julgada in utilibus, que
nada mais é do que um efeito secundário da decisão que transitou em julgado. Esse
efeito secundário permite que qualquer pessoa lesada (individual ou coletivamente)
reflexamente pela mesma agressão ambiental já decidida possa ajuizar uma demanda
sem a necessidade de provar aquele fato (poluição e nexo com o poluente) que deu
origem e foi suporte da demanda coletiva ambiental. É o que consta do art. 103, parágrafo terceiro, segunda parte, do CDC, que, como se sabe, aplica-se à Lei de Ação
Civil Pública por determinação do art. 21 deste mesmo diploma.
Eis aí as breves considerações sobre as influências do direito material ambiental sobre
o instituto da coisa julgada em lides ambientais.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2.4 O DIREITO AMBIENTAL E AS AÇÕES INIBITÓRIA
E DE REMOÇÃO DO ILÍCITO
LUIZ GUILHERME MARINONI
Professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Paraná
Advogado em Brasília e Curitiba
SUMÁRIO: 1. O Direito ao Meio Ambiente Sadio como Direito Fundamental. 2. O
Art. 225 da Constituição Federal considerado como Norma Estruturante do Direito
Fundamental ao Meio Ambiente. 3. A Atuação das Normas de Proteção que Objetivam um Fazer do Particular. 4. Normas de Proteção que Exigem Controle ou Fiscalização da Administração. 5. Prestações Decorrentes do Dever de o Estado Gerenciar
o Meio Ambiente. 6. A Questão do Risco Ambiental. 7. A Importância da Distinção
entre Regras e Princípios para a Efetividade da Tutela do Meio Ambiente. 8. Sobre a
Exigibilidade do Estudo de Impacto Ambiental. 9. Concessão do Licenciamento em
Contrariedade ao Estudo de Impacto Ambiental. 10. Possibilidade da Impugnação da
Concessão do Licenciamento que está de Acordo com o Estudo de Impacto Ambiental. 11. O Problema da Incerteza Científica quanto ao Risco Ambiental - a Questão do
Risco do Desenvolvimento. 12. A Importância do Princípio da Precaução diante do
Risco do Desenvolvimento. 13. O Caso Exemplar dos Transgênicos. 14. A Responsabilidade pelo Dano como Mecanismo de Gerenciamento dos Riscos e dos Benefícios
diante do Direito Ambiental. 15. As Ações Inibitória e de Remoção do Ilícito à Luz do
Direito Ambiental. 16. Bibliografia.
1. O Direito ao Meio Ambiente Sadio como Direito Fundamental
Como é sabido, nem todos os direitos fundamentais estão previstos no artigo 5o da
Constituição Federal. Há direitos que, por sua imprescindibilidade para a dignidade
da vida da pessoa humana, não precisam estar aí definidos. É o que acontece em relação ao direito ao meio ambiente sadio.
O caput do art. 225 da Constituição Federal afirma que o meio ambiente saudável é
“[...] essencial à sadia qualidade de vida” e, assim, que “[...] todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo”. Por esse motivo,
ressalta, em sua parte final, que o poder público e a coletividade têm o “dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Ora, isso é suficiente para
qualificá-lo como direito fundamental.
Se o direito ao meio ambiente constitui direito fundamental, resta saber como esse
direito deve se enquadrar diante das funções dos direitos fundamentais. O direito ambiental obviamente se impõe contra o Estado, que fica impedido de violá-lo. Porém,
é claro que isso não basta. A efetividade do direito ambiental depende de prestações
do poder público para a proteção e a prevenção do bem ambiental. Essas prestações
podem ter por objeto um simples fazer do poder público, sem qualquer repercussão
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perante terceiros, ou se constituírem em normas e atividades que têm por meta proteger o meio ambiente contra terceiros. Além disso, porque o poder público deve
ser controlado pela sociedade – que, como visto, tem o “[...] dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações” – o direito ambiental não pode se
desligar do direito à participação, ou melhor, do dever de o Estado criar condutos
para a participação da sociedade na gestão do poder, o que acontece, por exemplo,
quando se pensa na ação popular e nas ações coletivas.
2. O Art. 225 da Constituição Federal considerado como Norma Estruturante do
Direito Fundamental ao Meio Ambiente
Segundo o art. 225, §1o, da Constituição Federal, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente, incumbe ao poder público:
I) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e
prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético;
III) definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos,
sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de
lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade
dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade;
V) controlar a produção, a comercialização e o emprego de
técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio
ambiente;
VII) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem
a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Como se vê, embora todas essas normas tenham o poder público como destinatário,
para algumas a prestação pode se exaurir em ato estatal e, para outras, objetiva-se,
com a prestação estatal, impedir ato de particular.
Note-se, por exemplo, que o dever de controlar a produção, a comercialização e o
emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225, §1o, V, CF), assim como o dever de proteger
a fauna e a flora (art. 225, §1o, VII, CF), depende de prestações normativas e fáticas
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dirigidas contra os particulares. No caso da exigência do estudo de impacto ambiental, previsto no art. 225, §1o, IV, da Constituição Federal, cabe ao legislador definir
o que é “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do
meio ambiente”, e à administração pública exigir esse “estudo”, lembrando-se que a
enumeração das obras e atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente, realizada pelo art. 2o da Resolução n.º 001/86 do Conama,
é meramente exemplificativa (como não poderia deixar de ser)1, e que assim o administrador tem o dever de, diante do caso concreto, analisar o impacto da obra ou da
atividade para a qual se pede o licenciamento.2
A razão dessa distinção decorre do fato de que, quando é necessária a imposição de
norma ou de atividade administrativa que exija um ato do particular, o que deve ser
analisado, à luz do direito fundamental ao meio ambiente, é a repercussão do ato do
poder público sobre o particular. Ao contrário, quando a realização da prestação se
exaure em um ato do próprio poder público, sem recair sobre o particular, somente
poderá ser analisado, com base no direito fundamental, o ato devido pelo Estado.
3. A Atuação das Normas de Proteção que Objetivam um Fazer do Particular
Se é inegável que o meio ambiente depende de normas de direito material de proteção, é preciso frisar que essas normas impõem condutas negativas (proibição de
construção em certo local) ou positivas (obrigação da adoção de determinada medida
de prevenção).
Quando uma dessas normas é inobservada, o processo civil assume a responsabilidade
de atuá-las. Nessa linha, o juiz deverá impor um não-fazer ou um fazer, conforme a
norma de direito material preveja uma omissão ou uma ação. Contudo, alguém poderia imaginar que a função preventiva do processo civil se resumiria à imposição do
não-fazer. Essa visão, como é óbvio, reflete a época em que não se pensava em normas
impositivas de condutas positivas destinadas a evitar a violação dos direitos.
Entretanto, a norma de direito material não perde a sua natureza no caso em que a
jurisdição é acionada para obrigar o particular a atendê-la. Ora, no caso de norma
destinada à proteção, não importa o conteúdo do que deve ser feito pelo particular
– ou seja, se a conduta exigida é positiva ou negativa. Ocorrendo violação de qualquer
dessas normas, a atuação da jurisdição – na hipótese de reconhecimento da violação
– será de realização do desejo preventivo da norma violada, pouco importando se ela
impõe um não-fazer ou um fazer.3
Ver Silva (1997, p. 199) e Machado (2003, p. 135).
Como já dissemos, ao tratar desse assunto no livro “Tutela Inibitória”, há violação de legalidade na hipótese em que o
órgão licenciador do meio ambiente dispensa o estudo de impacto ambiental perante obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente, ainda que não conste no rol do art. 2.º da Resolução 001/86 do
Conama (MARINONI, 2003, p. 99).
3
Não é suficiente a edição da norma, sendo imprescindível torná-la efetiva. Por esse motivo, quando ela se dirige diretamente contra o particular, defere-se legitimidade coletiva (p. ex., ao Ministério Público) à ação judicial para que o particular a observe. Aí será prestada tutela preventiva, não importando se a norma impõe um não-fazer ou um fazer.
1
2
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Dizer que o processo civil, em um caso como esse, apenas obriga a observância de
um dever de fazer significa retirar da norma que impõe a prestação de fazer todo o
seu conteúdo valorativo. Ou seja, transformar as normas que exigem um fazer do particular em simples tutela jurisdicional dos deveres de fazer é, para se utilizar poucas
palavras, neutralizar o direito material – ou dissolver os diferentes valores que estão
nas normas.
Uma norma que impõe um fazer, para evitar a violação do meio ambiente, tem óbvio
fim preventivo. Não é possível esquecer-se do objetivo da norma de direito material
no momento em que a jurisdição é chamada a atuar, sob pena de o processo deixar
de cumprir sua função instrumental. Percebe-se que uma norma voltada à prevenção
do meio ambiente não pode ser tratada como uma simples norma que exige um fazer,
pois se assim acontecer o próprio juiz ficará impossibilitado de compreender a situação concreta. Note-se, por exemplo, que a tutela antecipatória deve ser pensada de
modo particular diante da necessidade de atuação de norma de caráter preventivo.
Tudo isso, aliás, é bastante claro aos estudiosos do direito ambiental (MACHADO,
2003). Afirma-se, com base nas convenções internacionais de proteção ao meio ambiente, que as medidas de prevenção ou de precaução não podem ser postergadas
(assim, por exemplo, a Declaração do Rio de Janeiro, de 1992). Não podem ser postergadas quando previstas em lei, quando impostas em acordos administrativos ou
realizados com o Ministério Público e, como é óbvio, quando decorrentes de decisões
judiciais. É por isso que, no caso desses acordos, o adiamento das medidas de precaução é visto com muito rigor. Como ressalta Machado (2003, p. 67), “[...] a necessidade
do adiamento das medidas de precaução em acordos administrativos ou em acordos
efetuados pelo Ministério Público deve ser exaustivamente provada apelo órgão público ambiental ou pelo próprio Ministério Público”. Na dúvida, adverte esse autor,
“[...] opta-se pela solução que proteja imediatamente o ser humano e conserve o meio
ambiente”.
Desse modo, no caso de afirmação de violação de norma que impõe ao particular a
adoção de medida de prevenção ou de precaução, o juiz, porque tem o dever de se
comportar conforme o desejo do direito material, não pode esquecer-se dos princípios
que lhe são próprios, deixando de observar os princípios da prevenção e da precaução,
e, especificamente no que diz respeito à interpretação da situação concreta, os princípios do in dubio pro natura e do in dubio pro salute. Eis o motivo da impossibilidade
de se pensar a norma dirigida à prevenção como simples norma que impõe um fazer.
4. Normas de Proteção que Exigem Controle ou Fiscalização da Administração
Quando o poder público edita uma norma de proteção, é necessário o controle ou a
fiscalização estatal; é claro, portanto, que o dever do Estado não pára na realização da
norma. Com efeito, ao lado de uma norma de proteção, pode ser necessária a atuação
concreta da administração pública. Nesse caso, havendo omissão da administração, a
ação deverá ser proposta contra o Estado, pois aí o ilícito omisso é estatal.
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Nessa situação – é importante que se esclareça – o Estado cumpriu apenas em parte o
seu dever de proteção, deixando de atuar concretamente para a efetivação da norma.
Assim, nessa perspectiva, a omissão é do Estado, e não do particular.
Porém, diante de uma norma que requer atuação da administração para ser observada, é comum que, diante da omissão estatal, o particular esteja agindo sem lhe dar
cumprimento. Nessa situação, a ação judicial deve se preocupar não apenas com a
omissão estatal, mas também em inibir a continuação do ilícito decorrente da violação
da norma.
5. Prestações Decorrentes do Dever de o Estado Gerenciar o Meio Ambiente
Maior dificuldade existe em relação às prestações que, da mesma forma que as anteriores, são devidas pelo Estado, mas não se destinam a atuar sobre os terceiros.
Mais precisamente: importa aqui a prestação estatal que não atua sobre os terceiros,
mas que é necessária, independentemente do comportamento do particular, para que
o Estado cumpra o seu dever de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras
gerações.
Se essa prestação é dirigida a evitar a violação do direito ao meio ambiente, é óbvio
que o seu objetivo é de dar-lhe prevenção. A grande diferença entre essa situação e
a da proteção normativa contra terceiros está em que, quando se pensa nessa última,
embora exista um dever de prestação estatal, essa prestação (a lei) incide sobre o
particular – ainda que possa ser considerada com base no direito fundamental –, ao
passo que no caso de prestação fática de proteção em que não importa a vontade
do particular, a única coisa a ser analisada é o fazer devido pelo próprio Estado, e
não uma norma, uma atividade administrativa, um acordo ou uma sentença. No caso
de prestação fática de proteção que não incide sobre o particular, o conteúdo dessa
prestação deve ser analisado a partir do direito fundamental, enquanto que, no caso
de proteção que repercute sobre o particular, o que deve ser verificado, com base no
direito fundamental, é o ato do poder público diante do sujeito privado.
Contudo, isso não quer dizer que a prestação fática destinada a assegurar a inviolabilidade do direito ambiental, quando não preocupada com um ato do particular,
não possa ser qualificada de preventiva. No caso em que a administração não atua,
omitindo-se em seu dever de adotar medidas fáticas para a inviolabilidade do direito
ambiental, deixa de lhe dar prevenção, negando sua própria natureza.
Como está escrito no art. 225 da Constituição Federal, o poder público tem o dever
de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Como
está claro, atribuiu-se ao poder público4 o dever de conservar a integridade do meio
ambiente, para que seja evitada a sua degradação.
4
E também à coletividade.
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Acontece que esse dever de conservação (ou de proteção) imposto ao poder público
não pode ser realizado apenas mediante normas e atividades administrativas concretas dirigidas a impedir que os sujeitos privados agridam o meio ambiente. O Estado
também tem o dever de realizar prestações fáticas necessárias a evitar a degradação
ambiental. Isso em decorrência do princípio da obrigatoriedade da intervenção do
Poder Público na conservação do meio ambiente – hoje posto em várias convenções
internacionais voltadas à proteção ambiental. Os limites e as condições dessa intervenção ou atuação, quando definidos pelo direito, geram um evidente direito de se
exigirem do Estado tais prestações fáticas.
É assim, por exemplo, em relação ao art. 208 da Constituição do Estado de São Paulo,
que estabelece o dever de o poder público tratar dos esgotos urbanos ou industriais.
Tal prestação decorre da necessidade de se conservar o meio ambiente, impedindo a
poluição dos rios. O não-tratamento dos esgotos faz com que, dia após dia, os rios
sejam poluídos. Ou seja, o não-cumprimento da prestação, no caso, permite a poluição
ambiental. Note-se que essa prestação não se destina à recuperação ou a recomposição ambiental, mas sim a evitar a poluição, de modo que a natureza preventiva da
tutela jurisdicional que a ela se refere é pouco mais do que evidente.
Mas, por que é importante frisar a natureza preventiva dessa tutela jurisdicional? Em
primeiro lugar, porque a compreensão da natureza preventiva da prestação é fundamental para a formação de um juízo adequado. Em segundo lugar, pelo motivo de que
a não-constatação da natureza preventiva da prestação impede a percepção da função
que a tutela jurisdicional (inclusive a antecipatória) pode assumir em relação a ela.
Contudo, o que mais importa é que uma prestação do poder público, quando imprescindível para evitar a violação de um direito expressamente afirmado pela Constituição Federal como inviolável, obviamente não pode ser negada sob o argumento de
indisponibilidade orçamentária. Ora, se diante de um direito definido como inviolável
pela Constituição Federal, a lei determina a necessidade de uma prestação estatal, é
evidente que o poder público não pode negá-la, ou mesmo adiá-la ou postergá-la. As
alegações de conveniência e oportunidade, aqui, são pouco mais do que descabidas.
Por outro lado, a mera alegação de indisponibilidade orçamentária não pode servir
para obstaculizar a exigibilidade da prestação, sob pena de se admitir que o poder
público pode entender que não deve dispor de dinheiro para evitar a degradação de um
direito dito inviolável pela própria Constituição Federal.5
6. A Questão do Risco Ambiental
O risco é algo ineliminável na sociedade contemporânea e, por conseqüência, assim
deve ser compreendido especialmente diante do direito ambiental. Por isso, ao invés
É no mesmo sentido a conclusão de Mirra (1995, p. 56): “Nunca é demais repetir que existe, na matéria ora em exame, um
dever de o Poder Público agir para alcançar o fim previsto na norma, ação esta precipuamente preventiva. E tal atividade
não pode ser postergada por razões de oportunidade e conveniência nem mesmo sob a alegação de contingências de ordem
financeira e orçamentária”.
5
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de se pretender eliminá-lo através de um desejo incapaz de ser atingido, a única saída
possível é encontrar as formas adequadas para o seu gerenciamento.
Deve-se partir da idéia de que o desenvolvimento traz, a um só tempo, benefícios
e riscos à coletividade. Diante da periculosidade ou nocividade de uma atividade, a
norma deve proibi-la, ou admiti-la apenas em determinados locais. Mas, nos casos
em que o risco pode ser reduzido a uma situação de suportabilidade, a norma deve
estabelecer as medidas preventivas que devem ser adotadas. É o que ocorre diante de
atividades que, embora potencialmente perigosas, podem ser aceitas quando tomadas
determinadas medidas de prevenção. Assim, por exemplo, as normas que exigem a
adoção de medidas preventivas por parte do empresário que deseja instalar um posto
de gasolina. Como é óbvio, se um posto de gasolina colocasse em risco a vida das
pessoas, ele não poderia ser instalado. Porém, a observância das regras técnicas destinadas à prevenção torna possível a sua instalação ainda que em locais centrais das
cidades.
Observe-se, contudo, que o fato de uma atividade não estar definida, em norma infraconstitucional, como proibida não a torna, somente por isso, lícita. Tal não seria
possível pelo simples motivo de que a evolução da sociedade sempre estará apta a
apresentar novas situações de risco intolerável, que então devem ser obstaculizadas
com base no próprio art. 225 da Constituição Federal. Nesses casos, sempre deverá ser
tomado em conta o direito fundamental ao meio ambiente, isto é, a necessidade de sua
proteção e prevenção para a digna sobrevivência da pessoa humana, mas sem que seja
esquecida a idéia de que a tutela do bem ambiental sempre deverá ser feita através do
meio menos gravoso ao empresário, especialmente quando da atividade dependerem
vários empregos.
Isso significa que, se for possível manter a atividade, eliminando-se o perigo ao meio
ambiente, devem ser determinadas medidas de prevenção capazes de extirpá-lo. Não
há como deixar de preferir a medida de prevenção em relação à suspensão da atividade, uma vez que, se duas imposições são igualmente idôneas para dar proteção ao
meio ambiente, deve ser determinada, por uma questão de racionalidade, aquela que
elimine o perigo sem retirar o benefício dado ao empresário e à coletividade.
Porém, nesse ponto deve ser feito um esclarecimento. Quando se fala em eliminar
o perigo, imagina-se aquele que é inerente a uma atividade. Por exemplo, o perigo
decorrente da venda de combustível deve ser eliminado através da adoção de medidas
preventivas estabelecidas em normas técnicas. Não se está aludindo ao perigo de dano
que pode decorrer, acidentalmente, de uma atividade, ou que pode ser o resultado de
uma atividade não consentida (ou que não pode ser consentida) ou da não-observância de uma medida de prevenção. Nessa última hipótese, não basta considerar o perigo
da atividade, mas sim o perigo que, diante de uma situação concreta, ameaça o meio
ambiente – resultado de um acidente, do exercício de uma atividade proibida (ou que
deve ser inibida) ou da não-observância do dever de adoção de certa medida. Nesse
sentido, é possível dizer que essa última espécie de perigo, por não ser inerente a uma
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atividade, deve ser pensada como o perigo do caso concreto.
Porém, e voltando ao perigo decorrente de uma atividade não considerada por lei
– que nada tem a ver, como demonstrado, com o perigo do caso concreto –, cabe frisar que, nessa situação, não há outra saída senão dar à administração a possibilidade
de controle do risco. Nesses casos, com efeito, o administrador – ou o juiz, quando
necessário – deverá levar em conta o direito fundamental ao meio ambiente, tal qual
delineado no art. 225 da Constituição Federal.
7. A Importância da Distinção entre Regras e Princípios para a Efetividade da
Tutela do Meio Ambiente
Considerando-se a natureza do direito ambiental e, particularmente, a impossibilidade
de se dar conta, através das regras, da necessidade de sua preservação e proteção,
torna-se relevante, agora, a distinção entre princípio e regra.
Para os direitos fundamentais, não bastam apenas princípios ou somente regras. Por
isso, é possível pensar na norma como gênero e nos princípios e nas regras como espécies. Como já dito, da norma do art. 225 da Constituição Federal decorre o direito
fundamental ao meio ambiente sadio, do qual são conseqüências os princípios da
preventividade, da precaução, do poluidor-pagador, da informação e da participação.
Acontece que o legislador, através da norma do art. 225, deve responder aos deveres
que foram impostos ao Poder Público e, para tanto, editar regras de proteção, de procedimento e de organização voltadas à efetividade desse direito fundamental.
As regras devem ser pensadas à luz dos princípios, pois devem concretizá-los. Os
princípios constituem os fundamentos das regras, expressando os valores que devem
servir como elos e bases para sua compreensão e interpretação. Porém, as regras de
proteção, como já foi dito, são naturalmente limitadas, uma vez que não podem predizer, em determinado momento histórico, as situações que configurarão atos contrários
ao meio ambiente sadio ou quais serão as medidas de prevenção ou precaução adequadas às novas situações concretas. Diante do acelerado desenvolvimento da tecnologia
e da sociedade, não há como a regra se adiantar aos fatos e, portanto, não há como
imaginar sua suficiência à tutela do meio ambiente.
É por isso que o art. 225, §1o, IV, da Constituição Federal obriga a administração pública a “[...] exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto
ambiental, a que se dará publicidade”.
A função preventiva do estudo de impacto ambiental é evidente, destinando-se a permitir a aferição, por parte do poder público, do impacto ambiental de determinadas
obras ou atividades. Isso para que se verifique se determinada obra ou atividade pode
ser licenciada, ou mesmo se são necessárias determinadas medidas de prevenção ou
de precaução para o licenciamento.
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Porém, na definição de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, não é possível deixar de se atentar para o direito
fundamental ao meio ambiente sadio e, por conseqüência lógica, aos princípios que
lhe dão conteúdo. Vale dizer: o conceito de significativa degradação ambiental deve
ser preenchido à luz dos princípios da preventividade, da precaução e do poluidorpagador.
Lembre-se que as regras obedecem à lógica da validade, pois são válidas ou não,
submetendo-se aos critérios cronológicos da hierarquia ou da especialidade, enquanto
que, entre os princípios, ao invés de conflito, pode existir colisão, já que, diante deles,
não há que falar em um princípio válido e outro inválido6. Dois princípios podem colidir e, como entre eles não existe hierarquia, a solução somente pode ser encontrada
a partir das circunstâncias do caso concreto, através da regra da proporcionalidade
(ALEXY, 2002).
8. Sobre a Exigibilidade do Estudo de Impacto Ambiental
O procedimento de licenciamento ambiental é complexo, apresentando três tipos de
licença: I) Licença Prévia (LP); II) Licença de Instalação (LI); e III) Licença de Operação (LO). Nesse procedimento, o estudo de impacto ambiental assume a figura de
requisito procedimental e, assim, de pressuposto de validade do ato administrativo de
licenciamento.7
Como visto, a Resolução n.º 001/86 do Conama, no seu art. 2o, enumera as obras e
atividades consideradas capazes de causar significativa degradação do meio ambiente,
embora essa enumeração, como também já dito, seja meramente exemplificativa. De
qualquer maneira, considerado o teor do art. 225, 1o, IV, que diz que o poder público
deve exigir o estudo de impacto ambiental, é fácil concluir que não existe nenhuma
discricionariedade para a administração pública quanto a exigir ou não esse estudo.
Na verdade, sempre que o administrador se encontrar diante de pedido de licença
para atividade ou obra “[..] potencialmente causadora de significativa degradação do
meio ambiente”, não haverá espaço para nenhuma subjetividade de sua parte quanto a
exigir ou não o estudo (MARINONI, 2003, 96-99), pois essa atividade administrativa
tem conteúdo vinculado.8
Se a norma constitucional regula de forma vinculada o conteúdo da atividade da administração, resta discricionariedade ao administrador quanto ao motivo do ato administrativo. Deixe-se claro, porém, que não se trata de discrição quanto à escolha
Dworkin (1978, p. 70) afirma que as regras obedecem à lógica do tudo ou nada, enquanto que os princípios à do peso ou
da importância. Ver, ainda, Alexy (2002, p. 81); Queiroz (2002, p. 127); Espíndola (2002, p. 69); Barcellos (2002, p. 77).
Sobre o Direito como sistema de regras e princípios na obra de Dworkin, ver Souza Neto (2002, p. 220). A respeito dos
princípios como supernormas de Direito, ver Britto (2003, p. 178).
7
Sobre o tema, ver Freitas (1993, p. 56-64).
8
Ver Mello (1996, p. 220-221).
6
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do motivo do ato administrativo, mas apenas e tão-somente discrição quanto à identificação desse pressuposto fático. A discricionariedade, no caso, é decorrência do
caráter indeterminado do conceito “[...] obra ou atividade potencialmente causadora
de significativa degradação do meio ambiente” (MELLO, 1996, p. 559)9. Esse conceito sempre supõe a existência de uma zona de certeza positiva – na qual certamente
se dá o conceito – e de uma zona de certeza negativa – na qual certamente não se dá
o conceito (MORENO, 1976). Nessas duas zonas de certeza, não se pode pensar em
existência de discricionariedade, pois caso se dê o conceito “[...] obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente”, a administração terá o dever de exigir o estudo de impacto ambiental, enquanto que na outra
hipótese esse dever inexistirá. Será apenas naquela zona intermédia entre as duas
zonas de certeza, o chamado halo do conceito ou zona de penumbra, que existirá
discricionariedade. Como diz Mello (1996, p. 560), “[...] a discricionariedade fica,
então, acantonada nas regiões em que a dúvida sobre a extensão do conceito ou sobre
o alcance da vontade legal é ineliminável”.
Mas, como é evidente, essa discricionariedade somente existirá em relação às atividades e obras não expressamente contempladas no art. 2o da Resolução n.º 001/86 do
Conama. Presente uma das situações que, segundo essa regra, configura “[...] obra ou
atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente”,
não há como a administração deixar de exigir o estudo. É apenas quando o administrador tiver, diante de certo caso concreto, que definir se um empreendimento é potencialmente causador de “[...] significativa degradação do meio ambiente” que poderá
haver discricionariedade. Mas, como já explicado, essa discricionariedade somente
existirá na chamada zona intermédia entre as duas zonas de certeza, isto é, no local
que está fora daquele em que certamente se dá o conceito (significativa degradação do
meio ambiente) e daquele em que esse conceito certamente não se dá.
Mello (1996) reconhece a existência de discricionariedade administrativa nos supostos normativos vazados através de
conceitos indeterminados, contrariando a orientação da moderna doutrina alemã. Para essa corrente, à qual adere García
de Enterría (1996), a inicial indeterminação do conceito, existente ao nível da norma, sempre se dissiparia no momento de
sua aplicação ao caso concreto, pois se tais conceitos referem-se a realidades concretas, quando de sua aplicação o conceito
ou se verifica ou não se verifica. Tertium non datur, diz Garcia de Enterría, que sustenta que a aplicação dos conceitos
jurídicos indeterminados permite somente uma unidade de solução justa em cada caso. Esse ponto seria, enfim, o ponto de
discrímen dos conceitos indeterminados com a discricionariedade, pois essa última consistiria numa liberdade de eleição
entre várias alternativas, todas elas igualmente. Esse ponto de vista, não obstante a respeitabilidade intelectual de seus
defensores, não parece merecer os melhores encômios. De fato, como ensina Mello (1993, p. 22) “[...] seria excessivo considerar que as expressões legais que os designam (os conceitos imprecisos), ao serem confrontadas com o caso concreto,
ganham, em todo e qualquer caso, densidade suficiente para autorizar a conclusão de que se dissipam por inteiro as dúvidas
sobre a aplicabilidade ou não do conceito por elas recoberto. Algumas vezes isto ocorrerá. Outras não”. Daí concluir que,
“[...] se em determinada situação real o administrador reputar, em entendimento razoável (isto é, comportado pela situação, ainda que outra opinião divergente fosse igualmente sustentável), que se lhe aplica o conceito normativo vago e agir
nessa conformidade, não se poderá dizer que violou a lei, que transgrediu o direito. E se não violou a lei, se não lhe traiu
a finalidade, é claro que terá procedido na conformidade do direito. Em assim sendo, evidentemente terá procedido dentro
de uma liberdade intelectiva que, in concreto, o direito lhe facultava” (MELLO, 1993, p. 23), que outra coisa não é senão a
discricionariedade administrativa. É preciso que reste claro, contudo, que a pura e simples utilização de conceitos indeterminados pela lei não autoriza que, aprioristicamente, afirme-se existir uma hipótese de discricionariedade. Na verdade, a
presença de conceitos indeterminados nas normas que regulam a atuação da administração significa apenas a existência de
uma discricionariedade que pode ser dita potencial, latente. Uma coisa é a discricionariedade abstratamente vista, no nível
da norma; outra, a discricionariedade no caso concreto.
9
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Assim, caso se considere o conceito “[...] obra ou atividade potencialmente causadora
de significativa degradação do meio ambiente”, a administração deverá exigir o estudo de impacto ambiental. Se o órgão licenciador do meio ambiente dispensar o estudo
de impacto ambiental perante obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, esteja a obra ou a atividade contida ou não10 no
rol do art. 2º da Resolução n.º 001/86 do Conama, ocorrerá violação de legalidade.
Frise-se, embora isso deva ser óbvio, que o estudo de impacto ambiental não pode ser
substituído por nenhuma outra pesquisa. Não importa saber se determinado colegiado
tem, ou não, capacidade técnica para emitir um laudo sobre o assunto. A obrigatoriedade do estudo de impacto ambiental, embora também considere a capacidade técnica, não se funda apenas nisso.
Se o Estado tem o dever de proteção, não como há como dele se retirar o poder de
licenciamento. Mas a Constituição Federal foi além, obrigando o Estado – para bem
cumprir o seu dever de proteção – a exigir o estudo de impacto ambiental (art. 225,
§1o, IV, CF). Além disso, a norma constitucional, ao obrigar o Estado a exigir o estudo
de impacto ambiental, ressaltou a necessidade de sua publicidade. Isso em razão de
que existe plena consciência de que a participação da coletividade é indispensável
para a legitimidade do exercício do poder.
Por isso, não há como pensar que dar publicidade ao estudo é simplesmente colocá-lo
à disposição do público. Caso se desejasse apenas garantir essa mínima idéia de publicidade, bastaria se dizer que o estudo não pode ser secreto – o que, aliás, nem precisaria ser dito. O que se pretende, justamente em razão de que uma decisão relativa ao
meio ambiente não pode prescindir da possibilidade de participação, é efetivamente
abrir à coletividade a possibilidade de discutir se uma obra ou atividade deve, ou não,
ser proibida. Assim explica Paulo Affonso Leme Machado:
[...] a possibilidade de a população comentar o estudo de impacto ambiental foi – desde a concepção deste instrumento de
prevenção do dano ambiental – um de seus mais importantes
aspectos. Pode não ocorrer efetiva participação do público
pela ausência de comentários; contudo, não se concebe estudo
de impacto ambiental sem a possibilidade de serem emitidas
opiniões por pessoas e entidades que não sejam o proponente
do projeto, a equipe multidisciplinar e a Administração. (MACHADO, 2003, p. 233)
Registre-se, ainda, que a competência da Comissão Técnica Nacional de Biosseguran10
“A Resolução 1/86-Conama merece apoio ao apontar diversas atividades para cujo licenciamento se fará necessária
a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental. E o elogio estende-se pelo fato de essas atividades serem mencionadas
exemplificativamente, pois o art. 2o, caput, da resolução mencionada fala em ‘atividades modificadoras do meio ambiente,
tais como...’. A expressão ‘tais como’ merece ser logicamente entendida no sentido de que não só as atividades constantes
da lista deverão obrigatoriamente ser analisadas pelo Estudo de Impacto Ambiental, mas outras poderão ser acrescentadas
à lista. A expressão ‘tais como’ não pode ser lida, contudo, como uma sugestão para a Administração Pública cumprir se
quiser. Seria eliminar-se o verbo ‘exigir’, que começa o inc. IV do § 1o do art. 225 da CF.” (MACHADO, 2003, p. 215)
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ça - CTNBio (Lei n. 8974/95, art. 1o, D, IV), para proceder à avaliação “do risco, caso
a caso, relativamente a atividades e projetos que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM), a ela encaminhados”, obviamente não dispensa o estudo de
impacto ambiental, em caso de probabilidade de significativa degradação ambiental.
Diante do princípio da precaução, não há como não se exigir o estudo de impacto
ambiental quando há incerteza a respeito do risco. Como adverte Machado (2003, p.
954), “[...] os Conselheiros da CTNBio são responsáveis, civil, criminal e administrativamente, para decidir, com a devida motivação, se o grau de risco é significativo
ou não. Um dos critérios que deve ser levado em conta é o princípio da precaução.
Havendo dúvida da dimensão ou da qualidade do perigo ou do risco, deve-se optar
pelo estudo prévio de impacto ambiental”. Saliente-se, de todo modo, que o parecer
conclusivo da CTNBio não dispensa a autorização dos órgãos de fiscalização dos
Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Abastecimento e do Meio Ambiente, no
campo de suas respectivas competências – que podem decidir de forma contrária a
esse parecer –, bem como o licenciamento ambiental (Lei n.º 8974/95, art. 7o) (MACHADO, 2003).
Assim, nos casos de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, o Estado não pode deixar de exigir o estudo de impacto
ambiental, não só em razão do seu dever de dar proteção ao meio ambiente, mas também porque esse estudo – vale dizer, a definição a respeito do impacto ambiental de
determinado empreendimento – somente tem legitimidade quando tomada pelo poder
público mediante a participação da sociedade. Portanto, a dispensa do estudo, ou a
infundada e absurda tentativa de sua substituição, configura inescondível ilegalidade.
Nessa hipótese, estando, por exemplo, uma obra ou atividade para iniciar, cabe ação
inibitória cumulada com a ação de desconstituição do ato administrativo. E, se essa
atividade ou obra já estiver iniciada, a ação inibitória, também cumulada à ação desconstitutiva, deverá ser utilizada para impedir a continuação das atividades.
Sublinhe-se que Machado (2003, p. 213), ao tratar da questão, lembra que na França a
ausência do estudo de impacto ambiental “[...] obriga o juiz à concessão da suspensão
da decisão administrativa atacada em juízo”. Afirma que “[...] a ausência desse estudo
deve ser constatada no procedimento de urgência”, e que a medida liminar não está no
“[...] campo da discricionariedade judicial”.
No Brasil não há que se pensar em ação cautelar, mas sim em ação inibitória, com
pedido de tutela antecipada, cumulada com ação desconstitutiva. Porém, a procedência dessas ações, como é óbvio, não gera apenas a suspensão do ato de licenciamento,
mas sim a sua desconstituição e a proibição da realização da obra ou da atividade.
Caso o empreendedor deseje realizar uma ou outra, deverá submeter o estudo de impacto ambiental ao administrador, requerendo a instauração de novo procedimento de
licenciamento.
104
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
9. Concessão do Licenciamento em Contrariedade ao Estudo de Impacto Ambiental
O estudo de impacto ambiental não vincula a administração, podendo o administrador conceder, ou não, o licenciamento, ainda que o estudo tenha concluído de maneira
contrária.
O estudo de impacto ambiental é um requisito procedimental do ato administrativo de
licenciamento, tendo grande relevância para a sua motivação, pois contém as razões
que devem ser levadas em conta pelo administrador no momento do licenciamento
(MARINONI, 2003). Por isso, se o administrador divergir da conclusão do estudo
de impacto ambiental, assume o ônus de demonstrar os fundamentos que o levaram a
optar por solução diversa.
Frise-se que o administrador pode contrariar a conclusão do estudo de impacto ambiental, mas deve motivar seu ato de licenciamento com fundamentos que sejam aptos
a evidenciar o equívoco do resultado do estudo. A motivação do ato de licenciamento
não pode esquecer o objetivo do próprio procedimento de licenciamento, bem como
a natureza do direito ambiental, ignorando que a atividade do administrador, no caso,
tem por escopo proteger o meio ambiente, já que, se isso acontecer, o ato administrativo concessivo da licença ficará marcado por vício de desvio de poder.11
Assim, se uma obra ou atividade está para iniciar, ou já foi iniciada, com base em ato
administrativo acoimado de vício de poder, deverá ser proposta ação inibitória cumulada com ação para a desconstituição do ato administrativo.
10. Possibilidade da Impugnação da Concessão do Licenciamento que está de
Acordo com o Estudo de Impacto Ambiental
Apesar do que aqui se afirmou, o fato de o licenciamento se fundar nas razões do estudo de impacto ambiental não torna o ato administrativo imune ao controle judicial.
A Resolução n.º 001/86 do Conama estabelece:
Art. 5º. O estudo de impacto ambiental, além de atender à legislação, em especial os princípios e objetivos expressos na Lei
de Política Nacional do Meio Ambiente, obedecerá às seguintes
diretrizes gerais:
I – contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização de projeto, confrontando-as com a hipótese de não execuA lição de García de Enterría (1996, p. 530) é bastante esclarecedora: “Al configurar la potestad, la norma, de manera
explícita o implícita, le asigna un fin específico, que por de pronto es siempre un fin público, pero que se matiza significativamente en cada uno de los sectores de actividad o institucionales como un fin específico. El acto administrativo, en
cuanto es ejercicio de una potestad, debe servir necessariamente a esse fin típico, e incurrirá en vicio legal si se aparta de
él o pretende servir una finalidad distinta aun cuando se trate de outra finalidad pública”.
11
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ção do projeto;
II – identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gerados nas fases de implantação e operação da atividade;
III – definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente afetada pelos impactos, denominada área de influência
do projeto, considerando, em todos os casos, a bacia hidrográfica na qual se localiza;
IV – considerar os planos e programas governamentais, propostos e em implantação na área de influência do projeto, e sua
compatibilidade. Parágrafo único. Ao determinar a execução do
estudo de impacto ambiental, o órgão estadual competente, ou
o IBAMA ou, quando couber, o Município, fixará as diretrizes
adicionais que, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas necessárias, inclusive os
prazos para conclusão e análise dos estudos.
Art. 6º. O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas:
I – diagnóstico ambiental da área de influência do projeto [com]
completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação
ambiental da área, antes da implantação do projeto, considerando:
a)o meio físico – o subsolo, as águas, o ar e o clima, destacando
os recursos minerais, a topografia, os tipos e aptidões do solo,
os corpos d’água, o regime hidrológico, as correntes marinhas,
as correntes atmosféricas;
b) o meio biológico e os ecossistemas naturais – a fauna e a flora, destacando as espécies indicadoras da qualidade ambiental,
de valor científico e econômico, raras e ameaçadas de extinção
e as áreas de preservação permanente;
c) o meio sócio-econômico – o uso e ocupação do solo, os usos
da água e a sócio-economia, destacando os sítios e monumentos
arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações
de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais
e a potencial utilização futura desses recursos;
II – análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes,
discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e
adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade;
suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos
ônus e benefícios sociais;
III – definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos,
entre elas os equipamentos de controle e sistemas de tratamento
de despejos, avaliando a eficiência de cada uma delas;
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
IV – elaboração do programa de acompanhamento e monitoramento (os impactos positivos e negativos), indicando os fatores
e parâmetros a serem considerados. Parágrafo único. Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental o órgão estadual competente, ou o IBAMA ou, quando couber, o Município
fornecerá as instruções adicionais que se fizerem necessárias,
pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da
área.
Assim, se um desses pontos for ignorado ou inadequadamente explicitado no Estudo
de Impacto Ambiental, existirá um estudo que não se presta a formar a motivação do
ato administrativo de licenciamento. Ora, um estudo que não pode ser visto como
íntegro para o controle do risco ambiental evidentemente não pode servir de base para
a motivação do licenciamento.
Note-se que o mesmo ocorrerá se o estudo apresentar contradições diante das análises
efetuadas, e essas forem reafirmadas ou reproduzidas no ato administrativo de licenciamento. A reprodução das contradições do estudo significa que a motivação do ato
administrativo de licenciamento não pode ser aceita.
Além disso, o art. 19 da Resolução n.º 237/97 do Conama determina:
[...] o órgão ambiental competente, mediante decisão motivada,
poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle e
adequação, suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer:
I – violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou
normas legais;
II – omissão ou falsa descrição de informações relevantes que
subsidiaram a expedição da licença;
III – superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.
Como está claro, o próprio administrador pode modificar, suspender ou cancelar a
licença ambiental, nos casos de “[...] omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença”. Nessas hipóteses, a atuação do administrador, destinada a corrigir a sua ação anterior, deriva do seu dever de proteção. Se
é assim, havendo omissão ou falsidade de informações, é claro que o juiz pode anular
a licença e inibir a obra ou atividade, pois o dever de proteção não é, evidentemente,
apenas do administrador, mas sim do Estado e, dessa forma, também do juiz.
11. O Problema da Incerteza Científica quanto ao Risco Ambiental – a Questão
do Risco do Desenvolvimento
Porém, o grande problema da definição de risco intolerável advém do fato de que a
ciência, diante da constante geração de novas tecnologias, freqüentemente não tem
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
condições de estabelecer os seus riscos. Ou melhor: quando a ciência não pode, em
determinado momento histórico, precisar se determinada atividade pode gerar danos
ao meio ambiente, não há motivo para o meio ambiente suportar o risco quando não
há outro bem, essencial à vida do homem, que permita acreditar que esse risco necessariamente deva ser enfrentado.
Nessa linha, não importa mais perguntar sobre o risco da atividade – pois este é
inegável –, mas sim se há necessidade de se correr o risco. Se não há motivo para
se correr o risco, e se ele não pode ser minimizado a partir da adoção de medidas de
precaução que possam torná-lo suportável, o exercício da atividade deve ser impedido. Porém, quando o risco puder ser minimizado de modo a se tornar suportável,
a administração deverá impor as medidas que necessariamente deverão ser adotadas
para que o exercício da atividade seja possível.
Advirta-se que o benefício econômico não pode prevalecer sobre o direito ambiental,
ou legitimar um risco de dano sério ao meio ambiente. A atividade econômica apenas
deve ser considerada no caso em que, através de certas medidas de precaução, o risco
possa se tornar suportável. Nessa hipótese é que deverá ser levada em conta a regra
da medida menos gravosa ou menos custosa. Ou seja, se existem duas medidas de
precaução igualmente adequadas e idôneas para tornar a atividade viável, não há
racionalidade em se exigir a adoção da mais gravosa ou da mais custosa.
12 A Importância do Princípio da Precaução diante do Risco do Desenvolvimento
Como dito, embora o risco ambiental seja algo que não possa ser eliminado, mas apenas gerenciado, há situações em que nem sequer se sabe qual o risco que determinada
atividade pode trazer ao meio ambiente.
É aí que entra em cena o princípio da precaução12. Esse princípio se relaciona às
hipóteses de incerteza científica quanto aos riscos de uma atividade. Foge, assim, da
tradicional idéia de que a restrição ou conformação da atividade empresarial somente
pode ocorrer no caso em que se pode aferir a probabilidade de um dano.
A probabilidade de dano deve merecer socorro em face de qualquer direito ameaçado,
e por isso tem vinculação com o princípio da preventividade, que assume particular
importância no direito ambiental, diante de sua natureza inviolável.
Assim, porque o princípio da preventividade sempre foi ligado à probabilidade de
dano, ou melhor, a um temor objetivo de dano que possa ser mensurado a partir de
uma situação concreta, é importante que se agregue algo mais.
É preciso evidenciar que, se o desenvolvimento de novas atividades e tecnologias não
12
Ver, no direito brasileiro, Morato (2002, p. 61); Derani (1997, p. 165); Rodrigues (2002, p. 149).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
pode ser obstaculizado, isso não significa que elas devam ser admitidas impunemente,
apenas porque a ciência não tenha a capacidade de elucidar, em determinado momento, quais são os seus reais riscos. Nessas situações, se o risco – que evidentemente
deve ser capaz de produzir dano grave – não pode ser suportado, a atividade obviamente deve ser proibida. No caso em que determinadas medidas podem minimizar o
risco, de forma a que ele possa ser tolerado, a administração deve impor as medidas
que necessariamente deverão ser tomadas para que o exercício da atividade seja consentido.
Pois bem: a legitimidade da proibição e da imposição de medidas de precaução, porque formuladas a partir da indefinição quanto aos riscos da atividade, funda-se no
princípio da precaução. Esse princípio encontra guarida na Declaração do Rio de
Janeiro, decorrente da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992, que assim preceitua: “De modo a proteger o meio
ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de
acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para
postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação
ambiental” (Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro). Também na Convenção
(Internacional) de Diversidade Biológica, de 1998, foi dito que, “[...] quando exista
ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou
minimizar esta ameaça”.13
13. O Caso Exemplar dos Transgênicos
Muito tem se discutido a respeito dos alimentos transgênicos e, especialmente, da soja
transgênica. Não existe ainda definição científica acerca da sua nocividade ao meio
ambiente. Porém, diante do seu baixo custo de cultivo, ela vem sendo preferida pelos
agricultores.
Entretanto, a discussão em torno da liberação do seu plantio e comercialização vem
sendo deturpada. Alguns afirmam que não há demonstração de que a soja transgênica
possa trazer prejuízos ao meio ambiente ou à saúde do consumidor, como se a sua
liberação não tivesse que considerar justamente o contrário, isto é, a prova da falta da
sua nocividade.
Quando não há definição científica acerca da nocividade de uma atividade, a sua liberação, considerado o já exposto princípio da precaução, somente pode ser admitida
13
Cf. Tessler (2003). Essa estudiosa também se refere à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança de Clima,
que afirma: “As partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar, as causas da mudança do
clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza
científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas
adotadas para enfrentar as mudanças do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios
mundiais ao menor custo possível”.
109
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
se absolutamente necessária para proteger outro bem fundamental, digno de tutela
diante do bem que será colocado sob risco – no caso, o meio ambiente e a saúde das
pessoas.
Portanto, o argumento de que o cultivo da soja transgênica é mais barato somente
pode se basear em uma das seguintes alternativas: I) ou é fruto da ingenuidade de
alguns, que se acostumaram com valores que colocam em primeiro lugar o dinheiro
e depois a dignidade da pessoa humana; II) ou então é resultado de estratégias bem
montadas, estabelecidas por setores que conscientemente desejam beneficiar o capital
em detrimento do meio ambiente e da saúde.
Note-se que não se está – e isso aqui obviamente não seria possível – afirmando que
a soja transgênica é nociva, mas sim que, diante da incerteza científica sobre a sua
nocividade, o princípio da precaução impõe a sua proibição.
Nem se diga que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) já emitiu
parecer favorável ao cultivo da soja transgênica, uma vez que, no caso de “[...] atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente”, não
basta a chamada “avaliação de risco”, de sua competência em razão do art. 1o, D-IV,
da Lei n.º 8.974/95. Em tal caso, não é possível deixar de exigir o estudo de impacto
ambiental. De qualquer forma, como o parecer da CTNBio não dispensa a autorização da parte dos órgãos de fiscalização dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do
Abastecimento e do Meio Ambiente – no campo de suas respectivas competências
– bem como o licenciamento ambiental (Lei n.º 8.974/95, art. 7o), não há como supor
que a CTNBio, que não tem poder para tanto, licenciou o cultivo da soja transgênica.
Já concluiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (1999):
[...] o uso de técnicas de engenharia genética na construção,
cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo,
liberação e descarte de organismo geneticamente modificado
depende (I) de autorização do poder público federal (Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente, da Agricultura e da Reforma
Agrária) e de (II) licenciamento pelo órgão ambiental competente (art. 7° da Lei Federal n.° 8.974/95 e art. 11 do Decreto
n.° 1.752/95).
[...] o parecer técnico conclusivo sobre registro, uso, transporte,
armazenamento, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado ou derivados, da
competência da CTNBio – órgão do Ministério da Ciência e da
Tecnologia – destina-se a instruir o pedido de autorização dirigido aos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e da Agricultura, não suprindo a exigência do licenciamento ambiental a
cargo da autoridade competente. Por isso, o parecer conclusivo
110
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
favorável da CTNBio não faculta o exercício de atividade relacionada com organismo geneticamente modificado (art.7°, III
e IV, da Lei Federal n.° 8.974/95 e art.2°, XII, do Decreto n.°
1.752/95, Lei n° 6.938/81 e Resolução 237/97 do Conama.
Nessa linha, o Tribunal Regional Federal da 1a Região (2001), através da sua 2a Turma, decidiu [...] que a liberação do plantio de soja geneticamente modificada não pode
prescindir do prévio estudo de impacto ambiental, repelindo a tese de que a CTNBio
poderia autorizar o plantio e a comercialização de soja transgênica sem a realização
desse estudo. Consta da ementa do julgado – que se tornou célebre na matéria – que:
[...] o art. 225 da CF erigiu o meio ambiente ecologicamente
equilibrado a ‘bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações’, incumbindo ao poder público, para assegurar
a efetividade desse direito, ‘exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto
ambiental, a que se dará publicidade.
14. A Responsabilidade pelo dano como Mecanismo de Gerenciamento dos Riscos e dos Benefícios diante do Direito Ambiental
Como já foi afirmado, se os riscos são inevitáveis diante do desenvolvimento da tecnologia e do direito ambiental, também é certo que eles trazem benefícios aos empresários, aos trabalhadores e à coletividade (MILLARÉ, 2000).
Por isso, os riscos, quando previsíveis, devem ser tratados pelo direito através da proibição do exercício de atividades, ainda que apenas em determinados locais, e da obrigação da observância de medidas preventivas. Quando imprevisíveis, diante da falta
de definição da ciência, o risco não pode ser admitido apenas em razão da necessidade
de desenvolvimento tecnológico. Quando esse risco puder ser eliminado através de
medidas de precaução, cabe ao empresário adotá-las e custeá-las14, frisando-se sempre
que, diante de dois meios igualmente idôneos para a proteção do meio ambiente, deve
ser preferido aquele que acarretar menor gravame ao empresário.
Porém, essa lógica não é suficiente para dar tratamento adequado à questão do risco.
O dano não é desejado, muito embora a sua produção, como é óbvio, não possa ser
eliminada pelo direito, pois a atividade, mesmo que permitida, pode trazer danos ao
meio ambiente, até mesmo em razão da observância inadequada das medidas de prevenção e precaução.
Quando um dano é resultado de atividade não permitida, ou ainda da falta de ob14
No que concerne às medidas de prevenção e precaução, o empresário, ao custeá-las, estará pagando para não poluir.
111
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
servância de medida de prevenção ou de precaução, é fácil concluir que aquele que
violou a norma deve responder pelo dano. Porém, maior dificuldade existe no caso em
que a atividade produziu um dano, ainda que tenha sido permitida ou mesmo que as
medidas de prevenção ou precaução tenham sido perfeitamente observadas. Lembrese que a liberação de uma atividade, ou sua admissão desde que adotadas medidas
de prevenção ou precaução, não elimina – nem poderia eliminar – a possibilidade de
danos. A questão é saber quem deve arcar com os danos em tais hipóteses.
A solução deve ser encontrada no princípio do poluidor-pagador15. Para tanto, deve
desde logo ser fixada a premissa de onde se deve partir: o raciocínio deve ser realizado na perspectiva da economia. Nessa perspectiva, sabe-se que a atividade produtiva
pode gerar efeitos secundários, que podem significar perdas ou benefícios que não
foram previamente considerados. Quando esses efeitos são sinônimos de prejuízos,
há o que se chama de externalidades negativas.16
Porém, as externalidades negativas devem ser vistas como custos da produção, já
que alguém estará sendo por elas prejudicado. A poluição, considerada como efeito
secundário da atividade empresarial, constitui uma espécie de externalidade negativa,
cujo custo deve ser suportado pelo empresário, que é quem aufere lucros através da
atividade que expõe o meio ambiente a riscos. Ora, se o dano decorrente da atividade
empresarial tivesse que ser suportado pelo Estado, e assim pela sociedade, o cidadão é
que teria que pagar a conta, enquanto que o empresário, que apostou na atividade para
obter lucros, estaria imune ao risco da sua atividade.
Assim, o custo para o ressarcimento do dano ambiental deve ser internalizado pelo
empresário. Trata-se de fenômeno lógico, pois se há risco não há racionalidade em
admitir que o empresário obtenha os lucros e a sociedade pague pelos prejuízos (TESSLER, 2003). Fala-se, nessa linha, no dever de o Estado corrigir o mercado, pois, se
pode oferecer subvenções ou incentivos às atividades geradoras de benefícios (externalidades positivas), não deve esquecer de atuar (corrigir o mercado) diante das
externalidades negativas.
Frente às externalidades negativas, o Estado pode atuar, por exemplo, mediante a imposição de impostos. Porém, em relação ao que aqui interessa, não é possível esquecer
que o empresário, ao exercer sua atividade, está se valendo de um recurso ambiental
que não é dele, mas sim da coletividade. Assim, cabe a ele pagar pela utilização de
tais recursos, seja custeando as medidas de prevenção ou de precaução (pagando para
não poluir), seja respondendo pela poluição que a sua atividade produziu (pagando
porque poluiu).
O Tribunal de Justiça do Paraná (2002) deu expressiva contribuição à compreensão
15
Sobre esse princípio, ver Morato Leite e Ayala (2002); Benjamin (In: Benjamin, 1993, p. 18); Derani (1997); Tessler
(2003); Prieur (1991); Centi (1997); Dias (1997).
16
Ver Maugeri (1997).
112
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
desse princípio ao julgar ação coletiva relativa ao lixo resultante das embalagens plásticas dos refrigerantes (tipo PET – Polietileno Tereftalato), concluindo que “[...] se os
avanços tecnólogicos induzem o crescente emprego de vasilhames de matéria plástica
tipo PET, propiciando que os fabricantes que delas se utilizam aumentem lucros e
reduzam custos, não é justo que a responsabilidade pelo crescimento exponencial do
volume do lixo resultante seja transferida apenas para o governo ou para a população”.
Além disso, para a efetivação da sua decisão, ordenou à apelada o cumprimento de
obrigação de fazer, “[...] de recolhimento das embalagens dos produtos que vier a
fabricar, após o consumo, quando deixadas em parques e praças, ruas, lagos, rios e
onde forem encontradas. Para tanto, deverá dar início imediato a esse recolhimento
em todas as localidades nas quais distribuir seus produtos”. Essa decisão, como não
poderia deixar de ser, consistiu em ordem sob pena de multa, mas o Tribunal fez
questão de deixar expresso que o seu valor, no caso de não-cumprimento, deveria ser
carreado para o Fundo previsto no art. 13 da Lei da Ação Civil Pública.
Ainda que a atividade seja permitida, ou mesmo que tenham sido observadas as medidas impostas para a prevenção ou para a precaução, a ocorrência do dano não pode liberar o empresário da sua responsabilidade, pouco importando se houve, ou não, culpa. É que, nesse caso, há inegavelmente um dano, ainda que ninguém o tenha desejado
ou, por culpa, contribuído para a sua produção. Ora, esse dano, que é algo inafastável,
deve ser custeado por aquele que utiliza o meio ambiente para exercer a sua atividade,
e não pelos cidadãos, que já arcam, através do consumo, com os custos dos produtos
ou dos serviços do empresário, gerando-lhe lucros. Se o custo desse dano tivesse que
ser arcado pela sociedade, o consumidor estaria pagando duas vezes pela atividade
empresarial: uma vez pelo consumo do produto ou do serviço (que já é suficiente para
gerar lucros) e outra pelo estrago que a atividade gerou ao meio ambiente.
Como se vê, o princípio do poluidor-pagador deve ser pensado como algo que traz
ao empresário o dever de pagar para não poluir e o dever de pagar por ter poluído17.
Quando se pensa nessa última hipótese, ou seja, no dever de pagar pela poluição, não
17
Veja-se a lição de Prieur (1991, p. 123) sobre o princípio do poluidor-pagador: “Ce principe, bien que largement utilisé
dans les discours et déclarations, est entendu dans des sens souvent différents et n’a pas reçu de consécration juridique
véritable en droit français. Il relève tout au plus d’une sorte de ‘normativisme philosophique’. Il est inspiré par la teorice économique selon laquelle les coûts sociaux externes qui accompagnent la production industrielle (dont le coût
résultant de la pollution) doivent être internalisés c’est-à-dire pris en compte par les agents économiques dans leurs
coûts de production. L’énoncé d’un tel principe aux allures de slogan publicitaire ne peut que satisfaire le défenseur de
l’environnement. Mais sa simplicité cache des problèmes économiques et juridiques complexes. Dans une acception large
ce principe vise à imputer au pollueur le coût social de la pollution qu’il engendre. Cela conduit à entraîner un mécanisme
de responsabilité pour dommage écologique couvrant tous les effets d’une pollution non seulement sur les biens et les personnes mais aussi sur la nature ellemêne. C’est en termes économiques l’internalisation des coûts externes ou théorie des
externalités. Dans une acception plus limitée, qui est celle retenue par l’OCDE et la CEE, le principe pollueur-payeur vise
à faire prendre en charge les dépenses de lutte contre la pollution par le pollueur. Le principe s’analyse alors comme une
internalisation partielle qui permet d’imposer des taxes ou redevances de dépollution aux pollueurs sans faire supporter
la dépollution par l’ensemble de la collectivité. Dans un tel systéme la subvention de l’Etat aux pollueurs pour les aider à
financer les investissements anti-pollution est contraire au principe pollueur-payeur”.
113
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
se pretende, como é óbvio, justificar a possibilidade de o empresário poluir. Ao contrário, são proibidas determinadas atividades, ou mesmo o exercício de certas atividades em determinados locais. Além disso, algumas atividades somente são liberadas
em razão do dever de observância de medidas de prevenção e precaução. Acontece
que, mesmo quando permitidas e adotas as medidas de prevenção e precaução, as
atividades podem gerar danos. É aqui que aparece a importância de se dizer que o empresário deve pagar por ter poluído, o que significa que deve pagar por ter assumido,
com a sua atividade lucrativa, o risco de causar dano ao meio ambiente.
Se a culpa, aqui, não tem importância alguma, não é correto falar em responsabilidade
pelo risco, uma vez que a responsabilidade, no caso de culpa ou risco, será sempre
pelo dano. Trata-se, assim, de responsabilidade pelo dano fundada no risco. Note-se,
aliás, que essa forma de pensar a responsabilidade civil também assume importância
preventiva, visto que, se o empresário tem consciência da sua responsabilidade, certamente tomará os devidos cuidados. Ao contrário, se dele for retirada toda e qualquer responsabilidade, surgirá naturalmente a idéia de que vale a pena correr qualquer
risco, pois, se dano houver, a responsabilidade será do Estado. Vale dizer: estará se
admitindo a privatização dos lucros e a socialização das perdas (TESSLER, 2003,
p. 129). Esse seria, realmente, o paraíso de todo empresário que quer lucrar sem ter
responsabilidade.
Aliás, aquele que se beneficia de uma atividade que gera poluição não deve arcar
apenas com os prejuízos que podem ser a ele diretamente atribuídos, em razão de
uma causalidade perfeita. A sua responsabilidade vai além, pois o Estado deve dele
exigir, através da via fiscal, uma compensação. Sim, porque, se a atividade impõe um
prejuízo à sociedade, o benefício ocasionado pela atividade somente será legítimo
caso ocorra uma devida compensação, através de impostos, taxas etc. Nessa linha,
propõe-se, na doutrina portuguesa, que o preço dos combustíveis seja pensado nessa
perspectiva, devendo penalizar os combustíveis mais poluentes – como o óleo diesel e
a gasolina com chumbo – para incentivar os combustíveis mais amigos do ambiente,
e assim “[...] contribuir para uma correta ponderação do fator ecológico nas escolhas
racionais dos sujeitos econômicos” (SILVA, 2001, p. 213-214).
15. Análise das Ações Inibitória e de Remoção do Ilícito à Luz do Direito Ambiental
A presente seção tem o objetivo de deixar clara a relação entre as ações inibitória e de
remoção do ilícito18 e as várias situações de direito ambiental há pouco analisadas. As
ações inibitória e de remoção do ilícito constituem ações de conhecimento e, assim,
apesar de terem natureza preventiva, não se confundem com a tradicional ação cautelar. Tais ações são conseqüências necessárias do novo perfil do Estado e das novas
situações de direito substancial. Ou seja, a sua estruturação, ainda que dependente de
teorização adequada, tem relação com o dever de proteção do Estado e com as novas
18
Sobre o tema, ver Marinoni (2003); Arenhart (2003); Morato Leite, 2003, p. 124-145).
114
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
regras jurídicas de conteúdo preventivo.
A dificuldade de se compreender tais ações advém da falta de distinção entre ato ilícito
e dano. Quando se associa ilícito e dano, conclui-se que toda ação processual voltada
contra o ilícito é ação ressarcitória ou de reparação do dano. Acontece que há ilícitos
cujos efeitos se propagam no tempo, abrindo as portas para a produção de danos. Isso
demonstra que o dano é uma conseqüência eventual do ilícito, mas que não há cabimento em ter que esperar pelo dano para invocar a prestação jurisdicional.
Para que o direito fundamental ao meio ambiente e as normas que lhe conferem proteção possam ser efetivamente respeitados é necessária uma ação que: I) ordene um
não-fazer ao particular para impedir a violação da norma de proteção e o direito fundamental ambiental; II) ordene um fazer ao particular quando a norma de proteção lhe
exige uma conduta positiva; III) ordene um fazer ao Poder Público quando a norma de
proteção dirigida contra o particular requer uma ação concreta; IV) ordene um fazer
ao Poder Público para que a prestação que lhe foi imposta pela norma seja cumprida;
V) ordene ao particular um não-fazer quando o estudo de impacto ambiental, apesar
de necessário, não foi exigido; VI) ordene ao particular um não-fazer quando o licenciamento contraria o estudo de impacto ambiental sem a devida fundamentação, ressentido-se de vício de desvio de poder; VII) ordene ao particular um não-fazer quando
o licenciamento se fundou em estudo de impacto ambiental incompleto, contraditório
ou ancorado em informações ou fatos falsos ou inadequadamente explicitados.
A ação adequada, em todos esses casos, é a inibitória, pois voltada, mediante um nãofazer, a impedir a prática ou a continuação do ilícito, ou dirigida, através de um fazer,
a realizar o desejo preventivo da norma de proteção. Contudo, no caso de ilícito de
eficácia continuada – ou seja, na hipótese de um agir já exaurido, mas cujos efeitos
ilícitos ainda se propagam, abrindo oportunidade a danos –, é necessária apenas a
remoção do ilícito, vale dizer, a ação de remoção do ilícito.
Essas duas ações – a inibitória e a de remoção do ilícito – têm base, em termos de
instrumental processual, no art. 84 do CDC. Esse artigo permite que o juiz ordene um
não-fazer ou um fazer sob pena de multa, na sentença ou em sede de tutela antecipatória. Além disso, o § 5o do art. 84 do CDC exemplifica as medidas executivas que
podem ser requeridas pelo autor, incluindo entre elas a busca e apreensão.
Tal artigo, apesar de inserido no CDC, abre oportunidade para a proteção de qualquer espécie de direito difuso, como deixa claro o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública. Assim, os legitimados à ação coletiva, previstos no art. 5o da Lei da Ação Civil
Pública, podem propor ação coletiva inibitória e ação coletiva de remoção do ilícito,
conforme o caso.
Em relação às normas que estabelecem um não-fazer, é fácil perceber que a ação
inibitória pode ser usada para impedir a prática (p. ex., construção de obra em local
115
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
proibido) ou a continuação de um ilícito (p. ex., poluição de um rio). No caso em que
a norma já foi violada, e o ato contrário ao direito possui eficácia continuada, deve
ser utilizada a ação de remoção do ilícito (p. ex., guarda de lixo tóxico em local inapropriado). A dúvida que pode existir, nessa hipótese, diz respeito à diferença entre
continuação de um ilícito (ou ação ilícita continuada) e ilícito cuja ação material já se
exauriu, mas que tem efeitos ilícitos continuados. Portanto, cabe esclarecer: quando
se teme uma atividade ou um agir continuado ilícito (poluição ambiental), é possível
pensar em inibir a sua continuação; porém, quando uma ação ilícita já se exauriu
como ação ou agir, mas os seus efeitos ilícitos continuam no tempo, não há como
pretender impedir ou inibir a ação que abriu ensejo para a produção dos efeitos ilícitos, pois essa, como já dito, já se exauriu. Melhor: quando não se pretende impedir a
continuação de um agir, pois o que incomoda são os efeitos ilícitos do ato já praticado,
basta a remoção do ilícito. Note-se que, no caso de atividade ou agir continuado, é
temido um agir que pode prosseguir, e por isso há racionalidade em atuar sobre a vontade do demandado para convencê-lo a não continuar a sua ação, o que não acontece
na hipótese em que o agir já se exauriu, mas os seus efeitos ilícitos prosseguem, pois
aí é suficiente um ato executivo capaz de remover o ilícito.
Quando a norma, para evitar a violação do meio ambiente, exige um fazer do particular, ela tem – como antes demonstrado – natureza preventiva, uma vez que esse fazer
é imprescindível para evitar a degradação ambiental. Assim, se o particular viola regra
dessa natureza, abre-se oportunidade para uma ação inibitória em que se pode pedir a
imposição do fazer negado. Essa ação não pode ser considerada uma simples e neutra
ação para o cumprimento de obrigação de fazer, uma vez que a necessidade desse
fazer deve ser pensada à luz da inviolabilidade do direito e, assim, de forma rente ao
direito material, até mesmo para que se possa trabalhar com a técnica processual de
maneira adequada, já que essa não pode perder de vista a situação concreta a que deve
servir.
Quando é preciso a atuação concreta da administração para evitar a agressão do meio
ambiente pelo particular, o juiz pode ordenar, através da ação inibitória, a necessária
atuação da Administração. É o caso, por exemplo, em que a Administração tem o dever de fiscalizar determinada área de preservação permanente. A omissão da Administração, na hipótese, nada mais é do que uma negação do dever de tutela ou de proteção
do Estado ao direito ambiental. Como esse dever, que se concretizará no fazer imposto
pela Administração, tem nítida natureza preventiva, é lógico que a tutela jurisdicional,
na perspectiva de tutela do direito material, é uma tutela inibitória, pois destinada a
evitar a violação do direito ambiental.
No caso em que o Estado é devedor de uma prestação fática destinada a evitar a degradação ambiental, mas essa não impõe ao particular uma proibição ou uma conduta
ativa – ou seja, não incide sobre o particular –, não há como negar, também, que a
prestação devida pelo Estado tem natureza protetiva.
Como dito, se o direito ambiental é afirmado inviolável pela própria Constituição
116
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Federal, e há norma definindo uma prestação fática estatal imprescindível para se
evitar a degradação ambiental – como acontece, por exemplo, na hipótese do art. 208
da Constituição do Estado de São Paulo, que estabelece o dever de o poder público
tratar dos esgotos urbanos e industriais – o poder público não pode deixar de cumprila. Eventuais alegações de conveniência e oportunidade, diante da natureza inviolável
do meio ambiente e da definição legal da prestação, não podem ser consideradas. A
questão da indisponibilidade orçamentária – que aparentemente poderia trazer maiores problemas – também não pode ser vista como empeço à exigibilidade da prestação
– sob pena de se imaginar que a Administração, pelo fato de constituir um Poder,
pode concluir que não deve dispor dinheiro para evitar a violação de um direito, como
afirmado pela própria Constituição Federal, deve ser preservado para as presentes e
futuras gerações (art. 225, CF).19
Assim, ainda que o juiz, no caso, deva ordenar um fazer, a ação é inibitória, uma vez
que a prestação devida, como visto, objetiva impedir a degradação ambiental. Ou seja,
se o poder público devia um fazer de natureza preventiva, a imposição desse fazer,
pelo juiz, não perde essa natureza.
Frise-se que nem toda pretensão de prestação fática estatal abre ensejo para tutela
inibitória, mas apenas aquela que se destina a evitar a violação de um direito, como
a voltada a impedir a degradação do meio ambiente. Quando se exige judicialmente
prestação estatal, sem que se objetive evitar a violação de um direito, a ação não pode
ser pensada na perspectiva da preventividade. Nesse caso, a questão da reserva orçamentária, embora possa não obstaculizar a concessão da tutela jurisdicional de fazer,
não pode ser vista – à luz da idéia de inadiabilidade – como se o caso envolvesse uma
prestação que, se não for realizada imediatamente, pode gerar danos irreversíveis.
Pense-se, agora, na atividade ou obra potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, e, nessa linha, na exigibilidade do estudo de impacto ambiental. No caso em que o estudo não poderia ter sido dispensado, e uma obra ou uma
atividade deve iniciar em poucos dias, cabe ação inibitória cumulada com ação de
desconstituição do ato de licenciamento que entendeu ser desnecessário o estudo. Se
a obra ou a atividade já foi iniciada, ao lado da ação desconstitutiva do licenciamento
que indevidamente dispensou o estudo de impacto ambiental, pode ser proposta ação
inibitória para impedir a continuação das atividades. Sublinhe-se, no entanto, que a
procedência dessas ações não gera apenas a suspensão do ato de licenciamento, mas
sim a sua desconstituição e a proibição da obra ou da atividade sem o prévio estudo
de impacto ambiental.
Quando o administrador concedeu o licenciamento em desacordo com o estudo de
impacto ambiental e deixou de demonstrar as suas razões à luz do fim protetivo do
procedimento de licenciamento, praticou ato administrativo maculado por vício de
desvio de poder. Nesse caso, se uma obra ou atividade está para iniciar, ou já foi ini19
Ver Mirra (2002, p. 366).
117
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ciada, poderá ser proposta ação inibitória cumulada com ação para a desconstituição
do ato administrativo.
Por outro lado, também como visto, nada impede o questionamento de licença concedida de acordo com o estudo de impacto ambiental. Lembre-se que o administrador pode modificar, suspender ou cancelar a licença ambiental nas hipóteses de “[...]
omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição
da licença” (Res. n.º 237/97 do Conama, art. 19). Pelos mesmos motivos, e ainda por
outros antes revelados, o juiz pode desconstituir a licença e inibir o início ou a continuação da obra ou da atividade.
Cabe aludir, ainda, à questão da incerteza científica quanto ao risco, que bem pode ser
expressa através do recente caso da soja transgênica. Tratando-se de incerteza científica sobre o risco, não há como deixar de se exigir o estudo de impacto ambiental,
previsto no art. 225, § 1o, IV, da Constituição Federal. Deixar de exigir o estudo de
impacto ambiental, em um caso como esse, significa negar, de uma só vez, o referido
art. 225 e o princípio da precaução. Por isso, cabe ação inibitória para impedir o início
ou a continuação de atividade licenciada ao arrepio da necessidade de exigência do
estudo de impacto ambiental.
Como é óbvio, não é o caso de se utilizar, aí, ação cautelar, pois o juiz, através de
uma só ação, pode atender ao desejo de prestação jurisdicional, sendo completamente
irracional pensar em duas ações, como se existissem duas pretensões no plano do
direito material. Ora, o que se pretende, como tutela jurisdicional final, é a inibição da
atividade em razão da ausência do estudo de impacto ambiental. Se essa tutela, diante
da urgência, pode ser antecipada, isso deve ocorrer, como é óbvio, na própria ação
inibitória, sendo inadequado pensar em instaurar uma ação (cautelar, que então seria
autônoma ou satisfativa?) apenas para esse fim.20
Deixe-se claro que, em qualquer dos casos em que uma atividade foi indevidamente
praticada, a sua eventual produção é ilícita, e assim, quando puder colocar em risco a
saúde dos consumidores, deve ser destruída. Perceba-se que, nessa hipótese, a produção já ocorreu, e dessa forma não há que se raciocinar em termos de tutela inibitória.
Mas, tal produção não significa dano. Tal produção constitui somente ilícito, que deve
ser removido ou destruído antes que cause dano a alguém. Note-se que, por não existir
dano, não há motivo para se pedir ressarcimento.
Da mesma forma, quando, por exemplo, o lixo tóxico foi depositado em local proibido, não há como se atuar sobre a vontade do demando para ele não fazer, uma vez que
o agir ilícito já foi cometido. O problema é que, apesar do ilícito já ter sido praticado,
os seus efeitos são continuados, e assim constituem uma fonte aberta para o dano ambiental. Nessa situação, porém, também não cabe ação ressarcitória ou de reparação
do dano, pois o despejo de lixo tóxico em local proibido não configura dano, mas ape20
Sobre a ação coletiva na proteção do direito ambiental, ver Morato Leite, 2003, p. 201-229).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
nas ato contrário ao direito (ou ilícito). Tanto é verdade que, em um caso desse tipo, a
sanção pecuniária sempre será punitiva, pois a sanção ressarcitória, ao contrário, deve
tomar em consideração a dimensão do dano já produzido.
Como o processo civil não pode ignorar o ato contrário ao direito que não produziu
dano, há que se permitir uma ação coletiva de remoção do ilícito ambiental, a ser proposta por um dos legitimados do art. 5o da Lei da Ação Civil Pública.
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121
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2.5 O SISTEMA DE COMPENSAÇÃO FINANCEIRA NA
REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA
MÔNICA TESTA AMORIM
Advogada
Mestre em Direito Empresarial
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Constituição Financeira. 3. Estado Federal. 4. A Justiciabilidade da Constituição Financeira. 5. O Sistema de 4 níveis da Compensação
Financeira no Estado Federal. 5.1 Compensação Financeira Vertical Primária. 5.2
Compensação Financeira Horizontal Primária. 5.3 Compensação Financeira Horizontal Secundária. 5.4 Compensação Financeira Vertical Secundária. 6. A Compensação
Financeira entre os Estados prevista no artigo 207, alínea 2, da Lei Fundamental. 6.1.
Os Conceitos Normativos. 7. Brasil. 8. Conclusão.9. Bibliografia.
1. Introdução
A República Federal Alemã, na busca pela concretização de uma justiça plena e pela
integral observância dos direitos fundamentais de seus cidadãos, adotou um sistema
financeiro de compensação verificado por uma adequada arrecadação e repartição,
entre os Estados-Membros e entre esses e a Federação, das receitas provenientes da
cobrança de determinados impostos, no território nacional.
O Regime Financeiro (Das Finanzwesen) está disciplinado na Lei Fundamental, em
seu Capítulo X, bem como na legislação federal – a Lei de Compensação Financeira
entre a Federação e os Estados, de 28.08.1969, com vigência a partir de 01.01.1970.
E, em 2005, entrou em vigor novo texto legal.
A compensação financeira se realiza em quatro níveis e na seguinte ordem: compensação financeira vertical primária, compensação financeira horizontal primária,
compensação financeira horizontal secundária e compensação financeira vertical secundária, alcançando, ao final, o resultado almejado, revelado pelo desenvolvimento
e progresso socioeconômico da nação.
Esse sistema se reveste de especial importância para o Brasil, país com diferenças regionais tão discrepantes, tendo-se em vista que o grande objetivo dessa compensação
é justamente gerar condições homogêneas de vida a todos os cidadãos independentemente da localização de sua residência no território nacional. O princípio basilar
do regime financeiro alemão é o princípio da igualdade e o de que, presumidamente,
todos os cidadãos têm a mesma necessidade, portanto precisam receber do Estado a
mesma prestação de serviço público.
2. A Constituição Financeira
As finanças se tornaram hoje uma parte essencial do poder, frase escrita por Georg
122
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Wilhelm Friedrich Hegel, em 1802, em um panfleto político, ao se referir à Constituição do Império Alemão. Já naquela época, percebia-se a relevância das finanças para
a criação das condições homogêneas de vida do povo germânico.
No entanto, somente na Lei Fundamental de Bonn, de 23.05.1949, foi introduzido um
capítulo próprio sobre as finanças públicas, o Capítulo X, constituído de duas partes.
A primeira parte, compreendida pelos artigos 104 a 108, foi denominada de Constituição Financeira propriamente dita; a segunda, abrangendo os artigos 109 a 115, é
conhecida como Constituição Orçamentária.
Cediço é que a Constituição Financeira representa uma distribuição de forças políticas e de poder financeiro entre a Federação e os Estados-Membros, com o escopo de
privilegiar a vida em coletividade na República Federal da Alemanha. Por essa razão
o Regime Financeiro, cerne da estrutura do Estado federal, se harmoniza com o texto
constitucional restante, formando uma estrutura uniforme.
A Lei Fundamental trata tão-somente de impostos, excluindo os demais tributos como
taxas, contribuições, tributos especiais e outros previstos na legislação tributária.
Assim, quanto à distribuição de competências relativa aos impostos, de cuja arrecadação se formarão as receitas para cobertura das despesas dos serviços públicos, a
Constituição Financeira fixa a responsabilidade pela execução das tarefas públicas,
a responsabilidade pelas respectivas despesas, a competência legislativa, a repartição
das receitas e dos monopólios fiscais e, por fim, a responsabilidade pela administração
financeira dos impostos.
Justamente para garantir, financeiramente, o exercício das atribuições estatais e o seu
cumprimento, a Constituição Financeira distribui por meio de competências a responsabilidade pela tarefa, pelas despesas e pela execução.
Há, de um modo geral, a correspondência entre a competência para determinada tarefa
e a competência para a sua execução. Pode, contudo, em alguns casos, a responsabilidade pela execução material da prestação do serviço público ser subtraída do detentor
da competência, com o fim de garantir a realização da tarefa pela administração. Por
isso, fala-se na diferença existente entre competência para a tarefa e responsabilidade
pela tarefa. É o que ocorre quando os Estados-Membros atuam por delegação. A competência da tarefa é da Federação, bem como as despesas resultantes, mas a execução
da tarefa é de responsabilidade dos entes federados.
A competência pelas tarefas estatais é distribuída com fundamento nos princípios da
autonomia financeira, da auto-responsabilidade e da uniformidade na destinação das
tarefas. É certo que existem diferenças reais entre os Estados, as quais não são excluídas, apesar de não haver previsão legislativa de estandardização das disparidades
regionais. Só, excepcionalmente, essas necessidades díspares são consideradas, mas
jamais para fins de distribuição das competências.
123
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
De extrema relevância são as despesas geradas na execução das tarefas estatais, pois
elas podem ser passíveis de compensação, na hipótese de não atingirem o limite legal
previsto para os gastos públicos, e, por outro lado, se gerarem um déficit nas contas do
ente político, este poderá obter subvenção para cobertura do importe faltante.
A repartição das despesas decorrentes da prestação dos serviços públicos rege-se pelo
princípio de distribuição de cargas geral, isto é, a Federação e os Estados assumem
separadamente as despesas que resultem do exercício de suas funções, desde que não
haja disposição constitucional em contrário. Contudo, se os Estados atuarem, conforme o previsto em lei federal por delegação, a Federação assume as despesas resultantes. Será considerado prestação por delegação se a Federação assumir metade ou mais
das despesas. Há necessidade também de disposição por lei federal, com aprovação do
Conselho Federal1 (Bundesrat), sempre que os Estados assumirem ¼ (um quarto) ou
mais das despesas oriundas da execução dos serviços públicos. Por fim, a Federaçãoe
os Estados assumem as despesas de administração das suas autoridades e são reciprocamente responsáveis por uma administração regular, consoante sempre lei federal
aprovada pelo Conselho Federal.
Se de um lado os Länder detêm preponderantemente a competência para o exercício
das atribuições estatais e o cumprimento das funções estatais, de outro a Federação
detém a competência legislativa, que rege as legislações exclusiva e concorrente.
As matérias da legislação exclusiva e concorrente estão elencadas na Constituição.
No domínio da legislação exclusiva da Federação, os Estados federados apenas têm a
competência legislativa se e na medida em que forem expressamente autorizados por
uma lei federal. E no domínio da legislação concorrente, os Estados-Membros podem
legislar, enquanto e na medida em que a Federação não tenha se servido da sua competência legislativa através de uma lei.
Compete à Federação a legislação exclusiva sobre o direito aduaneiro e sobre os monopólios financeiros, compete-lhe também a legislação concorrente sobre os impostos
restantes, se à Federação pertencer total ou parcialmente a receita desses impostos; e
ainda lhe compete legislar toda vez que for necessária a criação de condições de vida
iguais no território federal ou a defesa da unidade jurídica ou econômica no interesse
do Estado na sua totalidade.
Os Estados têm a competência para legislar sobre os impostos locais sobre o consumo e sobre o luxo, desde que não sejam equivalentes aos impostos regulados por lei
federal.
Há necessidade de lei federal com aprovação do Conselho Federal sempre que a receiÉ através do Conselho Federal que os Estados-Membros participam da elaboração da legislação e da administração da
Federação, além dos assuntos relativos à União Européia, pois o Bundesrat é constituído por membros, no mínimo três,
dos governos dos Lämder, nomeados e exonerados por estes. O Conselho Federal é comparado a uma câmara alta típica e
extremamente poderosa, por representar não diretamente o povo, mas o poder político supremo dos Estados.
1
124
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ta de um imposto for destinada totalmente ou em parte aos Estados ou aos Municípios
e associações de municípios.
A distribuição das competências previstas na Lei Fundamental objetiva à concretização da compensação financeira entre as despesas resultantes dos serviços estatais
e o montante das receitas arrecadado pela cobrança de determinados impostos. O
resultado final dessa distribuição é a criação homogênea das condições de vida na
República Federal da Alemanha pelo efetivo cumprimento das tarefas públicas atribuídas à Federação, aos Estados e aos Municípios e às associações de municípios, pois
cada ente disporá de recursos financeiros suficientes para cobrir as suas necessidades
financeiras; por conseguinte, todos atingem o índice médio de capacidade financeira,
banindo, finalmente, Estados com capacidade financeira reduzida.
3. O Estado Federal
Esse sistema financeiro, da forma como está previsto na Lei Fundamental, só é possível em virtude de ser a República Federal da Alemanha um Estado federal.
Define Henneke2 (2000) o Estado federal como sendo uma união de direito público de
diversos Estados-Membros (Gliedstaaten) em um Estado-global (Gesamtstaat) com
fundamento em uma constituição federal.
O federalismo é um princípio político fundamental nessa estrutura. Totalidades políticas diferenciadas unidas livremente prestam colaboração entre si e mantêm a unidade
política, respeitando e conservando as suas diversidades. Como o objetivo mor é a
unidade federativa, as minorias regionais não são prejudicadas pelas maiorias. Condições lhes são propiciadas para que possam participar igualmente entre as forças
políticas.
A Constituição Financeira do Estado federal divide o poder financeiro entre a Federação e os Estados de forma adequada e equilibrada. Pois o que a experiência tem
mostrado, através das constituições anteriores, é que os Estados e a Federação só conseguem exercitar as suas competências e realizar as suas tarefas, se lhes são colocados
à disposição os recursos financeiros necessários.
Nas constituições anteriores não havia esse equilíbrio, pois o produto financeiro encontrava-se ou nas mãos do antigo Império ou nas mãos dos Estados. E foi justamente
a experiência histórica que mostrou a necessidade desse equilíbrio para se garantir a
autonomia real da Federação e dos Estados, bem como manter a independência e a
auto-responsabilidade na execução das tarefas públicas. Por isso é que o princípio federal (das bündische Prinzip) e o princípio da autonomia da Federação e dos Estados
são indissociáveis, estando os Estados-Membros ligados à Federação por uma união
indissolúvel.
2
Professor Honorário da Universidade de Osnadrück e Procurador-Geral do Conselho Distrital Regional em Berlin.
125
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A principal característica do Estado federal é que tanto a Federação quanto os Estados-Membros possuem a qualidade de Estado. Os Municípios e as associações de
municípios3 constituem um corpo administrativo, são organizações estatais incorporadas aos Estados. Ou seja, são membros dos Estados. As despesas e as tarefas dos
Municípios são acrescidas ao do seu respectivo Estado, pois aqueles não constituem
uma terceira esfera jurídica no Estado federal.
A Lei Fundamental garante à Federação e aos Estados-Membros a manutenção da
qualidade de Estado justamente através da distribuição de competências no Estado
federal, quais sejam: (a) distribuição das tarefas entre a Federação e os Estados; (b)
responsabilidade pelas despesas; (c) competência legislativa fiscal; e (d) distribuição
das receitas fiscais.
O Capítulo X da Lei Fundamental – o Regime Financeiro – constitui a essência do
ordenamento jurídico federal. Não há dúvida de que é uma garantia à manutenção
da posição financeira da Federação e dos Estados-Membros, os quais participam das
receitas totais da economia nacional.
Além disso, há a obrigação de cooperação e auxílio do Estado federal sempre que um
membro encontra-se em estado de necessidade na sua administração orçamentária.
Tal obrigação decorre do princípio da solidariedade coletiva entre Federação e Estados, expresso na norma constitucional financeira da Lei Fundamental, e do princípio
de que um ente responde pelo outro, quer seja a Federação, quer seja um EstadoMembro.
Portanto, há dois grandes princípios norteadores da Constituição Financeira em razão
de ser a Alemanha um Estado federal: o da solidariedade coletiva (die Solidargemeinschaft) dos entes políticos e o de que um ente responde pelo outro (das bündischen Prinzips des Einstehens füreinander).
O reflexo desses princípios na compensação financeira entre os Estados manifesta-se
nitidamente na busca do equilíbrio entre a independência, a auto-responsabilidade, a
manutenção da individualidade de cada Estado e a co-responsabilidade solidária coletiva para a conservação da existência e autonomia da Federação.
Cumpre ressaltar que há alguns poucos doutrinadores que percebem os Municípios e associações de municípios como um
terceiro nível na estrutura do Estado da República Federal da Alemanha. Mas essa posição contrária a dominante não tem
representação significativa, pois a própria Constituição Financeira frisa o seu status como entidades administrativas.
A autonomia fiscal dos Municípios e das associações de municípios é compreendida de forma derivada, pois a Constituição
Financeira prevê apenas dois níveis de soberania fiscal, a da Federação e a dos Estados.
De outra face, a Constituição alemã tutela os direitos fundamentais dos Municípios, tal como o direito de autonomia administrativa, consoante o artigo 28, alínea 2, como forma de homogeneização das Constituições dos Estados federados.
Deve ser garantido aos Municípios o direito de regular, sob responsabilidade própria e nos limites da legislação vigente,
todos os assuntos da comunidade local. Assim também, dentro do âmbito de suas atribuições legais, as associações de municípios gozam do direito de auto-administração. Essa garantia da auto-administração municipal compreende, outrossim,
os princípios da responsabilidade financeira própria.
3
126
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
De outro giro, impende salientar que há uma diretiva constitucional para que a compensação financeira entre os Estados não seja um veículo de uma nivelação entre os
Estados, quer seja no âmbito das finanças quer seja no da auto-responsabilidade. A Lei
Fundamental veda a nivelação, trata-se de uma norma proibitiva.
Considera-se violado o princípio constitucional do Estado federal se a compensação
prevista na Lei de Compensação Financeira entre os Estados, de 28.08.1969, levar
a uma uniformização das finanças dos Estados ou se enfraquecer a capacidade de
prestação de serviços de algum Estado. As diferenças existentes entre os membros da
Federação devem ser respeitadas. Qualquer ofensa à estrutura diferenciada existente
no Estado federal é uma ofensa à norma fundamental constitucional.
Existem diversas causas como geográfica, histórica, econômica, entre outras, que contribuem para as diferenças na capacidade de prestação de serviços pelos Estados. Mas,
essas diferenças podem ser também um resultado de decisões políticas erradas tomadas pelo Estado em sua gestão financeira. Por essa razão a compensação financeira
entre os Estados não tem a tarefa de compensar as diferenças existentes na capacidade
financeira decorrente da autonomia financeira. A compensação refere-se tão-somente
à diferença estrutural dos Estados e não aos seus atos discricionários tomados durante
a sua gestão financeira.
Cada Estado responde por suas decisões políticas errôneas e por sua gestão financeira.
Os Estados obrigados a compensar não podem trazer à compensação financeira as
conseqüências de suas decisões arbitrárias. É decorrente do princípio da ordem democrática que os Estados sejam auto-responsáveis, assumam as conseqüências oriundas
das suas tomadas de decisão na gestão de cada governo. Tais resultados negativos não
devem ser divididos com os demais.
Destarte, por serem os objetivos da compensação financeira a criação e a defesa da
homogeneidade das condições de vida no território federal através de uma compensação justa, o seu pressuposto financeiro reside em alcançar, o mais aproximadamente
possível, um nível de prestação estatal igual em todo o território federal. Sempre frisando, que esse pressuposto não significa, em absoluto, uma equalização das finanças
dos Estados.
4. Justiciabilidade da Constituição Financeira
Questão relevante, que não sai da pauta de discussão dos doutrinadores alemães, versa
sobre a justiciabilidade da Constituição Financeira e sobre a existência de alguma
diferença no controle judicial feito no âmbito da Constituição Financeira e das demais áreas do texto constitucional. O controle judicial feito em todos os campos da
Lei Fundamental é realizado com a mesma intensidade? Se a resposta for afirmativa,
então pode se atribuir à Constituição Financeira o atributo da justiciabilidade. Con-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tudo, não se deve ficar adstrito somente à intensidade do controle judicial exercido
pelo Tribunal Constitucional Federal4, mas deve-se também atentar à amplitude desse
controle judicial.
Como será abordado adiante, o cerne da compensação financeira é o artigo 107, alínea
2, da Lei Fundamental, o qual contém expressões como compensação adequada, necessidade financeira e capacidade financeira, cujos elementos normativos se submetem à interpretação e ao alcance conferidos pelo Bundesverfassungsgericht.
Caso se proceda a uma comparação com as outras áreas da Lei Fundamental, devese, então, considerar as peculiaridades ínsitas à Constituição Financeira, pois a concretização das particularidades do direito constitucional financeiro está vinculada ao
legislador, uma vez que a Constituição Financeira não é auto-aplicável. E o direito
constitucional financeiro está longe de ser um interesse político, muito embora seja
inegável a sua conotação política.
Ainda quanto à justiciabilidade da Constituição Financeira, mister se faz considerar
outro aspecto relevante, qual seja, se o controle judicial feito nas normas positivadas também é realizado com a mesma intensidade e amplitude nas normas de direito
financeiro não-escritas na Lei Fundamental, pois há preocupação com a aplicação
dessas normas, sobretudo no que tange aos direitos fundamentais.
Fritz Ossenbühl, renomado cientista do Direito Financeiro e Tributário alemão, por
várias vezes foi instado a analisar profundamente a Lei de Compensação Financeira
entre os Estados concomitantemente com as disposições do artigo 107, alínea 2, da
Lei Fundamental. Em 1983, o Governo dos Estados de Nordrhein-Westfalen e BadenWürttemberg ajuizaram pedido de controle de normas da lei em questão perante o
Tribunal Constitucional Federal, ocasião em que o Estado de Niedersachsen solicitou
a esse jurista um estudo minucioso acerca da justiciabilidade da norma do artigo 107,
alínea 2, bem como a constitucionalidade da Lei de Compensação Financeira entre os
Estados. Esta não foi a única dúvida arvorada acerca da matéria. Indubitavelmente,
este é um assunto que sempre está na pauta das discussões por inúmeras razões, sobretudo pela forma dinâmica como se processa a compensação financeira e pela própria
dificuldade dos Estados de partilharem o seu excedente fiscal.
Na doutrina alemã, Ossenbühl (1984) é conhecido pela sua tese, na qual defende a
justiciabilidade limitada da Constituição Financeira do Estado federal justamente pela
insuficiência de critérios normativos existentes na Lei Fundamental para a efetivação
de um controle judicial, bem como faltam limites jurídicos funcionais para um con4
Criado em 1951, o Bundesverfassungsgericht procede não só à fiscalização sucessiva e abstrata da constitucionalidade
das normas federais e estaduais, como decide sobre conflitos de normas, interpretando o sentido e o alcance dos preceitos
constitucionais, e analisa, em sede de fiscalização concreta, recursos de indivíduos e entidades coletivas.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
trole pelo Tribunal Constitucional Federal. Para esse doutrinador, pior ainda do que a
falta desses critérios é a insuficiência de critérios, por tal circunstância apenas apontar
uma direção ou indicar uma tendência. Aliás, ele faz os seguintes questionamentos:
Onde termina a interpretação metódica admissível e onde começa a formação criadora e a concretização da Constituição Financeira?
Essa questão remete à eterna problemática da interpretação da Lei Fundamental, bem
como à sua compreensão como um sistema coerente de normas.
Outro importante questionamento é sobre a competência para suprir a falta de conceito material normativo do artigo 107, alínea 2. Segundo Ossenbühl, foi entregue ao
legislador da Lei de Compensação Financeira entre os Estados a tarefa de preencher
tal lacuna, e não compete ao Tribunal Constitucional Federal através da jurisprudência
traçar os limites de tal compensação, embora à primeira vista pareça que a competência seja desse Tribunal por já exercer o controle sobre as normas de direitos fundamentais e por ter julgado algumas vezes questões atinentes à Lei de Compensação
Financeira. Além do que, há de se respeitar o poder discricionário do legislador e
também o princípio da divisão dos três poderes, da divisão das funções estatais.
A justiciabilidade da Constituição Financeira possui um aspecto jurídico-funcional,
cujo método de aplicação do direito leva a uma interpretação rígida ou flexível da
Constituição. Exsurgem, então, as dúvidas: se o método utilizado para interpretar a
Constituição Financeira seria o mesmo usado para interpretar as demais normas da
Lei Fundamental e, caso seja o mesmo, se seria possível a Constituição Financeira
ter um grau inferior de justiciabilidade. Não há fundamentos para uma interpretação
flexível do Direito Constitucional Financeiro. O poder financeiro não é, em princípio,
mais fraco do que os demais poderes estatais, como também a falta de definição dos
conceitos na Lei Fundamental não ocorre somente na Constituição Financeira.
Cediço é que o Tribunal Constitucional Federal tem sido instado a decidir sempre que
diretrizes constitucionais forem violadas por falta de definição de conceitos, oportunidades em que admitiu uma posição intermediária entre a necessidade do controle
jurídico eficiente e a manutenção da liberdade política legislativa. E no âmbito do
Direito Administrativo tem-se aplicado o instituto jurídico da discricionariedade para
suprir tais lacunas.
É inegável que o constituinte utilizou, por algumas vezes, conceitos obscuros, sendo
imprescindível um amadurecimento. Por isso pode-se dizer que o Direito Constitucional escrito nem sempre atingiu uma perfeição normativa.
A justiciabilidade total da Constituição Financeira como uma condição da função
complementar do Estado de direito e da função estabilizadora do Estado federal é ainda ponto de grande discussão na doutrina alemã. O significado normativo dos conceitos previstos na Constituição Financeira e o de justiciabilidade se mesclam na medida
em que devam estar em perfeita harmonia. Essa questão refere-se inequivocamente ao
129
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
problema das circunstâncias em que o Tribunal Constitucional Federal pode exercer
controle sobre o legislador da compensação financeira quanto à concretização dos
conceitos.
Indubitavelmente, é real a dificuldade para se fazer qualquer afirmação acerca da justiciabilidade do artigo 107, alínea 2, normas 1 e 2, da Lei Fundamental. A problemática reside na validade e na concretização dos conceitos indeterminados da Constituição Financeira e na determinação e limite da competência legislativa e da judiciária.
Ainda, a justiciabilidade da Lei de Compensação Financeira entre os Estados enfrenta
outros problemas como o poder discricionário do legislador e o cunho político que
pode ser dado a essa lei segundo o espaço de atuação do legislador.
Pela observação dos objetivos da regulamentação do artigo 107, alínea 2, da Lei Fundamental, através da Lei de Compensação Financeira, vê-se que foi concedido aos
Estados liberdade no processo de formação política, cujo limite esbarra na arbitrariedade, pois, sem dúvida, o princípio federal norteia o compromisso e o debate entre
os membros da Federação, bem como a compreensão política e valorização de seus
participantes.
A problemática da justiciabilidade da Constituição Financeira é um tema que sempre
esteve e estará em debate devido à inegável falta e/ou obscuridade de alguns conceitos
constitucionais. Também será sempre duscutida a competência do Tribunal Constitucional Federal para dirimir as questões acerca da justiciabilidade da Constituição Financeira, bem como da constitucionalidade da Lei de Compensação Financeira entre
os Estados.
5. O Sistema de Quatro Níveis da Compensação Financeira no Estado Federal
A compensação financeira se desenvolve por um sistema de repartição do produto
oriundo da arrecadação de apenas alguns impostos, antecedido pela distribuição das
tarefas e das responsabilidades pelas despesas correspondentes, tudo previsto na Lei
Fundamental. Embora a distribuição das tarefas não seja objeto da compensação financeira, ela aborda o tema, porque a distribuição das receitas ocorre em virtude da
necessidade de atribuir tarefas à Federação e aos Estados.
O grande objetivo dessa distribuição é tornar real a autonomia da Federação e dos
Estados, protegendo a independência e a responsabilidade própria na execução das
tarefas. Visa exatamente a dar condições para que as tarefas constitucionalmente previstas sejam eficazmente cumpridas. Essa auto-suficiência da Federação e dos Estados-Membros só é possível através desse sistema.
No âmbito da compensação financeira existem apenas duas relações: uma da Federação com os Estados e outra dos Estados entre si, tendo-se em vista que os Municípios
não formam uma terceira esfera jurídica.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Em face disso, a distribuição das receitas públicas ocorre em dois graus bem distintos:
o da compensação financeira horizontal, que ocorre entre os entes do mesmo nível e
o da compensação financeira vertical, entre os entes de níveis diferentes. Há ainda na
compensação financeira a forma primária e a secundária, razão pela qual a doutrina
alemã se refere à compensação financeira como sendo um sistema fechado. São eles:
a) compensação financeira vertical primária;
b) compensação financeira horizontal primária;
c) compensação financeira horizontal secundária;
d) compensação financeira vertical secundária.
Por outro lado, a repartição das receitas se concretiza também por meio de dois tipos
de sistemas: o sistema de separação (Trennsystem) e o sistema de junção (Verbundsystem) no âmbito da estrutura estatal constituída apenas por dois níveis, Federação e
Estados-Membros.
Ocorre o sistema de separação quando as receitas são divididas segundo o tipo de
imposto e destinadas pela Lei Fundamental isoladamente à Federação ou aos Estados,
verificando-se, assim, a existência de um único plano.
O sistema de junção se concretiza pela divisão em quotas das receitas conjuntas de
determinados impostos sujeitos à compensação. Esse sistema, diversamente do sistema de separação, realiza-se em dois planos, quando a receita dos impostos comuns é
dividida em quotas e destinadas aos vários entes políticos.
A seguir será brevemente exposto cada um desses níveis do sistema financeiro, através do qual despesas e receitas são compensadas, com o fim precípuo de alcançar
as condições homogêneas de vida na República Federal da Alemanha pela efetiva
prestação de serviços em obediência à dignidade da pessoa humana e a seus direitos
fundamentais.
5.1 Compensação Financeira Vertical Primária
Em primeiro lugar, ocorre a compensação financeira vertical primária. É a repartição
A Federação detém o produto dos monopólios financeiros e os rendimentos dos impostos elencados na alínea 1 , do artigo
106 da Lei Fundamental:
a) os direitos aduaneiros;
b) os impostos sobre bens de consumo, sempre que não pertençam aos Estados ou conjuntamente à Federação e aos Estados, ou aos Municípios;
c) o imposto sobre transportes rodoviários de bens;
d) o imposto sobre as transferências de capitais, de seguros e o imposto sobre atividades cambiais;
e) os impostos únicos sobre o patrimônio e os impostos compensatórios para a realização de compensação dos encargos;
f) o imposto complementar ao imposto sobre o rendimento pessoa física e ao imposto sobre o rendimento de pessoas
jurídicas;
g) taxas no âmbito das Comunidades Européias.
6
Aos Estados pertencem os rendimentos dos impostos estaduais, vale dizer os previstos na alínea 2 do artigo 106 da Lei
Fundamental:
a) o imposto sobre o patrimônio;
5
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
das receitas e dos monopólios fiscais entre a Federação5 e os Estados6, acrescendo os
Municípios7 e as associações de municípios. Ou seja, a distribuição de determinadas
receitas fiscais ocorre exatamente conforme a competência constitucional para arrecadar certos impostos. O ente político arrecadador apenas retém para si o montante total
percebido em face do monopólio fiscal.
5.2 Compensação Financeira Horizontal Primária
O segundo nível da compensação financeira é a compensação financeira horizontal
primária, no qual se verifica a repartição da quota-parte estadual nos rendimentos dos
impostos comuns.
Os impostos mais significativos são o Imposto sobre Rendimento Pessoa Física, o
Imposto sobre Rendimento Pessoa Jurídica e o Imposto sobre o Consumo. Em razão
de sua importância no que se refere à arrecadação, esses impostos são chamados de
impostos comuns.
Isso quer dizer que cada Estado recebe uma quota-parte da receita dos impostos comuns, os quais são arrecadados em observância do princípio da receita local ou do
número de seus habitantes, dependendo do imposto.
A distribuição pelo número de habitantes é adotada para atender ao critério da necessidade abstrata, a qual é exclusivamente orientada pela característica da necessidade do
habitante. Em tese, cada habitante da República Federal da Alemanha possui a mesma
necessidade dos demais. A necessidade de um Estado é abstratamente limitada pelo
número de seus habitantes. O fator habitante é um indicador para a regionalização da
necessidade financeira.
O princípio da distribuição da receita local visa a destinar aos Estados o produto fiscal
que as autoridades fiscais em seu território arrecadam. A Constituição alemã se refere
à regulamentação da competência local das autoridades fiscais para a imposição dos
impostos, cuja regulação encontra-se precisamente prevista no Código Tributário alemão nos parágrafos 16 a 20.
b) o imposto sobre sucessões;
c) o imposto sobre veículos automotores;
d) os impostos sobre transporte rodoviário, sempre que não pertençam à Federação ou conjuntamente à Federação e aos
Estados;
e) o imposto sobre cerveja;
f) as taxas de casas de jogos.
7
No artigo 106, alíneas 5, 6, 7 e 9, da Lei Fundamental, está disposto o modo pelo qual os Municípios são incluídos na
distribuição fiscal vertical.
Os Municípios recebem uma quota-parte da receita do Imposto sobre o Rendimento Pessoa Física, enviada pelo Estado a
que pertencem, na base do imposto pago pelos seus habitantes; e uma quota-parte da receita do Imposto sobre Consumo,
pessoa jurídica, repassado pelo seu Estado em razão do princípio da arrecadação local. Cabem também aos Municípios
o Imposto Imobiliário, o Imposto sobre atividade autônoma, os rendimentos locais dos Impostos sobre o Consumo e Imposto sobre determinados Gastos (Aufwandsteuer, por exemplo, o imposto sobre cão) e uma porcentagem na quota-parte
estadual da receita dos impostos comuns.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A repartição da receita do Imposto sobre Rendimento Pessoa Física e Jurídica8 adota
o princípio da receita local e o Imposto sobre Consumo9, o critério do número de
habitantes.
E, facultativamente, os Estados podem receber participações suplementares previstas
por lei federal com aprovação do Conselho Federal até ¼ (um quarto) da quota estadual do Imposto sobre Consumo, repartidas, independentemente do número de habitantes, como quota suplementar para os Estados que tiverem as receitas dos impostos
estaduais e do Imposto sobre o Rendimento de Pessoa Física e de Pessoa Jurídica
inferiores à média dos Estados, por habitante. O restante da receita do Imposto sobre
Consumo – 75% – é repartido em quota-parte estadual segundo o critério do número
de habitantes, e a disposição legal correspondente a essa distribuição está no parágrafo 2º da Lei de Compensação Financeira entre os Estados10, de 28.08.1969. Ademais,
os limites para os Estados com direito à subvenção complementar e o valor da contribuição que os Estados obrigados à compensação devem prestar, para a concretização
da compensação financeira horizontal primária, estão delineados nessa mesma lei.
5.3 Compensação Financeira Horizontal Secundária
A compensação financeira horizontal secundária é a etapa de maior relevância para
a efetivação da homogeneidade da capacidade financeira entre os Estados federais,
obstando perpetuação de desigualdades.
Esse nível de compensação, previsto no artigo 107, alínea 2, da Lei Fundamental, preArtigo 107º (primeira parte)
(1) Cabe aos diversos Estados a receita dos impostos estaduais e a quota-parte estadual na receita do imposto sobre o rendimento pessoal e do imposto sobre a renda de uma pessoa jurídica, na medida em que os impostos sejam cobrados pelas
autoridades financeiras no seu respectivo território (receita local). Por lei federal que carece da aprovação do Conselho
Federal, devem ser estabelecidas, para o imposto sobre a renda de uma pessoa jurídica e o imposto sobre salário, disposições pormenorizadas sobre a delimitação bem como sobre o modo e volume da distribuição da receita local. A lei pode
igualmente estabelecer disposições sobre a delimitação e a distribuição da receita local de outros impostos [...]
9
Artigo 107 (segunda parte)
(1) [...] A quota-parte estadual na receita do imposto sobre consumo cabe aos diversos Estados na medida do número dos
seus habitantes; podem ser previstas, por uma lei federal que carece da aprovação do Conselho Federal, para uma parte não
superior à quarta parte da quota estadual, participações suplementares para aqueles Estados cujas receitas dos impostos
estaduais bem como do imposto sobre o rendimento pessoa física e sobre a renda de pessoa jurídica sejam inferiores, por
habitante, à média dos Estados.
10
§ 2º Distribuição do Imposto sobre Consumo entre os Estados
(1) A quota-parte estadual no Imposto sobre Consumo segundo o § 1, alínea 1, norma 3, é distribuído 75% em relação ao
número de habitantes do Estado e 25% conforme prescrição da alínea 2.
(2) Os Estados, cujas receitas do Imposto sobre rendimento Pessoa Física, do Imposto sobre Rendimento Pessoa Jurídica,
da cota do Imposto sobre Atividade Autônoma e dos citados no § 7, alínea 1, impostos estaduais verificados pelo número
de habitantes, estão abaixo de 92% da média dos Estados, recebem da quota-parte estadual do Imposto sobre Consumo
uma quota complementar no montante que faltar para atingir os 92% da média estadual. A quota-parte estadual restante do
Imposto sobre Consumo é distribuída em relação ao número de habitantes dos Estados. Se o montante da quota complementar segundo norma 1 é no total mais do ¼ da quota total do Imposto sobre Consumo, assim as quotas complementares
são reduzidas respectivamente.
(3) Para o cálculo das quotas de cada Estado no Imposto sobre Consumo é o número de habitantes decisivo, o qual é determinado pelo Departamento Federal de Estatística até 30 de junho do ano em exercício.
8
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tende corrigir o resultado obtido na distribuição das receitas fiscais na compensação
horizontal primária, por isso tem natureza subsidiária.
Essa etapa será abordada em item próprio em face da sua inegável influência e importância nos resultados finais pretendidos pelo Estado Federal. É orientada não somente
pelo texto constitucional, mas também por lei federal específica, além de sofrer uma
vigilância acirrada exercida pelos Estados, pois em determinado ano um ente político
pode estar obrigado a compensar o seu excedente e em outro ano ter o direito de receber contribuição suplementar dos demais, e, indubitavelmente, sempre é difícil para
um Estado ter que repartir o seu excesso de receitas, no final de um ano.
5.4 Compensação Financeira Vertical Secundária
Por último ocorre a compensação financeira vertical secundária. Refere-se à redistribuição das receitas, originalmente pertencentes à Federação, mas que serão repartidas
e destinadas aos Estados com capacidade reduzida para a prestação de serviços públicos em razão de uma determinada situação ou fator preponderante.
Busca-se através desse nível de compensação financeira proporcionar ao Estado que
esteja ainda com a sua capacidade financeira abaixo da média dos Estados a cobertura
de suas necessidades financeiras.
No final, ultrapassadas todas as fases da compensação financeira, existirão os Estados-doadores, os quais estão obrigados à prestação de distribuir o seu excedente
apurado entre as suas despesas e receitas, e os Estados-recebedores, aqueles com direito a prestação de receber dos Estados-doadores o montante faltante para cobrir suas
despesas, porém nos percentuais fixados em lei.
Somente desse modo é possível uma Federação com Estados autônomos, responsáveis
pelas suas tomadas de decisões no âmbito dos três poderes, com capacidade financeira
hábil a proporcionar a toda a população do território federal tratamento homogêneo
em face do princípio da igualdade. Não podem fatores diversos, tais como geográficos, históricos, econômicos, administrativos ou políticos, obstarem o fiel cumprimento dos princípios e das normas constitucionais.
6. A Compensação Financeira entre os Estados prevista no artigo 207, alínea 2,
da Lei Fundamental
Reza a norma da alínea 2 do artigo 207 do texto constitucional:
Artigo 207º
(1) [...]
(2) 1A lei deve assegurar que as diferentes capacidades financeiras dos Estados sejam adequadamente compensadas; para esse
efeito deve tomar-se em consideração as capacidades e necessi-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
dades financeiras dos Municípios (associações de municípios).
Essa lei deve determinar os pressupostos para as pretensões de
compensação dos Estados que a ela tenham direito e para os deveres de compensação dos Estados a ela obrigados, assim como
os critérios para o montante das prestações de compensação.
A lei mencionada no texto supra é a Lei de Compensação Financeira de 28.08.1969
que entrou em vigor em 01.01.1970, a qual revogou a Lei de Compensação Financeira
entre os Estados de 07.10.1965.
Por tratar-se de uma lei que diz respeito à própria vida e à essência do Estado Federal, tem natureza transitória em face da imperiosa demanda de estar constantemente
se adequando à realidade do país. Assim, em 2005, novo texto entrou em vigor pela
premência de se integrar a Alemanha do leste e a do oeste, devido à queda do muro de
Berlim, pois seria inconcebível para os alemães manterem e perpetuarem a desigualdade socioeconômica revelada pela unificação.
O pressuposto para a concretização da compensação financeira horizontal entre os
Estados está calcado, agora mais do que nunca, na solidariedade cooperativa entre
os Estados mais ricos e os mais pobres financeiramente. Com isso, os novos Estados
alemães, que passaram a integrar o Estado Federal, têm uma perspectiva segura de
serem efetivamente reconstruídos ao serem incluídos nesse sistema fechado de quatro
níveis.
A Lei em apreço estabelece que para a realização da compensação financeira entre os
Estados serão prestados das quotas dos Estados obrigados à compensação (quotas de
compensação) subsídios aos Estados com direito à compensação (subsídios da compensação).
Vale dizer, que os Estados que arrecadam receitas acima do valor legalmente estipulado devem contribuir financeiramente com os Estados que não atingiram a média legal.
As contribuições dos Estados fortes financeiramente se transformam em subsídios
para os Estados considerados fracos ou pobres financeiramente, ou seja, com capacidade financeira reduzida, por não disporem de rendimentos suficientes para cobrir as
despesas com os serviços públicos de modo a serem executados na sua plenitude, hipótese que ocasionaria prejuízo aos cidadãos pela violação de direitos fundamentais.
Destarte, a Lei de Compensação Financeira define ausgleichsberechtigte Länder (Estados com direito à compensação): (2) “Com direito à compensação são os Estados,
cujo índice da capacidade financeira no ano da compensação não atinge o índice da
compensação”.
Esses Estados, por exemplo, receberão 100% da quantia devida na compensação
se o seu número-índice de capacidade financeira não atingir 92% do número-índice
de compensação. E os Estados que tiverem a sua capacidade financeira entre 92% e
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100% do número-índice de compensação receberão 37,5% da quantia devida na compensação financeira horizontal secundária. Os percentuais, os quais estão relacionados
a uma quantia limite, o número-índice de capacidade financeira e o número-índice de
compensação estão expressamente fixados na lei federal, porém podem sofrer alterações na medida da essencialidade de se preservar o equilíbrio do regime financeiro.
Quanto aos ausgleichspflichtige Länder (Estados obrigados à compensação), a Lei de
Compensação Financeira estabelece: (1) Obrigados à compensação são os Estados,
cujo índice da capacidade fiscal no ano fiscal em que a compensação é realizada (ano
da compensação) excedeu o índice de compensação.
Os Estados obrigados a levaram o seu excedente fiscal à compensação são os chamados Estados ricos. Toda vez que o número-índice de capacidade financeira de um
Estado atingir o número-índice de compensação entre 100% e 101%, esse Estado está
obrigado a contribuir com 15% da quantia devida na compensação financeira horizontal secundária. Se o índice de sua capacidade financeira atingir entre 101% e 110%,
esse Estado contribuirá com 66% da quantia devida e se algum Estado ultrapassar em
110% o número-índice de compensação, estará obrigado a contribuir com 80% da
importância.
Dessa forma, a Lei de Compensação Financeira entre os Estados exerce minucioso
controle sobre os rendimentos fiscais dos Estados, impondo limites para que alguns
não acumulem em excesso tais rendimentos em detrimento daqueles que necessitam
desses mesmos rendimentos para afastar as desigualdades socioeconômicas e proporcionar aos habitantes de todo o território nacional uma vida digna, privilegiando-se o
bem-estar social.
6.1. Os Conceitos Normativos
O objetivo da compensação financeira horizontal é realizar a compensação adequada
das diferentes capacidades financeiras dos Estados. Há uma tentativa de se entender o
alcance do conteúdo desse objetivo constitucional, pois o legislador da compensação
financeira não pode se afastar dos critérios materiais constitucionais.
A compensação adequada não significa compensação total, que levaria a uma equalização da capacidade financeira de todos os Estados. A equalização viola a norma
da proibição de nivelação. Aqui se afigura um sobrelimite da compensação, pois a
compensação financeira não pode levar de modo algum a uma nivelação das finanças
dos Estados. Esta é uma hipótese, em que se ultrapassariam os limites normativos
constitucionais fixados para a compensação financeira.
Por outro lado, a compensação adequada alcançaria o sublimite se a capacidade de
prestação de serviços dos Estados fracos financeiramente não fosse assegurada. As
normas da Lei de Compensação Financeira entre os Estados não atingiriam o seu
escopo, ficariam aquém das diretrizes constitucionais.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A compensação adequada nada mais é do que o pressuposto para as pretensões de
compensação dos Estados com direito a compensar e a obrigatoriedade de compensação dos Estados com dever de compensar, assim como os critérios para o montante
das prestações da compensação no poder de determinação do legislador da compensação financeira.
Resta evidente que a compensação adequada como um conceito normativo constitucional espelha um compromisso político.
A necessidade financeira é representada pelo volume de despesas despendido para
o cumprimento das tarefas públicas, como também é o fundamento para limitar a
capacidade financeira.
É certo que a capacidade financeira não pode ser determinada sem a necessidade financeira de um Estado, pois as receitas financeiras isoladamente nada dizem acerca da
capacidade financeira. Para se chegar ao elemento necessidade, primeiramente devese examinar o conceito de capacidade financeira.
Em princípio, todos os Estados têm as mesmas tarefas a cumprir, porque a Lei Fundamental lhes confere as mesmas competências. E se têm as mesmas tarefas, por
conseguinte, têm as mesmas despesas e deveriam ter também a mesma necessidade
financeira.
Para a execução das tarefas estatais gastos são despendidos. Esses gastos são determinados pelo tipo, pela abrangência e pela dificuldade da tarefa, bem como pela relevância dos dados financeiros, isto é, o tamanho do Estado, a sua estrutura econômica,
o número de habitantes e as particularidades histórico-geográficas. Contudo o modo e
a intensidade com que essas tarefas são cumpridas, em regra, dependem da discricionariedade de cada Estado.
De outro norte, o legislador da compensação financeira pode na compensação financeira horizontal, segundo o art. 107, alínea 2, normas 1 e 2, referir-se a uma necessidade especial concreta ou uma necessidade abstrata dos Estados. A Lei Fundamental
não contém regulamentação que proíba a consideração de qualquer necessidade especial. Trata-se de uma discricionariedade do legislador da compensação financeira, discricionariedade que está delimitada pela ordem da auto-responsabilidade dos Estados.
Essa ordem proíbe que um Estado, na compensação financeira horizontal, eleve sua
necessidade financeira em razão de sua política financeira e econômica, sobrecarregando outros Estados.
Somente as necessidades abstratas, em princípio, são levadas à compensação financeira entre os Estados, pois elas geram reais capacidades financeiras diferenciadas em
virtude de circunstâncias geográficas, peculiaridades históricas entre outros fatores.
Como já mencionado, o número de habitantes de um Estado é o critério abstrato para
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
definição da necessidade na medida em que cada habitante gera o mesmo ou similar
volume de despesa, motivo pelo qual para o ilustre doutrinador Hidien, a capacidade
financeira deve ser entendida como os rendimentos financeiros relacionados ao número de habitantes de um Estado e projetados segundo as suas diferentes necessidades
(HIDIEN, 1999).
Então, o ponto de referência decisivo para a comparação das receitas financeiras dos
Estados é o critério abstrato da necessidade para a realização das despesas.
Uma necessidade financeira abstrata é representada por dados financeiros relevantes
que, a longo prazo, são invariáveis e dizem respeito a todos os Estados. É vedada
qualquer consideração particular a um determinado Estado.
A determinação dos conceitos necessidade abstrata e necessidade especial nada mais
são que convenções normativas jurídicas, gerando freqüentemente debates como é o
caso da expressão Sonderbedarf (necessidade especial), a qual não se apresenta claramente por não ter sido sua definição esmiuçada nem pela doutrina nem pelo Tribunal
Constitucional Federal. Compreende-se, então, essa expressão através do confronto
com conceitos opostos. Por isso, toda vez que houver referência ao vocábulo Bedarf
(necessidade), sem dúvida, toda atenção é importante para não gerar distorções na
interpretação da legislação pertinente.
A necessidade ou encargo especial se refere, particularmente, a uma situação específica e a condições especiais de determinados Estados.
No direito financeiro alemão há, além da expressão Sonderbedarf, as seguintes expressões: Finanzbedarf, effektiver Bedarf, konkreter Bedarf, besonderer Bedarf, spezieller Bedarf, individueller Bedarf, Einzelbedarf e bestimmter Bedarf. Algumas são
sinônimas, outras possuem pequenas diferenças, e ainda outras têm particularidade
própria. Em razão dessa riqueza de expressões para referir-se a necessidade, importante é identificá-las e delimitá-las especificamente no âmbito desse ramo do Direito
alemão, para absoluto entendimento da compensação das capacidades financeiras entre os Estados.
O mesmo ocorre com o vocábulo Lasten (encargo, ônus). As seguintes expressões são
empregadas para fins específicos no Direito Financeiro alemão: individuelle Lasten,
spezielle Lasten, besondere Lasten, Sonderlasten, Sonderbelastungen e besondere
Ausgabenlasten. Essas expressões servem para qualificar o vocábulo Lasten. E quanto
aos tipos de Lasten (encargos), entre outros, existem os seguintes: encargo portuário,
encargo em conseqüência da guerra, encargo resultante das despesas com refugiados,
encargo do carvão, encargo do aço, encargo para com estaleiro, encargo para com a
assistência social, custos com o exercício político e custos com o pessoal de ocupação.
Mas o único encargo por muito tempo relevante para a compensação financeira entre
os Estados foi o encargo portuário (Hafenlasten).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Na primeira lei de compensação financeira de 1951, foram incluídos certos encargos
coletivos decorrentes das circunstâncias pós-guerra. A reforma financeira de 1955, no
entanto, já limitou a compensação à mera compensação das capacidades financeiras,
excluindo os encargos especiais e permanecendo como exceção o encargo especial
para a manutenção e a reforma dos portos das cidades hanseáticas. E, com certeza, a
lei de compensação financeira de 1969, se comparada a de 1955, contém bem menos
elementos relativos aos encargos especiais.
Para que os encargos decorrentes de uma necessidade concreta façam parte da compensação financeira horizontal secundária entre os Estados depende de previsão legal,
pois o legislador pode, em princípio, considerar tal encargo compensável.
É a eterna problemática dos conceitos normativos que interessa a todos, pois tais
conceitos relacionam-se diretamente com os resultados finais a serem auferidos pela
compensação financeira.
7. Brasil
Toda sorte de desigualdade é bem conhecida pelos brasileiros, sendo, sem dúvida, um
dos maiores desafios a ser enfrentado por esta Nação a superação dessa gritante situação. Não há brasileiro que não tenha vivenciado as discrepâncias, as diferenciações,
de toda ordem, entre os cidadãos, com violação, inclusive dos seus direitos fundamentais. Embora seja essa realidade conhecida por todos, por si só isso não é suficiente;
imprescindíveis são ações efetivas, sobretudo, vontade política.
O exemplo da República Federal da Alemanha é importantíssimo na medida em que
esse país conseguiu extirpar, mediante decisões políticas efetivas, as desigualdades
regionais geradas, principalmente, pela Primeira e pela Segunda Guerras Mundiais,
além de ter eliminado também as diferenças já existentes àquele tempo em virtude de
fatores geográficos e históricos, entre outros.
Além disso, com a queda do muro de Berlim há mais de uma década, o povo alemão
tem trabalhado pela homogeneização das condições de vida em todo o território federal alemão, Leste e Oeste. Os milhares de alemães do oriente, os quais viviam sob
o regime socialista, passaram a conviver com os alemães do ocidente, pertencentes
à terceira economia capitalista do mundo, ficando, com isso, evidente as diferenças
socioeconômicas, as quais paulatinamente estão sendo eliminadas.
Diante dessa situação, o governo alemão sentiu-se convicto de
sua decisão de agir rapidamente. O ponto central da incorporação da economia oriental era o plano de redução das disparidades regionais. (BARUJA, 2001, p. 32) (grifo nosso)
Esse texto de Salvadro Pane Baruja revela de forma simples o anseio e a consciência
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do povo alemão de estar sempre dissipando as diferenças entre os seus cidadãos e
proporcionando-lhes condições de vida dignas, respeitando os direitos fundamentais.
No caso brasileiro, a disparidade econômica e financeira entre o próspero sul e o
pobre norte do País poderia também ser dissipada através de uma compensação financeira entre os Estados. Tal compensação garantiria uma efetiva autonomia financeira
de todos os entes políticos, potencializando as ações estatais por serem eles detentores
de uma real capacidade financeira.
Embora não haja na República Federativa do Brasil previsão legal de uma compensação financeira nos termos da prevista na República Federal da Alemanha, existem
algumas leis estaduais esparsas que buscam de uma maneira ainda muito acanhada a
homogeneização das condições de vidas no território estadual.
No Estado de Minas Gerais, a Lei n.º 12.040, de 28.12.95, a chamada Lei Robin
Hood, de cunho eminentemente social, dispunha sobre a distribuição da parcela da
receita do produto da arrecadação do ICMS pertencente aos Municípios, de que trata o
inciso II do parágrafo único do artigo 158 da Constituição federal. Essa lei foi revogada, embora visasse beneficiar os Municípios considerados pobres que investissem em
saúde, educação, meio-ambiente e saneamento básico. Com a melhoria das condições
de vida no Município através desses investimentos, diminuir-se-ia sensivelmente a
emigração da população das cidades menores para os grandes centros.
A lei em questão havia introduzido um novo cálculo de 25% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) arrecadado. Desse imposto, 75% eram destinados ao
Município que gerou tal receita e 25% eram distribuídos entre aqueles Municípios que
investiram na melhoria das condições de vida de sua população.
O resultado almejado com a introdução dessa lei era o mesmo buscado com a compensação financeira horizontal entre os Estados da República Federal da Alemanha.
O habitante de qualquer Município do Estado de Minas Gerais deveria receber os
mesmos serviços públicos que receberia se morasse nas cidades de grande porte ou
mesmo na capital do Estado.
Foi louvável a iniciativa do Poder Legislativo do Estado de Minas Gerais ao promulgar tal lei, pois ela se afigura, sem dúvida, uma tentativa, embora ainda muito
mitigada em razão das proporções territorial e populacional do Brasil e do acentuado
desequilíbrio estatal, para desvanecer a tão conhecida desigualdade socioeconômica
entre os brasileiros.
A Lei n.° 12.040/95 tinha sua vigência prevista até dezembro de 2000, data em que o
então Governador, Itamar Franco, sancionou a nova Lei n.° 13.803, com o fim precípuo de dar continuidade aos benefícios que a lei anterior proporcionava à população
dos Municípios.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Contudo o Estado do Paraná foi pioneiro no Brasil no que se refere à iniciativa de
buscar uma homogeneização das condições de vida nos Estados. Em 1° de outubro de
1990, esse Estado sancionou a Lei Estadual n.° 59, denominada Lei do ICMS Ecológico, de grande alcance social e com amplas repercussões sobre o desenvolvimento e
a qualidade de vida dos seus cidadãos.
Segundo a Lei n.º 59 supracitada, 5% do ICMS são repassados aos Municípios que
abrigam em seu território mananciais de abastecimento público de interesse de Municípios vizinhos e/ou tenham Unidades de Conservação Ambiental, parques e estações
ecológicas, entre outros.
Através dessa lei paranaense, centenas de Municípios puderam ser beneficiados pelo
repasse de verbas, além de incentivá-los a cuidarem de seus rios, riachos e córregos. O
resultado obtido com a Lei do ICMS Ecológico, até o presente momento, é a melhoria
da qualidade das águas paranaenses em mais de 68% desse Estado.
Pelas poucas manifestações legislativas vislumbradas até o presente, pode-se perceber
que existe, sim, a consciência das disparidades sociopolíticas vivenciadas pelo povo
brasileiro, bem como a consciência da necessidade de mudar tal realidade. Contudo,
o que se tem verificado é a falta de atitudes concretas e de vontade constitucional que
viabilizem, em definitivo, a extirpação das discrepâncias socioeconômicas da República Federativa do Brasil.
8. Conclusão
Mais do que nunca, após o presente estudo, é possível compreender a relevância de
se ter um sistema tributário e financeiro que, de fato, beneficie à população brasileira,
respeitando os seus direitos e garantias individuais assegurados constitucionalmente.
Todos os esforços devem ser envidados para se alcançarem resultados favoráveis na
arrecadação fiscal e na distribuição e das receitas, tudo em benefício do seu povo.
O sistema de compensação financeira, nos seus quatro níveis, previsto na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha e na Lei de Compensação Financeira entre
os Estados se afigura um exemplo a ser copiado em face dos resultados positivos
auferidos desde a criação desse sistema financeiro.
É hialina a eficiência desse sistema complexo devido ao desenvolvimento e crescimento homogêneo da Alemanha. Todos entes federados crescem e se desenvolvem,
simultaneamente, como uma unidade, vedando, sim, a uniformização de condutas e
resultados. Além disso, cada cidadão alemão recebe do Estado a prestação de serviço
com a mesma qualidade, independentemente do Estado ou região em que resida, havendo uma harmonização das condições de vida em obediência ao princípio constitucional da igualdade formal e material dos cidadãos.
Destarte, é desejável que o Brasil também seja reconhecido como uma unidade e não
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como o País da diversidade socioeconômica, onde a maioria da população sobrevive
em condições de vida absolutamente precárias.
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3. PALESTRA
3.1 CODIFICAÇÃO OU NÃO DO PROCESSO COLETIVO?1
NELSON NERY JUNIOR
PALESTRANTE PROFESSOR NELSON NERY JÚNIOR: Sinto-me muito honrado em estar em Belo Horizonte, participando desta Semana do Ministério Público e
revendo amigos que tenho em Minas Gerais, principalmente, dentro do Ministério
Público, Instituição a que eu servi por 28 anos e deixei em dezembro, no ano passado.
Agora, estou na Advocacia, mas sempre serei do Ministério Público. Para mim, é sempre um prazer muito grande discutir questões que interessam à cidadania, à sociedade
civil e ao Ministério Público, como defensor da sociedade que é. Quero cumprimentar
todo o Ministério Público do Estado de Minas Gerais pela sua semana comemorativa
e dizer que vim aqui para falar sobre a codificação ou não do Processo Coletivo, que
é um tema que não tem sido muito discutido, mas que interessa de perto à Instituição
do Ministério Público.
O Processo Coletivo é hoje regulado por um ou outro dispositivo da Constituição
Federal e por dois diplomas infraconstitucionais, que são os mais importantes a tratarem dessa matéria. Refiro-me à Lei da Ação Civil Pública, Lei n.° 7.347/1985; e à
parte processual do Código de Defesa do Consumidor, Lei n.º 8.078/1990. Também
existem dispositivos de Processo Coletivo no Estatuto da Criança e do Adolescente,
Lei n.º 8.069/1990 e há alguns dispositivos em leis esparsas. O Processo Coletivo,
hoje, é regulado, do ponto de vista normativo, por várias leis. Fazendo um trocadilho,
está um pouco difusa a sua regulamentação do ponto de vista normativo. É preciso
que se faça um Código de Processo Coletivo? Temos o Código de Processo Civil, um
diploma excelente, cujo anteprojeto foi feito pelo Professor Alfredo Buzaid, catedrático de Direito Processual Civil na Universidade de São Paulo, ex-Ministro da Justiça,
ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, pessoa de altíssima capacidade técnicocientífica. O Professor Buzaid redigiu o anteprojeto, que acabou tornando-se o Código
de Processo Civil. Entretanto, a preocupação do CPC é com a lide individual. O CPC
é um diploma excelente, mas não se preocupou com a tutela coletiva, é um diploma
absolutamente individualista e ele já se anuncia assim nos seus primeiros artigos.
Chamo a atenção para o seu art. 6°, que é o que trata da substituição processual e tem
a seguinte redação: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo
quando autorizado por lei”, isto é, só se pode vir a Juízo na defesa do seu próprio direito. O Código de Processo Civil está dizendo que é um diploma legal individualista,
ao asseverar que o titular do direito é que está legitimado para defendê-lo em Juízo.
Ele, portanto, já se anunciou um diploma individualista e os problemas coletivos não
são totalmente resolvidos por lei nesse sistema do Código de Processo Civil. Portanto,
houve a necessidade de uma legislação que tratasse de processo sob o ponto de vista
Palestra proferida na Semana do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em 14.09.2005, na sede da ProcuradoriaGeral de Justiça, em Belo Horizonte. Publicação autorizada, mas sem a revisão final do autor.
1
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coletivo e à qual já me referi anteriormente.
Abrindo um parênteses, estava falando que o Código de Processo Civil é excelente,
mas estão mutilando o CPC. Há tantas leis quebrando o sistema, que um dos assuntos que vamos abordar também é a técnica legislativa. É preciso codificar o Direito
coletivo? Já me adianto, entendo que sim. Entretanto, esse Código não pode ser feito
da forma que têm sido feitas as reformas do CPC. Por maior boa vontade que os
membros do Poder Judiciário tenham no encaminhamento de propostas legislativas
para a modificação de Códigos (refiro-me ao Código de Processo Civil) não é só com
boa vontade que se consegue manter a unidade de um sistema codificado, como é o do
CPC, o do Código Civil e assim por diante. Não é por acaso que, em todos os países
civilizados do mundo ocidental, para a feitura de um Código, os governos nomeiam
comissões de Juristas. Não é uma comissão de Juízes, nem de Promotores de Justiça,
nem de Advogados, mas de Juristas. Isso se dá porque é preciso que se conheça sistema, dogmática, para que se faça um Código. Não basta que se tenha conhecimento
empírico da realidade social, do caso concreto, que se tenha experiência judicante.
Ainda que se conheça a situação do dia-a-dia, é preciso conhecer ciência. Para se fazer
um Código, é preciso ter um vasto conhecimento de sistema e para modificá-lo exigese a mesma coisa. Por isso é que, no processo legislativo, para a feitura e a alteração
de um Código, os regimentos do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal prevêem um quórum qualificado. É um pouco mais delicado o
processo legislativo de feitura e modificação de um Código, portanto, ainda que o Código seja uma lei ordinária como outras. As leis ordinárias stricto sensu, leis comuns,
têm o processo legislativo mais leve. Já a lei ordinária que tem natureza jurídica de
Código tem um processo legislativo diferente no Congresso Nacional. Ainda assim,
lobbies têm sido feitos no Congresso para se aprovarem reformas do CPC. Temos
visto todos os dias a desfiguração do sistema do Código de Processo Civil com essas
leis que alteram o diploma. Eu não sou contra o aperfeiçoamento de leis, não sou
contra a melhoria da atividade jurisdicional, ninguém pode ser contra isso. Estou me
insurgindo pela afoiteza com que as coisas são feitas e pela falta de cientificidade e de
profissionalismo na condução dessas matérias. Que fique bem claro que é contra isso
que estou me insurgindo, pois ninguém pode ser contra melhorar a situação das leis
e do Direito no país. Temos que jogar no mesmo time, mas temos que saber fazer a
coisa. Por exemplo, uma reforma que tem sido preconizada é a de se alterar o sistema
do CPC para se permitir que o Juiz ex-officio proclame prescrição. Atualmente, o Juiz
só pode decidir ex-officio decadência, mas não a prescrição. Então, há um projeto de
lei de modificação do CPC que traz embutido no último artigo “[...] fica revogado
o art. 185 do Código Civil”. O art. 185 é aquele que diz que a prescrição não pode
ser conhecida de ofício. Com essa alteração, modifica-se o sistema do Código Civil,
porque há outros vários artigos que tratam das conseqüências se o Juiz não declarar
de ofício uma prescrição, como, por exemplo, uma prescrição tratada como obrigação
natural. Portanto, não é assim que se modifica um Código, não é por acaso que se nomeiam Juristas para se fazer Códigos, fazer-se uma modificação ali ou acolá, porque
um Ministro acha que é importante, em decorrência de um caso havido no Tribunal,
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
data venia. Precisamos dar mais profissionalismo, maior seriedade na criação e na
reformulação de Códigos. Fico muito preocupado quando vejo a existência de vários
projetos e estudos de Códigos-modelo do Processo Coletivo para a América Latina,
para a codificação do Processo Coletivo no Brasil. Isso representa a normatização de
ações coletivas que são do interesse do Ministério Público e cuja existência não foi até
hoje comunicada ao Ministério Público. Realmente é de se preocupar.
Voltando à questão do Processo Coletivo como nosso assunto principal, estava falando que fizemos essas várias leis que formam o que eu chamaria de corpo normativo do
Processo Coletivo no Brasil. Então, há dispositivos na Constituição Federal; no Código do Consumidor, em sua parte processual; na Lei de Ação Civil Pública; na parte
processual do Estatuto da Criança e do Adolescente; e em outras leis menores. As
normas do Processo Coletivo estão, portanto, basicamente contidas nessas leis. Acho
que seria, realmente, de muito interesse que houvesse uma codificação do Processo
Coletivo. Acho importante que haja essa codificação, porque o CPC é um diploma
criado para solucionar problemas intersubjetivos individuais e não tem um arcabouço suficiente para atender a todos os reclames da demanda coletiva. Por isso, houve
necessidade, supervenientemente ao CPC, de se fazer uma legislação que tratasse do
Processo Coletivo. O CPC é aplicável ao Processo Coletivo subsidiariamente, evidente. Mesmo porque a legislação civil pública tem 21 artigos, a parte processual do
Código de Defesa do Consumidor tem 20 artigos aproximadamente. Então, são muito
poucos os artigos de lei no Brasil que regulam a ação coletiva e a ação civil pública.
Evidentemente, há muitas lacunas e essa é a razão pela qual o Código de Processo
Civil, embora seja um diploma individualista, é aplicado subsidiariamente às ações
coletivas. Isso está em texto expresso de lei, no art. 21 da Lei de Ação Civil Pública e
no art. 90 do Código de Defesa do Consumidor.
Quanto ao problema normativo de hoje, o atual sistema do Processo Coletivo atende
à nossa realidade nessa forma esparsa em que se encontra. Queremos melhorar o
modelo, não porque o sistema não tem funcionado, mas sim para melhor se aplicar
a atividade jurisdicional nas demandas coletivas e dar uma resposta melhor para a
sociedade. Não porque haja uma deficiência do sistema atual. Lógico que o sistema
legislativo do Processo Coletivo hoje é suficiente, tem atendido razoavelmente às necessidades da sociedade no que tange às ações coletivas. O que tem acontecido é que
ele não tem sido bem entendido, não tem sido bem aplicado por setores do Poder Judiciário, o que é um outro problema. O problema não é normativo, mas de efetividade
do processo. Temos leis muito boas, o que não temos são pessoas capazes de aplicar
essas leis boas. São problemas culturais, sociais e políticos. Existem muitas barreiras
ideológicas contra a ação coletiva. Há Juízes que não gostam da ação coletiva, acham
que é coisa de comunista. Tenho somente que lamentar. Existem essas barreiras político-ideológicas contra a ação coletiva, entretanto, a lei existe. Sempre dou como
exemplo o art. 700 do Código de Processo Civil italiano. Esse artigo trata da tutela de
urgência em geral, não digo cautelar, porque há um pouco de tutela antecipada, etc. O
Código de Processo Civil italiano não tem um livro, como temos o livro III do CPC
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sobre processo cautelar, um livro do CPC inteiro sobre um tipo de processo. A Itália
tem somente um artigo, que é uma fração do mínimo necessário para se ter uma noção
do que é medida de urgência. Mas a doutrina e a jurisprudência italianas retiram bastante eficácia desse artigo. Temos um livro inteiro do processo cautelar, temos uma lei
inteira de mandado de segurança, temos várias leis inteiras de Processo Coletivo e não
temos a eficácia, a efetividade que a Itália tem na tutela de direitos metaindividuais.
O problema não é de lei, como já disse, o problema é de mentalidade, de formação da
sociedade. Os europeus têm leis pequenas sobre esses assuntos, estamos muito mais
evoluídos do que eles em matéria de leis que tratam de temas metaindividuais, como
consumidor, meio ambiente, etc. As nossas leis são muito melhores do que as deles,
mas, não temos aqui um respeito ao meio ambiente, ao consumidor como o que existe
lá. Estamos sempre falando que precisamos mudar uma certa lei, um certo Código.
Será que só isso basta? Evidente que, se temos uma lei mediana, ótimo que queiramos
melhorá-la. Entretanto, dizer que a culpa pelo não funcionamento das instituições e
dos mecanismos de defesa dos direitos das pessoas seja decorrente única e exclusivamente da lei é superestimar um texto de lei e subestimar a incompetência da sociedade
brasileira para fazer valerem os seus direitos. O nosso problema não é de norma, não
é de lei, mas de efetividade e aplicação da lei. Por exemplo, a Constituição Federal de
1988 criou o instituto do mandado de injunção, uma figura nova, um novo writ constitucional. O mandado de injunção se presta a fazer valerem direitos sociais e fundamentais quando ainda não se tem a fórmula para se exercer esse mesmo direito, isto é,
o direito está na Constituição Federal, mas você não tem como exercê-lo porque não
há lei que o regulamente. Na falta de uma lei, para que não se perca esse direito, criouse esse instituto do mandado de injunção, com o objetivo de fazer com que o Poder
Judiciário diga, no caso concreto, qual é o modus faciendi para operacionalizar aquele
direito. Esse dispositivo do mandado de injunção é fantástico. Entretanto, quando dos
primeiros casos concretos, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o mandado de
injunção não caberia, pois precisaria de regulamentação. Ressalto que o § 1° do art.
5° da Constituição Federal dispõe que os direitos fundamentais previstos neste artigo
têm aplicação imediata e não precisam de regulamentação. A lei existe e é expressa, mas o intérprete da Constituição diz que precisa de regulamentação, ainda que a
Constituição Federal diga o contrário. O problema não é da lei, mas dos julgadores
que interpretaram incorretamente a Constituição Federal. Depois de a doutrina quase
execrar o Supremo Tribunal Federal, ele amenizou a situação ao dizer que o mandado
de injunção caberia, mas o STF tirou toda a eficácia do instituto, praticamente matou
o instituto do mandado de injunção. Na verdade, temos leis atraentes, mas que não são
bem aplicadas. Elas não surtem a efetividade que delas se espera.
A primeira constatação dessa questão de se codificar ou não o Processo Coletivo é,
portanto, que temos boas leis. Sou um pouco suspeito para falar dessas leis, pois participei da Comissão que fez o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil
Pública, sou um dos autores de ambas as leis. Não cabe, então, que eu faça elogios a
elas. Entretanto, deixando essa questão de lado, a comunidade jurídica brasileira fala
que são leis excelentes do ponto de vista da sua estrutura, da sua normatização, etc.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Mas, quando as pessoas vão ao Judiciário invocar o Código de Defesa do Consumidor
ou a Lei de Ação Civil Pública numa situação concreta, o Judiciário diz que a ação civil pública não cabe para isto ou aquilo, diz que o Ministério Público não tem legitimidade para promover a ação civil pública em dada situação, etc. O problema, portanto,
não é da lei, mas da aplicação da lei. Para se modificar isso, temos que ter um Poder
Judiciário independente, coisa que não temos. Hoje, a nossa democracia, com todo
o respeito que merecem as nossas instituições, é uma democracia formal e não real.
Quem detém o poder é o Poder Executivo. Os Poderes Judiciário e Legislativo são
poderes do Estado, mas não estão no mesmo patamar do Executivo, pragmaticamente
falando. Logicamente que, do ponto de vista formal e estrutural, são todos iguais perante a lei e os seus poderes são harmônicos e independentes entre si. Entretanto, se
o Poder Judiciário não tiver dinheiro, ele não consegue executar suas obrigações. É
o Poder Executivo que faz o orçamento e, portanto, repassa o dinheiro. Não há como
se dizer que a independência é total. Essa independência não existe, principalmente
no poder central, em que o Presidente da República nomeia os Ministros do Supremo
Tribunal Federal. Os únicos critérios para essa nomeação são: notável saber jurídico e
reputação ilibada. O Presidente nomeia os Ministros e, depois, se houver algum problema que demande julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, quem julgará as causas? As pessoas que o Presidente nomeou. Qual a independência desse sistema? Não
estou criticando as pessoas dos Ministros. Estou fazendo uma crítica ao sistema, entendam bem, por favor. O sistema está errado, temos que ter uma Corte Constitucional
com formação paritária, com integrantes indicados pelos Três Poderes, o Legislativo,
o Executivo e o Judiciário, como acontece na Europa. Lá, a Corte Constitucional não
é órgão do Poder Judiciário, ela está acima dos Três Poderes, uma vez que é formada
por membros dos Três Poderes. Ela é tripartite, é absolutamente paritária e determina
o que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem fazer. A Corte Constitucional
cassa acórdão do Judiciário, cassa lei inconstitucional do Legislativo e cassa ato administrativo ilegal do Poder Executivo, pois ela tem autoridade para isso. O nosso
Supremo Tribunal Federal é órgão do Poder Judiciário. Como é que ele vai cassar uma
lei, ato típico do Poder Legislativo? Houve um impasse, certa ocasião, entre o Senador Antônio Carlos Magalhães, quando presidia o Congresso Nacional, e o Supremo
Tribunal Federal. Estava em questão a discussão de um artigo do regimento interno
do Senado Federal. O Senador Antônio Carlos Magalhães disse ao Supremo Tribunal
Federal, que ele não poderia discutir inconstitucionalidade por ADIN de regimento
interno do Senado. O Supremo Tribunal Federal decidiu, pois, que não caberia ADIN
para discutir o regimento interno do Senado Federal. Quer dizer que o Senado Federal pode descumprir a Constituição Federal e o Supremo Tribunal Federal não pode
fazer nada? Ambos estão errados. O Supremo Tribunal Federal realmente não pode
controlar ato do Poder Legislativo. Se os Três Poderes são iguais, o Legislativo deveria poder rescindir acórdão do Supremo e o Supremo poderia, então, anular a lei do
Legislativo.
Esse impasse aconteceu porque o Supremo Tribunal Federal está cumulando funções
de órgão judicial e de Corte Constitucional. Deveria haver uma corte acima do Su-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
premo Tribunal Federal. A proposta da Constituição Federal de 1988 era a da criação
de uma Corte Suprema e o Supremo Tribunal Federal viraria o que é hoje o Superior
Tribunal de Justiça, um Tribunal federal. Na última hora, no plenário da Assembléia
Nacional Constituinte, quando a Comissão criava a Corte Constitucional e o Supremo seria rebaixado a um Tribunal Federal, os Ministros fizeram um lobby violento
e mudou-se essa sistemática. Manteve-se o Supremo Tribunal Federal, então, como
órgão máximo do Poder Judiciário e criou-se o Superior Tribunal de Justiça. O Estado
brasileiro perdeu uma grande oportunidade de se organizar corretamente, no que diz
respeito ao Poder Judiciário e ao poder de Estado em geral. Esse raciocínio é para
concluir que não temos um Poder Judiciário independente. Quem tem independência
no Judiciário é o Juiz de primeiro grau, que está perto da comunidade, está do lado do
povo. Ele sente a situação concreta e dá uma liminar porque ele conhece a situação
fática, a situação da necessidade da comunidade. Quando o processo chega ao Tribunal, que está longe da população e sofre influência do governo, cassa-se a liminar. Se o
processo for para o STJ ou STF, pior ainda. Basta um telefonema do Planalto que, em
dois minutos, aniquila-se um direito que se conseguiu com muita dificuldade junto ao
Juízo de primeiro grau. A súmula vinculante é um pretexto para se melhorar a Justiça,
fazer com que haja uma melhor prestação jurisdicional, mas tudo isso é um pretexto.
São situações de subterfúgio, porque o inconfessável, o que está por trás da súmula
vinculante é o seguinte: há muitos Juízes independentes dando liminar contra o Poder
Público. Não se consegue controlar os dezessete mil Juízes do país, mas consegue-se
dar um telefonema para o Superior Tribunal de Justiça ou para o Supremo Tribunal
Federal. Impossível fazê-lo para dezessete mil Juízes. O que se pretende fazer é cortar
a independência do Juiz, fazer com que ele fique obrigado a respeitar o que se consegue junto aos Tribunais superiores. Esse é o problema da súmula vinculante sobre o
qual ninguém quer falar, já que a mídia comprou a idéia como sendo muito boa.
Voltando, não estamos aqui para discutir o Estado brasileiro, só a ação coletiva. De
toda a forma, não posso me furtar de falar sobre certas coisas, porque fico incomodado com situações que estão passando para a sociedade brasileira e a gente não tem
capacidade de se indignar. Acho que temos que nos indignar com certas coisas. Por
exemplo, se o Presidente americano fala uma mentira, ele perde o mandato, não é preciso que ele cometa ato de improbidade. No Brasil, o Presidente mente todos os dias.
Isso não sou eu quem está falando, é o Jornal Estado de São Paulo, Jornal do Brasil,
O Globo, jornais de circulação nacional. O Brasil inteiro o vê mentir, mas o Presidente brasileiro não cai. Além disso, tem que se provar ato de improbidade. Os fatos
estão provados escancaradamente, mas não acontece nada. O povo reclama da crise
política, entretanto, ninguém faz nada. O povo não vai para a rua fazer manifestações
e exigir. Em um país sério, o Presidente mentiu, está fora do governo, não é preciso
nem que ele tenha praticado ato de improbidade. Precisamos adquirir capacidade de
indignação, isso melhorará muito a sociedade brasileira. Mas, para isso, precisamos
de cultura. O Brasil precisa de passar por muitas transformações ainda. Nosso exercício de democracia tem feito com que melhoremos muito no aperfeiçoamento das
instituições, mas ainda estamos longe do ponto ideal.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Voltando ao assunto principal, precisamos mudar a lei? Não. Mas, e se mudarmos,
será bom? Sim. Acho bom criarmos um Código de Processo Coletivo, porque se o
fizermos, o mais importante para tudo isso será concentrar em uma só lei toda a sistemática e, portanto, a principiologia do Processo Coletivo. O Dr. Gregório Assagra de
Almeida fez a sua dissertação de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e este trabalho foi publicado pela Editora Saraiva. Um livro muito interessante,
em que ele faz toda a construção de uma teoria do Processo Coletivo. Ali, ele traça os
princípios do Processo Coletivo, que são diferentes dos princípios do processo individual. Por isso, acho que seria interessante termos um Código de Processo Coletivo,
porque ele terá a sua própria principiologia, terá a sua identidade enquanto corpo
normativo do Processo Coletivo, porque hoje está muito esparsa a legislação, e há um
total desconhecimento daqueles que operam o Direito com relação ao que é Processo
Coletivo. Podemos observar e concluir de forma indutiva, isto é, analisar as decisões
judiciais que são dadas desde o Supremo Tribunal Federal até o Juiz substituto recémingresso na Magistratura. Ao fazermos isso, podemos perceber que os aplicadores não
sabem quais são os princípios do Processo Coletivo, porque não tiveram essa matéria
na faculdade. Infelizmente, somente algumas poucas faculdades recentemente têm
incluído em suas grades curriculares matérias relativas a direitos metaindividuais, que
são dadas de forma sistemática logicamente. Mas a maioria dos operadores do Direito
não teve nos bancos escolares noções de Processo Coletivo, ele teve noções de Processo Civil, ações de natureza individual. Então, o Juiz, ao ver o Ministério Público
mover uma ação, diz que o Ministério Público não tem legitimidade. O Juiz está pensando de acordo com os princípios do processo individual, no qual ele foi formado,
quando, na verdade, a principiologia do Processo Coletivo é completamente diferente
daquela do processo individual. No CPC a interpretação sobre legitimidade tem que
ser absolutamente rígida, ninguém pode admitir que uma pessoa mova uma ação de
divórcio de terceiros. Tem-se que interpretar a legitimidade para uma ação de divórcio
somente em sentido estrito, só as pessoas envolvidas naquela relação jurídica podem
mover uma ação de divórcio.
No Processo Coletivo, o raciocínio é o seguinte: como o Direito tem titulares não
muito bem definidos, quem é o titular do Direito Difuso? O titular é indeterminado e
indeterminável. E os titulares do Direito Coletivo? São determináveis mas estão indeterminados no momento. A lei diz que, como não se sabe quem são esses titulares,
escolhe-se um rol com alguns legitimados. A lei traz aqueles que têm condição de
mover a ação judicial, porque senão o direito fica sem poder ser defendido em uma
eventual situação de ameaça ou lesão. A lei escolheu deliberadamente o Ministério
Público, União, Estados e Municípios e suas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, associações civis, que tenham sido constituídas há pelo menos
um ano e que incluam nas suas finalidades, em seus objetivos sociais a defesa de
alguns daqueles direitos protegidos pelas normas de direitos metaindividuais. Quando
a lei diz quais são os legitimados para mover a ação, ela não está fazendo nenhuma
correlação com o direito material colocado em juízo. É uma legitimação dissociada da
titularidade do direito material. Portanto, a principiologia é diferente, tenho que dar
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
uma interpretação mais elástica nessa legitimação, porque quem a está defendendo
não é o mesmo titular do direito. O legislador não pensou no Direito em si, do ponto
de vista material, para legitimar alguém. Ele legitima e ponto final. Esqueceu-se sobre
qual direito material estamos falando. Então, não posso interpretar a legitimação do
Processo Coletivo com a mesma ideologia, com a mesma principiologia com que eu
interpreto a legitimação para a ação individual. Essa dinâmica é difícil de se passar
para o Magistrado, porque ele não conhece a principiologia do Processo Coletivo. Ele
pensa que a coisa julgada coletiva é semelhante à coisa julgada individual. São coisas
distintas, porque há parâmetros e situações diversos. Quanto à coisa julgada individual, o art. 472 do CPC diz que esta só pode atingir as partes entre as quais deu-se a ação,
não beneficiando nem prejudicando terceiros. É a coisa julgada individual, restrita no
âmbito subjetivo, na eficácia subjetiva, às partes. Do ponto de vista coletivo, não se
pode ter coisa julgada assim, pois a coisa julgada coletiva tem que atingir as pessoas
que estejam naquela situação jurídica retratada na ação. Essas pessoas estão no Brasil
inteiro, não importa. O que fazem aqueles que não conhecem o Processo Coletivo?
Promovem uma modificação na lei, como aconteceu no art. 16 da Lei de Ação Civil
Pública, por intermédio da Lei n.º 9.494 de 1997, que, na verdade, foi objeto de uma
conversão de medida provisória. Tudo inconstitucional. Esse art. 16 diz que a coisa
julgada será erga omnes na ação coletiva, limitada ao território do Juiz que proferiu a
sentença. Confundiu-se jurisdição e competência com limites subjetivos da coisa julgada. Ainda que se tratasse de processo individual, essa modificação não teria o menor
sentido, mas isso foi feito. Foi um lobby de determinado setor político-econômico,
não vou discutir como isso aconteceu. Como eu vou limitar a eficácia da ação coletiva
ao território do Juiz? Isso não tem cabimento, porque a interpretação de quem está
falando em Processo Coletivo está sendo feita conforme a principiologia do processo
individual. Por isso seria interessante a criação de um Código do Processo Coletivo.
Seria uma oportunidade de ali se retratar a principiologia própria, singular do Processo Coletivo. Ali se fixariam os parâmetros, os princípios que deveriam nortear toda a
situação do Processo Coletivo. Essa será a grande vantagem de adotarmos, no Brasil,
uma lei que institua um Código de Processo Coletivo. Realmente, acho que isso é importantíssimo. Mas, insisto no ponto de que a codificação tem de ser feita de maneira
séria. Não se pode fazer um Código por lobby de um setor A ou B da sociedade. Código é uma coisa muito séria, tem que ser debatido longamente com a sociedade, com
todos os segmentos envolvidos, com as entidades da sociedade civil e também com
as entidades científicas. Não se pode pegar um grupo, sentar em um gabinete fechado
entre quatro paredes, fazer-se um texto, atravessar a rua no Congresso Nacional de
Brasília e fazer lobby para aprovar o texto. Assim têm sido feitas as reformas do CPC,
por exemplo. Eu somente estarei de acordo com a criação de um Código de Processo
Coletivo caso ele seja feito de maneira séria. Com a criação de um Código, no sentido
maior da expressão, melhorar-se-á sobremodo a aplicação da lei no país, porque se
criará toda uma cultura em volta desse Processo Coletivo.
Queria discutir esses anteprojetos que tratam do Código de Processo Coletivo brasileiro. Na Universidade de São Paulo, capitaneada pela Professora Ada Grinnover,
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
há uma comissão que apresenta um projeto interno de Código de Processo Coletivo.
No Rio de Janeiro, na UERJ, o Professor Aluízio Gonçalves de Castro Mendes, que é
Magistrado, está também à frente de um projeto. Esses projetos estão tramitando e eu
vejo neles problemas sérios de inconstitucionalidade e de não conformação ao sistema
constitucional brasileiro de normas. O mais grave problema é a americanização do
Processo Coletivo brasileiro. A nossa ação civil pública teve uma inspiração, ainda
que parcial, nas class actions do Direito norte-americano. Para se fazer o anteprojeto,
que acabou se convertendo na Lei de Ação Civil Pública, pegou-se a Regra 23, das
Regras Federais de Processo Civil dos Estados Unidos, que contém o regulamento da
ação coletiva, as class actions. Nós tropicalizamos a lei americana para a realidade
brasileira. No Brasil há o costume de se pegar modelos estrangeiros e transformá-los
em texto de lei, que, às vezes, não se adaptam à nossa realidade. Vou dar um exemplo, nos Estados Unidos, o Vice-Presidente da República é Presidente do Senado por
disposição constitucional. Lá, quando o Presidente é julgado por crime de responsabilidade, ele é julgado pelo Senado. O Vice-Presidente, portanto, não pode continuar
na Presidência do Senado, por ser da chapa do Presidente. Ele tem que sair, para que
assuma o Presidente da Suprema Corte. No Brasil, temos a mesma segurança, copiamos isso de lá. Vamos nos lembrar do julgamento do ex-Presidente Fernando Collor
de Mello. Ele foi julgado por crime de responsabilidade no Senado, e a sessão foi presidida pelo Ministro Sydney Sanches, que era o então Presidente do Supremo Tribunal
Federal. O Ministro ficou lá sem entender nada, pois estava presidindo o Senado,
um órgão político. Não havia necessidade disso, porque não há impedimento, não há
suspeição do Presidente do Senado, pois ele não é o Vice-Presidente da República.
O Presidente do Senado poderia, perfeitamente, conduzir uma sessão de julgamento
do Presidente da República no Brasil. Isso se deu, porque o sistema brasileiro da
Constituição Republicana de 1891 era igual ao americano. Àquela época, o Vice-Presidente da República era o Presidente do Senado. O que ocorreu é que os constituintes
brasileiros posteriores não reformularam essa regra, por desconhecimento jurídico e
político. Adaptamos a regra norte-americana em alguns aspectos, mas não colocamos
na lei brasileira aquilo que não era compatível com a nossa Constituição Federal e
com a cultura do povo brasileiro.
Todos esses anteprojetos querem transformar a legislação brasileira numa cópia fiel
do Processo Coletivo norte-americano, que serve para aquele país, não serve para o
Brasil. Essa é a minha crítica maior. Outro exemplo, nos Estados Unidos, é o Juiz que
decide quem pode mover a ação coletiva. Há uma legitimação ad causam ope Judicis,
quer dizer, por obra do Juiz. Ele é quem vai decidir quem pode mover a ação. No caso
de uma associação civil americana, é o Juiz que controla a representatividade adequada
dela para dizer quando ela tem legitimação ou não para entrar com uma ação coletiva.
Abandonamos esse modelo, porque achamos que ele seria espúrio para a sociedade
brasileira. Não é uma regra que condiz com a nossa tradição romano-germânica e com
a nossa cultura. Apesar disso, essa idéia consta de todos esses anteprojetos, que estão
importando, sem nenhuma ressalva, a situação do Processo Coletivo norte-americano.
De acordo com esses projetos, haverá a representatividade adequada, que será con-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
trolada pelo Juiz. Na lei brasileira atual, o legitimado tem uma configuração objetiva
na lei para entrar com a ação, a legitimação é objetiva. No caso da associação civil,
por exemplo, é legitimada associação civil constituída há pelo menos um ano, nos
termos da lei brasileira, e que tenha entre os seus objetivos a defesa de um dos direitos tutelados pelas normas de direitos metaindividuais. É uma aferição objetiva, se a
associação cumpre aquele requisito do art. 5° da Lei de Ação Civil Pública, então, ela
é legitimada. Acho que isso é o mais correto. Há outros dispositivos que denotam uma
cópia mal-feita das class actions norte-americanas. Portanto, acho que o Código de
Processo Coletivo brasileiro tem que partir de situações e modelos da nossa realidade.
Nós é que temos que exportar o Processo Coletivo para os países latino-americanos,
porque são todos eles países de formação romano-germânica do ramo que tem o seu
direito interno na Civil Law, que vem do Direito romano. O Direito norte-americano
advém do Direito comum, do Common Law, que é outra realidade, outra configuração, outro modelo jurídico, outro figurino. Como se aplicar na América Latina, cujo
Direito é romano-germânico, uma disposição normativa que é anglo-saxônica? Por
todas as razões, não é compatível com a cultura latino-americana adotarmos o modelo
norte-americano. Temos que exportar tecnologia legislativa para a América Latina em
matéria de processo legislativo, não o contrário. Não precisamos importar dos Estados
Unidos modelos que não são adaptáveis à nossa realidade social. Com isso, eu quero
deixar o meu agradecimento ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais, pelo
convite que me fez para participar da Semana do Ministério Público, que, com muita
honra, aceitei. Muito obrigado.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
4. DIÁLOGO MULTIDISCIPLINAR
4.1 OS LIMITES JUSFILOSÓFICOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL:
A QUESTÃO DA FELICIDADE
ANDITYAS SOARES DE MOURA COSTA MATOS
Bacharel em Direito
Mestre em Filosofia do Direito pela UFMG
Coordenador do curso de Direito da FEAD-Minas (BH/MG)
Técnico em Direito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Ex-assessor da Presidência do Instituto de Previdência dos
Servidores do Estado de Minas Gerais - IPSEMG
E daí que sejamos mentirosos, maus e injustos, sabemos disso e
deploramos isso, e nos afligimos por isso a nós mesmos, e nos
torturamos e nos castigamos mais até, talvez, do que aquele
juiz misericordioso que nos julgará e cujo nome não sabemos.
Mas temos a ciência, e por meio dela encontraremos de novo
a verdade, mas dessa vez a usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a consciência da vida é
superior à vida. A ciência nos dará sabedoria, a sabedoria revelará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior
à felicidade.
Fiódor Dostoiévski
Não há nenhuma vergonha em alguém ser feliz, mas seria
vergonhoso ser feliz sozinho.
Albert Camus
O Direito Previdenciário é um campo complexo devido às inúmeras possibilidades de
abordagem, desde as estritamente técnicas até aquelas generalíssimas que permitem
discutir os fundamentos basilares da idéia que informa a disciplina. Os intertextos e os
desdobramentos são, no Direito Previdenciário, mais do que naturais, fundamentais
à sua correta compreensão. Nesse sentido, o presente trabalho pretende discutir um
dos traços presentes de forma mais ou menos velada na conceituação de Previdência
Social, pois que tal realidade jurídica contribui – ou deveria contribuir – para salvaguardar o sentimento de segurança dos homens em sociedade e, por conseguinte, configurar-se como importante fator na manutenção da felicidade dos seres humanos.
Os homens somente são felizes, segundo Schopenhauer [18—], quando suas necessidades são satisfeitas1. Dessa maneira, uma das condições necessárias à configuração
1
Como tal é praticamente impossível, o filósofo pessimista acaba por entender que a vida humana é sinônimo de infelicidade. Seus argumentos não deixam de ser, no mínimo, convincentes: “A necessidade imperiosa do homem é assegurar
a existência, e feito isto, já sabe o que fazer. Portanto, depois disso, o homem se esforça para aliviar o pêso da vida, torná-la agradável e menos sensível: ‘matar o tempo’, isto é, fugir ao aborrecimento. Livres da preocupação de assegurar a
existência, e livres seus ombros de todo fardo moral ou material, êles mesmos constituem sua própria carga, e sentem-se
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
da felicidade é o afastamento das preocupações geradas pela insegurança quanto aos
eventos futuros, o que, do ponto de vista teleológico, certamente constitui uma das
missões institucionais da Previdência Social.
Para o filósofo alemão, o homem tende à infelicidade. Na visão de Schopenhauer
(1964, p. 87) a infelicidade é a regra geral da existência humana: “Cierto es que cada
desdicha particular parece una excepción, pero la desdicha general es la regla”. Enquanto está envolvido com sua subsistência, o ser humano não é feliz. Apenas quando
atinge a suficiência, ou seja, quando satisfaz suas necessidades básicas – naturais e
artificiais, essas últimas criadas ex novo pela humanidade –, é que o homem pode ser
feliz.
Ao superar a natureza que o ameaça a todo momento com a morte, com a doença e
com a incapacitação para o trabalho, o ser humano está apto a experimentar a felicidade. Mas, de acordo com Schopenhauer (1964), ainda assim tal felicidade lhe será
negada, pois mesmo ao vencer a barreira da subsistência elementar, haverá de enfrentar as mazelas que a opulência e a riqueza trazem consigo. A acumulação de riquezas
– que transforma a frágil linha da suficiência em opulência – reduz o homem a escravo
de seus próprios bens, retirando-lhe a oportunidade de cultivar o espírito. Além disso, na opulência não há amizade independente e muito menos amor verdadeiro, pois
todos se aproximariam do indivíduo abastado por força de interesses econômicos.
Todavia, para o Schopenhauer (1964, p. 98), o verdadeiro mal da opulência é o tédio,
pois o indivíduo não encontra sentido em uma vida na qual não existam mais desafios
a serem vencidos:
Al paso que la primera mitad de la vida no es más que una
infatigable aspiración hacia la felicidad, la segunda mitad, por
el contrario, está dominada por un doloroso sentimiento de temor, porque entonces se acaba por darse cuenta más o menos
felizes porque viveram uma hora desapercebida, embora isto significa que sua vida a qual se esforçam com tanto zêlo para
prolongá-la, ficou encurtada pelo mesmo espaço de tempo. O aborrecimento merece tê-lo em conta; êle se reflete na fisionomia. O aborrecimento é a origem do instinto social, porque faz com que os homens, que pouco se amam, se procurem e
se relacionem. [...] A miséria é sofrimento pungente do povo; o desgôsto é para os favorecidos. Na vida civil, o domingo
significa o tédio, e os seis dias, o desgosto. Sentimos a dôr, mas não a ausência da dôr; sentimos a inquietação mas não a
ausência; o temor, mas não a tranquilidade. Sentimos o desejo e a aspiração, como sentimos a sêde e a fome; mas, apenas
satisfeitos, se acabam, como o bocado que, uma vez engolido, já não existe para o nosso paladar. Enquanto possuamos
os três maiores bens da vida, saúde, mocidade e liberdade, não temos consciência dêles, e só com a perda dêles é que os
apreciamos, porque são bens negativos. Somente os dias de tristeza é que nos fazem recordar as horas felizes da vida
passada. À medida que os prazeres aumentam, nossa sensibilidade diminui; o hábito já não é um prazer. As horas passam
lentamente quando estamos tristes; correm rapidamente quando são agradáveis; porque a dor é positiva e faz sentir sua
presença. O aborrecimento nos dá a noção do tempo e a distração nos faz esquecer. lsto prova que a nossa existência é mais
feliz quando menos a sentimos: de onde se deduz que mais feliz seríamos se nos livrássemos dela. Uma grande alegria,
assim, não a julgaríamos se ela não viesse atrás de uma grande dor. Não podemos atingir um estado de alegria serena e
duradoura. Esta é a razão porque os poetas são obrigados a rodear seus protagonistas de tristes ou perigosas circunstâncias,
para no fim os livrar delas. No drama e na poesia épica, o herói sofre mil torturas: nos romances os heróis lutam pondo em
relêvo os tormentos do coração humano. ‘A felicidade não passa de um sonho – dizia Voltaire, tão favorecido pelo destino?
– a única realidade é a dôr’. E acrescenta: ‘Há oitenta anos que a experimento e nada faço senão resignar-me e dizer a mim
mesmo que as môscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos desgostos’”
(SCHOPENHAUER, 18—).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
clara de que toda felicidad no es más que una quimera, y sólo
el sufrimiento es real. Por eso los espíritus sensatos, más que a
los vivos goces, aspiran a una ausencia de penas, a un estado
invulnerable en cierto modo.
Dessa forma, tanto o pobre quanto o rico são infelizes2: o primeiro por ausência completa das condições básicas para a manutenção de uma vida digna; o segundo devido
à construção de uma existência artificiosa, incapaz de fornecer as respostas das quais
o ser humano necessita em seu íntimo. Por isso, para Schopenhauer (1964, p. 92) a
felicidade é um bem praticamente inalcançável: “[...] Sea como fuere, todo hombre
para quien apenas es soportable la existencia, a medida que avanza en edad tiene una
conciencia cada vez más clara de que la vida es en todas las cosas una gran mistificación, por no decir un engaño”.
Contudo, o problema da felicidade é mais complexo e não pode se resolver com uma
simples negativa de enfrentamento, como o faz o filósofo pessimista. Especialmente
no que concerne à Previdência Social, a noção de felicidade deve ser reconfigurada.
Isso se deve ao fato de que o conceito de Previdência Social, apesar de técnico-jurídico, é informado por certas pautas axiológicas que nos permitem avançar em sua compreensão profunda, como se pode notar no excerto de Corrêa (1999), Juiz de Direito
no Estado do Mato Grosso do Sul:
A Previdência Social [...] tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de
incapacidade, idade avançada, tempo de serviço, desemprego
involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles
de quem dependiam economicamente. Os princípios e diretrizes da Previdência Social são a universalidade de participação
nos planos previdenciários, mediante contribuição; valor da
renda mensal dos benefícios, substitutos do salário-de-contribuição ou do rendimento do trabalho do segurado, não inferior
ao do salário mínimo; cálculo dos benefícios considerando-se
os salários-de-contribuição, corrigidos monetariamente; preservação do valor real dos benefícios e previdência complementar
facultativa, custeada por contribuição adicional. Note-se então
que o conceito de Previdência Social traz em si, ínsito, o caráter
de contributividade, no sentido de que só aqueles que contribuírem terão acesso aos benefícios previdenciários.
A Previdência Social é o resultado de uma longa evolução das técnicas de proteção
social experimentadas pela humanidade em seu percurso histórico. Passando pela
2
Tal assertiva comprova que Aristóteles (1973) estava certo ao afirmar que a virtude está no meio termo, que no presente
caso é a suficiência, localizada à mesma distância da escassez e da opulência. Todavia, segundo Schopenhauer é bastante
difícil atingir e manter tal suficiência.
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poupança individual primitiva (acumulação de víveres necessários à manutenção
imediata da vida, sob o signo valorativo do egoísmo e, posteriormente, da solidariedade familiar), pela mutualidade (experimentada no período pré-clássico, no qual se
intercambiava trigo e cevada, sob o signo do ego-altruísmo derivado da solidariedade
profissional) e até mesmo pela caridade pregada pela filosofia católico-medieval, as
sociedades humanas chegaram à seguinte conclusão: é preciso que os membros da comunidade organizada tenham um mínimo de segurança garantido, de forma que, advindo um infortúnio qualquer – doença, velhice, incapacitação para o trabalho, morte
do pater familias etc. –, seja possível continuar a viver de uma forma relativamente
tranqüila.
O mecanismo psicológico que leva o ser humano a se preocupar não somente com
o dia de hoje, mas com o de amanhã (sempre incerto e ameaçador), e também não
apenas consigo, mas com a comunidade de forma geral, é bastante conhecido. Como
demonstra Geremek (1995), a pobreza e a má-sorte alheia são fatos que sempre despertaram ao longo da História o sentimento humano, que varia da repulsa à compaixão. Diante de situações-limite, o homem rejeita ou salvaguarda aquele que foi presa
das desgraças da vida (infelicidades), mas jamais se mantém em uma posição passiva
e/ou indiferente.
A idéia lata de Previdência liga-se assim a um traço psicológico dos seres humanos,
que é exatamente a necessidade de se precaver em face de eventos futuros que de alguma maneira possam lhe ser maléficos. Nesse sentido, sustenta Franco (2003):
Destarte, o homem, enquanto sociedade procura, sempre, abastecer os farnéis sociais com boas dosagens de ajuda aos mais
carentes, de divisão de bens, dízimos e esmolas, não só para
calar aos que são excluídos como, também, para amolecer a
dureza de seus próprios pensamentos, que os crucificam ante as
realidades que explodem nas calçadas e a indelével certeza de
que todos temos culpa. Outrossim, cada rosto faminto que nos
cerca, no diário convívio social, é um emblema, uma cicatriz,
um aviso funesto de que, se nada fizermos, amanhã poderemos
ser um deles. Partimos então, para a previdência, que, antes de
ser um apelo ao carinho, ao desejo de ajuda ao próximo, ao
erradicar das dificuldades sanitário-financeiras de nossos semelhantes, é uma tentativa individual de salvar-se a si mesmo,
amparando-se na tabula rasa de um futuro assegurado.
Sem essa segurança psicológica aludida por Franco (2003), o ser humano não é feliz.
Ameaçado pela natureza e pela própria dinâmica social que, inevitavelmente, selecionará sempre os mais aptos e resistentes para o trabalho, o homem sente-se encurralado. Ainda que sua existência atual seja satisfatória, há sempre o temor de que, no
futuro, alguns males possam lhe ocorrer. Entre eles, a pior das doenças, conforme a
pragmática definição romana: a velhice.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Assim sendo, na contemporaneidade, a Previdência Social – que é espécie no genus
bem mais amplo da seguridade social3 – representa globalmente uma espécie de garantia conferida aos cidadãos. Estes, ao contribuírem para o sistema, acreditam que
no futuro serão amparados por ele, caso lhes sobrevenha algum mal (doença, morte,
velhice, incapacitação para o trabalho, reclusão etc). A segurança proporcionada pelos
sistemas previdenciários4 permitiria assim aos seres humanos gozar de uma relativa
felicidade, se entendermos o termo, de forma ampla, como ausência de preocupações
e grandes incertezas. O homem seguro é um homem feliz, poder-se-ia sustentar.
Portanto, o papel da Previdência Social seria – se analisarmos o assunto por meio de
um ponto de vista amplo – garantir a felicidade dos homens, no sentido de que eles se
sintam socialmente seguros. Mas que felicidade, especificamente, é essa que se pode
exigir de um sistema de Previdência Social? A pergunta é ampla e remete à questão
da possibilidade de garantia da felicidade dos cidadãos por ordenamentos jurídicopositivos.
O problema é complexo e já foi discutido por um dos maiores juristas do século XX,
Kelsen (1998). Ao analisar as idéias de justiça que se desenvolveram historicamente
no Ocidente, o mestre de Viena acaba por identificar justiça e felicidade. A partir de
então, demonstra quão vaga é a conceituação de ambas as esferas. Devido ao caráter
altamente geral de suas considerações acerca da justiça como felicidade, podemos
lançar mão de suas teses para tentar responder ao questionamento acerca de que felicidade é essa que o sistema previdenciário promete aos seus participantes. Vejamos
então o caminho percorrido por Kelsen no que se relaciona à idéia de justiça considerada como felicidade.
Como representante máximo do positivismo jurídico, seu ápice e o início de sua decadência (BOBBIO, 1999), Kelsen (1963) renuncia expressamente a uma definição
científica de justiça. Como jurista, ou seja, cientista do Direito, o eminente professor
vienense observa que o conceito de justiça é diferente daqueles conceitos que dizem,
por exemplo, o que é uma árvore ou o que é um Estado. É um conceito (ou idéia) que
não possui a objetividade necessária para ser considerado científico, dado que, segundo Kelsen (1963), a ciência representa um racional máximo exatamente pelo fato de
não operar com meros juízos de opinião ou juízos de valor no sentido estrito. Algo que
se pretenda científico deve ser detentor de uma validade universal, ou seja, deve valer
para todos, sempre e em qualquer parte – em que se pese a atual crise e o conseqüente
debate entre os teóricos da filosofia da ciência.
3
É o que sustenta a doutrina especializada, conforme se pode verificar nas obras de Martinez (1992) e Martins (2002), verbi gratia. A esse respeito, veja-se o seguinte trecho de Corrêa (1999), bastante didático: “A Constituição Federal de 1988,
em seu Título VII, nominado de ‘Da Ordem Social’, traz em seu Capítulo II, disposições relativas à Seguridade Social. Por
Seguridade Social entende-se um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Pela definição constitucional já é possível
notar que a Seguridade Social objetiva assegurar saúde, previdência e assistência. Podemos então dizer que Seguridade
Social é gênero, da qual são espécies a Saúde, a Previdência e a Assistência Social”.
4
É de se discutir, em sede de Sociologia do Direito, até que ponto tal segurança é jurídica e quando se transforma em
segurança puramente psicológica.
161
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Para Kelsen, a formulação do que venha a ser científico deve se contentar, pelo menos
no grau de evolução que alcançamos até agora, com os elementos de definição supraditos. E isso não ocorre com o conceito de justiça. As maiores mentes do Ocidente,
desde filósofos até romancistas, dispensaram suas férteis existências em uma busca
que, longe de ser vã, tem se revelado infrutífera: o que é justiça?
No enorme mar de tinta gasto na tentativa de definir a justiça só existem duas certezas:
1ª) trata-se de um valor superior que deve ser observado para a evolução e a felicidade
da espécie humana. Essa identificação entre justiça e felicidade na doutrina kelseniana
é bem sublinhada por Siches (1970, p. 409):
Kelsen se plantea el problema sobre lo que la justicia sea aplicada a un orden social. Llamraríase justo – dice – el orden
social que regulase la conducta de los hombres de un modo
satisfactorio para todos, de suerte que todos hallasen en este
orden su felicidad. Justicia es, pues, felicidad social, felicidad
de todos, garantizada por un orden social.
2ª) Tudo mais, inclusive os métodos idôneos para que seja alcançada a solução justa
em um conflito jurídico concreto, é controverso. Lembremo-nos, entretanto, que a
justiça é um valor que anseia pelo objetivismo, que aspira a uma validade e a uma
aplicabilidade universais.
Portanto, o que se busca é uma justiça aplicável a todos os seres humanos (e quiçá,
aos seres sobre-humanos), ou seja, um valor objetivo indiscutível e incriticável. Contudo, é exatamente esse traço de objetividade que Kelsen nega à justiça. Para o jurista
tcheco, justiça é um problema de resolução de conflitos de interesses ou valores5 e,
devido a isso, tem uma conotação altamente subjetiva. Desse modo, existirão tantos
conceitos de justiça quanto existirem pensadores que se dediquem ao estudo do tema,
pois é fato bastante conhecido que mesmo pessoas que tiveram (e têm) experiências,
valores e condições de vida similares e são pertencentes a um mesmo grupo ou classe
social, não têm, necessariamente, os mesmos interesses.
5
Para Siches (2000), a identificação entre interesse e valor é problemática, sendo algo que Kelsen toma como pressuposto.
Não poderia ser diferente porque para Kelsen o valor só se torna objetivo quando garantido por uma norma jurídico-positiva. Todos aqueles valores que não estão compreendidos em uma norma jurídica válida são queridos e respeitados apenas
pelo sujeito que os tem como valiosos, sendo, portanto, meros interesses. Contudo, parece-nos interessante a crítica do
jusfilósofo mexicano, razão pela qual a transcrevemos abaixo, em apertada síntese: “De este examen sobre la justicia como
felicidad, Kelsen saca la conclusión de que el problema de la justicia consiste en resolver conflictos de intereses entre los
individuos. Y entonces da por supuesto que los términos ‘interés’ y ‘valor’ son equivalentes. A continuación plantea el problema axiológico en general, y el de la justicia en particular, simplemente como un problema de conflicto de intereses. No
obstante, aunque así lo plantea – identificando valores con intereses, y considerando el problema de la estimativa como la
cuestión de resolver conflictos de intereses o valores –, resulta que en el fondo estas cosas no son tan simples ni tan fáciles,
ni siquiera para el mismo Kelsen. Pues Kelsen algunas veces habla sencillamente de valores, sin referirse necesariamente
al conflicto de esos valores con otros. Al hablar de conflictos de valores menciona el conflicto que puede darse entre los
valores de la vida biológica, la libertad, el honor de la patria, la seguridad social, la verdad, el bien común. Ahora bien,
hay que distinguir algo que Kelsen no distingue, a saber: hay que distinguir dos problemas: a) El de la atribución de valor
a esas calidades; y b) El del respectivo rango o jerarquía que se dé entre esos valores” (1970, p. 417-418). Ao primeiro
problema Kelsen realmente não se dedica. Em relação ao segundo, diz que o conflito de valores não pode ser resolvido de
maneira científico-racional. Daí a necessidade da tolerância, que seria o valor-guia num mundo em que há pluralidade de
valores objetivos e subjetivos.
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Kelsen acaba então por identificar a justiça como virtude individual apenas em um
segundo momento do pensamento ocidental. Antes de enxergar em si mesmo a justiça,
o homem deve percebê-la na realidade social, ou seja, em uma determinada ordem
jurídica. Assim, a sociedade justa vem antes do homem justo exatamente porque o
homem não é essencialmente justo ou injusto; é antes coagido pela razão a construir
a sociedade justa para que possa alcançar seu fim último, que é, segundo Aristóteles
e Platão, a felicidade (eudaimonia). Em seguida, Kelsen passa em revista alguns dos
principais momentos da identificação entre justiça e felicidade na filosofia do Ocidente.
Platão nos ensina que só o justo é feliz e, ainda que assim não seja, os homens devem
ser levados a acreditar nessa afirmação para o bem da ordem social (KELSEN, 1963).
Já a doutrina do dourado meio termo aristotélico (virtus est medium vitiorum et utrimque reductum) vê a justiça como a mais perfeita das virtudes, porque é a única que se
refere ao outro (alteridade) e garante a felicidade global da pólis. Para o estagirita, a
virtude é o hábito (do latim habere) que realiza o bem – ao contrário do vício, hábito
que realiza o mal –, com o que visa ao desenvolvimento de todas as potencialidades do homem (ARISTÓTELES, 1973). Somente por meio da prática virtuosa o ser
social consegue alcançar a felicidade na pólis, escopo maior da existência humana.
Daí dizer-se que a ética aristotélica é fundamentalmente teleológica. De acordo com
Aristóteles, a felicidade apenas será garantida ao homem que participa da sociedade
organizada na pólis, pois aqueles que não estão sob o jugo do poder político são deuses ou feras, não homens.
Mas deslocar o problema da justiça da esfera do homem para a da sociedade não
resolve o subjetivismo conceitual. Tampouco identificar justiça com felicidade anula
o problema da existência de vários conceitos de justiça, alguns deles mutuamente
excludentes. Ora, a concepção de justiça em um país capitalista desenvolvido e em
um país socialista essencialmente industrial, como a ex-URSS nas primeiras décadas
do século XX, é diametralmente oposta. Sem dúvida, a identificação entre justiça e
felicidade, apesar de válida, não resolve o problema: “Com a afirmação de que justiça
é felicidade, a pergunta, obviamente, ainda não está respondida, apenas protelada”
(KELSEN, 1998, p. 2).
Kelsen (1998) chega à conclusão de que se a ordem jurídica justa é aquela que proporciona felicidade a todas as pessoas, a justiça é impossível, pois não se pode trazer felicidade, completa e irrestrita – como deve ser a real felicidade –, a todos os membros
de uma tal ordem hipotética, mesmo porque a felicidade de uns implica a infelicidade
de outros, em alguns casos não muito raros.
Se adotarmos o conceito de felicidade presente na obra de Kant6, é de se ver que este
O trecho do filósofo é admirável, e por isso o damos transcrito: “A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado
muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. E é por isso que a própria sageza – que
de resto consiste mais em fazer ou não fazer do que em saber – precisa também da ciência, não para aprender dela, mas
para assegurar às suas prescrições entrada nas almas e para lhes dar estabilidade. O homem sente em si mesmo um forte
6
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consiste na satisfação total (não basta, portanto, satisfação parcial) das necessidades
e inclinações do homem. Ora, tais elementos satisfativos podem ser – e efetivamente
são, em muitas oportunidades – destrutivos, egoístas e particularistas. Sob certas circunstâncias, a realização da felicidade completa de um consiste na simples eliminação
de outros. Além disso, o homem não conhece completamente e com clareza – ou seja,
racionalmente – as suas próprias necessidades e inclinações, o que torna a obtenção da
felicidade não apenas impossível, mas até mesmo perigosa para si e seus iguais:
Assegurar cada qual a sua própria felicidade é um dever (pelo
menos indirectamente); pois a ausência de contentamento com
o seu próprio estado num torvelinho de muitos cuidados e no
meio de necessidades insatisfeitas poderia facilmente tornar-se
numa grande tentação para transgressão dos deveres. Mas, também sem considerar aqui o dever, todos os homens têm já por
si mesmos a mais forte e íntima inclinação para a felicidade,
porque é exactamente nesta ideia que se reúnem numa soma
todas as inclinações. Mas o que prescreve a felicidade é geralmente constituído de tal maneira que vai causar grande dano
a algumas inclinações, de forma que o homem não pode fazer
ideia precisa e segura da soma da satisfação de todas elas a que
chama felicidade; por isso não é de admirar que uma única inclinação determinada, em vista daquilo que promete e do tempo
em que se pode alcançar a sua satisfação, possa sobrepor-se a
uma ideia tão vacilante (KANT, p. 29)
Acrescente-se à formulação kantiana de felicidade o fato indiscutível de que os bens
e os recursos de uma sociedade são sempre limitados. Assim sendo, atender às necessidades de uma classe – teoricamente, garantiria que os indivíduos a ela pertencentes
seriam felizes – significa desatender outros grupos, o que, a toda evidência, põe em
manifesto a impossibilidade de se atingir uma felicidade total e, com isso, uma justiça
absoluta. Escreve com propriedade sobre o tema o jurista inglês Hart (1996, p. 181),
um dos mais importantes representantes da escola do positivismo analítico:
Na maior parte dos casos, o direito só faculta benefícios para
uma classe da população à custa de privar outros daquilo que
eles preferem. O auxílio aos pobres só pode ser prestado a partir
dos bens de outros; a educação escolar obrigatória para todos
pode não só significar a perda de liberdade para os que desejam
educar privadamente os seus filhos, mas pode ser financiada
apenas à custa da redução ou do sacrifício de investimentos de
capital na indústria, ou de pensões de velhice, ou de serviços de
saúde gratuitos.
contrapeso contra todos os mandamentos do dever que a razão lhe representa como tão dignos de respeito: são as suas
necessidades e inclinações, cuja total satisfação ele resume sob o nome de felicidade” (KANT, s./d., p. 37).
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Reconhecido o problema atinente à felicidade, Kelsen (1963) passa a solucioná-lo. A
felicidade garantida por uma ordem social deve ser objetivo-coletiva, e não subjetivoindividual. Para cumprir essa meta, o conceito de justiça deve sofrer uma transformação: justo não é garantir tudo a todos, mas, sim, dar ao homem o que lhe é devido em
sociedade, seu ius suum. O grande problema, evidentemente, são os critérios utilizados para definir o que é devido a cada um.
Torna-se um imperativo lógico pressupor alguns valores-guia que nortearão o que é
devido ao homem. Tais valores encarnarão a justiça entendida especificamente em
um tempo e espaço definidos (justiça relativa). No entanto, esses valores devem ser
hierarquizados, sob pena de criação de situações injustas, nas quais um valor superior é preterido em favor de um valor inferior. A hierarquização só pode ser operada
de modo subjetivo, pois novamente nos deparamos com o problema fundamental da
inexistência de padrões objetivo-científicos para determinar a posição hierárquica dos
valores adotados por uma sociedade particular. É o problema dos conflitos de valor:
Esse problema não poderá ser solucionado com os meios do
conhecimento racional [...]. Isso significa que o juízo [do que
é justo ou injusto, segundo uma escala de valores] só é válido
para o sujeito que julga, sendo, neste sentido, relativo. (KELSEN, 1998, p. 4)
A felicidade é elemento central da idéia de justiça, de sorte que os seres humanos,
desde tempos imemoráveis, vêm buscando não justiças relativas, mas a justiça absoluta, capaz de trazer a verdadeira e permanente felicidade à espécie humana. A justiça
relativa é parcial, mas a justiça absoluta (total) é apenas um belo sonho irracional
dos homens. Só pode ser pensada se pressupusermos uma autoridade transcendente
(Deus, a Natureza, a Razão etc.) que a crie, garanta, interprete e imponha. Com isso,
o problema da justiça é transferido do aquém para o além, solução insatisfatória para
Kelsen (1963). Aqui, abaixo das nuvens, temos que nos contentar com várias justiças
relativas, que em situações e ordens jurídicas determinadas garantam a paz e a segurança, o que, segundo Kelsen (2000), é atributo característico de sistemas políticos
democráticos. Os problemas de conflitos de valor, da mesma forma, só são resolúveis
relativamente, tendo-se em vista situações concretas de vida de uma sociedade real
composta por homens situados, como quer Ortega y Gasset (1983).
Já se vê, com essa breve consideração em torno da obra de Kelsen sobre a justiça,
que, se a Previdência Social deve garantir a felicidade, esta não é absoluta, mas relativa, limitada a específicas condições espaço-temporais, políticas, culturais, sociais
e, especialmente, econômicas, pois um sistema previdenciário não pode, sob pena
de ser esvaziado e destruído, afastar-se das condições materiais existentes em cada
sociedade concreta.
Se a criação de sistemas de proteção social – a Previdência Social, recorde-se, é o
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mais avançado desses sistemas ou técnicas – configura uma forma de garantir grupalmente o indivíduo em face das adversidades que possa vir a enfrentar no futuro,
é certo que a proteção social é limitada, restrita e relativa, pois ligar-se-á aos valores
adotados pela comunidade e aos meios materiais disponíveis para a efetivação da
missão institucional da Previdência Social. O maior condicionante da proteção social
em dado Estado é a sua riqueza.
Visualizar a felicidade de maneira relativa não é motivo, contudo, para afirmar, como
faz Schopenhauer, que a essência da vida é a dor. Atualmente, a única exigência que
se pode fazer de um sistema previdenciário não é que ele garanta, pura e simplesmente, a segurança absoluta (felicidade absoluta) dos cidadãos, mas que os critérios
para a efetivação da segurança social relativa (felicidade relativa) sejam debatidos de
maneira honesta, consciente e aberta entre todos os membros que compõem os beneficiários e mantenedores do sistema. Em outras palavras: o que se pode – e se deve
– exigir da Previdência Social é que ela discuta com a sociedade, de forma racional
e democrática, sua abrangência, importância, força e, principalmente, seus limites e
fraquezas. Tal atitude seria mais um voto de confiança conferido à idéia-projeto de
Estado democrático de direito.
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4.2 LINGUAGEM, COGNIÇÃO E ARGUMENTATIVIDADE:
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO MODELO DE ESPAÇOS MENTAIS*
RENATA AMARAL TEIXEIRA
Mestranda em Língua Portuguesa e Lingüística pela PUC/MG
MARIA REGINA DE CARVALHO C. OLIVEIRA
Doutoranda em Língua Portuguesa e Lingüística pela PUC/MG. Bolsista da CAPES/
DS
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Considerações Teóricas. 2.1. Por uma Noção de Instância de
Enunciação. 2.2. Por uma Noção de Integração Conceptual. 2.2.1. Operação Básica de Integração Conceptual. 2.2.2. A Contrafactualidade e a Configuração de Redes de Espaços Mentais
/Referenciais. 2.3. Articulação Teórica: Instância de Enunciação como Espaço Mental/Referencial. 2.4. Síntese. 3. Análise. 3.1. Apresentação do Corpus. 3.1.1. O Corpus. 3.2. Procedimentos
Metodológicos Adotados na Análise do Texto. 3.3. Análise do Corpus. 4. Considerações Finais.
5. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O objetivo deste trabalho é enfocar os processos e operações subjacentes à produção
de significados pela mente humana, à luz da Teoria da Integração Conceptual1. Uma
das premissas básicas dessa teoria é a de que as expressões lingüísticas, por si só,
não portam sentidos, mas servem de guia para sua produção. Ao assumirmos essa
premissa, consideramos, com base em Fauconnier e Turner (2002), que as formas lingüísticas desencadeiam os significados e esses se processam a partir das operações básicas, complexas e, na maioria das vezes, inconscientes, de identificação, integração e
imaginação, as quais constituem uma única operação mental, denominada Integração
Conceptual. Por ser altamente criativa, essa operação é fundamental para o processo
de produção de sentidos e crucial para os mais simples tipos de pensamentos.
Acresça-se a essas considerações uma concepção de linguagem como atividade sociointerativa, na qual os interlocutores instituem-se como enunciadores e enunciatários,
em um determinado tempo e espaço discursivos, em função da produção e recepção
de textos, no e pelo estabelecimento de uma relação com o mundo e com o outro. Isso* Ao tratarmos da produção de sentidos pela mente humana, à luz da Teoria da Integração Conceptual, podemos remeter
tanto a Espaços Mentais como a Espaços Referenciais. Há uma sutil diferença entre eles. Todos os espaços de referência
(referenciais) são espaços mentais, mas nem todos os espaços mentais são espaços de referência, espaços constituídos no
processamento discursivo. Em linhas gerais, os espaços mentais remetem a uma noção mais ampla do que aquela a que
remetem os espaços referenciais. Neste trabalho, não explicitaremos melhor esses pormenores por entendermos que estão
além do escopo de nossa proposta.
1
Essa teoria foi proposta inicialmente por Fauconnier e seus colaboradores (1984, 1994, 1996 e 1997) e teve alguns aspectos reformulados em Fauconnier e Turner (2002).
2
O termo discurso é empregado, neste estudo, como a própria atividade de linguagem.
3
O termo enunciação é empregado, neste trabalho, na perspectiva benvenistiana, e “consiste em colocar a língua em funcionamento por um ato individual de sua realização”. Como postula Émile Benveniste, “[...] a enunciação é o ato mesmo
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nos leva a conceber a linguagem como processo, como discurso2, como enunciação3,
como processamento discursivo4, como atividade de interação social. Em conseqüência, os termos “texto” e “enunciado”, aqui, são entendidos como o resultado, como o
produto da atividade discursiva, um produto que é, necessária e simultaneamente, um
dos fatores constituintes do processamento discursivo.
2. Considerações Teóricas
2.1. Por uma Noção de Instância de Enunciação
Com base em Benveniste (1989, 1995), a Instância de Enunciação pode ser considerada um modelo de organização dialógica, o qual especifica o processo de construção
das relações entre enunciador e enunciatário, situados em um determinado tempo e
espaço discursivos, como fatores constituintes da referência discursiva. Cremos que,
se corretamente interpretamos o pensamento de Benveniste, esse modelo pode ser
considerado como parte essencial da competência lingüística dos falantes de qualquer
língua, devendo ser levado em conta sempre que nos referirmos a termos como linguagem, enunciação, discurso.
Segundo Benveniste (1989, p. 68), “[...] todas as línguas têm em comum certas categorias de expressão que parecem corresponder a um modelo constante [...], mas suas
funções não aparecem claramente senão quando se as estuda no exercício da linguagem e na produção do discurso”. Esse “modelo constante” que Benveniste denomina
aparelho formal da enunciação, tem sido representado, por alguns autores, através do
seguinte gráfico:
Essa representação nos possibilita visualizar os fatores necessariamente envolvidos na
instanciação do aparelho formal da enunciação, na implementação do processamento
discursivo: um locutor (L), que se institui como enunciador (En) na e pela atividade
lingüística; um alocutário (A), co-instituído na e pela atividade lingüística como enunciatário (Ea); ambos se instituindo lingüístico-cognitivamente num tempo (T) e num
espaço (E) discursivos, construindo a referência (R) que se constitui a partir da necessidade de o locutor e alocutário falarem sobre um determinado assunto, ou seja, de
de produzir um enunciado”, o que evidencia o caráter processual da enunciação.
4
A expressão processamento discursivo é usada para nos referirmos a “[...] qualquer ação de linguagem que envolva a
produção de texto/sentido” (NASCIMENTO, 2004).
5
Em outras palavras, compreendemos a referenciação como produção/construção de sentidos.
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co-referirem no e pelo discurso. Nessa operação de discursivização, de instauração da
fala, evidencia-se a operação básica de referenciação5, a qual, segundo Nascimento
e Oliveira (2004, p. 289), é caracterizada pela ação do locutor que, na implementação
do processamento discursivo, institui-se como enunciador e postula o outro, o alocutário, como enunciatário, num processo de co-referenciação, no e pelo discurso.
Ressalta-se, ainda, que a referência é um aspecto fundamental a ser considerado no
processo de enunciação. Na perspectiva benvenistiana, como já dissemos, “[...] a referência é parte integrante da enunciação”. Ela é desencadeada pela possibilidade e,
principalmente, pela necessidade de cada locutor se transformar em um co-locutor,
em um ato, um processo de referenciação, de co-referenciação.
Segundo Benveniste (1989, p.84),
[...] na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão
de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa
mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a
necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que
faz de cada locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação.
Assim, consideramos que a referência não está contida, pronta e acabada nas formas
lingüísticas, pois ela é co-construída no e pelo discurso, não sendo, portanto, imanente
ao texto. Dessa forma, o significado é construído dialogicamente no curso da interação verbal.
2.2. Por uma Noção de Integração Conceptual
A Teoria da Integração Conceptual, de Fauconnier e Turner (2002)6, tem como enfoque central os estudos relativos às formas e aos significados. Nessa teoria, os autores
postulam que não existe dicotomia entre forma e significado e, sim, um elo indissolúvel entre eles. Com base nesse postulado, o processamento discursivo é compreendido
como a instanciação de operações mentais que se indiciam na materialidade do texto,
seja oral ou escrito, o que nos leva a considerar não somente a importância da palavra,
mas o contexto de sua produção e demais informações processadas cognitivamente no
processamento discursivo.
Ao assumirmos esse entendimento, torna-se essencial examinar quais tipos de conexões nossas mentes tendem a fazer e quais tipos de efeitos são produzidos por
diferentes contextos em e com que operam. A criação e a articulação de espaços mentais podem ser consideradas uma dessas conexões, por serem, os espaços mentais,
6
Reiteramos que essa teoria foi proposta inicialmente por Fauconnier e seus colaboradores (1984, 1994, 1996 e 1997) e
teve alguns aspectos reformulados em Fauconnier e Turner (2002).
7 Segundo Houaiss(2001), constructo é “[...] uma construção puramente mental, criada a partir de elementos mais simples,
para ser parte de uma teoria”. Pedimos, então, desculpas ao nosso leitor pela circularidade da definição por nós apresentada, mas, ao mesmo tempo, justificamo-nos, visto ser essa a nomenclatura utilizada pelos autores nos quais nos baseamos.
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definidos como constructos7 mentais necessariamente constituídos no processamento
de todo e qualquer discurso, a partir de pistas oferecidas pelas expressões lingüísticas
materializadas no texto.
2.2.1. Operação Básica de Integração Conceptual
Com ênfase na operação básica de integração conceptual, Fauconnier e Turner (2002)8
postulam que a mente humana, criando e integrando espaços mentais, projeta estruturas de uns espaços para outros, à medida que avançamos na produção e gestão do
processamento discursivo. Nessa perspectiva teórica, a obra The way we think apresenta-se como um abrangente estudo sobre os processos subjacentes à produção de
significados pela mente humana, partindo do princípio de que a construção de sentido
ocorre através de operações complexas e quase sempre inconscientes, sendo a integração conceptual, reiteramos, a operação básica do processamento cognitivo.
Essa operação mental básica (Integração Conceptual) ocorre essencialmente por meio
do processo denominado blending9, o qual envolve, no mínimo, a integração de dois
espaços, o factual e o seu contrafactual, na produção de significados emergentes. Trata-se, concisamente, de uma e única operação mental, a qual se divide, para fins metodológicos, em três sub-operações: identificação, que realiza operações de reconhecimento de identidades, igualdades, semelhanças, diferenças, contrastes, etc., entre dois
domínios cognitivos indiciados por itens e/ou expressões lexicais ativadas; integração, que realiza a conexão entre os domínios léxico-sintático-discursivos ativados; e a
imaginação, que, simultânea e concomitantemente com essas duas operações, realiza,
através da projeção de dois ou mais domínios cognitivos, a configuração do sentido
pretendido pelo locutor em sua interação discursiva com o alocutário (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 6).
No âmbito dessa questão, considera-se que a integração conceptual é efetuada pela
mente humana através da compressão e da descompressão10, no espaço blend, de estruturas de significados possibilitadas por relações vitais11. À luz da Teoria da Integração Conceptual, essas relações podem ser concebidas como princípios da mente, os
quais possibilitam-na efetivar as operações de Identificação, Integração e Imaginação.
Nessa perspectiva, as relações vitais são vistas como relações conceptuais necessárias
à integração de espaços mentais de natureza distinta e desempenham papel fundamental na configuração da rede de espaços mentais.
Na obra The way we think, Fauconnier e Turner (2002) ratificam alguns pressupostos sobre a Teoria de Espaços Mentais
e fazem algumas reformulações, especialmente no que se refere à capacidade da mente humana para fazer Integrações de
Duplo Escopo/Espaço.
9
Neste trabalho, consideraremos Blending como Mesclagem, como Fusão entre Espaços Mentais/Referenciais.
10
Há possibilidades múltiplas de compressão e descompressão para a topologia dos Espaços Mentais: tipos de conexão,
tipos de projeção, emergência e a riqueza do mundo produzem uma vasta gama de possíveis tipos de redes de integração.
11
Segundo Fauconnier e Turner (2002), podemos destacar, entre outras, as Relações Vitais de variação ou mudança, identidade, tempo, espaço, causa-efeito, parte-todo, representação, papel-valor, analogia, contrafactualidade, propriedade, similaridade, categoria e intencionalidade.
8
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2.2.2. A Contrafactualidade e a Configuração de Redes de Espaços Mentais
Na perspectiva da Teoria da Integração Conceptual, a contrafactualidade, mais do que
uma relação vital, é uma propriedade da mente humana, que tem um papel central
não apenas no modo como pensamos, mas, também, no modo como aprendemos e
vivemos, sendo, portanto, essencial para a produção, construção e a compreensão dos
sentidos que a mente humana produz.
A contrafactualidade, considerada como um centro nervoso do processo de produção
de sentido, é fundamental para a indiciação de todas as formas de relações vitais
(tempo, espaço, identidade, mudanças, etc.) e para a identificação e integração de diferentes tipos de espaços mentais. Considerada em sua manifestação visível, em seus
resultados em termos de ações manifestas, a contrafactualidade, enquanto propriedade
da mente, pode ser compreendida como uma forçada incompatibilidade entre espaços
mentais de natureza distinta. À guisa de exemplo, a fim de tornar mais claro o quadro
teórico que estamos delineando, tomamos o seguinte enunciado encontrado em Fauconnier e Turner (2002):
(1) “Não há leite no refrigerador”.
Observemos que, a partir das pistas lingüísticas presentes no enunciado, a mente humana é capaz de construir de modo simultâneo dois espaços incompatíveis entre si
e, ao mesmo tempo, complementares, quais sejam: o primeiro é o da realidade do
falante, o factual, o espaço que nos indica não haver leite no refrigerador; já o segundo, o seu contrafactual, indica ser o refrigerador o local onde normalmente se espera
encontrá-lo. O mesmo não aconteceria se, em vez de leite, disséssemos que no refrigerador não há sapatos, roupas ou qualquer outro elemento que estabelecesse uma
relação absurda de acordo com o conhecimento compartilhado que temos do mundo
em que vivemos.
Em suma, a contrafactualidade consiste na habilidade humana de operar mentalmente
com mundos, através da criação, através da integração de espaços mentais, de um
mundo imagético, contrafactual, contraparte do mundo da realidade discursiva do falante (Espaço-R). Isso implica assumir que as operações mentais de identificação,
integração e imaginação, através das quais a mente humana constrói sentidos, envolvem, necessariamente, a contrafactualidade.
Ao realizar essas operações, a mente humana aciona e integra, simultânea e inevitavelmente, espaços mentais diversos, projetando-os sempre num e único espaço imagético
em que se configura o sentido. De acordo com a Teoria da Integração Conceptual, ao
fazer isso, no processamento discursivo, o falante/ouvinte realiza a operação de integração conceptual, constituindo uma Rede Conceptual Integrada que apresenta, em
sua forma menos complexa, quatro espaços mentais/referenciais: o Espaço de Entrada
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1 (Espaço Input 1), o Espaço de Entrada 2 (Espaço Input 2), o Espaço Genérico e o
Espaço Integrado (Blend). Esse processo de integração de espaços pode ser visualizado na figura abaixo, transcrita de Fauconnier e Turner (2002, p.46).
Compreendemos o Espaço Genérico como o espaço onde se conectam as informações
gerais comuns aos dois Espaços de Entrada (Input 1 e Input 2), os quais se apresentam, naturalmente, como domínios cognitivos diferenciados - parte e contraparte .
Correspondem a estruturas parciais sem as quais não pode ocorrer a formação da
mescla. Já o espaço integrado (Blend), espaço da mescla, é o lugar onde se projetam
estruturas captadas nos demais espaços para que se dê o processo de referenciação. É
importante ressaltar ainda que esse espaço apresenta uma configuração distinta, original, uma vez que os elementos que o compõem não existiam nos espaços de entrada,
mas foram constituídos pelo processo de mesclagem. Também é necessário dizer que
essa é uma representação mínima, uma vez que uma mescla pode servir como entrada
a outras mesclas, formando conexões em uma rede de integração.
2.3. Articulação Teórica: Instância de Enunciação como Espaço Mental/Referencial12
No desenvolvimento deste estudo, uma instância de enunciação13, lugar de construção
da referência, será concebida como espaço mental/referencial básico14 necessariamente envolvido no processamento discursivo, implementado e gerido pelas ações dos
falantes/ouvintes.
Ao assumirmos esse pressuposto, estamos considerando que a implementação do
Segundo Fauconnier (1994), os espaços mentais são ativados por expressões lingüísticas e resultam da interação entre
determinadas conexões cognitivas e a riqueza e a variedade de expressões lingüísticas das línguas naturais.
13
Na perspectiva de Benveniste, 1989/1995.
14
Na perspectiva de Fauconnier e Turner, 2002.
15
A Instância Enunciativa Zero também é conhecida pelo nome de situação default, conforme Magalhães, 1998, e é a operação de discursivização que institui o plano base, no âmbito do qual se criam e articulam outras instâncias enunciativas e
outros tipos de espaços mentais.
12
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processamento discursivo implica a criação de uma Instância Enunciativa Zero15,
aqui equivalente ao Espaço-Base de que tratam Fauconnier e Turner (2002). Entende-se o espaço-base como a organização formal – o aparelho formal da enunciação
– necessariamente constituinte do processo de discursivização, de fala, na configuração da representação lingüístico-cognitiva da situação de interlocução. Fauconnier
(1984,1997), Fauconnier e Sweetser (1996) e Fauconnier e Turner (2002) denominam
tal espaço “[...] espaço-origem, espaço-R ou o espaço da ‘realidade’ do falante”. É
no interior do espaço-base que se constituem e se articulam outros tipos de espaços
constituintes do processamento discursivo. Diante disso, assumimos, com Martins
(2000), que toda instância de enunciação é um espaço mental/referencial, embora
nem todo espaço mental/referencial seja uma instância de enunciação. Há espaços
mentais/referenciais que, por não serem constituídos a partir de formas do dizer16,
não são instâncias de enunciação, mas são constituídos, inevitavelmente, no interior
dela. Nessa perspectiva, estamos considerando que um texto é formado por uma rede
de espaços mentais/referenciais que são constituídos ou delimitados por instâncias de
enunciação.
2.4. Síntese
Para enfocarmos, neste breve estudo, os processos e/ou operações subjacentes à produção de significados pela mente humana, fez-se necessária a construção de um quadro de referência teórica que pudéssemos adotar na condução deste trabalho. Esse
quadro teórico se construiu a partir do estabelecimento de uma interface entre a Teoria
da Integração Conceptual e a Teoria da Enunciação, o que é possível, somente, pelo
fato de ambas as teorias considerarem a linguagem como atividade discursiva. Salientamos, contudo, que nem todos os elementos constitutivos dessas teorias são considerados relevantes para o quadro teórico que ora apresentamos, com vista à análise do
corpus selecionado.
Em síntese, do quadro teórico de Benveniste (1989, 1995) consideramos, essencialmente, as operações envolvidas na criação e articulação de instâncias de enunciação,
no que tange às especificações do processo de construção das relações entre enunciador e enunciatário, situados em um determinado tempo e espaço discursivos, como
fatores constituintes da referência discursiva, bem como a consideração de que a instância de enunciação é o espaço primitivo da fala, aquilo que Fauconnier e Turner
(2002) denominam espaço-base.
Do quadro teórico de Fauconnier e Turner (2002), levamos em conta a proposição de
São consideradas formas do dizer: 1) situação default (instauração da fala); 2) verbos dicendi (dizer, citar, afirmar, etc);
3) alguns verbos não-dicendi (os verbos atacar, ferir, machucar, etc, que instrumentalizam o dizer); 4) nomes deverbais
de verbos dicendi (conversa, declaração, diálogo, sussurro, promessa, etc, que derivam dos verbos correspondentes); 5)
termos de elocução (constituídos por substantivos, formalizam uma elocução, mas não são derivados de verbos, por exemplos: tese, lei, cláusula, texto, plebiscito, concepção, autor, e outros nomes análogos atuam como formas de dizer); 6)
recursos da escrita (os parênteses, as aspas e o travessão). Todos relacionados com uma elocução/fala. (MAGALHÃES,
1998).
16
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que as expressões lingüísticas por si só não portam sentidos, mas servem de gatilhos
para sua produção. Assumimos, então, que é por meio da ativação de determinadas
expressões lingüísticas, ou seja, ao se colocar a língua em funcionamento, que a mente humana produz sentidos, através da criação e articulação simultânea e dinâmica
das redes referenciais (de espaços mentais), por meio da operação básica da mente,
a integração conceptual, a qual é propiciada pela compressão e descompressão de
relações vitais. Nesse contexto, estamos levando em conta que o nosso pensamento é
contrafactual e que opera, sempre, e no mínimo, com dois espaços, o factual e o seu
contrafactual.
Nessa perspectiva, consideramos que o processamento discursivo se efetiva por intermédio da criação e articulação de instâncias de enunciação, da criação e articulação
de espaços mentais/referenciais, materializadas pela riqueza e variedade de expressões lingüísticas das línguas naturais. Além disso, assumimos, com Martins (2000),
que toda instância de enunciação é um espaço mental primitivo (base), embora nem
todo espaço mental seja uma instância de enunciação. Isso porque uma instância de
enunciação sempre é o espaço básico para algum outro espaço mental/referencial, que
pode ser, ou não, uma outra instância de enunciação.
Convém ressaltar ainda que a escolha do arcabouço teórico no qual nos apoiamos a
fim de tentar efetivar a tarefa a que nos propusemos, qual seja, a de verificar quais operações nossa mente é capaz de realizar para produzir sentidos, não se deu de maneira
casual. Nos estudos lingüísticos desenvolvidos aqui no Brasil, encontramos também
importantes contribuições que, implícita ou até mesmo explicitamente, fazem menção
aos pressupostos teóricos a que nos referimos. Podemos verificar em Salomão (2005),
Miranda (1999) e em Marcuschi (2001 e 2005), somente para citar alguns dos autores
nos quais nos fundamentamos para realizar este trabalho, pontos de convergência com
a teoria aqui adotada, tais como:
Em lugar de postular uma teoria das capacidades dos sistemas
matemáticos, tão ao gosto da lingüística formalista das últimas
décadas, o modelo dos espaços mentais articula-se a partir das
capacidades da mente humana. Nesse enquadre, o modelo alinha-se com uma perspectiva inovadora da cognição que, confrontando-se com as teorias modularistas da mente, considera a
organização cognitiva como um conjunto integrado de sistemas
dentre os quais estão a linguagem e a estrutura sociocultural.
Em outros termos, postula-se a linguagem como um instrumento cognitivo. (MIRANDA, 1999, p 81)
Entre as abordagens processuais da referência, parece-nos mais
promissora a teoria dos espaços mentais, desenvolvida por
Gilles Fauconnier [...]. Assim é que problemas clássicos dos
estudos da referência têm encontrado nesta teoria soluções elegantes e persuasivas. (SALOMÃO, 2005, p.155)
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Os processos de Integração/Mesclagem Conceptual de que tratamos, decisivos para a interpretação simbólica e, nestes termos,
para a ordenação de nossa relação com o mundo, encontram a
mais nobre de suas aplicações na constituição da própria cena
comunicativa de que participamos como pessoas do discurso e
na qual radicamos toda a experiência de percepção, concepção,
referenciação e identificação das coisas. (SALOMÃO, 2005,
p.163)
Vários estudos recentes sobre as anáforas, em especial, as anáforas indiretas, analisam a questão. [...] Ultimamente, inclinome cada vez mais a considerar as teorias dos espaços mentais
e das mesclas de domínios conceituais, tal como vêm sendo
desenvolvidos por Gilles Fauconnier (1985, 1997) e, entre nós,
por Margarida Salomão (1999) como uma das melhores abordagens dos processos de referenciação como atividades interativas e não operações lingüísticas. (MARCUSCHI, 2001, p.
39)
Isso posto, passaremos à analise do corpus selecionado, à luz dos princípios e pressupostos teóricos aqui delineados.
3. Análise
3.1. Apresentação do Corpus
Partimos do pressuposto de que o ato de argumentar constitui o ato lingüístico fundamental e que todo esse processo se dá pela construção e integração de espaços
mentais/referenciais aqui tomados como instâncias de enunciação. Em vista disso,
decidimos trabalhar com um discurso político, pois consideramos ser ele um domínio discursivo essencialmente argumentativo e, também, por pressupormos apresentar
uma gama de fatores que podem ser analisados, o que contribuirá positivamente para
o nosso trabalho.
Para tanto, escolhemos como corpus o texto de um programa eleitoral da campanha
presidencial do ano de 2002. Trata-se de um discurso político do candidato José Serra (PSDB), destinado a ser apresentado via televisão. Esse discurso foi ao ar no dia
20.08.2002, às 20h30, tendo como tema a segurança pública. Não obstante o fato de
ser um texto oralizado, será assumido por nós, neste trabalho, como texto escrito, o
que não influenciará no alcance do nosso propósito: demonstrar como se dá a construção de sentidos pela mente humana à luz da teoria da Integração Conceptual.
Eu me lembro muito bem quando tinha oito anos de idade. Meu
pai me levando pela mão pelo Mercado Municipal Central de
São Paulo. Você não sabe, mas meu pai era fruteiro imigrante italiano lá do bairro da Mooca. Quando penso no meu pai,
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eu me lembro do barulho daquele mercado e dele trabalhando
sete dias por semana. Nós morávamos numa vila. Meus avós,
lá perto. Éramos pobres, mas tínhamos uma vida digna. Estudava numa escola pública lá no bairro mesmo, onde a gente
vivia tranqüilo. Meu pai podia voltar para casa, à noite, com o
dinheiro da venda de sua banca de frutas e sequer lhe passava
pela cabeça que pudesse ser assaltado. Esta é a essência do meu
sonho de mudança para este país. Eu quero resgatar a dignidade
da vida dos trabalhadores. [...] Na questão da violência, eu quero dizer que nós vamos mudar a constituição se for necessário.
E vamos mudar não é apenas porque eu queira, não, é porque
o país quer e, aí, a questão do combate à violência, que hoje é
obrigação dos governantes estaduais, vai ser também de responsabilidade do Governo Federal. E por isso nós teremos o
Ministério da Segurança Pública que eu vou criar.
3.2. Procedimentos Metodológicos Adotados na Análise do Texto
Para analisarmos o texto que constitui o corpus deste trabalho, a fim de demonstrarmos como os espaços referenciais (mentais) são criados e integrados no processamento discursivo, adotaremos os seguintes procedimentos metodológicos:
a) leitura do texto, identificando a contraposição estabelecida a partir da implementação de dois tipos de instâncias enunciativas, dois tipos de espaços mentais, de espaços
discursivos: o espaço da instância enunciativa básica configura a referência global do
texto que, ao mesmo tempo, integra todos os demais espaços referenciais e a eles se
contrapõe;
b) identificação dos recursos (mecanismos) léxico-sintático-discursivos utilizados nos
processos que implementam a contraposição dos espaços discursivos, quer através de
comparações entre a instância básica e espaços por ela integrados, quer entre espaços
integrados entre si;
c) verificação de como a criação e integração de espaços referenciais se constituem
como um recurso básico da argumentação, tendo como implicação a persuasão do
auditório.
3.3. Análise do Corpus
A primeira consideração a ser feita a propósito de uma análise, na perspectiva pretendida, é que a realização da operação mental básica de integração conceptual traz em
seu âmago a articulação de outras três operações, a saber: identificação, integração e
imaginação. Dessa forma, a mente humana aciona e integra, simultânea e inevitavelmente, espaços mentais diversos, projetando-os sempre num e único espaço imagético
em que se configura o sentido emergente. A mente humana, ao fazer isso, está criando,
constituindo cenários enunciativos, os quais, no caso do texto em estudo, conside-
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ramos ser, na sua modalidade típica de integração de espaços mentais/referenciais,
essencialmente argumentativos.
No discurso utilizado por nós como corpus, podemos perceber que o locutor José Serra se apropria da língua, assumindo o papel de candidato, e se institui como enunciador; simultaneamente, institui o outro, o telespectador, alocutário, como enunciatário.
No âmbito do espaço-base implementam-se, simultaneamente, o espaço da realidade
do enunciador - o do candidato - e o seu contrafactual - o espaço de um público eleitor em potencial. Interessante notar aqui como a escolha dos itens lexicais de que se
compõe o enunciado vai nos fornecer as pistas necessárias para a referenciação da relação enunciador/enunciatário. Na configuração lingüística dessa relação, percebemos
ser José Serra um enunciador que tenta se apresentar como alguém cujos valores se
coadunam com os anseios de seu enunciatário, um povo trabalhador, humilde, honesto, enfim, a grande maioria do eleitorado brasileiro. Conhecedor de que o candidato
oponente representa melhor esse perfil e que, por essa razão, lidera as pesquisas de
opinião pública, a primeira estratégia de que se vale é a de se despir da imagem de
representante das elites brasileiras e, ao mesmo tempo, auto-representar-se como alguém do povo através da ativação de expressões lingüísticas, tais como: “[...] meu pai
era fruteiro imigrante italiano lá do bairro da Mooca”, “[...] lembro dele trabalhando
sete dias por semana”, “[...] éramos pobres, mas tínhamos uma vida digna”.
A partir da contraposição entre esses dois espaços, vários outros espaços são criados
e integrados no interior do espaço-base, espaço primitivo da fala do candidato José
Serra, com vista a conduzir o auditório ao fim pretendido, ou seja, merecer o voto do
eleitor. Num deles, à realidade do enunciador contrapõem-se espaços de imaginação
- como será seu governo - e de recordação - fatos de quando o candidato era menino.
Esses espaços são implementados e simultaneamente contrapostos por itens lexicais
do tipo “essência do meu sonho, lembro, quando tinha oito anos, quando penso”.
Também podemos contrapor os espaços vida digna versus vida indigna no discurso
do candidato. Salientamos aqui como o espaço vida digna é capaz de representar com
tanta propriedade o papel da mente humana na produção de sentidos. Esse espaço
remete a tempos totalmente diferentes - um deles é o da recordação do candidato, e
o outro, o da imaginação, posterior ao da eleição, o qual será resgatado, num futuro
cronológico, caso o candidato José Serra seja eleito - e, em ambos os casos, ocorre a
contraposição em relação ao espaço vida indigna que se refere ao atual estado de coisas, quando nos sentimos constantemente ameaçados. Ressalte-se aí o fato de como,
ao acionar e integrar simultânea e dinamicamente espaços mentais/referenciais diversos, por meio da operação básica da mente, a Integração Conceptual, configuram-se
sentidos emergentes projetados sempre como um e único espaço imagético que vai
sendo discursivamente (re)configurado. Integrando esses espaços, podemos dizer que
o argumento central do trecho consiste no fato de que o candidato quer dar ao Brasil
o que há de melhor, segundo sua avaliação, e foi perdido em outros governos. E isso
será possível porque o candidato tem conhecimento do que é o melhor: na proposta de
José Serra, uma vida digna equivale a uma vida sem violência. Tudo isso se constitui
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
como argumento a favor da sua eleição para presidente.
Podemos observar, também, a implementação de um outro espaço, por parte do candidato, que é o de uma informação nova à qual a maioria de seu público ainda não teve
acesso. Através da expressão “Você não sabe, mas [...]”, contrapõem-se dois espaços:
o do enunciador que, embora não pareça, conhece a realidade das classes menos favorecidas economicamente - afinal, “[...] estudava numa escola pública lá no bairro
mesmo” - e o do enunciatário, a maioria da população brasileira que não conhecia a
vida pregressa do candidato.
No trecho abaixo, seqüência do discurso do candidato José Serra, podemos ver a contraposição dos espaços opinião do candidato e opinião do povo que se integram, visando a evidenciar a compatibilidade existente entre a opinião do candidato José Serra
e a opinião popular. Isso consiste num argumento a mais em favor da eleição desse
candidato à presidência da República. Observe-se:
Na questão da violência, eu quero dizer que nós vamos mudar
a constituição se for necessário. E vamos mudar não é apenas
porque eu queira, não, é porque o país quer e, aí, a questão
do combate à violência, que hoje é obrigação dos governantes
estaduais, vai ser também de responsabilidade do Governo Federal. E por isso nós teremos o Ministério da Segurança Pública
que eu vou criar.
Outra contraposição que se percebe no trecho reside na relação estabelecida entre o
governo federal e o governo estadual no tocante à questão do combate à violência.
No governo atual, “[...] é obrigação dos governantes estaduais”, mas no governo do
pretenso presidente, “[...] vai ser também de responsabilidade do Governo Federal”.
Da criação e articulação desses espaços mentais/referenciais, emerge o sentido que
aponta vantagens para o tempo em que José Serra for presidente.
A propriedade da contrafactualidade manifesta na Integração de Espaços constituintes
e constitutivos da Rede Referencial (de Espaços Mentais) desse discurso visa a conduzir a mente do enunciatário a concluir que o candidato José Serra é o candidato ideal
para assumir a presidência da República.
Não é nossa pretensão, aqui, esgotar todas as possibilidades de construção de sentido.
Pretendemos, tão-somente, dar uma idéia geral de como a mente humana funciona
quando é ativada por expressões lingüísticas que funcionam como gatilho de todo
esse processo.
4. Conclusão
Partimos do pressuposto de que o ato de argumentar constitui o ato lingüístico fundamental e que todo esse processo se dá pela construção e integração de espaços referenciais (mentais) aqui tomados como instâncias de enunciação. Portanto, consideramos,
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
também, que a referenciação se dá pela criação e articulação das diversas instâncias
enunciativas num plano maior que corresponde ao plano-base, no qual elas se articulam. No entanto, é necessário observar que, no processamento discursivo, as instâncias de enunciação não se atualizam na materialidade do texto como constructos linearmente ordenados, em conjuntos de enunciados dispostos linear e seqüencialmente
organizados. Ao contrário, tudo isso se efetiva hipertextualmente. Na materialidade
do texto tem-se, apenas, uma configuração material das expressões lingüísticas minimamente necessárias para a semantização das instâncias como domínios cognitivos
do processo de referenciação. Na verdade, cada texto atualiza uma e única instância
de enunciação, um espaço discursivo integrado em que se articulam, hierarquicamente, todos os demais espaços mentais/referenciais instituídos no e pelo processamento
discursivo que o gera.
Assim, ao analisar a construção da referência no âmbito do processamento discursivo,
colocamos em cena um modelo baseado na conexão entre semântica e cognição que
visa a explicitar regularidades identificadas na relação cognição-linguagem. Nesse
modelo, a cognição extrapola a dimensão na qual as estruturas lingüísticas são fundamentadas apenas em princípios cognitivos naturais e passa a ser concebida como uma
construção social, intersubjetiva e historicamente configurada.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
SEÇÃO II – DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL
SUBSEÇÃO I – DIREITO PENAL
1. ARTIGOS
1.1 MORAL E JUSTIÇA NO DIREITO PENAL
HÉLVIO SIMÕES VIDAL
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Mestre em Direito (UGF-RJ)
Professor de Direito Penal das Faculdades Integradas
Vianna Júnior (Juiz de Fora-MG)
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Princípio da Legalidade no Direito Penal e os Casos
Difíceis. 3. Legalidade e Positivismo Jurídico. 4. Fissuras no Sistema Penal Legislado. 5. O Problema da Interpretação e o Abandono do Direito Positivo. 6. Causas
Pré-Jurídicas de Exclusão da Culpa e da Ilicitude e o Paradoxo do Positivismo. 7. As
Conexões Possíveis entre o Direito Penal e a Moral. 8. O Problema da Argumentação
Jurídica. 9. Bibliografia.
1. Introdução
A estrita legalidade, no que diz respeito à definição das condutas puníveis e das respectivas penas, é aquisição do patrimônio da humanidade, nascida no século XIX, por
obra do Iluminismo1. Esse princípio desenvolve uma função da mais alta importância
nas sociedades cultas2 e, no Brasil, tem status constitucional (art. 5º, XXXIX)3.
Os objetivos declarados dessa tomada de posição são, por um lado, impedir a criação
judicial dos delitos e das penas e, por outro, endereçar ao legislador uma exigência,
qual seja, a de que, ao formular os respectivos tipos penais, faça-o de forma precisa,
não ambígua, ou seja, veda-se a edição de leis penais de conteúdo impreciso, vago,
obscuro.
Assenta-se, nessa pretensão, uma clara tomada de posição quanto ao legalismo, ou
seja, para a concepção de que, em matéria de Direito Penal, somente a lei (votada pelo
Parlamento, em processo regular, segundo a Constituição4) pode definir o âmbito de
“Ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente
estabelecida”. (Declaração dos Direitos do Homem, de 26 de agosto de 1789).
2
A Lei Fundamental (Grundgesetz) alemã assim dispõe (art. 103, § 2º): “Eine Tat kann nur bestraft werden, wenn die Strafbarkeit gesetzlich bestimmt war, bevor die Tat begangen wurde” [uma conduta somente pode ser punida, quando a punibilidade
tenha sido determinada, antes da sua prática]. A Constituição italiana, por igual, prevê no art. 25, 1ª ‘comma’: “Nessuno può
essere punito se non in forza di una legge che sia entrata in vigore prima del fatto commesso”. (Tradução nossa).
3
“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Igualmente, Código Penal brasileiro,
art. 1º: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
4
“Legalidade conforme ao ordenamento”. (ALEXY, 1997, p. 94).
1
182
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
proibição. Segundo Jesus (1997, p. 12): “[...] só a lei abre as portas da prisão”.
O objetivo do presente estudo, entretanto, é o de realizar um enfoque crítico à presença do positivismo no sistema penal, iluminando pontos que parecem contradizer,
frontalmente, o problema da legalidade penal; mais que isso, realçar a presença de
elementos não positivos por todo o arco do sistema penal (principalmente no campo
da tipicidade e nas causas de justificação), bem como ressaltar problemas interpretativos que, amiúde, agem como força centrífuga ao sistema legislado e que parecem
destronar o princípio da legalidade.
2. O Princípio da Legalidade no Direito Penal e os Casos Difíceis
O princípio da legalidade (Legalitätsprinzip) encerra, em si mesmo, um alto valor,
qual seja, a imoralidade da edição de leis retroativas, o que, de pronto, já aponta
para a existência de valores supralegais envolvendo o ordenamento punitivo. De fato,
antes da avaliação propriamente jurídica do princípio, a ele subjaz um valor, claramente ético, consistente na imoralidade da punição retroativa de fatos socialmente
reprováveis.
Inumeráveis vezes, com efeito, o próprio ordenamento penal reclama decididamente
pela consideração e pela avaliação criteriosa da moral, quando, por exemplo, permite
que a pena do crime de homicídio seja especialmente atenuada se o agente agiu impelido por motivo de relevante valor moral (art. 121, § 1º, Código Penal) do que é
exemplo conhecidíssimo o homicídio eutanásico ou, ainda, qualquer valor moral que
é aprovado “[...] pela consciência ética de um povo em determinado momento histórico” (SÃO PAULO, 1970); outro tanto dá-se no caso de lesões corporais (art. 129, §
4º, Código Penal).
Outras vezes, a punição de um fato decorre da sua consideração, antes de tudo, como
imoral, do que é exemplo o ultraje público ao pudor (art. 233, Código Penal), cuja
configuração, em casos reais, pode tocar o direito à dignidade da pessoa humana,
quando se punem atos de manifestação de uma tendência homossexual, como nos
casos de trottoir5 público.
Não raramente, surge na própria norma uma referência expressa ao valor justiça6,
como no caso da legítima defesa, que, em síntese, é a repulsa à injusta agressão (Código Penal, art. 25), a direito próprio ou de terceiro; embora não haja um preciso critério
legal na definição dessa injusta agressão, ela, de fato, desempenha um papel decisivo
na justificadora, o que põe à deriva o princípio da legalidade, porque um requisito do
tipo permissivo haverá de ser, caso a caso, preenchido por valores que não constam
de prévio rol normativo.
5
Casos em que estaria havendo ofensa à moralidade média: “Comete o crime de ato obsceno ‘travesti’ que, na prática do
‘trottoir’, para atrair clientes, expõe partes íntimas de seu corpo, ofendendo a moralidade média da coletividade”.
6
A tese da estrita separação entre direito, moral e justiça (neutralidade do direito) é um dos pontos nucleares do positivismo
jurídico, (HOERSTER, 2000, p. 11-12).
183
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
O inusitado aparecimento de casos duvidosos, a despeito da precaução do legislador,
parece fazer desalojar o princípio da legalidade de sua pretensa majestade. Veja-se o
caso, cambiável para o direito brasileiro, citado por Hoerster (2000, p. 112) de alguém
que deseja provocar a morte cardíaca de outrem, já morto cerebralmente e se esta
conduta recai ou não sob o § 211 do StGB.7
Quais são os limites legais do homicídio culposo, diante da redação do nosso Código
Penal, que não define o que seja negligência, imprudência ou imperícia (art. 18, II),
casos em que a avaliação da conduta fica a cargo de um juízo normativo a ser preenchido, de vez em vez, pelo próprio juiz e não pelo legislador, que se limitou a oferecer
os contornos generalíssimos das possíveis e inumeráveis condutas?
A obtenção de uma vantagem indevida através de qualquer meio fraudulento está
tipificada como estelionato (art. 171 Código Penal): o pagamento a prostituta, com
documento falsificado, configuraria o crimen em questão? Nesse caso, como se resolver a situação, quando estão sob confronto, de um lado, um interesse público na
persecução de condutas que lesem terceiros e, de outro, o mesmo interesse em não
tutelar atividades imorais?8
A legalidade dos delitos no Direito Penal constitui-se numa clara tomada da posição
iluminista, em cuja filosofia encontrava-se patenteada a estrita necessidade de separação entre os poderes; desse modo, sendo o Direito algo previamente dado ao juiz, este
não poderia criá-lo ou interpretá-lo, reduzindo-se sua função à mera declaração daquilo que o legislador previamente houvesse determinado e, portanto, os juízes nada mais
seriam do que a boca que pronuncia as palavras da lei.
Sendo, ainda, o positivismo uma concepção que abdica da lacunosidade do direito
(BOBBIO, 1995, p. 133), o seu método interpretativo é o da subsunção. A única fonte
do Direito Penal, então, seria a própria lei, com exclusão do costume contra legem ou
ab-rogativo. (BOBBIO, 1995, p. 132).
O art. 229 do Código Penal tipifica, entretanto, como delito, a manutenção de casa de
prostituição, definindo-o como sendo o lugar destinado a encontros para fins libidi7
Trata-se do delito de assassinato, assim definido: “Mord. Der Morder wird mit lebenslanger Freiheitstrafe bestraft. Mörder ist, wer aus Mordlust, zur Befriedigung des Geschlechtstriebs, aus Hagbier oder sonst aus niedrigen Beweggründen,
heimtückisch oder grausam oder mit gemeingefährlichen Mitteln oder um eine andere Straftat zu ermöglichen oder zu
verdecken, einem Menschen tötet” [O homicídio é punido com a prisão perpétua. É homicida quem, intencionalmente, para
satisfação de instinto sexual, por torpeza ou por outro motivo fútil ou torpe, ou com utilização de meio que possa causar
perigo comum, ou para o cometimento ou para o fim de ocultar outro delito, mata alguém, tradução nossa].
8
Casos como este são resolvidos, no direito brasileiro, pela consideração de que a atividade da prostituta não é tutelada
pela lei e, portanto, o cliente que a paga, mesmo com cheques falsos, não comete, em seu detrimento, o crime de estelionato
(TACrimSP – RJDTACRIM n. 7, p. 98). Interessante notar que, nessa hipótese, se encontram sob conflito um interesse
individual (o da meretriz, no recebimento do valor combinado) e um interesse público na não permissibilidade da proliferação de negócios imorais e não tutelados. Entre punir o cliente, chancelando-se a atividade ilícita, e vedar a prática de atos
imorais, prepondera o princípio do interesse público. Trata-se de um caso em que existem razões muito mais fortes contra
o reconhecimento de um direito individual, ficando afastada a regra da precedência prima fascie dos direitos individuais.
(ALEXY, 1998, p. 207-208).
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nosos, haja ou não intuito de lucro ou mediação do proprietário ou gerente. Provado
este fato, o juiz, então, não poderia deixar de aplicar a norma, pela constatação de um
costume ab-rogativo. Entretanto, o problema da legalidade, nesse sugestivo caso, é
colocado sob confronto com o problema dos costumes, prevalecendo este, em detrimento do tipo legal incriminador, quando se trata de abordar a questão dos motéis e
drive in, no Brasil.
Veja-se que, na estrita concepção normativa, está vedada a manutenção de qualquer
lugar destinado a encontros libidinosos. Esse, irrefutavelmente, deveria ser o caso dos
motéis. Porém, os tribunais brasileiros, ao serem confrontados com o problema penal,
de forma mais ou menos uniforme, deixam de aplicar o comando legal, entendendo-o
derrogado pelos costumes sociais, com a constatação, inclusive, de que as autoridades
policiais têm grande hesitação na repressão do fato, justamente, porque existe um
caudaloso costume social, uma aceitação generalizada quanto à normalidade da existência e da freqüência àqueles locais.9
O princípio positivista da estrita legalidade deveria, então, funcionar como uma moldura, dentro da qual um determinado fato caberia, na sua inteireza e em plena conformação, com a previsão normativa; caso contrário, estaria excluído de seu espectro,
por desconformidade, do que derivaria o princípio da taxatividade10. Portanto, para
atender à sua específica função, uma conduta ou é permitida ou é expressamente vedada pelo ordenamento, sendo lícito ao indivíduo fazer ou praticar tudo aquilo que
não foi previamente vedado. Assim, na aplicação das normas penais, estaria o juiz
afastado da discricionariedade.
Resta aqui, examinar, por alguns casos esparsos, se essa pretensão de cunho nitidamente legalista é possível normativa ou factualmente.
Kelsen (2003, p. 388) reconheceu a impossibilidade de que a aplicação do Direito
possa ser feita de forma completa, ou seja, de que as normas, em geral, possam ser tão
completas e determinadas que nenhuma margem de atuação reste a quem as aplica.
De fato, reconhecia que “[...] mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem
de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer”,
de forma que, tanto o ato de criação quanto o de aplicação do direito é “[...] em parte
determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado”. (KELSEN, 2003, p. 389). Essa
indeterminação alcança tanto o fato condicionante como a conseqüência condicionada. Dá, como exemplo, ainda, para os casos penais, a hipótese de determinação da
pena cabível a um delito quando a própria lei concede ao juiz a faculdade de escolher
entre a pena pecuniária (multa) ou a pena de prisão, além da concessão da faculdade
de fixação dos limites desta mesma pena, no máximo ou no mínimo.
“Nos tempos atuais, em que proliferam os drive-in, motéis, casas de relax, não se pode concluir, açodadamente, que
simples locação de quartos a casais tipifique favorecimento à prostituição”. (SÃO PAULO, 1984).
10
“O postulado em causa expressa a exigência de que as leis penais, especialmente as de natureza incriminadora, sejam
claras e o mais possível certas e precisas. Trata-se de um postulado dirigido ao legislador vetando ao mesmo tempo a elaboração de tipos penais com a utilização de expressões ambíguas, equívocas e vagas de modo a ensejar diferentes e mesmo
contrastantes entendimentos” (LUISI, 2003, p. 24).
9
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Por outro lado, reconhecia que a aplicação do Direito poderia tornar-se problemática,
pela pluralidade de significações de uma palavra ou de uma seqüência de palavras
em que a norma se exprime, ou seja, a não univocidade do sentido verbal da própria
norma. Daí porque, em todos os casos de indeterminação (intencional ou não), “[...]
oferecem-se várias possibilidades à aplicação jurídica”. (KELSEN, 2003, p. 390).
Nenhuma norma, então, seria criada ou aplicada sem que, concomitantemente, abrissem-se, para seu conhecimento, várias possibilidades, ou seja, o ato de aplicação do
Direito envolve várias soluções.
O Direito a aplicar, forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha
dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em
qualquer sentido possível. (KELSEN, 2003, p. 390).
Os mais expressivos representantes do positivismo jurídico, Hart (1961) e Ross (1994),
na construção de suas teorias sobre o Direito, reconhecem a presença de inumeráveis
casos duvidosos (problemáticos) bem como a relatividade das proposições jurídicas
em geral. Se isso é verídico, também o será para o campo penal.
Para Hart (1961, p. 139), em todos os campos de experiência, e não só no das regras,
há um limite, inerente à natureza da linguagem, quanto à orientação que ela, em geral, pode oferecer. Haverá, na verdade, casos simples que estão sempre a ocorrer em
contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são claramente aplicáveis, mas
haverá também casos em que não é claro se se aplicam ou não. Cita o caso hipotético
em que a autoridade resolva proibir a entrada de veículos em determinado parque
municipal, interrogando: “A expressão veículo, usada aqui inclui bicicletas, aviões e
patins?” (HART, 1961, p. 139).
Reconhece, pois, que a quem haja de aplicar a norma ao caso concreto, sempre é deixado algum poder discricionário e que a comunicação de padrões de comportamento
envolve, nos casos correntes, grande indeterminação, que se qualifica como textura
aberta.
Se o mundo em que vivemos fosse caracterizado só por um
número finito de aspectos e estes, conjuntamente com todos os
modos por que se podiam combinar, fossem por nós conhecidos, então poderia estatuir-se antecipadamente para cada possibilidade. (HART, 1961, p. 141).
Igualmente, Ross (1994, p. 43), ao estudar o problema da aplicação das regras jurídicas, e, reclamando esse processo um outro prévio de interpretação, ocorre a introdução automática de pontos vitais de incerteza. Abdicando do problema da prova dos
fatos, o processo de interpretação, realizado pelo juiz, pode estar motivado por fatores
que não são ideológico-jurídicos, o que é decisivo para o valor prático da ciência do
186
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
direito. Ademais, em toda proposição jurídica há um grau de relatividade, produto da
incerteza.11
Casos limites no âmbito do princípio da legalidade são os dos fatos culposos, que
exigem a apuração da diligência devida ou cuidado objetivo para configuração da
modalidade delituosa. As formas como se apresentam, amiúde, estes delitos os insere
nos chamados casos difíceis, em que “[...] não podemos prever ab initio que combinações de circunstâncias surgirão, nem que interesses terão de ser sacrificados e em que
medida, se houver que tomar precauções contra os danos. Daí que sejamos incapazes
de considerar de forma precisa, antes que surjam casos concretos, que sacrifício ou
compromisso de interesses ou valores desejamos fazer, para reduzir o risco de danos”
(HART, 1961, p. 146).
Precisamente porque, nos delitos culposos, não há aquela forma típica de subsunção
dos fatos à norma e, precisamente porque o conteúdo do dever de diligência não é
ditado pelo legislador, mas depende de um processo de todo diverso, controlado pelo
juiz, é que se põe em causa a reserva legal ou, mais acentuadamente, o princípio da
taxatividade, pelo qual o conteúdo do injusto deveria ser ditado pelo legislador e não
por outras autoridades.
O dever de cuidado não pode ser precisado pela norma. Desse modo, o princípio da
legalidade penal fica sob escombros, havendo, aqui, uma enorme textura aberta, ao
aguardo da concreção de juízos (des) valorativos, de forma que já não mais se pode
dizer que é o legislador quem está abrindo as portas da prisão.
Essa mirada é também a de Tavares (2003, p. 240), que procura ressaltar a inexistência
no tipo legal culposo da descrição exaustiva das atividades cuidadosas devidas, o que
resulta em tabula rasa do princípio da legalidade:
No caso dos delitos culposos, essa especificação do dever apresenta-se defasada, em face da inexistência de tipo legal com
descrição exaustiva das atividades cuidadosas devidas. Isto tem
origem, inclusive, na própria organização da estrutura jurídica e
nas possibilidades de verificação concreta da conduta perigosa,
cuidadosa ou descuidada. Este fato ainda não foi inteiramente
observado. Desde que se deixe ao juiz a faculdade de afirmar a
forma de conduta cuidadosa que o agente deveria ter realizado,
nada mais se faz do que tabula rasa do princípio da legalidade.
De fato, as “[...] combinações antecipáveis dos fatores relevantes” (HART, 1961) são
poucas, com grande outorga de poder discricionário ao juiz, que não está mais sujeito
ao princípio da legalidade. Aqui, ocorre coisa semelhante ao que se dá na entrega de
poder regulamentar atribuído a certas autoridades e que somente pode ser exercido
11
“Además, la interpretación de las reglas de derecho ofrece puntos vitales de incertidumbre” (ROSS, 1994, p. 42).
187
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
depois de se ter realizado algo, ou seja, o próprio fato.
O mais famoso exemplo desta técnica no direito anglo-americano é o uso do padrão de diligência devida, em casos de culpa.
As sanções civis, e ao menos freqüentemente as criminais, podem ser aplicadas àqueles que omitam usar da diligência devida para evitar causar danos físicos aos outros. Mas o que é
razoável ou diligência devida numa situação concreta? (HART,
1961, p. 145).
Disso resulta a insuficiência do princípio da legalidade penal como técnica positivista
de emoldurar o direito, resultando claro que ele é extremamente dúctil para conter
somente a norma, desprendida de valores. Inúmeros tipos legais (do que são exemplos significativos os delitos culposos) pressupõem uma atividade construtiva não
legalista. Por fim, os contínuos casos duvidosos ou marginais, não expressamente
resolvidos por dedução lógica, jamais permitem uma solução unívoca. Por vezes, é a
própria norma que reclama o seu preenchimento por valores suprapositivos, como a
moral e a justiça.
3. Legalidade e Positivismo Jurídico
O presente tópico pretende estudar, ainda que sumariamente, a questão do positivismo
jurídico e sua conotação legalista, qual seja, a concepção de que o Direito constituise em legalidade segundo o ordenamento jurídico; no item seguinte, procuraremos
argumentos para demonstrar a impraticabilidade dessa concepção reducionista.
A doutrina do positivismo jurídico envolve concepções várias, não havendo uma teoria positivista pura, ou seja, com postulados únicos e fixos, mas várias teorias juspositivistas. Isso não nos impede de agrupar os seus fundamentos centrais, da seguinte
maneira: a) o direito resume-se a um conjunto de fatos sociais, análogos àqueles do
mundo natural. Sendo assim, o jurista deve estudá-los de forma análoga à realidade
natural, isto é, abstendo-se de formular juízos de valor. O termo direito é avalorativo (neutro). A afirmação da validade do direito prescinde da afirmação do seu valor
(BOBBIO, 1995, p. 131) e sua aplicação deve ser levada a cabo pelo processo da
subsunção (interpretação mecanicista); b) o direito é definido através do conceito de
lei (HOERSTER, 2000, p. 11), sendo esta a fonte preeminente do direito (BOBBIO,
1995, p. 132); c) inexistência de normas suprapositivas objetivamente válidas (subjetivismo do direito natural).
Há outros postulados contidos em teorias positivistas (v.g., imperatividade da ordem
jurídica, teoria da obediência [legalismo], completude do ordenamento etc.), os quais
consideramos, para os fins deste estudo, negligenciáveis. A abordagem escolhida, assim, tem em mira o problema do positivismo, em confronto com o sistema penal.
Esses três postulados fundamentais do positivismo jurídico estão muito próximos do
188
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Direito Penal, porque a ele se aplicam quase automaticamente, sem que o aplicador
prático seja levado a questionamentos de fundo sobre a natureza, os fundamentos e
a validade do direito que invoca. Assim, a possibilidade de redução mecanicista de
um fato à lei penal, como trabalho preliminar e indispensável na praxis forense, reduz o problema do próprio direito à mera subsunção dos fatos à norma. Junto a esse
processo, encontra-se o postulado da legalidade penal que vivifica o último postulado
positivista, ou seja, a inexistência de normas suprapositivas válidas. O Direito Penal,
então, não poderia ser visto sob outra ótica, que não a positivista e, por isso, constituise num ramo do direito em que os postulados positivistas mais parecem aderir.
A primeira tese positivista (neutralidade do direito e exigência de sua interpretação
mecanicista) é justificada com a seguinte ordem de argumentos: a) a característica de
todas as ciências (mesmo que matemáticas, naturais e sociais) consiste na sua avaloratividade, ou seja, na rigorosa exclusão do seu campo dos juízos de valor: a ciência
deverá estar preocupada com o conhecimento da realidade; este conhecimento deve
ser objetivo, ou seja, com exclusão de toda subjetividade, do que são exemplos os
juízos de valor; “Assim, a escravidão será considerada um instituto jurídico como
qualquer outro, mesmo que dela se possa dar uma valoração negativa”. (BOBBIO,
1995, p. 136).12
A segunda tese (a lei como única fonte de qualificação do direito) é um dos pontos
fundamentais da doutrina positivista e diz respeito à validade das normas jurídicas.
(BOBBIO, 1995). Válida é a norma produzida por uma fonte autorizada. Para o positivismo, é ponto medular o princípio da prevalência, ou seja, na predominância da
lei sobre todas as outras fontes do direito. Em geral, os ordenamentos jurídicos são
complexos e hierarquizados. Assim, a fonte predominante, aquela que se situa no
plano mais alto, é a lei. Abaixo dela, situam-se os costumes13. Em Direito Penal, a
função dos costumes é sempre tida como muito restrita, “[...] subsidiária e acessória”
(BRUNO, 1967, p. 201) por força do princípio da legalidade:
A fonte imediata do Direito Penal é a lei, na sua fonte formal,
em que se fundamenta o seu sistema, que é, assim, muito mais
rígido e fechado do que os outros ramos do Direito. (BRUNO,
1967, p. 202).14
12
Refere-se, ainda, ao pensamento de Hobbes e Austin, cujos fundamentos filosóficos criaram as bases do positivismo,
para chegar a Kelsen. Na filosofia deste eminente juspositivista, o Direito é resumido a uma técnica para a obtenção de
determinadas condutas sociais, o que é obtido através do instrumento da coerção; “[...] como tal pode servir à realização de
qualquer propósito ou valor, porém é em si independente de todo propósito e de todo valor” (BOBBIO, 1995, p. 142).
13
“Do ponto de vista de uma teoria jurídica positivista, que não pode aceitar nem a existência de um imaginário espírito
do povo, nem a de uma solidarité sociale igualmente imaginária, a função constitutiva, isto é, criadora de Direito, do
costume não pode ser posta em dúvida, da mesma forma que o não pode ser a da lei”. (KELSEN, 2003, p. 253). A fonte
costumeira possui função limitada, uma vez que “[...] só se pode operar através das normas individuais a estabelecer pelos
órgãos aplicadores do Direito”. (KELSEN, 2003, p. 254), ou seja, a admissão do costume depende do seu reconhecimento
pelos tribunais.
14
Para o penalista, os costumes não podem sequer integrar a lei penal nas suas lacunas, nem possuir ação derrogatória ou
ab-rogatória (BRUNO, 1967, p. 202).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Por fim, para a teoria positivista, os critérios do direito justo são de natureza subjetiva,
pelo qual “[...] no existen normas suprapositivas objetivamente válidas. Las respectivas normas tendrían que ser suprapositivas porque los criterios del derecho recto
no pueden ser encontrados en el propio derecho”. (HOERSTER, 2000, p. 23)15. Além
disso, a crença no Direito Natural “[...] é redutível a uma falácia muito simples: a impossibilidade de perceber os sentidos muito diferentes que tais palavras impregnadas
de direito podem assumir”. (HART, 1961, p. 203).
O Direito Penal, assim, estaria inserido no reino da positividade jurídica que, pelo princípio da legalidade, concretizaria o desejo de um Estado Liberal de Direito, qual seja,
a separação dos poderes “[...] che nella materia penale si traduce nell’attribuzione al
‘solo potere legislativo’ del compito di individuare i reati e le relative sanzioni (pene e
misure di sicurezza): si traduce cioé nel ‘principio di legalità’ (o principio di ‘riserva
di legge’)”. (MARINUCCI; DOLCINI, 1999, p. 9, grifo do autor).
4. Fissuras no Sistema Penal Legislado
Este tópico procura indicar a existência de conteúdos não legalistas (não positivos)
no direito penal, quer refira-se às normas incriminadoras ou não; além disso, procura
realçar a existência de casos marginais ou duvidosos na rotina dos tribunais e cuja
solução não se resume à mera subsunção dos fatos à lei.
A constatação inicial sobre a subsistência de um delito é a referência à lei, o que
o modelo analítico-positivo denomina por “[...] inegabilidade do ponto de partida”
(FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 256). Não é possível, assim, ao juiz criar requisitos da
tipicidade penal, o que equivale a dizer: não é possível a criação judicial de um delito.
Não é possível, igualmente, a outras autoridades definir quaisquer figuras criminosas.
O costume, por igual, não é fonte do direito penal, não podendo, ainda, derrogar nenhuma lei penal.
Alguns casos insólitos (ALEXY, 1997, p. 15) para os quais a solução concreta, além
de não poder ser formulada de forma unívoca, nem mesmo centrarem-se, puramente,
nos limites da lei, põem sob intenso tremor o princípio da legalidade.
Havíamos feito referência a um julgado de cunho penal, pelo qual a exposição das
partes íntimas de um travesti, em via pública, ofenderia o pudor público. Esta mesma
conduta, se praticada no Brasil, durante o carnaval, seria punida? Seriam puníveis,
igualmente, as práticas de topless ou a prática de nudismo, em locais abertos ao público, mas reservados somente a quem lá se dispusesse a praticá-los? (DELMANTO,
2000, p. 445).16
“Manifiestamente, con medios puramente lógicos no es posible fundamentar normas suprapositivas”. (HOERSTER,
2000, p. 24).
Para o autor, referidas práticas não configuram ato obsceno, “[...] em face dos nossos costumes atuais”. (DELMANTO,
2000, p. 445). Antes da Lei n. 11.106 de 28.03. 2005, o art. 215 do Código Penal incriminava a prática de conjunção carnal
com mulher honesta, mediante fraude. Pergunta-se: o conceito de mulher honesta estava referido na lei penal? Entretanto,
o significado da expressão não era formulado pelo legislador, mas dependia, integralmente, da apreciação dos costumes em
uma determinada realidade social, o que demonstrava que a intelecção do tipo penal decorria de uma prática costumeira
e não legislada. Honesta, assim, seria aquela mulher que não “[...] rompeu com o mínimo de decência exigido pelos bons
costumes”. (RJTJESP, n. 9, p. 578). O princípio da legalidade, então, parece sofrer abalo, na consideração de que, em
determinados casos, a configuração de um delito não é feita pelo legislador.
15
16
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Seria possível, no nosso país, punir-se uma prática rotineira, porém ainda ilegal, consistente no jogo do bicho?
Não é difícil colherem-se decisões, no sentido de que o costume contra-legem não
revoga a lei em vigor (RT, n. 715, p. 539). Entretanto, não é raro o entendimento contrário, no sentido de que, sob a forma da aceitação social (o que equivale dizer, dos
costumes contrários à lei posta), a incriminação da conduta (jogo do bicho) carece de
eficácia:
A atividade do próprio Poder Público na exploração de jogos
de azar retirou, em verdade, do jogo do bicho sua primitiva feição contravencional, tornando-o prática rotineira de ostensiva
aceitação popular’. (RT, n. 606, p. 338, grifo nosso).
Se alguém diz que determinada mulher é uma rapariga, estará cometendo o delito do
art. 140 do Código Penal (injúria)? A resposta não pode ser buscada na lei, e o processo de aplicação desta não se resume à mera subsunção. Há necessidade de avaliação,
no caso concreto (dependendo especificamente da região do país onde foi dita), dos
costumes locais, para a constatação da subsistência do delito ou sua exclusão. Assim, a expressão poderá significar ou uma injúria, se a conotação local expressar que
a ofendida é uma meretriz, ou um elogio, significando uma mulher moça. (JESUS,
1997, p. 27).
A inclusão na fattispecie penal das denominadas cláusulas gerais que “[...] são fórmulas sintéticas compreensivas de um grande número de casos que o legislador renuncia
a enumerar e especificar” (MARINUCCI; DOLCINI, 1999, p. 61), deixa ao próprio
juiz uma margem extensa de avaliação, quando se trata de individuar quais são os
casos que recaem no âmbito da norma incriminadora. Ora, trata-se do fenômeno da
transferência do legislador para o juiz da tarefa de individuar o conteúdo do preceito
primário, o que implica uma fuga do princípio da legalidade.17
Outro problema da legalidade está nos denominados elementos normativos do tipo
penal, ou seja, naqueles delitos em que a compreensão da figura incriminadora depende de referências a normas de conduta ético-sociais ou de valorações feitas pelo
juiz (e não pelo legislador!) quando da aplicação da norma ao fato concreto. Nesses
casos, ocorre a introdução de grandes imprecisões conceituais, do que são exemplos
as expressões, ato obsceno, motivo fútil, matrimônio, etc., presentes em diversas figuras penais.
17
Exemplificativamente, a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83) contempla delitos com cláusulas gerais, do que
são exemplos o artigo 15 (sabotagem contra instalações militares) e o art. 16, incriminando a conduta daquele que integra
ou mantém associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime
vigente ou do Estado de direito, por meios violentos ou com emprego de grave ameaça, ou seja, a manutenção dos aparelhos subversivos.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Esses casos são referidos por Marinucci e Dolcini (1999, p. 71) como aqueles que
apresentam uma zona cinzenta, expressão muito próxima à denominação de Hart
(1961), Ross (19994) ou Alexy (1998) para os casos de textura aberta, casos difíceis
ou insólitos.
Por exemplo: após o parto, vem à existência um ser humano. Se sua morte ocorre muito tempo após aquele acontecimento, o responsável será penalizado por homicídio. Se
a morte do recém-nascido dá-se durante o parto ou logo após, o crime praticado é o do
art. 123 (infanticídio). Qual o significado da expressão logo após, contida no referido
artigo? Trata-se da comprovação inequívoca da subsistência, mesmo no âmbito da
estrita legalidade penal, das denominadas zonas cinzentas, onde a conduta pode ou
não recair.
Veja-se o delito do art. 212 do Código Penal. Ali está prevista a conduta incriminada
do vilipêndio a cadáver ou a suas cinzas. Conquanto seja possível aferir-se o significado das expressões cadáver e cinzas, qual o conteúdo da expressão vilipêndio? Falar
mal de determinado defunto configuraria ou não o tipo em questão?
Outro significativo exemplo está no art. 137 do Código Penal (rixa). Nele encontra-se
prevista a conduta daquele que participa de rixa; porém, a fórmula legal deixa ao arbítrio do intérprete a fixação e o estabelecimento se o delito ocorre somente com uma
confrontação corpo a corpo ou também por meio de um embate à distância, como nos
casos de conflito por disparos de arma de fogo ou lançamento de pedras; bem assim,
não está definido o número mínimo de participantes para a integração do tipo.
Nos casos dos elementos normativos do tipo, ocorre grande zona de imprecisão, justamente porque estes elementos contidos no tipo dependem, para sua compreensão,
de juízos de valor (normativos ou extranormativos), como nos casos de ato obsceno
(art. 233, Código Penal), objeto obsceno (art. 234), qual seja, aquele capaz de excitar
a sensualidade ou a luxúria, havendo notável margem de incerteza quanto aos limites
em que a obscenidade possa ter havido, ou não.
Configura ou não o delito do art. 233 do CP um beijo ardente e prolongado em praça
pública, por dois jovens apaixonados? E se não configura, com base em que elementos
é possível excluir-se a conduta do tipo penal em questão? Qual tipo de moralidade é
reclamada ou exigida para a não-configuração do crimen?
Nos crimes culposos, por exemplo, em que a culpa decorre de imperícia, ocorrem
casos problemáticos, porquanto esta modalidade de culpa importa em violação de
normas técnicas preventivas que não são fixadas em atos normativos públicos ou privados, mas que são deduzidas das legis artis existentes nos diversos setores da vida
de relação e que dependem, ademais, de uma contínua adequação às novas regras
elaboradas nos respectivos setores técnicos.
192
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
5. O Problema da Interpretação e o Abandono do Direito Positivo
Dois casos emblemáticos procuram ilustrar o presente tópico. Ambos inserem-se naquelas hipóteses denominadas zonas cinzentas ou turvas, nas quais “[...] a lei a aplicar
é imprecisa e as regras da metodologia jurídica não conduzem necessariamente a um
único resultado”. (ALEXY, 1998, p. 19).
São os casos de abertura das normas, nos quais o modelo da subsunção (típico do
positivismo jurídico) não encontra perfeita correspondência, reclamando, então, uma
solução por critérios extrajurídicos (não positivos), na medida em que o juiz, ao preencher as lacunas encontradas, porque a norma não pode ser perfeitamente subsumida
ao fato, manobra a questão com pautas não legisladas.
Trata-se de um problema constante no direito positivo (constituído de regras) e que,
em verdade, não pode ser evitado, como nos assegura Alexy (1998, p. 166):
Aun en el caso de una legislación óptima y de un perfecto manejo de las reglas y formas de la interpretación jurídica, no
puede garantizarse ninguna determinación y seguridad permanentes del derecho.
Os casos trazidos à consideração são os do feto anencefálico e o da prática de racismo; nesse último caso, considera-se a publicação de obras contendo discriminação
contra judeus, fato esse ocorrido no Brasil. O feto anencefálico é objeto de Argüição
de Preceito Fundamental (BRASIL, 2005), versando sobre a possibilidade (ou não)
da interrupção da gravidez, quando o feto estiver acometido de anencefalia. O caso
da prática de racismo foi objeto de Habeas Corpus (BRASIL, 2004), versando sobre
editor de livros com caráter anti-semita (Siegfried Ellwanger).
As questões fundamentais postas são as seguintes: 1. o Código Penal brasileiro (art.
128, I e II) permite a interrupção da gravidez, quando o aborto é praticado por médico, se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez é resultante
de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante. Configura aborto
(portanto, crime punível segundo os artigos 124 e 125 do Código Penal) a interrupção
da gravidez em caso de feto anencefálico? 2. a Constituição Federal (art. 5º, XLII)
prevê que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito
à pena de reclusão, nos termos da lei. Por sua vez, o art. 20 da Lei n.º 7.716/89 (com
redação dada pela Lei n. 8.081\90) prevê como crime as condutas de escrever, editar,
divulgar e comerciar livros fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica. A publicação de livros anti-semitas constitui-se
em crime de racismo?
O problema da subsistência ou não do crime de aborto, quando a gravidez resulta
em feto anencefálico, pressupõe, para ser corretamente entendida, questões de ordem
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
moral e ética, fazendo a interpretação dos dispositivos penais depender de elementos extralegais, principalmente, da ponderação quanto aos princípios da dignidade da
pessoa humana, da liberdade e da autonomia da vontade. Não podendo o feto sobreviver (segundo ampla bibliografia especializada), não seria possível impor à gestante a
obrigação de levar a termo a gestação, previamente reconhecida como inviável (pelo
defeito congênito do fechamento do tubo neural durante a gestação). O feto, assim,
resiste apenas algumas horas após o parto, no máximo.
Nesse problemático caso, não especificamente legislado, estaria a genitora, a despeito
da restrita redação do art. 128 do CP, autorizada à interrupção da gravidez? Se, entretanto, no caso concreto, prevalecerem os princípios supra-apontados, a ocorrência
do abortamento, ainda que fora dos restritos casos do art. 128, I e II, do CP, não
configuraria delito, mesmo na ausência de expresso permissivo penal. Quais valores
deverão prevalecer, no julgamento de um caso semelhante? O direito à vida (que toca
ao nascituro, mesmo que por breves momentos) ou a dignidade humana, bem como a
autonomia de vontade e o princípio da liberdade, que tocam à gestante?18
Estando inviabilizada a vida humana autônoma (NUCCI, 2000, p. 335), a ausência de
cérebro pode ser motivo mais que suficiente para a realização do aborto. A futura decisão do STF, entretanto, pelo panorama já delineado, não estará pautada em suportes
legalistas, mas na ponderação de valores.
De outro lado, permanece em aberto a seguinte questão: seria permitida (com a mesma ponderação de outros valores tutelados) a intervenção terapêutica para interromper gravidez de seres humanos monstruosos?
O segundo caso problemático objeto de análise é o do crime de racismo, por divulgação de obra discriminatória aos judeus, fato que estaria subsumido no art. 20 da Lei
de Preconceito Racial.
A questão fundamental a responder é a seguinte: é racismo a prática de apologia antisemita? Os judeus constituem-se em raça humana para fins de tutela penal prevista na
Lei de Preconceitos de Raça?
No julgamento de HC (BRASIL, 2004), em caso de repercussão nacional, o STF,
através do seu Tribunal Pleno, entendeu que não existem distinções entre os seres
humanos e, assim, a raça humana não é susceptível de subdivisão que, se existente,
resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. O Racismo, assim,
surge desse pressuposto (divisão político-social da espécie humana), ocasionando a
discriminação e o preconceito segregacionista. A consideração dos arianos como raça
superior e dos judeus como raça inferior nefasta e infecta é inconciliável com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâ18
Na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 58/DF, o Min. Marco Aurélio, por decisão liminar prolatada em data de 01/07/2004 concedeu liminar para os fins de permitir à gestante a prática da submissão à operação terapêutica de parto de feto anencefálico, a partir de laudo médico atestando a deformidade e a anomalia que atingiu o feto.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
neo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático.
O Supremo Tribunal Federal, ainda, no caso julgado (BRASIL, 2004), faz expressa referência ao fato de que o crime de racismo implica “[...] condutas e evocações
aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional
do País”. O entendimento pela subsistência do delito está inteiramente ancorado em
elementos não legislados (ética e moral), de forma que o anti-semitismo constitui-se
em manifestação de uma imoralidade intolerável.
Mais que isso, o Acórdão ressalta que, a ponderação dos princípios constitucionais
da liberdade de expressão não pode prevalecer diante do princípio da dignidade da
pessoa humana. Pela importância do julgado, merece sua transcrição abaixo:
EMENTA: HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS:
ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM
DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros
‘fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias’
contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF,
artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade
geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que
contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a
exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência
da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a
definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente
não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação
da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras
características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão
dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o
racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito
segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do
nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o
extermínio: inconciliabilidade com os padrões éticos e morais
definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático.
Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza
a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social.
Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva
ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional
do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais,
que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais,
aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições
ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou
origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade
de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, ‘negrofobia’, ‘islamafobia’ e o anti-semitismo. 7. A Constituição
Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza,
pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos
etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional
do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição
Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de
obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados
sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos
que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações
da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da
Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados
Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções
àqueles que transgridem as regras de boa convivência social
com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10.
A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias antisemitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção
racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de
fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos
em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável
pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do
que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e
pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como
deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura
ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e
jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua
abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam
ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal
(CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de
liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao
racismo”, dado que um direito individual não pode constituirse em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os
delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade
da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. ‘Existe um nexo
estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se
escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento’.
No estado de direito democrático devem ser intransigentemente
respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos
que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais
de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes
de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de
hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos
e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica
não mais admitem. Ordem denegada. (BRASIL, 2004).
O debate quanto ao posicionamento tomado pelo Supremo Tribunal Federal, evidentemente, não está encerrado. Há problemas ainda latentes e derivados da fundamentação da matéria, com projeção de inumeráveis e imprevistas conseqüências, de forma
que a aprovação da decisão não é tão fácil, como aparentemente se possa pensar.
O Tribunal não faz mistério em pautar a decisão, pela configuração do crime de racismo por apologia de idéias discriminatórias contra a comunidade judaica, na inconciliabilidade desta prática com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do
Brasil e pela restrição do direito à livre expressão, no confronto com manifestações
de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal, caso típico de ponderação de valores (liberdade de expressão, vedação da discriminação racial e dignidade da pessoa
humana).
As relações entre o direito e a moral estão, aqui, claramente delineadas. O que está
oculto, porém, no histórico julgamento, é a brutal expansão do direito para confins
que deveriam ser ocupados pela moral. Seria realmente adequado, num caso que, por
qualificar-se como difícil e envolver, sempre, juízos morais, a opção por estes últimos?
Não seria, pelo contrário, imoral que o direito punisse comportamentos imorais dos
indivíduos? Não seria imoral a ausência de neutralidade do direito frente a comporta-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
mentos imorais dos indivíduos? Qual a contradição ou imoralidade, no dilema entre o
direito e a moral, em considerar uma conduta moralmente reprovável e politicamente
perigosa ou indesejável, porém, não por isso, proibi-la e apená-la juridicamente? A
decisão do Supremo não estaria abrindo as portas da moral para a sua invasão pelo
direito? O direito pode substituir a moral?
Atitudes preconceituosas como o racismo, a xenofobia etc., são imorais, assim como
são morais e dignas de encômios as contrárias atitudes anti-racistas e antixenófobas.
Nesse campo e, somente nele, devem digladiar-se, pois o campo moral é, exatamente,
o terreno apropriado para estas batalhas.
A imposição de uma sanção jurídica, porém, requer algo mais do que a mera reprovação moral de uma conduta qualquer, mesmo que, nela, possa-se divisar algo de imoral
ou politicamente perigoso. Ao punir as manifestações anti-semitas, o direito penal não
estaria sendo utilizado como instrumento da moral? Nesse caso, não estaria havendo
uma ação invasiva do direito penal, sem que se legitimasse como meio necessário
para a proteção de um determinado bem jurídico?
Como ficariam, a partir do precedente criado pelo Supremo Tribunal Federal, as manifestações preconceituosas contra determinadas classes sociais ou contra habitantes de
uma determinada região do Brasil, contra drogados, homossexuais, etc.?
Noticia-nos Atienza (1993, p. 37) um julgado do Tribunal Constitucional espanhol
versando sobre uma ação cível ajuizada por Violeta Friedman contra Leon Degrelle, ex-chefe da SS nazista, por afirmações desse último em periódico e que teriam
ofendido a honra da demandante. Estava em jogo o problema da ponderação entre o
direito à liberdade de expressão e o direito à honra. O Tribunal Constitucional acolheu
a demanda da autora, condenando o demandado a indenizá-la, sob o fundamento de
que este havia efetuado “[...] juícios ofensivos al pueblo judio que poseen una connotación racista y antisemita, ye que no pueden interpretarse más que como una incitación antijudiá, con independencia de cualquer juício de opinión sobre la existencia de
fatos historicos” (ATIENZA, 1993, p. 47).
A ratio decidendi da sentença expressava-se nas considerações de que nem a liberdade
de expressão, nem a liberdade ideológica compreendem o direito a efetuar campanhas
de caráter racista ou xenófobo; a dignidade da pessoa humana provoca a derivação
e a projeção do direito à honra que não admite discriminação alguma por razão de
nacionalidade, raça, sexo, opiniões ou crenças; os direitos à liberdade ideológica e de
expressão não garantem o direito de expressar e difundir uma determinada concepção
da história ou do mundo com “[...] el deliberado ánimo de menospreciar y discriminar, al tiempo de formularlo, a personas o grupos por razón de cualquier condición o
circunstacia personal, étnica o social” (ATIENZA, 2003, p. 48).
Questiona o autor, ainda, se essas ratio decidendi eram coerentes, estudando o julgado
do Tribunal Constitucional espanhol sob o ponto de vista das relações entre o Direito
198
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
e a Moral, para fixar estas importantes considerações:
[...] es perfectamente posible – y no solo de hecho – considerar eticamente reprobables el racismo, la xenofobia, el ódio de
clase o el fanatismo religioso y, sin embargo, entender que el
Estado haría mas si prohibiese que esas ideas puedan manifestarse libremente; o, para decirlo com más precisión, el derecho
a la libertad de expresión puede, ciertamente, limitarse cuando su ejercicio puede afectar a otros valors (el honor de las
personas, el orden público etc.), pero no por la simple razón
de que lo que se exprese se considere moralmente incorrecto.
(ATIENZA, 2003, p. 53).
O que se percebe, tanto na decisão do STF quanto na sentença do Tribunal Constitucional espanhol, enfim, são os muitos problemas surgidos pelas relações entre o
Direito e a Moral e a maneira pela qual esta última influi no estabelecimento e na
conformação das decisões judiciais, deixando em aberto o seguinte questionamento
de Atienza (2003, p. 59): que critérios morais podem ser usados para valorar moralmente o Direito?
6. Causas Pré-Jurídicas de Exclusão da Culpa e da Ilicitude e o “Paradoxo do
Positivismo”
Os fundamentos filosóficos do positivismo são três, consoante grande consenso entre
os juspositivistas: 1. legalidade-neutralidade do direito; 2. interpretação mecanicista
(subsunção); 3. subjetivismo do direito justo. Por corolário do princípio da legalidade,
existe o dogma da existência de uma “[...] obrigação jurídica do juiz de aplicar as leis
vigentes” (FERRAJOLI, 2002, p. 700). Esse dogma somente admite relativização nos
casos em que o próprio ordenamento atribui aos juízes a faculdade de não-aplicação
das leis vigentes quando estas são suspeitas de invalidade. Isso significa, em última
instância, que a sujeição do juiz à lei impede que ele tenha, “[...] além de um poder
de denotação e conotação, também um poder de disposição” (FERRAJOLI, 2003, p.
703).
Perante o Direito Penal, dada a prática de uma infração penal, deverá ser punida, salvo
quando o próprio ordenamento preveja causas que excluam o crime ou a culpabilidade. Assim, as causas de exclusão do ilícito estão previstas nos artigos 23 usque 25 do
CP, ou em dispositivos esparsos pela Parte Especial (v.g., art. 146, § 3º - intervenção
médico-cirúrgica, sem o consentimento do paciente, se justificada por iminente perigo
de vida e a coação exercida para impedir o suicídio).
Em outros casos, o próprio Código exclui a culpabilidade do agente, como nas hipóteses de coação irresistível e obediência hierárquica (art. 22) ou na embriaguez derivada
de caso fortuito ou força maior (art. 28, § 1º). São previsões, igualmente, taxativas,
somente em presença das quais o juiz poderia excluir a culpabilidade do agente e,
199
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
portanto, o próprio crime.
As causas de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade, porém, podem não estar no
ordenamento (e isso se constitui num paradoxo do positivismo), havendo casos em
que, a despeito da falta de disposição legal expressa, o sujeito é absolvido, pelo reconhecimento das denominadas causas supralegais de exclusão da ilicitude ou da
culpabilidade. Sendo assim, existem estados pré-jurídicos de justificação os quais
se impõem ao direito legislado e, portanto, afastam o próprio princípio da legalidade.
Como se justifica isso filosoficamente, senão pelo reconhecimento de que há questões
de justiça material subjacentes ao ordenamento?19
Vejamos, nos exemplos seguintes, como podem surgir as denominadas causas supralegais, hipóteses em que não ocorre nenhuma correspondência entre o dado fático e
os estritos limites legais das causas justificativas: a) numa rebelião carcerária, alguns
presos resolvem fazer a denominada ciranda da morte, pela qual os presos mais fracos
serão sacrificados, à medida que o tempo passa e as reivindicações não são atendidas.
Um detento, escolhido para o próximo sacrifício, aproveita-se do momento em que o
líder encontra-se dormindo e, sabendo que não poderá contar com o auxílio de nenhuma autoridade, mata o sentenciante, para não ser morto como vítima do código ético;
b) um traficante, dominador no seu território, promete matar determinado morador,
se este não lhe entregar a filha para uma conjunção carnal. Sem poder contar com a
proteção do Estado, o referido pai mata o traficante autor do constrangimento, aproveitando-se de uma situação de rara oportunidade, sabendo que outro morador já tinha
sido executado, em situação idêntica (GRECO apud SANTOS, 1995, p. 3).
Acolhida a solução positiva, os casos acima referidos resultarão em condenação,
porquanto seus pressupostos não cabem nos estreitos limites das causas legais de
justificação ou da exclusão da culpabilidade. Não obstante, admitindo-se uma causa supralegal (e, portanto, não legislada) os autores dos fatos apontados não serão
responsabilizados, porque o reconhecimento de um estado de inculpabilidade ou de
justificação pré-jurídicos “[...] dispensa a existência de normas expressas a respeito”
(TOLEDO, 1991, p. 328).
O reconhecimento das causas supralegais está submerso em grande problemática deontológica e filosófica e encontra antecedente remoto no velho princípio romano “[...]
ad impossibilia nemo tenetur” (FERRAJOLI, 2002, p. 400), configurando hipóteses
em que um elemento do fato típico é excluído, pela impossibilidade mesma da omissão do delito.
A subsistência dessas justificantes ou dirimenes extralegais é um problema de imensa
significação para o Direito Penal, porque elas se constituem naqueles casos duvido19
“A possibilidade de alegação de uma causa supralegal, em algumas situações, como deixou entrever Wessels, pode evitar
que ocorram injustiças gritantes”. (GRECCO, 2002, p. 465, grifo nosso).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sos, imprecisos, para cuja solução nem sequer existe texto legislado, consistindo-se
em estruturas pré-jurídicas indeterminadas e cuja comprovação empírica “[...] abre
um amplo espaço – no processo – a valorações, impressões e opções discricionárias”
(FERRAJOLI, 2002, p. 401).
Não obstante, o STJ, no Brasil, quando chamado a decidir caso em que uma causa supralegal excludente da culpa foi alegada, reconheceu a sua existência, determinando
que os jurados fossem questionados sobre a aplicação concreta da exculpante supralegal.20
Os problemas aqui postos são essencialmente de justiça material. Para realizá-la nos
casos concretos, os tribunais e juízes depuram um labor que se direciona em rota de
colisão com o positivismo jurídico. Mais do que a sua negação, os inúmeros casos
apontados neste estudo indicam que há muito pouco de positivismo no ordenamento
penal.
7. As Conexões Possíveis entre o Direito Penal e a Moral
O confronto entre a Justiça e o Direito foi posto no tópico anterior. A validade das
causas supralegais de exclusão do ilícito e da culpa resolve-se pela exclusão do direito
positivo, com grande aproximação dos valores igualmente suprapositivos. A justiça
é um deles; o outro ponto, objeto de nossa preocupação, é a moral. Como funciona a
moral no direito penal? Que relações são possíveis e qual a função pode desempenhar
a moral no campo penal?
Com este questionamento, pretendemos indicar a existência de um estreito elo entre
o direito posto e a moral (pretensão de correção), o que, muitas vezes, é reclamado
pelas próprias normas positivadas. Não pretendemos, porém, justificar o Direito pela
Moral, o que foi objeto de nossa preocupação e crítica no estudo do caso Ellwanger,
decidido pelo STF (BRASIL, 2004), mas restritamente questionar a tese juspositivista
de que o Direito posto é neutro e, portanto, não contém valores e não está relacionado
com a moral.
O princípio da legalidade como fonte jurídica de legitimação das normas é um postulado no qual se baseia a “[...] função garantista do direito contra o arbítrio” (FERRAJOLI, 2002, p. 697). Nele, está contida, antes de tudo, uma exigência ética consistente
na imoralidade de punir-se alguém sem que para ele seja possível, pelo menos, o conhecimento da proibição. Além disso, “[...] a idéia da legalidade como fonte exclusiva
e exaustiva do direito positivo nasce propriamente como uma instância jusnaturalista
de racionalidade de justiça” (FERRAJOLI, 2002, p. 698). Sendo assim, o Direito Pe20
“Penal e processo penal. Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão de culpabilidade, cuja
admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada. – Júri. Homicídio. Defesa alternativa baseada na alegação
de não-exigibilidade de conduta diversa. Possibilidade em tese, desde que se apresentem ao Júri quesitos sobre fatos e
circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico. Quesitos. Como devem ser formulados. Interpretação do art. 484, III, do
CPP, à luz da Reforma Penal. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para extirpar-se do acórdão a proibição
de, em novo julgamento, questionar-se o Júri sobre a causa de exclusão da culpabilidade em foco” (BRASIL, 1990).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
nal parece-nos o ramo do ordenamento mais rebelde quanto à admissão do postulado
positivista da neutralidade do direito.
O campo mais propício para a interseção entre Moral e Direito é o da ponderação de
princípios; neles há sempre um conteúdo moral (ALEXY, 1998, p. 13). Nas causas
supralegais de justificação, igualmente, há grande simbiose entre ambos, estando sob
confronto o valor da legalidade e o valor da liberdade. Na ponderação entre eles, tem
precedência a liberdade; portanto, admitem-se as causas de justificação supralegais.
O problema dos princípios em direito é o dos valores. Todo valor representa um conteúdo moral. Portanto, a qualquer princípio corresponde um valor moral.
Muito freqüentemente, ocorre, nos casos práticos, um conflito de princípios que cumpre resolver. Nessa relação de tensão entre princípios igualmente excludentes (colisão de princípios) (ALEXY, 1998, p. 11), ocorre uma necessidade de ponderação. No
caso do feto anencefálico, estavam em jogo dois valores de igual status: o direito à
vida e o direito à dignidade da pessoa humana. O primeiro tocava ao feto; o segundo,
à mãe gestante. Como excluir um deles, senão pela teoria da ponderação dos princípios?
A prevalência de um princípio em detrimento de outro se denomina princípio de prevalência (ALEXY, 1998, p. 15), tratando-se de uma das questões mais atraentes e
controvertidas da Teoria do Direito.
Por exemplo, entre os valores da liberdade de informação e expressão (CF, art. 5º, IV
e IX), versando sobre um delito praticado por alguém, e o direito à inviolabilidade da
honra e da própria imagem, qual, no caso concreto, deverá prevalecer?
Aqui, entram em jogo, inquestionavelmente, questões morais, uma vez que o próprio
direito não fornece critérios de desempate entre os seus próprios princípios. Vê-se,
logo, que o problema da mera subsunção (típico do positivismo) não tem, neste ponto,
serventia. Por outro lado, não existem soluções unívocas para todos os conflitos imagináveis. Além disso, a ponderação dos princípios prevalecentes depende, em grande
parte, de considerações morais, como, v.g., a preponderância dos princípios com assento constitucional, em detrimento dos princípios situados em escalão imediatamente inferior (prevalência dos princípios constitucionais).
Entre esses (princípios constitucionais), prevalece aquele cuja importância, no caso
concreto, é mais intensa. (ALEXY, 1998, p. 31). Se igual a intensidade da interferência de dois princípios do mesmo escalão, ocorre o denominado caso difícil, para cuja
solução é decisiva a ponderação (Verhaltnismässigkeitgrundsatz) da prevalência dos
princípios individuais sobre os bens coletivos (ALEXY, 1998, p. 33). Esses critérios,
não é difícil perceber, submetem-se, sempre, à interferência da moral e mostram a íntima conexão entre os dois sistemas, destruindo, enfim, o ponto de partida positivista
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
da neutralidade do direito frente à moral. A conexão conceitual, não custa enfatizar,
é necessária.
Os limites precisos dessa conexão, no direito penal e no ordenamento jurídico como
um todo, constitui-se em uma questão persistentemente aberta.
8. O Problema da Argumentação Jurídica
Este ponto do estudo procura, sumariamente, descrever a polêmica entre o pensamento tópico e sistemático na ciência do Direito, indicando como debatedores centrais
Atienza (2003) e Canaris (2002), em dois estudos de grande significação para a aplicação prática do direito.
O pensamento sistemático na orientação da resolução dos problemas concretos de
aplicação do direito tem sido o entendimento metodológico dominante e baseia-se
numa concepção teleológico-sistemática do direito, fixando-se em dois pontos: em
termos hermenêuticos, visa à execução de criações espirituais objetivamente pré-dadas, refutando o apoio das premissas apenas no common sense, bem como não considera as questões que surgem apenas como problemas singulares isolados. Portanto,
segue uma “[...] tendência generalizadora da justiça” (CANARIS, 2002, p. 268).
O pensamento tópico orienta-se por problemas e, portanto, constitui-se na técnica do
pensamento problemático. Pensando por problemas individuais, a ciência do direito
constitui-se num sistema aberto. O pensamento tópico, então, processa-se inversamente, divisando no sistema jurídico apenas um projeto provisório, “[...] modificável
a todo tempo” (CANARIS, 2002, p. 247). Mais que isso, o modo de pensar tópico é
o modo aporético, que raciocina por dúvidas permanentes, pois o problema é uma
questão para cuja solução não há respostas claras. Para a obtenção de suas premissas
argumentativas, justamente porque elas não podem ser estritamente comprovadas, utiliza-se a tópica do common sense, relacionando-se, intimamente, com a retórica.
Vê-se, então, que o problema da contraposição entre uma concepção e outra não é
apenas uma diferença psicológica. A tópica possui uma tendência particularizante. A
concepção sistemática, por outro lado, é generalizante.
Para Canaris (2002, p. 255), a vertente tópica dentro da Ciência do Direito é impraticável, sob os seguintes argumentos: a) a indagação do justo não se constitui num problema de pura retórica; b) as premissas fundamentais para o jurista dão-se em especial
através da própria lei; c) a tópica nada diz sobre o mínimo de sua aplicabilidade na
Ciência do Direito; d) os pontos de vista comuns, embora relevantes para a solução
dos problemas concretos, não surgem no sentido vinculativo, ou seja, não são direito
vigente; e) o pensamento tópico constitui-se apenas numa proposta de decisão; f) a
opinião da maioria ou a opinião dos sábios não determina qual seja o direito vigente.
O direito vigente é o direito objetivo, constituindo este, precisamente, o déficit do
argumento tópico; g) a tópica joga uma função importante quando fornece, somente
203
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ao legislador, propostas de decisões; h) a tópica não é, de modo algum, a única alternativa à lógica formal, e, de nenhuma forma, constitui-se no único processo para
a obtenção das premissas; i) situa-se, além disso, em “[...] forte oposição à doutrina
jurídica da validade e das fontes do Direito” (CANARIS, 2002, p. 269).
Não haveria, então, nenhuma possibilidade remanescente para o pensamento tópico
na Ciência do Direito?
Parte o pensamento tópico da constatação seguinte: os casos concretos, muitas vezes,
aparecem para os juízes como casos difíceis. Nestes, é insuficiente uma argumentação
lógica. Procura, então, desenvolver uma racionalidade na aplicação do Direito. Nesse contexto (aplicação do Direito), o processo de adjudicação ou, o que é o mesmo,
de subsunção das normas ao caso concreto precisa contar com critérios de justificação
e que fundamentem, de fato, as decisões tomadas.
No contexto da aplicação do Direito, a teoria padrão da argumentação jurídica só considera o processo a que se costuma
denominar ‘adjudicação’, esquecendo-se, quase por completo,
de que a resolução de problemas jurídicos é, com muita freqüência, resultado de uma mediação ou de uma negociação, o
que significa um processo que não consiste apenas em aplicar
normas jurídicas, embora, naturalmente, as normas jurídicas
continuem tendo nele um papel importante. (ATIENZA, 2003,
p. 214).
Pensando por problemas, o raciocínio tópico procura encontrar critérios de correção
e controle da fundamentação das decisões, muito especialmente, nos casos difíceis,
quando estão em jogo os fins da lei, a concreção de valores, sua justificação ética e a
solução, enfim, de questões de alta significação num determinado contexto social.
Vejamos como Atienza (2003, p. 42) discute o problema, fazendo-o através de uma
decisão do Tribunal Constitucional espanhol, a respeito de vários presos de Grupos
Antifascistas Primeiro de Octubre – GRAPO, que declararam greve de fome, como
medida para conseguir algumas melhorias em sua situação carcerária.
Referidos presos pressionavam a administração carcerária, para que os membros do
grupo fossem reunificados, no mesmo centro penitenciário, o que implicava modificação na política governamental de dispersão de presos por delito de terrorismo. Os
tribunais espanhóis foram chamados a se pronunciar sobre se cabia ou não autorizar
alimentação à força desses presos, quando sua saúde estivesse ameaçada, em conseqüência da longa duração da greve de fome. Várias soluções se apresentaram e foram,
de fato, tomadas pelos tribunais inferiores.
As decisões variavam, nos seguintes termos: a) a alimentação dos presos, à força,
estava autorizada, mesmo que os reclusos se encontrassem em estado de plena consciência; b) o governo, pelo contrário, só estava autorizado a esse tipo de medida, quando
o preso tivesse perdido a consciência.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
O Tribunal Constitucional, em sentença de 27. 06. 1990, decidiu que, no caso, a administração penitenciária tinha a obrigação de alimentar à força os presos da GRAPO,
quando sua saúde corresse grave risco como conseqüência de uma greve reivindicatória, e, portanto, as autoridades deviam alimentá-los, “[...] inclusive à força” (ATIENZA, 2003, p. 217).
Nesse caso emblemático e instigante, o problema que estava em jogo era como se
resolver o conflito entre o direito à vida e o direito à liberdade pessoal. A escolha do
Tribunal Constitucional foi no sentido da prevalência do valor da vida humana, sobre o valor da autonomia pessoal, o que significava reformular uma norma, segundo
a qual “[...] quando a saúde de um detento corre grave risco como conseqüência de
uma greve de fome reivindicativa, a Administração tem a obrigação de alimentá-lo,
inclusive à força” (ATIENZA, 2003, p. 217).
Vê-se que o tribunal havia feito uma ponderação entre valores, para chegar à conclusão indicada, da prevalência do direito à vida, afastando o valor da autonomia
pessoal.
De fato, quando as premissas de um determinado problema contêm todas as informações necessárias para chegar-se à solução, dedutivamente se obtém aquela. Mas,
em repetidas vezes, o processo não se opera tão facilmente assim, e a passagem de A
para B reclama outros argumentos, muitas vezes, grande necessidade de ponderação
de valores.
A norma existente no caso dos presos da GRAPO, citado por Atienza (2003), era
precisa quando determinava que a administração penitenciária estaria obrigada a preservar a saúde, a vida e a integridade dos detentos, mas, pelo contrário, não era precisa, quando se queria saber se tal obrigação existia também quando o próprio preso,
voluntariamente, põe sob risco a sua própria vida, mediante uma prolongada greve de
fome.
A solução dos casos difíceis implica, então, a incorporação de conteúdos de natureza
política e moral (ATIENZA, 2003, p. 223) que se constituem na condição sine qua
non dos casos concretos.
Quando, porém, utiliza-se do procedimento de ponderação de valores, há a apropriação dos argumentos tópicos. Então, aqui, eles jogam uma função importante e
não apenas remanescente como quer Canaris (2002, p. 269). Ele mesmo, refutando o
procedimento tópico, concede-lhe possibilidades aplicativas que não são secundárias,
em verdade.
Os casos de ocorrência de lacuna são propícios para a colonização do método tópico.
Nas lacunas carentes de valoração, onde o direito positivo não contenha valorações
21
Para Atienza (2003, p. 223), a solução correta do caso, que não foi sustentada por nenhum tribunal, seria a de que a administração penitenciária “[...] não pode alimentá-los à força” nem mesmo quando os presos perdem a consciência.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
para a sua integração, detém o procedimento tópico grande primazia.
Quando se há de fazer uma ponderação de interesses e, portanto, quando seja necessária uma relação de composição, há a interferência do método tópico. Portanto, “[...]
o âmbito virado, em primeira linha, para o pensamento sistemático, não se conserva
totalmente livre das influências da tópica” (CANARIS, 2002, p. 276).
Por outro lado, é no campo do Direito Constitucional que a tópica possui grande importância, quando se encontre um conflito entre valores de mesma hierarquia e status
jurídico. Assim o reconhece o próprio Canaris (2002, p. 277).
O arcabouço estrutural da argumentação tópica, entretanto, não se encontra acabado, mas sujeito ao constante desafio do aprimoramento, se quiser sobreviver como
uma orientação útil para as tarefas de produção e aplicação do direito. O persistente
desafio, por suposto, é encontrar e oferecer um método “[...] que permita reconstruir
o processo real da argumentação, além de uma série de critérios para fazer um julgamento sobre a sua correção” (ATIENZA, 2003, p. 225). Essa ingente tarefa está por
ser cumprida.
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207
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
1.2 REPENSANDO A FUNÇÃO RETRIBUTIVA DA PENA CRIMINAL
SIDNEI BOCCIA PINTO DE OLIVEIRA SÁ
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Professor da PUC-Minas
Mestre em Direito das Relações Sociais (Direitos Difusos e Coletivos) pela PUC-SP
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Natureza da Pena Criminal. 2.1. Teorias da Pena. 2.2.
Direito Penal do Fato. 3. Caráter Retributivo da Sanção Penal. 3.1. Livre-arbítrio. 3.2.
Exclusão de Punição aos Inimputáveis. 3.3. Compensação ao abalo social (função
neo-retributiva). 3.4. Função Social do Estado. 4. Caráter Preventivo da Sanção Penal.
4.1. Prevenção Geral. 4.1.1. Prevenção Geral Negativa (ou de Intimidação). 4.1.2.
Prevenção Geral Positiva (ou de Integração). 4.2 Prevenção Especial (ou Individual).
4.2.1 Prevenção Especial Positiva (modelo ressocializador). 4.2.2. Críticas ao Correcionalismo. 4.2.3. Prevenção Especial Negativa. 5. Teorias Mistas. 6. Conclusão. 7.
Bibliografia.
1. Introdução
É milenar a controvérsia filosófico-doutrinal sobre os fins das penas criminais. É do
magistério de Garcia (1968, p. 66) que castigar ou punir, expiar, eliminar, intimidar,
educar, corrigir ou defender são os variados verbos que, na diversidade das opiniões,
indicam as finalidades possíveis do Direito Penal e, através destas, as razões de sua
existência.
Tal embate encontra campo fértil não só na ciência do Direito, especialmente a Penal,
como na Filosofia (Geral e do Direito). Segundo Dias (1999, p. 89), a razão de um tal
interesse e da sua persistência ao longo dos tempos está em que, à sombra do problema dos fins das penas, é no fundo toda a teoria do Direito Penal que se discute e, com
particular incidência, as questões fulcrais da legitimação, fundamentação, justificação
e função da intervenção penal estatal. Por isso se pode dizer, sem exagero, que a questão dos fins das penas constitui, no fundo, a questão do destino do Direito Penal.
Beccaria (1983) discute a origem das penas e do direito de punir, afirmando, inicialmente, que as leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados, sobre a superfície da Terra, sacrificando parte de sua liberdade para
viver com mais segurança, o que é necessário para proteção contra as usurpações de
cada particular, pois tal é a tendência do homem para o despotismo que ele procura,
sem cessar, não só retirar da massa comum sua porção de liberdade, mas usurpar a
dos outros. Assim, eram necessários meios sensíveis e poderosos para comprimir este
espírito despótico, que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos; esses
meios foram as penas estabelecidas contra os infratores da lei. Ainda segundo Beccaria (1983), só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade;
daí resulta que cada indivíduo só consente em colocar no depósito comum a menor
porção possível dela, isto é, precisamente o que é necessário para empenhar os outros
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
a mantê-lo na posse do resto; o conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade
é o fundamento do direito de punir.
Afirma Zaffaroni (1998, p. 10):
[...] o que está perdida é a justificação das penas. Ninguém sabe
realmente hoje, qual é a utilidade, o sentido e a justificação do
exercício do poder punitivo. Embora isto se assemelhe a uma
afirmação muito extremista, não o é. As construções doutrinárias no âmbito do direito penal, através da teoria da pena, sobre
a sua justificação, infelizmente têm bases falsas.
Zaffaroni e Pierangelli (1997, p. 77) arrematam que “[...] o sistema penal cumpre a
função de selecionar, de maneira mais ou menos arbitrária, pessoas dos setores sociais
mais humildes, criminalizando-as, para indicar ao resto os limites do espaço social.”
É salutar que o Direito Penal visa a proteger os interesses mais relevantes, intervindo
somente nos casos de lesão significativa a bens fundamentais para a vida em sociedade, respeitando, assim, o princípio da mínima intervenção, exercendo função instrumental, consistente na efetiva proteção dos bens jurídicos, através do potencial efeito
dissuasório que a sanção legal produz nos infratores.
Sobre os objetivos da legislação penal, Silva Júnior (2003) sustenta:
[...] ocorreriam duas respostas diferentes: promover a segurança jurídica ou proteger a sociedade (defesa social). Entre os partidários da segurança jurídica, alguns afirmariam que o Direito
Penal deve provê-la tutelando primordialmente bens jurídicos,
enquanto outros responderiam que a tutela penal deve ser tutela de valores ético-sociais. Eis a questão de fundo nos textos
publicados: se o Direito Penal tutela primordialmente bens jurídicos, o decisivo é o resultado do delito; no entanto, se a tutela
principal for de valores ético-sociais, o decisivo é a conduta
delitiva em si.
Santana (2003), após ressaltar os efeitos socialmente disfuncionais do crime (além
de atingir os bens jurídicos e de pôr em questionamento os valores sobre os quais se
assenta a sociedade, o crime potencializa os índices de medo, angústia e desconfiança,
e dificulta a interação e o convívio sociais), relembra:
[...] a idéia da funcionalidade do crime, ou ‘deviance’, já foi
concebida no passado, por estudiosos como E. Durkheim (‘o
crime desperta e une as consciências’), George Mead (‘O delinqüente é responsável por um sentimento de solidariedade
que desperta entre aquelas cuja atenção se dispersaria, de outro
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
modo, por interesses bastante divergentes. A atitude de hostilidade para com o infrator tem a vantagem de unir todos os
membros da coletividade’) e Marx (‘O criminoso produz uma
impressão, ora moral ora trágica, e presta um serviço desenvolvendo os sentimentos morais e estéticos do público interrompe
a monotonia e a segurança da vida burguesa protege-a da estagnação e estimula aquela tensão constante, aquela mobilidade
de espírito sem as quais o próprio estímulo da competição se
perderia’).
Ela funciona também: a) como válvula de escape (de atividades ilegais ou imorais,
mas que correspondem a necessidades consideradas coletivas); b) como fator de coesão e solidariedade sociais (permitindo ao grupo reafirmar sua identidade social e moral); c) para a clarificação, afirmação, manutenção e, em certos casos, a modificação e
o ajustamento do sistema normativo; d) para a legitimação e imposição da ordem.
Incumbe ao Direito Penal, portanto, conciliar o antagonismo da lógica da repressão/
prevenção de um lado, buscando a paz social, com a lógica das garantias de outro,
resguardando a integridade do infrator.
2. Natureza da Pena Criminal
Em lépida leitura do direito positivo brasileiro, pode-se afirmar que a pena tem caráter
retributivo, preventivo (art. 59, caput, in fine, do Código Penal), além de visar a ressocialização do infrator (art. 1° da Lei n.° 7.210/84 – Lei de Execução Penal).
Porém, apesar dessa precária e cômoda conclusão eclética, habita no Direito Penal
insolúvel querela entre as Teorias Absolutas, ligadas às idéias de retribuição, e as
Teorias Relativas, subdivididas nas doutrinas de prevenção geral e prevenção especial
(ou individual).
2.1 Teorias da Pena
Conforme afirmado, a definição sobre a função ou finalidade da pena segue três teorias principais (retribuição, prevenção geral e prevenção especial), que podemos,
inicialmente, assim descrever:
1. Retribucionista. Para esta teoria, a pena baseia-se na compensação da culpabilidade do autor mediante a imposição de outro mal (desejado e buscado pelo agente),
como castigo ao delinqüente, atendo-se apenas às expectativas (punitivas) do Estado,
desprezando qualquer consideração com as expectativas do infrator, vítima ou comunidade.
2. Utilitárias (Relativas ou instrumentais). A pena deve ser utilizada para prevenir o
crime. Subdivide-se em:
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2.1. Prevenção geral. Os reais destinatários da pena são a comunidade em geral e,
particularmente, o infrator em potencial. Surge antes da prática do delito. Pode ser:
2.1.1. Prevenção geral negativa. Baseada na coação psicológica, sustenta que a existência da pena constitui ameaça preventiva, redundando em efeito dissuasório ou
intimidativo da pena em relação ao infrator potencial. A pena aplicada ao infrator,
portanto, serve como advertência para que não se pratiquem crimes.
2.1.2. Prevenção geral positiva (Teoria da Prevenção-Integração). Descreve que a
pena produz a atualização da vigência e a confirmação das normas e dos valores do
ordenamento jurídico, motivando as pessoas a atuarem de acordo com o Direito, na
medida em que depositam confiança no funcionamento do sistema, levando o cidadão
a acreditar na sua segurança.
2.2. Prevenção especial. A pena visa prevenir novos crimes por parte do infrator. Surge ao ser iniciada a execução da pena. Apresenta-se como:
2.2.1. Prevenção especial positiva. Afirma que a pena é instrumento útil para evitar
a reincidência, com adoção de sanções admonitórias (de grande valia para infratores
primários, que cometeram uma infração de escassa gravidade), ou mediante a ressocialização do condenado, através de tratamento terapêutico individualizado.
2.2.2. Prevenção especial negativa. Defende que, para se evitar a prática do delito,
é necessária a neutralização (mediante destruição física ou psíquica do indivíduo,
prisão, controle eletrônico em liberdade, etc.) ou intimidação (contra-motivação) do
infrator.1
Alerta Roxin (1998) que a adoção de um posicionamento monista, mediante único
princípio ordenador (retribuição, prevenção geral ou especial), resulta sua aplicação
de modo extremo. Na prevenção geral, isso ocorreria buscando-se penas cada vez
mais rigorosas. Na prevenção especial (ressocialização), a pessoa que não oferecesse
perigo e, portanto, não necessitasse de ressocialização não poderia ser submetida a
uma pena. Acolher uma teoria unificadora aditiva, em que se aglomeram diversos
pontos de vista, seria menos aconselhável ainda, por permitir mais ampla ingerência
do Direito Penal, que atuaria não sobre um princípio, mas sobre três (retribuição, prevenção geral e especial). Assim, o ideal é uma teoria (unificadora dialética) que atue
mediante restrições recíprocas, entre o individual e o coletivo, ou seja, uma tensão
entre a prevenção especial e a geral.
2.2. Direito Penal do Fato (e Não do Autor)
Apesar de querer impor comportamentos socialmente aceitáveis, o direito não se presta a controlar o pensamento, o que motivou, de longa data, os ordenamentos jurídicos
1
Para aprofundamento, consultar Microfísica do poder, de Michel Foucault.
211
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
a enveredarem por um Direito Penal do fato e não do autor. Assim, a pessoa deve responder pelo que efetivamente fez (v.g. roubar, matar) não por aquilo que é ou se supõe
ser (v.g. perigosa), evitando a confusão entre crime e pecado, Direito e Moral.
Afirma Almeida (2000) que, ao aceitarmos a dignidade como princípio basilar, consagrado primeiro que qualquer outro na Constituição (Portuguesa), deveríamos retirar
daí a imposição de que o ser humano terá de ser encarado como um ente livre, que
deve e tem direito a ser responsável perante a comunidade a que pertence, no que diz
respeito aos atos praticados.
Essa é uma orientação fundamental em qualquer Estado de direito. Só um sistema
paternalista, que pretenda tutelar os cidadãos como se de menores cuidasse, pode
desviar-se da presunção de liberdade que a todos é devida. No entanto, casos há em
que, reconhecidamente, o indivíduo não dispõe dessa liberdade. É a posição em que
se encontram as crianças (na primeira infância), que, por força da sua pouca idade,
não dispõem ainda das qualidades necessárias para decidirem conscientemente sobre
as situações correntes da vida, só gradualmente as adquirindo.
3. Caráter Retributivo da Sanção Penal
Segundo essa teoria, a pena é retribuição e compensação ao mal praticado pelo agente
(punitur quia peccatum est), proporcional à culpabilidade (pena justa ou proporcional), surgindo após a prática do delito, como castigo ao delinqüente. Seus maiores expoentes são Platão (428 a.C.-348 a.C.), Santo Tomás de Aquino (1225-1274),
Giambattista Vico (1668-1744), Immanuel Kant (1724-1804) e Georg W. Friedrich
Hegel (1770-1831). A teoria subdivide-se em:
1.1. Teoria da retribuição moral. Desenvolvida por Immanuel Kant (1724-1804), procura embasar o Direito Penal em fundamento de ordem moral, sendo que a lei é um
imperativo categórico, afastando qualquer caráter utilitário da pena, exceto o retributivo, realizando, assim, a Justiça;
1.2. Teoria da retribuição jurídica. Defendida por Georg W. Friedrich Hegel (17701831), entende que a pena visa a castigar o delinqüente (ao mal injusto do crime, o
mal justo da pena), com a reafirmação do Direito.
Há quem entenda que a retribuição não pode ser enfocada como uma teoria dos fins
da pena, por considerá-la como um fim em si mesma, independente de resultados2.
Segundo Corrêa Júnior e Shecaira (2002, p. 138), “[...] há importantes autores, naDias (1999, p. 95) aduz que “[...] uma pena retributiva esgota o seu sentido no mal que se faz sofrer ao delinqüente como
compensação ou expiação do mal do crime, nesta medida é uma doutrina puramente social-negativa que acaba por se
revelar não só estranha, mas no fundo inimiga de qualquer tentativa de socialização do delinqüente e de restauração da paz
jurídica da comunidade afetada pelo crime; inimiga, em suma, de qualquer atuação preventiva e, assim, da pretensão de
controle e domínio do fenômeno da criminalidade”.
2
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
cionais e estrangeiros, que defendem, contemporaneamente, a teoria da retribuição.
De Welzel a Jescheck na Alemanha, Bricola, Bettiol e Bellavista, na Itália, Reale Jr.,
Dotti, Pitombo, Andreucci e Paulo José, entre nós”.
3.1. Livre-arbítrio
As teorias retribucionistas fundamentam-se no livre-arbítrio, sob afirmação de que,
possuindo autodeterminação, o homem é moralmente responsável pelos seus atos;
assim como o crime é opção de conduta, a punição é sua conseqüência natural. Filosoficamente, livre-arbítrio ou liberdade:
[...] tem três significados fundamentais, correspondentes a três
concepções que se entrecortaram no decurso de sua história e
que podem ser caracterizadas da seguinte maneira: 1.ª - a concepção de Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a Liberdade é ausência de condições e de
limites; 2.ª - a concepção de Liberdade como necessidade, que
se funda sobre o mesmo conceito de precedente, isto é, sobre
aquele de autodeterminação, mas atribui a própria autodeterminação à totalidade (Mundo, Substância, Estado) a que o homem
pertence; 3.ª - a concepção de Liberdade como possibilidade ou
escolha, segundo a qual a Liberdade é limitada e condicionada,
isto é, finita. (ABBAGNO, 1982, p. 577).
Livre-arbítrio é a faculdade própria do homem que, pelo fato de possuir a razão ou
pela capacidade de ser racional, é capaz de escolher entre várias possibilidades, podendo agir ou deixar de agir de determinada forma, sem nenhuma razão para tal escolha a não ser o próprio alvedrio (Nova Enciclopédia Barsa, v. 9, p. 86).
É de Santo Tomás de Aquino a afirmação de que o homem tem livre-arbítrio, constituindo este uma faculdade ou potência, por meio da qual podemos julgar livremente,
não se confundindo com o hábito, nem com nenhuma força a ele submetida ou ligada.
De outro modo, conselhos, exortações, ordens, proibições, recompensa e punição seriam vãos (Summa Theológica, questão 83).
À eterna discussão sobre o livre-arbítrio, que se arrasta há séculos, são colocados percalços na consideração de que uma conduta humana possui vários e aleatórios fatores,
podendo ser tratada no campo das probabilidades, sendo reduzida sua margem de
atuação. Mas a versão relegitimante do Direito Penal afirma que, suprimida a pobreza
e outras causas semelhantes, o delito que subsistirá será de livre decisão do autor relegitimando-se o direito penal retributivo (ZAFFARONI, 1991).
Porém, àqueles que negam o livre-arbítrio e imputam o crime a fatores exógenos,
como v.g., pobreza, carência de educação, condições sanitárias, etc., deve-se exigir,
por coerência, que defendam a impossibilidade de punição do criminoso, diante de
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
causas supralegais de exclusão da culpabilidade.
Afinal, pobreza é terreno fértil para a violência, mas não é causa. (RIBEIRO, 2004).
Estados pobres do Brasil, como Sergipe e Maranhão, ostentam baixíssimos índices de
criminalidade quando comparados com São Paulo ou Rio de Janeiro, campeões em
renda per capita nacional, mas também em criminalidade violenta e organizada. Tal
argumento é romântico e comum, mas vazio de conteúdo e cientificidade. Associar
pobreza e violência criminosa é desrespeitar os menos favorecidos, estereotipandoos como potenciais delinqüentes. A pobreza é uma violência em si, mas não torna as
pessoas melhores ou piores.
3.2. Exclusão de Punição aos Inimputáveis
A imaturidade e ausência de livre-arbítrio fundamentam, genericamente, a inimputabilidade penal dos menores de dezoito anos, afastando-os da possibilidade de punição.
Porém, a inimputabilidade por menoridade, calcada em critério biológico, é um conceito puramente normativo, que nos remete para a problemática dos fins da pena.
Deve-se analisar com reserva a questão da ausência de livre-arbítrio em relação aos
adolescentes, sendo inequívoco no direito pátrio que estes desfrutam, corretamente,
do direito à liberdade, conforme consagrado no artigo 16 do ECA.
Segundo Almeida (2000, p. 15), o conceito de inimputabilidade, ainda que por vezes imperfeitamente expresso, está presente desde há muito no direito penal. Mas a
não-punição dos inimputáveis tinha, antigamente, uma justificação que não pode se
manter nos nossos dias, pois, visando a pena uma função retributiva, não faria sentido
punir quem não entendesse o alcance dos seus atos e, portanto, não sendo capaz de
responsabilização, não possa expiá-la através da punição sofrida. Continua a autora
pontuando que, substituída a teoria da retribuição pela de prevenção, em que se pode
fundamentar a não-punição dos inimputáveis?
3.3 Compensação ao Abalo Social (Função Neo-retributiva)
Modernamente, fundamenta-se também a retribuição na necessidade de compensação
ao abalo social decorrente da infração (o que se aproxima das teorias da prevenção
geral positiva ou de integração). A situação pode ser explicada pela psicanálise, pois a
retribuição satisfaz a necessidade de castigo que a sociedade sente perante aquele que
violou as regras sociais (ALMEIDA, 2000).
Diante da profundidade da abordagem, pertinente a transcrição do seguinte pensamento de Morselli (1997, p. 43):
A pena – vista segundo a psicologia da sociedade ao invés da
ótica do delinqüente – realiza efetivamente uma grande função,
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
a de assegurar aquele profundo equilíbrio intrapsíquico entre as
forças dos instintos.
Em outros termos, a pena satisfaz a suprema exigência de defender a ordem interior, antes mesmo daquela exterior, impedindo
assim que, da falta de controle destas forças dos instintos, não
surja o caos na vida psíquica, seja ela individual ou coletiva.
[...] o erro dos autores da chamada prevenção geral integradora
ou positiva consiste em atribuir tudo isto à função geral preventiva da pena, quando, na nossa maneira de ver, trata-se simplesmente dos efeitos típicos da função retributiva, exatamente
conforme a ótica da concepção clássica, iluminada pela visão
psicodinâmica neo-retributiva. Em outras palavras, o erro daqueles que criticam a concepção retributiva ou neo-retributiva
da pena, consiste em atribuir a ela uma dimensão distorcida e
extremamente restritiva.
O autor conclui, afirmando, em outros termos, que não é de prevenção geral integradora que se deve propriamente falar, mas sim de retribuição integradora, ou melhor,
de restituição do significado positivo e construtivo que sempre foi próprio da clássica
idéia retributiva. A prevenção geral não é outra coisa senão a prevenção de futuros
delitos, mas essa prevenção é simplesmente um efeito induzido da retribuição: efeito
negativo de aflição e efeito positivo sobre o sentimento coletivo de justiça.
3.4. Função Social do Estado
Os partidários do abolicionismo penal afirmam que o sistema, além de não apresentar
efeitos positivos, causa sofrimentos desnecessários, sendo difícil a manutenção do
controle, o que motiva a eliminação desse ramo do Direito.
Porém, devemos distinguir os fins pragmáticos da função real atual da pena numa
sociedade democratizada, pois o abolicionismo pode gerar reação vindicativa por parte dos ofendidos, pois a Vingança Privada somente fora eliminada quanto o Estado
assumiu o monopólio da punição3. Episódios ocorridos em São Paulo durante o mês
de maio de 2006, em que, após ataques a alvos policiais, várias pessoas supostamente
ligadas a organizações criminosas foram mortas, supostamente, por grupos de extermínio, revelam, de maneira singela, que um sistema penal leniente sempre fomentará
atos vindicativos.
3
A vendetta, porém, é ainda muito comum. Em Abril Despedaçado, do albanês Ismail Kadaré (1982), obra literária adaptada para o cinema em 1987, na França, por Liria Bégéja, e, no Brasil, em 2001, por Walter Salles, encontramos a descrição
do Kanun (Cânon), código de leis e rituais de sangue que volta a se manifestar depois de meio século de esquecimento (imposto pelos comunistas), consistente em um código moral do interior albanês, que determina a vingança dos que cometem
assassinatos, num círculo vicioso. As famílias devem vingar seus mortos assassinando um membro da família do matador
– de preferência o próprio atirador. O Kanun exige transparência, devendo o assassino proclamar a morte imediatamente.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
4. Caráter Preventivo da Sanção Penal
Com a prevenção, afirma-se o caráter utilitário da pena, qual seja, evitar a ocorrência
de novas infrações penais (punitur ne peccetur). As Teorias Relativas enfocam a pena
como medida preventiva e não retributiva, propiciando a intimidação do delinqüente
potencial, apesar de reconhecerem um mal para quem a sofre. Essa função preventiva,
que é tão antiga como a idéia de retribuição, acabou sendo estruturada pelo bávaro
Johann Paul Anselm Ritter von Feuerbach (1775-1833 – a pena como meio de intimidação sobre os indivíduos), passando pelo inglês Jeremy Bentham (1748-1832 – pena
como prevenção geral, constituindo sacrifício indispensável ao interesse geral), até se
sedimentar em Friedrich Nietzche (1844-1900), que não vê diferença essencial entre
criminosos e alienados.
A função preventiva somente alcança as infrações de pequena gravidade. A baixa eficácia do efeito intimidatório das penas é facilmente constatável pela consideração do
rigor extremo das penas infligidas em certas épocas e até atualmente nos países que
adotam a pena de morte, mas que não impedem a ocorrência de novos crimes graves.
Por isso se afirma que, mais do que a severidade das penas, é a eficiência e rapidez
da resposta penal que pode ter efeitos positivos no combate ao crime, o que se atinge
mais facilmente por vias processuais.
Nas palavras de Zaffaroni (1998), “[...] quanto maior for a gravidade do crime, menor
é a capacidade que tem a ameaça da pena para impedir a prática delituosa. Nós não
cometemos o crime de parricídio, não pela ameaça do Código Penal, mas por razões
éticas muito mais profundas”.
4.1 Prevenção Geral
A prevenção geral manifesta-se antes da prática do delito, constituindo a pena instrumento político-criminal destinada a afastar do crime os integrantes da comunidade
em geral, mediante ameaça de efetivação da sanção. Subdivide-se em prevenção geral
negativa e prevenção geral positiva.
Segundo ainda Morselli (1997, p. 45):
[...] é um erro considerar a consolidação e o reforço dos sentimentos de justiça, de fidelidade à lei e de consciência jurídica coletiva, como objetivos finais da pena na concepção de
prevenção geral. Devemos, aliás, considerá-los como ‘efeitos
induzidos’, ou seja, indiretos, da função retributiva da pena.
Sim, esta função deve ser considerada no sentido de satisfação das necessidades emocionais da união; isto, porém, é uma
satisfação que não tem a finalidade em si mesma mas visa ao
mais profundo mecanismo de defesa do Eu individual e social.
Mais exatamente podemos dizer que é uma exigência de neutra-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
lizar, isto é, de remover os efeitos da perturbação do equilíbrio
intrapsíquico coletivo, e, conseqüentemente, do alarme social
causado pelo fato criminoso na consciência coletiva.
É justamente através deste mecanismo de neutralização, ou de
remoção do alarme social, ativado com a punição do réu, que se
alcançam os efeitos da consolidação e reforço dos sentimentos
de justiça, de fidelidade à lei e da consciência jurídica coletiva.
A pena é integradora, ou melhor, reintegradora dos valores fundamentais da vida coletiva, somente quando for considerada
em função retributiva, ou seja, como correspondente do mal
infligido pelo réu à sociedade. Se perder de vista este necessário significado de decorrência de um malum actionis, considerado, assim, a pena unicamente como um instrumento de
política criminal, então, não será mais possível conseguir a já
descrita neutralização do alarme social, nem, por conseguinte,
a reconstituição do equilíbrio intrapsíquico individual e coletivo. Conseqüentemente, nem o sentimento de justiça e nem a
consciência jurídico-social encontrarão a necessária satisfação
e consolidação.
Existe, hoje, uma tendência cada vez mais acentuada na doutrina alemã e italiana, de abandonar os tradicionais esquemas
dogmáticos, baseados no princípio fundamental da culpabilidade, ou seja, de responsabilidade ético-jurídica. Seja a teoria do
crime, seja a da pena, são hoje reconstruídas por autores como
Roxin e Jacobs, segundo significados pragmáticos, unicamente
orientados e preocupados em soluções de política criminal. A
justificação da pena no quadro da prevenção geral integradora
– que aqui examinamos e criticamos – é, exatamente, um dos
tantos frutos – o mais evidente, mas também o mais capcioso – desta nova concepção da dogmática criminal. Através da
demonstração de sua inconsistência e de sua esterilidade justamente no plano dos efeitos práticos, acreditamos ter oferecido
uma contribuição central na defesa da perspectiva dogmática
tradicional.
4.1.1 Prevenção Geral Negativa (ou de Intimidação)
Baseada na coação psicológica, sustenta que a pena, através do mal causado ao delinqüente, constitui intimidação preventiva aos membros da comunidade, com efeito
dissuasório do infrator potencial, que evitará cometer crimes. É o modelo clássico de
resposta ao delito. Confere relevância à pretensão punitiva do Estado, sendo o castigo
do delinqüente objetivo primário um mal justo e necessário.
É contestada por transformar o condenado em objeto, a serviço de fins gerais, qual
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
seja, a conscientização da população sobre o alcance da ameaça penal.
Como esse efeito é obtido independentemente da qualidade da pessoa que se submete
à punição, nada impede, sob a ótica da prevenção geral negativa, a punição dos adolescentes. Aliás, os adolescentes, assim como as crianças, são extremamente sensíveis
ao sistema castigo-recompensa.
Outro problema desse modelo é conduzir ao entendimento de que o aumento da criminalidade deve ser combatido por intermédio de penas mais rigorosas. Emblemática é a questão da estéril discussão sobre a redução da maioridade penal como meio
de combate à delinqüência4, especialmente quando se constata que todas as medidas
socioeducativas, aplicáveis aos adolescentes infratores, ostentam paradigma penal,
constituindo espécies de sanção penal.
A crença extrema na função preventiva geral negativa levou o legislador a considerá-la como indispensável para a solução de todos os conflitos sociais. Com isso, o
Direito Penal perdeu a característica de intervenção mínima e subsidiária, adquirindo
natureza de um conjunto de normas de atuação primária e imediata, apesar da ausência de estrutura dos órgãos públicos e a consideração das outras variáveis do processo
dissuasório, como a natureza da infração, a personalidade do infrator, a agilidade do
sistema penal, etc.
Outra variável relevante, porém não considerada nesse mecanismo dissuasório, é que
o impacto psicológico da pena não é homogêneo, mas circunstancial e, portanto, insuscetível de prognóstico generalizado, podendo exercer extrema influência no homem médio, mas quase nenhuma em alguns tipos de criminosos5.
4.1.2. Prevenção Geral Positiva (ou de Integração)
A pena produz a atualização da vigência e a confirmação das normas e dos valores dos
bens jurídicos, motivando as pessoas a atuarem de acordo com o Direito, na medida
em que depositam confiança no funcionamento do sistema. É a utilização da pena
para restauração do equilíbrio, pacificação e segurança social abalados pelo crime,
4
Pesquisa realizada pelo Instituto Vox Populi identificou que 84% das pessoas entrevistadas desejam a redução da maioridade penal (Veja, São Paulo, 16 ago. 2000, p. 63).
5
Maranhão (1995) faz a seguinte classificação dos criminosos: 1. Tipo ocasional: a) personalidade normal; b) poderoso
fator externo como desencadeante; c) crime como ato conseqüente do rompimento transitório dos meios contensores dos
impulsos; 2. Tipo sintomático (personalidade mórbida): a) personalidade com perturbação transitória ou permanente da
função psíquica (ex.: oligofrenias, psicoses, demências, neuroses); b) mínimo ou nulo fator externo desencadeante; c)
ato vinculado à sintomatologia da doença; 3. Tipo caracterológico (portador de defeito): a) personalidade com defeito
constitucional ou formativo do caráter; b) mínimo ou eventual fato desencadeante; c) ato ligado à natureza do caráter
do agente. Em relação às crianças e adolescentes, afirma (p. 107) que “[...] no curso evolutivo da criança, a importância
materna vai decrescendo e a do pai vai progressivamente aumentando, até a fase adulta. Para exercer função equilibrada, o
pai não pode ser ausente, omisso, submisso à esposa, mas também não pode ser incompreensível, arbitrário ou despótico”,
acrescentando que a síndrome da mãe inconstante produz o seguinte: desagregação familiar → inadaptação familiar e
escolar → fuga (vida na rua) → adaptação ao “real imediato” e inadaptação social → formação de grupos dissociais →
delinqüência dissocial.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
conferindo credibilidade ao Direito.
Afirma Dias (1999, p. 130) que, primordialmente, a finalidade visada pela pena há
de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e essa há de
ser também, por conseguinte, a idéia mestra do modelo de medida da pena. Tutela
dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospectivo, diante de um crime
já verificado, mas com um significado prospectivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da
vigência da norma violada; nesse sentido, é uma razoável forma de expressão afirmar,
como finalidade primária da pena, o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. Ainda segundo Dias (1999), a Günther Jakobs fica-se devendo a formulação – emitida na esteira da formulação de Luhmann – segundo a qual a finalidade
primária da pena reside na estabilização contrafática das expectativas comunitárias na
validade da norma violada.
Mais uma vez se vislumbra aqui que o conceito de inimputabilidade é normativamente construído, pois, diante de um ilícito grave praticado por um adolescente, faz-se
também necessária a aplicação de sanção para restabelecer a confiança no Direito.
4.2. Prevenção Especial (ou Individual)
Procura evitar que o agente volte a delinqüir, atuando ao ser iniciada a execução da
pena, exteriorizando os princípios de reinserção e ressocialização do infrator. Aqui,
a pena, na realidade, visa à prevenção da reincidência. Apresenta-se como prevenção
especial positiva e prevenção especial negativa.
4.2.1. Prevenção Especial Positiva (Modelo Ressocializador)
Afirma que a pena é instrumento útil para evitar que o infrator volte a delinqüir, com
adoção de sanções admonitórias ou mediante a ressocialização do condenado através
de tratamento terapêutico individualizado. Propõe uma intervenção positiva no condenado, procurando habilitá-lo para participar da sociedade, sem provocar estigmatização ou invadir sua autonomia ou personalidade. Propõe que, mais do que punido, o
agente deve ser tratado. Almeida (2000, p. 99) elucida:
Afirmando-se um adepto das teorias correcionalistas de Röder,
Levy Maria Jordão estabelece, em ‘O Fundamento do Direito
de Punir’ (ed. Coimbra, imprensa da Universidade, 1853), p. 28
e passim, uma interessantíssima relação entre o carácter regenerador da pena e sua função reintegradora e, simultaneamente,
intimidatória. Começa por afirmar que as penas não são mais
do que meios para atingir um fim, assim se desvinculando de
qualquer teoria retributiva; e continua reflectindo que esse fim
é a negação do crime e o restabelecimento do direito. É através
dos meios empregados para melhoramento do criminoso (mas
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sem, em caso algum, violar a sua personalidade) que se obtém
a intimidação. A pena seria assim um bem, pois através dela se
alcançaria o restabelecimento do estado de direito e se salvaria
o criminoso da depravação, autêntico ‘suicídio moral’.
Porém, como o esforço ressocializador depende, primordialmente, do empenho do
reeducando, visando dispensar seu consentimento formal, devem-se adotar técnicas e
terapias que facilitem a posterior integração social do infrator.6
Os postulados dessa Teoria são perfeitamente admissíveis em relação aos adolescentes infratores. Os artigos 113 e 110 do ECA adotam a perspectiva de que a medida
socioeducativa deve visar ao fortalecimento dos vínculos comunitários. Em (lamentável) consonância com essa premissa, o artigo 121, § 2°, do mencionado diploma, afirma que o tempo de internação é relativamente indeterminado, aguardando, portanto,
a readaptação do infrator.
4.2.2. Críticas ao Correcionalismo
O livre-arbítrio se opõe frontalmente ao correcionalismo. Afinal, o que autoriza o direito de educar e submeter a tratamento pessoas livres contra a sua vontade? Ademais,
se o criminoso não deve ser punido, mas sim corrigido, a pena deve ser indeterminada,
para perdurar pelo tempo necessário à readaptação do agente à vida em sociedade.
Ocorre que a pena indeterminada, além de ofender o princípio da proporcionalidade
no Direito Penal, somente é factível em uma sociedade de pessoas perfeitas.
Se o ato foi praticado livremente, sem qualquer exclusão da responsabilidade penal,
é incoerente, mediante aplicação da pena, submeter o agente a métodos para uma
nova adaptação à vida em sociedade. Os homens são livres quando praticam o bem
e quando cometem crimes. Afinal, como tratar alguém por aquilo que fez por opção?
Para tanto, devemos afirmar as distinções para os adeptos da Escola Clássica, em que,
exceto para alienados e menores7, todo crime é um ato livre, sendo a pena mera retribuição, e os postulados da Escola Positiva, que defende que o crime é resultado de
fatores endógenos e exógenos, enfatizando a pena com caráter preventivo.
O tratamento somente será eficaz após a definição das causas efetivas da criminalidade, o que passa pela análise completa da personalidade humana, situação que estamos
longe de alcançar. Mesmo quando, após a reeducação, o agente não volta a delinqüir,
o que pode assegurar que foi a pena anterior que evitou a reincidência?8
Almeida (2000, p. 28), afirma que “[...] este objectivo só poderá ser atingido – se alguma vez o for – junto dos indivíduos
com capacidade para serem corrigidos dos seus defeitos de carácter, o que pressupõe que estes não tenham origem em
qualquer patologia impossível de dominar. O correcionalismo dirige-se a homens livres e responsáveis pelos seus actos,
disponíveis para ouvir o apelo que, através da execução da pena, se lhes dirige.”
7
Abrangendo apenas as crianças, mas não os adolescentes, diante do direito estatuído no artigo 16 do ECA.
8
Neste sentido, Morselli (1997, p. 41), que acrescenta: “Rapidamente, passou-se, então, da euforia para a desilusão. A ideologia do tratamento foi definida por muitos como utopia, a tal ponto que mais de um autor (como Bettiol, na Itália, e Alf
Ross, na Dinamarca), chegavam a falar em ‘mito da reeducação’. Contrariamente, os defensores da eficácia do tratamento
6
220
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Ademais, como reeducar se os próprios valores sociais são extremamente mutáveis e
maleáveis ? Readaptar o criminoso para qual tipo de vida? Por isso, a Criminologia
crítica afirma que, mais do que corrigir o delinqüente, faz-se necessária a correção da
sociedade (BARATTA, 1983).
Além da preocupação com o criminoso, a pena deve se preocupar com os interesses da
vítima. Assim, inicia-se um modelo reparador dos danos causados pelo crime, o que é
de difícil conciliação com uma pena que se preocupa apenas em tratar o delinqüente.
Esses e outros aspectos levaram a descrédito a ideologia do tratamento. Conforme
Almeida (2000, p. 131):
[...] à ressocialização por que o direito penal pugna importará
apenas retirar os entraves e deixar que o indivíduo siga o seu
caminho autônomo – ainda que a escolha seja, e se mantenha,
contra a norma. O delinqüente deverá ser sempre sujeito de
recuperação, e nunca objecto de uma ressocialização concebida
de fora e imposta por meios mais ou menos sutis.
Gomes (1999, p. 35) noticia que uma extraordinária síntese da ideologia do tratamento ressocializador e de seu fracasso foi feita por Cervini (1993, p. 21), que procurou
assinalar as marcantes diferenças entre as sociedades norte-americana e européia do
princípio desse século até os anos 60: naquela, os estudos sociológicos procuravam
demonstrar que o crime tinha origem, sobretudo, nas condições sociais; nesta, em que
começava a prosperar o Welfare State, após a Segunda Guerra Mundial, surge uma
ideologia político-criminal muito simples que consistia no seguinte: com o estado de
bem-estar social não existem fatores sociais que concorrem para o crime – logo, sua
origem está nos fatores (patológicos) individuais; daí a necessidade de tratar os delinqüentes, visando a sua reabilitação.
Continua referido autor afirmando que suas conseqüências e críticas não demoraram:
a pena passou a ser (relativamente) indeterminada (e isso viola o princípio da proporcionalidade); a culpabilidade não serve para limitar a duração da pena, senão as
necessidades de cada criminoso; a pena deixa de ser jurídica para se transformar numa
realidade clínica; a própria expressão ressocialização não tinha um conteúdo concreto; de qualquer modo, ela deveria seguir qual conjunto normativo? Por outro lado,
para além de ser violadora de direitos fundamentais, é inconciliável com a prisão, que
reúne todas as características possíveis, não da ressocialização, senão da dessocialisustentavam que os fracassos deviam ser imputados ao fato de tal tratamento não ter sido aplicado corretamente e com a
abundância de meios que se faziam necessários, e que, por conseqüência, longe de decretar a sua falência, o legislador deveria ulteriormente incentivá-lo... Deixando de lado o fracasso dos esforços voltados para a prevenção especial, a doutrina,
de qualquer modo, tem se certificado que a ideologia do tratamento não é capaz de dar nenhuma resposta válida e coerente
à interrogação ‘por que se pune?’ Como advertiu já no século passado, o nosso grande Francesco Carrara, punir e curar,
punir e reeducar, punir e corrigir, são coisas totalmente incompatíveis e contraditórias entre si. Punir quer dizer, de fato,
acarretar um mal, uma aflição, um malum passionis, enquanto curar, reeducar, corrigir quer dizer exatamente o contrário,
isto é, acarretar um bem enorme.”
221
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
zação (superlotação, prisionização, subcultura, estigmatização, opressão, corrupção,
arbítrio etc.).
4.2.3. Prevenção Especial Negativa
Segundo esta teoria, como é utópico corrigir o delinqüente, para evitar o crime é necessária a neutralização (mediante destruição física ou psíquica do indivíduo, prisão,
controle eletrônico em liberdade, etc.) ou intimidação (contramotivação) do infrator.
A pena deve atemorizar o criminoso ao ponto de ele não repetir a prática de crimes
(inocuização). É o que ocorre, por exemplo, com a sujeição dos adolescentes infratores, inclusive, à prisão perpétua (em alguns estados) nos Estados Unidos da América.
Afirma Dias (1999, p. 105) que é hoje seguramente de se recusar uma acepção da
prevenção especial no sentido da correção ou emenda moral do delinqüente, mesmo
que seja só no sentido de substituir às suas concepções pessoais os juízos de valor.
Para tanto, falece ao Estado, de forma absoluta, a legitimação. De se recusar será
igualmente o paradigma médico ou clínico da prevenção especial, sempre que ele
se tome como tratamento coativo das inclinações e tendências do delinqüente para o
crime. Ainda aqui não cabe ao Estado uma tal tarefa, a qual se apresentaria sempre
como violadora da liberdade de autodeterminação do delinqüente e, por conseguinte,
de princípios jurídico-constitucionais imperativos como o da preservação da eminente
dignidade pessoal. Só por isso, segundo ainda Figueiredo Dias, o conteúdo mínimo
da socialização – a prevenção da reincidência – pode passar na prova de fogo de um
direito penal próprio do Estado de Direito.
5. Teorias Mistas
Os aspectos primordiais das teorias apontadas (retribuição, prevenção geral e prevenção especial) foram conjugados das mais variadas maneiras, no sentido de se encontrar uma doutrina adequada sobre os fins das penas, o que, porém, também não
redundou em resultado adequado.
Afirma García-Pablos de Molina (1992, p. 14):
[...] un sistema legal óptimo es aquel que no solo castiga pronto
y bien (satisfacción de la pretensión punitiva del Estado), sino
que está en condiciones de dar respuesta y satisfacción a las
demandas y exigencias que el delito genera. Tales expectativas
sociales son tres: reparación justa del daño que el crimen há
ocasionado a su víctima (función reparadora), reinserción del
infractor en la sociedad una vez cumplida la condena merecida
(función resocializadora) y solución satisfactoria del conflicto
que el delito exterioriza, promoviendo un clima de conciliación
y pacificación (función integradora).
[...] Pues el crimen, cuyo control corresponde al sistema legal,
222
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
no puede definirse como lacra, tumor o castigo del cielo, sino
como doloroso problema social y comunitario; y esta caracterización obliga a asignar al sistema una rica gama de funciones
más allá de la mera represión.
6. Conclusão
Dessa forma, pode-se concluir que “[...] a variabilidade cultural das leis morais e
de sua codificação impede que sobre elas se elabore uma teoria científica do crime,
a partir da qual se deduzam terapias socialmente eficiente de correção” (PAIXÃO,
1987, p. 31).
É incorreto associar a função retributiva da pena com rigor excessivo, pois este também pode se fazer presente na função de prevenção geral negativa (transformação do
condenado em objeto para demonstrar o alcance da ameaça penal) e na prevenção especial negativa (neutralização ou intimidação do infrator). Hábil relembrar que uma
das maiores garantias do Direito Penal, o princípio da proporcionalidade, delimitador
da intensidade da pena, é fruto da concepção retributiva. Portanto, com razão Morselli
(1997, p. 43) ao afirmar:
[...] retribuição não é sinônimo de sádico desabafo de instintos agressivos, e nem é necessariamente sinônimo de retorsão,
ou vingança a fim de si mesmo. Essa interpretação negativa do
clássico pensamento é profundamente distorcida e restritiva,
e ofende a idéia inspiradora que residia na mente e no coração dos grandes escritores ‘retribucionistas’, tais como Platão,
Dante Alighieri, Tomáz de Aquino, Leibiniz, Kant, Vico, Hegel
etc., para nos limitarmos aos pensadores não-juristas. É equivocado pensar que todas estas inteligências conceberam a pena
simplesmente como pubblica vindicta e, portanto, limitaramse a entendê-la como mero desabafo das exigências emotivas
intrapsíquicas de punição por parte da sociedade. Se olharmos
bem suas obras, veremos que foram justamente eles que conceberam a pena em função da realização e, portanto, da consolidação e do reforço dos sentimentos profundos de justiça, e,
por conseqüência, dos sentimentos de fidelidade à lei e à ordem
constituída.
Há um ditado árabe que diz: quem tem medo do inferno, não vai para o inferno, pois,
é fácil concluir, procederá de modo adequado, afastando-se do potencial desfecho
da saga pecaminosa. É a velha questão do livre-arbítrio. Transplantando para nosso
tema poderíamos dizer: quem tem medo da prisão, não vai para a prisão. Atualmente,
quem tem medo da prisão? Somente quem não precisa! A criminalidade violenta e
organizada agradece.
223
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
7. Bibliografia
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225
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. JURISPRUDÊNCIA
STF
Nº do Processo: Habeas Corpus 69440 / SP - SÃO PAULO
Relator: Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 30/06/1992 Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA
Publicação: 28-08-1992 PP-13455
EMENT VOL-01672-03 PP-00403
RTJ VOL-00142-03 PP-00889
EMENTA
HABEAS CORPUS - FUGA DE PESSOA PRESA (CP, ART. 351) - EVASAO PROMOVIDA POR OUTRO DETENTO - SUJEITO ATIVO - ALEGADA AUSÊNCIA
DE JUSTA CAUSA - INOCORRENCIA - PRETENDIDA ANALISE DOS ELEMENTOS PROBATORIOS - IMPOSSIBILIDADE - PEDIDO INDEFERIDO. - O CRIME
TIPIFICADO NO ART. 351 DO CÓDIGO PENAL - PROMOÇÃO OU FACILITAÇÃO DA FUGA DE PESSOA LEGALMENTE PRESA OU SUBMETIDA A MEDIDA DE SEGURANÇA DETENTIVA - CONSTITUI INFRAÇÃO PENAL COMUM,
QUE NÃO REQUER SUJEITO ATIVO ESPECIAL. PODE, ASSIM, SER COMETIDO POR QUALQUER PESSOA PENALMENTE IMPUTAVEL. NADA IMPEDE,
EM CONSEQUENCIA, QUE OUTRO DETENTO INCIDA NESSE MESMO TIPO
PENAL, DESDE QUE, AGINDO ISOLADAMENTE OU EM CONCURSO COM
MAIS DE UMA PESSOA, VENHA A PROMOVER OU A FACILITAR A FUGA DE
ALGUEM QUE SE ENCONTRE LEGALMENTE PRIVADO DE SUA LIBERDADE INDIVIDUAL. SOMENTE O BENEFICIARIO DA FUGA, AINDA QUE INSTIGUE OU INDUZA TERCEIRO A PROMOVER-LHE OU A FACILITAR-LHE A
EVASAO, E QUE NÃO RESPONDE PELO DELITO EM CAUSA, RESSALVADA,
NO ENTANTO, A HIPÓTESE TIPIFICADA NO ART. 352 DO CÓDIGO PENAL.
- NÃO E O HABEAS CORPUS MEIO JURIDICAMENTE IDONEO PARA O REEXAME DA MATÉRIA DE FATO E A ANALISE DO CONJUNTO PROBATÓRIO.
VOTAÇÃO: UNÂNIME. RESULTADO: INDEFERIDO
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1 DA CONSTITUCIONALIDADE DA RECEPTAÇÃO QUALIFICADA,
DESCRITA NO § 1º DO ART. 180 DO CÓDIGO PENAL
ANDREA MISMOTTO CARELLI
Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais
Pós-Graduanda em Direito Difusos pelo IELF/MG
1. Acórdão
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CORTE SUPERIOR
INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.0000.05.430737-6/000
COMARCA: BELO HORIZONTE
REQUERENTE: QUINTA CÂMARA CRIMINAL
REQUERIDA: CORTE SUPERIOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
DE MINAS GERAIS
RELATOR: DESEMBARGADOR CARREIRA MACHADO
DATA DO JULGAMENTO: 26 DE MAIO DE 2006
EMENTA: INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. ART. 180, § 1º, DO CÓDIGO PENAL. Crime de receptação qualificada,
previsto no § 1º do art. 180 do Código Penal – aplica-se penas maiores aos casos de
receptação para fins comerciais ou industriais. INCIDENTE NÃO ACOLHIDO.
VOTO
Trata-se de Incidente de Inconstitucionalidade submetido à Corte Superior pela egrégia Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais diante
da decisão da Turma Julgadora, que declarou a inconstitucionalidade do §1º do art.
180 do Código Penal.
O Ministério Público do Estado de Minas Gerais ofereceu denúncia contra Walter
Inácio dos Santos Júnior e Weslei Liandro de Alcântara. A sentença de f. 139-151
condenou os denunciados pela prática de crime de receptação qualificada.
A Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, no acórdão de f. 196-214, ao fundamento de que o § 1º do art. 180 do Código Penal ofende o princípio da proporcionalidade, declarou a inconstitucionalidade do referido artigo, submetendo os autos à
Corte Superior para apreciação.
O art. 180 e seu parágrafo 1º, na redação dada pela Lei n.º 9.426, de 1996, dispõe
que:
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Receptação
Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar,
em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de
crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba
ou oculte:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Receptação qualificada
§ 1º - Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em
depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda,
ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no
exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve
saber ser produto de crime:
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa.”
Não constato a alegada inconstitucionalidade, consistente em ofensa ao princípio da
proporcionalidade.
A meu ver, não se trata de apenar de forma mais grave quem “deveria saber” e de
forma mais leve quem “sabe” que a coisa é produto de crime.
Em função da necessidade de tentar inibir a prática do “desmanche”, e principalmente
o comércio clandestino de peças de automóveis, a Lei n.º 9.426, de 1996, alterou o
art. 180 do Código Penal, sendo que o § 1º do referido artigo passou a dispor sobre
a receptação qualificada, aplicando penas maiores nos casos de receptação para fins
comerciais ou industriais.
O § 1º do art. 180 do CP é um tipo penal de peculiaridades próprias o que, entretanto,
não conduz à inconstitucionalidade alegada.
Esse é o entendimento expendido pelo STJ:
HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. PARÁGRAFO 1º DO
ARTIGO 180 DO CÓDIGO PENAL. INCONSTITUCIONALIDADE. INOCORRÊNCIA. CONSTRANGIMENTO. INCARACTERIZAÇÃO.
1. O ilícito tipificado no parágrafo 1º do artigo 180 do Código
Penal substancia forma qualificada de receptação, por função,
não, do tipo subjetivo, que se aperfeiçoa já com o dolo eventual,
mas, sim, da sua prática no exercício de atividade comercial ou
industrial.
2. E quando assim não se entenda, tratar-se-á de delito próprio,
independente do tipificado no artigo 180, caput, do Código
Penal, o que reforça a constitucionalidade da norma penal em
questão.
3. Incabível, para afirmar existente inconstitucionalidade, falarse em culpa em sentido estrito, relativamente ao tipo do parágrafo 1º do artigo 180 do Código Penal.
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4. Ordem denegada. (HC 28493/SP; Relator Ministro HAMILTON CARVALHIDO; data do julgamento: 27/09/2005)
PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE RECEPTAÇÃO.
FINS COMERCIAIS. FORMA QUALIFICADA RECONHECIDA NA ORIGEM. DESCONSIDERAÇÃO DA PENA RESPECTIVA E APLICAÇÃO DA SANÇÃO PREVISTA PARA
A FORMA SIMPLES. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA
SUBSIDIARIEDADE. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA
DA PENA ESPECÍFICA COMINADA. RECURSO PROVIDO.
1. O reconhecimento da forma qualificada do crime de receptação e a aplicação da pena prevista para o tipo básico não encontra amparo na legislação pátria, bem como não se vislumbra
inconstitucionalidade na previsão de sanção mais rigorosa na
hipótese de receptação para fins comerciais ou industriais, cuja
especificidade ensejou tutela específica, com maior rigor na
cominação da pena privativa de liberdade, conforme preceito
trazido pela Lei 9.426/96.
2. A redação do § 1º do art. 180 do Código Penal, embora não
prime pela congruência dos elementos subjetivos do tipo penal
em relação à forma simples do caput, é inequívoca em apenar
mais gravemente a hipótese de receptação para fins comerciais
ou industriais quando haja dolo, considerada a maior necessidade de repressão a estas formas especiais de receptação, por
opção legislativa.
3. Recurso provido para reformar o acórdão proferido pelo
Tribunal a quo na parte em que reduziu a pena do recorrido
ERIVALDO DE MORAES e restabelecer a pena anteriormente fixada pelo Juízo de 1º grau. (Resp 704312/SP; Relator
Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA; data do julgamento:
06/09/2005)
Ante o exposto, desacolho o incidente.
2. Razões
O presente incidente teve como cerne a constitucionalidade do disposto no art. 180,
§ 1 º, do Código Penal. A Quinta Câmara Criminal, por ocasião do julgamento da
apelação interposta pela defesa, reputou o referido dispositivo inconstitucional ao argumento de que ele afrontaria os princípios da harmonia e da proporcionalidade ao
estabelecer que o agente que não tem plena consciência da origem ilícita do produto
(caso contido no § 1º) deve ser apenado mais severamente do que aquele que sabe,
inequivocamente, de sua proveniência criminosa (hipótese descrita no caput).
A teor do que dispõe a cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constitui-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ção da República, que estabelece que somente pelo voto da maioria absoluta de seus
membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar
a inconstitucionalidade de lei, a Quinta Câmara suspendeu o julgamento, remetendo
os autos à Corte Especial que, até então, não tinha apreciado tal matéria. Como também não havia registro de que o STF já houvesse se manifestado acerca dessa questão, foi o incidente tido como relevante.
3. Comentários
3.1 Dos Princípios da Harmonia e da Proporcionalidade
Logo após a publicação da Lei n.º 9.426, de 24 de dezembro de 1996, que alterou
significativamente os contornos do crime de receptação e suas modalidades, muitos
foram os comentários a respeito da imprecisão dos tipos, sobretudo do constante no
§ 1º. Muitos pugnaram por sua inconstitucionalidade. Outros mostraram-se curiosos
quanto ao entendimento que seria adotado pelos Tribunais. Nesse particular, a deliberação encampada na decisão ora transcrita pela Corte Superior parece irretorquível.
A Quinta Câmara Criminal cogitou da mácula ao princípio da proporcionalidade e,
em virtude de tal premissa, entendeu-o inconstitucional. A princípio, deve-se ter claro
o significado do princípio. Na lição de Nucci (2005, p. 62) a proporcionalidade está
assim descrito :
Significa que as penas devem ser harmônicas com a gravidade
da infração penal cometida, não tendo cabimento o exagero,
nem tampouco a extrema liberalidade na cominação das penas
nos tipos penais incriminadores.
Ainda com relação a tal princípio, mostra-se pertinente o consignado por Prado (2004,
p. 141):
É conveniente observar que, na esfera legislativa, a vertente
substantiva do princípio da proporcionalidade impõe a verificação da compatibilidade entre os meios empregados pelo elaborador da norma e os fins que busca atingir.
O exame dos dois ensinamentos leva-nos à inferência de que deve haver adequação
entre o grau de periculosidade da conduta realizada pelo agente e a sanção imposta no
ordenamento jurídico. Essa é, pois, proposição inafastável que deve ser considerada
na análise da constitucionalidade do aludido dispositivo. Esquadrinhando as modalidades legais de receptação, nota-se gradação da pena, consoante seja aquela qualificada (§ 1º) dolosa (caput) ou culposa (§ 3º).
Na argüição de inconstitucionalidade pela Câmara, aventou-se a existência de um decréscimo de gravidade da conduta descrita no § 1º com relação à do caput, porquanto
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
naquela categoria não teria o agente plena consciência da origem ilícita do produto.
Ora, ao que parece, seria nesse aspecto que a ilação empreendida por parte da Câmara
estaria a merecer reparo. Nesse ponto, o acórdão mostrou-se acertado, afastando de
uma vez a resistência em se afirmar que o tipo qualificado abarcaria tanto o dolo direto
quanto o eventual. Frise-se, ainda, que na Câmara a análise que levou à argüição de
inconstitucionalidade se circunscreveu ao elemento subjetivo, deixando de considerar
os demais elementos típicos como um todo.
Não se pode perder de vista ainda que a Lei n.º 9.426/96 instituiu a figura do crime
próprio, mais grave porque praticado pelo comerciante ou industrial, melhor aparelhados para serem empresários do crime pelas facilidades que têm na atividade natural de
negociação que os envolve no cotidiano. O exemplo dos desmanches é bem eloqüente.
A fachada de comércio, não raro, esconde quadrilhas de receptadores que fomentam
enormemente a prática de crimes como roubo e furto. É recorrente o argumento de
que a receptação colabora para o incremento de crimes contra o patrimônio, havendo
quem afirme que, para que crimes dessa natureza tenham sua incidência diminuída,
seja necessário que se reprima mais efetivamente a receptação, principalmente no que
se refere ao mercado de autopeças, que estaria a perpetuar a prática dos desmanches.
Não podemos negar que a criação do § 1º do art. 180, do Código Penal, foi uma tentativa do legislador nesse sentido. Por outro lado, não se pode negar que a redação está
longe das melhores, sobretudo no que se refere ao elemento subjetivo do tipo, uma
vez que o legislador citou apenas aquele que deve saber da origem criminosa do bem,
omitindo-se sobre aquele que sabe.
Parte da doutrina entende que o sabe seria compatível com o dolo direto; o deve saber,
com o dolo eventual. Observe-se que essa última locução não poderia ser indicativa de
culpa, visto que existe uma figura autônoma tratando da modalidade culposa no § 3º
do mesmo artigo. Qual a extensão, então, do § 1º do art. 180, do Código Penal? E se o
agente, na atividade comercial ou industriária, atuar com dolo direto? Deve responder
por receptação qualificada? Parte da doutrina já respondia satisfatoriamente à presente
indagação, o que foi bem assimilado na decisão que ora se apresenta.
A lição de Prado de que “a intenção do legislador foi a de que não apenas o dolo direto
como também o dolo eventual implicasse no reconhecimento do crime de receptação”
foi acolhida pela Corte. Tendo o legislador dito menos do que queria, é salutar que se
empregue a interpretação extensiva, ferramenta que serve para afastar de uma vez por
todas a aparente celeuma.
Nesse ponto, é importante destacar que, a despeito do princípio da reserva legal, não
se proíbe, no Direito Penal, o emprego da interpretação extensiva, tampouco da interpretação teleológica. No que se refere à interpretação extensiva, um bom exemplo de
seu cabimento é o que ocorre com relação ao crime de bigamia, constante no art. 235,
do Código Penal. Esse tipo incrimina o segundo casamento de quem já é casado, não
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sendo necessário que diga expressamente que também incrimina o terceiro e todos os
subseqüentes, justamente pela inarredável aplicação da interpretação extensiva. Não
obstante o nomen juris (bigamia), é indubitável que esse artigo também se aplica à
poligamia. Acerca do tema, Nucci (2005, p. 724) leciona:
O que se vê na aparente contradição existente entre o ‘caput’ e o
§1º do art. 180 é a mesma situação ocorrente com inúmeros outros dispositivos que contam com a imprecisão técnica do legislador. [...] Houve um lapso na redação da figura qualificada, que
merecia, expressamente, as expressões “que sabe ou deve saber
ser produto de crime”. Entretanto, não cremos ser suficiente tal
omissão para haver total desprezo à pena fixada no preceito secundário. Lembremos que também a pena obedece ao princípio
da legalidade, bem como ao princípio da indeclinabilidade, não
podendo deixar de ser aplicada por conta da vontade do Juiz.
Assim, pensamos ser o caminho mais adequado interpretar
com lógica o pretendido pelo legislador. Os tipos penais valem-se das expressões “sabe” ou “deve saber” para ressaltar,
quando é o caso, a possibilidade de punir o crime tanto por
dolo direto, quanto por dolo indireto, embora não nos pareça
ser esta a melhor solução, pois bastaria ao legislador servir-se
de forma mais objetiva, dizendo em um parágrafo, se desejasse,
que o crime somente é punido por dolo direto. E, inexistindo
tal advertência, presumem-se naturalmente as duas formas de
dolo. Se assim não fez, é óbvio supor que o dolo direto, quando
está no tipo sozinho e expresso, como ocorre no ‘caput’ do art.
180, exclui o dolo indireto, menos grave. Porém, se o tipo traz
a forma mais branda de dolo no tipo penal, de modo expresso e
solitário, como ocorre no § 1º, é de se supor que o dolo direto
está implicitamente previsto.
Encampando tal raciocínio, a Corte admitiu que a figura qualificada (§1º) está por
englobar tanto o dolo direto quanto o dolo eventual. É inegável que houve omissão
na redação do dispositivo ao se mencionar apenas deve saber (omitindo-se o termo
sabe), mas deve a deficiência ser suprida com a interpretação extensiva. Afinal, quem
pode o mais, pode o menos, como justifica Nucci (2005, p. 63). Se, legalmente, admite-se a receptação qualificada com dolo eventual, é mais do que natural que se possa
aceitá-la, igualmente, com dolo direto. Em outras palavras: se quem deve saber ser
a coisa adquirida produto de crime merece uma pena de três a oito anos, com maior
justiça a merece aquele que sabe ser a coisa produto criminoso.
O legislador pode excluir o menos grave (que é o dolo indireto), como fez no caput,
mas não pode incluir o menos grave, excluindo o mais grave (que é o dolo direto),
como aparentemente teria feito no § 1º, sendo tarefa do intérprete extrair da lei seu
real significado, estendendo-se o conteúdo da expressão deve saber para abranger o
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sabe. Considerando-se o axioma de que a norma deve ser inteligentemente interpretada e o princípio lógico de que o menor necessariamente se insere no maior, tem-se
como adequados os argumentos utilizados no voto do relator.
4. Conclusão
A decisão ora transcrita, portanto, evidencia o adequado entendimento de que a receptação qualificada abrange também o dolo direto, e não só o eventual, como pressupõem os defensores da inconstitucionalidade. Neste ponto, é importante ressaltar que
a razão de a apenação constante do § 1º ser mais severa reside no fato de esse crime ser
cometido no exercício da atividade comercial ou industrial, o que estaria a determinar
maior censura, já que em atividades dessa natureza o agente encontra maior facilidade
para repassar o produto da receptação a terceiros de boa-fé, que, ludibriados pela sensação de maior garantia oferecida por profissionais dessas áreas, acabam se tornando
presas fáceis. Nessa medida, não há dúvida de que se trata de delinqüência mais grave
do que aquela contida no caput, merecendo sanção mais severa, justamente em respeito ao princípio constitucional da proporcionalidade.
Nessa esteira, em face da omissão do legislador, infere-se que a questão passa a ter
caráter interpretativo, sendo lógico e até mesmo intuitivo que, se a lei pune com base
apenas no dolo indireto, por maior força de compreensão punirá também no dolo
direto.
5. Bibliografia
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
______. Código penal comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito penal brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. v. 1.
233
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL PENAL
1. ARTIGOS
1.1 DA VALIDADE DO PROCEDIMENTO DE PERSECUÇÃO CRIMINAL
DEFLAGRADO POR DENÚNCIA ANÔNIMA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
RODRIGO IENNACO
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Mestre em Ciências Penais pela UFMG
Professor convidado do Curso de Pós-Graduação em Ciências Penais da UFJF
Professor convidado do Curso de Direito do Unileste/MG
SUMÁRIO: 1. Investigação Criminal e Estado de Direito: Início do Procedimento
Investigatório. 1.1. A Notícia de Crime: Variações. 1.2. Notícia de Crime, Delação ou
Denúncia Anônimas: Indefinições Terminológicas na Teoria e na Práxis. 2. Ponderação de Bens Jurídicos em Conflito: Divergência Doutrinária e Jurisprudencial. 2.1. A
Denúncia Anônima e a Vedação Constitucional ao Anonimato. 3. A Denúncia Anônima e a Vedação Constitucional à Obtenção Ilícita de Provas. 3.1. Obtenção Ilícita de
Provas e Nulidade Derivada. 4. Critérios de Validade das Investigações Originadas
de Denúncia Anônima. 4.1. Necessidade de Registro e Controle da Notícia Anônima
pelos Órgãos de Defesa Social: Anonimato ou Sigilo? 4.2. Necessidade de Verificação de Procedência das Informações. 4.3. Denúncia Anônima como Fundamento
de Busca e Apreensão Domiciliar, Quebra do Sigilo das Comunicações Telefônicas,
de Dados Bancários ou Fiscais e Medidas Assecuratórias. 4.4. Denúncia Anônima e
Prisão Provisória. 4.4.1. Denúncia Anônima e Prisão em Flagrante. 4.4.2. Denúncia
Anônima e Prisão Preventiva. 4.4.3. Denúncia Anônima e Prisão Temporária. 4.4.4.
Denúncia Anônima e Prisão Decorrente de Condenação Recorrível ou de Pronúncia.
4.5. Valor Probatório da Denúncia Anônima. 5. Conclusões. 6. Bibliografia.
1. Investigação Criminal e Estado de Direito: Início do Procedimento
Investigatório
A característica principal do Estado de Direito é a submissão do Poder Público às suas
próprias normas, instituídas na estruturação do Estado, como expressão do princípio da legalidade. São normas constitucionais estabelecidas como autêntica garantia
e limitação ao poder, de acordo com a divisão de competências institucionais que
funciona num sistema de freios e contrapesos. As noções de governo republicano e
regime democrático se complementam, instrumentalmente, na consagração do processo como conjunto de princípios e garantias que disciplinam a resolução judicial
234
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
de conflitos. Em matéria de responsabilidade criminal, ninguém será privado de seus
direitos sem a observância do devido processo penal (COUTINHO, 2001, p. 269), aí
referenciados seus corolários: o contraditório e a ampla defesa.
Na persecução penal que se desenvolve no Estado de Direito Democrático, a dignidade da pessoa humana expressa seu valor fundamental. Todas as regras que se referem
à investigação preparatória, à ação penal e ao procedimento judicial devem ser interpretadas nessa ótica garantista (FERRAJOLI, 1989), em que o respeito à Constituição não representa interesse individual em face do interesse público violado com o
crime, mas interesse coletivo de respeito à democracia, à humanidade e à cidadania
(FERNANDES, 2003, p. 13).
A investigação criminal, assim, como fase preparatória ao exercício da ação penal,
está submetida, como condicionante de sua legitimidade, aos princípios e garantias
constitucionais – e legais decorrentes.
A investigação das infrações penais é atribuição, em regra, das Polícias Judiciárias,
consubstanciada no inquérito policial. A outras autoridades a Constituição remete,
outrossim, o poder investigatório, sobretudo relacionado às respectivas funções administrativas (parlamentar, fiscal, previdenciária, tributária, disciplinar etc.), cujos fatos
tenham repercussão também na esfera penal, sem prejuízo da atuação da Polícia Judiciária (art. 4º, CPP).
Igualmente tem assento constitucional a legitimação do Ministério Público (art. 129,
VI e VIII, CF/88; arts. 7º, 8º e 38, LC nº 75/93; Lei nº 8.625/93) e da Magistratura (art.
33, parágrafo único, LC nº 35/79) para a investigação de infrações penais.
A presidência do inquérito policial é atribuição da autoridade policial. Por outro lado,
a Polícia Judiciária não detém, nem de longe, o monopólio do poder investigatório do
Estado. O inquérito policial, no regime jurídico-constitucional inaugurado em 1988, é
apenas uma das várias espécies de procedimentos administrativos investigatórios.
O Ministério Público, como titular do direito de ação penal pública condenatória,
está legitimado para proceder a investigações administrativas, no âmbito do inquérito
civil público (inclusive quanto a fatos que tenham repercussão na responsabilidade
civil, administrativa e criminal), bem assim para instaurar, em caráter excepcional,
procedimentos administrativos investigatórios criminais, disciplinados, no Estado de
Minas Gerais, pela Resolução Conjunta PGJ CGMP nº 2, de 14.09.2004 (PACHECO,
2005). Até porque o inquérito policial não é expediente imprescindível à propositura
da ação penal.1
1
Conforme entendimento pacífico no STF, a instauração de inquérito policial é prescindível à propositura da ação penal
pública, podendo o Ministério Público valer-se de outros elementos de prova para formar sua convicção (HC 70991, Min.
Moreira Alves; RE 233072, Min. Nelson Jobim). Da mesma forma, não há impedimento para que o Ministério Público
efetue colheita de depoimentos, quando, tendo conhecimento fático do indício de autoria e da materialidade do crime, tiver
notícia, diretamente, de algum fato que merece ser elucidado (HC 83.463/RS). No mesmo sentido o entendimento do pleno
do STF (Inq. 19577/PR).
235
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Em se tratando de crimes de ação penal de iniciativa pública (incondicionada), tanto
o inquérito policial quanto o procedimento administrativo investigatório ministerial
devem ser instaurados de ofício. Com efeito, as autoridades públicas incumbidas da
persecução penal devem agir de ofício, sem necessidade de provocação formal ou de
assentimento de outrem (princípio da oficiosidade ou oficialidade) (CAPEZ, 2004)2
– art. 5º, I, CPP.
Ciente da prática de um crime, a autoridade policial tem o poder-dever de instaurar o
inquérito policial ou confeccionar procedimento correlato nas infrações de pequeno potencial ofensivo (TCO); na mesma medida, o órgão de execução do Ministério Público
está obrigado a requisitar a instauração de inquérito policial ou, se as circunstâncias
o recomendarem, instaurar o competente procedimento administrativo investigatório
criminal.
Nesse caso, qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência da infração
penal poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade, e esta, verificada a
procedência das informações, mandará instaurar inquérito (art. 5º, § 3º, CPP).
Embora noticiar o crime seja mera faculdade conferida ao cidadão interessado em colaborar com a atividade repressiva do Estado (TOURINHO FILHO, 1997), toda pessoa
pode (e deve) ser testemunha, embora, em determinadas circunstâncias, algumas possam apresentar recusa (art. 206, CPP), estejam proibidas (art. 207, CPP) ou impedidas
de depor (arts. 252, II, 258 e 564, I, CPP e art. 405, § 2º, CPC). Há lei prevendo regras
para organização e manutenção de programas especiais de proteção a testemunhas ameaçadas (Lei nº 9.807/99, regulamentada, no plano federal, pelo Decreto nº 3.518/00). A
testemunha, dado o valor probatório de seu depoimento (título VII do Livro I do CPP),
deve ser identificada (art. 205, CPP), constituindo a recusa de fornecimento dos dados
pessoais contravenção penal (art. 68, LCP). Aquele que, sendo testemunha, não diz o
que sabe, omitindo-se (negar ou calar a verdade), pratica o crime de falso testemunho
(art. 342, CP). Ademais, quem dá causa à instauração de investigação contra pessoa
sabidamente inocente, imputando-lhe crime, incide nas sanções do art. 339 do CP.
Por outro lado, a mesma Constituição Federal que assegura a livre manifestação do pensamento, veda o anonimato (art. 5º, IV, CF/88) e declara inviolável a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando direito indenizatório decorrente
de dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X, CF/88).
Do confronto entre o dever legal de servir como testemunha, a todos imposto (salvo
exceções), e a inviolabilidade da vida privada, surge a indagação sobre a validade e
legitimidade, perante a ordem jurídico-constitucional, da notícia anônima de crime.
De um lado, a Constituição veda expressamente o anonimato, limitando a livre mani2
Ver também: (PACHECO, 2005); (MIRABETE, 2004).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
festação do pensamento individual. No mesmo passo, a legislação infraconstitucional
impõe o dever de testemunhar e identificar-se como testemunha. De outro, a autoridade
que recebe notícia de crime de ação penal de iniciativa pública tem o dever de verificar
a procedência das informações e, confirmada esta, de instaurar procedimento investigatório.
Aquilo que a Constituição parece vedar é estimulado pelas instituições oficiais de Defesa Social, sobretudo as vinculadas à Segurança Pública: a denúncia anônima.
A notícia anônima de crime é constitucional? Pode deflagrar e fundamentar, por si só,
a instauração de procedimento investigatório? Pode servir de base à representação pela
determinação judicial de medidas assecuratórias (seqüestro e hipoteca legal de bens,
arts. 125 e 134, CPP), de busca e apreensão domiciliar (art. 240, § 1º, CPP c/c art. 5º, XI,
CF/88) ou de quebra de sigilo de dados (fiscais, bancários etc.) ou comunicações (Leis
nº 6.538/78 e nº 9.296/96 c/c art. 5º, XII, CF/88)?
O presente trabalho pretende aprofundar o debate em torno dessas questões, buscando
estabelecer critérios a partir da sistematização e da abordagem jurisprudencial da matéria.
1.1. A Notícia de Crime: Variações
Já vimos que a legitimação para a ação penal influi, também, no procedimento a ser
adotado pelos órgãos oficiais incumbidos da fase pré-processual da persecução penal.
No caso de notícia de crime em que se procede mediante ação penal pública incondicionada, a investigação deve ser iniciada de ofício, desde que a autoridade competente
tome ciência da ocorrência da infração, por conhecimento próprio e direto, ou mediante
comunicação de qualquer do povo, independentemente de representação de eventual
ofendido ou representante seu. Se for caso de ação pública condicionada à representação (do ofendido) ou requisição (do Ministro da Justiça), a investigação somente poderá
ser formalizada a partir da satisfação da condição de procedibilidade (pelo ofendido, seu
representante ou Ministro da Justiça, conforme o caso). O mesmo sucede nos casos de
ação penal de iniciativa privada, em que o procedimento investigatório somente pode
ser iniciado se houver requerimento de instauração por parte do legitimado (art. 5º, § 5º,
CPP) (OLIVEIRA, 2002).
Em todas as situações, desde que satisfeitas as condições nos casos cabíveis (crimes de
ação penal pública condicionada e de ação penal privada), tem-se indisponível poderdever da autoridade em providenciar a apuração mediante o instrumento investigatório
adequado (inquérito policial, a cargo da Polícia Civil, ou Procedimento Administrativo
Investigatório Criminal, no caso de investigação capitaneada pelo Ministério Público).
A instauração do inquérito policial, nos casos de crimes de ação penal pública incondicionada, pode se dar de ofício ou por provocação consubstanciada em notícia de crime.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Neste caso, a notitia criminis pode se revestir de: a) requisição do Ministério Público3;
b) representação ou requerimento (CAPEZ, 2004, p. 80-81; PACHECO, 2005, p. 221)4
do ofendido ou seu representante legal; c) delação por terceiro, qualquer do povo (delatio criminis). (PACHECO, 2005).5
Do ponto de vista formal, a doutrina costuma apontar como peças inaugurais do inquérito policial: a) portaria (no caso de instauração de ofício); b) auto de prisão em flagrante;
c) requerimento ou representação do ofendido; d) requisição do Ministério Público; e)
requisição do Ministro da Justiça (CAPEZ, 2004, p. 80-81); (PACHECO, 2005, p. 221).
No Estado de Minas Gerais, o art. 8º da Instrução Normativa n. 01/95, do Conselho
Superior de Polícia, determina que os inquéritos policiais sejam iniciados por Auto de
Prisão em Flagrante ou, nos demais casos, por Portaria. Na Portaria, quando não se tratar
de instauração ex officio, a autoridade policial fará constar que se trata de requisição do
Ministério Público, do Ministro da Justiça etc.
1.2. Notícia de Crime, Delação ou Denúncia Anônimas: Indefinições
Terminológicas na Teoria e na Praxis
A terminologia adotada nos temas que cercam o presente estudo nem sempre é clara, do
ponto de vista técnico-jurídico. Alguns conceitos necessitam de maior atenção.
Notícia de crime é o conhecimento de um fato criminoso pela autoridade, de maneira
espontânea ou provocada6. A notitia criminis pode ser: a) de cognição imediata (art. 5º,
I, CPP); b) de cognição mediata, por expediente escrito (art. 5º, II, CPP); c) de cognição
coercitiva, por condução do preso em flagrante (art. 302, CPP).
Delatio criminis, por seu turno, é espécie do gênero notitia criminis. O que caracteriza
a delação é a comunicação por terceiro, qualquer do povo, excluído o ofendido ou seu
representante legal (art. 5º, § 3º, CPP). (PACHECO, 2005, p. 222)7. A delação (delatio
3
A possibilidade de instauração de inquérito policial a partir de requisição do Juiz de Direito (art. 5º, II, CPP), com o advento
da CF/88, tornou-se controvertida. Ver: (PACHECO, 2005, p. 220; OLIVEIRA, 2002, p. 27-28).
4
A doutrina costuma reservar o termo representação exclusivamente para os casos de crimes cuja ação penal depende de
representação, utilizando-se requerimento para as hipóteses em que o ofendido pleiteia a instauração de procedimento para
apuração de crimes de ação penal privada ou pública incondicionada. Em essência, não há distinção formal ou substancial,
pois há crimes em que a lei condiciona a adoção de providências da autoridade à representação do ofendido, o que não significa que, nos casos em que não há exigência de tal condição (crimes de ação penal pública incondicionada), não possa ela
(a representação) ser oferecida.
5
A delação, quando apresentada por terceiro ou qualquer do povo, é espécie de notitia criminis, podendo converter-se em
prova se o seu signatário for arrolado e ouvido como testemunha. No caso de delação de autoria apresentada por co-réu
durante a fase pré-processual ou na instrução do feito, após a instauração de inquérito baseado em autêntica notitia criminis,
para que a delação tenha força probatória, imprescindível a incidência do contraditório ao interrogatório do co-réu delator.
Não se pode admitir conteúdo probatório a manifestação de vontade que permaneça incólume ao princípio da bilateralidade,
ainda que diferida e incidente a posteriori.
6
Ver: Marques (1998, p. 132); Tourinho Filho (1997, p. 207); Pacheco (2005, p. 221); Oliveira (2002, p. 26); Mirabete (2004,
p. 86); Capez (2004, p. 76).
7
Capez (2004, p. 78), ao contrário, inclui no conceito de delatio criminis a comunicação feita pela vítima. Para o professor
paulista, a delação simples ocorre quando há mero aviso da ocorrência de um crime, sem qualquer solicitação; a delação
postulatória se dá com a comunicação do fato, acompanhada de requerimento de instauração da persecução penal. No mesmo
sentido: (VILAS BOAS, 2001, p. 124). Na classificação adotada por Capez (2004, p. 76), são expressões sinônimas indicativas da notitia criminis de cognição imediata: cognição direta, espontânea ou inqualificada. E de cognição mediata: indireta,
provocada ou qualificada. No mesmo sentido: (NORONHA, 1992, p. 18).
238
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
criminis), assim, tanto pode ser de cognição imediata quanto mediata, conforme se trate
de fato comunicado diretamente à autoridade, no exercício rotineiro de suas atividades,
ou mediante documento produzido por escrito e a ela encaminhado (MIRABETE, 2004;
PACHECO, 2005).
No contexto e nos limites do presente estudo, podemos estabelecer a seguinte definição: denúncia anônima é a delatio criminis formulada por qualquer do povo, sem
identificação, mediante expediente apócrifo de cognição mediata (telefonema, e-mail,
carta etc.)8.
Deve-se frisar que o termo denúncia anônima deveria ser evitado, por causar perplexidade técnica no cotejo do instituto da denúncia (propriamente dita), usado como indicativo da petição inicial nos crimes de ação penal pública, apresentada pelo Ministério Público em juízo, nos termos do art. 41, do Código de Processo Penal. Teríamos,
tecnicamente, delação anônima.
Com efeito, a denúncia anônima “[...] não é uma denúncia no significado jurídico do
termo”, como advertem Aloisi e Mortara, citados por Tourinho Filho (1997, p. 218).
Porém, a teoria deve, nesse caso, buscar a conciliação com a praxis. Em fenômeno
semelhante ao que ocorre com a queixa, já se consagrou, no senso comum, a figura da
denúncia anônima, propalada por instituições oficiais de Segurança Pública e Defesa
Social como mecanismo de fomento à participação da comunidade na elucidação dos
crimes, sem necessidade de identificação ou sob promessa de sigilo.
Portanto, na técnica processual penal brasileira, denúncia (stricto sensu) “[...] significa a peça inaugural da ação penal, promovida pelo Ministério Público.” (TOURINHO
FILHO, 1997, p. 365). Porém, o próprio Código Penal utiliza o termo denúncia em
sentido lato, para designar a comunicação de fato criminoso à autoridade, conforme se
vê na rubrica do tipo de injusto capitulado no art. 339, em que se adjetiva de caluniosa
a denunciação. Denunciação como expressão do ato de denunciar, noticiar fato criminoso à autoridade, dar causa a instauração de procedimento oficial. Quando se fala em
denúncia anônima, então, tem-se a expressão tomada lato sensu9. Denúncia anônima
não é denúncia propriamente dita, mas modalidade de notitia criminis.
8
A doutrina se limita, sem maiores considerações, a reproduzir a lição de Frederico Marques (1988), que a classifica como
notitia criminis inqualificada. Ver: Mirabete (2004, p. 87); Pacheco (2005, p. 222); Capez (2004, p. 78).
9
A denúncia, stricto sensu, quando apócrifa, é ato processual inexistente, por ausência de imputação válida pelo órgão
de execução ministerial que não assina a peça inicial veiculadora da pretensão punitiva estatal. Denúncia apócrifa, nesse
sentido, equipara-se a denúncia assinada por quem não é Promotor (ou Procurador, conforme o caso) de Justiça, embora se
admita o suprimento da irregularidade, com a ratificação dos termos da denúncia oferecida pelo Parquet e, por descuido,
não assinada. A denúncia anônima, lato sensu, é o expediente utilizado por qualquer do povo, que intencionalmente não se
identifica, para levar ao conhecimento da autoridade notícia da prática de crime: delatio criminis anônima, cuja validade
jurídica é objeto de discussão deste trabalho. Com entendimento semelhante, porém evitando falar em “denúncia” fora da
hipótese de petição inicial (VILAS BOAS, 2001).
239
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. Ponderação de Bens Jurídicos em Conflito: Divergência Doutrinária e
Jurisprudencial
Por um lado, a Constituição Federal veda o anonimato – e o faz ao consagrar a liberdade de manifestação do pensamento. Por outro, há o interesse coletivo e o dever das
autoridades estatais no sentido de que os crimes sejam apurados e seus autores punidos. A denúncia anônima traz em si, portanto, aparente colisão de princípios constitucionais.
A denúncia anônima, ao transmitir à autoridade imputação de prática criminosa, instaura uma tensão dialética entre valores constitucionalmente agasalhados. Surge, com
a apresentação da delatio criminis anônima, estado de colisão de direitos, confrontando-se liberdades revestidas de envergadura jurídica equivalente. Necessário, pois,
definir a primazia de uma delas, sem que a outra seja completamente esvaziada. A
superação do conflito entre direitos essenciais, cujos titulares são sujeitos diversos,
deve-se basear em critérios que afastem o aparente antagonismo, com a utilização do
método da ponderação proporcional de bens, em atenção a cada caso concreto, sem
que isso importe no esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais10.
Lá, há a norma que veda o anonimato (art. 5º, IV, CF/88), buscando preservar, na liberdade de expressão, a incolumidade dos direitos da personalidade (honra, imagem,
intimidade). Aqui, postulados básicos, igualmente consagrados constitucionalmente,
buscando conferir efetividade à exigência de que os comportamentos sociais se ajustem à lei, dentro de determinados padrões ético-jurídicos agasalhados pelo próprio
sistema constitucional, donde se extrai o dever de atuação das instâncias formais de
controle da criminalidade.
Na exegese constitucional, tendente à superação do conflito axiológico – adverte Moraes, citando Canotilho –, deve-se buscar a concordância prática (ou harmonização)
dos interesses colidentes, coordenando-se e combinando-se os bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros (MORAES, 2001,
p. 42).
Sobre o tema, os Tribunais estão divididos. A Quinta Turma do Superior Tribunal de
Justiça (BRASIL, 2004a) já decidiu, por unanimidade, que não há ilegalidade na instauração de inquérito com base em investigações deflagradas por denúncia anônima,
eis que a autoridade tem o dever de apurar a veracidade dos fatos alegados, desde
que se proceda com a devida cautela, sobretudo quando a investigação e o inquérito
sejam conduzidos sob sigilo. No voto do Relator, consignou-se que se tratava de investigação da Polícia Federal (Operação Albatroz), deflagrada por denúncia anônima
que deu origem a inquérito policial. Instaurado o procedimento, foram determinadas
diversas diligências (entre elas a quebra de sigilos bancário, fiscal e telefônico), que,
10
Ver: Canotilho (1991, p. 661); Barroso (2001, p. 363-366); Sarmento (2000, p. 193-203).
240
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
renovadas, fundamentaram a prisão temporária dos investigados e busca e apreensão
(domiciliar e nos locais de trabalho). Para fundamentar a constitucionalidade do procedimento instaurado a partir da delação anônima, o Ministro entendeu que a base
para a instauração do inquérito não teria sido simplesmente a denúncia anônima, mas
sim o resultado das investigações conduzidas sob sigilo pela Polícia Federal a partir
daquela. Afirmou o relator, por fim, que “[...] a referida carta anônima não contaminou o restante do acervo probatório”, relativizando o alcance da teoria dos frutos da
árvore venenosa.
Já em outro feito, a Corte Especial (BRASIL, 2004b), por unanimidade, entendeu que
uma carta anônima não pode movimentar polícia e justiça sem afrontar a norma constitucional do art. 5º, IV. Cuidava-se, nesse caso, de inquérito policial instaurado com
base em delação anônima de supostos crimes praticados por Desembargadores do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Seguindo o voto do Relator, Ministro
Ari Pargendler, determinou-se o arquivamento dos autos do inquérito policial.
No julgamento de ação penal de sua competência originária, o Supremo Tribunal Federal ( BRASIL, 2005) admitiu, por maioria, a legitimidade de procedimento investigatório e ulterior processo penal inaugurados por delação anônima, observados alguns
parâmetros em cada caso concreto. Ao suscitar questão de ordem no julgamento do
Inquérito nº 1.957-7/PR, o Ministro Marco Aurélio se posicionou radicalmente contrário à validade do procedimento assim deflagrado, invocando, ao lado da vedação
constitucional, o disposto nas Leis nº 8.112/90 e nº 8.429/92 (art. 14) e na Resolução
sobre os procedimentos da Ouvidoria do STF, diplomas que também vedam a instauração de procedimentos a partir de delação anônima. Para Marco Aurélio, o denunciante que se esconde sob o anonimato não exerce um direito inerente à cidadania e
deixa de assumir responsabilidade que possa, em um passo seguinte, improcedente a
imputação, desaguar na denunciação caluniosa. A carta anônima, como defeito inicial,
contaminaria toda a persecução a partir do inquérito.
Assim, a questão de ordem levantada pelo Ministro Marco Aurélio, que acabou sendo
rejeitada por maioria, discutia a viabilidade da seqüência do próprio inquérito, em que
o elemento básico desencadeador da apuração de certos dados iniciais é uma carta
anônima:
Vivemos em um Estado Democrático de Direito e, no caso, a
Carta da República só prevê o sigilo quando ele é inerente à
própria atividade profissional desenvolvida. Não podemos imaginar a inauguração de uma época que se faça a partir do denuncismo irresponsável. Não podemos imaginar uma verdadeira época de terror em que, a partir de uma postura condenável,
chegue-se à persecução criminal (BRASIL, 2005).
No mencionado julgado, o Ministro Marco Aurélio diferenciava notícia de materialidade de imputação. Por exemplo, se há um telefonema anônimo comunicando à
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Polícia que, em tal lugar, há um cadáver ou está sendo praticado tráfico de drogas,
evidentemente a Polícia teria de verificar a procedência da informação, indo ao local
(notícia anônima de materialidade). Por outro lado, se há uma carta anônima atribuindo atos criminosos a determinada pessoa (imputação anônima de autoria), haveria o
prejuízo de tudo mais que fosse levantado a partir dela, não podendo a delatio criminis
gerar efeitos jurídicos válidos, tal como fundamentar a instauração de inquérito para
apuração dos fatos. Acompanhando o entendimento, o Ministro Eros Grau execrou a
validade de delação anônima.
Raciocínio análogo foi encampado pelo Ministro Cezar Peluso, para quem seria inadmissível a abertura de procedimento investigatório a respeito de um fato típico baseado em documento ilícito, que não deveria gerar nenhuma conseqüência jurídica. Uma
denúncia anônima não poderia ganhar forma como figura de juízo para dar início a
uma investigação de caráter formal, pois assim se proclamaria a irresponsabilidade
civil e penal do delator, que não responderia por acusação falsa. Sua conclusão é que
o ordenamento abomina e excomunga o anonimato, considerando-o um desvalor jurídico que, como tal, não poderia ser considerado para nenhum efeito. E cita o próprio
Código Penal, que mostraria reprovabilidade máxima ao anonimato ao agravar a pena
da denunciação caluniosa em tal circunstância. No exemplo citado, se o cadáver é
encontrado, começaria investigação válida. Abrir, porém, inquérito baseado em carta
anônima seria conferir valor jurídico a um objeto que nem documento pode ser considerado.
O Ministro Gilmar Mendes, embora concordando com o Ministro Cezar Peluso no
sentido de restringir-se a eficácia da denúncia anônima, defendeu que a situação deveria ser analisada em cada caso concreto. Noutro exemplo: há um contrato administrativo; se se informa à autoridade, em carta anônima, a existência de irregularidades em
procedimentos licitatórios, a informação, em suma, é da existência de contrato publicado no Diário Oficial. Lembra o Ministro que a lei de licitação determina que haja a
publicação da síntese ou extrato do convênio ou contrato, que poderá, a qualquer tempo, ser objeto de investigação ou questionamento, inclusive mediante ação popular.
Nesse caso, não se poderia concluir pela ilegalidade das investigações deflagradas por
delação anônima. É que, no caso, o inquérito instaurado prescinde da carta anônima,
haja vista que os atos (objeto de investigação) são públicos.
Já o Ministro Nelson Jobim defendeu que não se formulasse, sobre o tema, tese in
abstracto, decidindo-se caso a caso, em atenção às particularidades de cada situação
concreta. Para Jobim, a denúncia anônima pode desencadear atividades de investigação. O que não se admite é que seja autuada como documento lícito capaz de, ao gerar
conseqüências jurídicas, originar um procedimento formal de investigação. Ou seja,
não admite a abertura de inquérito com base em carta anônima.
Para o Ministro Carlos Britto, pode haver investigação a partir de denúncia anônima; embora não se possa admitir uma denúncia, peça inicial do processo penal, ex-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
clusivamente baseada numa notitia criminis anônima – admitindo que a cidadania,
como ponto de partida, pode manifestar-se anonimamente, em colaboração para com
o Poder Público no desvendamento de atos ilícitos, devendo-se analisar em cada caso
concreto.
O Ministro Sepúlveda Pertence, a seu turno, formulou indagação sobre a ação que
se espera da Polícia diante de telefonema anônimo em que se comunique haver um
cadáver ou ocorrência de seqüestro em determinado lugar. Estaria a Polícia impedida
de verificar a informação? Partindo de tal questionamento, demonstra que o princípio
da vedação do anonimato, posto que nobilíssimo, não pode ser levado às últimas conseqüências. Se uma carta anônima informa a existência de contratos administrativos
celebrados sem licitação, é como se dissesse que há um cadáver em determinado
lugar. A materialidade do crime seria, em tese, a documentação dos contratos. Embora
não se possa intimar o delator anônimo, pode-se verificar se existe o fato material
noticiado, cujo resumo é de publicação obrigatória no órgão oficial de imprensa. Para
Pertence, a delação anônima não tem validade nem como prova, nem como elemento
de informação da persecução penal, caso contrário haveria violação aos princípios
constitucionais do processo. Por outro lado, defende que a delação anônima não isenta
a autoridade que a tenha em mãos dos cuidados para apurar sua verossimilhança e, a
partir daí, instaurar o procedimento formal. Até porque – argumenta – se o art. 340 do
Código Penal prevê causa de aumento de pena para o denunciante que se vale do anonimato, é que a delação anônima pode, sim, dar margem à deflagração da investigação
– embora não seja prova nem informação confiável por si só.
Carlos Velloso, para ilustrar seu ponto de vista, reproduz exemplo dado, noutra oportunidade, por Sydney Sanches: mediante interceptação telefônica não-autorizada, descobre-se um cadáver de mulher, que estava desaparecida; numa das mãos há cabelos;
a mulher morrera lutando; faz-se exame de DNA e localiza-se o assassino. As investigações poderiam prosseguir? Para o Ministro Carlos Veloso sim, por aplicação dos
princípios da razoabilidade e proporcionalidade. É o que ocorreria, mutatis mutandis,
nos casos de denúncia anônima contra criminosos perigosos, narcotraficantes etc. A
notícia do crime seria inicialmente tratada sob sigilo, propiciando investigações válidas, com a observância do princípio da proporcionalidade.
O voto do Ministro Celso de Mello merece maior atenção e destaque. Observa o
ilustre Ministro que a proibição constitucional do anonimato busca impedir abusos no
exercício da liberdade de expressão, aí incluída a denúncia anônima. Ao se exigir a
identificação, busca-se a possibilidade de responsabilização do delator pelos excessos.
Cuida-se de norma positivada no sistema constitucional brasileiro desde a primeira
Carta Republicana (art. 72, § 12, CF/1891), que tem como único escopo permitir
que o autor de escrito ou publicação possa submeter-se às conseqüências jurídicas
derivadas de seu comportamento abusivo, em defesa do patrimônio moral das pessoas
agravadas11. A vedação do anonimato, assim, traduz medida constitucional destinada
a desestimular manifestações abusivas do pensamento, de que poderiam decorrer gra11
Ver: Maximiliano (1918, p. 713); Miranda (1995, p. 128); Silva (1997, p. 238).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
vames a terceiros, desrespeitados em sua esfera de dignidade.
Nesse contexto, sustenta o Ministro Celso de Mello (BRASIL, 2005) que nada impede
que a autoridade, recebendo denúncia anônima, adote medidas informais, “[...] com
prudência e discrição”, destinadas à apuração prévia e sumária da notícia de crime,
com o objetivo de posterior instauração do procedimento penal. Desse modo, haveria
a desvinculação da delação formulada por autor desconhecido, que não é ato de natureza processual, da investigação estatal (informatio delicti). Disso resultaria a impossibilidade de o Estado dar início à persecução criminal tendo por único fundamento
causal a denúncia anônima. A exemplo do que sucede na Itália, sustenta, com apoio no
magistério de Leone (1937), que “[...] os documentos e escritos anônimos não podem
ser formalmente incorporados ao processo, não se qualificam como atos processuais e
deles não se pode fazer qualquer uso processual”:
[...] após reconhecer o desvalor e a ineficácia probante dos escritos anônimos, desde que isoladamente considerados, admite,
no entanto, quanto a eles, a possibilidade de a autoridade pública, a partir de tais documentos e mediante atos investigatórios
destinados a conferir a verossimilhança de seu conteúdo, promover, então, em caso positivo, a formal instauração da pertinente persecutio criminis, mantendo-se, desse modo, completa
desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças
apócrifas que forem encaminhadas aos agentes do Estado, salvo
[...] se os escritos anônimos constituírem o próprio corpo de
delito ou provierem do acusado. (LEONE, 1937, p. 562).
Conclui, então, diante de revelação anônima de fatos revestidos de aparente ilicitude
penal, pela possibilidade de o Estado adotar medidas sumárias de investigação, destinadas a esclarecer a idoneidade e verossimilhança da delação, que, se confirmada,
dará ensejo à instauração do procedimento formal, diante da observância do postulado
da legalidade e do dever da autoridade, consideradas razões de interesse público, de
apurar a verdade real em torno da materialidade e autoria de fatos criminosos. Os
escritos anônimos não justificam, só por si, isoladamente considerados, a instauração
da persecutio criminis, já que não podem ser incorporados formalmente ao processo
– salvo quando produzidos pelo acusado ou quando constituírem, eles próprios, o
corpo de delito (solicitação de resgate na extorsão mediante seqüestro; cartas que evidenciam ofensas à honra, veiculam ameaças ou corporificam o crimen falsi etc.).
Não só na orientação pretoriana; também na doutrina há divergência. Há quem negue
validade jurídica à denúncia anônima. Tourinho Filho (1997, p. 218) argumenta:
[...] se o nosso CP erigiu à categoria de crime a conduta de
todo aquele que dá causa à instauração de investigação policial
ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de
que o sabe inocente, como poderiam os ‘denunciados’ chamar à
responsabilidade o autor da delatio criminis, se esta pudesse ser
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
anônima? A vingar entendimento diverso, será muito cômodo
para os salteadores da honra alheia vomitarem, na calada da
noite, à porta das Delegacias, seus informes pérfidos e ignominiosos, de maneira atrevida, seguros, absolutamente seguros da
impunidade. Se se admitisse a delatio anônima, à semelhança
do que ocorria em Veneza, ao tempo da inquisitio extraordinem, quando se permitia ao povo jogasse nas famosas ‘Bocas
dos Leões’ suas denúncias anônimas, seus escritos apócrifos, a
sociedade viveria em constante sobressalto, uma vez que qualquer do povo poderia sofrer o vexame de uma injusta, absurda e
inverídica delação, por mero capricho, ódio, vingança ou qualquer outro sentimento subalterno.
Em sentido oposto, manifestam-se Marques (1998, p. 147), Tucci (1980, p. 34) Mirabete (2004, p. 87) e Capez (2004, p. 78), respectivamente:
No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a comunicação falsa de crime (Código Penal, arts.
339 e 340), o que implica a exclusão do anonimato na notitia
criminis, uma vez que é corolário dos preceitos legais citados
a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva e
ilicitamente.
Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais
de investigação da autoridade policial, quando delação anônima
lhe chega às mãos, uma vez que a comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de possibilitar
diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou
seu autor. Se, no dizer de G. Leone, não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos processuais, não servindo ele de
base à ação penal, e tampouco como fonte de conhecimento do
juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses, a autoridade
policial, com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias. Cumpre-lhe, porém, assumir a responsabilidade da
abertura das investigações, como se o escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido notitia criminis
inqualificada.
Não deve haver qualquer dúvida, de resto, sobre que a notícia
do crime possa ser transmitida anonimamente à autoridade pública [...].
[...] constitui dever funcional da autoridade pública destinatária
da notícia do crime, especialmente a policial, proceder, com a
máxima cautela e discrição, a uma investigação preambular no
sentido de apurar a verossimilhança da informação, instaurando o inquérito somente em caso de verificação positiva. E isto,
como se a sua cognição fosse espontânea, ou seja, como quando
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
se trate de notitia criminis direta ou inqualificada.
Nada impede [...] a notícia anônima do crime [...]. Na hipótese,
porém, constitui dever funcional da autoridade pública destinatária, especialmente a policial, proceder, com a máxima cautela
e discrição, a uma investigação preliminar no sentido de apurar
a verossimilhança da informação, instaurando o inquérito somente em caso de verificação positiva.
A delação anônima (notitia criminis inqualificada) não deve ser
repelida de plano, sendo incorreto considerá-la sempre inválida; contudo, requer cautela redobrada por parte da autoridade
policial, a qual deverá, antes de tudo, investigar a verossimilhança das informações.
Quanto ao argumento de direito material, temos a lição de Hungria (1958, p. 466):
Segundo o §1º do art. 339, ‘A pena é aumentada de sexta parte,
se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto’. Explica-se: o indivíduo que se resguarda sob o anonimato ou nome
suposto é mais perverso do que aquele que age sem dissimulação. Ele sabe que a autoridade pública não pode deixar de
investigar qualquer possível pista (salvo quando evidentemente
inverossímil), ainda quando indicada por uma carta anônima
ou assinada com pseudônimo; e, por isso mesmo, trata de esconder-se na sombra para dar o bote viperino. Assim, quando
descoberto, deve estar sujeito a um plus de pena.
Percebe-se, claramente, que a melhor interpretação não é encontrada na visão de um
único dispositivo constitucional, isoladamente, mas no cotejo do entrelaçamento de
valores que defluem do texto constitucional, sistemática e principiologicamente orientado.
2.1. A Denúncia Anônima e a Vedação Constitucional ao Anonimato
A Constituição Federal consagra a liberdade de pensamento e expressão, mas veda,
expressamente, a manifestação anônima. Historicamente, a vedação do anonimato
parece se dirigir, em especial, à liberdade de crítica, de imprensa, de opinião, viabilizando a responsabilização em face de excessos que atinjam direitos de terceiros:
dignidade, honra, imagem, vida privada etc.
Não se pode negar à notícia de crime, endereçada à autoridade por qualquer instrumento de comunicação (telefone, correspondência manuscrita, impressa ou eletrônica
etc.), a qualidade de manifestação do pensamento. A rigor, o cidadão que faz uso da
prerrogativa da delação deve se identificar. Essa é a regra. Não se pode negar, todavia,
que em situações peculiares ou excepcionais, o cidadão pode contribuir com a autoridade pública, na defesa dos interesses sociais de controle da criminalidade, sob o ano-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
nimato. É o que sucede, por exemplo, nos casos em que a revelação de sua identidade
poderia comprometer concretamente sua própria segurança, não havendo efetividade,
nesses casos, dos programas oficiais de proteção de testemunhas.
Há situação de colisão de interesses jurídico-constitucionais, que deve ser afastada
pelo critério da proporcionalidade. Nesse caso, a limitação a direito individual do
delatado só tem razão de ser se a delação materializar valores igualmente relevantes
do sistema constitucional.
No processo de elaboração e conceituação do princípio da proporcionalidade, consagrou-se a idéia de que o exercício do poder-dever estatal é limitado, justificandose restrições a direitos individuais somente por razões de necessidade, adequação e
prevalência do valor a ser protegido em confronto com aquele a ser restringido. Além
disso, a medida restritiva deve ser imposta, quando a lei o exigir, por decisão judicial,
sempre motivada, em qualquer caso, pelas circunstâncias concretas.12
Daí se pode registrar, numa primeira análise, que a notícia anônima de crime viola,
em tese, o disposto no art. 5º, IV, da CF/88 e, como tal, não pode fundamentar, isoladamente, a instauração de inquérito policial ou a determinação judicial de medida que
restrinja direito constitucionalmente assegurado (inviolabilidade do domicílio, do sigilo fiscal, bancário, das comunicações telefônicas, de dados etc.). Isso não significa,
embora possa parecer paradoxal, que toda e qualquer notícia anônima de crime seja
desconsiderada pela autoridade destinatária. Ao contrário, recebendo delação anônima, a autoridade tem o dever de verificar seu conteúdo e sua procedência – leia-se,
verossimilhança das informações –, mediante a utilização de recursos ordinários de
investigação que não violem frontalmente as liberdades públicas instituídas constitucionalmente. Confirmada a fidedignidade da delação, o procedimento formal será
deflagrado, desvinculando-se a instauração e os conseqüentes elementos de convicção
da notícia anônima original.
Com essa interpretação, o princípio da proporcionalidade não esvazia o conteúdo garantista das liberdades constitucionais. Ao contrário, complementa o princípio da reserva legal e reafirma o Estado de Direito, harmonizando os interesses constitucionais
aparentemente conflitantes (BARROS apud FERNANDES, 2003).
3. A Denúncia Anônima e a Vedação Constitucional à Obtenção Ilícita
de Provas
O art. 5º, LVI, CF/88, proclama a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. A vedação alcança tanto as provas obtidas com violação à norma de direito material (prova ilícita propriamente dita) quanto de direito processual (prova ilegítima).
12
A doutrina aponta dois pressupostos essenciais para a atuação do princípio da proporcionalidade: um, formal, o da legalidade; outro, material, o da justificação teleológica (a limitação a direito individual só tem razão de ser se tiver como
objetivo efetivar valores relevantes do sistema constitucional) (CUELLAR SERRANO apud FERNANDES, 2003).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
O sistema consagrado entre nós, no processo, é o do livre convencimento motivado,
em que não há hierarquia prévia dos meios de prova. A liberdade probatória e o livre
convencimento encontram na Constituição, porém, a limitação de seu alcance.
Uma prova, embora tomada e considerada em si mesma como lícita, a priori, não se
reveste de idoneidade jurídica como meio de convencimento válido do Julgador, se a
ela se chegar por intermédio de outra prova, sendo esta, a precedente, obtida ilicitamente. Nesses casos, ainda que em prejuízo da verdade material, mas na afirmação do
interesse coletivo de respeito às liberdades públicas, deve ser descartada e repudiada
– por mais relevantes que sejam os fatos nela consubstanciados (BRASIL, 1995).13
Embora com repúdio de setor significativo da jurisprudência pátria (BRASIL, 1997),
advoga-se a aplicação do princípio da proporcionalidade para que a prova obtida por
meio ilícito seja considerada, em hipóteses de caráter excepcional e em casos extremamente graves, ao argumento de que nenhuma liberdade pública é absoluta. Seria
possível, portanto, excepcionalmente, ponderar bens em conflito, prestigiando-se interesses de maior envergadura social em detrimento de individuais mais estreitos,
como intimidade, sigilo de dados, liberdade de comunicação etc. (MORAES, 2001, p.
124). Essas garantias são estabelecidas para o exercício de direitos, não para instrumentalização de crimes.
Várias inviolabilidades são previstas na Constituição como garantias de resguardo de
direitos fundamentais: intimidade, vida privada, honra, imagem (art. 5º, XII e XLIX),
domicílio (art. 5º, XI), sigilo das comunicações e dos dados (art. 5º, XII). A violação
dessas garantias, se empreendida na persecução penal, renderia ensejo à formação de
prova ilícita. Fernandes (2003, p. 83), sobre o tema, comenta:
Em virtude do grande desenvolvimento da tecnologia, a vida
privada, a intimidade, a honra da pessoa humana tornou-se mais
facilmente vulnerável. Isso impõe ao legislador cuidado para,
na outorga de mecanismos hábeis a eficiente repressão à criminalidade, não autorizar invasões desnecessárias ou desmedidas
na vida da pessoa.
Não é fácil, contudo, atingir o ponto de equilíbrio. De um lado,
é necessário armar o Estado de poderes suficientes para enfrentar a criminalidade, crescente, violenta, organizada; por outro,
deve o cidadão ter garantida a sua tranqüilidade, a sua intimidade, a sua imagem, e, principalmente, ser dotado de remédios
eficazes para se contrapor aos excessos e abusos dos órgãos
oficiais.
Não se pode, em nome da segurança social, compreender uma
garantia absoluta da privacidade, do sigilo, no processo penal,
mas também não se pode conceber, em homenagem ao princípio da verdade real, que a busca incontrolada e desmedida da
13
No mesmo sentido o voto do Ministro Celso de Mello.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
prova possa, sem motivos ponderáveis e sem observância de
um critério de proporcionalidade, ofender sem necessidade o
investigado ou o acusado em seus direitos fundamentais e no
seu direito a que a prova contra si produzida seja obtida por
meios ilícitos.
Do confronto entre a vedação da prova obtida por meio ilícito e a proibição do anonimato, ambas erigidas ao plano constitucional, conclui-se que à delação anônima não
se pode emprestar qualquer valor probatório. O raciocínio contrário representaria o
aniquilamento do conteúdo da norma constitucional e, conseqüentemente, de garantia
individual fundamental, o que não se admite, ainda que ao argumento da proporcionalidade.
De outra banda, não se pode olvidar que, em casos excepcionais, o cidadão não pode
contribuir com a apuração de crimes, alguns com severa danosidade social, identificando-se. O Estado não pode, a seu turno, prescindir dessa cooperação.
Nesse sentido, com a aplicação legítima do princípio da proporcionalidade, a despeito
de não possuir, propriamente, valor probatório, a denúncia anônima é instrumento
válido para deflagração do poder investigativo do Estado. Sem que, a partir dela,
isoladamente, determine-se a abertura de inquérito, autorizem-se medidas judiciais
restritivas de garantias constitucionais ou formule-se em juízo a pretensão punitiva.
Se a delação anônima não tem valor probante, também não se submete, por outro lado,
ao crivo da vedação à obtenção ilícita de provas. Noutras palavras, a conjugação dos
incisos IV e LVI do art. 5º da Constituição Federal impede a consideração da delação
anônima para a formação da convicção do julgador sobre o mérito da imputação, mas
não impede que a autoridade pública seja acionada para que, verificada a procedência das informações, instaure-se, com base nessa investigação preliminar informal, o
regular procedimento inquisitivo. Obviamente, as provas reunidas durante a investigação serão tomadas desvinculadas da delação anônima, analisadas em si mesmas
quanto à sua licitude.
3.1. Obtenção Ilícita de Provas e Nulidade Derivada
O problema que surge da admissibilidade da investigação deflagrada por denúncia
anônima diz respeito à aplicação da teoria dos frutos da árvore venenosa (fruits of the
poisonous tree). Vimos que a denúncia anônima não possui, por si só, força probatória. Não pode fundamentar, isoladamente, sem o apoio em outros elementos de informação – ainda que dela decorrentes – instauração de procedimento formal de investigação criminal sem contrariar o mandamento constitucional que veda o anonimato.
Se a considerássemos prova obtida por meio ilícito, porque contrária à Constituição,
ainda assim deveríamos delimitar a conseqüência da sua imprestabilidade, definindo
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
se haveria contaminação de todas as demais provas dela resultantes. É pertinente a indagação: incidiria, na hipótese, a comunicabilidade da ilicitude das provas, aplicação
do princípio da conseqüencialidade em matéria probatória?
Embora a posição majoritária do STF seja no sentido de que a prova ilícita originária,
sendo nula, contamina as provas dela decorrentes14, que seriam nulas por derivação,
a questão da denúncia anônima deve ser resolvida sob o prisma da ponderação proporcional dos bens conflitantes. Sabemos que as liberdades públicas não podem ser
usadas como escudo protetor para acobertar a prática de atividades ilícitas (MORAES, 2001, p. 127).
Não há uma causalidade (ou conseqüencialidade) inexorável entre a denúncia anônima e as provas produzidas no procedimento investigatório por ela deflagrado. Isso
se dá também porque a denúncia anônima não traduz, em si mesma, modalidade probatória. Há, nela, apenas notícia de fato em tese criminoso que pode ser comprovado
pelos meios idôneos previstos na legislação. Na denúncia anônima, não temos ofensa
direta a qualquer das inviolabilidades públicas asseguradas constitucionalmente (casa,
comunicações telefônicas, dados bancários ou fiscais etc.), para além da esfera de
intimidade individual.
A denúncia anônima, sobretudo quando traz notícia de fatos de significativa nocividade social, não possui qualquer valor processual em si mesma. Apenas traduz, para a
autoridade, o dever de diligenciar, em apuração perfunctória, superficial e sumária, a
verossimilhança da informação. Ou seja, implica o dever de averiguar a existência do
crime para posterior comprovação de sua materialidade e autoria em sede de investigação criminal formal. O inquérito policial decorrente será instaurado com base nos
elementos de informação, colhidos nessa apuração prévia – verificação de procedência das informações, na dicção do Código de Processo Penal.
Essa desvinculação das provas em relação à denúncia anônima originária se estabelece axiologicamente, numa exegese constitucional teleologicamente orientada para
a consagração dos valores constitucionais que têm por fundamento a supremacia do
interesse público sobre o privado – sem que isso represente, no caso da denúncia
anônima, esvaziamento do conteúdo de quaisquer garantias individuais. Noutras palavras, tal hermenêutica se fundamenta no princípio da proporcionalidade, que, no
caso, opera a desvinculação – a quebra da causalidade (ou conseqüencialidade) –,
impedindo a contaminação das provas legitimamente reunidas no inquérito policial
(MOREIRA, 1997).
Afinal, não se pode ignorar a existência de um fato ilícito somente em função da
procedência do seu conhecimento (BRASIL, 2004). A denúncia anônima não é prova,
mas notícia de fato criminoso que se pode (ou não) validamente comprovar. Não há
vício de origem capaz de contaminar toda a persecução.
14
Ver: (BRASIL, 1993a; 1993b; 1996a; 1996b; 1997).
250
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A verificação da procedência das informações autoriza o descarte da delação, substituindo-a por completo, de modo que as investigações formalmente instauradas nascem desvinculadas, normativamente (à luz da proporcionalidade), da notícia inaugural, em homenagem ao interesse social de apuração dos fatos criminosos.
No que diz respeito à denúncia anônima, desde que respeitados determinados parâmetros e observados certos critérios, de acordo com o raciocínio que vem sendo
estruturado até aqui, não há o risco de sua aceitação constituir estímulo à violação
de garantias individuais fundamentais, como ocorreria, por exemplo, na admissão de
confissão obtida por tortura, de prova testemunhal prestada em escuta telefônica clandestina etc.
A prevalecer tese contrária, bastaria que o criminoso providenciasse sua denúncia
anônima ou formulasse, ele próprio, auto-acusação anônima para impedir o sucesso
da investigação contra sua pessoa, pois tudo que viesse a ser produzido seria considerado ilícito em virtude de contaminação – no caso, forjada (FERNANDES, 2003,
p. 89).
Por fim, vale lembrar que o nexo que une a notícia de crime, os elementos de formação da opinio delicti no inquérito e as provas no processo é normativo. Da mesma maneira, na teoria do Direito Processual, o liame entre uma prova e outra, dela derivada,
não é ontológico. O princípio da proporcionalidade, assim, atua como elemento de
aperfeiçoamento e interpretação axiológica do nexo entre as provas, desvinculando,
normativamente, a notícia de crime das provas produzidas na persecução penal.
Há, assim, no tema da denúncia anônima, uma relativização da teoria dos frutos da
árvore venenosa, não sua negação. Com isso, estabelecemos, no plano teórico, o princípio da incomunicabilidade normativa da ilicitude das provas em referência à notícia
do crime, por atuação do postulado da proporcionalidade.
4. Critérios de Validade das Investigações Originadas de Denúncia Anônima
4.1. Necessidade de Registro e Controle da Notícia Anônima pelos Órgãos de
Defesa Social: Anonimato ou Sigilo?
Quem delata (apresenta notitia criminis), dando causa à abertura de inquérito policial,
exerce um direito (art. 5º, II e §§1º e 5º, CPP), e exercendo regularmente esse direito, não pratica crime, sendo suficiente a verdade subjetiva para afastar o dolo, como
leciona Bitencourt (2004, p. 517). Com efeito, o legislador não poderia incriminar
conduta identificada pelo exercício regular do direito de petição.
Por outro lado, quando o agente dá causa a instauração de inquérito em desfavor de
sujeito passivo determinado, conhecendo sua inocência e imputando-lhe a prática de
crime, pratica infração contra a administração da Justiça. A norma constitucional que
251
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veda o anonimato é concretizada, no plano infraconstitucional, para os fins do direito
penal, com a responsabilidade do denunciante caluniador, assim entendido, na dicção
do art. 339 do Código Penal, quem dá causa à instauração de investigação policial, de
processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação
de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe
inocente. Se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto, a pena é aumentada
(§ 1º).
Isso nos leva à conclusão de que a autoridade pública que recebe notícia de crime deve
providenciar o registro da qualificação do delator, quando se identificar, ou dos dados
acessíveis quando da transmissão da notícia, para a hipótese de necessidade futura de
identificação, de acordo com o meio utilizado para a comunicação do fato.
Se o Poder Público fomenta a participação da comunidade na apuração de crimes e
identificação de seus autores, mediante serviços especiais (disque-denúncia, sítios na
internet etc.), deve estruturá-los em obediência à legislação. Vale dizer, primeiro deve
informar ao cidadão se a notícia anônima de crime será admitida e verificada. Deve,
além disso, diferenciar entre as hipóteses em que não é necessária a identificação do
delator e as que sua identificação será mantida sob sigilo. Finalmente, nos dois casos,
deve manter registro da origem da notícia, de acordo com os recursos tecnológicos
compatíveis (como endereço eletrônico do remetente de e-mail, número de telefone
identificado e gravação da chamada originada etc.).
Essas providências mínimas, de um lado, permitiriam a comprovação de que a notícia
do crime foi espontaneamente apresentada por qualquer do povo, desestimulando a
produção de prova ilegal e clandestina pelo aparato policial (como escutas telefônicas
desautorizadas etc.), que poderiam ser artificialmente transformadas em denúncias
anônimas. De outro, possibilitariam investigações futuras de identificação do delator,
para a hipótese de sua responsabilidade por denunciação caluniosa.
Caso contrário, a norma do §1º do art. 339 do Código Penal seria letra morta.
4.2. Necessidade de Verificação de Procedência das Informações
A denúncia anônima não pode fundamentar, direta e imediatamente, ato formal de persecução penal, seja no inquérito, seja no processo. Ao receber a delação, a autoridade
deve verificar se a notícia de crime veiculada apresenta, no contexto fático, qualquer
indício de verossimilhança. Não se exige uma confirmação em nível de certeza, mas
de possibilidade concreta, consubstanciada em circunstâncias fáticas que indiquem a
materialidade do crime e levantem suspeita de autoria.
Embora a regra seja a publicidade dos atos processuais, aí incluído o inquérito policial,
é da essência da investigação ser ela sigilosa. A autoridade poderá se valer, portanto,
para verificação da procedência das informações veiculadas em denúncia anônima, de
qualquer modalidade lícita de investigação, ressalvadas as hipóteses constitucionais
de inviolabilidades. Ou seja, a autoridade policial, apoiada estritamente na denúncia
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anônima, não poderá pleitear a expedição de mandado de busca e apreensão domiciliar, a quebra do sigilo das comunicações telefônicas etc., mas poderá efetuar levantamentos de campo, infiltrar agentes, realizar campanas e buscas pessoais, entrevistar
pessoas, de modo a reunir, ainda que em simples comunicação de serviço firmada por
agentes de polícia, elementos de convicção capazes de fundamentar o início do procedimento formal de investigação, com todas as medidas a ele inerentes.
Dessa maneira, a denúncia anônima será descartada do ponto de vista processual. A
verificação da procedência das informações substituirá, para os fins da persecução
criminal, integralmente a delação anônima, desvinculando totalmente o procedimento
e as provas nele produzidas da notitia criminis original. Em suma, a mediação entre a
denúncia anônima e as provas produzidas a partir da investigação formal é feita pela
verificação da procedência das informações.
4.3. Denúncia Anônima como Fundamento de Busca e Apreensão Domiciliar,
Quebra do Sigilo das Comunicações Telefônicas, de Dados Bancários ou Fiscais
e Medidas Assecuratórias
O ordenamento jurídico-constitucional protege de violação vários interesses, erigidos, então, ao ápice da hierarquia das normas. É o que acontece com a casa, com a
privacidade das comunicações, com os dados bancários, fiscais, patrimoniais etc. Algumas encontram disciplina legal específica, outras se incluem na previsão genérica
da proteção da vida privada e da intimidade (art. 5º, X, CF/88). Esses interesses ou
bens, integrantes do patrimônio jurídico do cidadão, não são protegidos de maneira
absoluta, a despeito da inclusão no nível constitucional.
Sempre que houver necessidade de preservar outro bem de maior valor, também amparado constitucionalmente, a aferição da justa causa para violação será apreciada em
cada caso concreto, de acordo com o princípio da proporcionalidade.
A própria Constituição autoriza a busca e apreensão domiciliar precedida por ordem
judicial e executada durante o dia, embora a casa seja o asilo inviolável do indivíduo. A interceptação telefônica, admitida pela Constituição Federal nos termos da
lei (art. 5º, XII, CF/88), tem suas hipóteses de admissibilidade reguladas pela Lei nº
9.296/96.
Em todos os casos em que a Constituição assegura determinado interesse com a chancela da inviolabilidade, a denúncia anônima não pode fundamentar decisão judicial
em sentido oposto, ressalvadas hipóteses excepcionalíssimas. É que a busca e apreensão cumprida em domicílio, a interceptação telefônica e a quebra do sigilo de dados de
uma maneira geral, exigem um mínimo razoável de indícios de atividade criminosa.
Se há notícia anônima de comércio de drogas ilícitas numa determinada casa, a Polícia
deve, antes de representar pela expedição de mandado de busca e apreensão, proceder
a diligências veladas no intuito de reunir e documentar outras evidências que confir-
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mem, indiciariamente, a notícia. Se confirmadas, com base nesses novos elementos de
informação, o Juiz deferirá o pedido; se não confirmadas, não será possível violar o
domicílio, sendo a expedição de mandado desautorizada pela ausência de justa causa.
O mandado expedido exclusivamente com apoio em denúncia anônima será abusivo.
O mesmo raciocínio se aplica à interceptação telefônica, mormente porque a lei não
admite, por disposição expressa (art. 2º, Lei nº 9.296/96), a determinação judicial da
medida quando não houver indícios razoáveis de infração penal punida com reclusão
e quando a prova puder ser feita por outros meios disponíveis, vale dizer, meios que
não se contraponham a inviolabilidade constitucionalmente assegurada.
Também às medidas assecuratórias previstas no art. 125 e seguintes do Código de
Processo Penal se aplica a assertiva da impossibilidade de deferimento com base em
notícia anônima, exclusivamente. Tais medidas são autênticas cautelares, que reclamam, por isso, demonstração in concreto de sua necessidade. Necessidade que se
apóia na presença de indícios veementes (art. 126, CPP) ou, na expressão genérica
aplicável às medidas instrumentais correlatas, fumaça do bom direito. O regime das
medidas acautelatórias, por isso, é incompatível com a determinação judicial apoiada
apenas em denúncia anônima.
4.4. Denúncia Anônima e Prisão Provisória
Denomina-se prisão provisória a prisão de natureza cautelar, decretada durante a persecução criminal; não se pode confundir, aqui, a privação provisória da liberdade
com a pena privativa de liberdade (a prisão como sanção jurídica prevista no preceito secundário da norma penal incriminadora). A finalidade da prisão provisória, em
suas diversas modalidades, é de índole processual, devendo ser examinada, portanto,
mediante fundamentos e princípios próprios, fora da teoria da pena, que é aspecto
atinente à parte geral do Código Penal.
O Código de Processo Penal de 1942, originariamente, adotava a rigidez em matéria
de prisão: a regra era a prisão ser mantida; a exceção, a liberdade provisória. Com
as alterações posteriores, entre elas as decorrentes do advento da CF/88, o sistema
passou a adotar a liberdade provisória como regra, admitindo, em caso de excepcional
necessidade, a prisão.
A doutrina aponta cinco modalidades de prisão provisória15: flagrante (art. 301 e segs.,
CPP); preventiva (art. 311 e segs., CPP); em virtude de pronúncia (art. 408, §1o, CPP);
decorrente de condenação recorrível (art. 393, I, e 594, CPP); e temporária (Lei nº
7.960/89). As duas primeiras (flagrante e preventiva) encontram-se previstas no título
IX do Código de Processo Penal. Todavia, ainda àquelas previstas fora do título IX
15
Prisão provisória é o gênero que tem como espécies as cinco modalidades aqui expostas. Deve-se observar que prisão
especial é uma modalidade não de prisão provisória, mas de cumprimento de prisão provisória. Pode ser acolhida, ainda,
como sucedâneo da prisão provisória, e está prevista no art. 295, do CPP, (além de outras leis extravagantes), em dispositivo de duvidosa constitucionalidade.
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(“da prisão”), aplicam-se as disposições gerais do capítulo I do Título IX.
A prisão pode ser cumprida a qualquer momento (dia ou noite), respeitadas as normas
sobre inviolabilidade do domicílio (art. 5o, XI, CF/88): a casa é asilo inviolável, salvo
hipóteses de flagrante, desastre, socorro e ordem judicial (durante o dia). Pode a prisão
provisória ocorrer com apoio exclusivo em denúncia anônima?
4.4.1. Denúncia Anônima e Prisão em Flagrante
A CF/88 prevê a prisão em flagrante, sem, contudo, explicitar-lhe o conteúdo. A elaboração do tipo processual, portanto, é deixada a cargo do legislador infraconstitucional – sendo recepcionado, então, o art. 302 do CPP. O elemento temporal é essencial à
configuração do estado de flagrância que autoriza a prisão. Verifica-se que os incisos
do art. 302, do CPP, dilatam, progressivamente, o limite temporal caracterizador do
flagrante delito.16
Presente a tipicidade processual, ou seja, se a situação de fato se amolda à descrição
abstrata da lei processual, a prisão será legal; do contrário, ilegal, independente dos
elementos de convicção coletados por ocasião da confecção da lavratura do respectivo
auto pela autoridade policial. Da mesma forma, se a seqüência procedimental prevista
no art. 304, do CPP, for desrespeitada, a prisão em flagrante também será viciada17, em
ofensa ao princípio da legalidade das formas.
Se a autoridade recebe denúncia anônima de que um crime está sendo cometido em
determinado lugar, acessível ao público, deve comparecer ao local, verificando a procedência das informações. Constatada a prática de crime e presente o aspecto temporal do flagrante, caracterizado por qualquer dos incisos do art. 302, do CPP, a prisão
será válida. Idêntico raciocínio se aplica no caso de denúncia anônima de prática de
crime no interior de residência, haja vista que a própria Constituição autoriza a violação do domicílio quando há situação de flagrante delito.
Na prática, porém, a autoridade deve atuar com redobrada cautela, pois não terá como
verificar a procedência das informações ingressando na residência contra a vontade
de seu morador. Na hipótese corriqueira, por exemplo, de denúncia anônima de tráfico
ilícito de drogas em residência, deve a autoridade certificar-se de que há indícios de
mercancia no local, por meio de diligências sigilosas nas imediações, materializandoos a posteriori (comunicação de serviço circunstanciada dos investigadores, registro
16
Não é supérfluo frisar que o limite de 24h consolidado na cultura popular não corresponde à apreciação técnica do
flagrante.
17
Confrontando o estudo da prisão provisória com o da liberdade provisória, convém notar que a prisão ilegal deve ser
atacada com o pedido de relaxamento de prisão em flagrante (ou, eventualmente, habeas corpus), restituindo-se ao preso
sua liberdade genuína e incondicional (não provisória). A prisão legal (flagrante) poderá ser desfeita com o pedido de
“liberdade provisória – com ou sem fiança” (eventualmente, habeas corpus). Já a prisão preventiva, insubsistentes os
requisitos ou os motivos de sua decretação, desafia o pedido de revogação da prisão preventiva (eventualmente, habeas
corpus). Percebe-se que o habeas corpus (ação autônoma de impugnação, de índole constitucional) é cabível sempre que
se verificar restrição (ou ameaça) ilegal ao status libertatis.
255
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
em boletim de ocorrência policial de busca pessoal em supostos usuários etc.). Com
apoio nesses indícios concretos, recomenda-se que represente pela expedição de mandado de busca e apreensão domiciliar. Ainda que pudesse ingressar na residência para
efetuar prisão em flagrante dos responsáveis pelo tráfico, no caso de não ser apreendida a droga, prejudicada a materialidade, prejudicada estaria também a legalidade da
medida, acarretando inclusive responsabilidade por abuso de autoridade.
4.4.2. Denúncia Anônima e Prisão Preventiva
Nos limites estritos do CPP, instrução criminal é o lapso compreendido entre o recebimento da denúncia e a audiência das testemunhas arroladas pela defesa (art. 394,
CPP). Como a prisão preventiva é cabível em qualquer fase do inquérito policial ou
da instrução criminal, para os fins da prisão preventiva, o entendimento acerca da
instrução criminal é alargado, passando a compreender todo o processo criminal.
Para que seja validamente decretada, devem-se atender certos requisitos legais (art.
313, CPP): a) crime doloso apenado com reclusão; b) crime doloso apenado com
detenção, desde que o acusado seja vadio, não identificado ou reincidente em crime
doloso. Há necessidade de atendimento, também, aos pressupostos (art. 312, parte
final, CPP): a) prova da existência do crime; b) indícios suficientes de autoria. Presentes os requisitos e satisfeitos os pressupostos, a autoridade judicial deverá demonstrar
a necessidade pelos fundamentos (motivos)18 ensejadores da medida (312, CPP): a)
garantia da ordem pública; b) garantia da ordem econômica; c) conveniência da instrução criminal; d) assegurar a aplicação da lei penal.
Como visto, os pressupostos da prisão preventiva são incompatíveis com a denúncia
anônima. Com efeito, ainda que se pudesse admitir que a notícia de crime viesse
acompanhada de elementos que comprovassem a materialidade, exigem-se indícios
suficientes de autoria. A notícia de crime veiculada em denúncia anônima, por contrariar o texto constitucional, não possui idoneidade intrínseca capaz de indiciar suficientemente seu autor, de modo a ensejar diretamente a decretação da prisão preventiva.
Imagine-se uma investigação criminal em curso, realizada durante a regular e formal
tramitação do inquérito. Surge denúncia anônima atribuindo a autoria do crime sob
investigação a determinada pessoa. Cabe, com base exclusivamente nessa notícia, a
decretação da prisão preventiva? A resposta que se impõe é negativa, nada impedindo
que a verossimilhança da informação seja apurada, até com intimação do suspeito
para declarações formais no inquérito, se conveniente. Em suma, a notícia anônima
de autoria não é indício, mas permite a busca de elementos que a confirmem ou neguem, produzindo-se, a partir daí, validamente as provas necessárias à demonstração
18
A fundamentação, portanto, é vinculada. O legislador restringe o poder geral de cautela do juiz, restringindo as hipóteses
de fundamentação jurídica indispensável à legalidade da medida. O juiz, para decretar a prisão preventiva, está adstrito à
demonstração de que o fundamento fático contido nos elementos de convicção coligidos no processo corresponde a um
dos fundamentos de direito, não podendo ampliar o elenco nem se pautar em conjecturas.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
da imputação.
4.4.3. Denúncia Anônima e Prisão Temporária
Raciocínio semelhante se aplica à prisão temporária. A prisão temporária é fundada
num juízo de suspeição, para viabilidade da investigação criminal.
Cabe prisão temporária19, nos termos da Lei nº 7.960/89: a) quando imprescindível
para a investigação (art. 1o, I); b) quando o indiciado não tiver residência fixa ou
não fornecer os elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade (art. 1o,
II); c) quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na
legislação, de autoria ou participação do indiciado em homicídio doloso, seqüestro
ou cárcere privado, roubo, extorsão e extorsão mediante seqüestro, estupro e atentado
violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado morte, envenenamento de
água potável ou substância alimentícia ou medicinal com resultado morte, quadrilha
ou bando, genocídio em qualquer de suas formas típicas, tráfico de drogas, crimes
contra o sistema financeiro (art. 1o, III).
A interpretação majoritária recomenda a exegese do instituto em conformidade com
a Constituição Federal. Assim, prevalece o entendimento de que os incisos do art.
1o da Lei nº 7.960/89 não constituem tipos processuais autônomos, logo, o requisito
previsto no inciso III do art. 1o da lei seria de incidência obrigatória, atuando cumulativamente com qualquer dos outros dois.
Estabelece-se, a partir desse prisma, um quadro comparativo entre a prisão temporária
e a prisão preventiva. As hipóteses legais da prisão temporária estão previstas no art.
1º, III, da lei específica (rol de crimes); da prisão preventiva no art. 313, do CPP. Os
pressupostos da prisão temporária são fundadas razões, na prova, quanto a um dos tipos previstos no art. 1º, III, e suspeição concreta de autoria; da preventiva são a prova
da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Os motivos que autorizam a
temporária são aqueles previstos no inciso I ou II da Lei nº 7.960; os que autorizam a
preventiva são aqueles do art. 312 do CPP.
A exigência de que haja fundadas razões de autoria se revela incompatível, de plano,
com a denúncia anônima de autoria. Nada impede, ao contrário, recomenda-se, que as
19
A prisão temporária pode ser decretada pelo Juiz, mediante representação da autoridade policial (ouvindo-se o MP)
ou do Ministério Público, por cinco dias, prorrogáveis por igual período (art. 2o, Lei nº 7.960/89) – ou 30 (trinta) dias,
prorrogáveis pelo mesmo prazo, em se tratando de crime hediondo ou equiparado (art. 2o, §3o, Lei nº 8.072/90). A prorrogação, em qualquer hipótese, só é admitida em caso de extrema e comprovada necessidade. A prisão, obviamente, só
pode ser executada após sua decretação e correspondente expedição de mandado. Decorrido o prazo da temporária, se não
prorrogada ou convertida em preventiva, deve o preso ser imediatamente colocado em liberdade pela autoridade policial,
comunicando-se ao Juiz.
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informações dela constantes sejam verificadas e, se confirmadas num juízo de verossimilhança, venham a fundamentar representação pela prisão temporária.
4.4.4. Denúncia Anônima e Prisão Decorrente de Condenação Recorrível ou de
Pronúncia
O art. 393, I, do Código de Processo Penal estabelecia, no sistema original, a prisão
como efeito da sentença condenatória (conservado na prisão). A prisão era mantida,
mas ocorria a mudança do título: a prisão que até então era preventiva (cautelar) se
convertia em efeito da sentença; deixava, portanto, de ser preventiva.
Porém, a Lei nº 5.941/73 alterou o art. 594 do CPP, sem que qualquer modificação
ocorresse no dispositivo do art. 393, I. Logo, deveriam ser conjugados. O efeito da
sentença não ocorreria quando: a) o sujeito se livrasse solto; b) o sujeito fosse reconhecido na sentença primário e de bons antecedentes; c) prestasse fiança20. Fundamentalmente, passa a haver essa restrição: não pode recorrer em liberdade, salvo
quando se reconhece, na sentença, que é primário e possui bons antecedentes.
Se a prisão é efeito da sentença condenatória, não haveria necessidade de fundamentação: esse era o espírito da lei. Com o advento da CF/88, determina-se a fundamentação de todas as decisões, além de se erigir, em sede constitucional, o princípio da
presunção de inocência.
Na doutrina, a natureza da medida é controvertida (MORAES, 2000): a) efeito automático da condenação recorrível; b) medida cautelar obrigatória; c) execução provisória da pena; d) regra procedimental condicionante da apelação; e) prisão de natureza
processual; f) prisão de natureza cautelar. O entendimento majoritário é no sentido de
que se trata de medida cautelar.
Jesus e Batista (apud GOMES, 1994) concluem pela necessidade de recolhimento à
prisão como condição para apelar, admitindo-se a presunção (legal) de periculosidade do condenado. Cuida-se de necessidade abstrata, baseada em critério legislativo:
obrigatoriedade da prisão (efeito automático da condenação recorrível), que subtrai
do Juiz a verificação concreta da necessidade da medida a partir do periculum libertatis.
Gomes (1994, p. 31) aduz que “[...] a prisão derivada de sentença recorrível só pode
ter natureza cautelar [...].” No mesmo passo, Frederico Marques (apud GOMES,
1994) salienta que “[...] não sendo execução provisória, apenas medida cautelar, na
verdade se traduziria em autêntica prisão preventiva obrigatória, o que também viola
o princípio constitucional de inocência”.
A análise da fiança (logicamente em crime afiançável) só é feita subsidiariamente, no caso do sujeito que não é primário
ou não tem bons antecedentes; primário e de bons antecedentes, então, sempre recorre em liberdade.
20
258
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Com efeito, observa Jardim (1999, p. 276) que a prisão para apelar não possui, tecnicamente, característica cautelar: a) não há vínculo de acessoriedade com o resultado
pretendido na ação condenatória, é o próprio acolhimento da pretensão punitiva; b) é
a própria pena pleiteada na denúncia, aplicada sob condição resolutiva; c) não visa, na
sistemática do CPP, à prevenção de prováveis danos (periculum in mora); d) a sentença condenatória nem sequer deriva de cognição sumária (fumus boni juris), mas é o
exame do próprio mérito da pretensão punitiva - afirmação do jus puniendi estatal; e)
a marca da provisoriedade é mitigada, em que pese a condição resolutiva; f) e principalmente não há conotação da instrumentalidade.
Tourinho Filho (apud GOMES, 1994), posto defenda a cautelaridade da medida, admite que, quando da elaboração do CPP, considerava-se tal prisão como uma provisória execução da pena (art. 669, I); todavia, com a LEP (art. 105), exige-se trânsito em
julgado para o início da execução. Conclui o eminente processualista, então, que até o
advento da LEP tínhamos execução provisória da pena; depois da CF/88, tal concepção afronta a presunção de inocência.
Tucci (apud GOMES, 1994) aduz que não se pode confundir a prisão provisória tipicamente cautelar (flagrante, preventiva e temporária) com a de natureza processual. A
derivada de sentença recorrível (e a de pronúncia) tem por pressuposto o proferimento
de ato decisório. E conclui: somente quando for o caso de prisão provisória tipicamente cautelar é que, por não ocorrer apriorística consideração de culpa do acusado,
nenhuma afronta sofrerá o preceito constitucional (art. 5º, LVII).
No cotidiano forense, é amplamente majoritário o entendimento de que o tema da
prisão provisória (em qualquer de suas modalidades, inclusive em decorrência de
condenação recorrível) submete-se à análise da necessidade cautelar da medida, sujeitando-se, então, aos fundamentos da cautelaridade e excepcionalidade: prisão como
instrumento assecuratório do processo.
A técnica utilizada para a prisão em decorrência de pronúncia é a mesma para a decorrente de condenação recorrível, ressalvadas as particularidades. Ou seja, numa como
noutra, defende-se que a prisão é cabível diante dos fundamentos previstos em lei
para a prisão preventiva, indicativos de necessidade e cautela. Enquanto no primeiro
caso há sentença condenatória de mérito, no segundo há decisão de admissibilidade
da acusação, diante de prova da existência de crime doloso contra a vida e de indício
suficiente de sua autoria.
Destarte, tanto a prisão decorrente de condenação recorrível quanto a de decisão de
pronúncia dependem de apoio no conjunto probatório validamente reunido na instrução criminal. Não há espaço para condenação ou pronúncia com base em denúncia
anônima, que, como será visto adiante, não tem valor probatório autônomo. Se não
há condenação ou pronúncia com base em denúncia anônima, é lógico que não pode
haver seus corolários, expressos nas duas modalidades de prisão ora analisadas.
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4.5. Valor Probatório da Denúncia Anônima
A manifestação de vontade sob o anonimato, se analisada isoladamente, contraria
frontalmente o texto constitucional. Isso é o que basta para concluirmos que a denúncia anônima não possui valor probatório e não pode, por isso mesmo, influenciar
validamente a formação da convicção do Juiz. Entretanto, tal assertiva não equivale a
dizer que a denúncia anônima, em qualquer circunstância ou contexto, seja inconstitucional e absolutamente imprestável aos fins da persecução penal.
A denúncia anônima tem caráter meramente informativo, capaz de deflagrar o exercício legítimo do poder de polícia investigativa (judiciária) do Estado. As provas produzidas em procedimento instaurado a partir de denúncia anônima nascem desvinculadas de sua origem, por força do princípio da proporcionalidade.
Com a verificação da procedência da informação veiculada na denúncia anônima,
imperativo que se impõe à autoridade pública como dever constitucional, a notícia de
crime originalmente apresentada é descartada e integralmente substituída pelas novas
informações, autênticos elementos de convicção aptos à formação da opinio delicti.
Essas informações irão fundamentar a instauração do procedimento formal, a futura
ação penal, a instrução processual e assim sucessivamente.
Não há nulidade original que pudesse contaminar todo o procedimento, porque a verificação da procedência das informações contidas na denúncia anônima é, em si,
constitucional, fruto de interpretação constitucional que supera colisão de interesses
jurídicos de idêntica estatura.
Ao se negar valor e força probatória à denúncia anônima, em suma, define-se que ela
não exerce diretamente nenhuma conexão entre a persecução penal e a imputação nela
inserida, permanecendo, no processo, alheia ao mérito, desprovida de status processual autônomo e despida de qualquer reflexo de direito material.
5. Conclusões
A manifestação anônima de vontade é inconstitucional, mas a denúncia anônima nem
sempre viola a Constituição, de acordo com a aplicação do princípio da proporcionalidade. A denúncia anônima não autoriza, isolada e imediatamente, a instauração
da persecução criminal; ou seja, não pode deflagrar e fundamentar, por si só, a instauração de procedimento investigatório. A mediação entre a denúncia anônima e a
instauração legítima do procedimento investigatório criminal é feita pela verificação
da procedência das informações, desde que não ocorra, nesse procedimento prévio
informal, violação de liberdades públicas garantidas constitucionalmente.
Portanto, a autoridade, ciente da prática de crime por denúncia anônima, tem o dever
de apurar, mediante cognição sumária informal, a verossimilhança da informação,
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reunindo elementos de convicção capazes de fundamentar a instauração formal do
procedimento, mantendo-se completa desvinculação da persecução com a peça apócrifa. A denúncia anônima não pode servir de base à representação pela determinação
judicial de medidas assecuratórias (arts. 125 e 134, CPP), busca e apreensão domiciliar (art. 240, § 1º, CPP c/c art. 5º, XI, CF/88) ou quebra de sigilo de dados (fiscais,
bancários etc.) ou de comunicações (Leis nº 6.538/78 e nº 9.296/96 c/c art. 5º, XII,
CF/88).
Os escritos anônimos não possuem força probatória nem podem ser incorporados
formalmente ao processo, salvo quando produzidos pelo acusado ou quando constituírem elementos do corpo de delito. A Constituição Federal impede a consideração
da denúncia anônima para a formação da convicção do julgador sobre o mérito da
imputação, mas não impede que a autoridade pública seja acionada mediante delação
anônima, para que, verificada a procedência das informações, instaure-se, com base
nessa investigação preliminar informal, o regular procedimento inquisitivo.
Ressalvada hipótese de flagrante delito, não pode haver prisão provisória baseada
exclusivamente em denúncia anônima, devendo a autoridade, no caso de flagrante,
verificar a procedência das informações com redobrada cautela e respeitadas as garantias constitucionais. A denúncia anônima não contamina as provas produzidas na
investigação e no processo dela decorrentes, desde que observados alguns princípios
e critérios. As provas produzidas no procedimento deflagrado por denúncia anônima
não nascem contaminadas pela ilicitude do anonimato, em virtude da incidência do
princípio da proporcionalidade.
6. Bibliografia
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2001.
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Velloso. Brasília, 10 de novembro de 2005.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 3073/DF. Relator: Min. Ilmar
Galvão. Brasília, 13 de outubro de 1995.
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263
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
1.2 OITO RAZÕES QUE DETERMINAM O PROCESSAMENTO
DOS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE PERANTE A
JUSTIÇA COMUM ESTADUAL
PAULO ROBERTO SANTOS ROMERO
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Motivos que Justificam o Afastamento de Crimes de
Abuso da Autoridade da Órbita de Competência do Juizado Especial Criminal. 2.1.
Impunidade como Fator de Criminogênese. 2.2. Missão do Direito Penal. 2.3. Anacronismo Legislativo. 2.4. Modificação da Ordem Jurídica. 2.5. Pela Própria Compleição
e Natureza dos Juizados Especiais. 2.6. Em Razão do Quantum de Pena Cominada.
2.7. Potencial Ofensivo dos Crimes de Abuso de Autoridade. 2.8. Complexidade e
Circunstâncias do Caso. 3. Bibliografia.
1. Introdução
Há, no cenário jurídico nacional, controvérsia acerca da competência para o processo
e julgamento dos crimes de abuso de autoridade (previstos nos artigos 3º e 4º da Lei nº
4.898/65). Há entendimento que pende para o processamento desses delitos perante o
Juizado Especial Criminal - JECrim, e, em posição diametralmente oposta, há corrente que defende que tais delitos sejam processados perante a Justiça Comum estadual.
Com efeito, a razão está mesmo com os sequazes desse último ponto de vista.
2. Motivos que Justificam o Afastamento de Crimes de Abuso de Autoridade da
Órbita de Competência do Juizado Especial Criminal
2.1. Impunidade como Fator de Criminogênese
O notável Lopez (1955), ao se debruçar sobre os fatores de criminogênese, não pestanejou em arrolar, entre eles, a impunidade1. E não se pode perder de vista, nessa
mesma esteira, que a tensão resultante da dialética estipulada entre os motivos desencadeadores e os motivos refreadores do impulso delitivo – spinta versus contra-spinta
– também representa base relevante à eclosão da conduta criminosa: “[...] ao estímulo
do crime, o contra-estímulo da pena” (VERGARA, 1980, p. 58). A necessidade de
assentamento dessa premissa flameja óbvia: a falta de punição adequada2 aos maus
1
No mesmo sentido Bonfim (2000, p. 19): “Isso é a tônica do inconsciente, do subconsciente ou mesmo do consciente
de muitos criminosos: tamanha é a gama da complacência para com a delinqüência, de tal forma o péssimo exemplo da
impunidade, que a todos infratores in potentia já existe de antemão a esperança em tal impunidade, configurada por uma
absolvição indevida, por alguma espécie de ‘benefício estatal’, não obstaculizando o crime; afinal, já de seu métier [...]”.
2
“A impunidade não consiste apenas em deixar o criminoso sem punição, mas, por igual em puni-lo insuficientemente, isto
é, de modo que ele não sinta e a Sociedade não veja.” (Moraes Júnior, 2002, p. 10). Em outro trecho, reforçando a mesma
idéia, ainda proclama de forma mais eloqüente: “Não punir quando era o caso, é caso de assombro, espanto e pasmo: a
sensação de que a Justiça, existente embora, não foi realizada no caso específico. Mas punir timidamente, quando era o
caso de estabelecer uma justa proporção entre o crime e a pena, é caso de escândalo, indignação e anátema: sensação de
que a Justiça existe apenas como farsa.” (Moraes Júnior., 2002, p. 19).
264
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
agentes de segurança pública que cometem abuso de autoridade se não os instiga e/ou
os induz a galgarem degraus mais significativos na escala da violência, no mínimo
favorece a que eles não se preocupem minimamente com a recidiva truculenta3. Por
isso, necessário deixar firmado que, houvesse censura penal significativa ao policial
agressor, quando do cometimento de seu primeiro ato de fereza em desfavor de quem
quer que fosse, muito provavelmente ele não se converteria, mais adiante, em agente
homicida. Se existe mesmo alguma tendência de o poder humano degenerar-se em
arbítrio, faz-se necessária a existência de um outro poder, impessoal, que o refreie até
esse esfacelamento: o poder da lei – que, para operar, exige aplicação efetiva.4
Tudo isso faz lógica confirmação às idéias do imortal Beccaria (s./d.), que não só
reclamava pela certeza das punições, como também exigia a proporcionalidade das
penas, em face daquilo que chamava medida dos delitos e progressão dos crimes
– donde resplandecia nítida a justa idéia de que crimes mais graves devem receber
tratamento punitivo dotado de maior severidade.
As condutas de agentes que espelham atos de abuso de autoridade não ajudam em
nada e nem a ninguém. Pelo contrário, constituem verdadeiras dinamites postas junto
aos alicerces fundamentais do Estado democrático de direito. É que elas tendem mesmo a implodir toda a configuração de legitimidade e a estilhaçar todo o imperativo de
eficiência conforme a legalidade, por parte dos órgãos estatais viciados em sua prática
perversa. O eminente pesquisador e historiador Mir (2004, p. 450), seguro em vasta
estatística acerca do tema, chega a asseverar que “[...] essa violência estatal impede
o funcionamento da máquina administrativa: polícia, justiça e órgãos de execução
penal perdem sua eficiência na vigilância, na repressão, na apuração dos crimes e
no cumprimento das penas pela ausência total de moralidade e dignidade por parte
dos órgãos públicos, gerando suspeição e insegurança na população”. Realmente, a
prática tem demonstrado que os abusos conduzem mesmo ao abismo de todos esses
famigerados efeitos. Importante sublinhar que essa assertiva vai se harmonizar com
as excepcionais reflexões de Arendt (1994, p. 44), para quem a violência destrutiva do
poder, muito presente na vida do século XX, pode ser explicada pela severa frustração
da faculdade de agir advinda de um autêntico decréscimo da capacidade de atuação
desse mesmo poder; e, a partir desse raciocínio, a todos nos conduz a uma conclusão
realmente profunda, redigida em tom de lembrança e alerta:
Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente,
o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em
risco, mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder. Isto implica ser incorreto pensar o oposto da
violência como a não-violência; falar de um poder não-violento
é de fato redundante. A violência pode destruir o poder; ela é
absolutamente incapaz de criá-lo.
3
4
Testifica, no mesmo sentido, Telles Júnior (2002, p. 350).
Nesse sentido, Montesquieu (2002).
265
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Posta a questão nesses trilhos, chega-se à percepção de que combater a violência
gratuita por parte de órgãos oficiais constitui, a um só tempo, uma atitude de defesa
às garantias fundamentais do cidadão e um movimento de estímulo corretivo direcionado ao próprio Estado, no sentido de que ele faça legítimo emprego de seu poder,
necessário à reafirmação de sua vocação democrática e de direito e à manutenção de
sua soberania. Urge mesmo – e desde logo – a efetiva reconstrução dos direitos humanos (LAFER, 1988).
2.2. Missão do Direito Penal
Acertado o posicionamento de Silvia Sánches (2004, p. 57), o emérito Catedrático
da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, ao estabelecer, em tempos hodiernos,
magistério reputado como de vanguarda, no sentido de que o Direito Penal tem “[...]
a função de reduzir a própria violência estatal”.
Já muito antes, em 1859, Francesco Carrara (1996, p. 3), o expoente máximo da Escola Clássica do Direito Penal, já o havia percebido e bem por isso fizera anotar, nas
linhas do prefácio da quinta edição de sua obra, que o Direito Criminal (era assim
chamado pelo ínclito Professor) tem:
[...] por misión refrenar las aberraciones de la autoridad social
em la prohibición, en la represión y en el juicio, para que esa
autoridad se mantenga en las vias de la justicia y no degenere
en tirania. La ciencia criminal tiene por misión moderar los
abusos de la autoridad en el desarrollo práctico de aquellos
tres grandes temas, em cuya obra, constituye la actividad sustancial y la razión de ser de la organización social.
A evolução das idéias penais jamais derrogou o abalizado de vista. Pelo contrário,
no palmilhar das trilhas de seu adiantamento, o Direito Penal sempre esteve fiel a
sua vocação de instrumento de salvaguarda da ética social, responsável por firmar
e confirmar os valores mais excelsos e indispensáveis à convivência harmônica dos
integrantes de uma sociedade.
O próprio Welzel (1970) – o preclaro idealizador da teoria finalista da ação – escrevendo, na Alemanha, sobre o verdadeiro sentido do Direito Penal, bem como a
respeito da real missão desse ramo jurídico, deixou pontificado que o mais importante
aspecto do sistema jurídico-penal radicava e radica na sua própria função ético-social,
visando proteger os valores elementares da vida em comunidade.5
No mesmo sentido, Manzini (1948, p. 44-46) igualmente deixaria assentado que “[...]
“[...] la misión más profunda del Derecho Penal es de naturaleza ético-social y de caráter positivo. Al proscribir y castigar la inobservancia efectiva de los valores fundamentales de la conciencia jurídica, revela, en la forma más concluyente
a disposición del Estado, la vigencia inquebrantable de estos valores positivos de acto, junto con dar forma al juicio éticosocial de los ciudadanos y fortalecer su conciencia de permanente fidelidad jurídica.”(WELZEL, 1970, p. 13).
5
266
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
el derecho penal encontra en la moral una de las más activas y potentes fuerzas de su
dinamismo evolutivo”. Trilhando esse mesmo palmilhar, Battaglini (1973, p. 6) grafou
em sua obra que “O Direito Penal é o ramo do Direito que se relaciona mais viva e
profundamente com a moral. O código penal já foi considerado ‘o código moral de
um povo’ ”.
Em magistério atual e respeitado em todo o planeta, o consagrado professor argentino
Zaffaroni (1998, p. 49) assevera que “[...] contemporáneamente, salvo opiniones aisladas, se afirma que el derecho penal cumple una doublé función, es decir, la tutela de
bienes jurídicos y de valores éticos”. E mais adiante continua:
El derecho penal provee, pues, a la seguridad jurídica, aspirando a que no se reproduzcan las acciones lesivas de bienes jurídicos que tipifica. La coércion aspira a evitarlas, a prevenirlas.
En este sentido no cabe duda de que el derecho penal tiene una
clara aspiración ética, que participa y corona la general función formadora del ciudadano que compete al derecho. En otras
palabras, entendemos que el derecho penal tiene la función de
proveer a la seguidad jurídica mediante la tutela de bienes jurídicos, preveniendo la repetición o la realización de conductas
que los afectan en forma intorelable, lo que, ineludivelmente,
implica una aspiración ético-social. [...]. En este sentido, la
‘aspiración ética’ del derecho penal, es la aspiración que éste
tiene de que no se cometan acciones prohibidas por afectar
bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar
esta aspiración ética, pero la misma no es um fin si misma,
sino que su razón, su ‘por qué’ (y también su ‘para qué’) es
la prevención especial de futuras afectaciones intorelables de
bienes jurídicos.
Entre nós e em sintonia tanto com o rumo da História quanto com as posturas mais
conformes à ordem mundial hodierna, Toledo (1994, p. 12), também acerca da real
missão do Direito Penal, pontifica: “Disso resulta, pois, que o direito penal, como não
poderia deixar de ser, quer também contribuir para a construção de um mundo valioso,
razão pela qual não pode colocar-se em oposição aos valores morais dominantes”.
É necessário que fique bem assentado que a presença do Direito Penal deve servir
como frente desestimulante a práticas criminosas, o que trará a certeza de que tal
ramo do ordenamento jurídico assim estará cumprindo com sua destinação impeditiva
de violações de bens jurídicos tutelados, caros à convivência social harmônica. Nada
obstante, e em complemento a essa idéia, é igualmente pertinente mantermos sempre
presente a lição de Prins (1915, p. 13), Professor da Universidade de Bruxelas, que
estabelecera que “O Direito Penal é também uma ciéncia social; o delito, com efeito,
além de seu caracter jurídico, tem um caracter social. A pena não é somente uma sanção legal, mas um acto de defesa social, uma reacção social oposta ao ataque”.
267
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Quando cruzamos a pretensão de efetiva prevenção às condutas capazes de violar
os direitos fundamentais da pessoa humana, com o ideal de um ambiente social que
fomente a criação e o estímulo dos valores éticos basilares de nossa sociedade, e, conjugando esses fatores com a amarga (mas necessária) lembrança de que todos os dias,
neste País, deparamo-nos com o problema da prática reiterada de delitos de abuso de
autoridade, outra medida não há senão recorrer à própria sanção penal, rigorosa. A
pena concebida não é mais suficiente, já não corresponde ao anseio de reação estatal6
esperada por toda a sociedade brasileira contemporânea. Sofistica-se o crime; permanece antiquada a forma legislativa de seu enfrentamento. Até quando suportar que o
arbítrio permaneça intocado por detrás do biombo da tibieza da lei, que elogia a degradação física e mental do cidadão, e o desrespeito solene contra toda a sociedade? Não
existe justificativa capaz de chancelar o receio de se usar a força legítima do Direito
contra o agente estatal arbitrário que se valeu de postura criminosa em desfavor de um
homem ou mulher de bem e que, com essa mesma conduta, determinou que o Estado
se voltasse contra si próprio, numa contradição axiológica intolerável.
2.3. Anacronismo Legislativo
O abuso de autoridade é tratado normativamente, entre nós, pela Lei nº 4.898, de 9
de dezembro de 1965. Tal Diploma Legal ingressou em nosso ordenamento jurídico
há quatro décadas, vindo a lume sob a égide do Regime Militar (1964-1985)7. Nesse
contexto histórico e sob essa inspiração é que foi editada a Lei de Abuso de Autoridade, destinada ao combate da violência exercida pelos órgãos oficiais de controle social, dita formalmente como intolerável, malgrado persistisse no plano das realidades
como meio indispensável à manutenção do status quo.
Seja como for, desde o fecho do regime militar até hoje, é inegável, evoluímos muito: vivemos sob a égide de um Estado democrático e de direito8, em que a cidadania
e a dignidade da pessoa humana compõem o núcleo nodal de seus fundamentos. A
construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos
sem quaisquer distinções constituem o ponto nevrálgico de seus objetivos supremos.
A prevalência dos direitos humanos e a defesa da paz estão entre seus princípios
excelsos; e quem quer que seja deve ser respeitado em seus direitos e garantias fundamentais9. Porém, há que se rememorar, para a validade substancial da conformação
declarada como Democrática e de Direito, o inafastável atendimento a três pressupos“A pena, como conseqüência do crime, é reação da ordem jurídica à lesão ao bem jurídico.” (BETTIOL, 1976, p. 69).
Na época, vigorava AI-1, baixado pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. No plano político, era
firme o objetivo de instituir uma “democracia restringida”, com campo aberto à efetividade de uma postura, em verdade,
autoritarista: foram desencadeadas inúmeras perseguições aos adversários do regime, envolvendo prisões e torturas; em
junho de 1964 o clima de medo já havia se alastrado por todo o país, quando foi significativamente reforçado pela criação
do Sistema Nacional de Informações (SNI) que, agindo na “[...] luta contra o inimigo interno”, surgia com intuito claro de
controlar os cidadãos, de modo total e mesmo à custa de violências arbitrárias. (FAUSTO, 1996, p. 467).
8
No magistério de Canotilho e Moreira (1991, p. 85) lê-se que “O Estado de direito só o é verdadeiramente enquanto
democraticamente legitimado (pela sua formação e conteúdo). O Estado democrático só o é genuinamente enquanto a sua
organização e funcionamento assentam no direito e não na prepotência”.
9
Artigos 1º, 3º, 4º e 5º, CF/88.
6
7
268
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tos materiais: a) juridicidade; b) constitucionalidade; c) direitos fundamentais. Sem a
observância efetiva de tais elementos, nenhum Estado será detentor daquela desejada
configuração político-jurídica senão e apenas no plano das idéias – o que é inconcebível10; aliás, é esse o sentido da lição de Habermas (2003, p. 189), ao dizer que “[...] o
projeto de realização do direito, que se refere às condições de funcionamento de nossa
sociedade, portanto de uma sociedade que surgiu em determinadas circunstâncias históricas, não pode ser meramente formal”.
Sendo outros os tempos, livres que estamos do regime autoritário e ditatorial, é hora
de ajustarmos a normatividade vigorante aos anseios éticos vigentes. Se o Direito é
mutável por natureza; se é mesmo certo que os comandos e proibições do Direito
têm suas raízes nas chamadas normas de valoração11; se o legislador detém a incumbência de perenemente trabalhar em prol da colocação da lei a par de seu tempo; se
as estruturas sociais do presente não são as mesmas de outrora; se o ponto de vista
predominante determina a proteção adequada dos direitos humanos; se esses direitos
existem para o aperfeiçoamento da vida social e para o bem comum; se o arbítrio e
o abuso são incompatíveis com as balizas fundadoras do Estado Brasileiro; mister, à
vista disso tudo, admitirmos que já é passado o momento das reflexões e já é chegado
o da temporada de câmbios concretos em prol do respeito ao homem e a seus direitos
fundamentais.
2.4. Modificação da Ordem Jurídica
Mesmo durante o regime ditatorial, quando se correu o risco de não haver aplicação
do Direito Penal em desfavor das condutas abusivas de autoridade, pela incidência de
medida despenalizadora (falta de representação do ofendido direto), houve urgente
modificação da ordem jurídica com a edição da Lei nº 5.249/1967. Tão caro ao Estado
e à sociedade o processo e julgamento dos crimes de abuso de autoridade como forma
de combate efetivo à sua ocorrência e meio desestimulante à sua reiteração, que foi
editada, em 9 de fevereiro de 1967, norma prevista no artigo 1º da referida lei, tornando pública e incondicionada a ação penal referente aos crimes previstos na Lei n.º
4.898/1965; originariamente tais crimes se processavam mediante ação penal pública
de iniciativa condicionada à representação (art. 1º). Vale dizer, se, mesmo em tempos
de indisfarçável autoritarismo, o legislador ordinário chegou a se preocupar em tornar
efetiva a resposta penal às violações dos direitos fundamentais da pessoa e das bases
fundamentais do Estado de direito, por atos arbitrários e abusivos cometidos por suas
autoridades, com muito mais razão, sob a égide do Estado democrático, essa mesma
resposta não pode e não deve ser afastada sob hipótese alguma.
10
É o que foi dito, em outras palavras, por Brandão (2001, p. 38): “[...] pode-se concluir que o respeito pelos direitos humanos fundamentais por parte do Estado ou seus agentes e representantes, as autoridades constituídas, constitui a ‘pilastramestra’ na construção de um verdadeiro Estado de Direito democrático”.
11
Nesse sentido, Engisch (2001, p. 46).
269
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2.5. Pela Própria Compleição e Natureza dos Juizados Especiais
Conforme bem observava Mirabete (1998, p. 16), vivenciávamos, em passado recente
de nossa história jurídica, uma crise no Judiciário, insuflada por críticas relativas à
lentidão do sistema e à impunidade obtida pelos infratores, que alcançavam a extinção
da punibilidade em decorrência da excessiva demora no julgamento dos seus processos.
Passou-se, assim, a exigir um processo penal de melhor qualidade, com instrumentos mais adequados à tutela de todos os
direitos, assegurando-se a utilidade das decisões judiciais, bem
como a implantação de um processo criminal com mecanismos
rápidos, simples e econômicos, de modo a suplantar a morosidade no julgamento de ilícitos menores, desafogando a Justiça
Criminal, para aperfeiçoar a aplicação da lei penal aos autores
dos mais graves atentados aos valores sociais vigentes. O aumento da criminalidade, aliás, tornava inevitável que se relegasse a segundo plano pequenas infrações penais, passando a
ter preferência no julgamento os crimes mais graves [...]. Sensível a essa situação, e com a preocupação de evitar a impunidade
nos ilícitos menores, o legislador constituinte inseriu na Magna
Carta de 1988 o disposto no art. 98, inciso I, estabelecendo que
a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados deveriam criar ‘juizados especiais, providos por juízes togados,
ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade
e de infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante
procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses
previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por
turmas de juízes de primeiro grau’.
Desse modo e sob essa inspiração, foi editada a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de
199512, que trouxe a lume, no ordenamento jurídico pátrio, um novo modelo de persecução penal, assentado em bases de consensualidade. Com efeito, os Juizados Especiais Criminais13 buscaram estabelecer um novo paradigma que figurasse responsável
pelo rompimento definitivo com o arquétipo de solução conflitiva das lides penais, ao
procurarem “[...] significar um considerável passo para o resgate da credibilidade da
Justiça Penal”.14
Sobre o histórico legislativo da mencionada lei, confira Jesus (1995, p. 25).
Para que se possa bem conhecer toda a dinâmica de funcionamento dos JECrim´s, cf., pela exposição sintética e simples, mas que passa em revista todos os aspectos mais relevantes condizentes às particularidades do rito inovador, confira
Gonçalves (1998).
14
Assim constou no desfecho da exposição de motivos do Anteprojeto do referido Diploma, apresentado à Câmara dos Deputados, como Projeto de Lei nº 1.480/89, pelo deputado Michel Temer, sendo que tal documento pode ser lido na íntegra
em Grinover, Gomes Filho, Fernandes e Gomes. (1995, p. 25).
12
13
270
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Desde antes da criação do referido Diploma, consoante nos ensina Gomes (1995, p.
15), a moderna Criminologia, servindo-se de uma enorme gama de meios e instrumentos político-criminais e procurando uma resposta jurídica justa e útil a cada conduta
desviada, passou a notabilizar-se por “[...] uma forte tendência metodológica de separar a ‘grande’ da ‘pequena e média’ criminalidade, isto é, a criminalidade de menor
potencial ofensivo da criminalidade de alta reprovabilidade (grande potencial ofensivo)”, ficando essa última de fora do âmbito típico de conflitividade processual penal. Em suma, ficou assentada a necessidade de tratamento diferenciado, com reações
estatais distintas, à criminalidade pequena e média, de um lado, e à criminalidade de
alta lesividade social, de outro. Para as infrações de menor potencial ofensivo ficaram
estabelecidas medidas despenalizadoras como a transação penal e a composição civil;
para as infrações de média gravidade, no mesmo sentido, a suspensão condicional do
processo. As infrações penais graves pemaneceram recebendo o mesmo tratamento
que classicamente o sistema lhes dispensava. Com o intuito de se firmarem parâmetros seguros e producentes à delimitação conceitual daqueles delitos menos graves:
[...] a doutrina, de um modo geral, consoante o ensinamento
da Prof.ª da Universidade Central de Barcelona, Armenta Deu
(1991, p. 23/24), em nível pré-jurídico, procura distinguir a
criminalidade de menor potencial ofensivo com as seguintes
características: a) escassa reprovabilidade; b) ofensa a bem
jurídico de menor relevância; c) habitualidade; d) maior incidência nos crimes contra o patrimônio e no trânsito. A essas
características subjetiva (item “a”) e objetivas (item “b”, “c”
e “d”) ainda é freqüente o acréscimo de uma outra de natureza
político-criminal, que consiste na ‘dispensabilidade da pena do
ponto de vista da prevenção geral se não mesmo a sua inconveniência do ponto de vista da prevenção especial.’ (ANDRADE,
1992, p. 325).
Sem embargo do elogio à eminência do papel ressocializador das medidas sancionatórias penais, outra fonte de inspiração à urgência de implantação do novo modelo de
Justiça Criminal Consensuada foi o resgate da preocupação com o ofendido direto,
personagem componente da chamada pareja criminal tantas vezes esquecida. Assim,
ainda conforme Andrade (1992, p. 325), “[...] em lugar da atividade penal servir única
e exclusivamente aos interesses coligados com a pretensão punitiva estatal, a orientação agora é outra: nas hipóteses mencionadas, sobressaem como mais importantes os
interesses da vítima” (ANDRADE, 1992, p. 20).15
Seja como for, não se pode olvidar que já no ano de 1995, logo em seguida mesmo
à publicação da Lei nº 9.099/95, em meio à generalizada euforia estabelecida pela
revolução estabelecida pelo novel Diploma, poucas, mas respeitáveis vozes, ecoadas
No mesmo sentido, sobre a necessidade de se redescobrir a valorização da vítima e de se dispensar a ela toda a preocupação que é mesmo merecedora, confira Grinover (1995, p. 10).
15
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
desde o plano doutrinário, apontavam alguns pontos normativos constantes neles e
que, real e justamente, ensejavam alguma preocupação. Nesse sentido, Lopes (1995,
p. 12) alertava com todas as letras: “Nem tudo na lei é avanço, no entanto”. Na mesma
esteira, depois de assinalar que a Lei dos Juizados Especiais Criminais, tal como editada originariamente, disciplinaria mais de setenta por cento do movimento forense
criminal, Bitencourt (1996, p. 13), demonstrando certa preocupação, lembrava-nos e
nos advertia desse modo:
Estamos no limiar de uma nova era político-criminal, onde a
ousadia do legislador brasileiro ignorou limites que, talvez, a
prudência e o pioneirismo de novas idéias recomendassem [...].
O bom senso e a sensibilidade do Poder Judiciário e do Ministério Público serão os grandes responsáveis pela condução dessa nova experiência, na tentativa de resgatar a credibilidade da
Justiça Criminal [...]. Registre-se, por derradeiro, que o sucesso
ou insucesso do novo modelo de Justiça Criminal não será medido pela felicidade estampada no rosto dos Juízes e Promotores, satisfeitos por terem esvaziado os escaninhos dos Foros,
deixando vítimas e acusados satisfeitos, mas sim pelo reflexo
na comunidade, pela maior ou menor segurança ou insegurança
social de quem será vítima. Será pela maior ou menor impunidade que se poderá valorar o acerto ou desacerto da ousadia.
Essas considerações, com efeito, tocam diretamente os crimes de abuso de autoridade,
previstos na Lei n.º 4.898, de 9 de dezembro de 1965, na medida em que existem vozes que os consideram como sendo de menor potencial ofensivo, e, assim, dispostos
na órbita de competência dos Juizados Especiais Criminais. Ressalte-se, entrementes,
que foi a Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, criadora dos chamados Juizados Especiais Criminais Federais, ao redimensionar o conceito legal de infração penal de
menor potencial ofensivo, que deu flanco à interpretação de que os crimes de abuso
de autoridade perpetrados por agentes públicos deveriam ser processados e julgados
conforme a ritualística típica dos JECrim´s, inclusive com a concessão de todos os
benefícios despenalizadores às autoridades que preenchessem os requisitos subjetivos
necessários a tanto (GOMES, 2002, p. 28).
2.6. Em Razão do Quantum de Pena Cominada
O artigo 61 da Lei nº 9.099/95 foi revogado pelo artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº
10.259/2001. Pelo primeiro, consideravam-se infrações de menor potencial ofensivo
“[...] as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”.
Já o segundo está assim redigido: “[...] consideram-se infrações de menor potencial
ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não
superior a dois anos, ou multa”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Está pacificado o entendimento de que o novo conceito de infração penal de menor
potencial ofensivo, trazido pela lei mais recente, estende-se ao âmbito dos juizados
estaduais. As contravenções penais, todas, permanecem consideradas como infrações
penais de menor potencial ofensivo, assim também todas as infrações penais punidas
somente com multa. Também são considerados de menor potencial ofensivo os crimes
punidos com pena de prisão até dois anos (ainda que cumulativamente com multa), e,
para a admissão da natureza de menor potencial, pouco importa se determinado crime
ou contravenção conta com previsão de rito especial para seu processo e julgamento.
Cabe considerar que a Lei nº 4.898/65, após definir quais condutas constituem abuso
de autoridade (artigos 3º e 4º), cuida, em seu artigo 6º, § 3º (e suas alíneas “a”, “b” e
“c”) e § 4º, de disciplinar o regime sancionatório penal referente a tais ações ou omissões. Os agentes públicos arbitrários podem receber, por atos abusivos que cometam
no exercício da autoridade de que estão investidos, autônoma ou cumulativamente,
penas de multa, detenção de dez dias a seis meses e perda do cargo e a inabilitação
para o exercício de qualquer outra função pública pelo prazo de até três anos. O § 5º
do mesmo dispositivo ainda impõe: “Quando o abuso for cometido por agente de autoridade policial, civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena16
autônoma ou acessória, de não poder exercer funções de natureza policial ou militar,
no Município da culpa, por prazo de 1 a 5 anos”.
Do alto de sua competência, Stoco (apud FRANCO, 1997, p. 30) esclarece-nos:
Embora a nova Parte Geral do Código Penal (Lei 7210/84) tenha abolido as penas acessórias, nenhum reflexo houve nesta
lei especial. A perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra atividade pública, que o Código Penal de
1940 definia como penas acessórias e, agora, como efeitos da
condenação e como penas restritivas de direitos, sempre foram
consideradas como penas principais na Lei de Abuso de Autoridade. Mesmo a cominação estatuída no § 5º do artigo 6º da Lei
4898/65 permanece íntegra. A proibição do acusado de exercer
funções de natureza policial ou militar no Município da culpa é
pena principal, quando aplicada isoladamente ou de forma autônoma. Transmuda-se, porém, em pena acessória, se cumulada
com as penas principais de multa ou de detenção, previstas no
§ 3º do mesmo artigo. Tal imposição não conflita com a nova
Parte Geral do Código Penal, não só pelo que dispõe o seu artigo 12, mas também porque a hipótese do § 5º do artigo 6º
da Lei de Abuso de Autoridade não foi expressamente prevista
16
Note-se que o legislador está fazendo referência expressa à sanção de natureza criminal, posto que o termo empregado,
em si, já faz remontar a essa idéia; não bastasse isso, em análise atenta a pairar sobre a extensão de toda a norma, há a confirmação da assertiva na medida em que para as censuras de natureza civil e administrativa, o legislador empregou tão-somente a palavra sanção – artigo 6º, caput e §§ 1º e 2º, da Lei nº 4.898/65. Já para a repreensão de índole criminal, empregou
o termo genérico sanção, e também o específico pena – artigo 6º, caput §§ 3º, 4º (com destaque) e 5º, da mesma lei.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
nos efeitos da condenação especificados no artigo 92 do CP/84.
Trata-se de imposição própria e peculiar à natureza especial das
infrações praticadas com abuso de poder pela autoridade policial, com prazo de duração também especial.
Assim sendo, cabe reconhecer que a pena máxima cominada para os crimes de abuso
de autoridade é de cinco anos; portanto, muito maior que aquela estabelecida como
limite à inserção na órbita de competência do JECrim. Com efeito, o § 5º do artigo
6º da Lei n.º 4.898/65 trata de sanção de natureza penal, conforme se infere tanto de
sua literalidade (ao dizer pena), quanto da interpretação sistemática empreendida pelo
exame da totalidade do artigo 6º (isto é, da conjugação que se deve estabelecer entre
o seu caput e todos os seus demais parágrafos). Mas, ainda que não se aceitasse isso,
a partir de uma suspeição indevida acerca da natureza da pena esculpida na norma,
a alínea “c” do § 2º do mesmo artigo 6º é expressa em dizer que uma das sanções
penais aplicáveis à conduta abusiva passível de censura criminal é a perda do cargo
e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até
três anos. Claro, pois, que, por todos os flancos que se examine a questão, sempre se
extrapola o limite demarcado para a aceitação de enquadramento conceitual menor
potencial ofensivo.
É verdade que as penas de inabilitação temporária da função pública por até três anos
ou de interdição de exercício de atividade policial no Município da culpa pelo prazo
de até cinco anos não são sempre aplicadas. Mas podem ser aplicadas – isolada ou
cumulativamente. Logo, inegável a presença de pena in abstracto que impede a admissão de processo e julgamento na esfera de competência do JECrim.
É certo que, para o exercício de raciocínio referente à admissão de qualquer benefício
que leve em conta a quantidade de pena, esta deve ser considerada em seus parâmetros cominados pelo legislador. Quando determinado benefício se prende a uma pena
mínima, procura-se por ela a partir, inclusive, de descontos máximos, como no caso
de ocorrência tentativa, por exemplo. Já quando uma benesse só se torna possível mediante a consideração de um máximo de pena, todas as operações relativas à possibilidade de sua extrapolação devem ser consideradas. Por isso que, havendo mais de um
crime, e sendo certa a presença de continuidade delitiva ou concurso formal, leva-se
em conta a exasperação mais grave para a checagem de cabimento ou não de inserção
no JECrim. Deve-se raciocinar, pois, levando-se em conta a maior pena possível a ser
hipoteticamente aplicada: aqui não seria diferente a maneira de pensar. Se os fatores
de exasperação não podem ser desconsiderados a priori e nem integram diretamente
o preceito secundário do tipo (são normas de extensão), com muito mais razão (argumento a fortiori) a própria previsão dita expressamente no preceito secundário pode
ser desprezada. Mas as penas de 3 e/ou 5 anos não são de aplicabilidade obrigatórias?
Podem, porém, ser aplicadas e basta a hipótese positiva de aplicação; basta que em
tese possam ser aplicadas, para que se afaste a competência do JECrim. Em uma pala-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
vra: a admissibilidade ou não do cabimento da operatividade do JECrim ao processo e
julgamento de qualquer que seja o crime depende da pena cominada em abstrato e não
da pena concreta em perspectiva. Deve-se levar em conta, portanto, a pena realmente
prevista e não a virtualmente esperada. Mesmo que se vislumbre a desnecessidade de
aplicação das penas dos artigos 6º, § 4º, “c” e § 5º do mesmo dispositivo, por prazo
superior a dois anos, ainda assim, pelo fato de a cominação em abstrato ter excedido
o limite de dois anos, não é possível cogitar-se da invocabilidade do JECrim e suas
branduras17. Leva-se em conta a pior hipótese, porque a lei diz pena máxima e não
pena razoável esperada à espécie concreta.18
2.7. Potencial Ofensivo dos Crimes de Abuso de Autoridade
Pela relevância dos bens jurídicos que se prestam a tutelar, os crimes de abuso de autoridade não podem ser, do ponto vista substancial, catalogados como sendo de menor
potencial ofensivo. Com efeito, os crimes da Lei nº 4.898/65 afetam os direitos humanos mais fundamentais e atentam contra a estrutura basilar do Estado: as condutas que
os perfazem são, pois, notabilizadas por extrema gravidade. Muito mais que dotados
de algum potencial ofensivo, esses delitos são realmente (e muito) lesivos tanto à
vítima direta quanto ao próprio Estado democrático e de direito.19
Com efeito, soaria como retrocesso histórico considerar evitável a imposição de pena
ao agente público que cometesse ofensa aos direitos fundamentais da pessoa e a implosão dos valores basilares do Estado, ao subverter, com sua conduta abusiva, toda a
tessitura democrática e de direito a qual lhe impunha a defesa e não a traição. Vêm a
calhar, neste ponto, as observações dos irmãos Freitas (1997, p. 13):
A luta entre a liberdade do indivíduo e o poder do Estado existe
desde os mais remotos tempos. À medida em que a civilização
evolui os direitos do Homem tendem a ser mais respeitados.
Mas, para chegar-se a tal estado, séculos são necessários. E,
para que se respeitem os direitos do Homem, as declarações
são o instrumento mais forte de limitação à ação incontrolada
do poder.
[...]
17
Buscamos inspiração, para o raciocínio esposado, nas considerações tecidas por Gomes (2002, p. 147) quando propõe
doutrina acerca do cabimento ou não da suspensão do processo para determinados crimes, para o que não se deve levar em
conta, senão outro fator que previsão em abstrato da reprimenda.
18
Havendo hipótese em que esteja evidente que a ação tenha ficado apenas na tentativa leva-se em conta o menor desconto
possível (um terço), para que se preserve a previsão abstrata de pena máxima (MIRABETE, 1998, p. 33). Para as poucas
figuras da Lei n.º 4.898/65 em que o reconhecimento do conatus é de possível cogitação, ainda nelas, pela incidência do
abatimento de um terço (artigo 14, parágrafo único, do Código Penal), fica inviável a inserção do abuso na órbita de competência do JECrim, porquanto a pena máxima em abstrato permanece superior a dois anos, já que 5 – 1/3 > 2.
19
Expressivo o magistério de Pessina (apud FRAGOSO, 1959, p. 1045): “Segundo meu conceito, no crime praticado por
funcionário público que abusa de seu poder, a ofensa ao individuo empalidece (salvo casos excepcionais) diante da ofensa
que se faz ao poder social, mal usando da autoridade a este confiada”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Ensina Pinto Ferreira em sua obra Curso de Direito Constitucional que ‘as declarações de direitos são aquelas disposições
declaratórias das principais liberdades humanas. Tais direitos,
enunciados pelas grandes revoluções, e depois de incluídos nos
textos das Constituições, constituem a própria personalidade do
homem, cujo exercício lhes corresponde, com limitações recíprocas aos direitos dos demais homens.’
[...]
Mas, para que as Declarações de Direito passassem a fazer parte das Constituições, longa e penosa foi a evolução. O primeiro passo ocorreu na Inglaterra, em 1215, com a Magna Carta.
Depois, ainda naquele país, em 1629 com a Petição de Direitos
e com a Lei de Habeas Corpus, esta permitindo ao preso irregularmente o direito de ser ouvido pelo juiz.
[...]
Em 1776, a revolução norte-americana acelerou esta marcha
com a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia. Em 1789
a França deu ao mundo a Declaração de Direitos do Homem
e do Cidadão, fruto de sua importante revolução. Em 1948 a
Organização das Nações Unidas emitiu a Declaração Universal
dos Direitos do Homem.
[...]
Pois bem, todos os princípios estabelecidos em tais Declarações
e que hoje fazem parte de quase todas as Constituições existentes nos mais diversos países, são reproduzidos na Lei de Abuso
de Autoridade. Isso significa que os tipos estabelecidos nesta lei
especial são,pura e simplesmente, a repetição das declarações
de direitos do Homem, É bem por isso que ela protege a liberdade de locomoção, o sigilo de correspondência, a inviolabilidade do domicílio, a incolumidade física e outros tantos valores
consagrados internacionalmente.
[...]
Portanto, basta a tal constatação para perceber-se a importância extrema da lei que ora se analisa. Ela reflete o resultado de
séculos de lutas entre a liberdade e o poder, entre o indivíduo
e o Estado. Em nosso País, por isso mesmo, significa grande
avanço na defesa dos direitos individuais.
[...] a Lei n.º 4.898/65 define crimes e dispõe sobre a forma
de apuração das responsabilidades administrativa, civil e penal.
De fato, o autor do projeto de Lei n.º 952, de 1956, que veio a
se converter na lei em epígrafe, o eminente jurista Bilac Pinto,
em sua justificativa disse: ‘Previu a Constituição, ao instituir
as regras fundamentais que caracterizam o Estado de Direito e
ao inscrever no seu texto direitos e garantias individuais, que
abusos poderiam ser cometidos pelas autoridades encarregadas
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
de velar pela execução das eis e pela manutenção e vigências
dos princípios asseguradores dos direitos da pessoa humana.
Conferiu, por isso mesmo, a quem quer que seja, o direito de
representar contra os abusos de autoridades e de promover a
responsabilidade delas por tais abusos. Dos três tipos de responsabilidades a que está sujeito o servidor público – a administrativa, a civil e a penal – a última é a que constitui o instrumento mais eficaz para prevenir os abusos de autoridades,
dados o valor intimidativo da pena, o aparato e a publicidade do
julgamento penal. Nos casos em que o abuso de autoridade se
consuma é também a sanção penal a que se revela a mais adequada aos fins visados pela Constituição, por ser a que contém
mais denso conteúdo punitivo. Essas as razões que nos levaram
a conceituar como crime o abuso de autoridade e a estabelecer
um processo oral e expedito para o seu julgamento.’ [...] O objetivo que nos anima é o de complementar a Constituição pra que
os direitos e garantias nela assegurados deixem de constituir
letra morta em numerosíssimos Municípios brasileiros.
[...]
Outro não foi o entendimento do não menos ilustre jurista
Adaucto Lúcio Cardoso, o qual, como relator do referido projeto, afirmou em seu parecer: ‘Considero o projeto rigorosamente
conformado à Constituição e ao direito positivo vigente. Sua
transformação em lei valerá por uma conquista de extraordinária importância na evolução de uma sociedade política como a
nossa, na qual, até hoje, para milhões de criaturas, os direitos e
garantias individuais têm tido existência puramente nominal.’
[...]
Verifica-se, pois, que a Lei n.º 4.898, de 1965, tem a finalidade
de prevenir os abusos de autoridade, dando a quem quer que
seja o meio necessário para fazer valer os direitos e garantias
previstos na Constituição, sendo um instrumento da mais alta
importância na defesa dos direitos do homem. (FREITAS,
1997, pp. 13-16)
A lição invocada demonstra, pois, toda a impertinência de se considerar como de
menor potencial ofensivo uma conduta que possa ser catalogada como crime de abuso
de autoridade.
A mesma opinião que ora defendemos é empenhada por Pedrosa (2005), que assim se
posiciona diante do tema:
Ora, se o Brasil é um Estado Democrático Constitucional de Direito; se a dignidade da pessoa humana é um valor fundamental
desse ordenamento; se, para dar eficácia plena a esse princípio a
Constituição elencou, no art. 5º XLI, a necessidade de punição
de atos atentatórios aos direitos individuais; se, ainda no plano
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
da eficácia previu a Constituição no art. 5º LXVIII, a concessão
de habeas corpus para proteger aquele que sofrer violência por
abuso de poder; se, por último (embora mais argumentos pudessem ser trazidos à colação), foi elencado no art. 37 o princípio
da moralidade; e os objetos materiais protegidos pela Lei n.º
4.898/65 são a correta atividade do agente público e a defesa das garantias individuais, é evidente que o crime de abuso
de autoridade não é de menor potencial ofensivo, mas, sim, de
maior potencial ofensivo. [...] concluo que, a partir de janeiro
de 2002, os Juizados Especiais Criminais estaduais terão competência para processar, julgar e executar todas as infrações
penais cuja pena máxima não exceda dois anos. Excetuam-se
dessa competência, todavia, e como único exemplo, os casos
de abuso de autoridade, que permanecem sob a apreciação da
Justiça Comum. (grifo nosso)
Do ponto de vista doutrinário, diz-se que os crimes de abuso de autoridade são de dupla subjetividade passiva20: pela prática deles são agredidos, a um só tempo, o Estado
(titular do interesse de que a Administração Pública seja exercida conforme a ordem
legal e a moralidade democrática) e a pessoa diretamente atingida (titular da garantia
constitucional lesada ou molestada).21
Decididamente, emerge daí toda a impertinência de se considerar como de menor
potencial ofensivo uma conduta catalogada como crime de abuso de autoridade, já
que a sua reprovabilidade é bastante sustenida; uma vez que os bens jurídicos que são
estilhaçados pela sua prática são os de mais alta relevância à sociedade; levando-se
em conta que a imposição de pena é, mais do que nunca, importantíssima, na medida
em que constitui fator respeitável para fins de prevenção geral e especial (já que a ninguém interessa a convivência com agentes públicos truculentos e nem a fomentação
de créditos tendentes à repetição de atos violentos injustificáveis); considerando-se
que os interesses das vítimas imediata e mediata não são atendidos satisfatoriamente
pela mera aplicação de benefícios despenalizadores em favor do agressor, fazendo
restar, daí, uma impressão de destutela dos sujeitos passivos e impunidade em relação
aos sujeitos ativos de tais delitos. Pela conjugação de todos esses fatores é que se
detecta a real e integral incompatibilidade entre os nobres fins dos JECrim´s com a
gravidade efetiva das condutas abusivas de autoridade. Infere-se daí também, refor20
Assim, v., por todos, Jesus (1997, p. 310). O renomado Mestre profere magistério no sentido de que o Sujeito passivo
mediato dos delitos de abuso de autoridade é o Estado, titular da Administração Pública, e, Sujeito passivo imediato é o
cidadão, titular da garantia fundamental ofendida. Mirabete (1994, p. 423), de seu turno, não faz essa distinção, sem deixar,
contudo, de considerar a dupla subjetividade passiva. Já Noronha (2003, p. 410) vê a questão por um ângulo diverso: para
ele, sujeito passivo principal é o Estado, e, sujeito passivo secundário é a pessoa.
21
Faria (1959, p. 199), em comentário ao artigo 350 do Código Penal, asseverava: “Toda prepotência é inconciliável com
as finalidades da ordem”; por isso, “A repressão de tais fatos assenta na conveniência de assegurar o exercício correto e
moderado da função contra os abusos do poder funcional dos funcionários públicos, nos casos referidos, e ainda em respeito a pessoa e a liberdade, que, dentro das fronteiras da lei, há de ser considerada direito incontestável de todo o cidadão.
Sem esse respeito, para obrigar o desenvolvimento da vida a sujeição do arbítrio, implicaria fazer desandar a civilização
para transformar os homens livres em servos da gleba”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
çada desde a ótica deste outro flanco, a necessidade clara de se rever urgentemente a
reprimenda aflitiva destinada à punição dos crimes da Lei nº 4.898/65, a fim de que
não haja mínimo espaço para a defesa da inserção deles no rol dos delitos submetidos
à competência dos Juizados Especiais Criminais. Tais crimes não são de menor potencial ofensivo, mas de realidade ofensiva máxima. Em tudo e por tudo, como se vê,
detecta-se incompatibilidade entre os nobres fins do JECrim e a gravidade efetiva das
condutas abusivas de autoridade. Lembremos Arinos (1958, p. 188): “Sem respeito à
pessoa humana não há justiça e sem justiça não há Direito”.
2.8. Complexidade e Circunstâncias do Caso
Não raro, os crimes de abuso de autoridade exigem, para a sua lídima e exaustiva
apuração, um movimento investigatório significativo. Apenas excepcionalmente há
o cometimento desses mesmos delitos em locais públicos com a presença de várias
testemunhas; praticamente inexistentes são os casos em que há confissão por parte
do agente arbitrário; delações são raríssimas; freqüentemente há a necessidade de
realização de perícias. Com isso, a causa de deslocamento de competência prevista
no artigo 77, § 2º, da Lei nº 9.099/95 é, na esmagadora maioria dos casos, cabível e,
mais que recomendável, medida imperiosa. Com isso, quer se dizer que também a
perspectiva processual determina a necessidade de submissão à Justiça Comum, e não
aos Juizados Especiais, do processo no qual o objeto de apuração seja um crime de
abuso de autoridade.
Os crimes de abuso de autoridade deveriam ser processados e julgados pela Justiça
Estadual Comum e não pelos Juizados Especiais Criminais, como por vezes tem ocorrido na prática forense de muitas localidades. O fato de, mesmo diante de argumentos
tão contundentes, existir e operar respeitável corrente de pensamento que admite que
os crimes de abuso de autoridade pertençam à órbita de competência dos JECrim´s já
é suficiente à invocação da necessidade de revisão legislativa capaz de pôr ponto final
à controvérsia, em favor das garantias e liberdades fundamentais e dos fundamentos
primaciais do Estado democrático de direito. Aliás, essa a reclamação aclamada pelos
participantes do XVI Congresso Nacional do Ministério Público, realizado em novembro de 2005, em Belo Horizonte-MG.
22
Tal como está hoje, vide, através de exemplificação não exaustiva, que a pena cominada para a coibição do abuso de
autoridade (situada entre dez dias a seis meses de detenção) é menor que a pena prevista ao combate de delitos tais como
lesão culposa no trânsito, direção inabilitada (artigos 303 e 309 da Lei nº 9.503/97 – assim como todos os demais delitos de
trânsito); maus tratos a animais, danificação – inclusive culposa – de planta ornamental (artigos 32, e 49 da Lei nº 9.605/98
– assim como todos os outros crimes ambientais); deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia adequadamente
preenchido (artigo 8.078/90 – assim como todos os demais delitos contra as relações de consumo); e, pelo Código Penal,
delitos como lesão corporal – inclusive culposa (artigo 129 e § 6º), injúria (artigo 140, em função da pena mínima cominada), furto - mesmo na sua forma simples – estelionato e receptação – mesmo em sua forma culposa (artigos 155, 171 e 180),
dano e introdução de animais em propriedade alheia (artigos 163 e 164 em função da pena mínima cominada), apropriação
de coisa achada (artigo 169), adultério (artigo 240, em função da pena mínima cominada) etc; e até mesmo punido com
mais brandura que várias contravenções (vide artigos 18, 24, 25, 50, 51, 52, 58, 63, 67 e 70, e os artigos 19, 39, 40, 41, 48,
53, 55, em função do mínimo cominado, todos do Decreto-Lei nº 3.688/41).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Enquanto a reforma não vem, nós, Promotores de Justiça, incumbidos de velar, desde
o prisma constitucional, pela higidez da ordem jurídica, devemos primar pela coerência e racionalidade do sistema penal visando a uma postura funcional que não soe em
prol da arbitrariedade.22
Só nos cabe recordar as palavras de Funes (apud SALGADO, 1962, p. 461): “Todo
jurista é agora um beligerante na defesa do Direito contra a brutalidade, a opressão, a
barbárie, ou um desertor destes deveres em frente ao inimigo”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
1.3 SOBRE O VERDADEIRO PAPEL DO MINISTÉRIO
PÚBLICO NO PROCESSO PENAL EM GRAU DE
RECURSO ORDINÁRIO - BREVE ESTUDO
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
Salvo o melhor juízo dos realmente doutos, não se compadece com os rigores do
princípio do devido processo legal a praxe viciosa de o Procurador de Justiça sempre e sempre emitir parecer nos autos, máxime naquelas hipóteses, como à evidência ocorre na maior parte das vezes, em que não se faz necessário acréscimo algum,
revestindo-se a fala ministerial, em grau de recurso ordinário, de odiosa violação do
contraditório e da ampla defesa, porquanto invariavelmente o seu advento se dá após
a manifestação derradeira da defesa, o que já é chegada a hora de não mais se tolerar,
no mínimo em nome do apego que se há de exibir para com a verdadeira vocação do
Ministério Público.
Atente-se para a judiciosa advertência de Cruz (1997, p. 495), do MP do Distrito Federal (Procurador-Geral de Justiça desde julho de 2004):
5. Tendo em vista que outro órgão do Ministério Público já
lançou arrazoado nos autos acerca do recurso interposto por
ele ou pela defesa, somente se justifica a emissão de parecer
pelo Procurador de Justiça se entender necessário acrescentar algo de relevante aos argumentos lançados pelas partes.
Caso contrário, valer-se-á da vista dos autos para tomar ciência
deles, para averiguar se foi observado o devido processo legal
na tramitação da impugnação, postulando eventual diligência
sanatória, e, principalmente, para preparar sustentação oral do
recurso, caso a entenda necessária.
6. Se o Ministério Público optar pela emissão de parecer nos autos, em sentido contrário aos interesses do acusado, cumpre ao
Desembargador-Relator intimar a defesa para, em prazo igual
ao deferido ao Parquet, manifestar-se sobre o parecer. (grifo
nosso).
Com efeito, a instituição ministerial atua, no processo penal, tanto como custos legis
quanto órgão acusador. Dessa forma, somente na ação penal pública, preponderando,
dependendo apenas da fase procedimental, uma ou outra atuação, mas jamais mutuamente se excluindo, porquanto complementares entre si.
O fato de emitir parecer e de, em sua conclusão, ‘opinar’ pelo
provimento ou não do recurso não significa que deixou o Ministério Público de agir como parte. Conclusão diversa levaria
a conceber-se um processo com apenas uma parte – o acusado
– o que nos parece um verdadeiro absurdo, notadamente diante
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do princípio acusatório que norteia a persecução penal pátria.
(CRUZ, 1997, p. 495).
Ora, sendo certo que compete ao Parquet colaborar com o Judiciário na busca da verdade real e na realização do direito, não é menos certa a afirmação de que, em todas
as suas intervenções processuais, tanto o Promotor de Justiça quanto o Procurador de
Justiça deverão sempre se pautar por critérios de estrita objetividade, pena de odiosa e
repudiável tautologia. Essa vem a ser, por sinal, como também ensina Cruz (1997, p.
495), a linha mestra do novo Código de Processo Penal português, para a instituição
(art. 53). Por mais uma vez, citando-se o genial articulista:
[...] assim como a forma não desnatura a matéria, mas apenas
modifica sua aparência, o parecer do Procurador de Justiça não
elimina, mas tão-somente esconde a função acusatória que nas
alegações finais ou na denúncia do Promotor de Justiça se revela bem mais nítida. Ou será que estas últimas peças processuais
retiram do Ministério Público atuante no primeiro grau a sua
função fiscalizadora?
Nem se argumente que o parecer do Procurador de Justiça, quando todo o processo se
encontra em ordem e pronto para julgamento do recurso ordinário, venha a ser uma
imposição legal, uma vez que os artigos 610 e 613 do CPP apenas fazem referência
à vista dos autos, à Procuradoria-Geral, pelos prazos de cinco e dez dias, respectivamente, exigüidade que já bem sugere não se prestar a instituição a um papel de órgão
consultivo, o que encontraria certamente até mesmo vedação constitucional (artigo
129, IX, in fine, Constituição da República).
Diversamente do que ocorre em outros pontos da lei adjetiva criminal, em que é de
modo claro indicada a providência a ser tomada pela parte ou pelo juiz, naqueles citados dispositivos legais somente se alude à vista do feito, certamente que para ciência e
requerimentos objetivamente necessários, por parte do Procurador-Geral de Justiça.
Ingênuo, quando não despropositado por inteiro, seria admitir que o Judiciário de
segunda instância tenha no Ministério Público, na prática, a figura de uma mal disfarçada assessoria jurídica, quando disso nem precisa, porquanto já dotado de quadro
de assessores – aliás, invariavelmente de notório saber jurídico e de larga experiência
processual – e nem mesmo tem interesse algum, haja vista o dispêndio considerável
de tempo na tramitação do feito entre o Tribunal e a Procuradoria-Geral de Justiça, a
ponto de o referido prazo legal não ser cumprido na quase totalidade das vezes, questão de humana impossibilidade.
O volume de trabalho que assola a Justiça, tanto quanto incomoda a sociedade, já não
pode mais ser ignorado para a perpetuação, sem nenhuma razão ou lógica, de algo que
nada é além de mero costume arraigado nas duas instituições, olvidando-se por completo de normas elementares de agilidade e de eficiência, que sempre hão de nortear
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
toda e qualquer prestação de serviço público, mormente o de natureza jurisdicional.
Marques (apud CRUZ, 1997, p. 496), conforme também citado pelo douto membro do
MPDF, chegou a se posicionar sobre o assunto:
[...] segundo nos parece, o texto mencionado só se afina com os
princípios de nosso processo penal se for entendido em termos
restritos. O procurador-geral deve ter vista dos autos não para
neles oficiar, e, sim, para tomar conhecimento da causa e acompanhar seus trâmites no juízo ad quem.
Ainda sobre a matéria, advertia o saudoso mestre, há exatos quarenta e um anos, que
“[...] não se compadece muito com a estrutura contraditória do processo penal pátrio e
com as garantias de defesa plena do réu, que fale em último lugar um órgão investido
de funções nitidamente persecutórias” (MARQUES apud CRUZ, 1997, p. 498).
Onde, então, a obediência ao princípio de igualdade de armas, se o Ministério Público
intervém após a defesa, ainda que se limite a abraçar a posição da Promotoria, mas
em especial quando aponta dados que passaram despercebidos até então e que são
juridicamente desfavoráveis ao acusado?
Como se falar em acatamento ao contraditório e à ampla defesa se por causa justamente disso – a fala por último – fica a defesa impossibilitada de reagir, obviamente
excetuada a hipótese em que tal fala venha a ser francamente favorável ao réu?
Supriria tal lacuna a sustentação oral, mera faculdade da parte e tão reconhecidamente
difícil, na prática (para quem reside longe das capitais dos estados e com poucos minutos de duração)?
Ora, partindo-se da premissa básica de que a resposta à última indagação é afirmativa,
muito poucas vêm a ser então as vezes em que, com relação ao parecer do Procurador
de Justiça, atende-se ao princípio do contraditório, malgrado tratar-se de autêntica
imposição constitucional (artigo 5º, LV, CF/88)!
A conclusão de tudo isso é, no mínimo, inquietante, pois, na verdade, quem milita nas
lides diárias dos fóruns e dos tribunais sabe perfeitamente que a esmagadora maioria
dos recursos não é sustentada oralmente.
O jovem desembargador Hélcio Valentim [S.l s.n], do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais – até pouco tempo atrás um dos mais ilustres membros do Ministério Público
das Alterosas –, recentemente manifestou entendimento que assume contornos nítidos
de vanguarda, máxime se se tiver em mente o conservadorismo que em boa parte
campeia na referida Corte. Analisando caso concreto, em que houvera argüição de
prefacial pela defesa, o ilustre desembargador esboçou, entre outros, os seguintes co-
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mentários acerca da atuação do MP em grau de recursos criminais ordinários:
Apesar de ter assim procedido até o derradeiro dia como procurador de justiça, sempre me voltei contra o procedimento
consagrado na Procuradoria de Justiça de Minas Gerais, que
é praxe em todas as cúpulas do Ministério Público nacional,
especificamente no que toca à emissão de parecer, sem dar-se à
defesa o direito de acerca dele se manifestar.
E continua o destacado desembargador, com a eloqüência costumeira que o notabilizou, chegando a criticar, subliminarmente, a própria denominação da peça processual
de incumbência da Procuradoria, o parecer, sugerindo sua substituição por requerimento:
O ‘parecer’, tal como concebido hoje, é incompatível com a
atuação do Ministério Público em segundo grau na área criminal, notadamente porque, com o advento da nova ordem constitucional, não pairam dúvidas de que ele é parte, em todos os
graus de jurisdição.
Assim, cumpre-lhe ‘requerer’ e não ‘opinar’, como tem feito.
[...]
Longe de pretender ditar regras ao Ministério Público, instituição de importância ímpar na consolidação do estado democrático de direito hoje experimentado no Brasil, tenho que, assim
como vem se dando a sua atuação em segundo grau, ela é ofensiva aos princípios constitucionais do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa.
[...]
A falta de enfrentamento dessa questão pela quase totalidade
dos doutrinadores sugere que ainda não atentaram para a importância do tema. Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, no entanto, examinou a questão e posicionou-se, concluindo que “se o Procurador de Justiça, por entender indispensável
acrescentar algo de substancial em relação aos argumentos
ofertados nas manifestações anteriores das partes, decide exarar parecer, potencializando futuro julgamento desfavorável à
defesa, cumpre-lhe, como fiscal da Constituição e das leis, pugnar para que se abra vista dos autos à parte contrária, oportunizando o contraditório e restabelecendo o equilíbrio processual,
obrigação esta que, a rigor, seria do Desembargador-Relator,
porquanto, como acentua Cândido Dinamarco, [...] no tema da
prática da isonomia pelo juiz, vê-se que esse deve incluir não só
o de oferecer oportunidades iguais de participação aos litigantes, mas também o de pô-los sempre em situação equilibrada,
mediante decisões coerentes” (O Processo Penal em Face da
Constituição, Forense, 1992, p.61).
De tudo isso se extrai que, se o Ministério Público decide emitir
‘parecer’, acrescentando, por escrito, a visão que o procurador
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de justiça tem da prova e do procedimento, faz-se mister que o
relator, provocado ou não, dê oportunidade para que a defesa
se manifeste, querendo, sobre aquele procedimento. [S.l s.n.]
Assim, dado o caráter dúplice do ofício ministerial na ação penal pública – órgão
acusador e custos legis, ou fiscal da exata aplicação da lei –, não obstante na primeira
instância preponderar a primeira feição, enquanto que na segunda o que sobressai vem
a ser o segundo aspecto de sua atuação, o lançamento de parecer pelo Procurador de
Justiça, posicionando-se sobre o mérito do recurso aviado, a par de não se constituir
em uma imposição legal, isso na melhor exegese dos artigos 610 e 613 do CPP, pode
redundar em lesão ao imprescindível equilíbrio processual, ou princípio da isonomia
das partes ou da paridade de armas, exceto apenas quando, devido à praxe viciosa de
falar nos autos por último, coloca-se o órgão do Parquet de modo francamente favorável ao réu.
Ostentando o feito plena regularidade formal, da mesma forma exigível que tenha
ocorrido normal atuação da Promotoria de Justiça em todos os termos da ação penal
pública condenatória em pauta (art. 564, III, “d”, CPP), nada havendo de relevante
para se acrescentar à linha de argumentação das partes, acusação e defesa, também
inexistindo diligências adicionais a serem requeridas ao relator, bastará que tome a
Procuradoria de Justiça ciência do conteúdo dos autos, anotando qualquer dado que
porventura venha a ser importante para o momento do julgamento (eventual sustentação oral, por exemplo), abstraindo-se o órgão ministerial, nessa fase, de lançar manifestação puramente automática, recusando-se a oficiar sem pautar-se pela imprescindível utilidade prática, adjetivação que deve sempre marcar toda e qualquer fala
processual, sem lugar a exceções de qualquer espécie.
Aguardará o procurador, pois, a ocasião do julgamento da impugnação aviada, para
fins de, a partir da publicação e intimação pessoal do seu resultado, oportunamente,
deliberar acerca da necessidade, ou não, de interposição de recurso especial ou extraordinário, e de eventuais embargos declaratórios.
Já nas vezes em que se fizer importante o procurador acrescentar dados à exposição
das teses das partes, desde que se revista o mencionado acréscimo de contrariedade
aos interesses do acusado, haverá de propugnar ao sobrejuiz relator seja dada oportunidade à defesa para, em igualdade de condições, também se manifestar, homenageando-se, dessa forma, o contraditório.
Tal providência não será necessária quando a fala ministerial limitar-se ao tecimento
de considerações adicionais que sejam claramente favoráveis ao réu, já que, como
é de conhecimento geral, nada obsta que o Procurador de Justiça se posicione contrariamente às teses da Promotoria Pública, corolário do princípio constitucional da
independência funcional.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Evidentemente que o primeiro exame a ser feito no inconformismo aviado diz respeito não à sua procedência em si, mas aos pressupostos objetivos e subjetivos de
sua admissibilidade, com vistas ao juízo de prelibação, do que não pode se furtar o
Procurador, porquanto sempre atua como custos legis, vocação processual inarredável
do Ministério Público.
Portanto, somente após abordar a viabilidade formal do recurso em pauta – propriedade lato et stricto sensu, tempestividade, regularidade de processamento, legitimidade
do recorrente e interesse recursal –, recomendando ao Tribunal o seu conhecimento ou
não, é que se abrirá ao órgão ministerial oficiante no pretório o ensejo para prosseguir
no exame das preliminares, invocadas pela defesa, pela acusação ou por ele mesmo
argüidas e, ato contínuo, se for o caso, a incursão no mérito recursal, a ser pautada
pelos procedimentos aqui anteriormente mencionados (em suma, na medida de sua
real utilidade prática).
Também não pode o Procurador de Justiça se abster, logo em seguida à análise mencionada, de dissecar as questões preliminares de mérito argüidas por qualquer das
partes, dado o imenso relevo jurídico-processual destas, como igualmente não pode
deixar de levantar, quando for o caso e por idênticos motivos, as prejudiciais que
porventura vislumbrar incidentes, desimportante o fato de eventualmente haverem
passado ao largo da percepção da defesa ou da acusação, e do próprio magistrado
presidente do feito.
Todas essas considerações têm por objetivo não apenas, embora primordialmente, a
consagração dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da paridade de armas entre a acusação e a defesa, mas também
o resgate da importância fundamental do ofício do Procurador de Justiça no âmbito
penal, mormente quando tanto se perdeu, no decurso dos últimos anos, em desfavor
de suas atribuições, chegando a se comentar, tantas e tantas vezes, que o parecer seria
a única peça processual sem nenhuma repercussão jurídica nos autos, aquela que, na
realidade, mais parece ser, do que é.
Com efeito, a atuação do MP em segundo grau de jurisdição, na esfera criminal, há
tempos que é marginalizada, relegada a um plano secundário e até humilhante, quando
posta em comparação com as concorridas atribuições ministeriais nas célebres áreas
dos direitos difusos (patrimônio público, infância e adolescência, idosos, deficientes,
consumidor, habitação e urbanismo, saúde, meio ambiente, população indígena etc.).
Esquece-se ou diminui-se, injusta e lamentavelmente, a importância crucial que representa para a sociedade a paz, a segurança, a manutenção da criminalidade sob
controle, como se não constasse, do próprio preâmbulo da Carta Magna, que uma
das destinações primordiais do Estado democrático por ela instituído é, exatamente, a
segurança pública, como um dos valores supremos da sociedade.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
No Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), em seu Capítulo I (Dos Direitos E Deveres Individuais e Coletivos), logo em sua abertura, no artigo 5º, caput, por
acaso não dispõe a Lei Maior que “[...] todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade
[...]”?
Não se compreende, pois, o porquê de tão importante parcela da atuação ministerial,
especialmente quando lida com os mais profundos temores e anseios da sociedade, ser
desmerecedora da devida atenção, inclusive subjugada por uma praxe viciosa absolutamente incondizente com princípios fundamentais do processo.
Estariam os doutrinadores e os tribunais se olvidando dessa importância? Ou será
que podemos atribuir aos próprios Procuradores a pecha da inércia, amparados que
estariam, confortavelmente, na tradição de não serem mais do que meros emissores
de opinião, sem a correlata responsabilidade que certamente adviria se se conscientizassem, finalmente, de sua condição estrita de parte processual, com todos os ônus
daí decorrentes?
É chegada a hora, então, embora já com boa dose de atraso, de não mais se ocultar o
Procurador de Justiça por detrás da cômoda situação de simples parecerista, à guisa de
gabaritado assessor jurídico dos tribunais estaduais, como se não fosse a ele delegada,
pela sociedade destinatária de seu empenho, a valorosa missão de representá-la perante a Justiça, como um órgão instrumentalizador do Poder Judiciário encarregado,
na seara penal, de levar a bom termo a persecução, na busca incessante da melhor
prestação jurisdicional possível.
A respeito da tão esdrúxula quanto inadequada descaracterização momentânea da
condição de parte processual do MP (enquanto o Parquet/Promotor atua inquestionavelmente como parte, o Parquet/Procurador deixa de assim agir para tornar-se mero
parecerista; publicado o acórdão, porém, ele retoma à condição anterior, que era personificada pelo Promotor, para fins de, como parte processual, recorrer, ou não, aos
tribunais superiores ou para aviar embargos declaratórios), bem assinalou o Superior
Tribunal de Justiça, em memorável decisão também constante do citado voto do genial desembargador Hélcio Valentim:
As atribuições de custos legis tem-nas sempre o Ministério Público, qualquer que seja a natureza da função que esteja a exercer – enquanto lhe decorre da própria natureza da instituição,
cumulando-as com aqueloutras de parte no processo penal da
ação pública, incidivelmente por razões diversas. O Ministério
Público, nos processos de ação penal pública, que lhe incumbe
promover, privativamente, como função institucional (Constituição da República, art. 129, I), é sempre parte, mesmo no grau
recursal, em que ocorre o fenômeno da sucessão de órgãos na
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
posição de autor na relação processual.
Viola os princípios constitucionais do contraditório e do devido
processo legal, com iniludíveis reflexos na defesa do paciente,
a inversão das falas das partes em sessão de julgamento de recursos (precedentes).
Ordem concedida para anular o julgamento de recurso em sentido estrito, determinando-se que outro se proceda. (BRASIL,
2002, p. 325, grifo nosso).
No que toca à mencionada crítica do desembargador mineiro ao termo parecer, com
proposta de ser substituído pela expressão requerimento, está plena de razão a arguta
observação, uma vez que condizente por inteiro com sua natureza e com sua índole de
pedido formal, inclusive, como tal, sujeito à revisão por instância superior.
Conclusões
Há o Procurador de Justiça, em hipóteses de recursos ordinários afetos à seara penal
(apelação, recurso em sentido estrito, agravo em execução penal, carta testemunhável,
correição parcial, embargos infringentes e embargos de nulidade), de primeiramente
analisar e posicionar-se quanto aos pressupostos de conhecimento do recurso em
questão, com vistas ao juízo prelibador, apontando-o, se for o caso, como próprio,
tempestivo, regularmente processado, presente, ademais, o legítimo interesse recursal
– sucumbência total ou parcial do recorrente –, ou não, daí havendo de ser conhecido
pelo juízo ad quem, ou não merecer conhecimento, ao seu particular entender.
Mister se faz, ainda, que o Procurador de Justiça examine em profundidade as preliminares argüidas pelas partes, propondo ao Tribunal o seu acolhimento ou a sua rejeição,
a partir de suas (do Procurador) considerações. Deverá levantar, esponte próprio, as
questões prejudiciais de mérito que vislumbrar, requerendo as respectivas medidas
processuais cabíveis.
No tocante ao mérito do inconformismo, porém, deve deixar de emitir posição, desde
que à míngua de necessidade para tanto – naquelas hipóteses em que o feito ostenta
plena regularidade formal –, também para não estimular nenhuma violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa, o que ocorreria ao manifestar-se por último
a instituição que personifica a parte acusatória, o Parquet, o que fatalmente implicaria
desequilíbrio processual. Havendo lacunas importantes nas teses ofertadas, entretanto, e adoção pelas partes de posicionamentos que se vislumbram equivocados ou que
não foram devidos, mútuos ou oportunamente debatidos, é de rigor que apresente o
Procurador de Justiça o seu parecer abordando o mérito recursal, indicando ao colegiado julgador as alternativas, as soluções ou as teses que melhor se lhe apresentam.
No caso de manifestação que contenha, ainda que reflexamente, uma proposta de
agravamento da situação jurídica do réu (inovação substancial desfavorável ao acusado), é imperativo que seja requerida ao relator oportunidade para a defesa técnica con-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tra-argumentar, cumprindo-se os princípios da ampla defesa e do contraditório. Por
lógica, não se pugnará por tal medida quando a fala do Procurador de Justiça revelar
posição francamente favorável ao acusado, ainda que dessa forma haja o mencionado
órgão ministerial eventualmente contrariado o entendimento da Promotoria, mercê do
princípio institucional da independência funcional.
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fevereiro de 2002. Relator: Min. Hamilton Carvalhido. Revista Brasileira de Ciências
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VALENTIM, Hélcio. [S.l. s.n.]. Inédito.
291
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. JURISPRUDÊNCIA
STJ
Processo RHC 19119 / MG ; RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS
2006/0042690-1
Relator(a) Ministro FELIX FISCHER (1109)
Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA
Data do Julgamento 12/06/2006
Data da Publicação/Fonte DJ 04.09.2006 p. 289
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ARTS. 62 E 3º, DA LEI Nº 9.605/98. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. INOCORRÊNCIA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA
JURÍDICA. I - O trancamento de ação por falta de justa causa, na via estreita do
writ, somente é viável desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a
incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou
de prova sobre a materialidade do delito, hipóteses não ocorrentes na espécie (Precedentes). II - Qualquer entendimento contrário, i.e., no sentido de se reconhecer a atipicidade da conduta do ora paciente, demandaria, necessariamente, o revolvimento do
material fático-probatório o que, nesta estreita via, mostra-se inviável (Precedentes).
III - Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu
nome ou em seu benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento
subjetivo próprio” cf. Resp nº 564960/SC, 5ª Turma, Rel.
Ministro Gilson Dipp, DJ de 13/06/2005 (Precedentes). Recurso desprovido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: O presente recurso apresenta dois
tópicos: a) ausência de justa causa para a ação penal em razão da atipicidade da conduta imputada aos recorrentes na exordial acusatória e b) a impossibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas. Quanto ao primeiro tópico, a teor da orientação jurisprudencial desta Corte, o trancamento de ação penal por falta de justa causa
só é possível quando se constata, prima facie, a atipicidade da conduta, a incidência
de causa de extinção da punibilidade, a ausência de indícios de autoria ou de prova da
materialidade do delito. Nesse sentido, os seguintes precedentes: “PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . DELITO TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA.
INDÍCIOS DE AUTORIA. EXISTÊNCIA. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO.
FALTA DE JUSTA CAUSA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. ORDEM DENEGADA. - É entendimento pacífico do Superior Tribunal de
Justiça que o trancamento da ação penal, pela via de habeas corpus , é medida de
exceção, só admissível se emerge dos autos, de forma inequívoca. A inocência do
acusado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade. Não é inepta a denúncia que descreve de forma adequada a conduta incriminada, ainda que não detalhada,
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se é possível ao denunciado compreender os limites da acusação e, em contrapartida,
exercer ampla defesa. - Ordem denegada” (HC 38988/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo
Medina, DJ de 07.11.2005). “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . ART. 1,
INCISO I, DO DECRETO-LEI N.º 201/67. PREFEITO. TRANCAMENTO DA
AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. AFASTAMENTO DO CARGO. VIA IMPRÓPRIA. I - O
trancamento de ação por falta de justa causa, na via estreita do writ, somente é viável
desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de
extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, hipóteses não ocorrentes na espécie (Precedentes). II - Qualquer
entendimento contrário, i.e., no sentido de se reconhecer a atipicidade da conduta da
ora paciente, demandaria, necessariamente, o revolvimento do material fático-probatório o que, nesta estreita via, mostra-se inviável. III - Na linha de precedentes, foge
ao âmbito do hábeas corpus a discussão acerca do afastamento de prefeito municipal
do cargo, decretado em processo criminal, quando as supostas ilegalidades apontadas
não atingiram, ainda que de maneira reflexa, o direito de ir e vir do paciente. (Precedentes do STF e do STJ). Writ parcialmente conhecido e, nesta parte, denegado” (HC
36710/BA, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ 24.10.2005). “HABEAS CORPUS . PENAS. PROCESSUAL PENAL. EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR FALTA DE JUSTA CAUSA. EXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. É entendimento desta Corte
que o trancamento da ação penal por falta de justa causa para a sua propositura só é
possível quando se constate, prima facie, a atipicidade da conduta, a incidência de
causa excludente de culpabilidade, bem como a ausência de indícios de autoria ou
prova da materialidade do delito. 2. O exame sumário exigido, tendo por base os documentos que instruem a impetração, não possibilita a conclusão pela razoabilidade
das ponderações do impetrante sem que haja exame mais profundo da prova. 3. Ordem denegada” (HC 38247/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de
24.10.2005). “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL
PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA MAJORADA. INTEMPESTIVIDADE.
TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL EM CURSO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO DEMONSTRADA. RECURSO CONHECIDO COMO HABEAS CORPUS
SUBSTITUTIVO. ORDEM DENEGADA. 1. É intempestivo o recurso ordinário em
habeas corpus interposto fora do prazo legal de cinco dias. Todavia, a jurisprudência
desta Corte inclina-se em conhecer do recurso como writ substitutivo, em privilégio
ao princípio da ampla defesa. Precedentes. 2. O trancamento da ação penal por esta
via justifica-se somente quando verificadas, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria e prova da materialidade,
o que não se vislumbra na hipótese dos autos. Precedentes. 3. Não há falar em trancamento de ação penal iniciada por denúncia que satisfaz todos os requisitos do art. 41
do CPP, sendo mister a elucidação dos fatos em tese delituosos descritos na vestibular
acusatória à luz do contraditório e da ampla defesa, durante o regular curso da instrução criminal. 4. Recurso ordinário conhecido como habeas corpus substitutivo. Ordem denegada” (RHC 17565/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de
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26.09.2005). In casu, não se vislumbra qualquer das hipóteses mencionadas. Veja-se
o seguinte excerto da exordial acusatória, verbis: “O Ministério Público Estadual ,
pelos Promotores de Justiça especializados na Defesa do Meio Ambiente, vem, em
conformidade com a legislação processual penal vigente e lastreado pelas peças de
informação inclusas, oferecer a presente DENÚNCIA em face de JOÃO BATISTA
MACEDO DA SILVA, brasileiro, filho de Erondina Macedo da Silva e de Batista da
Silva, residente à Rua Santa Catarina, n° 610, bairro de Lourdes, nesta cidade, IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS, pessoa jurídica registrada no CNPJ sob o n°
29.744.778/1103-75, por seu representante legal, com sede na Rua dos Aimorés, n°
2.304, bairro de Lourdes, nesta cidade, Conforme registrou boletim de ocorrência
policial CIAD/P-2005-0709459, da 4ª Cia Esp/ 1°BPM da Polícia Militar Ambiental
e comprovam os demais documentos constantes dos autos do P.A. no 194/05, a pessoa
física denunciada, agindo livre, voluntária e conscientemente, em nome e benefício da
organização religiosa também denunciada, determinou a destruição das casas de n°
2304, 2288 e 2270 da Rua dos Aimorés, nesta cidade, fato que ocorreu no final de
semana compreendido entre o dia 13 a 15 de agosto do corrente ano, sendo que tais
casas eram protegidas por atos administrativos de inventário e registro documental
expedidos pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, e
estavam em análise para tombamento. Tal destruição/demolição ocorreu sem licença/
autorização do referido órgão de patrimônio cultural. Os atos administrativos de proteção dos bens culturais foram praticados nos processos administrativos nos
01.093458.04.37; 01.093456.04.01; e 01.148157.04.09 que tramitaram no Conselho
Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte. Consta dos
autos do P.A n° 194/04 que a organização religiosa, em 11 de novembro de 2004,
formulou pedido de intervenção nos bens imóveis protegidos visando a ampliação da
área do empreendimento denominado “catedral da fé” ou “templo da fé” para implantação de área descoberta, o que implicava na demolição das casas protegidas. Em
reunião do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural, realizada em dezembro de
2004, houve inicio de julgamento do pedido formulado, sendo proferido voto da conselheira-relatora no sentido da não autorização da destruição das casas, conforme o
parecer técnico emitido pela Gerência de Patrimônio Histórico do município. A decisão sobre o pedido formulado não foi concluída nesta reunião, tendo em vista que
outra conselheira solicitou vistas do processo. De qualquer forma, não houve qualquer
ato autorizativo do Conselho Deliberativo para a destruição das casas protegidas. Vale
ainda registrar que, em 31 de dezembro de 2004, a organização religiosa foi formalmente notificada, por meio da notificação n° 624182-A, da Secretaria Municipal de
Regulação Urbana, em caráter cautelar, sobre a necessidade de que qualquer demolição ou construção nos imóveis mencionados deveria ser licenciada previamente pelo
órgão competente. A conduta do sr. João Batista Macedo da Silva encontra tipificação
no art. 62, da Lei 9.605/98. A conduta delitiva praticada pela pessoa física repercute
em responsabilidade penal da pessoa jurídica beneficiária, a teor do que dispõe o art.
3° da Lei 9.605/98” (fls. 27/29). De fato, da maneira como posta, não há como se
concluir primo ictu oculi pela atipicidade da conduta atribuída aos recorrentes, ainda
mais na estreita via do habeas corpus. Constam dos autos que o primeiro denunciado
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agindo livre, voluntária e conscientemente, em nome e benefício da segunda denunciada (é o que diz a denúncia) teria determinado a destruição de três casas que estavam
protegidas por atos administrativos de inventário e registro documental expedidos
pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Ainda de acordo com a proemial, verifica-se que tais fatos de deram entre os dias 13 e 15 de agosto
de 2005 e que no início do mês de dezembro do referido ano o Conselho Deliberativo
do Patrimônio Cultural teria iniciado o julgamento de um pedido de intervenção nos
bens imóveis protegidos visando a ampliação da área do empreendimento denominado “catedral da fé” ou “templo da fé” para implantação de área descoberta o que implicava na demolição das casas protegidas formulada pela pessoa jurídica denunciada
em 11/11/2004. Ocorre que o referido julgamento não se encerrou em razão de um
pedido de vista após o voto da relatora pela não autorização da destruição das casas
com base em parecer técnico emitido pela Gerência de Patrimônio Histórico do município Ressalte-se ainda, que em 31/12/2004 (antes, portanto, dos fatos) a organização
religiosa foi formalmente notificada pela Secretaria Municipal de Regulação Urbana,
em caráter cautelar, sobre a necessidade de que qualquer demolição ou construção nos
imóveis deveria ser precedida de autorização do órgão competente. Dessa maneira,
tenho que, na espécie, seria demasiadamente precipitado o trancamento da ação penal,
pois não constatada de plano a atipicidade da conduta do ora paciente, tendo em vista
que a tese veiculada no presente writ reclama, estreme de dúvida, uma maior dilação
probatória, o que se mostra inviável na via eleita. Além do mais, a constatação prima
facie da ausência de dolo na conduta da agente, no caso concreto, demanda o exame
aprofundado do material fático probatório, o que é vedado na estreita via do habeas
corpus. Nesse sentido, os seguintes precedentes: “PROCESSUAL PENAL. HABEAS
CORPUS . ARTS. 189 E 195 DA LEI Nº 9.279/96. TRANCAMENTO DA AÇÃO
PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. ILEGITIMIDADE DA PARTE. AUSÊNCIA
DE DOLO. I - O trancamento de ação por falta de justa causa, na via estreita do writ,
somente é viável desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de
prova sobre a materialidade do delito, hipóteses não ocorrentes na espécie (Precedentes ). II - A alegação de ausência de dolo na conduta dos pacientes, no caso, não cabe
ser examinada em sede de habeas corpus , em face da vedação ao minucioso exame
das provas colhidas no processo (Precedentes ).Writ denegado” (HC 40.136/SP, 5ª
turma, de minha relatoria, DJU de 22/08/2005). “TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. FURTO. SINAL DE TV A CABO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
AUSÊNCIA DE DOLO. ERRO DE PROIBIÇÃO. IMPROPRIEDADE DO WRIT.
Inquérito policial que apura crime, em tese, descrito no art. 155, § 3º, CP, comparando
a transmissão de sinal de áudio e vídeo a energia com valor econômico. A atipicidade
da conduta exige uma análise aprofundada nos elementos fáticos, reclamando, inclusive, perícia técnica e científica. A ausência de dolo e do erro de proibição devem ser
apreciadas na cognição ordinária, pois exigem amplo exame fático-probatório. Ordem
denegada” (HC 21175/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, DJU de 23/08/2004).
“CRIMINAL. HC. INJÚRIA, CALÚNIA E DIFAMAÇÃO CONTRA MAGISTRADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO-
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EVIDENCIADA DE PLANO. IMUNIDADE PROCESSUAL DE ADVOGADO.
INAPLICABILIDADE. AUSÊNCIA DE DOLO NA CONDUTA. IMPROPRIEDADE DO WRIT. ORDEM DENEGADA. Hipótese em que é atribuída ao paciente a
prática de injúria, calúnia e difamação contra Magistrado, por ter, em petição de razões de apelação, se utilizado de expressões difamatórias, bem como injuriosas para
se referir ao Juiz, imputando a este fato tido como crime. Somente se reconhece a
falta de justa causa para a ação penal quando, de pronto, sem a necessidade de exame
valorativo do conjunto fático ou probatório, evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade.
A alegação de ausência de dolo na conduta do paciente não pode ser reconhecida em
sede de habeas corpus , pois é flagrante a impropriedade do writ para tal tipo de análise, pois ensejaria o incabível cotejo do material cognitivo. A imunidade do advogado
não é absoluta, restringindo-se aos atos cometidos no exercício da profissão, em função de argumentação relacionada diretamente à causa. Precedentes do STJ e do STF.
Ordem denegada” (HC 25705/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de
02/08/2004). “RECURSO EM HABEAS CORPUS . DENÚNCIA. ESTELIONATO.
AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE DOLO NA CONDUTA DO AGENTE. EXAME DE PROVA. INVIABILIDADE. Em sede de habeas corpus , conforme entendimento pretoriano, somente é
viável o trancamento de ação penal por falta de justa causa quando, prontamente,
desponta a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou se acha extinta a punibilidade, circunstâncias não evidenciadas na espécie. A aferição da existência de dolo
na conduta do agente é providência que demanda, necessariamente, exame aprofundado de provas, razão pela qual a cognição sumária do habeas corpus mostra-se inidônea. Recurso desprovido” (RHC 14804/SP, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 15/03/2004). Em relação ao segundo tópico, admite-se a
responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu
benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilização do ente moral
dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio”
, conforme bem ressaltou o Exmº Sr. Ministro Gilson Dipp (Resp nº 564960/SC, 5ª
Turma, DJ de 13/06/2005). Nessa linha os seguintes precedentes: “RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO PROCESSUAL PENAL.
CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA.
OCORRÊNCIA. 1. Admitida a responsabilização penal da pessoa jurídica, por força
de sua previsão constitucional, requisita a actio poenalis , para a sua possibilidade, a
imputação simultânea da pessoa moral e da pessoa física que, mediata ou imediatamente, no exercício de sua qualidade ou atribuição conferida pela estatuto social,
pratique o fato-crime, atendendo-se, assim, ao princípio do nullum crimen sine actio
humana . 2. Excluída a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas, o trancamento da ação penal, relativamente à pessoa jurídica, é de rigor. 3.
Recurso provido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício.” (RMS 16696/PR, 6ª
Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 13/03/2006). “CRIMINAL. RESP.
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CRIME AMBIENTAL PRATICADO POR PESSOA JURÍDICA . RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DO ENTE COLETIVO. POSSIBILIDADE. PREVISÃO CONSTITUCIONAL REGULAMENTADA POR LEI FEDERAL. OPÇÃO POLÍTICA DO
LEGISLADOR. FORMA DE PREVENÇÃO DE DANOS AO MEIO-AMBIENTE .
CAPACIDADE DE AÇÃO. EXISTÊNCIA JURÍDICA . ATUAÇÃO DOS ADMINISTRADORES EM NOME E PROVEITO DA PESSOA JURÍDICA . CULPABILIDADE COMO RESPONSABILIDADE SOCIAL. CO-RESPONSABILIDADE. PENAS ADAPTADAS À NATUREZA JURÍDICA DO ENTE COLETIVO. ACUSAÇÃO
ISOLADA DO ENTE COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE. ATUAÇÃO DOS ADMINISTRADORES EM NOME E PROVEITO DA PESSOA JURÍDICA . DEMONSTRAÇÃO NECESSÁRIA. DENÚNCIA INEPTA. RECURSO DESPROVIDO. I. A
Lei ambiental , regulamentando preceito constitucional, passou a prever, de forma
inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao
meio-ambiente . III. A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das
condutas lesivas ao meio-ambiente , mas como forma mesmo de prevenção geral e
especial. IV. A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. V. Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento
jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal. VI. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica , neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador
ao agir em seu nome e proveito. VII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada
quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do
ente moral. VIII. “De qualquer modo, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou
indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado.” IX. A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas
penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica , todas adaptadas à sua
natureza jurídica . X. Não há ofensa ao princípio constitucional de que “nenhuma
pena passará da pessoa do condenado...”, pois é incontroversa a existência de duas
pessoas distintas: uma física - que de qualquer forma contribui para a prática do delito
- e uma jurídica , cada qual recebendo a punição de forma individualizada, decorrente
de sua atividade lesiva. XI. Há legitimidade da pessoa jurídica para figurar no pólo
passivo da relação processual- penal. XII. Hipótese em que pessoa jurídica de direito
privado foi denunciada isoladamente por crime ambiental porque, em decorrência de
lançamento de elementos residuais nos mananciais dos Rios do Carmo e Mossoró,
foram constatadas, em extensão aproximada de 5 quilômetros, a salinização de suas
águas, bem como a degradação das respectivas faunas e floras aquáticas e silvestres.
XIII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de
uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral. XIV. A atuação do
colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa. XV.
A ausência de identificação das pessoa físicas que, atuando em nome e proveito da
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pessoa jurídica, participaram do evento delituoso, inviabiliza o recebimento da exordial acusatória. XVI. Recurso desprovido.” (REsp 610114/RN, 5ª Turma, Rel. Min.
Gilson Dipp, DJU de 19/12/2005, grifei). “CRIMINAL. CRIME AMBIENTAL PRATICADO POR PESSOA JURÍDICA . RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DO ENTE
COLETIVO. POSSIBILIDADE. PREVISÃO CONSTITUCIONAL REGULAMENTADA POR LEI FEDERAL. OPÇÃO POLÍTICA DO LEGISLADOR. FORMA DE
PREVENÇÃO DE DANOS AO MEIO-AMBIENTE . CAPACIDADE DE AÇÃO.
EXISTÊNCIA JURÍDICA . ATUAÇÃO DOS ADMINISTRADORES EM NOME E
PROVEITO DA PESSOA JURÍDICA . CULPABILIDADE COMO RESPONSABILIDADE SOCIAL. CO-RESPONSABILIDADE. PENAS ADAPTADAS À NATUREZA JURÍDICA DO ENTE COLETIVO. RECURSO PROVIDO. I. Hipótese em
que pessoa jurídica de direito privado, juntamente com dois administradores, foi denunciada por crime ambiental , consubstanciado em causar poluição em leito de um
rio, através de lançamento de resíduos, tais como, graxas, óleo, lodo, areia e produtos
químicos, resultantes da atividade do estabelecimento comercial. II. A Lei ambiental ,
regulamentando preceito constitucional, passou a prever, de forma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meio-ambiente
. III. A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais
advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio-ambiente , mas como forma mesmo de prevenção geral e especial. IV. A
imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de
praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. V. Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica
atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar
condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal. VI. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa
jurídica , neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu
nome e proveito. VII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver
intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral.
VIII. “De qualquer modo, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou
de seu órgão colegiado.” IX. A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa
jurídica é a própria vontade da empresa. A co-participação prevê que todos os envolvidos no evento delituoso serão responsabilizados na medida se sua culpabilidade. X.
A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica , todas adaptadas à sua natureza jurídica. XI. Não há ofensa ao princípio constitucional de que “nenhuma pena passará da pessoa do
condenado...”, pois é incontroversa a existência de duas pessoas distintas: uma física
- que de qualquer forma contribui para a prática do delito - e uma jurídica , cada qual
recebendo a punição de forma individualizada, decorrente de sua atividade lesiva.
XII. A denúncia oferecida contra a pessoa jurídica de direito privado deve ser acolhida, diante de sua legitimidade para figurar no pólo passivo da relação processual- penal. XIII. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.” (REsp 564960/SC, 5ª
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 13/06/2005, grifei). Na plano doutrinário, temse: Klaus Tiedemann: “(...) la sociología nos enseña que la agrupación crea un ambiente, un clima que facilita e incita a los autores físicos (o materiales) a cometer delitos en beneficio de la agrupación. De ahí la idea de no sancionar solamente a estos
autores materiales (que pueden cambiar y ser reemplazados), sino también, y sobre
todo, a la agrupación misma” (Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en el derecho comparado, in “Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas e
Medidas Provisórias e Direito Penal”, coord. Luiz Flávio Gomes, RT, 1999, p. 27).
David Baigún, dissertando sobre o sistema da dupla imputação, assevera: “Este sistema, que se cobija ya bajo el nombre de doble imputación, reside esencialmente en
reconocer la coexistencia de dos vías de imputación cuando se produce un hecho delictivo protagonizado por el ente colectivo; de una parte, la que se dirige a la persona
jurídica, como unidad independiente y, de la otra, la atribución tradicional a las personas físicas que integram la persona jurídica” (Naturaleza de la acción institucional en
el sistema de la doble imputación. Responsabilidad penal de las personas jurídicas, in
“De las penas”, coord. Baigún, Zaffaroni, García-Pablos e Pierangeli, Depalma, 1997,
p. 25). Na mesma linha o escólio de Gianpaolo Poggio Smanio (in A responsabilidade
da pessoa jurídica, www.jus2.uol.com.br.doutrina/texto.asp?id=5713) e Luiz Flávio
Gomes (in Direito Penal, parte geral - Teoria constitucionalista do delito, RT, 2004, p.
97). Esse último autor, acerca da teoria da dupla imputação, escreve que “o delito jamais pode ser imputado exclusivamente à pessoa jurídica. Deve ser imputado à pessoa
física responsável pelo delito e à pessoa jurídica. E quando não se descobre a pessoa
física? Impõe-se investigar o fato com maior profundidade. Verdadeiro surrealismo
consiste em imputar um delito exclusivamente à pessoa jurídica, deixando o criminoso (o único e verdadeiro criminoso) totalmente impune” .No caso em tela, tal exigência foi atendida. Ante o exposto, nego provimento ao recurso. É o voto.
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3. COMENTÁRIO À JURISPRUDÊNCIA – PROCESSO PENAL
3.1 CRIMES HEDIONDOS E PROGRESSÃO NO REGIME PRISIONAL
CARLOS HENRIQUE FLEMING CECCON
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
1. Considerações Iniciais
A Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90), em vigência há mais de dezesseis
anos, embora venha se sujeitando a inúmeras e variadas críticas por suas imperfeições técnico-jurídicas, trouxe um significativo avanço na missão repressora do Direito Penal. O texto legal, dando cumprimento a mandamento constitucional (artigo
5º, XLIII), nomeou os crimes hediondos e impôs tratamento repressor diferenciado
aos seus autores, com destaque para a determinação de que o condenado cumpra a
pena integralmente no regime fechado, ressalvada a possibilidade de obtenção do livramento condicional ao condenado não reincidente específico, depois de resgatados
dois terços da pena e desde que satisfeitas as demais exigências de natureza subjetiva
(Código Penal, artigo 83).
A vedação da progressão no regime prisional aos autores de crimes hediondos vem
sendo objeto de calorosa discussão na doutrina e na jurisprudência, a qual culminou
na recente decisão da Suprema Corte que reconheceu, incedenter tantum, no controle
difuso, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 82.959-7/SP, a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.
Com base nessa decisão, que alterou toda a orientação jurisprudencial construída ao
longo dos dezesseis últimos anos, propomo-nos, neste artigo, a refletir sobre a vedação da progressão no regime prisional aos autores de crimes hediondos em cotejo
com a posição apresentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas
Corpus em destaque.
2. Da Eficácia da Decisão do Supremo Tribunal Federal
A vedação do benefício da progressão no regime prisional aos autores de crimes hediondos, por força do que dispõe o artigo 2º, § 1º, da Lei n.º 8.072/90, é matéria que
gera controvérsia desde a edição do texto legal e tem suscitado calorosos debates
em nossos Pretórios. Em recente julgamento, o Supremo Tribunal Federal, por seu
Tribunal Pleno, apreciando o Habeas Corpus n.º 82.959-7/SP, proferiu decisão sobre
o tema, declarando, por seis votos contra um, a inconstitucionalidade do dispositivo
legal em destaque, esposando o entendimento de que a vedação da progressão meritória no regime prisional malfere a garantia constitucional da individualização da pena
(artigo 5º, XLVI).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
À primeira vista, numa interpretação meramente epidérmica do julgado em referência, poderíamos ser levados ao entendimento de que a declaração incidental da inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos deverá obstar os
Magistrados das instâncias inferiores de continuar vedando a progressão no regime
prisional em suas decisões, bem como impossibilitará o trânsito às instâncias constitucionais para o debate sobre a vigência do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. Há já
decisões, inclusive no Estado de Minas Gerais, que, em face da decisão do Supremo
Tribunal Federal, têm emitido pronunciamentos jurisdicionais no sentido de admitir a
progressão no regime, ao tão-só argumento de que o debate do tema chegou a termo
com a decisão da alta corte.
No entanto, entendemos que o veredicto do Pretório Excelso tem efeitos limitados ao
processo ao qual se refere, não se projetando aos demais casos que deverão ser julgados nas instâncias ordinárias ou extraordinárias; também não possui força para incidir
sobre casos já julgados definitivamente, sob pena de ofensa à coisa julgada formal e
material. Na realidade, o acórdão do Supremo Tribunal Federal revela hipótese típica
de controle difuso ou aberto, cujos efeitos não devem se projetar a outros processos
nem obstar que os Tribunais e Juízes possam continuar esposando o entendimento que
vinham defendendo ao longo dos anos, qual seja, o de que a vedação da progressão
meritória está em perfeita sintonia com as garantias insertas na Constituição. Sobre
esse tipo de controle, esclarece Moraes (2006, 639-641):
Na via de exceção, a pronúncia do Judiciário, sobre a inconstitucionalidade, não é feita enquanto manifestação sobre o objeto
principal da lide, mas sim sobre questão prévia indispensável
ao julgamento de mérito. Nessa via, o que é outorgado ao interessado é obter a declaração de inconstitucionalidade somente
para o efeito de isentá-lo, no caso concreto, do cumprimento
da lei ou do ato, produzidas em desacordo com a Lei maior.
Entretanto, este ato ou lei permanece válido no que se refere à
sua força obrigatória com relação a terceiros. E arremata, enfatizando que o controle difuso caracteriza-se, principalmente,
pelo fato de ser exercitável somente perante um caso concreto a
ser decidido pelo Poder Judiciário. Assim, posto um litígio em
juízo, o Poder Judiciário deverá solucioná-lo e para tanto, incidentalmente, deverá analisar a constitucionalidade ou não da
lei ou do ato normativo. A declaração de inconstitucionalidade
é necessária para o deslinde do caso concreto, não sendo pois
objeto principal da ação.
Somente se poderia admitir a não-incidência da vedação inserta no artigo 2º, § 1º, da
Lei nº 8.072/90 na hipótese de o Senado Federal obstar sua aplicação, ex vi do disposto no artigo 52, X, da Magna Carta, ou se declarada, na forma preconizada pelo
ordenamento jurídico vigente, a inconstitucionalidade, por ação direta, desse texto
legal. Sobre o assunto, enfatiza Cerqueira (2006):
301
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
O controle difuso nos Tribunais está previsto na CF/88, artigo
97 e como tal é matéria de ordem pública. Não se pode emprestar efeito erga omnes a um controle difuso, sem a chancela
do Senado, pois do contrário a cláusula pétrea da separação de
poderes (vedação material implícita) estaria violada, eis que
somente na hipótese do 52,X da CF/88 (além do controle concentrado) é que a lei estaria afastada do ordenamento jurídico
[...] o certo é que a decisão do STF não se trata, em controle
difuso, de ato declaratório e sim ato complexo, onde somente
com a manifestação do Senado Federal se completa tal operação de suspensão da execução da lei. Isto porque o artigo 52,
X é a consagração do artigo 2 da mesma Carta Política, pois
do contrário o STF estaria operando como legislador positivo
e não negativo.
O dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos encontra-se ainda em pleno vigor. A decisão incidental proferida em caso específico e versando sobre o pedido do autor não
traduz hipótese elisiva da vigência da Lei Federal. Nesse aspecto, somente se poderia
admitir que a medida de controle jurisdicional da constitucionalidade emanada do v.
acórdão estaria completa após ato do Senado Federal, mediante suspensão da vigência
do dispositivo legal, providência não constatada até a presente data.
O pensamento defendido nos votos vencedores e exarados no habeas corpus em comento está limitado a produzir efeitos no âmbito do processo judicial em que foram
proferidos, notadamente porque os argumentos de direito em que se fundamenta esse
v. acórdão despertam o debate de novos temas envolvendo a interpretação das normas
constitucionais, especificamente no que se refere à vigência e à incidência de outros
princípios e garantias consagrados na Magna Carta, os quais não podem ser olvidados. Ademais, devemos consignar que, em reiteradas decisões, o Supremo Tribunal
Federal já havia exarado seu entendimento pela constitucionalidade do que dispõe o
artigo 2º, § 1º, da Lei n.º 8.072/90. Dessa forma, não se pode admitir que uma decisão
isolada, mesmo que proferida pelo Pleno, tenha habilidade para alterar toda a orientação jurisprudencial até então dominante ou mesmo emergir na condição de decisão
vinculante.
Veja-se, a respeito, que a chefia do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
expediu ato administrativo com recomendação a seus membros para que continuem
prequestionando a negativa de vigência pelos Tribunais, do que dispõe o artigo 2º, §
1º, da Lei n.º 8.072/90 e para que sejam promovidos os recursos constitucionais contra
decisões que reconhecerem a inconstitucionalidade da Lei dos Crimes Hediondos.
Nesse aspecto, não se pode esquecer que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal conta com votos vencidos e os recursos extraordinários que deverão subir para
o questionamento da vigência do artigo 2º, § 1º, da Lei n.º 8.072/90 serão apreciados
por Turmas Julgadoras, muitas vezes compostas por Ministros que se viram vencidos
nos votos proferidos, de modo que haverá possibilidade de se reabrir a discussão sobre
302
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
a validade da lei federal.
Enquanto isso, há iniciativa de emenda à Constituição e à própria Lei dos Crimes
Hediondos. Está em tramitação projeto de emenda à Constituição Federal para que
o inciso XLIII do art. 5º seja reescrito, devendo constar expressamente que é vedada
a progressão no regime prisional aos autores de crimes hediondos, além dos outros
benefícios que o atual texto constitucional vedou. Também há iniciativa de projeto de
lei que propõe um meio termo para o impasse originado pela decisão do Supremo. A
proposta nesse sentido é de permitir-se a progressão, diferenciada aos autores de crimes hediondos, desde que o condenado tenha cumprido pelo menos metade da pena,
se não-reincidente, ou dois terços se for reincidente específico.
É preciso observar que, entre a publicação da decisão do Supremo Tribunal Federal e
a entrada em vigor das reformas legislativas, haverá decisões concedendo o direito à
progressão; outras permitirão a progressão desde que cumprido tempo diferenciado;
e outras não admitirão o benefício com o cumprimento de apenas um sexto da pena.
Até que entrem em vigor as reformas, teremos traficantes, estupradores, assassinos,
seqüestradores e outros criminosos do gênero obtendo o benefício da progressão meritória no regime, desde que tenham ficado pelo menos um sexto da pena na cadeia,
com bom comportamento, e que demonstrem preencher os requisitos denominados
subjetivos, aferidos, em regra, pelos carcereiros das cadeias públicas do interior do
Estado. Esses cidadãos poderão ser colocados em regime de liberdade diurna, trabalhando fora do presídio e recolhendo-se à noite, feriados e fins de semana para
repouso. Desse modo, um traficante de porta de escola que tenha sido condenado a
cumprir a pena de seis anos (geralmente são condenados à pena mínima de três anos),
depois de cumprir apenas um ano da pena, poderá progredir do regime fechado (agora
inicial fechado) para o semi-aberto e voltar às suas atividades na traficância durante
sua jornada de trabalho externo.
Enfim, essa é a situação que vivenciaremos e estaremos nos deparando com decisões
dos tribunais que deverão deferir a progressão no regime, ao singelo argumento de
que a matéria encontra-se pacificada no Supremo Tribunal Federal, quando, na realidade, apenas seis dos onze Ministros proferiram o dito voto de pacificação.
3. Da Efetividade do Direito Penal
O regime integralmente fechado para o cumprimento da pena imposta aos autores de
crimes hediondos decorre da realidade instituída pelo nosso legislador constitucional,
que previu, no rol das garantias e deveres individuais, a necessidade de que legislação
infraconstitucional nomeasse e aplicasse tratamento diferenciado aos autores dessas
infrações penais, objetivando a real efetividade do direito repressor.
O artigo 5º, XLIII, da Magna Carta estabeleceu que aos autores de crimes hediondos
e infrações penais assemelhadas são vedados os benefícios da graça, anistia, indulto e
fiança, o que traduz demonstração inequívoca de que a eles deve ser dispensado tra-
303
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tamento de repressão exemplar. Nesse raciocínio, não se pode admitir que os direitos
assegurados ao cidadão e diretamente a toda a sociedade sejam relegados a um plano
de intensa indiferença em homenagem aos direitos do infrator da norma penal, dos homicidas, dos estupradores, dos seqüestradores, dos traficantes e de outros que cometem infrações de gravidade análoga e que devem receber especial atenção do Estado,
seja no que se refere ao estabelecimento de normas repressoras mais expressivas, seja
no que se refere à imposição de maior rigor no processo de execução das penas a eles
aplicadas. No escólio de Roxin (1976, p. 76):
O Direito Penal serve simultaneamente para limitar o poder de
intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado,
mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos
abusos do indivíduo. Estes dois componentes – o correspondente ao Estado de Direito e o protetor da liberdade individual, e o
correspondente ao Estado de Direito e preservador do interesse
social mesmo à custa da liberdade do indivíduo – sendo objecto
de abstracção conceptual, implicam características opostas.
A Magna Carta, consagrando os direitos fundamentais do cidadão (sejam réus sejam vítimas), sobre os quais se assenta a construção de nossa República, cuidou de
prever em seu corpo – e impor ao legislador infraconstitucional – o dever de nomear
os crimes de natureza hedionda em face da necessidade de fazer imperar tratamento
diferenciado aos seus autores, não somente com o escopo de ver garantidos os fins
de prevenção da norma penal incriminadora (velando pelo não-incentivo à prática de
crimes) como também para sujeitar o infrator da lei penal a um tratamento curativo
e de regeneração com acompanhamento minudente e em estabelecimento penal adequado à pena e à gravidade do delito. É o que diz o artigo 5º, XLVIII, da Constituição
da República.
E foi exatamente isso o que fez o legislador infraconstitucional ao nomear os crimes
hediondos e outros que lhe são assemelhados, dando cumprimento a preceitos emergentes da Magna Carta, estabelecendo diferenciação, de natureza penal e processual
penal, no tratamento a esses infratores e em defesa dos interesses basilares nos quais
se assenta a construção da República. Aliás, nesse ponto, deve-se ressaltar que o Direito Positivo em sua essência volta sua atenção para a tutela da dignidade do ser
humano lesado com o ato delituoso.
As hipóteses aqui verificadas incidem sobre aquilo que se denomina Direito Penal diferenciado. E assim o é não porque diante da dogmática penalista clássica, que tendia
a explicitar o direito como neutro e sem observância de valores para simples aplicação do fattispecie. E nem tampouco aquela outra dogmática pseudovanguardista, que
busca nomenclar de crime de bagatela tipos penais de pequeno potencial ofensivo.
Ao contrário disso, opera-se a aplicação do Direito Penal diferenciado, assim como
do Direito Processual diferenciado justamente porque a própria Constituição Federal
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
cuidou de diferenciar os tipos penais que são mais agressivos às vítimas, à sociedade
e ao Estado. É o caso dos crimes qualificados como hediondos.
Já houve a teoria distorcida de que o Estado, por meio da Lei de Crimes Hediondos,
estaria tão-somente a proteger o patrimônio da classe milionária, já que por tal dogmática exigia-se apenas a proteção da produção. Ora, o que se vê é justamente o lado
oposto disso, pois se sabe que as normas existem para implementar as funções do Estado e este age evidentemente para evitar que as pessoas sofram prejuízos respeitantes
à sua própria dignidade.
A tutela jurisdicional criminal é entendida como a forma pela qual o Estado, por intermédio do Poder Judiciário, aplica as normas penais aos cidadãos. É a aplicação,
via processo penal, das interdições prescritas no Direito Penal. A dogmática jurídica
corrente e coerente pressupõe que o Direito Penal estabeleça as ações e omissões
proibidas (os delitos – mala proibita) e a conseqüente pena, de maneira geral a toda
sociedade, a fim de resolver seus conflitos e estabelecer a paz social e o bem comum.
No caso do Direito Penal e sua aplicação aos crimes hediondos, também é tarefa do
operador da lei incrementar uma hermenêutica diferenciada, em que, na realidade, sua
obrigação seja trabalhar com a jurisdição constitucional, utilizando tanto as normas
infraconstitucionais como aquelas outras previstas na Lei Maior, tudo isso para dar
racionalidade ao sistema jurídico.
Ora, cabe aqui relembrar que coexistem duas dignidades a serem tratadas. A primeira
é a do réu condenado com sentença transitada em julgado e que exige, em nome disso,
o direito à progressão de regime. De outro lado, temos a dignidade da vítima ou de
seus familiares, que viram sua integridade física, moral e psíquica humilhada e quase
destruída por conta da ação do réu. Qual dignidade vale mais? E o interesse coletivo?
A sociedade não reclama a efetividade do direito repressor? Como poderíamos alcançar essa efetividade na tutela dos direitos do indivíduo e da coletividade, destinatária
da proteção do direito repressor, se caminhássemos no sentido de enaltecer a pessoa
humana que infringe a norma em detrimento da própria dignidade do ser humano
lesado pela prática da infração penal?
O valor fundamental da ciência jurídica é o respeito pela vida humana, mesmo porque, como ensina Lafer (1988, p. 118), “[...] o valor da pessoa humana enquanto
conquista histórico-axiológica encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais”. Ora, o Direito Penal, por sua vez, apresenta como elementos de sua estrutura organizacional a dicotomia lesão-bem jurídico. Há, portanto, nesse aspecto, uma
interseção ou um ponto comum entre a lei fundamental e a legislação penal, qual seja,
a pessoa. Por isso, ao se abordar o fundamento da dignidade da pessoa humana na
órbita do Direito Penal, está-se tratando da pessoa como sujeito de direito e nunca no
seu antagonismo, objeto de direito.
Verifica-se que a própria filosofia do direito passou a ter como valor último da ordem
305
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
jurídica a pessoa humana, sendo isso possível por dois principais motivos. Primeiro,
porque o direito somente encontra fundamentação ou tem existência para regular as
atividades e a sociabilidade humanas. Segundo, porque, considerando a análise histórica da humanidade – quase sempre moldada pelas barbáries da exclusão social e das
guerras – é possível compreender a constante necessidade de concretização da pessoa
como sujeito de valores éticos indisponíveis e inalienáveis, entre os quais se encontra
a dignidade da pessoa humana.
Lógico ter presente que o conceito padrão de pessoa como valor fundamental é idéia
recente, que passa a merecer maiores considerações jurídicas ao longo da Idade Moderna. Frise-se, a tanto, que a concepção de pessoa para os gregos e romanos, assim
como para a época medieval, era totalmente diversa e incompleta. Para os clássicos,
o homem era tão-só um animal que pertencia à República. Para os povos da Idade
Média, a idéia já contava com o reconhecimento de um caráter essencial, todavia desprovido de conceito e valoração jurídica, sendo somente atrelado ao Cristianismo, que
passou a abarcar na consideração de pessoa não só o homem, mas também mulheres,
crianças, nascituros, escravos, estrangeiros etc.
Pondere-se, ainda, que o valor da pessoa humana, a despeito de ser compreendido
como valor-fonte ou valor-guia e ser defendido por muitos doutrinadores como eixo
do direito, evidentemente encontra seus limites, já que a noção do absoluto dá espaço
ao critério relativo quando se observa a pessoa num contexto social. Assim, importante relembrar que o conceito de pessoa laborado pelo individualismo burguês (em que
o indivíduo prevalece frente ao grupo social) tanto quanto pela tendência sucessora do
transpersonalismo (em relação ao grupo social tem primazia sobre a pessoa), começa
a ruir. Hodiernamente, busca-se harmonizar tanto a pessoa quanto o grupo social,
através do que se chama de personalismo. Perlingieri (2002, p. 38) bem explicita o
tema ao asseverar:
[...] é necessário tomar posição contra a concepção que considera o indivíduo como valor pré-social, relevante também na ótica
jurídica, prescindindo da relação com os outros. Desse modo,
acentua-se o isolamento do indivíduo e dos seus problemas daqueles da sociedade na qual vive, inspirando-se em uma visão
individualista não compatível com o sistema constitucional. A
tutela da personalidade não é orientada apenas aos direitos individuais pertencentes ao sujeito no seu precípuo e exclusivo interesse, mas, sim, aos direitos individuais sociais’, que têm uma
forte carga de solidariedade, que constitui o seu pressuposto e
também o seu fundamento. Eles não devem mais ser entendidos
como pertencentes ao indivíduo fora da comunidade na qual
vive, mas, antes, como instrumentos para construir uma comunidade, que se torna, assim, o meio para a sua realização.
Sendo a dignidade da pessoa humana um valor-guia do ordenamento jurídico, porque
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
é imprescindível sua constante vigilância, atribui-se a ela uma carga de abertura axiológica, justamente para realizar a tarefa de tutela conforme os ditames do pluralismo
vivenciado.
Com efeito, a dignidade da pessoa humana sedimenta a idéia de juízo de valor (valor-guia) dos direitos fundamentais, servindo, axiologicamente, como critério hermenêutico ou instrumental para interpretação de todo o ordenamento jurídico. Contudo,
mais que isso, apresenta-se como fonte jurídica de outros direitos fundamentais. Nesse sentido é importante verberar que o extenso rol de direitos e garantias fundamentais
consagrados pelo Título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação
e densificação do princípio constitucional da pessoa humana (artigo 1º, III). Em suma,
os direitos fundamentais são uma primeira e importante concretização desse último
princípio, quer se trate de direitos e deveres individuais e coletivos (artigo 5º), direitos
sociais (arts. 6º a 11) ou dos direitos políticos (arts. 14 a 17).
Sendo a pessoa a razão de ser do direito, necessária sua proteção contra todo tipo de
manifestação tendente a limitar sua existência. Para Sarlet (2005), a dignidade da
pessoa humana é:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que
o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem
a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante
e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e
promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos.
Por isso, a obrigação moral de dizer o direito não está subjugada ao dever de aplicar
somente a lei infraconstitucional, porque esta se desvia, em certas ocasiões, do princípio básico de proteção e satisfação de direitos humanos essenciais. A dicção do direito
deve-se nortear por razões morais adequadas, cuja eficácia independe do placet exclusivo da lei. Razões morais essas hauridas da dignidade da pessoa humana.
Dito isso, é de se ressaltar que, sendo duas as dignidades a serem tratadas, deverá
coexistir um critério de proporcionalidade a ser desvendado. Assim, o Estado, ao
aplicar sua punibilidade, em casos de tipos penais hediondos, o faz corretamente, já
que a própria Constituição Federal diferencia seu caráter de lesão ao bem jurídico
da vítima. A proporcionalidade é dada pela Carta Magna. Nessa linha de raciocínio,
pontifica Welzel (1976, p. 13):
La missión primaria del Derecho Penal no es la protección actual de bienes juridicos, esto es, la protección de la persona individual, de su propriedad, etc. Pues, cuando entra efectivamente
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
en accion por lo general ya es demasiado tarde. Más esencial
que la protección de determinados bienes jurídicos concretos
es la missión de asegurar la real vigência (observância) de los
valores de acto de la conciencia jurídica; ellos constituyen el
fundamento más sólido que sustenta al Estado y la sociedad. La
mera protección debienes juridicos tiene sólo un fim preventivo, de carácter policial y negativo. Por el contrario, la missión
más profunda del Derecho Penal es de naturaleza ético-social
y de carácter positivo. Al proscribir y castigar la inobservancia
efetiva de los valores fundamentales de la conciencia jurídica,
revela, en la forma más concluyente a disposición del Estado,
la vigencia inquebrantable de estos valores positivos de acto,
junto con dar forma al juicio ético-social de os cuidadnos y
fortalecer su conciencia de premanente fidelidad jurídica.
Com lastro nesse pensamento é que se deve compreender a missão do direito repressor, sempre com a consciência de que as normas penais revelam a essência tutelar dos
direitos do cidadão e da sociedade, constituindo, num segundo plano, ato de delimitação da responsabilidade do delinqüente pelo que ato efetivamente praticou, o que
traduz, nesse último aspecto, a função garantidora da tipicidade.
Essas considerações também não passaram despercebidas à constatação de Antolisei
(1991, p. 40):
[...] la norma penalie si subbietivizza a favore dell Stato, facendo sorgere in questo um vero e proprio diritto soggettivo:
il jus puniendi. Sul contenuto de tale diritto, però, vi è grande
disparità di vedute, perchê, mentre per alcuni esso si esaurisce
nella pretesa all´omissione del fatto criminoso, avendo così um
contenuto puramente negativo, per altri consiste nella pretesa
all ´obedienza da parte dei sudditi, all´osservanza delle legge
penale, di um diritto soggetivo dello Stato allá própria esistenza conservazione.
Não se pode esquecer, segundo pontifica Pisani (1992, p. 17):
Tutto ciò dice riferimento ai principi fondamentali di ogni ordinamento giuridico, cioè alle tavole dei valori Che caratterizzano i vari tipi di società organizzata: valori Che inevitabilmente
si riflettono nei codici e nele leggi in matéria penale inquanto
típico terreno di incontro e di scontro tra le liberta del singolo
e l`autorirà dello Stato.
Impedir que o legislador infraconstitucional estabeleça o sistema da individualização
jurisdicional ou judicial da pena cominada ao tipo – com observância do elementar
juízo de culpabilidade – acarretará a ruína da missão tutelar do Direito Penal, à con-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sideração de que, na ordem jurídica, somente são contemplados os direitos do agente
que se conduz em desconformidade com a lei. Infelizmente, parece que essa tem sido
a tônica da interpretação, colocando-se o réu na condição de imaculado sujeito da
relação material e processual, enquanto ao cidadão de bem resta o pagamento dessa
fatura.
Outro aspecto a ser destacado se refere à efetividade do direito repressor no processo
de execução da pena em decorrência de decisão transitada em julgado, no momento
em que se coloca em prática o comando inserto na parte dispositiva do ato jurisdicional.
A vontade da lei, individuada na sentença em face do caso concreto, não prescinde do
esgotamento desses momentos, passando pela orientação ditada pela norma constitucional e a subseqüente delimitação do poder de repressão do Estado quando da definição dos tipos incriminadores e das regras a serem observadas na individualização da
pena em face do princípio da culpabilidade do autor do fato penalmente relevante.
Cabe ao legislador infraconstitucional estabelecer regramento que prime pela efetividade do poder repressor, tratando de forma diferenciada os que merecem essa distinção, a bem dos interesses do grupamento social, da tutela dos bens jurídicos de
relevância. Aliás, voltamos a insistir que está claro no texto da Magna Carta que a
intenção de nosso Legislador Maior foi cometer esse mister à legislação que disciplinaria a matéria, na medida em que se pode bem identificar o intento de que aos autores
de crimes hediondos fosse estabelecido tratamento repressivo diferenciado (artigo 5º,
XLIII), e a compreensão de que as penas devem ter seu cumprimento regulado em
face da gravidade da infração e da culpabilidade do agente (artigo 5º, XLVIII).
Com espeque nesses elementares princípios que emergem do regramento Constitucional, verifica-se que a Magna Carta traduz apenas e tão-somente poder limitativo ao legislador infraconstitucional no tratamento da matéria por ela cuidada, sem lhe obstar a
disciplina plena do instituto jurídico a ser tratado. Desse modo, a Constituição garante
direitos que considera fundamentais ao cidadão processado ou preso (cautelarmente
ou em execução de pena), sem prejuízo de que a legislação infraconstitucional estabeleça restrições ou diferenciais.
Quando nos deparamos com a questão da individualização da pena no nível constitucional, atentos ao que dispõe o artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal, constatamos
que esse dispositivo baliza a atividade do legislador infraconstitucional e não estabelece cerceamento ao poder de disciplinar o procedimento de individualização pelo
poder jurisdicional do Estado. Objetiva resguardar os direitos que a Constituição Federal quis expressamente tutelar e, conseqüentemente, preserva determinados direitos
do condenado, ao vedar, verbi gratia, a prisão perpétua, penas cruéis ou desumanas,
o banimento, etc.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A legislação de regência dos crimes hediondos cuidou, com evidente atenção, da necessidade de que os autores de infrações erigidas à categoria de gravíssimas tenham
tratamento diferenciado, objetivando atingir os fins da pena e, principalmente, dar
efetividade ao direito repressor. Pondera Silvestre (2006):
[...] se a vida é o mais importante bem jurídico fundamental da
pessoa individualmente considerada, a segurança pública é o
mais valoroso bem da sociedade, na medida em que somente
uma coletividade que dispõe de proteção pode garantir o gozo
dos direitos fundamentais e individuais dos cidadãos que dela
façam parte. De nada adianta ter declarados direitos à vida, liberdade, igualdade, propriedade, se não existem regras de segurança social que permitam o exercício de tais direitos.
Não se pode admitir que a Magna Carta seja repositório único dos direitos do cidadão
processado. Os direitos, garantias e deveres consagrados no seu corpo direcionam-se
à tutela de todo cidadão, sejam eles réus ou vítimas. Não se pode esquecer da missão
tutelar do ordenamento jurídico aos direitos do cidadão, consagrados não somente
na norma penal incriminadora, mas também identificáveis com o estabelecimento de
procedimento de individualização que prime pela efetividade do direito repressor.
Nesse aspecto da tutela dos direitos do cidadão, tem-se que o direito repressor não
se posiciona exclusivamente como instrumento de limitação do poder de punir do
Estado, notadamente porque a consagração de condutas humanas ofensivas a bens jurídicos de relevância social em tipos penais revela a preocupação do Estado em tutelar
os bens jurídicos relevantes do ser humano.
4. O Princípio da Individualização e da Humanidade da Pena
A vedação da progressão de regime não agride a garantia constitucional da individualização da pena privativa de liberdade nem o princípio da humanidade da pena,
na medida em que tais princípios trilham o caminho do princípio da legalidade. Se
o legislador entendeu por bem erigir determinados crimes, de gravidade elevada, à
categoria de hediondos, estabelecendo um procedimento de individualização ou fixação da reprimenda diverso daquele previsto para os autores de crimes graves (nãohediondos), punidos com reclusão, na imposição da sanção penal, o Magistrado não
estará vedando a progressão de regime, mas obedecendo ao comando legal que impõe
a execução da pena integralmente em regime fechado.
Pondere-se, ademais, que o próprio Legislador Constitucional se preocupou em vedar
penas desumanas ou cruéis, pois, de forma expressa, proibiu a imposição de penas
de morte, pérpetuas, de banimento e de trabalhos forçados (artigo 5º, XLVIII). Desse
modo, observadas essas vedações, nada obsta que a legislação infraconstitucional discipline a individualização judicial da pena em face da gravidade do crime e da qualificação subjetiva do agente, buscando atingir a eficácia da sanção penal para atender
aos fins visados pela norma incriminadora.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A individualização da pena é disciplina que está cometida à legislação federal, nos
termos do que dispõe o artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal, cabendo ressaltar
que as únicas restrições que a Magna Carta estabelece quanto à competência legislativa da União para edição das normas dessa matéria se encontram expressamente
consagradas no seu texto. Nesse sentido, proclamou o Ministro Hamiltom Carvalhido
(BRASIL, 2004):
Não há falar em inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo
2º da Lei dos Crimes Hediondos, eis que, para além de ser a
edição do Direito Penal matéria própria da dimensão infraconstitucional (Constituição Federal, artigo 22, inciso I), a norma
inserta no inciso XLVI do artigo 5º da Constituição da República defere, também à lei, a disciplina da individualização da
pena, que pode assim estabelecer especialmente o regime fechado como integral das penas dos crimes hediondos.
Quando se fala no princípio da individualização da pena, emerge, equivocadamente, a
impressão de que a determinação do cumprimento da reprimenda no regime fechado,
sem a permissão de progressão meritória, importaria em obstar os fins de ressocialização da sanção penal ou mesmo impor ao condenado uma sanção insuportável. No
entanto, os autores de crimes hediondos, que devem cumprir a reprimenda no regime
integralmente fechado até que atinjam o quantum de dois terços para o livramento
condicional, estão, na realidade, sujeitando-se a um tratamento prisional que busca
o acompanhamento, com maior minudência, da evolução do preso no processo de
reinserção social, sem que isso importe em supressão dos direitos e das garantias do
condenado, assegurados na Lei de Execução Penal. Entre os vários direitos assegurados ao preso, o condenado no regime integralmente fechado tem direito de trabalhar
(artigos 28/37 da Lei n.º 7.210/84) e de remir os dias trabalhados para atingir dois terços do cumprimento da pena imposta e obter a concessão do livramento condicional
(artigos 26/20 da Lei nº 7.210/84). Ademais, todos os outros direitos assegurados ao
preso, provisório ou em execução de pena, não restam banidos pela simples imposição
do regime integralmente fechado. Assim, o preso tem direito à assistência material, religiosa, à saúde, educação, etc., bem como tem garantido o respeito a todos os direitos
que não foram atingidos pela condenação.
O sistema progressivo existe; todavia, trata-se de modalidade diferenciada, não nos
parecendo que o simples fato de ser obstada a progressão para regime menos rigoroso nos leve a admitir conclusão diversa. Ora, o réu, atingindo o cumprimento de
dois terços da pena, revelando mérito para tanto, poderá ter deferido o livramento
condicional. Ressaltamos, ainda nesse aspecto, que a progressão de um regime para
outro menos gravoso, de forma sucessiva, não é elementar à identificação do sistema
progressivo.
No que se refere ao estabelecimento da resposta penal, seja a autores de crimes hediondos seja a autores de crimes graves (não-hediondos) ou a autores de crimes de
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
menor potencial ofensivo, o legislador leva em consideração a gravidade objetiva da
infração e/ou a qualificação subjetiva do autor do delito, como ocorre, verbi gratia, ao
ser imposto aos autores de infrações cuja pena seja superior a oito anos o cumprimento inicial no regime fechado (independentemente da consideração quanto à reincidência do réu) e o cumprimento da pena em regime fechado aos reincidentes qualquer que
seja a reprimenda aplicada (artigo 33, § 2º, do Código Penal).
Os crimes denominados hediondos e as infrações penais a eles equiparadas foram
erigidos à categoria de infração de elevada gravidade, por ofenderem bens jurídicos
selecionados como de maior relevância. Com isso, o Estado, além de dever tratar dessas violações com maior rigor, tem a incumbência de velar, de forma efetiva, para que
a reprimenda possa atingir seu objetivo de prevenção, retribuição e ressocialização.
A sujeição do condenado ao cumprimento da pena no regime integralmente fechado
importa em estabelecer o efetivo acompanhamento da evolução do preso e de suas
reais condições de reinserção social.
Assim, quanto à individualização da pena, no âmbito da competência da legislação
federal, foram especificadas quatro modalidades de regime prisional (integralmente fechado, fechado, semi-aberto e aberto), cabendo ao aplicador da lei penal, em
obediência ao princípio basilar da legalidade, definir a modalidade de regime a ser
estabelecido, levando em consideração as diretrizes gizadas na legislação federal
competente.
Também não há que se falar em ofensa ao princípio da humanidade da pena. Nesse
sentido, pontificou o ilustrado Desembargador Kelsen Carneiro (MINAS GERAIS,
2004):
A continuidade do cumprimento integral em regime fechado
também não ofende ao princípio da humanização da pena, pois
o condenado por crime hediondo tem direito aos benefícios prisionais próprios do regime fechado (isolamento celular durante
o repouso noturno, a atribuição de trabalho de acordo com as
aptidões ou ocupações anteriores, o trabalho em serviços ou
obras públicas - extramuros – e as permissões de saída), tendo,
ainda, direito ao livramento condicional desde que cumpridos
2/3 da pena e não seja reincidente específico.
Merece sofrer apreciação o argumento lançado pelos defensores da tese da inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime, segundo o qual há contra-senso
na Lei dos Crimes Hediondos por negar ela a progressão e por permitir, lado outro, a
obtenção do livramento condicional, depois de cumpridos dois terços da pena, pois
constituiria esse benefício, segundo alegam, uma das fases do sistema progressivo.
Pelos argumentos aqui já apresentados, conclui-se que a situação não é paradoxal
como está sendo sugerido. O livramento condicional não é etapa necessária a ser
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
alcançada no sistema progressivo, não é detectável em todos os casos. Assim entendemos, porque há situações em que, por expressa vedação legal, está o réu obstado de
postular o benefício – por exemplo, nos casos em que foi estabelecida sanção inferior
a dois anos (Código Penal, artigo 83) e também na hipótese de o sentenciado, em decorrência de não reunir condições subjetivas, dever cumprir a reprimenda no regime
fechado, o qual, então, será considerado integralmente fechado.
Impõe-se observar que os condenados pela prática de crimes hediondos não mais devem ser mantidos presos em cadeias públicas ou estabelecimentos similares, devendo
ser encaminhados às penitenciárias disponíveis no Estado, que deverão abrigar, preferencialmente, os sentenciados nessas condições.
Assim exposto, verificando-se a Lei de Execução Penal, especificamente seus artigos
87/92, tem-se que os presos no regime fechado e no regime integralmente fechado
cumprem a reprimenda arbitrada em penitenciárias, enquanto os condenados em regime semi-aberto e os que lograram progredir para essa modalidade de regime, cumprem
a sanção nas colônias agrícolas, estabelecimentos penais cujo ponto de diferenciação
substancial é o fato de que, naquelas, o sistema imposto é o de segurança máxima¸ ao
passo que, nestas, a segurança é abrandada, notadamente porque os presos em regime
semi-aberto revelam estar adaptados ao sistema em que se encontram.
Não se pode mais admitir a idéia de que a execução penal dos autores de crimes de
elevada gravidade fique sujeita aos desvios que se têm observado quando os presos,
sob o argumento de que não há vagas em penitenciárias, acabam cumprindo a pena
na própria cadeia pública das comarcas do interior do Estado, sem nenhum acompanhamento, sem observância das regras ditadas pela Lei de Execução Penal, as quais,
como já assinalado, tendem a fazer com que o processo de execução se constitua em
instrumento de aferição da reeducação do sentenciado. Nesse aspecto, há que se observar que o Código Penal, no seu artigo 59, oferece ao julgador circunstâncias para
estabelecer o quantum da pena e seu regime no processo de individualização, o que
leva à compreensão de que há necessidade de se conferir tratamento diferenciado,
notadamente em consideração à culpabilidade do agente e à gravidade do crime.
O regramento estabelecido na Lei dos Crimes Hediondos não se apresenta contrário
às prescrições do Código Penal – no que se refere ao estabelecimento do sistema
progressivo. Pelas razões aqui esposadas, não se trata de revogação das regras gerais
por norma especial, mas de implantação de sistema de execução da pena atendendo
à inspiração do comando constitucional que deferiu ao legislador federal nomear os
crimes hediondos e estabelecer as regras de direito material e processual a serem
observadas.
Pensar em sentido inverso importaria admitir a incompatibilidade entre as Leis Especiais e os Códigos Penal e de Processo Penal, notadamente quando instituem regramentos diferenciados na aplicação do direito, como aconteceu recentemente, verbi
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
gratia, com a introdução de reformas substanciais no procedimento dos crimes instituídos na Lei de Tóxicos. Nesse aspecto em relevo, poder-se-ia ainda questionar a
validade das leis especiais precedentes à própria legislação codificada, que estabelece
regras diversas daquelas definidas na legislação comum. A legislação especial é de
exceção e, por essa característica, tem de estabelecer disciplina diversa para regular
situações que fogem das regras comuns ditadas pelo Código Penal.
A mera especificação dos crimes que se inserem no rol dos hediondos para nada prestaria, se não se permitisse que o legislador infraconstitucional instituísse o tratamento diferenciado a ser observado quanto aos autores dessas infrações de elevadíssima
gravidade.
Aliás, como aqui dissertado, a matéria gravita em torno do princípio da individualização da pena, e não se pode negar que é no nível infraconstitucional que se estabelece o
procedimento a ser observado na aplicação da sanção penal, não estando o legislador
infraconstitucional obstado de instituir as formas de execução da pena, levando em
consideração a gravidade objetiva do delito e/ou qualificação subjetiva do autor da
infração penal. Sobre o tema, são pertinentes as lições de Greco (2006):
[...] a nossa Constituição Federal determinou ao legislador infraconstitucional que, por intermédio de um critério de seleção
político, regulasse a individualização da pena, o que efetivamente fora realizado quando determinou que os condenados
pelas infrações descritas na Lei n.º 8.072/90, em virtude da gravidade dos crimes ali previstos, teriam de, independentemente
de requisitos objetivos e subjetivos, tais como cumprimento
parcial da pena e bom comportamento carcerário, cumpri-la
integralmente no regime fechado. Esse foi, portanto, o critério
adotado pelo legislador para distinguir o cumprimento das penas relativas aos delitos previstos na lei dos crimes hediondos
daqueles que estiverem fora do seu rol. Não podemos deixar
de relembrar, por oportuno, que houve individualização, ficando os condenados pela prática de crimes elencados na Lei n.º
8.072/90 impedidos de progredir de regime, ao contrário daqueles que praticaram, aos olhos do legislador, outras infrações
consideradas não tão graves quanto aquelas.
Portanto, é necessário que se interprete o princípio da individualização da pena à luz
do que dispõe a Magna Carta, para que não nos esqueçamos de que a individualização
também se estabelece pro societate. Desse modo, não se pode admitir que o legislador
competente para editar normas repressoras esteja obstado de fixar os parâmetros da
individualização a cargo do Poder Judiciário, a qual objetiva, essencialmente, estabelecer reprimenda que se assente nos princípios da culpabilidade e da proporcionalidade.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Além da previsão expressa no texto da Magna Carta de que são negados determinados
benefícios aos autores de crimes hediondos, tem-se ainda que não passou despercebido do legislador a necessidade de que os presos, de conformidade com a gravidade do
delito perpetrado, sejam levados a cumprir a pena em estabelecimentos distintos.
Devemos ainda frisar que a v. decisão emanada do Supremo Tribunal Federal está em
colisão com súmula de sua autoria, que, expressamente, admitiu sistema progressivo
diferenciado para os autores de crimes hediondos, matéria que foi suscitada e definida
pelo Pretório Excelso quando emergiram os debates sobre a revogação da vedação de
progressão no regime pela lei que definiu os Crimes de Tortura (Lei nº 9.455/97).
A Súmula n.º 698 encontra-se vazada nos termos seguintes: “Não se estende aos
demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de
execução da pena aplicada aos crimes de tortura”.
Constata-se, sem necessidade de maior esforço, que o Pretório Excelso já reconheceu a validade do comando da Lei dos Crimes Hediondos que impõe o regime integralmente fechado, de forma que foi afastado pela regra sumulada o questionamento
quanto à constitucionalidade desse texto legal que se encontra em conformidade com
os princípios e fundamentos insertos em nossa Magna Carta.
Desse modo, cabe a todos a reflexão sobre o tema, à luz do que dispõe o artigo 1º, II
e III, e o artigo 5º, XLIII e XLVIII, da Magna Carta, porquanto não há dúvidas de que
o tratamento diferenciado aos autores de crimes hediondos e infrações penais assemelhadas tem o escopo de tornar a missão do Direito Penal uma realidade que possa
ser sentida e apreendida pela sociedade, destinatária da proteção estatal. A partir do
momento em que nos esquecermos dessa realidade e passarmos a incentivar medidas elisivas da eficácia das normas penais, estaremos concedendo salvo-conduto aos
delinqüentes de periculosidade, que, conscientes da ineficácia do poder repressor do
Estado, terão, a seu dispor, a proteção estatal para atentar e lesar os direitos do cidadão
e da sociedade.
Nada vale a cominação judicial de penas elevadas se não tivermos consciência de que
os fins da pena são atingidos somente quando se tem disposição de tornar realidade
o poder repressor do Estado. E alcançaremos esse mister a partir do momento que
pudermos fazer com que a pena privativa de liberdade saia do campo retórico e seja
efetiva, que a punição seja real e eficaz.
Parece-nos que esse foi o objetivo que inspirou a edição da Lei dos Crimes Hediondos, impondo aos condenados o cumprimento exemplar da pena privativa de liberdade, bem como dificultando o seu ingresso nos regimes menos graves, o que pode ser
aferido do próprio texto da Magna Carta, que veda a tais infratores abreviar ou se safar
da punição com os benefícios da anistia, da graça e do indulto.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
5. Conclusão
Por todas essas considerações, entendemos que está em pleno vigor o disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei n.º 8.072/90, cabendo, nessa parte conclusiva, deixar consignados
os pontos em que se assenta a posição aqui defendida. Os tribunais não estão vinculados à decisão do Pretório Excelso e, respeitada a independência funcional dos membros do Ministério Público e da Magistratura (garantia que inspira a construção dessas
instituições democráticas), poderão reconhecer, indecenter tantum, a inconstitucionalidade da vedação da progressão meritória no regime prisional, desde que observada a
forma preconizada pela legislação em vigor e nos seus regimentos internos.
O tema, que enseja debate referente à contrariedade aos princípios da humanidade e
da individualização da pena (artigo 5º, XLVI), comporta novas reflexões que levam ao
enfrentamento de matérias constitucionais ainda não apreciadas pelos augustos Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, especificamente a conformidade
da lei infraconstitucional com o que dispõe o artigo 1º, II e III, o artigo 5º, XLIII e
XLVIII, e o artigo 52, X, da Carta Magna.
Ademais, a decisão proferida pelo Pretório Excelso no julgamento do Habeas Corpus
nº. 82.959-7/SP não tem eficácia obstativa do recurso às instâncias constitucionais
para a discussão sobre a vigência do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90 e a sua conformidade com os dispositivos constitucionais aludidos.
A eficácia e validade da Lei dos Crimes Hediondos (artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90)
somente poderá ser elidida mediante ação direta de inconstitucionalidade ou deliberação do Senado Federal quanto à suspensão de seus efeitos, fatos não verificados no
momento atual. A decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal encontra-se em
flagrante choque com o que dispõe a sua Súmula n.º 698, a qual ainda se encontra em
vigor, porquanto não revogada pela forma preconizada na legislação pertinente.
É preciso ter em consideração que foi justamente graças aos recursos interpostos de
forma insistente nesses anos de vigência da Lei dos Crimes Hediondos que o Supremo
Tribunal Federal acabou por mudar a posição que vinha esposando. Devemos ainda
atentar para o fato de que os julgamentos de recursos extraordinários ficarão afetos a
Turmas Julgadoras, compostas por Ministros que defenderam no Pleno da Suprema
Corte a constitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, e de que haverá a
renovação nesse quadro. O salutar debate poderá reverter a posição da alta corte do
País, o que aguardamos acontecer, independentemente da aprovação dos projetos legislativos que pretendem emendar à Constituição e à própria Lei nº 8.072/90.
Com essas considerações, esperamos contribuir para a reflexão da comunidade jurídica sobre o tema proposto, notadamente com o enfrentamento da decisão emanada
do Pretório Excelso em face do que dispõem os artigos 1º, II e III, 5º, XLIII, XLVI e
XLVII, e 52, X, da Constituição Federal.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
4. TÉCNICAS
4.1 AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO
CRIMINAL – CONTRA-RAZÕES
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO
Procurador de Justiça
Feito nº ________________
Origem: XX Vara Criminal Especializada em Tóxicos, da Comarca de _____
Recorrente: ________________
Recorrido: Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Incidência Penal: artigos 12, caput, e 18, III, ambos da Lei de Entorpecentes
EXCELENTÍSSIMOS SENHORES MINISTROS DO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Pelo Ínclito Ministério Público Federal
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por um de seus
procuradores de justiça, o signatário desta, em contra-minuta ao interposto recurso de
agravo de instrumento contra o r. despacho de fls. ___ (autos da ação penal), do excelentíssimo senhor primeiro vice-presidente do egrégio Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, que negou seguimento ao anteriormente aviado recurso extraordinário (fls.
XX), dada a interpretada ausência de prequestionamento da matéria constitucional
objeto dele, visando, por seu turno, a impugnar o acórdão de fls. ___, proferido que
foi no âmbito da ___ Câmara Criminal da iluminada alta corte de justiça mineira,
através do que veio a ser apenas parcialmente provida, por unanimidade de votos,
a apelação criminal própria e oportunamente manejada pela combativa Defensoria
Pública estadual, limitadamente ao recuo das penas, sendo que a defesa objetivava,
por sua vez, em prol do réu e ora recorrente, a desclassificação criminal benéfica ou o
abrandamento do regime prisional originariamente imposto, vem perante Vossas Excelências propor seja não conhecido o presente recurso de agravo, por não se verem
preenchidos todos os seus pressupostos de admissibilidade (desatendido o requisito
da tempestividade, muito embora se revele regularmente processado e presente se
faça o legítimo interesse recursal).
Intempestivo, sim, salvo muito melhor juízo dos realmente doutos ministros do Pretório Excelso, porquanto aviado esse agravo de instrumento fora do prazo legal de cinco
dias, ex vi do artigo 28 da Lei Federal nº 8.038/90 (atraso constatado, in casu, de cinco
dias – fls. ___ e ___ dos autos principais).
Não é mais possível compactuar, registre-se, com a indefectivelmente invocada tese
da contagem em dobro para a Defensoria Pública, na esteira, aliás, do usado e abusado
artigo 5º, § 5º, da Lei Federal nº 1.060/50, a Lei da Assistência Judiciária – dispositivo
que foi acrescentado por força da Lei Federal nº 7.871/89 –, pela simples razão de que
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
tal norma somente encontra justificativa em seara cível, onde o Ministério Público
tem prazo em dobro para recorrer.
Em sede penal, porém, nenhuma explicação plausível ou dotada de mínima razoabilidade existe para privilégio que tal, máxime em nome do inarredável princípio da
paridade de armas, ou da isonomia processual das partes, em que tanto à acusação
como à defesa são conferidos os mesmos direitos, os mesmos deveres e as mesmas
prerrogativas, sempre em função do necessário equilíbrio dos contendores, no processo. Ainda que não se ignore quão tradicional já se tornou essa liberalidade sem
fundamento lógico-jurídico, é chegada a hora, até mesmo em razão do dinamismo que
peculiariza o Direito, de se fazer cessar o privilégio em questão.
Com efeito, uma vez não atendidos todos os seus requisitos de admissibilidade (o presente recurso é, como registrado acima, manifestamente serôdio, malgrado mostrar-se
regularmente processado e também detectável o legítimo interesse), mister se faz o
não-conhecimento da presente impugnação.
Não obstante, se a tão longe se chegar que no mérito lhe seja dado provimento,
para fins de se determinar a subida do correspondente recurso extremo, já nessa parte
invocando-se a integralidade dos termos das contra-razões anteriormente emitidas,
em sua análise meritória (fls. ___/___ – autos da ação penal), em que a Procuradoria
pugnava pelo desprovimento da censura extraordinária manejada (improcedência total dos seus respectivos argumentos), desnecessárias meras repetições, pena de odiosa
e repudiável tautologia.
De fato, vem o Parquet estadual, então, colocar-se em franco acordo com os rr. termos
das razões do agravo em tela, porquanto a formalidade que prega o primeiro vice-presidente do TJMG beira ao excesso, data venia, encontrando-se o prequestionamento
do extraordinário correlato no mínimo implícito nos rr. votos que compõem o v. acórdão objurgado.
Na exata conformidade dos bem lançados fundamentos da hostilização em pauta, para
que se dê por satisfeito o requisito do prequestionamento, em sede de recurso extremo, é inteiramente prescindível que no acórdão vergastado se hajam mencionados,
expressamente, os dispositivos constitucionais tidos por violados. Basta, na realidade,
que os preceitos da CF/88, interpretados como feridos, tenham sido inequivocamente
abordados no decisório proferido pelo tribunal a quo, ou, em outras palavras, é suficiente ao conhecimento do recurso extraordinário que a matéria constitucional objeto
da irresignação tenha sido discutida, pelo menos implicitamente.
É odioso o rigor formalístico que se exige, ao se negar seguimento ao extraordinário
por ausência de oposição de embargos declaratórios, fazendo-o a autoridade judiciária incumbida do denominado primitivo juízo prelibador, tão-somente por conta
de pretender tornar explícito o que perfeitamente se vislumbra implícito no acórdão,
concessa venia.
Existem vigorosas razões, registre-se por fim, para a dispensabilidade, até, do pressu-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
posto do prequestionamento, fortes as mesmas no abalizado entendimento esposado
tanto por José Afonso da Silva como por Pontes de Miranda, conforme bem citado
pela aguerrida defensora pública estadual, no sentido de que o silêncio da Carta Magna acerca do pressuposto em questão desoneraria o recorrente de sua demonstração.
Pelo provimento, pois, do presente remédio de agravo, mercê da consistência dos seus
rr. argumentos meritórios.
Já no que tange ao mérito da censura extrema correspondente, todavia, espera o Ministério Público de Minas Gerais o seu desprovimento.
Com efeito, não bastasse a clareza advinda da disposição do artigo 2º, § 1º, da denominada Lei dos Crimes Hediondos, tampouco a verdadeira avalanche das decisões
pretorianas, inclusive da própria Suprema Corte, no sentido da plena constitucionalidade do dispositivo em questão e, absurdo dos absurdos, nem mesmo a edição dos
enunciados de números 698 e 46 das súmulas dos egrégios STF e TJMG, respectivamente, a renitência de alguns nobres julgadores ainda está a premiar, equivocada e
indevidamente, repise-se, alguns condenados por tráfico de tóxicos com a fixação do
regime prisional apenas inicial fechado.
Nesta oportunidade deixo de transcrever decisões no sentido da correção da fixação
do regime prisional integral fechado para os responsabilizados por tráfico criminoso
de drogas, pois, como acima registrado, são de fato inúmeras, além do que são de
todos conhecidas a mais não poder, em especial aquelas emanadas do Excelso Pretório e do Superior Tribunal de Justiça. Faço duas únicas exceções, porém, por causa
unicamente da recenticidade de ambos os julgamentos: AGRE 659658/MG, rel. min.
Paulo Galotti, julgado em 14.03.05, e HC 84401/RJ, julgado em 18.10.2005, em que
a ministra Ellen Gracie relata:
2 – Progressão de Regime e Crime Hediondo - 2. Concluído
julgamento de habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ
que indeferira pedido de progressão de regime formulado por
condenado, pela prática de crime hediondo, à pena de reclusão em regime fechado — v. Informativo 355. Inicialmente,
a Turma, por maioria, determinou o prosseguimento do feito,
sobrestado na sessão do dia 5.10.2004 para se aguardar decisão
do Pleno no HC 82959/SP — em que se discute a constitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que veda a possibilidade de progressão do regime de cumprimento da pena nos
crimes hediondos definidos no art. 1º da mesma Lei. Vencido,
no ponto, o Min. Gilmar Mendes. No mérito, a Turma, também
por maioria, mantendo a jurisprudência ainda prevalecente no
STF no sentido da constitucionalidade do aludido dispositivo,
indeferiu o writ. Vencido o Min. Gilmar Mendes que, reiterando
os fundamentos de seu voto no HC 82959/SP, o deferia.
Interpretar, no sentido de ser o regime integralmente fechado uma violação ao preceito constitucional que veda a imposição de penas cruéis, constitui uma extensão de
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
raciocínio que beira à excessiva liberalidade, de vez que francamente milita em desfavor exatamente de quem merece a maior consideração e a máxima preocupação, que é
a sociedade. Ganham com esse excesso os bandidos mais sangüinários e ambiciosos,
capazes de qualquer ato de violência, até os inimagináveis, para fazer seguro e certo
o seu lucro fabuloso, ao mesmo tempo em que saem perdendo, de outra sorte, apenas
os bons cidadãos, justamente aqueles que assistem, impotentes, seus filhos e filhas sucumbirem ante às promessas vãs das drogas, promessas de fugas psicológicas à dura
realidade do dia-a-dia, para o que não hesitam em furtar, roubar, seqüestrar, torturar e
até matar, dada a profundidade do vício, da dependência física e psíquica.
Lado outro, não se ignora que o Brasil é uma nação que vem se destacando internacionalmente por sua excessiva brandura no tratamento dispensado aos réus e aos condenados, mormente por crimes hediondos ou assemelhados, não havendo de ser outra
a razão por que a violência já assume níveis tão alarmantes, acarretando prejuízos
consideráveis ao turismo, com reflexos ainda meramente potenciais na diplomacia e
na própria receptividade, mundo afora, do brasileiro em viagem.
Interpretações de índole marcadamente liberal ganham força e admiração; criminalistas com vocação muito maior para o sacerdócio e para a administração de ONGs tornam-se, do dia para a noite, verdadeiras celebridades do mundo jurídico; professores
de Direito Penal com fortes inclinações poéticas conquistam, de roldão, praticamente
a totalidade dos alunos, ainda crus em sua formação acadêmica.
Olvida-se que a sociedade clama por segurança e por paz, primordialmente, e apenas
em seguida por educação, transporte e assistência.
Os Ministérios Públicos estaduais, generalizadamente em todo o País, deslocam consideráveis esforços humanos e materiais para as áreas de defesa dos idosos, do meio
ambiente, do consumidor, do deficiente físico e mental, das fundações, atendendo
prontamente ao modismo da década, ao mesmo tempo, porém, em que investem quase
nada nas Promotorias Criminais, em sua grande maioria consistentes unicamente na
pessoa do promotor de justiça respectivo, senhor de quase nenhuma estrutura.
O Judiciário, por seu turno, cada vez adota posições mais e mais libertárias, muitas
vezes deixando margem a uma forte desconfiança de que alguns de seus invariavelmente ilustres membros não se sentem pertencentes à sociedade destinatária da outorga jurisdicional, porquanto diuturnamente decisões na seara criminal revestem-se de,
surpreendentemente, forte conteúdo benéfico ao delinqüente, como se não fosse ele o
terror e a angústia da amplamente majoritária parcela ordeira daquela comunidade por
ele ferida, violentada, assaltada.
Ainda há tempo, contudo, para se conferir maior poder à sociedade, que implora – já
não mais exige, por haver perdido condições para tanto! – por tranqüilidade e pela
certeza de que seus filhos, crianças e adolescentes poderão, à noite ou de madrugada,
retornar em segurança para seus lares, salvo hipóteses lógicas de acidentes.
É nas pequenas, mas infinitas concessões demasiadamente liberais que se faz ao réu,
ao preso, ao sentenciado, que aos poucos se vai notando, pelo menos os de visão mais
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
acurada, que o homem trabalhador e pacífico já não mais tem razão se porventura ainda crê na vitória cotidiana do bem, bastando a ele verificar, para ser realista e mudar
de opinião, nas páginas de jornais e de revistas, bem assim nos noticiosos de rádio e
de tv, o crescimento angustiante da violência.
A inversão desse processo, francamente deflagrado, de total perda de controle do Estado sobre o crime, só terá início quando todas as instituições e autoridades concentrarem seus esforços no combate firme e rigoroso da delinqüência, reservando para
outros ambientes os seus talentos poéticos, sua forte inclinação humanística e as suas
reminiscências espiritualistas, para em seguida colocarem em prática, em prol unicamente da sociedade, algo como a tolerância zero (alusão que se faz à série de medidas
policiais e judiciais adotadas desde a década passada, na cidade de New York, nos
EUA, que permitiram o controle quase total sobre o crime, por parte das autoridades,
com redução inédita, na história da metrópole, dos até então alarmantes índices de
criminalidade), pelo menos para com os infratores mais violentos, ousados e destemidos da lei penal.
Interpretações outras, por mais honestas que sejam, encerram em si um pecado de proporções gigantescas: colocam a sociedade como um todo em um plano absolutamente
secundário, privilegiando-se o especial sobre o geral, o indivíduo sobre o conjunto, o
criminoso em detrimento de inúmeras pessoas lesadas em seu tão precioso bem jurídico, a saúde pública (sem se olvidar que por conta do tráfico se praticam os seqüestros,
os roubos a mão armada, homicídios, agressões, torturas etc.).
É chegada a hora, pois, de se reverter esse quadro de grave inversão de valores, máxime porque os dados estatísticos não apontam para um recuo, ainda que tímido, do
tráfico, mas, ao contrário, deixam claro que os traficantes já possuem um poder de
fogo, de audácia, de certeza de impunidade e de organização invejáveis a muito agrupamento guerrilheiro. A fixação do regime prisional integral fechado, em desfavor do
ora agravante, por ocasião da sentença monocrática e, logo em seguida, confirmada
pelo egrégio tribunal a quo, configura, portanto, cláusula correta, justa e coerente com
a gravidade especial, para o meio ambiente social, do terrível crime que se procura
reprimir e prevenir, o tráfico de tóxicos.
CONCLUSÕES
Ex positis, é a presente manifestação no sentido do não conhecimento do presente
recurso de agravo de instrumento, por não terem sido atendidos todos os seus pressupostos de admissibilidade (ausente o requisito da tempestividade), e, no mérito, do
seu provimento, sub censura dos realmente doutos eminente representante máximo
do iluminado Ministério Público Federal e eminentes ministros do egrégio Supremo
Tribunal Federal.
Belo Horizonte, 21 de novembro de 2005.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
SEÇÃO III – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
SUBSEÇÃO I – DIREITO CIVIL
1. ARTIGOS
1.1 SUCESSÃO LEGÍTIMA DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO
NOVO CÓDIGO CIVIL
DIMAS MESSIAS DE CARVALHO
Promotor de Justiça no Estado de Minas Gerais.
Professor da Unifenas
Professor do Centro Universitário de Lavras
Membro do Instituto Brasileiro de
Direito de Família e Vice-Presidente do Centro Mineiro de Família
Pós-graduado em Direito Público,
Direito Processual, Ciências Jurídicas e Direito de Família e Sucessões
Autor do Livro Direito de Família, publicado pela editora Atenas
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Sucessão do Cônjuge. 3. Companheiro.
1. Introdução
A sucessão legítima ocorre na ausência de testamento, ou seja, quando o de cujus falece ab intestato, ou se o testamento for nulo, caduco ou não dispôs de todos os bens
(art.1.788, CC), observando que a capacidade para suceder é a do tempo da abertura
da sucessão, conforme art. 1.787, CC.
Na ausência do testamento o legislador estabelece que a herança será deferida a determinadas pessoas obedecendo certas preferências denominadas ordem de vocação
hereditária.
Os herdeiros legítimos herdam na seguinte ordem, conforme estabelece o art. 1.829
do Código Civil: os descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo
se este era casado com o autor da herança no regime de comunhão universal de bens,
de separação obrigatória ou comunhão parcial se o falecido não deixou bens particulares; os ascendentes, em concorrência com o cônjuge, qualquer que seja o regime de
bens; o cônjuge sobrevivente, na hipótese de ausência de ascendente e descendente
será herdeiro único, qualquer que seja o regime de bens; os colaterais até o quarto
grau.
O art. 1.829 não incluiu na ordem de vocação hereditária o (a) companheiro(a), entretanto, por força do art. 1.790, também do Código Civil, que alterou os direitos do
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
companheiro previstos nas Leis 8.971/94 e 9.278/96, estabelece que também herdará
na sucessão legítima em concorrência com os descendentes, ascendentes e colaterais,
sendo herdeiro único na ausência destes parentes.
Cada grupo de herdeiros, estabelecido pelo art. 1.829 do Código Civil, é chamado
de classe, portanto, se não houver herdeiros na classe dos descendentes, convoca-se
a classe dos ascendentes. No mesmo grupo também é possível a divisão por classes,
como a classe dos descendentes de primeiro grau e a classe dos descendentes do segundo grau, sucessivamente.
herdeiros nomeados
testamentária
legatários
SUCESSÃO
HEREDITÁRIA
legítima ou
ab intestato
herdeiros necessários - descendentes,
ascendentes e cônjuge
herdeiros facultativos - colaterais e
companheiro (a)
Herança Jacente - declaração de vacância - município
Inexistindo herdeiros a herança será transferida ao Município, Distrito Federal ou
União (art. 1.844, CC).
2. Sucessão do Cônjuge
No sistema do Código Civil de 1916, inexistindo herdeiros necessários a herança era
deferida ao cônjuge sobrevivente, qualquer que fosse o regime de bens, desde que
não estivesse dissolvida a sociedade conjugal na época da morte. A separação judicial
tinha que estar transitada em julgado, pois pendente de homologação ou de trânsito
em julgado o decreto judicial, a dissolução da sociedade conjugal é superada e absorvida pela morte, cujos efeitos, por mais amplos, prevalecem. Dentre eles, o direito à
herança.
O Código Civil vigente incluiu o cônjuge entre os herdeiros necessários (art. 1.845),
portanto o autor da herança não pode dispor em testamento de mais da metade dos
bens se for casado (art. 1.846) e será herdeiro único, qualquer que seja o regime de
bens, desde que não esteja separado judicialmente ou de fato há mais de dois anos,
salvo se não teve culpa (art. 1830). A possibilidade de discussão de culpa na separação
de fato do casal no direito sucessório vai gerar grande discussão na doutrina e jurisprudência, posto que a cada dia se fortalece a corrente que exclui a discussão de culpa
do casal na separação judicial e estendê-la, do direito de família ao sucessório, é no
mínimo um retrocesso.
Assim, na atual sistemática do Código Civil a separação de fato por mais de dois anos
exclui o direito sucessório do cônjuge.
Não há que confundir meação (efeito da comunhão dos bens) com o direito hereditá-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
rio (que independe do regime, salvo se concorrer com descendentes). A meação pertence ao cônjuge sobrevivente por direito próprio e não por herança, sendo intangível
(não pode ser privada por indignidade ou deserdação), independente de estar separado
de fato.
Não pode também ser confundido com direito de aqüesto, que é o bem adquirido
pelo esforço comum no regime de separação total e colocado em nome apenas do
cônjuge falecido. Neste caso o sobrevivente se habilita no inventário, em existindo
outros herdeiros necessários (descendentes e ascendentes), como credor, promovendo
ação própria para reconhecimento do aqüesto, requerendo em medida cautelar, se necessário, a reserva de bens para resguardar seus direitos no inventário. No regime de
separação convencional de bens é necessário que o cônjuge sobrevivente comprove
sua participação (esforço) na aquisição do bem.
No regime de separação legal ou obrigatória de bens, a posição dominante é no sentido
que presume-se o aqüesto dos bens adquiridos onerosamente na vigência do casamento. Com efeito dispõe a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal que no regime de
separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento. O
Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que no regime de separação legal, cada
um dos cônjuges conserva a posse e a propriedade dos bens que trouxer para o casamento, bem como os que forem a ele sub-rogados (MINAS GERAIS, 2006). Todavia,
nos termos da Súmula nº 377, do excelso Supremo Tribunal Federal, nesse regime, os
aqüestos adquiridos na constância do matrimônio se comunicam, independentemente
de prova de serem fruto do esforço comum.
Assim, no regime de separação legal presume-se o esforço comum dos bens adquiridos
na constância do casamento a título oneroso, já que os bens adquiridos gratuitamente
por doação e herança não exigem esforço do casal, portanto, não se comunicam, sob
pena de enriquecimento sem causa e a comunicação dos bens ultrapassar o regime de
comunhão parcial (regime legal necessário).
O cônjuge sobrevivente, na vigência do Código Civil de 1916, face as alterações introduzidas nos parágrafos do art. 1.611 pela Lei nº 4.121/62 (EMC.), era herdeiro único, na falta de descendentes e ascendentes; possuía direito de usufruto de um quarto
da herança se não era casado no regime de comunhão universal de bens, concorrendo
com filhos do falecido, e da metade se os herdeiros não fossem filhos; possuía ainda
direito real de habitação, se casado no regime de comunhão universal de bens, no
imóvel destinado à residência do casal.
Na vigência do Código Civil de 1.916 o cônjuge não era herdeiro necessário e não
concorria na herança com os descendentes e ascendentes, possuindo apenas direito de
usufruto e habitação.
O Código Civil de 2002 introduziu diversas inovações quanto ao cônjuge no direito
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sucessório, estando atualmente na situação jurídica de herdeiro necessário, herdeiro
concorrente com descendentes e ascendentes, herdeiro único, conferindo-lhe ainda
direito real de habitação independente do regime de bens e de ser preferencialmente
o inventariante.
A primeira inovação foi incluí-lo entre os descendentes e ascendentes como herdeiro
necessário nos bens e não apenas no direito a usufruto, não podendo o autor da herança dispor de mais da metade dos bens se for casado, ainda que não possua descendentes e ascendentes (art. 1.789, 1.845 e 1.846), sendo necessário, para exclusão do
cônjuge, que exista justa causa que autorize deserdação ou atos de indignidade, não se
aplicando o disposto no art. 1.850.
Na mesma ordem de vocação hereditária do Código de 1916, o atual Código Civil
mantém o cônjuge como herdeiro único. Assim, na ausência de descendentes e ascendentes recebe por inteiro a herança, independentemente do regime de bens (art.
1.838), desde que não estivesse separado judicialmente, posto que dissolvida a sociedade conjugal (art. 1.830, 1ª parte).
O Código Civil inovou, porém, ao estabelecer a exclusão do cônjuge na sucessão
se estiver separado de fato há mais de dois anos (art. 1.830, 2ª parte), admitindo-se,
entretanto, que o cônjuge herdeiro comprove que não teve culpa no rompimento da
convivência, sendo reconhecido, neste caso, o seu direito sucessório.
A inovação, repita-se, com certeza vai causar divergentes posições jurídicas, ao introduzir discussão de culpa por separação de casal no direito sucessório, matéria de
direito de família, que obviamente, por tratar-se de alta indagação deve ser resolvida
nas vias ordinárias, com pedido de reserva de bens no inventário, proporcionando
discussões intermináveis, chegando ao absurdo do consorte, separado de fato há mais
de vinte anos, pleitear os direitos sucessórios do ex-cônjuge sob o fundamento de
que foi abandonado e não teve culpa na separação. O prazo de dois anos de separado
de fato permite ao cônjuge requerer o divórcio direto e extinguir o vínculo conjugal,
independente de culpa, não se justificando, a partir deste período, pleitear direitos
sucessórios, devendo ser excluído da sucessão e não permitir discussão de culpa do
responsável pela separação de fato.
O Código Civil de 2002 manteve a ordem de vocação hereditária, entretanto, inovou
substancialmente ao instituí-lo herdeiro concorrente. Com efeito, se autor da herança deixar descendente ou ascendente o cônjuge sobrevivente concorrerá na sucessão
com os demais herdeiros necessários, porém, dependendo a situação, os quinhões são
diversos.
Com descendentes, só com os descendentes, para concorrer o cônjuge não poderá ser
casado no regime de comunhão universal de bens (já possui a metade do patrimônio
comum por meação), no de separação obrigatória de bens (face a vedação legal) ou,
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ainda, no regime de comunhão parcial se o autor da herança não possuir bens particulares, pois neste caso todos os bens do falecido são comuns e o cônjuge sobrevivente
já possui a meação (art. 1.829, I, CC).
Casado no regime de comunhão parcial, existindo bens particulares, e separação de
bens (excluído o obrigatório) o cônjuge terá o mesmo quinhão dos descendentes que
herdarem por cabeça (art. 1.832, CC), ressalvando a lei que se os descendentes do
falecido, também forem do cônjuge sobrevivente, este não poderá receber menos de
um quarto da herança, ou seja, se o falecido possuía dois filhos, caberá a estes e ao
cônjuge um terço para cada um, se possuía seis filhos, caberá um quarto (ou dois oitavos) para o cônjuge e um oitavo para cada filho.
A distinção do quinhão do cônjuge envolvendo filhos só do falecido e filhos comuns
tem ocasionado constantes discussões entre os doutrinadores. Falecendo o autor da
herança, casado, com três filhos ou menos, a questão não demanda maiores indagações, posto que partilham-se os bens em quinhões iguais. Assim, se o falecido possuir
dois filhos ou seis, o cônjuge receberá sempre a mesma fração, ou seja, um terço concorrendo com dois filhos só do falecido e um sétimo concorrendo com seis filhos.
A questão não encontra solução na hipótese do falecido possuir mais de três filhos que
não o são do cônjuge e mais de três filhos comuns com o consorte.
Na partilha, acolhendo o que dispõe o art. 1.832 do Código Civil, a fração entre os filhos será sempre desigual, violando o princípio constitucional de igualdade dos filhos
(art. 227, § 6º, CF), que veda qualquer forma de discriminação.
Apenas para ilustrar, se o falecido possuía quatro filhos do casamento anterior e cinco
do segundo, deixando esposa, na partilha caberá 10% (dez por cento) para cada um
dos filhos só do autor da herança, já que conta-se a mulher na mesma fração para dividir, entretanto, como é reservado ao cônjuge um quarto dos bens que cabem aos filhos
comuns, dos 60% (sessenta por cento) remanescentes caberá ao cônjuge sobrevivente
15% (quinze por cento), ou seja, um quarto de sessenta por cento, e para cada um dos
filhos comuns 9% (nove por cento), violando os direitos constitucionais de igualdade
dos filhos comuns.
Se acolher apenas a primeira parte do art. 1.832, CC e dividir a herança entre o cônjuge e todos os filhos em partes iguais, o consorte será prejudicado por não ter resguardada a quarta parte quanto aos filhos comuns, cabendo-lhe apenas 10% (dez por
cento) dos bens.
Resguardada a quarta parte de todos os bens ao cônjuge e partilhando o restante em
igualdade para todos os filhos, o consorte recebe mais do que lhe é devido (25%) e todos os filhos são prejudicados (8,33% para cada um). A questão, entretanto, não pode
ficar sem solução, esperando o legislador corrigir o equívoco.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A meu ver a única alternativa que não viola o princípio constitucional e apresenta a
melhor solução é calcular o quinhão do cônjuge, obedecendo as regras do art. 1.832,
CC (no exemplo anterior lhe caberia 15%) e o restante (85%) distribuir em igualdade
para todos os filhos (neste caso 9,44% para cada um), obedecendo ao princípio da
igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, CF), posto que os filhos só do falecido não podem
possuir mais direitos que os comuns.
Outra questão que merece reflexão e também não existe consenso é na hipótese do falecido, casado sob o regime de comunhão parcial de bens, possuir bens comuns e particulares. Não é demais lembrar que as inovações introduzidas pelo Código Civil de
2002 ao considerar o cônjuge herdeiro necessário (art. 1.845) e instituí-lo concorrente
com os descendentes e ascendentes (art. 1.829, I e II) teve como princípio proteger
o consorte quando não receber bens decorrentes da meação, tanto que é excluído da
qualidade de herdeiro se for casado sob o regime de comunhão universal e no regime
de comunhão parcial se o falecido não deixar bens particulares.
Na vigência do Código Civil de 1916 a questão não possuía maior relevância porque
o regime legal necessário era o de comunhão universal, portanto, com a morte do
cônjuge, o sobrevivente era protegido por receber a meação de todos os bens. Com a
mudança do regime legal para comunhão parcial, introduzida pela Lei nº 6.515/77 e
acolhida pelo Código atual, pode ocorrer a hipótese do sobrevivente, apesar de casado
há muitos anos, não receber meação de nenhum bem se todo o patrimônio do falecido
for anterior ao casamento ou adquirido na vigência por sub-rogação, herança ou doação, ficando o consorte desamparado, especialmente se o de cujus possuía filhos só
seus. O código revogado contornava a situação conferindo ao sobrevivente direito ao
usufruto, o que não foi acolhido no atual, preferindo o legislador instituí-lo herdeiro
necessário e concorrente com descendentes e ascendentes, sendo excluído da concorrência se já receber a meação de todos os bens.
A outra hipótese de exclusão é o de regime de separação obrigatória de bens, segundo
a determinação legal de incomunicabilidade de bens, não se podendo falar em concorrência, sob pena da lei contornar a vedação imposta pela própria lei. Assim, no
regime de comunhão universal e parcial, se não existir bens particulares do falecido,
concorrendo com descendentes, o cônjuge recebe apenas a meação, que não se confunde com herança.
E no caso de existirem bens comuns e particulares? O cônjuge receberá a meação dos
bens e a fração ideal sobre todo acervo hereditário, como doutrina Diniz (2003), ou
a meação dos bens comuns e a parcela legal apenas nos bens particulares? Penso, na
omissão da legislação, que a solução mais justa e que atende o espírito do novo Código Civil é a segunda hipótese.
Com efeito, conforme já ressaltado, na legislação anterior que acolhia o regime de
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
comunhão universal de bens como o regime legal necessário o cônjuge sobrevivente
já recebia a meação, tendo a metade do patrimônio. No novo regime legal de comunhão parcial o cônjuge supérstite passou a ficar desamparado na inexistência ou
pequena monta de bens comuns, ainda que o falecido possuísse patrimônio particular
elevado.
Adotando o entendimento da renomada doutrinadora, mesmo concorrendo com descendentes, corre-se o risco do cônjuge casado sob o regime de comunhão parcial
receber além da meação dos bens que integram o espólio e ser gratificado duas vezes
nos bens comuns, recebendo a meação e herança. Apenas para reforçar o argumento, na hipótese do cônjuge falecer deixando R$ 400.000,00 de bens comuns e R$
100.000,00 de bens particulares, e um único filho, o cônjuge sobrevivente receberia
R$ 200.000,00 dos bens comuns (meação) e do restante (R$ 300.000,00) teria ainda a
fração ideal da metade, ou seja, R$ 150.000,00, totalizando R$ 350.000,00, cabendo
ao herdeiro descendente apenas R$ 150.000,00, o que é inconcebível concorrendo
com descendentes.
Leite (2003), em recente artigo, lembra que Miguel Reale resgatou duas noções fundamentais que passam a dominar a exegese do novo sistema de partilhamento dos
bens: a valorização dos cônjuges e a premissa geral de que quem é meeiro não deve
ser herdeiro. Em outras palavras, quem já ganhou a meação, não deve pretender vantagens de ordem sucessória. Fundamenta ainda que aplicando este princípio básico
não é justo que, além da meação, o cônjuge concorresse com aquela classe (descendentes) de herdeiros. Tal bis in idem fica negado pela sistemática abraçada pelo
legislador nacional.
Conclui o renomeado Articulista que o cônjuge sobrevivente não concorre com os
demais descendentes – porque já meeiro – no regime de comunhão parcial de bens
quando o autor da herança não houver deixado bens particulares – a contrario sensu
da regra geral – o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes.
Acrescento, porém, uma terceira hipótese, de o cônjuge falecido deixar bens comuns
e particulares, o sobrevivente será meeiro nos bens comuns e herdeiro concorrente
com os descendentes apenas nos bens particulares, excluindo a incidência sobre a
meação do falecido. É a melhor exegese do art. 1.829, I, do Código Civil. Assim, na
partilha caberá ao sobrevivente a meação nos bens comuns e a fração ideal nos bens
particulares do autor da herança.
Não aplica este entendimento aos ascendentes porque o Código Civil não distingue o
regime, admitindo ao cônjuge ser herdeiro mesmo no regime de comunhão universal,
quando já possui a meação de todos os bens.
Assim, concorrendo com ascendentes, qualquer que seja o regime de bens, não existindo ressalvas, o cônjuge sobrevivente terá direito a 1/3 (um terço) se concorrer com
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ambos os pais do falecido e 1/2 (metade) se concorrer com apenas um dos pais do
autor da herança (1º grau) ou com outros ascendentes (avós, bisavós), ainda que com
mais de um (art. 1.829, I e 1.837, CC).
Independente do regime de bens e da participação na herança o cônjuge sobrevivente
possui ainda direito real de habitação, ou seja, o direito de moradia no imóvel destinado à residência da família, desde que possuíam uma única residência (art. 1.831,
CC).
O atual Código Civil não faz a ressalva do anterior de que o direito perdurava enquanto durasse a viuvez (art. 1.611, § 2º), admitindo, assim, que mesmo após casar-se
novamente ou constituir união estável o cônjuge sobrevivente resida no imóvel.
Cuida-se de direito personalíssimo e vitalício, devendo o beneficiário utilizar o bem
exclusivamente como residência sua, não podendo aluga-lo ou cedê-lo, independentemente de manter-se viúvo, de tal sorte que perdure o direito ainda que o(a) viúvo(a)
se case novamente ou forme união estável (DINIZ, 2003). O direito real de habitação
em favor do cônjuge sobrevivente se dá ex vi legis, dispensando registro no álbum
imobiliário, já que guarda estreita relação com o direito de família (LEITE, 2003).
O cônjuge casado no regime de comunhão de bens possui o direito de preferência
para ser nomeado inventariante, mantido em outros regimes se for herdeiro e estiver
na posse e administração dos bens do espólio (art. 990, I e II, CPC), exercendo, nestes
casos, a posse e administração da herança até ultimar a partilha (art. 1.991, CC).
3. Companheiro (a)
O Código Civil de 1916 não conferia direitos sucessórios aos companheiros, somente
concedidos com a Lei nº 8.971/94. A referida lei exigia para configuração da união
estável convivência de mais de cinco anos ou filhos comuns e que os parceiros fossem
solteiros, viúvos, separados judicialmente ou divorciados, excluindo, portanto, os separados de fato.
A Lei nº 8.971/94, além da meação dos bens adquiridos pelo esforço comum, conferiu
ao companheiro sobrevivente a qualidade de herdeiro único na falta de descendentes
e ascendentes, portanto, incluído na terceira classe de herdeiro, mesma posição ocupada pelo cônjuge. Existindo descendentes o companheiro possuía direito de usufruto
de um quarto da herança e concorrendo com ascendentes o usufruto aumentava para
a metade dos bens.
A Lei nº 9.278/96 não estabelece prazo para caracterizar a entidade familiar, exigindo
convivência duradoura, pública e contínua, com objetivo de constituição de família.
Além de apresentar novos elementos configuradores da união estável, sem fixar prazo, a nova lei conferiu ao convivente direito real de habitação no imóvel destinado à
residência da família, enquanto não constituir nova união ou casamento.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Diverso do casamento, que se prova pela certidão, é necessário para o companheiro
suceder um prévio reconhecimento da união estável, observando que a capacidade
para suceder é a do tempo da abertura da sucessão (art. 1.787 CC), ou seja, é necessário que o autor da herança tenha falecido na vigência da Lei nº 8.971/94, caso contrário o companheiro não possui direitos sucessórios, sendo a herança transferida aos
demais herdeiros em razão do direito de saisine (art. 1.784 CC).
O Código Civil de 2002 reconheceu direitos sucessórios ao companheiro, entretanto, não o incluiu no Título II – Da Sucessão Legítima, especialmente no art. 1.829,
ao apresentar a ordem de vocação hereditária, preferindo referir ao companheiro em
dispositivo isolado, no art. 1.790, ao tratar das Disposições Gerais, o que, além de
discriminar, não é de boa técnica. Não acolheu, entretanto, as disposições previstas
nas Leis 8.974/94 e 9.278/96 e foi injusto com o companheiro, reduzindo os direitos
sucessórios que conquistou e certamente vai gerar muita discussão doutrinária e propostas de emenda à lei. Foi ainda omisso no caso de participação do companheiro
na sucessão se for meeiro de todos os bens, necessitando completar a norma com as
disposições previstas nos arts. 1.725 e 1.829, I, parte final, que referem-se ao cônjuge
casado no regime de comunhão parcial de bens.
O companheiro, com as novas regras, não teve mantido o direito ao usufruto e habitação, sendo importante ressaltar que como o novo Código entrou em vigor em 10 de
janeiro de 2003, todas as sucessões abertas até esta data serão reguladas pelas Leis nº
8.974/94 e nº 9.278/96, ainda que a abertura, procedimentos de inventário e partilha
ocorram já na vigência do novo Código Civil (art. 1.784 e 1.787 CC).
Os companheiros não possuem direitos na sucessão se presentes os impedimentos do
art. 1.521 CC, mas é admitido reconhecimento da união estável de pessoa casada se
separado de fato (art. 1.723, CC). Por óbvio não existe concorrência entre companheiro e cônjuge na sucessão, posto que para configurar a união estável o autor da herança
não podia viver matrimonialmente com o cônjuge, sendo necessário, no mínimo, estar
separado de fato por mais de dois anos (art. 1.830, CC).
O(a) companheiro(a) possui direito de meação, ou seja, a metade dos bens adquiridos
na constância da união estável que se comunicam no regime de comunhão parcial,
como os adquiridos a título oneroso ainda que só em nome de um deles, por fato eventual, por doação, herança ou legado em favor de ambos (se foi só em nome do falecido
o bem é excluído da meação, art. 1.659, I, CC), as benfeitorias em bens particulares e
os frutos de todos os bens (art. 1.725 c/c 1.660 CC), salvo se houver contrato escrito
estipulando o contrário (art. 1.725, CC).
Independente da meação, direito próprio, embora não foi incluído na ordem de vocação hereditária ou possuir qualidade de herdeiro necessário, o companheiro sobrevivente é herdeiro concorrente por força do art. 1.790, CC e participará da sucessão,
concorrendo com outros herdeiros, porém apenas nos bens adquiridos na vigência da
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
união estável e onerosamente, nas seguintes proporções:
I. mesma quota quando concorrer com filhos comuns;
II. metade da quota quando concorrer com filhos ou outros descendentes apenas do autor da herança;
III. um terço quando concorrer com netos ou descendentes mais
distante comuns, ascendentes e colaterais do autor da herança.
No que se refere aos descendentes o novo Código Civil não fez, quanto aos companheiros, a ressalva prevista para o cônjuge de que não concorrerá na herança se já possuir a metade de todos os bens por meação. Assim, se possuir contrato de comunhão
universal ou na existência aplicando-se as regras da comunhão parcial (art. 1.725), há
quem defenda que deve ser aplicado o disposto na parte final do art. 1.829, I e também
ser excluído da sucessão quando concorrer, só com descendentes, se já possuir a meação de todos os bens do falecido, obviamente adquiridos onerosamente na constância da união estável, aplicando-se o princípio de que concorrendo com descendentes
quem já é meeiro não poderá ser herdeiro. O Código Civil, entretanto, já tão injusto
com o companheiro na sucessão do outro, não fez a ressalva prevista ao cônjuge, possuindo o companheiro direito de herança concorrente mesmo que meeiro.
Da mesma forma na sucessão do companheiro ao mesmo tempo com vários filhos comuns e só do autor da herança o Código Civil não reproduziu a regra contida na parte
final do art.1.832, ao tratar da sucessão concorrente do cônjuge, o que tem gerado
muitas controvérsias na sua interpretação ao possibilitar quinhões desiguais entre os
filhos comuns e só do autor da herança, violando o princípio da igualdade dos filhos
(art.227, §6, CF).
Com efeito, nos termos do art.1.790, II, do Código Civil, caberá ao (à) companheiro
(a), como herdeiro concorrente, a metade do quinhão se concorrer exclusivamente
com descendentes só do autor da herança; se concorrer com descendentes do falecido
e filhos comuns ou só com filhos comuns terá direito à mesma quota atribuída ao filho;
se concorrer com descendentes do autor da herança e com descendentes comuns além
do 1º grau (netos ou bisnetos) terá direito a um terço da herança (incisos I e III).
Concorrendo com ascendentes ou colaterais até o quarto grau do falecido caberá ao
(à) companheiro (a) um terço da herança quanto aos bens adquiridos onerosamente
na vigência da união estável. Na ausência de descendentes, ascendentes e colaterais,
o companheiro será herdeiro único e receberá todos os bens, sendo incluído, portanto,
na última classe dos herdeiros (art. 1.790, IV, CC).
A concubina de homem casado, que não se ache separado de fato, não possui direitos
sucessórios, devendo habilitar-se no espólio como credora se auxiliou o falecido na
aquisição de algum bem, após a devida comprovação nas vias ordinárias.
O Código Civil de 2002 inovou ao considerar união estável a convivência de pessoas
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
casadas, desde que separadas de fato do cônjuge sem especificar o prazo de separação
(art. 1.723, § 1º). No art. 1.801, entretanto, exige o prazo de cinco anos de separação
de fato para ser nomeada a concubina em testamento como herdeira (inc. III) o que é
rigoroso e vai despertar muita discussão, inclusive confundindo companheira (já que
separado de fato) e concubina (que se caracteriza quando um deles vive também com
o cônjuge), querendo muitos aplicar este prazo para configurar união estável e direitos
à sucessão legítima. Além disso conflita com o prazo de dois anos, estabelecido no art.
1.830, para o cônjuge separado de fato perder seus direitos sucessórios.
Bastam dois anos de separado de fato para o divórcio direto e extinção do vínculo do
casamento (art. 1.580, § 2º), prazo mais indicado e mais justo, a meu ver, que deveria
ser aplicado por coerência no direito sucessório, para permitir ao autor da herança
nomear a companheira, e não concubina já que separado de fato, sua herdeira testamentária.
Da mesma forma o prazo de dois anos de separado de fato deve excluir os direitos
sucessórios de cônjuge, independente de culpa, conferindo, a partir desta data, direitos
sucessórios ao companheiro que convive com o (a) separado (a) de fato.
4. Bibliografia
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 6.
LEITE, Eduardo de Oliveira. A nova ordem de vocação hereditária e a sucessão dos
cônjuges. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 815, p. 33-37, set. 2003.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Agravo nº 10701030388717001. Relator: Des.
Duarte de Paula. Belo Horizonte, 11 de março de 2006.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
1.2 PATRIMÔNIO AMBIENTAL CULTURAL E USUCAPIÃO DE BENS
MÓVEIS TOMBADOS − UMA ANÁLISE EM BUSCA DA EFETIVIDADE
PROTETIVA DO DECRETO-LEI N.º 25/19371
MARCOS PAULO DE SOUZA MIRANDA
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Coordenador das Promotorias de Justiça
de Defesa do Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico de Minas Gerais
SUMÁRIO: 1. Relevância Prática do Tema Abordado. 2. O Patrimônio Cultural como
Aspecto do Meio Ambiente. 3. Breves Considerações sobre o Usucapião. 4. O Regime
Jurídico dos Bens Tombados. 5. Os Bens Tombados são, a Princípio, Coisas fora do
Comércio. 6. A Dificuldade de se Adquirir Bens Tombados Através de Usucapião.
6.1. Bens Públicos Tombados. 6.2. Bens Particulares Tombados. 6.3. Um Precedente
Importante. 7. A Necessidade da Intervenção Ministerial nas Ações de Usucapião de
Bens Móveis de Valor Cultural. 8. Conclusões. 9. Bibliografia.
1. Relevância Prática do Tema Abordado
Ao Ministério Público, como guardião do ordenamento jurídico pátrio e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis incumbe uma grande parcela de responsabilidade
pela preservação do patrimônio cultural brasileiro e pela garantia do direito de acesso
e fruição dos bens que o integram, de forma que a atuação do Parquet nessa área
deve corresponder às expectativas sociais, sendo firme, pronta e eficiente. Afinal de
contas, a “[...] preservação do Patrimônio Cultural não é uma alternativa ou uma opção à preservação da memória e da identidade. É uma imposição de natureza política
de garantia, de soberania, de segurança nacional, e de manutenção da face da nação”
(ENCONTRO, 2003).
Infelizmente, nos últimos tempos várias têm sido as agressões ao patrimônio cultural
móvel brasileiro, sendo de conhecimento notório a ação de quadrilhas especializadas,
sobretudo em subtrações de peças sacras de grande valor cultural, muitas delas tombadas, expostas ao público em museus ou igrejas.
Especificamente no que tange ao Estado de Minas Gerais, estima-se que sessenta por
cento do seu patrimônio cultural constituído de bens móveis tenham sido deslocados
de seus locais de origem, estando atualmente nas mãos de colecionadores particulares
e comerciantes de antigüidades. Grande parte do patrimônio pertencente à coletividade mineira encontra-se agora no Rio de Janeiro, São Paulo ou mesmo no exterior.
Basta abrir qualquer revista de decoração para se deparar com imagens do barroco
mineiro, fragmentos de talha de retábulos, colunas, objetos de prata como turíbulos,
cálices, ostensórios e bacias de lavabo, entre outros.
Artigo publicado na revista de Direito Ambiental RT, Ano 11, - janeiro-março de 2006, v. 41, p. 167-181. Coord. Antônio
Herman V. Benjamin e Édis Milaré.
1
334
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Desde a criação no âmbito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais do Grupo
Especial de Promotores de Justiça Especializados na Defesa do Patrimônio Cultural
das Cidades Históricas, por meio da Resolução PGJ nº 52, de 4 de agosto de 2003,
várias foram as ações civis públicas propostas pelo Parquet mineiro com o intuito de
reintegrar a seus locais de origem peças sacras, algumas delas tombadas, que haviam
sido furtadas e se encontravam em poder de colecionadores de arte há anos.
Nos embates jurídicos travados com os detentores de tais peças, a alegação de usucapião dos bens tem sido uma constante. Aliás, essa tese defensiva tem se mostrado
como o principal argumento dos colecionadores. Há notícias, inclusive, de que associações de antiquários e colecionadores têm orientado seus membros no sentido de
se aforar preventivamente à ação do Ministério Público ações de usucapião de peças
de origem duvidosa ou obscura. Seria viável juridicamente, entretanto, tal pretensão?
A resposta a essa indagação mostra-se como de suma relevância prática, dela dependendo o destino de muitos bens culturais que foram retirados, na maioria das vezes às
ocultas, de seus locais de origem.
2. O Patrimônio Cultural como Aspecto do Meio Ambiente
Não seria despiciendo ressaltar que o tratamento jurídico da temática relativa ao patrimônio cultural deve se dar sob as luzes do Direito ambiental uma vez que, conforme
pacífico entendimento doutrinário, para fins protecionais o conceito meio ambiente
não se resume ao seu aspecto meramente naturalístico, mas comporta uma conotação
abrangente, holística, compreensiva de tudo o que cerca e condiciona o homem em
sua existência no seu desenvolvimento na comunidade a que pertence e na interação
com o ecossistema que o cerca (MANCUSO, 2004). Como esclarece Souza Filho
(1999, p. 21):
O meio ambiente, entendido em toda a sua plenitude e de um
ponto de vista humanista, compreende a natureza e as modificações que nela vem introduzindo o ser humano. Assim, o meio
ambiente é composto pela terra, a água, o ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras de arte e os elementos subjetivos
e evocativos, como a beleza da paisagem ou a lembrança do
passado, inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou da
passagem de seres humanos. Desta forma, para compreender o
meio ambiente é tão importante a montanha, como a evocação
mística que dela faça o povo. Alguns destes elementos existem
independentemente da ação do homem: os chamamos de meio
ambiente natural; outros são frutos da sua intervenção, e os chamamos de meio ambiente cultural.
Ressalte-se que esse moderno entendimento vem sendo agasalhado pelos Tribunais
de nosso país e, inclusive, pelo Superior Tribunal de Justiça, como se pode extrair do
seguinte julgado:
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
MEIO AMBIENTE – Patrimônio cultural. Destruição de dunas
em sítios arqueológicos. Responsabilidade civil. Indenização.
O autor da destruição de dunas que encobriam sítios arqueológicos deve indenizar pelos prejuízos causados ao meio ambiente, especificamente ao meio ambiente natural (dunas) e ao
meio ambiente cultural (jazidas arqueológicas com cerâmica
indígena da Fase Vieira). Recurso conhecido em parte e provido. (BRASIL, 2002a).
Romper com as velhas concepções acerca do conceito de meio ambiente é indispensável para protegê-lo em sua inteireza, assegurando que os bens de valor cultural, que
também são essenciais à sadia qualidade de vida de todos nós, possam ser usufruídos
pelas presentes e pelas futuras gerações. Dessa forma, exsurge como de grande importância para a efetiva tutela do meio ambiente cultural em nosso país e para se assegurar o direito difuso de acesso e fruição dos bens que o integram, uma eficiente e coesa
ação ministerial sob pena de sermos coniventes com a transformação das riquezas
culturais da coletividade em meros objetos decorativos de residências suntuosas, destinados exclusivamente ao deleite de uma pequena elite (SANTOS FILHO, 2005).
3. Breves Considerações sobre o Usucapião
O usucapião é um instituto milenar (o direito romano já o conhecia) que assegura
a aquisição da propriedade e de outros direitos reais em razão da posse prolongada
de determinada coisa, mediante ainda a observância de alguns requisitos legais. No
Brasil, atualmente, a aquisição da propriedade através do usucapião encontra previsão
não só na Constituição Federal, mas também no bojo do novo Código Civil (arts.
1.238 a 1.244) e de outras leis especiais.
Para o reconhecimento do direito ao usucapião, conforme já dito, há necessidade do
preenchimento de determinadas condições legais, dentre as quais se destacam: a) coisa hábil, excluídas, por exemplo, as coisas fora do comércio; b) o exercício de posse
ad usucapionem. Ressaltados tais requisitos indispensáveis, em qualquer caso, ao reconhecimento do direito à aquisição da propriedade através do mencionado instituto
jurídico, pergunta-se: é possível a aquisição da propriedade de bens tombados, através
de usucapião?
4. O Regime Jurídico dos Bens Tombados
Depois da desapropriação, o tombamento é, sem dúvida, a forma mais contundente
de intervenção estatal na propriedade particular. A limitação ao direito de propriedade através do tombamento é tamanha que há diversos julgados, inclusive do STJ,
assegurando o direito à indenização a proprietários de bens tombados2. Com efeito,
o Decreto-Lei nº 25/37, norma nacional que disciplina o tombamento de monumentos naturais, de bens representativos de nosso patrimônio histórico e artístico, além
A jurisprudência da Segunda Turma admite indenização de área tombada, quando do ato restritivo de utilização da propriedade resulta prejuízo para o dominus. (BRASIL, 2002b).
2
336
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
daqueles cuja conservação seja de interesse público, estabelece em seu Capítulo III
os diversos efeitos decorrentes do ato de tombamento, sendo inquestionável que, a
partir da inscrição de determinado bem em um dos livros do tombo, o mesmo passa
a se submeter a um regime jurídico especial de proteção (que o aproxima muito do
regime jurídico público), com o escopo de assegurar proteção efetiva da coisa contra
o abandono, a descaracterização, a destruição, a evasão, a alienação e o deslocamento
descontrolado. Dentre os vários efeitos decorrentes do ato de tombamento e constantes do Decreto-Lei nº 25/37, chamamos a atenção para os seguintes:
a) os bens tombados, por força da lei de tombamento, são equiparados a bens do patrimônio nacional (art. 1°, § 2°);
b) as coisas tombadas pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, inalienáveis por sua natureza, se submetem à inalienabilidade especial e relativa, só podendo
ser transferidas de uma pessoa de direito público interno para outra;
c) os bens particulares tombados têm sua alienabilidade restringida (art. 12), ficando
sujeita a determinadas condições, tais como (art. 13): a) prévio oferecimento do bem a
ser alienado ao Poder Público, na seguinte ordem: União, Estados e Municípios; b) No
caso de transferência da propriedade ou deslocação dos bens tombados, deverá haver
registro do bem no cartório do local para onde se transferiu, além de comunicação ao
órgão competente do patrimônio histórico, dentro do prazo de trinta dias e sob a pena
de multa de 10% do valor da coisa.
d) A saída do bem para o exterior só é permitida para o fim de intercâmbio cultural,
sem a transferência de domínio e mediante autorização do instituto do patrimônio
histórico.
e) No caso de extravio ou furto de qualquer objeto tombado, o respectivo proprietário
deverá dar conhecimento do fato ao instituto do patrimônio histórico.
f) As coisas tombadas ficam sujeitas à vigilância permanente do instituto do patrimônio histórico, que poderá inspecioná-los sempre que for julgado conveniente, não
podendo os respectivos proprietários ou responsáveis criar obstáculos à inspeção, sob
pena de multa.
A análise de tais restrições deixa evidente que conquanto os bens tombados permaneçam como propriedade de seu titular, os mesmos saem da órbita da vontade exclusiva
deste e ficam submetidos a uma finalidade coletiva e impessoal. O regime especial do
tombamento acaba por alterar a própria natureza do bem, que tem aumentada a área
de sua publicização (SIMÕES, 1994)3. Acerca do especial regime a que ficam submetidos os bens culturais tombados, em acórdão célebre, de 1942, o Supremo Tribunal
Federal decidiu:
A antiga noção de propriedade, que não vedava ao proprietá3
Trilhando indêntico entendimento, o Superior Tribunal de Justiça deixou consignado que, consoante dispõe O Decreto-lei
nº 25/37, ocorrendo o tombamento, o bem a este submetido, adquire regime jurídico sui generis, permanecendo o respectivo proprietário na condição de administrador.
337
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
rio senão o uso contrário às leis e regulamentos, completou-se
com o da sua utilização posta ao serviço do interesse social;
a propriedade não é legítima senão quando se traduz por uma
realização vantajosa para a sociedade.
[...]
A propriedade social concretiza uma concepção jurídica aplicada para fundamentar a legalidade de proteção aos monumentos
históricos e objetos de arte, indicando a existência de um degrau
do desenvolvimento progressivo do direito de propriedade em
um sentido cada vez menos individual; diz-se que em tais monumentos e objetos, em poder do particular, existem duas partes
distintas: a intelectual – ou seja, o pensamento do artista, o ideal
que ele encarnou, e o material – isto é, esta mesma forma que
lhe serviu para fixar o seu pensamento, o seu ideal. A primeira
pertence à sociedade, que a deve proteger; somente a segunda
pertence à propriedade privada, gravada de servidão.
Essa belíssima lição nos mostra um ponto saliente: os bens considerados patrimônio
cultural – histórico, artístico e natural – são ônus real legal, passando, desde o seu
reconhecimento de sua relevância através do instituto do tombamento, por exemplo,
a se constituírem em propriedade limitada e não plena, segundo distinção do Código
Civil.
Inquestionável realmente a submissão de tais bens a um peculiar regime jurídico no
que tange a seu gozo e disponibilidade e ainda a um particular regime de tutela pública, que acaba por condicionar os negócios relativos a tais coisas sob várias modalidades, objetivando inclusive o controle de sua circulação e transferência, com
conseqüentes reflexos no que diz respeito à possibilidade dos mesmos serem objeto
de usucapião, como abaixo se explicitará.
5. Os Bens Tombados são, a Princípio, Coisas fora do Comércio
Já no Direito Romano alguns bens podiam e outros não podiam ser alienados. Estes
últimos eram considerados como sendo extra comercium, (coisas fora do comércio) e
entre tais estavam as res communes ominium (o ar, as águas correntes, o alto mar etc.);
as res divini iuris (coisas sagradas) e as res publicae (estradas, praças etc).
O Código Civil de 1916 estatuiu em seu art. 69 que: “São coisas fora do comércio as
insuscetíveis de apropriação e as legalmente inalienáveis”. Para os fins do presente
estudo, sobrelevam-se as coisas legalmente inalienáveis, que são aquelas que, embora
possam ser apropriadas pelo homem, são excluídas do comércio por determinação
legal, que inibe a sua disponibilidade com o fito de se protegerem certas pessoas ou
interesses sociais, culturais, econômicos etc.
Os bens tombados receberam especial proteção por parte do Decreto-Lei nº 25/37
que limitou claramente a possibilidade de alienação de tais coisas, objetivando a sua
mantença junto ao Poder Público (quando públicas as coisas tombadas) ou, quando
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
pertencentes a particulares, a sua aquisição pelos entes estatais. Tal preocupação se
justifica na medida em que, tratando-se de bens de grande relevância para a cultura do
país, o acesso e a fruição dos mesmos pela coletividade (direitos assegurados pelo art.
215, caput, da CF/88) seriam certamente facilitados quando integrantes de acervos
públicos. Com efeito, dispõe a Lei do Tombamento:
Art. 11. As coisas tombadas, que pertencem à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão
ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.
Parágrafo único. Feita a transferência, dela deve o adquirente
dar imediato conhecimento ao Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional.
Art. 12. A alienabilidade das obras históricas ou artísticas tombadas, de propriedade de pessoas naturais ou jurídicas de direito privado sofrerá as restrições constantes da presente Lei.
Art. 22. Em face da alienação onerosa de bens tombados, pertencentes a pessoas naturais ou a pessoas jurídicas de direito
privado, a União, os Estados e os Municípios terão, nesta ordem, o direito de preferência.
§ 1º Tal alienação não será permitida, sem que previamente sejam os bens oferecidos, pelo mesmo preço, à União, bem como
ao Estado e ao Município em que se encontrarem. O proprietário deverá notificar os titulares do direito de preferência a usálo, dentro de trinta dias, sob pena de perdê-lo.
§ 2º É nula a alienação realizada com violação do disposto no
parágrafo anterior, ficando qualquer dos titulares do direito de
preferência habilitado a seqüestrar a coisa e a impor a multa de
vinte por cento do seu valor ao transmitente e ao adquirente,
que serão por ela solidariamente responsáveis. A nulidade será
pronunciada, na forma da lei pelo juiz que conceder o seqüestro, o qual só será levantado depois de paga a multa e se qualquer dos titulares do direito de preferência não tiver adquirido a
coisa no prazo de trinta dias.
Verifica-se, pois, no que tange às coisas tombadas de propriedade particular, que enquanto não notificadas as pessoas jurídicas de direito público mencionadas no § 1° do
art. 22 da Lei de Tombamento e enquanto não decorrido o prazo de trinta dias, elas
são consideradas como insuscetíveis de serem objeto de comércio em âmbito privado.
Trata-se de inalienabilidade relativa, de vez que a restrição pode ser afastada após o
cumprimento das exigências legais. Contudo, se essas últimas não forem atendidas
integralmente, a alienação da coisa tombada é nula de pleno direito, de vez que “[...]
os negócios jurídicos a respeito da transferência de tais bens têm por objeto prestação impossível” (MIRANDA, 1954, p. 174). Conforme salienta Rodrigues (1978, p.
135):
339
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A inalienabilidade imposta pelo legislador a determinadas coisas decorre de sua destinação. Está a coisa voltada ao alcance
de um certo fim, de modo que se não admite a hipótese de sua
venda, troca ou doação, sem sacrifício desse fim relevante que
se almeja. Verdade que nalguns casos tal inalienabilidade pode
ser levantada, eventualmente, mediante a observância de formalidades legais.
Machado (2001, p. 886), por seu turno, esclarece que:
Deixando de haver a regular notificação do Poder Público para
que pudesse exercitar a sua preferência na alienação, esta é
nula. Foi um significativo avanço da legislação. Não é anulável o ato, mas nulo. Pontes de Miranda ensina que a alienação
é ineficaz. O negócio jurídico ente o alienante e o adquirente
é nulo, por ilicitude do objeto (CC, art. 145, II). Prevê, pois,
publicisticamente, deixando de lado o entendimento privatista
de que somente seriam exigíveis perdas e danos pelo não cumprimento de ser oferecida a coisa.
Quanto aos bens tombados pertencentes ao Poder Público, sua eventual alienação,
além de atender aos regramentos próprios do Direito Administrativo, só será permitida entre os entes que integram a República Federativa do Brasil (União, Estados e
Municípios), nos termos do disposto no art. 11 do Dec.-Lei nº 25/37. Conclui-se que
as coisas tombadas públicas estão absolutamente fora do âmbito do comércio privado
e, as particulares, relativamente fora do comércio privado, logo somente podem ser
alienadas após a notificação dos entes estatais e do decurso de trinta dias sem a manifestação de interesse pela aquisição.
6. A Dificuldade de se Adquirir Bens Tombados através de Usucapião
Após as ponderações acima, temos que dificilmente ocorrerá situação de aquisição
de bem tombado através de usucapião, uma vez que somente em hipóteses raríssimas
haverá o preenchimento dos requisitos indispensáveis ao reconhecimento do direito à
aquisição da propriedade através desse instituto.
6.1. Bens Públicos Tombados
No que tange às coisas tombadas de propriedade do Poder Público, a impossibilidade
de se usucapi-las é absoluta. Independentemente do ato de tombamento delas, já se
encontram sujeitas ao regime jurídico dos bens públicos, não podendo, pois, serem
objeto de usucapião, nos termos do que dispõe a Súmula 340 do STF: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem
ser adquiridos por usucapião”. Mas ressalte-se que, no caso de bens tombados perten-
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
centes a entes públicos, a Lei de Tombamento restringe ainda mais a sua possibilidade
de circulação, estabelecendo que: “As coisas tombadas, que pertencem à União, aos
Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de
uma à outra das referidas entidades”. Logo, elas são insuscetíveis de apropriação por
parte de particulares.
Caetano (1977, p. 440) preleciona que “[...] estando as coisas públicas fora do comércio privado, são insuscetíveis de posse civil por particulares e, como tais, indefensáveis pelos meios possessórios civis”. Pereira (2000, p. 56), no mesmo sentido,
enfatiza: “[...] enquanto conservarem esses bens a sua inalienabilidade peculiar, não
podem ser objeto de posse e estão isentos de usucapião, que pressupõe um bem capaz
de ser livremente alienado”. Sobre o tema, já se pronunciou o Pretório Excelso:
As coisas, repete-se, sobre as quais não pode haver o direito de
propriedade não podem ser objeto de posse. O bem do Estado é
inintegrável no patrimônio particular, pela prescrição aquisitiva
ou usucapião. O poder do particular sobre terras públicas não é
posse, mas detenção.
Neste mesmo sentido, “[...] estando as coisas públicas fora do comércio privado, são
insuscetíveis de posse civil por particulares” (MINAS GERAIS, 2001). Assim, totalmente impossível o particular adquirir através de usucapião um bem público tombado.
Eventual ação objetivando a declaração de usucapião de tais bens deve ser julgada
extinta sem apreciação de mérito em razão da absoluta impossibilidade jurídica do
pedido (art. 267, IV, CPC).
6.2. Bens Particulares Tombados
Quanto aos bens particulares, faz-se necessário reprisar que um dos efeitos decorrentes do ato de tombamento diz respeito à inalienabilidade relativa deles (art. 12 do
Dec.-Lei nº 25/37). Conforme visto acima, somente se pode cogitar de alienação onerosa válida de bem tombado após o prévio oferecimento da coisa à União, ao Estado e
ao Município interessados. Enquanto não cumprida tal formalidade, os bens tombados
são coisas que não podem ser negociadas em âmbito privado, estando, pois, inseridos
no rol das coisas fora do comércio, que são insuscetíveis de usucapião, uma vez que
tal instituto pressupõe a existência de um bem capaz de ser livremente alienado.
Não assegurado o direito de preferência ao poder público e havendo a alienação do
bem tombado, o respectivo negócio jurídico é nulo de pleno direito (art. 22, § 2°,
Dec.-Lei nº 25/37), não podendo ser posteriormente convalidado ou surtir qualquer
efeito. Sendo nulo o ato jurídico de alienação, a propriedade do bem tombado obviamente não se transfere ao adquirente, uma vez que nos precisos termos do art. 1268, §
2o do Código Civil vigente, “Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por
título um negócio jurídico nulo”. É de se asseverar que em casos tais a aquisição da
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
propriedade do bem ilicitamente alienado não poderá ainda ser adquirida posteriormente através de usucapião, uma vez que a tradição da coisa tombada nas condições
acima não pode redundar sequer na transferência da posse dela ao adquirente, conforme nos ensina a melhor doutrina:
[...] posse e propriedade são perfeitamente paralelas; onde não
há propriedade não pode haver posse; onde a propriedade é
possível, a posse também o é, visto como afinal são comuns
as condições de sua existência”. Logo, “podem ser possuídas
todas as coisas e direitos de exercício confundido com posse de
coisa material que forem suscetíveis de compra e venda ou circulação econômica; não o podem ser as fora do comércio [...].
(PEREIRA, 2000, p. 56).
A jurisprudência tem trilhado igual caminho e se manifestado sobre o tema nos seguintes termos: “As coisas sobre as quais não pode haver um direito de propriedade
não podem também ser objeto de posse no sentido jurídico: onde não pode haver propriedade, objetiva ou subjetivamente, também não pode haver posse” (MINAS GERAIS, 2003). Enquanto não se assegurar o direito de preferência ao Poder Público, o
bem tombado é, por força de lei, considerado como coisa fora do âmbito do comércio
privado e, portanto, não se constitui como coisa suscetível de ser usucapida, pois um
dos requisitos indispensáveis à configuração do usucapião é exatamente a existência
de res habilis. O magistério da doutrina soa no seguinte sentido:
Tudo o que pode ser objeto de posse, como exposto no estudo do instituto, não estando fora do comércio, é suscetível de
prescrição aquisitiva. Cuida-se da res habilis. Os bens fora do
comércio, não podendo ser objeto de posse, não poderão ser
adquiridos por usucapião. (VENOSA, 2004, p. 212).
A jurisprudência comunga de idêntico entendimento: “Para caracterizar a coisa hábil
a ser usucapida, é mister que não esteja fora do comércio e que não seja bem público” (BRASIL, 1999). Com efeito, de nada adiantaria se restringir a possibilidade de
alienação onerosa da propriedade dos bens tombados (o que foi feito pelo Dec.-Lei nº
25/37) se tal norma pudesse ser burlada por meio de posterior alegação de aquisição
da propriedade do bem, pelo adquirente, através de usucapião.
Se isso pudesse ocorrer, a norma cogente, de ordem pública, do art. 22 da Lei de Tombamento seria um nada jurídico, facilmente contornável por manobras escusas daqueles que não quisessem correr o risco de terem o objeto tombado adquirido pelo Poder
Público4. Trata-se, portanto, de questão de lógica jurídica. Elaboremos um exemplo
No Direito Português existe expressa e literal vedação da aquisição de bens culturais protegidos, através de usucapião.
O art. 34 da Lei nº 107/2001, que “Estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património
cultural” dispõe que: “Os bens culturais classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação
como tal, são insusceptíveis de aquisição por usucapião”.
4
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
para melhor visualização da questão. O indivíduo “A”, proprietário de uma estátua
tombada pelo órgão competente do patrimônio histórico, resolve vendê-la ao indivíduo “B” e assim o faz sem, contudo, assegurar previamente o direito de preferência ao
Poder Público, nos termos do que exige o art. 22 do Dec.-Lei nº 25/37.
Em caso tal, o indivíduo “B” não adquiriu de pronto a propriedade da estátua, já que
o negócio jurídico entabulado é nulo, não havendo a transferência do domínio. Se
permanecer com a estátua pelo lapso temporal necessário, o indivíduo não poderá
posteriormente lograr a declaração da propriedade do objeto tombado via ação de
usucapião por dois motivos: a) a relação de fato estabelecida com a estátua não pode
ser considerada como posse, conforme acima explicado; b) a estátua não se apresenta
como res habilis ao usucapião, já que considerada coisa fora do comércio enquanto o
Poder Público não for consultado sobre o seu interesse na aquisição do bem. Ausentes
tais requisitos, é inviável se falar em usucapião.
Se na hipótese acima fosse assegurado o direito de preferência ao Poder Público, o
negócio jurídico seria válido, havendo a transferência da propriedade do bem móvel
através da tradição, não restando possibilidade de posterior pedido de usucapião do
bem, por absoluta falta de interesse de agir do adquirente, que já teria o domínio da
coisa.
6.3. Um Precedente Importante
Acerca da impossibilidade de se usucapir bens móveis tombados, há em Minas Gerais um precedente importantíssimo sobre a matéria. Trata-se da Ação Civil Pública
movida pelo Ministério Público Federal em face do colecionador paulista Antônio
Carlos Kfouri, que detinha uma imagem de Nossa Senhora das Mercês, que havia sido
subtraída da Igreja das Mercês e Misericórdia, em Ouro Preto, na década de 60.
Em 1995, a artista plástica ouropretana Regina Bawden reconheceu a imagem em um
catálogo de obras sacras. Sua tia, Conceição Bawden, que conhecia a imagem, também a reconheceu. O IPHAN e a Polícia Federal foram contatados e posteriormente
o Ministério Público Federal propôs a ação civil pública objetivando a reintegração
da imagem ao templo mineiro, tombado pelo IPHAN. A Juíza Federal Ângela Catão
Alves julgou procedente o pedido ministerial e declarou que a imagem de Nossa Senhora das Mercês, apreendida em poder do colecionador, era tombada pelo IPHAN
juntamente com o restante do acervo da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia de Ouro Preto e condenou Antônio Carlos Kfouri na obrigação de restituir a
obra de arte aludida ao acervo de onde foi retirada, constando da fundamentação da
decisão não ser possível o reconhecimento do usucapião da imagem sacra tombada
em favor do colecionador que a detinha ante o peculiar regime jurídico a que se encontrava submetida a peça (BRASIL, 2003).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
7. A Necessidade da Intervenção Ministerial nas Ações de Usucapião de Bens
Móveis de Valor Cultural
Nos últimos tempos, o Ministério Público tem repensado a sua forma de atuação como
custos legis no processo civil e adotado medidas com o intuito de racionalizar a sua
intervenção nos feitos de forma a viabilizar a maior utilidade e efetividade na atuação
ministerial no papel de defensor da sociedade, em benefício dos interesses sociais,
coletivos e individuais indisponíveis, assumindo seu novo papel constitucional delineado nos arts. 127 e 129 da Carta Magna, que nitidamente priorizam a defesa de tais
interesses por parte do Ministério Público, na qualidade de órgão agente.
Como exemplo desse moderno pensamento institucional podemos citar a Recomendação nº 01, de 3 de setembro de 2001, expedida pelo Conselho Superior do Ministério
Público do Estado de Minas Gerais que “Fixa orientações funcionais, sem caráter normativo, sobre a intervenção do Ministério Público no Processo Civil”, recomendando
aos Membros do Ministério Público que oficiam no âmbito cível para não mais intervir em vários feitos, incluindo aqueles que versam sobre o usucapião de bem móvel.
De igual forma, o Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais do Ministério Público
dos Estados e da União, na chamada Carta de Ipojuca, de 13 de maio de 2003, deliberou ser desnecessária a intervenção ministerial em demandas envolvendo usucapião
de bens móveis. Embora seja indiscutível a necessidade de se otimizar a atuação ministerial em feitos cíveis, deve-se ter redobrado cuidado com as generalizações acerca
da não-intervenção, sendo indispensável a verificação, em cada caso concreto, sobre
a eventual hipótese que justifique a presença do Parquet como custos legis nos autos,
seja em razão da qualidade das partes envolvidas, seja em razão da natureza da lide
(art. 82, III, CPC).
Assim, por exemplo, no caso de ação de usucapião de bem móvel consistente em uma
peça sacra de grande importância artística e histórica (patrimônio cultural na dicção
do art. 216, CF/88), indiscutível a necessidade da intervenção ministerial ante a flagrante presença de interesse público evidenciado pela natureza da lide, uma vez que
se verifica “[...] o interesse público, pela natureza da lide, em casos em que a aplicação
do direito objetivo não pode ficar circunscrita às questões levantadas pelos litigantes,
mas, ao contrário, deve alcançar valores mais relevantes”. Com efeito e como nos
ensina Richter (apud SOUZA FILHO, 1999):
Todos os bens culturais são gravados de um especial interesse
público – seja ele de propriedade particular ou não. Aliás, isto
ocorre não apenas com os bens culturais, mas também com os
ambientais em geral. Esta nova relação de direito entre os bens
de interesse cultural ou ambiental com o Estado e os particulares vem dando margem a uma nova categoria de bens, os bens
de interesse público que não se reduz apenas a uma especial
vigilância, controle ou exercício do poder de polícia da administração sobre o bem, mas é algo muito mais profundo e incide
diretamente na sua essência jurídica. A limitação imposta aos
bens de interesse público é de qualidade diferente da limita-
344
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ção geral imposta pela subordinação da propriedade privada ao
uso social. As limitações gerais produzem obrigações pessoais
aos proprietários que devem tornar socialmente úteis as suas
propriedades, enquanto as limitações impostas a esses bens de
interesse público são muito mais profundas pois modifica a coisa mesma, passando o poder público a, diretamente, controlar o
uso, transferência, a modificabilidade e a conservação da coisa,
gerando direitos e obrigações que ultrapassam a pessoa do proprietário, atingindo o corpo social, que passa a ser co-responsável, interessado e legitimado para a sua proteção, além do
próprio poder público.
Em caso como o acima exemplificado, o Ministério Público deve intervir no feito
perquirindo inclusive sobre a origem do bem em litígio e eventual proteção administrativa ou legal dada ao mesmo, objetivando obstar eventuais manobras das partes no
sentido de se burlar a vedação de se alienar bens tombados sem a prévia notificação e
oferecimento aos entes federativos, como exigido pelo Decreto-Lei nº 25/37, sob pena
de tornar letra morta as suas disposições acerca da circulação dos objetos tombados.
A ausência da intervenção ministerial em causas envolvendo discussão sobre bens de
valor cultural (integrantes do que hodiernamente se chama meio ambiente cultural,
bem jurídico que deve ser defendido pelo Ministério Público por expressa determinação constitucional) gera a nulidade absoluta do feito. A jurisprudência, a propósito,
tem decidido sobre o tema:
A interpretação contemporânea do art. 82, III, do CPC, não pode
desviar-se da vontade constitucional (art. 127) de outorgar ao
Ministério Público a missão precípua de participar, obrigatoriamente, de todas as causas que envolvam aspectos vinculados à
proteção do meio ambiente, por ressaltar a preponderância do
interesse público. (BRASIL, 2003).
EMBARGOS A EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL - OBRIGAÇÃO DE FAZER - RETIRADA DE TIRANTES PROTENDIDOS - IMÓVEL URBANO DE VALOR HISTÓRICO E
CULTURAL - TOMBAMENTO PELO PATRIMÔNIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ - LEGÍTIMO INTERESSE DO
PODER PÚBLICO NO ACAUTELAMENTO E PRESERVAÇÃO DOS IMÓVEIS ENVOLVIDOS NA QUESTÃO EM DESLINDE - INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO - INTERESSE PÚBLICO EVIDENCIADO PELA
NATUREZA DA LIDE - ART. 82, III, DO CPC - AUSÊNCIA
- NULIDADE ABSOLUTA AB INITIO - DECRETAÇÃO DE
OFÍCIO - DETERMINAÇÃO NO SENTIDO DE SER REFEITA A INSTRUÇÃO PROCESSUAL COM A INTERVENÇÃO
DO AGENTE DO PARQUET - APELAÇÃO PREJUDICADA.
Decisão: Acordam os desembargadores integrantes da 2ª Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, de ofício, anular o processo, restando prejudicada
a apelação. (PARANÁ, 2002).
345
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
8. Conclusões
Podemos concluir que o conceito hodierno de meio ambiente não se resume ao seu
aspecto meramente naturalístico, mas comporta uma conotação abrangente, holística,
que engloba inclusive os bens de valor histórico e artístico, sendo necessário que os
operadores do Direito se atentem para esse fato, pois somente assim será possível
alcançar a proteção integral do meio ambiente, assegurando que os bens de valor
cultural, que também são essenciais à sadia qualidade de vida de todos nós, possam
ser usufruídos pelas presentes e pelas futuras gerações.
Os bens tombados, ainda que particulares, se sujeitam, por força do que dispõe o
Decreto-Lei nº 25/37, a um peculiar regime jurídico que muito se aproxima do regime jurídico público. Os bens particulares tombados, conquanto permaneçam como
propriedade de seu titular, saem da órbita da vontade exclusiva dele e ficam submetidos a uma finalidade coletiva e impessoal. Os bens particulares tombados têm sua
alienabilidade restringida, sendo considerados coisas fora do comércio enquanto não
satisfeitas as condições legalmente exigidas para a sua alienação. A validade do negócio jurídico oneroso envolvendo bens móveis tombados fica condicionada ao prévio
oferecimento de tais coisas ao Poder Público, na forma estabelecida pelo Decreto-Lei
nº 25/37. A alienação onerosa de bens móveis particulares tombados, sem obediência
ao disposto no Decreto-Lei nº 25/37, não transfere ao adquirente a posse da coisa, mas
a mera detenção, que não tem o condão de assegurar posterior direito ao usucapião
do bem.
É absolutamente impossível particulares usucapirem coisas tombadas de propriedade do Poder Público, tanto em razão do disposto na Súmula 340 do STF, quanto do
disposto no Decreto-Lei nº 25/37. A intervenção do Ministério Público nas ações de
usucapião de bens móveis de valor cultural é obrigatória sob pena de nulidade, uma
vez que evidenciado o interesse público em decorrência da natureza da lide. Nas ações
de usucapião de bens móveis de valor cultural deve o Ministério Público requerer as
diligências necessárias para se aclarar a origem do bem em litígio além de eventual
proteção dada ao mesmo, objetivando obstar eventuais manobras das partes no sentido de se burlar a vedação de se alienar bens tombados sem a prévia notificação e
oferecimento aos entes federativos, como exigido pelo Decreto-Lei nº 25/37.
9. Bibliografia
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 25371/RJ. Relator: Min.
Demócrito Reinaldo. Brasilia, 19 de abril de 1993.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 115599/RS. Relator: Min.
Ruy Rosado de Aguiar. Brasília, 27 de junho de 2002a.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 401264/SP. Relator: Min.
Eliana Calmon. Brasília, 5 de setembro de 2002b.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 486645/SP. Relator: Min.
José Delgado. Brasília, 18 de novembro de 2003.
346
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
BRASIL. Tribunal Regional Federal (1. Região). Autos 96.00.09170-6. Relator: Juíza
Angela Maria Catão Alves.
BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). REO 199804010436598. Relator:
Juíza Maria de Fátima Freitas Labarrère. Porto Alegre, 29 de abril de 1999.
CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do Direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
ENCONTRO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL, 1., 2003, Goiânia. Carta de Goiânia: ementa nº 01. Disponível
em: <www.mp.mg.gov.br/geppc>. Acesso em: 11 mar. 2006.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 9. ed. Malheiros.
2001.
MANCUSO, Rodolfo Camargo. Ação civil pública. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 241.446-4. Relator: Des.
Almeida Melo. Belo Horizonte, 6 de dezembro de 2001.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 000.326.621-0/00. Relator:
Des. Célio César Paduani. Belo Horizonte, 31 de março de 2003.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito privado. Rio de Janeiro. Borsoi. 1954.
PARANÁ. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 0117006500. Relator: Des. Hirose
Zeni. Curitiba, 30 de abril de 2002.
PEREIRA, Tito Fulgêncio Alves. Da posse e das ações possessórias. 9. ed. São Paulo: Forense, 2000.
PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural. Belo Horizonte:
Del Rey. 1994.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 8. ed. Saraiva, 1978. v. 1.
SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Pilhagem em Minas: hora de agir. Estado de
Minas. Belo Horizonte, 2005. Caderno Pensar.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e proteção jurídica. 2. ed.
Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. v. 5.
347
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. JURISPRUDÊNCIA
TJMG
Número do processo: 2.0000.00.494887-8/000(1)
Relator: HILDA TEIXEIRA DA COSTA
Data do acórdão: 01/12/2005
Data da publicação: 31/01/2006
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL Nº 2.0000.00.494887-8/000 - 1º.12.2005 POÇOS DE
CALDAS LIQUIDAÇÃO DE SOCIEDADE MERCANTIL - PEDIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO - EMPRESA QUE EXPLORAVA ATIVIDADE DE BINGO
- APLICAÇÃO DA LEI 9.981/00 - PRELIMINARMENTE - POSSIBILIDADE DO
MP PROMOVER A LIQUIDAÇÃO APÓS O PRAZO DE 15 DIAS PREVISTOS NO
§ ÚNICO DO ART. 1.037 DO NCC - INOCORRÊNCIA DA INÉPCIA DA INICIAL
- LEGITIMIDADE DA APELANTE PARA FIGURAR NO PÓLO PASSIVO DA
DEMANDA - EMPRESA QUE POSSUÍA AUTORIZAÇÃO PARA FUNCIONAR,
MESMO QUE CLANDESTINAMENTE - REJEITADAS AS PRELIMINARES MÉRITO - EMPRESA QUE TINHA COMO OBJETO A EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE DE BINGO - AUTORIZAÇÃO CONCEDIDA À ENTIDADE ESPORTIVA
- EMPRESA RECONHECIDA COMO TERCEIRA PESSOA NÃO AUTORIZADA
- AUTORIZAÇÃO QUE EXPIROU TAMBÉM COM A LEI 9.981/00 - BINGO
VOLTOU A SER ILÍCITO PREVISTO NA LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS
- IMPROVIMENTO. - Evidenciado nos autos que a apelante possuía autorização para
funcionar, mediante a rotulagem de que a autorização era concedida à entidade de
clube esportivo, sendo ela quem explorava a atividade de bingo, e tendo sua autorização vencido em 13.6.2002, por força da Lei 9.981/00, a qual revogou a permissão da
exploração da atividade de bingo em nosso ordenamento jurídico, correta a r. sentença
a quo ao determinar a liquidação da empresa por força do art. 1033, V, do NCC.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1 FUNÇÃO SOCIAL DE EMPRESA E EXECUÇÃO FISCAL – SUCESSÃO
– RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA (ART. 133, I, DO CTN)
BRÁULIO LISBOA LOPES
Bacharel em Direito
Especialista em Direito Civil e Processual Civil
Mestrando em Direito Empresarial
Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais
Professor da Faculdade Metropolitana de Belo Horizonte
Ex-Advogado da Minas Gerais Participações S.A
Ex-Advogado da Companhia Energética de Minas Gerais S.A
Ex-Coordenador Subseccional da Escola Superior de Advocacia de Minas Gerais
1. Acórdão
RECURSO ESPECIAL nº 330.683 / SC
RELATOR: MINISTRO PAULO MEDINA
EMENTA: TRIBUTÁRIO - EXECUÇÃO FISCAL - SUCESSÃO – RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA - ART. 133, INC. I, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL.
Segundo o disposto no art. 133, inc. I, do Código Tributário Nacional, uma vez já
ocorrido o lançamento definitivo na época da sucessão, o sucessor deverá responder
integralmente pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou
atividade. Recurso especial improvido.
ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA TURMA do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, conhecer do recurso, mas lhe negar provimento, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins, Eliana Calmon,
Franciulli Netto e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Data do julgamento: 19 de fevereiro de 2002.
2. Razões
Na decisão que se comenta, observa-se que a Segunda Turma do STJ, entendeu que
o artigo 133, I, do Código Tributário Nacional – CTN transfere a responsabilidade
tributária relativa ao fundo de comércio ou estabelecimento adquirido, devidos até a
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
data do ato, de forma integral ao adquirente, caso o alienante cesse a exploração de
atividade empresarial após a alienação.
3. Justificativa
Escolheu-se para comentar essa decisão pela importância do tema no cenário jurídico
da doutrina e jurisprudência brasileiras, bem como pela importância das recentes alterações jurídicas introduzidas pela Lei Complementar nº 118/2005. Essas alterações
excluem a incidência da norma do artigo 133 do CTN quando se tratar de sucessão
tributária ocorrida pela alienação judicial em processo de falência e de recuperação
judicial de empresas. Trata-se de tema de interesse teórico de extrema prática, já que
inúmeros casos poderão ser julgados em consonância com as alterações introduzidas
pela Lei Complementar nº 118/2005. Devemos ressaltar os aspectos econômicos que
giram em torno do tema: de um lado o interesse do Estado pelo ingresso de recursos
públicos em seus cofres, do outro o princípio da preservação da empresa e sua função
social.
4. Finalidade
A finalidade do presente comentário é demonstrar para a comunidade jurídica interessada que o artigo 133 e seus parágrafos do CTN, alterados pela LC nº 118/2005,
consagram o princípio da preservação da empresa em crise econômica-financeirapatrimonial, possibilitando a realocação dos fatores de produção de forma mais eficiente. Conseqüentemente, a não-incidência da norma contida no caput do artigo 133
do CTN nas alienações efetuadas em processos de falência e recuperação judicial
possibilitará o maior interesse do mercado na aquisição de estabelecimento comercial
ou fundo de comércio. A nova atividade econômica a ser desenvolvida pelo estabelecimento alienado promoverá o aumento do ingresso de recursos públicos nos cofres
do Estado.
5. Comentário
5.1. Aspectos Introdutórios
A empresa tem uma importância significativa para a sociedade, visto que dela emana
um complexo de relações jurídicas que interessam não apenas aos sócios, mas também ao Estado e a toda coletividade. Se ao Estado interessa a arrecadação de tributos,
os quais serão revertidos em prol da sociedade, esta também tem interesse na correta
alocação dos fatores de produção utilizados no desenvolvimento da atividade empresarial. Se esses fatores de produção não estão sendo empregados de forma a permitir
que se obtenha a máxima eficiência na atividade empresarial, o mercado deve se encarregar de realocá-los de forma eficiente.
O acórdão analisado trata da importância da correta interpretação do tema relacionado
à sucessão tributária do estabelecimento empresarial. O artigo 133 do CTN trata da
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
sucessão entre o contribuinte e o adquirente de estabelecimento empresarial ou fundo
de comércio. A responsabilidade tributária do adquirente, que era a regra geral, foi
mitigada em face da preservação da empresa, nos casos em que a alienação tenha sido
efetuada no curso do processo de falência ou recuperação judicial de empresas.
Na análise do tema proposto, temos que atentar para o real objeto gerador da responsabilidade tributária, que é a alienação do fundo de comércio ou estabelecimento
comercial, industrial ou profissional. Não se confunde, dessa forma, a alienação do
estabelecimento comercial ou fundo de comércio com a venda de mercadorias, bens
móveis e máquinas considerados isoladamente. Observa-se, também, que a simples
transferência do imóvel no qual estava instalado o antigo estabelecimento empresarial
não é fato que enseja a sucessão tributária do adquirente. Para caracterizar a sucessão
tributária, a transferência deve ser fruto de uma relação jurídica entre o alienante e o
adquirente, e não simples ocupação de um estabelecimento anteriormente utilizado
para o exercício de atividade empresarial. Deve, também, em consonância com a alteração introduzida pela LC 118/2005, ser efetuada a alienação fora do processo de
falência ou recuperação judicial de empresas.
5.2. Fundo de Comércio e Estabelecimento
A primeira problematização consiste em saber se o dispositivo em comento refere-se
a fundo de comércio e estabelecimento comercial como sinônimos, ou se o legislador
quis significar figuras distintas.
A correta conceituação e diferenciação entre fundo de comércio e estabelecimento
são de extrema importância para a interpretação do acórdão em análise. De acordo
com Brito (2005, p. 561), “[...] a idéia de estabelecimento está mais ligada aos bens
materiais, instalados no local em que a atividade é exercida e que se prestam como
suporte dessa atividade”. De acordo com o artigo 1.142 do Código Civil de 2002, o
estabelecimento compreende “[...] o complexo de bens organizado, para o exercício
de empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. Já a idéia de fundo de
comércio, segundo Brito (2005) “[...] está mais ligada ao conjunto de bens imateriais,
representados pelo nome empresarial, pela denominação dita de fantasia que faz conhecida a empresa, pelas marcas dos produtos por ela fabricados etc”.
Dessa forma, atento para a possibilidade de distinção entre os dois conceitos, o legislador fez expressa menção a ambos no caput do artigo 133, do CTN. Justifica-se esse
entendimento porque o legislador visou dar maior segurança à Fazenda Pública na
obtenção da receita tributária. Assim, para a aplicação da norma supra, é irrelevante
a distinção conceitual entre estabelecimento e fundo de comércio. O que se torna relevante para fins de possibilitar a incidência da regra da sucessão tributária é a idéia
de conjunto dos bens empregados para o exercício da atividade empresária, de forma
que a transferência de bens isolados não caracteriza hipótese de incidência da norma
do artigo 133 do CTN.
351
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
5.3. A Correta Interpretação da Expressão Integralmente do Artigo 133, I, do
CTN.
Segundo nos ensina Emygdio (2003), uma questão que deve ser verificada refere-se
ao exame do sentido do termo integralmente utilizado no inciso I do artigo, em razão
do inciso II utilizar o vocábulo subsidiariamente. Segundo o autor, a primeira impressão que se observa da leitura do artigo é a de que o adquirente responde de forma
exclusiva pelos tributos relativos ao fundo de comércio ou estabelecimento adquirido,
devidos até a data do ato, se o alienante cessou a exploração de atividade, ficando esse
último exonerado de qualquer responsabilidade.
No entanto, como bem observa Emygdio (2003), não é essa a melhor interpretação a
ser dada ao artigo, visto que o tributo deve ser cobrado do contribuinte, sujeito passivo
direto, em razão da sua relação pessoal e direta com o fato, que a lei definiu como
fato gerador do tributo, visto ser ela a pessoa que se beneficia economicamente com
o ato. Diante dessas razões, entende o autor que “[...] o adquirente responde integral
e solidariamente com o alienante se ocorrer a hipótese referida no inciso I do art.
133, interpretando-se o termo integralmente no sentido de que não poderá nesse caso
valer-se do benefício excussionis”. Ressalta, ainda, que caso o alienante prossiga na
exploração de atividade dentro de seis meses, a contar da data da alienação, a responsabilidade do adquirente será solidária, mas de natureza subsidiária, podendo utilizarse do benefício excussionis para que primeiro sejam excluídos os bens do alienante.
5.4. A Continuidade da Exploração da Atividade
A continuação da exploração da atividade empresarial após a aquisição do estabelecimento ou fundo de comércio é essencial para que se possa caracterizar a responsabilidade tributária por sucessão. Caso não ocorra a continuidade da atividade, não haverá
responsabilidade tributária. E esse entendimento justifica-se, pois o que a norma procura evitar é a prática de atos de alienação do estabelecimento ou fundo de comércio,
pelo proprietário, no intuito de eximir-se do pagamento dos tributos porventura devidos até o momento da alienação.
Segundo Brito (2005), além da aquisição do estabelecimento, ou seja, da existência de
relação jurídica entre as partes, é necessária a continuidade da exploração da mesma
atividade antes exercida pelo alienante para que se configure hipótese de sucessão
tributária. No entanto, esse ponto de vista não é pacífico, havendo quem sustente posição contrária*. Afirma, ainda, que a sucessão tributária refere-se apenas aos tributos
devidos pelo fundo ou estabelecimento adquirido (ex.: ICMS), não sendo razoável a
abrangência de todos os tributos eventualmente devidos pelo sucedido.
*Cf. Baleeiro (1993).
352
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
5.5. As Inovações Introduzidas pela LC 118/2005 em Relação à Sucessão Tributária na Falência e Recuperação Judicial de Empresas
Conforme preceitua o parágrafo primeiro do artigo 133 do CTN, há a exclusão da
responsabilidade do sucessor em caso de alienação decorrente de processo de falência
ou recuperação judicial de empresas. Essa alteração foi introduzida pela LC 118/2005,
com o intuito de compatibilizar determinados dispositivos do CTN com a novel Legislação Falimentar, Lei nº 11.101/2005.
O objetivo da exclusão da responsabilidade tributária por sucessão nas alienações
efetuadas no curso de processos de falência ou recuperação judicial tem por finalidade
viabilizar a situação de crise econômico-financeira-patrimonial das empresas e otimizar a utilização dos seus ativos, empregando-os de forma eficiente nos mercados.
Com a ausência da responsabilidade tributária nessas hipóteses, os ativos da empresa
em crise poderão ser alienados mais facilmente no mercado, incentivando os investidores a adquirirem o estabelecimento comercial ou fundo de comércio livre de ônus
tributários e trabalhistas.
Faz-se necessário distinguir, entretanto, a diferenciação estabelecida pela lei nos casos de falência e recuperação judicial de empresas. Na primeira hipótese, a exclusão
da sucessão tributária aplica-se a todo e qualquer ativo da massa falida, enquanto na
segunda hipótese, aplica-se a exclusão da sucessão tributária apenas em face da alienação de filial ou unidade produtiva isolada. Em relação à recuperação extrajudicial,
não se aplica a regra da exclusão da responsabilidade na sucessão tributária.
6. Conclusão
Conforme acima demonstrado, o tema referente à sucessão tributária na alienação de
estabelecimento empresarial contém inúmeras peculiaridades que deverão ser observadas para a correta interpretação da lei. A correta hermenêutica dos termos legais
possibilitará ao ator jurídico uma aplicação condizente com os reais objetivos do legislador, atentando para o interesse público que cerca o assunto.
As inovações introduzidas pela LC 118/2005 no artigo 133, do CTN, são de extrema
importância para a realização dos objetivos da falência e recuperação judicial de empresas, possibilitando a realocação de recursos de maneira mais eficiente, permitindo a
obtenção de preços mais elevados na alienação dos ativos da massa falida e das filiais
de empresas em recuperação judicial. Essas alterações incentivam a aquisição dos
ativos por terceiros que, anteriormente às alterações introduzidas pela LC 118/2005,
eram tidos como sucessores das dívidas tributárias, possibilitando a obtenção de propostas mais vantajosas nos leilões judiciais realizados no processo falimentar e de
recuperação judicial de empresas.
Com a maior arrecadação de valores oriundos da alienação dos ativos da massa falida
353
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
ou de filiais de empresas em recuperação judicial, possibilita-se o maior ingresso de
recursos a serem rateados pelos credores, inclusive a Fazenda Pública. Dessa forma,
a alteração introduzida pela LC 118/2005 possibilitará a continuidade da exploração
empresarial do estabelecimento ou fundo de comércio alienado a terceiros, fato que
continuará gerando o recolhimento de tributos aos cofres públicos, oriundos dos fatos
geradores decorrentes das atividades exercidas após a alienação judicial. Possibilitará,
ainda, uma melhor recuperação do crédito tributário, visto que o valor obtido com a
alienação de um estabelecimento empresarial ou fundo de comércio livre de ônus
tributários e trabalhistas será maior, aumentando, conseqüentemente, o valor auferido
pela Fazenda Pública em um eventual rateio.
7. Bibliografia
BALEEIRO. Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10. ed. Forense, 1993.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 330683/SC. Relator: Min.
Paulo Medina. Brasília, 19 de fevereiro de 2002.
MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2005. v. 1.
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ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito financeiro e Direito tributário. 17. ed. São Paulo: Renovar, 2003.
SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro. (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de
Empresas e Falência. São Paulo: RT, 2005.
354
DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL CIVIL
1. ARTIGOS
1.1 O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO SUBSTITUTO PROCESSUAL E A
EFICÁCIA SUBJETIVA DA COISA JULGADA
ROBSON RENAULT GODINHO
Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Mestre em Direito Processual Civil – PUC/SP
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Ministério Público como Parte Autora: Generalidades. 3. Legitimidade para Agir: Generalidades. 4. Legitimação Extraordinária e Substituição Processual. 5. O Ministério Público como Substituto Processual: a Defesa dos
Direitos Individuais Indisponíveis. 5.1. A Legitimidade do Ministério Público para o
Ajuizamento da Ação de Alimentos. 6. Substituição Processual e Eficácia Subjetiva
da Coisa Julgada. 7. Observações Finais. 8. Referências.
1. Introdução
O tema que enfrentaremos apresenta amplo espectro de abordagem, razão pela qual
cumpre delimitar, desde já, o objeto deste trabalho: examinaremos a legitimidade do
Ministério Público para a tutela de direitos individuais indisponíveis e a repercussão
da decisão judicial na esfera jurídica do titular do direito material. Verifica-se, assim,
que estudaremos o instituto da substituição processual em seu enfoque clássico, como
descrito no artigo 6º do Código de Processo Civil.
Essa ressalva, embora pareça desnecessário truísmo, tem lugar na medida em que é
comum a afirmação de que o Ministério Público, quando atua na tutela dos direitos
transindividuais, também assume a natureza de substituto processual. Não nos parece
correta essa abordagem e, não obstante se tratar de discussão fascinante, dela não nos
ocuparemos neste texto.1
Sobre a polêmica acerca da natureza da legitimidade para as ações coletivas, todos as obras que cuidam do processo coletivo trazem alguma abordagem, sendo ocioso citar uma extensa bibliografia. As diversas opiniões doutrinárias a respeito
são bem descritas, entre outros, por Zaneti Júnior (2001, p. 100), Nery Júnior (2001, p. 567). Da mesma forma, vê-se
boa análise do tema no estudo de Rocha (2003), que, após afirmar que nos processos coletivos a legitimidade deve ser
raciocinada a partir da noção de acesso à justiça e não da situação legitimante, conclui que a natureza da legitimidade do
Ministério Público é a de parte em razão do cargo. Também abordamos o tema com mais vagar em nossa dissertação de
mestrado (GODINHO, 2005a e 2005b, p. 613). Em linhas gerais, entendemos que esse debate é equivocado, por pretender
trabalhar com categorias do processo individual, não havendo necessidade de se buscar um paralelo com os institutos
processuais clássicos para se compreender o processo coletivo. Estamos diante de um processo com suas peculiaridades
próprias, entre as quais avulta a questão da legitimidade, e uma nova realidade não tem que se prender a classificações
antigas, que foram elaboradas diante de outro contexto. Na tutela coletiva, a substituição dos titulares do direito é a regra,
de modo que até mesmo soa excêntrico tratar essa legitimidade como extraordinária. Sobre o tema vale transcrever o seguinte excerto de Nery Júnior (2001, p. 570): “Há um equívoco recorrente na doutrina de querer subsumir essas situações
de legitimação para agir nas ações coletivas aos institutos criados para explicar o fenômeno no processo civil individual.
1
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Examinaremos, portanto, a compatibilidade existente entre o perfil constitucional do
Ministério Público e a tutela de direitos individuais, sempre mirando a instituição
como um instrumento otimizador de uma adequada tutela de direitos, vocacionada
para a realização integral da garantia do acesso à justiça delineada na Constituição.
Assinale-se desde já que o Ministério Público pode efetivamente contribuir para o
acesso à justiça e, conseqüentemente, para a tutela de direitos, mas qualquer traço de
ufanismo deve ser evitado, já que a consciência das limitações e das dificuldades é
requisito imprescindível para o constante desenvolvimento institucional.
Ou seja: a contribuição que o Ministério Público pode oferecer para o acesso à justiça
é tão fundamental quanto limitada, sobretudo porque condicionada a balizamentos
estruturais que ultrapassam o gizamento da própria instituição.
Essa advertência é necessária na medida em que a auto-suficiência é inimiga do aperfeiçoamento institucional e o otimismo exagerado pode revelar prepotência e, invariavelmente, significar um prenúncio de decepcionante desempenho.
O desejo de onipotência só pode resultar em prejuízos para o Ministério Público e para
a sociedade. Como adverte Barbosa Moreira (1997a, p. 21):
[...] o que não podemos é ser desmedidamente ambiciosos.
Acalentar expectativas altas demais expõe-nos ao perigo de
cair com facilidade em negativismo extremado. Nutre-se o
pessimismo, com freqüência, da amargura causada pela decepção: convencidos de ser inatingível o ideal, que ingenuamente
supuséramos ao alcance da nossa mão, passamos a descrer da
possibilidade de dar quaisquer passos, pequenos que sejam, na
direção daquele. A ilusão da onipotência torna-se a véspera do
cepticismo integral. Destarte, não poucas vezes, o talento do
progressista desencantado acaba paradoxalmente posto a serviço do mais empedernido conservadorismo.
2. O Ministério Público como Parte Autora: Generalidades
A atuação do Ministério Público como parte autora sempre esteve relacionada com o
processo penal e só em período mais recente, sobretudo após a promulgação da atual
Constituição, sua atividade como autor no campo cível passou a merecer maior atenção. Mesmo legitimado para o exercício de diversas ações que tutelam direitos individuais, o Ministério Público passou a ser conhecido como o legitimado por excelência
para a tutela de direitos transindividuais. Barbosa Moreira (1997b, p. 73) chegou a
afirmar que o silêncio da instituição no processo civil teria sido interrompido exatamente em razão do processo coletivo, que ensejou a “[...] revitalização do Ministério
Público, arrancado à relativa quietude em que usualmente o mantinham, no tocante ao
processo civil, as atribuições tradicionais”.
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É interessante observar, entretanto, que muito antes da atual Constituição já cabia ao
Ministério Público o ajuizamento de ações que visavam à tutela de direitos individuais,
como a anulação de casamento, a anulação de atos simulados, declaração de ausência,
prestação de contas, ação civil ex delicto2-3 etc. Leis posteriores à Constituição continuaram a prever a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ações individuais, como
o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, mas nota-se que a ênfase
da atuação da instituição como parte autora está mesmo no processo coletivo.
Embora haja diversas possibilidades de ajuizamento de ações para a tutela de direitos
individuais, o certo é que o Ministério Público nunca se destacou por esse tipo de iniciativa. Não há dúvidas de que o Ministério Público tem vocação para a tutela de direitos
sociais, e o ajuizamento de ações coletivas é o instrumento natural para a tutela jurisdicional de tais direitos. No entanto, queremos estabelecer que também a tutela de direitos
individuais indisponíveis é compatível com o perfil constitucional da instituição, além
de também contribuir para, em sentido amplo, uma atuação social do Ministério Público.4
São duas realidades distintas que merecem tratamento normativo e doutrinário distinto. A dicotomia legitimação ordinária
e extraordinária só tem lugar no processo individual, onde alguém pode, autorizado por lei, substituir processualmente
pessoa determinada. No processo civil coletivo, como os titulares dos direitos difusos e coletivos são indeterminados, o raciocínio do processo individual é insuficiente para resolver o problema e dar a natureza da legitimação para agir”. Cumpre
registrar que no clássico estudo de Vigoriti (1979, p. 149), após ampla análise da questão, já se concluía no sentido de ser
ordinária a legitimidade para ações coletivas.
2
Diversos exemplos de ações individuais que podem ser ajuizadas pelo Ministério Público são fornecidos por Mazzilli
(2002, p. 62) e Nery Júnior e Nery (2004, p. 519).
3
Pacificou-se na jurisprudência o entendimento de que o Ministério Público tem legitimidade subsidiária para a ação civil
ex delicto. Confira-se: “Recurso Especial - Ação Civil Ex Delicto - Ajuizamento pelo Ministério Público - Alegada Revogação do art. 68 do CPP pela Constituição Federal - Divergência jurisprudencial configurada - Legitimidade do Ministério
Público para ajuizar a ação – Matéria pacificada no âmbito desta Corte e do Supremo Tribunal Federal. Quanto ao alegado
dissídio jurisprudencial, denota-se que o precedente colacionado, julgado pela egrégia Primeira Turma deste Tribunal, à
evidência diverge do entendimento esposado no v. decisum recorrido. Com efeito, enquanto a Corte de origem entendeu
que o artigo 68 do CPP não foi revogado pela Constituição Federal, o julgado apontado como paradigma concluiu pela
revogação. A Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, na assentada de 01.07.2003, pacificou o entendimento
segundo o qual, “[...] apesar da Constituição Federal de 1988 ter afastado, dentre as atribuições funcionais do Ministério
Público, a defesa dos hipossuficientes, incumbindo-a às Defensorias Públicas (art. 134), o Supremo Tribunal Federal consignou pela inconstitucionalidade progressiva do CPP, art. 68, concluindo que ‘enquanto não criada por lei, organizada – e,
portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação – a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo
68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista’
(RE nº 135.328-7/SP, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01/08/94)”(BRASIL, 2003). Dessa forma, como não foi implementada
Defensoria Pública no Estado de São Paulo, o Ministério Público tem legitimidade para, naquela Unidade da Federação,
promover ação civil por danos decorrentes de crime, como substituto processual dos necessitados. Recurso especial não
provido.” (BRASIL, 2004a).
4
A título de ilustração, vale recordar que na Itália também o Ministério Público se mostrou inerte no exercício de atribuições não penais, o que inclusive levou a doutrina a considerar inadequada a outorga de legitimação para a defesa de direitos
coletivos pelo órgão. A propósito, confira-se a seguinte passagem de Vigoriti (1979, p. 249): “[...] nel valutare le proposte
di allargamento dei compiti del pubblico ministero non si può non tener conto del fatto che questo organo, nell’esperienza,
non appare assolutamente disposto ad esercitare quei poteri di iniziativa e di intervento in sede giurisdizionale civile già
adesso riconosciutigli dalla legge a tutela di interessi di notevole rilevanza sociale. L’azione del pubblico ministero è
evento estremamente raro; l’intervento obbligatorio è per lo più uma formalità; quello facultativo non viene mai esperito.
Il pubblico ministero nel proceso civile è insomma um organo del tutto emarginato dalla pratica giudiziaria, per cui
pensare di allargane in futuro i compiti fino ad includervi la tutela di interessi collettivi sembra uma pura astrazione”. A
experiência brasileira demonstra que a ilação do célebre processualista italiano estava equivocada, já que a legitimação
do Ministério Público para a defesa dos direitos transindividuais alcançou inegável êxito. Esperamos que a outorga dessa
nova legitimação desperte a instituição para a antiga legitimidade para a tutela de direitos individuais indisponíveis, a fim
de que se realize uma tutela de direitos mais completa e, conseqüentemente, mais efetiva.
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Ou seja: a atuação do Ministério Público na defesa dos direitos individuais não pode
ser ignorada, nem considerada ultrapassada, mas, sim, deve ser adequada à realidade
social e ao perfil constitucional da instituição.
Nosso propósito neste trabalho, portanto, será demonstrar a compatibilidade da tutela
de direitos individuais com o perfil constitucional do Ministério Público e a relevância
que o ajuizamento de ações individuais pela instituição pode assumir na efetivação da
garantia da integridade de direitos indisponíveis.
Para o estudo que empreenderemos, partiremos das seguintes premissas básicas: 1) a
legitimidade para agir é uma questão constitucional; 2) a legitimidade do Ministério
Público decorre dos arts. 127 e 129, IX, da Constituição5; 3) a outorga de legitimidade
ao Ministério Público dá efetividade ao direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional adequada; 4) o Ministério Público é um instrumento legitimado constitucionalmente de acesso à justiça.
3. Legitimidade para Agir: Generalidades
A tutela jurisdicional é buscada por meio de uma demanda instrumentalizada em uma
petição inicial, e o sistema processual possibilita que o juiz, em uma análise preliminar sobre o conteúdo da pretensão do autor, examine se estão presentes condições
necessárias para o legítimo exercício do direito de ação.6
Na síntese formulada por Bedaque (1995, p. 73):
[...] exercida a garantia constitucional de ação, o juiz sairá de
sua inércia e verificará, à luz daquela situação de direito material deduzida pelo autor na petição inicial, se existe possibilidade, em tese, de o interessado ser efetivamente titular de uma
situação amparada por regras de direito material (ou se o autor
pode exercer em juízo aquele direito, por autorização expressa
do legislador) e se efetivamente necessita da intervenção estatal. Caso tal não ocorra, de nada adiantará o prosseguimento do
processo, pois já se sabe, de antemão, que a tutela buscada é
evidentemente inviável.
A garantia constitucional do acesso à justiça não é incompatível com a existência das
denominadas condições da ação, já que, se é verdade que todos podem requerer a tu5
Como afirma Bidart Campos (1996, p. 21), “[...] la cuestión procesal que se suscita con la legitimación recae siempre,
de un modo o de otro, en el ámbito del derecho constitucional”.
6
Não obstante o Código de Processo Civil consagrar a categoria das condições da ação como requisito de admissibilidade
do processo, as divergências doutrinárias são constantes. Como referências às polêmicas existentes, confiram-se, exemplificativamente, os seguintes trabalhos: (FABRÍCIO, 2003); (ARAGÃO, 2002); (DIDIER JUNIOR, 2005a, p. 203-296), em
que afirma que “[...] o mais correto seria proscrever as condições da ação da dogmática jurídica e, por tabela, do sistema
jurídico, pois, ou compõem o próprio mérito da causa, ou podem ser enquadradas na categoria dos ‘pressupostos processuais’ ou dos requisitos de admissibilidade do processo” (DIDIER JUNIOR, 2005a, p. 215).
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tela jurisdicional, mesmo que dela não sejam merecedores, não é menos verdade que
o processo é o instrumento para a satisfação daqueles que efetivamente sejam titulares
da situação material afirmada (BEDAQUE, 2001, p. 62)7. Ou seja, a ação concretamente exercida é passível de controle de admissibilidade por meio da implementação
de condições impostas pelo ordenamento.
Em nosso sistema processual, o mérito do processo só será examinado se as condições
para o legítimo exercício do direito de ação estiverem satisfeitas.8
Isso, no entanto, não significa que o acesso à justiça possa ser obstado pela imposição
de condições de admissibilidade desarrazoadas, ou seja, dissociadas da realidade de
direito material, sob pena de se vedar indevidamente o acesso à justiça.
Nesse sentido, vale transcrever a seguinte decisão do Tribunal Constitucional da Espanha (apud PÉREZ, 2001, p.74), que bem demonstra que as condições são legítimas
desde que não embaracem desarrazoadamente o acesso à tutela jurisdicional:
Es consolidada doctrina de este Tribunal que el derecho constitucional a la tutela judicial efectiva (art. 24.1, CE) no conlleva
el reconocimiento de un derecho a que los órganos judiciales se
pronuncien sobre el fondo de la cuestión planteada ante ellos,
resultando aquél satisfecho con una decisión de inadmisión
siempre y cuando la misma sea consecuencia de la aplicación
razonada de una causa legal. Ahora bien, si cuando esa decisión de inadmisión se produce en relación con los recursos legalmente establecidos el juicio de constitucionalidad ha de ceñirse
a los cánones del error patente, la arbitrariedad o la manifiesta
irrazonabilidad, cuando del acceso a la jurisdicción se trata,
como aquí ocurre, el principio hermenéutico pro actione opera
con especial intensidad, de manera que si bien el mismo no
obliga ‘la forzosa selección de la interpretación más favorable
a la admisión de entre todas las posibles’, si proscribe aquellas
decisiones de inadmisión que ‘por su rigorismo, por su formalismo excesivo o por cualquier otra razón revelen una clara
desproporción entre los fines que aquellas causas preservan y
los intereses que sacrificar.
Entende Bedaque (2001, p. 64) que, apesar de as contribuições teóricas não poderem ser desprezadas, as diversas teorias
acerca da natureza da ação constituem preocupação já superada, devendo o processualista se preocupar com uma nova
visão do fenômeno que de algum modo contribua com a efetividade do processo.
8
Não raramente torna-se bastante difícil distinguir as condições da ação do mérito, o que faz com que boa parte da doutrina
critique duramente a opção do legislador pátrio (sobre o tema, inclusive com outras referências bibliográficas, vale conferir
os trabalhos de Fabrício (2003) e Didier Junior (2004; 2005). Realmente, em diversas situações, sob o pretexto de examinar
as condições da ação, o mérito acaba sendo examinado, embora a sentença seja de carência e, em princípio, não tenha
aptidão para formar coisa julgada material (art. 268, CPC). Segundo vem se entendendo, o disposto no art. 268 do CPC
não significa que a repropositura da ação possa ser automática, já que o requisito faltante deve ser implementado (NERY
JUNIOR; NERY, 2004). Entretanto, caso se modifique o requisito faltante, tratar-se-á de outra demanda, de modo que nem
mesmo a coisa julgada material impediria a propositura da ação.
7
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Nessa linha, Bedaque (2003, p. 103) afirma com precisão que não pode o legislador
infraconstitucional impedir ou apresentar óbice injustificável ao exame de pretensões
pelo Judiciário9, como corretamente assinala Bidart Campos (1996, p. 17):
[...] actualmente, el problema de la legitimación no puede recluirse en el derecho procesal como cuestión a resolver exclusivamente por sus normas. El cordón umbilical que anuda lo
procesal con lo constitucional no tolera cortarse porque, de
ocurrir tal cosa, se puede frustrar el sistema de derechos y el
sistema garantista. Basta una pregunta para esclarecer la afirmación: ¿de qué vale y de qué sirve que un sistema de derechos resulte todo lo completo que es posible, y que lo auxilie
la cobertura de un sistema garantista idóneo, si el justiciable
que postula el acceso a un proceso ve rechazada o denegada
su legitimación? [...] Cada día más nos convencemos de que
toda la doctrina y la praxis de la tutela judicial efectiva se desvanecen en su esfuerzo cuando procesalmente se estrangula la
legitimación.
O certo é que nosso sistema processual trabalha com condições de admissibilidade da
demanda, e uma dessas condições é exatamente a legitimidade para agir, da qual nos
ocuparemos mais pormenorizadamente neste tópico.
Segundo Armelin (1979, p. 85):
[...] a legitimidade para agir é de ser conceituada como uma
qualidade jurídica que se agrega à parte no processo, emergente
de uma situação processual legitimante e ensejadora do exercício regular do direito de ação, se presentes as demais condições
da ação e pressupostos processuais, com o pronunciamento judicial sobre o mérito do processo.
Mais recentemente, Armelin (2003, p. 115) afirmou:
[...] a legitimidade como pressuposto de eficácia do ato jurídico
pode derivar de uma afirmação do autor, no processo, quanto à
titularidade do direito objeto da ação, ou decorrer da situação de
titular do pólo passivo da relação processual, embora rejeitando
a situação de vinculação ao direito afirmado.
A legitimidade é de ser verificada, pois, a partir da situação jurídica afirmada no processo (in statu assertionis), sendo irrelevante perquirir-se a efetiva existência do diPensamos que o que ocorreu com o parágrafo único do art. 1o da Lei da Ação Civil Pública foi exatamente a oposição de
um obstáculo injustificável, razão pela qual, entre outros motivos que não cabem ser declinados nesta sede, consideramos
tal dispositivo flagrantemente inconstitucional.
9
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reito alegado (BARBOSA MOREIRA, 1977B, p. 199 e 2000, p. 376)10. Ou seja, a
legitimidade é aferida pelo exame da situação legitimante à luz do que é exposto na
inicial, como se o juiz raciocinasse da seguinte forma: “[...] admitida a veracidade dos
fatos alegados pelas partes, é a elas que a lei dá legitimidade, respectivamente, para
propor ou contestar a ação?” (TORNAGHI, 1974, p. 91).
Na síntese de Barbosa Moreira (1971A, p. 59):
[...] denomina-se legitimação a coincidência entre a situação
jurídica de uma pessoa, tal como resulta da formulação perante
o órgão judicial, e a situação legitimante prevista na lei para
a posição processual que a essa pessoa se atribui, ou que ela
mesma pretende se atribuir.
Quando a titularidade da ação coincide com a titularidade do direito afirmado na demanda, a legitimidade é ordinária; no caso de a ação ser utilizada por outrem que
não aquele que se aponta como titular do direito material, a legitimidade passa a ser
extraordinária.
As regras de legitimação referentes ao Ministério Público merecem especial exame,
já que, salvo quando defendem prerrogativas institucionais, os membros da instituição não possuem titularidade sobre os bens e direitos em defesa dos quais atuam, ou
seja, não estão ligados à relação de direito material. A legitimidade extraordinária do
Ministério Público, portanto, decorrerá da presença de determinados interesses no
10
Adere-se aqui claramente à teoria da asserção, que, embora conte com a adesão de boa parte da doutrina, foi fortemente
combatida por Dinamarco (2004, p. 316), que, entretanto, ao tratar do que denominou de falsas carências de ação, acaba
por fornecer exemplos que são resolvidos satisfatoriamente pela teoria por ele repudiada. Na realidade, a teoria da asserção não é incompatível com a perda superveniente de uma condição da ação, até porque o exame das condições pode ser
realizado de ofício e em qualquer fase procedimental. Sobre a eficácia da decisão de admissibilidade do processo e sobre
a aplicação da teoria da asserção: Didier Junior (2005a, p. 41-51 e p. 216-219). Além de seu significado técnico, a teoria
da asserção possui inegável importância prática, já que mostra compromisso com o resultado do processo, na medida em
que incentiva o exame do mérito, e procura evitar que haja uma sentença de carência de ação após longos anos de relação
processual, como bem demonstrado por Salles (1992, p. 110).
Registre-se que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça deu aplicação peculiar à teoria da asserção. Confira-se a
seguinte ementa: “Processual Civil. Ação Civil Pública. Legitimidade Ativa. Ministério Público. Taxa de Água e Esgoto.
Direito de Contribuintes. 1. A MP 2.180-35 introduziu o parágrafo único no art. 1º, da Lei da Ação Civil Pública, vedando
a veiculação da actio civilis para a discussão de matéria tributária. 2. A MP 2.180-35 deve ser aplicada a partir de sua
edição (24.08.2001), vedada a sua retroatividade que alcance as ações civis públicas promovidas antes de sua vigência.
3. Legitimatio ativa ad causam. A legitimidade, como uma das condições da ação, rege-se pela Lei vigente à data da
propositura da ação. 4. A soma dos interesses múltiplos dos contribuintes constitui interesse transindividual, que por sua
dimensão coletiva torna-se público e indisponível, apto a legitimar o Parquet a velá-la em juízo. Aliás, em muitas decisões
o Superior Tribunal de Justiça vinha sufragando o entendimento de que a Ação Civil Pública voltada contra a ilegalidade
dos tributos não implicava em via oblíqua de controle concentrado de constitucionalidade. Deveras, o Ministério Público,
por força do art. 129, III, da Constituição Federal é legitimado a promover qualquer espécie de ação na defesa de direitos
transindividuais, nestes incluídos os direitos dos contribuintes de Taxa de Esgoto, ainda que por Ação Civil Pública. 5.
Recurso Especial do Ministério Público provido”. (BRASIL, 2004b). O Supremo Tribunal Federal, conforme noticiado no
informativo nº 356, entendeu que a “[...] aferição da legitimidade deve ser feita no momento da propositura da ação e que a
perda superveniente de representação do partido político no Congresso Nacional não o desqualifica como legitimado ativo
para a ação direta de inconstitucionalidade. Vencidos o Min. Carlos Velloso, relator, e Celso de Mello, que consideravam
que a perda da representação implicava a perda da capacidade postulatória”. (BRASIL, 2004c).
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processo, de modo que “[...] a qualificação desse interesse, de forma a emprestar reconhecimento à legitimidade da atuação processual do Ministério Público, corresponde
à operação da verificação das situações legitimantes” (SALLES, 1997, p. 240).
Vale consignar uma vez mais que o Ministério Público não tem vocação para a defesa
de direitos individuais disponíveis, de modo que toda e qualquer legitimidade que lhe
for conferida necessariamente deve ser compatível com o disposto nos arts. 127 e 129,
IX, da Constituição, o que significa dizer que sua legitimidade se resume à tutela de
direitos individuais indisponíveis e de interesses sociais.
Reservaremos o tópico seguinte para um exame mais detalhado da legitimação extraordinária.
4. Legitimação Extraordinária e Substituição Processual
Como mencionado no tópico anterior, considera-se que as partes são legítimas em
determinado processo quando suas situações jurídicas, do modo como narrado na
petição inicial, coincidem com a previsão abstrata de direito material. A partir da relação estabelecida entre o sujeito legitimado e o objeto litigioso (situação legitimante),
classifica-se a legitimidade para agir em ordinária e extraordinária11. Foi visto que o
legitimado ordinário é aquele que comparece em juízo para defender direito próprio,
coincidindo a titularidade da relação processual com a relação material. Já o legitimado extraordinário, embora autorizado pelo sistema normativo a ingressar no processo
e conduzi-lo validamente, não é o titular do direito litigioso, não havendo coincidência entre a situação legitimante e a situação deduzida em juízo. Enquanto o legitimado
ordinário encontra na sentença o regramento de sua própria situação, o legitimado
extraordinário depara com a disciplina de situação alheia, que até pode repercutir na
sua, como assinala Barbosa Moreira (1971a, p. 60).
Tecnicamente, não há exata coincidência entre as expressões legitimação extraordinária e substituição processual12, já que esta é menos ampla que aquela, de modo que se
entende por substituição processual a legitimidade decorrente do sistema normativo
11
Anote-se que para Alvim Wambier (1996, p. 79) a legitimidade extraordinária é pressuposto processual e não condição
da ação
12
Cintra (2003, p. 743) credita a Chiovenda a utilização pioneira da expressão substituição processual. A polêmica sobre
a terminologia adequada do instituto chegou a gerar sugestões para a adoção das expressões equiparação processual,
equivalência processual e eqüipolência processual (OLIVEIRA JUNIOR, 1971, p. 87) e (ARRUDA ALVIM, 1990, p.
517). É certo que o rigor terminológico é importante em qualquer ciência, mas nos parece que, a partir do momento em
que se estabelece com precisão o que se entende por determinada expressão, passa a ser irrelevante qualquer batalha
terminológica, mormente quando a tradição consagra determinado uso. Barbosa Moreira (1971a, p. 62), por exemplo, no
clássico ensaio que dedicou ao tema, afirma que a substituição processual se refere à legitimação extraordinária autônoma,
mas observa que, no rigor da lógica, a denominação seria unicamente adequada aos casos de legitimação extraordinária
autônoma exclusiva, sendo que a legitimidade extraordinária exclusiva é de constitucionalidade discutível, como anota
Alvim Wambier (1996, p. 92). Já Campos Jr. (1985, p. 23) entende que ocorre verdadeira substituição processual no caso
de legitimidade concorrente, desde que o titular do direito material mantenha-se inerte. De todo modo, existe a distinção
técnica entre legitimação extraordinária e substituição processual, o que justifica o presente registro. Para os fins deste
trabalho, a modalidade de legitimação extraordinária que nos interessa é a substituição processual.
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que autoriza determinado sujeito a atuar em juízo, como parte principal, defendendo
direito alheio (art. 6o do Código de Processo Civil).13
São variadas as razões que levam o legislador a estabelecer hipóteses de legitimidade
extraordinária, podendo ser elencadas as seguintes situações exemplificativas sistematizadas por Armelin (1979, p. 122): 1) casos de legitimidade extraordinária outorgada em razão da predominância do interesse público sobre o particular14 (ex.: ação
de investigação de paternidade e ação de alimentos em favor de idoso em situação de
risco propostas pelo Ministério Público15); 2) legitimidade extraordinária atribuída
em decorrência de comunhão de direitos ou conexão de interesses, onde coexistem
legitimidade ordinária e extraordinária (ex.: a legitimação do condômino para a defesa da coisa, art. 1.314 do CC-2002; ação de anulação de decisão assemblear); 3)
legitimidade extraordinária atribuída em função do vínculo que o legitimado extraordinário e o legitimado ordinário mantêm entre si, em relação ao direito questionado,
geralmente em razão da sucessão (ex.: o alienante de coisa litigiosa permanece no processo na qualidade de legitimado extraordinário, caso não ocorra sucessão processual,
na forma do art. 42, § 1o, Código de Processo Civil.); 4) legitimidade extraordinária
decorrente de uma situação jurídica que o legitimado ocupa, que lhe impõe, direta ou
indiretamente, deveres de guarda e conservação de direitos alheios (ex.: agente fiduciário dos debenturistas; capitão do navio, quando não é o proprietário do navio nem
credor do frete, para ajuizamento de ação de arresto para garantir pagamento de frete,
avarias grossas ou despesas a cargo do proprietário da mercadoria transportada, art.
527 do Código Comercial).
De acordo com a classificação proposta por Barbosa Moreira (1971a), que leva em
consideração precipuamente a liberdade de comportamento do legitimado extraordinário, a legitimação extraordinária pode ser dividida em autônoma e subordinada. Há
legitimação extraordinária autônoma quando o processo pode ser validamente instaurado sem a presença do titular do direito, ou seja, quando o legitimado extraordinário
pode figurar no processo com total independência daquele que seria o legitimado extraordinário. A legitimidade extraordinária autônoma apresenta, em apertada síntese,
as seguintes subdivisões: 1) legitimação extraordinária exclusiva: apenas o legitimado extraordinário pode ser a parte principal do processo, como ocorre na hipótese
prevista no art. 68, § 3o, da Lei nº 6404/7616; 2) legitimação extraordinária concor13
Campos Junior (1985, p. 24) apresenta um conceito mais restritivo, excluindo a participação do titular do direito material
na relação processual: “[...] ocorre substituição processual quando alguém, devidamente autorizado por lei, pleiteia como
autor ou réu, em nome próprio, direito (pretensão) alheio, estando o titular deste direito ausente da ação, como parte”.
14
“[...] se la disponibilità costituisce la ratio della legittimazione ordinaria, il carattere più o meno intenso della indisponibilità di singoli rapporti giuridici privati costituisce la ratio della legitimazione straordinaria; quando l’interesse pubblico generale coinvolto nel rapporto giuridico privato si fa più forte ed assorbente, il legislatore allarga la legitimzione
straordinaria ‘a chiunque vi abbia interesse’ o la attribuisce addirittura al pubblico ministero”. (PROTO PISANI, 2002,
p. 289)
15
Campos Junior (1985, p. 51) entende que o Ministério Público não atua como substituto processual, já que os titulares
do direito material sempre integrarão o processo, o que, em sua concepção, desnatura o instituto. Entretanto, além de o seu
conceito de substituição processual ser mais restrito, pensamos que nas hipóteses ora exemplificadas – e que não foram
contempladas pelo mencionado autor em razão de seu trabalho ter sido escrito antes da atual constituição das leis ordinárias
respectivas – os titulares do direito material não integrarão necessariamente o processo como partes principais.
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rente: trata-se de co-legitimação, e a regularidade da relação processual independe da
instauração da demanda por todos os legitimados. A legitimidade concorrente pode
ser primária (ou seja, independentemente do comportamento do legitimado ordinário)
ou subsidiária (isto é, somente em razão da inércia do legitimado ordinário17). Anotese, ainda, que pode haver legitimidade concorrente envolvendo apenas legitimados
extraordinários, como acontece nas hipóteses de ação coletiva – para quem entende
que a legitimidade para essas ações é extraordinária  e na ação de anulação de casamento (terceiro interessado e o Ministério Público, art. 1.549 do CC-2002), situações
em que haveria legitimação extraordinária exclusiva e concorrente. No que se refere
à legitimação extraordinária subordinada, tal se dá quando a presença do titular da
relação jurídica controvertida é essencial para a regularidade da relação processual,
reservando-se ao legitimado extraordinário a possibilidade de coadjuvar o legitimado
ordinário. Sua eficácia é menos ampla do que a da legitimação extraordinária autônoma, somente podendo ocorrer incidentalmente e com a necessária presença do legitimado ordinário na relação processual.
É importante salientar algumas características básicas da substituição processual18:
a) a substituição processual é excepcional19 e depende de autorização normativa (art.
6o do Código de Processo Civil); b) o substituto processual atua no processo na qualidade de parte, e não de representante; c) em relação ao substituto examinam-se os
requisitos processuais subjetivos. A imparcialidade do magistrado, contudo, pode ser
averiguada em relação a ambos, substituto ou substituído (CAMPOS JÚNIOR, 1985,
p. 74); d) salvo disposição legal em sentido contrário (p. ex., art. 274 do CC-2002, e
art. 103 do CDC), a coisa julgada material estende seus efeitos ao substituído. A repercussão da legitimação extraordinária na eficácia subjetiva da coisa julgada é tema
bastante turbulento e merecerá análise mais detalhada em tópico próprio, não só pelo
fascinante debate teórico, mas principalmente por sua importância prática.
5. O Ministério Público como Substituto Processual: a Defesa dos Direitos Individuais Indisponíveis
Interessa-nos neste tópico o exame da possibilidade de o Ministério Público defender judicialmente direito individual indisponível, atuando como substituto processual.
Nas noções gerais abordadas no tópico anterior, foi visto que não é nenhuma novidade
outorgar ao Ministério Público a condição de substituto processual, mas ainda assim
há certo desconforto na doutrina e na jurisprudência quando elas deparam com ações
ajuizadas pelo Ministério Público para a defesa de direitos individuais.
Em recente estudo sobre a substituição processual, Assis (2003, p. 18), ao discorrer
16
A constitucionalidade da completa vedação do acesso à justiça pelo titular do direito é, no mínimo, discutível, como já
foi mencionado anteriormente. Por esse motivo, deve ser permitido ao titular do direito o ingresso no processo, ao menos
na condição de assistente litisconsorcial. Sobre o tema, vale também conferir o trabalho de Assis (2003, p. 14).
17
Como na possibilidade de anulação do casamento pelo Ministério Público ou interessados (art. 1.549 do CC-2002).
18
Mais amplamente, inclusive com referências ao novo Código Civil: (DIDIER JUNIOR, 2005a, p. 253-260).
19
No que se refere ao processo individual, evidentemente. Para aqueles que entendem que a legitimação coletiva também
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sobre a necessidade de autorização legislativa para que haja substituição processual,
ilustra bem essa perplexidade ao afirmar que “[...] o Ministério Público não se legitima a pleitear determinada prestação positiva do Estado, na área de saúde, em favor de
pessoa doente. [...] A jurisprudência do STJ nega, pelo motivo exposto [ausência de
autorização legislativa], legitimidade para defender direito de incapaz sob poder dos
pais e propor ação de alimentos”.20
Em nossa opinião, o tema não foi bem compreendido pelo ilustre processualista e por
parte da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça21, o que nos motivou a escrever esse trabalho a fim de tentar demonstrar o desacerto dessa tese restritiva.
É certo que a substituição processual necessariamente deve ser precedida de autorização normativa22, mas no caso do Ministério Público, ao contrário do afirmado por
Assis (2003), existe uma autorização constitucional genérica de substituição processual para a tutela de direitos indisponíveis (art. 127 da Constituição), satisfazendo amplamente a exigência normativa e habilitando a instituição para a defesa de quaisquer
direitos individuais indisponíveis.
Ao assentarmos as premissas deste trabalho, assinalamos que em nosso atual sistema
normativo toda a legitimidade do Ministério Público decorre diretamente da Constituição, inclusive a substituição processual, de modo que nos parece um desvio de
perspectiva negar a possibilidade de o Ministério Público ajuizar uma ação para a
garantia de um direito indisponível (direito à saúde, por exemplo) sob o argumento de
inexistir lei ordinária autorizativa.
A partir do momento em que a Constituição confere legitimidade ao Ministério Público para a defesa de direitos individuais indisponíveis, é evidente que se trata de
hipótese de substituição processual decorrente de norma constitucional de eficácia
plena e aplicabilidade imediata.23
Em suma: o Ministério Público é autorizado pela Constituição a atuar como substituto
é extraordinária, essa modalidade passou a ser a regra (ARRUDA ALVIM, 2002, p. 27).
20
O esclarecimento entre colchetes é nosso.
21
Confira-se esta ementa, que nega a possibilidade de o Ministério Público ser substituto processual: “Recurso Especial.
Ministério Público. Legitimidade. Ação Acidentária. Propositura. A ratio essendi da intervenção do Ministério Público nas
ações acidentárias, calcadas na responsabilidade civil, é o interesse público consubstanciado na preocupação do Estado
de defender aquele que sofre perda ou redução laboral ou, à família de quem é vitimado no trabalho. Nestes casos, atua o
parquet como fiscal da lei. Não tem legitimidade para propor ação de reparação de danos, ainda que em favor de incapazes
substituídos, pois, tal como nas ações alimentícias, não é função institucional deste órgão a defesa do direito material
individual da parte. A situação de pobreza dos atingidos pelo acidente do trabalho não confere ao Ministério Público legitimidade para promover a ação indenitária, ficando a cargo da Defensoria Pública exercer o munus constitucional de orientar
e defender gratuitamente os necessitados.” (BRASIL, 2001a). Embora concordemos parcialmente com a conclusão da
ementa, discordamos veemente de algumas premissas, como a impossibilidade de o Ministério Público tutelar direitos
individuais indisponíveis. Realmente, no caso objeto de julgamento, o simples fato de uma pessoa ser economicamente
hipossuficiente não torna, por si só, o Ministério Público legitimado para o ajuizamento da pretensão indenizatória, exatamente por inexistir a nota da indisponibilidade. De todo modo, essa ementa ilustra a confusão conceitual que invariavelmente grassa na jurisprudência em relação à atividade do Ministério Público como substituto processual.
22
O que não significa que necessariamente seja autorização legal.
23
As normas constitucionais sobre competência – e sobre atribuição, evidentemente – são classicamente consideradas de
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processual na defesa dos direitos indisponíveis, não havendo necessidade de previsão
em lei ordinária.
Algumas leis, no entanto, de maneira até mesmo didática, expressamente prevêem
que o Ministério Público atuará como substituto processual na defesa de direitos indisponíveis (por exemplo, o art. 201, III e IX, do Estatuto da Criança e do Adolescente
e o art. 74, I e III, do Estatuto do Idoso), de modo que era de se esperar que, ao menos
nessas hipóteses, não houvesse dúvidas quanto à legitimidade da instituição.
No Rio Grande do Sul24, por exemplo, encontramos decisões favoráveis à legitimação
do Ministério Público para a defesa de direitos individuais indisponíveis de crianças,
adolescentes e idosos. Confiram-se algumas ementas:
Administrativo e constitucional. Ação civil pública. Legitimidade ativa do Ministério Público. ECA. Saúde pública. Prelimieficácia plena e aplicabilidade imediata (SILVA, 1998, p. 89).
24
É interessante registrar que o TJRS, ao menos em uma ocasião, negou legitimidade ao Ministério Público para ajuizar
ação que visava ao fornecimento de medicamentos em benefício de menor. O Superior Tribunal de Justiça, apesar de não
ter enfrentado diretamente o tema da legitimidade, reformou a decisão: “PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CASSAÇÃO DE LIMINAR. EXTINÇÃO DO PROCESSO POR ILEGITIMIDADE ATIVA.
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO, PELO ESTADO, À CRIANÇA HIPOSSUFICIENTE, PORTADORA DE DOENÇA GRAVE. OBRIGATORIEDADE. AFASTAMENTO DAS DELIMITAÇÕES. PROTEÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER CONSTITUCIONAL. ART. 7º C/C OS ARTS. 98, I, E 101, V,
DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ARTS. 5º, CAPUT, 6º, 196 E 227, DA CF/1988. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR E DO COLENDO STF. “1. Recurso especial contra acórdão que extinguiu o processo,
sem julgamento do mérito, em face da ilegitimidade ativa do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o qual
ajuizou ação civil pública objetivando a proteção de interesses individuais indisponíveis (direito à vida e à saúde de criança
ou adolescente), com pedido liminar para fornecimento de medicação (hormônio do crescimento recombinante TTO) por
parte do Estado. 2. O art. 7º, c/c os arts. 98, I, e 101, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, dão plena eficácia ao
direito consagrado na Carta Magna (arts. 196 e 227), a inibir a omissão do ente público (União, Estados, Distrito Federal e
Municípios) em garantir o efetivo tratamento médico a menor necessitado, inclusive com o fornecimento, se necessário, de
medicamentos de forma gratuita para o tratamento, cuja medida, no caso dos autos, impõe-se de modo imediato, em face da
urgência e conseqüências que possam acarretar a não-realização. 3. Pela peculiaridade do caso e, em face da sua urgência,
há que se afastarem delimitações na efetivação da medida sócio-protetiva pleiteada, não padecendo de qualquer ilegalidade
a decisão que ordena que a Administração Pública dê continuidade a tratamento médico, psiquiátrico e/ou psicológico de
menor. 4. O poder geral de cautela há que ser entendido com uma amplitude compatível com a sua finalidade primeira,
que é a de assegurar a perfeita eficácia da função jurisdicional. Insere-se, aí, sem dúvida, a garantia da efetividade da decisão a ser proferida. A adoção de medidas cautelares (inclusive as liminares inaudita altera pars) é crucial para o próprio
exercício da função jurisdicional, não devendo encontrar óbices, salvo no ordenamento jurídico. 5. O provimento cautelar
tem pressupostos específicos para sua concessão. São eles: o risco de ineficácia do provimento principal e a plausibilidade
do direito alegado (periculum in mora e fumus boni iuris), que, presentes, determinam a necessidade da tutela cautelar e a
inexorabilidade de sua concessão, para que se protejam aqueles bens ou direitos de modo a se garantir a produção de efeitos
concretos do provimento jurisdicional principal. 6. A verossimilhança faz-se presente (as determinações preconizadas no
Estatuto da Criança com o do Adolescente – Lei nº 8.069/90, em seus arts. 7º, 98, I, e 101, V, em combinação com atestado
médico indicando a necessidade do tratamento postergado). Constatação, também, da presença do periculum in mora (a
manutenção do decisum a quo, determi