Jaqueline Souza Gomes de Melo - Programa de Pós
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Jaqueline Souza Gomes de Melo - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL MESTRADO ACADÊMICO PRATICANTES E USUÁRIOS DE MAGIA NA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAHIA (1591-1593): APRECIAÇÕES SOBRE RELAÇÕES SOCIAIS JAQUELINE SOUZA GOMES DE MELO Santo Antônio de Jesus, Bahia Setembro/2012 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL MESTRADO ACADÊMICO PRATICIPANTES E USUÁRIOS DE MAGIA NA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAHIA (1591-1593): APRECIAÇÕES SOBRE RELAÇÕES SOCIAIS JAQUELINE SOUZA GOMES DE MELO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (PPGHIS/UNEB) como requisito obrigatório para a obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profª. Drª. Suzana Severs Santo Antônio de Jesus, Bahia Setembro/2012 3 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Melo, Jaqueline Souza Gomes de Participantes e usuários de magia na primeira visitação do Santo Ofício à Bahia (1591-1593) : apreciações sobre relações sociais. / Jaqueline Souza Gomes de Brasão . – Santo Antonio de Jesus, 2011. 127f. Orientadora: Profª. Drª Suzana Severs Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas - Campus V. Programa de Pós Graduação em História Regional e Local, 2012. Contém referências. 1. Inquisição - Bahia. 2. Feitiçaria – Bahia. 3. Magia - Bahia. I. Melo, Jaqueline Souza Gomes de. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. CDD: 272.2 4 PRATICANTES E USUÁRIOS DE MAGIA NA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAHIA (1591-1593): APRECIAÇÕES SOBRE RELAÇÕES SOCIAIS Autora: Jaqueline Souza Gomes de Melo Orientadora: Profª. Drª. Suzana Severs Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia como requisito necessário a obtenção do título de Mestre em História. Banca Examinadora: _______________________________________________ Prof. Dr. Marco Antonio Nunes da Silva _______________________________________________ Profª. Drª. Elisangela Oliveira Ferreira _______________________________________________ Profª. Drª. Márcia Maria da Silva Barreiros _______________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira Santo Antônio de Jesus, 08 de Agosto de 2012. 5 Aos meus pais Sandra Gomes e Jacob Gomes Ao meu esposo Tiago Melo 6 AGRADECIMENTOS Antes de todos aos que aqui agradecerei, afirmo minha fé e agradeço a Deus pela oportunidade, disciplina e inspiração para desenvolver este trabalho, pois sem suas bênçãos a conclusão não seria possível. Assim, agradeço imensamente a todos que a seguir serão mencionados. Ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia que aceitou meu projeto de pesquisa, aqui desenvolvido e apresentado. À minha estimada orientadora Suzana Severs que com sua competência e paciência soube orientar de maneira singular a condução de minha atividade de pesquisa, tornando possível esta dissertação. À querida Profª Drª. Márcia Barreiros, quem sempre acreditou no meu trabalho e me deu muita força para seguir em frente. Ao Fundo de Amparo a Pesquisa da Bahia - FAPESB, que durante certo tempo apoiou-me financeiramente com bolsa de pesquisa. Ao Prof. Dr. Marco Antônio Nunes da Silva e a Prof.ª Dr.ª Elisangela Oliveira Ferreira que compuseram a Banca de Exame de Qualificação e que também se fazem presentes na Banca de Defesa desta dissertação. Aos professores que na condição de suplentes aceitaram ao convite para apreciarem e analisarem essa dissertação. Aos meus colegas da turma 2010.1 deste Mestrado em História Regional e Local, especialmente a Napoliana Pereira que se tornou uma grande amiga e confidente indispensável, e dos meus queridos colegas Álvaro Leal, Eliana Batista e Luís Argolo. À Prof.ª Dr.ª Elizete da Silva que me aceitou na condição de aluna especial da disciplina “Tópicos do campo religioso brasileiro”, no Programa de PósGraduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana. 7 Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana que disponibilizou meu ingresso como aluna especial, disponibilizando também consulta e empréstimos de livros. Aos funcionários do Instituo Geográfico e Histórico Brasileiro e da Biblioteca Pública da Bahia que pacientemente me auxiliaram na busca por obras raras e imprescindíveis para nossa investigação. Aos meus amados e respeitados pais Sandra Gomes e Jacob Gomes que estiveram e estão comigo em todos os momentos da vida. As minhas queridas irmãs Jamile Gomes e Viviane Lopes que pacientemente me aturaram nesta trajetória de pesquisa. Ao meu amigo e esposo Tiago Melo, que a todo o momento me incentivou para a conclusão deste trabalho. Aos meus tios Luís Rocha, Norma Salgueiro, Linda Gomes e a minha avó Isaura Sousa pelo apoio. Aos meus sogros João Melo e Maria da Silva que também me apoiaram nesta caminhada. A todos os meus familiares que mesmo à distância acreditou em meu potencial especialmente aqueles que não estão presentes neste plano espiritual, as tias Evani Rocha e Dalva Brito, e aos avós Carlos de Sousa, Ruth Brito, e Antônio Brito. Às minhas amigas de graduação Alexandra Melo, Camila Góes e Taiane Pugas, que tanto me estimularam para a realização deste Curso de Mestrado. E as minhas amigas Ariadne Magalhães e Mayara Pascoal que pacientemente ouviram minhas dificuldades e me fizeram rir nestes tempos. A todos e todas que direta ou indiretamente contribuíram para a produção e conclusão desta caminhada desta prática historiográfica. 8 RESUMO Criada para combater especialmente a heresia judaica, a Inquisição ibérica foi uma instituição que fiscalizou e puniu práticas consideradas heréticas, bem como comportamentos contrários à doutrina católica. Assim como na Espanha, em Portugal o alvo principal do Santo Ofício foi à extirpação das ações dos cristãosnovos judaizantes; entretanto, outras culpas foram perseguidas e penitenciadas como os casos de bruxaria e feitiçaria. As garras inquisitoriais também se estenderam aos habitantes da nova terra, a América portuguesa. Nesta dissertação trataremos de casos de feitiçaria que ocorreram na “cidade da Bahia” e seu entorno observando as relações sociais entre feiticeiras/os e seus clientes durante a Primeira Visitação do Santo Ofício entre 1591 a 1593. Para tanto, utilizamos dois processos inquisitoriais movidos contra as acusadas de feitiçaria Maria Gonçalves Cajada e sua vizinha Violante Carneira, escolhidos por melhor refletir exemplo de convivência a ser estudado. Palavras-chave: Inquisição, América portuguesa, Bahia, feitiçaria. 9 RESUMEN Creada para combatir especialmente la herejía judaica, la inquisición ibérica fue una institución que fiscalizó y punió prácticas consideradas heréticas, bien como comportamientos que causarían cierto prejuicio a la sociedad moderna ibérica y sus colonias. Así como en España, en Portugal la asesta principal del Santo Oficio fue a la extirpación de las acciones de los cristianos nuevos judaizantes, entretanto otras culpas fueron perseguidas y penitenciadas como los casos de brujería y hechizaría. Las garras inquisitoriales también se extendieron a los habitantes de la tierra nueva, la América portuguesa. En esta disertación trataremos de casos de hechizaría que ocurrieron en la “ciudad de Bahia” y su alrededor no perdiendo de vista las relaciones sociales entres hechiceros y sus clientes durante la Primera Visitación del Santo Oficio entre 1591 a 1593. Para tanto, utilizamos dos procesos inquisitoriales producidos contra las acusadas de hechizaría Maria Gonçalves Cajada y su vecina Violante Carneira, elegidos por mejor reflejar ejemplo de convivencia a ser estudiado. Palabras claves: Inquisición, América portuguesa, Bahia, hechizaría. 10 SUMÁRIO Introdução ..........................................................................................................................11 Capítulo I. Algumas considerações sobre a Inquisição e a repressão à bruxaria: Da Europa medieval aos quinhentos da América portuguesa Erro! Indicador não definido. 1. A repressão contra os bruxos na inquisição......................................................36 2. A Inquisição na América portuguesa: apresentando a capitania da Bahia ..39 2.1. 2.1.1. As Visitações e feitiçaria na Bahia ..................................................................44 A Primeira Visitação .......................................................................................44 Capítulo II. A Magia, o oficiante e o usuário: Suas relações sociais na Bahia .......56 1. Os tipos de contatos sociais e a magia na Bahia .............................................57 1.1. As relações de vizinhaça ..................................................................................62 1.2. As relações financeiras .....................................................................................68 2. A magia: seus tipos e motivações .......................................................................71 Capítulo III: Feitiçaria ma capitania da bahia: estudos de casos ..............................87 1. Violante Carneira ...................................................................................................88 2. Maria Gonçalves Cajada.......................................................................................96 Considerações finais ..................................................................................................... 111 Referências ..................................................................................................................... 114 Apêndice.......................................................................................................................... 120 11 INTRODUÇÃO Conquista de amores, amansamento de maridos, cura de doenças, morte de cônjuges e inimigos, destruição de colheitas e catástrofes naturais foram alguns dos resultados que os usos das práticas mágicas podiam oferecer. Estudos apontam que desde as antigas civilizações os oficiantes mágicos foram solicitados para a resolução de problemas cotidianos ao mesmo tempo em que tiveram seus adeptos e atos perseguidos e reprimidos 1. Entretanto, não podemos datar de maneira precisa o surgimento da efetiva perseguição aos praticantes de magia. Sabe-se que antes do estabelecimento da Inquisição medieval eles já eram alvo de persecuções. Por vezes, suas práticas eram classificadas como atos supersticiosos, seja por conta da justiça eclesiástica seja pela justiça civil, mas foi principalmente com a instituição da Inquisição medieval que a busca e captura desses infiéis e suas práticas se intensificaram. Durante a Idade Média cabia à justiça secular e eclesiástica a prisão, julgamento e punição aos transgressores e hereges católicos. Foi com o estabelecimento da Inquisição ainda no Medievo que a magia deixou de ser classificada como um pecado público e passou a ser classificada como heresia sendo, portanto considerada crime de heresia perseguida e julgada pela Igreja. Perseguição que correu também durante o funcionamento da Inquisição moderna, que, mesmo não sendo a bruxaria e feitiçaria o maior alvo das perseguições contra a fé, dói continuou sendo perseguida e punida neste instante deixando de ser heresia pertencendo ao rol das apostasias2. Com a instituição da Inquisição moderna ibérica os oficiantes de magia passaram a ter suas práticas classificadas como heresia, momento em que também surgiram os principais conceitos e termos para designar seu ofício e seus 1 Ver, por exemplo, os estudos de BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora Vega. 1979. NOGUE IRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocidente Cristão. Bauru: EDUSC, 2004. MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. Uma análise da psicologia histórica. São Paulo: Perspectiva, 1979. THOMAS, Keith. O declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. TREVOR-HOPPE R, Hugh. A crise do século XVII. Religião, reforma e mudança social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. 2 FALBEL, Nachman. Heresias medievais. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 24. 12 oficiantes. Vocábulos diversos – feitiçaria, bruxaria, feitiço, sortilégio, saludador, curandeiro, dentre outros – que surgiram não apenas nos lugares onde a Inquisição se fez presente, mas em grande parte da Europa cristã. Era preciso extirpá-las. A magia foi duplamente qualificada como boa ou má. Para o contexto da modernidade europeia, estudiosos como Robert Mandrou 3 e Hugh Trevor-Roper 4, a exemplo, classificam a magia em feitiçaria e bruxaria, sendo seus oficiantes designados como encantadores, feiticeiros, bruxos, adivinhadores, magos e até mesmo mágicos, denominações que variavam de acordo com o tipo de prática que realizavam e da localidade geográfica onde residiam. A feitiçaria foi durante muito tempo considerada como uma prática de magia branca ou benéfica. Geralmente era realizada individualmente e utilizada frequentemente para sanar problemas de saúde, acelerar as colheitas, ou trazer sorte na vida afetiva. E, apesar de não ser legitimada pelos Reinos era tolerada desde que fosse provado que não causaria malefício à sociedade. Já a bruxaria era contrária à feitiçaria. Podendo ser também denominada como magia negra ou feitiçaria diabólica. Foi o tipo de magia que mais sofreu perseguição. Para que seus atos fossem realizados era necessário auxílio de forças sobrenaturais, firmados com um pacto demoníaco, além da obrigação da participação de seus seguidores em encontros noturnos nos chamados sabás, onde eram reafirmados laços de união e submissão ao demônio. Contasse que estas cerimônias geralmente aconteciam em locais afastados da comunidade, na maioria das vezes eram realizadas nos dias de sábados de lua cheia e em companhia de outras bruxas e bruxos. Era também um momento para a consumação de encontros e “orgias” sexuais das bruxas com demônios em forma de homem ou de animais. 3 MANDROU, Robert. Magistrados e f eiticeiros na França do século XVII. Uma análise da psicologia histórica. São Paulo: Perspectiva, 1979. 4 TREVOR-HOPER, Hugh. A crise do século XVII. Religião, a Reforma e a mudanç a social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. 13 Entretanto, a designação que melhor se aplica aos casos ocorridos na Bahia colonial é a denominação de feitiçaria, pois, ao observarmos a documentação inquisitorial pesquisada, ficou claro que os praticantes de magia residentes nesta capitania não informam pactos demoníacos – característica fundamental para a efetivação de bruxaria – além disso, é o termo que com maior frequência aparece nos documentos pesquisados. Todavia, em alguns casos fazemos uso da denominação feitiçaria diabólica ou mesmo bruxaria quando pertinente, já que essas práticas foram realizadas na América portuguesa mesmo que em menor proporção, sendo assim referidas nas fontes analisadas. Estabelecida em 1536, a Inquisição portuguesa direcionou sobre o território metropolitano e colonial a necessidade da fiscalização, perseguição e punição aos hereges. Foram fundados seis tribunais no Reino, nas dioceses de Lisboa, Coimbra, Évora, Porto, Tomar e Lamego – sendo que os três últimos foram suspensos - e um tribunal em Gôa, única colônia lusitana que teve um Tribunal do Santo Ofício em funcionamento. O Tribunal de Lisboa foi responsável pela fiscalização da América portuguesa que, por inúmeras razões discutidas por diversos historiadores, não teve um Tribunal aí estabelecido 5. A Inquisição aqui se fez presente durante os quase três séculos de seu funcionamento por meio de inspeções de eclesiásticos, sob a responsabilidade, sobretudo, dos bispos e funcionários da Inquisição – como os visitadores que realizaram duas Visitações, além da presença constante de Comissários do Santo Ofício, especialmente no século XVIII, responsáveis por realizar as diligências solicitadas pelo Tribunal de Lisboa, ouvir confissões e delações, mandar prender, dentre outras atividades estritamente ligadas ao bom funcionamento da Inquisição no ultramar 6. 5 PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil. Aspectos da sua actuação nas capitanias do sul. De meados do século XV I ao início do século XV III. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006. 6 Sobre o funcionamento do Santo Ofício na Bahia, a tese de Doutoramento de Grayce Mayre Bonfim Souza. Para remédio das almas: Comissários, Qualificadores e Notários da Inquisição portuguesa na B ahia (1692-1804). S alvador: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, 2009. [Doutoramento]. 14 Na Bahia foram feitas duas Visitações. A primeira, ocorrida entre os anos de 1591 a 1593, ficou ao encargo do Visitador Heitor Furtado de Mendonça. Visitação que não ficou restrita a Bahia e ao término das atividades realizadas no (antigo) Colégio da Companhia de Jesus, o Visitador e sua comitiva partiram para Pernambuco, permanecendo nesta capitania até 1595. A segunda visitação, esta restrita à capitania da Bahia, ocorreu entre os anos de 1618 e 1620, sob a responsabilidade do visitador Marcos Teixeira. Ambas tiveram os mesmos objetivos: fiscalizar a fé católica e buscar hereges para serem processados e sentenciados por suas culpas. Inquirir de perto as displicências dos costumes, as indiferenças e distorções da crença eram a missão de que se imbuiu o licenciado Heitor Furtado de Mendonça capitão fidalgo d’el rei e do Desembargo do Paço, [...] seu poder de julgamento limitava-se aos bígamos, blasfemos e culpados menores, devendo remeter a Lisboa os acusados de judaísmo, sodomia, feitiçaria e outras culpas com seus respectivos processos.7 Diversos motivos trouxeram os visitadores à Bahia. Motivos que iam desde as queixas de padres jesuítas, ao enviarem constantemente ao reino cartas contando sobre atitudes e comportamentos infiéis dos colonos, além das frequentes queixas destes padres e dos próprios colonos acerca da “selvageria dos nativos” e da presença cristã-nova judaizante, até motivações e determinações régias para a fiscalização da fé católica. Assim, em 1591 a capitania da Bahia recebeu a Primeira Visitação, dando efetivo início às investidas inquisitoriais na América portuguesa. Muitas pessoas chegaram à mesa do Visitador para denunciar e confessar práticas consideradas heréticas como sodomia, blasfêmia, solicitação, feitiçaria, e principalmente as práticas judaizantes. Lembramos que o maior objetivo da Inquisição Ibérica foi a perseguição das práticas criptojudaizantes. 8 7 SOUZA, Laura de Melo e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia. das Let ras, 1986. p. 73. 8 NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1999. SARAIVA, Antônio José. Inquisição e Cristãos Novos. Lisboa: Estampa, 1985. BE THENCOURT, Francisco. Historia das Inquisições: Portugal, Espanha e It ália. Séculos XV -XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 15 As heresias classificadas como crimes menores foram penitenciadas em mesa do Visitador, como os casos de blasfêmia, perjúrio, sendo punidas com abjurações, penitências espirituais, além do pagamento das custas do processo – que sobrecaia todos os processados pela Inquisição, independente do tipo de crime. Aos crimes considerados graves era dada a abertura de processos e os culpados eram presos e encaminhados a Portugal para que lá fossem julgados e sentenciados no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. Ação comum quando se tratava de acusados de práticas judaizantes e casos extraordinários de bruxaria e sodomia. Entre os anos finais do século XVI e os anos iniciais do século XVII, assim como na tradição medieval, foram especialmente as mulheres, muitas cristãsvelhas e algumas cristãs-novas, as principais acusadas de realizarem magia na capitania da Bahia. Mulheres que vieram de Portugal acompanhando seus maridos ou, já sentenciadas pela Inquisição, para purgar culpas, a exemplo dos crimes de bruxaria e feitiçaria. A troca de conhecimentos de magia, possivelmente, se deu por meio dos contatos cotidianos ou esporádicos entre os habitantes na capitania, ocasionados por meio de amizade, vizinhança ou pela prestação de serviços de magia. São esses contatos sociais que apresentamos nesta dissertação. Sociabilidades originadas entre feiticeiros e seus clientes ou usuários residentes na “cidade da Bahia” e no Recôncavo baiano em fins do século XVI e i nício do século XVII que foram pouco tratadas, ou não tratadas de forma sistemática pela historiografia brasileira. Deste modo, utilizamos como fonte de pesquisa os já publicados Livros de Confissões e Denunciações das Primeira e Segunda Visitações ocorridas entre 1591-1593 e 1618-1620, respectivamente, bem como os processos inquisitoriais movidos contra Violante Carneira e Maria Gonçalves, disponíveis no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A partir da análise destes dois processos, pensamos poder apontar algumas características estabelecidas entre estas duas processadas. das relações sociais 16 Violante Carneira e Maria Gonçalves são personagens quinhentistas que moravam na mesma rua e foram escolhidas para serem tratadas nesta dissertação devido à proximidade e vivência social ocasionada pelo exercício da magia realizado por elas. Logo, esperamos contribuir com a produção historiográfica referente à religiosidade popular brasílica tendo por base as sociabilidades entre oficiantes e usuários de magia, moradores da capital da América portuguesa e no Recôncavo baiano. Comentário bibliográfico e notas teórico-metodológicas A religiosidade vivida na América portuguesa merece atenção singular graças à evidente diversidade cultural propiciada pelos diferentes grupos sociais que vieram aí se estabelecer voluntária ou involuntariamente. As devoções africanas, ameríndias e outras que também empregavam elementos naturais, como a utilização de ervas ou ainda o uso de cânticos e orações distintas da liturgia católica, eram classificadas e consideradas pela Inquisição como feitiçaria ou bruxaria. Magia e religião são conceitos que se unem e se afastam em determinadas situações. O antropólogo Marcel Mauss nos mostra que a religião se utiliza da magia para auxiliar a vivência religiosa. Para ele não existe religião sem magia, pois a mágica – realizada por meio de ritos e encantamentos individual ou coletivamente – é necessária para a prática da fé, embora nem sempre seja realizada em função de uma determinada religião9. Já o sociólogo Pierre Bourdieu aborda, dentre outras concepções de religião e prática religiosa, assuntos ligados à magia. Bourdieu afirma que a magia não está unida à religião, pois a religião é a institucionalização do sagrado, estruturada, hierarquizada e, geralmente, condicionada ao domínio do Estado. Já a magia é considerada uma espécie de antireligião caracterizada pela utilização ou manipulação de elementos naturais ou da religião de maneira profana. 9 MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. p. 81 17 Conceito que poderá ser aplicado ao nosso objeto de estudo já que na América portuguesa todos os colonos deveriam praticar e auxiliar na propagação da fé católica, religião oficial imposta pela monarquia. Assim tanto a magia como a religião apresentam dogmas, ritos, mitos e sacrifícios, mas são distintas na realização de suas práticas, mesmo que seus fins se assemelhem. Uma vez que a religião, e em geral, todo sistema simbólico está predisposta a cumprir uma função de associação e dissociação, ou melhor, de distinção, um sistema de práticas e crenças está fadado a surgir como magia ou como feitiçaria, no sentido de religião inferior, todas as vezes que ocupar uma posição dominada nas estruturas das relações de força simbólica, ou seja, nos sistemas das relações entre os sistemas de práticas e de crenças próprias a uma formação social determinada. Desta maneira, costuma-se designar em geral como magia tanto uma religião inferior e antiga, logo primitiva quanto uma religião inferior e contemporânea, logo profana [...] 10 A sociedade do Antigo Regime tinha viva na mentalidade e no imaginário reminiscências dos tempos medievais, tendo como base religiosa, social e política os ideais defendidos pela doutrina católica, e que mesmo com o iniciar da modernidade, caracterizado pelos ideais renascentistas, continuavam respeitantes a fé católica, seja pelo real sentimento religioso apostólico, seja por medo da Inquisição.11 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira também esboça uma definição para o conceito de magia que é facilmente aplicado para os casos da Renascença, Apresentavam-na como uma antinomia da fé, a sã religiosidade, da busca de Deus a vontade mórbida de desrespeitar a ordem divina numa manifestação arquetípica do orgulho luciferiano – no caso do mago -, ou da vontade da fraqueza de Eva – no caso da feiticeira e da bruxa. Homens e mulheres de pouca fé, naturalmente maus, ordenada por prazeres da carne imediato e sem barreiras e a necessidade de extravasar o seu ódio contra o gênero humano, adoravam servilmente a Satã e o cultuavam, aviltando a ordem divina, por conseguinte a ordem social vigente. É neste contexto que a bruxaria se destaca das diversas 10 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 43 -44. LÖWY, Michael. Marx e Engles como sociólogos da religião. Lua Nova. Revista de cultura e política, n. 43, 1998. p. 157-170. 11 18 participações do universo mágico, a terrível apostasia o crimen exceptum maior de todas as perversidades.12 Nossa temática ganha fôlego para estudo, sobretudo a partir da Escola dos Annales, quando a ciência histórica obteve novos contornos, com abrangência de temáticas e métodos para o estudo, escrita e a narrativa histórica. Vindos das gerações dos Annales, os estudos de Emmanuel Le Roy Ladurie, Robert Mandrou e o herdeiro dos Annales, Carlo Ginzburg além de Julio Caro Baroja, foram fundamentais para o estudo sobre a bruxaria e feitiçaria na Europa. Ressaltamos também os historiadores brasileiros Laura de Melo e Souza, pioneira no estudo da feitiçaria na América Portuguesa, o já citado Carlos Roberto Figueiredo Nogueira com seus estudos sobre bruxaria européia, Daniela Buono Calainho, Luiz Mott, Ronaldo Vainfas, dentre outros cujos trabalhos trataremos direta ou indiretamente nas páginas seguintes, cujos trabalhos viabilizam nosso estudo referente à relação social entre feiticeiras e seus clientes na Capitania da Bahia quinhentista. A partir da obra de Mandrou Magistrados e feiticeiros na França do século XVII 13 foi possível distinguir e conceituar as designações sobre as práticas e praticantes de magia, seja em feitiçaria ou bruxaria. Apesar de Mandrou tratar especialmente dos casos em que ocorreram na França e refletir sobre a forma de proceder aos casos de bruxaria, seu trabalho é pertinente à nossa investigação, pois nele reconhecemos e podemos comparar como modo de investigar e de proceder desde o momento da prisão e mesmo a penitência aplicada aos hereges se assemelhavam ao modo ibérico. Além disso, apresenta alguns tipos de sortilégios, feitiçarias e possessões que são certamente acontecimentos e práticas manifestadas em outras monarquias, assim como também na Capitania da Bahia. O estudo de Julio Caro Baroja, As Bruxas e seu Mundo é relevante para a compreensão do que consistia a ideia de bruxaria desde seu aparecimento no medievo – quando houve as associações diabólicas - até às luzes da 12 NOGUE IRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocidente Cristão. Bauru: EDUS C, 2004. p. 65 13 MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII . Uma análise da psicologia histórica. São Paulo: Perspectiva, 1979. 19 modernidade europeia. Baroja elenca o pensamento de vários especialistas no assunto apontando as possíveis diferenças entre as diversas formas de praticar magia. Entretanto, ele detém seus “olhares” às questões ligadas à bruxaria, porque essa “ [...] é essencialmente negativa, inimiga do bem público e sem freio [...] ” 14, e despertou temor e necessidade de extirpação por boa parte das monarquias cristãs. O historiador italiano Carlo Ginzburg também estuda a feitiçaria e é um dos seguidores do francês Le Roy Ladurie, embora utilize da microanálise para tratar dos assuntos ligados à magia. Carlo Ginzburg trata do sabá e dos feitiços realizados nas colheitas como no caso dos feiticeiros Azande, que foram acusados de bruxaria por sua religiosidade ser confundida como atos malévolos e supersticiosos, ainda que utilizassem a magia para fins curativos e para o sucesso nas colheitas, pois, para a Igreja Católica, qualquer tipo de intervenção sobrenatural que não tivesse envolvimento com o divino seria considerado como diabólico. Ginzburg também desconstrói a ideia de sabá sugerida durante muito tempo pelos historiadores e antropólogos. Para ele o conceito dos encontros entre bruxos era fantasioso mesmo para a época em que os fatos eram relatados. Assim, o historiador – tal como nós – desconstrói o imaginário das reuniões noturnas com bruxas voando em vassouras e untando seus corpos com sague de crianças, além da copula com o diabo e seus auxiliares. 15 Portanto, é a partir da História cultural que assentamos nosso aporte teórico, entendendo que esta é própria para lidar com assuntos relacionados à religiosidade colonial, buscando no imaginário as especificidades que levaram as pessoas a solicitarem e realizarem ações mágicas para sanarem seus problemas percebendo suas relações sociais e interações. 14 15 BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora Veja, 1979. p 54 GINZB URG, Carlo. História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p 48. 20 Os estudos de Francisco Bethencourt 16 e José Pedro Paiva17 são igualmente fundamentais para a compreensão do aparecimento da bruxaria em Portugal, bem como tratam de questões específicas sobre a difusão, os tipos e as práticas mágicas lá realizadas, além das formas de repressão ocorridas no Reino. Repressão que, no olhar de Paiva, não foi demasiadamente intensa mesmo na metrópole, mas não menos importante que as demais heresias, já que todos esses indivíduos tiveram a triste vivência de passarem pelos cárceres do Tribunal de Santo Ofício. Bethencourt se debruça sobre o estabelecimento e funcionamento da Inquisição moderna na obra intitulada História das Inquisições: Itália, Espanha e Portugal, e se refere à magia especificamente em Imaginário da magia, mas não esgotará a nossa temática. Os estudos de Paiva têm maior especificidade aos casos de bruxaria e feitiçaria, como as obras Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas e Práticas mágicas na diocese de Coimbra que se tornaram um referencial para o estudo sobre a magia realizada em Portugal. No primeiro trabalho, Paiva – assim como Bethencourt em Imaginário da magia - traz uma retrospectiva histórica dos pensadores que defendiam ou contestavam a existência de seres mágicos, além de tratar das jurisdições responsáveis de cuidar do crime. Seu estudo é importante para que entendamos de que maneira a Inquisição direcionou suas garras aos bruxos, mesmo sem uma fiscalização intensa sobre tal heresia. A segunda obra e não menos importante aponta os tipos de práticas que com maior frequência foram realizadas em Coimbra. Práticas que também encontramos difundidas na América portuguesa, como a utilização de cartas de tocar, filtro de amor, adivinhações, rezas e benzeduras, práticas registradas nos livros das Visitações. A historiografia brasileira tem nos estudos de Laura de Mello e Souza, Daniela Calainho e Ronaldo Vainfas a singularidade no tratar da religiosidade 16 BETHE NCOURT, Francisco O Imaginário da Magia: feiticeiros adivinhos e curandeiros em Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 17 PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça as bruxas: 1600 – 1774. 2 ed. Lisboa: Editorial Notícias, 2002. 21 popular – mágica – da colônia. Em O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Souza apresenta o cotidiano da América portuguesa envolvida em práticas mágicas classificando os usos e os tipos de magia realizados em toda a América portuguesa. A historiadora constata que os habitantes do Brasil colonial recorriam à magia tanto para tratar o bem, na cura ou amenização de problemas de saúde e de espiritualidade; quanto no trato do maligno, promovendo a agitação de tormentos espirituais, desequilíbrios da natureza ou mesmo a morte de um inimigo. Entretanto não aponta as vivências em que os feiticeiros e seus clientes ou usuários envolveram-se. As análises de Ronaldo Vainfas também são pertinentes e indispensáveis para nossa investigação, pois contribuem para o entendimento da formação da religiosidade popular brasílica e das questões relacionadas a comportamento e moralidades dos colonos. Citamos dentre outros trabalhos Heresia dos índios18, obra que trata da religiosidade indígena, especialmente no que veio a ser chamada de Santidade – prática religiosa cultuada pelos indígenas que, grosso modo, consistia numa espécie sincrética da religiosidade cristã atrelada a crenças consideradas ímpias do ameríndio. Daniela Buono Calainho, apesar de não tratar especificamente da feitiçaria americana traz uma importante obra sobre a prática de feitiçaria realizada por africanos em Portugal, sob o título Metrópole das mandingas – práticas essas que também são arroladas e relatadas por José Pedro Paiva e Francisco Bethencourt, embora esses historiadores não tenham debruçado-se sistematicamente sobre as especificidades das práticas, bem como as intervenções e interações dos conhecimentos mágicos dos escravos e as relações com seus pares e seus senhores -, e que, a partir de nossa investigação, podemos afirmar que as ações mágicas realizadas em Portugal por escravos vindos da África também na Bahia quinhentista foram amiúde difundidas e praticadas. 18 Além deste livro, lembramos que a obra intitulada Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil são também de grande importância para nosso estudo, pois o autor trata de questões relacionadas às moralidades, aos costumes e ao comportament o dos colonos a partir de documentos inquisitoriais, apresent ando-nos um pouco do c otidiano da sociedade da América portuguesa. 22 Por fim e mais uma vez ainda, no que tange à historiografia nacional destacamos os trabalhos de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, um dos maiores estudiosos na temática sobre bruxaria, cujos trabalhos trazem significativas análises sobre surgimento da magia no ocidente europeu até a prática da bruxaria na contemporaneidade19. Suas obras são importantíssimas para nossa pesquisa, pois apresenta a mentalidade, o imaginário e a crença em bruxaria e feitiçaria pela sociedade moderna, sendo, portanto base para nossa discussão de práticas mágicas na América portuguesa. E mesmo não especificando seus estudos para o Brasil colonial, principalmente no que diz respeito à capitania da Bahia, Nogueira sintetiza e discute claramente acerca da realização de magia, os tipos de magia e da distinção entre feitiçaria e bruxaria, não se esquecendo de expor a perseguição pela Inquisição. Utilizamos algumas das contribuições da micro-história para analisar dois processos inquisitoriais contra duas mulheres acusadas de praticarem magia, as vizinhas Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada. Tomamos por base o ensaio de Carlo Ginzburg O Inquisidor como antropólogo para direcionar nossa investigação nas fontes inquisitoriais. Ginzburg identifica as aproximações que o Inquisidor tem com o antropólogo, defendendo que o Inquisidor, assim como o antropólogo, observa e relata a vivência que lhe é apresentada. Esse trabalho de observador é transferido para o historiador que necessitará de atenção para tratar da documentação inquisitorial, sendo a leitura e compreensão da documentação realizado por meio de uma leitura minuciosa nas chamadas entrelinhas e uma análise meticulosa atrelada a outros documentos e registros teóricos, o que proporciona o entendimento de suas particularidades. No entanto, ao contrário do Inquisidor medieval, o moderno ibérico não se aterá em perguntar e ouvir do réu a descrição minuciosa do crime cometido, mas tão-somente no arrolamento dos cúmplices, considerando também como cúmplices os aqui denominados clientes – as pessoas que solicitavam a magia. 19 NOGUE IRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocident e Cristão. Bauru: EDUS C, 2004. 23 Giovanni Levi expõe de forma sucinta considerações acerca dos objetos e métodos de estudos micro-históricos, afirmando que para se conhecer as especificidades de uma temática é necessário analisar pequenos recortes, pois serão esses recortes que proporcionarão a compreensão de um todo. [...] A micro-história é essencialmente uma prática historiográfica em que suas referências teóricas são variadas e, em certo sentido, ecléticas. [...] a micro-história não pode ser definida em relação à micro dimensões de seu objeto de estudo. [...] Assim como todo trabalho experimental, não tem um corpo de ortodoxias estabelecido para dele se servir. A ampla diversidade de material produzido demonstra claramente o quanto é limitada a variedade de elementos comuns. Entretanto em minha opinião, esses poucos elementos comuns, como ocorre na micro-história, são cruciais. 20 E por isso salientamos a necessidade de se fazer uma retrospectiva nos acontecimentos, uma contextualização, para que possamos compreender como e porque os feiticeiros e as feiticeiras, os bruxos e as bruxas e os usuários de magia tiveram suas vivências e contatos pouco ressaltados na historiografia nacional e estrangeira. Para tanto, é necessário selecionar uma ou outra história contada nos processos inquisitoriais para melhor explanar e refletir acerca dessas relações. Levi parte do princípio de que o estudo das partes revelará condições que provavelmente não seriam reveladas nos estudos de longa duração, sobre o que também concordamos. Notemos que ainda é extenso o caminho para recontarmos as vivências da religiosidade popular. Relações que envolveram pessoas para realizarem atos mágicos, seja por meio de uma tradição familiar ou pelo exercício de atividade econômica, almejando sucesso afetivo, de saúde ou social; assim entendemos que como Bethencourt: A magia constitui, a meu ver, um revelador social e um observatório privilegiado para a compreensão da sociedade do Antigo Regime em seus níveis de profundidade. Nesse quadro, a elucidação das práticas reais e dos discursos simbólicos que se produzem a propósito desse fenômeno só tem sentido se nos permitir uma aproximação dessa questão de fundo: como é que 20 LEVI, Giovanni. Sobre à micro-história. In: BURKE, Peter (org.) A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992. p. 133-134. 24 uma sociedade utiliza determinados mitos para se exprimir e representar.21 Como disse José Carlos Reis acerca da reconstrução das vivências humanas, o que deixa espaço inteligível para novas discussões e métodos para o estudo das relações sociais entre magos e usuários de magia aqui proposto, é Conhecer a verdade de um tema histórico é reunir e juntar todas as interpretações do passado e do presente sobre ele. A verdade histórica é um poliedro de infinitos lados-posições, que jamais poderá ser visto integralmente por olhos humanos 22, Nossa dissertação está dividida em três capítulos , e nossa pesquisa baseada nas informações constantes nos livros das confissões e denunciações das duas Visitações à Bahia. No primeiro capítulo, Algumas considerações sobre a Inquisição e a repressão à bruxaria: Da Europa medieval aos quinhentos da América portuguesa, aprofundaremos as motivações que deram origens às perseguições aos feiticeiros e bruxos na Europa. Apontando o estabelecimento da Inquisição medieval e como procediam em relação ao crime de feitiçaria; apresentaremos também a Inquisição Moderna ibérica, apontando as principais distinções entre ambas, ressaltando a Inquisição portuguesa, seu estabelecimento e funcionamento dentro e fora do Reino e os acusados de bruxaria, objetivando melhor compreender como foram tratados os casos de bruxaria e feitiçaria na Capitania da Bahia no século XVI e início do XVII. Ainda neste capítulo, apresentaremos a atuação da Inquisição no Brasil colonial, sobretudo no que diz respeito à Capitania da Bahia durante o século XVI - espaço de nossa investigação – apresentando as razões da presença dos visitadores do Santo Oficio, os procedimentos das investidas inquisitoriais e o encaminhamento dos processos contra os acusados de bruxaria e feitiçaria. Esboçaremos também o perfil sociocultural dos acusados residentes na cidade de Salvador e no Recôncavo Baiano, baseando-nos na fonte primordial já citada. 21 BETHENCOURT, Francisco. Imaginário da magia: feiticeiros adivinhos e curandeiros em Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p 45 22 REIS, José Carlos. História e verdade: posições. In: História e Teoria. Historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 175. 25 No capítulo segundo, A Magia, o oficiante e o usuário: Suas relações sociais na Bahia colonial, tratamos dos contatos sociais entre oficiantes e usuários de magia, sendo essas contatos classificados em dois tipos: a vizinhança e amizade, por um lado, e o pagamento pelo serviço, por outro. Ainda neste capítulo, tentaremos classificar os motivos que levaram ao uso de feitiçaria ou bruxaria bem como o tipo de mágia empregado, seguindo os parâmetros portugueses e às possíveis adaptações ocorridas para s ua prática na capital da América portuguesa. No último capítulo, o terceiro, Feitiçaria na capitania da Bahia: estudos de casos, trataremos de dois casos de feitiçaria que deram origem aos processos contra Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada, cristãs-velhas, residentes na cidade de Salvador durante a Primeira Visitação. Por meio destes processos apresentaremos suas vivências ocasionadas pela magia, apresentando seus clientes, amigos e vizinhos que também fizeram uso ou foram vítimas de suas práticas, além daqueles que pagaram para resolver problemas diversos. Acreditamos que esses processos contribuíram para a reflexão das motivações, dos modos e das relações engendradas pela magia em uma sociedade que se encontrava em formação, mas que seguramente foram práticas e casos recorrentes a outras sociedades de outros cantos da América portuguesa que por motivos diversos ainda não foram desvelados pela História. 26 CAPÍTULO I. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A INQUISIÇÃO E A REPRESSÃO À BRUXARIA: DA EUROPA MEDIEVAL À AMÉRICA PORTUGUESA QUINHENTISTA As práticas mágicas foram realizadas em todos os tempos da História para a resolução de problemas físicos e espirituais. Especialistas classificam como feitiçaria a prática mágica com fins considerados benéficos, e como bruxaria, quando o objetivo é promover malefícios e está associada a entidades sobrenaturais como o ente maléfico do catolicismo, o Diabo. Para a Igreja católica, portanto, este era o tipo de magia que precisava ser erradicada pelas Inquisições. A crença em bruxaria na Europa Moderna esteve dividida em pelo menos cinco correntes, como aponta Carlos Roberto Figueiredo Nogueira: Que vão do catolicismo radical a incredulidade absoluta: 1º virtualmente ninguém acreditava na bruxaria que foi uma abominável fraude cometida pelos Inquisidores e teólogos a seu serviço que provocaram o pânico para aumentar seu poder e riqueza. 2º As crenças e práticas bruxescas como descritas nos registros dos tribunais existiam e o culto ao Diabo era uma realidade. 3º Encantamentos e rituais são práticas não só reais, mas sobrenaturais testemunhos dos poderes das bruxas. 4º O culto mágico explícito existiu, virtualmente intacto desde os tempos imemoráveis. 5º Muita gente (inclusive juízes e teólogos), iludida por uma atmosfera supersticiosa acreditava no que pessoas perturbadas mentalmente diriam de si mesma.23 A oficialização do catolicismo em boa parte dos reinos ocidentais impulsionou a busca e extermínio de outras religiões e religiosidades então consideradas infiéis, supersticiosas e primitivas, como no caso das diferentes formas de magia praticadas por diferentes povos. A bruxaria foi o tipo de magia que mais sofreu perseguição, tendo como principal agravante a adoração e submissão ao Diabo e a negação aos ensinamentos divinos e ao próprio Deus, prática que ao mesmo tempo foi temida e desprezada pelas sociedades cristãs 23 NOGUE IRA, Carlos Robert o F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocident e Cristão. Bauru, EDUS C, 2004. p. 75. 27 onde algum tipo de Inquisição estava presente (lembrando aqui as perseguições às “bruxas” pelos puritanos anglo-saxões, pois: [...] O caráter essencial da bruxaria, não é o dano que ela causa as outras pessoas, mas seu caráter herético, culto ao Demônio, que a transforma o maior dos pecados, pois, renunciando a Deus e adorando ao Diabo, ameaça toda a cristandade, que se vê ameaçada da impossibilidade de condução da obra do redentor e tenta purificar-se, purgando os pecados através do fogo tendo lesado ou não a outras pessoas, a bruxa merece morrer por sua traição para com Deus24 . . A submissão ao Diabo, necessária à realização de bruxarias, era a feita por meio do pacto demoníaco, momento em que o indivíduo aceitava servir ao Diabo em troca de poderes extraordinários. Francisco Bethencourt afirma que este ocorria, [...] na maior parte das vezes, em dar um pedaço da carne do corpo ou em dar sangue da parte de um membro (a mão esquerda ou o pé esquerdo), sangue esse que era chupado pelo diabo ou aproveitado por ele, para redigir um termo escrito do concerto [...]25. Entretanto, “[...] o pacto com o demônio tem, geralmente, um quadro limitado, comprometendo-se o demônio a cumprir os desejos de sua nova criatura desde que esta lhe entregue o corpo e alma [...]” 26 . A feitura de encantamentos, especialmente os ligados à fertilidade e à colheita realizados, sobretudo, por mulheres despertaram no imaginário coletivo a ideia que elas, as mulheres, estavam mais próximas das relações sobrenaturais, pois eram vistas como misteriosas e ambiciosas e facilmente atraídas pelo Diabo. Desta forma, estariam mais vulneráveis à sedução demoníaca. Estudos como o de Júlio Caro Baroja apontam que da antiguidade à modernidade foram as elas as principais responsáveis pela transmissão e realização de magia seja para o bem e, principalmente, para o mal. 24 25 BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora Vega. 1979 BETHE NCOURT, Francisco O Imaginário da Magia: feiticeiros adivinhos e curandeiros em Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 188. 26 Idem, p. 192 28 As mulheres que ganharam o imaginário coletivo na condição de bruxas correspondiam ao estereótipo de mulhers sozinhas – sejam viúvas ou idosas – residentes em locais ermos na companhia de cães, gatos e/ou ratos. Fruto deste imaginário é também a forma como elas se agremiavam para reforçar e celebrar a atividade mágica: os sábas. Encontros ainda muito discutidos por historiadores e antropólogos quanto à sua visibilidade. Alguns estudos como o de Trevor-Hoper descrevem o sabá dentro da credulidade do imaginário medieval como sendo reuniões noturnas ocorridas geralmente à meia-noite das sextas-feiras ou sábados quando há lua cheia, ocasião em que todas as bruxas, portanto já pactuadas com o Diabo, na companhia de outros demônios, encontram-se para celebrar seus feitos maléficos por meio de danças, cânticos e orgias sexuais. A presença de bruxos também era frequente, ainda que no imaginário coletivo fossem as mulheres tivessem um lugar especial e intenso. Trevor-Roper apresenta um retrato do que seriam esses encontros: [...] Com ela haviam muitos demônios, seus amantes, com que se haviam ligado pelo pacto infernal; e acima de tudo, dominando-os a todos estava o imperioso mestre-de-cerimônia, o deus de sua adoração, o próprio Diabo, que às vezes aparecia como um homem grande, negro, de barba, mas frequentemente como um bode fedorento ocasionalmente como um grande sapo os presentes reconheciam seu senhor. Todos se uniam para adorar o Diabo e dançavam ao em torno dele ao som de música macabra feita com curiosos instrumentos – crânios de cavalo, troncos de carvalho, ossos humanos, etc. – Depois o beijavam como homenagem, sob a cauda se era um bode, nos lábios se fosse um sapo. Depois disso diante de sua palavra de comando, lançavamse em orgias sexuais promiscuas ou se dedicavam a um festim de iguarias segundo a imaginação nacional. Na Alemanha estas eram nabos fatiadas, parodia do Sagrado; na Savoia. Crianças assadas ou cozidas; na Espanha, cadáveres exumados, preferencialmente de parentes; na Alsácia, cozidos de morcegos; na Inglaterra, mas delicadamente, rosbife e cerveja. Mas essas belas distinções de dietas faziam pouca diferença, o alimento, todos concordavam, era frio e sem gosto, e, o ingrediente necessário, o sal, por alguma razão demonológica misteriosa nunca era admitido. 27 27 TREVOR-ROPER, Hugh. A crise do século XVII. Religião, a reforma e a mudança social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. p. 151. 29 Acresente-se que se acreditava-se que para participar de um sabá era especificamente imprescindível o preparo do corpo para as viagens noturnas. Em geral, tanto os populares quanto os estudiosos da época diziam que as bruxas untavam seus corpos com unguentos feitos de sangue de crianças ou de animai s, além de metamofosearem-se para não serem descobertas por eventuais testemunhas. Na figura seguinte reproduzimos a tela El Aquelarre do pintor espanhol Francisco Goya y Lucientes, produzida entre 1797-179828, que traduz a crença e o imaginário do que seriam esses encontros entre bruxos/as e demônios. Apesar de ser uma representação iconográfica de final do século XVIII espanhol – quando a “caça às bruxas” já havia arrefecido na Península Ibérica, não deixa de participar dos imaginários tanto medievais como renascentistas e mesmo iluministas quando se trata do sabá, pois a base descritiva pela qual foi possível representa-lo na pintura setecentista certamente origina-se nos depoimentos à Inquisição medieval dados pelos acusados de bruxaria e do imaginário popular bastante difundido oralmente pela Europa. Em História Noturna, Ginsburg desconstrói a ideia de sabá com bruxas voando untando pelos ares corpos e em vassouras, unindo-se com demônios e outros bruxos em relações sexuais. Assim como Trevor-Hopper, Ginzburg lembra que a bruxaria durante a modernidade equivocadamente teve seu sabá confundido com o Shabat judaico. O Shabat não é uma festa e sim o dia de descanso que ocorre, segundo 28 Imagem copiada do site: http://memoriescharlotte.blogs pot.com.br/2010/05/papel -picadogoya.html 30 o calendário lunar, entre os pôres do sol da sexta-feira e do sábado, quando então os judeus pios não trabalham, recolhem-se para orar e estudar a Torá em casa ou nas sinagogas, com o objetivo de lembrar-se da Criação divina, do fim da escravidão no Egito, cumprindo assim o quarto Mandamento da Lei de Deus, em sua versão original judaica, que manda santificar o dia de sábado. No catolicismo, o sábado foi substituído pelo domingo e transferido para o terceiro mandamento. As pessoas muitas vezes confundiam a bruxaria com o judaísmo não apenas pela proximidade fonética entre sabá e Shabat como pela associação do judeu ao Diabo, em razão de sua fé não cristã e da acusação de deicídio que pairava sobre este povo. Além disso, acreditava-se que tanto o judaísmo como a bruxaria era um conhecimento transmitido hereditariamente, logo: [...] A bruxa e o judeu representavam a não conformidade social. De início ambos são perseguidos esporadicamente, sem a apresentação de muitas razões, pois a bruxa não é condenada pelas antigas leis da Igreja, e o judeu, na condição de incrédulo, está fora dela. Então são concebidas bases legais para perseguir a ambos: a primeira, por uma redefinição de termos, o último, pelo batismo forçado, torna-se sucessíveis de uma acusação de heresia. Por fim, quando essa acusação não é mais adequada, não é mais usada. A bruxa como veremos é perseguida simplesmente por ‘ser uma bruxa’ ; o judeu, por ser um judeu’, por razões não de crença mais de sangue, por defeito de limpeza de sangue. [...] 29 Portanto, e para a época de nossa investigação, era tido como real a crença em tais acontecimentos sabáticos e comportamentais dos oficiantes de magia, afirmando também que as bruxas passavam seus conhecimentos mágicos para seus filhos e estes dariam seguimento a práticas de malefícios. Deste modo, a bruxaria passava a fazer parte do rol de práticas que precisavam de controle, posto que fosse uma possível candidata a contaminar a comunidade cristã, tornando a justiça secular, eclesiástica e principalmente inquisitorial responsável pela perseguição de suas práticas e praticantes. 29 TREVOR-ROPER, Hugh. A crise do século XVII. Religião, a reforma e a mudança social. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2003 p 171-172. 31 * * * Fundada durante o papado de Inocêncio III, a Inquisição medieval teve seus tribunais organizados em 1229 pelo Papa Gregório IX como resultado de algumas das determinações do Concílio de Toulouse, momento em que também foi confiado aos dominicanos a responsabilidade de legislar e condenar os hereges, sendo estes os primeiros Inquisidores gerais. Seu principal objetivo foi dar cabo das heresias realizadas por grupos cristãos acusados de contestar a doutrina católica, sendo os cátaros ou albigenses e os valdenses, os mais perseguidos. Em suma, esses grupos eram pregadores da caridade, da pobreza, da castidade e objetivavam trazer o sentimento primitivo da igreja de Cristo e do cristianismo presente no Antigo Testamento que, segundo eles, o catolicismo havia perdido ao longo dos séculos. Toda a população tinha o dever de zelar, fiscalizar e propagar a boa fé católica. Durante o IV Concilio de Latrão, em 1215, já estavam decretadas algumas medidas punitivas contra os senhores feudais que não controlassem os desviantes - especialmente os casos de bruxaria - em suas terras, sendo-lhes designadas penalidades, como correr o risco de perder suas posses, caso não conseguissem conter as heresias. Assim alguns dos senhores tomaram medidas cabais para o controle e a não disseminação herética30. Cabia aos bispos a função de Inquisidor, tendo nos notários, médicos e carcereiros os servidores necessários para o funcionamento desta Inquisição. As diligências eram itinerantes, realizadas de região em região, quando os Inquisidores inquiriam, julgavam e sentenciavam os suspeitos de heresia. Lembramos que a Inquisição, como instituição da Igreja católica tinha jurisdição, é óbvio, dentre os cristãos, sejam nascidos de famílias cristãs ou os conversos. Todos tinham que ser, ao menos teoricamente, c ristãos e teriam que denunciar e confessar suas culpas a fim de encontrarem a salvação de suas almas. 30 MA X, Frédéric. Prisioneiros da Inquisição. Porto Alegre: LP&M, 1991, p 17 . 32 O encaminhamento da causa no Tribunal do Santo Ofício seguia alguns passos. Após o relato da testemunha acusatória era dado início a busca de evidências sobre a inculpação. Achadas as provas, seja pela própria confissão ou provas de outra natureza, o acusado era levado ao cárcere onde deveria confessar suas culpas, e, se por acaso sua confissão não fosse considerada satisfatória às expectativas do Inquisidor, o réu seria submetido aos tormentos (tortura) para que, por meio do sofrimento físico, fossem confessadas e esclarecidas suas supostas heresias e delatados possíveis cúmplices. Comprovada a prática de bruxaria, o indivíduo era levado ao cárcere, onde era feita sua primeira confissão, seguido de tortura, caso necessário. Historiadores como Hugh Trevor-Hoper e Laura de Mello e Souza afirmam que a evolução dos métodos e materiais de tortura foi favorecida pela perseguição aos bruxos/as – que piorava muito com a chegada dos tempos modernos. Além disso, naquele período a tortura era imprescindível para confissão completa das heresias. Entretanto, Hopper afirma que os excessos de tortura podiam distorcer os depoimentos dos confessores, vistos que esses queriam o mais breve possível livrar-se dos tormentos, confessando muitas vezes situações que nunca ocorreram. Após a sessão dos tormentos, era concedido ao acusado outro momento para retomar sua confissão. Posteriormente a essa nova confissão em geral, o processo era concluso e a sentença proferida. As penalidades variavam de acordo com o delito, podendo ser castigados com simples penitências espirituais, abjurações, até penas mais graves, como açoites, degredos e finalmente com a morte da fogueira, direcionado aos crimes mais graves. Esses penitentes eram relaxados à justiça secular, ou seja, o réu era entregue a justiça civil para que fosse executada a sentença de morte, já que a Igreja não podia condenar à morte e muito menos executar penas nas quais houvesse sangramento. O procedimento de anotação das denúncias de práticas de magia era o mesmo designado para qualquer outro tipo de crime de heresia. Lembramos que seguida da deleção do testemunhante, os funcionários inquisitoriais saíam à procura de indícios que comprovassem as associações ou pactos demoníacos. 33 Podiam ser consideradas provas físicas, como os sinais, verrugas no corpo do acusado, e deficiências físicas, avaliadas como marcas que o Diabo fazia para distinguir seus servos dos fiéis a Deus; além das provas materiais, comprovados com a guarda de velas pretas, bonecos de cera espetados por agulhas, pós “estranhos”, ervas, caldeirões, dentre outros objetos de igual natureza e que pudessem ser associados a fins de preparação de encantamentos. Já no final do medievo circulavam manuais que auxiliaram os Inquisidores e seus funcionários sobre o modo de proceder nos casos de bruxaria. O primeiro manual de Inquisidores e um dos documentos mais significativos para cuidar destes casos foi produzido pelo Inquisidor dominicano Bernardo Gui no ano de 1331 sob o título Manual dos Inquisidores31. Apesar do servir a este objetivo, sua intenção original era auxiliar na extirpação herética disseminada pelos cátaros, no Sudoeste da França. Mais tarde, Nicholas Eymeric, também pertencente à ordem dos dominicanos, publicou o Directorium Inquisitorium no qual a bruxaria foi caracterizada principalmente por haver adoração ao diabo entre seus praticantes e classificou os bruxos/as em três tipos: os que idolatravam o diabo, os q ue serviam aos sucessores do tal deus e os que evocavam auxílio demoníaco para suas práticas. Vejamos a citação a seguir para melhor descrevê-los. [...] 1º Aqueles que prestam ao demônio um culto idolátrico, oferecendo lhe sacrifícios, prostrando-se diante dele, cantando cânticos, queimando velas e incensos em seu louvo, etc. 2º Aqueles que se limita a prestar lhes um culto de dulia ou hiperdulia, misturando-se as suas ladainhas os nomes dos santos e dos demônios e suplicando a estes últimos que sejam seus intercessores diante de Deus, etc. 3º Aqueles que os invocam com a ajuda de figuras mágicas, colocando uma criança no interior de dum círculo, servindo-se de uma espada de um espelho, etc”32 O papa Inocêncio VIII publicou, em 1480, a bula Summis Desinderantes Affecibus assegurando que a bruxaria era uma prática que deveria ser extirpada e 31 32 BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora Vega, 1979. p 129 . Idem, p 130. 34 autorizando os dominicanos a acionarem medidas cabíveis ao extermínio dessa heresia. A produção de um dos mais importantes manuais de auxílio ao trato dos casos de bruxaria e que se tornou uma referência para melhor exercício da atividade inquisitorial sobre estes assuntos, foi consequência do relatório de estudo minucioso sobre bruxaria. Sob o título de Malleus Mallefecarium, cuja autoria é atribuída aos Inquisidores Heinrich Kraemer e James Sprenger, editado pela primeira vez em 1486, este manual foi considerado a primeira enciclopédia impressa sobre bruxaria e demonologia. E, até onde sabemos é o mais completo manual para tratar destes casos, sendo reeditado por diversas vezes, até hoje 33. Após séculos de resguardo cultural, social e religioso era preciso que as sociedades europeias buscassem respostas às necessidades dos novos tempos. O surgimento do protestantismo e as contestações da fé católica são características desse momento histórico. A Igreja sabia que estava perdendo seus fiéis e precisava adotar medidas eficazes para fazer retornar os seus devotos à fé católica. A Inquisição moderna criou novos contornos em relação às práticas heréticas incluindo um novo rol de heresias e crimes contra a moral e os costumes. Foram incorporadas além das heresias já tratadas pela Inquisição medieval, aqueles comportamentos contrários à doutrina católica como sodomia, blasfêmia, solicitação e práticas supersticiosas, por exemplo; e as heresias contra a fé, como a prática de judaísmo, luteranismo, maometismo, os quais eram considerados crimes mais gravem, sobretudo o judaísmo. Península Ibérica a Inquisição inovou nos seus procedimentos. Uma das suas características peculiares foi o alargamento do segredo. O preso não tinha ideia de quem o acusou, de onde o “crime” ocorreu, nem quando. Sabia apenas vagamente do que estava sendo acusado. A manutenção do segredo era importante para o bom funcionamento desta Inquisição. Tanto o confessor quanto 33 A obra foi editada pela primeira vez em 1487, e no correr dos séculos teve aproximadamente 14 reedições . No Brasil fo ram ed itadas duas vezes este Manual a qual optamos por utilizar a edição da Editora Rosa dos tempos que levou o titulo de Martelo das Feiticeiras. 35 o delator e o réu, além dos próprios funcionários e agentes que tivessem contato com a causa jurídica, precisavam jurar ter segredo de tudo que se passava na mesa inquisitorial. Não era permitido dizer à sociedade como se procediam as confissões e delações. O réu também não podia saber quem o denunciou, nem por qual real motivo estava sendo preso. Os Inquisidores achavam que assim poderiam conseguir uma confissão verdadeira das culpas, já que desta forma o réu era obrigado a confessar suas culpas “verdadeiras” e principalmente denunciar outras pessoas, possíveis cúmplices, facilitando o trabalho inquisitorial. Contudo, acreditamos que nem sempre o segredo era guardado, sendo revelado e mesmo comentado entre vizinhos e familiares daqueles que iam aos tribunais da fé, seja para denunciarem e confessarem as práticas heréticas, seja os depoimentos daqueles que conseguiam resistir ao cárcere retornando a viver na sociedade. Esta Inquisição estava organizada em Tribunais de Santo Ofício, com um quadro de funcionários e agentes que auxiliavam e faziam funcionar as ações da instituição. Havia cargos que só puderam ser ocupados por eclesiásticos, estes reservados aos Inquisidores, sejam eles gerais ou locais, comissários, notários, alcaides, dentre outros; ainda havia os cargos de agente ou familiar do Santo Ofício que estavam reservados aos homens leigos – que não pertenciam à alçada religiosa – considerados idôneos, de boa moral e costume. Mas, qualquer que fosse a atribuição no sistema inquisitorial, todos deveriam ter “sangue puro”. Isto é, para ser um agente ou funcionário da Inquisição o candidato não poderia ter nenhuma ancestralidade, nenhuma “gota de sangue” considerada impuro, ou seja, nem judeu, nem mouro, nem cigano pelo menos até sexta ou sétima geração. Nos casos referentes à América portuguesa, nem indígenas nem negros, nem seus descendentes podiam pertencer aos quadros de funcionários e agentes da Inquisição. Outra importante e fundamental característica da Inquisição moderna para as monarquias Ibéricas foi a busca pelos judaizantes. Aliás, motivo principal para 36 a criação e estabelecimento da Inquisição nestas monarquias. Pois se pretendia controlar a disseminação da fé judaica. 34 Ambas as Inquisições – medieval e moderna – tiveram a mesma forma de encontrar seus réus, sendo realizada por meio da delação, onde as pessoas queixavam-se das ações de seus vizinhos, amigos, inimigos e parentes e auxiliavam a busca pelos desviantes da fé católica. Mesmo que nem sempre realizando com um legítimo sentimento católico, pois a Inquisição causava temor à população obrigando a todos a delatar suas culpas e denunciar culpados. E aqueles que não comparecessem aos chamados da instituição seriam considerados hereges. Assim também aconteceu na América portuguesa onde a Inquisição se fez presente utilizando do medo, pois a população temente da infâmia, do confisco de bens e da morte na fogueira foi denunciar seus parentes e amigos. Mas vejamos as principais características das Inquisições medieval e moderna para tratar dos casos de feitiçaria e bruxaria, para chegarmos até a perseguição sofrida aos feiticeiros da cidade Salvador nos primeiros séculos de colonização. 35 1. A repressão contra os bruxos na inquisição A bula Cum ad nihil magis assegurou a fundação da Inquisição em Portugal no ano de 1536 durante o papado de Paulo III, resultado do pedido feito pelo então regente João III a Roma, solicitando a concessão de uma liberação para o funcionamento da Inquisição no território lusitano. Esta bula fez referência ao combate dos judaizantes cristãos-novos, além dos casos de luteranismo, islamismo, das proposições heréticas e da realização de magia, e, [...] foi introduzido exclusivamente para fiscalizar e punir os descendentes de judeus que haviam sido convertidos à força ao catolicismo, e sob suspeita de praticar a religião judaica. Foi gradativa a ampliação de seus objetivos até abarcar diversos tipos de comportamento e crenças Às heresias em matéria de fé 34 BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição. In: CENTE NO, Yuete Kace. P ortugal: Mitos Revisitados. Lisboa: Salamandra, 1993. p 101-138. 35 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no B rasil. Rio de Janeiro: Nova Front eira, 1997. p. 289 37 juntaram-se feitiçarias, bruxarias, sodomia, bigamia, blasfêmias, proposições, desacatos e problemas diversos de sexualidade. 36 E como os Inquisidores ibéricos procediam nos casos de bruxaria? Lembramos que a prática de magia ilícita foi em Portugal durante algum tempo considerada um pecado público julgado e penitenciado tanto pela justiça eclesiástica quanto pela justiça secular. Mas, com a fundação do Santo Ofício passou a fazer parte do rol de heresias a serem extirpadas. Todavia, a bruxari a não foi classificada como um crime grave, logo não podia seus seguidores ser relaxados à justiça secular, ou seja, não era permitida a queima e morte na fogueira aos inculpados, sendo suas práticas penitenciadas com o degredo para África ou Brasil, por exemplo, além das abjurações, açoites e penitências espirituais. A “brandura” no trato dos acusados de feitiçaria é inicialmente comprovada pelo número de penitenciados e pelo tipo de sentença aplicada aos seus culpados. Raros foram os bruxos que sofreram açoites públicos e muito menos aqueles que foram relaxados à justiça secular. Além disso, pouco são os casos em que feiticeiros passaram pela sala dos tormentos. O que nos leva a crer que o português não estava muito preocupado com este tipo de herege, mas que não os deixou passar despercebidos pela sociedade 37. Os processos de bruxaria também se iniciavam por meio da denúncia e posteriormente seguiam com a confissão da culpa, no entanto diferente do que aconteceu na Inquisição medieval, na moderna bastava que qualquer pessoa chegasse à Mesa do Inquisidor para denunciar uma culpa ou mesmo o aparecimento de uma carta anônima para ficar provado à heresia realizada por determinado indivíduo. Após a acusação, o réu era chamado e este sem saber por que foi intimado a comparecer na mesa do Inquisidor tinha que confessar sua culpa. E, se a 36 NOVINSKY, Anita. O tribunal da Inquisição em Portugal. Revista da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 91-99, 10 jun. 1987. p. 92. 37 BETHENCOURT, Francisco. Imaginário da Magia. Feiticeiros, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 285. 38 confissão não satisfizesse o Inquisidor, o acusado permaneceria no cárcere até quando confessasse toda a sua culpa e denunciasse seus cúmplices e todas as pessoas que poderiam praticar algum tipo de heresia. Se permanecesse preso, o acusado seria encaminhado à sala dos tormentos para que lá confessasse suas culpas por meio das torturas. Em Portugal, como já é sabido, não houve muitos casos de bruxaria que sofreram torturas, sobretudo no que diz respeito às práticas relatadas no Tribunal de Lisboa. Constatado o crime, o réu era exposto nos autos-de-fé, momento em que eram proferidas as sentenças aos penitenciados. Os autos podiam ser públicos ou privados. Público era uma grande celebração precedida de procissão, missa e divulgação das culpas e sentenças, composta por abjuração pública, reconciliação e, principalmente, a morte na fogueira, deixando claro a toda a população que a Inquisição tinha o poder de salvar e castigar os infiéis. E privado, era realizado na mesa do Inquisidor – ou Visitador durante as Visitações à América portuguesa – direcionado para os crimes de menor gravidade. Como na maioria dos casos de bruxaria, aqui também era lida a sentença e deferida as penitências aplicadas às culpas. Já é conhecido que em Portugal a preocupação com os bruxos e feiticeiros não foi demasiada, mas, como estamos apresentando, ela ocorreu, vale a pena discorrer um pouco sobre o que pensam os historiadores especialistas no tema. José Pedro Paiva, por exemplo, afirma que os lusitanos pouco se preocuparam em desenvolver tratados demonológicos por não darem tanta importância às suas práticas, porém foram especialmente os teólogos jesuítas e alguns canonistas lusos os responsáveis em tratar dos assuntos ligados às bruxarias no Reino português. Paiva afirma que os canonistas portugueses não fizeram uso dos trabalhos de Jean Bodin e Nider (demonólogos que defendiam a ideia da real existência da bruxaria e do pacto demoníaco) por eles – os portugueses – não acreditarem que 39 a bruxaria carecia de tamanha salvação, pois talvez a crença nas artes mágicas, pelo menos em Portugal, era percebida como atos supersticiosos38. Outro problema que talvez dificultasse a interlocução e não a disseminação dos estudos demonológicos em Portugal no início da modernidade foi provavelmente a dificuldade de acesso aos tratados e obras especializadas, pois a censura aplicada mesmo para as obras que circulavam dentro das igrejas. Além dos tratados escritos por Martin Del Rio, os portugueses também tiveram contato com o Malleus Mallefecarium, já citado. Apenas os elementos básicos da bruxaria eram conhecidos pelos estudiosos de Portugal, tanto pelos teólogos como pelos juristas e médicos, sendo eles: o pacto demoníaco, as metamorfoses, os sabás, a prática de malefícios que podiam causar a morte de pessoas ou em animais e estragos nas colheitas. Assim, José Pedro Paiva e Francisco Bethencourt defendem a ideia que o crime de bruxaria foi considerado menor e de ordem pública por não ter o poder de corromper a população e que as práticas de magia também não teriam força para serem disseminadas na sociedade portuguesa. Crença assegurada pelo ceticismo dos intelectuais sobre a existência da bruxaria. Além disso, o português católico apostólico não dava espaço para que o mal fosse disseminado, sendo ele, graças a sua fé. 2. A Inquisição na América portuguesa: apresentando a capitania da Bahia Mesmo sendo desacreditado pela maioria dos estudiosos em demonologia e bruxaria, o medo do desconhecido assombrava aqueles que se entregavam às aventuras no ultramar. O cristão que veio para o Novo Mundo trouxe um imaginário estereotipado. Eram indivíduos que temiam as forças da natureza, mas 38 PAIVA, Jos é Pedro. B ruxaria e superstição num país sem caça as bruxas: 1600 – 1774. 2a. Ed., Lisboa: Editorial Not ícias. 2002. p 26 40 que se lançaram no mar das grandes navegações muitas vezes com o intuito de obter credibilidade e prestígio social. Ao mesmo tempo em que outros vieram fugidos do Reino, como os criptojudeus, os degredados e penitentes da Inquisição, aventureiros e comerciantes , se o principal motivo da vinda para a Colônia era o ganho, trazia o português para cá, no âmago de sua personalidade, os traços culturais do seu mundo cristão com suas inquietações e preconceitos. Mundo católico ortodoxo, com suas intolerâncias. Mundo barroco com seus contrastes, seus exageros, suas hesitações. Mundo que se modernizava, abalando com as criticas, os valores tradicionais de autoridade, hierarquia, religião, reformando-as. Mundo em que se esboçavam modificações das estruturas e nas atitudes nas faces da vida.39 O imaginário cristão via na diversidade cultural o paganismo, a infidelidade e o “selvageníssimo”. Os católicos tinham em suas mentes que apenas eles estavam aptos a propagar e zelar pela fé cristã. A sociedade que começava a se formar nas terras do Brasil era constituída por grupos sociais e culturais bastante distintos: o cristão-velho, o cristão-novo, o ameríndio e o africano, além dos ciganos e estrangeiros residentes ou passantes nas terras brasílicas. O Padroado régio permitiu maior intervenção da Coroa na vida religiosa dos metropolitanos e dos colonos, sendo reforçadas com a institucionalização da Inquisição, que também foi caracterizada pela relação estreita entre Estado e Santo Ofício durante quase todo o tempo de seu funcionamento quando o Estado português interviu nas ações dos Inquisidores. Tanto a Coroa como a Igreja e a Inquisição utilizavam-se da fé católica para controlar as moralidades, a ética e o comportamento religioso dos colonos e mesmo dos nativos, sendo a única religião permitida a ser vivida o catolicismo. Não poderia haver na sociedade lusitana e luso-americana nenhum outro tipo de religião que não a católica, e, se houvesse desviante da fé – os hereges e apóstatas – seriam julgados e penitenciados pelos Tribunais do Santo Ofício. 39 SIQUE IRA, Sonia A. A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial. Rio de Janeiro: Ática, 1978. p. 22. 41 Lembramos que a partir do Regimento dado a Tomé de Sousa enquanto primeiro governador-geral da América portuguesa, no qual era tratada a fundação da cidade do Salvador, foram dados os primeiros passos não apenas para a construção da fortaleza e “cidade da Bahia”, que se tornava a sede da administração colonial, mas dera também autorização para propagação do catolicismo não só pelos membros da Companhia de Jesus, mas a todos os colonos, cabendo a eles o dever de facilitar e zelar pela difusão do catolicismo. Foi incentivada uma espécie de espírito cruzadista, como diria Sérgio Buarque de Holanda, no qual os portugueses se imbuíram sinceramente de seu papel missionário40, posicionamento também comentado por Laura de Mello e Souza sobre os católicos lusitanos quando citou em uma de suas obras o posicionamento do padre Antônio Vieira um século e meio após a descoberta da nova terra, defendendo a ideia que: “Os outros homens, por instituição divina têm só obrigação de ser católico, o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico. Os outros cristãos tem obrigação de crer e mais de a propagar’ diz Vieira [...]” 41. Ao mesmo tempo em que a necessidade de evangelização e catequese dos indígenas era incentivada pelos missionários jesuítas, os colonos, de maneira geral, acreditavam que os nativos não passavam de selvagens disponíveis a serem escravizados considerando-os: Para feito de analise, pode-se dizer que, num primeiro nível, o europeu, vê no ameríndio, outra humanidade [...] Gandavo, fala demoradamente sobre a ‘multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda a terra o Brasil’ enfatizando seus caracteres negativos: ameaçam a segurança dos colonos, combatem com armas na mão [...] não pronunciam o F, o L e o R e, por conseguinte não tem Fé, Lei ou Rei, ‘Vivem bestialmente sem ter conta, nem peso nem medida’ [...] 42 Enfim, a diversidade cultural e principalmente religiosa era evidente. O crescimento das enfermidades trazidas pelos colonos levou à morte e desespero 40 HOLA NDA, S ergio B uarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense, 6ª edição, 2ª reimpressão, 2002. 41 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p 31. 42 Idem, p 56. 42 de milhares de índios. As práticas domésticas, as religiosidades, os modos comportamentais sociais e culturais vividos entre os diversos grupos étnicos que compuseram a América portuguesa era cada vez mais evidente e começava a chamar a atenção de uma parte da sociedade cristã-velha dando-lhe os motivos para avançá-lo das garras inquisitoriais. A Bahia por ser a sede administrativa do governo colonial foi a primeira capitania a receber Visitadores do Santo Ofício. E foram muitas as motivações que os trouxeram à Bahia, desde as solicitudes de alguns bons cristãos, os reclames dos jesuítas que insistiam em relatar os maus comportamentos e hábitos dos degredados, da incivilidade dos nativos e da presença de cristãosnovos judaizantes, ou ainda como disse Fernando Gil Portela: [...] as razões para o envio da visitação ao Nordeste brasílico como para a atuação inquisitorial lusa até o século XVIII estiveram presentes elementos comuns, como a perseguição sistemática aos conversos, o ânimo de expandir o catolicismo e a investigação da fé [...] mas há ainda outra explicação, que prefere ressaltar o Santo Ofício – e ai o mecanismo da visita – como instrumento da política colonial 43 Como já foi dito, o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa foi o responsável por cuidar dos casos de heresia e apostasia que surgiram na América portuguesa, pois não houve estabelecimento de um tribunal nas terras do Brasil. Quatro foi o número de Visitações que a colônia brasílica recebeu, além de uma Inquirição ocorrida na Bahia em 1646. A primeira Visitação foi realizada entre 1591 a 1595 e envolveu as capitanias da Bahia, de Pernambuco e de Itamaracá, sob a responsabilidade do Visitador Heitor Furtado de Mendonça. A segunda, entre 1618 a 1620, conduzida pelo Visitador Marcos Teixeira. A terceira, entre 1626 e 1627, realizada pelo Visitador D. Luís Pires da Veiga às capitanias do Sul e ao Rio de Janeiro, teve seus documentos perdidos em um naufrágio 44; e, a quarta e 43 VIEIRA, Fernando Gil P ortela Análise historiográfica da primeira visitação do Sant o Ofício da Inquisição ao Brasil (1591-5) Revista " História, imagem e narrativas", n. 2, ano 1, abril/2006, p.52. Disponível em:< http://www.historiaimagem.com.br/edicao2abril 2006/visitacaosantooficio.pdf> 44 GORE NS TEIN, Lina. A terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XV II). In: VAINFAS, Ronaldo; FE ITLE R, Bruno; LAGE, Lana (orgs.). A Inquisiç ão em xeque: temas, controvérsias, estudos de casos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006. 43 última nas capitanias o Grão-Pará e Maranhão entre 1763 a 1769, realizada pelo Visitador Geraldo José Abranches. Os Visitadores ao chegarem estabeleciam-se no Colégio da Companhia de Jesus, na atual praça soteropolitana denominada já Terreiro de Jesus. De lá publicavam os Éditos de Fé – uma lista composta por todas as culpas que precisavam ser confessadas e denunciadas a fim de extirpá-las. Após essa publicação era concedido um tempo de graça, que consistia no prazo de trinta dias para que toda a sociedade fosse confessar seus desvios para assim terem suas penas abrandadas e seus bens não confiscados. Os crimes menores, como blasfêmias e mesmo de bruxaria, foram sentenciados em mesa do Visitador, sendo atribuídas penitências espirituais e abjuração. Com o findar do tempo de graça, as confissões e denunciações continuavam e a composição e envio de processos a Portugal também. Trataremos, porém, dos casos que envolveram as práticas mágicas ocorridas na capitania da Bahia, especialmente na cidade de Salvador e em seu entorno. Já é de nosso conhecimento que a feitiçaria foi retirada do rol dos crimes considerados graves e que na maioria dos casos os penitenciados foram condenados a degredo para o Brasil, além das penitências espirituais e do ordinário pagamento das custas do processo. Por não ser uma heresia considerada grave, não receberam condenação à morte. A falta de notícias de pessoas queridas deixadas na metrópole, a escassez de alimentos pertencentes à cultura alimentar ibérica, a quase que inexistência de médicos e cirurgiões-barbeiros para tratarem dos enfermos, os encontros com os nativos que se agravavam pelo temor de serem atacados ou devorados pelos indígenas, além dos problemas cotidianos de vizinhança, levaram muitas vezes os colonos a recorrerem à magia para solucionar estas situações proporcionando às bruxas portuguesas terreno promissor para a perpetuação de suas feitiçarias. Ao aportarem na América portuguesa as feiticeiras e bruxas trocaram seus conhecimentos mágicos com nativos e escravos vindos da África. Assim as associações e interlocuções entre conhecimentos de ervas e rituais confluíram 44 entre todas as culturas mágicas daqueles que aí residiram, dando lugar, mais tarde, à cultura religiosa popular e mágica brasílica, como diria Laura de Mello e Souza. Assim vejamos como as Visitações ocorreram na cidade da Bahia e no Recôncavo baiano e de que maneira os praticantes mágicos e seus usuários foram confessar e denunciar suas práticas. 2.1. As Visitações e feitiçaria na Bahia 2.1.1. A Primeira Visitação O visitador do Santo Ofício de Lisboa Heitor Furtado de Mendonça chegou ao Colégio dos Jesuítas em 1591 e junto com o notário Manuel Francisco iniciam a primeira Visitação à capitania da Bahia, compreendendo esta a cidade do Salvador e a região do Recôncavo. Foi afixado o Édito de fé e em seguida estabelecido o tempo de graça concedido tanto para a cidade de Salvador, em 1591, quanto para o Recôncavo, em 1593. Dezenas de pessoas chegaram à mesa do visitador para confessar suas culpas, pedir perdão ou denunciar seus vizinhos, amigos e parentes por praticarem alguma das heresias arroladas. Estes testemunhos ficaram registrados nos Livros das Confissões e Denunciações da Primeira Visitação. Além das culpas já citadas também foram penitenciadas as gentilidades e superstições heréticas, crimes considerados leves geralmente punidos com penitências espirituais e abjuração. “Gentilidades” foram a designação atribuída às práticas religiosas indígenas classificadas pela Igreja e pela Inquisição como atos supersticiosas e de feitiçaria que também estavam passíveis de penitência. Não podemos confundir gentilidades com a Santidade de Jaguaribe, seita ameríndia de caráter sincrético que ocorreu na região de Jaguaribe entre 1570 a 1590, caracterizada pelo culto a divindades cristãs associadas a elementos e rituais indígenas. Encontramo-la também no Sertão e no Recôncavo baiano nas proximidades da região do Matoim. Em Matoim, vestígios desta religiosidade é 45 presente nas denúncias registradas no processo inquisitorial contra o mameluco Manuel Branco durante a Primeira Visitação a Bahia. Desvio da fé católica que o levaram a ser processado pelo Tribunal do Santo Ofício como feiticeiro aos 24 anos de idade. 45 No entanto, as feitiçarias realizadas na Bahia colonial confessadas e denunciadas ao visitador Heitor Furtado de Mendonça foram -na também em território metropolitano por mulheres e homens cristãos -velhos que usaram orações e evocações aos santos, bem como de elementos da natureza para obtenção de sucesso pessoal ou do grupo a que pertenciam – como identificados nas investigações dos historiadores Francisco Bethencourt e José Pedro Paiva, os quais concluíram que em Portugal moderno a magia era também resultado da confluência cultural entre brancos e negros escravos, embora fossem principalmente as mulheres lusitanas as que com maior frequência aprenderam a realizar magia com seus cativos africanos para a resolução de problemas, sobretudo os ligados à saúde do corpo e da alma. Assim, muitas pessoas usaram de artes mágicas. Vejamos aquelas que confessaram e denunciaram suas práticas durante a Primeira Visitação observando não apenas os motivos que as levaram a praticar a magia, mas sua condição socioeconômica na emergente sociedade baiana colonial. Nesta Visitação, três mulheres confessaram usar da magia. Duas delas eram cristãs-velhas e a outra não sabia se era cristã-velha ou cristã-nova. Todas declararam que recorreram à magia por estarem sofrendo. Em suas confissões relataram que deveriam fazer feitiços tendo como motivação a prosperidade afetiva, seja para a conquista de amores, “amansar” maridos, isto é, para que os seus maridos as quisessem bem e fossem mais carinhosos com elas; o que deixa provável que as mulheres de maneira geral não tinham boa vida matrimonial, reflexo de uma sociedade patriarcal. 45 46 IANTT-IL Processo nº 11072. PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: c ondição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993.. 46 46 Paula de Siqueira, ainda quando morava em Portugal, já realizava magias. Esta cristã-velha veio para a Bahia para acompanhar seu marido, Antônio de Farias, ocupante do cargo de contador da Fazenda del’rei. Foi processada por duas vezes no tribunal do Santo Ofício de Lisboa sob a acusação de sodomia e leitura de livros proibidos 47 e foi também à mesa do Visitador para confessar culpas do uso de magia objetivando resolver problemas amorosos, entretanto parece que a acusada queria direcionar suas culpas para o uso de feitiçaria, pois as penalidades para tal heresia não eram tão graves quanto a dos crimes de sodomia e leitura de livros proibido. Na confissão, Paula afirmou que quando chegou à Bahia continuou a fazer uso de feitiços e sortilégios devido à necessidade de melhorar seu casamento. Pediu perdão à autoridade inquisitorial, arrependeu-se por ter recorrido a forças sobrenaturais, afirmou que nunca fez pacto demoníaco para alcançar suas benesses, nem tão pouco pagou para a prática da feitiçaria. Assegurou que adquiriu conhecimentos mágicos trocando informações e experiências com amigas.48 Outra cristã-velha que confessou fazer uso de feitiços foi Guiomar de Oliveira49, esposa do sapateiro Francisco Fernandes. Em 1591 foi à mesa do visitador confessar suas culpas e denunciar a feiticeira Antônia Fernandes igualmente conhecida como a Nóbrega, que dizia ser feiticeira diabólica. Guiomar recorreu à magia para também resolver problemas de ordem amorosa fazendo com que seu marido a amasse mais. Para isso foi instruída a dizer durante o ato sexual, à boca de seu esposo, palavras sagradas usadas na consagração da hóstia na missa como hoct est enim corpus meum, cujo significado é “este é o meu corpo”. Mas a confessante não se deteve aí. Agregou-se a esta comum motivação entre as mulheres da colônia uma negociação de feitiço destinado a resolver a quitação de uma dívida, o que torna bastante provável que o casal estivesse passando por necessidades financeiras. 47 IA NTT-IL Processo n^s 3306 e 3307. VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p 104 -114. 49 Idem, p 132-140. 48 47 Guiomar pediu à Nóbrega para fazer um feitiço na intenção do esquecimento de uma dívida de aluguel por parte do proprietário da casa em que ela a confessante morava com seu marido. Segundo sua confissão, o resultado da feitiçaria foi positivo, mas pediu perdão e jurou que não mais utilizaria da magia para resolver seus problemas. Ela não foi processada pela Inquisição. A última confidente que encontramos no Livro das Confissões da Primeira Visitação foi Catarina Froes50. Personagem sobre quem quase nada sabemos por não revelar sua origem étnico-religiosa (seria cristã-nova temente a um processo por criptojudaísmo e não feitiçaria?), não dizer se era ou não casada, nem como conseguia dinheiro para viver e pagar os negócios de magia. Catarina confessou o contato que teve com Maria Gonçalves Cajada, feiticeira diabólica assim considerada por ter pacto com o diabo e com ele falar, também conhecida como Arde-lhe-o-rabo. Contou que a pedido de suas duas filhas, pelo menos duas vezes negociou feitiços contra seus genros. Seu primeiro objetivo com a feitiçaria era a morte de seu genro Gaspar Martins. Não levou adiante o feitiço, pois a bruxa “Arde-lhe-o-rabo” pediu mais dinheiro; depois voltou a solicitar outro feitiço a fim de que seu outro genro Antônio Dias quisesse bem sua mulher, ou seja, a sua filha, pois, segundo Catarina ele a maltratava; esta negociação foi adiante e teve bom resultado. No entanto, a confessante pediu perdão e prometeu não mais fazer uso de magia, aliás, como Guiomar de Oliveira. Será que elas mantiveram esta promessa? Questão que jamais poderemos responder. Durante a Primeira Visitação chegaram à mesa do visitador cerca de 31 pessoas para delatar práticas e praticantes de magia, sendo denunciados cerca de quinze praticantes de feitiçaria e quatro deles foram notadamente denominados como feiticeiros: Maria Gonçalves, Antonia Fernandes, Isabel Rodrigues ou Roiz, D. Mercia Pereira Certamente a mais conhecida das bruxas da capitania da Bahia em fins do século XVI foi Maria Gonçalves Cajada – já citada e conhecida como Arde-lhe-o- 50 VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras,. p 120-121 48 rabo. Ela foi descrita nos livros das Confissões e Denunciações a Bahia como uma mulher vagabunda, que nunca casou, que dormia e tratava com o Diabo, tendo mesmo a posse de um demônio familiar para auxiliá-la na prática de magia. Contudo, em seu processo desenvolvido quando já estava presa nos cárceres do Tribunal de Lisboa, ela disse ser casada com o marinheiro Gaspar Pinto, natural de Estremoz, cristã-velha moradora em Aveiro e que foi para a Bahia na condição de degredada pelo crime de feitiçaria, entretanto não encontramos o processo referente ao degredo para o Brasil. . Maria Gonçalves Cajada era consultada e negociava com muitos moradores da cidade de Salvador e do Recôncavo. Maria da Costa, cristã-velha, natural de Braga e residente em Salvador, casada com o mercador de loja Álvaro Sanches, denunciou-a por ser feiticeira diabólica corroborando o fato de que a mãe da denunciante tinha certeza que “Arde-lhe-o-rabo” podia fazer algo para seu irmão obter o perdão de um crime cometido, sobre o qual nada foi dito. Outra denunciante de Maria Cajada foi a cristã-velha Isabel Monteiro Sardinha 51, sua inimiga, esposa do lavrador Estevão Gomes de Centeio. Disse que a Cajada veio para a Bahia degredada por feitiçaria. A esposa do marinheiro Gaspar Roiz, a cristã-velha Catarina Fernandes outra delatora de Arde-lhe-o-rabo, sua vizinha, chegou à Bahia também degredada, mas por assassinato de um homem. Por meio de um Domingos Gonçalves, Catarina descobriu que Maria Cajada negociava feitiçaria com várias pessoas e pediu para que Isabel Rodrigues lhe desse um recado suspeito, denunciando -lhe assim por feitiçaria diabólica. A lisbonense Catharina Quaresma 52, quem também não sabia se era cristãvelha ou cristã-nova, solteira, foi convocada para comparecer à Mesa do Visitador. Lá, foi perguntada se sabia alguma coisa sobre a “Arde-lhe-o-rabo”, ao 51 Preferimos atualizar a grafia dos textos e dos nomes próprios para facilitar a leitura da dissertação. Assim, todas as citações de processos se farão com a at ualização gráfica. Primeira Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heit or Furtado de Mendonç a. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado. p 287. 52 Primeira Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 255. 49 que respondeu que ouvia dizer ser ela tida por feiticeira diabólica, embora acreditasse ser calúnia da vizinhança, pois conviveram durante alguns meses quando Cajada esteve hospedada em casa de sua mãe. Casada com um almotacel cristão-novo, Antônio Roiz Villa Real, Violante Carneira53 processada pela Inquisição pelo crime de feitiçaria, também denunciou Maria Gonçalves Cajada dizendo que em 1588 esta foi à sua casa e confessou ser feiticeira diabólica, mostrando-lhe uma chaga em um de seus pés da qual, segundo a feiticeira, todo dia tirava um pedaço de carne do pé para dar ao Diabo, e que se ela – a bruxa – quisesse faria o que queria com auxílio dos diabos. A cristã-velha Isabel Antoniane 54 delatou Maria Cajada afirmando que dois meses antes da chegada do Visitador Heitor Furtado abrigou-a em sua casa e Cajada lhe disse que portava um vidro onde trazia um demônio familiar. Outra feiticeira bastante denunciada durante a Primeira Visitação foi Antônia Fernandes 55, conhecida também como “A Nóbrega”, de quem já falamos, mulher que dizia ser cristã-velha, viúva do ex-dispenseiro das Armadas de Lisboa, que não sabemos ao certo seu nome, e foi moradora em Lisboa onde teve uma taverna em que sua própria filha trabalhava. A Nóbrega veio para a Bahia degredada por alcovitar e aqui se abrigou em muitas casas nas quais ajudavam as mulheres com ensinamentos mágicos para que elas resolvessem seus problemas, sobretudo os ligados ao casamento. Antônia Fernandes ou “a Nóbrega” foi denunciada por várias pessoas. Dentre eles está o lavrador cristão velho, João Ribeiro 56, casado com Luiza Pereira e morador na Freguesia de Paripe. Ribeiro denunciou-a por ser feiticeira e ter-lhe oferecido seus serviços mágicos para promover a benquerença e que, segundo a própria Nóbrega, sua filha também tinha o ofício de feiticeira. 53 Primeira Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 425. 54 Isabel Antoniane era natural do Porto, solteira e foi degredada para a Bahia acusada sodomia: Primeira Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado,1925, p 431. 55 Não encontramos seu processo em busca no ac ervo online do Arquivo Nacional da Torre Tombo. 56 Primeira Visitação do Sant o Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 423. de de de do de 50 Foi Guiomar de Oliveira – já citada – quem certamente mais utilizou dos préstimos de Antônia Fernandes. A feiticeira chegou a oferecer a Guiomar um demônio familiar para auxiliá-la nas práticas. Além de estar disposta a ensinar-lhe seus conhecimentos mágicos por gratidão ao abrigo que dela havia recebido. Mas que Guiomar afirma não os ter aceitado e por esta oferta expulsou a “Nóbrega” de sua casa, vendo-se obrigada a denunciá-la na ocasião da Visitação. Guiomar afirmou que a filha de Antônia era feiticeira diabólica em Portugal e que ela também tinha um demônio familiar de nome Baul. A “Nóbrega” guardava-o em um vidro e quando necessitava de sua ajuda chamava-o e ele saia do vaso em figura de homem. Todavia, para possuí-lo e mantê-lo vivo deveria cuidar bem da “coisa” que estava dentro do vidro dando-lhe alimentos como cebola. Não existe registro de confissão de Antônia Fernandes durante a Primeira Visitação à Bahia, pois segundo seus denunciantes ela soube da chegada do Santo Ofício e fugira da cidade. A “Boca Torta”, alcunha de Isabel Rodrigues 57 foi também uma das mulheres mais solicitadas quando se tratava de assuntos mágicos. Casada com Cristóvão de Bairros, veio degredada do Reino por feitiçaria, e dizia ela mesma que era feiticeira diabólica tendo o poder de fazer o que quisesse com o auxílio do diabo. Maria de Gois 58, cristã-velha, natural da Bahia e residente em Itaparica, casada com o lavrador Estevão Gomes Varella, denunciou a Boca-Torta por ser de fama pública ela dizer que em Lisboa fazia feitiçarias e se dizia pactuada com o Diabo. Disse também que em 1581 viu a feiticeira à noite no caminho da Villa Velha fazendo feitiçaria em companhia de outras duas mulheres e depois disso viu-as em figura de pata. Isabel Antoniane, já citada, também denunciou a “Boca Torta”, pois ela havia emprestado um dinheiro a um amigo seu de nome Francisco Roiz, que 57 Não encontramos seu processo em busca no ac ervo online do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 58 Primeira Visitação do Sant o Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 412. 51 queria um feitiço para conseguir contrair matrimônio e depois descobriu que o dinheiro era para pagar o serviço da bruxa, razão que a levou a denuncia-la à Mesa do Visitador. Mércia Pereira também foi outra acusada de feitiçaria e muito conhecida por aqueles que recorriam à magia, pois foi bastante denunciada, e diziam ser cristã-velha, casada com Francisco de Araújo e moradora em Salvador. Custodia de Farias59, outra cristã-velha casada com Pero d’Aguiar d’Altero, disse que Mércia estava em companhia da feiticeira Isabel Rodrigues em uma noite no caminho da Villa Velha fazendo feitiçaria e estava em figura de pata, porém ela denunciante não vivenciou o fato, pois ela ouviu dizer de uma amiga por nome Beatriz de Sampaio o acontecido. Aqui a figura da pata reincide no imaginário colonial. Assim também disse Maria de Góis – já citada – e Isabel de Pandales60, moradora no Monte Calvário, casada com Duarte de Gois Mendonça. Isabel disse que segundo o cura da Villa Velha viu em 1581 no caminho da Rua de São Sebastião ou de Água de meninos a Mércia e outras mulheres que não conseguiu identificar em figura de pata fazendo feitiçarias. Obviamente que não foram apenas essas quatro mulheres as encarregadas de realizar e transmitir os conhecimentos e práticas de magia na cidade da Bahia e seu entorno. No entanto, foram elas as que com maior frequência foram denunciadas. Porém, existem alguns casos que não há registro nos Livros das Confissões e Denunciações, por não terem ido à Mesa do Visitador ou por ter-se perdido ao longo do tempo, mas que geraram processos inquisitoriais pelo Tribunal de Lisboa como o caso do mameluco Manuel Branco 61, de 24 anos de idade, solteiro, natural da Bahia e residente na região do Matozinhos, que dizia viver de sua indústria de místico na região do Recôncavo baiano. Manuel foi penitenciado por praticar feitiçaria, mas não constam registros 59 Primeira Visitação do Sant o Of ício às partes do Brasil pelo licenciado H eitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 479. 60 Idem, p 539. 61 IANTT-IL Processo nº 11072 52 seus nos livros da Primeira Visitação. Porém, ao analisarmos seu processo não identificamos nenhuma prática de feitiçaria e sim ter participado da seita Santidade, ocorrida nas terras de Francisco Cabral de Atayde em Jaguaribe, Recôncavo baiano. Relacionamos os denunciantes e seus denunciados chamando a atenção para a localidade onde residiram e a qual grupo étnico pertenciam chegamos à conclusão que a maioria dos acusados de feitiçaria residia na cidade de Salvador, pelo menos foi o que nos mostrou os livros de confissão e denunciação da Bahia durante a Primeira Visitação. Assim também concluímos que foram, sobretudo as mulheres cristãs-velhas as que mais usaram da magia. Em apêndice, organizamos uma lista contendo estes denunciantes e denunciados: Quadro 1 - Dos acusados de praticarem ou solicitarem serviços de magia XV Mulheres em Mulheres no Homens no Homens em Salvador Recôncavo Recôncavo Salvador oito quatro dois cinco XN um Mameluco dois Cigano um dois Negro Não sabia dois dois dois E apesar de não tratarmos especificamente da segunda Visitação apresentaremos alguns casos que achamos pertinentes e indispensáveis para compor nossa dissertação, já que foi segundo momento de maior fiscalização da Inquisição na presença de um visitador do Santo Oficio, porém lembramos que houve ainda outro momento de maior fiscalização inquisitorial conhecido com A Grande Inquirição que ocorreu em 1642 e que destinou suas garras apenas para os casos de criptojudaismo e, por conseguinte, não trataremos aqui. 53 A Segunda Visitação foi realizada por D. Marcos Teixeira, entre 1618 e 1620. Atendendo ao protocolo inquisitorial, foram afixados os Éditos de fé, seguido do estabelecimento do tempo de graça, que assim como na primeira Visitação levou confessores e denunciantes à mesa para apontar as culpas que fossem tocantes ao Santo Ofício. As culpas de feitiçaria também aqui foram arroladas. Seis pessoas confessaram o uso de magia, a maioria realizada por homens que afirmaram fazer seu uso principalmente para adivinhar onde estavam objetos ou pessoas perdidas e curar doenças. Assim, os homens passaram a solicitar com maior frequência os préstimos mágicos, mas não apenas como usuários e clientes. Eles, neste momento, também eram os feiticeiros, sobretudo os escravos africanos que por meio da adivinhação resolviam problemas dos moradores em Salvador e em seu entorno. Quatro pessoas foram acusadas a usar feitiçaria durante a Segunda Visitação. Pero de Moura 62, cristão-velho, morador em Salvador, foi acusado de praticar feitiçaria. Ele recorreu ao feiticeiro Francisco Cucana, negro natural de Pirajá, e morador em São Thomé para que este o ensinasse um feitiço para ajudar a curar seu irmão Paulo Correa que estava doente. O barbeiro Francisco Nogueira 63, morador na Rua Direta do Colégio dos Jesuítas era cristão velho, também foi acusado de feitiçaria. E para encontrar dois de seus escravos que haviam fugido solicitou uma adivinhação de outro negro que era dos padres do Mosteiro da Sé, realizado por meio de água; logo foi sabido onde os negros que haviam fugido estavam. Francisco Nogueira também denunciou um negro torto de um olho de André de Freitas, capitão do campo, que morava em Salvador e que era de conhecimento público que o negro fazia adivinhação por meio de feitiçaria. Assim 62 FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (orgs.). Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificaç ões da Bahia, 1618-1620, Anais do Museu Paulista, v. XVII, 1963. 63 Idem, p 453 54 como também denunciou outro negro dos padres do Mosteiro de São Francisco pelo mesmo motivo. Acusado de realizar feitiços foi Antônio da Costa 64, que residia na Rua de São Bento. E para saber que tipo de doença sua filha estava recorreu à magia, solicitando a Ana Coelho que fizesse uma adivinhação para saber como tratar a menina. Além de ter pedido à mesma feiticeira para que ela encontrasse pares de meias que ele havia perdido, para curar um negro e para ter notícias do Reino. E Maria de Penhosa 65, que também era moradora na Rua de São Bento e era cristã-velha. Fez feitiço com D. Maria e Barbara Gudinha que por meio de adivinhação fosse descoberto quem furtou seus pertences. Ainda usou feitiços para que um homem a quisesse bem. Aproximadamente seis pessoas chegaram à mesa do visitador para denunciar praticantes de magia. Sendo Anna Coelho e dois negros vindos da Guiné os feiticeiros que mais se destacaram na documentação dos livros da Segunda Visitação. Apesar de ser um padre, Balthesar Pitta de Cascongoncellos 66 foi denunciado por prometer realizar uma feitiçaria, levando João Gonçalves , cristãovelho, solteiro e morador em Salvador à mesa do visitador: e disse o denunciante que viu o padre ameaçar um cão dizendo que se o animal sujasse a rua ele, o padre, iria lançar um feitiço no animal, mas que o pároco tinha hábito de beber, sugerindo que seu vizinho só falava certas coisas quando estava embebedado. Sebastião Barreto67, cristão-velho, lavrador de cana, e morador do Recôncavo denunciou dois negros vindos da Guiné que era de conhecimento de todos que faziam atos supersticiosos à noite com sacrifícios de animais e 64 FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Sant o Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia, 1618-1620, Anais do Mus eu Paulista, v. XV II, 1963, p 448. 65 GARCIA, Rodolfo (org.). Livro das denunciações que se fizeram na Visitação do S anto Ofício à cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos do estado do Brasil no ano de 1618. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 49, 1927. p 456. 66 Idem, p 197-198. 67 Idem, p 179. 55 untavam seus corpos com sangue e por isso achou suspeito e diabólico e foi à mesa do visitador denunciar. A seguir quadros étnicos dos que confessaram e denunciaram uso de magia na cidade de Salvador e no recôncavo: Diferente do que aconteceu no final do século XVI, a documentação da Segunda Visitação nos mostrou a maior parte das denúncias e dos acusados de praticar feitiçaria residente no Recôncavo Baiano. Observamos também que foram especialmente os homens negros escravos aque les que utilizaram da magia com maior frequência, seja para uso pessoal ou em benefício da comunidade em que vivia, seja para auxiliarem nas mazelas de seus senhores. Em apêndice, apresentamos uma lista contendo alguns dos denunciantes e denunciados. Quadro 2 Dos acusados de praticarem ou solicitarem serviços de magia Mulheres em Mulheres no Homens no Homens em Salvador Recôncavo Recôncavo Salvador XV 1 - 2 2 XN - - Mameluco - - Cigano - 1 Negro - - 2 - Não sabia - - - - - - Assim chegaram à mesa inquisitorial entre os fins do século XVI e início do século XVII nove pessoas que confessaram fazerem uso da magia para sanarem problemas, seja de ordem afetiva, social e/ou econômica. Foram cerca de quarenta pessoas que denunciaram práticas e feiticeiros. E apesar de não haver mais Visitações direcionadas à Bahia durante todo o tempo de funcionamento da Inquisição portuguesa surgiram culpados de práticas heréticas de feitiçaria e de outras culpas até o término da Inquisição. 56 CAPÍTULO II. A MAGIA, O OFICIANTE E O USUÁRIO: SUAS RELAÇÕES SOCIAIS NA BAHIA Viver nas terras do Brasil não deveria ser tarefa muito fácil, sobretudo para os colonos que estranharam as novas condições de vida na América portuguesa. Os conquistadores se queixavam da “selvageria” dos nativos, da dificuldade para encontrar alimentos que agradassem o paladar português, do assolamento de doenças tropicais, além de esparsa atuação da Inquisição ocorrida antes da Primeira Visitação, sob os auspícios de bispos, os quais vez por outra mandavam cartas à Coroa queixando-se dos maus comportamentos dos colonos, e da necessidade de fiscalização dos recém-evangelizados indígenas. Ao final do século XVI, a América portuguesa também passou a ser vista como uma espécie de purgatório, pois quando cometidos crimes tanto na esfera da justiça secular – culpas de adultério, assassinatos e causadores de perturbar a ordem pública – ou os culpados de heresia pelos tribunais de Santo Ofício, caso dos acusados em bruxaria e feitiçaria, por exemplo. Todos esses penitentes poderiam vir cumprir/purgar suas sentenças no Novo Mundo 68. Deste modo e além da presença desses degredados, dos colonos insatisfeitos com a presença dos nativos e dos novos hábitos de vida na América portuguesa levaram alguns dos residentes da capitania da Bahia a procurarem auxílio mágico como subsídio para sanar seus problemas cotidianos. Desta forma, a feitiçaria para fins de cura de doenças espirituais e físicas, bem como as feitiçarias direcionadas para melhoramento ou ruína dos assuntos ligados à afetividade foram as práticas que com maior frequência se realizaram na cidade de Salvador e em seu entorno e que assim como em Portugal, foram também as mulheres as que com maior frequência utilizaram. Os contatos sociais ocorridos entre feiticeiros e usuários de magia - ou clientes – poderiam acontecer a partir da convivência nas ruas da cidade, por 68 Mas, não apenas na América portuguesa eram despachados esses “criminosos”; esses sentenciados também podiam cumprir suas penitências nas colônias da África ou ir para as galés. 57 meio da vizinhança ou por meio de negociações de serviços de magia que podiam ou não ter na vizinhança alicerce, sendo este tipo de relação a maioria dos casos de contato entre oficiante e usuário de magia, afirmando a ideia de Émile Durkheim, ao dizer que: O mágico tem uma clientela, não uma igreja, e seus clientes podem perfeitamente não manter entre si nenhum relacionamento, ao ponto de se ignorarem um ao outro, mesmo as relações que se estabelecem com o mágico, são, em geral, acidentais e passageiras, são em tudo semelhantes à de um doente com seu médico69 No entanto, mostraremos que mesmo sendo as negociações financeiras o tipo de contato mais conhecido do universo mágico envolvendo feiticeiros e usuários (e neste caso clientes) de magia, nesta dissertação apresentamos outras maneiras de sociabilidade entre esses indivíduos, principalmente no que tange às relações de vizinhança e amizade que foram frequentes e que muito contribuíram para a convivência na cidade da Bahia e no Recôncavo em fins do XVI e início do XVII. 1. Os tipos de contatos sociais e a magia na Bahia Em fins dos quinhentos, a cidade de Salvador estava constituída por duas praças: a do Terreiro de Jesus e a praça da casa dos governadores, além de três ruas que ligavam a Igreja da Sé e o Terreiro e o mosteiro de São Bento. Na praça principal estavam a Casa do Governo ou Casa de Camará e Cadeia, a alfândega e as igrejas de Nossa Senhora d’Ajuda e a Sé. No início dos seiscentos, a cidade passou a ser dividida em cidade alta, que compreendia as ruas do Mosteiro de São Bento, a Palma, o Desterro, a Saúde e Santo Antônio além do Carmo e em cidade baixa composta pelo bairro da praia e rua direta da Ribeira das Naus e das casas comerciais.70 69 DÜRKHE IM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo, Martins Font es, 1996. p. 28. 70 AZEVEDO, Thales. Povoamento da cidade de Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal, 1949. TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 11 ed. Bahia: Edufba, 2008. 58 O crescimento da cidade era contínuo, os desbravamentos do recôncavo e do sertão da Bahia foram realizados pelos colonos que se apropriavam de terras para a construção de seus engenhos de açúcar e criação de gado, aumentando suas posses e para isso muitas comunidades indígenas foram expulsas violentamente 71. E, em fins dos quinhentos o Recôncavos da Bahia era divido pelas áreas de Passé, Matoim e São Francisco do Conde. A população da capitania da Bahia era bastante diversificada e crescente, como já é de conhecimento de todos, e por ser a sede do governo administrativo, militar e religioso – já que a igreja da Sé estava localizada dentro da cidade – Salvador tinha um cotidiano eminentemente urbano, se comparado às regiões do recôncavo e do sertão. Os colonos que residiam na “cidade da Bahia” exerciam profissões de ofício como mercadores, sapateiros, barbeiros, alfaiates, costureiras e cargos públicos, como juízes, vereadores, alcaides, meirinhos, dentre outras atividades. A sociedade da Bahia que neste momento estava em formação era diversificada em termos étnicos, culturais e religiosos – mesmo sendo proibidas as religiosidades não católicas, como o judaísmo, o luteranismo, e as feitiçarias realizadas por europeus, africanos ou indígenas -, mas, que até a chegada dos visitadores, os colonos viviam em certa harmonia, principalmente entre eles, prova disso são os casamentos entre cristãos-velhos e cristãos-novos. As relações entre colonos e nativos foram desde o início do processo colonizatório complicado, pois os europeus enxergavam os ameríndios como seres selvagens que precisavam ser submetidos a um processo de civilização, que apenas o cristão português poderia executar tal tarefa vista por muitos colonos como divina. Os colonos e suas relações com os africanos talvez seja a menos complexa de ser entendida, ao menos nesse primeiro século de colonização, já que os africanos que chegavam ao Brasil vinham na condição de cativos. Entretanto, e como veremos adiante em alguns casos, esses escravos foram 71 TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 11 ed. Bahia: Edufba, 2008. 59 chamados por seus senhores ou por outros senhores para que fossem resolver seus problemas de saúde, ou para que fossem dizer onde tal coisa ou pessoa perdida se encontrava. Os africanos e mesmo os indígenas realizavam atividades domésticas, já que não havia fazendas e engenhos de açúcar dentro da cidade. Além dos eclesiásticos - geralmente vindos de Portugal para a prática missionária - que também visitavam as regiões mais recônditas da capitania, mesmo que realizadas de tempos em tempos. A feitiçaria foi uma prática comumente realizada por alguns indivíduos pertencentes a todos os grupos sociais que compunham a Bahia durante todo o período da colonização. De acordo com nossas pesquisas nos Livros das Confissões e Denunciações, as primeiras feiticeiras do Brasil não eram nascidas nesta terra, elas vieram de Portugal já degredadas pela Inquisição sob o crime de feitiçaria e cumpriam suas penitências na América e ao chegarem ao território luso-americano continuavam realizando suas práticas E é com esse cenário de crescimento demográfico e extensão de domínio territorial que em 09 de junho de 1591 chegou à cidade de Salvador o licenciado e visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendonça em companhia do então governador da capitania da Bahia D. Francisco de Sousa para dar início aos trabalhos inquisitoriais, publicando os éditos de fé e sendo concedido em 28 de julho o tempo da graça, momento em que era dado um prazo de 30 dias para a população confessar suas culpas de livre e espontânea vontade na mesa do visitador, este tempo tinha o objetivo de levar as pessoas a confessarem suas heresias e em retribuição a sua boa vontade em delatar e confessá-las não seriam atribuídas penitencias severas, nem tão pouco o confisco de bens. Muitas foram as denúncias e confissões de culpas q ue chegaram à mesa do visitador por crimes já relatados em capítulo anterior. Também foram diversos os motivos que levaram as pessoas a irem delatar tais culpas, seja por estarem em desacordo com a doutrina católica e por isso estavam temerosas em serem denunciadas por inimigos, vizinhos, parentes ou rivais, seja para se livrar de possíveis acusações. 60 A partir da leitura e análise dos livros das confissões e denunciações referentes às Visitações do Santo Ofício que se fizeram na Bahia, observamos que os residentes da cidade de Salvador de maneira geral se conheciam, mesmo que de ouvir falar e conviviam cotidianamente, já que o tamanho geográfico era relativamente pequeno. Quase todos os contatos sociais entre feiticeiros e clientes ou usuários de magia eram fruto de vizinhança. De maneira geral, as casas de populares eram feitas de barro cobertas com palhas e por meio de suas frestas tudo podia ser visto ou ouvido pela vizinhança. A proximidade entre uma casa e outra era também um dos fatores que facilitaram a curiosidade alheia, assim a privacidade era praticamente inexistente. Tornando a vida na colônia ainda mais difícil, pois nem dentro de suas próprias casas as famílias tinham como realizar suas particularidades. O que não quer dizer que não praticavam suas intimidades 72. Por meio da bisbilhotice que se descobriam os segredos a serem desvendados na mesa inquisitorial. A existência de objetos proibidos como os livros censurados, a forma como se varria a casa, a higiene do corpo, os modos alimentares, tudo era constantemente fiscalizado pelos próprios vizinhos de uma determinada rua. E como em qualquer sociedade tudo era comentado na rua ou viela onde residiam. O burburinho foi uma constante na sociedade da Bahia colonial. As pessoas sempre se remetiam a fatos que muitas vezes não conheciam, só sabiam por que ouviram falar, relatado por pessoa considerada idônea ou não. O fato é que qualquer que fosse o assunto as pessoas comentavam, opinavam e, caso fosse necessário, denunciavam quando se sentiam ameaçados ou quando queriam se vingar de inimigos, principalmente quando a suspeita poderia se transferir para o delator. Isto é, era melhor que o indivíduo denunciasse alguém por qualquer que fosse a prática herética, mesmo que aparentemente banal do que ser o próximo a ser denunciado. 72 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Front eira, 1997. 61 Portanto, foi especialmente por meio dos falatórios que dezenas de pessoas foram acusadas, sentenciadas e penitenciadas pelos tribunais da Santa Inquisição, que se baseava na delação e na confissão espontânea ou imputada aos cristãos. E são esses contatos, sobretudo as relações ocasionadas pela vizinhança, que trataremos neste capítulo. Classificamos em dois os tipos de relações sociais em que estiveram envolvidos praticantes e usuários da magia na Bahia colonial, sendo elas: As relações de vizinhança Que podiam ter base na amizade – mesmo que posteriormente se transformasse em inimizade e antipatia – caracterizada pela sociabilidade entre os residentes de uma mesma rua, na qual os feiticeiros ensinavam encantamentos para aqueles que consideravam amigos tornando-os algumas vezes aprendizes de magia, sem qualquer tipo de remuneração. As negociações financeiras Na qual o serviço de magia era comercializado em troca de dinheiro, mantimentos e objetos de uso pessoal. Que podiam ou não ser realizados entre vizinhos, podendo o contato entre ambos ser cessado após a conclusão do serviço, geralmente este tipo de serviço era caracterizado pela feitura de feitiços diabólicos. Advertimos que os murmurinhos não estavam restritos ao meio urbano. No Recôncavo também se falava da vida alheia e não era restrito aos rumores oriundos dentro das fazendas, ao contrário, muito se sabia do que se passava na cidade, pois havia pessoas que migravam para estas regiões seja por conta de prestações de serviços, da venda de mercadorias, seja na tentativa de fugir dos olhos inquisitoriais. Os residentes do Recôncavo sempre que necessário se comunicavam com a capital e vice-versa. 62 As relações de vizinhança Catarina Fernandes 73, cristã-velha, moradora na freguesia da Sé Monte Calvário, denunciou e disse que era vizinha de Maria Gonçalves, também conhecida como Arde-lhe-o-rabo e a pedido de outra vizinha, Domingas Gonçalves, auxiliou na negociação de feitiços para outros vizinhos: Domingas Fernandes e João Rolin. Não trataremos aqui da negociação, deixando para apresentar no próximo item já que se tratou também de uma relação financeira. Outro contato comum aos vizinhos eram os envolvimentos amorosos e sexuais. São relatados casos em que os homens dizem que mulheres tidas ou não por serem feiticeiras falavam palavras sagradas na boca do amante durante o ato sexual. Em geral era a expressão hoct est enim corpus meun, que traduzida para o português queria dizer este é o meu corpo. Como na denúncia de Gaspar de Góes74, que disse ser cristão velho, procurador do número e afirmou que há mais ou menos quinze anos, quando ele ainda era solteiro teve “conversação desonesta” com Margarida Carneira, disse ter ouvido a mulher falar as palavras e que seu sogro há pouco tempo também passou pela mesma situação com a Margarida, Gaspar também relata que a denunciada disse que tinha cartas de tocar e que se precisasse ela usaria para que ele a quisesse bem 75. Além do caso de Paula de Sequeira 76, cristã-velha, que foi processada por sodomia e por leitura de livro proibido, mas que foi ao visitador também relatar suas culpas relacionadas à magia, caso já tratado no capitulo I. Salientamos que Paula tinha muitas amigas e vizinhas que frequentavam cotidianamente sua casa. E disse que Isabel Rodrigues lhe ensinou as palavras de consagração da hóstia – já ditas – para que seu marido a amasse mais e que a Boca-torta também lhe deu uma carta de tocar, mas que não fez uso e a deu para Mércia Dias. 73 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p. 298-300. 74 Idem, p 311-312 75 Idem p 311 76 Sodomia era a designação atribuída ao ato sexual anal seja entre pessoas do mesmo sexo ou não e era condenado pela Igreja. 63 Paula foi uma mulher muito conhecida na cidade de Salvador por ter se envolvido afetivamente e sexualmente com algumas mulheres, especialmente com a também processada pela Inquisição Felipa de Souza, ao que parece elas tiveram um relacionamento que atualmente podemos chamar de homoafetismo, ou seja, elas tiveram um romance homossexual, o que para a época era considerado crime de sodomia. Mas em nossa dissertação não daremos enfoque a este outro processo de Paula, já que estamos tratando das relações sociais que ela teve por conta do uso de magia. Mas será que a denunciante recorreu à magia para despistar seus envolvimentos homossexuais? É uma questão que nunca iremos elucidar, mas tudo indica que seja bastante provável. No Recôncavo, citamos a denúncia feita por Joan Brás, cristão-velho, carpinteiro e morador em Barra do Jaguaribe, que foi à mesa do visitador e denunciou Lázaro Aranha, mameluco e morador em Camponengo em Parabasu, o qual, segundo Antônio da Costa, também mameluco, vizinho do Joan, disse que Lázaro usava de feitiçaria para ter sorte no jogo e também foi denunciado pelo mesmo motivo por um seu amigo chamado João da Vila, cristão-velho morador em Salvador. Segundo ele, Lázaro “disse que se entregava aos diabos em agastamento de jogos” e outras ocasiões que não deixou claro na denunciação 77. Neste caso, não há uma relação entre feiticeiro e cliente, mas um indício que denotamos como sendo uso de magia. Os indígenas e africanos também tinham seus feiticeiros, mas não os nomeavam de tal modo, eram, portanto, chamados de pajés e curandeiros, pessoas respeitadas pelas comunidades a qual pertenciam, mas que nas vistas dos cristãos, estes encantados também foram considerados e acusados de difundir a heresia. Relação muitas vezes conflituosa, como na denunciação de Balthesar Pireira, senhor de engenho, que vendeu um escravo seu chamado de André ao também senhor de engenho Antônio Vaz que residia na região do 77 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado d e Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p. 355 . 64 Matoim após ter visto o escravo fazer feitiçaria, por meio de adivinhação usando uma tigela. 78 Maria de Oliveira, cristã-velha e moradora da Freguesia de Paripe nas proximidades do Rio Matoim, também denunciou um escravo vindo da Guiné chamado Matheus que pertencia ao seu vizinho Balthesar Pereira, como tratado no parágrafo anterior. O negro denunciado por Maria já pertencia a Antônio Vaz e ele lhe disse que o cativo “fazia feitiçaria diabólica” e “adivinha cousas feitas e com certas palavras faz andar e mover uma tigela de barro branca [...]” 79 A crença de que os conhecimentos mágicos eram passados de mãe para filha ou de pai para filho era ainda uma crença viva no imaginário colonial, havia aqueles que realmente acreditavam que podiam transmitir os conhecimentos da magia por meio da hereditariedade. Como no relato de Joan Ribeiro e Guiomar de Oliveira que denunciaram Antônia Fernandes. João Ribeiro, cristão-velho e morador na freguesia de Paripe, denunciou Antônia Fernandes, dizendo que estando Joan em casa com a Nóbrega, ela lhe comentou que sua filha Joana na ocasião residia em Portugal era feiticeira diabólica assim como ela, e que tinha um demônio familiar, e se ela Antônia também quisesse também o teria e isto lhe disse acerca de um ano “a propósito de umas cousas ao modo de pinhões que lhe mostrou dizendo que os tinha para dá-los a hum homem para aquele homem os dar a uma mulher para que aquela mulher o quisesse bem” 80 seduzindo-o. As relações de parentesco também são relatadas. Assim como na denunciação de Custodia de Farias, cristã-velha e moradora em Salvador, que denunciou a amiga de sua filha Maria Coreia, por nome de Ilhena da Fonseca, que disse que “sua mãe fazia uma mesinha para os homens serem bem casados com 78 suas mulheres.’ 81 Refletimos que esses conhecimentos mágicos Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 295-296 79 Idem, p 548. 80 Idem, p 423. 81 Idem, p 479. 65 popularizavam-se e as próprias mães incentivaram suas filhas a realizarem encantamentos para terem sorte nas relações afetivas. Paula de Sequeira, também relata uma vivência mágica que teve com mãe e filha, ambas feiticeiras. Disse que em 1584, quando tinha cerca de 30 ou 32 anos aprendeu com Maria Rangel a usar a pedra d’ara, para que seu marido a quisesse bem e que a mais ou menos um ano praticou orações de devoção para Santo Erasmo com a filha de Maria, a Maria Rangel, objetivando ter melhoria em sua vida conjugal. 82 Assim, percebemos e identificamos que foram as sociabilidades que envolveram feiticeiros e clientes nas relações de vizinhança a maneira mais frequente de encontro e uso mágico. Foram homens, mas, sobretudo mulheres vizinhas, amigas ou não, as que com maior intensidade recorreram aos préstimos da magia para resolverem seus problemas cotidianos, familiares e sociais. A hospedagem de pessoas em casa por meio de solidariedade também existia na colônia, não podemos julgá-las se de fato eram atos de solidariedade porque não cabe ao historiador faze r tal posicionamento, o fato é que ocorriam e em algumas vezes esses atos criavam vínculos de amizade, mas que por motivos variados sempre acabavam com a denúncia de atos heréticos por parte do proprietário – e vice-versa - à mesa inquisitorial sobre os comportamentos dos hóspedes. Maria Gonçalves, também foi denunciada por Isabel Monteiro Sardinha, cristã-velha que inicialmente a abrigou em sua casa, quando veio degredada de Portugal, mas que após a descoberta que Maria era feiticeira diabólica tornou-se inimiga indo denunciar - lá ao visitador. Isabel afirmou que viu Maria “dizer certas palavras de rosto ao mestre da dita galé em que vinha e tanto que ela a disse logo o dito mestre respondeu o que ela queria que consentisse agasalhar se ela 82 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 110. 66 naquela câmara com ela denunciante e que dantes o dito mestre não quis consentir” 83 Nesta denúncia é interessante observar que também há uma relação de vizinhança entre a denunciante e outras mulheres que sabiam sobre as feitiçarias de Maria. Isabel relata que suas vizinhas Domingas Fernandes e Margarida Fernandes disseram que Maria falou que “assim como o bispo tem mitra e pregava na cadeira ela também tinha e pregava com os diabos [...].” 84 Não foi em todas as denúncias sobre Maria Gonçalves que as testemunhas afirmavam que ela era feiticeira diabólica, a mais conhecida nas ruas da cidade de Salvador e mesmo em algumas regiões do Recôncavo da Bahia, pois Catharina Quaresma, que não sabia se era cristã-velha ou cristã-nova, foi chamada à mesa para denunciar sobre Maria disse que não sabia por que tinha sido convocada a denunciar, mas que lembra que há um ano sua mãe Guiomar Lopes e sua avó Beatriz Lopes também hospedaram em sua casa Maria. Catarina disse que nunca a viu fazer nada de mal, ela afirma que sabia das acusações da população sobre o comportamento da feiticeira e que todos comentavam sobre as feitiçarias de Maria, mas para Catarina não havia pacto demoníaco, logo ela não poderia ser uma bruxa ou feiticeira diabólica. Disse também que assim como todas as pessoas que denunciaram durante a Primeira Visitação não sabia onde estava Maria.85 Por motivo de saúde D. Lianor Soares, cristã-velha que morava em Salvador, e que foi denunciada por Lucia de Melo, também cristã-velha e provavelmente sua vizinha, disse que Gaspar Leitão, cônego da Sé disse que há dois ou três meses viu D. Lianor dar a uma sua irmã quebranto Lucia que era amiga e comadre da denunciada não acreditou no que ouviu de Gaspar e foi 83 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 287. 84 Idem, p 288. 85 Idem, p 289. 67 perguntar à mãe do cônego que confirmou a história dizendo que é “verdade e de fama pública” 86 Isabel D’avila, mameluca que morava em São Francisco, denunciou Branca Lopes, cristã-nova, por ter visto em 1570, Branca fazer uma feitiçaria para curar sua filha – de Branca – em que viu “tomar um cesto de barro com uma pequena de água dentro e uma coroa de estopa em cima do cesto que lhe não chagava a água que estava no meio do cesto e com sua mão tinha no ar sobre a dita doente dormindo e com o dedo da outra mão molhava em uma tigela de azeite e lançava as gotinhas do dito azeite dentro da agua do dito cesto.” 87 A seguir quadro referente aos denunciantes de feitiçaria que tiveram como base a amizade e vizinhança para saber ou tratar de feitiços durante a Primeira Visitação Quadro 3 – Das relações de vizinhança denunciadas ou confessadas Vizinhos Denunciante Feiticeiro Prática Catharina Fernandes Maria Gonçalves Viu negociações de feitiços Gaspar Góes Margarida Carneira Paula de Siqueira Isabel Rodrigues Vitima de encantamento de benquerença (palavras sagradas) Encantamento palavras sagradas, cartas de tocar Paula de Siqueira Maria Rangel Baltheesar Pireira Um escravo seu Maria Oliveira M escravo de Balthesar Pireira Antônio Fernandes A mãe de Ilhena da Fonseca (amiga de sua filha) Lazaro Aranha João Ribeiro Custodia de Farias Antônio da Costa (denunciado por João Brás) 86 Isabel Monteira Maria Gonçalves Cajada Domingas Fernandes Margarida Fernandes Catarina Quaresma Maria Gonçalves Cajada Maria Maria Gonçalves A ensinou a usar a pedra de ara Viu fazer feitiçaria para adivinhar Soube que fazia feitiços para adivinhar Viu fazer feitiçaria Disse que era feiticeira Feitiços para ganhar jogos Viu Maria encant ar dois homens Viu fazer feitiçarias Viu fazer feitiçaria Não acreditava que Maria era feiticeira Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 343. 87 Idem, p 553. 68 Gaspar Leitão (denunciado por Lucia de Mela) Isabel D’avila D. Lianor Soares Branca Lopes Disse que a viu dando feitiços para curar Viu fazer feitiçarias As relações financeiras As negociações financeiras foi o tipo de sociabilidade mais frequente aos casos de feitiçaria, pois muitas eram as pessoas que recorriam aos préstimos mágicos para sanarem problemas de difícil solução e para que fossem de maneira rápida e eficiente por vezes era necessário desembolsar quantias em dinheiro, comidas e objetos pessoais e domésticos. Como vimos no início do capítulo se fazia magia para tudo e quanto mais complicada a resolução do problema mais caro era o valor a ser pago à feiticeira. Porém, frequentemente os clientes voltavam atrás e diziam que não dariam prosseguimento aos feitiços, já que se arrependiam ou achavam que a feiticeira estava demorando em entregar os feitiços, exigindo a devolução do dinheiro pago sempre que se sentiam lesados pela praticante. Vejamos os casos a seguir: Como na denúncia feita por Catarina Fernandes 88, cristã-velha, moradora na freguesia da Sé Monte Calvário, que disse que era vizinha de Maria Gonçalves – a Arde-lhe-o-rabo, tida como feiticeira, provavelmente a mais conhecida da cidade -, e a pedido de outra vizinha, Domingas Gonçalves, falou com a feiticeira para adiantar o serviço, pois Domingas já tinha pagado o combinado. E conversando com outro vizinho Joan Rolin, francês, Catarina soube que este também negociou com a feiticeira e que também estava descontente com os préstimos mágicos de Maria. E disse que “[...] sabe estas cousas porque foi vizinha sua e moradora das portas a dentro com Domingas Gonçalves.” 89 O que desperta a nossa atenção nesta denúncia é o fato de que a denunciante Catarina tinha certa camaradagem com a feiticeira, prova disso é a disponibilidade da maneira como tratou de informar a feiticeira sobre as queixas 88 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 298-300. 89 Idem, 1925, p300. 69 de seus clientes e o relato de ter participado de uma conversa na presença de Domingas, de Joan e da Maria sobre umas feitiçarias que haviam pedido e tinha como base uns papéis que estavam escritos nomes de inimigos a serem castigados: [...] perante ela denunciante disse a dita Maria Gonçalves a dita Domingas Gonçalves que não podia acabar sua devoção por que perdeu aquilo que lhe acho o dito francês e a dita Domingas Gonçalves lhe disse que lhe daria mais dinheiro e mais azeite para fazer outro. 90 Catarina presenciou também uma discussão com Maria e com outro vizinho Pedro Guodinho, que era meirinho do campo e que [...] pelejando uma vez a dita Maria Gonçalves com Pedro Guodinho [...] ela disse Pero Guodinho porque pelejas comigo já vos fiz pagar a tença da vara, deste-me três tostões fez três papelinhos, um para o bispo, outro para Cristóvão de Bairros, e outro para o ouvidor geral e a isto foi ela denunciante presente. 91 Além de Guiomar de Oliveira, cristã-velha, que morava em Salvador confessou ao visitador ter apelado à magia para que fosse perdoada de uma dívida e de Catarina Froes, ambos os casos mencionados em capitulo anterior. Por ser considerada feiticeira diabólica e por ter fama de que era poderosa e tudo que fazia dava certo, Arde-lhe-o-rabo induzia as pessoas a praticarem magia. Como na denúncia de Maria da Costa, cristã-velha, que estava com problemas familiares e lhe foi dito pela feiticeira que “se lhe desse certa cousa ela faria com que seus filhos irmãos dela denunciante que anda homiziados por uma morte fossem perdoados”92 Isabel Antoniane, cristã-velha, moradora em Salvador denunciou Isabel Roiz ou Rodrigues como sendo feiticeira e disse que ela denunciante emprestou dinheiro a Francisco Roiz para ele pagar à feiticeira, pois tinha negociado com ela um feitiço de benquerença. Isabel diz que no momento do empréstimo não sabia para que fim eram e como ele Francisco era seu amigo não viu problemas em 90 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 299. 91 Idem, p 298. 92 Idem, p 398. 70 emprestar, situação ocorrida em 1585. Também denunciou Maria Gonçalves, dizendo que era de fama pública que a bruxa fez “arribar uma nau que ia para Portugal por dois cruzados” 93 Existem outros casos em que pessoas relatam as relações financeiras entre feiticeiros e clientes que não se encontravam na cidade de Salvador no momento da Visitação ou que presenciaram tal caso quando residiam em outra localidade, como na denúncia feita por Catarina Vasqueiro, que disse que morava em Pernambuco, tinha 33 anos, era casada com Gaspar Pires, que também estava ausente e ela a denunciante era criada de Santiago Galliza – há quem ainda não encontramos – mas que também, ela Catarina tinha casa de vender. Denunciou que uma mulher conhecida como a Borges, natural de Portugal e moradora em Pernambuco é feiticeira diabólica, e que em 1590 “um carpinteiro [...] deu a dita Borges dinheiro e outras coisas por o desligar e que ela o levou a meia noite a porta da Vila de Olinda e o atou de pés e mãos e o picou com uma agulha nas pernas para lhe tirar sangue para dar aos diabos e chamava por eles” 94, a denunciante diz que viu o homem pendurado e com mosquitos ao seu redor. Aqui nesta denúncia não diz o motivo que levou o homem a buscar a feiticeira, mas fica clara a remuneração para a realização de uma prática de magia já que houve um ritual que parecia ser arriscado à vida do cliente e da feiticeira. Deste modo, concluímos, mas não a exaustão, que as relações financeiras foram frequentes quando se tratavam dos casos de feitiçaria – especialmente de feitiçaria diabólica – na capitania da Bahia e em seu entorno. E, portanto, para além das relações de amizade e vizinhança muitas pessoas negociaram usar da feitiçaria. E como vimos havia acima de todas as dificuldades encontradas, sobretudo pelos colonos na vida nos trópicos, percebemos uma relação de amizade e interesse em “ajudar” o próximo. 93 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 433 94 Idem, p 527. 71 Abaixo quadro referente aos denunciantes de feitiçaria que tiveram como base a negociação para saber ou tratar de feitiços durante a Primeira Visitação. Quadro 4 – Das negociações denunciadas ou confessadas Negociações Denunciante Domingas Fernandes João Rolin Pero Gudinho Catharina Froes Feiticeiro Maria Gonçalves Prática Comprou feitiços Custo -- // // // -Três tostões -- Guiomar de Oliveira Antônia Fernandes Isabel Antoniane Isabel Rodrigues Francisco Roiz Isabel Rodrigues // // Comprou feitiço para matar um homem e para melhorar o casamento de sua filha Comprou feitiço para ser perdoada de uma divida Emprestou dinheiro a Francisco Roiz para ele pagar os feitiços Comprou feitiços de benquerença -- Cinco tostões Cinco tostões 2. A magia: seus tipos e motivações A magia era solicitada sempre que este necessitasse solucionar um problema de difícil ou impossível solução. Como nos casos de doenças sem diagnósticos precisos, nos problemas financeiros e principalmente para os casos relacionados aos assuntos afetivos. Assim, colonos, indígenas e africanos constantemente recorreram às artes mágicas na tentativa de amenizar ou solucionar seus dilemas cotidianos privados, haja vista que Para a maioria esmagadora dos habitantes da colônia, as doenças as forças e as armadilhas da natureza apresentavam-se como indomáveis. A fé mostrava por isso mesmo, contornos tradicionais, arcaicos, onde a demanda de bens materiais e de vantagens concretas assumia grande importância, como se fosse uma espécie de contrato [...]95 95 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de S anta Cruz. São Paulo: Cia. das Letras, 1986, p.109. 72 Consideramos como tipos de magia encontrados na América portuguesa, tomado por base as classificações apontadas nos estudos de Laura de Melo e Souza, Daniela Buono Calainho, dentre outros estudiosos especialistas na religiosidade popular Brasílica e a partir de nossas analises dos Livros das Confissões e Denunciações que se fizeram na Bahia durante as Primeira e Segunda Visitações, identificamos os seguintes tipos de magia: as adivinhações, as benzeduras, o curandeirismo, a pajelança, a feitiçaria e a bruxaria. 96 As adivinhações eram formas de prever acontecimentos futuros ou descobrir coisas ou pessoas perdidas, saber de notícias futuras. Na Bahia as adivinhações eram precedidas de rezas e evocações de nomes de santos, bem como se utilizavam de materiais como, por exemplo, água, tigela, pedra, tesoura e velas para auxiliar nos rituais de adivinhação. Segundo os relatos contidos nos Livros das Visitações à Bahia durante os séculos XVI e XVII. Foram os homens africanos os principais adivinhadores da cidade de Salvador e do Recôncavo . A exemplo, citamos algumas denúncias e confissões casos em que senhores de engenho utilizavam das artes de adivinhação de seus cativos para saber de roubos de dinheiro ou pertences e mesmo para encontrar e saber onde estavam seus escravos desaparecidos, mas quando o acusado desses acontecimentos era familiar do senhor dificilmente ele acreditava, desta maneira duvidava do cativo e iam denunciá-los 97 . Outra maneira de adivinhar era facilitada pelos sonhos, pois se acreditava eram representações importantíssimas para a vida dos colonos, uma vez que se acreditava que estes poderiam prever acontecimentos futuros. De maneira geral, a adivinhação não foi tão censurada e proibida aos olhos inquisitoriais. O que chamava a atenção dos Inquisidores era a maneira como se recorria e sabia 96 Denominações atribuídas aos tipos de prática s mágicas identificadas por quase todos os estudiosos que trat am sobre religiosidade popular em Portugal e na América portuguesa. Citamos Laura de Melo e Souz a, José Pedro Paiva, Francisco Bethencourt, Daniela B uono Calainho, Luiz Mott, dentre outros. 97 CALDAS, Glícia. A magia do feitiço: apropriaç ões africanas no Brasil Colônia. Revista Eletrônica Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa [on line] 2007, I (setembrofevereiro) Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=87910111> p 105. 73 dessas coisas futuras, pois se fosse comprovado a intervenção ou evocação demoníaca era necessário cessar a prática. Assim como a adivinhação, as benzeduras realizadas na capitania da Bahia não foram demasiadamente fiscalizadas e reprimidas pelo Santo Ofício. Por quê? Talvez por não causarem tantos malefícios, já que na maioria das vezes citavam e solicitavam auxílio de santos católicos, ritual que não parecia ter intervenção ou associação diabólica. As benzeduras eram utilizadas principalmente para curar as enfermidades do corpo e do espírito. Além das adivinhações e benzeduras, havia ainda o curandeirismo, sobretudo realizado pelos grupos africanos, em que tanto homens e mulheres ambos mensageiros de conhecimentos mágicos (principalmente os homens) para tratar de enfermos que sofriam de doenças físicas e espirituais, além disso, eram eles os curandeiros que estavam incumbidos de serem os guardiões e transmissores das tradições e costumes sociais e religiosos das comunidades africanas. Estes curandeiros por serem detentores dos saberes sobrenaturais e mágicos eram bem vistos dentro da comunidade escrava colonial em que viviam, pois se acreditava que eles eram inspirados por deuses e podiam equilibrar a vida dos negros. Para os africanos tudo que poderia provocar o desequilíbrio social era oculto, mágico e sobrenatural e por isso recorriam à magia para entrarem em harmonia com a natureza. Praticado entre os indígenas, a pajelança é termo que usamos para a magia realizada e difundida pelos pajés, sobretudo, homens que tinham a função de intervir na cura dos humanos e dos animais, sendo eles os responsáveis pela manutenção da saúde das comunidades. Citamos como exemplo o caso de Antônio Botelho, que confessando disse que estando ele e Domingos Ferreira, que estava doente dos pés, mandou chamar um índio feiticeiro que chupou seus pés e no dia seguinte do ritual os pés 74 dele já estavam melhores. Antônio afirmou que no dia do acontecido eles estavam no sertão 98. Os pajés, homens conhecedores de ervas que realizavam os rituais de cura, tanto espirituais quanto físicas eram muito procurados, não apenas pelas comunidades indígenas, mas também por aqueles que sofriam enfermidades corporais e já não sabiam a quem recorrer, esses poderiam oferecer os remédios certos para a cura, quando as sangrias e as purgas dos cirurgiões-barbeiros já não funcionavam. E mesmo sendo a cura o objetivo mágico de maior evidência entre os ameríndios não significa dizer que também não realizavam outros tipos de magia com outras finalidades. A feitiçaria era a prática de magia realizada seja para o bem ou para o mal, realizada principalmente pelas mulheres cristãs-velhas. Não havia pacto ou associação diabólica e seus praticantes e seguidores poderiam fazer seus usos de maneira individual ou coletiva. Além da feitiçaria curativa e amorosa, foram também praticadas magia que objetivavam equilibrar o relacionamento entre senhores de engenho e seus escravos, posto que os cativos se queixavam dos maus tratos sofridos pelos seus senhores e buscavam no auxílio sobrenatural forças para amenizarem seu sofrimento. Também usada, sobretudo pelas mulheres, a bruxaria ou feitiçaria diabólica – no caso da Bahia – era a prática de magia em que seus adeptos precisavam ter um pacto e união com os demônios para a realização de seus feitos. Segundo alguns depoimentos de bruxas e bruxos, na Europa e mesmo na América portuguesa, os oficiantes tinham obrigações e compromissos junto ao demônio, eram os chamados sabás ou simplesmente encontros de bruxas. Não só para causar o bem que os colonos, cativos e nativos recorriam à magia. Muitos problemas relacionados a dívidas financeiras, morte de cônjuges ou mesmo objetivando causar doenças de difícil identificação em familiares e inimigos também foram fruto das práticas mágicas. 98 Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 536. 75 Já discutimos o sabá em capítulo anterior, mas não relatamos os depoimentos das metamorfoses ocorridas na Bahia. E para ir aos sabás, muitas vezes era necessária uma preparação. Assim recorriam-se as metamorfoses para facilitar a chegada dos bruxos e bruxas aos seus encontros noturnos com o diabo. Foi, principalmente nos séculos iniciais da colonização, na qual a crença em bruxas pactuadas com o demônio “Ora animal, ora homem, trazia quase sempre em si alguma coisa que revelava sua natureza infernal [...]” 99 e, possibilitava a esses seres mágicos disfarçarem-se para burlar as fiscalizações e poderem realizar seus feitiços sem serem percebidos, porém, alguns animais denunciavam a presença demoníaca pois: “A imperfeição física do demo, não só era o espelho de sua imperfeição interna, espiritual, como também servia de contraponto a perfeição divina [...] 100. Chama a atenção na documentação produzida pelas visitações inquisitoriais às terras brasílicas um variado rol de acusações contra mulheres acusadas de práticas de feitiçaria, não só repetindo costumes mágicos herdados da tradição medieval ibérica, mas ainda, o reflexo da mistura destes hábitos com as influências recebidas pelas tradições ameríndia e africana [...]. 101 Assim como na Alemanha, França, Inglaterra e na Itália, além de evidentemente em Portugal e Espanha – estes com menos intensidade – testemunhas relatam a existência de metamorfoses. Diziam que viam as bruxas especialmente em formas de aves. Mas não apenas as bruxas podiam se transformar em animais para irem aos seus cultos, já que existem relatos das próprias bruxas que diziam que mesmo o Diabo se metamorfoseava em animais, em geral na figura de bodes negros. Aqui se faz necessário um comentário sobre as metamorfoses que foram denunciadas aos visitadores quando se estabeleceram no antigo Colégio da Companhia de Jesus durante a primeira visitação do Santo Ofício em 1591. Na 99 PAIVA, José Pedro. Bruxaria e s uperstição num país sem caça as bruxas: 1600 – 1774. 2. ed., Lisboa: Editorial Notícias, 2002. p. 248. 100 Idem, p 249. 101 ASSIS, Ângelo Adriano Farias. Feiticeiras da colônia. Magia e práticas de feitiçaria na América Portuguesa na document ação do Santo Ofício da Inquisição. Anais do II Encontro Int ernacional de Historia Colonial. Revista de Humanidades, UFRN. V9 nº 24, 2008. Caico, RN: Disponível em: http://www.cerescaico.ufrn. br/mneme/anais/st_trab_ pdf/pdf_st3/nagelo_assis _st3.pdf. 76 ocasião chegaram à mesa do visitador cerca de quatro pessoas acusando algumas mulheres que foram vistas andando pela rua à noite em figura de patas, como no caso de Violante Ferreira e Mércia Pereira. Ambas cristãs-velhas foram denunciadas por Custodia de Farias, que ouviu dizer por Beatriz de Sampaio sobre as duas mulheres sendo vistas como patas. Custodia diz não acreditar no relato de Beatriz, haja vista que tanto Violante quanto Mércia eram amigas dela denunciante, mas que achou necessário relatar o acontecido ao visitador por acreditar que o Santo Ofício precisava saber 102. Mércia também foi denunciada por Isabel de Sandales, que disse que segundo o Cura da Villa Velha a denunciada foi vista no caminho de Sam Sebastian ou em Água de Meninos à noite em forma de pata em companhia de outra mulher que não soube dizer quem era, isso aconteceu em 1581 103 A partir de nossas investigações e análises posteriores dos livros da Primeira e Segunda Visitações a Bahia encontramos e classificamos em sete classes principais as motivações pra se recorrer à magia, sendo elas: afetividade; saúde e corpo; subtraídos e desaparecidos; perdão e justiça; assuntos ligados à sorte; dívidas; e, contrafeitiços e feitiçarias. Cada uma dessas classes está subdividida de acordo com suas ocorrências, constituindo estes os achaques cruciais que levaram os residentes da cidade de Salvador e seu entorno a recorrem o uso de práticas mágicas. 102 Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furt ado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, p 479. 103 Idem, p. 540. 77 Quadro 5. Das motivações Motivações para uso de magia Afetividade Saúde / corpo Subtraídos e desaparecidos Perdões / justiça Assuntos ligados à sorte Arrumar casamento Benquerença Morte de marido Amansar marido Provocar intrigas Curar doenças Quebranto Ajudar no parto Encontrar pessoas desaparecidas Achar objetos furtados Obter notícias de pessoas distantes Descobrir acusados de furto Livrar-se do Santo Ofício Ser perdoado Obter sorte em jogos Dívidas Troca de favores Livrar-se do pagamento de débitos financeiros Aluguel de casas Contrafeitiço e feitiçarias Embruxar ou enfeitiçar criança / fazer feitiço A seguir apresentamos com que frequência essas práticas foram denunciadas as Visitações à Bahia: QUA DRO 6. PRIME IRA VISITAÇÃO Motivações para uso de magia Afetividade Saúde / corpo Subtraídos e desaparecidos Perdões / justiça Assuntos ligados à sorte Arrumar casamento 2x Benquerença 5x Morte de marido 1x Amansar marido 7x Provocar intrigas Curar doenças 4x Quebranto 1x Ajudar no parto 1x Encontrar pessoa desaparecidas 2x Achar objetos furtados 4x Obter notícias de pessoas distantes 2x Descobrir acusados de furto 3x Livrar-se do Santo Ofício 2x Ser perdoado 2x Obter sorte em jogos 3x Dívidas Troca de favores 2x Livrar-se do pagamento de débitos financeiros 2x Aluguel de casas 1x Contrafeitiço e feitiçarias Embruxar ou enfeitiçar criança 2x Fazer feitiço 9x Dizer que era feiticeiro 7x 78 QUADRO 7. A SEGUNDA VISITAÇÃO Motivações para uso de magia Afeti vidade Saúde / corpo Subtraídos e desaparecidos Perdões / justiça Assuntos ligados à sorte Arrumar casamento 3x Benquerença 3x Morte de marido 0x Amansar marido 2x Provocar intrigas 2x Curar doenças 6x Quebranto 2x Ajudar no parto 0x Encontrar pessoas desaparecidas 2x Achar objetos furtados 2x Obter notícias de pessoas distantes 1x Descobrir acusados de furto 2x Livrar-se do Santo Ofício 0x Ser perdoado 1x Obter sorte em jogos 0x Dívidas Troca de favores 1x Livrar-se do pagamento de débitos financeiros 0x Aluguel de casas 0x Contrafeitiço e feitiçarias Embruxar ou enfeitiçar criança 6x Fazer feitiço 2x D Dizer que era feiticeiro 5x Descrevendo as motivações para a prática de magia Afetividade Entre os colonos, geralmente, a magia era realizada para fins amorosos, podendo apresentar como principais finalidades o “amansamento de maridos”, para que os homens fossem mais apaixonados e carinhosos com suas esposas; encantamentos para arrumar casamento; promover a doença e mesmo falecimento de um dos cônjuges e a separação de casais. Guiomar de Oliveira, que recorreu à feitiçaria para amansar seu marido, a foi ensinada por Antônia Fernandes d’alcunha, a Nóbrega, mulher “que falava com os diabos e lhe mandava fazer o que queria” 104 a realizar um feitiço. A feiticeira “[...] lhe deu [...] pós não sabe de que, e outros pós de ossos de finado, 104 VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p . 138 . 79 os quais pós ela confessante deu a beber em vinho ao dito seu marido [...] 105 de outra vez fala que deu a beber também em vinho a “semente do homem”, seu marido após terem tido ‘ajuntamento carnal” e assim a confessante disse ter feito. Assim também recorreu Paula de Sequeira, que objetivando “a mansar seu marido” e para que esse lhe tivesse mais afeto seguiu os ensinamentos de Isabel Rodrigues, mas conhecida com Boca-Torta: [.] disse que haverá oito a dez anos pouco mais ou menos que, nesta cidade, /Isabel Rodrigues, a Boca-Torta d’alcunha, nela moradora, lhe ensinou as ditas palavras da consagração desta maneira, hoc est enim, dizendo-lhe que as dissesse na boca dormindo a seu marido que lhe queria bem, (e) ela confessante usou as ditas palavras, dizendo algumas vezes da dita maneira ao dito seu marido.106 Anos depois faz uso de outro ritual mágico, tendo o amansamento de seu marido sempre como maior objetivo. Nesse momento teve contato com Maria Vilela que relatava que fez o uso da pedra d’ara que conseguiu com o auxílio dos diabos para amansar seu marido, Paula ao observar tal relato pede um pedaço da pedra para realizar tal feitiço: ‘[...] pediu uma pequena para dar ao dito seu marido, a qual lhe deu, e ela confessante a deu moída em pó em um copo de vinho ao dito seu marido Antônio de Faria uma vez.” 107 Apesar da confissão de tais práticas, Paula respondeu ao crime de leitura de livro proibido, tendo sofrido penas espirituais. Aliás a pedra d’ara foi também muito utilizada no reino português. Outro depoimento que podemos apresentar é o da confessante Catarina Frões que usou de bruxedos para trazer a morte de um de seus genros e solicita o feitiço a Arde-lhe-o-rabo, mas não relata o tipo de feitiço realizado. E em outro momento torna a procurar a Arde-lhe-o-rabo e dessa vez faz uso de seus serviços a pedidos de outra filha sua, que [...] entendendo também e pretendendo que os tais feitiços se haviam de fazer com intervir o diabo e arte sua, e para isto lhe deu um botão e um retalho da capa do dito seu genro a dita Maria 105 106 107 VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 135 Idem, p 110. Idem, p 112. 80 Gonçalves lhe deu uns pós dizendo que os lançasse debaixo dos pés do dito seu genro [...] 108 No entanto, afirma depois não ter continuado com o feitiço descartando os pós. Existem muitas outras práticas, que são confessadas e denunciadas durante a Primeira Visita, mas que serão tratados em outros trabalhos. Na Segunda Visita podemos citar o caso de Maria Barbosa109. Feiticeira que era natural de Évora e que após um degredo para Angola passa em Pernambuco, Rio de Janeiro e nos anos iniciais do século XVII veio para a Bahia, sendo muito requisitada e mal vista, sobretudo pelas mulheres na colônia, pois a associavam como prostituta e destruidora de lares. Seus maiores feitiços direcionavam-se para “prender os corações e olhares de seus amantes”, retorna a Lisboa e lá sai em auto-de-fé com uma vela acesa na mão abjurando de leve, não mais voltando à Bahia. Mas que devido à má conservação do documento, alguns fólios estão impossíveis de serem lidos não conseguimos analisar seu processo, sendo este disponível no acervo on-line do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Arranjos de casamento, conquista de amores e os feitiços para uma pessoa querer bem – as chamadas feitiçarias de benquerenças - a outra, também se encontram nessa classe de motivações. Como na denúncia de João Ribeiro contra a Nóbrega, onde ele denunciante relata que a mulher ‘[...] lhe disse a propósito de umas cousas ao modo de pinhões que lhe mostrou dizendo lhe que os tinha para os dar a hum homem pera aquele homem os desse a uma mulher para que aquela mulher lhe quisesse bem.” 110 Os feitiços ligados aos assuntos de afetividade também foram bastante realizados em Portugal. Os estudos de José Pedro Paiva mostram que as feitiçarias eróticas foram uma das práticas de magia mais realizadas no reino 108 . VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 120121. 109 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São P aulo: Companhia das Letras, 1986, p 333-334. 110 Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925. p 423-424 81 português, sobretudo pelas mulheres que fizeram o uso das cartas de tocar, de pós feitos com materiais diversos e da evocação de palavras sacras durante o ato sexual com seus amados, todos os feitiços objetivando o mesmo fim: ter o amor de seu amante. Saúde e corpo Caracterizada pela feitura de feitiços para cura de enfermidades físicas, a descrença na ciência médica e a dificuldade em encontra -los, levou colonos a buscarem auxilio no trato das doenças com os feiticeiros locais. Na capi tania da Bahia não havia boticas e cirurgiões-barbeiros para realizarem atendimentos e comercializarem medicamentos, tornando assim o ofício do feiticeiro indispensável. Assim citamos a confissão de Antônio da Costa, que confessando disse que “[...] adoecendo lhe uma menina sua filha, e suspeitando que de peçonha ou feitiços, mandara chamar dois negros por duas vezes, hum deles de Jorge Ferreira Cristão-velho viúvo morador nesta cidade e do outro não estava lembrado cujo era, tendo os por feiticeiros e lhe pedira para que lhe adivinhassem que doença tinha a dita filha E o negro do dito Jorge Ferreira lhe dissera que lhe avião dado peçonha e lhe fizera umas mezinhas com umas ervas para efeito de adivinhar” 111. Subtraídos e desaparecidos Para encontrar objetos furtados, saber de culpados de furtos ou encontrar pessoas desaparecidas ou fugidas, como nas Confissões da Segunda Visitação em que Francisco Nogueira recorre a um negro para que esse adivinhasse onde estava dois de seus escravos que havia sumido”[...] q uando o caso acontece lá nas ditas duas vezes, que deitar da primeira água, digo vinho em uma tigela, e da 111 VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 447. 82 segunda vez água, e falar um pouco só, e logo lhe adivinhara [...]” 112. O confessor: [...] entendia que por obra do diabo adivinhara, e que era isso proibido pela santa Madre Igreja, e que ele Confitente não fizera pacto algum com o diabo, nem sabia se o dito negro o tinha feito nem que cousa isso era, e cria no que crê a Santa Madre igreja [...] 113 Maria de Penhosa, motivada em descobrir os autores dos furtos que teve em sua casa, procurou Anna Coelho, que por meio de adivinhação apontou os culpados. [...] haveria dois meses pouco mais ou menos que nesta cidade em sua casa fizera umas sorte com um livro das oras de Nossa Senhora e com uma chave por lhe pedir Barbara gudinha mulher solteira sua vizinha para descobrir um furto, e uma dona Maria mulher de Manoel Cardoso do Amaral para se descobrirem dois furtos de modo que fez as ditas sortes uma vez. [...] tomara hum livro das Horas de Nossa senhora e metera a no meio das folhas uma chave e fechando o dito livro, de modo que ficava a maior parte da chave fora, ajudando hum menino que seria de oito anos a ter mão na dita chave e dizendo ela confitente: Eu te esconjuro da parte de Deus e da Virgem Maria pela virtude dessa horas que me diga quem tomou tal cousa, e nomeando as pessoas em que havia suspeita e estavam presentes, davam o dito livro uma volta ao tempo em ela Confitente nomeava a pessoa que tinha feito o furto [...] 114 Nessa mesma classificação estão as motivações para a realização de feitiços para também saber de coisas e acontecimentos do futuro que não encontramos casos relevantes. 112 GARCIA, Rodolfo (Org.). Livro das denunciações que s e fizeram na Visitação do Sant o Ofício à cidade de S alvador da Bahia de Todos os Sant os do estado do Brasil no ano de 1618. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.49, 1927, p 452. 113 Idem p. 453 114 FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia, 1618-1620. Anais do Mus eu Paulista, v. XV II, 1963. p. 450. 83 Assuntos ligados à sorte Contendo os motivos para a procura de magia para fazer arribar naus, para ajudar a ganhar jogos de cartas; causar má sorte aos inimigos rogando-lhes pragas, como o caso de Paula de Sequeira que durante a Primeira Visitação confessa que em momento de inimizade por uma mulher chamada de Custódia de Farias, dissera em que a mulher estava doente por conta de suas ações. Beatriz Coreia, mulata, fora denunciada por Maria Batista durante a Primeira Visitação: disse que era de fama pública que a mulata era tida como feiticeira, “com arte do diabo e que tinha uma cobra dentro em uma botija e que fizera arribar uma duas vezes o navio em que ia degrada” 115. Assim como Beatriz Maria Gonçalves também foi acusada de arribar uma nau, que denunciada por Isabel Antoniane, cristã-velha, disse que Maria falava com os diabos e que por dois cruzados fez arribar uma nau que ia para Portugal. 116 Salvador da Maia também foi à mesa do Santo Ofício confessar que em momentos de desespero quando estava perdendo nos jogos chamava pelo diabo para que ele o ajudasse a ganhar os tais jogos. E em uma denúncia João Rolin que era conhecido de Salvador da Maia diz que viu o nome do conhecido escrito em uma folha de papel, e que não só este nome estava escrito, na lista tinha os nomes de pessoas que deviam a feiticeira Maria Gonçalves Cajada. Fato que talvez comprove o uso de feitiçaria por Salvador. Perdões e justiça Perdões e solução de causas na justiça também podiam ser sanados ou amenizados com o uso de magia, como no caso de Maria da Costa, que tendo seus irmãos problemas com a família do indivíduo que matara, queria ela que a família perdoasse seu irmão, diz que sua mãe falou que a bruxa Maria Gonçalves 115 GARCIA, Rodolfo (Org.). Livro das denunciações que se fizeram na Visitação do Sant o Ofício à cidade de S alvador da Bahia de Todos os Sant os do estado do Brasil no ano de 1618. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.49, 1927 p, 413. 116 Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 432 -433. 84 falou que se desse “certa cousa ela faria com que seus filhos irmãos dela denunciante que anda homiziados por uma morte fossem perdoados pela parte” 117. Esta feiticeira também dizia que podia se livrar do Santo Ofício, e a prova disso era que ela desapareceu pouco antes da chegada do visitador, mas que como veremos num estudo aprofundado de seu caso em nosso próximo capítulo, não foi bem isso que ocorreu, uma vez que Maria Gonçalves estava na cidade e foi processada e penitenciada pelo Santo Ofício aqui na Bahia. Dívidas Nesta classe estão os feitiços feitos para quitação ou tolerância de dívidas financeiras, como o caso de Guiomar d’Oliveira que confessa suas culpas na Primeira Visitação informando que fez um feitiço para que João D’Aguiar proprietário da casa em que morava com o seu marido tolerasse uma dívida de aluguel. A feiticeira pediu três avelãs ou pinhões e que tirasse o miolo e dentro colocasse pêlos de todo o corpo - da confessante –, unhas dos pés e das mãos, além de raspaduras das solas dos pés e uma unha pequena do dedo do pé da bruxa; após o preparo do feitiço pede que a mulher engula os pinhões e após a evacuação, prepare e transforme em pó e dê ao dito proprietário misturado em uma tigela com caldo de galinha. Assim o fez e segundo ela deu certo. 118 Não encontramos outros casos de pessoas que dissessem que buscaram a magia para solucionarem problemas financeiros, entretanto achamos de grande valia mencioná-lo devido à riqueza de detalhes da confissão. 117 Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 192 p. 394-396. 118 VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p 136. 85 Contra feitiços e feitiçarias Por fim, na classe contrafeitiços e feitiçarias, estão as práticas motivadas para livramento de feitiços, com feitura de rituais e porções para salvar os enfeitiçados e também práticas que não são “visíveis” as suas reais motivações, mas que são relatadas, além do registro de uma pessoa denunciar a outra por ser bruxo ou feiticeiro. Antônia de Barros, denunciada por Pero de Campo, disse que viu a denunciada atrás da porta ou de “uma caixa meã afogada dos diabos que a afogavam.” 119 Disse também que ouviu falar que Antônia era feiticeira, acontecimentos que não deixam claras suas motivações, mas são indícios de realização mágica. Foram essas as principais motivações que levaram dezenas de pessoas a utilizarem de artifícios mágicos para melhorarem suas condições de vida, práticas que certamente foram utilizadas por muitos outros indivíduos que não foram denunciar ou confessar suas culpas por medo da ação do Santo Ofício, ou por inimizade, relações que serão tratadas a seguir. O fato é que podemos afirmar que as práticas mágicas foram realizadas por vários indivíduos na colônia, independentemente do grupo social que pertenciam, se branco, índio ou negro, pois como dito em uma confissão realizada na Segunda Visitação a Bahia quando se tratava de cura de doenças, por exemplo, todos os indivíduos recorriam à magia por “remediar a necessidade [...] fizera antão pouco escrúpulo disso, pelo pouco que nesta terra e costuma fazer das semelhantes cousas” 120 quando tratava com um negro para auxiliar na cura de um irmão, já que nas terras do Brasil não tinha outros modos de melhorar o viver a não ser com o uso de magia. 119 Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado. 1925, p 170. 120 FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia, 1618-1620, Anais do Mus eu Paulista, v. XVII, 1963, p 454. 86 Essas foram algumas das vivências ocorridas entre feiticeiros, clientes e usuários de magia que residiram na cidade de Salvador e no Recôncavo da Bahia em fins do século XVI, mas que certamente continuaram suas práticas ao longo do processo de colonização. Foram cerca de 25 casos que envolveram pessoas no uso mágico, desses 25 quinze estavam ligados às relações de vizinhança, oito às relações financeiras e duas originárias de parentescos ou agregados familiares, o restante não fica clara o tipo de convivência. 87 CAPÍTULO III: FEITIÇARIA MA CAPITANIA DA BAHIA: ESTUDOS DE CASOS No capítulo anterior, apresentamos os tipos de vivência e convivência em que estiveram envolvidos feiticeiros, clientes e usuários de magia na cidade de Salvador e no seu entorno em fins dos quinhentos e início dos seiscentos. Relações estas que foram ocasionadas pela troca de conhecimentos mágicos entre vizinhos, tendo por base a confiança e solidariedade ou por meio de remuneração em troca da produção e realização de feitiços, podendo ocorrer dentro da vizinhança ou fora dela. Possivelmente, alguns dos contatos relatados pelos confessores e denunciantes não correram como afirmados por estes, posto que era comum aos depoentes forjar situações na tentativa de despistar das vistas dos inquisidores sobre outros cúmplices e heresias consideradas mais graves como as práticas judaizantes por exemplo. Entretanto , o que fica evidente é que os préstimos mágicos foram bastante utilizados nesta época em que o oculto e o sobrenatural eram alentos para resolver problemas pessoais físicos e espirituais. Para que possamos melhor compreender a dinâmica dessas relações sociais escolhemos tratar de dois estudos de casos que deram origem aos processos inquisitoriais das vizinhas Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada. Obviamente não foram apenas estes os casos de feiticeiros que resultaram em processos inquisitoriais, mas devido à quantidade de denunciações feitas contra elas disponíveis nos livros das Visitações e Denunciações que se fizeram a Bahia durante 1591 e 1593 e da disponibilidade do acervo online do Arquivo Nacional da Torre do Tombo encontramos seus processos, o que nos possibilitou a apreciação e análise das práticas de magia e das relações sociais a que foram envolvidos estas acusadas de feitiçaria. Deste modo, utilizaremos a microhistória para tratar destes casos, pois acreditamos que é a melhor opção para discuti-los. Assim tornará mais sucinta a compreensão das experiências de vida ocasionadas pelo uso da magia, entendendo que por meio desses processos possamos responder algumas das 88 querelas acerca do vivido da religiosidade popular que se formava na sociedade da Bahia. Os processos de Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada são apenas exemplos das práticas e casos recorrentes a outras sociedades de outros cantos da América portuguesa que por motivos diversos foram silenciados pela História. Apresentaremos seus contatos sociais, refletindo também acerca das motivações que as levaram a praticar ou negociar atos mágicos para si ou para outras pessoas. Lembramos que a sociedade Baiana quinhentista era heterodoxa, composta por residentes pertencentes a grupos étnicos e socioculturais diversos cristãos-velhos e cristãos-novos, indígenas e africanos escravizados. Entretanto foram sobretudo as mulheres cristãs-velhas as principais acusadas de feitiçaria. Desta forma escolhemos tratar dos casos de Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada. A primeira aprendeu com a segunda a fazer encantamentos com intuito de prosperar afetivamente, usando individualmente os sortilégios que aprenderá. Já a segunda viveu um verdadeiro ofício de feiticeira diabólica, pois negociava feitiços e dizia tratar com o Diabo. 1. Violante Carneira Nossa primeira acusada de feitiçaria chama-se Violante Carneira 121 cristãvelha, natural e moradora na cidade de Salvador, que na época da abertura de seu processo estava com aproximadamente 35 anos de idade. Violante era filha de um funcionário da Governança chamado Pedro Rodrigues Carvalho e de Margarida Carneiro de Magalhães, tinha uma irmã chamada Luisa de Magalhães que morava na Barra de Jaguaripe, não conheceu seus avôs nem paternos nem maternos, mas disse que conheceu seus tios Bastiam de Carvalho, irmão de seu pai e Rui Gonçalves e Fernão de Magalhães, irmãos de sua mãe. 121 IANTT-IL Processo nº 12925. 89 Quando foi processada Violante estava viúva do cristão-novo Antônio Roiz Villa Reall acerca de dezoito anos, mas não fala qual o motivo da morte de seu cônjuge. Violante apenas disse que seus sogros (Tristam Roiz Villa Reall, não fica claro o nome de sua sogra) foram penitenciados pela Inquisição por criptojudaismo e que morreram no cárcere. Violante ficou viúva ainda muito jovem, o que possibilitou se relacionar com outros homens no correr dos anos. E foram essas pessoas que a denunciaram como feiticeira, pois, segundo eles, a ré dizia certas palavras em suas bocas durante o ato sexual. A principal acusação atribuída a Violante Carneira foi a evocação das palavras hoc est enim corpus meun. Palavras sagradas usadas no momento de consagração da hóstia na missa, mas quando usadas de maneira herética – como Violante e outras mulheres as usavam – tinha o objetivo de fazer o homem amado a querê-la bem, ou seja, para aquele determinado homem apaixonar-se e afeiçoar-se por quem as revocou. Encontramos apenas uma denúncia no livro das Denunciações perpetrada na Bahia durante a Primeira Visitação conta a Violante feita pelo cristão-novo Bernaldo Pimentel da Lima 122, um de seus amantes, que chegou à mesa do Visitador para denunciá-la acusando-a de ter dito tais palavras em latim em sua boca durante o ato sexual. Posteriormente Bernaldo torna a depor contra Violante em seu processo. Em 27 de agosto de 1591 tornou a ir à mesa do Visitador para denunciar Violante Carneira e tornou a dizer que há quinze anos – em 1575 – teve “conversação desonesta” com a ré quando ele ainda era solteiro e que durante o ato sexual a ré disse as palavras Hoc est enim corpus meun em sua boca. Bernaldo diz que perguntou a ela para que serviam ditas palavras e “ela lhe disse que sabia as palavras da Sacra para fazer a um homem querer bem a uma mulher” 122 123 . Filho de Agostinho e de dona Beatriz Botellha, ambos falecidos, era natural de Lisboa, mas residia em seu engenho no Matoim, tinha idade aproximada há 40 anos e estava casado com Custodia de Farias 123 IANTT-IL Processo nº 12925. Fólio. 06. 90 Mesmo assim ele ainda teve outros encontros com Violante, afirmando que ela “lhes disse duas vezes e em diversos tempos e por ele lhe parecer isso mal lho estranhou e ela festejou muito com isso mostrando que já o tinha preso por lhe ter dito as ditas palavras pera lhe querer bem.” 124 No final de sua denúncia Bernaldo afirma que Violante tinha consciência de tudo que fazia e dizia. Ainda nesta denúncia, ele diz certa vez Violante pediu para que ele lhe conseguisse um pedaço de pedra de ara, mas ele afirma que não a entregou, uma vez que ele desconhecia a finalidade que a ré faria com a pedra. Esta pedra era utilizada para o preparo de feitiços designados ao encantamento de amores deixando os amantes perdidamente apaixonados pela mulher que os preparou ou para que esses amantes ficassem “lerdos” e obedientes aos gostos e caprichos de suas amadas, fazendo com que eles fizessem tudo que elas desejavam. Outros diziam que a pedra poderia ser usada como veneno que após cozido, triturado e misturado a caldos de galinha poderia causar a morte ou doença de maridos. E porque a ré pediu a pedra para ele? Sabemos que a pedra era encontrada nos altares das igrejas, será que Violante apenas se envolveu com ele para conseguir um pedaço desta pedra, já que ele tinha uma igreja em seu engenho, sendo portanto mais fácil a sua aquisição? Ou Violante almejava contrair um novo matrimonio com o senhor de engenho? Essas são algumas das questões que nunca conseguiremos dirimir. Além de denunciar Violante, Bernaldo aproveita para apontar culpas de diversas outras pessoas residentes no Recôncavo. Denúncias que estavam ligadas aos crimes de bigamia e de criptojudaismo. No geral Violante Carneira não fazia uso de magia para promover o mal nem tão pouco o bem das pessoas, também não comercializou e segundo ela também não ensinou as palavras para nenhuma outra pessoa, pois apesar de ser acusada de feitiçaria, a ré apenas evocava as palavras para “prender” afetivamente seus amantes a ela. 124 IANTT-IL Processo nº 12925, Fólio. 06 e 07. 91 Identificamos que o único tipo de contato que o denunciante e ré tiveram não passou do envolvimento amoroso. Outro denunciante foi o cristão-velho e capitão da Ilha de Itaparica, Cosmo Gusmão125, que e no instante da Visitação passava pela cidade de Salvador. Em sua denúncia disse que a seis ou sete anos atrás teve amizade desonesta com Violante Carneira e “uma vez estando com ele no ato venéreo ela chegando a sua boca a dele denunciante lhe disse nela as palavras da consagração com que na missa se consagra a hóstia, e isto uma vez soo” 126 Cosmo diz que não sabia o que significavam as palavras por que não entendia nem sabia ler ou falar em latim, mas relata que perguntou a Violante o que queriam dizer as tais palavras e ela disse que era para ele a querer bem. Nesta denúncia também não fica clara que outros tipos de contatos estiveram envolvidos a ré e o Cosmo, também neste caso, o denunciante era o objeto a ser enfeitiçado, desta forma não houve participação de cúmplices já que a acusada queria encantar o homem desejado. Parece que eles não tiveram outro tipo de vivência senão a delatada pelo Cosmo, haja vista que ele frequentava a cidade de Salvador esporadicamente. A última denúncia que encontramos no processo de Violante Carneira foi a do cristão-velho e mestre de escola de esgrima Simão de Mello 127, eu em sua confissão disse que havia um ano que ele teve amizade desonesta com Violante e que a ré evocou as palavras da consagração, e isso [...] lhe aconteceu algumas vezes estando no próprio ato carnal que a dita Violante Carneira chegou a sua boca a dele denunciante e nela lhe dizia mando umas palavras às quais ele per então não entendia e depois de alguns dias per diferentes vezes lhe fez ditas as ditas palavras na boca nos ditos atos carnais.128 125 Filho de Francisco Alures – pai que não conheceu – e de Isabel Leal, nat ural de Povoas, que tinha 50 anos, e era casado com Geronima de Bairros da Silveira. 126 IANTT-IL Processo nº 12925. Fólio. 08. 127 Filho de Simão de Mello, homem preto forro, mas não sabia qual teria sido seu dono, e de Isabel Ferreira, mulher branca, ambos falecidos, de idade de 33 ou 34 anos, natural de Lisboa e também morador na cidade de Salvador, solteiro. 128 IANTT-IL Processo nº 12925. Fólio 09. 92 Assim como com os outros denunciantes a ré aparentemente não manteve outro tipo de contato, senão os confessados por Simão, entretanto o denunciante mesmo após saber da prática mágica a que estava sendo alvo de enfeitiçamento continuou seu romance com Violante, parecendo não se importar com a evocação das palavras ditas em sua boca e que foi denunciá-la ao Visitador após ter tomado conhecimento que o comportamento da antiga amante era errado. A evocação dessas palavras era uma prática bastante comum a algumas mulheres que residiram na capitania da Bahia, prática que vieram do Reino e que ao chegaram a América portuguesa foram socializadas entre colonas e escravas africanas. E em três de janeiro de 1592 o Visitador mandou chamar a ré e lhe pediu que não saísse da cidade sem sua autorização. Dez dias depois Heitor torna a chamá-la na condição de presa e, como de costume aos processos da Inquisição, a ré foi perguntada por que motivo ela estava sendo presa. Violante disse não saber, sendo admoestada, ao tempo em que pedia perdão e misericórdia no trato do seu caso. Em seguida, o Visitador perguntou a ela se sabia as palavras da consagração da hóstia, palavras que todos os denunciantes afirmaram terem ouvido a ré dizer durante a relação sexual, e ela respondeu que sim, repetindo-as na mesa. Afirmou, porém, que nunca as disse durante o ato sexual propriamente dito e que as aprendeu com Maria Gonçalves Cajada sem que houvesse necessidade de qualquer tipo de remuneração, situação que sugerimos haver certa amizade entre elas. O visitador ainda perguntou se a ré tinha dito as palavras a alguém. Inicialmente Violante negou, dizendo que apenas as disse defronte ao rosto do cônego Bertolomeu de Vascogoncellos, que aparentemente tivera sido seu último amante, já que ela dizia estar grávida do cônego de sete ou oito meses. Heitor insistia para que ela fizesse confissão inteira de suas culpas, e ela acaba confessando que as disse a outras pessoas. 93 Violante afirma que primeiramente as disse a Bernaldo Pimentel “[...] indo ele a sua casa dela estando ambos juntos, mas não no passo da carne e lhas disse pera o rosto e isto per algumas duas vezes.” 129 Confessou que não sabia quanto tempo tinha que as disse também a Álvaro Lobo Pereira e que no tempo de sua confissão – de Violante – estava morando nas “capitanias de baixo desta costa” e dizendo que “[...] também ela lhe disse no rosto estando juntas as ditas palavras na boca mas não estavam no próprio ato carnal e a este as disse uma vez soo.” 130 A ré continuamente afirmava que “[...] sua intenção foi sempre pera lhe querem bem”, afirmando que não tinha a intenção de causar dano ao amante. O Visitador pergunta por que motivo ela não veio à mesa confessar suas culpas no tempo da graça, já que ela compareceu à mesa por duas vezes para denunciar outros culpados – dentre eles a Maria Gonçalves –, Violante respondeu que “[...] nunca lhe lembraram das ditas culpas pera se acusar nela nesta mesa e que de tal maneira lhes esqueciam inda agora nesta mesa.” 131 Mas que após o visitador ter dito que esta era uma prática grave ela pediu perdão e misericórdia, ao tempo que prometia nunca mais usar dessas palavras nem de qualquer outra heresia. Questionada ainda mais pelo Visitador, Violante é perguntada se obteve efeito esperado após a evocação das sagradas palavras na boca de seus amantes e Violante respondeu que “não viu nunca o dito efeito como esperava” e que só acreditou na força desses feitiços porque as ouviu de Maria com tanta convicção que parecia que eram eficazes e por que sabia que Maria era feiticeira. No mesmo dia ela retorna à mesa para falar de sua genealogia e pedir que os autos sejam conclusos já que não se lembrava de mais culpas. E pôr não ter mais o que confessar foi perguntada pela doutrina cristã “[...] benzeu-se, e disse o padre nosso, e a ave Maria, bem, e não soube dizer o credo bem, e não soube 129 IANTT-IL Processo nº 12925, Fólio. 10 Idem, Fólio. 10 131 Idem, Fólio.11 130 94 dizer os mandamentos nem pecados mortais nem os mandamentos da igreja [...]” 132 . Depoimento que finalizava seu processo. A conclusão de seu processo se deu em 29 de janeiro de 1592 e Violante foi sentenciada, por ser “[...] useira e costumeira a fazer uma certa superstição, indigna de aqui se nomear, em suas sexualidades fazendo os próprios atos torpes e desonestos e estando neles [...]” 133 penitenciada com degredo de quatro anos para fora da Capitania da Bahia, penitencias espirituais e o pagamento das custas do processo. [...] que vá ao ato publico em corpo onde estará com uma vela acesa na mão em pé enquanto se celebrar o oficio divino da missa e ouvir sua sentença e há degradam quatro anos pera fora desta capitania da Bahia de Todos os Santos e cumprira mas as penitencias espirituais seguintes confessasse-a nas quatro festas deste ano, Natal, Páscoa, Espirito Santo, Nossa Senhora de Agosto e comungar neles de conselho de seu confessor e em cada um dos ditos dias que comungar rezara uma vez o rosário de Nossa Senhora e a aprendera a doutrina que não sabe que nem o credo sabe bem dizer e pague as custas.134 Encarcerada em 22 de janeiro de 1593, ou seja, um ano após a conclusão de seu processo. Entretanto, no dia 23 deste mesmo ano foi adicionado nos autos de seu processo um alvará de fiança para que Violante fosse libertada. Sua sentença foi publicada em 24 de janeiro de 1593, solta dois dias depois. A ré ainda solicitou que seu degredo fosse feito na Ilha de Itaparica, pois ela: [...] é mulher muito pobre e tem muitos filhos e uma criança de peito e é muito doente e enferma e indo pera fora desta capitania corre sua vida perigo é muito risco por descontinuo ser visitada por físicos remédios necessários de purgar e outras mezinhas de que a vera falta indo-se fora dela pelas nem haver nem o remédio tão propicio como nesta cidade [...] 135 Além da alegação de ser pobre, de ter muitos filhos e de estar muito doente dependente dos remédios e mezinhas que apenas na Bahia encontrava m, Violante também declarou que não conseguiria se sustentar nem aos filhos se 132 IANTT-IL Processo nº 12925, Fólios, 26 e 27. Idem, Fólio. 30 134 Idem, Fólio 31-32 135 Idem, Fólio 45. 133 95 fosse mandada para fora da capitania da Bahia e também “porque esta muito arrependia de suas culpas pede a vossa mercê pelas cinco chagas de Jesus Cristo nosso senhor a misericórdia com ela e lhe perdoe o mais tempo” 136 e assim seu degredo foi comutado, sendo cumprido na Ilha de Itaparica, onde ela já estava morando há oito meses, esta comutação se deu em 25 de janeiro de 1594, em Olinda na mesa do Visitador. Assim sendo, sua apelação foi atendida e Violante Carneia saiu em Autode-fé privado na mesa do Visitador com vela acesa na mão em 29 de janeiro de 1592, penitenciada com degredo para fora da Capitania da Bahia, penitências espirituais e o pagamento das custas do processo, tendo sua sentença publicada em 24 de janeiro de 1593 na Igreja da Sé na cidade de Salvador. Não encontramos mais vestígios de Violante Carneira. A publicação da comutação de sua fiança e mudança de local de degredo se deu em Pernambuco, já que o Visitador se encontrava lá quando o pedido foi feito e por isso teria despachado em Olinda. Como vimos, a ré não era feiticeira de ofício, mas praticou por diversas vezes um encantamento utilizado por feiticeiras e por isso foi penitenciada pelo Santo Tribunal. Suas práticas de magia nada passaram de atos supersticiosos, já que não envolviam outros materiais e preceitos para a sua realização. Também aqui não existiu relação em que foram envolvidas feiticeiros e usuário ou cliente de magia, mas Violante apresentou-nos a feiticeira que a ensinou o encantamento, que também foi processada pela Inquisição lusa: a Maria Gonçalves Cajada. . Lembramos que os feitiços e encantamentos ligados à afetividade especialmente os de benquerença também foram uma constante em Portugal e que na América portuguesa não foi diferente, pois a maioria das feitiçarias e bruxarias realizadas na Bahia teve como maior objetivo assegurar sucesso ou infortúnio nos assuntos ligados ao casamento e aos romances tendo, sobretudo, 136 IANTT-IL Processo nº 12925, Fólio. 47 96 as mulheres a ansiedade de fazer com que seus maridos e amigos a quisessem bem. A seguir apresentamos quadros que sintetizam a condição social dos denunciantes, os tipos de relações que tiveram com a ré e a prática que denunciaram. Quadro 8 Denunciantes e a relação que tinham com a ré Violante Carneira Denunciante Etnia Relação social XV Vizinho Cosmo Garção XV Amante Simão de Mello XV Amante Bernaldo Lima Pimentel da Quadro 9. Práticas denunciadas Denunciante Prática denunciou que Testemunha s Bernaldo Pimentel da Lima Enfeitiçamento palavras sagradas O denunciante objeto enfeitiçamento foi de Cosmo Garção Enfeitiçamento palavras sagradas O denunciante objeto enfeitiçamento foi de Simão de Mello Efeitiçamento palavras sagradas O denunciante objeto enfeitiçamento foi de 2. Maria Gonçalves Cajada Nossa outra acusada de feitiçaria foi Maria Gonçalves Cajada 137, que seguramente foi a feiticeira diabólica mais conhecida da cidade de Salvador. Muitas foram as denúncias que chegaram à mesa de Heitor Furtado de Mendonça sobre esta cristã velha, natural e moradora em Aveiro em Portugal, mas que veio 137 IANTT-IL Processo nº 10748 97 para a Bahia degredada, filha do mestre piloto de naus Pedro Gonçalves Cajado e de Margarida Pires, ambos falecidos. Conheceu um tio que também era piloto de naus e irmão de seu pai, que morava em Aveiro. Não encontramos o processo que a penitenciou com o degredo. Maria não sabia a idade que tinha, mas em algumas denúncias é retratada como uma mulher de aproximadamente 40 anos de idade. E apesar dos denunciantes dizerem que ela era uma mulher sem marido, em seu processo ela disse ser casada com Gaspar Pinto, homem do mar que estava em Portugal. Maria veio de Aveiro para o Brasil na condição de degredada para Pernambuco, por atear fogo em várias casas quando ainda morava no Reino, porém quando estava em Pernambuco torna a ser degredada em 1580 vindo em uma galé para a Bahia sob a acusação de feitiçaria. Sua principal inculpação foi fazer uso de feitiçaria para diversos propósitos, negociou e ensinou feitiços que iam da evocação de frases objetivando o querer bem – como no caso de Violante Carneira, apresentado acima – a feitiços que podiam levar a morte de parentes e inimigos. E por suas práticas Maria ficou conhecida como feiticeira diabólica e também chamada de arde-lhe-o-rabo que “tratava e falava com os diabos.” As denúncias presentes nos Livros das Denunciações e Confissões que foram feitas na Bahia totalizam cerca de oito acusações, das quais ficou explicita que em cinco casos a ré envolveu-se com o denunciante por meio da vizinhança, passando conhecimentos mágicos baseada na solidariedade, outras duas baseadas na negociação e uma que não podemos classificar, pois não é evidenciada. A cristã-velha, Maria da Costa 138 foi em 21 de agosto de 1591 denunciar a Arde-lhe-o-rabo por ser feiticeira dizendo que havia oito meses que sua mãe – dela denunciante – tinha dito que a feiticeira ofereceu serviços de magia para solucionar os problemas judiciais de seu irmão, pois ele estava sendo acusado de 138 Filha de João Canes da Costa e Antônia Roiz, natural de Braga e residente em Salvador, era casada com cristão-novo e mercador de loja Álvaro Sanc hes 98 matar um homem, então Maria diz que tinha o poder de livrá-lo sendo perdoado pela família da vitima139. A também cristã-velha Margarida Carneira 140 foi à mesa do visitador em 22 de agosto e relatou que há cinco anos ouviu dizer que a ré “tinha conta com o diabo e com ele dormia e tratava” 141 Quase todos os que denunciaram relatou que Maria tinha auxílio ou convivia com seres demoníacos. Catharina Quaresma 142 que não sabia se era cristã-velha ou cristã-nova dizia, mas sabia ser, e diferentemente dos demais delatores Catharina foi convocada a comparecer na mesa do Santo Ofício em 27 de novembro de 1591 para falar sobre Maria Gonçalves, entretanto a denunciante diz que apesar da sociedade afirmar que a ré era feiticeira diabólica ela não acreditava, pois nunca viu nada que pudesse incriminá-la. Disse também que a mãe dela – de Catharina – abrigou Maria em sua casa durante alguns meses, mas que também nunca presenciou nenhum tipo de comportamento ou prática suspeita. A testemunha disse mas, que sua avô Beatriz Lopes também conhecia a ré e que um dia viu uma espécie de chaga no pé da ré, que segundo o povo ela – a feiticeira – todo dia tirava um pedaço da ferida e dizia dar para o diabo. Entretanto a denunciante parece não acreditar nos burburinhos que rondavam a cidade acerca do ofício mágico da ré, seja porque ela não acreditava na interferência mágica diabólica sobre as ações humanas – o que não cremos ser esse o caso – ou por ela ser amiga de Maria e talvez tentasse diminuir suas culpas, pois é a única pessoa que surge na documentação negando as feitiçarias da ré 143. 139 Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heit or Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Ed. Prado, 1925, p 395. 140 Filha de Simão Carneiro Soares e Catarina de Magalhães de Meneses, era natural de Cabo de Gué e residia em S alvador, de 55 anos de idade, e casada pela segunda vez com o alfaiate Manuel Fernandes Leitão 141 Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Ed. Prado, 1925, 424. 142 Filha do juiz Diogo Gonçalo Lasso e de Guiomar Lopes, natural de Lisboa e também residia em Salvador 143 Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do B rasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Ed. Prado, 1925, p 554-555 99 E assim como Catharina Quaresma, Maria da Costa, Margarida Carneira outras pessoas denunciaram as práticas da Arde-lhe-o-rabo, vejamos a seguir seu processo, tendo como principais depoentes Isabel Monteja, Caterina Fernandes, Tareja Roiz, Violante Carneira, Isabel Antônia e Catharina Froes, todas também depuseram nos livros das Denunciações que se fizeram na Bahia e tornaram a ser chamadas no correr de seu processo. Esbocemos os relatos e analisemos os tipos de contatos sociais que tiveram envolvidos com a ré. Composto por sete denúncias o processo de Maria Gonçalves Cajada teve inicio em 1591. O que primeiro chama a atenção é para a informação contida no primeiro folio de seu processo em que diz: "parece que tudo são embustes e enganos as culpas desta ré os quais constam de sua confissão extra judicial sem as testemunhas lhe haverem visto coisa alguma por onde parece que o conhecimento desta causa pertence mais ao ordinário que à Inquisição" 144 o que talvez explique a benevolência na penitência da ré. Mas será que não teve outros motivos? Vejamos as minúcias de seu caso. A espiritaleira Isabel Monteira Sardinha 145 foi no dia sete de agosto de 1591 à mesa do visitador Heitor Furtado de Mendonça fazer denúncia e disse ser inimiga capital de Maria. Segundo sua delação, Isabel nunca usou, nem precisou dos serviços da feiticeira, mas conviveu com ela no tempo em que vieram de Pernambuco para a Bahia, na mesma embarcação. Isabel afirma que viu Maria enfeitiçar o mestre da galé em que vinham para que ele consentisse Maria se abrigar na mesma câmara, ou seja, no mesmo quarto que a Isabel. Inicialmente o capitão não permitia porque sabia que Isabel era uma mulher honrada e casada e não poderia ficar no mesmo lugar que Maria, já que esta era afamada como feiticeira e estava sendo degredada. No entanto após a ré olhar para o capitão ele acaba consentindo. Provando o enfeitiçamento. 144 IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 01 Cristã-velha, de mais ou menos 50 anos de idade, era cas ada com Estevão Gomes Centeio, natural de Port ugal, mas estava em Pernambuco quando veio para a Bahia na mesma galé de Maria em 1580. 145 100 A denunciante ouviu dizer de Domingas Fernandes, viúva e vendedora, mulher que veio do Aveiro e sua filha Margarida Fernandes, costureira, ambas residentes em Salvador, disse que Maria blasfemava contando que assim como o padre ela – Maria – também pregava não de um púlpito, mas de uma cadeira, além de ter mitra e fazer “boas audiências’. Isabel diz que também conhecia esta fama de Maria desde quando ainda moravam em Pernambuco. Domingas confessou a Isabel que Maria a usava para enga nar as pessoas e “[...] indo ela por essas roças pedir esmolas ia com ela Maria Gonçalves sobredita e dizia à gente que ela dita Domingas Fernandes era santa e que tocando nela, ou tocando ela tinha virtude” 146 o que provava que a ré enganava a todos, mas não deixemos de ‘culpar” Domingas, uma vez que ao que parece ela era cúmplice de Maria, mas não foi processada, nem sofreu penalidades do Santo Ofício. Ao final de seu relato Isabel aponta outras quatro mulheres dizendo que elas sabiam das feitiçarias de Maria e são elas: Antônia Paz, mulher que não tem marido e também conhecida como a Branca, a mulher do porteiro da alfândega, uma que chamam de Peixe frito e uma castelhana chamada de morena, mas não encontramos vestígios dessas mulheres citadas. Em nove de agosto de 1592 a cristã -velha Catherina Fernandes 147 era vizinha da ré e auxiliou algumas vezes nas negociações de feitiçaria, além de ter presenciado a várias brigas entre os clientes e a feiticeira. A denunciante diz que não sabia onde Maria estava vivendo, mas achava que ela estava morando na casa de um alfaiate fidalgo na ilha de Itaparica e que sabia das coisas de Maria porque foi sua vizinha “de portas adentro”, o que seria inevitável não presenciar os fatos relatos abaixo. E denunciando disse que há quatro meses Domingas Gonçalves, também sua vizinha, lhe pediu que desse um recado à feiticeira: “que se ela não havia de 146 IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 06 Filha do almocreve P edro Fernandes e Maria Lopes, era nat ural da Villa de Estremoz, tinha 30 anos, residia no Monte Calvário, na freguesia da S é em Salvador, era casada com um mameluco de nome Gaspar Roiz que era marinheiro e veio para a Bahia degredada por cinco anos por ter matado um homem. 147 101 fazer aquilo, que a não enganasse e lhe tornasse o que lhe tinha dado” 148 e ao dar o recado Maria respondeu que merecia receber muito mais do que Domingas tinha dado por que: [...] eu ponho-me a meia noite no meu quintal com a cabeça no ar com a porta aberta para o mar, e enterro e desenterro umas botijas e estou nua de cinta para cima e com os cabelos e falo com os diabos, e os chamo, e estou com eles em muito perigo. 149 De outra vez, Catherina viu João Rolim, francês, também morador em Monte Calvário, portanto vizinho seu e de Maria, trazendo nas mãos uns papeizinhos embrulhados um a um de diferentes maneiras junto com pós que não sabia o que era e entre eles um pedaço de solimão cru que parecia ser de onça, além de um pedaço de papel com quinze nomes de pessoas escritos. A denunciante diz que só conseguiu ver o nome de Salvador da Maia e Maria de Granada. Catherina presenciou todos esses detalhes, pois segundo ela o francês estava discutindo com Maria chamando-a de feiticeira. Maria também teria dito a Catherina que os nomes que estavam escritos neste papel eram de pessoas que deviam algum dinheiro ou objetos por ela, a ré ter feito feitiços. Após a confusão, João entregou tudo que segurava nas mãos para o também seu vizinho, o carpinteiro Gonçalo Fernandes para que este mostrasse ao bispo as feitiçarias de Maria. E enquanto João dizia que aqueles papeis eram feitiços, Maria pedia que os entregasse a ela e que em troca ela lhe daria dinheiro. No ensejo Maria dizia que se ele não entregasse os tais papeis, ela não poderia entregá-los a Domingas. Porém Domingas dizia a Maria que se ela não conseguisse os papeis de volta ela – Domingas – lhe daria mais dinheiro para que tornasse a fazer os tais feitiços. E assim o fez, entretanto Maria torna a perdê-los, sendo posteriormente encontrados pelo irmão de Domingas, quando este foi lançar sob a cabeça de um homem pós para que casasse com outra irmã de Domingas que ainda era solteira. 148 149 IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 08 Ibidem. 102 Parece que as brigas e discussões eram muito frequentes entre a feiticeira Maria Gonçalves e seus clientes, prova disso foi o outro relato de Catherina, que segundo ela viu seu vizinho Pedro Gudinho, que era meirinho do campo cobrar a produção de três papeizinhos em troca de três tostões, ele havia negociado com a feiticeira para que ela fizesse os tais papeis para Cristovão de Bairros, um para o bispo e o outro para o ouvidor geral, ele pagou pelo serviço, mas Maria não os entregou e por isso ele foi cobrá-la. Outra mulher que chegou à mesa do visitador foi a meia cristã-velha Catarina Froes150 e confessou negociar a feitura de sortilégios para seus genros a mando de suas filhas. Um feitiço foi feito para que um deles morresse e o outro para que ele quisesse bem a sua mulher – filha da denunciante – este caso já foi relatado no segundo capítulo. Não ficou comprovado se a feiticeira e sua cliente eram vizinhas, entendemos que a relação que houve entre elas foi financeira, entretanto o que nos chama a atenção é o fato dela solicitar os feitiços por duas vezes, sendo que da primeira vez ela diz não ter concluído o feitiço, pois estava achando que a feiticeira queria “roubá-la”, o fato é que mesmo após ter pedido o cancelamento do primeiro serviço um ano depois torna a negociar outro e desta vez conclui. A cristã-velha Tareja Roiz151 foi em 21 de agosto de 1592 denunciar Maria e denunciou Maria por ela lhe oferecer serviços de magia. Parece que a feiticeira também era sua vizinha e queria conquistar novos clientes. Tareja disse que Maria lhe ofereceu uma mesinha para enfeitiçar quem a tocasse, assim a denunciante faria o que quisesse com o encantado. Ao mesmo tempo em que ofereceu o tal feitiço mostrou ossos que trazia metidos na cabeça dizendo que eram de enforcados e que ela falava com os Diabos. Na ocasião Tareja denuncia outra pessoa por blasfemar, arrenegando a Deus e a Nossa Senhora, mas que não trataremos neste trabalho. 150 Filha do cristão-velho Simão Roiz Froes, e da c ristã-nova Mércia Roiz, natural de Lisboa, Na época da denuncia ela tinha aproximadamente 50 anos de idade e estava casado com escrivão e meirinho, dentre outros ofícios Francisco de Morais. 151 Filha dos falecidos ciganos João Coelho e Violant e Fernandes, tinha 50 anos , era natural de Lisboa, morava em Salvador, veio do Reino para a Bahia por vontade própria e estava casada com Álvaro da Ribeira. 103 Margarida Carneira152, cristã-velha, foi em 22 de agosto de 1591 à mesa da Santa Inquisição denunciar Maria por saber que há cinco anos ela já tinha fama de feiticeira que tratava e falava com os diabos. No mesmo dia Violante Carneira foi também à mesa do Santo Ofício denunciar Maria, dizendo que não sabia onde a feiticeira morava, mas que ouviu dizer que estava na ilha de Itaparica na casa de Diogo Gonçalves. Violante, assim como a maioria dos denunciantes, também disse que Maria trava e falava com os diabos e que um dia ela foi a sua casa e lá chegando Maria: [...] lhe mostrou uma chaga em um pé todo inchado e lhe disse que em certos dias da semana os diabos lhe tiravam daquela chaga um pedaço de chaga um pedaço de carne e que quando ela chamava o diabo se lhes não dava muita ocupação lhe tiravam então dali da dita chaga carne e lhe disse mais que ela ia ao pego do mar de mergulho tirar. [25] tirar certas coisas para fazer feitiços e com feitiços fazia sabia o que queria [...] 153 Na denúncia Violante parece não conhecer direito a feiticeira chamando-a de vagabunda, - mas como vimos em seu processo citado anteriormente – parece que ela usou os ensinamentos da feiticeira para conquistar seus amantes já que “Ella denunciante tinha por certo que era verdade e também lhe dizia que se Ella denunciante quisesse que perante Ella faria tudo o que dizia’ 154 Em 24 de agosto do mesmo ano a cristã-velha Isabel Antônia155 também foi à mesa denunciar e sabendo das feitiçarias de Maria foi à mesa denunciar dizendo que há seis meses abrigou-a em sua casa, mas após ter descoberto que Maria era feiticeira diabólica a expulsou. Isabel conta que a feiticeira “mostrou um vidro com um pouco de azeite dizendo lhe que ia ao campo e que dentro em um signo Sámão tendo o dito azeite na boca falava com os demônios e lhe de mais que por Deus e cruzados que lhe deram fazer arribar pelo poder do diabo o navio que ia desta Bahia para 152 Filha de Simão Carneiro Soares e de Caterina de Magalhães de Meneses, de 50 anos, casada pela segunda vez com Manuel Fernandes Leit ão, também cristão -velho, alfaiat e que estava em Pernambuco. 153 IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio 24 -25 154 Idem, Fólio 25 155 Natural do Porto que veio degredada do Reino para a Bahia por sodomia. Era filha do ferreiro Antônio Pires e de Margarida Anes, tinha 33 anos e era solteira. 104 Portugal” 156 na tentativa de mostrar a denunciante que era uma mulher poderosa, em outro momento Isabel relata que Uma noite indo ela denunciante dormia fora de casa a deixou à dita Maria Gonçalves em sua casa e quando tornou de madrugada não achou a porta fechada por dentro quando a dita Maria Gonçalves se saiu dizendo que ia buscar ela denunciante, (e assim o declarou neste mesa sendo perguntada a dita menina que poderá ser de idade de sete anos) entrando dentro em casa achou no meio dela uma tripeça virada com os pés para cima com umas candeias desceram lhes portas apagadas, e nunca mais depois disto tornou a ver a dita Maria Gonçalves 157 Sobre essa noite a denunciante disse que Maria sumiu e roubou tudo o que pode de sua casa e nunca mais a tinha visto, embora ouvisse dizer que ela estava morando na casa de João Nogueira na Ilha dos Frades, próxima à Ilha de Itaparica e que Alonso Caldeirão foi testemunha do acontecido. Isabel Antônia denunciou também outra mulher que diziam ser feiticeira a Isabel Roiz, a também conhecida como a Boca Torta, dizendo que Francisco Roiz casado com uma mameluca, filho de Antônio da Costa, morador do Recôncavo em Tassuapina, mas que também residia na Rua de São Francisco, na cidade de Salvador pegou emprestado uma carta de tocar por cinco tostões, objetivando conquistar uma mulher quando esta tocasse a carta, mas que isso aconteceu a sete anos quando ele ainda era solteiro e isto lhe passou em sua casa. O que nos leva a crer que mesmo sem acreditar em feitiçaria Isabel no passado foi cúmplice de uma negociação de magia, que mesmo não sendo com Maria – nossa principal personagem – é importante mencionar para que possamos entender a dinâmica das relações sociais entre feiticeiros e clientes. Desta maneira sete foram as denunciantes que comporam o processo de Maria Gonçalves Cajada, quase todas chegaram à mesa do visitador dizendo que a fama de ser feiticeira diabólica era pública. Quatro disseram ser vizinhas da ré. Uma disse ser inimiga, outra morou com ela por um tempo e duas não ficou clara, mas sugere-se que eram apenas conhecidas. O fato é que todas elas a 156 IANTT-IL Processo nº 10748, Fólio 28 IANTT-IL Processo nº 10748, Fólio. 29 157 105 conheciam e que em algum momento acreditaram nos poderes mágicos da feiticeira recorrendo ou não a ela para sanarem seus problemas cotidianos. Após ouvir as testemunhas o Visitador manda chamá-la em 26 de agosto de 1592, que na ocasião se encontrava em Salvador para que a ré soubesse que estava sendo proíbida de sair da cidade sem autorização do Visitador e como estava doente não causaria maiores perigos. A ré também confessa suas culpas dizendo que enganava as pessoas e que tudo que fazia era mentira que só fazia aquelas coisas para conseguir dinheiro, comida e objetos diversos: [..] e logo por ela foi dito com muitas lagrimas que era verdade que perto da esta Bahia ela tinha usado de muitos enganos enganando a muitas pessoas homens e mulheres que lhe pediam feitiços e ela lhes dava uns pós de fígados de galinha forrados e de outras coisas que não eram feitiços, e que ela que os obrava com os diabos, e que ela que falava com os demônios e tratava com eles porém tudo isto eram falsidades que ela ré dizia para enganar as ditas pessoas, e lhes convencer, e tomar tudo assim em dinheiro com outras coisas que lhe davam e ela lhe pedia dando-lhes as ditas coisas com nome de feitiços [...]158 Maria afirmava que os motivos que levaram as pessoas a solicitarem seus serviços era principalmente conquista de amores e para obter sorte em jogos, mas confessa que “dava em nome de feitiços não eram feitiços não danosas, nunca fizeram mal a ninguém nem obravam o que pretendiam que em seu interior de seu coração e entendimento” 159 além disso, afirma que “ nunca teve isso contra nossa Santa fé e que nunca na verdade falou com diabos nem tal pretendeu” 160 afirmando a todo tempo que seu intuito era enganar as pessoas. Em setembro do mesmo ano a ré torna a ser chamada à mesa do visitador para que fizesse confissão inteira, dessa vez ela é questionada acerca dos acontecimentos relatados pelas denunciantes, Heitor pergunta a ela do que eram feitos os tais pós que a feiticeira dizia usar em suas práticas e ela diz que “os pós 158 IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio 39-40 Idem, Fólio 41. 160 Idem. Fólio. 42. 159 106 que ela dava a muitas pessoa eram de fígados de galinha a gados os quais dava dizendo lhe que eram feitiços” 161 Disse também que algumas vezes Tomava alguns sapos ou ratos que achavam mortos no monturo e os torrava e dava os pós deles as mulheres a quem ela enganava mas estes tais pós dizia ela que não os dessem a comer mas somente dizia que os lançassem no chão por onde havia de passar, ou os lançassem nas botas ou nos sapatos que havia de calçar o marido ou do amigo ou a pessoa cuja afeição pretendiam 162 Diz também que enganava seus clientes quando dizia “que se punha de noite no seu quintal com a porta aberta para o mar com a cabeça no ar enfezando e desenterrando botijas estando nua da cintura para cima com os cabelos soltos” 163 o que provaria o perigo que ela corria quando tratava e falava com os diabos. Assim ela diz que os ossos que trazia metidos na cabeça dizendo serem de enforcados nada mais eram do que “um osso de dente de cavalo marinho que lhe trazia consigo para suas enfermidades e que deles dava pequeninos a muitas pessoas enganando-as dizendo que eram ossos de enforcados”. 164 Ainda nesta confissão Maria diz que os nomes que estavam escritos na folha de papel em posse do francês João Rolim eram nomes de mercadores e pessoas abastadas da cidade que lhe indicavam para outros possíveis clientes, afim de que novas pessoas contratassem seus serviços. Maria também citou alguns dos indivíduos que negociou feitiços com ela dizendo que uma cativa mulata que foi de dona Mércia deu pós para serem usados em sua conquista amorosa, para que seu amigo a quisesse bem e como pagamento a feiticeira recebeu cinco tostões, uma galinha e uma toalha de linho. Por um tostão e uma toalha Maria Peneda “mulher mundana” recebeu de Maria pequenos pedaços de ossos dizendo serem de enforcados objetivando também a conquista de um amor. Assim também fez Marta Villela que colocou os 161 IANTT-IL Processo nº 10748, Fólio 44-45. Idem, Fólio. 53-54. 163 Idem, Fólio 45. 164 Idem, Fólio. 46 162 107 pós em sua casa e passou em seu marido para que esse a quisesse bem, adquirindo o feitiço por três tostões. Já a mulher de Simão Barbosa matou um galo a mando da feiticeira e com os fígados do animal fez a cliente torrar ao mesmo tempo em que dizia “certas palavras”, que não lembrava no momento da confissão e depois a cliente daria ao seu marido os fígados do galo torrados, mas não diz a finalidade deste feitiço. Disse também que as filhas da taberneira deram três ou quatro cruzados para ela desenterrar umas botijas de feitiços. Maria Gonçalves torna a ser chamada para confessar suas culpas na mesa em 18 de janeiro de 1593 e perguntada pela doutrina cristã disse o credo, o padre nosso e a Ave Maria, mas não soube dizer os mandamentos e por isso foi mandada aprender a doutrina cristã. E no dia dezoito de janeiro o Visitador mandou chamar Tareja Roiz, Catherina Fernandes, Violante Carneira, Isabel Antônia e Catharina Froes para ratificarem suas denúncias e por não terem nada novo a declarar confirmaram seus relatos. Quadro 10. Pessoas que negociaram feitiços com Maria Nome Prática Remuneração Relação social Domingas Gonçalves Joan Rolin Pero Gudinho Catherina Fernandes Catherina Froes Maria de Peneda Maria Vilela Mulher de Simão Barbosa Feitiços Dinheiro Vizinha Feitiços Feitiços Feitiços de benquerença Dinheiro Três tostões Não evidência Vizinho Vizinho Vizinha Feitiços para causar a morte de um homem e feitiços de benquerença Feitiços de benquerença Dinheiro Não evidência Um tostão, uma toalha Três tostões Três ou quatro cruzados Não evidência Feitiços de benquerença Feitiços de benquerença Não evidência Não evidência 108 Um dia após essas ratificações foi dada a conclusão de seu processo. E por Maria ter dito que tudo eram enganos o Visitador concluiu que as culpas de Maria não eram demasiadamente graves já que ela as fez para conseguir dinheiro e coisas de comer, mas que ela seria penitenciada por enganar outras pessoas atribuindo a ela degredo de volta para o reino onde teria que viver com seu marido, penitências espirituais e o pagamento de custas do processo e livrá -la dos açoites por ela estar doente. Sendo entregue aos cais em 23 de janeiro. [...] mandão que Maria Gonçalves em penitência vá ao ato publico em corpo com uma vela acesa na mão e com uma carocha infamada na cabeça onde estará em pé enquanto se celebrar o oficio na missa e ouvir ler sua sentença e por contar que é mulher doente e enferma a excussão dos açoites que merecia e mandão que logo seja embarcada para o Reino para onde esta seu marido a fazer vida com ele e lhe não dão mais que cumpra as penitencias espirituais seguintes que jejue cinco sextas-feiras a pão e água e reze em cada uma delas o rosário de Nossa Senhora e se confesse muitas vezes e receba o santíssimo sacramento de conselho de seu confessor e aprenda a doutrina cristã que não soube dizer e pague as custas”165 Maria revelou ter enganado principalmente mulheres, embora não lembrasse seus nomes, nem tampouco informa o tipo de relação estabelecido com suas clientes. Seja qual foi a proximidade ou convivência que teve com essas pessoas fica evidente que ela usava da feitiçaria para sobreviver, pois a remuneração para realizar os feitiços quase sempre ocorreu. Abaixo seguem os quadros onde arrolamos os grupos sociais que pertenciam os denunciantes, os tipos de conatos que tiveram com a ré, bem como a prática denunciada ou confessada: Quadro 11. Denunciantes e a relação que tinham com a ré Denunciante Isabel Monteja Caterina Fernandes Tareja Roiz Margarida Carneira Violante Carneira Isabel Antônia Catharina Froes 165 Etnia XV XV XV - Cigana XV XV XV ½ XV IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 81 - 82 Relação social Inimiga Vizinha Conhecida ---Vizinha Morou com a ré, hospedando-a. Cliente 109 Quadro 12. Práticas denunciadas Denunciante Prática denunciou Isabel Monteja Fazer feitiçarias, Domingas enfeitiçar dois Fernandes, homens. vendedora que também veio do Aveiro. Não fica clara mas entende-se que Maria enfeitiçou o mestre e o capitão da galé para que ele consentisse abrigar ela, Maria na mesma câmara que Isabel Margarida Carneira Ouviu dizer que --Maria era feiticeira diabólica Viu Maria fazer Maria Gonçalves feitiçaria Alonso Caldeirão ---- Isabel Antônia que Testemunhas OBS Denunciou outra feiticeira: Isabel Roiz, a Boca Torta Quadro 13. Práticas confessadas Confessou Prática confessou Caterina Fernandes Feitiço para querer bem Tareja Roiz Oferecimento de Maria Gonçalves feitiços para querer bem Feitiços para Maria Gonçalves querer bem: palavras de consagração Feitiços para matar um homem e outro para querer bem Violante Carneira Catherina Froes que Testemunhas Domingas Gonçalves João Rolim Pedro Gudinho OBS Ela não solicitou feitiços apenas presenciou negociações Não aceitou os serviços da feiticeira Foi processada pela Inquisição por feitiçaria Negociou os feitiços com Maria Maria Gonçalves Cajada foi sentenciada em 1593 na Sé de Salvador em auto-de-fé público, portando uma vela acesa na mão e uma carocha infame na cabeça. Sua condenação o degredo para Portugal onde deveria voltar para viver com seu marido, além de receber penitências espirituais, instrução na fé católica 110 e o corrente pagamento das custas do processo, resultado do despacho feito por Heitor Furtado de Mendonça em 24 de janeiro de 1593. 166 Arde-lhe-o-rabo foi uma das mulheres mais procuradas pelos colonos quando o assunto era a realização de feitiços e encantamentos. Pessoas que pertenceram desde as famílias menos abastadas até os homens e mulheres donos de engenhos de açúcar e possuidores de cargos públicos que residiam na cidade de Salvador e em seu entorno. A leitura e análise dos processos de Violante Carneira e Maria Gonçalves nos revelou que por meio da solidariedade vivido na vizinhança as pessoas trocavam informações acerca dos conhecimentos mágicos, seja na troca de receitas de encantamentos, seja na indicação de serviços de feitiçaria ou bruxaria. Violante aprendeu com Maria um encantamento para que ela fosse amada por seus amantes, encantamento que foi denunciado pelos homens que se relacionavam com ela e por isso foi penitenciada. Maria ensinava e negociava seus feitiços a muitos colonos da cidade e em seu entorno e por ser considerada feiticeira também sofreu penitências do Santo Ofício, mesmo dizendo que tudo que fazia era para enganar as pessoas, não tendo pacto nem associação diabólica, pois respeitava e era cristã. O fato é que as evidências encontradas até o presente momento – tanto nos livros das visitações como nos dois casos aqui apresentados – já comprovam que as relações e vivência e mesmo convivência pautadas no uso da feitiçaria foi uma constante na sociedade baiana quinhentista. 166 Segue folio referent e às c ustas do processo e o despacho da sentença de Maria Gonçalves Cajada em apêndice. 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS As práticas de magia foram realizadas em todos os tempos da História, essas muitas vezes foram a solução de problemas ligados à natureza, ao corpo e a espiritualidade humana. Ao longo do tempo, a magia foi exaltada pelos que a praticavam, pois viam em suas ações possibilidade de sucesso coletivo ou individual, ao tempo em que eram vigiados e castigados por aqueles que a temiam ou viam em seus feitos possibilidade de desordem social e mal estar público. Para a Modernidade Ibérica a magia foi demonizada e classificada de maneira geral em feitiçaria e bruxaria, práticas que foram fiscalizadas e puni das por meio da justiça secular e, principalmente, pela Inquisição que os viam como hereges infiéis que pactuados ou auxiliados pelos demônios estavam sendo acusados de intervir nas ações de Deus. Em Portugal, a magia foi classificada como algo supersticioso, que não causaria grandes males a sociedade, nem abalaria a fé católica dos cristãos. Talvez por isso que os acusados de feitiçaria e bruxaria tanto do Reino como em suas colônias não sofreram cruéis sentenças, nem forarm relaxados à justiça secular para que fossem queimados vivos ou mortos nas fogueiras. O que não quis dizer que não houve perseguição e punição, ao contrário, a perseguição sempre existiu dentro e fora da metrópole e como vimos no correr desta dissertação os domínios ultramarinos lusitanos também foram fiscalizados pelo Tribunal da fé. Assim a América portuguesa abrigou dentre outros hereges ou acusados de feitiçaria. As práticas de magia foram uma das religiosidades mais realizadas no Brasil colonial. A capitania da Bahia, que recebeu por duas vezes Visitadores do Santo Ofício entre os fins do século XVI e XVII, foi uma das regiões em que os feiticeiros muitas vezes viveram já penitenciados pela Inquisição, mas ao chegarem continuaram no “erro” do uso de suas práticas. Pois, como já exaustivamente exposto os colonos não conheciam outros caminhos para 112 alcançarem sucesso nos diversos setores de suas vidas, tendo nas práticas de magia alicerce para curar doenças, conquistar amores, saber de noticias de parentes e amigos, dentre outras motivações. Foi, sobretudo as mulheres, cristãs-velhas de idade entre 35 e 50 anos as que realizaram magia, principalmente para amansar seus maridos e fazê-los a quererem-na bem nos anos finais dos quinhentos. Assim também foram os homens os que mais recorrem à magia para tratar de doenças e saber onde estavam objetos ou pessoas desaparecidas. A maioria dos casos de feitiçaria esteve baseada na solidariedade e amizade entre vizinhos, mas muitos foram os casos de negociações entre o feiticeiro e o usuário, que neste caso torna-se cliente, especialmente no trato da magia considerada maligna: a conhecida feitiçaria diabólica. Desta maneira, esperamos que os resultados de nossa investigação possam ter contribuído para traçar de maneira mais específica os perfis sociais de alguns feiticeiros e daqueles que negociavam ou se beneficiavam da magia por meio da troca de conhecimento e da negociação. Está cada vez mais evidente que os contatos sociais em que estavam envolvidos feiticeiros e usuários de magia não eram apenas uma relação financeira baseada na comercialização de serviços mágicos, na qual os clientes solicitavam o tipo de magia a ser realizado e após a entrega ou feitura dos feitiços cessava-se a relação, ao contrário, os feiticeiros e seus clientes poderiam ser vizinhos e como vimos não era apenas essa a forma de sociabilidade desses indivíduos, sendo a partir da analise documental comprovadas, tornando clara a convivência entre esses indivíduos tendo suas bases nas relações de amizade e vizinhança com a troca de conhecimentos mágicos também sem fins lucrativos. Consideramos que este trabalho não está concluso, pois acreditamos que ainda existem outros documentos como as cartas disponíveis nos manuscritos dos Cadernos do Promotor que podem auxiliar na análise dos tipos de relações sociais estabelecidas entre estes indivíduos. Assim não se esgotam as pesquisas referentes à magia e suas relações na cidade de Salvador e do Recôncavo 113 Baiano no primeiro século de colonização, ficando espaço aberto a novos pesquisadores para também contribuírem neste enfoque. 114 REFERÊNCIAS Fontes manuscritas: Processo da Inquisição de Lisboa (IL) no12925, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Lisboa, Portugal. Processo da Inquisição de Lisboa (IL) no 10748 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Lisboa, Portugal. Fontes impressas: FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUEIRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia, 1618-1620, Anais do Museu Paulista, v.XVII, 1963. GARCIA, Rodolfo (Org.). Livro das denunciações que se fizeram na Visitação do Santo Ofício à cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos do estado do Brasil no ano de 1618. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.49, 1927. 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PRIMEIRA VISITAÇÃO DENUNCIANE DENUNCIOU Nome Morada Grupo social Nome Morada Antonio Botelho Tapoan XV - Balthesar Pereira Bernaldo Pime ntel Catarina Fernandes Salvador - Um feiticeiro gentio André Bucal Matoin XV Violante Caneira Salvador Salvaor XV Salvador Salvador Catarina Vasqueiro Custodia Farias Pernambuco XV Maria Gonçalves Domingas Gonçalves Joan Rolin A Borges Matoin XV Paula de Siqueira D. Mercia Mercia Pereira Ilhena da Fonseca Violante Carneira Margarida Carneira Margarida Carneira Denunciou Salvador Salvador Salvador XV XV XV - - - - Gaspar Gonçalves Pero de Mendoça Pernambuco - - - Francisco Roiz Isabel Roiz Maria Gonçalves Ana Roiz Salvador Salvador - XV - D. Lianor Soares Uma feiticeira Maria Gonçalves Catarima Roiz Mija vinagre Isabel Roiz Ana Franco Beatriz Corea D. Margarida da Salvador Salvador Matoin XV XV Mamel uca de Diogo Martins Jaguaribe XV Gaspar de Gois Salvador XV Gaspar Manuel - XV Gonçalo da Mota Isabel Antoniane Salvador XV Salvador XV Joana de Sá Matoin Betanqur Lucia de Melo Salvador XV Maria da Costa Salvador XV Maria da Mota Pauloa de Almeida Salvador XV Denunciante XV Salvador Pernambuco Grupo social Escrav o XV XV Francê s - XV 122 Costa Denunciou Denunciante Francisco Roiz Pe. Balthesar de Miranda Pero de Cãopo Salvador Salvador XV Salvador XV Isabel de Sandales Joan Ribeiro Salvador XV Freguesia Paripe Salvador de XV Margarida Carneiro Violante Carneira Catarina Quaresma Tareja Roiz Isabel Monteiro Sardinha Maria Bautista Isabel d’Villa - Joan Ribeiro Uma bruxa nos Ilheos Antonia de Bairros Capitania Ilheus Salvador D. Mercia Salvador XV Salvador XV XV Antonia Fernandes Maria Gonçalves Salvador XV Salvador XV Maria Gonçalves Salvador XV Salvador XV Salvador Salvador Não sabe XV Maria Gonçalves ou XN? XV Maria Gonçalves XV Maria Gonçalves Salvador Salvador XV XV Branca Lopes Mulata Mamel uco Perabasu Matoin XN Negro Perabasu Mamel u Salvador Salvador João da Villa Salvador Maria de Matoin – paripe Oliveira João Bras Jaguaribe Legenda XV – Cristão velho de Beatriz Corea Mameluco XV XV XV XN – Cristão Novo Lazaro Aranha Negro que veio da Guiné Lazaro Aranha XV 123 LISTA DE DENUNCIANTES E DENUNCIADOS. SEGUNDA VISITAÇÃO Denunciante Denunciou Nome Morada Sebastião Barreto João Gonçalves Enseada Jacaranga Salvador Manuel Gonçalves Manuel de Penhosa Pero de Moura Salvador XV Salvador XV Salvador XV Domingos Franco Salvador XV Legenda XV – Cristão velho Grupo social de XV XV XN – Cristão Novo Nome Negro que veio da Guiné PE. Balthasar Pitta de Vascogoncelos Negro que veio da Guiné Barbara Gudinha Morada Grupo social XV Francisco Cucana Piraja – Negro Recôncavo Simão Nunes de Mattos 124 ALVARÁ LIBERANDO VIOLANTE CARNEIRA A CUMPRIR DEGREDO EM ITAPARICA, DESPACHO DADO EM OLINDA. 125 SENTENÇA DE MARIA GONÇALVES CAJADA 126 CUSTAS DO PROCESSO DE MARIA GONÇALVES CAJADA 127