universidade federal do rio de janeiro

Transcrição

universidade federal do rio de janeiro
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
VIOLÊNCIA: sintoma contemporâneo?
Tese submetida à avaliação do Curso de Pós-Graduação em
Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de
Doutor em Psicologia da Personalidade – Linha de pesquisa: subjetividade,
cultura e práticas clínicas.
AUTOR: Jurandyr Nasc. Silva Jr.
PROFESSOR ORIENTADOR: Professora DoutoraVera Lopes Besset
Rio de Janeiro
2007
Violência: sintoma contemporâneo?
Jurandyr do Nascimento Silva Jr.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Psicologia
Doutorado em Psicologia da Personalidade
Linha de pesquisa: subjetividade, cultura e práticas clínicas
Orientador: Vera Lopes Besset
Professora Doutora
Rio de Janeiro
2007
Folha de aprovação
Jurandyr do Nascimento Silva Jr.
Violência: sintoma contemporâneo?
Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do Título de Doutor em Psicologia
Aprovado por:
_________________________________________
Profª. Drª Vera Lúcia Silva Lopes Besset (Orientador)
__________________________________________
Profª. Drª Ruth Helena Pinto Cohen (UFRJ)
__________________________________________
Profª. Drª Marta Rezende Cardoso (UFRJ)
__________________________________________
Profª. Drª Ilka Franco Ferrari (PUC – MG)
__________________________________________
Prof. Dr. Ricardo de Sá (UFF)
Ficha catalográfica
SILVA Jr., Jurandyr do Nascimento
Violência: sintoma contemporâneo? / Jurandyr do Nascimento Silva
Júnior. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, Pós-Graduação, 2007.
Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Psicologia , Rio de Janeiro, 2007.
Orientação: Profª Drª Vera Lúcia Silva Lopes Besset
1. Psicanálise. 2. Violência. 3. Sintoma. 4. Contemporâneo - Teses
I. Besset, Vera Lúcia Silva Lopes (Orient.). II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III.
Título.
Dedicatória
Aos meus pais; minha mãe (in memoriam) pelo seu esforço, empenho e dedicação
para a formação de seus filhos.
Aos meus avós (in memoriam) por seu exemplo de força, perseverança e ética no
trabalho e na vida.
Agradecimentos
Agradeço, em primeiro lugar, a minha orientadora Profª Drª Vera Lopes Besset,
pelo seu trabalho firme e dedicado ao longo desse percurso.
Aos professores, Profª Drª Ruth Cohen e Prof. Dr. Ricardo de Sá, pela participação
e contribuições feitas no Exame de Qualificação.
Às professoras, Profª Drª Ilka Franco Ferrari e Profª Drª Marta Rezende Cardoso,
pela gentil aceitação para compor a Banca Examinadora desta Tese.
À Drª Eliane Schermann, pelo interesse, acolhimento e pontuações precisas para o
andamento e conclusão desta Tese, assim como pela ajuda fundamental na escolha do tema
e do título deste trabalho.
Ao curso de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, sem o qual nada disso seria possível.
À Capes que, como financiadora dessa pesquisa, tornou esse projeto viável e
concluído.
Resumo
SILVA Jr., Jurandyr do Nascimento. Violência: sintoma contemporâneo? Rio de
Janeiro, 2007. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro; Capes, 2007.
Esta tese tem como tema a articulação entre a violência, o sintoma e os sintomas
contemporâneos no campo da psicanálise freudiana e lacaniana. Nosso ponto de partida
constituiu-se em definir a violência como excesso de pulsão e ruptura do tecido simbólico,
assim como estabelecer uma abordagem da violência como sintoma subjetivo e sintoma
social. Consideramos, por outro lado, como sintomas contemporâneos os sintomas na
atualidade, nos quais há o predomínio da satisfação pulsional e onde seu valor de gozo se
sobrepõe ao seu valor de sentido.
Diante desses pressupostos, propomos como questão: a violência é um sintoma
contemporâneo? Nossa investigação nos permitiu aproximar a violência desses novos
sintomas, uma vez que as características de satisfação, excesso, ruptura, atuação e
impulsão, se mostraram comuns a ambos. Assim, propomos como hipótese, ser possível
abordar a violência através do dispositivo da transferência, no discurso analítico. Uma vez
valorizada sua vertente de sentido sobre sua vertente de gozo, a psicanálise pode levar um
sujeito a acreditar que a violência possa querer dizer algo. Em outras palavras, a psicanálise
seria capaz de tornar a violência um sintoma analítico e levar o sujeito a acreditar no
sintoma como condição de possibilidade para a construção de um saber sobre seu
sofrimento.
Para trabalhar este tema, utilizamos, como método, a divisão da tese em cinco
capítulos. No primeiro capítulo definimos violência, a diferenciamos da agressividade e
investigamos a imposição do imaginário como uma forma de encobrir, ao mesmo tempo em
que desvelar, o real implicado na violência hoje. No segundo capítulo, discutimos a
dialética entre o pulsional e o simbólico, a importância da função paterna como um limite e
orientação ao gozo, o declínio dessa função no contemporâneo e como esse declínio
contribui para a promoção da violência. No terceiro capítulo, refletimos sobre a
subjetividade e o sujeito na psicanálise e como se constitui esse sujeito no contemporâneo.
Verificamos que esse sujeito se encontra hoje submetido aos imperativos de gozo do
supereu próprio de nossa civilização atual e que tal submissão facilita as atuações violentas.
No quarto capítulo, mostramos como esses imperativos de gozo são característicos do
discurso capitalista em sua relação com o discurso da ciência, assim verificamos como tais
discursos podem produzir violência. No quinto capítulo aproximamos a violência dos
sintomas contemporâneos e discutimos sobre o fato de a psicanálise ser capaz de tornar a
violência um sintoma analítico e tratar os sujeitos que padecem desse mal-estar.
Nossa conclusão é de que a psicanálise, entendida como um discurso de exceção à
ditadura do gozo, ditadura essa própria do discurso capitalista, é capaz de levar um sujeito a
fazer questão sobre a violência e construir um saber sobre o que o causa. Diante disso,
acreditar em seu sintoma e amar seu inconsciente seriam as condições de possibilidade para
fazer valer o valor de sentido da violência como sintoma sobre seu valor de gozo. Não
deixando de ter em perspectiva que para a psicanálise é sintoma aquilo que o sujeito
considera como tal, pois só o sujeito pode dizer daquilo que não caminha em sua vida,
ainda que ignore a causa.
Abstract
SILVA Jr., Jurandyr do Nascimento. Violência: sintoma contemporâneo? Rio de
Janeiro, 2007. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro; Capes, 2007.
This thesis has as subject the articulation between violence and the contemporary
symptoms on the freudian and the lacanian psychoanalysis. Our starting point consisted in
defining violence as excess and rupture, where the pulsional satisfaction appears as its main
characteristic. We consider, on de other hand, as contemporary symptoms – the present
symptoms, in which there is the predominance of pulsional satisfaction where the worth of
joy overlays its worth of sense.
Face to the pretext, we offer for discussion: Is violence a contemporary symptom?
Our search allowed us to bring violence near to these new symptoms, once characteristics
of satisfaction, excess, rupture, performance and thrust, showed to be common in both. This
way, we suggest as hypothesis, that it’s possible to approach violence through the
dispositive of transference, on the analytical speech. Since valued its side of sense over the
side of joy, the psychoanalysis may take people to believe that violence might want to say
something. In other words, the psychoanalysis would be able to make violence something
symptomatical, turn it an analytical symptom and lead a subject to believe in the symptom
as a condition of possibility in building knowledge over their own suffering.
To make on our subject, answer our inquiry and support our hypothesis, we used, as
method, the separation of this thesis in five chapters. In the first chapter we defined
violence, detached it from aggressiveness and searched the imposition of imaginary as a
form of covering, at the same time uncover, the real involved in the violence today. In the
second chapter, we discussed the dialectic between the pulsional and the symbolic, the
importance of paternal hole as a limit and orientation taking to joy, the fall of this role in
the contemporary and how this fall leads to the rise of violence. In the third chapter, we
reflect about the subjectiveness and the subject in psychoanalysis and how this subject is
formed in contemporary times. We observed that this subject is found today submitted to
the imperative calls for joy of our civilization and that submission favors violent attitudes.
In the fourth chapter, we showed how the imperative calls for joy are characteristic of
capitalist speech in its relation to science speech, this way we observed how such speeches
may take the violence. In the fifth chapter we brought close the violence to the
contemporary symptoms and discussed about the fact that psychoanalysis may take
violence as an analytical symptom and treat those suffer with it.
Our conclusion is that the psychoanalysis, understood as a speech of exception to
the dictatorship of the joy, dictatorship common for capitalist speech, is able to turn
violence symptomatic and take a subject, who wants and permits to enquire about his
suffering and build knowledge about what causes him. Face to this, to believe in your
symptoms and love your unconscious would be conditions of possibility to make it worth
the value of the sence of violence as a symptom over the worth of joy.
Sumário
Página
INTRODUÇÃO …………………………………………………………………….1
CAPÍTULO
I – VIOLÊNCIA, AGRESSIVIDADE E A IMPOSIÇÃO DO
IMAGINÁRIO .........................................................................................................10
1.1 – Por uma definição ............................................................................12
1.2 – O campo psicanalítico .....................................................................16
1.3 – Agressividade e violência: uma proposta de diferenciação .............20
1.3.1 – Com Freud .........................................................................21
1.3.2 – Com Lacan .........................................................................32
1.4 – O imperialismo da imagem: a sociedade do espetáculo e a cultura do
narcisismo ...........................................................................................40
II – VIOLÊNCIA E CIVILIZAÇÃO: a dialética entre o pulsional
e o simbólico ............................................................................................................48
2.1 – A violência em todos os tempos .....................................................52
2.2 – O programa da cultura e a renúncia pulsional ................................57
2.3 – Sobre o gozo: satisfação e excesso .................................................62
2.3.1 – A violência e a lógica falo/castração.....................................69
2.4 – A violência na origem: o mito freudiano de Totem e tabu
e o limite ao pulsional ..................................................................73
2.4.1 – O gozo na origem .................................................................74
2.4.2 – O mito, o gozo e o desejo .....................................................77
2.4.3 – O mito comentado ................................................................80
2.4.4 – Civilização e violência .........................................................82
2.4.5 – A violência do amor ao próximo ..........................................88
2.4.6 – “Do mito à estrutura” ...........................................................90
2.4.7 – Da transcendência à exceção ................................................96
III – A VIOLÊNCIA E O SUJEITO CONTEMPORÂNEO .......................100
3.1 – Sobre o sujeito na psicanálise .......................................................101
3.1.1 – Penso, logro sou: o sujeito cartesiano e a psicanálise ........105
3.1.2 – Ex-sistência e desejo ..........................................................110
3.2 – Violência e subjetividade no contemporâneo ...............................112
3.2.1 – Uma falta a gozar ...............................................................117
3.2.2 – Segregação do sintoma .......................................................121
3.2.3 – O declínio dos valores ........................................................123
3.2.4 – Uma nova tragicidade .........................................................128
3.3 – O sujeito contemporâneo: um novo sujeito? ................................134
IV – A VIOLÊNCIA E A SUBJETIVIDADE NO CONTEMPORÂNEO..138
4.1 – Sobre a teoria lacaniana dos discursos .........................................139
4.2 – O discurso da ciência e a escritura de um novo real ....................147
4.2.1 – A produção ostensiva de objetos: o discurso da ciência e o
sujeito .................................................................................................................................151
4.2.2 – O real da ciência e o real da psicanálise .............................155
4.3 – O discurso capitalista e a promoção da violência .........................158
4.3.1 – O discurso capitalista e o rechaço da castração ..................160
4.3.2 – Um discurso sem avesso .....................................................163
4.4 – Discurso capitalista, violência e segregação ................................167
4.4.1 – Segregação, violência e o culto ao individual. moderno ....171
4.4.2 – Um sujeito estrangeiro de si mesmo ...................................173
4.5 – Um laço social de outra ordem .....................................................169
V – VIOLÊNCIA: torná-la um sintoma analítico? ..................................... 178
5.1 – Violência, sintoma e atuação ........................................................180
5.2 – Um discurso de exceção ...............................................................184
5.2.1 – Situar a peste ......................................................................186
5.2.2 – Do sentido à extimidade .....................................................190
5.3 – Pontuações sobre o sintoma .........................................................193
5.3.1 – Do sintoma freudiano aos sintomas contemporâneos.........199
5.3.2 – Passagem ao ato, acting out e sintoma ...............................204
5.4 – Violência e sintoma analítico .......................................................214
CONCLUSÃO ........................................................................................................222
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................232
INTRODUÇÃO
O tema da presente pesquisa, inserida no campo da psicanálise, é a violência em
suas relações com a subjetividade e o sujeito. Privilegiar essa dimensão subjetiva, no
entanto, não significa desprezar, e menos ainda desconhecer, as implicações sociais desse
fenômeno. Interessada pelos acontecimentos de sua época, a psicanálise se interroga sobre
as novas formas de apresentação dos sintomas e do mal-estar e, nesse sentido, se interessa
também pela violência. Assim, valendo-nos do instrumental teórico-clínico da psicanálise,
pretendemos propor, neste estudo, hipóteses que nos ajudem a investigar a violência em
nossa civilização.
A questão da violência nos surgiu, inicialmente, por ocasião de uma experiência
clínica1 mais ou menos rápida em um Conselho Tutelar. Por outro lado, recebíamos, nos
ambulatórios da rede pública, sujeitos que se queixavam de um sofrimento direta ou
indiretamente ligado à violência, apresentando-se ora como vítimas, ora como agentes
dessa violência. Além do número elevado de sujeitos portadores dessa queixa, chamou-nos
a atenção o fato de que, apesar do sofrimento, era difícil para esses sujeitos desvencilhar-se
de tal situação na qual se reconheciam como se com ela se identificassem. Começamos a
1
A experiência clínica em questão se deu em um Conselho Tutelar, na cidade de Sumidouro/RJ, em
ambulatório público de saúde mental da Secretaria de Saúde no município de Sapucaia/RJ e em consultório
particular, na cidade de Além Paraíba/MG, no ano de 2002.
desconfiar da possibilidade de haver uma espécie de satisfação implicada naquilo de que se
queixavam, e passamos a nos perguntar qual seria o interesse deles em se livrar do
sofrimento que tal situação lhes impunha.
Além da vertente clínica, havia uma outra flagrante que, para nós, no decorrer do
tempo e dos acontecimentos, sobretudo os que se seguiram ao 11 de Setembro, só foi
crescendo. Referimo-nos à vertente social da violência que atravessa nosso cotidiano das
mais variadas formas e sobre a qual não podemos deixar de refletir. Perguntamo-nos então
se a violência poderia ser considerada um sintoma da atualidade em nossa civilização, quer
essa violência apareça de forma espetacular em sua versão social, quer ela surja silenciosa e
tímida, na clínica2. Disso resulta nossa questão de pesquisa: A violência é um sintoma
contemporâneo? Precisaríamos investigar.
A psicanálise sempre se interessou pelo que ocorre no mundo e não há dúvidas de
que a violência constitui, hoje, uma realidade alarmante, seja a violência cotidiana, seja a
violência que prolifera nas guerras espalhadas pelo planeta ou nas atuações terroristas de
que temos notícias. Nesse sentido, podemos começar a considerar a violência como o
exercício de um poder ou de uma força sobre um outro, contra sua vontade e sem seu
consentimento.
No presente estudo, e sob a ótica da psicanálise, interessa-nos definir a violência
como um excesso de pulsão e como gozo. Assim, tendo em vista nossa questão de
pesquisa, sustentamos a hipótese de haver na violência a existência de um gozo, uma
satisfação pulsional subjacente tanto àqueles que a exercem quanto àqueles que a sofrem.
2
Não podemos nos esquecer que a dimensão social também aparece na clínica do particular. Cada sujeito leva
consigo, à clínica, além de sua história pessoal e singular, o contexto social em que está inserido, com todas as
suas implicações.
Isso nos possibilitou introduzir perspectivas de interesse para a compreensão da violência
em nosso tempo. Assim, pautados por uma posição totalmente avessa à política de
vitimização, procuramos discutir a violência de forma a poder apreendê-la embasados numa
política do sintoma.
Partindo da suposição de que a violência seria um excesso pulsional ocasionando a
ruptura dos laços sociais constituídos no interior da cultura e viabilizados pelo viés do
Outro da linguagem, nos perguntamos qual seria o estatuto da violência na
contemporaneidade. Para chegarmos a uma resposta, uma vez estabelecido que a violência
não é um conceito psicanalítico, precisaríamos transpor a enorme floresta conceitual da
psicanálise, em Freud e Lacan, a fim de desenvolvermos o estudo ao qual nos propusemos.
Da questão de pesquisa enunciada mais acima desdobra-se uma outra, a saber:
poderia o discurso do analista, no dispositivo da transferência, operar na violência de modo
a torná-la um sintoma analítico? Disso decorre nossa hipótese, segundo a qual a violência
contemporânea poderia ser abordada no mesmo nível que os assim chamados sintomas
contemporâneos. Nestes, diferentemente dos sintomas clássicos descritos por Freud como o
resultado do recalque sobre a sexualidade, o imperativo do gozo estaria em primeiro plano
e a vontade de gozo muito mais evidente do que o conflito subjetivo que busca
interpretação. Nesse sentido, eles se encaixariam muito na última definição de sintoma dada
por Freud, a saber: uma satisfação pulsional que resiste ao trabalho pela palavra.
Todavia, pensamos que a psicanálise não deva recuar diante da dificuldade de
abordagem dos novos sintomas. Ao contrário, a partir do dispositivo da transferência e do
seu manejo no processo analítico, abordar a violência como um sintoma passível de
tratamento, caso o sujeito assim o queira e o permita, seria um desafio que nos cabe aceitar.
Na atualidade, parece haver um real exposto, no qual a persistência do emprego da
força e da crueldade no seio da civilização contemporânea surgiriam como uma
conseqüência da submissão do sujeito a um tipo de discurso que não reconhece o avesso.
Esse discurso, considerado uma perversão daquele que foi nomeado por Lacan como o
discurso do mestre (1969-70[1992]), é o discurso capitalista. Chama nossa atenção fato de
que, no contemporâneo, a violência dependa em grande parte do que esse discurso fomenta
e produz como subjetividade no interior da civilização.
O saber analítico nos serviu de instrumento para interrogar a lógica inconsciente
subjacente ao que identificamos como sintomas contemporâneos, porquanto esse saber
pode nos sugerir propostas de atuação frente à particularidade da violência em nossa
atualidade. Como já dissemos, violência não é um conceito psicanalítico, embora sua
dimensão apareça evocada, em vários níveis, por muitos conceitos da psicanálise, tais como
a agressividade, o par amor-ódio, o sadismo e o masoquismo, a passagem ao ato, o acting
out, as pulsões de vida e as pulsões de morte, o gozo, o desejo, o narcisismo, o trauma,
além das categorias que Lacan nos legou, tão caras a esta pesquisa, a saber: o Imaginário, o
Simbólico e o Real.
A psicanálise nos ensina sobre a impossibilidade de um objeto adequado para
completar o furo constitutivo do sujeito. Este furo, o buraco aberto no psiquismo pelo fato
de o homem saber-se mortal, é o que fundamenta a subjetividade. O traumático, no que
concerne à pulsão, é justamente o fato de o significante não conseguir conter toda a libido
no aparelho psíquico, deixando então um resto não assimilável, e, por conseguinte,
demonstrando o furo e a divisão do sujeito. As palavras mantêm a certa distância o horror
que o contato direto com esse furo representa para o sujeito e a fantasia faz a tela necessária
para velar o vazio. São as palavras que tornam simbolicamente suportável esse vazio e o
gozo daí advindo, ou seja, é através das palavras que a pulsão pode ser fixada a um
representante que lhe dá uma direção.
Essa dimensão do Real e do gozo parece estar exposta no contemporâneo, em sua
dimensão de excesso, como violência. A ausência de uma palavra que venha a fazer borda
ao furo real que clama por um significante que o fixe a um objeto, ou por uma imagem que
lhe dê consistência, pode impelir o sujeito a uma passagem ao ato violenta.
Diante do declínio da função paterna, da fragilidade simbólica de nossa época e da
pregnância do Imaginário, o sem-sentido do Real parece irromper de modo cada vez mais
intenso. Nesse sentido, a violência eclodiria como gozo sem mediação, que, no excesso,
busca a aniquilação do outro e o rompimento dos laços sociais. Ao mesmo tempo e
paradoxalmente, a violência também pode ser um apelo para que um Outro incida sobre
esse excesso pulsional dando ao sujeito, à deriva e “des-norteado”, alguma possibilidade de
encontrar um lugar no Outro.
Essas são algumas das questões que pretendemos discutir em nosso estudo sobre a
violência. Para tanto, utilizaremos nossa pesquisa como um instrumento mediante o qual
tentaremos responder a nossa pergunta e sustentar nossas hipóteses. Como método de
trabalho, dividimos a presente tese em cinco capítulos.
No primeiro, começamos definindo o que concebemos por violência. Passamos,
então, a mostrar sua importância para o campo psicanalítico, tendo em vista que tanto Freud
quanto Lacan deram algum destaque ao tema em sua obra. Em seguida, fomos levados a
diferenciar a violência da agressividade, pois consideramos que o conceito de
agressividade, tal como é tratado pela psicanálise, não parece ser suficiente para dar conta
da violência, entendida, então, como gozo e expressão do Real no contemporâneo.
Tomando esse viés, assinalamos a tentativa atual de mascarar o real impossível com
a imposição do imaginário. No contexto atual, destacamos, por um lado a configuração
imaginária da agressividade na identificação narcísica ao semelhante e, por outro,
ressaltamos a inscrição simbólica da violência ao ser apaziguada pela identificação
simbólica com o rival edípico e na função do ideal do eu. Diante disso, levantamos duas
hipóteses, a saber: a agressividade não basta para explicar o ato violento e a violência não
pode ser uma conseqüência direta da agressividade voltada para o exterior. Em outras
palavras, a agressividade primordial constitutiva do eu não é suficiente para fundar a
“barbárie”, tal como presentificada pela violência no contemporâneo.
No segundo capítulo, discutimos a importância da função paterna como aquela
capaz de temperar e dar um limite ao gozo, possibilitando a constituição de laços sociais no
interior da cultura. Desse modo, refletimos sobre a dialética entre o simbólico e o pulsional.
Partindo do texto freudiano Totem e tabu (FREUD, in op. cit.), trabalhamos a questão da
violência como estando na base do advento da cultura. Abordamos também a função do pai,
tanto em Freud quanto em Lacan, enfatizando os diferentes momentos em que Lacan
trabalha essa função, até chegarmos no ponto em que seu ensino culmina no Nome-do-Pai
funcionando como um sintoma. Nesse sentido, nosso interesse se volta para o declínio da
função paterna e suas conseqüências em relação à violência.
No terceiro capítulo, trabalhamos a articulação da violência com o sujeito
contemporâneo, e nos perguntamos se a constituição desse sujeito se aproximaria daquela
descrita por Freud e retomada por Lacan em seus estudos. Em outras palavras, se a
tragicidade clássica, determinante da constituição do sujeito com o complexo de Édipo,
seria ainda válida para pensarmos a constituição do sujeito na atualidade. Perguntamo-nos,
então: o sujeito contemporâneo seria um novo sujeito?
No quarto capítulo, nos interrogamos sobre o fato de a violência poder vir a ser
causa e efeito da maneira como se estrutura a subjetividade em nosso tempo. Em nossa
abordagem, trabalhamos a teoria dos discursos proposta por Lacan (in op. cit.) para pensar
o laço social. Com base nesses discursos, Lacan formula uma teoria do laço dominante nas
sociedades capitalistas a partir do discurso capitalista. Além disso, em Televisão
(1973[1993]), afirma ser possível sair desse discurso pela via do discurso do psicanalista.
Esta é a aposta na qual os psicanalistas de orientação lacaniana fundamentam sua posição
ética. De todo modo, a “saída” proposta por Lacan constitui um enodamento da pulsão
distinto do discurso político ou pedagógico.
Nesse capítulo, interessa-nos discutir como se configura a subjetividade no
contemporâneo. O discurso capitalista, substituto do discurso do mestre que se tornou o
discurso hegemônico na atualidade, implica na foraclusão, na rejeição da castração. Disso
decorre uma nova questão que nos propomos a investigar, a saber: qual o laço entre a
violência na atualidade e o discurso capitalista?
No capítulo cinco, procuramos então elucidar nossa hipótese, qual seja, a
possibilidade de tornar a violência um sintoma analítico. Tomando como ponto de partida o
discurso analítico enquanto uma exceção ao imperativo de gozo de nossa sociedade
contemporânea, propomos, pautados no estudo do sintoma, da passagem ao ato e do acting
out, não considerar a violência apenas como uma passagem ao ato, mas também como um
novo sintoma passível de intervenção pelos instrumentos da psicanálise. Assim, não recuar
diante dessa difícil tarefa seria uma posição ética a ser sustentada pela psicanálise no
contemporâneo.
Em nossa conclusão, discutimos sobre a importância de levar a violência, tal como
ocorre com os sintomas contemporâneos, às práticas do dizer. Tais sintomas, conforme
dissemos, são mudos. Neles, o predomínio do gozo sobre o dizer é flagrante. Ainda em
nossa conclusão, realçamos o valor do acolhimento possível de ser dado pela psicanálise às
novas formas de sintomas e ratificamos a proposta de não recuar diante da violência.
Que a psicanálise nada pode fazer no momento da atuação violenta, é um fato, tal
como não pode tratar toda a violência, em todas as suas manifestações e lugares. Isso,
porém, não nos impede de propor que a psicanálise se ocupe da questão da violência e se
ponha disponível para acolher a quem assim o queira e consinta. Tal acolhimento
possibilitaria ao sujeito deixar-se tocar pelo enigma contido em seu sintoma, entendendo-se
o sintoma como um sentido inconsciente que tem algo a dizer. No tocante à violência, é
importante não apenas levar o sujeito a se questionar sobre o que esse sintoma quer dizer,
mas também a realizar alguma mudança de posição no que concerne à satisfação paradoxal
implicada em seu sintoma.
CAPÍTULO 1
Violência, agressividade e a imposição do imaginário
Pois todas as coisas, do Vácuo
Invocadas, merecem ser destruídas...
Assim, tudo o que como Pecado classificastes,
Destruição, algo com o Mal mesclado,
Esse é o meu próprio elemento. (GOETHE apud FREUD,
1930[1929], p. 143)
Quando nos interessamos pelo tema da violência para nossa pesquisa,
imediatamente constatamos que violência não é um conceito psicanalítico. Conforme
veremos mais adiante, apesar de Freud se referir à violência em alguns de seus trabalhos,
para ele a violência não obtém o status de conceito. Em suas formulações, se refere à
agressividade, ao sadismo, ao masoquismo, ao trauma, à pulsão de morte, enfim, a
conceitos que, embora sejam bem delimitados no campo psicanalítico, não nos permitem
abordar a violência de uma forma direta.
Lacan tampouco desenvolve propriamente o conceito de violência, ele se restringe a
trabalhar a agressividade em textos como A agressividade em psicanálise (LACAN,
1948[1998]), O estádio do espelho como formador da função do eu (idem, 1949[1998]), ou
Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (idem, 1951[1998]). Textos
ligados a seu primeiro ensino, que nos darão subsídios consideráveis para trabalhar a
questão proposta nesta tese.
Nesse primeiro capítulo, percorreremos uma trilha que começa procurando definir o
termo violência. Em seguida, mostraremos a importância da psicanálise se interessar pelo
tema, levando-se em conta que ela sempre se interessa pelo que ocorre no mundo. E não há
dúvidas de que a violência, hoje, venha de onde vier, constitui uma realidade alarmante.
Tentaremos também diferenciar violência e agressividade, pois parece que não
estamos autorizados a considerar agressividade como sinônimo de violência. Além disso,
procuraremos investigar se a agressividade, tal como Freud e Lacan desenvolveram seu
conceito, seria capaz de dar conta da problemática da violência no contemporâneo, dado
que ela sempre surge associada a um excesso que se expressa na ultrapassagem de um
determinado balizamento simbólico instituído no interior do laço social.
Por outro lado, ainda nesse capítulo, discutiremos a violência e sua possível relação
com a prevalência da imagem no contemporâneo. Procuraremos refletir sobre uma
articulação entre a violência e a massificação de imagens a que somos expostos no
cotidiano, resultando numa banalização da violência por uma mídia desinibida, veiculando
verdadeiros espetáculos de horror. Interessamo-nos em interrogar o que essa atual exibição
exacerbada da imagem quer velar, ao mesmo tempo em que, por esse mesmo movimento,
nos revela.
Sobre isso, recentemente, escreveu um autor:
O show da guerra filmada, chocante em Apocalipse Now, está hoje banalizado.
Orgias de sangue, bacanais de membros despedaçados invadem nosso cotidiano
com o “aqui e agora” das atrocidades live. São imagens do espetáculo que
trazem o gozo do olhar que (...) [atravessa/captura] o espectador com um horror
excitante. A pulsão escópica se satisfaz no imaginário por sua face silenciosa e
trágica, retraçando imagens que permanecem, que não se apagam. (QUINET,
2002, p. 281).
1.1- Por uma definição
O que é a violência? Primeiramente, seria de interesse procurar estabelecer-lhe uma
definição. Começaremos por dois dicionários de língua portuguesa: o Novo Aurélio (1985)
e o Grande Dicionário Larousse Cultural (1999). Ambos tratam de definir o termo sem
muitas diferenças. Portanto: “1. Qualidade ou caráter de violento. 2. Ação violenta. 3. Ato
ou efeito de violentar. 4. (jur.) Constrangimento físico ou moral; uso da força, coação.” (in
op. cit., 1975). “1. Que atua com força, com ímpeto, forte impetuoso. 2. Que se exerce com
força. 3. Colérico, irascível. 4. Intenso, veemente. 5. Em que se usa a força bruta. 6.
Contrário ao direito, à justiça, à razão.” (in op. cit., 1999).
O termo violência aparece definido por Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de
Filosofia (2000, p. 1002), a partir de Aristóteles, como uma “ação contrária à ordem e à
disposição da natureza” (idem). Assim, Aristóteles distingue dois movimentos: “o
movimento segundo a natureza” (idem), que leva os elementos ao seu lugar natural e o
movimento pela violência, que os afasta. Além disso, Abbagnano define violência como
“ação contrária à ordem moral, jurídica ou política. Nesse sentido, fala-se em ‘cometer’ ou
‘sofrer’ violência” (idem). Ainda segundo esse autor, há uma distinção entre “a violência
que se destina a criar uma sociedade nova e à força” (idem), a qual, em sua definição “é
própria da sociedade e do estado burguês” (idem, p.1003). Conforme ele nos diz, em 1966,
Sorel, em Reflexões sobre a violência afirma: “O socialismo deve à violência os altos
valores morais com que oferece salvação ao mundo moderno”.
Reservadas as controvérsias políticas, ideológicas ou mesmo subjetivas sobre tal
afirmação, notamos, no entanto, que a noção de violência estabelece uma relação com o
poder, com a força e com o domínio, implicando a dimensão de domínio do outro pela
força a fim de estabelecer um poder sobre ele, independentemente de sua vontade ou de seu
consentimento. Nesse sentido, a violência estaria sempre mantendo uma relação com o
limite, buscando ultrapassá-lo. Ao mesmo tempo, a noção de excesso se encontra
diretamente implicada com a violência.
Do ponto de vista etimológico, a palavra violência tem sua origem no latim “vis”,
que significa “força”, “vigor”, “potência”, “emprego da força” (DADOUN, 1998, p. 10),
derivando-se da palavra latina violentia. Em sua pesquisa sobre as origens e definições para
violência, Isabel Marin (2002), em obra recente, nos diz: “Aliás, Jean Bergeret pesquisa o
termo e o deriva do radical indo-europeu ßtF, que, passando pelo grego ß [ßí ] e o latim
vita, define a vida, a força vital, o impulso de sobrevida – reportando, portanto, à idéia de
vida sem a conotação destrutiva ou erótica que assumiria mais tarde.” (MARIN, 2002, p.
22).
A própria etimologia da palavra violência introduz em sua noção um duplo sentido:
por um lado, sua raiz latina aponta para uma força vital, no sentido de vigor e potência; por
outro, o emprego da força sobre um outro introduz a destrutividade, fazendo então da
violência essa força que impele para a ruptura de limites, para o excesso, para a crueldade e
o abuso de um certo poder.
Em um texto recente (ALMEIDA PRADO, 2004, p. 13), apoiando-se em uma das
definições encontradas para violência, a autora nos diz que esta surge como
constrangimento físico e moral, como uso da força e coação. Ela prossegue nos fornecendo
algumas outras definições para violência, buscando assim determinar o seu sentido. Desse
modo, ela aponta o Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English (1995), no
qual segundo ela, a violência é definida como um comportamento cuja intenção é ferir ou
matar; é ainda um sentimento muito forte que não se consegue controlar; ao mesmo tempo,
aponta para o uso da força física (idem, p. 14). Já no Micro Robert (1971), a violência é
tratada como a atuação de uma pessoa sobre a outra levando-a a agir contra sua vontade,
empregando, para isso, a força ou a intimidação. É a imposição de uma vontade contrária à
da vítima usando de força bruta para submetê-la. Fala-se também de uma “disposição
natural à expressão brutal dos sentimentos” (idem), além da produção de efeitos brutais.
Assim, a autora argumenta sobre o fato de a violência envolver excesso e
brutalidade, “perda de liberdade e autonomia, já que implica no emprego ilegal ou ilegítimo
da força, seja de forma manifesta ou velada, [além da] noção de dano, estrago.” (idem). Ela
cita ainda um outro autor (CARLINO, 2000) que ressalta o fato de a violência implicar a
dominação ou o “dano à capacidade de pensar” (idem). Citando Perget, ela chama a atenção
para a definição dada por ele à violência como “um funcionamento primitivo que tende a
anular o funcionamento psíquico de uma outra pessoa e impor-lhe significados.” (idem).
Há, aqui, a idéia de uma força intensa que tende a irromper sobre um certo limite,
submetendo o outro aos seus efeitos, contra a vontade dele e da qual está impedido de se
livrar.
Todas essas definições apontam para algo em comum que é o uso da força e o
excesso, algo que ultrapassa o limite de uma certa ordem instituída. A comunidade dos
homens, ou seja, a cultura, é caracterizada por uma máxima que poderia ser descrita como
“nada de excesso” (MILLER, 1997, p. 420). O que a violência demonstra é uma ruptura
desse impedimento. Por outro lado, também é a ruptura de uma promessa de não exceder a
certos limites, promessa e lei estabelecidos simbolicamente entre os homens para se
conviver em sociedade. Nesse sentido, a violência se torna a ruptura da aliança com o
Outro simbólico, a encruzilhada em que se vêem rompidos o contrato coletivo e sua relação
com a lei simbólica. A violência é, ainda, a ruptura do pacto com o Outro e com a palavra.
Assim, a violência surge como a ultrapassagem de todos os balizamentos
simbólicos estabelecidos no interior da cultura. Ao fazer tal ultrapassagem, o sujeito,
utilizando-se da violência, parece objetivar justamente excluir-se da submissão à palavra e
ao significante. Submissão esta que possibilitaria o vínculo de um sujeito ao Outro, pois o
sujeito e o Outro não possuem nenhum outro meio de estabelecer vínculos que não seja a
linguagem. Lacan nos mostrou que cada um de nós se define pelo fato de estar inserido em
um discurso, em um laço social3, o qual, por sua vez, só se sustenta com a linguagem. Em
outras palavras, não existe o laço social fora dos discursos estabelecidos e sem sua
referência à linguagem. A violência nos mostra, hoje, um rompimento desses laços sociais.
3
“Lo que quisiera entonces decir más libremente es que haciendo alusión en este escrito a aquello que lo cual
me encuentro en posición de abrirme paso a este discurso analítico, es muy evidentemente en tanto lo
considero como constituyendo, al menos en potencia, a esta especie de estructura que designo con el término
discurso, es decir aquello por lo cual por el simple efecto del lenguaje, se precipite el lazo social. (...)
El modo por el que un discurso se ordena de modo tal que precipite un lazo social comporta inversamente que
todo lo que se articula ahí se ordena por sus efectos.” (LACAN, J., O Seminário, livro 19, Ou pior, o saber do
psicanalista, lição de 4 mai 1972, inédito).
1.2 – O campo psicanalítico
Apontamos anteriormente o fato de a violência não ser um conceito para a
psicanálise, daí a dificuldade em circunscrevê-la no campo psicanalítico. Por outro lado, a
psicanálise se interroga a respeito das novas formas dos sintomas e do mal-estar na
atualidade. Nesse sentido, é possível que ela possa lançar alguma luz sobre a questão da
violência em nosso tempo, propondo hipóteses para a compreensão desse mal-estar.
Hipóteses estas que possam incluir o inconsciente e a satisfação pulsional.
O saber analítico é um instrumento que Freud construiu para interrogar a lógica
inconsciente subjacente ao que poderia ser identificado como sintoma, ou seja, como aquilo
que vai mal, que incomoda e que causa um certo dano ao sujeito que dele padece. Isso não
impede, pelo contrário, que a psicanálise construa propostas relativas ao que seria a
particularidade do estado de violência em nossa civilização.
Propomos situar o sintoma social diferentemente do sintoma subjetivo. O sintoma
social seria algo que perturba a ordem social estabelecida, na qual há a aparência de uma
certa homogeneidade. É uma categoria coletiva que possibilita o surgimento de predicados
coletivos, por exemplo, quando se diz que a sociedade de hoje é mais violenta.
Entender a violência como sintoma social, permite situá-la de forma a estar
circunscrita a algo que ultrapassa uma ordem estabelecida. Em contrapartida, entendê-la
como sintoma subjetivo, próprio da singularidade de cada sujeito, pode ser possível através
da noção de sintoma como emergência da verdade que concerne ao desejo e ao gozo
próprio de cada um. Para a psicanálise, o sintoma condensa verdade e gozo. O gozo aqui é
entendido, a partir de Lacan, “como a satisfação de uma pulsão” (LACAN, 1959-60[1991],
p. 256). Assim, a violência como sintoma supõe uma ordem instituída da qual emerge
aquilo que não anda bem numa dada ordem estabelecida, que impede a felicidade buscada
pela via do prazer e acaba por desvelar o mal-estar a que estão submetidos os sujeitos na
civilização.
Nas palavras de Lacan: “a violência é de fato o que há de essencial na agressão (...).
Não é a fala, é até exatamente o contrário. O que pode produzir-se numa relação interhumana são a violência ou a fala.”. (LACAN, 1957-58[1999], p. 471). Podemos, assim,
começar a responder a questão que formulamos no tocante ao tema da violência, a saber:
por que estudar a violência a partir da psicanálise, quando ela seria um objeto de estudo
mais adequado a ser abordado pela Sociologia, pela Antropologia, pela Psicologia Social,
ou mesmo pelo Direito ou pela Criminologia?
Em primeiro lugar, chamamos a atenção para o fato de a psicanálise não poder estar
alheia aos acontecimentos de sua época. Nesse sentido, encontramos uma outra citação de
Lacan: “antes renuncie a isso [praticar a psicanálise], portanto, quem não alcançar em seu
horizonte a subjetividade de sua época.” (1953[1998], p. 322). Sabemos que, apesar de a
violência ter permeado toda a história da humanidade, como objeto de estudo ela é
relativamente recente e, na forma como se apresenta hoje, absolutamente atual.
Além disso, uma reflexão sobre a violência convida ao diálogo interdisciplinar entre
a psicanálise e outros saberes, e isso já de longa data. Se observarmos a preocupação que
Freud e Lacan tiveram, por exemplo, com o tema da criminalidade, constataremos a
importância do estudo da violência para a psicanálise. Cabe lembrar que, nos anos 50,
Lacan se dedicou ao estudo da criminalidade e da delinqüência, resgatando a importância
da agressividade na constituição do sujeito e do eu. Pertence a essa época o seu texto:
Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950[1998], p.127-151).
Além disso, não podemos nos esquecer que Freud foi convidado a falar sobre a
subjetividade do criminoso. A esse respeito, escreveu o texto: A psicanálise e a
determinação dos fatos nos processos jurídicos (1906).
Esse diálogo interdisciplinar mostra sua importância. No entanto, tendo em vista a
natureza do discurso psicanalítico, vale assinalar que a relação entre subjetividade e cultura
é um assunto que lhe interessa de perto. É importante ressaltar que, enquanto alguns saberes
tratam de explicar a violência em termos lineares de causa e efeito (CARDOSO, 2001, p.
42), a psicanálise busca uma interpretação mais dinâmica desses fatos, sem deixar de nela
incluir o conflito psíquico como “dimensão fundamental e inescapável da subjetividade,
que se integra, por sua vez, a uma rede com múltiplos níveis de determinação (...) tendo em
vista o elo indissociável entre subjetividade e cultura.” (idem, p. 43).
Por outro lado, Freud não faz uma diferença radical entre uma psicologia individual,
subjetiva e uma psicologia social, cultural. Em seu texto Psicologia das massas e análise
do eu (1921), ele escreve: “A oposição entre a psicologia individual e a psicologia social,
ou psicologia das massas, que pode nos parecer, à primeira vista, muito importante, perde
muito de sua acuidade se a examinarmos a fundo.”.
Em relação especificamente à violência, embora, como já dissemos, ela não seja um
conceito psicanalítico, Freud também não deixou de falar sobre ela, de lhe dar um lugar em
sua obra. Basta percorrer os textos nos quais ele discute essa questão, tais como: Totem e
tabu (1912-13), Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), O mal-estar na
civilização (1930[1929]), Por que a guerra? (Einstein e Freud) (1933 [1932]a), Angústia e
vida pulsional (1933[1932]b), Moisés e o monoteísmo (1939[1934-38]), entre outros. Em
Por que a guerra? (Einstein e Freud) (in op. cit.), por exemplo, respondendo às questões
formuladas por Einstein em sua carta, ele escreve:
O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. É certamente o
ponto de partida correto para nossa investigação. Estou autorizado a substituir
a palavra ‘poder’ por ‘violência’ {‘Gewalt’}, mais dura e estridente? (...) Pois
bem, os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos, em princípio,
mediante a violência. (idem, ibidem, p. 187-8).
Assim, acreditamos ser possível conseguir avançar na investigação sobre a violência
na atualidade utilizando o aporte teórico da psicanálise. Em outras palavras, é possível que
a psicanálise tenha algo a dizer sobre a relação entre a violência e a subjetividade de nossa
época. A seguir, discutiremos a relação ou a antinomia entre agressividade – conceito
psicanalítico – e violência, a fim de nos pormos em condições de afirmar, ou não, se a
agressividade é capaz de responder ao que presenciamos hoje como violência. Cabe
enfatizar que a violência é entendida, aqui, em seu estatuto de excesso, de ultrapassagem e
também de uso da força e do poder sobre um outro.
Caracterizamos então a violência humana como um “mais”, um excesso que parece
ir mais além da agressividade animal como função defensiva. Não nos parece haver
dificuldades de entendimento quando se diz que os animais não são sádicos, que matam
para comer sem requintes de crueldade. No humano, a dimensão do sadismo está sempre
presente. Esta é uma questão que preocupava Freud. Sua famosa expressão – Homo homini
lupus (1930[1929], p. 133) poderia parecer enganosa, dado que a ferocidade dos homens
em relação a seus semelhantes supera tudo quanto podem fazer os animais. Nesse sentido,
estaria a agressividade inerente à constituição do eu fundamentando a violência na
atualidade?
1.3 - Agressividade e violência: uma proposta de diferenciação
Visando traçar um percurso que possa embasar a presente discussão, partiremos do
estudo de Freud a respeito da agressividade, verificando, de imediato, a dificuldade que
existe em rastrear o tema em sua obra. Por outro lado, percebemos que foi a partir de sua
prática clínica que Freud pôde pensar e trabalhar sobre o assunto, atribuindo uma
importância crescente à agressividade. Desse modo, Freud mostra a relevância da
agressividade na constituição do sujeito e suas implicações com a sexualidade. Essa
investigação freudiana culmina com a conceitualização da pulsão de morte, na qual, a partir
desse conceito, ele supõe um substrato pulsional único e fundamental para a agressividade.
Todavia, não podemos dizer que se torna uma posição definitiva.
1.3.1 – Com Freud
Começaremos por uma formulação tardia em Freud. Em sua Conferência 32 –
Angústia e vida pulsional (1933[1932]b), ele se pergunta: “Por que demoramos tanto antes
de nos decidir a reconhecer uma pulsão de agressão, por que vacilamos em utilizar para a
teoria fatos que eram manifestos e notórios para todo mundo?” (idem, p. 96). Estes
questionamentos de Freud podem levar a pensar que ele nunca antes havia dado muita
importância à agressividade em seu trabalho. No entanto, as duas perguntas formuladas por
ele e citadas acima precisam ser separadas se quisermos entender do que se trata.
A formulação da hipótese de uma “pulsão agressiva” autônoma, ou seja, separada
da sexualidade, foi feita por Alfred Adler, em 1908 (KAUFMANN, 1996, p. 18). Segundo
este autor, toda pulsão tem origem na atividade de um órgão, sendo que os órgãos inferiores
se distinguem por uma pulsão particularmente forte. Assim, os órgãos inferiores irão
desempenhar um papel importante na gênese das neuroses. Em relação à perversão, ao falar
do sadismo, diz que este se baseia no “cruzamento” das pulsões agressivas com as sexuais.
Ainda para Adler, a pulsão de agressão sofre as mesmas vicissitudes que as pulsões sexuais,
ou seja, retorno ao próprio eu, transformação em seu contrário, recalcamento e sublimação.
(idem).
Tal hipótese foi recusada por Freud durante muito tempo. Freud concordou com a
maioria das ponderações de Adler, exceto com o que este chamava de “pulsão de agressão”
que, para Freud era a libido (idem). Contudo, a existência de comportamentos agressivos na
prática clínica da psicanálise já lhe era reconhecida muito antes da construção de sua
segunda teoria das pulsões. Freud não ficaria alheio a isso.
A agressividade apareceu, para Freud, desde muito cedo em sua experiência clínica.
Foi o que ele observou, por exemplo, quando se deparou com a resistência, situação
privilegiada em que surge tal agressividade de forma mais ou menos manifesta. Em sua
carta a Fleiss, de 27 de outubro de 1897 – Carta 72, ele escreve: “um sujeito excelente e
franco, torna-se grosseiro, mentiroso ou obstinado e se finge de doente, até que lhe digo
isso e, desse modo, torna-se possível superar esse caráter.”.
Mais tarde, ao escrever o Posfácio do caso Dora (1905), chamou a atenção para o
fato de que a intervenção do analista sobre a agressividade, através da interpretação, é um
dado importante na condução do tratamento psicanalítico, levando-se em conta o fenômeno
da transferência. Aliás, foi através da transferência negativa, em sua vertente de resistência,
que Freud se deu conta da transferência como motor do tratamento. Escreveu ele:
Na psicanálise, por outro lado, de acordo com sua colocação diferenciada dos
motivos, despertam-se todas as moções (do paciente), inclusive as hostis [o
grifo é nosso]; mediante sua conscientização elas são aproveitadas para fins de
análise, e com isso a transferência é repetidamente aniquilada. A transferência,
destinada a constituir o maior obstáculo à psicanálise, converte-se em sua mais
poderosa aliada quando se consegue detectá-la a cada surgimento e traduzi-la
para o paciente. (idem).
Freud encontra tendências hostis particularmente importantes, não só na histeria,
mas também na neurose obsessiva e na paranóia, as quais podem ficar inibidas em sua
realização devido à ação do recalque sobre elas, ou manifestar-se em atos agressivos. É
neste ponto que ele destaca a noção de ambivalência, a fim de acentuar a coexistência,
numa mesma pessoa, do amor e do ódio, assinalando haver uma grande possibilidade
desses afetos nunca surgirem totalmente separados.
No complexo de Édipo essa ambivalência aparece descrita com mais rigor, pois é
quando se dá a conjunção de desejos amorosos e hostis dirigidos pela criança a um ou outro
de seus pais, ou mesmo a ambos. Em A interpretação de sonhos (1900), falando dos sonhos
típicos, Freud relata Sonhos sobre a morte de pessoas queridas, diz ele: “Muito diferentes
são os sonhos da outra classe – aqueles em que o sonhador imagina a morte de um ente
querido e fica, ao mesmo tempo, dolorosamente afetado. O sentido desses sonhos, como
indica seu conteúdo, é um desejo de que a pessoa em questão venha a morrer.” (idem).
No decorrer de sua discussão, ele fala sobre esse desejo de morte nos exemplos de
Oedipus Rex, a tragédia de Sófocles e Hamlet, de Shakespeare, que chama de “poesia
trágica”. Ainda nessa linha, em Totem e tabu (FREUD, 1912-13) encontramos:
Qualquer pessoa que investigue a origem e a significação dos sonhos de
morte de parentes amados (pais, irmãos ou irmãs) poderá convencer-se de que
as pessoas que sonham, as crianças e os selvagens estão de acordo em sua
atitude para com os mortos – uma atitude baseada na ambivalência emocional.
(idem).
Para Freud, a agressividade está sempre presente nas relações entre os semelhantes,
mesmo naquelas em que o amor aparece em primeiro plano. Com sua formulação do
conceito de ambivalência, Freud tenta dar conta desta característica peculiar do humano, ou
seja, o amor e o ódio referidos ao mesmo objeto.
Já no livro dos chistes (FREUD, 1905), sobre o caráter simbólico das manifestações
de agressividade que surgem com os ditos espirtuosos, ele escreve:
Onde um chiste não tem objetivo em si mesmo, isto é, onde não é um chiste
inocente, pode servir a apenas dois propósitos, que podem ser subsumidos sob
um único rótulo. Ou será um chiste hostil (servindo ao propósito de
agressividade, sátira ou defesa) ou um chiste obsceno (servindo ao propósito
de desnudamento). (idem).
A complexidade e a importância que esses fenômenos vão adquirindo ao longo de
sua experiência exigem de Freud uma explicação do ponto de vista metapsicológico, tanto
em sua primeira quanto em sua segunda tópicas. Tentaremos esquematizar seus
desenvolvimentos sobre o tema, os quais surgem de forma variada em sua obra.
ü A Primeira Tópica.
A recusa de Freud em aceitar a proposta de Adler a respeito da existência de uma
pulsão específica que explicaria as tendências e os comportamentos agressivos se deve ao
fat de que, com tal hipótese, correr-se-ia o risco de privilegiar uma só pulsão. Com isso, a
própria neurose poderia ser explicada em termos de agressão, e assim se perderia o caráter
dinâmico da teoria freudiana sobre o dualismo pulsional. Dualismo que perpassa toda sua
obra e do qual Freud não abre mão, pois é a base que sustenta sua idéia de conflito
psíquico.
Ele entende que, para atingir sua meta, mesmo que na forma passiva, como ser
sugado, ser olhado, ser batido etc, a pulsão exige uma atividade que requer uma dose de
agressividade para romper os obstáculos: “Toda pulsão é uma parcela de atividade”
(FREUD, 1915). Mas nem por isso tal atividade deve ser confundida com a agressividade,
muito menos com a violência.
No quadro teórico do primeiro dualismo pulsional – pulsões sexuais versus pulsões
de autopreservação –, a explicação de um mecanismo complexo do funcionamento dessas
pulsões no psiquismo possibilitará a abordagem dos comportamentos e sentimentos
agressivos do sujeito. Em Pulsões e seus destinos (FREUD, 1915), Freud toma a aparente
polaridade amor-ódio para falar, por exemplo, da reversão da pulsão em seu conteúdo, ou
seja, a transformação do amor em ódio. Essa transformação é apenas uma ilusão, pois em
seu texto ele próprio mostra que o ódio não é o negativo do amor, já que ele tem uma
gênese própria. Escreve ele: “pode-se asseverar que os verdadeiros protótipos da relação de
ódio se originam não da vida sexual, mas da luta do ego para preservar-se e manter-se.”
(idem).
Em sua análise, afirma ser o ódio mais antigo que o amor. Ele nos diz que o ódio
provém do repúdio primordial do eu narcisista em relação ao mundo exterior, com seu
extravasamento de estímulos. Entendido como uma expressão da reação do desprazer
evocado pelos objetos do mundo exterior, o ódio sempre permanece numa íntima relação
com as pulsões de autoconservação. Assim, as pulsões sexuais e as pulsões do eu estão
sempre em uma espécie de dialética que repete a do amor e do ódio. O ódio aparece como a
versão originária da hostilidade e, dessa forma, tanto o ódio quanto a hostilidade estão na
base do princípio do prazer.
Desse modo, segundo Freud, a antítese amor-ódio reproduz a polaridade prazerdesprazer. Na relação com os objetos, se eles são ocasião de desprazer, “sentimos a
‘repulsa’ do objeto e o odiamos; este ódio pode depois intensificar-se ao ponto de uma
inclinação agressiva contra o objeto – uma intenção de destruí-lo.” (idem). Podemos nos
perguntar até que ponto esta intenção de destruição, que permanece apenas como intenção,
pode se tornar manifesta e passar ao ato, na violência. Em outras palavras, o que
possibilitaria ao sujeito ultrapassar essa intenção e passar à violência? É o que pretendemos
discutir ao longo dessa pesquisa.
Retornando a Freud, a relação com o objeto que produz ódio o leva a especificar
uma atividade que procura assegurar seu domínio. Assim, ele postula uma pulsão de
dominação, desde logo dirigida para o exterior e constituindo o único elemento presente na
crueldade originária da criança. Esta aparece como uma pulsão independente, ligada ao
aparelho muscular e à fase anal-sádica. Por outro lado, “na fase mais elevada da
organização sádico-anal pré-genital, a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia
(urge) de dominar, para a qual o dano ou o aniquilamento do objeto é indiferente.” (idem) É
que, nessa época, ainda não se formou a compaixão pelo outro que só aparece no retorno
masoquista, tempo no qual a pulsão de dominação mescla-se à excitação sexual que
provoca (FRANCO FERRARI, 2005).
Na primeira tópica freudiana, a questão da agressividade é fundamentada a partir
dessa oposição entre amor e ódio e ainda mesclada aos seus componentes sexuais, como no
caso do sadismo e do masoquismo. O primeiro é definido como “o exercício da violência
ou do poder sobre uma outra pessoa” (FREUD, in op. cit.). Esse desejo de torturar, quando
retorna ao próprio eu do sujeito, em uma atitude de passividade para com outra pessoa – o
que seria próprio do masoquismo – transforma-se em auto-tortura e auto-punição, como nos
casos de neurose obsessiva. Em um texto recente encontramos: “O sadomasoquismo é o
exemplo do fracasso da compaixão social por não inibir a crueldade, fazendo com que a dor
do outro traga prazer e diga de um sujeito dividido entre a intenção destrutiva e a tendência
ao castigo.” (FRANCO FERRARI, in op. cit.).
ü Depois de 1920
Com a última teoria das pulsões, a noção de agressividade passa a tomar uma
conformação mais complexa na obra de Freud. Encontramos uma explanação resumida de
seu pensamento em um texto de 1924 – O problema econômico do masoquismo, texto no
qual Freud escreve:
Uma parte da pulsão (de morte) é colocada diretamente a serviço da função
sexual, onde tem um papel importante a desempenhar. Esse é o sadismo
propriamente dito. Outra porção não compartilha dessa transposição para fora;
permanece dentro do organismo e, com o auxílio da excitação sexual
acompanhante acima descrita, lá fica libidinalmente presa. É nessa porção que
temos de identificar o masoquismo original, erógeno. (idem).
A partir de 1920, com a conceitualização de uma pulsão de morte, Freud propõe
uma espécie de pulsão cujo objetivo é retornar a um estado de estabilidade inorgânica
(idem). A pulsão de vida, ao contrário, utiliza-se da libido como energia sexual, cujo
objetivo é proteger a vida e produzir uniões cada vez maiores. Tal libido é capaz de
enfrentar a pulsão de morte ou a destruição dominante nos organismos multicelulares e tem
por missão “tornar inócua a pulsão destrutiva” (idem). A libido alcança seu objetivo
desviando essa pulsão para o exterior, com o auxílio da musculatura. Freud nomeou essa
pulsão desviada para o mundo externo como pulsão de destruição, pulsão de agressão,
pulsão de domínio ou controle de poder (idem). Essa pulsão, porém, não pode ser
apreendida a não ser em sua fusão com a sexualidade, nos fenômenos do sadismo e do
masoquismo.
Essa coalescência entre sexualidade e agressividade não permite que o segundo
dualismo pulsional – pulsões de vida versus pulsão de morte – seja identificado ao
dualismo sexualidade versus agressão, respectivamente. A razão disso é que a descoberta
da pulsão de morte, em 1920, está relacionada ao que Freud observava em sua clínica como
compulsão à repetição, na qual o paciente repete o sofrimento e dele não quer se desfazer.
O que se nota é que a compulsão à repetição não está preferencialmente relacionada aos
comportamentos agressivos, mas ao retorno ao próprio eu do movimento reflexo da pulsão
que exige uma satisfação difícil de abandonar.
Se pensarmos, como Freud, nos fenômenos de auto-agressão como a melancolia, o
sentimento inconsciente de culpa, a necessidade de punição, a reação terapêutica negativa,
iremos nos deparar, mais uma vez, com a ligação entre sexualidade e agressividade, o que
ele abordará como “misteriosas tendências masoquistas do ego.” (FREUD, 1920). Além
disso, as pulsões de vida ou Eros vão mais além de uma tentativa de abranger o que, para o
sujeito, se chama sexualidade. Como dissemos, elas têm a função de unir e criar
grupamentos cada vez maiores e mais coesos. Nesse sentido, não só as pulsões sexuais
cumprem essa função, como também as pulsões de autoconservação, as quais visam manter
e afirmar a existência do eu que, segundo ele, nada mais é que um prolongamento do Isso, o
qual é entendido como um reservatório pulsional (FREUD, 1923).
Ainda nessa linha de discussão, podemos dizer que a pulsão de morte não parece
surgir na obra de Freud para dar conta dos comportamentos e sentimentos agressivos antes
dispersos em sua teoria. A pulsão de morte relaciona-se mais com o que Freud reconheceu
na sexualidade humana como específico do desejo inconsciente, ou seja, sua
indestrutibilidade, sua insistência e, em relação às pulsões de um modo geral, sua exigência
de satisfação.
Após 1920, a noção de agressividade se renova. Seu campo de ação se alarga
sofrendo uma série de vicissitudes para o sujeito: volta-se para o exterior, retorna para o
sujeito, fundamenta o sadismo e o masoquismo, traduz numerosas modalidades da vida
psíquica. Além disso, a agressividade não é entendida apenas nas relações com os objetos
ou consigo mesmo, mas também entre as instâncias, como, por exemplo, a tensão entre o
supereu agressivo e o eu.
Ao postular um masoquismo original, Freud acabou por privilegiar a agressividade
em sua vertente de auto-agressão, como princípio da organização subjetiva e, com isso,
desmontar a noção clássica de agressividade confundida como violência contra o próprio eu
e contra o semelhante. Ao mesmo tempo, abole uma noção psicológica que vê na
agressividade algo que faz parte do “desenvolvimento” do indivíduo, como uma energia,
uma atividade, a qual estaria no fundamento de um espírito empreendedor e competitivo.
Um atributo considerado importante em nossa sociedade capitalista e fundamental à
adaptação. Para a psicanálise, porém, não é disso que se trata.
As noções de pulsão de morte, compulsão à repetição e masoquismo originário
foram fundamentais a Freud para que ele pudesse avançar sobre as questões que envolviam
a problemática da agressividade. O masoquismo primário lhe ensinou que extrair prazer da
dor é associar a agressividade, como destruição, à sexualidade, uma vez que a agressividade
se destina à apreensão do objeto e sua dominação numa vertente bastante diferente do
enamoramento e do amor (FRANCO FERRARI, in op. cit.). Uma vez dirigida para o
exterior, a agressividade tem por objetivo a destruição. Como dissemos, na luta para tornar
inoperante o objetivo da pulsão de morte no interior do organismo, a libido utiliza o sistema
muscular a fim de dirigi-la para fora. Dessa forma, para Freud, no interior do sujeito, ela é
vista como versão de Eros e, uma vez no mundo exterior, como versão da pulsão de morte,
como pulsão de destruição.
Em O mal-estar na civilização (FREUD, 1930[1929]), Freud tenta postular uma
agressividade autônoma constitutiva do sujeito, independente da sexualidade. No entanto,
em sua Confereência 32 - Angústia e vida pulsional (idem, 1933[1932]b), ele parece recuar
dessa empreitada ao considerar novamente, por exemplo, a destrutividade em relação à
libido, notadamente no sadomasoquismo.
Por outro lado, com a noção de compulsão à repetição, Freud mostra que a função
da agressividade não está na destruição do ser vivo, pois ela surge como uma maneira que o
sujeito encontra de se preservar na cultura, retornando essa agressividade contra si próprio
ou mesclando-a a sexualidade, podendo então retirar prazer no sofrimento sem chegar à
aniquilação. Freud já havia anunciado o perigo que representa cada sujeito para o ideal
coletivo, para a cultura e, nesse sentido, cabe à sociedade propiciar a renúncia à pulsão. O
ideal social parece estar sempre à busca de um equilíbrio, o que permanentemente mostra
seu fracasso. No sujeito, a compulsão à repetição denuncia esse fracasso ao desvelar a ação
da pulsão de morte que permanece como verdade impossível, afirmando assim “a ausência
de homeostase no vivo” (FRANCO FERRARI, in op. cit.). A agressividade parece ser a via
privilegiada encontrada pelo sujeito para reintroduzir na cultura a impossibilidade de se
fazer cumprir o ideal social, conforme nos mostra Freud em O mal-estar na civilização (in
op. cit.).
1.3.2
– Com Lacan
Dentre as três fontes de sofrimento apontadas por Freud em O mal-estar na
civilização (in op. cit., p. 95), a saber: o corpo próprio, o mundo externo e os outros, Lacan
mantém-se fiel à noção de que a relação com o outro é fundamentalmente marcada pela
agressividade. Nesse sentido, a questão que se coloca para ele diz respeito ao elemento
pacificador dessa relação impossível, o qual permita aos homens viverem juntos, embora
estando separados (LACAN, 1969-70[1992], p. 107).
Segundo ele, esse elemento pacificador da dispersão pulsional está colocado na
linguagem, na palavra e na fala, enfim, no simbólico, pois, ao dizer que na relação interhumana o que há é a violência ou a fala (LACAN, in op cit.), a palavra veiculada na fala
aparece como possibilidade de fazer dique ao extravazamento de gozo que escapa ao
sentido. Por outro lado, ainda com Lacan, notamos que até mesmo a palavra pode ser
violenta, como nos casos de injúria e blasfêmia. Nesses casos, o sujeito parece utilizar o
significante para romper o pacto simbólico com o Outro da linguagem, servindo-se do que
poderíamos chamar a má palavra.
Tentaremos diferenciar agressividade e violência a partir dos ensinamentos de
Lacan, tomando como base seu texto princeps sobre o assunto, a saber: A agressividade em
psicanálise (1948[1998], p. 104-126). Nesse texto, Lacan apresenta um relatório e discute a
noção de agressividade para a psicanálise. Ele se propõe à tarefa de saber se é possível
fazer dela um conceito. Ele apresenta seu relatório em cinco teses, através das quais mostra
a
dimensão
fundamentalmente
imaginária
dessa
noção.
Em
nossa
discussão,
privilegiaremos apenas duas delas e teceremos comentários sobre as outras três de acordo
com nossa necessidade.
Buscaremos examiná-las visando trabalhar a agressividade como estando na base da
constituição do eu, através da imagem do outro, naquilo que Lacan denominou como
“estádio do espelho” (LACAN, 1949[1998], p. 96-103). Desse modo, tal agressividade se
encontra no fundamento de todo narcisismo. Segundo o autor, a agressividade está
determinada pela identificação narcísica que conforma a estrutura do eu ao alienar-se em
uma imagem especular. Neste ponto, podemos então assinalar sua Tese I: “A agressividade
se manifesta numa experiência que é subjetiva por sua própria constituição” (LACAN, in
op. cit., p. 105), pois a experiência subjetiva na qual a agressividade se manifesta é uma
experiência a dois, em espelho, marcada, portanto, pelo registro imaginário.
Para Lacan, no estádio do espelho a criança, ainda infans, se reconhece em sua
própria imagem, a partir da relação estabelecida entre ela e aquele que dela cuida, do qual é
dependente de sua presença e de seu olhar. A criança se identifica com a imagem que o
semelhante vê nela e na qual ela se reconhece, ou seja, a criança se identifica com a
imagem que vem do outro. Através dessa imagem, ela erige seu eu em correspondência
com essa ortopedia. Todavia, o eu não é esse todo ortopédico, ele é cindido, ou seja, o eu é
um outro com o qual rivaliza. Nesse instante, porém, o eu [je], como sujeito do
inconsciente (LACAN, in op. cit., p. 96) fica capturado por esse eu [moi] imaginário: de
fato, o sujeito ao não conseguir se nomear como um ser – quem sou eu? – acredita ser
aquele eu [moi] que vê no espelho. Trata-se aqui de um engodo que fundamenta a alienação
primordial do sujeito, isto é: o sujeito acredita ser o eu, mas este eu é formado a partir da
identificação à imagem do outro.
Assim, Lacan escreve em sua Tese IV: “A agressividade é a tendência correlativa a
um modo de identificação a que chamamos narcísico, e que determina a estrutura formal do
eu do homem e do registro de entidades características de seu mundo.” (in op. cit., p. 112).
Lacan fará referência a essa “tendência agressiva” (idem, p. 113) que se revela fundamental
na psicose paranóica, na qual o ato agressivo se torna violento e desfaz a construção
delirante, como ocorre, por exemplo, na paranóia de autopunição. Isso é o que poderíamos
dizer de uma tentativa de organização da dispersão pulsional na qual mergulha o psicótico
uma vez foracluído da lei. Esse parece ser um caso excepcional no qual a “intenção
agressiva” (idem, p. 110) - antes descrita por ele e que, na neurose, parecia ficar latente
como intenção puramente - dá lugar, na psicose, à “tendência” à qual estaria sujeita quando
da passagem ao ato como violência.
Contudo, interessa-nos extrair do texto de Lacan a importância dada por ele à
agressividade como constitutiva do eu. Trata-de da agressividade resultante da relação da
criança com esse outro do qual ela depende, mas que lhe é de certo modo invasivo, em
relação ao qual a agressividade é justamente o termo demarcatório de onde um acaba e de
onde o outro começa.
Essa dialética entre o espaço de um e o do outro é constitutiva e deixa exposta a
possibilidade do aparecimento da agressividade e até mesmo o caminho aberto para a
violência, pois, se esses espaços não se estruturarem, o sujeito permanecerá na confusão
mortífera entre o que é o eu e o que é o outro. Na falta de mediação simbólica, a solução é
sair dessa confusão nem que seja aos pontapés como uma tentativa desesperada de
equacionar seu lugar, seu espaço, seu território.
É Lacan quem o diz: “a agressividade que se manifesta nas retaliações de tapas e
socos não podem ser apenas tomadas por uma manifestação lúdica do exercício das forças e
de seu emprego para o referenciamento do corpo” (idem, p. 115), como o faz a psicologia.
Ela deve ser buscada numa “ordem de coordenação mais ampla” (idem, ibidem), numa
“relatividade social” (idem, ibidem) que implica o semelhante.
Com isso, ele aponta a importância de se “compreender a natureza da agressividade
no homem e sua relação com o formalismo de seu eu e de seus objetos” (idem, p. 116). O
eu se mostra como uma organização passional na qual o homem, fixado na imagem do
semelhante, se encontra alienado em si mesmo. Essa formação alienante da relação do
sujeito com o outro dá o fundamento daquilo que “determina o despertar de seu desejo pelo
objeto do desejo do outro” (idem, ibidem). Esta é uma situação em que a concorrência
agressiva está no cerne do aparecimento da tríade formada pelo outro, o eu e o objeto
(idem, ibidem). Lacan escreve que “desde a origem o eu se afigura marcado por essa
relatividade agressiva” (idem, ibidem).
Exemplificando a tensão agressiva advinda dessa rivalidade, Lacan faz referência a
Sto. Agostinho e sua descrição de uma criança contemplando com expressão amarga seu
irmão de leite ao colo da mãe. Lacan chama a atenção para a “expressão amarga” (idem, p.
117) da criança colocando-a como fundadora das “coordenadas psíquicas e somáticas da
agressividade original” (idem, ibidem).
Em seu Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964[1998], p. 112), Lacan usa novamente esse exemplo para falar da função da inveja.
Considera essa inveja da criança olhando o irmão no colo da mãe como a inveja mais
exemplar que uma experiência pode fornecer ao analista. É certo que, nesse Seminário,
Lacan procura articular a função do olhar na inveja não como uma relação especular, mas o
olhar em sua função de objeto. No entanto, ele diz que essa inveja “faz empalidecer o
sujeito diante (...) da imagem de completude que se refecha, e do fato de o a4 minúsculo, o
a separado ao qual ele se suspende, pode ser para um outro a possessão com que este se
satisfaz, a Befriedigung.” (idem, ibidem). Assim, na inveja, a criança se encontra privada de
um objeto do qual vê o outro se satisfazer.
Retomando a análise de Lacan em A agressividade em psicanálise (in op. cit.),
vemos o autor reiterar a noção de agressividade como “tensão correlativa à estrutura
narcísica no devir do sujeito” (idem, p. 119). Desde Freud, o narcisismo é definido como “a
atitude de uma pessoa que trata seu próprio corpo da mesma forma pela qual o corpo de um
objeto sexual é comumente tratado” (FREUD, 1914). Por outro lado, Lacan articula esse
devir à função do complexo de Édipo no qual, através da identificação secundária, “por
introjeção da imago do genitor do mesmo sexo” (LACAN, in op. cit., p. 119), essa
identificação com o rival só se torna possível por ter havido, antes, uma identificação
primária, na qual o sujeito é rival de si mesmo.
A saída desse impasse está no que Lacan formula como “a função apaziguadora do
ideal do eu” (idem, ibidem). Nessa mesma tese, Lacan ressalta sua conexão com a
normatividade cultural a qual estaria ligada, desde os primórdios da história, à imago do
pai. Retoma o texto freudiano Totem e tabu (in op. cit.) e destaca sua importância, uma vez
que faz derivar do acontecimento mitológico – o assassinato do pai – “a dimensão subjetiva
4
O objeto a de Lacan possui, ao longo de sua obra, três acepções: 1ª. Como objeto do desejo, em seu
Seminário, livro 8, A transferência (LACAN, 1960-61[1992]). 2ª. Como objeto causa de desejo, a partir de
seu Seminário, livro 10, A angústia (idem, 1962-63[2005]). 3ª. Retoma o objeto a e lhe acrescenta a
característica de objeto mais-de-gozar, em seu Seminário, livro 16, De um Outro ao outro (idem, 1968-69).
que lhe dá sentido, a culpa” (idem, p. 120). Será que estamos diante do que se poderia
apontar como a violência na origem da civilização? Se assim for, parece que essa violência
fundadora, após o assassinato, fica neutralizada na situação de rivalidade entre os irmãos
através da identificação destes com o totem paterno. Tal identificação possibilitaria a
constituição da cultura marcada por um traço simbólico – o totem.
Assim, destaca-se, por um lado, uma configuração imaginária da agressividade na
identificação narcísica ao semelhante e, por outro, a inscrição simbólica da violência ao ser
apaziguada na identificação simbólica com o rival edípico e na função do ideal do eu.
Diante disso, sugerimos a hipótese de que a agressividade não dá conta de explicar o ato
violento, não podendo a violência ser uma conseqüência direta da agressividade voltada
para o exterior. Em outras palavras, a agressividade primordial constitutiva do eu não é
suficiente para fundar a “barbárie”, tal como a presenciamos na violência.
Em sua Tese V, a saber: “Tal noção da agressividade, como uma das coordenadas
intencionais do eu humano, e especialmente relativa à categoria do espaço, faz conceber
seu papel na neurose moderna e no mal-estar da civilização.” (idem, p. 122), Lacan nos diz
que a primazia da agressividade em nossa civilização estaria bem demonstrada por ela ser
geralmente confundida, “na moral mediana, com a virtude da força.” (idem, p. 123). Uma
vez entendida como fundamental na constituição do eu, ela é paradoxalmente considerada
tanto como sendo de uso social indesejável quanto como atributo comumente aceito nos
costumes, particularmente como atributo qualitativo da masculinidade.
Lacan dá como exemplos Darwin e Hegel. A teoria darwiniana da evolução das
espécies, segundo a qual o mais forte vence o mais fraco na luta pela sobrevivência,
funciona como uma projeção das “predações da sociedade vitoriana” (idem, ibidem) e da
“euforia econômica que sancionou a devastação social que ela inaugurou em escala
planetária, e a havê-la justificado pela imagem de um laissez-faire dos devoradores mais
fortes em sua competição por sua presa natural.” (idem, ibidem).
Quanto a Hegel, este já havia nos dado a teoria dessa função da agressividade na
ontologia humana “parecendo profetizar a lei férrea de nossa época” (idem, ibidem), ao
deduzir do conflito entre o Senhor e o escravo todo o progresso tanto subjetivo quanto
objetivo da história da humanidade. Em suas palavras:
Se, no conflito entre o Senhor e o Escravo, é o reconhecimento do homem pelo
homem que está em jogo, é também numa negação radical dos valores naturais
que ele é promovido, ou seja, que se exprime na tirania estéril do senhor ou na
tirania fecunda do trabalho. [Ele continua]: Sabemos da armadura conferida por
essa doutrina profunda ao espartaquismo construtivo do escravo, recriado pela
barbárie do século darwiniano. (idem, ibidem).
Nessa tese, Lacan prosseguirá sua análise formalizando o que poderíamos chamar
de declínio dos ideais, os quais funcionariam como pacificadores da agressividade. Sua
conseqüência seria o individualismo moderno que esse declínio reclama. Tal
individualismo surge, por sua vez, como conseqüência dos avanços de uma concepção
utilitarista do homem. Assim, Lacan termina seu estudo mencionando “esse ser de nada”
(idem, p.126) que é o homem atual, acolhido por nós, para quem “nossa tarefa cotidiana
consiste em reabrir o caminho de seu sentido, numa fraternidade discreta em relação à qual
sempre somos por demais desiguais.” (idem, ibidem). Por outro lado, em seu Seminário,
livro 17, O avesso da psicanálise (1969-70[1992]), o que concerne a “essa fraternidade
discreta”, Lacan chama a atenção para o fato de que se empregamos tanta energia para nos
mantermos unidos como irmãos é porque evidentemente não o somos (idem, p. 107). Mais
à frente ele acrescenta: “Só conheço uma única origem da fraternidade – falo da humana,
sempre o húmus – é a segregação.” (idem, ibidem)5.
Lacan demarca uma violência implicada no ato de agredir, que surge diante do
impossível de dizer, como curto-circuito da palavra. O gozo que escapa ao sentido retorna
no real como violência. O simbólico é o pacificador e o imaginário é fundamentalmente
paranóico. Lacan assinala ainda a violência do simbólico, em que o significante ora aparece
em seu efeito de violência, quando atravessa o corpo e o chicoteia com seu efeito
mortificante, ora em seu efeito de vida para o ser falante.
Ainda que agressividade e violência não sejam duas noções equivalentes, ambas
possuem em comum o fato de suporem algo de renúncia por parte do sujeito. O sujeito deve
renunciar à agressividade e à violência para advir à civilização. Assim, a agressividade
pode ser entendida como uma forma ruidosa encontrada pelo sujeito para se posicionar no
mundo e demarcar seu lugar como sujeito desejante, a ponto de Freud postular a idéia do
humano como inimigo potencial da civilização.
Como dissemos, não há identificação sem agressividade e agressividade que não
envolva a identificação do eu com o outro. A relação com o outro é fundamentalmente
agressiva, ainda que sublimada. A relação com o outro é permeada pela hostilidade e pela
satisfação encontrada na destruição e aniquilamento do semelhante, e não pela harmonia. A
civilização (MILLER, 1997) é um sistema de distribuição de gozo, ou seja, como fazer de
modo que essa agressividade não passe ao ato violento. É um sistema de distribuição de
5
Trataremos desse assunto no Capítulo 4 desta pesquisa.
gozo a partir de semblantes, um modo de gozo, uma distribuição sistematizada dos meios e
das maneiras de gozar. Nesse sentido, a violência como sintoma denuncia que o gozo não
caminha no ritmo dos significantes-mestres ordenadores da civilização, ou seja, denuncia
que algo não vai bem na ordem instituída. Disso decorre uma questão sobre o modo, no
contemporâneo, como a civilização propõe as formas de regramento do gozo e a maneira
como a violência ali vem se instalar na qualidade de sintoma.
1.4 – O imperialismo da imagem: a sociedade do espetáculo e a cultura do
narcisismo
Segundo um autor contemporâneo (QUINET, in op. cit., p. 280), nossa sociedade
atualmente pode ser considerada uma sociedade escópica, por ser comandada por duas
vertentes que envolvem o olhar e a imagem, isto é: a “sociedade do espetáculo”, descrita
por Guy Debord (1997) e a “sociedade disciplinar”, tal como formulada por Michel
Foucault (1977). De acordo com este autor (in op. cit), o olhar retorna sobre a civilização
contemporânea trazendo o gozo do espetáculo que conjuga, nessa exibição, o imperativo do
supereu, uma vez que este implica em um empuxo-ao-gozo escópico como um comando de
dar-a-ver.
O espetáculo de imagens em nossa civilização tem seu lado belo, pois nem tudo é
exibição de horror e a beleza, por sua vez, funciona para encobrir a falta constitutiva do
sujeito. Todavia, esse espetáculo também é a sede do mal-estar, pois ele presentifica “o
supereu com suas imagens impregnadas pelo real impossível de suportar” (idem, p. 281),
convocando o sujeito a um gozo sem limites.
Debord (in op. cit.) formula a hipótese de que vivemos em uma sociedade do
espetáculo, resultante de uma visão de mundo que se constituiu com a ajuda dos avanços da
ciência. Com o advento da Física, “que exclui o olhar do mundo visível” (QUINET, in op.
cit.), e com o desenvolvimento da tecnologia, aparelhos para captação e reprodução de
imagens se tornam cada vez mais sofisticados e presentes no cotidiano das pessoas. Nesse
espetáculo, o sujeito, como espectador, está capturado por essas imagens, ao mesmo tempo
em que é também capturado como o próprio objeto olhado nessas miragens que tendem ao
infinito. Assim, o olhar retorna sob a forma de um mandamento de gozo: “Veja!” (idem).
Interessa-nos ressaltar aqui o fato de vivermos hoje em um mundo no qual há um
excesso de imagens e uma inflação do imaginário. Isso produz efeitos. A violência pode
surgir como uma resposta ao imperativo de gozo evocado pela massificação de imagens no
espetáculo cotidiano de horror. Ao mesmo tempo, a própria violência se torna um gozo,
como uma forma de atuação a ser mostrada.
Segundo Lacan, o registro do imaginário não se reduz à imaginação ou ao somatório
das imagens. Ele é o registro próprio da identificação especular. Como vimos, nesse tipo de
identificação as diferenças entre o eu e o outro são abolidas, uma vez que o eu é o outro. O
outro é o espelho para o eu se constituir.
O registro do imaginário de Lacan corresponde ao conceito de narcisismo de Freud.
Nesse registro, domina a imagem do outro, como semelhante, e a imagem do corpo. A
imagem do semelhante, uma vez identificada ao eu, é sempre rival, mas também é atraente
e fascinante. É o mundo de Narciso, aquele que encontra a própria morte fascinado pela
beleza de sua imagem. É o mundo que vela o real pulsional do objeto olhar que, como
intangível, faz da imagem o espetáculo do mundo. O contemporâneo leva essa relação entre
o registro especular imaginário e o registro escópico real ao extremo, veiculando excesso de
imagens na atualidade.
Essa inflação do imaginário marcada pela prevalência da imagem serve para
mascarar o declínio de referências simbólicas ao qual os sujeitos estão submetidos na
atualidade. Serve para ocultar a inconsistência radical de um Outro em falência. Na relação
com o outro, a possibilidade de intervenção da palavra cede cada vez mais espaço à
imagem. Um slogan de publicidade anuncia: “Uma imagem vale por mil palavras!”. A
palavra perde a relevância como suporte do pensamento e da subjetividade, além da perda
como suporte do vínculo e do laço social.
A cultura do narcisismo encontra sua expressão máxima na atualidade ao instaurar
um culto à imagem de corpos saudáveis, bem cuidados e uniformizados num mesmo padrão
de beleza. Há uma preocupação constante com a aparência, numa tentativa de velar a falta e
negar a castração. Há, como notamos cotidianamente, mais intercâmbio de imagens do que
de palavras.
O risco disso reside na convergência entre o narcisismo e a pulsão de morte. A
pretensão narcísica da coincidência absoluta com o ideal de beleza e perfeição sem furo,
embota o sujeito do desejo. Quando isso adquire uma intensidade maior, torna-se sintoma
do mal-estar característico de nossa época, produzindo um vazio na ex-sistência e um
sentimento insuportável de já não mais ex-sistir como sujeito. Vive-se uma vida marcada
pelo isolamento, pela solidão, pelo embotamento e pelo tédio. Ao insuportável da
existência, o sujeito pode responder com a violência, como numa tentativa de fazer furo
nessa consistência imaginária que incita ao gozo maciço do espetáculo.
É possível pensar essa questão como um des-ligamento em relação ao Outro
simbólico, o que reforça o voltar-se sobre o eu e principalmente sobre o corpo como objeto
narcísico primário. O corpo, em suas duas dimensões: na dimensão imaginária, como
investimento narcísico na imagem do corpo, e na dimensão real, como lugar de gozo que
sofre com os excessos aos quais está submetido, respondendo com passagens ao ato,
impulsões e violência.
A própria relação com o outro, com o semelhante, pode sofrer, como destino, a
hostilidade e a violência. Aqui, a violência é um sintoma, efeito de um transbordamento, de
um excesso de pulsão, impossível de ser dialetizado pelo simbólico, sufocado que está pela
imposição do imaginário, revelando e desvelando o que não anda bem na ordem esperada
do mundo.
Por outro lado, a inflação do imaginário no contemporâneo parece funcionar como
uma reação à exposição maciça do real, marcado pelo empuxo ao gozo ao qual são
convocados os sujeitos na atualidade. Ao mesmo tempo, seria também uma reação à
inconsistência radical à qual se reduziu o Outro simbólico, manifestada por essa fragilidade
simbólica à qual estão submetidos os sujeitos no laço social (MILLER e LAURENT,
1997). A violência surge aqui como o que há de mais real, como um gozo não balizado pelo
simbólico, como o que escapa a ordem simbólica. É o que nos ensina Lacan com a fórmula
segundo a qual aquilo que é foracluído do simbólico retorna no real (LACAN, 1959[1998],
p. 541).
Essa negação do real da violência, inflacionada pela virtualidade imaginária, se
alimenta, paradoxalmente, dessa exibição maciça dos aspectos mais brutais e excessivos da
violência no mundo e dos sucessos produzidos por ela através da mídia. Além disso,
encontramos na atualidade uma espécie de apologia de uma estética vazia evidenciada, por
exemplo, em filmes ou mesmo em programas infantis, nos quais o excesso e a banalização
da violência produzem uma petrificação, um efeito hipnótico e inibidor naquele que assiste,
efeito que nada mais é do que a satisfação da pulsão no gozo do olhar propiciado pela
exibição. A negação do real da violência estaria, por exemplo, quando se diz que essas
exibições nas quais a violência é banalizada não passam de entretenimento e diversão.
O imperialismo da imagem acaba por produzir um efeito de irrealidade, marcado
pela virtualidade, ocultando o que estaria na base de todo esse processo em que se mascara
o real em jogo na violência. Decorre daí um paradoxo: ao mesmo tempo em que a
“sociedade do espetáculo” (DEBORD, in op. cit.) procura obturar o buraco real com a
oferta desenfreada de imagens, ela acaba por revelá-lo pela insistência com que o sujeito é
tragado pelo gozo do olhar que lhe é propiciado por essas mesmas imagens.
A esse respeito, comentando sobre a violência e sua relação com a palavra, em seu
Seminário 5, As formações do inconsciente (Lacan, J. 1957-58[1999], p. 471), com já
mencionamos, nos diz Lacan: “O que pode produzir-se numa relação inter-humana são a
violência ou a fala.”. Lacan, porém, não ignora a blasfêmia e a injúria, limites da relação
simbólica, em que a palavra tem o valor de um ato violento. Com isso, Lacan marca ainda a
violência do simbólico e a incidência do significante sobre o corpo.
Quem, na atualidade, poderia prover esses recursos simbólicos? Tanto Freud quanto
Lacan insistiram na importância da função paterna em suas dimensões simbólica,
imaginária e real. Nos dias de hoje, o pai não mais garante os recursos, ele não é suficiente
ou se torna inexistente. O recurso ao imaginário como uma expectativa idealizada de que o
outro possa fornecer a consistência para nosso ser, seria a saída contemporânea?
Essa dialética entre o imaginário, o simbólico e o real nos leva a investigar o que de
violência poderia existir em tais registros e como ela estaria funcionando na base da
constituição da cultura. Apesar de nossa referência simbólica ser a linguagem que suporta
os discursos estabelecidos, organizadores do mundo, a sociedade e a relação entre as
pessoas no laço social, a lei que fundamenta o funcionamento simbólico também pode ser
violenta. As leis não funcionam como garantia de boa convivência entre as pessoas, mas
servem para marcar os limites ao coibir, pressionar e limitar os impulsos mais primitivos do
ser humano, conforme nos mostra Freud em diversos trabalhos.
A lei que estaria na base da constituição simbólica da humanidade seria a lei de
proibição do incesto. Lei esta articulada à incidência do significante sobre o corpo
produzindo uma perda de gozo, uma renúncia com a qual o sujeito deve consentir para ter
acesso à ordem da cultura. Tal imposição do significante e da lei engendrada por ele não
deixa de provocar um efeito violento no sujeito nele deixando suas marcas.
Por outro lado, Lacan nos fala da função apaziguadora do ideal do eu. Se o pai tem
implicação com a constituição desse ideal a partir da experiência edípica para a criança, em
que sentido, então, o pai pode temperar essa violência, esse excesso que ultrapassa um certo
balizamento e que não se confunde com a agressividade? A violência, em oposição à
agressividade parece, justamente, ultrapassar esse balizamento que o simbólico dá à pulsão
e, portanto, ao gozo.
Pensamos assim poder marcar a diferença entre agressividade e violência. Em
outras palavras, a agressividade se situa na especularidade imaginária, funcionando como
parte fundamental na constituição do eu, a partir da identificação narcísica e como substrato
da tensão entre o eu e o outro. A violência, por sua vez, pode ser lida como uma impulsão,
ligada, portanto, à satisfação pulsional e ao real, como um sem sentido no simbólico.
O simbólico aqui funcionaria não mais como o que possibilitaria um limite a essa
satisfação que, por ser essencialmente estranha ao sujeito que com ela se satisfaz, se torna
uma satisfação paradoxal: ao invés de trazer prazer, pode trazer dor, sofrimento e
destruição. Assim, só se pode aceder ao simbólico através da intervenção de um terceiro,
capaz de fazer a mediação no seio de uma satisfação absoluta marcada pela relação dual
criança/mãe. Esta é a função do pai situado como o terceiro nesse processo.
Duas questões despertam nosso interesse. Primeira: como é que o pai, cuja função é
possibilitar a entrada do sujeito no simbólico, facilitar os desvios pulsionais – os quais são
encontrados por outro tipo de satisfação através dos aparelhos da cultura – pode, ao mesmo
tempo, possibilitar esse apaziguamento da satisfação pulsional? Trata-se aqui da função
paterna funcionando como um limite à satisfação desregrada. Tradicionalmente, essa é a
função do pai morto. Para Lacan, o pai morto é a condição para o sujeito ter acesso ao
simbólico e à lei do desejo (LACAN, 1955-56, p. 344).
Segunda questão: em seu Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (196970[1992]), Lacan propõe uma teoria dos discursos que seriam o fundamento do laço social.
Em 1972, ele completa essa teoria ao introduzir a noção do discurso do capitalista. Tal
discurso, substituto do discurso do mestre no contemporâneo, foraclui a castração.
Perguntamo-nos então: nos dias de hoje, qual a relação da violência com o discurso
capitalista? Seria a violência um efeito da subjetividade constituída no interior desse
discurso? Investigaremos essas questões nos capítulos subseqüentes, começando pela
relação entre a função paterna, na tradição, e o programa da cultura em limitar o excesso de
pulsão.
CAPÍTULO 2
Violência e civilização: a dialética entre o pulsional e o simbólico
Sabemos que na massa dos seres humanos existe uma forte
necessidade de ter alguma autoridade que possa admirar, ante
a qual se incline, por quem seja governado e, conforme o caso,
até maltratado. Pela psicologia dos indivíduos temos
averiguado de onde provém esta necessidade da massa. É a
nostalgia do pai – nostalgia inerente a todos desde sua infância
– desse mesmo pai a quem o herói da saga se vangloria de
haver vencido. (FREUD, 1939[1934-38/1996], p.106).6
Neste capítulo, como o próprio título sugere, trataremos da dialética entre o
pulsional e o acesso do sujeito ao simbólico. Simbólico esse articulado à cultura e
entendido aqui como aquilo que vem dar um limite e uma orientação ao desregramento da
pulsão, vivida anarquicamente pelo infans como pulsão parcial.
A pulsão é um conceito fundamental na teoria freudiana. Encontramos algumas de
suas definições dadas por Freud em seu texto de 1915, As pulsões e suas vicissitudes: “Um
estímulo para o psíquico que vem do interior do corpo”, “uma força constante que sempre
tende à satisfação”, “um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático”, “uma
exigência de trabalho que o corpo impõe ao anímico”.
Originadas nos orifícios e nas bordas do corpo, elas têm como regulador importante
o princípio do prazer/desprazer. Mas, a partir de sua segunda tópica, em seu texto de 1920:
6
A tradução é nossa.
Além do princípio do prazer, Freud postula a pulsão de morte como protótipo das pulsões,
como o excesso que derruba os diques construídos pelo prazer/desprazer.
Os desenvolvimentos posteriores de Freud irão articular pulsão de morte, excesso e
trauma, onde a origem traumática da sexualidade explica o excesso e as tentativas
repetitivas do sujeito de elaborá-lo. O ser humano tem que lidar com uma sexualidade
pulsional que irrompe inesperadamente, que o atravessa e para a qual o aparelho psíquico
procura dar um destino.
O Outro, ao cuidar do corpo infantil, ao tocá-lo, beijá-lo, acariciá-lo, gerará um
excesso, um gozo, neste corpo que ainda não pertence ao sujeito. Ele terá de se apropriar de
seu corpo através dos avatares da aventura edípica, construindo substitutos simbólicos que
lhe permitam perder o objeto primário de sua satisfação, isto é, a mãe, e elaborar o excesso
traumático do encontro com a sexualidade vinda de um Outro sedutor através da fantasia.
Essa fantasia estará incluída no sintoma próprio do sujeito que é o que surge como uma
defesa ao excesso de excitação presente no trauma.
É somente no interior da segunda teoria das pulsões que Freud encontra uma
explicação para o desprazer, ao diferenciar dois princípios de regulação do prazer: o
princípio do prazer e o princípio de Nirvana. Nessa diferenciação, Freud mostra haver um
prazer que, em seu excesso, pode abolir-se a si próprio. Ele aproxima esse excesso, o que
Lacan chamará de gozo, ao conceito de pulsão de morte.
O excesso, no entanto, precisa ser processado e é necessário que o sujeito construa
suas bordas, seus limites, desenhando contornos, fazendo arranjos para se proteger. No
interior da estruturação narcísica e do complexo de Édipo vão se criando as condições
necessárias para que o sujeito seja capaz de encaminhar as forças pulsionais na direção da
construção da fantasia e dos sintomas, além das próprias produções culturais, para que as
pulsões, como solicitações de trabalho psíquico, fiquem a serviço da vida.
Quando isso não é mais possível, as pulsões, em seu excesso, no que têm de mais
indizível, se tornam verdadeiras ameaças para o sujeito. Nesses casos é que a violência da
pulsão se faz notória. As condições de civilização, do seu mal-estar, marcam caminhos para
as pulsões, como modos de distribuição de gozo, que permitem ou tentam limitar o excesso
pulsional. Nesse sentido, talvez possamos inferir que a relação entre o simbólico e a pulsão
esteja sendo dialetizada de forma sui generis no contemporâneo. Que novos destinos para a
pulsão na atualidade? A violência parece estar sendo um deles.
Nesse percurso, a partir do que J.-A. Miller (1997, p. 420) nos apresenta como
sendo os dois princípios básicos da cultura ocidental, ou seja, “nada de excesso” e
“conheça-te a ti mesmo”, refletiremos sobre o que possibilita conter o excesso pulsional
inerente à condição humana. Antes, porém, pensamos ser imprescindível trabalhar o que
para Lacan seria a satisfação pulsional a partir de seu conceito de gozo. Tal conceito
também é entendido como um excesso, como algo que transborda e sobre o qual a cultura
procura estabelecer regras, através de seu programa civilizatório, ou seja, como já
dissemos, estabelecer modos de distribuição de gozo.
Chamamos, então, a atenção para o fato de que esse gozo não pode ser totalmente
contido. Enquanto excesso, ele está sempre escoando, é o que excede à operação
engendrada pela função paterna no intuito de possibilitar ao sujeito seu acesso ao simbólico
e à linguagem. Assim, neste capítulo pontuaremos como Freud, em relação a essa satisfação
pulsional, tem de recorrer a um mito – o mito do pai da horda primitiva – para dar conta do
gozo e de seu limite. Tal limite, dado pela função do pai morto, possibilitaria ao sujeito seu
acesso à cultura e à ordem simbólica, “ordem de símbolos, ordem legal (...), cadeia
simbólica, ordem da dívida simbólica” (LACAN, 1956-57[1995], p. 102).
Nesse sentido, discutiremos o texto freudiano Totem e tabu (1912-13), a partir das
contribuições de Lacan, sobretudo em seu Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise
(1969-70[1992]). Através da leitura lacaniana dessa obra de Freud, acreditamos poder
entender o mito do pai da horda primitiva como uma construção metafórica do acesso do
homem – semi-animal – à civilização. Ao mesmo tempo, trata-se de um mito visando tratar
da questão do gozo presente na origem da civilização, e sua dialética com a lei que regula o
desejo no interior do simbólico.
Essas reflexões nos ajudarão a pensar a função paterna em Freud e em Lacan, para o
qual essa função toma outro estatuto. Lacan parte da noção do pai como metáfora para, em
seu último ensino, tratar a questão paterna a partir da pluralização dos Nomes do pai e de
sua função de enodamento, como sinthoma, do Real, do Simbólico e do Imaginário
(LACAN, 1974-75). Essa concepção nos auxiliará a refletir sobre a questão do pai no
contemporâneo, assim como sobre a relação dos sujeitos com essa função. Em outras
palavras, em tempos de declínio da função paterna, como prescindir do pai com a condição
de servir-se dele como instrumento (LACAN, 1975-76)? Ao mesmo tempo, como fazer
esse balizamento dialético entre a pulsão e a linguagem, entre o gozo e a cultura, ou, entre o
real e o simbólico, nesse momento de nossa civilização?
2.1 – A violência em todos os tempos
Neste ponto, ressaltamos uma objeção que poderia surgir de imediato: se a violência
está sendo entendida, aqui, em sua articulação com a subjetividade de nossa época,
considerando-se outras épocas historicamente determinadas, será que antes a violência não
existia? Ou então: qual seria sua especificidade em nosso tempo considerado pós-moderno?
O que hoje a diferenciaria da violência em épocas passadas?
Apesar de não pretender dar uma resposta definitiva a essa questão complexa, pois
cada época tem suas características próprias, pensamos que o dispositivo social que
caracteriza esses diferentes períodos históricos tem conseqüências sobre a estruturação da
subjetividade. Assim sendo, pensamos que o dispositivo social que rege nossa atualidade
produz conseqüências que se mostram em nosso cotidiano. Uma dessas conseqüências é a
violência. Consideramos também como pré-suposto que o dispositivo social dominante no
contemporâneo encontra seu fundamento no discurso capitalista em associação ao discurso
da ciência. Desenvolveremos essa questão mais adiante.
Uma vez estabelecido que não vivemos em tempos de grandes guerras, apesar de
vivermos um período marcado por guerrilhas e conflitos em várias partes do mundo, nos
chama a atenção o fato de presenciarmos uma violência quase que diária e, poderíamos
dizer, insistente. Nesse sentido, se tornou um costume dizer que vivemos em tempos de
extrema violência, pois ao abrirmos os jornais nos deparamos, a cada dia, com um episódio
inusitado. Assim, somos levados a pensar que nossa sociedade atual seria mais violenta que
qualquer outra na história.
Todavia, a violência sempre existiu, isto é um fato. Freud a coloca na origem da
civilização em textos como Totem e tabu (in op. cit) e Reflexões para os tempos de guerra e
morte (idem, 1915). Neste último, escreve ele:
A própria ênfase dada ao mandamento ‘Não matarás’ nos assegura que
brotamos de uma série interminável de gerações de assassinos, que tinham a
sede de matar em seu sangue, como, talvez, nós próprios tenhamos hoje. Os
esforços éticos da humanidade, cuja força e significância não precisamos
absolutamente depreciar, foram adquiridos no curso da história do homem;
desde então se tornaram, embora infelizmente apenas em grau variável, o
patrimônio herdado pelos homens contemporâneos. (idem).
O que Freud ou Lacan disseram utilizando os termos agressividade ou violência
pode ser visto em qualquer época da história da humanidade. Por exemplo, nas histórias
bíblicas, no Livro IX da República, de Platão, quando fala do homem tirânico, do mais
violento, hospedeiro de todos os vícios. Tanto a agressividade quanto a violência estão no
coração da civilização, razão pela qual Freud se mostrava pessimista com os destinos da
humanidade. Sobre isso, basta lermos seu texto de 1915, Reflexões para os tempos de
guerra e morte (in op. cit.) ou mesmo sua Carta a Einstein (1933[1932]a).
As formas fenomênicas de apresentação da violência se alteram, pois elas têm a ver
com as coordenadas discursivas de uma época e com a maneira como os sujeitos
respondem a essas coordenadas, uma vez que a pulsão também está presente em tempos de
paz. Interessar-nos verificar como as coordenadas discursivas da atualidade, marcadas pelo
discurso capitalista, produzem efeitos no sujeito e como um desses efeitos é o empuxo ao
gozo que convida à violência.
Muito embora em todos os tempos tenha havido violência, na violência
contemporânea parece haver algo que torna peculiar e distinta daquela de outros tempos,
muito particularmente por parecer que a violência, hoje, está relacionada ao declínio de
referências simbólicas e às exigências de gozo que caracterizam a atualidade. Tomamos
como referência simbólica a forma como nosso mundo é organizado pela linguagem e por
suas leis, que imprimem no funcionamento humano e, por conseguinte, em sua
subjetividade, obrigações e submissão a um limite no qual o sujeito se depara com um
impossível de dizer tudo. Para a psicanálise, esse limite se denomina castração e o agente
dessa castração é o pai. Nesse sentido, se sua função não é mais a mesma que a de épocas
passadas, isso traz conseqüências.
Como já dissemos, apesar de sempre terem existido guerras e violência em todos os
tempos, os motivos, as causas, as implicações dessa violência em tempos passados parecem
ser fundamentalmente diferentes da atualidade. É difícil pensar que a escravidão nos
tempos da Grécia Clássica tenha o mesmo sentido, as mesmas motivações ou as mesmas
justificativas que a escravidão de mulheres utilizadas para a prostituição na atualidade. Em
eras passadas, a violência a que sempre poderiam estar expostos os povos e as comunidades
diferentes e vizinhas tinha um contexto e um objetivo determinados: podia ser uma forma
de ritualizar as relações entre as tribos, ou uma forma de ritos de passagem dos jovens à
vida adulta, ou ainda um ritual para o aumento ou manutenção da fertilidade ou da força
(PEREIRA, 1996, p. 25).
Além disso, a violência, no passado, parecia ter a função de ultrapassar certos
limites que levariam à renovação ou à mudança de certas situações definidas em seu status
quo. Tomemos como exemplo o comentário de Lacan em dois de seus Seminários, o
Seminário, livro 5, As formações do inconsciente (1957-58[1999], p. 863) e o Seminário,
livro 15, O ato psicanalítico (1967-68, p. 80-81), sobre a travessia do rio Rubicão por Júlio
César, em 50 a. C. Nesses Seminários, o interesse de Lacan não é falar da violência, mas
definir o ato como uma ultrapassagem que produz conseqüências consideráveis.
Nessa travessia, nesse ato de César, está presente uma transgressão da lei, uma
violação, uma violência à lei romana. O rio Rubicão demarca a fronteira entre a Gália
Cisalpina, aquém dos Alpes, e a Itália. César sabia que ao atravessar esse rio estaria
desafiando a lei romana; seria considerado criminoso e expulso da República. Ao cometer o
ato infrator, César também sabia que não haveria volta e assim declara guerra à Pompéia
que detinha o poder sobre Roma. “Com as palavras Alea jacta est! (A sorte está lançada!),
César resolveu voltar com suas legiões à cidade. Uma vez atravessado o Rubicão, já em
terras romanas, não há retorno. Ou ele e seus soldados tomavam a cidade, ou Pompéia os
destruía.” (ZANOTTI, 2006). O valor do ato de César está justamente nessa transgressão da
lei, em ultrapassar um limite inaugurando algo novo, que passa a ter o valor de um signo
marcando um antes e um depois desse evento (BESSET, 2005). Portanto, o exemplo de
César nos ajuda a mostrar que o ato violento de irromper sobre a terra da República, a terramãe, o ato de violação (LACAN, in op. cit.) e transgressão da lei, tinha um motivo que não
era absolutamente banal. Desse ato resultou toda uma mudança radical na história de Roma.
Esse não parece ser o caso na atualidade, quando temos notícias da violência
provocada pelas mais banais e insensatas razões. Atualmente, questionamos a eficácia
simbólica de nossos rituais, a existência ou a função dos heróis que poderiam,
simbolicamente, mostrar os referenciais a seguir, dando um norte aos sujeitos. Enfim,
questionamos um líder e até mesmo a existência de intelectuais que formulem modos de
pensar ou ideologias que agreguem seguidores capazes de formar grupos coesos. Hoje, as
ideologias são múltiplas e relativas. Resta nos questionarmos a razão dessa multiplicidade e
dessa relatividade em que se encontra a civilização ocidental contemporânea conduzir à
violência.
Antes de tratarmos dessas questões faremos uma reflexão sobre a maneira de se
pensar a constituição da subjetividade, na psicanálise, através do que poderíamos chamar de
“tradição”. Em outras palavras, uma vez que o ser humano é um ser fundamentalmente
simbólico, suas capacidades de simbolização são tributárias do modo pelo qual, através da
estrutura edipiana, ele consentiu com as leis da linguagem. O que sustenta tradicionalmente
essa estrutura e permite esse consentimento é a possibilidade de confrontação da criança
com a dissimetria das funções paterna e materna no seio da família7.
Nesse sentido, pensamos ser de interesse levantar a discussão a respeito dessa
“tradição” a fim de contrapô-la ao que surge na contemporaneidade, onde a confrontação,
apontada acima, é freqüentemente posta em causa. Além disso, nos interessa pensar a
violência na origem da civilização e como a promessa de não mais se cometer o ato
violento, tal como o assassinato do pai primevo: “Não matarás!”. A renúncia à livre
satisfação dos impulsos leva à constituição do laço social no seio da comunidade humana,
em constante ameaça de ser rompido com o retorno da violência.
7
E. Roudinesco trata dos destinos da família no contemporâneo, entendendo-a como desorientada pela
liberação dos costumes, pela perda da autoridade do pai e pela precariedade própria da economia atual em seu
livro ROUDINESCO, E., A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
2.2 – O programa da cultura e a renúncia pulsional
Lacan nos mostrou que a linguagem faz laço social, pois a linguagem é a única via
possível para se fazer vínculos com o Outro. Não existindo relação (rapport), proporção,
com o Outro, o acesso a esse Outro da linguagem, tesouro do significante, completa
alteridade, só se constitui como laço justamente pelo acesso do sujeito ao significante e à
linguagem. Entre o sujeito e o Outro não há simetria ou proporcionalidade, mas, ao
contrário, apenas dessimetria, que se tenta relativizar pela constituição de laços sociais.
Esses laços se estabelecem no interior da cultura e só são possíveis de serem formados se o
sujeito consente em renunciar a algo de si. Para a psicanálise, esse algo a renunciar seria o
desejo de incesto com a mãe.
Nesse sentido, o programa da cultura tem como protagonista a função do pai que,
através da contingente aventura edípica, dá um limite a essa ligação entre a mãe e a criança,
fazendo um corte. Notemos que, etimologicamente, a palavra cultura tem sua raiz em
cultellus, que é a mesma para cutelo e que se associa à palavra corte (TAVARES, p. 36).
Assim, ao separar mãe e filho, o pai possibilita que a criança passe de uma posição que
poderíamos chamar “natural”, uma vez que para os animais, na natureza, não há interdição
do incesto, para uma posição “cultural”, na qual pode haver laços fundados a partir da
palavra.
A lei primordial, possibilidade de acesso ao desejo, é a lei da interdição do incesto,
consubstancial às leis da linguagem e articulada pelo Outro, definido por Lacan, conforme
dito acima, como o lugar da linguagem e o tesouro do significante. Em outras palavras, o
Outro simbólico. No incesto, o desejo pela mãe é o desejo fundamental, como Freud o
articula. No entanto, para que a palavra subsista, para que os laços sociais se formem, é
preciso que a mãe seja interditada. Lacan nos diz: “a interdição do incesto não é outra coisa
senão a condição para que subsista a fala” (1959-60[1991], p. 89). Então, consentir em
renunciar a essa satisfação com a mãe é a possibilidade de acesso do sujeito à cultura e,
nesse sentido, esse acesso se torna possível a partir de um limite que se impõe sobre algo
que é da ordem da satisfação da pulsão.
Como já referimos, em um texto não muito recente J.-A. Miller aponta para o fato
de a cultura ocidental se apoiar em dois princípios básicos: “conheça-te a ti mesmo e nada
de excesso” (MILLER, 1997, p. 420). O trabalho da cultura estaria em propiciar meios para
se evitar excessos de qualquer ordem, impondo limites. No entanto, esses limites não
devem, a partir de um determinado momento, originar-se da cultura como instrumentos de
repressão social, melhor seria que eles viessem do próprio sujeito. É o que mostra Freud
com o conceito de supereu. Trata-se de uma instância censora no interior do aparelho
psíquico, cuja função seria a de se manter como guardiã moral e ética, tendo como
fundamento o sentimento de culpa.
Desse modo, a forma mais eficaz de limitar o excesso estaria em conhecer a si
mesmo, o que, por sua vez, implicaria em conhecer seus próprios limites. Estes limites
seriam congruentes ao que foi primeiramente postulado por Freud como o princípio do
prazer/desprazer, princípio esse que teria por função medir esse limite e cuidar para que não
fosse ultrapassado.
Tal projeto da cultura em limitar o excesso mostraria seu fracasso diante da
descoberta freudiana de algo mais além do princípio do prazer, algo que supõe, justamente,
um excesso. A esse excesso mais além do princípio do prazer, Freud vai chamar pulsão de
morte, ou seja, algo que ultrapassa a homeostase almejada para o organismo segundo o
programa da cultura: “nada de excesso”. J.-A. Miller nos diz que “em termos freudianos,
existe algo no funcionamento do aparelho psíquico do homem, entre aspas, que conduz ao
excesso” (idem).
No texto, Análise terminável e interminável (1937), Freud trabalha a problemática
do eu em relação ao pulsional, ou seja, a dinâmica e o conflito de forças entre o eu e a
pulsão, e se pergunta justamente como domesticar esse excesso. É possível que o eu
domine, domestique a pulsão? Parece que todo um trajeto pós-freudiano foi feito nesse
sentido, ou seja, como obter um reforço do eu a fim de que ele pudesse ter condições de
dominar a pulsão.
A forma como Freud apresenta sua descrição do eu vai exatamente no sentido
contrário a essa perspectiva. Em outras palavras, a constituição do eu e sua relação com a
pulsão denunciam constantemente seu fracasso em dominá-la. Apesar de todos os esforços
do eu, a pulsão continua a exigir satisfação e o eu não pode fazer com que essa exigência
desapareça. Freud mostrou como o resultado desse conflito surge não como uma supressão
da pulsão, mas como um compromisso entre a exigência pulsional e as defesas do eu,
através do sintoma.
Além disso, em Angústia e vida pulsional (FREUD, 1933[1932]b), por exemplo,
Freud nos fala de como a organização libidinal deixa, em sua evolução, fragmentos de
etapas anteriores. Tais fragmentos não são destruídos, mas funcionam como restos que
continuam a existir apesar de o sujeito ter alcançado uma organização libidinal mais
elevada. Restos esses aos quais o sujeito pode recorrer se surgir um ponto de dificuldade
que impeça à libido de avançar em sua organização. Nesse sentido, Freud fala em “fixação,
predisposição e regressão” (idem, p. 92). Portanto, falar de uma síntese do eu como
instância autônoma tendo domínio sobre a subjetividade seria problemático. O eu só
funciona como autônomo a partir de uma ilusão, como nos mostra Lacan ao falar da
constituição do eu a partir do estádio do espelho (LACAN, 1949[1998]).
Tal colocação de Freud e de seu entendimento a respeito da estruturação do sujeito
demonstram que, para ele, não há uma idéia de domínio do eu sobre esse excesso que
aparece como pulsão. Então, no campo do eu, fica um resto que pode não ser assimilado
por ele, ou seja, um resto que não faz parte de sua síntese.
Esse resto, articulado ao excesso, é o gozo. Nesse sentido, se o “conheça-te a ti
mesmo” funcionaria como uma estratégia para manter o “nada de excesso” da cultura, o
excesso, o resto, viria justamente denunciar o fracasso de seu projeto. Lacan, então, faz
deslocar esse “si mesmo” do eu para o resto e afirma que a verdade do ser não é do domínio
do eu. Para Lacan, o ser, o que se identificaria com o “si mesmo”, é exatamente esse resto
chamado por ele de objeto a, no qual se concentra o gozo (MILLER, in op. cit.).
Pois bem, não nos interessa fazer aqui uma descrição do trabalho exaustivo
realizado por Lacan ao longo de sua obra a respeito da problemática do gozo. No entanto,
achamos importante precisar um pouco mais essa questão, pois estamos chamando a
atenção para o fato de que o problema da cultura seria justamente como lidar com esse
excesso e o que fazer com o resto não assimilável pelos seus dispositivos.
Além disso, como a violência teria a ver com esse excesso pulsional do qual o eu
não dá conta, com um excesso que escapa ao simbólico e que põe em risco os laços sociais
fundados pela palavra? Em outros termos, como a cultura oferece instrumentos para lidar
com o gozo sem permitir que ele escoe em demasia, ficando circunscrito ao princípio do
prazer? Como nos diz Lacan: “Toda formação humana tem, por essência e não por acaso,
refrear o gozo. A coisa nos aparece nua – e não mais através desses prismas ou pequenas
lentes chamadas religião, filosofia ... ou até hedonismo, porque o princípio do prazer é o
freio do gozo.” (1967[2003], p. 362). Passaremos, então, a discutir sobre a questão do gozo
em Lacan, pois nos parece fundamental ter em conta esse conceito, uma vez que ele é
imprescindível em nossa reflexão sobre a dialética entre a pulsão e a civilização.
2.3 – Sobre o gozo: satisfação e excesso
A conceituação que Lacan faz a respeito do gozo ao longo de seu ensino é
formalizada por J.-A. Miller em um texto recente (2000, p. 87-105). Neste texto, o autor
mostra os vários momentos do pensamento de Lacan a respeito da “doutrina do gozo”
(idem, p. 87). Assim, J.-A. Miller formula seis paradigmas do gozo que se desenvolvem
conforme a complexidade da elaboração teórica de Lacan, a saber: do gozo como
imaginário, passando à significantização do gozo, ao gozo como impossível, ao gozo
normal, até o gozo discursivo e, por fim ao gozo da não-relação que é o paradigma do
último ensino de Lacan.
Não iremos percorrer esse trajeto por demais complexo e exaustivo, mas nos
apropriaremos do que nos interessa desenvolver aqui, levando-se em conta que o gozo é
sempre entendido como um excesso. Esse excesso é justamente o que aponta para o malestar e para o sofrimento, é aquilo que não é bem acolhido pelos aparelhos da cultura, que,
como já citamos, demarca uma máxima: “nada de excesso”. Como veremos, essa máxima
faz um paradoxo com outra que parece reger a cultura contemporânea, ou seja, aquela que
Lacan aponta já em seu Seminário, livro 20, Mais, ainda (1972-73[1985], p. 11): Goza!
Lacan define o gozo como a satisfação pulsional freudiana (in op. cit., p. 256). Em
seu Seminário, livro 7, A ética da psicanálise (LACAN, 1959-60[1991]), a definição dada
por ele ao gozo não é retirada do vocabulário corrente, nem mesmo de Freud, que o coloca
como sinônimo de volúpia ou de um prazer intenso. Apesar de nesse Seminário já nos dar
sua referência sobre a relação entre direito e gozo, é no Seminário, livro 20 (in op. cit.), que
Lacan dará o estatuto do gozo na psicanálise em sua diferença com o direito. Para ele, a
relação entre o direito e o gozo está no usufruto que reúne, em uma palavra, o que já havia
evocado no Seminário sobre a ética (in op. cit., p. 228), ou seja, a diferença entre o útil e o
gozo (in op. cit., p. 11).
Ele diz:
Esclarecerei com uma palavra a relação do direito com o gozo. O usufruto – é
uma noção de direito, não é? – reúne numa palavra o que evoquei em meu
seminário sobre a ética, isto é, a diferença entre o útil e o gozo. (...) O usufruto
quer dizer que podemos gozar de nossos meios [recursos], mas que não
devemos enxovalhá-los [desperdiçá-los]. (...) É nisso que está a essência do
direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo. (idem,
ibidem).
Para a psicanálise, o gozo não se confunde com o prazer. O prazer é uma barreira
contra o gozo (LACAN, 1967[2003], p. 362). Esse, como dissemos, se manifesta sempre
como excesso em relação ao prazer, confinando com a dor. Se pode haver no prazer alguma
modalidade de gozo, nem todo gozo leva ao prazer, ao contrário, o sujeito pode gozar de
algo que não lhe é prazeroso. Daí Freud apontar o caráter paradoxal desse tipo de
satisfação.
Freud foi o primeiro a delimitar que o prazer tem um princípio, cuja função se liga a
Eros, portanto à vida. O fracasso em sustentar esse princípio está referido ao domínio do
além do princípio do prazer, no qual a satisfação se mostra estranha e paradoxal. Com isso,
Freud marca uma articulação difícil de ser harmônica, ou seja: de um lado, há falta do
objeto que cause a satisfação total e, de outro, há excesso, algo que ultrapassa o limite do
princípio do prazer.
Como o sujeito pode manejar o gozo se, por definição, o acesso a ele lhe é
impossível, barrado que está pelo princípio do prazer e, ao mesmo tempo, proibido pela lei
que regula o desejo? O desejo está ligado à lei de interdição do incesto que é consubstancial
às leis da linguagem. Tal lei barra o gozo ao sujeito do significante, sendo esta barreira a
possibilidade de ele ter acesso ao uso das palavras. O gozo, porém, só começa a existir e a
interessar, causar alguma coisa ao sujeito, a partir do momento em que se tem acesso à
linguagem e à fala. Nesse sentido, pelo ato da palavra o gozo sofrerá uma profunda
modificação.
Em seu primeiro ensino, quando Lacan faz uma releitura do Édipo freudiano,
propõe a teoria da metáfora paterna, ou seja, um significante, o Nome-do-Pai, vindo se
sobrepor ao significante enigmático do desejo da mãe. Com isso, faz operar um
apagamento de todo o gozo implicado no Édipo pelo significante. Aqui, não há resto. Ao
perceber que nem tudo é significante, Lacan é levado a introduzir a noção de gozo de modo
conceitual em seu ensino.
Lacan faz do conceito de gozo um princípio que se fundamenta em um paradoxo: ao
mesmo tempo em que “não serve para nada” (idem, 1972-73[1985], p.11), é aquilo sem o
qual “tornaria vão o universo” (idem, 1960[1998], p. 834). Seu estatuto de não servir para
nada assinala sua inutilidade ao serviço dos bens, ao mesmo tempo em que, sendo algo que
excede, é sempre incontável, não contabilizado, está sempre escoando, se esvaindo, nunca é
apreendido porque nunca é o bom gozo. Não se compartilha, nem é colocado a serviço das
trocas simbólicas. Ele é algo que se opõe à adaptação e à harmonia, trabalha na contra-mão
da homeostase e do bem-estar e se coloca na vertente da repetição: repetição de uma
satisfação paradoxal.
Com o termo gozo, Lacan faz uma economia conceitual considerável. Com esse
vocábulo, ele evoca todas as modalidades daquilo que Freud descobriu em relação aos
paradoxos da satisfação pulsional, ou seja, o desprazer, a insatisfação, a dor, o masoquismo
erógeno, a libido etc.
Em seu Seminário, livro 7, A ética da psicanálise (in op. cit., p. 91), Lacan fala da
constituição de um objeto topológico em forma de anel, do qual já fizera uso em seu
escrito, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953[1998], p. 322), para
ilustrar a dialética da presença/ausência sem fim do significante. Temos, portanto, uma
descrição desse objeto que evoca a forma tridimensional de um toro8.
Pois bem, Lacan situa sobre o corpo desse anel o sistema de representações
simbólicas e imaginárias do sujeito. No espaço central desse objeto ele situa a Coisa,
localizando, assim, o gozo no centro das representações do sujeito. É o que podemos dizer
8
“O toro é uma superfície sem borda, superfície fechada de uma única face, engendrada pela rotação de um
círculo gerador. (...) O toro comporta dois vazios, o vazio central e o vazio ‘interior’, ou gerador, que permite
traçar dois tipos de trajeto irredutíveis.” (KAUFMANN, 1996, p. 529).
do gozo em suas relações de extimidade (LACAN, in op. cit., p. 173) com o sujeito.
Mediante esse neologismo, Lacan sublinha que o gozo é, ao mesmo tempo, o que há de
mais estranho e de mais íntimo para o sujeito.
Nesse momento de seu ensino, o Outro é definido como o lugar do significante onde
o desejo se articula com a lei. Se o desejo, submetido à lei, pode constituir-se em uma
defesa contra o gozo, por outro lado, ele está no princípio de uma transgressão a essa lei, o
que permitirá ao sujeito seu acesso ao gozo.
A apresentação, por Lacan, desse objeto impossível que é das Ding, mostra sua
relação com a questão da origem. Uma vez dada prioridade ao significante, privilegiando
sua anterioridade lógica, um gozo originário só pode ser suposto depois da incidência da
linguagem. Esse gozo só pode existir na medida em que há a linguagem, ou seja, na medida
em que o significante lhe dá consistência.
Tal concepção incide sobre a própria noção de objeto. O objeto primordial, nunca
tido e desde sempre perdido, recebe uma significação retroativa pela incidência do
significante, que o estabelece como objeto perdido instituindo, ao mesmo tempo, a
nostalgia da falta-a-ser. É o próprio significante que produz a perda.
O objeto perdido é a mãe. Assim, a interdição do incesto é a própria condição de
possibilidade da palavra. É porque a mãe é perdida e interditada que o sujeito pode desejar
outra coisa. A ação do significante é que barra a Coisa, tal ação dá suporte à lei que se
veicula no desejo. O significante presentifica a ausência da Coisa como o lugar de um furo,
de um nada a preservar. Esse furo marca a possibilidade do desejo na medida em que o
desejo se origina de uma falta-a-ser do sujeito. Esse é o princípio da castração.
No Seminário sobre a Ética (in op. cit.) Lacan irá ilustrar, através das figuras
trágicas de Édipo e Antígona, o preço que o sujeito paga para cumprir, contra sua vontade,
mas com seu consentimento, a Até familiar marcada pelo fato de se sustentar um desejo às
suas últimas conseqüências. Édipo possui um desejo de saber que o cega, ele representa a
própria castração. Antígona, animada por um desejo puro, vislumbra a morte.
Nesse seminário, trata-se da tragédia do desejo. Com isso, Lacan mostra que se o
bem pode ser indexado por um prazer, o gozo pertence a outro registro. Enquanto atrelado
ao campo central da Coisa, seu acesso é barrado ao sujeito tornando-se gozo impossível.
Uma vez que o desejo é correlato à lei, para se alcançar o gozo seria necessário transgredir
essa lei. No entanto, para o sujeito, essa transgressão é duplamente impossível. De um lado,
há um “limite orgânico imposto pelo princípio do prazer” (KAUFMANN, in op. cit., p.
223), que implica no fato de todo excesso de gozo ser incompatível com a vida. De outro,
há razões de estrutura.
Lacan afirma que a lei, relativa ao significante, se sustenta sobre a lei do princípio
do prazer barrando o gozo ao sujeito. Mais tarde, em seu Seminário, livro 20, Mais, ainda
(in op. cit., p. 152), Lacan dirá que o gozo obtido não é o gozo devido; que há sempre uma
defasagem entre o gozo esperado e o gozo obtido. Para Lacan, a função do princípio do
prazer consiste em transportar o sujeito de um significante a outro, a fim de tamponar todo
excesso de gozo, numa tentativa de deter o gozo pelo significante. No entanto, há um resto.
Como formula Miller (in op. cit.), dentre os seis paradigmas do gozo desenvolvidos
ao longo do ensino de Lacan, a significantização do gozo é o segundo deles, o paradigma
que sustenta, por exemplo, seu Seminário, livro 5, As formações do inconsciente (LACAN,
in op. cit.). Juntamente com o terceiro desses paradigmas, a saber, o gozo impossível,
apresentado no seminário da Ética (in op. cit.) há, nessas concepções do gozo, uma
tentativa de se fazer seu apagamento pelo significante a partir da primazia do simbólico.
Nessa concepção, o corpo não entra a não ser como morto.
Lacan precisa resolver a mortificação do corpo pelo significante, pois nem tudo é
significante. Além disso, com essa teorização da primazia do simbólico toda uma tradição
freudiana relativa à pulsão ficaria elidida (MILLER, 2005). Lacan resolve essa contradição
ao propor sua conceitualização do objeto a, objeto condensador de gozo que, além de
objeto causa de desejo, surge também como mais-de-gozar, lugar de recuperação de gozo,
tal como mostra em seu Seminário, livro 16, De um Outro ao outro (LACAN, 1968-69).
Assim, não há como falar de gozo sem levar em conta um corpo vivo que goza. O
gozo diz respeito ao corpo. Nesse sentido, pode-se dizer que só há gozo do corpo, só o
corpo pode gozar ou, ainda, um corpo é feito para gozar9. Isso significa dizer, como Freud,
que só a pulsão permite ao ser falante chegar à satisfação. O que é da ordem do gozo
assinala o ponto em que o vivo (o corpo) pactua com a linguagem (com o significante).
Com isso, o gozo atesta a articulação entre o significante e o corpo.
O $ quer dizer o corpo mortificado. Pois bem, há gozo, inclusive o gozo
residual do mais-de-gozar e, para que haja mais-de-gozar, é necessário o
corpo, o corpo vivente. A tudo o que, no ensino de Lacan, faz repercutir que o
significante mata o gozo, há que opor-lhe que o significante produz o gozo sob
as espécies do mais-de-gozar. (...) o significante não tem em primeiro lugar
um efeito de mortificação sobre o corpo, que o essencial é que é causa de gozo
e que se trata então de pensar a união do significante e do gozo, que o
significante tem uma incidência de gozo sobre o corpo. Lacan o elabora em
9
“O que nos indica o princípio do prazer, se há um temor, é o de gozar, sendo o gozo uma abertura em que
não se vê o limite. De qualquer forma que se goze, bem ou mal, só a um corpo cabe gozar ou não gozar.”
(Lacan, Sem. 13, O objeto da psicanálise. Lição de 27 abr 1966).
seus Seminários próximos ao Seminário 20. Privilegia o efeito de gozo do
significante, não seu efeito de mortificação. (MILLER, 1998[2001])10.
O desenvolvimento de Lacan sobre o gozo o levará a falar em várias modalidades
de gozo, tais como: o gozo fálico, o gozo do Outro, o gozo do corpo, o gozo do Um, o gozo
feminino etc. Neste ponto de nossa pesquisa, interessa-nos extrair da concepção lacaniana
de gozo seu caráter de excesso, daquilo que transborda, daquilo que escoa, que excede. Tal
excesso, por sua vez, está ligado ao mais-além do princípio do prazer e ao campo da pulsão
de morte.
2.3.1 – A violência e a lógica falo/castração
Lacan trabalha o Édipo freudiano considerando-o uma metáfora e formula, em seu
primeiro ensino, a metáfora paterna. Trata-se de uma operação de substituição significante.
Nela, o significante do Nome-do-Pai substitui o significante do desejo da mãe, cujo
significado é enigmático para o sujeito. Essa operação tem como resultado a inscrição da lei
da castração no Outro e a produção da significação sexual como fálica.
O Édipo, para Lacan, só é reconhecido através da formulação da metáfora paterna,
proposta por ele já em 1958, em seu texto, De uma questão preliminar a todo tratamento
possível da psicose (LACAN, 1958[1998], p. 563). Ele assim a escreve:
10
A tradução é nossa.
Nome-do-Pai
___________
Desejo da Mãe
.
Desejo da Mãe
_________________
Significado para o sujeito
Nome-do-Pai A
__
Falo
Essa substituição metafórica se faz sob o fundamento da castração simbólica. A
intervenção do Nome-do-Pai no Outro permite à criança se destacar de sua identificação ao
falo imaginário e submeter-se à lei simbólica. O sujeito consente em perder sua
identificação ao falo materno recalcando-o, para poder ter acesso à sua significação. O
Outro, então, recebe os efeitos da castração e deixa de ser onipotente, pois, assim como o
sujeito, ele também está submetido à lei simbólica e marcado pela castração. Trata-se de
um Outro barrado e faltoso que Lacan escreve como ( A/ ).
Com a metáfora paterna, a significação do falo é evocada no imaginário do sujeito.
Quando o falo como imaginário participa do processo simbólico, ele aparece como o objeto
da castração. A castração é uma operação simbólica que incide sobre um objeto imaginário,
o falo (ϕ). Nesse processo, o falo passa de objeto imaginário a significante. O efeito dessa
operação é seu próprio desaparecimento. Ele se inscreve como falta imaginária (-ϕ).
Nessa passagem, o falo deixa de ser o objeto de desejo da mãe e passa a ser o
significante do desejo do Outro. Essa operação se torna decisiva quando o sujeito confirma
a castração materna, quando se dá conta de que a mãe não tem o falo. O falo, como
significante do desejo do Outro (Φ), é positivado para o sujeito e se articula com a
linguagem por sua qualidade de significante (LACAN, 1958[1998], p. 699). O falo é o
significante privilegiado que possibilita o acesso do sujeito à significação, ao universo do
sentido e à cultura, pois é o significante responsável pelos efeitos de significado.
O falo, como significante, não é um significante puro como o Nome-do-Pai, mas um
“significante impuro”, uma vez que está ligado ao imaginário do corpo, ao órgão da
copulação. Com isso, o falo pode dar corpo ao imaginário (LACAN, 1974-75). Por outro
lado, ao ser elevado à condição de significante, o falo só pode desempenhar o seu papel
enquanto velado. Sobre isso, Lacan escreve:
O falo é o significante dessa própria Aufhebung [suspensão], que ele inaugura
(inicia) por seu desaparecimento. É por isso que o demônio de Aidos (Scham)
surge no exato momento em que, no mistério antigo, o falo é desvelado (cf. a
célebre pintura da Villa de Pompéia). (LACAN, in op. cit., p. 699).
Com a operação da castração simbólica, o gozo, por sua vez, fica circunscrito ao
falo, limitado como gozo fálico, gozo linguageiro, dependente das articulações significantes
e possibilitador das trocas simbólicas. É a significação fálica à qual o sujeito acede através
da operação da castração, que permite um certo balizamento dentro dos limites da lei do pai
na cultura. Assim, podemos definir a violência como algo que ultrapassa o balizamento
fálico.
Considerando-se que não há um gozo absoluto, que o gozo é limitado pelo
significante, que ele é gozo fálico, esse gozo está restrito ao princípio do prazer e funciona
como gozo marcado pelo limite. A violência como gozo, como excesso pulsional, faz
romper esse limite e se mostra como um esgarçamento do tecido simbólico. Se ela é algo
que insiste, se repete, está presente em todas as épocas, não cessa de se escrever (LACAN,
1972-73), ela é um sintoma assim como o sintoma é gozo (idem, 1962-63, p. 140). Nesse
sentido, estamos interessados em investigar se ela poderia se tornar um sintoma analítico, o
que poderia ocorrer no tratamento pelo viés da transferência, pois o mal-estar do qual o
sujeito padece só é sintoma se assim ele o considerar.
Por fim, é o significante que funciona como o apaziguador desse excesso de gozo
limitando-o à fantasia e ao sintoma, vindo este funcionar como um envelope formal que
condiciona esse gozo aos limites do princípio do prazer. Todavia, a condição do
significante como apaziguador do gozo enquanto excesso não anula sua vertente
traumática. O sujeito padece da linguagem. A submissão do sujeito à linguagem propicia
uma renúncia ao gozo, mas quanto mais se renuncia, mais atuante esse gozo se faz.
Por outro lado, é exatamente o significante, ao promover essa perda traumática
traduzida como um furo simbólico, que permite o trilhamento, ou seja, instaura as vias por
onde se manifestarão as modalidades de gozo próprias de cada sujeito. Assim, só existe
gozo pela incidência do significante. O próprio gozo traz vida ao corpo.
Ao atravessar o corpo nessa operação de castração, o significante causa uma perda
de gozo que tenderá ser recuperada pelos objetos mais-de-gozar. Essa perda é constitutiva
do sujeito e o coloca nas vias das produções culturais, podendo ter acesso à cultura como
um ser simbólico. O que a atualidade promove, particularmente com o discurso capitalista,
é uma proposta violenta de recuperação total do gozo mediante os objetos oferecidos pelo
capitalismo. Em outras palavras, podemos dizer que se trata de uma oferta maciça de gozo
como tentativa de obturar o furo simbólico que permite ao sujeito desejar.
O significante é traumático, pois, a cada vez que ele se inscreve no falante ocorre
uma perda e uma renúncia ao gozo. A incidência do significante no ser falante é inevitável
e o sujeito sofre as conseqüências de estar submetido à linguagem. Que destino então se
poderá dar ao gozo? Ou ele será balizado pela lógica falo/castração articulada ao Nome-doPai, ou irá se manifestar como um excesso, como o que escapa a essa lógica através das
impulsões ou da violência.
2.4 – A violência na origem: o mito freudiano de Totem e tabu e o limite ao
pulsional
Segundo Freud, na origem da humanidade havia uma horda primitiva cujo macho
dominante reservava para si o gozo de todas as mulheres. Elas eram proibidas para todos os
outros machos, que eram seus próprios filhos. Esse tirano da horda exercia sobre eles um
direito de vida e de morte. Impossível, para seus filhos, subtrair-lhe a menor parcela de
gozo. Um dia, ao se verem expulsos da horda, os filhos se rebelam, retornam e assassinam
o pai tirânico. Comem sua carne e festejam a vitória sobre sua tirania. Arrependem-se,
porém, e, movidos pela culpa, erigem um totem em homenagem ao pai morto e passam a
instituir proibições para si mesmos. Assim, de acordo com o mito, só após o excesso, o ato
criminoso, é que foi possível a inscrição dos filhos na ordem simbólica.
Se, com Freud, a psicanálise teve o cerne de sua doutrina apoiado na questão mítica
do pai – seja o mito do pai totêmico de Totem e tabu (in op. cit.), descrito acima, seja o
mito do pai-grande homem, orientador de um povo, em Moisés e o monoteísmo (in op. cit.),
ou ainda o pai no mito de Édipo –, tal questão concerne à problemática do advento do
homem à cultura, ao simbólico e à economia do gozo, a partir da morte do pai. Mais
exatamente, os mitos que citamos dizem respeito, como salienta Lacan, não somente à
morte, mas ao assassinato do pai. Para Lacan, “o assassinato do pai é a condição do gozo”
(1969-70[1992], p. 113). Ele, contudo, se pergunta: “Mas será à custa desse assassinato que
ele o obtém?” (idem).
2.4.1 – O gozo na origem
O mito freudiano de Totem e tabu (in op. cit.) apresenta a hipótese de um gozo
originário, de um pai tirano, gozo absoluto e fora de qualquer lei simbólica. Nesse mito, é a
questão da origem que se apresenta: origem da civilização, da cultura e do laço social. Ao
mesmo tempo em que trata da questão do gozo que estaria na origem da civilização e que
deve ser barrado, apresenta essa origem como enigmática.
É para tentar responder a esse enigma que Freud lança mão do mito do pai totêmico,
e, com ele, aborda a questão do advento da cultura e suas implicações para o gozo, o desejo
e a lei. Assim, o mito ocorre onde, no sistema do sujeito, ou seja, no simbólico, o gozo não
é simbolizado nem simbolizável: ele é real.
Para a psicanálise, o real da origem só pode adquirir sentido no “só-depois”
(nachtraglich) dos efeitos observáveis da estrutura da linguagem. Um gozo na origem é
radicalmente impossível, ele só passa a possuir alguma existência a partir do momento em
que se fala dele. Freud, se apoiando em Goethe, diz com Fausto: “No começo foi a ação”
(1912-13[1994], p. 162), porém, no Seminário, livro 17 (in op. cit., p. 118), Lacan, ao
contrário, diz que no começo foi o verbo:
se é verdade que só poderia haver ato num contexto já preenchido por tudo
que advém da incidência significante, da sua entrada no mundo, não poderia
haver ato no começo, nenhum ato, em todo caso, que pudesse ser qualificado
de assassinato. Aqui o mito não poderia ter outro sentido a não aquele ao qual
o reduzi, o de um enunciado do impossível. Não poderia haver ato fora de um
campo já tão completamente articulado que aí a lei já não tivesse seu lugar.
Não há outro ato a não ser o ato que se refere aos efeitos dessa articulação
significante e que comporta toda a sua problemática – como, por um lado, o
que comporta, ou melhor, o que é, de queda da própria existência do que quer
que possa ser articulado como sujeito e, por outro lado, o que ali preexiste
como função legisladora. (LACAN, 1969-70[1992], p. 118).
Para Lacan, não há nenhuma contradição entre as duas fórmulas, pois, “No princípio
era o verbo” quer dizer “No começo é o traço unário” (LACAN, 1962-63[2005], p. 31). É
o traço anterior ao surgimento do sujeito, “initium subjetivo” (idem), com a “introdução
primária de um significante” (ibidem), o mais simples. Esse traço unário (S1), enquanto um
significante que funda o sujeito, torna a linguagem o elemento essencial nessa questão da
origem.
Também em seu Seminário, livro 15, O ato psicanalítico (1967-68), Lacan chama a
atenção novamente para isso, ou seja, o fato de que sem ato não poderia haver começo, pois
se a ação está no princípio é “porque não poderia haver começo sem ação” (idem, p. 80).
Ainda seguindo essa linha ele afirma: “não há ação alguma que não se apresente, de saída e
antes de mais nada, com uma ponta significante. Esta ponta significante é justo o que
caracteriza o ato, e sua eficiência de ato nada tem a ver com a eficácia de um fazer. Algo
que atinge essa ponta significante.” (idem).
Com sua definição de ato, Lacan reúne as duas fórmulas aparentemente
contraditórias: No princípio era o verbo e No começo foi a ação. Pois “não existe ação sem
uma ponta significante (...) Não há oposição entre ato e verbo, se tomamos a via sugerida
por Lacan de que a verdadeira estrutura do ato reside em sua vinculação à fecundidade do
mito da criação.” (ZANOTTI, 2006, p. 126).
Com o mito de Totem e tabu, Freud descreve um ato fundador. Não há um antes. O
próprio pai, como tal, não existe a não ser a partir do momento em que é morto. Ele, então,
é uma função: função paterna que interdita o gozo e nomeia. Sobre isso, Lacan observa:
Antes que houvesse o Nome-do-Pai, não havia pai, havia todas as espécies de
outras coisas. Se Freud escreveu Totem e tabu, é que ele pensava entrever o
que havia, mas seguramente, antes que o termo pai se tenha instituído num
certo registro, historicamente não havia pai. (LACAN, 1955-56, p. 344).
Assim, o assassinato do pai funda a função paterna, ou seja, aquela que possibilita o
acesso do sujeito ao simbólico. O pai antes de ser morto é um pai mítico, cuja função seria
a de provocar ódio e amor, simultaneamente. Esse pai exerce a função imaginária de
castrador, por isso é o depositário das proibições. Esse pai tem que ser morto para que os
filhos possam viver simbolicamente. O assassinato do pai da horda possibilita aos filhos se
inscreverem na dialética do desejo. Essa inscrição é produtiva para eles uma vez que seu
ato assassino lhe dá seu valor fundador de entrada na civilização.
2.4.2 – O mito, o gozo e o desejo
Lacan nos diz que o contraponto do gozo é o desejo (1960[1998], p. 841). Se o
desejo tem a ver com a angústia e com o mal-estar, o gozo se refere, como vimos, a um
excesso de pulsão, a algo que ultrapassa o balizamento simbólico. Para que o sujeito possa
desejar será necessário renunciar ao gozo, passando o desejo a vigorar nos limites da lei: “a
castração quer dizer que é preciso que o gozo seja rejeitado para que possa ser alcançado na
escala invertida da lei do desejo” (idem). Assim, o mito freudiano nos revela que a
verdadeira função do pai é a de interditar o gozo instituindo o desejo nos trilhos da lei.
Ao longo de seu ensino, Lacan fará referência ao mito de Totem e tabu (in op. cit.),
considerado por ele como o mito freudiano que procura tratar da renúncia ao gozo e do
advento do sujeito à lei simbólica, à lei da interdição do incesto, ou seja, às leis da
exogamia, do Supereu, entendido como instância crítica e moral da subjetividade que
estaria no centro do funcionamento da cultura.
O mito moderno, por excelência (1959-60[1988], p. 216), surge para completar o
mito edipiano que se mostra como um discurso sobre o desejo e a lei. A lei subjetiva trata
da impossibilidade de haver um ser falante que não esteja submetido às determinações da
linguagem. É preciso então impor a palavra onde nada pode ser dito. Impor o significante à
morte, à sexualidade, ao gozo. Essa é a lei que funciona a partir da castração, com a
inscrição do significante fálico na subjetividade. Por isso, torna-se impossível para um
sujeito sustentar a sua posição desejante ali onde a lei não opera, ou seja, onde não haja
uma lei que interdite o gozo, lei do recalque, fazendo seu balizamento com o simbólico.
Neste ponto, pensamos ser importante caracterizar o que é o mito para a psicanálise.
Em seu Seminário, livro 4, A relação de objeto (LACAN, 1956-57[1995], p. 258), Lacan
considera o mito uma narrativa com caráter de ficção. Por outro lado, trata-se também de
uma verdade, porquanto, para Lacan, a verdade tem estrutura de ficção (idem, p. 259).
Segundo ele, ainda nesse Seminário, os mitos visam “não a origem individual do homem,
mas à sua origem específica, à criação do homem, à gênese de suas relações nutrizes
fundamentais, à invenção dos grandes recursos humanos, ao fogo, à agricultura, à
domesticação dos animais” (idem, p.259-60).
Doze anos mais tarde, em seu Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (in op.
cit.), Lacan ainda trata o mito como uma verdade, cuja estrutura “só se sustenta em um
semi-dizer.” (idem, p. 103). A verdade, por sua vez, continua tendo estrutura de ficção. Já
em Televisão (1973[1993], p. 55), Lacan nos diz: “O mito, é isso, a tentativa de dar forma
épica ao que se opera na estrutura”. Nesse sentido, aquilo que opera na estrutura é o que
insiste em ser dito, ou seja, o real. Ele prossegue: “O impasse sexual secreta as ficções que
racionalizam o impossível de onde ele provém. Não digo que sejam imaginadas, leio aí,
como Freud, o convite ao real que responde por isso.”. Desse modo, o mito seria uma
tentativa ficcional construída através de uma articulação significante para se explicar o que
escapa ao simbólico, ou seja, o real.
O mito é o que vem fazer uma tentativa de encobrir o furo real da estrutura
simbólica e, assim, acaba por se tornar a forma épica com que nos referimos à constituição
da subjetividade. O mito de Édipo, por exemplo, torna-se a ficção de nosso
comprometimento simbólico, de nossa dívida simbólica relativa ao pai, naquilo que se
relaciona e se articula com sua morte, como nos mitos de Totem e tabu (in op. cit.) ou
Moisés (1939[1934-38]).
O mito do assassinato do pai primitivo, para Lacan, tem um fundamento: os filhos
matam o pai para que, no fim, interditem a si mesmos o que tratavam de lhe arrebatar
(LACAN, in op. cit., p. 215). Lacan continua dizendo que os filhos “não o mataram senão
para mostrar que ele é incapaz de ser morto” (idem), uma vez que ele ressurge no simbólico
que o representa. Esse mito introduz a própria categoria do impossível, ou seja, “a
eternização de um só pai na origem, cujas características consistem em ter sido morto. E
por que, senão para conservá-lo?” (idem). Lacan ainda nos lembra que em algumas línguas,
no francês e no alemão, por exemplo, o verbo tuer, matar, vem do latim tutare, que, por sua
vez, significa conservar. (idem).
2.4.3 – O mito comentado
O assassinato do chefe da horda toma primeiro essa significação de que a satisfação
absoluta é impossível. O tempo originário do mito freudiano é um tempo anterior ao Édipo,
é um tempo em que o gozo é absoluto porque não se distingue da lei. Somente após matar o
pai e comê-lo, o que equivale a comer seus atributos, identificando-se aos traços do pai, é
que os filhos inauguram um tempo histórico, o tempo de Édipo, o tempo do herói trágico.
Com sua morte, o pai primitivo leva o mistério de um gozo originário perdido para
sempre. Depois do assassinato do tirano, longe de precipitar-se sobre as mulheres cujo
acesso ele barrava, os filhos as proíbem para si mesmos (LACAN, in op. cit., p. 216). Por
que? É um estranho paradoxo, pois, uma vez morto o tirano que interditava, os filhos
estariam livres para gozar. Lacan nos diz:
Esse ato (...) é feito para nos revelar (...) que não apenas o assassinato do pai
não abre a via para o gozo que sua presença era suposta interditar, mas ele
reforça sua interdição. (...) O obstáculo sendo exterminado sob a forma do
assassinato, nem por isso o gozo deixa de permanecer interditado, e ainda
mais, essa interdição é reforçada. (...) Todo exercício do gozo comporta algo
que se inscreve no livro da dívida na Lei. (idem).
No Seminário, livro 17 (in op. cit., p. 113), é “no mito de Édipo, [em sua articulação
com o assassinato do pai totêmico] tal como nos é enunciado, que está a chave do gozo”.
Ainda, “o mito de Édipo (...) mostra precisamente que o assassinato do pai é a condição do
gozo.” (idem). Como dissemos, os filhos se interditam o gozo com todas as mulheres da
horda. Há aí uma interdição misteriosa, pois, se são filhos do mesmo pai, não o são da
mesma mãe. No entanto, o acesso do ser humano à ordem simbólica dependeria da
interdição do incesto, interdição que ocasiona o nascimento do desejo, dando-lhe condições
de reconhecer-se como sujeito.
Com esse mito, podemos perceber que a interdição do incesto é sempre
acompanhada pelas leis da exogamia que ordenam os laços de parentesco e de alianças na
civilização. Essa interdição se torna o lugar privilegiado da passagem da natureza à cultura.
Não há nenhuma cultura conhecida, atual ou passada, sem regras regulamentando as
relações entre os sexos.
Isso é mostrado por Freud em Totem e tabu (in op. cit.) no qual a proibição não
incidia sobre a consangüinidade, mas sobre o pertencimento ou não ao totem. Pessoas do
mesmo totem, mesmo que de sangue diferente, não poderiam constituir aliança. Então, o
tabu do incesto incide sobre algo já determinado pela cultura, como uma organização
simbólica, nada tendo a ver com a natureza. Como podemos observar, a condição prévia ao
tabu do incesto é o estabelecimento do totem, porquanto o totem é que constitui a questão
simbólica. O totem surge, então, como o significante fundador da cultura.
Na posição simbólica, através do interdito um pai sustenta um impossível. Ele diz
ao filho que sua mãe jamais será dele. Este é o ponto nodal que Freud articula no complexo
de Édipo. A questão do Édipo e a interdição do incesto são impensáveis se não houver a
função do pai. O que Freud nos mostrou é que não há pai sem o seu assassinato, fórmula
aparentemente paradoxal e que constitui o tema central de Totem e tabu (in op. cit.).
2.4.4 – Civilização e violência
Um dos pontos que nos interessa destacar da elaboração freudiana sobre o mito de
Totem e tabu (idem) é a fundação, pelos filhos, da sociedade dos irmãos, a partir de um ato
violento representado pelo assassinato do pai primitivo. A fundação dessa sociedade se
baseou na instauração da lei do desejo que civiliza os filhos, substituindo a vertente
superegóica da lei do tirano que eles haviam acabado de matar. Assim, vale reafirmar que a
função do pai morto é a de temperar o gozo, limitando-o, possibilitando, com isso, o acesso
à lei simbólica e a constituição do laço social fundado pela palavra.
A idéia central desse texto de Freud é a de que o surgimento da civilização só se dá
em função de um assassinato cometido pelo grupo de filhos banidos, ou seja, pela violência
ao pai tirano. Por outro lado, a constituição da cultura carrega como marca de seu mal-estar
a presença persistente do desejo de assassinar. O processo de identificação com o pai,
depois dos filhos terem comido sua “carne”, poderia fazer ressurgir, em cada membro do
grupo, o mesmo desejo assassino que tiveram em relação ao pai. Por isso, os irmãos, além
de culpados por terem matado o pai, renunciam ao objeto de desejo pelo qual lutaram,
mitificam o pai morto como totem instaurando o domínio da lei: “começo da organização
social, das restrições morais e da religião” (FREUD, idem).
Os dois tabus do totemismo, assassinato e incesto, com os quais, segundo Freud, a
moralidade humana teve início, se fundam, assim, na representação do pai morto, na figura
do totem, motivo de veneração religiosa e suposto anteparo de novos atos violentos. No
entanto, o homem não está livre nem de cometer assassinatos, nem de violar o tabu do
incesto. O mesmo ato de comerem juntos a “carne” do pai tirano e violento, repartindo a
culpa pelo assassinato, podia também fazê-lo incorporar seu poder e sua violência, ou seja,
podia torná-los tão violentos quanto o pai que exterminaram. A possibilidade virtual de um
novo crime sempre estará presente. O crime ronda constantemente os irmãos, não só porque
são cúmplices de um assassinato, assassinato na origem da civilização, como também
porque o poder do pai absorvido e repartido entre eles comporta, em si, uma violência.
Portanto, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que interdita, a morte do pai funda a
possibilidade constante do assassinato e do incesto. Aquilo que se tornou tabu, o proibido,
tornou-se também desejado. O termo polinésio “tabu”, reúne dois significados, o “sagrado”
e o “proibido”, numa síntese “temor sagrado” (COSTA, 1998, p. 16). Aquilo que é tabu
provoca a divisão do sujeito, tentando-o a transgredir a proibição, ao mesmo tempo em que
tenta fugir a essa tendência. “A base do tabu”, escreve Freud, “é uma ação proibida, para
cuja realização existe forte inclinação inconsciente.” (in op. cit., p. 13).
Segundo Freud, não podemos subestimar o fato de que foi o ato violento cometido
contra o pai, ou seja, seu assassinato, que chegou à vitória. O banquete totêmico é a própria
comemoração do ato homicida. A culpa que se segue ao ato mescla-se com a euforia e com
a celebração da vitória sobre o pai. Assim, notamos que na origem mítica da civilização se
encontram associados o triunfo sobre o pai e a dor de sua perda. Ambas as situações estão
contidas na lei subjetiva e, ao mesmo tempo, ocasionam a divisão do sujeito. Com isso, do
ponto de vista simbólico, todos são culpados pela morte do pai e esse impulso homicida,
violento, constitui a base da civilização.
Cabe ainda ressaltar que, para poder alcançar um desejo que lhe seja próprio, desejo
que funciona como desejo do Outro, a criança deverá refazer, simbolicamente, o mesmo ato
que os filhos realizaram em Totem e tabu (in op. cit.). É o que se realiza no que Freud
denominou o complexo de Édipo e que Lacan formalizou a partir da metáfora paterna, em
que a metaforização pelo Nome-do-Pai funciona para barrar o gozo da mãe, considerado
em seu duplo sentido: o gozo que a mãe poderia obter e o gozo com a mãe. A proibição do
incesto tanto interdita a criança de gozar de sua mãe, quanto interdita a mãe de tomar seu
filho como objeto de gozo. Nesse sentido, o significante do Nome-do-Pai atua duplamente:
sobre a mãe, barrando seu desejo, e sobre a criança, interditando-lhe a mãe. Podemos então
dizer que a castração é dupla: incide sobre a criança e sobre a mãe.
Trata-se, nesse processo, da rejeição do gozo nocivo, ou seja, do assassinato da
Coisa por incorporação da estrutura linguageira, a partir da função do pai morto. Tal
incorporação permitirá ao sujeito renunciar ao gozo fechado e estranho da Coisa,
possibilitando-lhe aceitar a lei de interdição do incesto e, com isso, ter acesso à função
simbólica da fala no campo da linguagem. Desse modo, o gozo fálico ligado ao significante
abre-se para ele pelos meios da fala e do discurso.
É importante apontar para o fato de que o pai, na psicanálise, não se reduz ao pai
simbólico. O pai é uma construção textual que Lacan designa, primeiramente, como Nomedo-Pai, no qual se conjugarão a instância significante do pai simbólico, a figura do pai
imaginário e o pai real como portador do “enunciado do impossível” (LACAN, 196970[1992], p. 118). Essa triplicidade, imaginária, real e simbólica do pai, é acrescida de
outra triplicidade, a do pai como nome, lei e voz, em seu último ensino.
Lacan afirma que o nome de que se trata é o próprio nome do Deus da tradição,
Nome-do-Pai, como no início da prece cristã. Nome inefável que se caracteriza por uma
letra faltosa como condição de possibilidade do jogo de todas as outras letras. Além disso, a
lei não deixa de incluir um defeito radical que faz dela um princípio pacificador e, ao
mesmo tempo, o um desregramento essencial, pois a lei, mesmo proibindo o gozo, é
também e efetivamente o caminho mais seguro a ser seguido para se chegar a ale. Não se
trata de uma transgressão, mas de uma possibilidade de acesso ao gozo o qual é limitado
pelo significante. Por outro lado, a voz como objeto perdido causa o desejo, proibindo o
gozo, representando ao mesmo tempo o supereu incorporado sob a forma das palavras
fundamentais ordenando gozar, tal como um imperativo de gozo.
Por outro lado, podemos nos perguntar: por que e como esse ódio legítimo que os
filhos sentiam por seu perseguidor pôde reverter-se em um amor sublimado, depois de seu
desaparecimento? Não se pode negligenciar que os filhos maltratados por esse pai o
amavam tanto quanto o odiavam. A tirania, o poder e a força do pai – seus atributos –
fomentavam não só o ódio, mas também a admiração dos filhos para com ele. Sobre isso,
encontramos em Freud um exemplo do amor que as multidões dedicam a um líder tirano.
Diz ele: “O que a multidão exige de seus heróis é a força e até a violência. Ela quer ser
dominada e subjugada, e temer seu mestre.” (FREUD, 1921, p. 94).
Para Freud, esse amor se baseia num laço de identificação com um traço do tirano.
Um traço tanto mais apertado quanto mais o tirano conserva a multidão à distância. É a
partir desse traço compartilhado por todos que os indivíduos se reconhecem entre si como
participantes do mesmo grupo. Assim, eles se amam entre si e passam a odiar aqueles que
estão fora do grupo. Os participantes do mesmo grupo amam o líder, o mestre, por mais
perverso e tirano que ele seja. Ao mesmo tempo, odeiam o estranho, porque o objeto ao
qual ele se liga é diferente do deles. Em outras palavras, seu gozo é diferente. Freud
também fala sobre essa peculiaridade dos seres humanos em O mal-estar na civilização
(1930[1929]) ao comentar sobre o que ele chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”
(idem, p. 136).
Nesse sentido, podemos dizer que o preço a pagar para a convivência em grupo, a
partir desse traço identificatório, seria a violência aos demais, aos diferentes que estariam
fora do grupo. Comentaremos mais sobre isso no quarto capítulo, quando discutirmos sobre
a segregação.
É um fato sabido que não podemos viver totalmente isolados, nem tampouco no
desamparo. Para fugir disso, o sujeito se volta ao semelhante tentando suportar a
convivência com o outro. Nessa relação – melhor dito, não-relação – o mal-estar é inerente
e a violência sempre ronda a tentativa de fazer laço com o outro.
A constituição da cultura, com suas instituições tais como a família e o trabalho,
mostra a importância da vida em comum, mesmo porque um sujeito sozinho não faz
cultura. Contudo, resta saber por que o ser falante faz grupo, além das questões ligadas à
identificação de que nos fala Freud (1921). A formação de laços sociais como discursos
estabelecidos a partir da linguagem não exclui o desconforto inerente à proximidade com o
outro. Nesse sentido, Freud nos conta a fábula schopenhaueriana dos porcos-espinhos, a
qual funciona como metáfora dessa dificuldade em se viver em grupo. Em suas palavras:
Um grupo de porcos-espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de
inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e assim salvarem-se
da morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos uns dos
outros, coisa que os levou a se separarem novamente. E depois, quando a
necessidade de aquecimento os aproximou mais uma vez, o segundo mal
surgiu novamente. Dessa maneira foram impulsionados, para trás e para
frente, de um problema para outro, até descobrirem uma distância
intermediária, na qual podiam mais toleravelmente coexistir. (FREUD, 1921).
Isso acaba por evidenciar que os relacionamentos entre os homens não se pautam
em uma simetria do tipo sujeito-a-sujeito, mas, ao contrário, na dessimetria de um sujeito
em relação a seu objeto, o que se dá sob a estrutura da fantasia, cujo matema é assim escrito
por Lacan: $<>a. Nenhuma intersubjetividade possível, portanto. É como se o inferno do
sujeito fosse os outros. Nisso reside a fonte de sua violência. Em outro momento dessa
pesquisa já nos referimos às três fontes do mal-estar apontadas por Freud, ou seja, o mundo
em que vivemos, o corpo próprio e os outros (FREUD, in op. cit., p. 95).
2.4.5 – A violência do amor ao próximo
É de nosso interesse ressaltar ainda que a psicanálise recusa qualquer tentativa de
explicar o laço social a partir de um fundamento amável. O desenvolvimento que faz Lacan
sobre o drama inaugural do sujeito em sua relação imaginária com o semelhante, cuja
tensão agressiva é o que está na base dessa relação, demonstra bem que o amor ao próximo
não é algo dado, nem o que produz o laço social. Freud (1930[1929], p. 131) mostrou que,
no amor ao próximo, na realidade amo a mim mesmo. Ele escreve:
Se amo uma pessoa, ela tem que merecer o meu amor de alguma maneira (...)
Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos
importantes, que me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo
mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu.
(idem). [Mais à frente Freud continua:] Não meramente esse estranho é, em
geral, indigno de meu amor; honestamente tenho de confessar que ele possui
mais direito à minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. (idem).
O caráter abusivo e impossível do mandamento cristão - “Ama a teu próximo como
a ti mesmo” (idem, p. 168) – é mostrado por Freud ao denunciar que aquilo que fundamenta
de fato o laço social é a agressividade. Ele nos diz: [Esse mandamento] “constitui a defesa
mais forte contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não
psicológicos do superego cultural.” (idem). Sobre isso, comenta Lacan em seu Seminário
sobre A ética da psicanálise (in op. cit., p. 227):
cada vez que Freud se detém, como que horrorizado, diante da conseqüência
do mandamento do amor ao próximo, o que surge é a presença dessa maldade
profunda que habita no próximo. Mas, daí, ela habita também em mim. E o
que me é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o de meu
gozo, do que não me ouso aproximar? Pois assim que me aproximo – é esse o
sentido do Mal-estar na civilização – surge essa insondável agressividade
diante da qual eu recuo, que retorno contra mim, e que vem, no lugar mesmo
da Lei esvanecida, dar seu peso ao que me impede de transpor uma certa
fronteira no limite da Coisa.
Todavia, apesar de parecer um paradoxo, é sobre esse fundamento agressivo e até
violento que o pacto simbólico pode sustentar-se. Após o assassinato do pai, ergue-se uma
lei paterna que possibilita aos homens unirem-se, estando, porém, “isolados juntos, isolados
do resto” (LACAN, in op. cit., p. 107), mesmo que ao preço da segregação. Assim, Freud
denuncia que Homo homini lupus é o fundamento mesmo do drama inaugural de todo laço
social constituído no simbólico. Ele sustenta sua hipótese segundo a qual a verdade que está
por detrás do mandamento cristão:
é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no
máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas
entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um
ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a
satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho
sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderarse de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.
Homo homini lupus. (in op. cit., p. 133).
No contemporâneo, uma vez que o Outro simbólico encontra-se fragilizado, o que
levou J.-A. Miller e E. Laurent ministrarem um seminário com o título O Outro que não
existe e seus comitês de ética (1997), o simbólico parece ceder cada vez mais espaço ao real
do gozo. Ao mesmo tempo, mostra-se insuficiente para barrar esse gozo insuflado pelo
discurso do mestre contemporâneo, a saber, o discurso da ciência e o discurso capitalista.
Nesse sentido, a violência surge como uma conseqüência da fragilidade simbólica na qual
se encontram os sujeitos diante das exigências de gozo de nossa época.
2.4.6 – “Do mito à estrutura”
Como vimos, Lacan comenta sobre o mito de Totem e tabu (in op. cit.) em vários
momentos de seu ensino. No entanto, em seu Seminário, livro 17 (in op. cit.), ele não só
passa do mito à estrutura como vai mais longe que Freud, uma vez que abre o caminho para
ir mais além do Édipo quando formaliza o campo do gozo, passando a conceber esses
mitos, conforme já antecipamos, como uma tentativa de dar conta da perda de gozo
atribuída à linguagem, à ação do significante.
Conforme dissemos, em Freud, o pai é o representante e o agente da renúncia
pulsional; em Lacan, o pai é aquele capaz, por sua função, de temperar o gozo. Em Moisés
e a religião monoteísta (in op. cit.), por exemplo, encontramos: “No tempo em que a
autoridade todavia não estava interiorizada como supereu, o vínculo entre ameaça de perda
de amor e exigência pulsional era o mesmo. Sobrevinha um sentimento de segurança e
satisfação quando se produziu uma renúncia ao pulsional por amor aos progenitores.”
(idem, p. 113). Isso leva Freud a tratar a função paterna como algo univalente, o pai é
considerado como aquele interditor que diz não à criança, interditando o incesto e
proibindo o acesso ao gozo.
Essa função proibitiva e de interdição faz com que o pai, para Freud, se apresente
como aquela figura predominantemente hostil, apesar de ele dizer que a aceitação da ação
proibitiva do pai pelo filho se dá pela angústia da perda do seu amor. Mas o amor não é
capaz de reduzir o ódio que o pai desperta no filho no exercício de sua função ao ameaçá-lo
de castração. A existência do amor e do ódio no seio da constituição do sujeito marca o que
Freud designou com o termo ambivalência, e que para Lacan é a divisão subjetiva.
Conforme já vimos, em alguns de seus textos, tais como Reflexões para os tempos
de guerra e morte (in op. cit.) ou em sua Conferência 32, Angústia e vida pulsional (in op.
cit.), o amor muitas vezes aparece como uma reação ao ódio mais profundo, como um
recobrimento desse afeto que leva à destruição. No entanto, para Freud, o ódio é mais
antigo que o amor (FREUD, 1915). No Édipo, por exemplo, o pai continua sendo o rival e é
sobre um fundo de rivalidade com ele que se organiza a estrutura edípica. No fim do
prcesso, ao se identificar com o pai, o filho o faz não só por amor, mas também por
perceber, de alguma forma, que não pode fazer frente a seu concorrente na busca do gozo
com a mãe. Assim, poderíamos dizer que a violência seria a colocação em ato desse ódio
primitivo, ódio na origem.
Além disso, “a figura de um pai todo amor se coloca em continuidade com a função
de proibição” (MAZZUCA, 2006, p. 109): a interdição que conduzirá ao sacrifício da
satisfação pulsional. Essa renúncia à pulsão traz a possibilidade de acesso à cultura, à
ordem simbólica e a pacificação do gozo, pela instauração de uma lei reguladora, mas
também traz consigo um excedente que é o que fica como culpabilidade no cerne do
supereu. Certamente essa contribuição de Freud é o que sustentou e, ainda sustenta, todo o
edifício da psicanálise. O recurso ao mito grego do Édipo, assim como ao mito de Totem e
tabu ou mesmo ao de Moisés, servem para nomear o que há na estrutura, no inconsciente e
no psiquismo, ou seja, “gozo da mãe e assassinato do pai – com os quais se tenta criar uma
novela sobre a perda de gozo.” (TENDLARZ, 2006, p. 30).
Disso Lacan se apropria começando por aí seu ensino, quando examina, em
diferentes momentos e de diferentes formas, a relação entre o Édipo, a castração e o Nomedo-Pai. Por exemplo, em seu Seminário sobre a angústia, diz ele:
No mito freudiano, o pai intervém, da maneira mais evidentemente mítica,
como aquele cujo desejo invade, esmaga impõe-se a todos os outros. Não
haverá nisso uma evidente contradição com um fato obviamente dado pela
experiência – o de que, por intermédio dele, o que se efetua é algo totalmente
diverso, qual seja, a normalização do desejo nos caminhos da lei? (in op. cit.,
p. 365).
É em seu Seminário sobre O avesso da psicanálise (in op. cit.) que Lacan critica o
fato de Freud ter feito de Totem e tabu um acontecimento efetivo, o fato de Freud insistir
que esse assassinato do pai teria sido real. Ele diz:
Freud (...) ele faz muita questão de que isso tenha acontecido efetivamente, essa
história danada do assassinato do pai da horda, essa palhaçada darwiniana. O pai
da horda – como se tivesse havido em algum momento o menor rastro do pai da
horda. Viu-se orangotangos. Mas, do pai da horda humana, jamais se viu o
menor rastro. (Lacan, J. 1969-70 [1992], p. 105).
E continua logo a seguir: “Freud faz questão de que isso seja real. Mantém-se nisso.
Ele escreveu todo o Totem e tabu para dizer - isso aconteceu obrigatoriamente, foi daí que
tudo partiu.” (idem, ibidem). Lacan, no entanto, interessa-se por Totem e tabu (in op. cit.)
como um mito e pelo que esse mito tenta recobrir. É assim que ele retoma a diferença
freudiana entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente, e se refere ao Édipo como um
sonho de Freud (LACAN, in op. cit., p. 110).
Assim, ao tratar dessa questão Lacan diz ser “preciso pôr à prova o conteúdo
manifesto” (idem, p. 106), mesmo que seja para chegar à conclusão de que ele “não é tão
manifesto assim” (idem, ibidem). Sua análise sobre o mito freudiano irá desvelar seu
conteúdo latente, a saber, a castração, como aquilo que está encoberto pelo mito, tanto de
Totem e tabu, quanto de Édipo e de Moisés.
Se, desde a origem, o pai está castrado, então a castração não pode ter seu início no
pai. Assim, Lacan define a castração como uma operação real, introduzida pelo
significante, o que vai determinar o pai como um real impossível. Sendo o pai um efeito de
linguagem, seu resultado será a causa do desejo. A partir dessa formulação o pai passa a ser
um significante privilegiado, um S1, um significante mestre que funciona como pura
função lógica para além do mito, formalizando, com isso, a estrutura do complexo de
castração.
Desse modo, o pai sendo introduzido como uma construção de linguagem é a
linguagem mesma que passa a barrar o gozo. Trata-se então do pai real, agente da
castração, o significante mestre. “O pai real nada mais é que um efeito da linguagem, e não
tem outro real”. (idem, p. 120), nos diz Lacan. A linguagem como tal comporta a operação
de castração, promovendo a perda de gozo da qual fica um resto que Lacan escreve como o
objeto a.
A intenção de Lacan, ao formalizar o Édipo como estrutura lógica, não é
menosprezar o trabalho de Freud ou desmontar sua “verdade” tomando-a como um mito,
uma falácia, mas, pelo contrário, propõe-se a desvelar a forma como Freud podia abordar o
impossível ligado à transmissão paterna, o impossível do gozo ligado à morte do pai e,
nesse sentido, o impossível que é o real, a forma encontrada por Freud para tratar o que
resta da operação simbólica do Nome-do-Pai. Na página 113 desse mesmo Seminário, livro
17, encontramos: “(...) partamos da morte do pai (...) como a chave do gozo; do gozo do
objeto supremo identificado à mãe, à mãe visada do incesto”. Mais adiante ele continua: “é
a partir da morte do pai que se edifica a interdição desse gozo como primária. Na verdade,
não se trata só da morte do pai, mas do assassinato do pai. (...) É aí, no mito de Édipo, tal
como nos é enunciado, que está a chave do gozo.” (idem, ibidem).
Já na página 116 encontramos: “O mito de Totem e tabu, o mito freudiano, é a
equivalência entre o pai morto e o gozo. Eis o que podemos qualificar com a expressão
operador estrutural.” E ainda, sobre o real como impossível, na articulação que faz Lacan
com o mito freudiano, esclarece: “o que se transcende por enunciar (...) que isso aconteceu
realmente, é real, que o pai morto é aquele que tem o gozo sob sua guarda, é de onde partiu
a interdição do gozo, de onde ela procedeu.” (idem, p. 116). E continua: “Que o pai morto
seja o gozo, isso é apresentado a nós como sinal do próprio impossível. (...) O real é
impossível (...) – escolho lógico, daquilo que, do simbólico, se enuncia como impossível. É
daí que surge o real.” (idem, ibidem).
Neste Seminário 17 (in op. cit.), Lacan nos diz que a castração é da ordem de uma
transmissão. É o que se transmite de pai para filho, da ordem da sucessão e, enquanto
aquilo que atinge o filho, é o que faz desse filho pai: “Se a castração é o que atinge o filho,
não será também o que o faz aceder pela via justa ao que corresponde à função do pai? (...)
E não é isso que mostra que é de pai para filho que a castração se transmite?” (idem, p.
114). O mito da morte do pai estando na origem de todo processo, não seria mais que um
recobrimento dessa questão. O pai transmite o próprio furo, o limite, o impossível do gozo
pleno, do gozo absoluto.
No Avesso da psicanálise (in op. cit.), Lacan afirma que a castração não é uma
fantasia, ela é uma “operação real” (idem, p. 121) – engendrada pelo pai real – que a
própria incidência do significante introduz no advento da ordem simbólica e na “relação do
sexo” (idem ibidem). “E é óbvio que ela determina o pai como esse real impossível que
dissemos”. (idem, ibidem). A castração é essa operação segundo a qual não pode haver
acesso ao desejo, não pode haver causa do desejo sem se passar por ela. A causa do desejo
é o produto mesmo dessa operação.
Articulando a questão da castração com o mito do assassinato do pai primevo,
Lacan diz nesse seu Seminário: “A castração como enunciado de uma interdição só poderia,
em todo caso, se fundar em um segundo tempo, o do mito do assassinato do pai da horda e,
no dizer desse mesmo mito, não provém de outra coisa senão de um comum acordo,
singular initium cujo caráter problemático eu mostrava da última vez.” (idem, p. 118).
A partir de então, o gozo se liga ao significante e à linguagem, o significante que,
segundo Lacan a partir desse Seminário, é a causa do gozo. Aqui, queremos apontar
justamente essa questão que impõe à castração o papel de possibilidade de acesso ao gozo,
articulada que está à lei, em outras palavras, à regulação do gozo. Uma vez que a violência
é considerada como gozo na atualidade, ou seja, que na própria violência há satisfação, nos
perguntamos então como, com o declínio da função paterna, essa regulação e esse limite da
satisfação poderiam ser alcançados. Segundo um autor contemporâneo (COSTA, 1998, p.
14), “a violência produz gozo”. Nesse sentido, barrá-lo, assim como possibilitar ao sujeito
a sua renuncia, se torna uma questão para a clínica psicanalítica nos dias de hoje.
2.4.7 – Da transcendência à exceção
Em seu Seminário, livro 10, A angústia (1962-63[2005]), Lacan dará um passo
decisivo na desidealização do pai, pois começa a trabalhar a questão da pluralização, ou
seja, quando propõe que os nomes do pai são múltiplos. Assim, alguns anos mais tarde, em
R.S.I., Seminário ministrado nos anos de 1974-75, na fase considerada como seu último
ensino, Lacan diz sobre o pai:
Um pai só tem direito ao respeito, senão ao amor, se o-dito amor, o-dito
respeito, estiver (...) père-vertidamente orientado, isto é, feito de uma mulher
objeto pequeno a que causa seu desejo, mas o que essa mulher em pequeno
acolhe (...) nada tem a ver com a questão. Do que ela se ocupa, são outros
objetos pequeno a que são as crianças junto a quem o pai então intervém,
excepcionalmente, no bom caso, para manter na repressão, dentro do justo
semi-Deus (...) a versão que lhe é própria de sua pai-versão. (lição de
21/01/75, inédito).
Mais adiante ele prossegue: “Única garantia de sua função de pai; que é a função, a
função de sintoma tal como escrevi ali [f(x)]. Para isto, basta aí que ele seja um modelo da
função. Aí está o que deve ser um pai, na medida em que só pode ser exceção.” (idem,
ibidem).
Nesse mesmo Seminário, o Nome-do-Pai vai funcionar apenas como uma suplência,
mas uma suplência indispensável, uma vez que só o Nome-do-Pai faz o nó borromeano e
mantém juntos Real, Simbólico e Imaginário. Ele diz: “os Nomes do Pai é isso: o
Simbólico, o Imaginário e o Real” (idem, ibidem). Mais à frente, Lacan reduz “o Nome-doPai à sua função radical que é a de dar um nome às coisas” (idem, ibidem)., portanto, uma
função de nomeação. Segundo ele, isso não é histórico, mas estrutural, porque há o
simbólico. Em suas palavras:
é no buraco do simbólico que consiste esse interdito. É preciso o simbólico
para que apareça, individualizado, o nó, essa coisa que eu não chamo tanto de
complexo de Édipo, não é tão complexo assim, chamo de o Nome-do-Pai. O
que só quer dizer o Pai enquanto Nome, não quer dizer nada de início, não só
o pai como nome mas o pai como nomeador. (idem, ibidem).
No ano seguinte, em seu Seminário, livro 23, Joyce, o sinthoma (1975-76), Lacan
finalmente se desliga de Freud, no sentido do entendimento da função paterna como
transcendente. Nesse momento, é Lacan quem prescinde de Freud, mas fazendo uso dele.
Com esse Seminário, o pai passa a funcionar como um sinthoma, como o quarto elo da
amarração borromeana, RSI. Esse quarto elo, que é o pai, pode funcionar como uma
inscrição singular através da qual cada sujeito se arruma com seu sintoma como marca
singular de gozo.
O que passa a ser importante é o uso que o sujeito faz do pai para viver. Ele é então
um instrumento que assegura a père-version e a nomeação. Sobre isso, encontramos em um
autor contemporâneo: “Afetados pela queda dos semblantes, tanto na época como na
psicanálise, o Nome-do-Pai e o Sintoma são conceitos instrumentais, utensílios
‘necessários’ para que se sustente um nó de gozo e sentido que suporte para um sujeito seu
mundo.” (TARRAB, 2006, p. 163).
O sinthoma é o nome que cada um inventa para seu gozo. Com Joyce (in op. cit), o
pai já não é o Nome-do-Pai com sua vertente religiosa, mas o pai do nome que revela sua
dimensão de exceção. Nesse sentido, o complexo de Édipo já não opera como única
amarração possível do nó. É o que parece estar acontecendo, de maneira muito
significativa, em nossa sociedade. Portanto, com seu último ensino Lacan nos dá
instrumentos valiosos para pensar a subjetividade contemporânea.
Ao diluir a significação religiosa do Nome-do-Pai, Lacan o reduz a um nó e afirma:
“é nisso que nossa apreensão analítica do nó é o negativo da religião”11. Nesse sentido, a
crença ao pai não funciona mais que a crença no sintoma a que o neurótico se agarra
(LACAN, J., 1974-75). Não acreditar mais no Nome-do-Pai não significa que dele
possamos prescindir, mas sim utilizá-lo como aquilo que ele é, ou seja, um sintoma, e assim
tentarmos fazer um balizamento da violência, como gozo, como excesso, pelo viés do
simbólico.
11
“y es en eso que nuestra aprehensión analítica de ese nudo es el negativo de la religión” (LACAN, J, O
Seminário, livro 23, Joyce, o sinthoma, lição de 09 dez 1975, inédito).
O Urvater, o pai primitivo, é aquele que impõe a lei sem se submeter a ela. Ele é a
própria lei, ele é a lei fora-da-lei que a dita aos filhos impondo-lhes a castração. A ele,
porém, só interessa seu gozo. O mito de Totem e tabu (in op. cit.) dá forma épica à
estrutura, permitindo aos sujeitos se situarem na partilha dos sexos, tal como mostrou
Lacan com suas fórmulas da sexuação (1972-73[1985], p. 105). Todos os homens estão
submetidos à lei da castração, ou seja, à função fálica, constituindo o universal a partir do
significante do falo. Tal significante possibilita aos filhos da horda primitiva se
constituírem em um conjunto, o que Lacan escreve como - ∀xΦx (idem), ou seja, todo
sujeito está inserido na função fálica. O pai primitivo é a exceção, mas a exceção que funda
a regra - ∃xΦx (idem), ou seja, existe um sujeito que diz não à função fálica. O pai da horda
primitiva encarna o não à função fálica, pois ele não está submetido à lei da castração, mas
é ele, como exceção à regra, que funda a universal fálica para todo sujeito.
Assim, a função lógica do pai é fundar um universo o qual é fechado, circunscrito,
onde o gozo fica contido por esse universal fálico, limitado, por sua vez, pela lei da
proibição do incesto. Com o declínio da função paterna no contemporâneo a exceção não se
funda em nenhum pai, mas se dilui e cada um pode ser sua própria exceção. Nesse caso,
cada um pode gozar como quiser e ultrapassar o limite com a violência, indo além do falo
em uma pura vontade de gozo.
CAPÍTULO 3
A violência e o sujeito contemporâneo
O complexo de Édipo, tal como nos é contado por Freud
quando se refere a Sófocles, não é em absoluto tratado como
um mito. É a historieta de Sófocles (...) sem o seu trágico. (...)
assassinato do pai e gozo da mãe (...) que Édipo não saiba
absolutamente que matou o pai, nem tampouco que faça sua
mãe gozar, ou que goze com ela, nada disso muda a questão,
posto que é, justamente, um belo exemplo do inconsciente.
(LACAN, 1969-70[1992], p. 106).
Pretendemos, neste capítulo, refletir sobre a condição subjetiva do sujeito no
contemporâneo, assim como discutir as relações entre uma suposta situação peculiar de sua
subjetividade, hoje, e a violência. Para tanto, começaremos por situar o conceito de sujeito
para a psicanálise, a fim de, a partir disso, podermos nos debruçar sobre os males dos quais
esse sujeito padece na contemporaneidade. Acreditamos que essa discussão possa ser de
interesse, uma vez que a violência é uma questão alarmante no crescente mal-estar de nosso
tempo e de nossa sociedade.
Passaremos a investigar como se encontra constituída a subjetividade no
contemporâneo e como essa constituição favorece o surgimento da violência. Ressaltamos
que, nos dias de hoje, essa subjetividade se encontra marcada pelo declínio da função
paterna e pela conseqüente queda dos ideais, levando o sujeito a se defrontar com um vazio
identificatório (BESSET, 2006). Nesse sentido, ainda no viés da investigação sobre a
constituição do sujeito, nos perguntamos se o Édipo poderia continuar sendo a referência
para essa constituição. Além disso, nos questionamos se estaríamos, hoje, diante de uma
nova subjetividade, ou seja, diante de um novo sujeito mais propenso às identificações
imaginárias, mais propenso ao narcisismo, às impulsões e às atuações violentas. No
desenvolvimento de nossa reflexão, veremos, neste capítulo, como a psicanálise aborda a
questão do sujeito e como a trata.
3.1 – Sobre o sujeito na psicanálise
Para tratar da articulação da subjetividade com a questão da violência no campo
psicanalítico precisaremos delimitar o conceito de sujeito para a psicanálise, uma vez que
esse conceito nos parece capital para nossa discussão. Sua importância se deve ao fato de
estarmos procurando entender o que a psicanálise nomeia como sujeito – diferentemente de
outras disciplinas, como a psicologia ou a filosofia – para podermos, então, abordar os
sofrimentos dos quais padece o sujeito em nossa contemporaneidade.
Sujeito é um termo inicialmente trabalhado pela filosofia. Como apontado no
Dicionário de psicanálise (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 742), sujeito é um “termo
corrente em psicologia, filosofia e lógica. É empregado para indicar ora um indivíduo (...)
ora uma instância com a qual é relacionado um predicado ou um atributo.” Os autores
prosseguem dizendo ainda que na concepção filosófica, de Descartes (1596-1650), Kant
(1724-1804) até Husserl (1859-1938): “o sujeito é definido como o próprio homem
enquanto fundamento de seus próprios pensamentos e atos.” (idem). Nesse sentido, o
sujeito é o próprio “sujeito do conhecimento ou da consciência, seja essa consciência
empírica, transcendental ou fenomênica.” (idem).
Freud não chegou a utilizar o termo sujeito de forma explícita em sua obra, mas a
idéia já está incluída em seu texto quando, por exemplo, discute a estruturação do aparelho
psíquico, seja na Primeira Tópica, ao fazer uso dos sistemas PCs-Cs (Préconsciente/Consciente) e Ics (Inconsciente), a partir de 1900; seja em sua Segunda Tópica,
com o Id, o Ego e o Superego12 (1921). Assim como o aparelho psíquico freudiano não
pode ser reduzido ao Eu, a concepção de sujeito também não se apresenta como sinônimo
quer do Eu, quer da pessoa, ou do indivíduo. Desde Freud, a psicanálise mostra como é
precária a constituição do Eu, quando se tenta identificá-la à totalidade da pessoa ou da
consciência. Antes de tudo, o Eu é constituído como o lugar de desconhecimento e de
ilusão.
O Eu não é uma unidade autônoma, indivisível, separada do social, nem tampouco
reduzida à consciência, à racionalidade ou à identidade. Isso porque, em termos mais
precisos, o Eu mantém uma relação importante com o inconsciente, sendo sua parte
consciente somente a ponta do iceberg (FREUD, 1923). Além disso, uma vez constituído a
partir da relação em espelho com o outro, o semelhante, isto é, constituído numa relação
imaginária, não se confunde com o sujeito. Por outro lado, para Lacan, o sujeito é
entendido como o fundamento de uma articulação simbólica através da linguagem.
12
Vamos usar, conforme já temos feito, as designações a partir das intervenções lacanianas a respeito destas
traduções, ou seja, o Isso, o Eu e o Supereu.
Conforme dissemos, o inconsciente é um dado importante na constituição do
sujeito. O termo sujeito foi introduzido por Lacan ao tratar da questão do inconsciente e da
subjetividade. Baseando-se na própria noção freudiana de clivagem, Spaltung, ou divisão
do Eu, Lacan recorre à diferença existente em sua língua, francesa, para tratar dessa
divisão, ao distinguir o Je – sujeito do inconsciente, o sujeito propriamente dito – do moi,
função imaginária, esse mais ligado ao Eu. Desse modo, Lacan formaliza a existência de
uma divisão fundamental entre o sujeito e o Eu.
Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957[1998]),
Lacan, apoiando-se na lingüística estruturalista de F. de Saussure, se apropria de sua noção
de signo lingüístico revolucionando-a. De acordo com Saussure, o signo lingüístico é
formado pelo significante e pelo significado. Lacan subverte essa noção ao dar primazia ao
significante ao introduzi-lo como o elemento fundamental do inconsciente e do sujeito.
Assim fazendo, Lacan concede ao simbólico, portanto, ao significante, um papel
constituinte do sujeito. Mais tarde, em Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano (1960[1998], p. 833), Lacan define a relação do sujeito com o
significante ao dizer: “Nossa definição do significante (não existe outra) é: um significante
é aquilo que representa o sujeito para outro significante.”.
O sujeito, em sua constituição, uma vez afetado pelo significante, se divide e já não
é localizável em lugar algum, a não ser na articulação entre dois significantes, S1-S2. O
significante é um traço. Tal definição advém da noção saussureana do significante como
imagem acústica, da qual Lacan se apropria. O significante é, então, a marca de um som no
inconsciente, e é através dessa marca acústica que o sujeito busca se representar. Tal
representação, porém, é da ordem do impossível. Nenhum significante pode dar a
representação última para o sujeito.
Para Lacan, o sujeito não existe em nenhum lugar, não é localizável, ele é excêntrico, portanto ex-sistente. Ao tentar se representar nesse traço, no significante que o
representa, já não é mais ele que ali está, o sujeito já deslizou. Portanto, o que Lacan
assinala é a impossibilidade de apreender esse sujeito enquanto qualquer substância. Ele é
efeito da linguagem e só poderíamos ter notícias dele através das formações do
inconsciente, tal como o sonho, os atos falhos, os esquecimentos ou o próprio sintoma.
Por outro lado, uma vez constituído em sua relação com a linguagem, o sujeito não
se faz sozinho, ele não se constitui como uma mônada fechada em si mesmo, porquanto sua
constituição se dá em uma relação com o Outro do significante. Lacan escreve em Posição
do inconsciente (1964[1998], p. 855): “Que o Outro seja para o sujeito o lugar de sua causa
significante só faz explicar, aqui, a razão porque nenhum sujeito pode ser a causa de si
mesmo”. Lacan irá designar esse grande Outro como o lugar da linguagem e o portador do
tesouro do significante. Diz Lacan: “Ele [o desejo] encontra o Outro, disse-lhes eu, não
como uma pessoa, mas o encontra como tesouro do significante, como sede do código.”
(1957-58[1999], p. 154).
De acordo com Lacan, o Outro é aquele que está para além da dimensão imaginária,
do semelhante, do outro do espelho designado por ele como o pequeno outro. O grande
Outro é um lugar feito de palavras, ou restos de palavras. Um lugar feito de significantes
aos quais o sujeito tem acesso através da linguagem. Isso lhe permite aceder ao universo
das representações e tornar-se capaz de estabelecer diferenças entre o que, do ponto de vista
do imaginário, só seriam semelhanças. Em outras palavras, oposições significantes que
estabelecem diferenças, por exemplo, entre os sexos e entre as gerações. Essas diferenças
são fundamentais para o estabelecimento das relações de parentesco. Elas ainda permitem
ao sujeito encontrar-se na própria diferença em relação ao seu semelhante. Encontrar-se,
enfim, em sua singularidade, que nada mais é do que aquele traço que delimita seu modo de
gozar, traço esse inscrito no inconsciente como S1.
Em seu, Seminário 20, Mais, ainda (LACAN, 1972-73[1985], p.196), Lacan irá
tratar o inconsciente como um enxame de S1s. Esses significantes primordiais, infantis, são
os que fixam e determinam o sujeito, os significantes aos quais estão, por sua vez, fixadas
as pulsões. São os S1s que acabam por produzir-se no inconsciente como um enxame.
Encontramos aqui um neologismo criado por Lacan, aproveitando-se do fato de que, S1, em
francês, esse un, é homófono a essain, em português, enxame. Esses S1s, próprios a cada
sujeito, precisam passar pelo crivo do Outro da cultura para serem domesticados,
civilizados. Os S1s, os significantes mestres nos quais estão fixadas as pulsões, precisam
ser domados, educados e civilizados pelos significantes da linguagem social, do saber
estabelecido, saber esse entendido como S2. Nesse sentido, podemos dizer que o saber, S2,
civiliza o gozo, contendo o excesso de pulsão que levaria à violência e à destruição.
3.1.1 – Penso, logro sou: o sujeito cartesiano e a psicanálise
Podemos dizer que foi uma pergunta sobre o ser – “o que sou eu?” – que levou
Descartes a fundamentar, pela primeira vez, na história do pensamento, o conceito de
sujeito. Seu Cogito ergo sum – “Penso, logo sou”, fundamentou a existência e, portanto, o
ser, na condição do pensamento, isto é, o ser só possui existência porque é capaz de pensar.
Em contrapartida, não se trata de qualquer pensamento, mas do pensamento racional,
consciente. O verdadeiro, para Descartes, é o que pode ser concebido de forma clara e
distinta pela razão.
Esse é o passo pioneiro para o advento da ciência moderna. O sujeito que Descartes
irá definir com o seu método não é outro senão o sujeito da ciência. No entanto, esse é o
mesmo sujeito sobre o qual opera a psicanálise: “Dizer que o sujeito sobre quem operamos
em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência talvez passe por um paradoxo” (LACAN,
1966[1998], p. 873), escreve Lacan. Assim, o ato inaugural de Descartes ao postular seu
Cogito fundamenta o surgimento do sujeito no pensamento moderno e abre a via para o
surgimento da psicanálise.
Para responder à sua pergunta sobre “o que sou eu?”, Descartes afasta toda
referência aos sentidos, pois os considera como enganadores. Segundo ele, devemos nos
voltar para nós mesmos e procurar, em nosso entendimento, idéias que sejam claras.
Descartes, então, se põe a duvidar da existência de tudo e concebe um Deus como gênio
maligno cujo objetivo é enganar o sujeito. Esse Deus enganador faz parte da dúvida
hiperbólica de Descartes, que, após duvidar de toda existência e anular toda garantia de
saber, acaba por se apoiar em um único ponto de certeza: o pensamento.
Sua Res cogitans pode ser resumida como um sujeito cuja substância é o
pensamento. Esse sujeito do pensamento considera verdadeiro tudo o que a razão pode
conceber de forma clara e distinta. Essa certeza é dada por um Deus criador e lugar da
verdade. Com isso, Descartes postula que a garantia do pensamento e, portanto, da
existência, está em um Outro divino, um Outro que se torna, assim, o garante do sujeito.
Trata-se de um Outro completo.
Para a psicanálise, o sujeito também é o efeito de um pensamento. Com Freud,
porém, efeito de um pensamento inconsciente. Em textos como A interpretação de sonhos
(1900), Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901), Os chistes e sua relação com o
inconsciente (1905), dentre outros, ele nos mostrou, em primeiro lugar, que há um
inconsciente, que a subjetividade não se resume à razão, que há algo de latente em todo
comportamento manifesto, algo que o sujeito não sabe ou não sabe que sabe. E temos aqui
uma definição para o inconsciente freudiano, ou seja, um saber não sabido. E, em segundo
lugar, que nesse inconsciente há um pensamento.
Segundo Lacan (1964[1998], p. 38), quando Freud trata do esquecimento nos
sonhos ele toma um caminho cartesiano, pois parte do fundamento do sujeito da certeza. Na
verdade, o interesse de Freud está voltado para quando o sujeito duvida, o que, segundo ele,
indica haver ali algo a ser preservado. Freud o formula dizendo que a dúvida do sonhador é
um signo da resistência. Para ele, onde há dúvida, no caso do sonho, há pensamento,
“pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente (...) Em
suma, Freud está seguro de que este pensamento está lá, completamente sozinho de todo o
seu eu sou ...” (idem, p. 39).
Essa formulação freudiana fundamenta uma das primeiras definições do
inconsciente na obra de Lacan, a saber: “O inconsciente é a parte do discurso concreto,
como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de
seu discurso consciente.” (LACAN, 1953[1998], p. 260). Ou ainda: “O inconsciente é o
capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o
capítulo censurado.” (idem). Para a psicanálise, o sujeito é essa ausência, essa lacuna, esse
significante que falta para dizer o que é o ser.
Uma vez definido esse sujeito como sendo relativo a um pensamento inconsciente,
pensamento identificável apenas em uma “outra cena”, fora da consciência, o sujeito não
identificável pode, no entanto, ter várias identificações, que vão sendo depuradas durante
um processo de análise. Como dissemos antes, trata-se de um sujeito que nunca “é”, mas
está sempre “entre” os intervalos da cadeia significante, sempre à espera de um outro
significante que possa representá-lo, sem nunca conseguir chegar ao ponto final da frase.
Aqui, podemos considerar o ponto final da articulação significante por onde desliza o
sujeito como sendo a morte.
Se os procedimentos freudiano e o cartesiano convergem por partirem ambos da
questão da certeza, eles, no entanto, divergem no que se refere à substância desse sujeito
pensante. Para Descartes, o sujeito é a própria coisa pensante, ao passo que para a
psicanálise esse sujeito não tem substância alguma, manifestando-se na hesitação, na
dúvida e na divisão. Para Descartes, o sujeito está no pensamento. Desse modo, podemos
traduzir sua máxima como “Lá onde penso eu sou”. Lacan subverte o Cogito cartesiano
com a formulação: “sou onde não penso, penso onde não sou” (LACAN, 1966-67).
Em seu Seminário, livro 14, A lógica da fantasia (idem), Lacan, lançando mão do
Cogito cartesiano, “Penso, logo sou”, retira o penso e posiciona, sobre cada um dos termos
restantes, a negação: “ou eu não penso, ou eu não sou”. Esta é uma ilustração da divisão do
sujeito. Temos, assim, a disjunção entre o pensamento e o ser. O pensamento e o ser só irão
se tocar no lugar em que falta a ambos a interseção. Isso nos permite dizer que a interseção
entre ambos é o conjunto vazio (MILLER, 2000, p.101).
O “eu não penso” passa a se ligar ao ser e o “eu não sou”, ao pensamento. Nesse
Seminário, ao fazer um quadro representativo da posição do sujeito entre o “eu não penso”
e o “eu não sou”, Lacan assinala que, no ponto onde não pensa, o sujeito pode passar ao
ato13. Ele age fora do pensamento, fazendo de si mesmo o objeto dessa ação. Esse é o ponto
de alienação do sujeito, pois, alienado em seu ser, ele não pensa, ele é puro objeto.
Na direção do “eu não sou” está a verdade. É quando pode se dar o acting-out,
entendido como uma ação de caráter impulsivo, portadora de uma verdade sobre o sujeito a
qual ele desconhece e não pode colocar em palavras, razão pela qual ele atua. Através do
acting-out o sujeito anuncia “eu não sou”, ao invés de “eu não penso”14. Não se trata da
denegação, mas de uma articulação entre o inconsciente e o ser, ou entre o falo como um
significante privilegiado no inconsciente e o objeto como o mais radical na questão do ser.
O “eu não penso” escreve o objeto; o “eu não sou” está na vertente da dialética
falo/castração, entendendo-se esta como recalcada, ou seja, ela está lá, fundamentando a
divisão do sujeito, mas, enquanto inconsciente, é um saber que não se sabe.
Portanto, o pensamento consciente não basta para definir o sujeito. Há algo que falta
e que nem toda a significação dada pela articulação significante no campo do Outro pode
recobrir. Conforme dissemos, não há um ponto final da frase, a não ser a morte, que, por
sua vez, também não possui representação. A essa falta de completude, de substância, de
algo que dê a consistência do ser, Lacan nomeia como o objeto a, como pura ausência,
como uma representação puramente lógica, jamais substantificável, do gozo.
13
14
Conforme veremos no capítulo 5 desta Tese.
Discutiremos as questões relativas à passagem ao ato e ao acting-out no Capítulo 5 desta Tese.
3.1.2 – Ex-sistência e desejo
Se Descartes parte do pensamento e chega à existência, Freud, partindo da
suposição de um pensamento inconsciente chega ao desejo. Ao separar pensamento e ser a
psicanálise qualifica o inconsciente como um pensamento sem ser. Por outro lado, do lado
do ser, onde está o “eu não penso”, se encontra o ser de gozo que escapa a todo
pensamento, a toda articulação significante, a toda significação. Aqui se situa a experiência
do sujeito como falta-a-ser e ex-sistência15, uma vez que ele não encontra representação
simbólica para seu ser. Ele então se volta para o gozo a fim de tentar apreender esse ser,
mas também aí não o encontra, pois o gozo também lhe escapa, ele só o apreende sob a
forma do objeto a na fantasia, cuja fórmula Lacan escreve como:
<>a. Nessa escrita estão
situados, numa tentativa de relacioná-los, o sujeito dividido por um significante que falta
para representá-lo ( s/ ) e o objeto a, que, por sua vez, não dá nenhuma substância ao gozo.
O que seria comum a ambos,
s/ e a, seria da ordem da negação, o “não”.
Assim, o objeto a, como causa de desejo não garante nenhuma substância ou
existência ao sujeito, ele não é mais que um semblante de ser. O objeto é semblante de ser e
o sujeito é sua falta-a-ser. O objeto a, de Lacan, ao funcionar como causa de desejo, a partir
de seu Seminário, livro 10, A angústia (1962-63[2005]), também funciona como
condensador de gozo, como mais-de-gozar, a partir do Seminário, livro 16, De um Outro ao
outro (1968-69). Contudo, nada garante que haja um sujeito a não ser no inconsciente
através de suas formações. Diz Lacan: “Já o sujeito barrado, o único a que nossa
experiência tem acesso, constitui-se no lugar do Outro como marca do significante.
15
Definimos como ex-sistência aquilo que é estranho e familiar ao mesmo tempo e que, mesmo enquanto fora
das balizas simbólicas, insiste em se manifestar.
Inversamente, toda a existência do Outro fica suspensa numa garantia que falta, donde o
Outro é barrado. Desta operação, no entanto, há um resto, que é o a.” (in op. cit., p. 129).
Portanto, o sujeito não é um dado da experiência sensível, ele tem que advir como
resposta do real, como tentativa de responder ao impasse da existência. Nesse sentido, o
sujeito é patológico por definição, é sujeito do pathos, afetado pela estrutura que obedece à
lógica dos significantes que o determina (S1) e do gozo que o divide. “A existência do
sujeito é correlativa à insistência da cadeia significante inconsciente, porém como exterior a
ela: ex-sistência.” (QUINET, 2003, p. 16).
Aqui, há algo a salientar: ao tratar o sujeito como um efeito da articulação
significante no simbólico, Lacan deixa de fora a referência ao corpo. Uma vez que o gozo
só é pensável em sua referência ao corpo, pois só a um corpo cabe gozar, toda a referência
de Lacan ao gozo, tanto em seu primeiro quanto em seu segundo ensino, o formula ou
como uma satisfação imaginária – situada por J.-A. Miller como o primeiro paradigma, isto
é, o paradigma da imaginarização do gozo (2000, p. 87), ou como uma satisfação simbólica
situada por Miller como o segundo paradigma, “a significantização do gozo” (idem, p. 89).
Um gozo ligado à satisfação do desejo que o anula (idem p. 90). Em outras palavras, toda
tentativa de trabalhar a subjetividade em termos significantes acaba por mortificar o corpo,
no qual há um apagamento do gozo pelo significante.
No entanto, a partir do Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (196970[1992]), Lacan considera que o significante não tem, em primeiro lugar, um efeito de
mortificação sobre o corpo. Afirma que o essencial da relação entre o significante e o corpo
é que ele é a causa do gozo (LACAN, 1972-73[1985], p. 36). Trata-se, então, de pensar a
união entre o significante e o gozo, ou seja: o significante tem uma incidência de gozo
sobre o corpo. É o que Lacan trabalha também em Radiofonia (1970[2003]) ao ilustrar a
extração de gozo que o significante opera sobre o corpo. Essa ação do significante sobre o
corpo permite a Lacan mostrar a face violenta do simbólico que, ao mesmo tempo em que
pacifica, paradoxalmente, violenta. Ou seja, para pacificar o gozo é preciso, primeiro,
violentar o corpo, extrair algo desse corpo.
3.2 – Violência e subjetividade no contemporâneo
Como já desenvolvemos no capítulo anterior, é relevante o fato de o dispositivo
social, o contexto cultural de uma época, provocar conseqüências para a estruturação da
subjetividade. Podemos constatar – e é o que vem sendo discutido por diversos teóricos –
que a peculiaridade de nosso tempo, ao qual chamamos contemporâneo, produz
conseqüências significativas sobre a subjetividade, a ponto de falarmos em “uma
subjetividade própria de nossa época” (BESSET, 2006).
Que época é essa? E o que a faz diferente de outras épocas historicamente
determinadas? Como é que nossa atualidade seria capaz de produzir uma subjetividade
específica de seu tempo? Além disso, qual a relação que poderíamos estabelecer entre a
subjetividade contemporânea e a violência? Essas são algumas questões que procuraremos
discutir aqui.
A subjetividade de nossa época é tributária do que se convencionou chamar “tempos
pós-modernos”, nos quais vivemos às voltas com a fragilidade da função paterna
considerada em declínio por vários estudiosos. Nesse sentido, não há mais parâmetros
universais que permitam delimitar o que seria comum a todos. É o que também podemos
chamar, de um modo geral, juntamente com diversos autores contemporâneos16, um
declínio dos ideais. Entendemos por ideais o conjunto de elementos simbólicos que
sustentam o tecido social, seja qual for a época e sejam quais forem esses ideais.
Partiremos do pré-suposto de que vivemos um tempo no qual o sujeito, acuado pela
violência, pelas guerras, pelo terrorismo, pela segregação, pela perda de ideais sólidos, se
encontra desorientado, des-norteado (BESSET, in op. cit), inserido em um contexto sóciocultural que não limita, mas, muito ao contrário, incita a gozar (MILLER e LAURENT,
1997, p. 39). Um sujeito imerso no sem-sentido em que se tornou a vida contemporânea,
além de desbussolado (FORBES, 2005, p. 30) em um universo precário de referenciais.
Tal desorientação surge com o abalo da função paterna a partir da dissolução do que
Freud chamava a “moral sexual civilizada”. Essa moral, calcada nas proibições e inibições
da sexualidade em uma época dita vitoriana (MILLER, 1997, p. 09), impelia ao recalque,
época na qual a neurose era o preço a se pagar por este modo de vida. No entanto, essa
“moral sexual civilizada” fornecia uma bússola, uma orientação, pois o lugar da
identificação era dado pela função do pai, função de interdição, de limite e de orientação,
conforme discutimos no segundo capítulo desta pesquisa.
Não nos interessa fazer aqui uma teoria sobre a nostalgia do pai da tradição, “não se
trata de reerguê-lo nem de reforçar uma autoridade perdida” (BESSET, in op. cit.), mas sim
apontar que alguma coisa mudou. Os sujeitos contemporâneos se apresentam marcados por
um vazio identificatório (idem), à mercê das exigências culturais que impõem não mais
uma economia do desejo a partir do recalque, mas uma satisfação imediata. Tal satisfação
16
J.-A. Miller, E. Laurent, H. Freda, B. Lecoeur, M. Tarrab entre outros.
passou a ser exigida como um mandamento superegóico, o que Lacan expressa em vários
de seus textos como: Goza! Ou seja, encontramos, na atualidade, a prevalência de um
comando oriundo da exigência pulsional em se satisfazer. Podemos então dizer que esse
mandamento ou exigência superegóica tornou-se uma característica peculiar à nossa
civilização.
Nosso contexto contemporâneo já não se encontra especificado por uma
convivência comum ligando as pessoas através da referência à linguagem no laço social.
Hoje, a subjetividade surge constituída no interior de uma cultura subordinada ao que
Lacan chamou de perversão do discurso do mestre (1972), ou seja, o discurso capitalista
que, conforme texto recente, é “avesso às coisas do amor e à particularidade do desejo.”
(BESSET, 2006). Aqui, consideramos discurso o que Lacan desenvolve a partir de seu
Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (1969-70[1992]), isto é, o discurso como
sendo uma modalidade de laço social sustentado pela linguagem. O discurso do mestre é
uma dessas modalidades de laço.
Ao contrário, nos dias de hoje somos todos colocados contra a parede do “sem
sentido” onde o traço comum que convidaria à união não é um traço, mas sim a evidência
sem pudor da falta de semblante que permita um balizamento simbólico do excesso de gozo
exigido pelo real. Em um de seus Seminários, J.-A Miller nos diz: “a época das Luzes (...)
consistiu precisamente em projetar uma luz indevida sobre a necessária obscuridade dos
fundamentos. Ah, como os alegrou que os significantes mestres fossem semblantes!”
(MILLER, 2003, p. 12)17.
Habitamos, hoje, o deserto do real (ZIZEK, 2003). Real exposto a partir dos
excessos e do superlativo, como nos convida a refletir Gilles Lipovetsky em seu trabalho –
Os
tempos
hipermodernos (2004): “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência,
hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper?”
(idem, p. 53). Logo depois, ainda em seu texto, encontramos:
Até os comportamentos individuais são pegos na engrenagem do extremo
[excesso], do que são prova o frenesi consumista, o doping, os esportes
radicais, os assassinos em série, as bulimias e anorexias, a obesidade, as
compulsões e vícios. Delineiam-se duas tendências contraditórias. De um lado,
os indivíduos, mais que nunca, cuidam do corpo, são fanáticos por higiene e
saúde, obedecem às determinações médicas e sanitárias. De outro, proliferam
as patologias individuais, o consumo anônimo, a anarquia comportamental.
(idem, p. 56).
Os excessos, o desmedido, parecem hoje surgir na contramão do que era
possibilitado pelo pai da tradição, mediante a sua função de fazer limite e temperar o gozo.
Tradicionalmente, a exceção fundada a partir do exercício da função paterna, como Freud
mostrou com seu mito de Totem e tabu (1912-13), introduz um limite pela proibição. Lacan
o demarcou com a função do pai simbólico, do pai morto e com a inscrição do significante
17
“la época de las Luces (...) consistió precisamente en proyectar uma luz indebida sobre lê necesaria
oscuridad de los fundamentos. ¡Ah, cómo les alegró que los significantes amo fueran semblantes!” (Miller, J.
A., 2003, p. 12).
do Nome-do-Pai para o sujeito como possibilidade de acesso ao gozo regulado pela lei do
desejo, tal como discutimos no capítulo anterior.
Essa inscrição impõe uma perda que se configura como perda de gozo, perda que se
torna possível através da operação da castração. Na atualidade, observamos que essa
operação se dá de modo cada vez mais escasso, uma vez que sujeito se vê não apenas
incitado, mas também exigido a gozar, pois está submetido aos ditames do discurso
dominante de nossa época.
Em seu texto, J.-A. Miller nos fala dos limites impostos ao gozo pela operação de
castração:
o gozo como tal é acossado pelo auto-erotismo, pela erótica de si mesmo. Pois
bem, esse gozo profundamente auto-erótico é marcado pelo obstáculo. O que
chamamos castração é o nome do obstáculo que marca o gozo do corpo
próprio. O objeto do gozo na condição de objeto proibido, ocupando uma
posição êxtima, ou seja, ao mesmo tempo interna e inacessível, foi designado
por Lacan com o nome de a Coisa, em torno da qual podemos apenas girar, e
guardar distância. (Miller, J.-A., 2000, p. 18).
A castração implica um corte, um furo incontornável para o sujeito, posto que a
completude de seu ser encontra um limite na falta do objeto que poderia lhe dar seu
fundamento. Esse furo tem seu agente na figura forjada do pai real, aquele que definimos,
no capítulo anterior, como o agente da castração. Assim, essa figura do pai se torna o
representante e a tela do limite ao gozo por designar um furo em todo o universo de
representações possíveis no simbólico. Portanto, o pai como real é a expressão de um furo
no próprio simbólico, que Lacan o escreve com o matema S( A/ ) (LACAN, 1960[1998], p.
832). Ele é o próprio furo na origem de qualquer sujeito desejante, naquilo em que falta um
significante que possa dar o complemento tanto ao sujeito quanto ao Outro.
Com declínio de sua função no contemporâneo, a nova constituição subjetiva do
sujeito parece estar propícia à promoção da violência, que funcionaria como um modo de
expressão do sem-sentido, daquilo que estaria fora da linguagem e do pensamento
inconsciente. Curiosamente, tais características parecem definir o sujeito na atualidade.
3.2.1– Uma falta a gozar
Como mostra Lacan em seu Seminário, livro 20 – Mais, ainda (in op. cit) –, o gozo
não pode ser total pelo fato mesmo de haver um limite imposto pela linguagem, o que, por
sua vez, marca a presença de um furo no simbólico, ou mesmo, um furo no saber. Os traços
simbólicos aos quais o sujeito recorre para tentar se representar implicam em um saber. O
sujeito simbólico quer saber quem ele é, o que o define, qual o seu desejo. No entanto, o
que ele encontra é a falta de representação e, conseqüentemente, um furo no saber.
O que o contemporâneo parece querer fundamentar é a possibilidade de tornar
inexistente esse furo, notadamente com o advento do discurso da ciência e a promessa de
bem estar e de felicidade que ele veicula, quer com seus gadgets (idem, p. 110), quer com
seus objetos latusas (LACAN, 1969-70[1992], p. 153). Isso traz conseqüências. Uma delas
é o que nos mostra J.-A. Miller e E. Laurent (1997), quando discutem sobre a maneira
como vivemos na atualidade. Segundo esses autores, vivemos numa época em que o real do
gozo predomina sobre o ideal. Isso já fora antevisto por Lacan ao falar, em Radiofonia, da
“ascensão ao zênite social do objeto (...) pequeno a” (1970[2003], p. 411). A abolição da
função de exceção que constituía o Nome-do-Pai, parece acarretar, conseqüentemente, uma
transformação da estrutura do Outro social. Isso, por sua vez, produz uma transformação na
subjetividade do sujeito contemporâneo.
Partimos do suposto de que o discurso da ciência, assim como o discurso que rege
nossa atualidade – o discurso capitalista, dos quais falaremos mais adiante –, constituem o
caldo cultural em que estamos inseridos. A história da ciência moderna, que começa no
século XVII, como mostra Lacan (1966[1998], p. 871), vindo até os nossos dias, é
profundamente marcada por esses discursos. É nesse contexto científico/burguês que Freud
denuncia o mal-estar da civilização como o resultado da pressão social de uma época.
Conforme já dissemos, o discurso da ciência foraclui o sujeito (LACAN,
1966[1998], p. 889) que, por sua vez, nada quer saber de sua divisão subjetiva ou de sua
verdade. Paradoxalmente, o mal-estar de que fala Freud encontra hoje a sua causa na
própria abolição do sujeito, substituído, graças aos avanços da ciência, por uma concepção
puramente biológica e organicista do homem.
Por outro lado, o discurso capitalista que governa o mundo a partir das regras do
mercado, praticamente destruiu todos os laços sociais mais básicos. Como diz Lacan, é uma
perversão do discurso do mestre (in op. cit.). Na verdade, não se trata de um discurso, mas
de um antidiscurso uma vez que não se sustenta em um laço social, ao contrário, ele os
abole.
Quais as conseqüências disso para um sujeito? O estatuto do sujeito, em sua relação
com o desejo inconsciente, parece ter mudado na atualidade. O sujeito contemporâneo,
desembaraçado das responsabilidades que lhe impõem o significante e a linguagem, tornou-
se um sujeito sem referênciais, aspirado pelos ditames de um mercado altamente
competitivo e selvagem, especializado em produzir dejetos (VERAS, 2004, p. 48). Trata-se,
na atualidade, de uma verdadeira demissão subjetiva, produzida pelo discurso capitalista
que, se por um lado, gera o subdesenvolvimento econômico como um subproduto de sua
ação no mundo, por outro, gera o subdesenvolvimento subjetivo que, ao que parece, se
tornou uma constante em nosso tempo. Conforme nos diz Freud: “Nada na vida é tão caro
quanto a doença e... a estupidez.” (FREUD, 1913).
Diante desse quadro em que predomina a crise dos ideais, as possibilidades de
recursos para o sujeito a fim de fazer frente a esse imperativo de gozo implicado no
discurso da ciência e do capitalismo, em outras palavras, diante dessa nova configuração de
mal-estar na civilização, são poucas. Se, por um lado, o advento da ciência produziu um
mundo onde a tecnologia permite uma vida menos árdua, em relação à tentativa do homem
de dominar a natureza, por outro, essa mesma ciência fez surgir, do ponto de vista
subjetivo, um novo sujeito. Sujeito esse que já não reconhece mais suas origens, supõe-se
desembaraçado das obrigações e responsabilidades que a tradição e a autoridade lhe
impunham. Ao mesmo tempo em que se torna absolutamente individual, esse sujeito se
encontra no campo da universalização que lhe é imposta pelo saber científico, em suma, um
sujeito vazio e sem identidade.
Conforme nos ensina Lacan, o método da dúvida instituído a partir de Descartes
(1596-1650) no mundo moderno, relativizou todos os significantes que poderiam ter um
valor universal e aos quais o sujeito poderia recorrer num processo identificatório. Com
isso, o método cartesiano acabou por produzir dois efeitos: de um lado a expansão maciça e
a crescente hegemonia do discurso da ciência, por outro, o sujeito se tornou sem garantias e
sem um lugar. Os significantes Deus, terra, honra, fundamentais aos homens medievais,
passam a não ter mais o valor que tinham uma vez questionados pelo cogito, pela razão
cartesiana, tornando-se insuficientes para dar qualquer garantia ao sujeito. Assim, esse
sujeito passa a se agarrar em sua própria existência, fundando com isso uma sociedade
caracterizada pelo narcisismo.
Conseqüentemente, uma forma de mal-estar característica da civilização atual
parece exacerbar-se: a violência. Salvaguardada as diferenças e as especificidades da
violência na atualidade, se comparada a outros tempos como nas sociedades primitivas18, a
violência generalizada do contemporâneo, além de suas causas, parece ter relação com o
pouco interesse do sujeito em pensar. O sujeito contemporâneo não está muito interessado
em construir algum saber sobre si mesmo, endereçado ao inconsciente e, em conseqüência,
o laço social que estabelece é muito peculiar. No inconsciente freudiano há um
pensamento, ele próprio funcionando como uma elucubração de saber. Desde Freud, a
psicanálise é uma prática destinada a tratar da vontade de não saber e de suas
conseqüências, o que Freud chamou o recalque. O que dizer de uma civilização que conduz
o sujeito a não querer saber?
Se o “saber fazer com o real” (MILLER, 2003, p. 13), que caracteriza o
inconsciente freudiano, se encontra em crise, na falta de poder articular S1–S2 em busca de
um sentido, na falta da articulação do pensamento, é possível que o sujeito passe ao ato
através da violência. Nesse caso, ela não passaria de uma tentativa desesperada de se situar
minimamente numa dialética significante e encontrar um lugar no Outro simbólico.
18
Como vimos no Capítulo 2 desta Tese.
Enfim, o contemporâneo parece ser esse tempo marcado pela precariedade da crença
na eficácia do saber. Não qualquer saber, mas o saber que se articula subjetivamente e no
qual situamos um sujeito nele implicado, ou seja, o saber inconsciente. Na atualidade, o
saber valorizado no mercado é o que se depreende desse universo das avaliações (MILLER
e MILNER, 2006), em que a singularidade do sujeito desaparece assim como sua
responsabilidade por seu mal-estar. Por conseguinte, a violência pode surgir como a
expressão mais radical da satisfação paradoxal exigida pela pulsão, diante da precariedade
do limite simbólico ao gozo.
3.2.2 – Segregação do sintoma
A complexidade da época em que vivemos marca ainda a presença da era do
consumo. Nesta, a produção desenfreada nos conduz a um mundo abarrotado de objetos
ofertados pela ciência para serem consumados e assim propiciar satisfação. Talvez
encontremos aqui uma outra das muitas faces da violência dos nossos dias, a saber: a oferta
inesgotável de produtos para usar e abusar, quando a presença maciça e excessiva de
objetos para gozar não possibilita a constituição de um espaço necessário à dialética
simbólica de presença/ausência e onde o desejo é passível de ser escrito e inscrito.
O discurso capitalista e seu aliado, o discurso da ciência, avançam, hoje, no sentido
de apagar o saber, torná-lo inoperante. Esse saber inconsciente que poderia ser capaz de dar
um fundamento à subjetividade é neutralizado pela oferta dos produtos que a ciência dispõe
ao consumo. Anexamos aqui, como exemplo, os psicofármacos (BESSET, 2004). Nessa
oferta se inscreve um convite ao “nada de saber” em consonância ao “tudo para gozar”.
Assim, hoje, os sujeitos parecem encontrar-se em uma posição subjetiva na qual o gozo se
sobrepõe ao sentido que o pensamento inconsciente poderia lhes proporcionar.
Desse modo, percebe-se que os avanços técnico-científicos induzem a uma política
de segregação, ao abolir aquilo que é avaliado pelos seus métodos estatísticos como
“defeituoso”, estranho, ruim e que vai mal. Podemos então dizer que a política do discurso
da ciência contemporânea seria um discurso de segregação do sintoma, uma vez definido o
sintoma como aquilo que vai mal, ou como o indício de alguma coisa que não funciona,
uma formação do inconsciente que provoca mal-estar ao sujeito, embora paradoxalmente
lhe propicie uma satisfação (SILVA JR., 2000). O sintoma então condensa verdade e gozo,
é uma forma de gozar do inconsciente própria de cada um, uma marca de singularidade do
sujeito. Em contrapartida, o discurso da ciência se apresenta como um discurso de
segregação e foraclusão do inconsciente, discurso que nada quer saber dessa marca de
singularidade, ou seja, o sintoma, a não ser para medicá-lo.
Esse é o mesmo discurso científico que, ao avaliar o mal-estar contemporâneo,
constrói listas classificatórias de distúrbios promovendo identificações pouco flexíveis e
difíceis de serem abaladas, além de englobar e igualar os sujeitos em categorias universais,
comum a todos. Nesse sentido, bulimia, anorexia, depressão, obesidade, toxicomania,
nomes de alguns dos sintomas contemporâneos que denunciam novas maneiras de gozar na
atualidade, se tornam, através dessas classificatórias, abordagens cegas desse mal-estar.
Assim, os sujeitos gozam no silêncio de seus padecimentos, gozo mudo, fora da articulação
significante, articulação essa que poderia vir a produzir um saber sobre o que os afeta.
Nessa abordagem, podemos ainda acrescentar que gozam da violência, como a expressão
mais radical de uma total falta de referências, em que a satisfação pulsional é obtida em seu
extremo, sem mediação.
3.2.3 – O declínio dos valores
Declínio da função paterna, crise dos ideais, foraclusão do sentido, exibição de
gozo, esses parecem ser os novos patamares de nossa contemporaneidade, patamares de
nosso mundo econômica e ideologicamente globalizado. O que hoje se dá o nome de
globalização é uma forma de estruturação do tecido social diferente daquele da época de
Freud. O século XIX, período em que Freud nasceu, até meados do século XX é
caracterizado por aquilo que Foucault denominou “sociedade disciplinar” (AGUIAR,
2006). Nesse tipo de organização social, a imposição dos interditos era potente. Interditos
impostos pelos valores e ideais sociais que incidiam quer sobre a sexualidade, quer sobre a
hierarquia social ou sobre os papéis e lugares dos indivíduos nesse contexto. Ali, a presença
e a participação da função paterna eram o fundamento da lei simbólica.
A maneira rígida com que se organizava a vida nesse tipo de sociedade demarcava
um lugar para o sujeito, ainda que esse sujeito estivesse submetido ao desejo supostamente
despótico do Outro. A disciplina nas escolas, na prisão, no hospital, na fábrica, na família,
enfim, em todos os setores da sociedade, operava sobre o sujeito e era capaz de delimitar as
fronteiras de seu modo de agir em relação aos demais e a si mesmo. Em outras palavras,
tratava-se, então, da função paterna exercendo-se como lei do desejo e como ideal
delimitando os modos de gozo.
[Assim se impõe uma] “obediência incondicional ao pai, ou àquele que, em
cada instituição, venha a ocupar esse lugar. Todos os espaços físicos e
subjetivos devem ser demarcados, classificados, ordenados e controlados para
que nada fique no interstício, daí a importância da sanção normalizadora, que
faz do exame uma técnica central do poder disciplinar, garantindo sua
estrutura hierárquica.” (idem).
Esse tipo de organização marcado pela classificação, ordenação, disciplina e
controle parecia antecipar as conseqüências do surgimento da ciência moderna como
ciência positiva, isto é, uma ciência fundada a partir do Positivismo19. Como doutrina
filosófica, o Positivismo foi adotado por Auguste Comte, na segunda metade do século
XIX, como medida da realidade, limitando essa realidade a fatos cuja verdade estava acima
de qualquer dúvida, ou seja, aqueles fatos de realidade que eram determinados através do
método científico. O Positivismo refere-se a um sistema exclusivamente baseado em fatos
que são passíveis de observação e experimentação, isto é, submetidos ao método científico.
Tudo mais que fosse de natureza especulativa, intuitiva, subjetiva ou inferencial seria
rejeitado como ilusório. Segundo Nicola Abbagnano (2000, p. 776):
“A característica do P. [Positivismo] é a romantização da ciência, sua devoção
como único guia da vida individual e social do homem, único conhecimento,
única moral, única religião possível. Como Romantismo em ciência, o P.
acompanha e estimula o nascimento e a afirmação da organização técnicoindustrial da sociedade moderna e expressa a exaltação otimista que
acompanhou a origem do industrialismo.” (idem).
19
“Este termo foi empregado pela primeira vez por Saint-Simon [1830], para designar o método exato das
ciências e sua extensão para a filosofia.” (ABBAGNANO, 2000, p. 776).
O autor prossegue dizendo que o Positivismo esteve à frente da ciência moderna na
organização social, numa participação ativa, constituindo, ainda hoje, uma das alternativas
fundamentais para a absorção, pela ciência, de qualquer manifestação humana. Entre essas
manifestações, estaria o desejo, que tanto a ciência quanto o Positivismo não levam em
conta, uma vez que, a princípio, não seria passível de verificação pelo método científico.
Por outro lado, a própria psicanálise surge como um saber que vem, ao mesmo
tempo, denunciar tanto o mal-estar que a civilização produz nos sujeitos, mal-estar
constituído por seu funcionamento repressor, quanto o declínio desse funcionamento
conseqüente ao declínio da função paterna. Ela própria contribuiu para o movimento de
libertação que transformou os costumes e os valores morais da sociedade capitalista
burguesa (MILLER, 2005, p. 13).
O recalque pôde ser levantado e os sujeitos se viram em posição de poder satisfazer
suas pulsões e realizar seus desejos mais profundos, numa atitude libertária e hedonista.
Lacan chama a atenção para o fato de que essa política libertária está fadada ao fracasso
(LACAN, 1964[1998], p. 228). Além disso, uma má interpretação dos ensinamentos de
Freud levou a esse tipo de atitude equivocada.
Segundo esse autor, no cerne da civilização está o supereu com seu corolário
inscrito no sentimento de culpa e na necessidade de punição. Para Freud, toda tendência à
destruição do outro, assim como toda busca de uma satisfação plena da pulsão sexual,
ficaria interditada pelo sentimento de culpa, formulado por ele como conseqüência do medo
da perda do amor dos pais, no Édipo (FREUD, 1930[1929], p. 156), e retornando ao
próprio sujeito como necessidade de punição. Na parte três de um texto de 1916 – Alguns
tipos de caráter encontrados no trabalho analítico, Freud nos fala, por exemplo, dos
criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa (idem, 1916). Escreve ele:
O trabalho analítico trouxe então a surpreendente descoberta de que tais ações
eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução
acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um opressivo
sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar uma ação má,
essa opressão se atenuava (idem).
Para Freud, o sentimento de culpa já se encontrava presente antes de o sujeito
praticar o crime, o qual decorre justamente desse sentimento de culpa prévio. Perguntandose sobre “a origem desse obscuro sentimento de culpa” (idem), Freud nos diz que ele
provém do complexo de Édipo “e constituía uma reação às duas grandes intenções
criminosas de matar o pai e ter relações sexuais com a mãe.” (idem). Nesse sentido, o crime
seria um alívio para os que sofrem de um sentimento inconsciente de culpa. Assim ele o
comenta:
Freqüentemente, a investigação analítica posterior pode situar-nos na trilha do
sentimento de culpa que as induziu [as crianças] a procurarem punição. Entre
criminosos adultos devemos, sem dúvida, excetuar aqueles que praticam
crimes sem qualquer sentimento de culpa; que, ou não desenvolveram
quaisquer inibições morais, ou, em seu conflito com a sociedade, consideram
sua ação justificada. Contudo, no tocante à maioria dos outros criminosos,
aqueles para os quais medidas punitivas são realmente criadas, tal motivação
para o crime poderia muito bem ser levada em consideração; ela poderia
lançar luz sobre alguns pontos obscuros da psicologia do criminoso e oferecer
punição com uma nova base psicológica. (idem).
Podemos nos perguntar o que acontece com o gozo quando o sujeito não consegue
se satisfazer, quer sexualmente, quer na destruição do outro? Como o supereu lida com
isso? Em outras palavras, como se traduz a apropriação desse gozo pelo supereu? Freud
afirma que quanto mais se renuncia à satisfação, mais se engorda o supereu e o próprio
supereu acaba por fazer o sujeito gozar da renúncia ao gozo. Em outras palavras, há
satisfação na própria renúncia (FREUD, in op. cit., p. 152). Segundo ele, o que se mantém
no seio da cultura é esse movimento circular que dura, fazendo com que o “gozo da
renúncia ao gozo” permaneça e se perpetue na repetição. Tal renúncia produz neurose, mas
não necessariamente violência.
A tendência destrutiva é satisfeita no próprio supereu e nisso há mal-estar, pois o
sujeito sofre os efeitos desse supereu que agora se voltou contra ele e o pune com sintomas.
O sujeito faz uso dos sintomas como punição (idem, p. 163). Freud nos diz que “quando
uma tendência instintiva [pulsional] experimenta a repressão [recalque], seus elementos
libidinais são transformados em sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de
culpa.” (idem).
O sujeito pode querer saber desse sofrimento, na medida em que se impõe como
enigma para ele. Freud mostrou que há um saber no sintoma, um saber inconsciente
passível de decifração. O desafio hoje é que os sujeitos contemporâneos nada querem saber
do inconsciente: “trata-se menos de uma suposição de saber que de demanda de gozo”
(BESSET, 2004, p. 44). São sujeitos que não acreditam no saber e, portanto, não desejam
saber nada. O desafio para a psicanálise estaria em como operar com um dispositivo
eminentemente simbólico, ou seja, com a palavra, para que a realização do gozo, incluindo
aí o gozo da violência, possa ser inscrito em termo de saber.
3.2.4 – Uma nova tragicidade
Procuramos discutir, até agora, a constituição do sujeito a partir do simbólico, sua
relação com o Outro da linguagem e como esse Outro se encontra em uma posição precária
na atualidade. Discutimos também sua relação com o saber inconsciente e, assim,
procuramos refletir sobre a violência que pode surgir como um efeito dessa conformação
subjetiva no contemporâneo. Com isso, fomos levados à questão edípica.
A referência para a constituição do sujeito e da subjetividade ainda continua sendo o
Édipo, ainda que nos deparemos, na clínica, com os chamados casos raros e
inclassificáveis, com as psicoses ordinárias, os fenômenos psicossomáticos e os casos ditos
monossintomáticos. É sobre isso que nos propomos a pensar, aqui, buscando contrapor o
que Freud nos trouxe em relação à constituição do sujeito, a partir da tragédia grega de
Oedipus Rex, ao que surge hoje e que definiríamos como uma “nova tragicidade”.
Contudo, gostaríamos de assinalar que não iremos apresentar os desenvolvimentos
de Freud e Lacan sobre a questão edípica, assunto por demais debatido no campo
psicanalítico. Interessa-nos extrair algumas conseqüências das formas tradicionais da
estruturação do Édipo assim como do que hoje se apresenta como conjuntura da tragédia
subjetiva para a constituição do sujeito. Em outras palavras, o que nos motiva aqui é saber
se a constituição do sujeito contemporâneo pode ainda ser considerada com base na
tragédia de Édipo, tal como Freud a apresentou.
Difícil afirmar que não, pois as ferramentas deixadas por Freud como fundamentos
para estabelecer um diagnóstico diferencial entre neurose, psicose ou perversão, capitais
para se estabelecer uma direção de tratamento, apontam para a estruturação edípica e para o
modo como cada sujeito resolveu, à sua maneira, sua relação com a castração. O complexo
de Édipo e seu operador lógico, a castração, ainda são um substrato importante para a
psicanálise.
No entanto, ao ir mais além de Freud e do Édipo, ao postular que o Édipo seria um
sonho de Freud, Lacan (1969-70[1992], p. 110) nos convida a fazer uma separação entre a
castração como efeito da linguagem sobre o ser vivente, e o Édipo como a tragédia
subjetiva de cada um, funcionando como a novela familiar do neurótico. É a partir da teoria
dos discursos, em seu Seminário, livro 17 (idem), que Lacan procura desenvolver uma
logificação da função paterna, procurando ir mais além do mito ao passar do mito à
estrutura, como se intitula o capítulo VIII desse mesmo Seminário.
Em seu Seminário, livro 17 (idem), Lacan afirma nunca ter falado do Édipo a não
ser através da metáfora paterna (idem, p. 105). Ao passar para a estrutura, a partir desse
Seminário (idem), Lacan relativiza a função paterna e conclui: não é somente o pai que
pode desempenhar essa função, mas também outros elementos. O pai, figura de teatro que
participa da tragédia própria de cada um, que dá nome à sua função, serve apenas para
ilustrá-la, já que essa função é muito mais generalizada.
Entre o texto de Lacan de 1958, De uma questão preliminar..., e seu Seminário,
livro 17 (in op. cit.), há um Seminário, o de número 8, A transferência (1960-61[1992]),
que nos interessa por ser nele que Lacan começa a desenvolver as coordenadas do Édipo
moderno – O mito de Édipo hoje (idem, p. 261-316) –, que não são as mesmas do Édipo
freudiano. Para Lacan, o Édipo freudiano apresenta algo não conveniente para a atualidade,
a saber, seu caráter trágico.
Freud encontra esse caráter no teatro grego e a tragicidade é fundamentalmente o
núcleo da história de Édipo. Os desenvolvimentos de Lacan em seu Seminário sobre a
transferência e em outros posteriores, nos mostram a dificuldade ou a pouca adequação a se
continuar promovendo o Édipo como tragédia em sociedades como a nossa, ou seja, uma
sociedade pós-moderna marcada pelo discurso capitalista e onde o sentido trágico do teatro
grego já se perdeu – “Nossa sociedade não tem sentido trágico”, afirma J.-A. Miller (1997,
p. 426).
Em nossa sociedade contemporânea, a vida não possui mais esse sentido trágico, um
sentido marcado pelo determinismo oracular, onde o destino do herói já estava traçado,
muitas vezes, como um ser para a morte. Ao contrário, em nossa sociedade é muito mais
nítida a idéia de dejeto, de resto, de lixo. Vivemos em uma sociedade onde a produção
industrial, motor do capitalismo, deixa, como subproduto, o dejeto e o lixo. Já existe uma
grande preocupação em nossa sociedade globalizada a esse respeito, o que se expressa nos
movimentos constantes em defesa do meio ambiente, ou seja: o que fazer com o dejeto e o
lixo que nossa sociedade produz (idem)?
Enfim, em seu Seminário, livro 8 (in op. cit), Lacan irá tratar do Édipo não pela via
da tragédia, mas pela via cômica. Para Lacan, segundo Miller (in op. cit.) que comenta
amplamente essa parte do Seminário, o cômico é mais verdadeiro que o trágico. Assim,
Lacan retoma o teatro de Paul Claudel, na trilogia dos Coûfontaine, a fim de mostrar que
em nossa contemporaneidade a problemática do Édipo apresenta-se de maneira diferente da
tragédia de Oedipus Rex.
Acompanharemos Miller (in op. cit.) no desenvolvimento que faz comentando essa
passagem do Seminário de Lacan. De acordo com Miller, no teatro de Claudel o cômico
aparece na cena em que o filho mata o pai, num ato que se apresenta de forma burlesca. Diz
Miller:
O filho possuía revolveres e, num dado momento, não pôde mais suportar a
ironia e a audácia do pai, e então sacou o revólver. Na realidade, havia
substituído as balas do revólver e o pai morre, mas morre de medo. E depois
desse assassinato que é, ao mesmo tempo, cômico e trágico – moque trágico –
o filho expulsa a mulher que não é a sua mãe e, sim, a amante do pai.
Assistimos, então, a um Édipo burlesco. (idem, p. 427).
Com a peça de Claudel, Lacan nos mostra que é possível fazer uma verdadeira
decomposição da estrutura edípica não mais pela via trágica dos gregos, mas pela via
cômica, como se o Édipo atual estivesse mais ligado a uma comédia burlesca. Interessa-nos
apontar essa diferença entre uma constituição edípica na época de Freud e algo de cômico
na constituição do sujeito contemporâneo, pois não nos parece tratar-se apenas de uma
diferença, mas sim de uma degradação da função paterna em nosso contexto atual.
Além disso, essa passagem da tragicidade à comédia, nos mostra, por outro lado, na
encenação do espetáculo da vida cotidiana, que essa comicidade não é tão engraçada assim,
pois carrega consigo – tal como o pai que morre de medo – algo de um horror que se
veicula com os espetáculos de violência aos quais assistimos. Se o teatro grego é a
comemoração do assassinato do pai pelos filhos, o que aparece no palco do teatro de nosso
tempo está mais para o lado da crueldade. Uma crueldade que irrompe através de um
movimento violento do real, onde não parece existir nenhum pai em condições de colocar
um limite, ou, se existe, o sujeito parece não mais acreditar nesse pai em decadência.
Um autor recente (FRANCISCO, 1996, p. 39), comentando a respeito da obra de
Bernard Sichère, mostra como esse autor trabalha a idéia segundo a qual, na atualidade, o
espetáculo de nosso cotidiano nos mostra o trágico de uma maneira débil, com ofensivas
figuras de horror e cuja conseqüência primeira é nos tornarmos abatidos e insensíveis à
banalidade desse horror. A esse trágico débil, ele opõe o trágico verdadeiro, a tragédia
grega, como a de Édipo, Antígona ou Medeia, que não se confunde com o espetáculo de
horror do cotidiano. A tragicidade grega mostra o horror como destino do herói trágico,
através de uma trama simbólica veiculada pela palavra. Não há mostração desse horror. O
espetáculo grego não mostra Édipo arrancando os olhos, Antígona enterrada viva ou
Medeia assassinando seus filhos. Nessas peças, a dramaturgia do teatro grego serve
justamente para velar o real através do tecido simbólico que esse teatro representa.
Na atualidade, o real, ao contrário, aparece como exposto, seja o real da violência
das ruas, ou o real da ciência que procura alterar um gen para mudar o comportamento
(TARRAB, 2001, p. 03), seja o real do capitalismo, com seus objetos de consumo e com
seus excessos que violentam, quer na forma de dejetos ou lixo a acumular. Enfim, diante
disso, nos perguntamos se vivemos hoje uma nova tragicidade.
Nesse contexto, encontramos os sujeitos dispersos, sem palavras, sem pudor pelo
seu gozo, tentando metabolizar esse excesso de gozo que os dispositivos culturais na
atualidade lhes oferecem. Sujeitos que não podem sustentar semblantes, sujeitos
desabonados do inconsciente (MILLER, in op. cit.) que não mais contam com insígnias
singulares que os possam orientar nessa constante oferta de gozo. Diante desse quadro e
dessa nova constituição do sujeito, não seria difícil postular a violência como um efeito da
forma como está configurada a subjetividade de nosso tempo.
3.3 - O sujeito contemporâneo: um novo sujeito?
As sociedades tradicionais possuíam um ideal de um desejo articulado através de
um Outro ao qual o sujeito podia se referir (MILLER e LAURENT, in op. cit.). O
contemporâneo, ao contrário, é um tempo onde o social se acha caracterizado pela
desorientação do desejo como efeito de sua subordinação à vontade de gozo. Este tempo
supõe a condição de gozo do objeto sobre o desejo do sujeito.
A sociedade contemporânea, submetida aos imperativos do mercado de consumo,
disfarça o gozo com o imperativo da necessidade, fazendo assim uma torção entre
necessidade e desejo e acentuando uma necessidade de gozo. Ao fomentar o direito à
realização dos desejos individuais, o contemporâneo não faz mais que inflacionar o
imperativo do direito ao gozo.
Confundindo, assim, desejo e gozo, o sujeito na atualidade acaba por se desligar de
um desejo singular e termina deslizando para uma vontade de gozo universal, um
imperativo para todos, seja através do consumismo, do sexo virtual, das toxicomanias ou
outras modalidades de gozo solitário, gozo sem Outro (MILLER e LAURENT, in op. cit.).
A universalização a que tende o discurso da ciência, hoje, com sua produção de objetos
para o mercado, não supõe uma coletividade unida por um traço comum a partir da
identificação com o líder, mas, paradoxalmente, propõe a promoção do individualismo e da
cultura do narcisismo.
Sobre isso, em um texto recente, um autor comenta sobre “uma encenação
cinematográfica intitulada ‘Denise calls up’” (SANTIAGO, 1998, p. 51). Ele nos diz que
“os personagens nova-yorquinos desse filme são todos celibatários, destacando-se entre
eles alguns divorciados, um doador de esperma e uma receptora – Denise – o personagem
principal.” (idem). Ele diz ainda que se trata de personagens extremamente inibidos, os
quais temem qualquer contato com o outro, por isso se relacionam entre si sempre através
de um telefone ou um lap-top, como mediador. “Eles se telefonam durante todo o
desenrolar da trama” (idem, p. 52). Marcam encontros que nunca acontecem, desmarcam os
encontros, se desculpam, falam com amigos comuns, sempre ao telefone.
O autor nos diz que o clímax do filme está no acidente de trânsito sofrido por um
dos personagens que falava ao celular com a secretária eletrônica de uma amiga. Morre
com o telefone cravado no cérebro. “Metáfora macabra da máquina mortífera (...) denota o
sentido da estratégia singular com que cada um resolve a intrincada dialética entre o gozo e
a relação com o Outro” (idem), escreve o autor. Resolução não muito feliz, poderíamos
dizer.
Assim, a encenação de Denise calls up expõe uma situação onde o imperativo do
gozo contemporâneo, marcado pela incidência dos objetos gadgets – verdadeiras próteses
que anulam a dialética singular do sujeito com seu desejo –, acaba por retirar os
personagens do laço social, criando um laço social artificial em que o mediador é um objeto
do mercado: o telefone. O Outro aparece aí apenas como uma forma encarnada do objeto
voz, “que se torna o traço distintivo da relação que cada um pode manter com seus
semelhantes.” (idem, p. 53).
Esse exemplo nos mostra a debilidade simbólica em que se encontram os sujeitos
contemporâneos no laço social. O imperativo de gozo com que o sujeito deve se haver na
atualidade nos convida a refletir sobre o excesso que se veicula em praticamente todos os
setores de nosso cotidiano. Se, em outras épocas, o imperativo obsceno de gozo do supereu
era o avesso da lei, hoje esse imperativo parece ser a própria lei.
Isso não significa que o sujeito da atualidade tenha conseguido se desembaraçar das
implicações que seu sexo lhe impõe, ou se desembaraçar do gozo sexual em sua relação
com o Outro, muito pelo contrário, tal como nos mostra o exemplo do filme Denise calls
up. O imperativo contemporâneo ordena ao sujeito gozar sexualmente, porém adverte-o de
que não deve extraviar-se em seu encontro com o outro.
Nesse sentido, a camisinha, ao mesmo tempo em que é um dos objetos que responde
a esse imperativo, regula o encontro sexual com o outro e marca o sexual como protegido
de sua substância nociva, substância que pode matar. Tanto o uso da camisinha, que
protege do contágio mortífero situado no significante “HIV”, como o sexo virtual, ou o
exemplo de Denise calls up, não implicam apenas a preservação do corpo no ato sexual ou
os riscos à saúde que o ato poderia acarretar, mas nos convidam também a refletir sobre a
tentativa de se evitar os riscos do encontro contingente com o Outro, encontro esse sem
garantias, posto que, como nos ensina Lacan, não há nenhuma garantia no Outro (LACAN,
1962-63[2005], p. 129).
Tentamos desenhar, aqui, um quadro da constituição do que consideramos um novo
sujeito que, uma vez submetido à tirania do objeto mais-de-gozar imposto pelo mercado de
consumo, aceita essa ditadura do gozo fazendo uma espécie de “política de avestruz”.
Nessa política, enterra a cabeça no primeiro buraco que encontra e nada quer saber sobre as
determinações de seu inconsciente implicadas em seu mal-estar.
Assim, em se tratando de sujeitos desorientados nesse universo que impele a gozar,
desinibidos, situados numa fragmentação do laço social pela apologia ao individualismo ou
à mercê da dispersão dos saberes e da crise dos ideais, a violência pode, sem dúvida, ser
uma maneira de se fazer reconhecer. Reconhecimento esse que diz de um lugar singular
para ele no Outro e da precariedade desse lugar no contemporâneo.
Desse modo, a violência surgiria quando o sujeito já não pode encontrar no Outro
um lugar de acolhimento e um dizer que autentique a singularidade de seu desejo. Em
outras palavras, a violência surgiria num sujeito à deriva do Outro e numa relação precária
com o simbólico. Quando o sujeito se vê diante de tal impasse – e esse parece ser o caso
desse novo sujeito na atualidade – é possível que sua saída seja as atuações violentas, uma
vez que consideramos tais atuações como o que se encontra determinado pela
impossibilidade de mediação simbólica entre o sujeito e o outro, e entre o sujeito e o
excesso de gozo da vida contemporânea.
CAPÍTULO 4
A violência e a subjetividade no contemporâneo
Essas observações, esperamos, servirão para nos justificar, de
modo amplo, o tratamento estritamente científico que damos
ao campo do amor humano. A ciência, é, afinal, a renúncia
mais completa ao princípio de prazer de que é capaz nossa
atividade mental. (FREUD, 1910).
A fim de avançar na discussão sobre as novas formas de gozar no contemporâneo –
efeito dos novos arranjos da civilização atual sobre a subjetividade – e também para
refletirmos sobre o surgimento da violência como um efeito desse modo de organização do
laço social, passaremos a trabalhar a estrutura dos discursos na psicanálise. O apoio que
buscamos na teoria dos discursos se fundamenta no estudo de Lacan, tal como essa teoria
foi desenvolvida por ele a partir de seu Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (196970[1992]).
Procuraremos, nesse viés, marcar o quanto o discurso capitalista, com sua busca
desenfreada por produção e mercado, provoca, juntamente com o discurso da ciência, uma
tentativa de uniformização das singularidades subjetivas. Em outras palavras, a
massificação do modo de produção capitalista atrelado ao método científico tem como
efeito universalizar os sujeitos em um “todos iguais”. Em conseqüência, vemos surgir a
segregação, cujo paradigma é o campo de concentração, como mostra Lacan em seu
Seminário, livro 10, A angústia (1962-63[2005], p. 163).
Nosso objetivo, neste capítulo, será situar a violência como efeito da submissão dos
sujeitos à ditadura do saber da ciência e dos objetos oferecidos ao gozo pelo mercado
capitalista. Além disso, nos interessa refletir sobre a maneira com que tal conjuntura
contemporânea se articula à segregação, quer como causa, quer como conseqüência da
violência.
4.1 – Sobre a teoria lacaniana dos discursos
A teoria dos discursos torna possível avançar na análise da lógica coletiva,
organizada como laço social, porquanto essa lógica implica tanto a função da fala e da
palavra quanto a função do objeto a como mais-de-gozar, objeto condensador de gozo. Em
outras palavras, essa teoria nos permite analisar os modos de satisfação que se estabelecem
no interior dos discursos. Ela nos possibilitará refletir sobre a organização do gozo no
discurso hegemônico no contemporâneo – o discurso capitalista – e extrair as
conseqüências no tocante ao sujeito e à violência que apresentada nesse contexto.
Lacan entende o discurso como aquilo que faz laço social e o que estabelece a
relação do sujeito com o saber. Para ele, o discurso é o lugar no qual se evidencia que o ser
humano está submetido à linguagem, uma vez sujeitado aos efeitos do significante. Ao
mesmo tempo, ele se encontra incapaz de dizer toda a verdade, sobretudo sobre seu ser.
Nesse sentido, em seu Seminário 17 (in op. cit.), Lacan formula o esquema, a estrutura de
quatro formas discursivas diferentes, sob as quais inscreve-se uma estrutura básica mínima,
ou seja, um agente que, embasado numa verdade, agirá sobre um outro a fim de se obter
uma produção. Isso perfila os lugares do discurso e sua dinâmica :
agente
verdade
trabalho (Outro)
produção20
Nesses lugares, Lacan escreve quatro letras ($, S1, S2, a). Em seu Seminário, livro
19, O saber do psicanalista (1971-72)21, Lacan orienta sua escritura dos discursos com
cinco vetores, o que não aparece em seu Seminário 17. Neste há apenas um desenho
esquemático, na página 176, a respeito do discurso universitário. A modificação do lugar
dessas letras, por um quarto de giro, modifica as quatro modalidades discursivas. Assim,
podemos começar pelo discurso universitário (idem, p. 27), onde o S2, o saber, está em
posição de agente; ao fazermos um quarto de giro, temos a escritura do discurso do mestre,
agora com o S1 no lugar de agente; no discurso da histérica, o
s/ passa a ocupar esse lugar;
no discurso do analista, o a passa à posição do agente. Essa construção, no entanto, só é
possível retroativamente, a partir do que Lacan elaborou como o discurso do analista,
pautado em sua prática de analista e ao tomar o inconsciente como uma articulação entre
significantes (S1 – S2) que produz um sujeito ( s/ ).
Paralelamente a esses quatro discursos, Lacan atribui um lugar especial ao discurso
capitalista. Ele só fala deste discurso uma única vez, em sua Conferência em Milão, em 12
de maio de 1972. Esse seria um quinto discurso, gerado a partir de uma pequena
20
LACAN, J., O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1992, p. 161.
21
Lição de 03 de fevereiro de 1972.
modificação dos lugares entre S1 e
s/
do discurso do mestre. Uma pequena modificação
que provoca enormes conseqüências, como veremos mais adiante. Escrevendo os quatro
discursos, além do discurso capitalista, teremos:
S1
S2
$
a
s/
S
S1
a
Discurso Capitalista
Discurso do Mestre
s/
S1
As letras:
a
S2
S1 – o significante-mestre
Discurso da Histérica
S2 – o saber
s/ -
o sujeito dividido
a – o mais-de-gozar
a
s/
S2
S1
Discurso do Analista
S2
a
S1
s/
Discurso Universitário
As barras horizontais separam os quatro lugares descritos acima. Os cinco vetores
estabelecem as conexões possíveis entre esses lugares e seus ocupantes, assim como o
sentido de suas determinações. Ao escrever a orientação desses discursos com cinco
vetores, Lacan se pergunta: por que falta uma seta? Qual a razão de estrutura para que um
vetor falte à formulação dos discursos? Em seu Seminário, livro 20, Mais, ainda (in op. cit.,
p. 40), tratando do discurso analítico, ou seja, de onde tudo partiu, ele nos diz: “fundei o
discurso analítico por uma articulação precisa, que se escreve no quadro com quatro letras,
duas barras e cinco traços, que ligam cada uma dessas letras duas a duas. Um desses traços
– pois havendo quatro letras deveria haver seis traços – falta.”.
O vetor de baixo, o sexto vetor, deverá ser suprimido, posto que não há nenhuma
conexão entre o lugar da verdade e o da produção. Em seu Seminário, livro 19 (in op. cit.),
esse lugar é o da produção do mais-de-gozar. A conexão entre a verdade e o mais-de-gozar
é impossível. Entre eles há mesmo uma disjunção (LACAN, in op. cit., p. 101). Essa
disjunção entre os dois lugares inferiores, disjunção entre a verdade e a produção, adquire
toda a sua importância. Ela retoma o vel alienante sob a forma da verdade e do mais-degozar, lugar respectivamente do “eu não sou” e do “eu não penso”.
Sobre a verdade, Lacan sublinha: “A verdade (...) é certamente inseparável dos
efeitos da linguagem tomados como tais. Nenhuma verdade pode ser localizada a não ser
no campo em que ela se enuncia (...) Dizer que a verdade é inseparável dos efeitos de
linguagem tomados como tais é incluir aí o inconsciente.” (idem, p. 58-9).
Na produção do mais-de-gozar não há pensamento, é a máquina não pensante. O
pensamento inconsciente é uma operação verdade que inclui o sujeito e culmina na
castração. Essa verdade, enquanto subordinada à castração, determina um esvaziamento de
gozo. Assim, a verdade que opera no sentido da castração introduz essa perda e apazigua o
excesso de gozo. Apazigua o excesso, na medida mesma em que ela é esvaziamento de
gozo e, com isso, faz limite ao mais-além do princípio do prazer. O mais-de-gozar, ao
contrário, anula a verdade, tornando-a irrisória e sem efeito sobre o sujeito. No Seminário,
livro 19 (in op. cit.), Lacan enfatiza a disjunção entre o gozo e a verdade.
Chamamos a atenção para a orientação estabelecida por Lacan quanto ao discurso
através dos vetores porque, no discurso capitalista, ao mudar os lugares de S1 e
s/ ,
a
direção do vetor que os une também muda. Com isso, tudo se transforma, na medida em
que, com essa mudança de direção desse vetor, surge uma característica particular do
discurso capitalista, conforme veremos mais adiante, a saber, o fato desse discurso estar
inscrito em uma circularidade e não permitir nenhum ponto de basta, nenhum furo, como
acontece com os demais. Para verificar essa circularidade é só seguir a orientação dos
vetores, conforme o esquema abaixo:
Discurso do Mestre
Discurso Capitalista
No Seminário, livro 19, O saber do psicanalista (in op. cit.), Lacan utiliza uma nova
denominação para os lugares próprios da estrutura discursiva e escreve, nesse momento,
diferentemente do que havia proposto no Seminário, livro 17 (in op. cit.), mas não em
contradição com este, o esquema abaixo:
Semblante
Verdade
Gozo
Mais-de-gozar
O semblante aí é o significante veiculado pela fala; o gozo, por sua vez, surge como
decorrente da fala, isto é, o gozo fálico, gozo ordenado pelo significante que o organiza,
gozo do blábláblá. O mais-de-gozar é o que escapa ao processo de significação da fala – a
significação fálica. Isso ocorre porque o significante não é suficiente para esgotar as
significações do ser do sujeito.
Disso resulta uma perda de gozo para o sujeito, ou seja, a instalação do furo por
ação do significante. Essa negativização do gozo não se aplica à sua recuperação através do
mais-de-gozar. Essa recuperação, só podemos contá-la, registrando sua distribuição,
contabilizando-a. Em seu Seminário, livro 10, A angústia (in op. cit., p. 242), Lacan faz
referência à peça de Shakespeare, O mercador de Veneza, e nos diz que “sempre há no
corpo, em virtude desse engajamento na dialética significante, algo de separado, algo de
sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne.”. Aqui, não se trata de uma metáfora, mas
do pagamento necessário que essa perda de gozo exige. Nesse sentido, cada discurso
apresenta modalidades diferentes de gozo, ou seja, diferentes modos de produção do maisde-gozar próprios a cada um deles.
Em qualquer dos quatro discursos, então, a produção é o mais-de-gozar, quer seja
com o objeto a, com o S1, o S2 ou o
s/ . Assim, o mais-de-gozar como recuperação de gozo
através da produção não é um privilégio exclusivo do objeto a. O objeto a pode ser um dos
pontos através do qual o gozo pode ser recuperado, mas não o único. Em outras palavras,
em todos os discursos há produção do mais-de-gozar.
A noção de discurso como laço social nos permite verificar como a distribuição e o
manejo do gozo mudam e se ordenam diferentemente, dependendo da formulação de cada
discurso que condiciona o sujeito. O discurso, então, funciona como um meio de gozo. Ele
se articula a partir do real e do gozo que esse real comporta. A teoria dos discursos permite,
ainda, mostrar como o objeto a, enquanto o núcleo elaborável do gozo, entra na partida da
distribuição de gozo em cada discurso e qual o papel que lhe cabe na economia subjetiva do
sujeito, ou seja, como o sujeito o manipula e como dele se serve em cada discurso.
Assim, ao ocupar o lugar do semblante do objeto a como causa de desejo do
analisando, o analista, no discurso analítico, leva o sujeito a consumir o gozo fálico, gozo
do significante, ao fazer esse sujeito ( s/ ) produzir os significantes mestres que o
determinam, a fim de situar o saber no lugar da verdade. Aqui, o analista não goza. Já no
discurso do mestre, o S1, ao fazer o semblante daquele que comanda, leva o outro, o
escravo, a trabalhar para servi-lo. Ao escravo, porém, cabe o gozo do saber (S2). O que o
escravo produz é o objeto a como mais-de-gozar. Este é o dízimo que o mestre recolhe em
sua posição de comando. Aqui, quem goza é o escravo.
Quanto ao discurso da histérica, o gozo é absoluto. É o S1 que ocupa esse lugar e,
nesse sentido, ela supõe que o outro detém o segredo de seu gozo. Seu ser de gozo, ou seja,
o objeto a, é o que está no lugar da verdade, para ela desconhecida, posto que desconhece o
gozo que a divide ( s/ ), o que a leva a conduzir o outro a produzir o saber (S2) como maisde-gozar. É com sua libra de carne, com o seu sofrimento, que ela inventa o saber. No
discurso universitário, por sua vez, o saber (S2) estando em posição de agente, como
semblante, coloca o estudante como objeto a, no lugar de gozo, o qual paga com sua
divisão ( s/ ), ao produzi-se como mais-de-gozar para manter os significantes mestres (S1)
no lugar da verdade.
Para Lacan, o avesso da psicanálise é o discurso do mestre que é o discurso do
inconsciente. É o significante mestre que possibilita a leitura de uma certa subjetividade e,
nisso, a psicanálise se torna especialista, ou seja, ela leva o sujeito a produzir seus
significantes mestres (S1) que condicionam suas identificações e seu modo de gozo. Em
seu Seminário, livro 18, De um discurso que não seria do semblante (1971), como o
próprio título alude, Lacan aspirava à possibilidade de escrever um discurso que não fosse
semblante, uma vez que todo discurso tem como característica própria seu lugar de
semblante. Até o Seminário, livro 23, Joyce, o sinthoma (1975-76), ele não o encontrará
(SÁNCHEZ, 2005, p. 05).
Por outro lado, J.-A. Miller (2005, p. 09), em um pronunciamento que fez em
Comandatuba (2004), formula que na atualidade o discurso do analista já não tem avesso.
Ele assinala a mesma escritura desse discurso para o que chama “o discurso hiper-moderno
da civilização” (idem). Segundo J.-A. Miller (idem), no discurso contemporâneo, assim
como no discurso do analista, o objeto a tem um lugar dominante: “Este objeto (...) impõese ao sujeito desbussolado, convida-o a ultrapassar as inibições.” (idem, p. 08). O sujeito
( s/ ), desnorteado, o sujeito da avaliação, se encontra dividido pela produção (S1) que
implementa, ou seja, “o um contável da avaliação produzida” (idem, p. 09). O saber (S2)
fica situado no lugar da verdade/mentira (idem). Resta uma questão: diante desse quadro
não muito otimista, como a psicanálise pode incidir no mal-estar da civilização
contemporânea, numa época em que o S1 já não comanda e que o objeto a alcança seu
zênite social? Interessa-no aqui investigar que conseqüências essa articulação, difícil e
complexa, irá produzir quando se tratar do discurso da ciência e do capitalismo.
4.2 – O discurso da ciência e a escritura de um novo real
Para o discurso da ciência, não há uma escritura específica, tal como Lacan o fez
para os quatro discursos, no Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (in op. cit.) e,
mais tarde, para o discurso capitalista, em sua Conferência de Milão (in op. cit.). No
entanto, em vários momentos de seu ensino, Lacan trata a ciência como um discurso e
mostra como ele subverteu o discurso do mestre antigo.
É no Cogito cartesiano que Lacan assinala o surgimento do sujeito da ciência, com o
advento do Racionalismo, e formula a hipótese de que a descoberta do inconsciente, por
Freud, foi uma resposta às conseqüências produzidas pelo discurso da ciência. Lacan
considera “impensável (...) que a psicanálise como prática [e a descoberta do inconsciente
freudiano] houvessem tido lugar antes do nascimento da ciência, no século (...) XVII”
(LACAN, 1966[1998], p. 871). Além disso, já chamamos a atenção para esse fato antes, a
saber: segundo Lacan, o sujeito sobre o qual opera a psicanálise é o mesmo sujeito da
ciência. Ele escreve: “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito
da ciência” (idem, p. 873)22.
E. Porge (in KAUFMANN, 1996, p. 508) nos mostra uma articulação interessante
entre Lacan, Freud e Sócrates, no que concerne ao sujeito da ciência advindo do Cogito de
Descartes. Ele nos diz que, de acordo com Lacan, foi Sócrates quem deu o primeiro passo
na articulação entre os significantes ao propor sua teoria dos pares opostos: “um saber
pode-se afirmar unicamente pela coerência do discurso, mas trata-se de um saber
transparente para si mesmo” (idem). Nesse caminho, Freud descobre um saber não sabido
pelo sujeito, ou seja, um sujeito que não tem conhecimento de que sabe sobre aquilo que o
causa. Nesse saber, Lacan localiza a articulação significante fundamental à hipótese do
inconsciente.
É curioso: qual seria a razão de Sócrates – aquele que deu o primeiro passo – não ter
sido capaz de descobrir o inconsciente? Ao que Lacan responde: é que ainda não havia para
Sócrates o sujeito da ciência conforme Descartes o concebe (idem). Com isso, Lacan
aproxima o sujeito da ciência ao sujeito da psicanálise.
O sujeito da psicanálise, porém, possui uma antinomia com a própria ciência, uma
vez que os esforços dessa última se conjugam no sentido de suturar a divisão subjetiva do
sujeito. Essa tentativa de sutura surge a partir de Descartes, que inaugura um tipo de
procedimento – com a promoção do Cogito ergo sum – cujo núcleo básico se encontra na
rejeição da verdade para fora da dialética entre o sujeito e o saber. Nesse viés, a ciência
moderna avança no sentido de “instituir um saber que não tem mais que se preocupar com
22
Há muitas passagens em Lacan sobre isso. Citemos mais duas: “O fato de a psicanálise haver nascido da
ciência é patente.” (LACAN, 1966[1998], p. 232). Ainda, “O sujeito, o sujeito cartesiano, é o pressuposto do
inconsciente, como demonstramos no devido lugar.” (idem, 1964[1998], p. 853).
seus fundamentos de verdade” (idem, p. 509). Com isso, a ciência se promove como uma
acumuladora de um saber separado da verdade: é saber aquilo que serve para acumular
saber; a verdade fica de fora como uma outra questão. Aqui, não se deve confundir a
verdade com os valores de proposições a serem considerados como verdadeiros ou falsos,
valores de uma lógica elementar. Em seu Seminário, livro 17 (in op. cit.), Lacan nos diz:
o discurso da ciência só se sustenta, na lógica, fazendo da verdade um jogo de
valores, eludindo radicalmente toda sua potência dinâmica. Com efeito, o
discurso da lógica proposicional é (...) fundamentalmente tautológico.
Consiste em ordenar proposições compostas de maneira tal que elas sejam
sempre verdadeiras, seja qual for, verdadeiro ou falso, o valor das proposições
elementares. Não será isso livrar-se do que se chamava há pouco de
dinamismo do trabalho da verdade? (p. 84-85).
Ele continua:
o discurso analítico se especifica, se distingue por formular a pergunta de para
que serve essa forma de saber, que rejeita e exclui a dinâmica da verdade.
Primeira aproximação – serve para recalcar aquilo que habita o saber mítico.
(...) Por mais besta que seja esse discurso do inconsciente (...) Ele se impõe à
ciência como um fato. (idem).
Pois bem, a divisão entre o saber e a verdade é o que Lacan chama de sujeito da
ciência. Em A ciência e a verdade (LACAN, 1966[1998], p. 889), texto dos Escritos
(idem), anterior ao Seminário, livro 17 (in op. cit.), Lacan afirma que “da verdade como
causa, ela [a ciência], não quer-saber-nada”. A ciência não quer saber nada dos efeitos de
verdade que a linguagem e o significante produzem no sujeito, ou, seja, não quer saber nada
sobre a divisão do sujeito e, nesse sentido, rejeita a castração.
O fato de a ciência buscar suturar a divisão do sujeito não quer dizer que ela o
consiga. Nessa busca, nesse esforço para suturar o sujeito, a ciência acaba por revelar o real
que ela quer dominar. Tanto mais a sutura é tentada, mais esse real, como impossível, se
revela. Em outras palavras, ela, a ciência, procura recobrir o real e negar o impossível. Para
o discurso da ciência, o que é impossível hoje será possível amanhã. Como esse
recobrimento do real não se dá, ou pelo menos não se dá por inteiro, constituindo-se então
como a própria insistência do impossível, quanto mais ela procura a precisão, mais
imprecisão aparece. Desse modo, a ciência continua nesse movimento perpétuo de recobrir
o real e fazê-lo funcionar. Nesse sentido, poderíamos dizer que o ideal científico é chegar a
uma única fórmula que escreva o real, que dê conta do impossível. Por outro lado, isso
funciona para desmascarar o saber como sendo da ordem puramente do semblante, razão
pela qual é sempre relativizado.
A ciência pode gozar do real, apreendendo-o com suas fórmulas bem articuladas. É
assim que ela tenta recobri-lo. Todavia, isso se torna problemático para o sujeito, uma vez
que não há gozo do real sem o real do gozo. Se a ciência tenta dominar esse real, o sujeito
só pode gozar de seus objetos. O que não significa, como já dissemos, que ela consiga
recobri-lo e dominá-lo inteiramente. A ciência não transforma o real em símbolos ou
fórmulas matemáticas, mas produz, através delas, um novo real que vai crescendo e
reduzindo o lugar do sujeito. Nesse sentido, conforme afirma Lacan, a ciência foraclui o
sujeito, posto que nada quer saber do gozo que o divide, divisão essa na qual está inscrita,
por sua vez, a verdade do sujeito.
Trata-se de uma espécie de jogo no qual a verdade é recusada. A ciência se recusa
em acreditar na potência causal de uma verdade que, por estar escondida, não pode ser
comprovada por seus critérios de veracidade ou falsidade. A ciência só crê naquilo que
pode ser observado, medido, avaliado e suscetível de um cálculo.
4.2.1 – A produção extensiva de objetos: o discurso da ciência e o sujeito
Como podemos observar, já é possível destacar as coordenadas implicadas na
produção do sujeito contemporâneo “desbussolado” (FORBES, 2005, p. 30), “desnorteado”
(BESSET, 2006), sem um lugar de referência no Outro. Na época do Outro que não existe
(MILLER e LAURENT, 1997), o único discurso que se sustenta, como já dissemos, é o
discurso da ciência, mas, na verdade, trata-se de um anti-discurso, às avessas das
articulações próprias ao laço social. É também um discurso que se encontra em competição
com o discurso da psicanálise, que tenta justamente restituir o sujeito ao seu lugar ao lhe
dar a palavra, ou seja, ao fazê-lo advir, ao sustentar a hipótese do inconsciente.
Na atualidade, a produção de objetos - os gadgets da ciência (Lacan, 197273[1985], p. 110), sobretudo os ligados a uma tecnologia de informação - é levada a um
nível desmesurado, ou seja, ao excesso. Com isso, os objetos cuja função inédita era a de
capturar o gozo perdido são elevados à condição de objetos que incitam a gozar. Tal
situação mobiliza um empuxo à satisfação que se dá como resposta a um imperativo
superegóico radical, disso decorrendo o fato de o sujeito vir a precisar cada vez mais dos
objetos de consumo para saciar seu gozo.
Enfim, o que Lacan aponta é que o discurso da ciência, com seus objetos, gadgets
(in op. cit.), latusas (Lacan, J., 1969-70[1992], p. 153), como meios de recuperação de
gozo, nos oferece uma gama de possibilidades dando-nos a entender que, no fim, se poderia
prescindir do Outro para gozar. Com isso, o discurso da ciência repudia a dialética
sujeito/Outro e, portanto, repudia o inconsciente. Valoriza a ascensão do objeto a ao zênite
social (LACAN, in op. cit.), ratificando assim um movimento em direção a um excesso de
gozo. Na medida em que a ciência oferece objetos para um gozo auto-suficiente e autoerótico, o sujeito pode assim, finalmente, como num voto derradeiro, alcançar esse objeto
perdido sem precisar passar pelo Outro (MILLER, 1998, p. 15), mas ao preço de a ele se
prender.
A característica própria destes gadgets é a fixação. Através dela, o sujeito se adere
aos objetos e a eles fica preso - alienado. São objetos que tendem a produzir, ao mesmo
tempo, uma massificação, pois servem para todos, e um gozo cada vez mais auto-erótico23.
Esse parece ser um convite que a ciência, no contemporâneo, faz ao sujeito. Convite em
cujo bojo está a promessa de suturar a hiância própria à sua constituição, ou seja, a
promessa de que tais objetos dariam ao sujeito a consistência de seu ser, abolindo sua faltaa-ser.
Diante dessa oferta, o sujeito se vê capturado dentro de um contexto que lhe permite
nada querer saber de sua castração. Adere a esses objetos como extensão de si próprio. É o
que se pode observar, por exemplo, no caso do Viagra, pílula com que muitos tentam
responder às questões da falta-a-ser do sujeito, no que concerne à relação ao sexual, ou dos
23
Sobre as “novidades” e abusos da ciência e da medicina no contemporâneo, sugerimos a leitura de
QUINET, A., Adendo: As novas formas do sintoma na medicina. In ______, A descoberta do inconsciente:
do desejo ao sintoma. 2. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 150-156.
psicofármacos, sem os quais, como diz uma paciente, não consegue sair de casa, mesmo
sabendo que não irá tomá-los.
De todo modo, esses objetos da ciência, dos quais o mercado está repleto, nunca se
bastam por si mesmos. Conseqüentemente, o sujeito passa a buscar mais e mais objetos,
num consumismo frenético, a fim de suprir e sustentar o engodo veiculado na promessa de
felicidade do discurso da ciência. Se esse circuito se mantivesse como num círculo vicioso,
sem furo, o sujeito se manteria infinitamente alienado nessa situação. Mas, nela, algo falha
e retorna ao sujeito, seja como mal-estar, cuja manifestação observamos na clínica com os
chamados novos sintomas, seja como falta radical de possibilidade de ancoragem em um
Outro que faça um ponto de basta, um limite. Como conseqüência dessa situação, o sujeito
“des-norteado” (BESSET, in op. cit.), alienado e desinibido, em pura vontade de gozo,
pode passar à violência como forma de satisfação desenfreada. Mas, paradoxalmente, tal
satisfação na forma de violência parece apelar por uma barreira que venha a conter o
excesso de ofertas para o gozo, excesso insuportável que lhe atravessa.
Talvez estejamos autorizados a pensar que o sujeito, nesse contexto, através do ato
violento, tente desesperadamente arrancar do Outro, cada vez mais inconsistente, um objeto
que o faça ser, o que a ciência efetivamente não possibilita. O Outro, radicalmente
inconsistente no contemporâneo, desvela o nada do qual ele, Outro, é invólucro, desvelando
o real e o vazio do objeto, sem mediação.
Diante disso, a resposta do sujeito pode ser a violência que se constituiria, então,
como uma defesa a essa falta de mediação simbólica e essa exposição do real. Por outro
lado, o sujeito pode também se colocar na posição de objeto a fim de dar uma certa
consistência ao Outro que não existe. Nesse sentido, será que essa posição de objeto se
realizaria na posição de vítima da violência?
A promessa científica de curar o sujeito de sua falha constitucional, de sua castração
e de sua falta-a-ser, através de medicamentos, cirurgias etc, faz com que esse sujeito seja
tragado pelo discurso da ciência e pela oferta do mercado capitalista. Com isso, ele se torna
cada vez mais um sujeito que nada quer saber sobre o que o causa ou sobre sua falta-a-ser,
sendo cada vez mais levado a gozar. Esse empuxo ao gozo, somado ao vazio de
identificações e, como vimos, ao declínio dos ideais e da função paterna, fomenta um Outro
que não mais ampara o sujeito, Outro esse que poderia sancionar suas produções
discursivas. Esse sujeito que se esforça em se identificar para definir sua posição na
civilização e que se encontra, hoje, como um sem lugar no Outro pode responder a isso com
a violência.
Um Outro que sancione e ampare não significa um Outro que dê garantias. Se o
Outro não existe, o sujeito terá que inventá-lo. Sem o Outro, ou seja, sem referência à
linguagem, não há como constituir um sujeito. Não há sequer um universo de gozo para
esse sujeito.
O engodo do discurso da ciência e do discurso capitalista é propor que possa haver
garantias, não no Outro, mas no próprio saber da ciência, produzindo, assim, um outro
Outro no contemporâneo (AGUIAR, in op. cit., p. 05). Poderíamos resumir todo esse
processo propondo uma equação na qual incluiríamos o discurso da ciência, que procura
controlar o corpo, a saúde, a doença, a performance, a subjetividade etc, e o discurso
capitalista, preocupado com a produção ostensiva de objetos para o mercado, visando seus
lucro. Tal equação seria a seguinte: Discurso da ciência + Discurso capitalista = Otimização
do homem para uma futura força de trabalho. Tal otimização do homem no discurso
capitalista produz um corpo que está a serviço da grande máquina de produção. Assim, com
seu saber sobre a saúde e a doença, a ciência contribui para a produção de um corpo cada
vez mais eficaz para a grande engrenagem da máquina capitalista.
A psicanálise, ao contrário, se ocupa da singularidade do sujeito no sentido de leválo a situar-se diante do que o causa. Ela procura levar o sujeito a se questionar e, a partir de
seu próprio questionamento, a mudar a posição que ocupa em relação ao Outro. Outro esse
que o neurótico, por exemplo, inventa para poder viver o seu desejo e sua castração.
Contrariamente, a vocação do discurso da ciência opera no sentido da universalização que
sustenta um “para todos”. Com isso, ele tenta forjar a idéia de um Outro asséptico, sem
desejo, que poderia unificar os modos de gozo, o que já se pode verificar sob o rótulo da
“globalização”.
4.2.2 – O real da ciência e o real da psicanálise
Quanto às formas de gozar no contemporâneo, a própria ciência não deixa de ser
uma delas, pois seu saber é um meio de gozo do corpo, o qual é tomado pela ciência como
objeto de estudo produzindo um organismo em pedaços, repartido que está pelas
especialidades médico-científicas. A biologia, por exemplo, toma as noções de vida e de
morte de uma maneira relativa, já que para a biologia o corpo é um corpo-máquina que
funciona segundo os modelos mecanicista e utilitarista.
Ainda nesse campo médico-científico, a medicina atual, cada vez mais desvinculada
da clínica que lhe deu origem, invade outros setores que não somente o do tratamento das
doenças. Sua vocação agora se insere em intervenções sobre a saúde de sujeitos que ainda
não estão doentes, mas que podem se beneficiar e melhorar sua “performance existencial”
(AGUIAR, 2006, p. 07) através de medicamentos ou cirurgias que prometem um corpo
mais bonito e saudável, ou amenizar as dificuldades da vida. É uma tendência na qual esses
sujeitos já estão sendo chamados de farmacohumanos (idem).
M. Tarrab (2001, p. 03-04) alude a “três conjunturas sociais contemporâneas para
pensar como podemos situar aí o lugar da psicanálise como discurso”: duas ligadas aos
avanços da ciência e outra que fala da relação entre a ciência e a religião, ao dizer, por
exemplo, que “se trata de entender que o campo da crença, que é o campo da demanda de
significação, a Igreja Universal do reino de Deus, a Umbanda e outras formas de
religiosidade de fim de século [século XX], operam agora sobre depressões, angústias,
medos, obsessões, insônias, fenômenos psicossomáticos, etc. etc.” (idem, p. 04).
Aqui, é de nosso interesse apontar mais de perto a primeira e a segunda dessas
conjunturas. Sobre a primeira, diz ele: “O real da ciência incide no presente e incidirá no
futuro da subjetividade e do laço social” (idem, p. 03), onde “novos laços sociais inéditos
são prometidos pela ciência” (idem). O autor comenta sobre uma matéria escrita em um
jornal de seu país que fala sobre as pesquisas genéticas em ratos segundo a qual, mudandose um gen de ratos agressivos e promíscuos, esses se tornam calmos e monogâmicos. Em
suas palavras:
O darwinismo social aparece de mãos dadas com a genética, com as
realizações racistas podem esperar-se encontrar as bases genéticas do
comportamento social e modificá-lo: “...isto antecipa os tratamentos possíveis
do autismo e da esquizofrenia. E pode ajudar-nos a um melhor manejo sobre
algumas crianças anti-sociais.”. Retornos sinistros ao nível do laço social e da
subjetividade do progresso da ciência. Conjuntura contemporânea que se faz
de contexto no qual se inscreve o laço social analítico. (idem).
A segunda conjuntura apontada pelo autor diz de uma artista plástica que modifica
seu corpo através de cirurgias, exibindo a própria cirurgia no momento em que está sendo
feita, além dos resultados de sua obra de arte no próprio corpo. Ou seja, nada mais que uma
exibição, um espetáculo de gozo. Ele comenta:
O corpo poderia ser infinitamente aperfeiçoado pelo saber encarnado da
tecnociência. (...) Há aqui uma conjuntura entre a biotecnologia e um modo de
gozar. Este laço de um desejo com o desenvolvimento tecnológico, modifica
realmente seu corpo. Ao que se deve agregar-lhe o mais de oferecer seu corpo
ao espetáculo, porque está o olho do vídeo ali em jogo, que é o valor de gozo
que sobrevoa toda a exibição. (idem, p. 04).
O autor continua sua exposição mostrando as contradições do discurso da ciência
em contraposição ao discurso da psicanálise. Assim, ele enfatiza que a cultura
contemporânea, aliada à ciência, procura escapar do sentido ao buscar o domínio do real
através da elucidação genética dos comportamentos ou da supressão química dos
padecimentos. A psicanálise, por outro lado, evidencia que, nessa busca, é o sentido mesmo
que escapa.
A psicanálise está advertida da pulsão de morte e esta faz parte do laço social no
qual o sujeito está inserido. A psicanálise situa do lado do sujeito não a felicidade ou o
bem-estar, mas a causa do desejo, as contingências dos encontros, assim como os enigmas
da subjetividade que a promessa do discurso da ciência não consegue abarcar, não consegue
cumprir. J.-A. Miller (2005, p. 15) nos mostra que os sujeitos já desconfiam da ciência,
“tem-se, antes, a idéia de que o saber científico no real falha, vai falhar” (idem). Os sujeitos
sabem de seus fracassos em elucidar todas as doenças, em manipular a clonagem ou a
energia nuclear etc. Mesmo assim, na atualidade, esses sujeitos parecem preferir a
ignorância em relação ao que os afeta em seu mal-estar, muito mais do que a construir um
saber e buscar o sentido desse sofrimento. Nisso, o discurso da ciência e o discurso
capitalista mostram seu triunfo.
4.3 – O discurso capitalista e a promoção da violência
A civilização técnico-científica contemporânea produz um modo de vida onde
presenciamos, como visto no capítulo 1, uma extraordinária expansão do imaginário,
representado por essa exacerbação das imagens de violência no mundo. Tal expansão surge
como uma tentativa de dar consistência a um mundo caracterizado pela falência dos ideais
formalizados no interior do simbólico. Nunca fomos tão tributários das imagens e das
virtualidades.
Nossa sociedade atual se tornou uma sociedade da virtualidade e da interatividade.
Ao mesmo tempo em que maciçamente acossada pelas imagens, ela precisa de uma
produção acelerada dessas imagens para saciar sujeitos cada vez mais esvaziados de
sentido. É uma sociedade, então, marcada pelo “movimento acelerado da produção”
(LACAN, 1950[1998], p. 139) dos objetos mais-de-gozar.
Sobre os impasses produzidos pelo “movimento acelerado da produção” (idem),
Lacan nos diz: “Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, engajada
como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação
expiatória do castigo”. O autor escreveu esse texto – Introdução teórica às funções da
psicanálise em criminologia – em 1950. Vinte e dois anos mais tarde, em 12 de maio de
1972, em uma conferência pronunciada em Milão – Do discurso analítico, Lacan
apresentará a escrita do discurso capitalista.
A relação entre esse comentário de Lacan, sua apresentação do discurso capitalista e
nossa discussão sobre a violência, estaria no fato de esse discurso manter-se, hoje, mais do
que nunca, nesse “movimento acelerado da produção” (LACAN, in op. cit.), tendo como
conseqüência o empuxo ao gozo que conduz à violência, uma vez que podemos verificar na
violência um gozo em excesso. Por outro lado, não sabemos se, nos dias de hoje, ainda há
ideais no discurso capitalista, mesmo que utilitaristas, já que vivemos a época do declínio
dos ideais. De todo modo, é notória a dificuldade que nossas sociedades encontram em
deter a violência e aplicar o castigo, posto que o discurso capitalista parece desconhecer sua
significação.
4.3.1 – O discurso capitalista e o rechaço da castração
Iremos aqui desenvolver algumas questões sobre o discurso capitalista a fim de
tentar articular sua relação com a violência. Conforme comenta uma autora recente, é
alarmante a produção da violência no discurso capitalista (BENZATO, 2004, p. 02-04).
Essas questões já foram introduzidas no início de nossa discussão sobre a teoria dos
discursos em Lacan, mas achamos de interesse retomá-las aqui para continuarmos nosso
percurso.
Outro autor (LARRIERA, 1996, p. 124) nos diz que numa conferência em 03 de
novembro de 1973, Lacan caracteriza o discurso capitalista como “uma certa variedade do
discurso do mestre” (idem). Tal variedade torna o discurso capitalista distinto do discurso
do mestre “por uma pequeníssima troca na ordem das letras” (idem).
S1
s/
//
S2
s/
S2
a
S1
a
Discurso do Mestre
Discurso Capitalista
No discurso capitalista, ao permutar as letras, S1 e
s/ , passando o s/
a ocupar o
lugar de agente e semblante do discurso e o S1 o lugar da verdade, acontece também uma
mudança no sentido dos vetores o que, por sua vez, provoca uma mudança radical no
funcionamento desse discurso em relação ao discurso do mestre. Trata-se, no caso do
discurso capitalista, do rechaço da verdade, posto que se inverteu o sentido do vetor que
conectava, no discurso do mestre, o lugar da verdade com o lugar do semblante, fazendo
com que o mestre recebesse sua determinação desde o lugar da verdade.
No discurso capitalista, o agente,
s/ , repudia essa determinação e passa a dirigir a
verdade. É o sujeito agora quem opera sobre o significante no lugar da verdade. Tal
manipulação da verdade do discurso é um repúdio à castração, o que, por sua vez,
estabelece uma circularidade discursiva sem furo, uma circularidade sem interrupções. O
discurso do mestre, ao contrário, não possui esse movimento circular perpétuo e, além
disso, permite uma separação entre o mais-de-gozar e o sujeito colocado no lugar da
verdade.
No discurso do mestre, o sujeito dividido e o objeto mais-de-gozar são capturados e
situados numa disjunção que permite limitar a produção infinita do mais-de-gozar. É um
discurso que se estabelece sobre uma ruptura que funciona como barreira entre o sujeito e o
gozo, fazendo limite ao gozo do sujeito, num processo eminentemente civilizador
(MILLER, 2000, p. 307).
J.-A. Miller nos diz que, enquanto foi mantido, o discurso do mestre “limitou o
crescimento do impasse que está no coração da civilização, roubando ao escravo o fruto de
seu trabalho” (idem). Comentando a respeito de Lacan, nos diz ainda que nesse discurso o
objeto a não satisfaz ao sujeito, mas surge para sustentar a realidade da fantasia.
Interessante notar que, no discurso do mestre, os elementos sob a barra são os mesmos com
os quais Lacan escreve o matema da fantasia -
s/ <>a.
O que o sujeito obtém nesse discurso é um gozo a nível somente da realidade da
fantasia, ou seja, podemos dizer que, nele, o sujeito goza da fantasia enquanto recalcada –
modelo da satisfação na neurose. Paralelamente a esse processo em que o discurso do
mestre recalca a fantasia, não há atuação da fantasia – pelo menos o discurso não fomenta
isso. Há sim o circuito de movimento do “gozo da renúncia ao gozo”, esse sim permanente,
fundamento do supereu, movimento permitido e enquadrado pelo discurso do mestre.
Todavia, o limite dado pela renúncia foi levantado com a emergência do discurso
capitalista. É o que nos mostra Lacan quando somente inverte a posição das duas primeiras
letrinhas.
Enquanto no discurso do mestre não há conexão entre o
s/ e o a, o que Lacan mostra
com a orientação dos vetores na escrita do discurso capitalista é que essa conexão é patente,
razão do triunfo do impasse existente na própria civilização contemporânea. Tal impasse
que tende à segregação e à violência: “a democracia burguesa [fundamento do capitalismo],
como forma de governo, produz diversas formas de mal-estar que levam a instalar cada vez
mais a violência irrestrita em todas as suas manifestações” (BENZATO, in op. cit., p. 03).
Assim, nesse impasse da civilização contemporânea, a única saída possível parece ser a
violência como tentativa de marcar um limite e buscar um sentido, fazendo apelo à
castração simbólica rechaçada por esse discurso.
Uma vez que o mais-de-gozar na civilização do discurso do capitalismo se encontra
em conexão com o sujeito, ele não só sustenta a realidade da fantasia, mas também passa a
sustentar a própria realidade como tal, “o que é possível traduzir como a realidade
transformada em fantasia” (MILLER, in op. cit., p. 308). Nesse discurso, isso implica em
gozar da realidade e não mais da fantasia, ou gozar na realidade, o que transforma tudo em
uma possibilidade sem limites. Nele, não há mais impossível ou ponto de basta para
relativizar os comportamentos, as condutas ou a subjetividade e a própria violência, como
gozo, se torna uma possibilidade tolerável.
Essa destituição da categoria do impossível parece emergiu da relação entre o
discurso capitalista e o discurso da ciência. O rechaço do sujeito provocado pelo discurso
da ciência alcança sua consumação no discurso capitalista. Tudo o que se produz se torna
mercadoria, cada vez mais aperfeiçoada do ponto de vista técnico-científico. Disso não
escapa o sujeito que, por fim, se vê também reduzido a um produto que pode ser
planificado, calculado e avaliado.
A lógica do funcionamento do capitalismo, com seu fomento à produção de
mercadorias, seu “movimento acelerado da produção” (LACAN, in op. cit.), só depende de
uma lei: que tudo possa e deva ser trocado por dinheiro. Tudo tem seu preço: não só os
objetos, mas também o saber, os afetos, o sexual, o corpo e o próprio mal-estar. Tudo pode
ser transformado em mercadoria que se vende e que se compra.
4.3.2 – Um discurso sem avesso
Como já discutimos, a ciência, associada ao discurso capitalista, oferece objetos
mais-de-gozar de uma forma absolutamente desregulada. J.-A. Miller situa, em sua
conferência – O banquete dos analistas (in op. cit., p. 308), a necessidade de os
psicanalistas estarem em condições de ir “contra a ciência ali onde a partir do saber
científico se apresenta uma volatilização do real”, ou seja, a necessidade de “psicanalistas
capazes de jogar sua partida com a ciência e a cultura capitalista” (idem). Nesse sentido,
cabe fazermos uma referência a Besset (2004), que nos convida a refletir sobre a
importância do psicanalista na cidade neste momento de nossa civilização. Segundo a
autora: “trata-se, nesse momento, para os analistas de Orientação Lacaniana, de delimitar os
princípios de sua clínica e envidarem esforços para fazerem ex-sistir a psicanálise na
cidade.” (idem).
Assim como Lacan recomenda aos analistas não recuarem diante da psicose (ref.),
também não é o caso recuar-se diante dos impasses da civilização contemporânea,
constituída pelos discursos capitalista e científico. Sabemos que a lei defendida pelo
discurso capitalista, que poderíamos traduzir como uma lei de rentabilidade, nada tem a ver
com a lei instaurada através do significante do Nome-do-Pai, a qual, além de instituir
barreiras e interdições, possibilita um limite ao gozo e a instauração da categoria do
impossível. A lei da rentabilidade é uma lei perversa que faz sua medida pelo valor do
dinheiro e impõe essa medida como garantia social. Nessa perspectiva, podemos dizer que
aqueles que não têm dinheiro, tampouco têm valor ou qualquer garantia. Nesse contexto,
não há lugar para a falta-a-ser do sujeito.
P. Valas (2001) nos mostra a relação entre o discurso da ciência e o discurso do
mestre, relação essa que possibilita o surgimento do discurso capitalista. O autor escreve:
Assim, o cientista pode propor ao mestre a fabricação da “arma absoluta” (a
Coisa), com a condição de que este lhe dê os meios materiais para isso. Se o
mestre aceita, cai sob a dependência do cientista, pois efetivamente ele tem
que negociar com o cientista, se quiser conservar seu semblante de poder.
Desse “estranha copulação”, diz Lacan, entre o discurso do mestre e o discurso
da ciência, nasceu o discurso capitalista (DC), caracterizado como um discurso
do mestre pervertido. (VALAS, 2001, p. 77-8).
O saber (S2) no discurso capitalista já não pertence mais ao sujeito, o sujeito
barrado ( s/ ) foi despojado dele. É um saber que goza do sujeito, cuja autoridade se encontra
no discurso da ciência. É notório o fato de que, no contemporâneo, não há praticamente
mais saber que não reivindique sua autorização, como saber reconhecido, pela ciência.
Porém, no discurso da ciência, esse saber é inventado pelo sujeito. Contudo, como esse
discurso deve apagar o sujeito a fim fazer sua transmissão, o sujeito, ao mesmo tempo em
que se torna despojado desse saber, exclui-se de toda responsabilidade do que lhe toca
como sujeito.
Assim, esse sujeito, uma vez desresponsabilizado pelo saber que o constitui e que
ele habita, é um sujeito que pode ser qualificado como um sujeito liberal, embora, na
realidade, ele seja empregado, digamos assim, desse discurso. Ele é, enquanto sujeito,
literalmente aspirado, para produzir-se como dejeto. Nesse sentido, ainda citando P. Valas
(idem), “de todos os discursos que emergiram na história da humanidade nenhum deles
chegou ao ponto de romper os laços sociais mais fundamentais. O mal-estar da civilização
provém do fato de que o sujeito sacrifica, servindo a esse discurso, o seu ser de gozo.”
(idem, p. 79).
Nessa transmutação do discurso do mestre antigo, cujo fundamento se encontrava
na proibição, na hierarquia, na interdição, sobretudo do sexual, o capitalismo conseguiu ser
capaz de se renovar apropriando-se dos movimentos contestatórios nos meados do século
XX, transformando a própria contestação em mercadoria. Assim, por exemplo, o
movimento hippie, do final dos anos sessenta, que inicialmente questionava toda moral
tradicional utilizando-se de seus corpos para contestar o modo de vida repressor na
sociedade de sua época, logo se viu transformado em mercadoria para a moda. Mercadorias
vendidas como tendência de um novo modelo para todos. Com isso, o capitalismo mostra
sua força de transformar em produto até mesmo o semblante anticapitalista.
Sobre isso, reproduzimos aqui o comentário de um autor contemporâneo:
A sociedade inteira se reestruturou segundo a lógica da moda, da sedução e da
renovação permanente, restaurando o reinado do efêmero e a cultura hedonista
típica do nosso tempo. A normatividade social passou a se impor não mais
pela disciplina, mas pelo modelo da escolha e do espetáculo. Hoje é uma maisvalia de gozo ou de eficiência que procuramos extrair não tanto de nossas
profundezas, mas da superfície corporal sempre conectada aos gadgets e às
drogas inventadas pela aliança do capitalismo com a ciência. (AGUIAR, 2005,
p. 05).
Como a violência pode se produzir nesse discurso capitalista? Qual a relação desse
discurso com a violência e a subjetividade de nossa época? Acrescentaremos uma nota: “Há
um discurso, o discurso capitalista, verdadeira perversão do discurso do mestre, que
constitui uma explosão de todos os laços sociais por impossibilitar ou destruir a dialética
em que se fundam” (ALEMAN, 1990, p. 157). A essa nota, vamos acrescentar a segregação
como algo que conduz à violência, como algo que é gerado pelo discurso capitalista e que
também tem sua participação na constituição da subjetividade de nosso tempo. Quer como
causa dessa subjetividade, quer como efeito, a segregação parece estar sempre presente na
relação entre os semelhantes.
4.4 – Discurso capitalista, violência e segregação
Começaremos nossa discussão com um comentário que Lacan faz em seu
Seminário, livro 10, A angústia (1962-63[2005], p. 163). Nesse Seminário, ele, em alguns
parágrafos, trata da função do campo de concentração e do mercado comum. Aqui
poderíamos aproximar esse “mercado comum” do mercado objetivado pelo discurso
capitalista, cuja característica principal é o “movimento acelerado da produção” (LACAN,
in op. cit.).
Essa citação antecipa, em quatro anos, outras articulações feitas por Lacan em sua
Proposição de 9 de outubro de 1967 (1967a[2003], p. 263), texto que possui a passagem na
qual reflete sobre o horror dos campos de concentração nazistas como precursores dos
remanejamentos de grupos sociais, através do processo de universalização produzido pelo
discurso da ciência. A isso, Lacan agrega “nosso futuro de mercados comuns” (idem) que
“encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de
segregação” (idem).
Nesse viés, em sua preocupação de articular os progressos da ciência, a “destruição
da antiga ordem social” (1967b[2003], p. 360), com a segregação, Lacan fala do
“problema” (idem, p. 361) da segregação e o trata como uma questão “trazida à ordem do
dia por uma submissão sem precedentes” (idem, ibidem). Começaremos com uma citação
extraída do Seminário sobre a angústia:
Bem, eis-me de volta dos esportes de inverno. (...) os esportes de inverno me
impressionaram por um não-sei-quê que finalmente me ocorreu, e que me
levou a um problema do qual eles me parecem ser uma encarnação evidente,
uma materialização vivíssima – o problema contemporâneo da função do
campo de concentração.
Os esportes de inverno são uma espécie de campo de concentração da velhice
abastada, que todos sabem que se tornará um problema cada vez maior no
avanço de nossa civilização, dado o aumento da média etária com o tempo.
Isso me lembrou que o problema do campo de concentração, bem como de sua
função nesta época de nossa história, de fato tem sido integralmente mal
examinado até aqui, completamente mascarado pela era de moralização
cretinizante que se seguiu imediatamente à saída da guerra, e pela idéia
absurda de que se poderia acabar com ele com toda essa rapidez (...). (idem, p.
163)
Mais adiante, nesse mesmo texto, aludindo a seu Seminário sobre a ética, Lacan
trata da moral que “deve ser buscada, em seu princípio e em sua proveniência, do lado do
real.” (idem, p. 164). Prossegue dizendo que não se deve buscar essa moral “do lado do
Mercado Comum.” (idem, ibidem).
Citemos, então, as duas outras passagens, uma delas em sua Proposição de 9 de
outubro de 1967 (in op. cit.):
A terceira facticidade, real, (...) é o que torna dizível o termo campo de
concentração, sobre o qual nos parece que nossos pensadores, vagando do
humanismo ao terror, não se concentraram o bastante.
Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror,
representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo
como conseqüência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e,
nominalmente, da universalização que ela ali introduz. (idem, p. 263).
A outra passagem se encontra em seu escrito, de 22 de outubro de 1967, Alocução
sobre as psicoses da criança (in op. cit.):
O fator de que se trata é o problema mais intenso de nossa época, na medida
em que ela foi a primeira a sentir o novo questionamento de todas as estruturas
sociais pelo progresso da ciência. No que (...) teremos que lidar, e sempre de
maneira mais premente, com a segregação.
Os homens estão enveredando por uma época que chamamos planetária, na
qual se informarão por algo que surge da destruição de uma antiga ordem
social, que eu simbolizaria pelo Império, (...) para ser substituída por algo bem
diverso e que de modo algum tem o mesmo sentido – os imperialismos, cuja
questão é a seguinte: como fazer para que massas humanas fadadas ao mesmo
espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente familiar, se
mantenham separadas?
O problema (...) dou-lhe o nome apropriado de segregação (...) a segregação
trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes. (idem, p. 360-1).
Se seguirmos seus comentários no Seminário sobre a angústia, veremos que, para
Lacan, o exame mal feito da função do campo de concentração em nossa época, mascarado
por uma leitura moralizante da questão, implica em que o “isto nunca mais” não pôde se
cumprir em seu alvo. Nesse sentido, os campos de concentração, como precursores dos
remanejamentos sociais pelo discurso da ciência em sua função de universalização, são os
modelos prévios de seus efeitos de segregação. Assim, os efeitos segregativos no interior da
civilização do mercado comum se devem ao funcionamento do discurso da ciência aliado
ao discurso capitalista, cujos mesmos fundamentos de universalização impõem efeitos
segregativos.
Conforme mostramos, sobretudo no segundo capítulo, num mundo regido pela
função paterna, organizado a partir do lugar de exceção do pai, os significantes mestres
ordenavam a civilização possibilitando a identificação aos ideais constituídos a partir dessa
orientação paterna. Isso propiciava uma organização totalizante do grupo, cuja referência
era a figura de exceção, o pai, embora não prefigurasse nenhuma universalização, nenhum
“todos iguais”.
Com o advento do discurso da ciência, os significantes mestres, assim como a
função de exceção paterna, entraram em crise. No contemporâneo, como já apontado, é o
declínio da função paterna que está na ordem do dia. Com ele, a falta de referenciais, os
processos de desidealização, a falta de recursos que “reflete[m] o descuido com a dimensão
simbólica da vida” (FRANCO FERRARI, 2005), constituem o marco da civilização
contemporânea.
Isso não significa que o processo de totalização tenha sido abolido com a promoção
do discurso da ciência aliado ao discurso capitalista, mas, hoje, somos convidados a
interrogar sobre o que vem ocupar esse lugar de exceção, antes ocupado pelo pai da
tradição. Estaria ele, hoje, sendo ocupado pelo saber da ciência? Ou esse lugar pode estar
sendo ocupado pelos objetos de consumo do mercado orientado pelo discurso capitalista
numa economia neoliberal? Ou, ainda, será que assistimos a ambos os movimentos?
Podemos verificar os efeitos devastadores desse processo. Se hoje falamos em
novos sintomas, incluindo aí o consumismo, a compulsão consumista, podemos também
pensar os efeitos segregativos que tal configuração provoca no mundo atual, além dos
efeitos de tal segregação como violência. Podemos mesmo pensar que a própria segregação
já é uma violência, na medida em que ela exclui o outro em sua diferença, exercendo sobre
ele sua crueldade.
A tendência à universalização, objetivo da ciência ao produzir um “todos iguais”,
exclui qualquer singularidade de gozo que possa existir no um a um dos sujeitos. Podemos
pensar essa conjuntura como um imperativo de gozo posto em marcha por um mercado
comum – leia-se capitalismo – com seus efeitos segregativos, dos quais a função do campo
de concentração – aí situamos a violência – é o maior testemunho em nossa história e em
nossa atualidade (STEVENS, 1999, p. 17).
4.4.1 – Segregação, violência e o culto ao individualismo moderno
Outro aspecto indicativo da tendência à segregação em nosso tempo diz respeito à
constituição do eu no contemporâneo, uma vez que nossa época se encontra caracterizada
pelo individualismo moderno (MILLER, 2000, p. 103), pela cultura da imagem e do
narcisismo. Em outras palavras, uma nova conformação da subjetividade em nosso tempo.
Essa forma de constituição de “eus” cada vez mais individualizados e maciçamente
isolados é própria e específica do discurso da ciência que necessita, a um só tempo, da
universalização e da parcialização, do desmembramento, como podemos notar com as
especializações no campo da medicina. A subjetividade constituída no seio do discurso da
ciência é uma subjetividade marcada por esses “eus” isolados, embora todos iguais.
Se a constituição do eu, absolutamente narcisista, assim como o desmembramento
do coletivo em prol da universalização forem estendidos ao campo social, esse indivíduos,
aferrados como estão a seus “eus”, estarão vulneráveis a se deixarem capturar por qualquer
apelo à identificação maciça, tal como a analisada por Freud analisa em Psicologia das
massas e análise do eu (1921). Em outras palavras, trata-se da busca por uma identificação
que possa sinalizar uma identidade a pequenos grupos.
Não é à toa que vemos aparecer, a cada dia, uma tendência aos nacionalismos
radicais, de forma crescente e constante, além do aparecimento de conflitos raciais e
étnicos. Assim, as três vias que existem para se tentar uma sólida identidade a nível do
social e do simbólico seriam a raça (significante atualmente questionado devido aos
avanços das pesquisas genéticas), a religião e a terra, o que aponta para a noção de
pertencimento a uma nacionalidade.
Essa tentativa de identidade, no entanto, produz algo no nível da violência,
encontrado justamente na segregação do diferente através do extermínio desses outros que
não são “eu” – o que Freud já havia apontado ao formular sua hipótese do narcisismo das
pequenas diferenças (1930[1929], p. 136), como comentamos anteriormente. A paixão em
reafirmar seu ser cresce em proporção ao ódio pelo estrangeiro, pelo diferente. Nesse
sentido, o racismo, tal como Lacan o formula, é paradigmático desse luta que pode
radicalizar-se até o extermínio do outro.
Segundo Lacan, o racismo pode ser analisado desde o ponto de vista da dinâmica
pulsional, em que o gozo do Outro, ao ser experimentado como diferente e estranho,
provoca o ódio ao fazer desse Outro uma radical alteridade, razão de seu rechaço.
Conforme foi discutido em relação ao amor ao próximo, esse mandamento impossível de se
cumprir só parece ser relativizado se o outro não se aproximar muito, mantendo uma
distância suficiente para não despertar o impulso à sua aniquilação. É o que Freud nos
mostra, por exemplo, com a metáfora do porco-espinho (1921)24.
4.4.2 – Um sujeito estrangeiro de si mesmo
O interessante a ser aqui assinalado é que, para a psicanálise, o estrangeiro é o
próprio sujeito ao habitar a linguagem. Esse é o verdadeiro drama do ser falante, ou seja,
não poder habitar plenamente si mesmo, uma vez que sua moradia reside no Outro. O
paradoxo do sujeito, que também acaba sendo algo que o divide e do qual nada quer saber,
é que o Outro é, ao mesmo tempo, sua terra natal e seu país estrangeiro. Seu estatuto de
estrangeiro em sua própria casa questionará a identidade do sujeito consigo mesmo e o
levará a buscar essa identidade no grupo, no traço identificatório que une, por exemplo,
uma nação, ao preço de excluir – segregar – e odiar os outros.
Com o termo de extimidade (LACAN, 1959-60[1988], p. 173), Lacan vem
fundamentar essa excentricidade do sujeito em relação a si mesmo, reunindo, com esse
neologismo, o que há de mais íntimo ao sujeito e o que lhe aparece como o mais estranho.
Esse termo nomeia a hiância no seio da suposta unidade e denuncia o próprio hiato no
interior da identidade do sujeito. Esse hiato é a impressão que a linguagem e o significante
deixam no ser falante, cujo efeito maior é sua alienação ao campo do Outro e ao
inconsciente.
24
“Mantenhamos perante nós a natureza das relações emocionais que existem entre os homens em geral. De
acordo com o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum deles pode
tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo.” (FREUD, Psicologia das massas e análise do
eu, 1921).
Articulamos o discurso capitalista e o discurso da ciência e, assim, marcamos a
utilização e o gozo que disso decorrem ao produzirem, através do processo de constituição
do eu, o impulso original à destruição resultante da dialética infernal entre o eu e o outro.
Ponto nodal para a formação do racismo, da segregação e, conseqüentemente, da violência.
Como já assinalamos, o discurso capitalista/científico constitui-se em um antidiscurso, posto que não facilitam os laços sociais, ao contrário, os abolem. O fundamento
desse discurso está na máxima segregação, entendendo-se esta como aquilo que leva o
outro à condição de nada, a algo ejetado como puro objeto. Assim, podemos dizer que o
discurso capitalista e a ciência instalam a segregação no seio da civilização contemporânea.
A essa segregação se associa a violência generalizada, os efeitos de destruição e de
ruptura dos laços sociais constituídos como discursos, cujo paradigma nas sociedades
tradicionais era o discurso do mestre. Hoje, estamos inseridos em um discurso, o discurso
capitalista, que não tem avesso, cuja força violenta de seu imperialismo é difícil de abalar.
4.5 – Um laço social de outra ordem
Como sair do impasse que a civilização contemporânea nos impõe ao situar-se
como constituída a partir do discurso capitalista/científico? Desde Lacan, a resposta
possível aos impasses desse discurso, ao mesmo tempo universalizante e segregador, é o
discurso analítico como um laço social de outra ordem e como o avesso da vida
contemporânea (TARRAB, 2001). Nesse sentido, um autor, em obra recente, escreve:
Um sujeito pode reconhecer a exceção, suportar o nem todos iguais, o um a
um com a condição de ter encontrado a inconsistência do Outro e, para além
da exceção paterna, de se ter desembaraçado dos medos da rivalidade. Um a
um é a proposta desagregativa deduzida do discurso analítico. É o que permite
reconhecer a exceção de cada enunciação. Mas é também o que permite
reconhecer, para além de toda rivalidade inútil, a função do mais-um a partir
do que se pode traçar a série das enunciações. (STEVENS, in op. cit., p. 17).
Como poderia o discurso do psicanalista oferecer uma saída do discurso capitalista?
Não parece que a psicanálise possa destituir o discurso capitalista de seu lugar na
civilização contemporânea. Além disso, que a psicanálise não tenha conseguido
minimamente inquietar o discurso da ciência, é um fato bastante evidente. Porém, como é
de seu interesse mudar alguma coisa na economia de gozo do sujeito, ela talvez pudesse
pelo menos emancipá-lo dos impasses da versão capitalista do supereu.
Segundo J.-A. Miller (2000, p. 304), há uma coincidência estrutural entre o
movimento circular, sem barreira, do discurso capitalista e o que Freud formula como o
cerne do mal-estar na civilização, ou seja, entre a ordem superegóica e a renúncia à
satisfação pulsional. Trata-se de um movimento circular referido ao “gozo da renúncia ao
gozo”, como já apontamos. Nesse movimento sem barreira, que coincide com o movimento
ininterrupto do discurso capitalista, se joga o impasse entre a civilização e o discurso
analítico.
Tal impasse implicaria uma outra via, talvez alternativa aos impasses da ciência e
do capitalismo, que poderia funcionar como um antídoto ante as conseqüências do discurso
técnico-científico sobre a distribuição de gozo na atualidade. Assim, seguindo as reflexões
de G. Brodsky (1998, p. 145), seria preciso que a própria psicanálise fosse um sintoma
diferente, de outra ordem, passível de ir de encontro aos sintomas contemporâneos
característicos de nossa civilização capitalista/científica.
Segundo essa autora: “temos tentado justificar que a psicanálise, como todo
discurso, é um modo específico de suplência da relação sexual – neste sentido todo discurso
é um sintoma –, ao mesmo tempo, é o único que se vale da transferência para demonstrar
que a dita relação é impossível.” (idem). Ela prossegue dizendo que, embora o sintoma seja
necessário, isso não significa que a psicanálise também o seja. A psicanálise como
tratamento do real é algo da ordem da contingência, não do necessário. “Cessou de não se
escrever em certo momento do avanço do discurso científico e pode extinguir-se, diz
Lacan, como um sintoma esquecido, se, como a religião, tentar curar a humanidade do
sintoma e do real.” (idem).
Nesse sentido, não se trata da psicanálise curar a humanidade, mas sim de levar
cada um a se interrogar a respeito do seu lugar no mundo, do seu sintoma e construir um
saber sobre isso. Trata-se de uma via que não propõe ao sujeito ser mestre de nada, ao
contrário do discurso capitalista. Nesse discurso, o sujeito ( s/ ), ocupando a posição de
comando, impelido pelo delírio da liberdade, se acredita liberado dos ideais tradicionais em
benefício da ditadura da competitividade individual.
Tal situação nos convida a interrogar a violência que se instaura no seio mesmo
dessa suposta liberdade, que não parece ter como medida o laço social. Esse sujeito, agente,
no discurso capitalista, é um sujeito “des-norteado” (BESSET, in op. cit.) na multidão. O
Um de sua verdade, que poderia ser o Um da coletividade, no grupo, como sugere Freud
(1921), na verdade é o Um do Um sozinho. Ao escrever o
s/ /S1 do discurso capitalista,
Lacan parece anotar essa fragmentação dos grupos sobre o efeito da ciência, cuja
característica é fazer declinar os semblantes suscetíveis de fazer traço unário. Ao mesmo
tempo em que anota um sujeito ( s/ ) que opera sobre o S1 situado no lugar da verdade,
Lacan escreve a vocação do discurso capitalista, ou seja, o rechaço à castração evidenciado
pelo próprio discurso capitalista em sua circularidade.
Ao dar ênfase à singularidade subjetiva, a psicanálise, ao contrário, reintroduz o
sujeito e a castração no discurso, respondendo assim à indiferenciação que o discurso
capitalista/científico promove. Desse modo, a psicanálise espera poder oferecer, através de
seu dispositivo, a possibilidade de o sujeito, desabonado do inconsciente (MILLER, in op.
cit.), retirar algum proveito do encontro com um psicanalista, ao circunscrever o real do
gozo em favor de um desejo que lhe seja singular e autêntico. Nesse sentido, nossa hipótese
é a de que o discurso analítico é capaz de abordar a violência, de modo a levar um sujeito a
se questionar sobre esse mal-estar no qual está implicado, mostrando-lhe também que nesse
sofrimento há uma implicação do inconsciente. Trataremos dessas questões no próximo
capítulo.
CAPÍTULO 5
Violência: torná-la um sintoma analítico?
Para fornecer disso uma formulação exemplar, não poderíamos
encontrar terreno mais pertinente do que o uso do discurso
corrente, fazendo notar que o “isso sou” [“ce suis-je”] da
época de Villon inverteu-se no “sou eu” [“c’est moi”] do
homem moderno.
O eu do homem moderno adquiriu sua forma (...) no impasse
dialético da bela alma que não reconhece a própria razão de
seu ser na desordem que ela denuncia no mundo. (LACAN,
1956[1998], p. 283).
Desde Freud, a psicanálise trabalha para acalmar a pulsão e aliviar o sujeito, dado
que a satisfação pulsional é problemática. Esse problema, ainda que não se agrave, torna-se,
porém, mais evidente quando essa satisfação procura ser alcançada sem mediação alguma,
como nos casos de violência.
Lacan (1964, p. 172) nos diz que “algo da ordem da satisfação deve ser retificado no
nível da pulsão”. A psicanálise pode modificar a relação do sujeito com a pulsão, o que
equivale a dizer, modificar sua relação com o gozo e com o real, considerando aqui o gozo
como da ordem do real. A psicanálise como prática do dizer pode transformar o real, já que
o que se diz pode chegar a mover o real. Contudo, a única coisa do real que pode se mover
é o sintoma.
Nesse sentido, considerar a violência como sintoma é estabelecer que ela é o que há
de mais real, que não cessa de se escrever (LACAN, 1972-72[1985]), que insiste e se
repete. Nela está implicado um gozo, uma busca de satisfação imediata mesmo que o
sujeito desconheça as causas de tal busca. Mas, paradoxalmente, tal satisfação o conduz ao
sofrimento. Quer endereçando a violência ao outro, quer fazendo voltar essa violência
contra si mesmo, o sujeito violento é um sofredor. Como sintoma, a violência pode
expressar uma forma de apelo ao Outro simbólico, uma vez que o sujeito se encontra
alijado da dimensão da palavra.
Portanto, é fundamental reintroduzir a palavra ali onde há uma atuação violenta. A
palavra permite o adiamento, a simbolização, dá um contorno, um limite e os meios para
que o sujeito possa pensar. Nesse sentido, a atuação violenta, na qual o sujeito encontra
uma satisfação ao tranqüilizar uma tensão interna, provoca uma sedação. Este período,
digamos, tranqüilo, talvez seja o momento oportuno para se introduzir a palavra. Se houver
essa oportunidade, a violência pode perder seu valor destrutivo e gozozo, permitindo ao
sujeito encontrar os meios de sair da repetição que seu sintoma lhe impõe.
Assim, neste capítulo, proporemos que a passagem ao ato violento pode, “sódepois”, ser ocasião de intervenção do dizer analítico, como uma oportunidade para mover
o real e modificar a relação do sujeito com seu gozo. Proporemos também verificar a
relação da violência com os chamados sintomas contemporâneos, denominados por alguns
autores como patologias do ato (RABINOVICH, 2004, p. 18). Por fim, nos perguntaremos
se é possível tornar a violência um sintoma analítico.
Um sintoma só existe se um sujeito assim o considerar. Não há como intervir em
um sintoma se o sujeito assim não o reconhecer. Nesse sentido, o sintoma do qual o sujeito
padece só se torna analítico se o sujeito falar dele inserindo-o no dispositivo analítico da
transferência. Disso decorre nossa questão: tal como os assim chamados sintomas
contemporâneos, apesar das dificuldades que lhes são inerentes, são passíveis de se
tornarem sintomas analíticos, pensamos que talvez isso também seja possível em relação à
violência, ou seja, tornar a violência um sintoma analítico.
5.1 – Violência, sintoma e atuação
As patologias do ato são assim chamadas porque, com esse nome, se procura
acentuar seu caráter de impulsão e indicar sua peculiaridade, ou seja: funcionam muito mais
do lado das atuações, dos acting-out e das passagens ao ato e, assim, acabam por resistir ao
trabalho pela palavra. Essas patologias seriam próprias “de um mal-estar subjetivo que
supõe evitar o conflito interior por meio do não exercício do pensamento, ainda que os
sujeitos tenham condições de pensar.” (FRANCO FERRARI, in op. cit.). Esses sujeitos
contemporâneos, ao evitarem a articulação do pensamento, ficam muito mais propensos às
atuações, apresentadas das mais diversas formas, tais como anorexia, bulimia, toxicomania,
fracasso escolar etc, ou seja, os assim chamados sintomas contemporâneos.
Em nossa discussão, mantendo o que consideramos a característica fundamental
desses sintomas para o nosso percurso, isto é, seu caráter de atuação e impulsão,
chamaremos tais modalidades do mal-estar de sintomas contemporâneos e utilizaremos, a
partir de então, somente essa designação. Apesar de outros tantos autores escolherem as
denominações de patologias do ato ou patologias atuais, entendemos que, ao serem
chamadas como tal, valoriza-se seu caráter de atuação (RABINOVICH, in op. cit.) e de
atualidade (MAYER, 2001, p. 82-3). Porém, com essas denominações, também se valoriza
o outro significante da expressão, ou seja, patologia, valorização essa que acaba por impor
ao sintoma um caráter patológico, o qual foge da concepção psicanalítica, que aborda o
sintoma como uma necessidade e uma solução (BRODSKY, 2002).
Levantar uma tal questão nos interessa, pois, nesta pesquisa, nos perguntamos se a
violência poderia ser colocada ao lado dos sintomas contemporâneos, já que estamos
entendendo tanto a violência quanto tais sintomas como um efeito da maneira como se
constitui, hoje, a subjetividade. Interessa-nos ainda marcar a característica de satisfação
paradoxal, tanto na violência quanto nos sintomas contemporâneos. Portanto, nos
referiremos ao excesso e à satisfação, vertentes do gozo, tanto para esses sintomas quanto
para a violência. Violência, aqui, entendida como um excesso pulsional, permitindo ao
mesmo tempo que se vislumbre um gozo implicado em sua atuação.
Assim, acreditamos ser possível considerar a violência que o sujeito inflige a si
mesmo como esses novos sintomas que surgem como pura satisfação pulsional, fora da
articulação pela palavra e fora do recalque. Tomemos um dos exemplos de Freud em seus
Estudos sobre a histeria (FREUD, 1895), o caso de Cäecilie M. Esse não é propriamente
um caso, mas um exemplo que aparece como um acréscimo ao caso de Elisabeth Von R.,
visando tentar mostrar a produção dos sintomas de conversão a partir de uma simbolização,
ou seja, mostrar o simbolismo implicado na construção sintomática da histeria (SILVA JR.,
2000). O insulto que a paciente de Freud, Srª Cäecilie M., recebe do marido e que funciona
como uma verdadeira bofetada no rosto, motivo de sua nevralgia facial, faz desse sintoma
histérico uma representação simbólica do impossível de tolerar que vem do outro, seu
marido: como poderia não ser amada por ele? Essa bofetada, que em ato nunca existiu, mas
que se manifesta na dor da face daquela que supõe não ser amada pelo Outro, não suscita
nela um desejo de vingar-se do insulto ou da falta de amor.
Ela não passa ao ato, ela não mata o marido, mas sofre em seu sintoma cuja
significação fica desconhecida e não sabida no inconsciente, efeito do recalque. A nevralgia
na face aparece como uma metáfora do que de fato a causava, ou seja, o insulto que
representava para ela o “não ser amada”. Com esse exemplo, localizamos o gozo, a
satisfação paradoxal, limitado na envoltura que o sintoma constitui para o sujeito em sua
função de conter o gozo e lhe dar uma orientação, mal-estar e sofrimento. Faces da mesma
moeda na qual se inscrevem a satisfação da pulsão como substitutiva e paradoxal.
Esse não parece ser o caso dos sintomas contemporâneos, que resistem ao trabalho
pela palavra e supõem evitar o conflito interno por meio do não exercício do pensamento.
Eles se aparecem, antes, com modalidades do mal-estar subjetivo em que o real do gozo se
sobrepõe ao recalque quando da manifestação dessas apresentações sintomáticas. Os
sujeitos acometidos desse mal-estar contemporâneo passam ao ato e, às vezes, ao ato
violento, numa violência ao outro ou a si próprios. Os paradigmas da passagem ao ato são
formulados por Lacan como o suicídio e o homicídio. Como tratá-los? Uma vez que a
psicanálise dispõe de um instrumental para tratar os sintoma, nos perguntamos: é possível
tornar a violência um sintoma analítico através desse instrumental?
Tomamos como instrumento fundamental a formalização do discurso psicanalítico,
no qual se encontra inserido a transferência. Em outras palavras, a transferência como o
motor que mobiliza o discurso do analista. Esse discurso seria uma formalização feita por
Lacan dos instrumentos da psicanálise para tratar o sintoma e lidar com o gozo nele
implicado, utilizando-se, para tanto, da transferência em sua relação com o amor e o saber.
A orientação de Lacan, assim como a de Freud, vai do simbólico ao real, em outras
palavras, da busca de sentido do sintoma ao sem-sentido de sua satisfação. Ao contrário do
discurso da ciência, a psicanálise não comanda o gozo, mas busca elucidá-lo, tentando
trazer à luz elementos inconscientes que fixam o gozo do sujeito, ou seja, os significantesmestres que ordenam sua vida. A psicanálise se utiliza da palavra e pauta seu ofício na
dialética do desejo para ir ao encontro daquilo que, do desejo, não se dialetiza. Ir ao
encontro da condição absoluta do sujeito, ou seja, do objeto não dialetizável que não se
pode trocar ou coletivizar, isto é, sua condição de gozo. Desse modo, a psicanálise pode
tocar o real implicado na violência assim como o gozo que se inscreve nesse sintoma, a fim
de que o sujeito encontre outro modo de satisfação diferente desse afeta a ele próprio e ao
outro.
A fim de continuarmos nosso percurso para responder à nossa questão sobre a
possibilidade de tornar a violência um sintoma analítico e tratá-la pelo dispositivo analítico,
discutiremos as implicações do discurso psicanalítico no laço social, assim como as
incidências das teorizações de Freud e Lacan sobre o sintoma em sua relação com os
sujeitos contemporâneos e seus sofrimentos. Passemos então a refletir sobre como o
discurso analítico oferece uma saída para o imperativo de gozo da civilização
contemporânea e como possibilitar ao sujeito uma saída da questão da repetição que se
manifesta na violência.
5.2 – Um discurso de exceção
O laço social de outra ordem no qual designamos, no capítulo anterior, o discurso
analítico, na verdade poderia ser situado como um discurso de exceção (TARRAB, 2001).
Um discurso que faria exceção aos ditames da oferta ostensiva de objetos pela ciência, na
contemporaneidade. Exceção, ainda, à prevalência do real do gozo sobre os ideais da
civilização que, na atualidade, impõe o discurso capitalista com sua proposta de
globalização. Um discurso de exceção também no que concerne aos mandamentos do
discurso da ciência que, no lugar da subjetividade e de um sujeito, situa um corpo-máquina,
um organismo biológico composto de neurônios e neurotransmissores, passível de ser
medicado, medido e avaliado.
Um discurso de exceção, enfim, à alienação fundada pelo discurso contemporâneo,
ao produzir um sujeito que nada quer saber sobre o que o afeta em seu mal-estar, que se
instala numa demanda permanente de gozo e se encontra desbussolado (FORBES, 2005, p.
30) diante da fragilidade simbólica do laço social no contemporâneo.
Segundo M. Tarrab (2001), o discurso analítico é um discurso de exceção que
propõe ao sujeito uma novidade, cujo objetivo é tratar sua miséria neurótica. Tal novidade
estaria no fato de o processo analítico ter como efeito o alívio do sujeito em relação ao
sofrimento imposto pelo sintoma, valendo-se, para tanto, apenas da palavra como
instrumento. O sujeito, à espera do novo, do ainda por vir, teria possibilidade, através do
discurso analítico, de encontrar uma nova inscrição para aquilo que já estaria escrito nele,
ou seja, seus significantes primordiais (S1). Nesse sentido, tal empreitada possibilitaria sua
saída do “inferno” da repetição.
Em outras palavras, a experiência inédita no percurso de uma análise possibilitaria
ao sujeito situar-se de uma outra forma diante de sua condição de gozo. Por isso mesmo,
esse discurso de exceção, que é o discurso psicanalítico, estaria em condições de apostar na
mudança da relação do sujeito com a satisfação paradoxal implicada na repetição infernal
do sintoma. Para tanto, será preciso situá-lo quanto à sua responsabilidade sobre seu modo
de gozo. Aqui, lançaremos mão da definição de sintoma tal como elaborada no último
ensino de Lacan, a saber: o sintoma como o modo com que cada um goza de seu
inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina (1974-75).
Estamos falando em produzir o novo, mas, se tomarmos a escritura do discurso do
analista, verificamos que o sujeito não faz mais que produzir os significantes fundamentais
– S1 – que marcaram sua história e seu ser de gozo. A função da psicanálise seria, então,
levar o sujeito a produzir esse novo como aquilo que deve advir enquanto efeito do discurso
do psicanalista na cultura. Esse novo, ainda por vir, demonstra a dimensão ética da
psicanálise, cujo fundamento é ir na contra-mão do ascetismo, da depressão, do gozo sem
limites e do cinismo em que se encontra nossa sociedade contemporânea.
Paradoxalmente, J.-A. Miller (1997, p. 05) situa o novo como um sintoma da cultura
de nosso tempo. A contemporaneidade estaria marcada pela ditadura do novo, pela busca
constante de novidade, pela troca de objetos que não duram mais que um instante. Essa
ditadura do novo seria uma das modalidades do imperativo do supereu contemporâneo.
Nesse contexto, a própria noção de sujeito torna-se obsoleta. O sujeito passa a ser mais um
objeto de troca que pode ser descartado quando se torna velho e inútil. Nesse seu texto, J.A. Miller cita a valorização da juventude e o desespero de envelhecer como paradigmáticos
da ditadura do novo na atualidade. Ele diz: “em nossos dias, o desespero de envelhecer é
claramente um sintoma social” (idem, p. 06).
Pois bem, esse mesmo autor aponta para o fato de que em relação a Freud, o novo
que ele descobre, no fundo do desconhecido para um sujeito, é a repetição (idem, p. 07).
Essa repetição é a presença, em cada um, de algo velho, já escrito no sujeito, porém ainda
não editado. Algo obsoleto, antigo, mas que ainda vive e que opera com todo o seu poder,
dominando o sujeito e fazendo dele, mais do que um sujeito, um sujeitado.
A descoberta freudiana do inconsciente designa que o antigo está sempre presente,
ou seja, os conteúdos inconscientes não são destruídos e desconhecem o desgaste pelo
tempo. Portanto, são sempre novos e passíveis de ressurgir de forma intempestiva. Assim,
segundo J.-A. Miller (idem, p. 09), Freud faz confluir o novo e o antigo, na contra-mão da
ditadura pela novidade instituída pelo discurso contemporâneo, isto é, como uma exceção a
ele.
5.2.1 – Situar a peste
Lacan propõe situar a peste no lugar do
s/
ocupado pelo sujeito como agente no
consumismo do discurso capitalista. É ainda Lacan que nos faz a aproximação entre o
espírito revolucionário da teoria e da técnica freudianas e seu qualificativo de peste, como o
que seria capaz de contaminar a todos ou, pelo menos, a muitos, e que mudaria a forma de
se pensar a subjetividade e o sujeito em nosso mundo.
Desse modo, Lacan marca o valor revolucionário da obra de Freud na civilização
contemporânea. Lacan propõe reintroduzir o valor de peste no discurso capitalista como
condição para se sair dele. A proposta da psicanálise, a partir da escritura do discurso do
psicanalista, seria a de convidar o sujeito a um trabalho no qual sua falta-a-gozar e seu ser
de desejo não se detenham nas metas do discurso capitalista, nem nos objetos de gozo que a
ciência produz, com promessas de resolver o mal-estar e conduzir à felicidade (TARRAB,
2001).
A proposta da psicanálise seria permitir ao sujeito situar e dar conta do que não tem
solução no Outro, o que resta da operação simbólica engendrada pela função paterna e que
nunca entra no laço social, o que não é coletivizável, que está no cerne de seu sintoma, o
osso, o singular, aquilo que se subjetiva em um processo analítico. Essa empreitada, se não
é o avesso do discurso capitalista, posto que ele não tem avesso, é pelo menos uma exceção
a esse discurso. Ao mesmo tempo, podemos considerar a psicanálise como a novidade
trazida por Freud, na cultura, para tratar o mal-estar subjetivo.
O legado de Freud e de Lacan se circunscreve em uma proposta que determina um
laço social a ser situado como exceção quanto ao discurso vigente na civilização, de modo a
responder, um a um, aos impasses deixados pelo discurso científico. A psicanálise, ao
contrário da busca pela universalização do mal-estar característica do discurso da ciência,
faz sua aposta na particularidade do sujeito, na singularidade de seu modo de gozo.
A isso se acrescenta que o discurso do analista põe em jogo um saber outro que não
o saber técnico-científico. Lacan nos convida a questionar a situação de gozo em nossa
cultura e como esse gozo é tratado pelos demais discursos (LACAN, 1969-70[1992]). Em
outras palavras, Lacan nos convida a refletir sobre o lugar do gozo na civilização
contemporânea e, em contrapartida, o lugar do sujeito e a forma como sofre as
conseqüências desses discursos.
Lacan propõe a escritura do discurso do analista em seu Seminário, livro 17, O
avesso da psicanálise (1969-70[1992]), como o que se segue:
a – o mais-de-gozar
s/
a
s/
S2
S1
agente
verdade
– o sujeito dividido
S1 – o significante mestre
S2 – o saber, e os lugares, abaixo descritos:
trabalho (Outro)
produção
Nesse discurso, como já dissemos, é o analista como semblante do objeto a quem
domina, mas sem ser mestre de nada. Se o analista na transferência é chamado a responder
como saber, devido à suposição de saber que o analisante lhe faz, o desejo do analista
implica em que ele responda do lugar do objeto como semblante de a. Ao ocupar esse
lugar, ali onde estava o objeto mais de gozar do sujeito funcionando como condensador de
seu modo de gozo, o analista, como aquele que profere o ato analítico, deve advir
(TARRAB, 2001). Ao advir no lugar onde operava o mais-de-gozar do sujeito, o analista,
como semblante da causa do desejo (a), faz funcionar um saber (S2) como verdade.
A psicanálise como operação que visa situar o mais-de-gozar do sujeito só se torna
possível com o analista nesse lugar – o lugar do objeto a como causa de desejo do sujeito.
Isso passa a ter uma conseqüência anti-social. Em outras palavras, a posição do analista
como semblante do objeto não seria uma posição esperada no discurso da civilização,
tampouco é uma posição que o deixa confortável. O analista é o “rebotalho da dita
humanidade” (LACAN, 1973[2003], p. 313).
Enquanto um discurso que tende a ser anti-social o discurso do analista é, além
disso, um laço anti-grupal (MILLER, 2000, p. 261). O discurso do analista, como qualquer
outro discurso, é um laço social, porém se articula como um laço social que não faz grupo,
basicamente por não estar regido pela mesma lógica dos outros discursos. Nesse sentido, é
um discurso que resiste à lógica da identificação (idem).
A condição de instalação da transferência permite que o analisante possa consentir
em desprender-se das identificações que o alienam, produzindo, por sua vez, os
significantes da identificação (S1) durante esse trabalho. Quanto ao analista, no discurso,
ele resiste à identificação. Seu lugar no tratamento é o do objeto, rebelde a qualquer
possibilidade de identificar-se ao que quer que seja.
Em outras palavras, colocar-se no lugar do objeto a no discurso permite ao analista
não se identificar com o lugar ao qual o analisante o coloca na transferência – o lugar do
saber. Comentando uma passagem do Seminário, livro 17 de Lacan (in op. cit.), sobre o
lugar do analista no tratamento, M. Tarrab (in op. cit.), modificando uma fala de Lacan, nos
diz: “O (desejo do analista) deve (fazê-lo) abandonar esta identificação a qual o destina a
transferência para servir de suporte ao objeto a.”25.
J.-A. Miller (in op. cit., p. 258), por sua vez, nos diz que “a escritura ‘a’ traduz a
impotência do analista para identificar-se com o mestre, ainda que ocupe o seu lugar. O fato
de que esta seja sua posição supõe que não haja significante do analista.” Assim, o discurso
do psicanalista lhe possibilita ocupar um lugar que não se presta à identificação, ao
contrário, lhe torna possível conduzir o analisante a deixar cair as suas identificações.
Podemos, então, salientar a atipia da experiência analítica como um laço social que não se
aplica à identificação, nem participa da estrutura de grupo característica de todo laço social.
5.2.2 – Do sentido à extimidade
Com a escritura do discurso analítico, Lacan tem a intenção de dar um tratamento ao
real do gozo, uma vez que esse discurso pode capturá-lo e possibilitar um saber fazer com
ele. Por outro lado, com o avanço de seu ensino, Lacan demarca a questão de todo discurso
não ser senão semblante, inclusive o discurso do psicanalista. Com essa proposição, Lacan
vem questionar todo o edifício da psicanálise construído por ele mesmo, até então.
Mais radicalmente, esse edifício é abalado quando Lacan, a partir de seu Seminário,
livro 20, Mais, ainda (1972-73[1985]), formaliza a relação entre o real e o sentido como
uma não-relação, desestabilizando o que havia construído antes até a teoria dos discursos
(MILLER, 2000, p. 101). Postula, então, uma não-relação entre o real e o sentido, ou seja,
25
A tradução é nossa.
uma relação de exclusão. Em seu Seminário, livro 24, L’insu que sait de l’une-bévue s’aile
à mourre (1976-77), Lacan nos diz: “Com efeito, chegar à idéia de que não há outro real
que é aquele que exclui toda espécie de sentido é exatamente o contrário de nossa prática,
pois nossa prática se banha na idéia de que não somente os nomes, mas simplesmente as
palavras, têm um alcance”. E ainda: “Se os nomina não se ligassem de alguma forma às
coisas, como a psicanálise seria possível? A psicanálise seria, de certa maneira, um
embuste, quero dizer, semblante.”26
Por outro lado, é função da prática analítica capturar algo do real pela via do sentido
e do semblante. A questão que se coloca é: como, então, se poderia operar sobre o gozo se a
relação entre o real e o sentido é um conjunto vazio? (MILLER, in op. cit.). Poderíamos
então argumentar que: ou a psicanálise só seria capaz de uma exploração das relações entre
significante e significado na busca do sentido, funcionando apenas como um semblante em
relação ao real, ou, em psicanálise, trata-se de uma exceção a isso.
Enquanto exceção, Miller propõe a clínica psicanalítica como orientada para o real,
procurando isolar o real e o gozo na experiência. É justamente esse real que se torna
inacessível quando Lacan postula uma disjunção radical entre real e semblante, ao final de
seu ensino. Como resolver o impasse e não fazer da psicanálise apenas mais uma prática de
sugestão? A indicação de Lacan é conceber, na relação de exclusão entre o real e o sentido,
“uma extimidade, enunciada como uma exclusão interna.” (BESSET, 2002, p. 23). É essa
extimidade, essa exclusão interna que irá caracterizar as relações entre o simbólico e o real
no último ensino de Lacan.
26
Questão desenvolvida a partir do texto de BESSET, V., A clínica da angustia: faces do real. In: ______
(Org.), Angústia, São Paulo: Escuta, 2002, p. 23-25.
Em seu Seminário, livro 24 (in op. cit.), Lacan indica que a noção de exclusão
interna tolera a relação de extimidade. “Nessa relação trata-se de um elemento excluído do
interior. Seria algo que, ocupando um espaço diverso do seu, permanece ao mesmo tempo
como uma vesícula [vacuole], posto que não assimilado integralmente ao campo que lhe é
estranho, mas ao mesmo tempo, de certa forma, ‘reconhecido’ por ele, posto que mantido
em seu ‘espaço’.” (BESSET, in op. cit.). J.-A. Miller se vale dessa indicação de Lacan e a
utiliza como bússola para orientar-se em seu último ensino. Com isso, chama a atenção para
o fato de que a inclusão do simbólico no real tem o estatuto da mentira, ao passo que o real
incluído no simbólico é o que caracterizaria a angústia (MILLER, 2003, p. 49).
Não entraremos nos detalhes dessas indicações de Lacan de Miller. Neste percurso,
estamos interessados no sintoma como aquilo de que a psicanálise trata, considerado como
real no último ensino de Lacan, e entendido ainda como o que conserva um sentido no real.
O último ensino de Lacan nos conduz do campo do sentido, ou seja, do inconsciente
freudiano entendido como estruturado como uma linguagem, ao sintoma como real. Essa
formulação permite considerar o sintoma como uma bússola capaz de orientar a clínica da
psicanálise, sem deixar que ela se perca nas ilusões dos semblantes oferecidos pelo discurso
dominante de nosso tempo. Deslocar o real deslocando o sintoma, pois a única coisa do real
que pode se mover é o sintoma.
Essa é a razão, como já dissemos, de nosso interesse em investigar se a violência
seria um sintoma contemporâneo. Se assim for, interessa-nos investigar ainda como tornála um sintoma analítico e a fim de se poder tratar o sofrimento do sujeito que, de alguma
forma, se encontra atravessado por ela e que, inclusive, disso goza. Assim, torna-se
importante percorrermos a questão do sintoma na psicanálise a fim de entender como, do
sintoma clássico, aquele da época de Freud, passou-se a falar em novos sintomas. No
tocante à clínica, interessa-nos também refletir sobre como passar desses novos sintomas a
um sintoma propriamente analítico.
Já antecipamos nossa hipótese segundo a qual, como gozo, a violência seria uma
satisfação paradoxal que teria, enquanto impulsão e atuação, o mesmo estatuto dos
sintomas contemporâneos. A questão que nos mobiliza é saber se a violência, tal como eles,
poderia ser tratada sob transferência como um sintoma analítico, ou seja, se seria possível
levá-la a se situar como um dizer e um significado do Outro – s(A).
5.3 – Pontuações sobre o sintoma
Em seu sentido clássico, o trabalho analítico se apóia no binômio: associação livre,
do lado do analisante e atenção flutuante, do lado do analista. Nesse laço social sui generis,
nenhuma simetria se instala. Ao contrário, no par analítico entre analista e analisante, é de
uma dessimetria que se trata. Essa formulação dessimétrica do dispositivo analítico
inaugurado por Freud tem por objetivo aliviar o sofrimento do sujeito, sofrimento este cuja
origem responde a um determinismo inconsciente.
Esse sofrimento sobre o qual atua a psicanálise é o sintoma. As primeiras
explicações de Freud situam o sintoma como um produto inconsciente deformado, que
surge ao sujeito como mal-estar, um produto que lhe é estranho e do qual nada sabe. É a
tensão entre a satisfação pulsional e o recalque das representações inconscientes que se
expressa através do sintoma. Num primeiro momento, Freud está interessado no sintoma
como uma formação do inconsciente. Porém, posteriormente, dirigirá sua atenção ao valor
de satisfação pulsional que o sintoma contém.
Para começar nossa discussão, interessa-no circunscrever duas definições do
sintoma, em Freud, e duas em Lacan. Definições que traduzem seu percurso teórico-clínico.
Assim, a primeira definição freudiana do sintoma é como uma formação de compromisso e
de retorno do recalcado (1915). Mais tarde, a partir da virada dos anos 20, Freud aborda o
sintoma como uma satisfação sexual substitutiva do neurótico (FREUD, 1930[1929], p.
163), portanto mais ligada à pulsão e sua exigência de satisfação. Lacan, por sua vez, tem
um percurso muito semelhante ao de Freud, pois parte do sintoma como um capítulo
censurado da história do sujeito (LACAN, 1953[1998], p. 260), funcionando como uma
metáfora (idem, p. 261), para chegar a conceituar o sintoma como o modo de o sujeito
gozar do inconsciente na medida em que o inconsciente o determina (idem, 1974-75).
A problemática em Freud parte do sintoma entendido como um mal-estar, cujo
sentido inconsciente deveria ser interpretado, pois, uma vez decifrado seu sentido oculto,
havia um alívio para o sujeito, até chegar ao sintoma como um modo de satisfação sexual
do neurótico. Portanto, coube a Freud descobrir que sujeito retira satisfação de seu próprio
sofrimento o que, por outro lado, faz com que lhe seja difícil abandoná-lo.
A formulação freudiana do sintoma, nesse sentido, segue duas abordagens: a
primeira se constitui a partir do modelo da histeria, onde o recalque é bem sucedido e o
sintoma aparece como a representação simbólica de um conflito inconsciente que ficou
esquecido. A segunda concepção do sintoma, mais tardia, se baseia no modelo da neurose
obsessiva. Nesta, aparece muito mais radicalmente a fixação do sujeito à uma satisfação
pulsional, marcada pelo excesso e pela repetição do que retorna sempre ao mesmo lugar, o
que aponta, por sua vez, a uma satisfação fixa.
Com a histeria, Freud descobre que o sintoma tem um sentido, quer dizer, algo que
responde ao chamado, possui um Sinn (LACAN, 1973-74). Trata-se de um sintoma que
possui uma significação, é entendido como uma mensagem, pois possui um endereçamento
e pode ser lida. Este é um modelo de explicação do sintoma que leva em consideração a
incidência da palavra sobre ele, conferindo-lhe um sentido, tornando possível sua
decifração e sua solução para o sujeito trazendo-lhe, então, um alívio para o sofrimento. É o
que Freud nos mostra, por exemplo, em seus Estudos sobre a histeria (1895).
No modelo da neurose obsessiva, a palavra não tem o mesmo efeito sobre o
sintoma. Sua vertente de resistência e de repetição é mais acentuada, pois resiste ao
trabalho de interpretação. Com isso Freud torna evidente a repetição como o fundamento
não só do sintoma obsessivo, mas do sintoma neurótico de um modo geral. Porém, na
obsessão, mais que na histeria, a questão pulsional é mais evidente. Em Inibição, sintoma e
angústia (FREUD, 1926[1925]), Freud demarca a busca permanente de satisfação, ou seja,
a compulsão à repetição de uma primeira satisfação cuja marca foi o excesso, o que
caracteriza o trauma. Nessa vertente, a do obsessivo, o sintoma já não é apenas um sentido
a ser interpretado, pois nele está implicada uma solução mais significativa, uma satisfação
substituta que aparece no funcionamento subjetivo.
Portanto, para Freud, o sintoma segue duas coordenadas: sentido e satisfação
substitutiva. Para Lacan, o percurso, como dissemos acima, é muito semelhante, pois
também deslocou o acento de um a outro, passando do entendimento do sintoma como uma
mensagem a ser lida pela interpretação, isto é, como um significado do Outro, para um
modo de satisfação encoberto pelo sofrimento, ou seja: no sintoma há gozo. Sobre isso,
encontramos em J.-A. Miller (1997, p. 08):
A referência à histeria e à neurose obsessiva convoca duas teorizações
distintas do sintoma. Por um lado, a histeria localiza o sintoma no registro
simbólico, equivalente a uma mensagem enviada por um outro desconhecido.
Por outro lado, de forma contrária, a neurose obsessiva o localiza no registro
do real, como aquilo que volta sempre ao mesmo lugar e resiste a movimentarse em função do sentido que lhe é atribuído. Freud já havia percebido que ele
tinha um Sinn, significação decifrável e também Bedeutung, relação com o
real. Havia detectado as fantasias fundamentais por trás dele e ainda mais
atrás, uma fixação, algo imóvel, inscrição inextinguível de um primeiro
encontro com o gozo, sempre traumático.
Assim, em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (LACAN,
1953), Lacan aborda a vertente de mensagem do sintoma. Já em R.S.I. (1974-75) é a
maneira de gozar do inconsciente que interessa. Então, o sintoma, para a psicanálise, é uma
mensagem ou uma maneira de gozar? A questão parece implicar a pergunta sobre como é
possível gozar de uma mensagem, ou seja, de algo que satisfaz, de maneira oculta, no
sintoma. Ao que parece, o sintoma tem mesmo essa função. Ele é pensado como uma
barreira ao gozo e, nesse sentido, formaliza o gozo, situando-o dentro de um envelope
formal capaz de circunscrever uma satisfação, dentro de certos limites marcados pela
repetição, o que implica, portanto, sua resistência a ser abandonado.
Em outras palavras, podemos dizer que o sintoma formaliza o gozo e localiza esse
gozo dentro dos limites do princípio do prazer (MILLER, 1989). Razão pela qual tantos
convivem tão bem com seus sintomas e não procuram uma análise. A questão é quando
essa envoltura formal se quebra, quando o sujeito se vê em um encontro inesperado com o
real, quando ele perde a segurança que tinha no sintoma (MILLER, 1983[1992]), quando
esse sintoma se torna um desprazer e um incômodo para o sujeito. Na verdade, se o sintoma
é um sofrimento, é também uma solução, como o sintoma fóbico, por exemplo, que resolve
a relação do sujeito com a angústia elegendo um objeto no real o qual se pode temer assim
como dele se afastar.
O último ensino de Lacan privilegia o modelo obsessivo do sintoma, em que esse
aparece como real e como o que resiste à palavra. Ou seja, o sintoma em sua vertente de
resistência e repetição. A vertente obsessiva do sintoma faz surgir uma discrepância entre o
que seria propriamente do sintoma, entendido como formação do inconsciente, e o não
querer dizer, mas o querer gozar (BESSET e ZANOTTI, 2005, p. 49), próprio de sua
formulação. A dificuldade de sua abordagem na clínica estaria mesmo no fato de o sintoma,
na vertente obsessiva, ser rebelde à decifração, parecendo, à primeira vista, não ser algo da
ordem da significação. No entanto, o desejo do analista, que sustenta a hipótese do
inconsciente, pode tomar esse sintoma como passível de dizer algo, podendo então decifrálo e levar o sujeito a uma posição diferente diante do seu gozo – razão pela qual o analista
não recua diante da dificuldade.
Essa seria a possibilidade de tratar esse sintoma como sintoma analítico. Para a
psicanálise, o sintoma não é algo dado de imediato. Se, de um modo geral, ele aponta para
um mal-estar como o signo de algo que não anda bem, para a psicanálise, contudo, ele não
é tomado como significado de uma doença. Para que haja sintoma analítico é preciso que o
sujeito faça um relato do seu sofrimento, daquilo que não anda. Em seu último ensino,
Lacan definiu o sintoma como o signo do que não anda bem no real (1974-75). Assim, a
psicanálise aposta no dizer, na fala do sintoma, mesmo que este sintoma se apresente como
pura satisfação, como um querer gozar.
Interessa-nos apontar as formulações de Lacan em relação à vertente obsessiva do
sintoma, pois essa dimensão parece estar mais em sintonia com as formas contemporâneas
de apresentação do sintoma, o que se convencionou denominar novos sintomas, sintomas
contemporâneos. Nesse viés, procuramos investigar se a violência poderia ser aproximada a
eles. A violência como sintoma, também teria uma vertente obsessiva, como um querer
gozar sobre um querer dizer, ou seja, o gozo se sobrepondo ao sentido. Essa denominação –
novos sintomas – surge para falar das novas apresentações sintomáticas onde impera a
proliferação dos gozos fora do dizer. Essa formulação abarca uma certa quantidade de
fenômenos da clínica como a bulimia, a anorexia, a doença do pânico, as toxicomanias,
entre outras, que expressam maneiras de gozar mais ligadas às impulsões e às atuações do
que às organizações sintomáticas articuladas pela palavra.
Os novos sintomas não são sintomas no sentido clássico, eles não possuem como
função uma ordenação do gozo, ao colocá-lo circunscrito pelo seu envelope formal. Na
verdade, eles, ao contrário, expressam um gozo desligado das formações do inconsciente,
um gozo à deriva do Outro da linguagem, portanto, formações sintomáticas nas quais não
há enigma, onde nada intriga, onde não há busca pelo saber. Conseqüentemente, esses
sujeitos não querem saber, não pensam, eles agem. Agem seja por atuações que violentam
seu próprio corpo, como nas anorexias, bulimias, toxicomanias, onde “flertam” com a
morte, ou por atuações onde violentam o outro, nas passagens ao ato, impensadas. Assim,
formulam-se os sintomas contemporâneos e propomos a hipótese de que a violência no
contemporâneo teria essa mesma constituição. Em outras palavras, se a violência como
sintoma porta uma condensação entre a verdade própria do sujeito e o gozo, ela, pela sua
constituição, ou seja, como um valor de gozo sobreposto ao valor de sentido, seria também
um sintoma contemporâneo.
5.3.1 – Do sintoma freudiano aos sintomas contemporâneos
A questão dos sintomas contemporâneos, para a psicanálise, gira em torno da
substituição do valor de gozo por um valor de sentido (MILLER, 1997, p. 09). Em outras
palavras, como passar do sintoma-gozo ao sintoma como sentido, como significado do
Outro – s(A)? O sintoma como analítico implica uma formulação no campo do sentido no
lugar da vontade de gozo dos sintomas mudos da atualidade (BESSET, 2005).
J.-A. Miller (idem) chama a atenção para o fato de que na época de Freud, época
que ele denomina como “Vitoriana”, o que dizia respeito ao gozo era da ordem do privado
– não se comentava nem se mostrava. Nessa época a repressão era o que importava à
estrutura da sociedade. Junto à repressão social, Freud abordou o recalcamento –
Verdrängung – e o elevou ao status de conceito com sua Metapsicologia (1915). Tal
recalcamento era o fundamento mesmo do sintoma neurótico em seu tempo.
Nesse contexto, os ideais da sociedade eram regidos e regulados pela função paterna
que já se encontrava em declínio, mesmo naquela época. Este declínio, confirmado no
contemporâneo, tem como conseqüência a diluição da lei e dos ideais formulados pela via
da função do pai. Isso, por sua vez, contribui para formar um contexto onde é visível o
aumento da escolha de objetos oferecidos pelo mercado pelo viés do gozo. Em outras
palavras, observa-se a prevalência do gozo, o empuxo ao gozo no contexto da civilização
científica do contemporâneo.
O estado atual nada tem a ver com o “Vitoriano” da época de Freud. O vetor da
cultura assim o indica: para gozar, não mais necessitamos da repressão social sobre o
desejo e sobre o dizer. Portanto, parece que prescindimos do sintoma. Segundo J.-A. Miller
(in op. cit.), cada vez mais a vontade contemporânea do gozo passa pela permissão social.
Antes, gozava-se da interdição, da censura, com as formações do inconsciente e, nesse
sentido, com o sintoma entendido como um modo de gozo do que era recalcado, esquecido
e não assimilável ao eu. É o que formula Lacan, em sua já citada definição do sintoma: um
modo de gozar do inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina (in op. cit.).
Era então um gozo mais ligado ao significante, ao falo e à relação que se estabelece
entre o falo, a castração, o Édipo e a função paterna, cujo fundamento era temperar o gozo e
passá-lo às formações do inconsciente, onde era possível decifrá-lo. Hoje, presenciamos o
que poderíamos chamar de uma exigência de dizer (MILLER, in op. cit.): “faz parte do
sentido comum de hoje, a idéia de que ‘se deve falar do que anda mal’” (idem). Sancionouse a crença popular que ficaremos doentes caso não falemos do que anda mal. O empuxo ao
tudo-dizer inspira todas as produções da cultura.
É um tudo-dizer que se afasta das conseqüências do dizer, não quer saber delas. É
um tudo-dizer, herdeiro da concepção pré-analítica da catarse e da ab-reação, mas que não
quer se saber implicado naquilo que diz, como se ao Outro fosse imputada a
responsabilidade do que lhe acontece. É um gozo da exibição pelo tudo-dizer, ao mesmo
tempo que um gozo da vítima, vítima por qualquer motivo. Nesse sentido, torna-se um
tudo-dizer considerado em si mesmo um tratamento. A máxima que se veicula na
atualidade é: “quando algo vai mal deve-se falar disso” (MILLER, in op. cit.). Nosso
cotidiano está repleto do tudo-dizer que circula pela mídia, muitas vezes sob a forma de
reality shows, como um imperativo de gozo.
Vislumbra-se, então, uma cultura fundada sobre o empuxo do dizer do gozo. A
conseqüência é trágica. Assistimos, por exemplo, ao império da toxicomania, na qual os
sujeitos não têm vergonha de se dizerem usuários, dependentes ou mesmo traficantes. O
gozo parece generalizado. Tomemos as toxicomanias como paradigmáticas do gozo no
contemporâneo. Estas não dizem respeito ao que Freud formulou como sintoma, mas se
constituem numa prática de gozo. É um gozo sem limites que prescinde do Outro (MILLER
e LAURENT, 1997) e, portanto, da palavra. Um gozo que tem relações com a violência
quer no uso da droga, quer em sua veiculação.
Para J.-A. Miller (e LAURENT, 1997), a questão situada em relação aos sintomas
contemporâneos está relacionada à ampliação do conceito de sintoma. Para ele “o que
chamamos de novos sintomas diz respeito, sobretudo, a que a psicanálise se apodere de
novos dados, se estenda e que ela estenda o sintoma.” (idem). Tal extensão permitiria que a
psicanálise pudesse incluir no conceito de sintoma essa nova versão, cuja prática de gozo
não se dirige ao Outro. Nesse sentido, a toxicomania seria um bom exemplo, posto que
participa desse empuxo ao gozo que não se liga ao dizer. A questão para a psicanálise, em
nosso tempo, é como trabalhar nesse conflito: de um lado, a prática de dizer do dispositivo
analítico e, de outro, o não dizer dos novos sintomas – sintomas mudos.
J.-A. Miller (e LAURENT, 1997) chama a atenção para uma indicação de Lacan a
esse respeito, ou seja, “o modo de gozar contemporâneo [que] depende essencialmente do
mais-de-gozar”. Isso aponta para o que temos hoje, a saber, sujeitos que vivem sem ideais,
narcisicamente voltados para seu eu no individualismo moderno (MILLER, 2000, p. 103).
Sujeitos que prescindem do Outro para gozar, em função de “um curto-circuito que faz a
entrega imediata do mais de gozar.” (MILLER e LAURENT, in op. cit.).
No Seminário que J.-A. Miller e É. Laurent (1997) ministraram em conjunto, os
autores propõem que cabe introduzir, nessa dificuldade, a dimensão essencial do sintoma
conforme nos mostra Lacan em R.S.I. (in op. cit.), ou seja: “é preciso acreditar nisso para
que aí haja sintoma.” (MILLER e LAURENT, in op. cit.). A resistência do sujeito em
buscar o sentido de seu sintoma estaria no fato de lhe parecer não haver sentido em seu
sofrimento, mas apenas compulsão ao gozo. Para J.-A. Miller e É. Laurent (idem), é a
crença do analista no sintoma, à qual associamos seu desejo em sustentar a hipótese do
inconsciente, que pode levar o sujeito a pensar. Pensamento inconsciente indicando haver
um sentido no sintoma. J.-A. Miller (1997, p. 09) diz: “O fenômeno dessa crença constitui
o sintoma como analítico; um sintoma existe como analítico se quer dizer algo”.
Os sintomas contemporâneos, apesar de seu mutismo e de sua maneira de gozar sem
o Outro, uma vez se tratando de algo que afeta um sujeito, podem ser, de algum modo,
acessíveis pela palavra. Resta dar espaço, na experiência, para que possa surgir um sujeito
como resposta do real. Por essa razão, o psicanalista acredita na possibilidade de
transformar um sintoma contemporâneo em um sintoma analítico. Mas isso, certamente
dependerá do consentimento do sujeito para que a ele se cole um sintoma como significado
do Outro e como enigma. Por outro lado, há a manobra do analista em possibilitar o
estabelecimento da transferência como amor ao saber (BESSET, 2006), além de ter
condições de acolher um nada a dizer em um primeiro momento.
Com essa reflexão, propomos que os sintomas contemporâneos e, nesse sentido, a
própria violência, possam ser transformados em sintoma analítico. Em termos clássicos, a
violência seria entendida como uma passagem ao ato, na qual, num impulso, o sujeito
levaria ao extremo o impossível de dizer que o atravessa, como um curto-circuito da
palavra que retorna do real, um gozo que escapa ao sentido. Nossa proposta é situar a
violência mais além da passagem ao ato, ou seja, situá-la como sintoma que condensa uma
verdade sobre o desejo indizível do sujeito e o gozo que lhe concerne. Interessa-nos, aqui,
definir a violência primeiramente como gozo que escapa ao sentido, além disso, ao
conceituar passagem ao ato e acting out, procuraremos discutir o que a manobra da
transferência permite, no dispositivo analítico, ao localizar um significante surgido para o
sujeito que, num dado instante, passou ao ato violento – ou que sofreu desse ato.
5.3.3 – Passagem ao ato, acting out e sintoma
Segundo P. Kaufmann (1996, p. 55), a expressão “passagem ao ato” é utilizada para
designar certas modalidades do agir caracterizadas pelas impulsões. A expressão
“passagem ao ato” é designada para sublinhar a violência e o traço de instantaneidade
próprio a diversas condutas que impelem o sujeito à ação e o ultrapassam: a agressão
violenta, o delito, certas condutas perversas etc.
O termo alemão Agieren, que Freud (1914) utilizou para designar certas atuações do
sujeito ao invés da lembrança recalcada, possui duas acepções: passagem ao ato e acting
out. Tais acepções serão diferenciadas por Lacan em seu Seminário, livro 10, A angústia
(1962-63[2005]).
ü Sobre a passagem ao ato ou como sair de cena
Lacan é quem procura delimitar melhor a expressão “passagem ao ato” e diferenciála do acting out, ao designar a primeira como uma saída de cena em que o sujeito, como
num salto para o vazio, se reduz a um puro objeto excluído ou rejeitado do Outro. Trata-se
de um ato não simbolizado pelo qual o sujeito desemboca numa situação de ruptura radical.
Ele, então, se identifica ao objeto a como um objeto excluído ou ejetado da cena simbólica.
Para Lacan, a passagem ao ato diz respeito a uma ruptura do quadro da fantasia e a
uma expulsão do sujeito. Esse quadro é o que relativiza a relação do sujeito com o real e
com a angústia. Nesse sentido, tanto a passagem ao ato quanto o acting out são duas
maneiras de o sujeito tentar fazer barreira à angústia.
No Seminário sobre a angústia (LACAN, in op. cit.) Lacan situa em um quadro
esquemático os termos da passagem ao ato e do acting out. Como dissemos, eles expressam
modalidades diferentes de barrar a angústia. Para Lacan, a passagem ao ato é a última
barreira contra a angústia (ZANOTTI, 2006). Mostremos o esquema de Lacan (idem, p.
22):
Dificuldade
(Estado[?])
Inibição
Impedimento
Emoção
Sintoma
Efusão
X [Acing out]
Embaraço
X [Passagem ao ato]
Movimento
Angústia
[Perturbação]
O exemplo privilegiado de Lacan em relação à passagem ao ato é o que Freud
apresenta com o caso da Jovem Homossexual (FREUD, 1920). Diz Lacan (in op. cit., p.
123):
Lembro-lhes que essa análise evidencia que foi essencialmente em torno de
uma decepção enigmática, concernente ao nascimento de um irmãozinho na
família, que a moça se orientou para a homossexualidade, sob a forma de um
amor expansivo por uma mulher de reputação suspeita, perante a qual ela se
conduz, diz-nos Freud, de maneira essencialmente viril.
Para ele, Freud acentua, com seu relato do caso, a função do amor cortês. O
comportamento da Jovem Homossexual é o de um cavalheiro obstinado e apaixonado por
sua Dama. Tudo faz por ela contentando-se com muito pouco em troca. Lacan nos diz que
ela até prefere que as coisas sejam assim. Inclusive, ele nos chama atenção para a atitude da
jovem cuja meta suplementar, meta esta que reforça seu amor, é salvar a dama de seu
destino pouco afortunado.
Lacan assinala ainda o fato de Freud reconhecer nessa ligação amorosa um desafio
que visava o pai da jovem. Essa ligação, desaprovada pelo pai e de conhecimento público,
chega ao fim através de um encontro. Nesse encontro, a jovem, em companhia de sua
Dama, cruza com o pai, na rua. Este lhe lança um olhar irritado. A dama, por sua vez, ao
ver que a situação estava se tornando insustentável, diz à jovem que parasse por ali, ou seja,
termina com ela. A partir daí tudo acontece e com muita rapidez. Diante da decepção
amorosa e da reprovação do pai, a jovem atira-se de uma ponte.
Lacan nos diz que se trata de “um pequeno fosso em cujo fundo estão os trilhos de
uma estradinha de ferro já desativada [em Viena]. Foi nisso que a moça se lançou,
niederkommt, deixou-se cair.” (idem, p. 123-4). O termo privilegiado por Freud, nesse caso,
e que é retomado por Lacan é niederkommen, cuja tradução seria “dar à luz”. Assim, Freud
acentua a analogia entre o ato da jovem com o parto – parir um filho do pai. Lacan se
utiliza da tradução literal do termo que seria “vir a baixo”, “despencar”, para dizer da
relação do sujeito com o objeto a, um “relacionamento súbito” (idem, p. 124), quando o
sujeito se encontra identificado a esse objeto.
Lacan formula, ainda, que o salto para a morte dessa paciente de Freud é dado
quando se consuma, de forma absoluta para o sujeito, “a conjunção do desejo com a lei”
(idem). É o que acontece em seu encontro com o pai na rua. Não basta o olhar de irritação e
desaprovação do pai para que a jovem passe ao ato se jogando nos trilhos. É o próprio
Freud que nos conta: a jovem se vê profundamente decepcionada com seu pai quando nasce
seu irmão mais novo. Ela queria ter um filho de seu pai e este, além de não o dar, o terá
com outra mulher, sua mãe. Estamos em plena constelação edípica e já vislumbramos algo
que diz respeito ao declínio da função paterna, pois esse pai mostra claramente que se
encontra insuficiente para transmitir a lei para sua filha, razão pela qual recorre a um outro
pai para ajudá-lo nessa tarefa – Freud.
Enfim, Lacan nos mostra que, por sua decepção com o pai, a jovem empenha-se em
fazer de sua castração o sacrifício, ao entregar seu amor a uma outra mulher como se fosse
um cavalheiro destemido. Assim, ela se faz suporte do que supõe faltar no campo do Outro,
ou seja, haver efetivamente uma garantia de que o desejo do pai seja a lei, de que possa
existir uma glória do pai. Em outras palavras, ela se faz o suporte do falo absoluto, escrito
como phi maiúsculo (
a forma de como seria a decepção e a
vingança dessa jovem em relação ao pai, situando ali o grande phi:
Já que fui decepcionada em meu apego por ti, meu pai, e que eu mesma não
possa ser tua mulher submissa nem teu objeto, é Ela que será minha Dama, e,
quanto a mim, serei aquele que sustenta, que cria a relação idealizada com o
que foi repelido de mim mesma, com o que, de meu ser de mulher, é
insuficiência. (idem).
O olhar do pai na cena em que se encontram é decisivo para a passagem ao ato
dessa moça. Ela se sente sem valor e numa situação de “embaraço supremo” (idem, p. 125).
Logo em seguida, surge a emoção que se apodera dela ao se sentir impossibilitada de
enfrentar a decisão tomada por sua Dama – era melhor terminar com aquilo. Assim, nesse
caso, ocorrem as duas condições que Lacan considera essenciais para a passagem ao ato: a
primeira, que o sujeito se encontre em uma situação de identificação absoluta com o objeto
a, como um resto ao qual o sujeito se reduz; a segunda, haver o confronto do desejo com a
lei. Em outras palavras, um confronto do seu desejo pelo pai com a lei que se faz presente
no olhar deste pai sobre ela. Um olhar de desaprovação.
Na referida cena, no momento do olhar do pai e do abandono de sua amada, a jovem
homossexual se acha definitivamente identificada ao objeto como um objeto rejeitado,
decaído, que a impele para fora da cena do Outro. “É isso, somente o abandonar-se, o
deixar-se cair, pode realizar.” (idem, p. 125). Em francês Lacan utiliza laisser tomber. Em
nota, o tradutor nos diz que se trata de uma expressão idiomática que pode ser traduzida por
abandonar, largar de mão, negligenciar, deixar cair, deixar de mão etc. Já se laisser
tomber, em sua forma reflexiva, pode ser deixar-se cair, despencar. Portanto, todos
funcionando como significantes que se ligam ao niederkommen que Freud extrai desse caso
princeps.
Lacan assinala a função de resto do objeto a e nos diz que o “largar de mão é o
correlato essencial da passagem ao ato” (idem, p. 129). A passagem ao ato está do lado do
sujeito, uma vez que, tomando a fórmula da fantasia –
s/ <>a –, é um sujeito apagado ao
extremo pela barra de sua divisão subjetiva. O momento da passagem ao ato é o de máximo
embaraço para o sujeito. A isso ainda se acrescenta a emoção e também um máximo de
movimento27. Na passagem ao ato, o sujeito não tem espaço nem tempo para pensar. Logo,
sem alternativa, ele age. Trata-se de um ato que se pratica em um instante. É um instante
em que “ele [o sujeito] se precipita e despenca para fora da cena.” (idem).
27
Conforme o quadro esquemático apresentado por Lacan em seu Seminário sobre a angústia (196263[2005], p. 22).
O caso da Jovem Homossexual de Freud não é o único que diz da passagem ao ato.
Lacan se refere também ao caso Dora (FREUD, 1905). Assim como a jovem homossexual,
trata-se de uma adolescente, Dora, que se encontra em uma situação onde se vê como um
puro objeto deixado cair fora da cena dramática do desejo, pelo Outro. Dora passa ao ato no
momento em que se encontra em uma situação de embaraço, quando o Sr. K. lhe diz:
“Minha mulher não é nada para mim”. Ela passa ao ato dando uma bofetada nesse homem
que a faz se ver identificada a um puro objeto.
Assim ela sai de cena. É uma fuga diante do embaraço e da emoção que dela se
apossa, uma vez que se vê rejeitada, recusada, ejetada do Outro. Lacan nos diz que o sujeito
“vira fumaça (idem, p. 130) e, é claro, retorna, o que talvez lhe dê ensejo de ser
valorizado.” (idem). Para Dora, Lacan considera que a função do a – função de resto – foi
tão prevalecente que ela passou ao ato, mas articulada a uma relação simbólica que Freud
soube compreender muito bem. (idem, p. 127). Uma relação simbólica marcada pela
ambigüidade de Dora – a quem ela ama, o Sr. K. ou a Srª K.?
ü O Acting out e a encenação
No acting out se trata de algo bem diverso. Retomando o caso da Jovem
Homossexual, Lacan nos mostra que se a tentativa de suicídio da moça é uma passagem ao
ato, por outro lado, toda a aventura com sua Dama, da qual está enamorada como objeto
supremo numa espécie de amor cortês, é um acting out. Quanto à Dora, se sua bofetada no
Sr. K. é a passagem ao ato, todo o seu comportamento ambíguo com os K. é um acting out.
Assim, poderíamos dizer que enquanto a passagem ao ato se dá em um instante, o acting
out tem uma duração no tempo, ele se estende em uma encenação que se dirige ao Outro e
pede interpretação.
Essencialmente, no acting out algo é mostrado através da conduta do sujeito. Tratase, nessa mostração, de um direcionamento, uma orientação para o Outro, ou mesmo um
endereçamento ao Outro. No que concerne à jovem homossexual, quanto mais escandaloso
se tornava seu caso com a dama, mais sua conduta se acentuava. Todavia, a conduta em si
não é o que interessa, mas o que ela encobre. No caso da jovem homossexual, era como ela
se devesse mostrar ao pai como se ama uma mulher. Decepcionara-se com seu pai por este
não lhe dar o filho que queria. Mas não se tratava de um filho que viesse satisfazer seus
anseios maternos, uma vez que esse filho equivaleria, para ela, a um falo, um substituto do
objeto a “como queda, como faltante.” (idem, p. 138).
Uma vez fracassado seu intento em realizar seu desejo, ela o realiza mesmo assim,
mas de outro modo – ela se torna o amante. Para Lacan, ela “coloca-se naquilo que ela não
tem, o falo, e, para mostrar que o tem, ela o dá.” (idem). Nesse sentido, ela é para a dama o
cavalheiro obsequioso, ela banca o homem que sacrifica aquilo que supostamente teria, ou
seja, o falo.
Ao discorrer sobre o fato de o acting out ser essencialmente uma mostração, Lacan
assinala tratar-se de uma montagem velada, mas não velada de todo – ele quer dizer algo da
verdade inconsciente do sujeito. Desse modo, através do acting out o inconsciente pode
mentir, pois este diz outra coisa que só pode efetivamente aparecer com a interpretação.
Nesse sentido, segundo Lacan, o essencial no acting out é o resto, sua queda, o que sobra
da história. Mostra, então, que entre o sujeito,
s/ , e o Outro, o que surge é o resto, o objeto
a, como a libra de carne a ser paga para que se possa advir como sujeito do desejo. Esta é a
marca do acting out, a libra de carne a ser cobrada, o objeto pequeno a como resto e como
causa do desejo.
Para Lacan, o exemplo mais significativo de um acting out é o caso de Ernest Kris,
que ele já havia comentado em seu escrito A direção do tratamento e os princípios de seu
poder (LACAN, 1961[1998]) como: o caso do homem dos miolos frescos. O paciente de
Kris se mortificava, acusando-se de plagiário. Kris discorda e, de forma veemente, afirma
que ele não é um plagiador, pois leu seu livro e constatou que se tratava de um livro de fato
original, e afirma ainda que os outros é que copiavam seu paciente. Essa intervenção feita
sobre um dado de realidade não produz nenhuma mudança na certeza do paciente de que
ele é um plagiador. Terminada a sessão, relata Lacan, o paciente, ao sair do consultório,
tem um desejo súbito de comer miolos frescos (idem, p. 139). Diz Lacan: “Com os miolos
frescos, o paciente simplesmente faz um sinal para Ernest Kris: tudo o que o senhor diz é
verdade, mas simplesmente não toca na questão; restam os miolos frescos. Para mostrá-los
ao senhor vou comê-los ao sair, para lhe contar isso na próxima sessão.” (idem).
Quer ele se dê dentro ou fora da situação analítica, um acting out diz respeito à
reprodução de um clichê ou a uma encenação inconsciente que, por sua vez, possui uma
dimensão transferencial, como uma mensagem dirigida ao Outro. Nesse sentido, o acting
out pode tanto se constituir em um apelo quanto em um desafio, o que marca sua
incapacidade de ser traduzido em palavras, estando fora da dimensão do dizer. Algo fugiu
ao manejo do analista e, com o acting out, o sujeito demanda interpretação.
ü Acting out e sintoma
Com relação ao acting out, Lacan se questiona sobre sua interpretação. Para ele, o
acting out clama pela interpretação, o que é contrário à questão do sintoma. O sintoma, por
natureza, não requer interpretação. Nesse sentido, ele só pode ser interpretado sob
transferência. Faz-se importante a introdução do Outro no tocante à interpretação do
sintoma, ou seja, é importante que se tenha estabelecido a transferência. O sintoma não é
um apelo ao Outro (LACAN, in op.cit., p. 140). Nele, diferentemente do acting out, não se
trata de uma mostração para o Outro. Ele é gozo, Lacan fala em um “gozo encoberto”
(idem) que se basta sozinho. É um gozo que ultrapassa os limites do princípio do prazer,
razão pela qual ele traz para o sujeito um certo desprazer – Unlust.
Lacan situa o acting out no começo da transferência, como uma transferência
selvagem, fora do campo analítico. Em outras palavras, a transferência sem análise seria o
acting out, enquanto que o acting out sem análise é a transferência (idem). A questão é de
saber como domar a transferência selvagem, “como pôr o cavalo na roda para fazê-lo girar
o carrossel.” (idem). Ou seja, Lacan situa como um ponto importante para o qual se deve
estar atento a questão do manejo com o acting out. Ao se oferecer à interpretação, não é o
sentido desta que importa, mas o resto, o que aí funciona como resto.
Ao falar da dificuldade em impedir que o sujeito faça acting outs, ou de como
limitá-los, e se referindo à análise em “seu aspecto de seguro contra acidentes” (idem, p.
142), Lacan enfatiza justamente a possibilidade de haver acidentes e a responsabilidade do
analista diante de uma tal situação. Diz ele: “trata-se de um acting out, logo dirige-se ao
Outro, e, quando se está em análise, dirige-se ao analista. Se ele ocupou esse lugar, pior
para ele. Afinal ele tem a responsabilidade que cabe ao lugar que concordou em ocupar.”
(idem).
Logo abaixo ele fala do desejo do analista. Perguntamo-nos então até que ponto o
desejo do analista estaria implicado em possibilitar ao sujeito estabelecer-se na
transferência, a tal ponto que tanto o acting out quanto a passagem ao ato pudessem passar
ao campo do dizer. Este parece ser o desafio no que diz respeito aos sintomas
contemporâneos, situando, entre eles, a violência.
5.4 – Violência e sintoma analítico
Em seu Seminário, livro 14, A lógica da fantasia (1966-67)28, Lacan, partindo da
divisão do sujeito entre alienação e verdade, se apropria do cogito cartesiano: “eu penso,
logo eu sou”, para tratar da questão do sujeito, do ser e do inconsciente, assim como da
lógica do tratamento analítico. Ele constrói, então, um quadrângulo (conforme o esquema
acima) e, em cada vértice desse esquema, situa um termo diferente. Ele começa pelo vértice
ao alto e à direita, colocando ali a repetição (Rp).
Nesse quadro, o vetor da transferência aparece situado como uma das diagonais do
retângulo. A questão da transferência implica a noção do sujeito suposto saber como seu
suporte, o que, por sua vez, irá definir o que seria propriamente o sintoma analítico. Esse
vetor da transferência sai do vértice onde se situa a repetição e vai até o ponto onde se
encontra o objeto a e o (– ϕ) da castração, no lado esquerdo e abaixo.
Então, na extremidade desse vetor, Lacan escreve dois termos: o objeto a da fantasia
e, ao seu lado, o (–ϕ), ou seja, a castração. Nesse esquema, Lacan formaliza as coordenadas
do sintoma, da transferência como suposição de saber, da fantasia e da pulsão, em relação
ao objeto a. O que chama atenção é que no vértice onde se encontra o objeto a e o (–
ϕ), Lacan não escreve a fantasia, mas situa aí a sublimação. No presente trabalho, não
entraremos em detalhes sobre esse ponto, pois isso fugiria à nossa questão no momento.
Ao lado do vértice da repetição, Lacan subverte o cogito cartesiano, retira o “logo”
e coloca sobre cada proposição uma negação: “ou eu não penso, ou eu não sou”. Escreve:
“Eu penso, Eu sou”, para, logo em seguida, acrescentar sobre cada um dos termos da
proposição cartesiana a marca lógica da negação:
28
Lição de 22 de fevereiro de 1967, inédito.
______ ______
“Eu penso, Eu sou”
Subvertendo o Cogito cartesiano ao inscrever nele uma dupla negação sobre o eu,
Lacan introduz dois elementos diferenciais: primeiramente, situa, de um modo particular, a
relação entre o objeto a e o ser. Em segundo lugar, articula esse objeto com a castração,
designada aqui como (– ϕ). Tal articulação permite tomar a castração como um limite ao
gozo o que, por sua vez, se articula com o pensamento inconsciente. Em outras palavras, do
lado do objeto a, Lacan situa o ser e do lado do (– ϕ), do lado do falo e da castração, situa o
pensamento inconsciente.
É uma ilustração da divisão do sujeito. Com isso ele faz uma separação entre o
pensamento e o ser: “penso onde não sou e sou onde não penso”. O pensamento e o ser vão
se separar em duas direções diferentes: por um lado (uma seta horizontal), “eu não penso” e
por outro (uma seta vertical), “eu não sou”. Com essa dupla negação, é o eu que sofre seus
efeitos, ou seja, é sobre o eu que ela recai. Nesse sentido, Lacan faz notar que há um
pensamento fora do eu, assim como há um ser que não coincide com o eu.
O vetor horizontal, ligado ao “eu não penso”, Lacan chama de “passagem ao ato”.
Alguém passa ao ato no mesmo ponto onde não pensa, onde ele não é falado, pensamento
utilizado como uma definição para o inconsciente. Aquele que passa ao ato, por definição,
não pensa. Aquele que passa ao ato faz de si mesmo um objeto de uma ação (LACAN,
1962-63[2005], p. 125). Lacan designa o vetor horizontal como “alienação”: o sujeito está
alienado em seu ser. Ele não quer pensar, ele quer ser alguma coisa: um objeto.
O vetor que vai da repetição ao “eu não sou” (o vetor vertical), é o vetor da verdade.
Também saído da repetição, esse segundo vetor conduz ao que Lacan chama o acting out.
No acting out, é como se sujeito enunciasse: “eu não sou” ao invés de “eu não penso”. Ele
pode dizer: “não faço o menor caso do que me acontece”. Uma denegação não é um “acting
out”, mas tanto um quanto outro decorrem do inconsciente, portanto decorrem da aposta
fálica. Assim, o objeto que estava no alto e à esquerda passa a se situar em baixo e à direita,
no “eu não sou”, com a noção do falo. Desse modo, no quadrângulo, Lacan escreve a
conjunção do objeto e do falo no vértice embaixo e à esquerda.
Portanto, “eu não penso”, escreve o objeto e o ser. “Eu não sou”, escreve o “eu não
dou a mínima para esta história de castração”. No “acting out”, é o inconsciente que fala.
Nele se pode inscrever o inconsciente. Da passagem ao ato e do acting out, então, partem
dois vetores que conduzem à essa conjunção de a com o (–ϕ), conjunção que o final de
análise visa desfazer, levando, ao contrário, a uma disjunção desses elementos.
Através de um segundo esquema (ver acima)29, Lacan irá duplicar o primeiro. O
ponto de partida continua sendo o cogito cartesiano e a repetição, representada pelos
círculos de Euller como “eu não penso”, “eu não sou”. Sobre o novo vetor que vai da
passagem ao ato até o acting out, Lacan irá inscrever a transferência. Ponto interessante a
marcar, pois, quando o sujeito passa ao ato, é o momento em que ele não pensa, mas
também o momento em que quer se afirmar – “Eu sou”; porém, “eu sou” um absolutamente
nada, um ser de puro objeto, que pode se jogar nos trilhos do trem como a jovem
homossexual de Freud, de cujo exemplo, como vimos, Lacan lança mão no Seminário, livro
10, A angústia (in op. cit.).
29
Tais esquemas apresentam ligeiras modificações e foram extraídos além do Seminário, livro 14, A lógica da
fantasia (LACAN, in op. cit., inédito), também de ATTIÉ, J., Sublimação-sintoma? In Carneiro Ribeiro, M.
A. e Barros da Motta, M. (Org.), Os destinos da pulsão: sintoma e sublimação/kalimeros – Escola Brasileira
de Psicanálise – Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1997, p. 156-167 e RABINOVICH, D.,
Clínica da pulsão: as impulsões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004, p. 50 e 68.
Desse lugar da passagem ao ato é possível apelar para o sujeito suposto saber, ou
seja, para o Outro da transferência? De fato, é dos impasses do “eu não penso” que um
endereçamento, como uma demanda de análise, pode produzir-se. Sobre isso, D.
Rabinovich nos dá um exemplo interessante (2004, p. 49-66). Ela fala de uma paciente que
lhe chega sem ter muito que dizer. Queixa-se da vida: dos filhos, do trabalho, do marido,
dos sogros etc. A analista não sabe muito bem o que ela foi fazer ali. A paciente tinha
algumas questões, como seu peso elevado, o fato de estar passando ao ato com crises de
bulimia, mas isso não era uma questão para ela. A coisa se modifica quando a paciente faz
um acting out: ela se esquece de pagar à analista. A partir disso, as coisas começam a se
modificar e a paciente se questiona, inclusive, sobre as recorrentes passagens ao ato que
fazia.
Isso nos conduz a pensar sobre a nova posição da transferência que Lacan escreve
em seu segundo esquema, a qual vai da passagem ao ato, do “eu não penso”, para o “eu não
sou”. É possível que disso surja um sintoma analítico. Em outras palavras, a pulsão, como
demanda, ocorre a partir da passagem ao ato para interrogar o inconsciente. Lacan retoma o
caso Dora para dizer que ao dar a bofetada no Sr. K ela passa ao ato, mas, depois disso, ela
aceita a missão de encontrar-se com Freud (LACAN, in op. cit., p. 137). O mesmo ocorre
com a Jovem Homossexual que é levada a Freud após sua tentativa de suicídio, ou com a
paciente de D. Rabinovich que entra em análise após passar ao ato diversas vezes, quando
se via ejetada da demanda do Outro.
Assim, somos levados a refletir sobre a possibilidade da violência, uma vez
entendida classicamente como passagem ao ato, também poder se tornar um sintoma
analítico em um “só-depois”, momento em que o sujeito pudesse entrar no dispositivo
analítico e, pelo viés da transferência, considerar a violência como um sintoma que lhe diz
respeito. A fim de ilustrar nossa discussão, pensamos em alguns fragmentos de caso de
nossa própria clínica, onde essa aposta pôde ser considerada uma vez que o analista não
recuou, mas, muito ao contrário, teve algo a dizer e a fazer quando diante de um sujeito que
chegou nessa posição ao seu consultório.
Por exemplo, foi o caso de uma jovem cujo pai a xingava recorrentemente e a
expulsou de casa supondo que ela fosse “piranha” – significante que o pai lhe atribuía. Essa
paciente chegou ao consultório com queixa de crise de pânico, diagnosticada pela
psiquiatria. Entre os significantes “síndrome de pânico” e “piranha”, ela escolhe o primeiro
e vive a angústia de não conseguir ficar à vontade na rua. Identificando-se ao significante
“síndrome do pânico” dado pelo Outro do saber médico, essa mulher pode continuar não
querendo pensar em como se encontra, na verdade, identificada ao significante “piranha”, o
qual recusa, tem medo e é rebelde. Em outras palavras, tem medo de ser uma “mulher de
rua”. Subtraindo da equação o significante “mulher”, associado para ela ao significante
“piranha”, podemos propor o seguinte esquema:
Mulher
______
piranha
.
medo de rua
__________
mulher
= medo de rua
__________
piranha
O significante “piranha” ficava escondido e sua significação recalcada, mas disso
essa paciente não queria saber, preferindo procurar um medicamento que a fizesse não ter
medo de rua, sem ter de pagar o preço da implicação que esse saber lhe ocasionaria, ou
seja, o preço de uma perda de gozo. Sobre isso, o sujeito deve consentir.
Outro caso é o de um homem que fica muito angustiado depois de bater
violentamente no pai por não suportar mais os seus abusos e sua violência. Este paciente se
arrepende e se envergonha do que fez, pois, afinal, como poderia bater no pai? Como pôde
ter feito aquilo? Não sabe o que lhe aconteceu, só diz que não viu nada. Quando se deu
conta, o pai estava bem machucado. Agora, esse paciente precisa falar disso e fala a um
Outro que se propõe a ouvi-lo.
Ainda há o caso de uma mulher que durante mais de vinte anos se viu como puro
objeto de uso para um marido cuja violência era muito mais através de palavras e de tortura
“psicológica” do que propriamente violência física. Esse marido a xingava, a depreciava
como mulher e como pessoa, obrigando-a a situações insuportáveis. Foi a partir da
expressão: “Não agüento mais!”, dita por ela em uma entrevista, que foi possível colocá-la
a trabalho. Assim, ela parecia buscar construir um saber que desse conta de seu mal-estar, e
onde sua questão pudesse ficar circunscrita a não querer mais estar nessa posição. Ela
procurava saber a razão de se deixar usar por esse homem violento e se propunha a mudar.
Nesse caso, que durou mais tempo, essa mulher conseguiu algumas mudanças
significativas: separou-se a duras penas, encontrou outro homem que tinha sido seu
namorado na juventude e que fora barrado por sua mãe. Hoje, ela parece sustentar um
desejo que lhe é autêntico.
Os casos clínicos de Freud, como Dora e o caso da Jovem homossexual, nos quais
Lacan destaca as passagens ao ato, servem para ilustrar a possibilidade de se aceitar esses
sujeitos em análise, ou seja, nos mostram que a psicanálise pode fazer alguma coisa. Se os
casos foram ou não bem sucedidos, é uma outra história que não cabe ser discutida aqui.
A hipótese que queremos sustentar com nossa argumentação é a de que: onde
houver a manifestação de um sujeito ou uma manifestação que o atravesse, algo pode ser
feito pelo viés do que nos foi legado por Freud e Lacan. Com isso, pensamos poder levar o
sujeito a produzir um bem-dizer sobre o que o afeta, a fim de que ele consiga sair do
inferno de seu sofrimento. Nesse sentido, em relação ao nosso tema de trabalho, a
violência, sustentamos a hipótese de que ela pode e deve, sobretudo diante do quadro que
presenciamos no contemporâneo, ser considerada um sintoma analítico, ou seja, vir a ser
decifrada num “só-depois”, a posteriori, por ter se tornado, graças à intervenção do
dispositivo analítico, uma questão para um sujeito.
CONCLUSÃO
Privilegiamos a violência como o tema geral de nossa pesquisa. Nosso interesse por
ele surgiu a partir de uma questão que nos inquietava e, por isso mesmo, nos causava, ou
seja, seu caráter de repetição, de insistência, em sujeitos que apareciam na clínica e que
eram, de alguma forma, atravessados pela violência. Além disso, de um ponto de vista mais
amplo, nos deparamos com o fato de a violência ter se tornado um acontecimento
importante em nossa época. Acontecimento esse do qual a psicanálise não poderia recuar,
mas, ao contrário, sobre o qual poderia ter algo a dizer.
Nossa investigação começou por definir o que seria a violência e diferenciá-la da
agressividade. Em seguida, nos preocupamos em discutir como a violência aparece de
forma que consideramos espetacular, em seguida à constatação da queda dos ideais
paternos no interior de nossa civilização. Nesse caminho, refletimos sobre a maneira como
a falência da função paterna provoca um declínio na crença ao Outro. Verificamos, então,
que uma vez estando o Outro cada vez mais incapaz de dar um arrimo simbólico aos
sujeitos na atualidade, esses sujeitos, desorientados por não encontrarem um lugar no
Outro, podem procurar cavar esse lugar utilizando como recurso a violência.
Assim, nossa investigação chegou a um ponto importante, culminando por nos
autorizar a formalizar a violência como um produto do discurso capitalista em sua
articulação com o discurso da ciência. Posteriormente, situamos o entendimento da
violência como um efeito da constituição da subjetividade no contemporâneo.
Subjetividade essa estruturada a partir da submissão do sujeito a esse discurso, cujo
imperativo de gozo é o que comanda, expondo então a vertente obscena do supereu na
atualidade. Esse imperativo parece ter sua expressão tanto na violência quanto nos sintomas
contemporâneos, com sua característica peculiar de nada dizer, mas de querer gozar.
Assim inserimos a violência no mesmo nível dos sintomas contemporâneos.
Achamos de interesse circunscrever o que do gozo estaria implicado, tanto nas diversas
manifestações da violência quanto nos novos sintomas. Com isso, pensamos a violência
como sintoma social e também como uma atuação e uma impulsão, como um excesso cuja
característica principal seria a ruptura dos laços sociais fundados pela palavra. Nesse
contexto, seria importante levar a violência à prática do dizer, tal como ocorre com os
sintomas contemporâneos, que, conforme dissemos, são sintomas mudos nos quais o
predomínio do gozo sobre o dizer é flagrante.
Por conseguinte, consideramos a violência como gozo, entendendo-a, aqui, como
uma satisfação paradoxal cujo estatuto seria o mesmo dos sintomas atuais. Perguntamo-nos
então se a violência poderia ser transformada em um sintoma analítico, isto é, se poderia ser
capturada pelo dispositivo da transferência e tratada com os instrumentos da psicanálise.
Considerar a violência como gozo no contemporâneo nos permitiu pensá-la como um
sintoma atual, e, conseqüentemente, formular a proposta desse mal-estar também vir a ser
acolhido pela psicanálise.
Em nosso estudo, destacamos as formulações de Lacan em seu Seminário, livro 14,
A lógica da fantasia (1966-67). Nelas, Lacan trata de localizar a transferência como uma
modalidade do dispositivo analítico que, no esquema desenvolvido por ele, vai da passagem
ao ato, ou seja, de um “eu não penso”, portanto, “eu sou”, até o vértice onde se encontra o
acting out o qual, ao contrário, é um “penso”. A formulação proposta por Lacan nesse
Seminário, da qual nos apropriamos, mostra a possibilidade de o sujeito, a partir da
passagem ao ato - incluímos aqui as atuações e as impulsões -, num “só-depois”, poder ser
levado a se questionar sobre o que o levou a cometer tal atuação, como nos exemplos da
Jovem Homossexual ou de Dora.
Portanto, trata-se de um posicionamento clínico que propõe ir do “nada a pensar”,
mas apenas gozar de uma posição de objeto que cai da cena do Outro, ejetado como um
nada, a um “pensamento inconsciente” que, uma vez estabelecido, busca questionar o
sujeito justamente sobre essa sua posição diante do Outro. Tal posicionamento, buscando
acolher um sofrimento que não se utiliza da palavra para se expressar, pode levar um
sujeito a se questionar sobre seu mal-estar e a apostar na construção de um saber sobre o
que o afeta.
A proposta de nossa investigação se deve à importância que atribuímos ao fato de
levar esse sujeito a se questionar sobre a violência que lhe concerne e que o atravessa de
alguma forma. Em outras palavras, com o discurso analítico, considerando tanto o seu
alcance quanto seu limite no tocante à violência, procurar levá-la seja como atuação,
passagem ao ato ou sintoma contemporâneo, a uma condição na qual o sujeito possa falar
dela, e, a partir dessa fala, construir um saber sobre a violência que o afeta e da qual goza
sem saber disso.
Assim, sustentamos a hipótese de que o discurso analítico é o que traz uma saída
dos imperativos do discurso capitalista e do discurso técnico-científico, os quais impelem o
sujeito para a alienação, cuja resposta pode ser a violência. Com o discurso do analista e,
através do dispositivo da transferência, seria possível levar um sujeito a amar seu
inconsciente como condição de estabelecer uma relação simbólica através do saber
(BESSET, 2006). Nesse sentido, se faz importante sintomatizar a violência da qual esses
sujeitos se queixam e sofrem para que, como sintoma analítico, ela possa ser tratada.
Qual poderia ser a importância de entender a violência como um sintoma
contemporâneo inserindo-a no nível do sintoma analítico? Tal questão remete à importância
do sintoma para a psicanálise, desde sua conceitualização por Freud, até nossos dias,
quando, apesar de ainda nos pautarmos nas grandes estruturas clínicas: neurose, psicose e
perversão, verificamos a proliferação dos assim chamados sintomas contemporâneos, nos
quais se presentifica o real do gozo, e dos quais a psicanálise não deve ficar alheia nem
tampouco recuar.
O sintoma designa a ex-sistência do sujeito no mundo e mostra a pouca adequação
desse sujeito ao universo que o rodeia, ou seja, o sintoma é a prova da falta de adaptação do
sujeito ao real. As formas como o sujeito se apresenta ao mundo e ao Outro não passam de
formas sintomáticas de ex-sistir no simbólico. Por outro lado, o próprio sujeito ex-siste em
relação ao sintoma, pois nele não habita e, se o faz, é à custa do sofrimento e do mal-estar.
Há uma tensão no sintoma: de um lado, ele é sentido a decifrar, de outro, ele é gozo
enigmático ao qual o sujeito adere como o que há para ele de mais fundamental. Pelo
sintoma é possível ter acesso ao inconsciente, já que “o sintoma não é definível senão pelo
modo como cada um goza do inconsciente, na medida em que o inconsciente determina.”
(LACAN, 1974-75, p. 37). É um gozo sentido como estranho, embora seja o que para o
sujeito lhe é mais familiar. É nesse gozo do sintoma, no entanto, que o sujeito, como
resposta do real, se encontra.
Assim, ao longo de nossa pesquisa, surgiu a questão: o que acontece com o sintoma
nos dias de hoje? Em nosso estudo, verificamos que o declínio do ideal é acompanhado das
exigências de gozo. Assim, nesse estado da civilização atual, a pulsão revela ainda mais sua
face mortífera, como modo de gozo presente tanto nos novos sintomas quanto na violência.
O declínio da função paterna e a falência dos ideais na atualidade produziram um sujeito
aliviado das responsabilidades para com seu desejo e o Outro, tornando-se um sujeito
fagocitado pelo imperativo de gozo da civilização técnico-científica e da política de um
mercado globalizado.
Diante disso, a psicanálise não tem como tarefa aliviar o sujeito contemporâneo de
sua culpa frente ao ideal, mas sim procurar levar o sujeito a consentir em questionar sua
relação com o discurso da civilização contemporânea, além de lhe possibilitar suportar a
inconsistência do Outro, sua ausência de garantias, sem, por isso, ceder ao imperativo de
gozo do supereu. Em 1960, no seu Seminário sobre A ética da psicanálise (LACAN, 195960[1991], p. 382), Lacan discute sobre a questão de não ceder de seu desejo, hoje,
discutimos sobre não ceder ao gozo do supereu, pois o que causa o sujeito na atualidade é
justamente o peso que tem, para ele, sua relação com o gozo.
Assim percebemos o quanto o fato de liberar os costumes e as amarraras que
mantinham o sujeito preso ao recalque e ao sintoma, faz surgir o seu avesso, ou seja, o novo
império do gozo. Isso, porém, não faz do analista um censor, um conservador dos costumes
ou um nostálgico do pai da tradição. Não se trata de ressuscitar o pai para que ele possa
novamente legislar sobre o desejo e o gozo. Não se trata de dizer “sim” ou “não” aos
imperativos do gozo de nossa civilização contemporânea, mas, conforme aponta E. Laurent
(2004, p. 20) comentando sobre Heidegger, dizer “sim” e “não” ao mesmo tempo. Dizer
“sim” diante do impossível de negar os avanços técnico-científicos de nossa civilização, os
quais não têm mais volta, mas também dizer “não” aos excessos, como uma forma de
impedir que esses avanços e os objetos que incitam ao gozo possam nos engolir e minar a
singularidade de cada um.
A questão que se coloca em relação ao discurso capitalista e ao discurso da ciência é
que, com seus avanços e suas ações promovendo um “hedonismo de massa” (idem), eles
fizeram desaparecer a particularidade do sintoma transformando-o em transtornos,
síndromes ou desvios, comum a todos, ou seja, um “para todos”. O hedonismo
generalizado, cuja máxima é um gozo ao alcance de todos, propicia duas formas de se
relacionar com esse gozo: querer gozar cada vez mais, pois a satisfação do gozo exige mais
gozo, ou querer a particularidade do sintoma.
Em contrapartida, a proposta do discurso analítico é dizer “não” ao “pronto-agozar” generalizado que impede o surgimento do particular do sintoma de cada um. Sua
proposta é a de funcionar como uma exceção aos ditames da civilização atual, privilegiando
a singularidade do sintoma e do gozo do sujeito.
O sintoma como significado do Outro, além de sua vertente de gozo que nada pede
ao Outro, constitui-se em uma mensagem enigmática que pode ser lida e decifrada. Assim o
pensa a psicanálise. A experiência do sintoma corresponde a acolher os sujeitos, um a um, a
fim de liberá-los da tirania do gozo “para todos”, característica do discurso da ciência.
O fazer do analista se orienta a partir do real do sintoma, ou seja, sua orientação vai
do sentido ao real. Assim, é um “saber fazer” que se apresenta sob a forma de discurso, e
supõe que o analista tenha serenidade para acolher a demanda particular de cada sujeito
para levá-lo se questionar sobre o gozo implicado em seu sintoma. Serenidade é um termo
que E. Laurent (in op. cit.) toma emprestado de Heidegger, Gelassenheit, em alemão.
Em nossa reflexão, apontamos duas questões que consideramos fundamentais, a
saber: a crença no sintoma e o amor ao inconsciente. O sintoma como real e como modo de
gozar do inconsciente é ainda o que Lacan define como signo do que não anda bem no real
(in op. cit.). Nesse sentido, ele é aquilo que é impossível de ser reabsorvido pelo discurso
do mestre contemporâneo que, por isso mesmo, tenta aboli-lo, erradicá-lo, quer com
medicamentos, psicoterapias ou objetos que prometem o bem-estar.
A proposta da psicanálise é que o sujeito acredite em seu sintoma, acredite que ele
possa dizer algo, que ele é o resultado do encontro sempre traumático do sujeito com o
gozo e, uma vez instalado como fixão30, é também o modo como o sujeito goza. Por fim,
que o sujeito acredite que o insuportável do sintoma possa se transformar em um ponto de
ancoragem para que ele reinvente seu lugar no Outro. Nessa reinvenção, porém, não se
inscreve nenhuma possibilidade de completude com o Outro ou de totalização, tão caras ao
discurso da ciência. A política do sintoma não é uma política do império do Um, não é
totalizável, não faz um “para todos”, não faz grupo, mas privilegia a singularidade, apesar
da tentativa da civilização técnico-científica de produzir grupos monossintomáticos
(RECALCATI, 2005).
Quanto à violência, como dissemos, a psicanálise certamente nada pode fazer no
momento da atuação violenta, nem tampouco pode tratar toda a violência. Isso não impede
30
Neologismo que propõe unir a vertente do sintoma como verdade, uma vez que a verdade possui estrutura
de ficção, e a fixação de gozo que o sintoma porta.
que ela traga o tema da violência para discussão e esteja disponível a acolher aqueles que
assim o queiram e consintam.
Se, por um lado, observamos a permanência dos sintomas classicamente definidos e
conectados a determinadas estruturas, por outro, nos damos conta de que último ensino de
Lacan nos permite enriquecer esse repertório, ampliando a noção de sintoma. Assim, a
psicanálise pôde incluir em seu campo de ação clínica o que se denominou como as
psicoses ordinárias, os inclassificáveis, os traços de perversão presentes nas neuroses, entre
outros.
Acrescentamos, ainda, a gama monossintomática que é reunida sob o designativo de
novos sintomas ou sintomas contemporâneos: pânico, transtornos de déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH), transtorno obsessivo compulsivo (TOC), anorexia, bulimia,
toxicomania etc, entre os quais nossa pesquisa propõe incluir a violência. Essa ampliação
do estatuto do sintoma, segundo E. Laurent (idem), faz parte da orientação da psicanálise
lacaniana para o real.
Podemos então formalizar o fazer clínico do analista como um “fazer acreditar no
sintoma”. Acreditar no sentido enigmático que o sintoma porta e transformá-lo em uma
mensagem dirigida ao Outro, ou seja, torná-lo um significado do Outro. Essa é uma forma
de levar o sujeito a acreditar na legibilidade dos sintomas contemporâneos, podendo ser
extensiva à violência. Tal leitura só é possível quando há um analista implicado nesse laço
social inédito que não se adequa aos ditames da ditadura do gozo.
Portanto, se a crença no pai está em decadência, a via da crença no sintoma é uma
questão que deve interessar à psicanálise em nosso tempo. Crença embasada pelo último
ensino de Lacan, em que o Nome-do-Pai é um sintoma. Essa leitura possibilita a redução do
sintoma por seu endereçamento ao Outro do saber. Permite ainda reduzir o Nome-do-Pai a
um sintoma e fazer do sintoma o fundamento da sustentação do Outro. Nesse sentido, a
ética da psicanálise inclui a política do sintoma, segundo a qual, há que se acreditar no
sintoma e amar seu inconsciente. Crer nisso é, para o sujeito, sua condição de saída da
ditadura do imperativo do gozo superegóico o qual, conforme mostramos, pode se traduzir
em violência.
Em resumo e para concluir, a violência, como assinalamos, se apresenta sob
diversas formas, sejam elas ruidosas, sejam silenciosas. Apresentam-se como atuações
nocivas ao outro ou a si mesmo e são um problema de difícil abordagem. Verificamos que
o gozo implicado na violência está presente tanto no agressor quanto na vítima.
Percebemos, então, que ambos gozam de sua posição, quer como vítima, quer como agente
da violência. Portanto, são gozos que se expressam na passividade ou na atividade.
Pautados em nossas pesquisas propusemos tornar a violência um sintoma analítico.
A fim de avançar nesses estudos e como tema de uma pesquisa futura que apenas
vislumbramos, propomos aproximarmos essas posições daquilo que Freud desenvolveu a
partir sadismo e do masoquismo, visando refletirmos sobre o domínio da vertente
sadomasoquista da pulsão em nossa atualidade. De todo modo, achamos importante refletir
sobre o domínio do traço perverso presente na satisfação e imposto pelo imperativo de gozo
do supereu, assim como sobre as conseqüências que tal dominação pode ter no laço social,
em nossa civilização. Em outras palavras, parece-nos do interesse da psicanálise investigar
as novas formas de apresentações sintomáticas que esse domínio da perversão pode trazer à
clínica. Disso nos surge uma pergunta: será que a psicanálise sobreviveria a essa nova
conjuntura? Enfim, é apenas uma indicação a partir do que pudemos colher ao realizar o
presente trabalho.
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