Kindu – Terra dos Dragões Azuis

Transcrição

Kindu – Terra dos Dragões Azuis
Kindu – Terra dos Dragões Azuis
Eliana Gagliardi
Eu não queria nascer.
Finquei-me dentro da barriga da minha mãe. Não queria sair dali. Muito esforço fizeram
para que eu viesse à luz do dia - muito a mãe, muito as parteiras. Até que me puxaram
para fora.
Então, comecei a berrar, denunciando a minha negação. Mas quem é que nasce sorrindo?
Nunca conheci ninguém.
Deram-me o nome de Ismênia.
Depois, com olhos de criança que foi obrigada a nascer, vi-me, pouco a pouco, um tanto
crescida. Podia intuir descontentamentos. Com ouvidos infantis, ouvia pedidos para que
me desempenhasse com louvores, que seguisse as tradições e as orientações dos
Conselheiros. Com coração de criança, sentia medo de discordar, de pronunciar a minha
palavra e ser castigada.
Cresci calada e medrosa.
Escutei histórias que falavam de seres poderosos, seres de eternidade, estranhos animais.
Animais com corpo de serpente, asas transparentes de um azul luminoso. Aves
gigantescas, celestiais, que voavam pelo espaço em danças circulares, flanando pelos ares,
donas da imensidão. Quando raivosas, cuspiam fogo pelas ventas. Quando amorosas, as
fêmeas botavam ovos e, neles, os machos jorravam a água da vida.
Enredei-me nessas histórias que falavam de lugares fabulosos nos picos mais alto das
montanhas, onde o vento zunia e trazia as nuvens que acinzentavam o céu, sempre
anunciador. Onde, de repente, ele (o vento!), abria um espaço, afastando o escuro para
que a luz incidisse radiosa em Kindu, terra dos dragões azuis.
Dragões azuis – seres guardadores das coisas preciosas como a lua, as princesas e os
tesouros mais valiosos! –, guardiões fiéis! Levavam as donzelas sonhadoras em suas
magníficas asas e com elas passeavam no firmamento em voo calmo e deslizante.
Depositavam essas jovens em um jardim oculto nos labirintos das montanhas, sob
macieiras, entre rebanhos de carneiros e ovelhas. Um jardim cuidado por seres diáfanos e
protegido pelos azulados.
Cresci calada, medrosa e sonhadora. Também, bordadeira.
Sentar, pegar a agulha, as linhas (de seda, de algodão... de lã... de linho...), escolher as
cores. Tramá-las em pontos de desenhos - ponto reto, rococó e haste. Ponto cruz para
enfeitar a toalha, caseado para unir tecidos. Ponto ajour para as bainhas dos lenços de
cambraia, ponto atrás para enfeitar panos de prato.
Enquanto bordava em pontos variados, em gestos calmos e pacientes, eu pensava que
bordar era arte de criar desenhos e figuras (não carecia seguir o riscado), de criar
o almejado, trazer os impossíveis, tecer a vida em quimeras. Bordadeira, eu crescia e
alinhavava meu tempo em histórias e pensava que a vida era trabalho demorado. Sempre
calada, medrosa e sonhadora, ponto por ponto, cor por cor ornadas, ia inventando a alma.
Minha aldeia ficava em um braço de mar que, afogando um rio e invertendo seu curso,
tinha corroído os penhascos, as paredes de granito, esculpindo nelas – pelos milênios –
grutas e túneis por onde pequenas embarcações podiam navegar. E as embarcações
deslizavam por esses caminhos de silêncios retumbantes, de sons congelados de
trombetas que ecoavam pelos espaços de alturas abissais. Grutas de ecos ocultos, canais
do tempo, portais para o transcendente, moradas dos anjos esguios. Mar de água fria e
profunda, ele acomodou-se em pequena baía. Recebia os navios em seu porto. Cascos,
velas e mais velas enfunavam-se em partidas e chegadas, movimentando-se pela
suavidade das águas turquesa.
Certa feita, meu pai foi levar um carregamento de bordados ao porto da aldeia vizinha, um
pequeno povoado costeiro. Fui com ele para sentir o vento empurrar o barco e murmurar
orações. Deslizamos pelas águas do único corredor de saída para o mar aberto, contornado
e represado pelos paredões rochosos. Ao alcançá-lo, navegamos para o sul, seguindo a
estrela Izi, a mais vermelha, a cor de fogo.
Não muito distante de nosso destino, a tempestade abateu-se sobre nossa embarcação.
Violenta, zunia. Fazia rolar nossa carga, encharcava os tecidos e desfazia os nós das linhas
tecidas com cuidado. Açoitou o barco e a tripulação. Arrastou-nos. Levou-nos em direção
às rochas próximas à costa, esmigalhou o barco e nos jogou nas águas violentas.
Desistimos de lutar e nos entregamos ao mar.
Quando dei por mim, estava em uma estreita praia. Ao meu lado... um dragão! Azul. Olhei
em seus olhos, mesmo sabendo que não devia fazer isso (dizem que encantam,
enfeitiçam). Olhei diretamente, sem medo, e disse:
– Sou Ismênia, aquela que carrega tristeza e sonhos.
Ele apresentou-se:
– Sou Immaru Asbu, aquele que traz a luz e, também, as trevas.
– Vivo na terra dos homens – continuei. – Nela, para obter o pão de cada dia, um castigo
divino, trabalhamos desde crianças. Para sobreviver, muitas vezes nos calamos. Poucos
escapam dessa condição. Antes de nascer, já me perguntava: “Por que ir ao mundo se
onde estou, no redondo da natureza, sou completamente feliz?” Não queria outro estado,
mas, enfim, nasci e justamente na terra dos homens.
– Nasci nas terras dos dragões – contou-me a criatura. – Muitos de nossa espécie habitam
ilhas distantes e voam como gaivotas no mar. Amam-se em silêncio. Outros fazem de lagos
e pântanos a sua moradia. Brigam entre si, trovoando os céus. Muitos outros dominam as
águas e, quando percorrem as entranhas dos oceanos, provocam maremotos. São de cor
vermelha, amarela ou negra e não azuis como nós que habitamos as montanhas de Kindu.
Vivemos entre a terra dos homens e o céu.
– Moro perto do mar, em uma aldeia – eu disse. – Ela se estende em subidas, caminhando
para o alto dos escarpados. Esconde-se por entre florestas, onde a luz insiste em
embrenhar-se para recair por sobre as casas, templos e no cais, dourando e brilhando as
madeiras em bronze transformadas. Nela, os homens pescam e as mulheres bordam.
Enquanto trançam os pontos, elas cantam canções dos grandes feitos de nossos heróis:
daquele que enganou um exército de invasores, do outro que venceu um tirano. Também
contam histórias.
– As montanhas de Kindu – retomou o azulado –, recortadas em paredes de catedrais,
suntuosamente imponentes em sua altura de majestade, circundam o deserto de Akzu, o
perigoso, onde os ventos sopram constantemente. Zumbindo, montando e desmontando a
paisagem, fazem vagar as areias, amontoando-as em dunas e desarrumando-as em
vastidão. Aquelas areias correm há milênios e, ainda que um jovem dragão existo há
tempos e trago comigo muitas de suas antigas histórias.
– Também sei sobre o tempo, ainda que pouco vivida – emendei a conversa. – A antiga
terra dos homens foi afogada pelo mar e escondeu a voz dos profetas que tinham visões e
escutavam as divindades. Tempo remoto, tempo dos “masmas”, antigos magos. O sol
levantou-se e pôs-se inúmeras vezes. A terra renasceu, enchendo de flores os prados, de
frutos, as árvores. Mas também voltaram as anunciações. Os novos profetas (de voz muda)
circulam entre nós e denunciam o que acontecerá. Poetas põem em pronúncia o que nela
não cabe: os gritos de dor e de morte emitidos de nosso futuro. Narradores revozeiam o
que zune para além de nossa história: os sons cortantes que um dia vão sacudir os
tímpanos e que vão reverberar no crânio, qual um diapasão repetitivo.
– Os homens... – interrompeu-me o dragão – estranhas criaturas. Sabe, eles nos temem
por nossa aparência e dizem que nosso hálito é venenoso, que nosso sangue mata aquele
que por ele é atingido e que, enfim, somos perversos. Mas não é bem assim. Somos bons e
maus. Podemos matar como dar proteção, podemos destruir como trazer a prosperidade e
a abundância. Podemos amaldiçoar ou bendizer. Somos sábios e bestas. Sentimos fome,
comemos. Sentimos raiva, expelimos fumaça ou fogo. Sentimos sede, bebemos. Como não
dormimos, nunca sonhamos.
– Eu sempre carreguei sonhos – falei, apressadamente. – Sonhava que poderia invocar um
dragão. Corpo de serpente, escamado em malha de ferro, completava-se com uma cauda e
imensas asas de morcego... azuis, em tons esverdeados e amarelados nas proximidades do
corpo. Asas azuis e translúcidas! Sonhava que suas pernas acabavam em patas com presas
enormes que me suspenderiam no ar. Sonhava que me levaria para uma terra, para além
do alto das montanhas. Lá haveria um jardim, um espaço amoroso, onde viveríamos. – E
sussurrei: – Há tempos esperava um dragão!
Immaru Asbu olhou intensamente em meus olhos. Sorriu de esguelha, sorriso matreiro,
repleto de satisfação. Correu em dança de círculos, pegou velocidade e alçou voo, levandome em suas garras. Em suas voltas e voltas para alcançar a imensidão do firmamento,
pude escutar a música das esferas e sentir a potência celeste.
Levou-me, esse de asas azuis, para as montanhas de Kindu, as que circundam o deserto de
Akzu, onde os ventos, zumbindo, montam e desmontam a paisagem. Para as montanhas
de Kindu, em aço recortadas, suntuosamente imponentes em sua altura de majestade.
Terra dos dragões azuis, guardiões dos desejos profundos, de almas de crianças medrosas
e de donzelas sonhadoras.
Vivemos sob árvores, em copas projetadas, que dão pomos suculentos. Sorvemos o néctar
das flores e bebemos da fonte da vida. Dançamos ao som de flautas e alaúdes. Escutamos
as canções do vento e dos pássaros. Nesse jardim amoroso, aberto para o infinito,
crescemos juntos – eu, no ritmo dos humanos; ele, no dos dragões. Ensinou-me a montálo. Ensinei-lhe a sonhar.
Juntos, planamos livremente pelo firmamento.