Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
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Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde 1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise v. 8, n. 2, 2006 Edição Especial EDITORA Laura Ward da Rosa CONSELHO EDITORIAL Alicia Beatriz Dorado de Lisondo • Ana Rosa C. Trachtenberg • André Green • Antonino Ferro • Carmen Médici de Steiner • Cesar Botella • Didier Lauru • Elfriede Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) • Franco Borgogno • François Marty • Gildo Katz • Heloisa Helena Poester Fetter • João Baptista Novaes Ferreira França • Leopold Nosek • Leonardo Wender • Marcelo Viñar • Marco Aurélio Rosa • Marta Petricciani • Miguel Leivi • Nilde Parada Franch • Raquel Zak de Goldstein • Rómulo Lander • Samuel Zysman • Sara Botella • Sara Zac de Filc • Sebastião Abrão Salim • Stefano Bolognini • Suad Haddad de Andrade COMISSÃO EDITORIAL Carmen Lúcia M. Moussalle • Carmen Saile Willrich • Helena Surreaux • Laura Ward da Rosa • Rosa Beatriz S. Squef f BIBLIOTECÁRIA Ana Maria Bernal Pieta • Maria Tereza Ribeiro Duarte – Estagiária EDITORAÇÃO Luiz Cezar F. de Lima LAY-OUT Josimo Silva Lopes – Speed Press Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 – (55-51) 3333.6857 Home page: w w w.sbpdepa.org.br • w w w.sbpdepa.org.br/revista.php E-mail: [email protected] • [email protected] • [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 271 Capa: HÍDRIA ATENIENSE COM FIGURAS EM VERMELHO Grupo de Apolônia Grécia, período clássico, cerca de 380 – 360 a.C. Terracota, altura: 22,8cm A cena retratada nesta pequena hídria (jarro de água) mostra Édipo sentado ante a Esfinge. Esta peça per tence ao FREUD MUSEUM de Londres e fez par te das exposições da coleção de Antigüidades de Freud, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1994; está retratada no livro-catálogo da exposição “Sigmund Freud e Arqueologia – sua Coleção de Antigüidades”. Rio de Janeiro – 1994 – Salamandra Consultoria Editorial S.A. Direitos autorais pagos ao Freud Museum – Londres sob forma da lei. Os artigos são de inteira responsabilidade dos autores. P975 Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/ Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. – v. 8, n. 2, 2006, Edição Especial –. Porto Alegre: SBPdePA, 1999 – 1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. ISSN 1518-398X CDU: 616.891.7 Tiragem: 300 exemplares Bibliotecária Responsável: Ana Maria Bernal Pieta CRB 10/1667 272 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à Associação Psicanalítica Internacional DIRETORIA INSTITUTO DE PSICANÁLISE Presidente Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg Diretor Dr. Leonardo A. Francischelli Secretário Dr. New ton Maltchik Aronis Tesoureiro Dr. Fernando Linei Kunzler Coordenador da Comissão Científica Dr. Flávio Roithmann Coordenador da Comissão Publicações, Divulgação e Informática Dra. Heloisa Helena Poester Fetter Secretário Dra. Izolina Fanzeres Coordenador da Sub-Comissão de Formação Dr. Júlio Roesch de Campos Coordenador da Sub-Comissão de Seminários Dra. Ana Paula Terra Machado Coordenador da Comissão de Relações com a Comunidade Dr. José Ricardo Pinto de Abreu Coordenador da Comissão Centro de Atendimento Psicanalítico Dr. Lores Pedro Meller NÚCLEOS Núcleo de Infância e Adolescência Dra. Mayra Dornelles Lorenzoni Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional Dra. Vera Dolores Mainieri Chem Núcleo de Pesquisa em Psicanálise Dr. New ton Maltchik Aronis Núcleo Psicanalítico de Florianópolis Dr. Márcio José Dal-Bó Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 273 MEMBROS FUNDADORES Alberto Abuchaim Ana Rosa Chait Trachtenberg Antonio Luiz Bento Mostardeiro David Zimmermann Gildo Katz Gley Silva de Pacheco Costa Izolina Fanzeres José Facundo Passos de Oliveira José Luiz Freda Petrucci Júlio Roesch de Campos Leonardo Adalberto Francischelli Lores Pedro Meller Luiz Gonzaga Brancher Marco Aurélio Rosa New ton Maltchik Aronis Renato Trachtenberg Sérgio Dornelles Messias MEMBRO HONORÁRIO Dr. David Zimmermann (Falecido) LINHA EDITORIAL A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre é uma publicação semestral editada regularmente desde 1999. Recentemente foi indexada na Base de Dados INDEX PSI. Tem como finalidade publicar trabalhos selecionados de psicanalistas brasileiros das Sociedades Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados à Associação Psicanalítica Internacional e de autores de notório saber, visando aprofundar, divulgar, ampliar e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A Revista publica também artigos originais ou traduções de trabalhos de analistas estrangeiros, ainda de candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São aceitos artigos de profissionais ligados a Universidades e articulistas de comprovado saber, ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências humanas. 274 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 8, n. 2, 2006 Edição Especial Revista da SBPdePA SUMÁRIO SAUDAÇÕES Palavras da Presidente • 281 Ana Rosa Chait Trachtenberg EDITORIAL Palavras da Editora • 285 Laura Ward da Rosa CICLO DE PALESTRAS PSICANÁLISE E JUDAÍSMO As Fontes Judaicas da Psicanálise • 291 Ana Rosa Chait Trachtenberg Freud e o Judaísmo: inserção do judaísmo nas idéias de Freud • 303 Matilde Groisman Gus EDUCAÇÃO E PSICANÁLISE A Criança de Escolaridade Inicial: contribuições da psicanálise • 313 Noeli Reck Maggi Psicanálise e Educação: o sonho impossível? • 331 Vera Maria Homrich Pereira de Mello CIÊNCIA E PSICANÁLISE A Crise do Fundamento: uma conjectura sobre a trajetória da Filosofia da Ciência • 341 Eduardo Luf t Ciência e Psicanálise: um diálogo possível? • 353 Marco Aurélio Crespo Albuquerque Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 275 POESIA E PSICANÁLISE Poesia e Psicanálise: ação coletiva no rumo da vida • 363 Celso Gutfreind A Dimensão Poética na Interpretação Psicanalítica • 369 Renato Trachtenberg MÚSICA E PSICANÁLISE Psicanálise e Música: ouvindo o inconsciente – origens compartilhadas • 381 Fredi Gerling Do Desejo ao Gozo: ensaio psicanalítico sobre a fruição da música (Fantasia em Si bemol Maior) • 391 Sergio D. Messias ARTE E PSICANÁLISE Arqueologias da Alma • 409 Miriam Tolpolar Arte e Psicanálise • 425 Júlio Campos OS AVANÇOS DA MEDICINA E A PSICANÁLISE O Sujeito da Ciência e o Sujeito da Psicanálise • 435 Laura Ward da Rosa Avanços na Medicina • 447 Mário Roberto Garcia Tavares SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO E PSICANÁLISE Saúde Mental da População • 461 Pedro Gus Saúde Mental da População e Psicanálise • 467 Geraldo Rosito 276 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 8, n. 2, 2006 Special Edition Revista da SBPdePA CONTENTS ROUND OF LECTURES FREUD AND JUDAISM The Jewish Spring of Psychoanalysis • 291 Ana Rosa Chait Trachtenberg Freud and Judaism: insertion of Judaism into Freud’s ideas • 303 Matilde Groisman Gus PSYCHOANALYSIS AND EDUCATION Primary School Infants: a psychoanaly tical contribution • 313 Noeli Reck Maggi Psychoanalysis and Education: the impossible dream? • 331 Vera Maria Homrich Pereira de Mello SCIENCE AND PSYCHOANALYSIS The Crisis of Foundation: a conjecture about the development of Philosophy of Science • 341 Eduardo Luf t Science and Psychoanalysis: a possible dialogue? • 353 Marco Aurélio Crespo Albuquerque POETRY AND PSYCHOANALYSIS Poetry and Psychoanalysis: a collective action in the way of life • 363 Celso Gutfreind Poetic Dimension in Psychoanalytic Interpretation • 369 Renato Trachtenberg PSYCHOANALYSIS AND MUSIC Psychoanalysis and Music: listening to the unconscious – shared origins • 381 Fredi Gerling Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 277 From Desire to Pleasure: psychoanalytic essay on the enjoyment of music (Fantasy in Si flat Major) • 391 Sergio D. Messias ART AND PSYCHOANALYSIS Archaeologies of the Soul • 409 Miriam Tolpolar Art and Psychoanalysis • 425 Júlio Campos ADVANCES IN MEDICINE AND PSYCHOANALYSIS The Subject of Science and the Subject of Psychoanalysis • 435 Laura Ward da Rosa Advances in Medicine • 447 Mário Roberto Garcia Tavares MENTAL HEALTH OF THE POPULATION AND PSYCHOANALYSIS Mental Health of the Population • 461 Pedro Gus Mental Health of the Population and Psychoanalysis • 467 Geraldo Rosito 278 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Saudações Ana Rosa Chait Trachtenberg 1856-2006 Freud 150 anos É com muita satisfação que saudo a chegada deste exemplar híbrido de Psicanálise – Revista da SBPdePA e Publicação das mesas redondas do Ciclo “A Brasileira na Cultura”, já em sua quarta edição. O surgimento desta revista/livro constitui-se num especial fecho para as homenagens que a SBPdePA desenvolveu ao longo do ano de 2006, ano em que, por cumpriremse os 150 anos do nascimento de Sigmund Freud, foi especialmente festejado ao redor do mundo, não só no meio psicanalítico. Através de nossa parceria com a Livraria Cultura, tão hospitaleiramente conduzida por Tom Madaleno e sob a batuta de Flavio Roitman e os colegas que compõem a Comissão Científica da SBPdePA, realizou-se um ciclo de palestras que reuniu psicanalistas e representantes de diferentes áreas da cultura, todos os meses. A Editora da Revista, Laura W. da Rosa, acompanhada pela comissão editorial, bem como a Comissão de Publicações, coordenada por Heloisa Fetter, souberam produzir com brilhantismo a presente edição, que retrata a qualidade da atividade que se desenvolveu ao longo do ano. Ao lado dos números anteriores da Revista da SBPdePA e dos números anteriores de “A Brasileira na Cultura” (Freud e suas Leituras-2003, Freud e seus FilosofosSociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 281 Ana Rosa Chait Trachtenberg Palavras da Presidente PALAVRAS DA PRESIDENTE 2004, Pensando a Violência com Freud-2005), este exemplar promete ser, também, uma referência para aqueles que desejam unir-se às idéias criativas do pai da psicanálise. Desejo a todos boa leitura, com um abraço Ana Rosa Chait Trachtenberg Presidente 282 Psicanálise v. 8, n. 2, p.281-282, 2006 Edição Especial Editorial Laura Ward da Rosa Nesta segunda edição do volume 8 / 2006, da revista “Psicanálise”, decidiu-se publicar os trabalhos apresentados no ciclo de palestras intitulado A Brasileira na Cultura, promoção conjunta da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre e da Livraria Cultura, realizadas na última terça feira de cada mês, no auditório desta. Com tal iniciativa, que integrou Comissão Científica, Coordenação de Publicações e Comissão Editorial pensamos divulgar os excelentes artigos apresentados, bem como reafirmar a importância da psicanálise, nas suas interfaces com a cultura. Freud nos deixou o exemplo de levar esse novo saber às pessoas leigas, organizando, também ele, ciclo de palestras para o público de Viena, que comparecia atento às palavras do professor, que ousava falar, publicamente, da sexualidade, que dizia que os sonhos eram a via régia para o inconsciente e que sabia curar os sintomas histéricos. Era, enfim, uma espécie de mago que inventara uma nova técnica de tratamento, baseada na palavra e no encontro de duas subjetividades: a do analista e a do analisando. Hoje, após um século de sua descoberta, a psicanálise está reconhecida como método terapêutico, como teoria e como pesquisa, e é aceita entre os saberes constitutivos do homem. Os psicanalistas são chamados a opinar e a dar a sua contribuição nas áreas da educação, direito, política, arte, ciência, literatura e nos diversos âmbitos nos quais esteja implicado o interesse no humano e nas possibilidades Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 285 Laura Ward da Rosa Palavras da Editora PALAVRAS DA EDITORA de melhorar a sua qualidade de vida ,influindo e estimulando a cultura e o desenvolvimento do pensamento científico. Desse modo, nada mais oportuno do que nos reunirmos para a discussão de temas, que neste ano priorizou: Psicanálise e Judaísmo, Educação, Ciência, Poesia, Música, Arte, Avanços da Medicina, Saúde Mental da População e Psicanálise. Estamos publicando dezesseis trabalhos produzidos por professores, artistas, médicos e psicanalistas que, gentilmente, aceitaram o convite para participar desta atividade, a quem agradecemos. Nossa gratidão, também, à Livraria Cultura que no acolheu nesses debates e que nos estimula nesta publicação. Laura Ward da Rosa – Editora Porto Alegre, novembro 2006 286 Psicanálise v. 8, n. 2, p.285-286, 2006 Edição Especial Ciclo de Palestras Psicanálise e Judaísmo Ana Rosa Chait Trachtenberg* Resumo No ano em que se comemora o 150º aniversário do nascimento de Freud, filho de judeus e neto de rabinos, a autora estuda a influência do judaísmo no surgimento da Psicanálise. Aborda a tensão entre aquele e a cultura ocidental na alma freudiana, a relação conflitiva de Sigmund com seu pai e a influência do estudo precoce da Bíblia e da Torá. Também aparecem como valiosas fontes da Psicanálise aqueles aspectos históricos do povo judeu de antiidolatrismo, estrangeiridade e o secular desejo de uma terra prometida. Há um destaque especial para a famosa dedicatória em Melitzá, de Jakob Freud a seu filho Sigmund, considerada por Derrida, e outros tantos estudiosos, como um episódio crucial para a Psicanálise, marcando uma transmissão inter/transgeracional. Palavras-chave Judaísmo. Transgeracionalidade. Intergeracionalidade. Melitzá. Bíblia. Torá. Jakob Freud * Médica Psicanalista. Membro Titular em Função Didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Membro Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires (AP de BA). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 291 Ana Rosa Chait Trachtenberg As Fontes Judaicas da Psicanálise AS FONTES JUDAICAS DA PSICANÁLISE Sigmund Freud nasceu em Freiberg, Morávia (hoje Pribor, República Tcheca), em seis de maio de 1856, filho de pais judeus e neto de rabinos. Aos quatro anos mudou-se para Viena, ali permanecendo até 1938, quando saiu para o exílio em Londres, empurrado pelo nazismo. A Viena onde cresceu estava marcada pelo anti-semitismo e, ao mesmo tempo, por uma forte tendência assimilativa à cultura ocidental, especialmente no meio intelectual, do qual ele fazia parte. Foi no século XIX que o judaísmo ganhou a opção de ser entendido como ética, dissociada da religião ou de seus rituais. A emancipação, dando direitos civis aos judeus, foi aplicada pela Constituição austríaca em 1867, aos nove anos de Freud. Ele não foi um homem religioso, nem tampouco aderido aos rituais ou tradições, porém manteve, ao longo de sua vida, o reconhecimento de sua origem judaica. A impregnação do judaísmo em Freud é evidente em muitos aspectos, sobre os quais falaremos logo, mas eu gostaria de ressaltar que o judaísmo nele ocupa uma parte, fundacional, de um conjunto de influências em sua formação pessoal e intelectual, já que ele foi, sem lugar a dúvidas, um cidadão do mundo. De acordo com muitos autores, entre eles Gay (1987), Pfrimmer (1994), Robert (1973) Freud nutriu-se de inúmeras fontes da literatura, filosofia, ciências naturais, etc., que atuaram como forças centrípetas para a sua formação cultural. O judaísmo é uma dessas fontes e ali ocupa um lugar particular, especial. Se foi na mitologia grega, na lenda de Édipo, que Freud buscou a metáfora central da Psicanálise, foi no judaísmo herdado, na Bíblia e no Talmud que ele encontrou a sua própria essência para criar uma teoria revolucionária. Rouanet (2003) nos diz que não se trata de judaizar a Psicanálise ou de psicanalizar o judaísmo, pois “[. . . ]a Psicanálise não é judia nem gentia (goy), mas sim o resultado da sua confluência, nasce da tensão, do conflito entre as duas culturas. Não é uma síntese de dois pólos, é a impossibilidade de toda síntese e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de uma separação.” (p. 18). 292 Psicanálise v. 8, n. 2, p.291-302, 2006 Edição Especial O Pai Rouanet (2003) segue observando que, com Freud, a coexistência das duas culturas não foi pacífica, pois havia uma coabitação tensa. Ele queria e não queria permanecer judeu, queria e não queria ser um homem ocidental. A ambivalência de Sigmund está diretamente ligada a seu pai, já que ele o ama e por essa via aceita a herança judaica e, ao mesmo tempo, não o ama, exprimindo através desse sentimento hostil seu desejo de distanciarse de uma origem racial que o condenava à humilhação. O velho Jakob aceitara passivamente o anti-semitismo reinante, em vez de lutar contra ele, sendo ele mesmo homem conflituado com a sua identidade judaica. A famosa cena do gorro de pele, descrita em A interpretação dos sonhos (sonho do tio de barba amarela), testemunha a força da ambivalência em relação ao pai. Diz Freud: E agora chego enfim à experiência da infância que ainda hoje manifesta seu poder nestes sentimentos e sonhos. Eu teria dez ou doze anos quando meu pai começou a me levar para seus passeios e a se abrir Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 293 Ana Rosa Chait Trachtenberg É minha intenção neste trabalho fazer apenas um recorte pessoal de alguns aspectos da influência do judaísmo na vida da criança e do jovem Freud, que entendo como fontes importantes para o surgimento da Psicanálise. As fontes judaicas da Psicanálise fazem parte da história e da préhistória de Sigmund Freud. Refiro-me aos efeitos daquelas marcas que ficam impressas na mente de uma criança e de um jovem, provenientes de uma história vivida por antepassados, ao longo de várias gerações. Um conjunto de tradições, modelos de pensamento, vínculo materno/paterno – filial, conflitos, etc. – são transmitidos consciente e inconscientemente de uma geração à outra por identificações telescópicas ou identificações alienantes (TRACHTENBERG, 2005). Em nosso propósito de hoje, a abordagem dessas transmissões, que podem ser transgeracionais ou intergeracionais, ficará restrito à via paterna. AS FONTES JUDAICAS DA PSICANÁLISE comigo quanto a suas concepções a respeito das coisas deste mundo. Foi assim que uma vez, a fim de me mostrar como o meu tempo era melhor que o dele, contou-me: quando eu era rapaz, estava passeando num sábado, na rua de tua cidade natal, bem vestido, com um gorro de pele (kipá ou solidéu), novinho na cabeça. Eis que de repente aparece um cristão, e de um golpe me atira o gorro na lama (Kot = também merda) e grita: ‘Judeu, desce da calçada!’ ‘E o que foi que você fez?, perguntei a meu pai’. ‘Eu desci até a rua e peguei meu gorro’, assim foi a resposta resignada. Isso não me pareceu heróico vindo do homem alto e forte que me levava pela mão, a mim, o pequeno. (1900, p. 211). A auto-análise dos sonhos, revelada em 1897 em suas cartas a Fliess (FREUD, 1950), que marca o nascimento da Psicanálise propriamente dita, acontece no ano seguinte ao da morte de Jakob Freud, pai de Sigmund. Na ocasião, Freud dissera que se tratava de uma das perdas mais poderosas que um homem poderia sofrer. O próprio Freud e muitos de seus estudiosos atribuem um lugar fundador a esse conjunto de acontecimentos. A Força da Bíblia/Torá/Talmud Jakob Freud, pai de Sigmund, era um homem liberal, emancipacionista e assimilado à cultura ocidental, em consonância com a época que lhe tocou viver. Ele apenas respeitava as grandes festas do calendário judaico, mas era ligado à Bíblia, ao Velho Testamento, ao Livro dos Livros e conhecia perfeitamente o idioma hebraico. A Bíblia da família era a Bíblia de Philipson, criação do século XIX, original pelo fato de ser bilíngüe – alemão e hebraico – e por conter muitas ilustrações. É nela que Jakob registra dois acontecimentos relevantes, escrevendo em hebraico: “6ª feira, 4 da tarde, 6 de ADAR de 5616, ou seja, 21 de fevereiro de 1856: meu pai, o rabino Schlomo, filho do rabino Ephraim Freud, entrou em sua morada celeste”. (FREUD, 1998). Apenas algumas semanas depois, voltou a escrever: “no primeiro dia do mês de Iar de 5616, ou seja, 6 de maio de 1856, 294 Psicanálise v. 8, n. 2, p.291-302, 2006 Edição Especial A Melitzá Quando Freud completou 35 anos, que para a cultura da época era o verdadeiro ingresso na maturidade, seu pai Jakob o presenteou, cinco anos antes de falecer, com a Bíblia da família. Ele mandou fazer uma nova encadernação de couro e escreveu uma belíssima dedicatória em hebraico, seguindo a MELITZÁ, (mosaico de fragmentos e expressões da Bíblia Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 295 Ana Rosa Chait Trachtenberg às 6 e meia da tarde: nasceu o meu filho Schlomo Sigismund” (FREUD, 1998). Jakob designa o recém-nascido com o nome de seu próprio pai, como manda a tradição judaica, expressando assim o desejo de que esse primogênito de seu terceiro casamento ilustre novamente o patronímico familiar, seguindo aos rabinos, avô e bisavô, eruditos e letrados. Parece também uma informação interessante a que Ostow (1989) nos fornece: aos 13 anos – idade do ritual de passagem Bar-Mitzvá, que outorga maturidade ao menino judeu (TRACHTENBERG, 1999) – Freud trocou o nome que recebera ao nascer, Schlomo Sigismund, para Sigmund, sua forma mais germânica. Naquela mesma Bíblia, aos 7 anos, Freud aprendeu a ler, conduzido pela mão do pai. Nessa jornada, o menino se fascinou com a Bíblia e com suas suntuosas gravuras: vistas de Israel, Egito, Roma, Pérsia, Grécia, etc. Em sua autobiografia (FREUD, 1925, p. 8), escreveu: “Meu precoce aprofundamento na história bíblica, quando apenas havia aprendido a ler, teve, como percebi muito depois, um efeito duradouro sobre a orientação do meu interesse”. Ao introduzir seu filho na leitura do Livro dos Livros, Jakob Freud cumpriu com o primeiro dever de um pai judeu: abrir passo a seu filho para o caminho da cultura. Assim, o jovem Freud foi precocemente estimulado a “viajar”, imaginar, criar e recriar a respeito de seus antepassados, sua história, outros lugares e outros mundos. A atitude de Jakob foi fundamental como âncora identificatória do apetite de saber daquele que seria o pai da Psicanálise. AS FONTES JUDAICAS DA PSICANÁLISE hebraica ou do Talmud, reunidos para formar uma nova e original manifestação). A dedicatória em Melitzá tem sido objeto de muitos estudos psicanalíticos e ilustra a relação de amor, mediada pelo amor aos livros, entre Jacob e seu filho Sigmund. Impressionado com esta dedicatória, Derrida (2001) diz: Um dom portava esta inscrição. O que o pai dá a seu filho é ao mesmo tempo uma escritura e seu suporte, através de uma transmissão intergeracional / transgeracional. O suporte era a própria Bíblia, o “Livro dos Livros”, uma Bíblia Phillipshon onde Freud estudara em sua juventude. Seu pai a entrega a ele, depois de tê-la ofertado como presente antes; o pai a restitui com uma nova encadernação de couro. Encadernar, ligar as folhas novamente é um ato de amor. De amor parental. Tão importante quanto o texto em Melitzá, estes fragmentos bíblicos (...) transmitem todo o pensamento do pai. (p. 34). Dedicatória de Jakob Freud1 1 Filho que me é querido, Shelomoh, 2 No sétimo dos dias dos anos de tua vida, o Espírito do Senhor começou a te animar 3 e falou em ti: Vai, lê meu livro que eu escrevi 4 e nele irromperão para ti as fontes da compreensão, do conhecimento e da sabedoria. 5 Vê, o Livro dos Livros, do qual sábios escavaram 6 e legisladores aprenderam conhecimento e justiça. 7 Uma visão do Todo-Poderoso tiveste; ouviste e te esforçaste para fazê-lo, 8 e te elevaste nas asas do Espírito. 9 Desde então, o Livro tem sido guardado como os fragmentos das Tábuas 1 Tradução; os números das linhas referem-se ao texto em hebraico. 296 Psicanálise v. 8, n. 2, p.291-302, 2006 Edição Especial em uma arca comigo. Para o dia em que os seus anos chegarem a cinco mais trinta pus nele uma capa de pele nova e chamei-o: “Brota, ó poço! Entoai-lhe Cânticos!” E o dei a ti como comemoração e lembrança de amor de teu pai, que te ama com perene amor. Jakob filho de Rabino Shelomoh Freid [sic] 17 Na cidade capital de Viena 29 Nisan [5]651 6 de maio [1]891 (YERUSHALMI, 1982, p.164). A Torá ou Pentateuco está composta pelos cinco primeiros livros do Antigo Testamento (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), e sua leitura diária era obrigatória a todos os judeus do sexo masculino. A alfabetização compulsória, que faz parte de uma tradição, contribuiu para a caracterização desse povo como o povo do livro, ou o povo dos leitores. Talmud, em hebraico, quer dizer estudo, aprendizagem. O Talmud é um livro superior, escrito no ano 500 da era cristã, que complementa e amplia a Torá. Inicialmente de transmissão oral, é a discussão e o questionamento permanente da lei mosaica contida na Torá. Trata-se de um debate incessante entre os sábios, que interpretam a lei, com mais perguntas do que respostas, onde cada detalhe se abre a novas dúvidas. Essa característica da interpretação talmúdica foi fundamental na formação pessoal e cultural de Freud e transmitida à Psicanálise com força monumental. Para Mezan (1987), a interpretação do texto talmúdico se move no registro dos processos primários, como o da não-contradição, por exemplo. Como observa Rouanet (2003), é clara a semelhança entre um pensamento como o judaico e a Psicanálise. No primeiro, o leitor da Torá é instruído a navegar o rio da polissemia, fazendo os sentidos se multiplicarem; a leitura está sempre condenada à incompletude, e o tempo da rememoração reatualiza permanentemente o passado, na perspectiva de um futuro infinitamente aberto. Na segunda, cada elemento da cadeia Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 297 Ana Rosa Chait Trachtenberg 10 11 12 13 14 15 16 AS FONTES JUDAICAS DA PSICANÁLISE associativa pode entrar em conjunções significativas sempre novas, num processo interminável, em que nenhuma interpretação pode ser considerada definitiva. Merece especial destaque o fato de que no Talmud há um predomínio da interpretação por sobre a revelação (divina). Fuks (2003) lembra que Lacan, em seu trabalho Transmissão e Talmude, afirma que a Psicanálise talvez não seja concebível como nascida fora dessa tradição hebraica. Entendo que é no seio dessa tradição talmúdica interpretativa de separação, de corte, de produção de diferenças e de não-fundamentalismos que nasce a Psicanálise freudiana. Anti-Idolatrismo Outra característica fundamental da cultura judaica, e de extrema importância para o que estamos nos propondo a pensar hoje, é o antiidolatrismo. Faz parte da história e da cultura mosaica derrubar ídolos e preconceitos, o que facilita livrar-se dos obstáculos ao conhecimento racional. Essa característica é intrínseca à Psicanálise enquanto teoria e prática da subversão permanente, da constante destruição de todos os bezerros de ouro. Por estarem proibidos de representar a divindade, os judeus experimentaram um grande progresso no sentido da abstração, pois foram obrigados a subordinar a percepção sensorial a uma idéia, o que significou um triunfo da inteligência sobre a sensibilidade. O Deus mosaico não é só invisível, ele é também irrepresentável. Com isso os hebreus aprenderam a valorizar a essência que se esconde sob a aparência, bem como manejar conceitos abstratos. É nesse sentido que Freud podia dizer que os judeus eram menos sujeitos aos preconceitos. Seu monoteísmo rigoroso os defende da magia, da superstição, da crença nos espíritos e os impulsiona na capacidade para simbolizar. O Não-Lugar Podemos agora seguir com nosso pensamento até outro lugar, o nãolugar do judeu. Trata-se do lugar do estrangeiro, do judeu errante, da voca298 Psicanálise v. 8, n. 2, p.291-302, 2006 Edição Especial na universidade me deparei com algumas decepções; especialmente com algumas insinuações de que eu deveria me sentir inferior e estrangeiro, por ser judeu [...] Muito cedo me familiarizei com o destino de me encontrar na oposição, fora da compacta maioria. Assim, eu me preparava para uma independência de juízo. (1925, p. 9). Freud chegara em Viena menino, vindo do leste europeu, e no decorrer do tempo nunca deixou de sentir-se um estrangeiro. Ele se sabia capaz de subverter à lógica vigente, de se desenraizar permanentemente, de se deslocar através das fronteiras. Via-se capaz de estar do outro lado da realidade material e partir para a busca do múltiplo sentido das palavras e dos afetos, daquilo que não estava representado ou fixo. Segundo Ricci (2005), Freud não escapa da concepção de que o judeu é aquele que elimina as fronteiras. A Terra Prometida Sigmund Freud foi contemporâneo de Theodor Herzl, o pai do sionismo, aquele que sonhou reunir todos os judeus num mesmo espaço geográfico, interpretando o desejo de séculos de peregrinações e dispersões de seu povo. Herzl ousou modelizar um continente, formar uma unidade de conjunto, transformar um desejo, um sonho, um espaço desconhecido numa realidade, dar um lugar. Sigmund Freud, pai da Psicanálise, um homem não-sionista, cria sob a forma de uma teoria espacial: em cada um de nós existe um alhures, uma outra província, um outro reino: o inconsciente; o aparelho psíquico é um espaço, uma tópica. Freud e Herzl propõem aos seus contemporâneos um sonho de espaço e de conquista. Herzl sugere a criação de um Estado dos judeus, dando a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 299 Ana Rosa Chait Trachtenberg ção para o exílio da perpétua errância. É a repetição milenar da herança de um líder, Moisés, que não pôde entrar na Terra Prometida. Em sua autobiografia, Freud repetiu o que já havia dito no discurso aos membros da Bnei Brit: AS FONTES JUDAICAS DA PSICANÁLISE soberania de um pedaço da superfície terrestre enquanto Freud formula a hipótese de uma terra prometida interior, a existência de uma terra de asilo que cada um contém em si mesmo. Duas soluções espaciais diferentes, até mesmo opostas, mas de uma certa maneira simétricas. Onde Herzl encoraja a partida, a emigração, Freud opta por uma imigração ainda mais profunda. A um alhures exterior e longínquo, Freud prefere uma viagem interior, um retorno sobre as origens da própria pessoa. Apesar de tudo o que os diferencia, para dar aos judeus um país ou para restituir ao homem o inconsciente, ambos recorrem ao poder do sonho. Se, para Freud, “a interpretação dos sonhos é a via régia que leva ao conhecimento do inconsciente na vida psíquica, para Theodor Herzl, o sonho conduz a Sion”. (FLEM, 1994, p. 104). Considerações Finais Sigmund Freud nos forneceu o modelo mais completo do Homo Duplex. Ele tinha duas identidades – a judaica e a de cidadão do mundo. Como judeu, sentia-se o estrangeiro, como cidadão do mundo ocidental foi herdeiro de Goethe, Sófocles, colecionador de antigüidades, estudioso dos mitos. Foi um homem de alma dividida, fraturada. O percurso de Shlomo a Sigmund do menino inquieto e sonhador ao homem que produziu uma teoria revolucionária, até hoje nos impressiona (FRANÇA, 2003). Há, entre tantas outras, uma pergunta que não cala: como podem manter-se vivos essa teoria e esse movimento, alimentados da conflitiva de um homem com seu pai, manter-se tão extraordinariamente vivos, há 150 anos do nascimento de Shlomo Sigismund Freud, filho de Jakob Freud, filho de rabino Schlomo Freud, filho do rabino Ephraim Freud? Inspirados no Talmud e na Psicanálise, não buscamos uma resposta, formulamos e realçamos, apenas, a pergunta. 300 Psicanálise v. 8, n. 2, p.291-302, 2006 Edição Especial The Jewish Spring of Psychoanalysis At the 150th Freud’s birthday, son of jewish parents and grand-son of rabies, the author studies the influence of Judaism at the dawning of Psychoanalysis. There are references to the tension between the Judaism and the western culture in the Freudian soul, Sigmund’s relationship with his father and the influence of the precocious study of the Bible and the Torah. The historical jewish people’s aspects of anti-idolatrism, foreignness and the secular desire for a promise land come as very important sources for downing of Psychoanalysis. There is a highlight for the famous Melitzá, by Jakob Freud to his son Sigmund. It is considered by Derrida, among other authors as a crucial episode for the Psychoanalysis, having inter/transgenerational carachteristics. Key-words Judaism. Transgenerational. Intergenerational. Melitza. Bible. Torah. Jakob Freud. Resumen Las Fuentes Judaicas del Psicoanálisis En el año en que se comemora el 150º aniversario de Freud, hijo de judíos y nieto de rabinos, la autora estudia la influencia del judaísmo para el nacimiento del Psicoanálisis. Se refiere a la tensión entre el judaísmo y la cultura occidental en el alma freudiano, la relación conflictiva de Sigmund con su padre y la influencia del estudio precoz de la Biblia y la Torá.También aparecen como valiosos fuentes del Psicoanálisis aquellos aspectos históricos del pueblo judío, tales como anti-idolatrismo y estrangeridad, así como el secular deseo por una tierra prometida. Se destaca la famosa dedicatoria en Melitzá de Jakob a su hijo Sigmund, considerada por Derrida y otros estudiosos como un episodio crucial para el Psicoanálisis que define una transmisión Inter/transgeneracional. Palabras-llave Judaísmo. Transgeneracionalidad. Intergeneracionalidad. Melitzá. Bíblia. Tora. Jakob Freud. Referências FLEM, L. O Homem Freud. Rio de Janeiro: Campus, 1994. FRANÇA, M. A. F. Introdução – De Shlomó a Sigmund: um percurso. In: FRANÇA, M. A. F. (Org.). Freud, a Cultura Judaica e a Modernidade. São Paulo: Senac, 2003. FREUD, S. (1900). La interpretación de los sueños. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v. 4. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 301 Ana Rosa Chait Trachtenberg Abstract AS FONTES JUDAICAS DA PSICANÁLISE FREUD, S. (1925). Presentación autobiográfica. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v. 20. FREUD, S. (1950[1892-99]). Fragmentos de la correspondencia con Fliess. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v. 1. FUKS, B. B. Psicanálise, judeidade, alteridade: um estudo sobre Freud e a judeidade. In: FRANÇA, M. A. F. (org.). Freud, a Cultura Judaica e a Modernidade. São Paulo: Ed. Senac, 2003. GAY, P. Um Judeu sem Deus. Rio de Janeiro: Imago, 1987. MEZAN, R. Psicanálise, Judaísmo: ressonâncias. 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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Heloisa Helena Poester Fetter Ana Rosa Chait Trachtenberg Rua Florêncio Ygartua, 391 / 404 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil E-mail: [email protected] 302 Psicanálise v. 8, n. 2, p.291-302, 2006 Edição Especial Matilde Groisman Gus* Antes de abordar o tema a que me propus, quero tentar sintetizar a história de nosso povo – a “Nação”, como fomos chamados no tempo da Inquisição. Antes da Era Comum, nós, os judeus, tínhamos em Canaã, uma terra que, segundo a Bíblia, nos foi destinada por Deus, como recompensa pelo pacto de devoção monoteísta de Abraão e de respeito aos 10 Mandamentos de Moisés. Então, vivíamos como as demais nações da região, eventualmente lutando em defesa da independência, e do direito à prática de nossos costumes e religião, na Terra Prometida. A partir da Grande Diáspora, com a destruição do 2º Templo pelos romanos, no ano 70 da Era Comum, espalhados pelo mundo, parte ainda na própria Terra de Israel e no Oriente Médio, outros na África e a maioria na Europa, iniciou-se a sofrida saga do povo judeu. Estigmatizados, discriminados, perseguidos e com freqüência expulsos de suas casas, vilas ou cidades, os judeus eram proibidos de freqüentar colégios, universidades e de exercer profissões mais rentáveis ou dignas. Para sobreviver, somente podiam realizar atividades de ganho miserável * Ex-Presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 303 Matilde Groisman Gus Freud e o Judaísmo: inserção do judaísmo nas idéias de Freud FREUD E O JUDAÍSMO: INSERÇÃO DO JUDAÍSMO NAS IDÉIAS DE FREUD ou aceitar tipos de trabalho como, por exemplo, servindo os poderosos senhores feudais, na cobrança de dívidas e tributos dos seus súditos – trabalho que era então considerado vil, o que lhes granjeou a fama de ávaros, e rapidamente se transformou num estereótipo muito negativo, que se manteve até bem pouco tempo atrás. Além do horror que viveram na Idade Média, trucidados em pogroms, acusados de assassinatos rituais, de espalharem a peste e vilanias do gênero, de sofrerem os judeus o genocídio das Cruzadas, da Inquisição, na Modernidade, o que parecia impossível, partindo da Alemanha de Hitler, com um povo considerado de alto nível cultural, aconteceu o Holocausto – o assassinato de 6 milhões de judeus em sua maioria do centro e leste europeus – sob um olhar indiferente, senão complacente, do resto do mundo, mundo este dito civilizado. Pelo exposto, não seria de admirar que o povo judeu, diante de tão terríveis adversidades, desaparecesse como tal, declarando sua descrença num pacto que, pelo menos fisicamente, só lhe trouxe morte e suplício, em lugar da terra do leite e do mel que lhe fora prometida por Deus. Porém, o que, quase inexplicavelmente, aconteceu? O povo manteve seu compromisso divino, aprofundando-se no estudo do Tanach – nossa Bíblia, e do Talmud, que reúne a sabedoria de nossos sábios, na análise dos valores éticos e na interpretação das leis judaicas. Além disso, os judeus acompanharam, através dos tempos, o progresso das nações e sociedades onde vivem. É difícil ignorar as contribuições do povo judeu para a ciência, a literatura, as artes, a tecnologia, a filosofia e a medicina em especial. Também é difícil, eu diria até impossível, comprovar agressões e violência de nosso povo, cuja luta foi e será sempre em defesa da vida e do direito de existir como Nação e como Estado. E assim chegamos aos dias de hoje, com um Estado dos judeus que, em menos de 60 anos, já atingiu um desenvolvimento incrível em praticamente todas as áreas do conhecimento humano e, também, com comunidades judaicas espalhadas pelo mundo democrático, onde vivem pacifica- 304 Psicanálise v. 8, n. 2, p.303-309, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 305 Matilde Groisman Gus mente integradas na sociedade maior, contribuindo, sem dúvida, para o engrandecimento dos países em que se inserem. Após essa tentativa de síntese da saga que os judeus viveram nesses quase 2000 anos, voltemos nossos olhos para a época e a vida judaica de Freud (que nasceu em 6 de maio de 1856 em Fraiberg, (hoje Pribor) República Tcheca – e morreu aos 83 anos, em Londres, em 23 de setembro de 1939). Falamos de Schlomo Sigismund Freud, cujas qualidades de inteligência, criatividade, lucidez e coragem intelectual comemoramos todos, e o qual, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre homenageia no sesquicentenário de seu nascimento, através deste inspirado evento – A Psicanálise (Freud) e o Judaísmo. O anti-semitismo que, pouco antes do nazismo, já não era tão gritante na Europa, talvez como uma herança cultural e filosófica do Iluminismo do século XVIII, começa a se revelar, no século XX, a partir da década de 30, de forma sistemática e organizada principalmente na Alemanha, Áustria e Polônia; embora mais silencioso, era porém muito perceptível ainda no restante da Europa, com respingos em nossa quase sempre democrática América. Como exemplo, cito a famosa escritora americana Lílian Elman que, em um de seus livros, comentando sobre o anti-semitismo em seu país, relata ter visto, na entrada de um hotel de campo próximo a Nova Iorque, uma placa com um aviso: “Proibida a entrada de cães e judeus”. Foi, talvez, o clima antijudaico que Freud enfrentou, o que o fez declarar, inúmeras vezes, sua origem e sua inserção como membro da Nação, embora negando sempre qualquer adesão à religião propriamente dita. Como todos sabemos, Freud atribuía, à sua origem judaica, algumas das qualidades que o projetaram como analista da mente e da alma. Sua criação da Psicanálise revolucionou o mundo moderno, trazendo em seu bojo a descoberta de um espaço, o inconsciente, e construindo a teoria da dinâmica que se desenvolve neste espaço, para assim buscar desvendar a complexidade da alma humana. Ocorreu-me, ao organizar este texto que talvez fosse interessante estabelecer uma analogia dessa teoria com a de Albert Einstein, outro judeu, FREUD E O JUDAÍSMO: INSERÇÃO DO JUDAÍSMO NAS IDÉIAS DE FREUD não menos famoso. Pois Einstein (1879-1955, Prêmio Nobel em 1921) também, na mesma época (1913-1916), em seu estudo da Relatividade, descobriu um novo espaço variável, o Tempo, incluindo-o, juntamente com o espaço tri-dimensional, numa nova e revolucionária Teoria, explicando assim grande parte da complexidade dos espaços que nos cercam. Um explicou a complexidade da alma humana e o outro a complexidade do Universo. Como conseqüência, temos dois grandes cientistas desvendando o desconhecido, conduzindo, ambos, o ser humano a caminhos nunca antes sequer sonhados! Porém, voltando a Freud, foi através de sua genial teoria que um enorme contingente de problemas do corpo e da alma puderam e podem ser resolvidos, com um incalculável ganho para o ser humano, tanto individual como socialmente. Desde então, expressões como “Freud explica, ato falho, complexo de Édipo e complexo de inferioridade” passaram a fazer parte do nosso cotidiano. Podemos constatar que, muitas vezes, a discriminação, o ódio étnico ou racial, a judeofobia, e inclusive o auto-ódio judaico, eram realmente preconceitos que conduziam à caracterização de um complexo de inferioridade atribuído ao judeu, explicando talvez, pelo menos em parte, o fácil domínio do nazi-fascismo, que lhes roubou a dignidade e o respeito próprio. Devo agora falar um pouco sobre como Freud via e sentia o judaísmo, intuindo daí a importância deste judaísmo no desenvolvimento da genial Teoria Psicanalítica Freudiana. Como todos aqui sabemos, Freud declarava que não era religioso. No prólogo de seu importante livro Totem e Tabu, para a edição em língua hebraica, ele escreve: “[. . .] o autor está tão afastado da religião judaica como das demais religiões; no entanto, nunca renegou sua pertinência a seu povo; ele se sente judeu e não deseja outra coisa para si”. E mais adiante, aqui numa tradução livre: “Se alguém me perguntasse – mas então o que 306 Psicanálise v. 8, n. 2, p.303-309, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 307 Matilde Groisman Gus há em ti de judeu, se renunciaste a tantos elementos comuns com teu povo? Eu responderia – ainda muitas coisas, quase todo o principal”. E, na conclusão desse mesmo prólogo, afirma sua convicção de que “a ciência, livre de preconceitos, de nenhum modo pode ficar alheia ao espírito do novo judaísmo”. Certamente é também muito conhecida a carta que Freud escreveu quando da inauguração da Universidade Hebraica de Jerusalém, em abril de 1925, justificando sua ausência por motivo de saúde, em resposta ao convite para comparecer às festividades. Dela retirei os trechos que, julgo eu, nos auxiliam a conhecê–lo melhor como judeu, sob a perspectiva que estamos abordando– “[. . .] nossa pequena nação somente resistiu à aniquilação de sua sobrevivência como Estado graças a sua escala de valores estimativos, elevando ao mais alto grau seus bens espirituais, sua religião e sua literatura”. E, adiante – “Uma Universidade é um lugar onde se ensina a ciência, sem valorizar as diferenças religiosas e nacionais; onde se realiza pesquisa e onde se tenta mostrar aos homens até que limite conseguem compreender o mundo que os rodeia, e até que ponto podem submetê-lo a sua ação. Tal empreendimento é um nobre testemunho do desenvolvimento que alcançou nosso povo em seus dois mil anos de infortúnio.” Em uma carta, enviada em 1925, ao editor de um periódico judeu de Munique, reafirma seu desligamento da religião, porém mantendo um poderoso sentimento de ligação com seu povo, sentimento que também transmitiu a seus filhos. “Todos de minha família e eu seguimos pertencendo ao povo judeu” diz Freud. E, para finalizar, ainda ressaltando sua vinculação com o judaísmo, relato partes do discurso que proferiu durante a homenagem por seus setenta anos, em seis de maio de 1926; foi um tributo da B´nai B´rith, uma sociedade judaica dedicada especialmente à proteção dos Direitos Humanos, além de beneficência e cultura. A BB foi fundada em 1843, em New York, e espalhou-se por um grande número de países, sempre atuando dentro de seus objetivos. Sua sede central é atualmente em Washington. FREUD E O JUDAÍSMO: INSERÇÃO DO JUDAÍSMO NAS IDÉIAS DE FREUD Nesse discurso, além de enfatizar firmemente sua forte ligação com o judaísmo, declara que, ao sentimento de sentir-se tão judeu, juntou-se a certeza de que somente à sua natureza judia deve as duas qualidades que lhe foram indispensáveis no difícil caminho de sua vida: precisamente por ser judeu estava livre de muitos preconceitos que limitam a outros no exercício de seu intelecto; e precisamente, como judeu, estava preparado para colocar-se na oposição e renunciar à concordância com a sólida maioria. O que podemos realçar, portanto, é que a disposição que acompanha o povo judeu através dos séculos de propor a si mesmo e aos outros seus questionamentos existenciais, incluindo os religiosos, repousa em nossa herança cultural, e talvez também genética, de aproximadamente quatro mil anos. Daí encontrarmos no Talmud tantas dúvidas, discussões, digressões, testemunhando o respeito pela opinião do próximo e admitindo o direito à discordância, evidenciados, esse respeito e esse direito, nas múltiplas interpretações de nossos sábios a cada lei, julgamento ou relato contidos nesse livro da suprema sabedoria judaica. Tudo é sempre questionado e raramente há uma única resposta, ou uma única verdade. A propósito, essa curiosa disposição do judeu pode ser lembrada através da anedota de que, em geral, a resposta de um judeu a uma pergunta é sempre outra pergunta. Ao encerrar, ressaltamos que podemos encontrar em Freud e em outros benfeitores da humanidade que tanto dignificaram o judaísmo, exemplos de vida a reafirmar que os condenáveis preconceitos contra as minorias são uma das grandes vergonhas da raça humana. Referências HUTCHINS, Roberto Maynard (Ed.). Great Books of the western world. [S. L.]: Britannica. 308 Psicanálise v. 8, n. 2, p.303-309, 2006 Edição Especial Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Heloisa Helena Poester Fetter Matilde Groisman Gus E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 309 Matilde Groisman Gus FREUD, Sigmund. Obras Completas. V. 3, p. 3227-3229. Compilador: Dr. Jacobo Numhauser Tognola. FREUD E O JUDAÍSMO: INSERÇÃO DO JUDAÍSMO NAS IDÉIAS DE FREUD 310 Psicanálise v. 8, n. 2, p.303-309, 2006 Edição Especial Educação e Psicanálise Noeli Reck Maggi* Resumo Neste trabalho são apresentadas idéias, fundamentadas nas teorias de Freud e de Winnicott, sobre o desenvolvimento da criança, sobre a influência dos primeiros vínculos, sobre a sexualidade e o uso do brinquedo, e sobre as atividades sublimatórias traduzidas na pulsão de saber. A saída de casa e a entrada na escola representam para a criança uma passagem e também uma primeira ruptura da família, para ingressar em um grupo mais amplo de pessoas com as quais poderá interagir e ampliar os vínculos de identificação. Neste estudo, são revisados os elementos teóricos que explicam as aquisições iniciais da criança, permitindo-lhe o ingresso nas regras e nos modos de relação próprios da cultura escolar, e estabelece-se um confronto com o resultado de uma pesquisa realizada em uma comunidade de Porto Alegre. Palavras-chave Latência. Sublimação. Espaço potencial. Criatividade. * Pedagoga. Psicóloga. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da PUCRS e UNIRITTER. Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 313 Noeli Reck Maggi A Criança de Escolaridade Inicial: contribuições da psicanálise A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE O período de latência e a escolaridade inicial O início da escolaridade formal coincide com o período de latência no desenvolvimento da criança. O termo latência, assim designado por Freud (1905), refere-se a um tempo do psiquismo humano em que a pulsão sexual encontra-se reprimida, mas com expressão significativa em atividades que envolvem pensamento, tais como os jogos com regras e o brinquedo livre. Tendo passado pelo Édipo, a criança entra no período de latência. A sua constituição subjetiva, formada desde quando anunciada e inserida nas relações parentais, reedita as identificações dos primeiros tempos de vida e as atualiza permanentemente na interação com o Outro. Na escola, essa criança é desafiada a enfrentar a realidade caracterizada pelas diferenças, tanto em relação ao objeto do conhecimento quanto em relação às pessoas envolvidas no processo de aprender. Seu ingresso na instituição escolar oportuniza a revelação das marcas de uma cultura instituída desde os primeiros vínculos do seu desenvolvimento, o que pode ser observado quando ela se expressa, especialmente ao responder às solicitações nos espaços de aprendizagem entre os pares e com os adultos em geral. Na cultura escolar, as aprendizagens que são sugeridas à criança reativam a sua pulsão epistemofílica, dirigida, neste período, ao conhecimento. Se, por um lado, a pulsão sexual é reprimida, fica representada pela busca do jogo, do trabalho e do desejo de conhecer. A significação da descoberta e do aprender trazem consigo as experiências estabelecidas junto aos primeiros cuidadores. A partir dessa perspectiva, é possível pensar que a resistência da criança aos desafios propostos pela aprendizagem e a sua dificuldade para reprimir os impulsos governados pelo princípio do prazer podem estar vinculadas às primeiras relações de objeto que traz em sua história, bem como às demais identificações que a constituíram psiquicamente ao longo da vida. O processo de escolarização oportuniza o exercício da convivência no grupo com o reconhecimento e a circulação de papéis, ao mesmo tempo que solicita o gradativo controle da impulsividade. O reconhecimento dos limi314 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 315 Noeli Reck Maggi tes e a capacidade para enfrentar as frustrações são elementos inevitáveis ao processo de desenvolvimento. As dificuldades decorrentes desse processo se constituem obstáculo para o pensamento e para a criatividade, e não estão dissociadas da trajetória evolutiva de cada sujeito. Freud (1911), no texto Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental, fala do princípio do prazer e da realidade como elementos reguladores do desenvolvimento humano, em que o sujeito mantém de modo contínuo o esforço para afastar-se de eventos que possam despertar sofrimento, procurando utilizar mecanismos psíquicos que preservem a gratificação. Essas manifestações de resistência observam-se também na criança quando necessita enfrentar a interdição proposta pela cultura escolar. Isso sugere uma necessária revisão no tipo de investimento libidinal dispensado desde quando recebeu os cuidados iniciais. Nos primeiros tempos do desenvolvimento humano, é necessário que a gratificação seja plena, para que as necessidades sejam atendidas. Mais tarde, quando o bebê encontra-se mais abastecido e mais integrado, ele pode suportar a angústia da separação, das faltas e das frustrações na relação com seus cuidadores. Winnicott destaca a importância da presença e do olhar da mãe sobre o filho. Sob os cuidados de uma mãe suficientemente boa, a criança se reconhece pela relação de mútua dependência e aprende a buscar em outros referenciais o seu objeto de desejo. A criança, quando olha a mãe e se percebe, não se sentirá só ou desamparada. O olhar materno confirma ao filho que ele está ali e que, portanto, existe. Se a criança, no olhar materno, somente conseguisse perceber a mãe, ela – a criança – não teria espaço de existência. Tudo estaria fora, na mãe. O olhar da mãe pode ser o elemento impeditivo de um possível desamparo do filho. É também Winnicott quem aponta a grande possibilidade de criação da criança quando experimenta o espaço do vazio. Um espaço virtual entre o bebê e a mãe suficientemente boa é gerado e, nesse espaço da experiência psíquica, há a necessidade de ele criar algo para aliviar a ansiedade da separação. Se essa mãe provoca uma frustração suportável ao bebê, este se A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE obriga a inventar um substituto para o vazio que poderá sentir. Entre o indivíduo e o meio, há o lugar em que a experiência de criação e de substituição dos objetos faltantes se instalam, denominado de espaço potencial. Para todo indivíduo, o uso desse espaço é determinado pelas experiências de vida que se efetuam nos estádios primitivos de sua existência. Desde o início, o bebê tem experiências intensas no espaço potencial existente entre o objeto subjetivo e o objeto objetivamente percebido. O viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira, tem sua origem no uso dos objetos transicionais, em um tempo e espaço de experiência de separação, oportunizado por uma mãe suficientemente boa. São criações do bebê, e comumente configurados como objetos transicionais, o cobertor, os bichos de pelúcia e demais objetos utilizados para cheirar, trazendo conforto na ausência de um objeto que já esteve presente. Segundo Winnicott, o espaço potencial da criação e da imaginação não é um lugar interno, mas também não é externo ao sujeito. A aprendizagem envolve um modo de relação e de criação de acordo com o qual os espaços de falta de resposta ou de presença de questionamentos mobilizam o sujeito à invenção. A criança, sujeito da aprendizagem, reatualiza o seu aparato interno em cada desafio que a tarefa escolar apresenta. O modo de relação inicial vivido pela criança junto do seu cuidador é revelado e reeditado nas aprendizagens posteriores ao longo de sua vida. Na escolaridade inicial, as crianças vivem um tempo em que as potencialidades têm um desdobramento, convertendo-se em novas possibilidades de ação; é também nesse mesmo tempo que ocorrem desafios em que entra em jogo a constituição subjetiva marcada pelas relações primeiras com os pais. Fala-se de pais não somente no sentido de serem os genitores, mas de exercerem um poder de intervenção simbólica e estruturante do ponto de vista do inconsciente. A noção de pai como função é referente na constituição psíquica do sujeito e opera independentemente de uma cronologia. Diante das situações de aprendizagem, a criança necessita estar investida de um desejo 316 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 317 Noeli Reck Maggi como algo próprio, a fim de autorizar-se a inventar, criar, imaginar situações que cumpram a função de responder ao que lhe é proposto. Para Freud, o Complexo de Édipo é um conceito central na constituição psíquica da criança que, após ter vivenciado os efeitos da repressão, revela-se com capacidade para postergar as gratificações imediatas e identificar-se com as normas da cultura. A passagem pelo conflito edipiano permite à criança agregar valores permitidos e proibidos à sua conduta, uma vez que está mais identificada com as figuras parentais. Essa passagem oportuniza a sua entrada em um mundo regido por regras e leis, condição imprescindível para as simbolizações e abstrações que o conhecimento exige. O período de latência é um tempo de repressão da sexualidade infantil com predomínio da amnésia em relação às primeiras experiências vivenciadas junto aos pais e de fortalecimento das defesas como um mecanismo adaptativo do ego. Sentindo-se demasiadamente exposta e tendo reconhecido a interdição simbólica, a criança não só reprime a sexualidade frente aos genitores, mas também busca uma identificação por meio deles, sublimando sua energia pulsional em atividades como a aprendizagem, o brinquedo e o pensamento. A entrada na latência consolida a formação do superego, uma vez que o complexo de Édipo institui a passagem do eu ideal para o ideal de eu, na formação dos valores éticos e morais. No texto sobre a teoria da sexualidade, Freud designou latência para a condição psíquica em que as defesas do sujeito são organizadas para reprimir a pulsão sexual, que agora assume outro destino que não o prazer imediato e direto. A reordenação das pulsões dá um novo rumo às atividades da criança, como o jogo com regras, o brinquedo livre no grupo, as aprendizagens formais e não-formais, entre outros. O mecanismo de sublimação torna-se o centro dessa operação dinâmica do eu, que mais tarde manifesta-se através do ressurgimento da pulsão sexual na adolescência. A entrada para a latência exige a superação de laços estabelecidos em momentos precoces da vida da criança. A relação simbiótica preliminarmente vivenciada com a mãe juntamente com o A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE narcisismo e a onipotência dão lugar a um reconhecimento de que o ser humano é incompleto, necessitado, e de que carrega consigo a busca contínua de meios para sobreviver. Nessa dinâmica, a sexualidade sofre a repressão, mantendo preservada a energia que impulsiona a criança na busca do conhecimento. A repressão da sexualidade promove na criança a diminuição da fantasia e dos interesses eróticos sobre partes do corpo, oportunizando o realce das atividades sublimatórias. Entre as atividades que realçam as gratificações da criança nesse período, estão as narrativas infantis. Elas auxiliam na organização das defesas contra os riscos da expressão direta da sexualidade que se encontra reprimida. Quando narram suas histórias, as crianças conseguem se organizar através do seu mundo imaginário, buscando uma lógica que dê sentido aos seus temores e desejos. A interlocução é estabelecida com os personagens internalizados, atribuindo-lhes o sentido e o lugar devido. Dessa forma, a criança que inventa uma história estabelece o seu roteiro, afirmando ou negando a ocorrência de um evento, revelando nas suas construções o modo como a realidade de sua vida se expressa no registro simbólico. O adulto, especialmente o que fez o papel de cuidador e que tem controle sobre suas emoções, é capaz de transformar fome, dor, medo, solidão, evidenciados pela criança, em satisfação, prazer e tranqüilidade. No início, o ego está potencialmente fortalecido pelos cuidados maternos. As falhas gradativas da mãe num período do desmame instituem o espaço da falta, dando origem ao símbolo. Imaginar é criar, é pensar; representa sair da onipotência e do delírio para reconhecer a alteridade e a diferença. Com a imaginação, simboliza-se, utiliza-se a criatividade; com o trauma, fantasiase, utiliza-se a alucinação. É no período precoce do desenvolvimento que a criança necessita apoiar-se no adulto e afastar-se dele, fazendo uso dos objetos internalizados para se relacionar com o mundo. Quando esses elementos não foram possíveis, mais tarde, as relações dessa criança com o brinquedo, com a escola, com outros cuidadores, podem favorecer a reedição e a recuperação da capacidade de simbolização. É no período do narcisismo primário que o 318 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial 1 “O fracasso da fidedignidade ou a perda do objeto significa, para a criança, perda da área da brincadeira e perda de um símbolo relevante. Em circunstâncias favoráveis, o espaço potencial se preenche com os produtos da própria imaginação criativa do bebê. Nas desfavoráveis, há ausência do uso criativo de objetos, ou esse uso é relativamente incerto”. WINNICOT, Donald W. A Loca. O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, lização da Experiência Cultural. In: 1975, P. 141. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 319 Noeli Reck Maggi ego encontra-se indiferenciado; período da onipotência e do princípio do prazer, em que os cuidados devem ser intensivos. Cuidados não no sentido de invasão, mas no sentido de preservação do que é indispensável para viver, a fim de mais tarde suportar as falhas gradativas e necessárias dos cuidados maternos. Segundo Winnicott (1975)1 , a falta de confiança anula o espaço, impede a busca, a criatividade e o pensamento, ou prejudica em parte. O deslocamento dessa situação em que o processo de pensamento é dificultado pela necessidade de gratificação imediata pode ser rompido com uma tentativa de criar uma brincadeira, de simular uma história ou de relatar um acontecimento. Por outro lado, a criança pode utilizar a realidade como defesa contra a fantasia. Nesse caso, a imaginação é excluída. Quem brinca com a boneca não é a criança, mas a própria mãe. A ausência da mãe não é simbolizada, mas é sentida como abandono. Não há espaço para o “faz-deconta”. A defesa contra a imaginação é uma forma de proteger-se da possibilidade de desejos e temores tornarem-se verdadeiros. A criança cuja mãe sai para o trabalho e que experimenta o abandono poderá mostrar dificuldades de criar substitutos para trazer simbolicamente a mãe de volta. Um menino, em observações durante a pesquisa, relata que não vê o pai há muitos anos e justifica que esta ausência paterna é decorrência das dificuldades no trabalho. Enquanto espera a chegada do pai, nega que este tenha abandonado a família. É uma criança triste, inquieta; isola-se quando não consegue participar do que deseja. Uma menina com nove anos não se desprende do objeto transicional. Permanece grande parte do dia com ele, o que lhe impossibilita a participação na brincadeira, a imaginação e o livre exercício de movimentos corporais. A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE Entre os comportamentos observados, identifico crianças que não atribuem significado ao que realizam. Excluem a realidade e também a imaginação. Os relatos de Winnicott (1999) e Aulagnier (1989) confirmam que não há espaço potencial de imaginação quando os bebês são abandonados ou precocemente separados da mãe. Ao criar-se o processo dialético, a criança poderá mais tarde simboli2 zar . O símbolo nasce do espaço; o trauma ocupa o espaço e cria a fantasia3. Com a imaginação, simboliza-se; com uma situação traumática, poderá haver predomínio da fantasia ou da realidade de modo exclusivo. A teorização sobre o uso do espaço potencial reedita a presença do narcisismo primário em que o Eu transita vinculado à mãe: da onipotência para a fragilidade; da ilusão para a desilusão; da alienação do Eu no Outro para uma diferenciação; do princípio do prazer para o princípio da realidade. A profundidade da ruptura, da lesão ou da fratura pode determinar a possibilidade ou o prejuízo na simbolização. Quando o abandono e as situações invasivas na vida da criança atingiram em parte a sua capacidade de recuperar a confiança e de transitar no espaço entre a presença e a ausência do objeto gratificador, a realidade e a fantasia se complementam num processo dialético. No cotidiano das crianças observadas durante a pesquisa, as histórias, os desenhos, os jogos, os diálogos pareciam transitar entre a imaginação e a realidade. Nos momentos de frustração, elas encontravam alternativas para substituir objetos e criar situações que oportunizassem a continuidade do viver. Pensar algo para representar a ausência ou poder pensar na ausência possibilitam a 2 Jacques Lacan apontou que o indivíduo que atingiu a capacidade de simbolização fica liberto de uma forma de aprisionamento (o da experiência sensória imediata) apenas para ingressar em uma nova prisão, a da ordem simbólica. No reino desta última, a linguagem fornece-nos símbolos que por longo tempo preexistiram a nós e que, dessa maneira, determinam os nossos pensamentos, ainda que trabalhemos na ilusão de criarmos os nossos próprios símbolos. OGDEN, Thomas. Sobre o Espaço Potencial. In: GIOVACCHINI, Peter L. Táticas e Técnicas Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. P. 95. 3 Em Laplanche e Pontalis (1992), o termo fantasia evoca a oposição entre imaginação e realidade (percepção). Uma produção puramente ilusória que não resistiria a uma apreensão correta do real. 320 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial O cotidiano da criança: um modo de viver e de se relacionar entre os pares Uma comunidade de moradores na periferia urbana da cidade de Porto Alegre foi observada especialmente nas condições de vida material e afetiva das crianças, de seus pais e demais cuidadores, em espaços de brincadeira espontânea e dirigida. Para compreender a forma como cada criança atribui significado à realidade e o modo particular de representá-la, foram realizadas visitas aos seus locais de acesso e de permanência, com a utilização de observações dos e de entrevistas com os sujeitos implicados na pesquisa e representantes da comunidade.4 A aproximação de universos distanciados pelas condições de acesso à educação formal, de emprego e de estrutura básica de moradia foi facilitada pela interação direta com a comunidade em estudo. A identificação dos mecanismos utilizados pelas crianças na relação com os seus pares e com os adultos em geral possibilitou um entendimento do sentido das práticas buscadas tanto no âmbito individual quanto no grupo, dos significados que os moradores atribuem às formas de viver e de se relacionar. Assim, o tema deste estudo só pôde ser investigado compreendendo-se o modo de vida dos sujeitos, os papéis e os espaços designados aos pais e demais representantes do grupo familiar, como também a forma de articulação das funções materna e paterna que são atribuídas dentro do grupo. Para falar de função paterna, no sentido proposto por Lacan (1999), é necessário compreender os modos de relação das crianças com a comunidade, situar quais operadores daquela cultura exercem a referida função. Essa concepção auxilia na compreensão dos elementos apontados pela psi4 Estudo a partir de pesquisa realizada para a Tese de Doutorado “A Fratura da Função Paterna e o Processo de Simbolização: um estudo com crianças de periferia urbana em fase de escolaridade inicial”. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Educação – UFRGS, 2005. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 321 Noeli Reck Maggi simbolização do que é desejado. A atividade de pensar está relacionada com a função simbólica, possibilitando substituir um objeto ou pessoa por uma palavra ou imagem. A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE canálise a respeito da história trazida pela criança desde o seu desenvolvimento inicial. No contato com o ambiente social imediato, essa história opera dialeticamente através do processo de socialização. Uma pesquisa de campo anteriormente realizada nesta mesma comunidade5 oportunizou, através de visitas sistemáticas, um reconhecimento das identidades e das diferenças em relação aos sujeitos investigados. Um dos aspectos considerados importantes foi o deslocamento do olhar e da escuta para o ponto de vista do outro, de modo a reconhecer e preservar a alteridade. As pessoas dessa comunidade de periferia vivem em condições inferiores em relação à classe média residente em espaços centrais da cidade. Esses moradores raramente têm uma regularidade de trabalho que lhes possibilite sistematizar horários, prever orçamento ou ter perspectivas de uma ação futura. A precariedade de recursos não é mencionada no cotidiano das famílias, e tudo é resolvido para aquele dia em função da necessidade que emerge. Nessas condições, prevalecem as tomadas de ação imediata num esforço de encontrar alternativas rápidas diante da busca de sobrevivência pessoal e familiar. O modo como a criança experimenta e vivencia o processo de filiação e as condições como utiliza o espaço potencial de criatividade tornaram-se elementos centrais à medida que a investigação empírica avançava. Os registros de observação foram revelando que, mesmo com o laço interrompido entre os pais e o filho, ainda restou uma possibilidade de a criança utilizar os recursos do processo de simbolização em situações de brinquedo ou de histórias inventadas. Crianças conseguem brincar, apesar da ausência de adultos para possibilitar a necessária sustentação das suas demandas. Brincam também sob condições de absoluta precariedade material. As crianças referem a necessidade de recuperar o brinquedo danificado, mas imediatamente se refazem daquela falta, buscando um objeto substituto. Continuam 5 CAREGNATO, Célia Elizabete; HASSEN, Maria de Nazareth Agra; MAGGI, Noeli Reck. O que as Crianças Levam para a Escola: traços culturais na sala de aula em escolas da Vila Cruzeiro do Sul/Porto Alegre. Porto Alegre: NIPE/UNIRITTER, 2002. 322 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 323 Noeli Reck Maggi brincando sem lamentar o objeto perdido ou buscando outras formas de recreação. O pai que abandona a família é lembrado pela criança a partir dos comentários feitos pela mãe ou é referido como uma pessoa que ainda vai buscar o filho para passear. Meu pai foi morar noutra cidade, mas um dia ele volta para buscar a mãe e meus irmãos- esse é o depoimento de uma criança que está separada do pai há cinco anos. Seus desenhos trazem a figura de um pai forte e protetor junto dos filhos. As crianças trazem uma dor que é anunciada através dos depoimentos, dos desenhos, das histórias contadas e dos brinquedos dramatizados. Enquanto inventam suas histórias, há uma representação de objetos ausentes na vida real, embora presentes nas cenas improvisadas, como o animal de estimação nas horas de desentendimento com a mãe; o desenho para falar de um pai ausente; ou a busca de um objeto que substitui o brinquedo danificado. Observa-se que, não havendo espaços para brincar, as ruelas e os becos servem de esconderijo para a brincadeira de esconde-esconde ou para montar o jogo de botão. Enquanto se entregam às cenas improvisadas com os recursos do simbólico, as agressões físicas ou os comportamentos colocados em ato assumem um lugar secundário. Na vila, algumas mulheres reparam as crianças de outras que estão empregadas. Sempre há um parente ou um conhecido que repara as crianças. Isso nos lembra Dor (1991), quando fala do pai e de sua função em psicanálise. A função paterna pode ser exercida por um genitor, pelos pais da realidade, por um operador da cultura – vizinho, parente – ou por um trabalho que ocupe o lugar de um significante. Em muitos casos, não há tempo para elaborar as dificuldades, e então as resoluções se transformam em ato. O assassinato, a gravidez, o furto, a droga e tantas outras formas de gratificação imediata não possibilitam adiar o desejo. Essas manifestações são indicadoras da impossibilidade de elaborar a perda ou de adiar a gratificação, ou ainda de conviver com as frustrações. Na vida desses jovens, parece ter sido frágil a presença de uma mãe suficientemente boa, de uma função paterna interditora ou de um pai A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE simbólico para instituir a falta e também a capacidade de simbolização. Conforme já referido sobre as observações das crianças no seu cotidiano, os elementos empíricos confirmam que elas criam alternativas no decorrer das brincadeiras e utilizam a linguagem simbólica para falar do que lhes falta. Para Winnicott, “o espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo”. (WINNICOTT, 1975, p.142). A comunidade investigada revela que as condições sociais e econômicas dos moradores é bastante precária em relação aos bairros centrais da cidade. As famílias são constituídas de mães que cuidam dos filhos ou de avós que cuidam dos netos. As separações, assim como os recasamentos, são bastante freqüentes entre os casais. Em função do sofrimento causado pela miséria, pelas separações ou pelo abandono dos pais desde o desenvolvimento inicial, as crianças investigadas revelam ocasionalmente um apego exagerado aos cuidadores, como também defesas contra a experiência de frustração no cotidiano de suas vidas. Observou-se que crianças e adolescentes vivem um cotidiano realçado por momentos de intenso prazer e desprazer junto de seus cuidadores e demais pessoas que constituem o núcleo de residentes das proximidades. Crianças acompanhadas ou não dos seus pais convivem com a falta de recursos materiais e a instigante luta para sobreviver em espaços físicos muito reduzidos. O mesmo não se pode dizer sobre o espaço no sentido psíquico; algumas práticas são exploradas de modo intensamente diversificado e criativo, com precários recursos disponíveis. Essa concepção auxilia na compreensão dos elementos apontados pela psicanálise a respeito da história trazida pela criança no seu desenvolvi- 324 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial A intervenção pedagógica: algumas reflexões Para trabalhar com crianças, é necessário compreender a história de suas vidas, o que lhes marcou, o que possibilita ir ao encontro delas e estabelecer diferentes formas de interação. Buscar a criança no lugar em que ela se encontra fortalece a hipótese de que as marcas originadas por um olhar seguro e confiante no desenvolvimento inicial ajudam-na a se organizar diante dos conflitos. O professor, na ação docente, para se aproximar da história dessas crianças, necessita revisar a trajetória escolar dos mesmos, falar ou pensar sobre as respectivas experiências. 6 MAGGI, Noeli Reck. Por que as Crianças Resistem às Leis? Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 32, p. 105-115, jul./dez. 2002. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 325 Noeli Reck Maggi mento inicial.6 O modo como a criança experimenta e vivencia o processo de filiação e as condições como utiliza o espaço potencial de criatividade tornaram-se elementos centrais para a reflexão sobre esse estudo. O afastamento dos pais causado pela morte ou abandono quando a criança viveu seus primeiros anos de vida não impediu que ela falasse desses acontecimentos contando histórias, desenhando, dramatizando ou refletindo sobre o ocorrido. Um menino com sete anos, impedido pela mãe de encontrar-se com o pai, chora desolado e, ao mesmo tempo, se refaz enquanto brinca com o animal de estimação. É especialmente no brinquedo que crianças se refugiam e parecem entregar-se à imaginação, fazendo do animal de estimação o interlocutor, ou criando histórias que aliviam a ansiedade causada pela dor do abandono, da morte ou da separação. O uso do espaço potencial de criatividade está presente nas horas de brinquedo, quando as crianças simulam papéis, inventam personagens, desenham e contam histórias. Observa-se que a possibilidade de simbolizar parece estar preservada na criança, na medida em que inventa situações que garantam uma realidade desejada. Entre os comportamentos observados, identificaram-se crianças que criam alternativas no decorrer das brincadeiras e utilizam a linguagem simbólica para falar do que lhes falta. A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE Nas crianças investigadas, a criatividade está presente na hora de ajudar o amigo a desvendar o mistério do jogo, como também a tolerância à frustração é percebida nos momentos em que são vencidas pelo opositor. Demonstram relativa aceitação, no momento em que o ator da brincadeira necessita deslocar papéis e capacidade reflexiva, quando, ao final de um jogo, reconhecem o vencedor. As narrativas inventadas carregam a dureza do cotidiano, mas há uma representação do amor e do ódio traduzida na linguagem oral que aparece deslocada para um personagem. O oprimido da vida real transforma-se em opressor na história ou no teatro, dando a chance de realizar a justiça, mediante um processo ordenado e de realizar uma suposta convivência com o outro. Para Winnicott, “sem o brinquedo, a criança é incapaz de ver criativamente o mundo, e, em conseqüência disso, é arrojada de volta à submissão e a um senso de futilidade, ou à exploração de satisfações instintuais diretas” (WINNICOTT, 1994, p.50). Enquanto brincadeira, as crianças expressam a possibilidade de construir e reconstruir as imagens que povoam seus sonhos. Na hora de deslocamento para o jogo faz-de-conta, as dificuldades ficam reduzidas e as possibilidades de criação não têm limites. Quando o personagem quase morre na história narrada, sobrevive mais tarde, porque alguém o acolheu. As situações limites são experimentadas com muita imaginação e possibilidades de retorno do objeto supostamente perdido. Segundo Winnicott (1990, p.135), as crianças com experiências de relacionamento bastante restritas sentem-se ameaçadas pela possível perda da capacidade de enfrentar a realidade externa. As observações realizadas indicam que a preferência pelas brincadeiras solitárias, o excesso de rivalidade e a dificuldade de contato com a realidade estão mais presentes em crianças que sofreram privações nos momentos precoces do desenvolvimento. Observa-se, no entanto, que no brinquedo há uma preferência por dialogar com personagens que, de alguma forma, satisfazem o que as crianças desejam. Compreender a história dessas crianças e o que as marcou no seu desenvolvimento inicial torna-se uma preocupação instigante para desenvolver uma atividade pedagógica competente. 326 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 327 Noeli Reck Maggi A precariedade de recursos para sobrevivência, a privação e o abandono das crianças mantiveram preservado, total ou parcialmente, o uso do espaço potencial em que se originam a criação e o brinquedo, dependendo das condições de cada sujeito. Winnicott (1975, 1982), Aulagnier (1979), Lacan (1998), Freud (1905, 1911, 1920) e Ogden (1995) apontam elementos, conceituais com base em seus estudos, de que a presença da lei, ou de um terceiro representado pela função do pai na relação mãe-filho, possibilitam ao sujeito sair da condição de natureza, ou seja, de expressar diretamente a energia pulsional, para entrar na condição de um ser civilizado, ordenando as suas necessidades em função do grupo e da cultura à qual pertence. A ausência da função paterna ocasionada por um trauma, ou pelo trágico rompimento da relação entre a mãe e o filho, pode fragilizar o processo de simbolização. As crianças investigadas, mesmo tendo sofrido perdas, tais como abandono logo após o nascimento, desnutrição, morte de um dos pais ou de familiar próximo, apresentam significativa capacidade criativa nos momentos de brinquedo livre e dirigido. À medida que as crianças brincam, constroem histórias e falam da própria história; possibilitam, junto aos pares, assumir-se como um novo protagonista nas situações improvisadas pelo grupo. Ao refletir sobre o uso do espaço potencial, observa-se como as crianças se locomovem através dos personagens criados, bem como dos espaços a eles designados, atribuindo significados e estabelecendo relações de amor e de ódio como forma de falar das suas vidas. Dentro dessa perspectiva, observa-se que os sujeitos investigados expressam tolerância às frustrações, mesmo que de modo restrito, ou ainda relativizam os fatos e tomam posição diante de um conflito quando se faz necessário. Observa-se que as crianças desse estudo, embora privadas da presença dos pais da realidade, enquanto narram suas histórias e combinam situações de jogo, conseguem discriminar os papéis, os lugares e as pessoas. Junto com esses elementos representados no brinquedo, os personagens são pensados no nível imaginário, ao mesmo tempo que a expressividade A CRIANÇA DE ESCOLARIDADE INICIAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE do jogo simbólico faz-de-conta traz um diálogo em que se presentifica o reconhecimento do Outro. Às crianças que foram privadas do espaço potencial para criar, imaginar ou inventar saídas diante do caos pulsional manifesto, resta alguma esperança de que a escola, como uma instância educacional, possa delimitar tanto o espaço geográfico quanto o espaço psíquico de criatividade, com a presença de educadores generosos e firmes no que desejam de seus alunos. É necessário destacar que os traumas no desenvolvimento inicial, provocando dificuldades no processo de simbolização, não estão restritos aos sujeitos com condições sócioeconômicas desfavoráveis. Como o desenvolvimento também está relacionado às condições psíquicas dos pais, o fator transgeracionalidade é elemento importante para a saúde psíquica do filho. A criança, quando inicia a escolaridade, necessita ser acolhida e preservada na sua singularidade, reconhecida nos seus limites e inserida nos códigos e valores sociais, para sentir-se segura e verdadeiramente participante do seu projeto de vida e do grupo social mais amplo. Abstract Primary School Infants: a psychoanalytical contribution This paper presents ideas about infants’ development, the influence of their first ties, their sexuality and the use of toy, and the sublimatory activities translated into desire of knowing, according to Freud and Winnicott theories. Leaving home and starting school represent to the infants a rite of passage and the first meaningful separation from parents to become part of a larger group of people, with whom they will interact and enlarge identity ties. The theoretical elements that explain infants’ first acquisitions and allow them to be part of a system of rules and modes of relation typical of school culture are reviewed here compared to the results of a research carried out in a community in Porto Alegre. Key-words Latency. Sublimation. Potential space. Creativity. 328 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial El Niño de Escolaridad Inicial: contribuciones del psicoanálisis En este trabajo se presentan ideas, fundamentadas en las teorías de Freud y de Winnicott, sobre el desarrollo del niño, sobre la influencia de los primeros vínculos, sobre la sexualidad y el uso del juguete, y sobre las actividades subliminales traducidas en la pulsión del saber. La salida de casa y el ingreso a la escuela representan para el niño un pasaje y también una primera ruptura de la familia, para ingresar a un grupo más amplio de personas con las cuales podrá interactuar y ampliar los vínculos de identificación. En este estudio, se revisan los elementos teóricos que explican las adquisiciones iniciales del niño, permitiéndole el ingreso a las reglas y a los modos de relación propios de la cultura escolar, y se establece una confrontación con el resultado de una investigación realizada en una comunidad de Porto Alegre. Palabras-llave Latencia. Sublimación. Espacio potencial. Creatividad. Referências AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1979. AULAGNIER, Piera. O Aprendiz de Historiador e o Mestre-Feiticeiro: do discurso identificante ao discurso delirante. São Paulo: Escuta, 1989. CAREGNATO, Célia Elizabete; HASSEN, Maria de Nazareth Agra; MAGGI, Noeli Reck. O Saber que as Crianças Levam para a Escola: traços culturais na sala de aula em escolas da Vila Cruzeiro do Sul/Porto Alegre. Porto Alegre: NIPE/ UNIRITTER, 2002. Relatório de Pesquisa realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em educação, Cultura e Sociedade. DOR, Joël. 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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Noeli Reck Maggi E-mail: [email protected] 330 Psicanálise v. 8, n. 2, p.313-330, 2006 Edição Especial Vera Maria Homrich Pereira de Mello* “Educar, ao lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível’’ Freud (1936, p. 282). Com a escolha dessa frase do nosso grande mestre Freud, ao iniciar este texto, buscamos introduzir os temas Psicanálise e Educação, dando a dimensão da extrema complexidade do mesmo. Em um minucioso estudo sobre o tema Educação na obra de Freud, Kupfer (1995) comenta que, embora somente 200 das 3.667 páginas que compõem a edição espanhola das Obras Completas de Freud sejam dedicadas a reflexões, análises e críticas à educação, este é um tema presente. Já em 1915, nas Conferências Introdutórias à Psicanálise, Freud sentencia: “A criança deve aprender a dominar seus instintos, logo a educação tem de inibir, proibir, reprimir, e assim fez em todos os tempos.” Em outro momento de sua obra, no belo texto O MalEstar na Civilização, Freud enfatiza que, pelas proibições * Psicóloga. Psicanalista. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 331 Vera Maria Homrich Pereira de Mello Psicanálise e Educação: o sonho impossível? PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: O SONHO IMPOSSÍVEL? impostas pela lei, os instintos passam a ser trabalhados para que haja uma adaptação à vida comunitária. Dizia ele: A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. (Freud, 1929, v.21, p.117). Freud, nesse texto, fazia uma analogia muito precisa entre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo. Entende que, no indivíduo, as pulsões são induzidas a alterar as condições de sua satisfação, buscando outros caminhos. Alerta, no entanto, que, caso essa impossibilidade de satisfação não seja economicamente compensadora, sérios distúrbios ocorreriam. Inicialmente, Freud acreditava que o conflito se dava pela luta entre as pulsões sexuais e a educação, que trazia ao indivíduo a idéia de pecado e de vergonha diante de práticas sexuais. Não podemos deixar de lembrar, aqui, o contexto cultural da época, pois era início do século XX e a moral vitoriana vigorava. No entanto, o grande mestre foi-se dando conta de que existia um processo interno, ao qual deu o nome de recalque. O recalque opera no interior do aparelho psíquico e se ancora nas restrições morais de cada cultura. E, ainda, é graças a esse recalque que o sujeito se torna um ser social. Paradoxalmente, portanto, esse recalque é fundamental na organização psíquica do sujeito, bem como no processo de socialização. Nessa linha de pensamento, Françoise Dolto, ao falar do desenvolvimento infantil, enfatizava que, quando o desejo de uma criança é sempre satisfeito, há, na verdade, uma morte do desejo. Para que a criança possa desejar, ela precisa encontrar resistências. Preocupava-se em deixar claro que isso não significava que teriam de ser impostas à criança proibições a todo o momento. Ao contrário, a proibição só tem sentido quando é a mes332 Psicanálise v. 8, n. 2, p.331-337, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 333 Vera Maria Homrich Pereira de Mello ma para os pais, e a criança confia nos adultos que a impõem. A criança entende, então, que a lei é para todos e que os adultos também são submetidos a uma lei maior. Somente dessa forma a criança adquire a noção de que as proibições são doadoras de segurança, e que, quando as transgride, sofre com isso, reconhecendo um valor na fala parental. “A educação é não apenas a identificação com os adultos, mas também o abandono do circuito curto de satisfação por uma troca baseada na modificação das formas, com vistas a produzir idéias que sejam representantes de outra coisa” (LEDOUX, 1993). Nesse sentido, a educação promoveria uma maior autonomia, a oferta de identificações e modelos de domínio, bem como a expressão clara da proibição dos desejos incestuosos, e é exatamente a tolerância a essa proibição que insere o sujeito na condição simbólica. Para Freud, a curiosidade sexual seria a matriz para a curiosidade, tão imprescindível para o aprender. Diante de uma série de questões que vão se apresentando, tais como: como nascem os bebês? como eles são feitos? o que papai e mamãe fazem no quarto sozinhos? enfim, perguntas que estimulam que várias teorias sejam elaboradas pela criança, como forma de tentar entender o grande enigma da vida – de onde viemos e para onde vamos. Essas teorias vão sendo constituídas, conforme o desenvolvimento libidinal da criança. Uma primeira tentativa pode ser a explicação da criança de que os bebês nascem pelo ânus, pois esse é um processo conhecido seu, como forma de liberar-se de conteúdos, que estejam em sua barriga. Parece claro, até aqui, a estreita correlação entre a curiosidade intelectual e a curiosidade sexual; percebe-se que a imagem fantasiada da cena primária está ligada ao desejo de conhecer. Isso pode ser observado também na Bíblia, na qual essa situação é colocada, quando é dito “Adão conheceu Eva”, fazendo referência ao fato de ter ocorrido uma relação sexual entre ambos. Poderíamos pensar que seriam derivados da curiosidade sexual o prazer em realizar pesquisas, bem como o interesse por viajar e conhecer lugares novos, o gosto pela leitura, etc. PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: O SONHO IMPOSSÍVEL? Também nos mitos, a questão do desejo de saber se faz presente. Lembremos o mito de Édipo Rei, no qual a busca da verdade sobre sua origem se dá a qualquer preço, fazendo com que seu destino seja o exílio e a cegueira. No entender de Grinberg, Bianchedi e Sor (1973), seriam comuns algumas características nos mitos, como a presença de um ser onisciente e onipotente, uma atitude de desafio e de curiosidade e, por último, em conseqüência dessa atitude, o castigo estimulado pelas proibições existentes. Muitos teóricos da Psicanálise têm se ocupado desse tema, e entre eles destacamos Melanie Klein, que desenvolveu o conceito de Impulso Epistemofílico, como a pulsão que promove a busca do saber. Nos seus textos da década de 20 a 30, Klein estabelece um fio condutor entre o desejo de conhecer e a pulsão sádica de controlar e dominar. Para Melanie Klein, o conhecimento seria, portanto, uma forma de controlar a ansiedade. Faz-se aqui um novo trajeto, no qual o sadismo passa a ter um papel especial no tocante às inibições intelectuais, provocando problemas de aprendizagem. Nesse sentido, Klein demonstra, por meio de sua clínica, o quanto a incapacidade de uma criança de realizar contas de adição ou subtração pode estar significando, retratando uma dificuldade para lidar com situações de perda, separação, chegada de um irmão, ou, ainda, o quanto um bloqueio no desejo de saber pode estar relacionado a uma outra proibição, como, o segredo de uma adoção não revelada. Castro aponta que [. . .] se houver excessiva ansiedade a respeito de destruições ocasionadas, em fantasia, no interior do corpo materno, a criança poderá suprimir toda a investigação sobre ele, gerando, mais tarde, inibições na curiosidade em geral, e no desejo de aprender. O medo ao próprio sadismo pode conduzir, então, a uma inibição da investigação e ao embotamento da curiosidade em geral. (CASTRO, 1998). Um outro autor que trabalhou muito sobre a capacidade de pensar foi Bion. Partindo inicialmente de conceitos kleinianos, esse autor trouxe con334 Psicanálise v. 8, n. 2, p.331-337, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 335 Vera Maria Homrich Pereira de Mello tribuições ricas e genuínas, como, a idéia de que o bebê nasce com um impulso para o conhecimento, o vínculo K (de Knowledge), e este estaria ligado à busca do saber e das verdades sobre si próprio. Entende que o conhecimento tem como ponto de partida a relação que o sujeito vai estabelecer diante da ausência do objeto. Grimberg, Bianchedi e Sor (1973) apontam que Bion, ao desenvolver sua teoria sobre o pensamento e o pensar, também falava de uma teoria do conhecimento e da aprendizagem através da experiência e de suas perturbações. Bion atribui às emoções o eixo do desenvolvimento mental e dos processos de conhecimento e pensamento. Esse autor considera que, para existir uma relação, tem de haver um vínculo entre duas partes, e que este é matizado por três fatores, que funcionariam como elos: amor, ódio e conhecimento. Nesse sentido, o vínculo K pressupõe a existência de um sujeito que deseja conhecer algo e de um objeto que se deixa ser conhecido. Bion utiliza o modelo mãe–bebê para exemplificar esse processo, no qual a mãe, ao amamentar o seu bebê, junto com o leite dá um outro tipo de alimento, que é poder conter a ansiedade e os estados emocionais desse bebê, por meio de sua voz e da forma como o segura no colo. Enfim, fazer o rêverie que é a capacidade da mãe de permanecer em uma atitude de receber, acolher, decodificar, significar, nomear as angústias do filho e somente depois, então, devolvê-las devidamente desintoxicadas (ZIMERMAN, 1994, p.64). Ao escrever este texto, fomos nos conduzindo à questão da aprendizagem, do desejo de saber, e verificamos que nossa concepção de educação está muito ligada à condição de oportunizar à criança, em desenvolvimento, a possibilidade de ser um adulto curioso, desejoso de aprender, de vivenciar estados emocionais, de viver, e não somente passar pela vida. Lembramo-nos, aqui, de um documentário apresentado no mês de março, em rede nacional, e que talvez vários de vocês tenham assistido: Falcão – Meninos do Tráfico do MV Bill, e que nos fez pensar muito. Destacamos o diálogo do repórter com um menino de 10 anos, traficante. R – Às vezes você chora? M – Não. PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: O SONHO IMPOSSÍVEL? R – Mas você não chora quando fica triste? M – Eu não fico triste. Eu não penso em nada, eu tô sempre se drogando. R – Mas se você morrer? M – Quando eu morrer, vou descansar. É muito esculacho nesta vida. Essa criança morreu antes do documentário ser apresentado. Lajonquière (1996) diz que “todo ato educativo porta consigo uma cota de deve ser”. A educação filia o aprendiz a uma tradição comum, instalando-o numa condição de devedor. Ele conclui que educar não é nada mais do que o corriqueiro pôr em ato de filiação e sujeição a ideais, desejos, sistemas epistêmicos e dívidas. Afirma que o tamanho do fracasso escolar que assola o país é proporcional à extensão da renúncia à educação. Neder Bacha (2006) assinala que esse fato é ainda mais preocupante, quando se observa que essa renúncia se estende à educação dos educadores; destaca a expressão o “sacerdócio educacional” como uma representação desse processo. Ao pensarmos no ato de aprender, vem à mente a relação professoraluno; aprender implica aprender com alguém. Freud destacava que o professor é investido de uma importância especial, principalmente no período de latência. Dizia ele que, no decorrer desse período, são os professores, assim como as pessoas responsáveis pela tarefa de educar, que tomarão para a criança o lugar dos pais, particularmente do pai, e que serão alvo dos sentimentos dirigidos, inicialmente, à figura do pai, na ocasião da resolução do Complexo de Édipo. Vemos, portanto, nesse pensamento, a importância que o pai da psicanálise dava às relações afetivas entre professor e aluno. Kupfer (1995) aponta que, da perspectiva psicanalítica, não se focalizam os conteúdos, mas o campo que se estabelece entre o professor e o seu aluno, e que este fornece as condições para o aprender, sejam quais forem os conteúdos. Finalizando, retomamos a frase de Freud que diz que educar, ao lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível. Quem sabe se, ao 336 Psicanálise v. 8, n. 2, p.331-337, 2006 Edição Especial Referências BACHA, Márcia S. C. Neder. Psicanálise e Educação: laços refeitos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. CASTRO, Maria da Graça Kern. Inibições Intelectuais e Fugas Frente ao Conhecimento: o aporte da psicoterapia psicanalítica com crianças. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia da PUC, RS. Porto Alegre, Março de 1998. FREUD, Sigmund (1929). O mal-estar na civilização. In: . Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V.21. FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. In: .Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. 23. GRIMBERG, L; SOR D.; BIANCHEDI, T. E. Introdução às Idéias de Bion. Rio de Janeiro: Imago, 1973. KLEIN, Melanie. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1975. LAJONQUIÈRE, Leandro. Infância e Ilusão (Psico) Pedagógica. Escritos de Psicanálise e Educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. LEDOUX, Michel Henri. Introdução à Obra de Françoise Dolto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. KUPFER, Maria Cristina. Freud e a Educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 1995. ZIMERMAN, David. Bion da Teoria à Prática: uma leitura didática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Vera Maria Homrich Pereira Mello Av. Taquara, 193/201 90462-210 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (51) 3330-5989 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 337 Vera Maria Homrich Pereira de Mello levantar essa questão, o interesse de Freud não seria o de enfatizar que essas são atividades em que jamais se atinge integralmente o objetivo, embora a própria busca, por si só, possa ser uma atividade fascinante. PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: O SONHO IMPOSSÍVEL? 338 Psicanálise v. 8, n. 2, p.331-337, 2006 Edição Especial Ciência e Psicanálise Eduardo Luft* A disciplina que denominamos Filosofia da Ciência teve sua gênese nos debates ocorridos no Círculo de Viena, grupo fundado na primeira metade do século XX por M. Schlick. Ela nasce marcada por dois pressupostos à época incontestes: interpretação empirista do saber científico e fundacionismo em teoria da justificação. De certo modo, podemos compreender a própria história da disciplina1 como a crise contínua do paradigma fundacionista, o que * Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo (PUCRS). Mestre em Filosofia (PUCRS) e Doutor em Filosofia pela PUCRS e Universidade de Heidelberg, Alemanha. 1 Refiro-me aqui, sempre, à tradição predominante em Filosofia da Ciência que considerava a disciplina uma investigação sobre o sentido da ciência enquanto ciência e suas peculiaridades em contraposição a outras formas de saber. A Filosofia da Ciência é, todavia, uma disciplina mais vasta: além dessa abordagem metacientífica, que poderíamos denominar Epistemologia das Ciências, há uma abordagem predominantemente ontológica – por exemplo, a investigação dos pressupostos mais gerais de determinada ciência na busca por compreender o mundo –, uma Ontologia das Ciências, portanto, que deixo aqui inteiramente não tratada. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 341 Eduardo Luft A Crise do Fundamento: uma conjectura sobre a trajetória da Filosofia da Ciência A CRISE DO FUNDAMENTO: UMA CONJECTURA SOBRE FILOSOFIA DA CIÊNCIA A TRAJETÓRIA DA conduzirá à revisão do empirismo algo ingênuo dos primórdios, fazendo emergir, entre outras alternativas plausíveis, uma nova abordagem capaz de integrar empirismo (criticamente concebido) e coerentismo. É o que esclarecerei a seguir. O projeto filosófico do Círculo de Viena ancorava-se na tentativa de demarcar claramente o terreno em que se movimenta o saber científico, excluindo dele o que chamavam de pseudociência. Como distinguir com rigor, por exemplo, Astronomia e Astrologia, Física e Metafísica? Uma tese era compartilhada por vários integrantes do Círculo, e foi levada às últimas conseqüências por Carnap (1998) em sua obra Der logische Aufbau der Welt: somente o discurso científico possui sentido. Mas o que vem a ser “sentido”? Uma sentença qualquer tem sentido se e somente se for possível, por algum tipo de procedimento, determinar a sua verdade (ou falsidade). E nesse ponto torna-se explícito o caráter estritamente empirista da posição defendida por Carnap na obra citada2. Há apenas dois procedimentos adequados para determinação da verdade (ou falsidade) de uma sentença: ou a verificação empírica ou a explicitação das regras que exaurem o sentido estritamente formal das verdades lógicas e matemáticas. Uma afirmação como: “O dia está nublado” tem a determinação de seu sentido garantida pelo procedimento simples de indicação das condições atuais do clima em certo tempo e lugar, ou seja, por sua verificação empírica3; por outro lado, sentenças como o princípio do terceiro excluído têm sentido enquanto somos capazes de explicitar as regras formais que determinam a sua verdade necessária no contexto de certo tipo pressuposto de lógica. O Aufbau de Carnap pretendia demonstrar a viabilidade desse projeto de um empirismo renovado à luz dos novos procedimentos da lógica con- 2 O empirismo rigorista defendido por Carnap no Aufbau foi reformulado e atenuado em obras , A Filosofia posteriores do autor (cf. W. Stegmüller, Carnap e o Círculo de Viena, in: Contemporânea,São Paulo, Edusp, 1977, p.305). 3 “Diz-se que um enunciado p é ‘testável’ se se pode indicar as condições sob as quais ocorreria uma experiência E que fundamenta p ou a contradição de p” (CARNAP,R. Pseudoproblemas em Filosofia. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975, v. 44, p.164). 342 Psicanálise v. 8, n. 2, p.341-352, 2006 Edição Especial 4 Cf. W. Stegmüller, A Filosofia Contemporânea, São Paulo, EDUSP, 1977, v.1, p.284ss. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 343 Eduardo Luft temporânea constituindo todos os conceitos científicos a partir de uma fina base observacional. Embora o fenomenismo típico da posição de Carnap tenha sido criticado no interior do próprio Círculo de Viena – por Schlick, por exemplo4 –, a ênfase na base empírica como o lugar adequado para fundamentação das sentenças sintéticas (dotadas de conteúdo fatual) torna explícito outro pressuposto central do novo empirismo vienense: fundacionismo em teoria da justificação. De fato, é o apelo a dados observacionais, sejam eles as percepções de um determinado agente epistêmico ou os registros de um dado pesquisador ao realizar seus experimentos – os protocolos que sustentam as “sentenças protocolares” –, que dota de caráter científico as afirmações dos Físicos, Biólogos, etc. “O único fundamento último de meu reconhecimento de uma sentença como verdadeira encontra-se naquelas experiências simples que podem ser consideradas como o passo definitivo para a comparação entre sentença e fato”, dirá Schlick (1986, p.228). Pelo menos duas dificuldades resultam da tentativa de encontrar nas sentenças observacionais ou protocolares o fundamento último da ciência. Vamos à primeira delas. Como é possível destacar tão claramente as sentenças protocolares do sistema geral de nosso discurso? Como purificá-las de elementos não-empíricos a ponto de considerá-las livres de todo e qualquer pressuposto metafísico – ou seja, de todo elemento não redutível a dados observacionais? Ou, pior, que sentença cientificamente relevante pode ser qualificada de estritamente protocolar? Devemos a Popper a explicitação desse problema: mesmo a sentença empírica mais banal, como “água é H2O”, diz muito mais do que o suposto no contexto de um empirismo ingênuo. Ela contém, implicitamente, uma interpretação sofisticada a respeito da estrutura do mundo. De fato, todos os conceitos fatuais cientificamente relevantes contêm não apenas descrições de estados atuais no mundo experienciado, mas o extrapolam na direção de hipóteses universalíssimas sobre o modo de funcionamento do real. A CRISE DO FUNDAMENTO: UMA CONJECTURA SOBRE FILOSOFIA DA CIÊNCIA A TRAJETÓRIA DA Mesmo se fossemos capazes de afastar da ciência o fantasma da especulação, mesmo se fosse possível uma ciência radicalmente não especulativa (o que identifico aqui com o termo não metafísica), ainda assim cairíamos na segunda dificuldade – tão bem investigada por Popper (1994) em Logik der Forschung – que parece minar o projeto de um fundacionismo empirista: o problema da indução. Nenhuma experiência atual é capaz de servir como fundamento da verdade das afirmações universalíssimas que constituem o cerne e – se verdadeiras – a razão de ser da prática científica, ou seja, das teorias científicas, pois a verdade de sentenças universais não pode ser deduzida da verdade de sentenças singulares. Faltando o elo capaz de fundamentar radicalmente a verdade das sentenças universais – das teorias – na verdade das sentenças singulares – as observações –, mesmo as ciências mais rigorosas terminam por se revelar especulativas. Popper dedicou boa parte de suas pesquisas à constituição de uma nova metodologia capaz de enfrentar essa segunda dificuldade inerente ao projeto empirista. Se o critério do sentido fosse a medida diferenciadora de ciência e pseudociência, não apenas a Metafísica, mas todas as disciplinas que atualmente denominamos científicas, carregadas como estão de especulação, cairiam no rol das pseudociências. Era preciso mudar o método de demarcação entre ciência e pseudociência. É nesse contexto que Popper propõe a abordagem falsificacionista, pilar do Racionalismo Crítico. Se não podemos fundamentar positivamente a ciência na experiência, então devemos fazê-lo negativamente. Se não se pode deduzir a verdade de sentenças universais a partir da verdade de sentenças singulares, podemos a partir dessas provar a falsidade daquelas. Embora a ciência não possa ser positivamente constituída a partir da estreita base empírica, é a partir desta que podemos controlá-la criticamente. Desse modo, Popper dava uma resposta original ao problema da demarcação. A diferença entre a ciência e os saberes não-científicos não é estanque como pensavam os neopositivistas. As sentenças de saberes como a Metafísica não são destituídas de sentido, mas apenas carentes da 344 Psicanálise v. 8, n. 2, p.341-352, 2006 Edição Especial 5 Cf. K. Popper, “Que é dialética?”, in: . Conjecturas e refutações, 4.ed., Brasília, UNB, 1972, p.343-365. Devemos a H. Albert o reconhecimento do forte vínculo da intuição central do falsificacionismo com as idéias da tradição dialética (Cf. o seu Tratado da Razão Crítica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 345 Eduardo Luft contrapartida de evidências empíricas capazes de colocá-las em xeque. Não uma barreira intransponível, mas a linha tênue de um a caminho separa a Metafísica da Física. De outro lado, o verdadeiro divisor de águas não se dá entre discurso com sentido e sem sentido, mas entre saberes fechados (ou dogmáticos) e saberes abertos à correção (ou críticos). O status de ciência ou de saber em vias de se tornar ciência deriva não de certa disposição de nosso discurso, mas da postura prática dos agentes epistêmicos enquanto se mostram abertos à problematização de seus pressupostos teóricos. É curioso notar o quanto essas idéias inovadoras aproximam Popper da tradição dialética, sempre por ele tão severamente combatida5. A criticidade é o núcleo central dos diálogos platônicos, erguidos sobre o modelo da confrontação entre diversos pontos de vista na busca das posições teóricas mais plausíveis. E mesmo Hegel, embora não raro refém de tendências dogmáticas, ergueu uma abordagem epistemológica muito próxima dos resultados posteriormente alcançados pelo falsificacionismo. Como compreender o longo itinerário descrito na Fenomenologia do Espírito, se não como o desenvolvimento contínuo do saber humano, por tentativa e erro, na direção do conhecimento objetivo? Há, todavia, uma diferença crucial entre o falsificacionismo e a dialética que tem muito a nos dizer sobre a abordagem popperiana, ou melhor, sobre suas limitações. Os pensadores dialéticos estão longe de considerar a experiência, ou algo como a base empírica, o fundamento da dimensão crítica da ciência. Para Platão, como vimos, o terreno adequado para exercício da crítica é o diálogo filosófico, realizado em níveis altamente especulativos. No caso de Hegel, a criticidade emana, por um lado – na Fenomenologia do Espírito –, do próprio modo de desenvolvimento do pensamento humano no percurso histórico, sob o impacto permanente de novos desafios, revisão contínua de visões de mundo pregressas e consti- A CRISE DO FUNDAMENTO: UMA CONJECTURA SOBRE FILOSOFIA DA CIÊNCIA A TRAJETÓRIA DA tuição de abordagens teóricas renovadoras; de outro lado, ela brota do diálogo especulativo com a vasta tradição filosófica na procura por uma visão integradora capaz, ao mesmo tempo, de preservar o tesouro da história da filosofia e renovar a disciplina à luz do estágio atual do saber – o que é característico na Ciência da Lógica. Em ambos os casos, a criticidade brota do contínuo embate desenvolvido no ambiente de ar rarefeito da vida especulativa, e não na atmosfera supostamente purificada da empiria. Popper segue caminho bem diverso. Apesar de todas as críticas que sempre direcionou aos neopositivistas, ele manteve-se até o fim estritamente dentro da tradição empirista. Isso se levarmos em conta o postulado primordial de sua forma de criticismo: a consideração da experiência, ou da base empírica, como o lugar privilegiado de exercício da crítica. O confronto contínuo com a experiência é considerado por ele a marca fundamental do saber científico. Como no caso da posição predominante dentro do Círculo de Viena, também em Popper o empirismo está vinculado a uma abordagem fundacionista em teoria da justificação e a uma forma de conceber o conhecimento que denomino epistemologia linear. Também nesse ponto o criticismo popperiano não tem nada de dialético: a ciência deveria ser concebida à luz da metáfora da arquitetura – uma grande construção assentada sobre a base empírica, mesmo se entendermos tais fundamentos como precários. Assim como a solidez de cada andar do vasto prédio depende da solidez das fundações, também cada argumento científico ganha sua legitimidade da capacidade que temos de vinculá-lo à sua origem legitimante, ou seja, o confronto com a experiência. Poderíamos perguntar, contudo, por que teria a experiência tamanho privilégio. Que característica torna as sentenças de base (o análogo popperiano às sentenças protocolares dos neopositivistas) tão diferentes de afirmações puramente especulativas? Por outro lado, haveria mesmo sentenças estritamente não especulativas? No todo da nossa linguagem, caberia algum lugar para a presença de enunciados puramente empíricos? Esse purismo seria mesmo plausível? Já vimos que o próprio Popper questiona346 Psicanálise v. 8, n. 2, p.341-352, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 347 Eduardo Luft ra duramente o rigorismo empirista que desconhecia que mesmo sentenças empíricas científicas singelas contêm forte teor especulativo. Popper questionou esse ponto, é verdade, mas não levou suas problematizações às últimas conseqüências: “Somente denominamos uma teoria falsificada se podemos reconhecer as sentenças de base que a contradizem.” (POPER, 1994, p.54). A experiência permanece sendo a fundação onde repousa o edifício da ciência. Se esse pressuposto fosse questionado, a abordagem popperiana original precisaria ser abandonada. Foi exatamente isso que ocorreu no decorrer da história da Filosofia da Ciência. Se o traço predominante na Filosofia da Ciência desenvolvida no Círculo de Viena era a defesa de uma perspectiva atomista em filosofia da linguagem e fundacionista em teoria da justificação, novos desenvolvimentos tenderão a enfatizar abordagens exatamente opostas. O atomismo defende que sentenças tenham sentido independentemente de seu vínculo com outras sentenças, constituindo-se no pressuposto basilar que torna crível a idéia de que uma ou algumas sentenças protocolares podem representar o fundamento – positivo ou negativo – de legitimidade do conjunto da ciência. O fundacionismo, como já vimos, parte de uma leitura linear do processo justificacional, de tal modo que o conjunto da ciência termina suportado por algumas poucas afirmações consideradas seguras – ou, ao menos, sólidas o suficiente para suportar o edifício complexo da ciência. Na abordagem empirista analisada até aqui, as sentenças teóricas, de traço marcadamente especulativo, apresentam-se ancoradas nas sentenças de base, que constituem sua fonte de legitimação. Sendo assim, atomismo e fundacionismo estão estreitamente ligados. Uma perspectiva holista em filosofia da linguagem parte do pressuposto de que nem conceitos, nem sentenças, têm sentido isolados da totalidade de um sistema de discurso. Uma sentença científica tem seu sentido esclarecido apenas a partir da compreensão da totalidade de um determinado sistema de crenças científicas. Note-se que tanto os programas de pesquisa de Lakatos quanto os paradigmas de Kuhn, para citar apenas dois exemplos de abordagens renovadoras na Filosofia da Ciência pós-Popper, A CRISE DO FUNDAMENTO: UMA CONJECTURA SOBRE FILOSOFIA DA CIÊNCIA A TRAJETÓRIA DA implicam interpretações holísticas do discurso científico. Para Lakatos, nenhuma falsificação centrada apenas em algumas sentenças de base é suficiente para pôr em questão um projeto de pesquisa atualmente em vigor. Na verdade, um programa de pesquisa é compreendido como um sistema total, abarcante de crenças, composto por zonas passíveis de revisão e um núcleo duro que deve permanecer sem modificações no decorrer de execução do programa. No caso de Kuhn, é a totalidade de um paradigma que guia a prática científica, dando gênese ao que o filósofo denominava a ciência normal. No contexto de uma abordagem holística, o fundacionismo torna-se inaplicável, ao menos quando estritamente observado. A ciência não pode estar fundada em uma ou em algumas sentenças, quando a legitimação do discurso científico deriva de uma totalidade abarcante de sentido. Sendo assim, a justificação de uma dada crença científica não se processa ao reconduzi-la a alguma sentença de base, mas ao reinseri-la no todo do discurso científico. A sua legitimidade deriva diretamente de sua coerência com o sistema total de nossas crenças, e não de seu vínculo com certa sentença protocolar. A abordagem holística exige a substituição de modelos fundacionistas por modelos coerentistas em teoria da justificação. Essas novas abordagens nasceram, em parte, do reconhecimento de que as supostas sentenças de base ou sentenças protocolares são fortemente dependentes de teorias. Na verdade, qualquer observação cientificamente concebida pressupõe uma grade semântica altamente complexa – possibilitada por teorias refinadas – que é a precondição para a interpretação dos dados observados6. Sendo assim, se é verdade que as sentenças especulativas que compõem a dimensão teórica do discurso científico devem permanecer coerentes com as sentenças protocolares, tendo nesse sentido um certo lastro empírico, também é verdade que os protocolos somente podem ser constituídos sob a pressuposição da grade semântica disponibilizada pelas sentenças universais e especulativas que compõem as teorias. Resulta des- 6 Cf. A. F. Chalmers, O que é ciência afinal?, São Paulo, Brasiliense, 1993, p.46ss. 348 Psicanálise v. 8, n. 2, p.341-352, 2006 Edição Especial 7 Cf. a meritória exceção de D. Koppelberg, Die Aufhebung der analytischen Philosophie – Quine als Synthese von Carnap und Neurath, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1990. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 349 Eduardo Luft sa breve análise a constatação de que o discurso científico parece ser estruturado circularmente, e não linearmente como a analogia arquitetônica anteriormente mencionada levava a crer. Que o discurso científico seja estruturado circularmente significa que ele deve ser compreendido como um todo auto-sustentado, autocoerente, ou seja, a ciência é melhor compreendida quando adotamos paradigmas holísticos. Gostaria de finalizar com a exposição de uma metáfora esclarecedora da compreensão holística do discurso científico, em contraposição ao paradigma atomista e fundacionista ilustrado pela metáfora arquitetônica. Trata-se de uma complexificação de metáfora desenvolvida por Otto Neurath, representante do Círculo de Viena ainda não citado no presente artigo. Neurath andava na contramão das idéias comumente aceitas por pensadores como Schlick e Carnap: notável pensador holista, questionou a fundo os dogmas centrais do empirismo, introduzindo – talvez por seu vínculo político com idéias marxistas – postulados dialéticos nas discussões do Círculo, e dando origem a uma vasta ramificação “dialética” no interior da tradição analítica – uma dimensão da complexa trama da história da filosofia contemporânea ainda pouco pesquisada7 –, de onde derivam, por exemplo, o holismo de Quine e Davidson. Mesmo Popper ainda acreditava possível dotar a ciência de – ou, pelo menos, torná-la autoconsciente de que possui – uma metodologia capaz não apenas de distingui-la claramente das pseudociências, mas de promover uma contínua aproximação à verdade. Se iniciarmos a substituição da metáfora arquitetônica pela nova metáfora que agora quero expor, uma metáfora náutica, então poderíamos imaginar a situação do cientista (interpretada à luz da epistemologia clássica, ainda não inteiramente abandonada por Popper) da seguinte forma: estamos em uma embarcação precária, singrando os mares à busca da verdade (uma ilha remota, qualquer que seja); notando que nossa embarcação está prestes a emborcar, e avistando A CRISE DO FUNDAMENTO: UMA CONJECTURA SOBRE FILOSOFIA DA CIÊNCIA A TRAJETÓRIA DA um vasto e seguro navio próximo a nós, não hesitamos em pedir auxílio. Uma vez dentro do navio, somos conduzidos com segurança ao nosso destino. Desse modo, dotados do método adequado para o desenvolvimento do saber científico, nos aproximamos cada vez mais da verdade. Neurath desconfiava fortemente da crença ingênua de que detenhamos ou possamos vir a deter algum dia uma metodologia eficaz a ponto de promover o desenvolvimento contínuo e seguro do saber científico na direção da descoberta da verdade. Não apenas a ciência não detém – nem plausivelmente deterá algum dia – tal metodologia, mas tampouco a Filosofia seria capaz de desenvolvê-la, pois “estamos todos, cientistas e filósofos, no mesmo barco”, dizia Neurath: se o barquinho começa a apresentar defeitos, se um buraco no casco surge por algum motivo, não temos nenhuma embarcação mais segura ou potente a recorrer para buscar auxílio. Tudo o que podemos fazer é procurar peças de reparo no interior do próprio barco que nos suporta, e tratar de consertá-lo. Agora aprimoremos a metáfora. Imagine um grupo de velejadores alojados em seus barquinhos, navegando isolados em um vasto oceano, contando apenas uns com os outros – e com ninguém mais – para realizar um antigo sonho: encontrar uma ilha situada em algum lugar do oceano, e parcamente indicada no mapa que o líder do grupo tem em mãos, um presente querido de seu velho pai. Agora equipare essa imagem com um grupo de cientistas participando em um projeto de pesquisa comum. Os cientistas também trabalham orientados por uma meta bem definida: o encontro da verdade em seu campo de pesquisa. Também eles contam com métodos de descoberta mais ou menos eficazes para a realização de seu objetivo. Por fim, da mesma forma como os navegadores, os cientistas também não começam do zero: pertencendo a uma certa tradição, eles herdam estratégias de pesquisa, meios de investigação de seus antecessores, enfim, eles contam com trilhas já desbravadas por outros pesquisadores, embora continuamente devam checar se de fato o caminho até então traçado é o correto. Os navegadores também têm o mapa legado pelo pai do líder apenas como um 350 Psicanálise v. 8, n. 2, p.341-352, 2006 Edição Especial Referências CARNAP, R. Der Logische Aufbau der Welt. Hamburg: Meiner, 1998. CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993. POPPER, K. “Que é dialética?”. In: . Conjecturas e Refutações. 4.ed. Brasília: UNB, 1972, p.343-365. POPPER, K. Logik der Forschung. 10.ed. Tübingen: Mohr, 1994. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 351 Eduardo Luft indicador de direção, mas devem constantemente reavaliá-lo de acordo com as situações específicas com as quais se defrontam. Podemos tornar a metáfora ainda mais forte dispensando a idéia preconcebida de que há mesmo uma ilha a ser encontrada (abandonando o apelo a uma noção purista de verdade). Em vez disso, tudo o que os navegadores precisam é permanecer singrando os mares. Assim compreendo a prática da ciência. Pesquisadores pertencem a certas tradições de pesquisa e visam mantê-las de pé, resistindo aos problemas que continuamente emergem do diálogo com outros saberes, outras tradições de pesquisa, ou simplesmente do confronto com novas informações que surgem a todo momento – também, e não apenas, da experiência. Um dado pesquisador tem suas idéias corroboradas quando seu sistema de crenças resiste aos problemas que enfrenta, permanecendo coerente consigo mesmo (coerência intra-subjetiva), com as idéias predominantes em seu grupo de pesquisa (coerência intersubjetiva) e – detalhe importante a acrescentar – quando a tecnologia que emana das teorias traz resultados objetivos coerentes com as previsões teóricas (coerência objetiva). Coerência no pensamento próprio, coerência entre os pensamentos de diversos agentes, e coerência entre nossas crenças e nossas ações compõem os três níveis de corroboração em que se resolve a práxis científica. Como não há nenhuma medida absoluta de aproximação da verdade, o processo de corroboração é potencialmente infinito, e a abertura à crítica e revisão deve ser compreendida como marca constitutiva do saber. Essa metáfora é apenas uma ilustração de idéias que nos distanciam em muito dos dogmas empiristas que preponderavam no Círculo de Viena. A CRISE DO FUNDAMENTO: UMA CONJECTURA SOBRE FILOSOFIA DA CIÊNCIA A TRAJETÓRIA DA SCHLICK, M. Tatsachen und Aussagen, In: . Philosophische Logik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. STEGMÜLLER, W. Carnap e o Círculo de Viena. In: . A Filosofia Contemporânea. São Paulo: Edusp, 1977. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Heloisa Helena Poester Fetter Eduardo Luft E-mail: [email protected] 352 Psicanálise v. 8, n. 2, p.341-352, 2006 Edição Especial Marco Aurélio Crespo Albuquerque* Meu enfoque sobre o tema será pelo ângulo das relações e do diálogo que a psicanálise vem travando com a ciência, desde seu surgimento. Inicialmente gostaria de assinalar que esse diálogo é – ao mesmo tempo – uma conversa e uma controvérsia que já dura mais de 100 anos, desde a criação da psicanálise por Freud, em 1895. Ele vem tendo, ao longo do tempo, seus momentos construtivos, de troca de idéias e tentativas de aproximação e compreensão mútua, mas também momentos de críticas destrutivas, de intolerância e de afastamento, conflitos, de resto, nem um pouco estranhos à natureza humana. Desde o nascimento, a psicanálise evidenciou seu desejo legítimo de ser considerada uma disciplina científica, e assim obter reconhecimento e respeito do meio científico pelo seu corpo de conhecimentos teóricos e suas práticas. Porém, toda nova ciência traz consigo uma quebra de paradigmas, um rompimento com o paradigma vigente, causando surpresa, confusão e algum rechaço num primeiro momento, onde por vezes paradigmas antagônicos têm que conviver simultaneamente (KUHN, 1998), produzindo conflitos não só inevitáveis como desejáveis. Exemplo disso é a * Médico Psiquiatra e Psicanalista. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 353 Marco Aurélio Crespo Albuquerque Ciência e Psicanálise: um diálogo possível? CIÊNCIA E PSICANÁLISE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL? convivência das idéias biologicistas sobre a mente (paradigma das ciências biológicas) e a noção de um inconsciente dinamicamente ativo (paradigma psicanalítico), situação que se mantém na atualidade (CHAVARELLI, 2003). Assim como pretendeu se constituir uma disciplina científica, a psicanálise vem sendo criticada, de diversos vértices, como não sendo científica, por não se submeter adequadamente aos parâmetros da pesquisa científica vigente. Não pretendo reconstituir aqui toda a longa lista de críticas já formuladas, mas apenas lembrar que filósofos, médicos e psicólogos (significativas fronteiras, ou interfaces, da psicanálise) questionaram e ainda questionam esta cientificidade. No campo da filosofia Karl Popper talvez tenha sido o crítico mais destacado e contundente, assim como Skinner na psicologia e, atualmente, recentes descobertas das neurociências têm sido utilizadas, por alguns pesquisadores, como evidências científicas contra a utilidade da psicanálise como método de compreensão da vida mental, assim como para o tratamento de doenças mentais. Infelizmente a psicanálise nem sempre soube responder tais críticas à altura, seja afirmando-se cientificamente através de pesquisas adequadas e qualificadas1, seja sabendo quando reafirmar, com segurança e serenidade, sua especificidade e suas diferenças para com os referenciais da ciência biológica, médica ou psicológica hegemônica, propondo-lhes (ou contrapondo-lhes) outros mais adequados à investigação da subjetividade humana em seus aspectos e motivações inconscientes. Fica claro até aqui que a discussão sobre a cientificidade da psicanálise está longe de acabar, o que garante que esse problema seguirá nos desafiando, a cientistas e psicanalistas, bem como aos demais interessados nas questões do saber humano. Bion costumava dizer que a resposta era a assassina da pergunta, então essa é uma questão que permanecerá bem viva a 1 Como a que vem sendo conduzida recentemente na Argentina por David Maldavski e colaboradores, usando o algoritmo David Liberman, que estuda – num referencial freudiano – os níveis de erotismo da linguagem e das defesas utilizadas nas sessões, usando uma metodologia de pesquisa séria e bem fundamentada. 354 Psicanálise v. 8, n. 2, p.353-360, 2006 Edição Especial “Enquanto psicologia das profundezas ou doutrina do inconsciente psíquico, a psicanálise, se não enquanto ciência propriamente dita, pelo menos como teoria e prática terapêutica, tornou-se, em nossa sociedade, um fato incontestável e irreversível.” Eu acrescentaria ainda que ela tornou-se também um fato fundamental para a humanidade, tanto como ferramenta de apreensão e compreensão da vida mental inconsciente, quanto como um método terapêutico, capaz de dar sentido e aliviar o sofrimento psíquico neurótico. Sabemos que Freud se esforçou por tentar dar um caráter científico à Psicanálise, como forma de obter aceitação e granjear respeito no meio médico e científico de sua época para suas idéias e descobertas, e seu maior esforço nesse sentido resultou no “Projeto para uma psicologia científica”, no qual tentava traduzir, em termos médicos neurológicos, a constituição e o funcionamento do aparelho psíquico. Freud desejava que a sua psicanálise se situasse entre as ciências da natureza, razão pela qual buscava equivalências entre os fenômenos inconscientes e os fenômenos físico-químicos, aliadas a um causalismo determinista que deveria explicar tudo. No entanto, até paradoxalmente, talvez seja “pelos seus aspectos não-científicos que a psicanálise apresente seus resultados mais ricos, fecundos, originais e interessantes” (JAPIASSU, 1998). Justamente esse causalismo determinista das fases iniciais da psicanálise lhe granjeou as maiores críticas, como aquelas feitas por Popper, de que a psicanálise explicava tudo, e portanto Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 355 Marco Aurélio Crespo Albuquerque nos estimular por um bom tempo. E por falar em pergunta, a mais instigante talvez não seja “A psicanálise é científica?”, mas sim: pode-se fazer ciência a partir da psicanálise? Chavarelli, apoiando-se no que diz Japiassu (1998), afirma que a psicanálise se apresenta cada dia com mais freqüecia nas academias científicas e que, longe de ser proscrita por insuficiência de racionalidade, ela trava um discurso próprio com as ciências já constituídas, levando a uma transformação da própria cultura científica. Além disso, no dizer de Japiassu (1998): CIÊNCIA E PSICANÁLISE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL? não explicava nada2. Os resultados de tais tentativas de integração ou de assimilação pelo meio científico, se olhados historicamente, não parecem ter sido muito animadores até o momento. Eric Kandel, prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 2000, criticou elegantemente a relação entre a Psicanálise e o método científico: [. . .] ela [a psicanálise] não desenvolveu métodos objetivos de experimentação das idéias brilhantes que formulou. Como resultado, a psicanálise entra no século XXI com sua influência em declínio. Este declínio é lamentável, já que ela continua a representar a visão mais coerente e intelectualmente satisfatória da mente humana. (grifo meu) Caso a psicanálise queira recuperar seu poder e influência intelectuais, precisará fazer mais do que responder a críticas hostis. Precisará, também, do envolvimento construtivo por parte daqueles que a valorizam e que privilegiam uma teoria sofisticada e realista da motivação humana. (KANDEL, 1999). E: [. . .] embora a psicanálise tenha sido historicamente científica em seus objetivos, raramente foi científica em seus métodos, ou seja, ela falhou durante anos em submeter suas suposições à testagem experimental. De fato, a psicanálise tem se saído tradicionalmente bem melhor em gerar idéias do que em testá-las. Como resultado desta falha, não foi capaz de progredir como o fizeram outras áreas da psicologia e da medicina. (KANDEL, 1999). Por outro lado, fazendo um contraponto a esta crítica, dura mas construtiva, cito Sandler quando este diz: Do meu ponto de vista, a filosofia continua tolhida na armadilha da cisão aristotélica, que não tolera o paradoxo das observações de Platão sobre o espírito. Ao mesmo tempo em que Platão deu essa possibilidade de avanço ao pensar humano, foi também posto em movimento um 2 Esta crítica está mais para a psicanálise silvestre, problema que Freud mesmo criticou, do que para a própria psicanálise. 356 Psicanálise v. 8, n. 2, p.353-360, 2006 Edição Especial Ele também faz a crítica do realismo ingênuo quando este [. . .] representa a crença nutrida por aqueles que aceitam uma ‘realidade exterior’, mas acreditam ser possível sua apreensão concreta, sensorial – a distinção cartesiana entre o espírito e a matéria. Autoproclamando-se ‘ciência verdadeira e objetiva’, o realismo ingênuo simplifica excessivamente as noções de funções e de fatores, ao substituí-las por relações lineares e não naturais de causa e efeito, estabelecidas por dedução, indução e predição. Daí seu sucedâneo, esquemas explicativos racionais que excluem os paradoxos, o desconhecido, a intuição e o inconsciente. Pressupõe, ademais, a crença na existência de um observador neutro que pode apoiar-se em dados suscetíveis de apreensão pelos sentidos. (SANDLER, 2003, p.221). Esta “ciência verdadeira e objetiva”, tem e terá sempre grandes resistências a aceitar a psicanálise como uma disciplina científica, pelo menos com os critérios atualmente aceitos para definir a produção de conhecimento científico na área da saúde mental. Por exemplo, os estudos de tipo duplo-cego, com um grupo controle, modelo originado dos estudos levados a cabo para validar a eficácia de medicamentos, são atualmente uma metodologia praticamente obrigatória para conferir credibilidade a qualquer pesquisa que se queira definir como científica no meio médico. Porém qual o objetivo essencial dessa metodologia de pesquisa? Eliminar, ou pelo menos minimizar, justamente a existência e a interferência da subjetividade, tida como um fator de erro a ser neutralizado ou erradicado. No entanto justamente a subjetividade é uma das áreas mais caras à psicanálise, seu próprio material de trabalho, e onde ela dá a melhor resposta para a compreensão da vida mental, e não do funcionamento cerebral, realizado através de medidas objetivas. Aí temos uma interessante contradição para examinar: a tensão que se estabelece entre um tipo de ciência que – para avanSociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 357 Marco Aurélio Crespo Albuquerque modo de raciocínio supersimplificado, no qual “ou” substitui “e”. Assim surgiram as oposições entre inato ou adquirido, mente ou matéria, sensível ou insensível, uma realidade exterior ou uma realidade criada pela mente do observador. (SANDLER, 2003, p.220). CIÊNCIA E PSICANÁLISE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL? çar – busca minimizar ou eliminar as marcas da subjetividade, e a psicanálise, que busca identificá-las e trazê-las à tona, como seu objeto de estudo e trabalho científico. Outra questão interessante, psicanaliticamente falando, reside na forma como compreendemos ou vivenciamos as contradições próprias do existir. A ciência, especialmente a de inspiração cartesiana e positivista, busca diligentemente eliminar o contraditório pela busca e estabelecimento de verdades objetivas e soberanas, que possam ser provadas de forma universal (tal como definir que a fórmula da água é H2O em qualquer lugar do mundo, sob qualquer circunstância). Já a psicanálise contemporânea procura pesquisar e entender, entre outras coisas, a constituição e a estruturação do psiquismo, bem como os estados mentais que daí derivam, por mais contraditórios que se revelem, buscando assim uma forma de compreensão e integração que propicie a possibilidade de uma vida mental mais rica, com lugar inclusive para os paradoxos e contradições que nos colorem e nos humanizam. Ao contrário da ciência mais positivista, que se utiliza de dados mensuráveis e reprodutíveis, a psicanálise trabalha com outro tipo de dado, composto de elementos que são muito mais pessoais e impalpáveis, trazidos à tona e verificados na interação transferencial3, nascidos dos instintos e das fantasias, que são a sua representação mental, revelando a partir daí a existência de um mundo interno, povoado de objetos, constituído à base de representações do mundo externo, por via da projeção e da introjeção. Seu método de trabalho e pesquisa expõe e analisa o contraditório presente na subjetividade individual (como por exemplo a distância e as distorções existentes entre a realidade exterior e a realidade interior num dado sujeito), sem no entanto jamais pretender solucioná-lo definitivamente, até porque, para a psicanálise, as nossas contradições fazem parte natural do mais intrinsecamente humano que possuímos. Tirem-se nossas contradições e estaremos mortos, corpos vazios como cascas sem vida, por mais científico que o procedimento tenha sido. 3 Entre o terapeuta/pesquisador e o paciente/objeto de estudo. 358 Psicanálise v. 8, n. 2, p.353-360, 2006 Edição Especial Como dizia Freud, o pensamento científico se opõe diretamente ao pensamento religioso. A religião é a verdade revelada por um ser supremo. A ciência é este corpo de conhecimento lenta e laboriosamente Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 359 Marco Aurélio Crespo Albuquerque Por isso a psicanálise não está interessada primariamente em uma forma de pesquisa científica com dados objetivos tais que resultem, por exemplo, numa forma de erradicação mais apurada e eficaz de sintomas e angústias, mas sim na busca (sempre incompleta) de sua compreensão e nas formas muito particulares que cada um de nós tem de lidar com elas, permitindo encontrar novas e menos sofridas formas de viver. Essa é a especificidade de sua prática terapêutica e de sua pesquisa. Apesar das críticas e incompreensões de parte a parte, a ciência e a psicanálise continuarão a existir permanentemente como campos fundamentais e necessários do saber humano, e se manterão nessa relação dialética tensa, sempre se negando e se reafirmando mutuamente a cada momento. Um bom exemplo disso nasce da constatação que insights psicanalíticos precederam descobertas científicas agora bem documentadas por critérios objetivos (a importância primordial que a psicanálise atribui ao afeto amoroso na relação mãe-bebê na constituição do psiquismo, por exemplo, hoje pode ser cientificamente provada através de estudos de acompanhamento da vascularização cerebral com PET Scan – Tomografia por Emissão de Pósitrons), tanto quanto descobertas científicas das neurociências iluminaram áreas antes obscuras para o entendimento analítico (como o papel da genética em algumas formas de esquizofrenia; ou de lesões cerebrais em certas áreas específicas do cérebro, determinando mudanças de comportamento e até de personalidade, e não necessariamente como sintomas do trauma emocional ocorrido). A psicanálise, em sua relação com a ciência, continuará buscando aceitação e respeito, e sendo sempre um contraponto fundamental às idéias reducionistas de equiparar a vida mental à neuroquímica cerebral, negando as dimensões inconscientes, simbólicas e culturais da vida. Para finalizar, cito Sérgio Telles, na revista eletrônica Psychiatry On Line, que a meu ver define bem algumas das questões citadas antes: CIÊNCIA E PSICANÁLISE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL? conquistado da escuridão e da ignorância pelo engenho humano, um trabalho paciente, sempre incompleto, em perpétua correção, preso ao regime do ensaio e erro. Por esse critério, diria que a psicanálise está definitivamente dentro do campo da ciência. Que ela ainda não conseguiu estabelecer de forma definitiva padrões de pesquisa e ter suas próprios formas de avaliação, controle e reprodução é uma verdade reconhecida por todos e um obstáculo a ser superado. Ao invés de encobrir suas falhas e dificuldades epistemológicas, como faria um empreendimento eivado de charlatanice ou de embuste, a psicanálise é a primeira a reconhecê-los e tentar resolvê-los [...] Referências KUHN, T.S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. CHAVARELLI, M. de Fátima. Psicanálise e Ciência: de que ciência estamos falando? Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 37, n. 4, p.1035-1049, 2003. JAPIASSU, Hilton. Psicanálise: Ciência ou Contraciência? 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1998. KANDEL, E.Biology and the Future of Psychoanalysis: A New Intellectual Framework for Psychiatry Revisited. American Journal of Psychiatry, Arlington, v.156, p.505-524, apr. 1999. SANDLER, Paulo Cesar. O projeto científico de Freud em perigo, um século depois? Um estudo psicanalítico e epistemológico. In: GREEN, André (Org.). Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise: número especial 2001. Rio de Janeiro: Imago, 2003. TELLES, Sérgio. Psicanálise: o inferno astral. Psychiatry on Line Brazil. Disponível em: <http://www.polbr.med.br/arquivo/sete0499.htm>. Acesso em: abril 1999. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Heloisa Helena Poester Fetter Marco Aurélio Crespo Albuquerque Rua Tobias da Silva, 85/506 90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil E-mail: [email protected] 360 Psicanálise v. 8, n. 2, p.353-360, 2006 Edição Especial Poesia e Psicanálise Celso Gutfreind* Não me lembro de ter atendido alguém sem que o encontro tenha sido precedido por uma sensação de angústia abalada da pergunta: – Serei capaz de atendê-lo? Para o Dr. Carlos Grossman1, médico e paciente estão em relação simétrica. O paciente tem medo de ter uma doença grave e não ser salvo. O médico, de não salvar o paciente que tem uma doença grave. Não me lembro de ter iniciado um poema sem que o encontro com a poesia tenha sido precedido por uma sensação abalada da pergunta: – Serei capaz de expressá-lo? Para Pound (1982), o poema ruim é um crime estético e, portanto, violento como qualquer outro delito. Não me lembro de ter podido ajudar alguém se entre nós não ocorreu um acordo afetivo, ou um “estar com” em sintonia, desses que Stern (1995) descreveu no desenvolvi- * Psiquiatra da infância e da adolescência. Mestre em Psicanálise e Doutor em Psicologia pela Universidade de Paris. Professor da Ulbra e da Fundação Universitária Mário Martins. 1 Comunicação oral não publicada. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 363 Celso Gutfreind Poesia e Psicanálise: ação coletiva no rumo da vida POESIA E PSICANÁLISE: AÇÃO COLETIVA NO RUMO DA VIDA mento do bebê desde a coisa sem nome até um eu narrativo ou poético. Não me lembro de ter gostado de algum poema em que a sintonia afetiva leitor-autor não estivesse presente em algum verso. A poesia aparece na palavra, mas sua essência é mais próxima do olhar, do toque, do gesto, é pré-verbal. A psicanálise aparece no discurso manifesto, mas sua essência é mais próxima do olhar, do toque, do gesto, do envelope pré-narrativo, é latente. Para tratar do outro, volto no tempo e conservo a coragem de agarrar o barro mais arcaico do outro em mim mesmo. Antes do símbolo, tudo parece sujo, inocente, violento. Entre as infinitas verdades possíveis, por aqui é essa a que mais importa. Psicanálise envelopa e liberta. Para fazer poesia volto no tempo e conservo a coragem de agarrar o barro mais arcaico do outro em mim mesmo. Antes do símbolo, tudo parece sujo, inocente, violento. Entre as verdades possíveis, essa é a que mais importa por aqui. Poesia envelopa e liberta. Nunca fiz terapia sem ritmo. Um dia a melhora veio do desenho da sucessão de dias e sua duração. Espaços criativos em expansão. Tempo com alguma possibilidade de ordenação. Sentido novo. Vínculo antigo. Nunca vi poema sem ritmo. O poético vinha da sucessão, do tempo, da repetição de algum alento. Espaços criativos em expansão. Pedaço de tempo ordenado. Sentido novo. Vínculo antigo. A poesia é o brinquedo que me recuso a deixar, pois me leva adiante e me ajuda a suportar a hora séria e finita. Ajuda a dizer-me, historiar-me. A psicanálise, sem brinquedo, me deixa já na primeira consulta. É brincando que leva adiante e ajuda a suportar a hora séria e finita. Ajuda a dizer-me, historiar-me. Eis um espaço único de psicanálise e poesia, transicional, evoé Winnicott, o mais poético dos psicanalistas. Toda vez, em psicanálise, que tentei atropelar o encontro com teorias e precipitar nomes para o que ainda não tinha, depois não teve, não houve, não se criaram crescimento e alívio do outro e de mim. Escrevo para perder a chave do abismo, expressou o poeta Murilo 364 Psicanálise v. 8, n. 2, p.363-368, 2006 Edição Especial 2 Comunicação oral não publicada. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 365 Celso Gutfreind Mendes. Toda vez, em poesia, que os nomes fecharam precocemente o afeto, depois não teve, não houve, não se criaram crescimento e alívio do que ainda não era poema. A psicanálise sempre viveu de paciência, de espera, de abertura. Boicotaram-na a angústia que falou antes do encontro, a procura que se vendeu por um alívio imediato, o fechamento antes da cena. Psicanálise, hoje em dia, é poder abrir ou, como expressou Bollas, circular com liberdade em todas as peças da casa. A poesia sempre viveu de paciência, de espera, de abertura. Boicotaram-na a palavra que disse antes do afeto, a procura que pensou ter encontrado, o fechamento antes da cena. Evoé Irving Yalom, não dos bestsellers de hoje, mas das terapias de outrora, feitas com verdade como contos e poesias, evoé Antonino Ferro, sugando a poesia da abertura, de Bion. Um dia, na psiquiatria, decidi ser teórico. O sujeito tinha o diagnóstico x. Mil páginas explicavam o sujeito. A teoria A discordava da B, mas eu levava fé científica na C, mais atual e devidamente indexada. Um questionário tinha o aval da estatística, e suas leis inexoráveis traziam a paz. Tornei-me validado, sem vícios. O sociólogo Maffesoli (informação verbal)2 disse que alguém assim não valia a pena encontrar. Mas eu não queria encontrar, eu queria estar certo, pronto, sem pendências. Eu queria dispensar. E me livrei logo do paciente. O psiquiatra era escorreito, só não era eu. O sujeito me olhou e não me viu, estávamos longe um do outro, perdendo a única chance que esta vida nos oferece, que é a do encontro. O silêncio morreu na fonte. Da cova Drummond me gritou: vai, doutor, ser autêntico na vida. Abre os braços para o outro, cantou-me Gonzaguinha, também da cova e vivo. Psicanálise constrói encontro. Poesia constrói encontro. O resto é vida, continuação natural de um bom começo. Um dia, na poesia, decidi ser erudito. Eu fazia alusões bíblicas e pósmodernas e ganhei um prêmio nacional importante. A academia massageou minha coxa direita e meus sovacos lavados. Eu suspirava formas fi- POESIA E PSICANÁLISE: AÇÃO COLETIVA NO RUMO DA VIDA xas, memorizei artes poéticas, em especial os ditirambos. O poeta era escorreito, só não era eu. O poema olhou e não me viu. Era, em poesia, um artifício. Era, em psicanálise, um self falso. Não houve encontro, enfim, houve nada. O silêncio morreu na fonte. Da cova Zorba o grego me gritou: vai, poeta brasileiro, ser autêntico na vida. Abre os braços, gritou Gonzaguinha, feliz da vida de ser incomodado em seu repouso quase eterno. Um dia, na psicanálise, a fiz sem criar. Não houve dia seguinte, eco, funcionamento mental. Um dia, na poesia, a fiz sem criar. Não houve minuto seguinte, eco, funcionamento mental. Outro dia a psicanálise perdeu as referências. Mas conclamou: não há remédio sem narração. Dia seguinte a poesia perdeu o lema. Porém afirmou: não há vida sem narração. E vida sem poesia é a morte, mas morta mesmo, porque se vista do foco narrativo da vida, tem poesia, símbolo e vive ainda. Então passei a ouvir. A psicanálise não vivia sem ouvidos. Nem sem olhar. Era feita de um jogo de tigres e espelhos e função reflexiva. Era feita de encontro. A poesia não vivia sem ouvidos. Nem sem olhar. Era feita de um jogo de tigres e espelhos e função reflexiva. Era feita de encontro. Tive mil e dois erros em psicanálise. Por enquanto. Ela promete um depois, boa ilusão. Tive mil e dois erros na poesia. Até hoje. Ela promete um amanhã, boa ilusão. Ambas me permitem pensar, errar, tentar, pensar, sentir, juntar, ou seja, me tratar. Uma vida não bastaria para vivê-las. Ambas começam acreditando na possibilidade da correção, mas ocorrem mesmo na hora do descuido, do acidente, da possibilidade da leveza, são flutuantes. São senhoras exigentes e buliçosas como se não fossem recatadas. São eróticas, ainda que também se alimentem da morte. São expressivas em seus envelopes elegantes, cheinhos de pulsos vitais. 366 Psicanálise v. 8, n. 2, p.363-368, 2006 Edição Especial Chamo essa psiquiatria de psicanálise. Chamo essa poesia de poesia. Chamo essa psicanálise de poesia. Hoje em dia, poesia e psicanálise contradizem as previsões de que uma relação simbiótica reduz ou enlouquece. Não é o seu caso, todo caso é único, original. É o que pede a psicanálise. E a poesia, também. Uma já não vive sem a outra, repartem os ingredientes e lutam no mesmo cenário, esse teatro do eu e nós. Mãe e filho, filho e mãe, na promessa de não separar. Mas, no fundo, separam. Sendo o que são, e não vendendo a alma, e lutando com unhas e dentes para manter aceso o corpo da essência, chegam juntas ao terceiro, que pode ser eu mesmo, e é o outro, o mundo, a vida. Referências ANDRADE, C. D. Reunião: 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. BARROS, M. Gramática Expositiva do Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. BION, W. R. Aux Sources de L’expérience. Paris: PUF, 1979. DIATKINE, R. L’enfant dans L’adulte ou L’éternelle Capacité de Rêverie. Paris: Delachaux et Niestlé, 1994. FERRO, A. A Psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de Janeiro: Imago, 2000. KAZANTZAKIS, Z. Zorba: o grego. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. MENDES, M. O Menino Experimental. São Paulo: Summus Editorial, 1979. POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1982. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 367 Celso Gutfreind Em meus acertos, em psicanálise, chegávamos à metáfora. O ácido do real finalmente encontrava o colo doce da nuance, o leito da entrelinha, a possibilidade de perguntar e imaginar uma outra história. Um outro lado do significado, ouro maior para o psicanalista René Diatkine. Em meus acertos, em poesia, chegava à metáfora. O ácido do real finalmente encontrava o colo doce da nuance, o leito da entrelinha, a possibilidade de perguntar e imaginar uma outra história. Um outro lado do possível, ouro maior para o poeta Manoel de Barros. POESIA E PSICANÁLISE: AÇÃO COLETIVA NO RUMO DA VIDA STERN, Daniel. La Constellation Maternelle. Paris: Calmann Lévy, 1995. WINNICOTT, D. W. (1971). Jeu et Realite: l’espace potentiel. Paris: Éditions Gallimard, 1971. YALOM, I. D. O Executor do Amor. Porto Alegre: Artmed, 1996. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Celso Gutfreind E-mail: [email protected] 368 Psicanálise v. 8, n. 2, p.363-368, 2006 Edição Especial Renato Trachtenberg* Freud, como sabemos, manteve sempre certo fascínio e uma prudente distância em sua relação com os poetas. Oscilava entre incluir a psicanálise no ideal de ciência de seu tempo e o modelo estético, especialmente a literatura, como referência e interlocução. Sua escrita mostra que, nas origens do método, é o fantasiar e o imaginar de seus pacientes que lhe proporcionam os instrumentos para a descoberta e investigação do inconsciente na psicanálise. Suas sugestões para a escuta analítica e o trabalho do analisando na sessão são análogos ao estado mental requerido para qualquer processo criativo. Entretanto, Freud reagia ambivalentemente aos comentários elogiosos sobre sua própria escrita, tão concordante, por outra parte, com o objeto de sua investigação. São exemplares suas cartas a Schnitzler assim como o impacto sofrido pelo famoso comentário de Kraff-Ebing quando da apresentação de seus primeiros historiais clínicos: “Isso não passa de um conto de fadas científico!” (TRACHTENBERG, 2003). * Médico Psicanalista. Membro Titular em função Didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 369 Renato Trachtenberg A Dimensão Poética na Interpretação Psicanalítica A DIMENSÃO POÉTICA NA INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA As possibilidades de pontes entre psicanálise e poesia são múltiplas e mutuamente enriquecedoras. Motivado por um interesse que me acompanha há muito, vou-me restringir a um aspecto dessas relações, ou seja, à dimensão poética na interpretação psicanalítica. Por um lado, dimensão poética não significa, necessariamente, que o analista produza poesia em suas formulações ao paciente, mas sim que sua fala ou silêncio deverá afetá-lo quase do mesmo modo que um poeta afeta o seu leitor por uma série de vínculos na origem e comunicação de ambos os discursos. Por outro lado, o próprio termo interpretação vem sendo questionado em sua adequação para referir-se ao ato analítico de dar sentido e descrever, através da linguagem verbal, aquilo que o analisando expressa em seu dizer, não dizer ou desdizer. Um modelo estético em psicanálise faz com que, progressivamente, o ato interpretativo deixe de centralizar-se na produção, comunicação ou revelação de conhecimentos sobre o que o paciente desconhece de si mesmo. Os pacientes nos chegam, cada vez mais, com amplos conhecimentos sobre a psicanálise e suas teorias, e com consistentes explicações sobre a origem de seus padecimentos. O eixo do trabalho analítico vai se deslocando na direção da possibilidade de lidar com o que talvez seja a maior dificuldade do homem de nossos tempos: pensar criativamente sobre si e sobre o mundo em que vive. O trabalho analítico vai em busca dos exilados da alma, dos que se afastaram de ser o que verdadeiramente são através de preenchimentos e enxertos de significados frente ao vazio incomensurável. Essa função psicanalítica poderia ser expressa com o termo co-pensar ou com-pensar: pensar com um outro, aceitando tolerar a ausência de respostas e o incremento das perguntas, o mistério do inacessível e a renúncia à expectativa de soluções finais. A diferença entre pensar e conhecer se aprofunda e passa a ser tão fundamental como a que existe entre sabedoria e saber. Como veremos, os modelos do arqueólogo, tradutor ou detetive, técnicos de decifração de significados, não são os mais adequados quando pensamos na dimensão estética da psicanálise. Bion (1962a, 1962b) descreve uma espécie de mito das origens da 370 Psicanálise v. 8, n. 2, p.369-377, 2006 Edição Especial 1 Keats considerava capacidade negativa a idéia de que beleza é verdade e verdade, beleza (final de sua “Ode a uma grega”) e a noção de despojamento da identidade do poeta como a base conceitual de sua filosofia poética (TRACHTENBERG, 2005). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 371 Renato Trachtenberg capacidade de pensar do ser humano: nos primórdios de sua mentalização, o bebê, através de primitivos métodos de comunicação, buscaria colocar na mente pensante de sua mãe, representada por seu seio, sensações dolorosas, angústias e medos sem nome que sua pré-mente não consegue suportar. A mãe, com adequada capacidade de contato e rêverie, tentaria pensar o ainda não pensado de seu bebê, seu sonho ainda não sonhado. Depois de algum tempo tolerável de recepção compreensiva e metabolização do que lhe foi depositado, responderia devolvendo ao seu bebê, de uma forma modulada e transformada e, portanto, suportável, aquilo que foi chamada a conter. Com atos, palavras ou silêncios, irá, através da internalização de sua função, contribuir para a fundação e apropriação de uma capacidade para pensar em seu bebê. Nesse processo, que Bion denominou função alfa para evitar uma rápida saturação de significado, é essencial a tolerância materna ao não-saber, a não ter respostas prontas e impacientes. O poeta romântico John Keats, em uma carta, descreveu uma capacidade negativa, fundamental para os homens especialmente criativos, como Shakespeare, na literatura: consistiria na capacidade mental de manter-se em dúvidas, incertezas e mistérios, sem uma busca irritante ou impaciente do fato e da razão (explicação).1 Bion utilizará essa idéia para descrever o trabalho do analista na sessão psicanalítica e voltará a ela muitas vezes, reafirmando as íntimas conexões entre poesia e psicanálise. Um analista com suficiente capacidade negativa ajudará o seu analisando a evitar as respostas que não respondem, tolerando aquelas que co-respondem, e a aceitar que conhecer é preciso e pensar é impreciso. Na carta citada, Keats nos fala de um homem de êxito ou realização (traduções limitadas do inglês “achievement”), como Shakespeare pôde ser. Inspirado no poeta, Bion (1970) se refere a uma linguagem de êxito ou realização em contraste com uma linguagem de substituição. Tal linguagem, característica dos grandes poetas, é um pensamento vivo que atraves- A DIMENSÃO POÉTICA NA INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA sa o espaço entre as gerações, alcançando seus efeitos e repercussões em épocas muito distantes de sua formulação. Na linguagem de êxito se dilui a noção de autoria de uma interpretação; ela veio do analista ou de seu paciente? Autores como U. Eco, Ogden e, especialmente, Bion vão nos remetendo a uma indecidibilidade da origem, um ponto em todo vínculo em que não podemos decidir de quem e como surgiu a idéia, a emoção, etc. A posse de um pensamento é frágil no mundo da poesia e da psicanálise viva.2 As palavras se gastam rapidamente em seu poder de ressonância e deixam de ser eficazes para a transmissão de uma idéia ou emoção. Por isso, Bion enfatiza a necessidade de buscar nas metáforas dos grandes poetas os instrumentos para tentar ressuscitar termos fossilizados, pois as teorias transformam nossa linguagem num jargão repetitivo, sem capacidade de afetar aquele que a escuta. Enquanto isso, diz ele, a dor mental está tão viva como sempre esteve; as doenças não se gastam. A linguagem exitosa deveria contribuir para que um analisando possa vir a ser ele mesmo, a ter a coragem e o suficiente respeito pela sua personalidade para poder ser essa pessoa que deveria ter sido ou que poderá vir a ser. A atitude mental recomendada por Bion (1970), para o psicanalista na sessão, é a de sem memória, sem desejo, sem necessidade de compreensão. Assim, estará em melhores condições para encontrar-se com o desconhecido. O conhecido já é passado, mas o inédito (o ainda não dito), o inaudito (o ainda não escutado) só poderão ser tocados se renunciamos à procura ativa de lembranças saturadas de sessões anteriores, de expectativas saturadas do que ainda não ocorreu e de tentativas de busca impaciente de causas ou explicações. Denomino interpretação fundamentalista aquela que se preocupa com os fundamentos e fundamentações e não com o fun- 2 O poeta T. S. Eliot tinha como a função social do poeta a fragmentação e posterior integração de múltiplas citações, tomadas por empréstimo de uma infinidade de obras e autores, incluindo a si próprio. Uma atualização constante de heranças literárias e culturais de gerações passadas, produzindo um multiforme e inédito amalgama de referências poéticas revitalizadas em novas leituras e contextualizações. Esse proceder poético, que foi denominado “eliotização”, é notável em seus “Four Quartets” (TRACHTENBERG, 2002b). 372 Psicanálise v. 8, n. 2, p.369-377, 2006 Edição Especial 3 Bion refere que dizemos o “porquê” somente quando expressamos uma seqüência temporal de fatos. Ao se procurarem os “porquês”, se perde de vista o “quê”, a significação, os fenômenos em trânsito, os modelos de coexistência de estados mentais. A teoria da causação é onipotente e só é válida na área da moralidade: somente a moralidade pode causar qualquer coisa. O senso de causação e suas implicações morais podem destruir a significação e a distância necessária para o pensar. O descobrimento de uma causa se relaciona mais com a tranqüilidade emocional do descobridor que com o objeto da indagação. O inconsciente não é um depósito de causas escondidas. Meltzer diz que um dos benefícios fundamentais de uma análise é o movimento desde uma atitude causal/explicativa e, portanto, atribuidora de culpas, a uma atitude que tenta compreender e, assim, aceitar a incerteza inerente à infinita complexidade do desenvolvimento humano e das relações pessoais. De acordo com Bion, o único mundo em que cabe dizer que as causas constituem uma característica proeminente é o mundo das coisas, não das pessoas (TRACHTENBERG, 2002a). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 373 Renato Trachtenberg da-mental; não tolera o aleatório e um sentido de infinito nem paradoxos e contradições.3 Essa renúncia abre o espaço da intuição, que somente pode ser concebido com as conjecturas imaginativas e jamais conhecido em sua realidade factual: o inconsciente. Quase-memória, quase-verdade, mistério sem desvelamento possível. Algo sempre permanecerá oculto, não dito, apesar das tentativas de penetração e da intolerância à não-significação. Uma descrição apoiada em uma linguagem de êxito contém algo enigmático, algo a ser pensado. A interpretação explicativa postula uma resolução para o enigma, algo a ser conhecido. Aí reside a diferença entre transmitir e ensinar psicanálise. A interpretação psicanalítica, assim considerada, convida a um pensar em / in-comum, tornando difícil a explicação do que ocorre numa sessão. Não por questões de segredo e sim pelo clima onírico que a atravessa. A sessão que funciona é aquela que o paciente não consegue descrever para outros: não é mais reconhecível. A sala de parto onde os sonhos nascem não fica muito distante do nascedouro dessas interpretações. Meltzer (1984) diz que toda tentativa de formular uma interpretação de um sonho implica o seguinte preâmbulo tácito: “Enquanto escutava seu sonho, tive um sonho que na minha vida emocional significaria o seguinte, que desejo compartilhar com você com a esperança de que arrojaria alguma luz sobre o significado que o seu sonho tem para você”. Esse terceiro sonho co- A DIMENSÃO POÉTICA NA INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA gestado pela dupla é uma aposta na capacidade do analisando de pensar por si mesmo e, assim, apropriar-se de seu próprio destino (dimensão ética).4 Meltzer (1973, 1996) diferencia interpretações inspiradas das interpretações rotineiras. As primeiras surgem, como os sonhos, da criação e utilização de símbolos autônomos e idiossincráticos (função alfa dos objetos internos), enquanto as outras provêm de símbolos adquiridos, recebidos da Cultura e de seus representantes (função alfa do self). As interpretações inspiradas, sendo aquelas que utilizam uma linguagem de êxito, carregam em seu bojo um núcleo metafórico ou potencial de metaforização e, conseqüentemente, uma zona polissêmica de mistério, imaginação, ambigüidade e surpresa. A insuficiência da linguagem ao descrever afetos ou emoções, do que está em busca de simbolização, levou muitos psicanalistas, como Bion, a recorrer aos poetas e grandes narradores de todos os tempos, na tentativa do encontro de uma forma simbólica na interpretação psicanalítica que mais se aproximasse desse objetivo. Com isso, foi-se ampliando o fosso que separa, na sessão psicanalítica, o falar/conhecersobre-psicanálise do ser/estar-sendo-psicanalista. O psicanalista, partindo de uma escuta estética, necessita encontrar palavras que possam romper o uso literal, previsível e banal dos vocábulos 4 Ogden (1997) diz que a interpretação, como um poema, tendo sido dita, já cumpriu sua tarefa e o ouvinte torna-se, então, criador de significados, autor de seu próprio sentido, e tenta descobrir palavras com as quais descrever sua experiência emocional. A leitura de um poema implica um pedido para tornar relevante no poema algo que não esteja nele, mas talvez sugerido pelo efeito imprevisível do poema sobre nós. Deste modo, o poema estará ativamente envolvido, fazemos algo com ele em oposição a entendê-lo. Ogden cita a William James que, em seu “Princípios de Psicologia” de 1890, dizia que a experiência humana não é suficientemente capturada ou expressa na linguagem através da força dos “substantivos” que nomeiam ou descrevem (falar “sobre”), mas sim, mais indiretamente, através dos elementos na linguagem que contribuem para a criação de um sentido de movimento e transitoriedade. A linguagem falha na transmissão dos significados afetivos quando é usada de modo a enfocar o que está sendo dito em oposição ao que está sendo feito. Os sentimentos, principalmente aqueles sem nome (“estados psíquicos silentes ou anônimos”), tendem a se perder em pensamentos “sobre” este ou “sobre” aquele objeto, a palavra concreta “sobre” engolfando todas as delicadas idiossincrasias em seu som monótono. São nas partes transitórias das linguagem, “lugares de vôo”, que chegamos mais perto de capturar algo da textura e da vida dos sentimentos sentidos e o movimento da “corrente de pensamento”. 374 Psicanálise v. 8, n. 2, p.369-377, 2006 Edição Especial 5 Segundo a filósofa Susanne Langer, as “formas simbólicas” podem ser discursivas (representativas ou designativas) ou não discursivas (expressivas ou presentificadoras). A construção dos símbolos discursivos é mediada pelas funções lógico-gramaticais da linguagem, e o resultado é veicular um saber organizado através de análises e sínteses intelectuais, em que objetos não presentes são simbolicamente representados. As formas simbólicas discursivas são os instrumentos intelectuais usados na ciência. As formas simbólicas não discursivas, embora tenham funções representativas, são impregnadas pelos componentes expressivos, que se ligam à percepção da tonalidade afetiva das experiências. Tais formas não discursivas não representam e sim “presentam”, presentificam a textura emocional do mundo: uma mera presença é totalmente diferente de uma representação. É um setor da relação homem-mundo irredutível ao saber intelectual. Os sentimentos, referidos às qualidades expressivas, não podem ser expressos através de formas simbólicas discursivas. Para ser expresso, é preciso que o sentimento se vincule a uma forma articulada e lógica, embora se trate de uma lógica analógica, diferente da lógica que rege a representação. O propósito da arte é justamente criar essas formas. A metáfora é uma delas. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 375 Renato Trachtenberg gastos pelo uso corriqueiro. A linguagem comum, contaminada pelo desbotamento do hábito, é inadequada para falar do objeto da análise, pois nos distancia do que tentamos descrever. A experiência de que gostaríamos de acercar-nos não tem cor, cheiro ou sabor, é inefável. A linguagem requerida deve ter um efeito metaforizante, presente nos símbolos presentificadores usados para aludir a experiências para as quais faltam símbolos discursivos5 (ROSENFELD, 1998). Como nos recorda Kon Rosenfeld, a metáfora, enquanto forma criada, corporifica o irrepresentável, tangencia o indizível. A metáfora transporta com base numa semelhança. O nome transportado fala de algo que tem semelhança com a experiência a ser nomeada, mas não é o seu nome próprio. A interpretação psicanalítica apenas alude, evoca, insinua (não é emsi-nua). A força e a criatividade de uma linguagem de êxito ou autêntica (Merleau-Ponty) aproxima os termos da analogia, fazendo surgir algo novo além da dualidade, instituindo uma semelhança no des-semelhante e mantendo, ao mesmo tempo, suas diferenças. Como em toda transformação (BION, 1965), existe na metáfora uma ruptura e criação de formas, uma mudança catastrófica (violência, subversão do sistema e invariância). Ao romper e nomear, a metáfora cria, produz uma nova configuração e, assim, A DIMENSÃO POÉTICA NA INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA transforma a alteridade que tenta apreender. Otávio Paz diz que o poeta arranca as palavras de suas conexões habituais; separados do mundo informativo e escravizante da fala, os vocábulos tornam-se únicos, como se acabassem de nascer. Um ato de libertação. Bion referiu-se inúmeras vezes aos versos de Horácio (Ode IX, Livro 4): “Muitos heróis viveram antes de Agamenon, mas todos estão oprimidos debaixo da terra, esquecidos para sempre, sem que ninguém os chore, sem que ninguém os glorifique, porque lhes faltou, para cantá-los, um poeta inspirado pelos deuses”. Muitos homens valentes foram sepultados pela negra noite antes que Homero imortalizasse Agamenon. O psicanalista trabalha para resgatar dos escombros da alma pensamentos não pensados, soterrados no “vazio infinito e sem forma”. Se a psicanálise não estimula o grupo psicanalítico a desenvolver a possibilidade de experimentar e jogar com formulações criativas que resgatem o ainda não-nascido, o desvitalizado e o condecorado de todos nós, muitos pensamentos heróicos permanecerão enterrados e esquecidos no poço sem-fim dos tempos, sem nenhum psicanalista para cantá-los. Referências BION, W. R. (1962a). Uma teoria sobre o processo de pensar. In: Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1967. . (1962b). Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires: Paidós. . (1965). Transformações. Rio de Janeiro: Imago. . (1970). Atención e interpretación. Buenos Aires: Paidós. ROSENFELD, Helena Kon. Palavra pescando não-palavra: a metáfora na interpretação psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. MELTZER, D. (1973). Interpretación rutinaria e Interpretación inspirada. In: Hahn, A. (org.). Sinceridad y otros trabajos. Buenos Aires: Spatia. . (1984). Vida onírica. Madrid: Tecnipublicaciones. . (1996). Meltzer em São Paulo: seminários clínicos. São Paulo: Casa do Psicólogo. OGDEN, T. (1997). Algumas Considerações sobre o uso da linguagem em Psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 31, n. 3, 1997. TRACHTENBERG, R. (2002a). A interpretação e a mente do analista: considera- 376 Psicanálise v. 8, n. 2, p.369-377, 2006 Edição Especial Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Renato Trachtenberg Rua Florêncio Ygartua, 391/402 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: 51 33306453 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 377 Renato Trachtenberg ções sobre três configurações espectrais. Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, v. 4, n. 1, 2002. . (2002b). As indisciplinadas esquadrilhas da emoção: sobre algumas convergências entre Eliot, Bion e o psicanalista na sessão. In: MASINA, L.; CARDONI, V. (org.). Literatura comparada e psicanálise: interdisciplinaridade, interdiscursividade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto. . (2003). O estranho caso do Dr. Freud e do Sr. Schnitzler. In: Freud e suas Leituras. Porto Alegre: SBPdePA. . (2005). De la pasión por el psicoanálisis ? por el psicoanálisis de la pasión. Trabalho apresentado no 44º Congresso da IPA, no Painel “Um modelo ético/ estético baseado em Bion e Meltzer”. Rio de Janeiro, 31 de julho de 2005. A DIMENSÃO POÉTICA NA INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA 378 Psicanálise v. 8, n. 2, p.369-377, 2006 Edição Especial Música e Psicanálise Fredi Gerling* Quando aqui estivemos para o primeiro destes encontros, durante os debates, foi mencionado que Freud, pai da Psicanálise, criou a hipótese de uma terra prometida interior, a existência de uma terra de asilo que cada um contém em si mesmo. Foi quando lembrei o quanto apreciara a leitura do livro Invented Worlds de Ellen Winner (1982). Nesse livro são abordadas questões pertinentes à psicologia das artes e do artista bem como a relação entre as doenças mentais e a arte. Quando tentamos compreender a arte do ponto de vista psicológico, devemos considerar várias questões muito abrangentes. Podemos buscar o entendimento da motivação para se ser artista e da necessidade de se expressar o pensamento através do objeto artístico. Imediatamente, temos de considerar quais as ferramentas que são utilizadas na elaboração e execução da obra de arte. Qual a intenção artística? Qual o meio de expressão? Quais as peculiaridades deste meio? Quais as regras que definem este meio? * Doutor em Doctor of Musical Arts pela University of Iowa, EUA. Professor Adjunto de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 381 Fredi Gerling Psicanálise e Música: ouvindo o inconsciente – origens compartilhadas PSICANÁLISE E MÚSICA: OUVINDO O – ORIGENS COMPARTILHADAS INCONSCIENTE Ao abordar o assunto a partir do ângulo do público-alvo do artista, entramos no âmbito da recepção da obra de arte e uma nova torrente de perguntas complexas se apresenta. Como reagimos quando expostos à comunicação artística? Quais as ferramentas que utilizamos para decodificar a mensagem do artista? Qual o efeito que a arte tem sobre nós? Ellen Winner (1982) considera que essas são algumas das questões centrais da psicologia da arte, mas que os pesquisadores raramente as abordam de maneira direta. Segundo essa autora, psicólogos ao invés de desenharem pesquisas que forneçam subsídios sobre como entendemos as obras de arte, têm preferido estudar como certos grupos de pessoas reagem a certos tipos de manifestação artística. E, na mesma direção, têm estudado as diferenças de personalidade de artistas criativos versus artistas medianos ao invés de buscar o entendimento de por que o artista cria. Desde então, a situação descrita por Winner passa por mudanças, e hoje encontramos inúmeros trabalhos sobre a recepção da arte e a motivação do artista. O que nos leva a citar essa autora é seu reconhecimento de que Freud foi o primeiro pensador a buscar respostas para as questões acima, uma vez que, ao formular uma teoria da natureza humana que explica a totalidade dos comportamentos humanos, inclui também o comportamento artístico. Ao colocar a arte no contexto de uma teoria abrangente da personalidade, Freud se aproxima de um entendimento do que seja compreendê-la melhor do que qualquer outra teoria psicológica (WINNER, 1982). Retomando algumas das questões propostas por Winner, posso afirmar que como músico o meu meio de expressão artística está escolhido, o meu interesse maior está nas respostas às perguntas: Quais as peculiaridades deste meio? Quais as regras que o definem? As peculiaridades do meio “música” englobam a transitoriedade temporal da execução musical em contraste com a permanência de certas obras que se tornam ícones culturais. Mas, são as regras que definem o meio “música” que mais me atraem como músico. É a delimitação do espaço sonoro e temporal em que ocorre a música que me fascina. Como regente 382 Psicanálise v. 8, n. 2, p.381-390, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 383 Fredi Gerling faço escolhas que são cruciais para que a obra do compositor seja compreendida pelo ouvinte. Essas escolhas não podem ser arbitrárias, devem seguir as regras do mundo imaginário da música. Portanto a compreensão das regras deste “mundo inventado” é fundamental para o meu trabalho. As regras da música propriamente dita são simples de aprender. Mesmo o leigo sabe que a música tem que ter ritmo e ser afinada. Harmonia, contraponto, orquestração, ou como tocar um instrumento são conhecimentos de ordem técnica e podem ser adquiridos através de estudo disciplinado. No entanto, o que conseguimos fazer quando de posse dessas técnicas já é um assunto muito mais complexo. O que motiva o compositor a utilizar estes conhecimentos para escrever música, ou um instrumentista a realizar uma execução que busca transcender a reprodução correta das notas da partitura? Por que um artista é considerado criativo enquanto outro é considerado medíocre? A busca de respostas para essas perguntas, que são pertinentes a todos os músicos, é que nos leva a explorar o mundo da psicologia. Para Freud, o artista criativo possui impulsos instintivos excepcionalmente poderosos e frustrados em conjunto com uma capacidade para sublimar e redirecionar esses impulsos para a criação artística (WINNER, 1982). Buscar a compreensão do insight criativo seria assunto suficiente para um debate e está além do escopo de nosso encontro. Como músicos e intérpretes, precisamos de ferramentas que nos permitam entender o objeto sonoro que estamos recriando e que nos ajudem a comunicá-lo ao ouvinte. Não é muito diferente da situação de alguém que procura o psicanalista buscando entender as razões de seu comportamento para melhor se relacionar com seus semelhantes. Não acho que seja coincidência que a disciplina que se propõe a explicar a obra musical seja chamada de “análise”. Uma constante na formação de todo músico, a análise musical durante o século XIX é dominada pela metáfora organicista. A utilização freqüente de palavras como “célula” e “orgânico” indicam uma preferência por metáforas baseadas na biologia. Além disto, procura–se explicar como a obra é composta através de uma PSICANÁLISE E MÚSICA: OUVINDO O – ORIGENS COMPARTILHADAS INCONSCIENTE abordagem que, ao dissecar a música em seus componentes, a fragmenta e retira o elemento de mágica que é o que buscamos entender. Aqui podemos traçar um paralelo com o entomologista que para entender a beleza do vôo da borboleta, desmembra-a e conseqüentemente, priva–se do prazer estético que o motivou inicialmente. No início do século XX há uma completa modificação neste cenário. O que ocasionou essa mudança na abordagem analítica musical e que mudança foram essas? Estaria a psicanálise de alguma maneira relacionada a essas mudanças? No meu trabalho de professor e regente tenho utilizado extensivamente a metáfora do mundo imaginário para explicar como os eventos musicais se relacionam no tempo e no espaço musical criando imagens que só podem ser entendidas no mundo da música. Freud discutiu extensivamente a semelhança entre o mundo imaginário dos sonhos, criado pelas crianças ao brincar, e a arte. Considerava, no entanto, que a arte seria única na sua capacidade de proporcionar prazer estético por seus atributos formais e a alta capacidade de encobrir o processo primário de criação de imagens através da elaboração secundária (WINNER, 1982). Acredito que essas elaboração secundária é central para nossa compreensão do mundo imaginário da música. Senão vejamos, recebemos do compositor uma partitura que, segundo a idéia acima, é uma elaboração secundária ou sublimação que oculta o impulso criativo inicial. Como interpretes tentamos achar qual seria a intenção do compositor, mas já o fazemos a partir de nosso próprio impulso primário e, portanto, a nossa execução é uma elaboração secundária. Mais uma vez o proverbial Freud explica. . . Mas, a necessidade de oferecer uma explicação para a totalidade dos comportamentos humanos que observamos em Freud não seria, em si, um comportamento humano que necessita de explicação? Fiquem tranqüilos os psicanalistas e músicos presentes, não me atreverei a colocar Freud no divã. Levanto o ponto apenas para trazer esta discussão para o contexto histórico da Viena de Freud. O historiador Carl Schorske (1980) explora as múltiplas facetas de 384 Psicanálise v. 8, n. 2, p.381-390, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 385 Fredi Gerling Viena no fim do século XIX em seu livro Fin-de-Siècle Vienna. Já na introdução, o autor afirma que, no século XX, o pensamento europeu se caracteriza pela independência em relação ao passado. Mesmo que no século XVIII já se falasse em “moderno”, esse termo era usado apenas como antônimo de “antigo” quando relacionado à antiguidade clássica. Mas, a partir de 1880, “moderno” passa a definir a percepção que temos em relação a tudo que aconteceu antes do nosso tempo. Os termos arquitetura moderna, música moderna, filosofia moderna não significam a partir do passado e nem contra o passado mas independente do passado. Esse modernismo, usando emprestadas as palavras de Heinz Kohut, força uma “re–organização do self” que, por extensão, obriga os grupos sociais a rever e substituir sistemas de valores (LACHMANN, 2001). Neste clima inquisitivo, Viena fin–de–siécle foi o cenário de renovações em todas as áreas. O termo Die Jungen passa a ser um termo comum para designar os inovadores na literatura e os jovens arquitetos da art noveau. Esse movimento independente do passado ,que Schorske chama de “parricida”, levou ao surgimento de “escolas”, principalmente na psicologia, música e história da arte e marcou a presença dos intelectuais vienenses no cenário mundial (SCHORSKE, 1980). Em 1900 Freud publica “A Interpretação dos Sonhos” e em 1909 já se encontra em viagem nos Estados Unidos fazendo conferências sobre este tema (GRUN, 1982). Kokoschka ao definir o homem moderno como aquele que está “condenado a recriar seu próprio universo” sumarizou o espírito desta época e segundo Schorske deu voz própria à cultura vienense do século XX. Mas aonde está a conexão da música com a psicanálise que afinal é o nosso tópico? Na Viena de Freud, Schenker, Wittgenstein, Mahler e tantos outros expoentes intelectuais, o estudo da filosofia era um ponto comum a todos os cidadãos de alta instrução. Entre estes, havia um consenso que os pontos centrais do pensamento pós-Kantiano tinham relação direta com suas atividades, fossem elas cientificas, filosóficas ou artísticas. Neste cenário é fácil compreendermos por que Kant tem sido aponta- PSICANÁLISE E MÚSICA: OUVINDO O – ORIGENS COMPARTILHADAS INCONSCIENTE do como precursor tanto de Freud como de Schenker (KORSYN, 1988). Não estaria na busca da síntese a resposta para o empenho de Freud em criar uma teoria que explique a totalidade dos comportamento humanos e no caso de Schenker a totalidade das obras primas da música? Novamente tranqüilizo os ouvintes, não ousarei discorrer sobre epistemologia Kantiana. O que chama a atenção do músico que vos fala é a coincidência, apontada por autores qualificados, de conceitos filosóficos de Kant e Hegel na origem do pensamento de Freud e Schenker. Acredito que neste momento a maioria dos presentes estará se perguntando quem é Schenker e porque estamos estabelecendo um paralelo com Freud. Heinrich Schenker nasceu na Galícia em 1868 e morreu em Viena em 1935. Foi aluno do compositor Anton Bruckner. O dicionário “The Oxford Companion to Music” descreve seus escritos teóricos como “volumosos e de severa influencia filosófica de origem teutônica, expressando idéias altamente revolucionárias”. Não poderíamos descrever os escritos de Freud com estas mesmas palavras? As similaridades e o entrecruzar de idéias não acontecem apenas no âmbito da descrição sumária de suas obras. Veremos mais adiante que encontramos coincidências também na abordagem e estrutura das teorias psicanalíticas e na análise Shenkeriana. Frank Lachmann (2001) diz que Kohut foi além de Freud quando sugeriu que o analista deveria ouvir “o som da voz do paciente, a música que está por trás das palavras significativas”. Poderíamos dizer que Schenker nos ensinou a ouvir a música para achar as notas significativas por trás de uma composição. Charles Burkhart (1983), um teorista musical, nos diz que “a análise Schenkariana de uma obra revela primariamente como esta é composta – isto é, como seus componentes podem ser vistos em termos de níveis estruturais hierarquicamente organizados”. Ao falarmos de níveis estruturais hierarquicamente organizados acredito que a conexão com a psicanálise pode ser reconhecida. Uma descrição sucinta e extremamente simplista da teoria Schenkariana seria: A composição musical existe em três níveis estruturais. As obras primas mostram no seu nível mais recôndito apenas três padrões básicos que 386 Psicanálise v. 8, n. 2, p.381-390, 2006 Edição Especial 1 Por acorde da natureza, Schenker designa a tríade maior (por exemplo, Dó-Mi-Sol) composta por uma fundamental, uma terça e uma quinta. Este acorde triádico determina a tonalidade de uma composição. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 387 Fredi Gerling projetam “o acorde da natureza”1. O nível intermediário é o responsável pela estrutura formal da obra. O nível imediato é o que comunica a individualidade da obra. O viés filosófico teutônico de Schenker fica evidente quando cita Hagel – “destino é a manifestação da predisposição inata do individuo” – para justificar seu pensamento. Para Schenker, “a lei da origem acompanha todo o desenvolvimento e é parte do presente. Origem, desenvolvimento e presente chamo de níveis fundamental, médio e imediato; sua união expressa a singularidade de uma vida contida em si mesma.” Schenker considera que a projeção do “acorde da natureza”, de onde todas as obras derivam, é o gol da obra de arte musical. Este gol e o caminho para que seja atingido são o nível fundamental. Para Schenker, na música, assim como na vida, o caminho em direção ao objetivo final encontra obstáculos, reveses e desencantos que nos obrigam a tomar desvios e fazer concessões que atrasam a chegada ao destino final. Para ele esta é a fonte do suspense artístico, que permite que a mente criativa possa atribuir significados que são sempre novos. Esta batalha para atingir o objetivo final é travada nos níveis médios e imediatos (CHERLIN, 1988). O paralelo deste pensamento com o pensamento Freudiano é inevitável. Como músico, não me atreveria a desenvolver este paralelo, mas Winner considera que o princípio básico da psicanálise é que o comportamento humano é o produto do conflito entre impulsos instintivos poderosos e inconscientes e os limites impostos pelo ego e super-ego. Acredito que assim se justifica este paralelo. Ao revisar a literatura em preparação para esta palestra, este foi apenas um dos vários pontos que despertaram minha curiosidade. É na condição de músico que gostaria de apresentar alguns destes questionamentos para os presentes. Não poderíamos traçar um paralelo entre o “acorde da natureza” e a libido? As três estruturas básicas do nível fundamental de Schenker não PSICANÁLISE E MÚSICA: OUVINDO O – ORIGENS COMPARTILHADAS INCONSCIENTE corresponderiam aos complexos que governam os nossos instintos básicos? As idas e vindas do nível intermediário com suas frustrações e gratificações, não correspondem ao redirecionamento da libido através da sublimação ou à sua repressão? Não creio que devamos responder a estas perguntas pois poderíamos cometer o pecado da generalização e simplificação. O que considero interessante é que estas perguntas apontam para a similaridade de formulação de duas teorias tão abrangentes e que foram elaboradas no mesmo entorno histórico. Ambas utilizam a idéia de níveis múltiplos, uma procura explicar o comportamento humano e a outra se propõe a explicar a obra de arte musical. Os níveis fundamentais nas duas teorias envolvem conceitos filosóficos de alta complexidade. Tanto Freud como Schenker procuram explicar o presente como o resultado de uma luta travada entre o passado e as expectativas futuras. Freud queria encontrar a explicação para o comportamento humano, sadio e neurótico; Schenker procurava a explicação para a diferença entre a obra prima e a obra de menor valor estético. Para ambos, o desvio das normas preconizadas por suas teorias significa um afastamento do ideal. Para Freud, a mente do artista/gênio obedece aos mesmos princípios fundamentais da mente do ser humano comum ou neurótico, caso contrário a obra do gênio não seria compreendida pelo homem comum (WINNER, 1982). Para Schenker toda obra verdadeiramente artística possui uma estrutura comum no nível fundamental que projeta o “acorde da natureza” e por isto é percebida como um todo artístico. Quando esta estrutura não projeta corretamente o “acorde da natureza” é por que não seriam obras primas, mas obras de menor valor. É fato que Freud mudou o rumo da cultura ocidental. Sua influência nas várias áreas de comportamento humano é o que celebramos nestes encontros. Podemos dizer que Schenker teve um impacto similar no entendimento que hoje temos do objeto artístico musical. Pois a partir dos anos 1960, a análise Schenkeriana estabelece-se como a principal corrente 388 Psicanálise v. 8, n. 2, p.381-390, 2006 Edição Especial Referências BURKHART, Charles. Schenker’s Theory of Levels and Musical Performance. Aspects of Schenkerian theory, Yale University Press, 1983. CHERLIN, Michael. Hauptmann and Schenker: two adaptations of Hegelian dialectics. Theory and Practice, New York, v.13, p. 115–131, 1988. GRUN, Bernard. The Timetables of History. New York: Simon & Schuster, 1982. KORSYN, Kevin. Schenker and Kantian Epistemology. Theoria, Denton, v.3, p.44-50, 1988. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 389 Fredi Gerling analítica musical para a música escrita no sistema tonal composta entre 1600 e 1900. A menção que fiz à metáfora organicista utilizada no século XIX, foi para poder traçar um paralelo com as mudanças de rumo na análise musical no início século XX. A mudança de um enfoque organicista e descritivo para um enfoque baseado na percepção das conexões dos eventos em diferentes níveis, nos possibilita ver a obra de arte musical sem a dissecar, mas, nas palavras de Schenker, entendê-la como a “singularidade de uma vida contida em si mesma”. Novamente, não poderíamos comparar esta mudança de enfoque na análise musical às mudanças que a psicanálise trouxe ao tratamentos de pacientes mentais. Não vemos o homem hoje, graças a Freud, como a “singularidade de uma vida contida em si mesma”? Acredito que as coincidências que apontamos entre a análise musical Schenkeriana e as teorias Freudianas têm sua origem no compartilhamento do momento histórico em que foram formuladas. Freud e Schenker interagem e reagem aos preconceitos no clima da Viena do fin-de-sieclè. Freud ao que era aceito como comportamento normal ou anormal em Viena na virada de século, Schenker às obras consideradas obras-primas da música, principalmente as de compositores germânicos. Por isto, ambos têm em comum também o fato de serem sistematicamente re-lidos, criticados e discutidos. Mas acredito que é à luz da origem compartilhada de seus pensamentos filosóficos, que podemos apreciar melhor o legado revolucionário desses dois ilustres vienenses. Muito obrigado PSICANÁLISE E MÚSICA: OUVINDO O – ORIGENS COMPARTILHADAS INCONSCIENTE LACHMANN, Frank M. Words and Music. Progress in Self Psychology, San Vicente, LA, v.17, p.167-178, 2001. SCHORSKE, Carl. E. Fin-de–siècle Viena: politics and culture. New York: Vintage Books, 1980. WINNER, Ellen. Invented Worlds: the psychology of the arts. London: Harvard University Press, 1982. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Heloisa Helena Poester Fetter Fredi Gerling E-mail: [email protected] 390 Psicanálise v. 8, n. 2, p.381-390, 2006 Edição Especial Sergio D. Messias* Como abertura de nossa conversa de hoje, desejo delinear uma janela que possa servir de senha de passagem e entendimento entre nós. Numa tribo do alto Xingu, ao serem os nativos indagados por um antropólogo: “O que vem a ser música?”..., responderam: “É uma máquina que faz viajar do tempo de agora para o tempo de nossos antepassados e traz de volta”. A resposta me soou familiar, pois tento fazer o mesmo, como psicanalista, com a máquina da linguagem, pela sonoridade da enunciação. A sabedoria dos kamayuarás aponta, pelo menos, a duas dimensões da música: a mítica e a histórica, às quais dedicarei dois espaços de minha fala de hoje. A promessa sobre falar de música e psicanálise encontra-se numa espécie de redemoinho de difícil cruzamento, onde o caminho a escolher está indeterminado entre o que a * Médico Psicanalista.Membro Titular em função Didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 391 Sergio D. Messias Do Desejo ao Gozo: ensaio psicanalítico sobre a fruição da música (Fantasia em Si bemol Maior) DO DESEJO AO GOZO: ENSAIO PSICANALÍTICO SOBRE A FRUIÇÃO DA MÚSICA (FANTASIA EM SI BEMOL MAIOR) música diz, em si (e que é segredo seu), e aquilo que eventualmente nos poderá dizer. Em psicanálise, com a linguagem, também andamos tateando entre esses dois espaços, por exemplo: processo primário, processo secundário. Freud não atribuiu à música um lugar de destaque na conformação da alma; dizia ele não conseguir apreender por que caminhos ela o afetava como ouvinte, e pensava dever conhecer a intenção do artista para encontrar-lhe lugar em suas teorias sobre o aparelho mental. O que se escreveu depois dele não é muito e pode, basicamente, ser resumido em três ou quatro tendências: – a da obsessão, por encontrar uma justificativa para o aparente desinteresse de Freud pelo tema; – a que procura fundamentar-se na vida dos compositores e em seus eventuais conflitos psíquicos; – a que enfatiza as relações do eu em formação e estruturação; da alma em seu diálogo íntimo com o corpo, e possíveis implicações eróticas do campo musical (relações da música com a libido sexual, com o alívio de tensão, e sua relação com as fantasias); e – a que põe o foco nas relações da mãe com seu infante, em que os cuidados maternos passam a ocupar posição central, como uma balada infra-linguística, imaginada, a preencher o interespaço reservado do par. (Fazer um resumo desses trabalhos deixaria muito pesada minha fala de hoje à noite. Na década de oitenta, estudei e trabalhei atentamente sobre o tema música e psicanálise; e acredito que tenha sido com base nesse estudo o convite que me dirigiu minha Sociedade para aqui falar, nesta noite. Gostaria de poder revisar com brevidade aquilo que estudei, ligado a esse interespaço pré-linguístico, em que falo da separação dos corpos, e de uma função estrutural da “maternagem”, cuidado materno, presente no texto musical. Para isso precisarei fazer alusão a passagens da história da música ocidental. Para ser mais direto e fazer-me entender com brevidade, falarei de música, nesta passagem, através da metáfora dos cuidados maternos, especialmente de sustentação e contenção de seu bebê. Falarei com 392 Psicanálise v. 8, n. 2, p.391-406, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 393 Sergio D. Messias vocês, se me permitem, num tom de quem brinca, embora o tema seja para mim de extrema relevância.) Durante os primeiros séculos de nossa era, a música concentrava sua expressividade numa única e exclusiva linha melódica – música monódica, toada plana, religiosa, quase sem acidentes, extremamente suave, que pode ser escutada no canto gregoriano. O canto gregoriano, belíssimo, voz de elevação, louvor, instrumento de salvação, mistério na casa de Deus. Indagando para além desse instrumento, em direção à estrutura do canto, pretendo encontrar o que ele poderá dizer: o que é que ele quererá dizer a mim, revelar-me, como psicanalista? Entendo que essa posição é um tanto quanto intrusiva, se dirigida a uma simples postura de fé, mas só poderei pensar se o atravesso com o ato metafórico que fabrico. Em minha análise, compararei o canto gregoriano, monódico, a uma mãe muito fértil e grávida de muitos bebês, aos quais, aos poucos, dará nascimento. Vou chamá-la de Musa e supor que os nenês, de pura potencialidade vital, serão concebidos como Melodia, Contraponto, Ritmo, Acorde, Compasso, Consonância, Dissonância, Harmonia, Serialismo e Atonalismo; e ainda nascerão outros bebês, com outros nomes, que de certa forma estavam ali, na mãe, todos aglomerados, ainda não definidos ou somente sonhados. A primeira produção de Musa nasceu na Baixa Idade Média, e foi batizada com o nome de “Organum”; seu choro, ou sua voz, chamou-se “Vox Organalis”, e diz-se que a mãe o suportava com uma “Vox Principalis” de conforto, dando-lhe sustentação e aconchego, dando-lhe firmeza. “Vox Organalis”, o recém-nascido, se afasta muito pouco da mãe; quatro passos, às vezes cinco ex-paços, e volta para a segurança de seu colo divino. “Vox Organalis” se afasta sempre de mãos dadas, andando em paralelo com a mãe; às vezes se afasta, olhando-a pelo espelho, mas nunca per- DO DESEJO AO GOZO: ENSAIO PSICANALÍTICO SOBRE A FRUIÇÃO DA MÚSICA (FANTASIA EM SI BEMOL MAIOR) manecendo distante por muito tempo. O que quero salientar é que, timidamente, estava sendo dado o primeiro passo de alteridade no campo da música ocidental, que prefiro chamar de primeiro momento do aperceber-se do outro – movimento diafônico, de duas vozes que divergem, uma, porém, em demanda da outra. Diria Lacan que aqui o sujeito passa a existir somente em função de uma resposta que lhe vem do outro em sentido invertido, especular. Voltando à história, outros bebês vieram à luz, tendendo sempre a um modelo de busca de independência e autonomia (um traço marcante do imaginário musical do ocidente), embora, de alguma forma, amarrados à Musa, pedindo-lhe apoio. O nome das novas criaturas que vieram ao mundo variou de “Discantus” para “Isorritmo”, “Contraponto” e “Conductus”, seres cada vez mais ousados, algumas vezes diabólicos, mas com a figura materna sempre presente, em geral apelidada de “Tenor”, porque seu maior cuidado era a sustentação, a tenência do novo infante. O cuidado materno persistiu por séculos, na penumbra dos anos medievais, mesmo depois do nascimento de um importante broto chamado “Moteto”. “Moteto” era a princípio extremamente travesso, enviesado, ensaiando movimentos confusos e dissonantes que aos poucos foram sendo domesticados... Até que um dia nasceram filhas e filhos adorados de Musa, de eternas presenças, chamados “Madrigais” e “Canções”. Eram crianças que viviam cantando: entrelaçavam as vozes de uma beleza sublime e dissonante, permitindo que ao fundo se escutasse a voz de ordem da mãe-tenor; mantinham a arrumação da casa, imitando-se umas às outras nas tarefas: o que fazia uma, logo depois a outra fazia. De tanto que cantavam e falavam, sustentadas pela mãe, terminaram caindo na boca do povo, e tudo culminou em melodrama. Os problemas libertários e escolares trazidos pela polifonia de “Moteto”, “Canções” e “Madrigais” foram tantos, que o próximo filho passou a ser vigiado e conduzido por um tutor chamado “Baixo Obstinado”, “Cifrado” e “Contínuo”, mas de bom temperamento, que deu a Musa uma grande 394 Psicanálise v. 8, n. 2, p.391-406, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 395 Sergio D. Messias tranqüilidade, assim como a todos que visitavam a família para ouvi-los cantar. O novo bebê muito raramente assustava a mãe; vigiado, ensaiava fugas, mostrava-se às vezes invertido, brincava de trocar de posição com ela, revertia-se, nunca foi além dos limites; as brincadeiras eram previsivelmente calculadas e seguras. E a função de “maternagem” triunfou definitivamente na estruturação da família musical. Mãe e filhos se compensavam em suas funções. Tão tranqüilo e brejeiro era esse menino barroco que o próximo parto de Musa foi um dos mais coroados de êxito e harmonia familiar; nasceram várias meninas chamadas “Tonalidades”. E que bom era o temperamento das “Tonalidades”; dadivosas, passavam a palavra, de umas às outras, sem perturbações ou desencontros. O clima geral ia bem até mesmo quando nasceu a prole dos “Românticos”; crianças que oscilavam perigosamente entre passagens de tristeza profunda, lirismo e exaltação, a ponto de perderem a linha e quase saírem da pauta familiar. Os “Românticos” eram muito amados por Musa, que passou a darlhes bastante liberdade e muita linha para manifestarem suas emoções. Foi então que nasceu “Wagner”, e este começou a abusar da liberalidade de Musa. Não conseguia contê-lo num ponto fixo, que fosse de referência da casa, quanto mais ao colo. “Wagner” disparava com velocidade inesperada por toda extensão da habitação; começou a não obedecer sequer a uma governanta severa que dominava quase todas as crianças dentro do espaço familiar, chamada “Cadência”. Nota dominante em “Cadência” é que era a tônica da ordem doméstica. Depois vieram Debussy, Ravel, alguns que lançavam Musa num ritmo desnorteante, como Stravinsky, e outros que não saíam da pauta, mas anulavam totalmente a autoridade de “Cadência”, como Schoenberg e Berg. A função de mãe acalentadora e preocupada de Musa foi ficando, assim, gradualmente fora de pauta. DO DESEJO AO GOZO: ENSAIO PSICANALÍTICO SOBRE A FRUIÇÃO DA MÚSICA (FANTASIA EM SI BEMOL MAIOR) O povo, porém, no que considera sua música, a popular, continua agarrado à “Cadência”, tal como lhe obedecia e venerava a geração das “Tonalidades”; continua mais ou menos barroco, clássico ou romântico: sua música, em verdade nossa, é organizada no sentido de oferecer prazer, e um prazer de tranqüilizar ou empolgar. O que mais escuta o povo é melodia acompanhada, exorcismo do temor da solidão, que, na minha metáfora, equivaleria a dizer: sentir-se entregue a um “solo” sem identidade, como um melisma qualquer, sem sustentação, acompanhamento ou ritmo constante: inaudito. Concluo que o ocidente musical estruturou nossa música de modo a podermos usá-la, a qualquer momento, como fiel companheira, apaziguadora e confidente... para produzir efeitos de amor. Por exemplo: se, ao recebermos um Si, imploramos um Dó, nossa Musa, a popular, mãe zelosa, nos dá um Dó, que nos alivia a tensão e nos consola. Se, no passado, nos feríamos com um acorde de sétima de dominante, o ungüento a que recorria Musa era, de hábito, usar uma loção tônica. Nossa música, a ocidental, foi concebida para resolver ansiedades e tensões do estado de solidão, como suave mãe, e embalar-nos ao colo. Continuo, porém, minha história, já na virada para o século vinte. Na ponta de linha das gerações aristocráticas, foram-se sucedendo os filhos, agora não mais de Musa, mas de uma irmã sua, mais moderna, chamada “Techne”. Grande parte deles nasceu numa maternidade chamada IRCAM, e, jovens ainda, matricularam-se na faculdade de engenharia. Dela nasceram os “Não-euclidianos”, os “Brownianos”, os ”Entrópicos“, os ”Quânticos“, os ”Eletrônicos“, os ”Aleatórios“, todos portadores de novas leis musicais; de quase não-leis, estruturadas por vezes em complexos argumentos matemáticos, grafismos e relações lógicas. O que quero sublinhar, em minha versão de psicanalista, é que devemos estudá-las, essas novas gerações, por enquanto, como instauradoras de uma nova angústia, um som-ruído que nos provoca arrepios de uma espécie de gozo sonoro, gozo do quase puro ruído sideral ou ambiental; repre396 Psicanálise v. 8, n. 2, p.391-406, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 397 Sergio D. Messias sentante de uma nova paisagem acústica. Música que não leva mais em consideração o antigo deus dos gregorianos (faz-nos órfãos de pai), mas, em compensação, parte em busca do mega-som ou do mega-silêncio do Big-Bang, música das pedras siderais em expansão, como disse A. de Campos... mas dificilmente produz efeitos de amor. A intenção dos filhos de “Techne”, como a chamei, parece-me ser a de colocar-nos diante daquilo que alguns filósofos chamariam de “a coisa em si”, quase sem mediação: um misto de ruído puro e som decomposto. Tenho escutado esses novos representantes da paisagem sonora, a intervalos, desde muitos anos; eles produzem em mim algo muito distinto do prazer comum, o da “maternagem” musical, como, por exemplo, a escuta de Chitãozinho e Chororó ou de Beethoven; provocam-me algo que diria estar mais além do princípio do prazer. Aos poucos, acostumo-me a eles e os avalio como portadores de uma nova angústia – angústia do século, ainda insondável, pouco confortante, mas desafiadora de nossa compreensão e absorção. Ocasionalmente provocam-me esse tipo de gozo a que já me referi; acho que, se Lacan pudesse manifestar-se sobre ela, a música de Varèse, Boulez, Cage, Saariaho, Xenakis, Stockhausen, Ligeti, Goebels, considerá-la-ia muito próxima do limite do gozo do real, do gozo da “coisa em si”, do encontro excitante-horripilante com os espaços da caverna devoradora ou do ilimitado caos. Retornando a um tema que referi acima, uma coisa é o que essas músicas dizem, e sei que elas dizem simplesmente o que dizem, puro som; outra coisa é o que, imagino, podem querer dizer, espaço em que posso trazê-las a meu registro simbólico. Entendo que a “nova música” é feita de modo a que tenhamos nós de compô-la; exige-nos ordená-la a nosso entendimento, sem o toque de Deus nem de Nossa Senhora; sem a magia do dom, fator que gera inusitada angústia. Provoca, como disse acima, um tipo de gozo que não sei bem qualifi- DO DESEJO AO GOZO: ENSAIO PSICANALÍTICO SOBRE A FRUIÇÃO DA MÚSICA (FANTASIA EM SI BEMOL MAIOR) car; talvez decorra de uma sensação de dispersão absoluta, como a que se desencadeia na orfandade, e da exigência de gerar uma nova pele de completude, a par de emoções que não mais podem socorrer-se do cuidado materno comum (dos filhos de Musa e de sua proteção). Entrega-nos ao gozo de uma gestação inédita, de um parto no limite da perda; um gozo do sacrifício de criar e recriar... e recriar, a cada vez, novas membranas protetoras. Na vida musical do Ocidente, houve épocas em que a música que se fez e que se escutou ofereceu um tipo assegurado de prazer e conforto – prazer de ouvir música, pois as transformações que impunha à estrutura sonora do seu tempo implicavam pequenos acréscimos ou quebras da semântica tradicional. A flauta, por exemplo, escandalizou o mundo pensante de Atenas quando estabeleceu concorrência com a cítara, pelo fato de que obstruía a fala e eclipsava o “logos”. No gregoriano medieval, os pequenos intervalos melódicos que, aos poucos, eram introduzidos a partir da música popular soavam demasiadamente sensuais no campo de um diálogo com Deus, e causaram muita celeuma. Em torno de alguns anos que marcam a passagem do século dezenove ao vinte, novos compositores fizeram terra arrasada, como diz Boulez, de tudo que se havia construído no curso de uns mil anos de vida musical, tanto do ponto de vista das tonalidades como dos sons, das notações, dos ritmos, dos timbres, dos compassos e das execuções. Os novos compositores e a nova música instalam-nos num espaço caótico e de certo gozo do estranho, do inquietante e do macabro (Pierrot Lunaire de Schoenberg, com Christine Schäfer; DVD, p. ex.), que nos exigem enfrentar uma nova angústia, plástico-estético-musical, de fragmentos não assimiláveis, emergência do que estava na sombra. Procurei falar de música num tom psicanalítico, numa clave que chamaria de histórica. Vejamos que posso dela dizer noutro registro, o do espaço mítico ou pré-histórico, pré-subjetivo, num clima que me soa mais otimista. 398 Psicanálise v. 8, n. 2, p.391-406, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 399 Sergio D. Messias Retomo algo que sublinhei em meu estudo de anos atrás: a música é um atalho no caminho do ser muito mais curto do que aquele que percorre a poesia. Atalho para o espírito, para a emoção, para o afeto, assim como para a angústia e para o inconsciente. Jacques Lacan, em seu seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, deixa-nos um recado sobre uma tal de “pulsão invocante”, dizendo que ela, marginando e circunscrevendo o orifício auditivo, seria responsável pela grande proximidade que tem a música com o inconsciente psicanalítico. Lacan, tão racionalista quanto Freud, não desenvolveu sua teoria nessa direção, deixando-nos somente esse passo aberto: sua postulação sobre a pulsão invocante. Alain Didier-Weill, tomando essa brecha, entrega-nos um ensaio, que considero bastante complexo, mas extremamente belo e muito bem tecido de metáforas inspiradas no pensamento lacaniano, sobre o impacto da música na libertação primeira do sujeito e no seu passo de esperança, passo de dança, rumo a seu destino. Tento resumi-lo mesclando minhas palavras às dele, começando assim a arriscar alguns alinhavos, como disse acima, sobre a dimensão mítica da música. Quando me refiro a sua dimensão mítica, quero caracterizar um espaço primário da relação de um pré-sujeito humano com o som. Sugere Didier-Weill que, no instante em que soa a música, uma metamorfose se apodera de nós e não a recusamos; e ela nos penetra como se dissesse: “em ti estou em minha casa”, e sentimos que é verdade. A partir de então, a música nos escuta de dentro de nosso ser, e nós, tão absortos e motivados, seguimos nosso passo, até mesmo esquecidos de que um dia ela nos escutou. Até passamos a pensar que nós é que a escutamos... e nos sentimos seu dono, com poderes de ligá-la e desligá-la no controle remoto, sem saber que, esquecidos, e tendo-a recalcada no mais íntimo de nosso ser, ela se instalou como uma clareira aberta em nós, a convocar todos os sons do DO DESEJO AO GOZO: ENSAIO PSICANALÍTICO SOBRE A FRUIÇÃO DA MÚSICA (FANTASIA EM SI BEMOL MAIOR) mundo e a nos iniciar numa dança espontânea, ao mesmo tempo que “sujeitados” ou “assujeitados” à vida. Ela vem antes de nós, a música... Como poderia eu dizer?... Ela vem de um Real-seda... de um grande Outro, e ela é quem nos escuta, antes de sermos nós a escutá-la. A música é nossa boa ouvinte e nós o seu produto, antes mesmo que possamos articular um “sim” ou um “não” a sua invocação. Foi ela que, num tempo mítico e esquecido, nos puxou, nos moveu, instalou-se em nós, e nos fez dançar, ou, como se dizia há um tempo, tirounos para dançar na balada da vida. É difícil compreender isso, dito assim sem grande argumentação. Sim, é bastante difícil; palavras de um livro inteiro seriam poucas, de vinte e cinco livros seriam insuficientes. Seria preciso saber definir ou bem dizer que a música é o primeiro passo na instalação do sujeito no significante. A música é um primeiro tempo, tempo de som, tempo de vogal, tempo de ritmo, tempo de aventura, tempo de corpo animado e entusiasmado no baile da quadratura crescente da vida. No meu estudo de anos atrás, eu já havia notado a importância dessa fabricação do sujeito por ação da música, quando assinalava a tímida dissolução do canto gregoriano em duas linhas melódicas: organal e principal. Instaurava-se aí um microespaço de autonomia entre corpus-bebê e corpus-materno; corpus este que o sustentaria em tempos seguintes pelo tenor (de tenere, segurar), pelo cantus-firmus, da aurora da polifonia, pelo baixo contínuo do barroco e o acorde (acordo) da escrita musical clássicoromântica. Um mito musical, talvez de origem pitagórica, ilustra esse estado de “causação” do sujeito pelos traços sonoros do significante. Ele nos é relatado por Aristides Quintilhano, que escreveu um tratado sobre música (De Musica) por volta do ano trezentos. Dizia ele tratar-se de um mythos palaios, de uma história antiga, e que procuro relatar em minha linguagem: A alma quando cai das alturas do céu, qual gota d’água, pede um enla400 Psicanálise v. 8, n. 2, p.391-406, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 401 Sergio D. Messias ce. Se entregue a si mesma, ela se fragmentará em mil pedaços ao bater no solo. Se bem recebida, vai sendo perpassada pelo som cósmico das diversas órbitas planetárias. Como teias protetoras, esses sons vão se introduzindo na gotícula e criando uma rede de fibras, e uma rede de cordões, que definem e sustentam cada órgão de seu corpo. As órbitas planetárias mais próximas da terra, por um sopro, injetam-lhe substância aérea (pneuma), para que os órgãos, além da água já retida nos canais, tenham ar; outras encordoam-na, por tendões e fibras. É assim que se forma o corpo do ser humano, tornando-se um só com a alma, fibras e sopro. Corpo e alma, entrelaçados assim de cordas e ar, são extremamente sensíveis à lira e à flauta. A música, pois, se usada na medida certa, é para o ser, medicina segura: produz a harmonia das partes e dos órgãos. Tenho falado da música, seja ela qual for, como uma estrutura sincrônica da formação do sujeito psicanalítico, sujeito do inconsciente; tenho falado de música como entidade quase mística, indefinível e misteriosa, que emociona o sujeito, convocando-o para a vida, para aqueles que a sentem como indispensável mediadora entre o ser e o mundo. Nesse segundo espaço, que chamei de mítico, procurei alinhavar o tema da dádiva musical: invocação da música, pelo dom de instalar-se como estrutura esquecida invocante da pulsão, sonata materna de convite à dança, ao devir, ao movimento esperançoso e ao movimento de confiança num depois. Confiança que se manifesta como ascensão, diz Didier-Weill, pulo de cama elástica, brinquedo de pular corda; vai-vem em que se marca a música com o pé ou com o passo, confiando em que virá um segundo movimento, de retorno, e que sempre há de vir esse outro; música que rola num tempo mítico-real. Se ainda tiver algum espaço de tolerância, gostaria de fazer uma breve ponte entre minha abstração histórica da música e a mítica de Didier-Weill. Assim como Quintilhano, que na sua história antiga descreve nossa alma como modelada pela música das esferas celestes, que na sua expressão mais ousada abrange nossa época romântica, penso que a Nova Músi- DO DESEJO AO GOZO: ENSAIO PSICANALÍTICO SOBRE A FRUIÇÃO DA MÚSICA (FANTASIA EM SI BEMOL MAIOR) ca, a dos filhos de Techne, com seus ruídos concretos ou eletrônicos e sua decomposição computadorizada do som pertence ao âmbito das esferas maquínicas (ou maquinais). As novas músicas e nossos novos compositores auscultam sermos cada vez mais sustentados pelos braços de um universo maquinal e “maquímico”, e sussurram ou gritam a nossos ouvidos amantes o pesadelo das engrenagens eletromecânicas, eletroquímicas e digitais, suportes de um novo e áspero canto maternal. Ensinam-nos a ouvi-lo e amá-lo, ao tempo que nos fabricam no destino de prisioneiros do gozo maquínico, em que a sonata aquática e matinal do canto natural da Terra, perdida no passado, não será mais pronunciável ao desejo. Meu último parágrafo parecerá um tanto hermético se não o destacar de uma leitura de Michel Serres, em seu livro “Hominescências”, em que ele sugere a emergência de uma nova humanidade, um novo corpo, que se plasma entre 1938 e 1968, data esta do movimento estudantil francês e, 1969, data do movimento de Woodstock nos Estados Unidos. Impossível resumi-lo se não através de um texto polifônico que improviso, já que preciso dar conta de um feixe de transformações, nas quais a invariância vai ficando esmaecida: memória do corpo que é desejo qui desejo que é memória do corpo ge corpo que é memória da Terra na mi Terra que se transforma música que é memória de memória no memória que é memória do corpo qui corpo que é desejo de memória música que é memória da Terra ca corpo que se transforma Terra sem o tempo do corpo ma corpo sem o tempo do desejo ma desejo sem o tempo da música 402 Psicanálise v. 8, n. 2, p.391-406, 2006 Edição Especial Repito, então: prisioneiros do gozo maquínico ou maquímico em que a sonata aquática e natural do canto natural da Terra não mais será pronunciável ao desejo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 403 Sergio D. Messias música sem o tempo da Terra ge Terra que é memória da máquina máquina que é memória do desejo desejo que é memória RAM. 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O espectador é engolido pela angústia de Leonard, cujo objetivo é vingar a morte da mulher amada, descobrindo seu assassino, partilhando seus pensamentos e os mecanismos e armadilhas de sua memória. No início do filme de Christopher Nolan, diretor e roteirista, um close da imagem de uma fotografia Polaroid na mão do personagem vai perdendo gradativamente a nitidez até o desaparecimento completo. Essa cena inicial dá a * Texto parcial da dissertação de Mestrado em Artes Visuais, área de concentração Poéticas Visuais, adaptado para esta publicação. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS, concluído em de junho de 2003. ** Artista plástica. Mestre em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS (2003). Professora de Litografia (desde 1997) e Diretora do Atelier Livre da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 409 Miriam Tolpolar Arqueologias da Alma* ARQUEOLOGIAS DA ALMA idéia central do filme: o desaparecimento, o fugaz, o invertido, o que se repete, o tempo. O diretor utiliza no filme recursos da própria memória e do pensamento: as cenas se repetem inúmeras vezes, em sua seqüência normal e também de trás para frente, colocando em evidência o raciocínio do personagem em sua busca pela verdade. Esse desejo da verdade e a consciência de sua deficiência levam-no a utilizar inúmeros recursos para resgatar suas vivências e lembranças; Leonard passa a fazer pequenas anotações em pedaços de papel e utiliza uma câmera Polaroid para registrar todos os objetos e pessoas com as quais se vem relacionando. Organiza esse material em um painel que deixa na parede do quarto do hotel onde vive, como um catálogo de suas referências, em que aparecem o carro, a fachada do hotel, o quarto, os rostos das pessoas. O temor de perder tais referências o leva a tatuar em seus braços, pernas e tórax esses mesmos nomes, datas e fatos importantes, como uma tentativa desesperada de gravar, marcar em si mesmo o que não se permite esquecer. Esses textos gravados no corpo têm tamanhos e tipos de letras diferentes, obedecendo a uma estética curiosa, lembrando um mapa, fazendo do homem uma espécie de objeto vivo. O espelho e a inversão são imagens e recursos recorrentes ao longo do filme: o personagem traz no peito uma frase tatuada ao contrário, que só pode ser lida em frente ao espelho, e constantemente desnuda partes de seu tronco para ler suas próprias mensagens, também falando em voz alta frases que fazem referência a sua angústia: ”Todos precisam de espelhos para se lembrar de quem são. Eu não sou diferente”. Aqui, a frase nos interroga sobre seu significado: todos precisam de espelhos para se lembrar de quem são, ou seja, a quem pertencem? Ou necessitam rememorar como são no sentido existencial? A existência e o pertencimento, neste caso, estariam enganchados, já que o personagem busca entender a si mesmo e a seus atos do mesmo modo como vincula sua memória ao laço com alguém – alguém a quem pertenceu, mas que não mais se apresenta como real, e sim como lembrança. 410 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial Origens, inventários e percursos Ao longo de minha produção gráfica, sempre me interessei por lembranças, objetos e guardados, mas as primeiras litografias, em que utilizo conscientemente elementos que remetem às questões da memória, datam 1 Gravura: técnica milenar que utiliza uma matriz (madeira, metal, pedra ou tela de nylon) para a reprodução de imagens. Inicialmente utilizada com finalidades comerciais ou pedagógicas, foi precursora da imprensa e atualmente é utilizada por artistas. O campo da gravura engloba as seguintes linguagens: xilogravura, gravura em metal, litografia e serigrafia. 2 Litografia: processo de impressão planográfico inventado por Aloys Senefelder em 1796, na Alemanha, que utiliza uma pedra calcárea como matriz. Seu princípio fundamental reside na incompatibilidade natural entre água e gordura e utiliza procedimentos químicos para a retenção da imagem na superfície da pedra. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 411 Miriam Tolpolar Podemos relacionar esse espelho com a imagem fotográfica e com a gravura1. A imagem refletida no espelho é fotográfica, porém fugaz, escorregadia. Fotografia, gravura e imagem especular necessitam do objeto, são produzidas pelo e por causa do objeto em presença de um referente que não pode estar ausente. A relação entre imagem e objeto é a relação entre essas duas presenças, sem mediação. A concretização da fotografia ou da gravura, porém, retém o instante em que o olhar ou o pensamento vislumbram a imagem, enquanto a imagem do espelho é efêmera. A gravura, mais especificamente a litografia2, devolve a imagem invertida, como um espelho. Assim como Leonard Shelby grava suas impressões no corpo, gravo minhas impressões na pedra litográfica. Esses registros, antes impressos em papel, são agora impressos sobre as fibras do tecido, podendo este estar associado a uma espécie de pele branca e fina que irá perpetuar a imagem. A palavra “impressão”, para mim, aqui, possui um significado muito especial, numa clara alusão à permanência. Em seu livro Matéria e Memória, Bergson (1999) faz uso da palavra ‘impressão’ inúmeras vezes, dizendo que a lembrança “se imprimiu na memória”, da mesma forma que ao editarmos uma pedra litográfica dizemos que a imprimimos. A partir desse instante é impossível retroceder: aquilo que se imprimiu não poderá ser retirado, não poderá se apagar. ARQUEOLOGIAS DA ALMA de 1991. Esses elementos aparecem nas gravuras que retratam e mesclam homem e animal, inserindo desenhos de objetos, como pequenas recordações de tempos e espaços vividos. Palavras também são inseridas na obra, integrando-se ao corpo da imagem, e estas me provocam pensar em títulos curiosos. Miriam Tolpolar: “Falsas Memórias” – litografia – 50x70cm – 1991 Nessa mesma década, me dediquei às séries “Corpo e Alma” e “Monolitos”, tornando-se cada vez mais explícitas as questões importantes que deverão nortear meu trabalho até os dias de hoje e o essencial na obra que desejo desenvolver ao longo de minha vida. A partir dessa época, comecei a prestar mais atenção a meu corpo e na relação com os objetos que me cercavam dentro de minha casa, dentro das gavetas, das caixas, dos espaços menores, dos cantos... Pensava no destino desses objetos: o esquecimento, o lixo ou o eterno guardar. Nesse período, experimentei gravuras de grandes dimensões e comecei a utilizar o xérox como recurso técnico, possível de ser transferido para a superfície da pedra litográfica. 412 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial litográfica e pó de grafite s/ seda – 240x180cm – 1997 Comecei a juntar, organizar e catalogar muitos objetos de maneira informal e fiz fotocópias de textos, cartas, bilhetes, conchas, desenhos, mapas, cartões postais, lombadas de livros ou poesias, como um inventário de lembranças pessoais, amorosas e póstumas. A essa série de gravuras chamei “Monolitos”, numa referência à forma monolítica, ao monumento e também à composição da palavra: mono, um, e lito, pedra. Parte dessa série foi exposta em Porto Alegre, na Galeria Iberê Camargo, na Usina do Gasômetro, em abril de 1999. Nessa série de gravuras, produzidas no período de 1998 a 2000, trabalho com a idéia de resgate de uma memória por meio da exposição de objetos pessoais, como óculos, cartas e bilhetes que, relacionados entre si em uma espécie de seriação organizada em uma seqüência de imagens, levam à composição de um indivíduo que, mesmo não estando presente em vida, poderia estar; e esses objetos, sendo ao mesmo tempo privados, fazem parSociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 413 Miriam Tolpolar Miriam Tolpolar: “Corpo e Alma” – impressão ARQUEOLOGIAS DA ALMA te do cotidiano, podendo pertencer a qualquer um. Tais trabalhos relacionados com a memória, tomada literalmente ou recriada como uma espécie de arqueologia da alma, estão carregados da presença do sujeito, propondo a procura de um tempo, não desse tempo cronológico ou histórico, mas de um tempo mágico. Esses objetos, sentimentos ou acontecimentos se imprimem em nossa memória, mas sendo lembranças; possuem datas, nomes, um espaço delimitado e, portanto, não podem repetir-se na verdade. Dessa forma, as lembranças, à medida que se vão atualizando, tendem a reviver em imagens. Miriam Tolpolar: ”A Rosa” – impressão litográfica s/ seda – 120x100cm – 1999 Meus Mortos, Meus Vivos: diálogos com a gravura e a memória A obra que originou meu processo de pesquisa de Mestrado em Poéticas Visuais, realizado no Instituto de Artes da UFRGS, é um objeto, assim 414 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial Miriam Tolpolar: ”Meus Mortos, Meus Vivos” livro – impressão litográfica s/ seda – 28x21cm (aberto) – 2002. Livro convida ao manuseio, à leitura, mas sendo um objeto todo branco, produz um misto de atração e receio. As luvas indicam mãos, sugerindo que seja tomado, manipulado, mas com cuidado. O fato de não possuir texto escrito nem mesmo qualquer referência àqueles indivíduos que ali estão representados pelas fotografias cria um vazio: rostos sem nomes. Não Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 415 Miriam Tolpolar como muitas das obras que venho desenvolvendo até então. Objeto gravado, gravura objeto, livro com impressões, livro de artista: qualquer uma dessas definições poderia dar pistas sobre esse trabalho nomeado “Meus Mortos, Meus Vivos”, realizado no ano de 2001. “Meus Mortos, Meus Vivos” é um livro todo branco, onde em cada uma de suas páginas de tecido está impresso o rosto dos meus mortos. O livro consta apenas das imagens dos rostos e, na capa, do título. Também faz parte dessa obra um par de luvas brancas de tecido, depositadas ao lado esquerdo e direito do livro. Livro e luvas, por sua vez, estão colocados em cima de uma pequena mesa, também branca. ARQUEOLOGIAS DA ALMA constando nenhuma informação sobre eles, podem ser qualquer um. Ou nenhum. É um objeto silencioso, com imagens anônimas, solitárias e silenciosas. Quando um sujeito se propõe a vestir as luvas, está adentrando em um universo pessoal e podemos supor que se estabeleça uma relação de intimidade com o objeto. Nesse caso, o livro assume a função do espelho, sendo que o sujeito que mira olha o outro adentrando em si mesmo, relacionando aquilo que vê no outro com a sua verdade e transformando a verdade do outro na sua verdade. As imagens de rostos utilizadas no livro foram desdobradas em uma obra bidimensional, organizadas verticalmente, originando uma seqüência de outras novas litografias. Miriam Tolpolar: “Meus Mortos, Meus Vivos” – impressão litográfica s/ seda – 120x100cm – 2002 416 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial Miriam Tolpolar: “A Aroeira”-impressão litográfica s/ seda- 100x120cm- 2002 Para a mostra “Migrantes”, realizada no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), no ano de 2004, em comemoração ao centenário da primeira imigração judaica organizada para o Brasil, as mesmas imagens foram impressas em lenços brancos que geraram um grande painel. A essas Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 417 Miriam Tolpolar “Meus Mortos, Meus Vivos” sugere um contraponto entre vida e morte, nos remetendo a pensar que o morto se faz vivo e presente, construindo outros sujeitos com os quais tiveram ligações, estreitas ou não. O título me conectou com uma brincadeira, comum na infância, que se chamava “morto-vivo”. Um de nós era escolhido para esconder o rosto, contar em voz alta até um determinado número e, ao se virar para o resto do grupo, gritar: “morto!” ou “vivo!”, tentando surpreender os demais. Ao ouvir “morto”, as crianças deveriam “morrer”, ficando estáticas; ao ouvir “vivo”, deveriam movimentar-se, fazendo gestos ou simulando ações. ARQUEOLOGIAS DA ALMA imagens foi incorporada a impressão de uma reza em hebraico, o “kidush”, a reza dos mortos. Miriam Tolpolar: “Meus Mortos, Meus Vivos” – impressão litográfica s/ lenços – 165x195cm – 2004 Ao longo de todo esse período de leituras, estudos e produção intensa, senti-me também instigada pelo espaço urbano. Moradora do bairro Bom Fim há muitos anos, caminho muito por suas ruas e freqüento regularmente o Parque da Redenção. Foi nessas caminhadas que comecei a prestar atenção nos gramados do parque, cravados com pequenas toras de madeira em toda sua extensão. Comecei a enxergar esse espaço de outra forma e percebi nele uma identidade com minha obra. Aqueles amplos espaços gramados produziam associações com heranças, espaços cemiteriais, “campos santos”, como se costuma ouvir no interior, numa dualidade com a vida e a natureza. A localização do parque, no coração do Bom Fim, também contribuiu para essas reflexões, já que este foi o bairro que acolheu imigrantes judeus e onde estão localizadas as principais sinagogas, clubes e lojas des418 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial Miriam Tolpolar: “Meus Mortos, Meus Vivos – diálogos com a gravura e a memória” – intervenção urbana – detalhes e fotos de catálogo – Parque da Redenção – POA Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 419 Miriam Tolpolar sa comunidade. O bairro, assim como o parque, portanto, está impregnado dessa memória referencial. Aquelas mesmas faces, anteriormente impressas como livro e na superfície de lenços brancos, foram agora transferidas para recortes de sedas brancas, sendo pensadas para recobrir as toras de madeira, produzindo, dessa vez, uma intervenção urbana. A obra foi planejada cuidadosamente durante 18 meses. O planejamento inclui a preparação das imagens, a experimentação das obras no local, a realização de fotografias, os contatos com a administração do parque e a realização do material gráfico para distribuição. ARQUEOLOGIAS DA ALMA Miriam Tolpolar: “Meus Mortos, Meus Vivos – diálogos com a gravura e a memória” – intervenção urbana – Parque da Redenção – POA – 2006 Instalado no gramado central do Parque da Redenção, nos dias 26, 27 e 28 de maio de 2006 (sexta, sábado e domingo), segundo o planejado, o trabalho foi montado pela manhã e retirado ao final da tarde de cada dia. Durante esses três dias, fiz plantão em torno da obra, acompanhando o trânsito dos visitantes. O público foi variado: freqüentadores habituais do parque, aposentados, atletas, moradores do entorno, famílias, crianças, vendedores ambulantes. Muitos buscavam com o olhar alguém ou algo que explicasse aquilo que estavam vendo, e inúmeras vezes me aproximei para conversar, entregar o folder ou ouvir algum comentário. O diálogo com um público tão diferente daquele que comumente freqüenta as galerias de arte, museus e outros espaços institucionais da cidade, me instigou e produziu um desejo de conhecer e de me relacionar mais com os espaços não convencionais, gerando uma riqueza de comentários e material para novas propostas e projetos. Os cumprimentos, abraços e comentários de pessoas que vieram ao parque, porque viram no jornal, ou outros que não entendem por que alguém faz uma arte que não está à ven420 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial Miriam Tolpolar: “Meus Mortos, Meus Vivos- diálogos com a gravura e a memória” – intervenção urbana – Parque da Redenção – POA – 2006 A realização dessa obra em um espaço público tão diferenciado me produziu inúmeras outras questões, relacionadas à minha produção em gravura, e me fez entender um pouco a dimensão da satisfação de ter uma obra integrada à cidade, afora o prazer de realizar algo além das paredes de uma galeria. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 421 Miriam Tolpolar da, me suscitaram divagações. A maioria das leituras foi associada a cemitério, jardim da paz, e até mesmo como uma homenagem aos desaparecidos da ditadura. Cada indivíduo propunha uma interrogação, uma hipótese, partindo de sua própria vivência. Muitos colocavam o pé ou tocavam para saber o que havia embaixo, sendo que algumas pessoas chegaram a levantar o pano para olhar. Quando dizia que aquelas pequenas toras estavam espalhadas por todo o parque, olhavam ao redor, surpresos, exclamando “é mesmo!”. Adultos que passavam desinteressados eram chamados pelos filhos para se aproximarem das obras. É surpreendente como as pessoas observam tão pouco o seu espaço, a sua cidade. ARQUEOLOGIAS DA ALMA Assim como no filme de Christopher Nolan, nesses trabalhos também é feita uma espécie de catalogação ou inventário de objetos, rostos e fatos, num resgate da memória que, se não está acometida de amnésia, tende a desaparecer por conta do tempo. Seria esta uma tentativa inútil? Pois, na verdade, tudo é efêmero e sujeito à destruição: o tempo, o fogo, a má conservação e até mesmo o esquecimento. A gravura, porém, está ali para lembrar. Lembrar o quê? Lembrar de nós mesmos. No filme “Amnésia”, o personagem Leonard Shelby buscava encontrar a verdade, a sua verdade, colocar-se nesse universo, descobrindo-se no espelho, pois este não mente, diz sempre a verdade, abrindo, porém, uma fenda entre o que olha e o que é olhado, num jogo de olhares que propõe a leitura particular do que se quer ver. Essas litografias propõem este jogo: morto? vivo? ou apenas vida? A pesquisa técnica, desenvolvida ao longo de tantos anos, caminha junto a todas essas questões e inquietações: a investigação de formas de impressões em tecidos brancos muito finos e delicados, como a seda, a busca de uma qualidade nos negros e a associação de matrizes e imagens nesses suportes pouco convencionais. Além disso, considero inovadora, em minha trajetória, a proposta de uma gravura expandida, além dos limites da pedra litográfica, associada a uma poética pessoal. As interrogações e premissas que venho me colocando dizem respeito à própria gravura, seus paradigmas e sua linguagem, associados às questões relacionadas à memória e à dualidade da vida e da morte. Dessa forma, acredito ser impossível a um artista que desenvolve uma pesquisa na área da gravura dissociar seu fazer do seu pensar. Todas essas indagações surgem em turbilhões de desejos de trazer à luz pensamentos, tornando visível e compreensível ao outro a obra. Por outro lado, também é fundamental que essa mesma obra deva conter elementos de uma técnica gráfica secular, a gravura, linguagem escolhida por mim como meio de expressão. Des- 422 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial Referência BERGSON, H. Matéria e Memória, São Paulo: Martins Fontes,1999, p.85. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Miriam Tolpolar E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 423 Miriam Tolpolar sa forma, acredito ser possível propor uma expressão artística secular e também contemporânea. ARQUEOLOGIAS DA ALMA 424 Psicanálise v. 8, n. 2, p.409-423, 2006 Edição Especial Júlio Campos* Colocar lado a lado arte e psicanálise resulta em um campo muito amplo e interessante a ser explorado. Em primeiro lugar, salta à vista as diferenças históricas do aparecimento de uma e da outra. Enquanto a psicanálise é um desenvolvimento atual, a arte praticamente nasceu com o processo evolutivo do ser humano como espécie. As primeiras criações artísticas datam do período Paleolítico. Entre as obras mais antigas já encontradas estão pequenas estátuas humanas como, por exemplo, a Vênus de Willendorf (aproximadamente 25.000 a.C.) e as pinturas rupestres, as pinturas das cavernas. As mais conhecidas estão em Altamira, na Espanha (30.000 a.C.), e em Lascaux, na França (15.000 a.C.). Isso sem considerar os pequenos artefatos decorativos e enfeites pessoais que podem ter datação entre 50 ou 60.000 anos. Por outro lado, a psicanálise nasce como ciência nos inícios do século XX. Digo como ciência porque sua essência já estava delineada em textos de muitos autores anteriores a Freud. Todos esses conhecimentos produziram um grande salto epistemológico ao localizar dentro do próprio indivíduo (no que chamamos inconsciente) a história da família e fazer derivar dela os caminhos, os destinos, a direção que aquela trajetória de vida vai seguir. Harold Bloom (1988) é desta opinião e marca com Willian * Médico Psicanalista. Membro Titular em função Didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 425 Júlio Campos Arte e Psicanálise ARTE E PSICANÁLISE Shakespeare o início do que ele chama de “a invenção do humano”, ou seja, o nível atual de conscientização que alguns seres humanos alcançaram, o que faria dele, Shakespeare, por esse parâmetro, o primeiro psicanalista da humanidade. Antes vigia, para o indivíduo, desígnios impostos externamente a ele. Primeiro eram muitos deuses, dos primórdios da civilização até Moisés, e, posteriormente, um único Deus comandava todo o espetáculo. Tanto os oráculos como depois as seitas organizadas (as igrejas) chamaram para si o status de intermediários, gozando assim da força e do prestígio decorrentes da condição de intérpretes dos mais diferentes deuses. Embora, com o advento do pensamento baseado na percepção do inconsciente, não se tenha modificado substancialmente nossa condição de marionetes, o centro de comando das ações teve uma transformação significativa, estando mais perto de nossas mãos a possibilidade de modificação dos nossos destinos. Mesmo retrotraindo, algo forçadamente, os inícios da psicanálise do século XX para o século XV, com Shakespeare, a diferença histórica para o aparecimento da arte e da psicanálise no mundo é fantástica e deve ser levada em consideração. Uma das conclusões possíveis é a de que a arte possa fazer parte dos funcionamentos intrínsecos do ser humano, enquanto a psicanálise é uma espécie de agregado, produzido a partir de enigmáticas razões por um aumento de complexidade de algumas mentes. Essa explicação, se correta, poderia lançar alguma luz sobre as resistências de aceitação de que nossa maneira de pensar ainda hoje é objeto, ao passo que a arte sempre obteve, salvo algumas exceções, uma aprovação ampla e irrestrita por parte da população. Interessante a essa altura notar que, embora a arte possa gozar dessa popularidade, a consagração não se estende na mesma proporção a seus criadores, os artistas. Não é incomum que esses dedicados seres comam “o pão que o diabo amassou” antes de serem reconhecidos, o que muitas vezes pode só ocorrer post-mortem. Nesse ponto, carregam a sina das resistências que a população em geral dirige à psicanálise e aos psicanalistas. Penso que essas resistências se devem a que tanto um como outro trabalham com as verdades da vida. E como as verdades da vida são, em grande 426 Psicanálise v. 8, n. 2, p.425-431, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 427 Júlio Campos parte, inconscientes, causam incomodidades à população ao serem desveladas. Outra ocorrência curiosa une psicanalistas e artistas. Algo que poderia ser descrito como uma “adesão contra chuva e maré” a suas profissões, amparado por um irrestrito amor em defesa da ocupação que abraçaram. Minha explicação ao fato está ligada ao prazer produzido pelo citado desvelamento do inconsciente. O mesmo que para a população, no sentido do ser médio retrógrado, ou para o status quo pode ser incômodo, em âmbito individual, para uma pessoa sem muitos preconceitos, pode ser prazeroso. Uma vez que, como analistas, possamos ter a experiência de configurar o quadro de uma vida e entender algumas de suas nuances profundas, seremos impelidos a retornar dia após dia ao consultório e ouvir, durante dezenas de horas, histórias de muitas pessoas, na esperança de ter, novamente, essa sensação inefável. Considero que o ato de configurar o quadro, tanto no sentido lato como no metafórico, ou seja, tanto para artistas (no caso pintores, poetas, escritores) como psicanalistas produz um prazer só comparável ao orgasmo sexual. Essas afirmações são facilmente comprováveis. Basta ler qualquer das histórias que Conan Doyle providenciou para nós com seu Sherlock Holmes. Constataremos que o brilhante detetive costumava passar seus dias em modorrenta inação, muitas vezes embalados pelo vício da cocaína. Mas bastava aparecer a menor chance de investigação para que se transformasse em outra pessoa, a essa vez alerta, inteligente e capaz das mais intrincadas conjecturas. O prazer de compreender colocava-se, então, em primeiríssimo lugar na sua vida. Existe ainda mais uma circunstância que liga, de forma indissolúvel, a psicanálise à arte: a forma de chegar ao resultado esperado. No caso dos artistas, a obra; no dos psicanalistas, a compreensão e as condições de interpretação. Esse, como com tantos outros, é um desenvolvimento que devemos a Freud. Está estribada em uma forma de escuta especial e chamada, nas nossas teorias, com certa dose de apropriação indébita, de método psicanalítico. Consiste em escutar o que é dito com a menor classificação possível, o que inclui ausência de preconceitos e julgamentos morais. Clas- ARTE E PSICANÁLISE sifico de apropriação indébita por dar-me conta que é também usada por outros profissionais ou em outros âmbitos. Já presenciei a performance de bons garçons usando essa metodologia e conseguindo com ela servir corretamente os pedidos de mesas de 10, 15 pessoas, com as respectivas bebidas, sem usar nada para anotar ou qualquer outra “muleta” habitual. A explicação que nos proporcionam, quando perguntados, é idêntica a que chamamos de “atenção flutuante” e obtém os mesmos resultados. É um método que também observo ser usado nas artes marciais orientais, e com ele, os mestres alcançam suas performances de grande habilidade. Esses mestres explicam que o segredo é ter a mente vazia, sem nenhum tipo de intencionalidade. Não tem na consciência a intenção de realizar o que estão por realizar. Mas como se poderia explicar esse processo? Suas bases estão em permitir que a mente execute seu trabalho associativo sem interferência. Os criadores artísticos estão habituados com esse método e se utilizam dele cotidianamente. Uma ilustração, das muitas que poderíamos lançar mão: conta-se que Picasso foi contratado por sua amiga e mecenas dos surrealistas, Gertrude Stein, para pintar-lhe o retrato. Trabalharam, com muita intensidade, durante 49, 59 ou 69 sessões (as versões variam). Ao final, faltava-lhe ainda o rosto. Esse detalhe só foi completado, com uma rapidez impressionante, em ausência de Gertrude, meses depois. Alguns amigos da retratada, não satisfeitos com o resultado, questionaram o pintor. Picasso, com a segurança que o caracterizava teria dito: “Ela não se parece com o quadro, mas se parecerá”. E assim foi. Passados 10 anos, Gertrude Stein era igual ao retrato. E, além disso, o pintor parece haver apreendido uma lição importante, pois nunca mais trabalhou com o modelo presente, ou seja, aprendeu que a presença física do outro, depois de certo ponto, pode ser uma interferência à captação de suas profundezas. E como ele havia se permitido um verdadeiro “empapamento” pelo modelo, foi recompensado com a percepção de uma realidade que só ficaria evidente para os circunstantes anos depois. No dizer de Willian Rubin (1996), apresentador de sua exposição de 1996 no MoMA, em Nova York, “Picasso tinha a capacidade de pintar mais real do que a realidade”. 428 Psicanálise v. 8, n. 2, p.425-431, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 429 Júlio Campos Essa forma de olhar é a responsável por todos os nossos resultados e pela grande capacidade de memória que um psicanalista treinado pode chegar a desenvolver. Não é incomum que possamos recordar fatos ocorridos com aquela pessoa muitos anos antes ou que conectemos, com aquilo que estamos escutando naquele momento, sonhos ou frases relatadas em sessões já desaparecidas na poeira do tempo. Embora reconheça certo exagero em algumas dessas historias, elas são um fato. E fica, no meu caso, mais notório porque no âmbito social tenho uma marcada dificuldade de recordar as fofocas maldosas que tanto deleitam algumas pessoas, além de um incômodo e persistente esquecimento de nomes próprios, tanto de pessoas como de lugares. Mas de fato me impressiona muito mais outra questão conectada ao tema e que penso valer a pena ser relatada: tenho mais de três décadas de trabalho nessa profissão e me ocorreu nada mais que uma vez “trocar os arquivos” do cliente, ou seja, somente uma vez, nesse tempo todo, fiz uma interpretação com material que correspondia a outra pessoa. Dei-me por achado imediatamente, em meio ainda à formulação. O paciente riu e, apesar de constrangido, não perdia oportunidade de recriminar-me o engano nos encontros seguintes. Até que algo ocorreu, para minha surpresa. A interpretação com o material trocado revelou-se verdadeira na sua essência. Estava vinculada a um fato que a pessoa tratava conscientemente de ocultar, um acontecimento importantíssimo e esclarecedor sobre o qual pairavam muitos sentimentos desagradáveis, em especial vergonha e culpa. Reconhecendo algo invisível, mas presente, sem que eu conscientemente me desse conta, minha lógica associativa automática viu-se obrigada a lançar mão de outra história para trazer os fatos à luz. Estou convencido de que nossos neurônios são fantasticamente prodigiosos nessa tarefa de associar, desde que deixemos que eles possam trabalhar sem interferência. Assim, com algum treinamento, um psicanalista é capaz de reproduzir, para sua própria estupefação, longos trechos da sessão que escutou. Assim o garçom, brincando de associar aquela comida e bebida com tal pessoa, produz um registro indelével na sua memória. Para terminar, mais um detalhe surpreendente que liga a psicanálise à ARTE E PSICANÁLISE arte: o descobrimento do método psicanalítico. Em 1876, o médico italiano, expert em arte e posteriormente senador Giovanni Morelli, deu a conhecer um método de atribuição de obras clássicas que causou uma verdadeira comoção nos meios artísticos de toda a Europa, ameaçando o patrimônio de museus e colecionadores particulares, interferindo diretamente no lucrativo mercado das falsificações. Preocupado com a enorme responsabilidade da tarefa, Morelli advertia que a fórmula de checar características relevantes e marcas reconhecidas (sorriso das mulheres ou o sfumatto de Leonardo da Vinci, por exemplo) não era suficiente como prova de autenticidade para obras de arte, porque, se alguém se dispunha a copiá-las, se especializaria em reproduzir exatamente as particularidades mais evidentes e conhecidas daquele autor. Defendia a idéia de que o expert deveria ocupar-se em especial dos detalhes aparentemente ínfimos, como a forma das orelhas e das unhas ou o posicionamento das mãos e dos pés das figuras. Na prática, recomendava que o expert pudesse ter a obra sob sua observação até que pudesse entendê-la, até que a obra “falasse com ele”. Em 1914, no livro “O Moisés de Miquelangelo” (FREUD, 1914), nosso mais ilustre colega, depois de expressar sua gratidão aos escritos de Morelli pela inspiração do seu método de prospecção do inconsciente, nos diz: “Também a psicanálise costuma deduzir de características pouco estimadas ou inobservadas, do resíduo – le refuse – da observação, coisas secretas ou encobertas”. Como se pode, ver a ligação entre a psicanálise e a arte é tão estreita que o próprio método psicanalítico tem suas raízes ancoradas nela. Pode-se concluir que Morelli descreveu para os experts um método de atribuição de obras de arte que tem estreita semelhança com o método de produção da citada obra e que talvez seja a única fórmula de produzir criativamente que exista. Por essa razão pode também ser aplicada à psicanálise. O escritor G.K. Chesterton, com essa capacidade de síntese que os gênios possuem, sacramenta: “Se olhas uma coisa 999 vezes, estás perfeitamente a salvo; caso olhes pela milésima vez, corres o risco espantoso de vê-la pela primeira vez”. 430 Psicanálise v. 8, n. 2, p.425-431, 2006 Edição Especial BERGER, J. (1965). Êxito y fracasso de Picasso. Madrid: Ed. Debate, 1990. BION, W. (1965). As transformações. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. GINZBURG, C. in ECO, U.; SEBEOK, T. (1983). El signo de los tres. Barcelona, Ed.Lumen, 1989. BLOOM, H. Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 1988. FREUD, S. (1914). O Moisés de Miquelangelo. In: . Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.13. . (1919). O ‘Estranho’. In: . Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.17. RUBIN, W. (1996). Picasso and Portraiture. MoMA: New York, 1996. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Júlio Roesch de Campos Rua Almirante Abreu, 339 90420-010 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: (51)32222147 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 431 Júlio Campos Referência ARTE E PSICANÁLISE 432 Psicanálise v. 8, n. 2, p.425-431, 2006 Edição Especial Os Avanços da Medicina e a Psicanálise Laura Ward da Rosa* “A subjetividade é a verdade” S. Kierkegaard Foram necessários vinte séculos de evolução do conhecimento humano para que a psicanálise fosse descoberta pelo gênio de Sigmund Freud, médico da universidade de Viena. Essa descoberta redimensionou a ciência ocidental, na medida em que Freud promoveu uma verdadeira revolução epistemológica, ao instalar um novo discurso na história das ciências: o discurso da subjetividade. O sujeito da psicanálise é o do inconsciente e se constitui numa relação permeada pela linguagem; não está, portanto, baseado na biologia. Ao atender suas pacientes histéricas e após abandonar o hipnotismo, Freud entendeu que seus sintomas corporais (anestesias, paralisias, cegueiras, etc.) não obedeciam aos critérios neurofisiológicos, mas eram significantes que “falavam” de um conflito inconsciente. Uma vez entendidos e interpretados pelo analista no tratamento, eram curados através da fala – “Talking cure”, como bem chamou Anna O. O tratamento psicanalítico opera, assim, no campo * Médica Psicanalista. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 435 Laura Ward da Rosa O Sujeito da Ciência e o Sujeito da Psicanálise O SUJEITO DA CIÊNCIA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE das significações, por meio da fala do analisando em livre associação, enquanto o analista a escuta em atenção flutuante. Descortinou-se, então, um novo cenário, uma outra cena, como Freud chamou o campo do inconsciente. Após abandonar a sugestão hipnótica, promoveu a passagem à utilização técnica da transferência, reveladora da verdade do desejo inconsciente, que permanecera recalcado e gerando sofrimento psíquico e físico aos pacientes. Ao deixar o lugar de neurologista para ocupar o lugar de psicanalista, Freud muda a postura do sujeito que sabe, sujeito da ciência, própria do médico, portador do discurso do Mestre, segundo Lacan, e passa a ocupar o lugar do sujeito que é apenas suposto saber, sítio do psicanalista, no qual seu papel é ajudar o analisando a apossar-se de seu próprio saber, isto é, da verdade de seu desejo, que ele não descobre sozinho, precisando do Outro para essa revelação. A descoberta freudiana não desconsidera o biológico, nem que nosso organismo seja regido pelos mecanismos fisiológicos reconhecidos pela ciência, mas evidencia que nosso corpo se expressa através de significantes; que a experiência de uma dor, de uma doença, que nossa força ou nossa debilidade sempre se manifestam segundo uma linguagem particular; que cada um de nós estabelece um tipo de contato com seu próprio corpo, que é marcado pelo modo como ficaram registrados no inconsciente os primeiros cuidados (ou descuidos) maternos, inscrições das primeiras experiências de satisfação ou de frustração nas relações iniciais da vida, quando estávamos no mais alto grau de desamparo. O significado do adoecer tem, assim, a marca de nossa subjetividade, tanto quanto das resistências que oferecemos às doenças e do modo como nosso sistema imunológico nos protege ou nos torna vulneráveis aos diversos fatores patogênicos, desde uma banal infecção até ao modo como nos defendemos de um câncer. É sabido que a depressão é capaz de reduzir nossas defesas imunológicas. Esse longo percurso de investigação sobre o ser humano, que começa na Grécia, com Sócrates, Platão e Aristóteles, atinge, em nosso século, um avanço extraordinário. Se pensarmos na advertência do Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”, repetida por Sócrates (470-399), ao recomendar: 436 Psicanálise v. 8, n. 2, p.435-446, 2006 Edição Especial Breve histórico da evolução da ciência médica Nos primeiros tempos da humanidade, entendia-se o processo do adoecer como algo vindo de fora, por ação de forças do mal, deuses vingativos que impetravam punições ou por meio de miasmas, que eram vapores venenosos que impregnavam a atmosfera. Assim, as doenças eram tratadas por xamãs, bruxos e sacerdotes que, com diferentes métodos mágicos, tratavam de afastar o mal e restabelecer a saúde ao indivíduo. No século V a.C., nasce, na Grécia, Hipócrates, da ilha de Cós, que passa a defender a idéia de que as doenças não eram oriundas de demônios, mas que resultavam de fatores naturais ligados ao modo de vida, ao tipo de trabalho, ao alimento ou à água que ingeriam os doentes. O elemento que originava a doença seria um desequilíbrio em um dos quatro ‘humores’ que eram: o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile negra. Um excesso de bile negra, por exemplo, causaria a melancolia. Durante séculos pensou-se segundo esses pressupostos hipocráticos. Na Idade Média surgem os hospitais, que funcionavam mais como asilos para depósito de doentes terminais ou graves. Não havia a noção de diagnóstico, portanto, as doenças evoluíam em seu curso natural, sem expectativa de cura. A ciência médica, na verdade avança, a partir do século XVI, com o médico belga Andreas Vesalius (1514-1657), pioneiro que inicia os estudos de anatomia, a partir da dissecção de cadáveres, o que era antes proibido pela religião, e com William Harvey (1578-1657), que estuda a fisiologia do sistema circulatório. A partir daí, a profissão de médico é regulamentada, sendo exigido diploma para sua prática e os hospitais já têm mais um caráter de local de tratamento, sobretudo cirúrgico, e também de ensino aos estudantes. A Inglaterra lidera um movimento para a profissionalização dos cirurgiões, com o objetivo de acabar com a prática medieval das cirurgias realizadas pelos barbeiros. Henrique VIII promove Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 437 Laura Ward da Rosa “Cuida de tua Alma”, podemos constatar o quanto o progresso científico tem conquistado no campo do diagnóstico e no tratamento, tanto das doenças somáticas quanto dos mais variados quadros psicopatológicos. O SUJEITO DA CIÊNCIA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE seu barbeiro Tomas Vicary (1495-1561) a cirurgião do rei, pelo sucesso obtido no tratamento de uma úlcera crônica em sua perna. Daí em diante, a companhia dos barbeiros-cirurgiões estabelece que os aprendizes devem praticar cirurgia por sete anos. Ao serem aprovados nos exames, estavam qualificados na arte cirúrgica e deveriam abandonar, definitivamente, a barbearia. Com as descobertas no campo da anatomia, da fisiologia e da anátomo-patologia, abria-se a possibilidade de investigação das causas das enfermidades. Podemos pontuar os principais momentos do progresso da ciência médica nos seguintes eventos: 1670 – O comerciante holandês Antonie van Leeuwenhoek observa, pela primeira vez, glóbulos vermelhos, bactérias e espermatozóides, em microscópio rudimentar. Sem saber do que se tratava chama estas células de “animaizinhos”. 1793 – Phillipe Pinel assume a direção do Asilo de Bicêtre, em Paris, e inicia uma revolução no tratamento psiquiátrico, libertando os doentes da prisão acorrentada. 1796 – Edward Jenner cria a vacina, inoculando o vírus da varíola em um menino de 8 anos. 1816 – René Laënnec inventa o estetoscópio. 1842 – Crawford Long usa, pela primeira vez, o éter com finalidade cirúrgica. 1863 – Louis Pasteur descobre os microorganismos e revela ao mundo que as doenças são causadas por bactérias e não por miasmas, abrindo o campo da microbiologia à pesquisa das causas das diferentes doenças infecciosas e epidemias. 1867 – Joseph Lister publica, no The Lancet, sua descoberta sobre a necessidade de assepsia nos hospitais. 1882 – Robert Koch comunica à Sociedade Médica de Berlim que isolara o bacilo causador da tuberculose. Ganha o Prêmio Nobel de Medicina, em 1905. 438 Psicanálise v. 8, n. 2, p.435-446, 2006 Edição Especial E, com relação às doenças mentais, como evoluíram as descobertas? Michel Foucault, em sua magnífica obra “História da Loucura”, descrevenos o século XVII como a época em que os distúrbios mentais emergem no cenário europeu, após a superação da lepra.Os antigos leprosários franceses são, então, utilizados para internar os pacientes, que eram amontoados com diferentes anomalias. Junto aos doentes mentais, ficavam deficientes, malformados, prostitutas, alienados e criminosos. Essa solução sucedeu à prática do século XVI de colocar os loucos em navios que navegavam em direção a outras cidades, onde eram largados para, assim, deixarem de perturbar em sua própria terra. O pintor Yeronimus Bosch inspirou-se nesse cenário para pintar seu quadro “A Nau dos Insensatos”. A carga insana dos barcos era confiada aos marinheiros; muitos caíam no mar, mas muitos voltavam e eram caçados para novas viagens. No romance Tristão e Isolda, Tristão se disfarça de louco e é deixado pelos marinheiros nas costas da Cornualha. Chegando ao castelo, é rejeitado por Isolda, que exclama: “Malditos sejam os marinheiros que trouxeram este louco! Por que não o jogaram ao mar?” Essa maneira de livrar-se da escória social vai inspirar os colonizadores europeus no povoamento das terras conquistadas no alémmar, como ocorreu na colonização do Brasil, onde Portugal utilizou esse método, enviando para cá os maus elementos, condenados e prostitutas. (Face aos acontecimentos atuais, em nosso país, me pergunto: será que não continuamos, em nossos dias, navegando nessa “nau dos insensatos”?) Tal- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 439 Laura Ward da Rosa 1885 – Pasteur desenvolve a vacina contra a raiva. 1895 – Wilhem Roentgen, físico alemão, descobre os raios X e o acesso ao interior do corpo, em vida. Início da possibilidade de diagnóstico por imagens. 1900 – Sigmund Freud publica “A Interpretação dos Sonhos”. 1906 – Ramón y Cajal e Camillo Golgi recebem o prêmio Nobel de medicina pela descoberta da estrutura dos neurônios. 1928 – Alexandre Fleming descobre a penicilina. O SUJEITO DA CIÊNCIA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE vez, também, venha daí a frase citada por Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Superada essa técnica marítima de exclusão dos doentes, passam-se a utilizar, então, os asilos, antes leprosários, como depósito das pessoas indesejadas ao convívio social. As primeiras internações psiquiátricas visam, assim, eliminar os associais do convívio nas cidades, porque, além de perturbarem os costumes morais, vinham ganhando certo prestígio entre intelectuais, que admiravam os loucos pela sua “liberdade”, por não obedecer aos poderosos, por viverem aparentemente mais felizes, alienados, sem compromissos, podendo correr pelos campos ou despir-se em público. Assim, algumas obras literárias dedicam-se a enaltecê-los, como o livro de Erasmo de Rotherdam “O Elogio da Loucura”, de 1509. Do fim da Idade Média à Renascença, há um progressivo entendimento da loucura como doença, e Zacchias, entre 1624 e 1650, escreve suas “Questões Médico Legais”, estabelecendo que apenas os médicos, e não os juízes e religiosos, poderiam julgar se um indivíduo estava louco e qual o grau de seu comprometimento. Antes disso, os doentes eram expostos a todo o tipo de maltrato, apedrejados em praça pública ou queimados na fogueira. Philippe Pinel, nascido no sul da França em 1745, formado pela Faculdade de Medicina de Toulouse em 1773, realmente passa a interessar-se pela psiquiatria em 1780, quando é chamado a atender um amigo em surto psicótico maníaco, abrindo-lhe o horizonte da pesquisa médica dos distúrbios mentais. Passada a Revolução Francesa, é nomeado para o Asilo de Bicêtre, que só recebia doentes mentais masculinos, os quais eram mantidos acorrentados em celas baixas e úmidas. Além de libertá-los das correntes, propôs medidas humanitárias. Somente permitia colocá-los em camisa de força nos casos de agitação e violência. Após deixar o Asilo, foi nomeado professor adjunto de medicina interna na Universidade de Paris e, em 1795, foi nomeado médico chefe do Hospital da Salpetrière, asilo exclusivamente feminino, onde novamente libertou as mulheres acorrentadas, algumas por mais de trinta anos. Desprezando a crendice na possessão demoníaca, Pinel considerou as doenças mentais como resultantes de tensões 440 Psicanálise v. 8, n. 2, p.435-446, 2006 Edição Especial O nascimento da psicanálise e o processo de subjetivação A ciência moderna é uma conquista relativamente recente na história da humanidade. Considera-se que ela nasce com René Descartes, no século XVII. O grande mérito de Descartes é instalar a dúvida e, por meio dela, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 441 Laura Ward da Rosa sociais e psicológicas de causa hereditária e foi o pioneiro em distinguir os vários tipos de psicose e a descrever alucinações e os sintomas característicos de cada doença. Eliminou métodos de tratamento com sangrias e purgações, e outros métodos agressivos aos pacientes. Descobriu traços de razão nos alienados, motivo pelo qual defendia que se mantivessem em contato com a família e com os outros doentes. Seu método foi descrito no livro “Traité Médico-Philosophique sur L’áliénation Mentale ou la Manie”, lançado em 1801, no qual considerava a mania como a psicose mais típica e mais freqüente. Foi, com justiça, condecorado por Napoleão com o grau de Cavaleiro, e eleito para a Academia das Ciências de Paris em 1804. Morreu em 1826, acometido por um quadro demencial. As descobertas de Pinel certamente seguiram ecoando e fazendo adeptos em toda a Europa. É significativo, por exemplo, que Hegel publica, na Alemanha, seis anos após o livro de Pinel, em 1807, sua obra “Fenomenologia do Espírito”, na qual desenvolve idéias fundamentais para o nascimento da subjetividade. Para Hegel o homem é um sujeito histórico que se constitui pelo desejo de reconhecimento. Para que o sujeito se constitua, portanto, precisa de um outro que o reconheça, o que ele demonstra através da dialética do senhor e do escravo. Além disso, o ser da consciência (bewusstsein) somente evoluirá e poderá adquirir autoconsciência (selbstbewusstsein) se contar com a força do desejo. As idéias de Hegel serão fundamentais para a psicanálise quando assimiladas por Lacan, que tomará muitos conceitos hegelianos para a construção de seus seminários e para ampliar o pensamento inicial, no seu retorno a Freud. Hegel, admirador da cultura francesa, defende o pensamento de Pinel sobre a loucura, considerando a alienação mental uma condição dialética fora-de-si e dentro-de-si, acreditando na possibilidade de cura. O SUJEITO DA CIÊNCIA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE trazer o sujeito para o centro da reflexão filosófica: “Se duvido, penso. Penso, logo sou: Cogito, ergo sum”. A única certeza está, então, no Eu enquanto pensante. Assim, Descartes atravessa o campo da objetividade para instalar o campo da subjetividade. Dizia em sua Primeira Meditação: Sobre as coisas que podem ser postas em dúvida: Faz alguns anos já, dei-me conta de que, admitira desde a infância muitas coisas falsas por verdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí. Era preciso, portanto, que, uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as coisas, todas as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros fundamentos, se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. (DESCARTES, 2004). Na transição do século XIX para o século XX, nasce a psicanálise, descoberta por Sigmund Freud, atendendo a uma demanda de entendimento de fenômenos clínicos até então inexplicáveis, segundo o saber médico reconhecido até aquele período. O trabalho criterioso e persistente de Freud contempla o mundo ocidental com uma nova maneira de entender o ser humano, além de fundar uma nova clínica, alicerçada na construção teórica que ele chamou Metapsicologia. Os fenômenos promotores de sintomas, embora podendo expressar-se no corpo, originam-se em um outro setor, dito psíquico, no qual o fator etiológico resulta de um trauma registrado no inconsciente. Esse novo saber promove, assim, um descentramento do sujeito da ciência, portador da consciência racional que exige comprovação objetiva da totalidade dos fenômenos para o sujeito do inconsciente, marcado pela singularidade e pelo campo do particular, não dono da razão plena, mas constituído na falta, porque assujeitado ao inconsciente, à castração simbólica, que é fundante e que o instala na cultura. Freud irá relacionar essa conquista com a terceira ferida narcisista, após a determinada por Copérnico, ao provar que a Terra não era o centro do universo, e ao outro choque produzido por Darwin, ao defender a evolução das espécies, isto é, que a espécie humana não seria uma criação divina, mas descenderia do 442 Psicanálise v. 8, n. 2, p.435-446, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 443 Laura Ward da Rosa macaco. Devemos a Jacques Lacan o conceito de sujeito em psicanálise. Muito antes do nascimento, o bebê humano já conta com pais e família que o esperam e o nomeiam, e com um conjunto de demandas, desejos e expectativas, sonhos irrealizados dos pais projetados no filho. Assim começa a inserção da criança no campo da linguagem e no discurso do desejo do Outro. Por ocasião do nascimento, dá-se o encontro que cria o “passado” do desejo materno no presente do filho, que, uma vez criado, será determinante para a constituição do inconsciente desse recém-nascido, operando de maneira melhor ou pior, segundo os pais tenham resolvido de modo adequado seu complexo de Édipo, isto é, que a mãe seja feminina, que não se considere plena, que aceite a falta e que necessite do homem, não apenas como gerador do seu filho, mas como exercendo a função paterna. É fundamental, condição sine qua non, para o nascimento psíquico do filho, que a mãe considere e reserve esse lugar do pai, figura da autoridade que instala a lei de proibição do incesto, impedindo que o filho permaneça em simbiose com a mãe. Sabe-se que a relação simbiótica é a condição patológica da não existência da subjetividade própria, ou seja, da não aquisição da autonomia e da singularidade, permanecendo o filho preso ao desejo da mãe. Esse processo totalmente simbólico é definido por Lacan como o exercício da metáfora que ele chamou Nome-do-Pai. Aqui estamos no fundamento da constituição subjetiva e no grande ponto de ruptura do paradigma que a psicanálise, com Freud, introduziu nas ciências: o que torna o ser humano verdadeiramente humano é a sua condição subjetiva de constituir-se no Outro, e esse é um fenômeno simbólico, impossível de ser reproduzido em laboratório. No trabalho “Ciência e Verdade”, de 1965, Lacan defende a idéia de que a teoria e a práxis psicanalítica jamais teriam sido possíveis sem o advento da ciência moderna. A grande vantagem é que Lacan contava com mais de quatro décadas depois de Freud, tendo acompanhado a evolução das ciências e as mudanças de paradigmas ocorridas no século XX. Embora por si mesma não constitua uma ciência, a psicanálise é, sem dúvida, um produto e conseqüência do discurso científico moderno. O interessante é que Lacan coloca no limite entre ciência e psicaná- O SUJEITO DA CIÊNCIA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE lise a divergência em relação ao conceito de verdade. Considera que Descartes libertou o homem moderno do ônus da verdade transcendente da filosofia, permitindo-lhe evoluir em busca do conhecimento do interior do sujeito. Descartes, sendo filósofo e matemático, determina o momento de ruptura da ciência com a filosofia, assim como Freud, sendo médico neurologista, dois séculos mais tarde, irá romper com o paradigma da biologia, instalando o corpo simbólico. O conceito de sujeito abre para a psicanálise uma série de frentes e de campos de interlocução, tanto com as ciências exatas como a matemática, a lógica, a teoria dos conjuntos e a topologia, mas também com a lingüística, com a filosofia, com a antropologia, com a sociologia, com a psicologia, com a literatura, com as artes e, evidentemente, com a medicina. Longe de estar num lugar à parte, o sujeito da psicanálise só é possível existir nesse campo agregador, enquanto discurso que faz laço social. O grande mérito de Lacan também é a concepção dos três registros que constituem o sujeito: o Real, o Imaginário e o Simbólico. Assim podemos conceber como o diálogo com a ciência médica, que trabalha com o Real do corpo, torna-se enriquecido, à medida que integra a subjetividade do paciente e os registros do Imaginário e do Simbólico. Vivemos num momento de grande complexidade, no qual os avanços da medicina nas áreas da biotecnologia, da engenharia genética, da psicofarmacologia e das neurociências, praticadas em centros universitários ditos “de ponta”, tendem a afastar o sujeito que sofre e que, paradoxalmente, deixa de ser ouvido, em prol da aparelhagem sofisticada que “fechará” o diagnóstico, desconsiderando a subjetividade. A grande conquista científica do projeto genoma humano veio demonstrar, de modo surpreendente, a relativa menor importância do determinismo genético em relação às particularidades da experiência e da relevância dos fatores epigenéticos na execução da programação, havendo trabalhos tendendo a demonstrar que contaríamos, inclusive, com mecanismos genéticos que poderiam desconectar o indivíduo de sua programação genética. Essas descobertas parecem indicar que os mecanismos universais exigidos pela ciência con444 Psicanálise v. 8, n. 2, p.435-446, 2006 Edição Especial Referências DESCARTES, R. Meditações sobre a Filosofia Primeira. Campinas: Editora Unicamp, 2004. EINSTEIN, A. Grandes Nomes da História. São Paulo: IBC, 2005.v.1 ELIA, L. O conceito de Sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 445 Laura Ward da Rosa vergem para a evidência do individual, do sujeito como exceção ao universal, de uma singularidade fundante, levando o médico, assim como o psicanalista, ao particular, à dúvida e à incerteza. Concluindo, pensamos que ciência e psicanálise são componentes topológicos que, como na banda de Moebius, encontram-se imbricados e interrelacionados, ora uma ora outra, dentro e fora, numa inter-relação constante. Essa constatação levou Lacan a afirmar: “O sujeito sobre o qual operamos não pode ser outro senão o sujeito da ciência”, fato que já Freud defendera. Penso que a grande contribuição que a psicanálise trouxe à ciência foi, justamente, defender e sustentar o lugar da incerteza, evitando o determinismo racional, da pré-programação que reduz o sujeito à condição de robô, de máquina, bem demonstrado por Charles Chaplin no seu tragicômico filme Tempos Modernos. Evitar a alienação tecnológica é defender a capacidade criativa e o acesso ao sujeito na sua singularidade, na suas questões íntimas do ser e do viver, frente aos seus modos típicos de reagir, de adoecer ou de manter-se saudável. Finalmente, lembro Albert Einstein, um dos sujeitos de ciência mais notáveis, que com sua genialidade mudou a concepção de Universo criando a Teoria da Relatividade, avançada demais para a época. Dotado de uma subjetividade incomum, ficou também célebre por escrever suas fórmulas à beira do berço de seu filho, chegando a receber críticas, quando nomeado professor, por dar aulas baseando-se em anotações ilegíveis em cartolina e por estimular os alunos a fazerem perguntas. Em sua simplicidade afirmou: “Sou na verdade um viajante solitário e os ideais que iluminaram meu caminho e que proporcionaram, uma vez ou outra, novo valor para enfrentar a vida, foram: a beleza, a bondade e a verdade”. O SUJEITO DA CIÊNCIA E O SUJEITO DA PSICANÁLISE FOUCAULT, M. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006. . História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. FREUD, S. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. JAPIASSU, H. Questões epistemológicas. Rio de Janeiro: Imago,1981. KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. LACAN, J. Escritos. Rio da Janeiro: Jorge Zahar, 1998. O NASCIMENTO da Medicina Moderna. V.5. São Paulo: Segmento e Ediouro. ROSA, L.W. Freud e Hegel: encontros e desencontros. In: Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Freud e seus Filósofos. Porto Alegre: SBPdePA, 2004. Viver – mente e cérebro. Memória da psicanálise – vol.1 Freud. Ediouro. Editorial Ltda., São Paulo. . Memória da psicanálise – vol.4 – Lacan .Ediouro Editorial Ltda., São Paulo. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Laura Ward da Rosa Rua Cel. Bordini, 865/204 90440-001 Porto Alegre – RS – Brasil E-mail: [email protected] 446 Psicanálise v. 8, n. 2, p.435-446, 2006 Edição Especial Mário Roberto Garcia Tavares* “Para o avanço da ciência e da arte médica, o equipamento que o médico mais precisa aperfeiçoar é ele mesmo.” Alvan Feinstein Introdução Quando se pensa sobre os avanços na medicina, logo nos vem à mente as maravilhas prometidas pela tecnologia, como novos equipamentos, novas técnicas cirúrgicas, exames que detectam doenças que sequer conhecíamos, medicamentos maravilhosos, e todas as curas prometidas que a ciência nos acena. Não é incomum ouvir na imprensa promessas de cientistas de que iremos viver até 100, 120 e até 150 anos. Mas por que essas promessas não se concretizam? Não deciframos o genoma humano? As células-tronco não são uma realidade? Por outro lado, também assistimos a insatisfação da população com a atenção à saúde recebida, seja pelos constantes noticiários em telejornais, seja pelo crescente aumen* Médico de Família e Comunidade. Professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFRGS. Médico do Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição e do Serviço de Atenção Primária do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/ UBS Santa Cecília. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 447 Mário Roberto Garcia Tavares Avanços na Medicina AVANÇOS NA MEDICINA to de processos contra atos de médicos e outros profissionais da saúde. Isso sem falar na existência de doenças que há séculos assolam a humanidade: epidemia de cólera na África, surto de doença de Chagas em Santa Catarina, dengue no Rio de Janeiro! O que está acontecendo afinal? Para uma análise além do senso comum é preciso entender que estão em cena, no mesmo momento, três áreas da atividade humana com muito em comum: a Ciência Médica, a Prática Médica e a Medicina como Mercado, isto é, como um serviço a ser consumido. A prática médica é o exercício da ciência médica aplicada ao fenômeno humano, repleto de particularidades, de idiossincrasias, e experiências não generalizáveis. E o mercado? Parece ser a religião dos novos tempos: sua santidade o Mercado! O inegável avanço da ciência e da prática médica nos últimos 50 anos tem acompanhado a evolução tecnológica da experiência humana, e fundamenta-se em um modelo explicativo da natureza que recebe na literatura especializada diversas denominações: biomédico, cartesiano, positivista, mecanicista, entre outros. Esse modelo, atacado pelos mais diversos setores e pelos mais interessantes e criativos argumentos, permanece sólido e inabalável. Enquanto a caravana passa, os cães ladram. Essa supremacia do modelo biomédico levou a consideráveis avanços como a redução de mortalidade, o aumento do leque de ferramentas preventivas - como o citopatológico de câncer de colo do útero e as vacinas – e de ferramentas terapêuticas - medicamentos e técnicas cirúrgicas como a videolaparoscopia, a microcirurgia, a cibernética. A telemedicina ainda não está sendo utilizada em todo o seu potencial e a nanotecnologia dá seus primeiros passos rumo a aplicações práticas – testes contra tumores em cobaias foram animadores e o uso de nanopartículas para filtrar água já está em teste, apenas para citar alguns exemplos. Na história da Medicina e das práticas médicas diversas concepções dos fenômenos de saúde-doença foram predominantes, passando pelo mís448 Psicanálise v. 8, n. 2, p.447-458, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 449 Mário Roberto Garcia Tavares tico, pelos humores de Galeno, pelo divino, pela purgação até o modelo científico, que tem sua fundação com Descartes, em o “Discurso do Método” de 1637. É esse modelo que faz a separação entre a subjetividade da alma e a objetividade do corpo, este uma realidade submetida às leis da física e da química. É essa objetividade que permitirá a comparação com uma máquina, e daí diz-se mecanicista. Em vez de seres humanos os médicos começaram a tratar de corpos doentes. Esse modelo evoluiu pelo positivismo do século XIX e o naturalismo do século XX. Em 1910 surge o “Relatório Flexner” que, sob a encomenda da Fundação Carnegie, orienta a reestruturação dos cursos de Medicina nos Estados Unidos da América. Esse relatório enfatiza a necessidade do estudo das ciências básicas, a adoção de uma estrutura seqüencial dos currículos médicos, o incentivo à pesquisa, ao ensino ligado ao hospital de excelência e à docência com dedicação exclusiva e por conseqüência, à especialização. Como conseqüência, tivemos um avanço notável na ciência médica e uma validação desse modelo. Até os dias de hoje, muito do ensino médico realizado no Brasil e em diversos países segue essa linha de organização. Podemos listar como pilares desse paradigma: Reducionismo biológico Mecanicismo cartesiano Tecnificação Especialização Despersonalização Um estudo clássico realizado na Inglaterra mostra que três a cada quatro pacientes consultam por queixas de origem emocional, mais do que física. Costumo dizer aos meus alunos que existem pessoas doentes por aí e elas não procuram um médico ou outro profissional da saúde. As pessoas consultam por estarem preocupadas com um sintoma ou algo que as incomoda. Até a década de 50 havia muito pouca tecnologia para os médicos atenderem seus pacientes. O tratamento de infarto do coração, por exemplo, era simplesmente deixar o sujeito na cama, sem nenhum tipo de esforço físico, nem mesmo ir ao banheiro. E o tempo fazia o resto. Naturalmente AVANÇOS NA MEDICINA que morriam muitas pessoas. Entretanto, o prestígio dos médicos não era menor do que hoje. Ainda me pergunto o que os médicos carregavam naquela maletinha que os tornava tão admirados e respeitados. Hoje, nosso arsenal terapêutico é muito maior e temos mais a oferecer às pessoas. Desse modo, antigamente um bom médico atendia bem três quartos de sua clientela e perdia um paciente. Hoje, um bom médico atende muito bem um paciente e perde três deles! Mudanças no Contexto Mudanças no contexto social têm exercido profundas transformações na prática, na ciência e no mercado da medicina. Entre as mais notáveis está o consumismo, pois a medicina, como um bem a ser consumido, foi incentivada, tanto pelos setores de equipamentos médicos e farmacêuticos – veja as propagandas do tipo “fale com o seu médico” – como pelos próprios profissionais da medicina. Desde o final do século passado, a medicina deixa de ser um serviço essencial para ser um bem de consumo. E é um setor em franca expansão. A minimização de técnicas cirúrgicas, o advento da cirurgia laparoscópica, o desenvolvimento de equipamentos mais seguros e fáceis de manejar levaram a um deslocamento do cuidado do hospital para a comunidade. Alta precoce, internação domiciliar, assistência domiciliar ou home care estão na pauta, tanto dos administradores, como dos pesquisadores que questionam: quais pacientes e quais enfermidades é seguro tratar em casa? É mais barato? É mais satisfatório? Quais os riscos? Embora apareça uma ou outra discrepância, as conclusões de estudos em todo o mundo mostram que os riscos são ao menos semelhantes, se não menores, do que o tratamento hospitalar. É mais barato e os pacientes ficam mais satisfeitos. Paralelamente houve, nos últimos anos, um aumento da responsabilidade do cuidado médico no ambiente hospitalar. Os pacientes que permanecem hospitalizados têm doenças mais graves ou mais complexas, exigindo equipes interdisciplinares. Pacientes, administradores, provedores e 450 Psicanálise v. 8, n. 2, p.447-458, 2006 Edição Especial 1 Lei da tecnologia médica: diz-se que em medicina, ao contrário das outras atividades, a tecnologia não é substitutiva, mas acumulativa. O advento da tomografia computadorizada por exemplo, não extinguiu o raio-X, mas somou-se ao arsenal diagnóstico. Assim, os laboratórios e hospitais ainda são obrigados a manter toda a estrutura (aparelhos, sala de revelação, funcionários, etc.) do método antigo e agora tem que montar uma nova estrutura (aparelhos, pessoal, programas de computador) para o tomógrafo. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 451 Mário Roberto Garcia Tavares colegas exigem que os últimos protocolos clínicos sejam aplicados. As condutas médicas e hospitalares já não podem ser apenas baseadas na preferência do profissional ou da instituição, mas baseada na melhor e mais atualizada evidência científica disponível. O envelhecimento da população e o acúmulo de tecnologia1 pressiona os administradores e provedores em relação aos custos, que hoje são quase impagáveis, como é o caso do desfibrilador cardioversor implantável automático indicado na prevenção da morte súbita por arritmia cardíaca, que chega a custar mais de 50.000 reais. Contudo, a maior ênfase é dada na prevenção e na educação em saúde. Cada vez mais aumenta a consciência de que para prevenir ou tratar certas condições, é necessário uma co-responsabilidade dos profissionais, aliados aos pacientes, para se obter resultados satisfatórios. Os exemplos são inúmeros: hipertensão, diabetes, obesidade, colesterol elevado, dependências químicas com tabagismo, alcoolismo, etc. Ao lado da co-responsabilidade surge também a consciência de que é preciso respeitar a autonomia da pessoa, inclusive suas preferências pessoais. Como conseqüência desse aumento de opções e também de riscos assumidos, surge a informação consentida. Ou seja, a sociedade não outorga mais aos profissionais da saúde a decisão final sobre o que fazer com sua saúde, mas cobra como nunca essa responsabilidade. Ao lado da ameaça do aumento de litígios, exercese cada vez maior pressão em busca de benefícios por invalidez. Houve mudanças também no status da mulher na sociedade e uma crescente consciência da existência da violência contra a mulher. Aumentou também a consciência de que existe abuso sexual em pacientes perpetrado por médicos. AVANÇOS NA MEDICINA O exercício da saúde tornou-se ainda mais complexo e houve considerável aumento no prestígio de outros profissionais e cada vez mais se fala no trabalho em equipe e interdisciplinar. Parece irreversível a prática da auto-regulação profissional, e não deve demorar que os próprios órgãos reguladores das profissões iniciem processos de revalidação de títulos. Tecnologia: ter ou não ter Diz a lei do uso da tecnologia médica que uma tecnologia disponível vai ser utilizada, mesmo que desnecessária. Hipócrates não conhecia essa lei e nem podia prever todas as complexas nuances que nos trouxeram até aqui quando elaborou o seu mais conhecido conselho: “Pratique duas coisas ao lidar com as doenças; auxilie ou não prejudique o paciente.” O filme “Invasões Bárbaras”, de Denys Arcand, faz um retrato muito cruel do sistema de saúde canadense, e mostra uma realidade absolutamente impensável para nossa situação: o Canadá só possui um aparelho de ressonância magnética. Com um sistema de saúde público, gratuito e universal, o Canadá possui uma agência de regulação da incorporação de tecnologia em seu sistema de saúde, e só incorpora uma nova tecnologia se ela se mostrar realmente útil. No Brasil, e em nossa cidade, a incorporação de tecnologia é regulada principalmente pelo Mercado. Qual doença tem seu curso modificado de maneira significativa em termos de morte, seqüela ou qualidade de vida pelo advento da Ressonância Magnética? É justificável o que pagamos por ela? E para polemizar ainda mais: qualquer médico que faça um acompanhamento pré-natal é praticamente obrigado pelos seus pacientes ou colegas a realizar uma ecografia obstétrica. Isso é justificável? Revisões sistemáticas realizadas por entidades internacionais mostram que ecografia obstétrica, em mulheres de baixo risco, somente aumenta a chance de diagnosticar uma gestação gemelar e o nascimento de canhotos! Não tem nenhuma influência sobre outros resultados como morte materna ou fetal ou na morbidade do bebê. Contrariamente ao conhecimento, todas as gestantes 452 Psicanálise v. 8, n. 2, p.447-458, 2006 Edição Especial Pesquisa Médica e o Mercado Em nossa sociedade, parece consenso que não é possível deixar livremente ao Mercado o exercício da prática médica. A existência dos Conselhos de Medicina e das Agências Nacionais de regulação parece assinalar bem esse consenso. Entretanto, muito pouco tem sido feito no sentido de regular os investimentos da Ciência Médica e o aparato de formação de novos médicos e profissionais da saúde. A doença de Chagas, orgulho e vergonha da ciência nacional, permanece sem um tratamento efetivo. Após um trabalho sem igual na história da Medicina, quando Carlos Chagas descreveu toda uma doença, exceto sua cura: do agente infeccioso, suas formas, seu reservatório natural, modo de transmissão, clínica, diagnóstico e prognóstico. Entretanto, e apesar de ser uma doença fatal, muito pouco é investido em pesquisa. Assim como Chagas, muitas outras doenças que acometem o ainda chamado Terceiro Mundo, não recebem atenção ou verbas de pesquisa. Considerando que os sistemas de avaliação dos pesquisadores recaem principalmente sobre suas puSociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 453 Mário Roberto Garcia Tavares desejam uma ecografia. A tecnologia é mais tranqüilizadora que o prénatalista? Muito mais assustador é o editorial de uma tradicional revista médica, o British Medical Journal, de 25 de março desse ano, que relata os resultados de um estudo sobre rastreamento de câncer de mama em Malmö, Suécia. Segundo a editora, a pesquisadora Sophia Zackrisson e colegas ao realizarem a análise do seguimento de 15 anos de mulheres com idades entre 55 e 69 anos, rastreadas com mamografia, descobriram que 10% dos casos de câncer de mama era um “excesso diagnóstico”. A editora Fiona Godlee comenta que a estimativa foi conservadora e que outros pesquisadores demonstraram cerca de 30% de “excesso diagnóstico”, sendo que o número real provavelmente está entre essas duas taxas. Será que estamos obedecendo aos ensinamentos hipocráticos? Avanços em tecnologias e conhecimento científico nem sempre levam a um aumento paralelo da satisfação humana. AVANÇOS NA MEDICINA blicações, pesquisa-se o que pode vir a ser um artigo aceito em revistas de maior prestígio – traduzida aqui por um indicador, o índice de citação. Essas revistas têm seus próprios conselhos editoriais e definem suas políticas. Os pesquisadores submetem-se a elas. Como raramente elas estão interessadas em doenças que afligem o Terceiro Mundo, cria-se um círculo vicioso que retira os melhores cientistas da pesquisa dessas doenças. Tuberculose, uma doença que recrudesceu nos tempos da AIDS, ainda é tratada com os mesmo antibióticos de 40 anos atrás! Lepra também não apresenta inovações consideráveis há muito. Essas não são doenças erradicadas. Milhares de pessoas ainda são acometidos e o número de novos casos em algumas regiões do Brasil é assustador. Oncocercose é uma doença comum na Amazônia e se calcula em 50 milhões de acometidos no mundo. Comum entre os índios, e embora raramente fatal, causa cegueira em 5% dos doentes. Malária, cólera e outras doenças engrossam a lista. Quanto é investido na pesquisa nessas doenças? Um pesquisador que se dedique a elas conseguirá publicar em uma revista bem conceituada? Em 2003, Bill Gates, o multibilionário fundador da Microsoft, anunciou um plano de investimento em 200 milhões de dólares para a pesquisa dessas doenças, percebendo que elas recebem pouca atenção. Seu gesto é muito maior que a soma destinada e reveste-se de um significado ímpar superar uma incômoda estatística: menos de 10% dos cerca de 70 bilhões de dólares investidos anualmente em pesquisa médica pelos países ricos vão para o estudo de doenças que, juntas, chegam a ser responsáveis por 90% da mortalidade nos países pobres. O sistema de avaliação das agências de fomente a pesquisa não ajudam a mudar o quadro. As universidades que abrigam pesquisadores são ainda em sua maioria pública, seguem o mesmo padrão de avaliação. Como podemos ver a propalada independência da produção de conhecimentos não é tão independente assim. Embora seja um assunto muito delicado, não parece ser suficiente que somente essas regras regulem a produção científica. 454 Psicanálise v. 8, n. 2, p.447-458, 2006 Edição Especial Crise do Modelo Biomédico Tão apregoada é a crise do modelo biomédico quanto seu sucesso. Se o modelo teve enorme sucesso no desenvolvimento científico e tecnológico, onde está a crise afinal? Diversos tipos de práticas alternativas e complementares, a despeito da comprovação de sua eficácia ganham prestígio na sociedade. Algumas delas foram incorporadas ao modelo médico formal, e existe enorme pressão para que muitas delas sejam oferecidas pelo Sistema Único de Saúde. O tradicional sistema de saúde do Reino Unido, o National Health System, há muito oferece essas práticas a quem deseja. Hoje mais que conflito se busca um trabalho conjunto. O que essas terapias oferecem de diferente da medicina formal? Em minha opinião, além das suas terapêuticas peculiares, essas práticas oferecem um cuidado além do problema pontual, buscando compreender a pessoa e tratá-la de modo integral, holístico. E as pessoas estão dispostas a pagar por isso, pois muito pouco é oferecido de modo gratuito ou público. As pessoas ainda querem ser ouvidas, compreendidas e cuidadas, especialmente quando estão doentes, sensíveis e vulneráveis. Em “Um golpe do destino” (“The doctor”, 1991), Willian Hurt interpreta o médico Jack Mackee, um cirurgião de grande prestígio profissional, mas absolutamente insensível no trato com os pacientes até ser acometido por um câncer na garganta. Convivendo com o sofrimento, a ansiedade e a incerteza, ele é despertado para a compaixão e o entendimento. Amplamente utilizado pelas escolas médicas e sensibilização de estudantes, esse filme ilustra o que a sociedade espera dos médicos e da medicina. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 455 Mário Roberto Garcia Tavares E o mesmo pode ser dito da formação dos recursos humanos em saúde, assunto que se alinha com a produção do conhecimento, uma vez que inseparáveis. Esse tópico, entretanto, é tão complexo quanto peculiar, e foge ao escopo desse capítulo. AVANÇOS NA MEDICINA Mas como se os médicos são formados dentro do modelo biomédico, cujos pilares assentam-se sobre a tecnificação, especialização e despersonalização? Martin Winckler (2004) escreveu sobre a formação dos médicos franceses no periódico Le Monde Diplomatique: Arcaica e desgastante, essa sucessão de concursos e classificações favorece, naturalmente, os estudantes mais agressivos, os mais defensivos, às vezes até mesmo os mais patológicos. São esses que menos se preocupam em compartilhar os sentimentos do próximo e buscarão sobretudo o poder: o poder dos chefes de departamentos e responsáveis pelo ensino.[. . .]. A medicina francesa é dirigida, há mais de um século, por professores arrogantes, que se negam admitir que os pacientes possam discutir suas decisões. São incapazes de transmitir aos jovens uma ética própria para o atendimento, para a solidariedade e para a compreensão do paciente. Embora existam muitas sugestões de como minimizar o problema, especialmente com a introdução de conteúdos humanísticos no ensino da medicina, estas parecem apenas com estratégias periféricas e paliativas. Livros clássicos, obras de arte, teatro e música compõem parte do arsenal pedagógico em busca dessa humanização da prática médica. No Brasil, as novas diretrizes curriculares dos cursos da área da saúde definem que os novos profissionais devem ter formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. As escolas médicas, entretanto, ainda estão longe dessa realidade, embora algumas aproximações já estejam em curso. O desafio que a sociedade nos propõe é aparentemente insolúvel: precisamos continuar avançando na ciência e na tecnologia, precisamos de médicos cada vez mais conhecedores das minúcias das doenças, dos tratamentos, dos diagnósticos, habilidosos em suas práticas e intervenções, mas também capazes de nos cuidarem, aliviarem do fardo e protegerem na nossa frágil condição humana. Ainda queremos que um ser humano faça isso, 456 Psicanálise v. 8, n. 2, p.447-458, 2006 Edição Especial Referências BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem, medicina e nutrição. Parecer nº: CNE/CES 1.133/2001 aprovado em: 7/8/2001. Diário Oficial da União, 3 out. 2001. Seção 1E, p. 131. Cochrane Collaboration Group. Routine ultrasound in early pregnancy. [review]. Cochrane Reviews. 1995; 5p. DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de João Cruz Costa. 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Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Mário Roberto Garcia Tavares E-mail: [email protected] 458 Psicanálise v. 8, n. 2, p.447-458, 2006 Edição Especial Saúde Mental da População e Psicanálise Pedro Gus* Quando, há mais de 18 meses (exatamente janeiro de 2005), iniciei uma tarefa, o desafio de aceitar a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, já sabia, o que não é muito difícil para quem desempenha suas atividades em saúde, que teria de enfrentar sérias dificuldades para obter alguns bons resultados. Até àquela ocasião, minhas atividades se concentravam na Faculdade de Medicina e no Hospital de Clínicas, com uma passagem, pela década de setenta, pela área de Saúde Pública da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Nessa atividade teriam filas, queixas, maus atendimentos, áreas de Porto Alegre com ausência de serviços de Saúde ou insuficientes para a população local, consultas especializadas com dificuldade de agendamento, toda a sorte de manobras por parte dos pacientes e de seus familiares para conseguir uma cirurgia, enfim, muitas dificuldades, mas uma grande expectativa de minha parte para tentar trazer alguma luz para esse poço de problemas. E foi com essa esperança e visão do quadro da saúde que me encontrei com o então eleito Prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, para dizer que aceitaria e procuraria * Médico. Professor Titular em Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFRGS. Secretário Municipal da Saúde de Porto Alegre. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 461 Pedro Gus Saúde Mental da População SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO otimizar os serviços prestados pela Secretaria de Saúde em Porto Alegre, lembrando em nossa conversa que saúde, junto com educação e segurança, tinham sido as maiores solicitações da população de nossa cidade no período pré-eleitoral. Fiz um preparo físico e intelectual para assumir esse desafio. Físico, fazendo minhas caminhadas, atitude que já tomara há alguns anos, pois, depois da posse, onde arranjar tempo? E intelectual, que foi estudar, com alguns especialistas, o que era o SUS na sua concepção e execução. Mas o que eu não tinha era a dimensão da extrema precariedade em que se encontravam os Serviços de Saúde Mental em Porto Alegre – não que as outras áreas tivessem em muito melhores condições, mas o nosso foco era Saúde Mental. Já lera em outras ocasiões (2001) o que era a chamada Reforma Psiquiátrica, em que se lia que era “a ampla mudança no atendimento público em Saúde Mental”, garantindo o acesso à população a serviços e o respeito a seus direitos e liberdade (amparado na Lei 10216/2001). O que seria a ampla mudança? Como garantir o acesso à população? Diziam os textos que era uma mudança no modelo de tratamento, substituindo o isolamento do “usuário”, estimulando o convívio na família e na sociedade. Os atendimentos passariam a ser realizados em “Centros de Atenção Psicossocial” (CAPS), ambulatórios, residências terapêuticas, Hospitais gerais e Centros de Convivência. A internação, quando necessária, seria feita em Hospitais gerais ou nos CAPS 24 horas. E dizia, enfaticamente, que os hospitais psiquiátricos de grande porte seriam progressivamente desativados, acionando-se, então, o sistema idealizado pela Reforma Psiquiátrica. Quando se revisa a evolução científica para o tratamento dos distúrbios mentais, concordamos, sem dúvida, que reformas deveriam ser feitas para se aproveitar, ao máximo, a evolução, os conhecimentos e a possibilidade de resolução dos problemas desta área tão importante nos nossos dias. 462 Psicanálise v. 8, n. 2, p.461-465, 2006 Edição Especial Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 463 Pedro Gus As doenças mentais são responsáveis por um alto percentual das patologias em geral e ocupam um lugar de destaque entre as causas de incapacidade laborativa de nossa sociedade. Vale lembrar que essa reforma, além de outros embasamentos, se firma na Declaração de Caracas (1990): o respeito pelos direitos das pessoas com problemas mentais. A superação do modelo do Hospital Psiquiátrico e a luta contra os abusos e exclusão social de que são passíveis as pessoas com problemas de saúde mental têm sido uma preocupação dos gestores dessa área. Em leitura recente de textos do Ministério da Saúde (agosto de 2006), lemos que o grau de implementação das políticas e dos programas é, ainda, extremamente reduzido na maioria dos países da América Latina. Apenas 15,5% dos mesmos têm mais de 50% de implementação desses programas de Saúde Mental e, portanto, como também no Brasil e em Porto Alegre, a maior parte da população continua sem ter acesso ao mínimo do que seria necessário. Não temos, na Secretaria Municipal de Saúde, um julgamento de que esses princípios da Reforma sejam desconsiderados. Concordamos que o Hospital Psiquiátrico não deva ser a porta de entrada para os portadores de doenças mentais, mas não podemos excluir sua necessidade. Acreditamos na diminuição de leitos, mas também firmamos a posição de que, para isto, precisamos de uma rede de serviços que venha substituir o fechamento de leitos. O que temos, no momento, é uma constante diminuição de leitos, sem a possibilidade de abertura de Centros de atendimento, por uma série de razões: a falta de recursos é a mais séria. O modelo SUS centra seu trabalho nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e no Programa de Saúde da Família (PSF) para que estes detectem e tratem os transtornos mentais mais comuns. Acontece que a maioria dos nossos profissionais não está preparada para essa finalidade. Nem aqui em Porto Alegre, nem em outras cidades do Brasil ou em outros países. Parece haver nesta Reforma Psiquiátrica uma visão de que os proble- SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO mas desta área possam ser atendidos em cuidados primários, como se o clínico, um médico de família ou um pediatra pudessem, sem uma prévia capacitação, diagnosticar e tratar os transtornos mentais de crianças e adultos. O que temos por meta, na Gestão da Saúde Municipal, é construir políticas públicas fundamentadas em diagnósticos da realidade social, econômica e da infra-estrutura a partir de um mapa social que efetivamente expresse a situação do Município de Porto Alegre, que para este fim se necessita de tempo (que não se cria com decreto) e de recursos financeiros. No caso específico da Saúde Mental, os estudos técnicos da nossa Secretaria apontam que: Os Centros Especializados têm sido insuficientes frente à alta prevalência/ano de transtornos mentais; Cresce a importância de profissionais da atenção primária no tratamento das doenças mentais; Houve considerável aumento de opções farmacoterápicas para o tratamento de transtornos mentais a partir da década de 90. Em Porto Alegre: Transtornos prevalentes na cidade: transtornos de ansiedade (18%), depressão (10%) e dependência química/alcoolismo (8%). (Busnello, 1997). Um crescente aumento de internações de adolescentes em razão de dependência química compondo de 85 a 95% das internações em leitos privados,adquiridos pelo município por demanda judicial nos últimos anos. Para podermos enfrentar esta situação o grupo de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde propôs três eixos de ações: 1. Qualificação da Atenção Básica; 2. Ampliação da Rede de Serviços Especializados; 3. Promoção e Desenvolvimento da Intersetorialidade. 1. Qualificação da Atenção Básica: – educação permanente dos técnicos da rede (Programa de Atenção Básica a Saúde Mental – Interconsulta); 464 Psicanálise v. 8, n. 2, p.461-465, 2006 Edição Especial Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Pedro Gus E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 465 Pedro Gus – uso racional de tecnologia e medicamentos; – acompanhamento de fluxos; – construção de Diretrizes Clínicas de Tratamento (Protocolos). 2. Ampliação da Rede de Serviços Especializados: – necessidade de ampliação particularmente na modalidade de CAPS. 3. Promoção e desenvolvimento da Intersetorialidade: – conceito de Saúde Mental abrangendo políticas públicas envolvendo ações nas áreas de habitação, educação, lazer, cultura, trabalho; – desenvolver uma rede que integre o Poder Público, iniciativa privada e terceiro setor. SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO 466 Psicanálise v. 8, n. 2, p.461-465, 2006 Edição Especial Geraldo Rosito* Resumo O autor, ao abordar o tema Saúde Mental da População e Psicanálise, destaca, através do diálogo interdisciplinar, as origens da violência e do trauma. Focalizando pontos de aproximação da Psiquiatria com avanços recentes das Neurociências, tece considerações a respeito de várias pesquisas, destacando os fatores neurobiológicos envolvidos no comportamento agressivo e que obstaculizam a mudança psíquica. Destaca, igualmente, a necessária aproximação da efetividade de situações clínicas com a eficácia de modelos de avaliação que utilizam a randomização, experimentação e controle de variáveis. Ao abordar conceitos específicos, como janelas de maturação (O ganso de Lorenz), neotenia, plasticidade neuronal, aborda a estrutura psíquica arcaica do bebê humano, que contém as origens dos impulsos construtivos, bem como as raízes da violência. * Médico Psiquiatra e Psicanalista. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Membro Efetivo da Associação Brasileira de Psicoterapia de Grupo. Professor e Diretor de Ensino do Pós-Graduação da FFFCMPA. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 467 Geraldo Rosito Saúde Mental da População e Psicanálise SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO E PSICANÁLISE Introdução Inicialmente, me associo à tendência contemporânea de libertar a Psicanálise do establishment médico e das universidades, estendendo seu estudo e debates a todos os setores da sociedade. Algumas tendências atuais e contundentes assumem proporções que despertam o interesse da saúde mental. Optei por refletir com vocês sobre um tema preocupante para a população nos dias atuais: a violência e o que a psicanálise tem a dizer sobre suas origens. A falta e a questão dos limites gerando comportamentos aditivos: uso de substâncias psicoativas (álcool, drogas, ...), jogo patológico, obesidade, hiperatividade sexual, uso do computador (estimulando receptores dopaminérgicos, principalmente no sistema meso-córtico-límbico). O sexo é outro assunto preocupante. Todos falam, mas pouca coisa interessante é dita. Discursos estereotipados. Exageros até com crianças que aprendem danças sensuais e são expostas precocemente. A depressão crescente, funcionando como escudo para evitar situações conflitivas. Para muitos, é melhor estar quase morto do que alerta em situações difíceis. Muitas pessoas conseguem suportar o mundo atual apenas em estado de depressão. Não fosse assim, ficariam enfurecidas. O que Freud descreveu foi uma experiência inédita. A Psicanálise é uma prática de falar e escutar. Trata dos problemas enfrentados pelas pessoas no dia-a-dia. Uma das questões centrais é: O que faz a vida valer a pena? Em uma das atividades que participei este ano, fui questionado: o avanço dos psicofármacos não acabou com a psicanálise? Respondo que NÃO. A Psicanálise está apenas começando. A experiência de ser ouvido é muito poderosa, tem efeito benéfico. Todos necessitam de um espaço para falar e refletir sobre sua vida. “Não existe um substituto para o indivíduo que se senta frente a uma 468 Psicanálise v. 8, n. 2, p.467-476, 2006 Edição Especial Raízes da violência Nunca nos vangloriamos de possuir um saber e uma capacidade definitivos e completos. Estamos tão dispostos agora como estávamos antes de reconhecer as falhas de nosso conhecimento, a aprender coisas e modificar nossos métodos de forma a poder aperfeiçoá-los. (SIGMUND FREUD, 1921). Diálogo Interdisciplinar: há obstáculos, porém é necessário! Existe uma separação histórica entre o saber psicanalítico e o das demais ciências. A psicanálise e as psicoterapias analíticas desenvolveram-se distantes da academia e dentro de institutos. Mesmo em países onde a pesquisa em psicanálise e psicoterapia está mais desenvolvida, há necessidade de mais pesquisas. Outros motivos: – complexidade do método e dos fenômenos em questão (operacionalizar conceitos e medir variáveis...); – existem instrumentos promissores para avaliação da transferência, contratransferência, aliança terapêutica, processo terapêutico, etc.; – idéia de que o observador externo exerce influência maléfica sobre o processo terapêutico; – muitos psicoterapeutas e psicanalistas ainda acreditam que o conhecimento gerado pela pesquisa não possui utilidade clínica; – atualmente existem muitos pesquisadores que são psicanalistas ou psicoterapeutas e se dedicam a produzir pesquisa clinicamente significativa – pesquisa sobre processo e resultados. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 469 Geraldo Rosito pessoa por um longo período, conhecendo-a completamente e ajudando-a a entender a si mesma” (GABBARD, 1999). SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO E PSICANÁLISE Rigorismo de R. Stoller Dados x Observação Estudos, trabalhos x “Nossa Ciência” – Pesquisa na FM/USP comparando comportamentos com oscilações de potenciais captados por eletrodos aproxima a Psicologia da Neurologia;. – Neuroimagem (PET). Compatibilidade com Teoria do Aprendizado – Identificação é mais do que apenas processos incorporadores orais inconscientes. – É também fruto de reforços positivos e negativos por pessoas significativas e pela cultura em geral (Superego). – A elaboração quando acompanhada pela dessensibilização. Outra imensa área onde precisamos de ambas as teorias explanatórias A socialização das crianças, modelação que ocorre também por um processo de recompensa e punição. Nós analistas ficamos, é claro, inquietos quando teóricos do aprendizado falam em dessensibilização, reforço positivo ou negativo, pois a teoria por trás das palavras exclui o papel da fantasia, como se os processos fossem os mesmos nas planárias, nos pombos e nas pessoas! Aproximação da Psicanálise com as Neurociências: A Neuropsicanálise – O conceito de janela de maturação é mais antigo que sua popularização pelo etólogo Konrad Lorenz – “O ganso de Lorenz”. – Na espécie humana, as janelas são menos rígidas e estreitas, graças à Neotenia (prematuridade), possibilitando recursos para aumentar a 470 Psicanálise v. 8, n. 2, p.467-476, 2006 Edição Especial Questionamento de Panksepp, pesquisador do TDAH: – Hiperatividade era, talvez, um “radar” que detectava ameaças e também fontes de alimento. Impulsividade também pode ser vista como iniciativa (Furor curandis... – Medicalização). Kandel salienta a importância para a Psicanálise do conhecimento dos mecanismos neurobiológicos da memória: declarativa e procedural (longo prazo). – Declarativa: corresponde a um conhecimento consciente. É mediada pelo hipocampo. – Procedural: só é verificável através da conduta e distribui-se em diversas áreas do cérebro. O Grupo de Boston (Stern, Sander e outros) comparam o “saber procedural relacional” ao “conhecido não pensado” de Bollas. As mudanças ocorreriam nos “modelos internos de apego”, descritos por Bowlby. Nessa linha, para finalizar o diálogo das Neurociências com a Psicanálise, ocorrem experimentos interessantes: – filhotes que sofreram breves experiências de separação, assim como filhotes de ratas menos carinhosas, tinham menos iniciativa e temor ante novidades; Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 471 Geraldo Rosito plasticidade, como um setting de grande intensidade afetiva ou intervenções psicofarmacológicas que potencializem a intervenção psicoterápica. – Existem, provavelmente, janelas em períodos diversos para várias funções cerebrais, sendo que aquelas demonstradas para a aquisição da linguagem, se não forem aproveitadas, acarretaram sérias restrições ao desenvolvimento dessa função (Nell). – Foi mesmo descrito uma janela para a identificação de um objeto como incestuoso (efeito Westermarck – Antropólogo). – Os casamentos eram predestinados, quando do nascimento. Ocorria alto índice de fugas, repúdio ao sexo e baixíssima taxa de fecundidade. Isso não acontecia se a convivência começasse após os trinta meses. SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO E PSICANÁLISE – se adotados por raças mais carinhosas, a tendência evitativa foi revertida, mostrando influência ambiental intermediando predisposição genética; – animais transgênicos bloqueados nos seus receptores do Sistema Opióide não reagem à deprivação materna com estresse, indicando déficits em comportamento de apego: O LINK ENTRE ESTÍMULO MATERNO E ESTADOS PRAZEROSOS NÃO SE FORMOU. Também se verificou, experimentalmente, influências hormonais que trouxeram subsídios para os estudos dos Transtornos da Identidade Sexual. Fatores Neurobiológicos obstaculizando a Mudança Psíquica Sejam tendências primitivas de conduta geneticamente determinadas, sejam imprintings gravados em janelas cuja plasticidade já terminou, a realidade nos mostra a dificuldade que representa a modificação desses padrões. Que tipos de imprintings gravados durante as janelas (período de molde) é modificável e por que meios ainda é um desafio sem resposta. Freud sempre afirmou que poetas escritores antecederam a Psicanálise. Dante Alighieri, literato dos anos 1300, reflete em sua obra a moral da época. Situa os violentos e os pecadores con malizia no Sétimo Círculo, um dos mais profundos do Inferno, não no mais baixo que é o Nono, de Caim e Judas, dos traidores assassinos. O círculo está dividido por três muralhas: 1. violência contra o próximo: homicidas, bandidos e salteadores de caminhos; 2. violência contra si próprio e contra os próprios bens: suicidas e dilapidadores; e 472 Psicanálise v. 8, n. 2, p.467-476, 2006 Edição Especial rios. Na Antiguidade, tanto a moral romana como a legislação (Lei Scantinia, ano 149 a.C.) eram complacentes com certas violências originadas pelo abuso de poder de um ser humano sobre outro. Assim escreve Sêneca, o Velho: “a impudícia é uma infâmia para o homem livre, mas para o escravo se constitui no mais absoluto dever para com seu amo”. A conceitualização Freudiana da agressão como sendo a manifestação do Instinto de Morte (na conhecida oposição ao Instinto de Vida – Eros x Tânatus) não foi amplamente aceita pelos psicanalistas ou confirmada pelas Neurociências. Em sua teoria, destaca a situação edípica, com os sentimentos de rivalidade e hostilidades decorrentes. De modo mais abrangente, destaca o Fator Constitucional ao abordar a Série Complementar, em sua célebre equação etiológica, ao lado da variável constituída pelas vivências infantis. Nas vivências infantis encontramos experiência de satisfação ao lado de vivências dolorosas. Não existe mãe-cuidadora perfeita, mas é essencial que seja suficientemente boa. Quando a função materna é adequada, ocorre a sensibilidade e a continência. Outra função essencial é saber frustrar adequadamente: frustrações escassas não desenvolvem a noção de Limites e, quando exageradas, injustas e/ou incoerentes, provocam intenso Ódio, precursor da violência. Outro aspecto relevante a merecer registro são as identificações, que podem ser transmitidas de geração a geração (a Transgeracionalidade). Modelos de identificação, por exemplo, agressivos e violentos encontrarão eco na criança que os reproduzirá. No plano social, ilustro com a situação de conflito geopolítico no Oriente Médio. No plano familiar, o que dizer das inúmeras manifestações Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 473 Geraldo Rosito 3. violência contra Deus, a mais grave: blasfemos, sodomitas e usurá- SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO E PSICANÁLISE clínicas, mais explícitas ou sutis, que sofridamente nos trazem nossos pacientes? Por exemplo: travestir uma criança ou humilhá-la. Considerações finais Antiga dialética: Afeto x Cognição Lazarus-Zajong: “O afeto surge sem a cognição precedente ou a avaliação cognitiva é um prelúdio essencial para o surgimento da emoção?” Nihil est in intellectu quod non fuerit prius in sensu – deriva-se de Santo Tomás (1225-1274), ao que Leibniz (1646-1716) contrapôs, proclamando a irredutibilidade do intelecto aos sentidos: nisi intellectus ipse, a não ser o próprio intelecto. Para Antônio R. Damásio: “As emoções que levam a agressão e violência, orgulho, desprezo – são sentimentos muito negativos e têm raiz evolutiva antiga. Eram úteis quando a organização social era simples e hoje podem ser nefastos”. Antiga Dialética: O Bem e o Mal Uma leitura superficial da Teoria Freudiana dos Instintos o colocaria em oposição a Rousseau, para quem todo ser humano nasce bom, sendo corrompido pela sociedade. Essa oposição dialética apenas encontraria uma síntese valiosa através do trabalho das gerações seguintes de psicanalistas. Com efeito, Donald Winnicott genialmente concebe uma ponte entre a idealização das pulsões e o idilismo rousseauniano, estendendo um braço a Freud e, com outro, enlaçando Rousseau. Esse autor, não polemizando ser e meio ambiente, concebe-os em interação. Assim é que, didaticamente, nos esclarece que as raízes da agressão não estão presentes no nascimento. Sua concepção enfatiza as necessidades do bebê, cuja satisfação adequada, pela “mãe suficientemente boa”, geraria tendências amorosas/construtivas e, ao revés, a não-satisfação constitui a base dos impulsos hostis/ destrutivos. 474 Psicanálise v. 8, n. 2, p.467-476, 2006 Edição Especial A MENTE É COMO UM PÁRA-QUEDAS: SÓ FUNCIONA ABERTO. Abstract Mental Health of the Population and Psychoanalysis In approaching the theme ‘Mental Health of the Population and Psychoanalysis’, the author highlights, through an interdisciplinary dialogue, the origins of violence and trauma. By focusing on points of convergence between Psychiatry and recent advances in Neurosciences, he makes considerations about several studies, emphasizing the neurobiological factors involved in aggressive behavior that hinder psychic change. Likewise, he highlights the necessary approximation of the effectiveness of clinical situations to the efficacy of evaluation models using randomization, experimentation, and control of variables. In approaching specific concepts, such as maturation windows (Lorenz goose), neoteny, and neuronal plasticity, he approaches the human baby’s archaic psychic structure, which contains the origins of constructive impulses, as well as the roots of violence. Resumen Salud Mental de la Población y Psicoanálisis El autor, al abordar el tema Salud Mental de la Población y Psicoanálisis, destaca, a través del diálogo interdisciplinario, los orígenes de la violencia y del trauma. Focalizando puntos de aproximación de la Psiquiatría con avances recientes de las Neurociencias, teje consideraciones respecto a varias investigaciones, destacando los factores neurobiológicos involucrados en el comportamiento agresivo y que obstaculizan el cambio psíquico. Destaca, igualmente, la necesaria aproximación de la efectividad de situaciones clínicas con la eficacia de modelos de evaluación que utilizan la randomización, experimentación y control de variables. Al abordar conceptos específicos, como ventanas de maduración (El ganso de Lorenz), neotenia, plasticidad neuronal, aborda la estructura psíquica arcaica del bebé humano, que contiene los orígenes de los impulsos constructivos, así como las raíces de la violencia. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 475 Geraldo Rosito Aprofundar estas questões não cabe aqui nos limites dessa contribuição. Basta deixar clara a idéia de uma visão integradora, humanista e interdisciplinar como instrumento útil na abordagem da violência. Nos dias atuais, em que as relações tendem à impessoalidade e ao individualismo, são essas as ponderações que entendo adequadas a este espaço. Longe de tê-las como soluções definitivas, mas que, de uma forma ou de outra, promovam a reflexão e o questionamento. SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO E PSICANÁLISE Referências BOWLBY, J. Attachment and Loss. New York: Basic Books, 1973. v. 1. DENNETT, D. Consciousness explained. In: LEAKEY, R. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. FREUD, S. (1921). Psicologia de las masas y análisis del yo. In: . Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v. 18. GABBARD, G. Perspectivas da Psiquiatria Dinâmica para o Próximo Milênio. Jornal do Centro de Estudos Luis Guedes, Porto Alegre, p. 4-5, maio de 1999. Entrevista Concedida. KANDEL, E. R. 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São Paulo: Martins Fontes, 2002. Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA Revisão: Antônio Paim Falcetta Geraldo Rosito Rua Mostardeiro, 157/1407 90430-001 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (51) 32222042 E-mail: [email protected]; [email protected] 476 Psicanálise v. 8, n. 2, p.467-476, 2006 Edição Especial PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS* 1. Os manuscritos que se publicam na Revista devem ajustar-se a alguns requisitos formais: a. O trabalho deve ser inédito (excetuam-se trabalhos publicados em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna b. c. de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas); O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em relatos clínicos; d. O trabalho deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor; e. ofensivo ou difamatório; f. O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela lei; O trabalho não deve estar sendo encaminhado simultaneamente para outra publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor. * Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 477 2. Os trabalhos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização da Revista. 3. As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva responsabilidade dos autores. 4. Os originais deverão obedecer as seguintes exigências mínimas: a. b. Os originais enviados para a publicação deverão ser endereçados ao Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, cujo endereço é Quintino Bocaiúva, 1362. Em três vias e cópia em disquete (gerado em Word for Windows); c. enviadas em duplicatas de tamanho adequado. O conteúdo total de ilustrações não deverá exceder ¼ do espaço ocupado pelo artigo; exceções serão consideradas; d. espanhol) e endereço do autor; 5. Referências: Ex tensão máxima de vinte (20) páginas digitadas só na frente, em espaço duplo em papel formato A4. Cada linha deve conter 70 toques e cada página 30 linhas sendo numerado no ângulo superior direito. Tabelas gráficos, desenhos e outras ilustrações sob forma de cópias fotográficas devem ser Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e O resumo deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar. As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise. As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918). 478 Psicanálise v. 8, n. 2, p.477-480, 2006 Edição Especial Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados, por exemplo Marty, de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983). A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder exatamente às obras citadas, sem referências suplementares. Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem cronológica de publicação. (para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre parênteses na Standard Edition). Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço. Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência. Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas, poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de dúvida, citar o nome por ex tenso. Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação. 6. Procedimentos de Avaliação: a. Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre 479 b. O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o c. mesmo seja mantido pelo próprio avaliador. d. editorial estabelecido; Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação. PS. Para mais detalhes consultar revistas. 480 Psicanálise v. 8, n. 2, p.477-480, 2006 Edição Especial