Caminhante das estradas
Transcrição
Caminhante das estradas
D.L���� B������ CAMINHANTE DAS ESTRADAS: A SAGA DOS ANDARILHOS NAS RODOVIAS DO BRASIL © Todos os direitos reservados Todo conteúdo presente nesta obra é de inteira responsabilidade do autor. A���� D. Lucas Barbosa C������ ��� � ����� [email protected] R������ Editora Kiron P������ G������ � E��������� E��������� Editora Kiron I���������� �� ���� D. Lucas Barbosa I��������� �� ���� João Rafael Corrêa Lima A��� ����� �� ���� Editora Kiron Impressão e Acabamento Editora Kiron (61) 3563.5048 | www.editorakiron.com.br B238 Barbosa, D.Lucas Caminhante das estradas – A saga dos andarilhos nas rodovias do Brasil. D. Lucas Barbosa. – Brasília: Editora Kiron, 2015. 116p. : 21cm ISBN 978-85-8113-453-6 1. Literatura brasileira. 2. Prosa Narrativa. 3. Ficção. I. Título. CDU 82-3 Este livro destina-se ao público em geral. Não incluí referencias bibliográficas porque foram situações vividas durante 20 anos de trabalho na Polícia Rodoviária Federal nas estradas do Brasil. Muitas foram as responsabilidades para que as histórias fossem contadas de uma maneira que a verdade prevalecesse. É fruto de longos anos de pesquisas de campo nas estradas do Brasil. Agradeço àqueles que, de diversas maneiras, contribuíram para sua consecução. Aos amigos da Polícia Rodoviária Federal, que relataram suas experiências com os caminhantes das estradas. À minha família, pelas noites em meu escritório finalizando este trabalho. E dedico especialmente um agradecimento a Lídia da Mata, que é policial e esposa. In memorian a Dalvimar Cruzeiro Barbosa e Maria Magdalena Netto Barbosa (meus pais). SUMÁRIO PREFÁCIO ............................................................................ 7 PRÓLOGO ............................................................................ 9 “O HOMEM SOZINHO CONSIGO MESMO” ........................ 12 CAMINHANTE DAS ESTRADAS ............................................ 14 CAPÍTULO I ....................................................................... 16 CAPÍTULO II ..................................................................... 31 CAPÍTULO III.................................................................... 37 CAPÍTULO IV .................................................................... 45 CAPÍTULO V ...................................................................... 55 CAPÍTULO VI .................................................................... 65 CAPÍTULO VII................................................................... 71 CAPÍTULO VIII ................................................................. 81 CAPÍTULO IX .................................................................... 93 CAPÍTULO X .................................................................... 105 6 PREFÁCIO D .Lucas fala mais uma vez do que entende: estrada. Não a minha estrada, a sua rodovia ou o asfalto de outros, mas o percorrer perpétuo e obstinado de uns. Pra mim, ela é o próprio ato da liberdade, que só se entende no gerúndio. É rodando que se compreende a estrada em seu sentido mais amplo. Porém, a estrada extrapola conceitos, pois apresenta uma riqueza tal em seu tecido humano, que se perde na infinidade de seus quilômetros de possibilidades, de encontros e desencontros, de vida e morte. Isso eu vim aprender com Dona Célia em sua jornada pelo asfalto, rasgando o interior de Minas, em busca do sonho distante na capital paulista. Foi nos olhos dessa trecheira que esse grande estradeiro das letras foi buscar uma perspectiva outra que me fugia e que agora me parece tão mais rica e verdadeira em relação ao meu presunçoso perceber de motociclista. O experiente policial das estradas federais, Inspetor D.Lucas, presta continência aqui para o perspicaz escritor de D.Lucas, que veio nos brindar com muito mais que conhecimento. Em Caminhante das Estradas, seu atual livro, ele nos oferece a oportunidade de vivenciar a rotina nada rotineira que é a vida de um autêntico caminhante. Conhecidos como trecheiros, andarilhos, pardais, entre outros nomes, esses caminhantes serviram de inspiração para contar um pouco desse grande e, às vezes, cruel Brasil. São estórias que vêm e vão como placas na BR, cada qual 7 com suas particularidades, seus valores e desenganos. Todos tentando responder a pergunta que o autor lança mão logo no começo do livro: “O que faz uma pessoa viajar a pé pelas estradas?” A resposta para essa pergunta é o assunto do livro. São as vidas e decisões de homens e mulheres que se ligaram à estrada de formas distintas, em situações diversas, mas todas mostrando faces muito humanas, faces que tentamos não perceber quando cruzamos com um “doido desses” caminhando na beira do asfalto, com pouco mais que uma trouxa de roupa suja, uma garrava de água de torneira e um cachorrinho magro, amarrado para não ser atropelado pelos carros da rodovia. Um desses “loucos” é a personagem principal que D.Lucas nos apresenta de forma tão verdadeira, que nos emociona e nos faz compreender que a loucura dos andarilhos não é outra senão a velha loucura humana da incompreensão e intolerância, numa sociedade insensível, murada em suas capitais, que não deixam outra opção às pessoas como Maria Célia, senão o ato libertário de pegar a estrada, mesmo que a pé, mesmo que sem rumo; mas sempre com estórias tão humanas e interessantes. Gláucio Gaitero Músico, compositor, repentista, poeta, escritor e mestre da literatura de cordel. 8 PRÓLOGO A ndarilhos, caminhantes das estradas ou trecheiros, como gostam de serem chamados, caminham pelas estradas sem destino como nômades renunciando fixações geográficas, psicológicas e sociais, e não é raro os encontrar com manifestações de visões e pensamentos delirantes. Este livro tenta fazer uma conexão entre a movimentação constante dos andarilhos, principalmente nas rodovias federais do estado de Minas Gerais nas BR 116, BR 262 e BR 153. A maioria se desloca pelas rodovias em busca de trabalho na agricultura, construção civil, e, em caso de extrema necessidade, recorrem à mendicância e à ajuda de albergues, sendo que neste caso vai depender da organização social que a cidade em que estejam transitando venha a possuir. Outra parte dos andarilhos é formada por pessoas que já abandonaram todas as perspectivas e sonhos de encontrar trabalho, restabelecer uma família ou ter uma moradia e assim fixar-se em algum lugar. Os andarilhos da atualidade rompem com toda a rede social, abandonam família, trabalho, laços familiares, e assumem o nomadismo como forma de vida. Todos os seus pertences são transportados em sacolas ou embornal que são colocados nos ombros, levando somente o básico, o essencial, somente roupas usadas, pedaços de plástico para proteção da chuva ou forrar o chão para dormir, uma garrafa de água e quase sempre outra de pinga. 9 Os trecheiros acabaram criando termos peculiares entre eles, como “cascuda”, que é uma vasilha utilizada para colocar a comida que ganham dos comerciantes, evitando o constrangimento de usarem utensílios dos restaurantes e estabelecimentos; e também a “pá”, que é a colher para comer esses alimentos. Nunca portam objetos de valor ou pessoal como lembrança, pois tudo tem de ser volátil. Diferente do que ocorre na vida sedentária, a repetição é quase inexistente na vida do trecheiro. Cada dia em um lugar, cada refeição em um local diferente, criando com isso um mundo de surpresas e descobertas. Mas isso implica que não existirá relacionamento interpessoal e terá de se adaptar com isso, mas se adaptando o retorno à realidade fica mais difícil, e a única referência que ele terá a partir daí será o próprio trecho. Cada andarilho tem sua história e ela poderá ser vivida e, até mesmo, escrita durante o caminho percorrido em diversas estradas, cidades, estados, atravessando fronteiras internas e estrangeiras. Neste caso, trecho e trecheiro confundem-se com a andança, no movimento sem ponto de fixação. Esta é a história de Dona Célia, um relato de pessoas que conheci nas rodovias federais do Brasil como funcionário público no quadro da gloriosa Polícia Rodoviária Federal, mais precisamente no estado de Minas Gerais, onde iniciei meus trabalhos. Dona Célia é uma junção de pessoas e fatos, andantes, caminhantes, andarilhos, trecheiros que, no final, são pessoas que formam uma sociedade que está à margem das trocas, à margem da circulação de objetos. Elas existem e vivem da sombra dessa circulação, não têm lugar no mundo real e do consumo. São excluídas do sistema, do mesmo sistema que não dá a mínima para elas, e estas, em contrapartida, não dão a mínima para o sistema. 10 Este trabalho pode servir de denúncia, um alerta, pois nós vivemos em uma sociedade que tem um caráter simbólico das trocas, de valores e de medidas, movimentando a esmo em todos os planos, passando do sedentarismo para o nomadismo sem mesmo perceber que faz isso. Uma caminhada sem rumo vivida por pessoas que são lançadas à miséria e a errância por diversos motivos. Dedico este trabalho a todos os trecheiros que conheci, conversei e que, de uma maneira ou outra, pude ajudar. SIGNIFICADO DE ANDARILHO NO DICIONÁRIO: Pessoa que não tem moradia, que perambula pelas rodovias e ruas, de cidade a cidade. 11 “O HOMEM SOZINHO CONSIGO MESMO” Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final, pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso, não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o portão; animais de rapina uivem ao longe e também perto; um vento forte se levante; bandidos lhe roubem os animais de carga. Sentirá então cair a noite terrível, como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração se cansará de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma divindade da ira, quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos que nela vivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que no outro lado do portão, e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode acontecer ao andarilho; mas depois virão, como recompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outros dias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos montes, os bandos de musas passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no equilíbrio de sua alma 12 matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em casa na montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em sua maneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tão sereno-transfigurado: – eles buscam a filosofia da manhã. Friedrich Nietzsche, De Humano, Demasiado Humano (1878). 13 CAMINHANTE DAS ESTRADAS O que leva uma pessoa a sair caminhando pelas estradas sem rumo, documentos e um propósito? Andar pelo simples ato de andar, caminhar? O que faz uma pessoa viajar a pé pelas estradas? Nada que possamos compreender. Uma passagem de ônibus, por mais cara e dispendiosa que possa ser, ainda é o melhor meio para se viajar. Mas parece que o caminhante, além de ser uma pessoa decidida, no fundo gosta mesmo é de se aventurar, fugir de seus problemas. Não existe um dia em que, nas estradas do Brasil, deixem de passar pessoas caminhando. Cada uma com seus problemas, sua vida, sempre arredias e falando sozinhas. Sempre estarão lá em suas viagens intermináveis. Normalmente, estão na faixa dos trinta aos cinquenta anos de idade. Mas sempre aparecem pessoas jovens e muitos velhos com seus sacos de papel nas costas, em que levam tudo que possuem na vida. São pessoas que têm passado, têm história para contar, mas deixaram tudo para trás. Quando não estão retornando para suas cidades, estão indo trabalhar em São Paulo, de onde, depois de alguns anos mal sucedidos, retornam pela mesma estrada que os levou. Normalmente, nas longas caminhadas, deparam-se com muitas histórias, coisas que acontecem e que sempre es14 tarão em suas mentes, como lembranças de um passado incerto, um presente duvidoso e um futuro que existe somente na cabeça. As estatísticas da Polícia Rodoviária Federal demonstram que normalmente são homens nessa caminhada. Mas as mulheres, como sempre, estão presentes, marcando seu lugar na empreitada da vida, cada uma com sua sina. E é esta a história que passo a contar. Maria Célia de Souza, ou somente Dona Célia, mulher de muita fibra e corajosa, que partiu em busca de sua identidade na estrada da vida, largou tudo em uma bela manhã, deixando um marido alcoólatra e um filho, que sempre lhe dava desgosto, para trás. 15 CAPÍTULO I Chovia muito naquela manhã de agosto. Sua ida ao mercado municipal rendera-lhe muito peso para carregar. Eram os restos da feira que as madames e os feirantes deixavam pra trás. Tomates passados do ponto, muito maduros, que não serviam mais para vender; batatas que tinham pedaços amassados ou podres, mas que poderiam ser comidas ao serem cortados fora esses pedaços; folhas de inhame, alface e pedaços de todos os tipos de verduras e legumes, tudo seria aproveitado; e ainda ganhou uma melancia, que, apesar do peso, levou-a consigo, afinal, não era todo dia que uma boa melancia aparecia. Escolhia bem as coisas, pois sabia que poderiam fazer mal à sua família se comessem alguma coisa estragada; por isso as selecionava bem e quando chegava em casa lavava tudo, cozinhava e ficava à espera dos filhos e do marido. Naquela tarde de agosto, sua volta para casa foi diferente; notou que alguma coisa estava errada quando começou a subir o morro; muita gente aglomerada, carro de polícia, alguma coisa estava acontecendo. Apressou os passos e viu muita gente na porta de seu barraco, um grande tumulto; ouviu um grito desesperado; uma voz de homem. Largou tudo no chão e correu, entrou no barraco e viu uma cena que a deixou chocada: seu marido em pé, completamente bêbado, com uma faca na mão. No chão gritando, estava seu filho mais novo, agonizando. Não teve outra reação a não ser tomar a faca da mão do marido e pedir ajuda aos vizinhos. Não interessava 16 o que havia acontecido. O que importava naquele momento era salvar seu filho. Mas o rapaz, entre soluços e espasmos, silenciou-se, parou de debater-se, ficou imóvel com os olhos projetados para cima, morreu em seus braços. O marido, notando que havia causado uma grande tragédia, fugiu de casa, deixando a pobre da mulher com um filho morto nos braços. Passaram-se dias após o ocorrido e as coisas esclareceram-se para a pobre mãe. Naquele dia de agosto, seu filho mais novo tentou chamar a atenção de seu padrasto, que mais uma vez chegou embriagado em casa, como sempre fazia. O padrasto retrucou chamando-o de maconheiro, iniciando assim uma grande discussão, um bate-boca, com ofensas mútuas, ocasionando a tragédia familiar. Dias depois, seu marido voltou a morar no barraco porque não tinha para onde ir, e como havia fugido do flagrante, responderia em liberdade. As coisas estavam ficando novamente como antes, nada havia mudado com a tragédia. Voltou a ir ao mercado municipal para catar comida, o marido na cachaça; o filho mais velho na bandidagem com tráfico e roubos, precisava fazer alguma coisa com sua vida. Seu barraco ficava em uma favela no alto do morro. Lá embaixo passava a Rio-Bahia, BR 116, estrada que sabia que ligava o norte ao sul do país. Ficava horas olhando lá de cima a movimentação na pista de asfalto, com suas carretas, ônibus, carros e pessoas andando, caminhando. Viu ali sua salvação: resolveu que caminharia em busca de sua liberdade. Bastaria ter coragem. Tudo aconteceria na hora certa; e aconteceu; a estrada a esperava. Iria para São Paulo trabalhar de babá, de empregada doméstica, seria uma mulher livre. Preparou a partida. Separou algumas poucas roupas que tinha, lavou-as, passou-as e colocou-as dentro de uma 17 bolsa. O resto que tinha estava dentro de um embornal que levaria no ombro, dentro do qual poderia colocar qualquer coisa durante a caminhada. Foi na prefeitura pedir uma passagem de ônibus para São Paulo. Primeiramente, mandaram-na ir ao Setor de Triagem. Depois, mandaram-na para o Centro Social. Até na Câmara dos Vereadores ela foi. E nada da passagem. Percebeu que não iria conseguir. O tempo estava passando. Resolveu, então, que iria caminhando mesmo. Uma carona aqui, outra ali. Iria em frente. Quatro horas da manhã. Lua cheia, noite bonita e estrelada. Dona Célia resolveu que iria embora sem se despedir de ninguém. Nem mesmo de sua vizinha e única amiga, Lourdes. Não podia arriscar. Colocou tudo em sua bolsa. O que tinha para comer colocou no embornal. Olhou para seu marido que dormia a sono solto. Não olhou muito; apenas lembrou-se dos momentos bons que passaram, que foram poucos. Olhou para seu filho e ficou com pena de tanto desperdício de vida. Seu destino era incerto. Saiu em silêncio de casa. Seria livre. Olhou a última vez para trás. Lá ficaria seu passado. Pela frente somente esperanças. Passou pelo mercado e viu suas amigas catando os restos dos outros. Também ficariam para trás. Teria vida nova. Era só chegar na estrada e ir em frente. Cinco da manhã. Já estava na beira da estrada. Começou a andar decidida. Teria de manter um ritmo, andar somente na hora de sol fraco, nunca exceder. Foi quando teve medo pela primeira vez: o de enfrentar sozinha aquela situação, aquele novo desafio. Mas sabia que daria certo. Seria uma vitoriosa; um dia voltaria feliz com o sonho realizado. Seis horas. O sol estava saindo, prometendo fazer um lindo dia. Imaginou que poderia arrumar carona no Posto da 18 Polícia Rodoviária Federal, mas teve um grande desapontamento quando leu uma placa verde no posto do guarda rodoviário: “PROIBIDO PEDIR CARONA NA ÁREA DO POSTO”. Na guarita estava somente um patrulheiro de plantão. Bateu na janela e perguntou ao guarda se realmente era proibido pedir carona ali. – Claro, minha senhora – respondeu o patrulheiro – todos os dias temos problemas com pessoas que são atropeladas; mas não é só aqui não; em todo o país é proibido pedir carona, ou mesmo que o guarda peça a carona. Ali começaram seus problemas e iniciou sua caminhada. Andou a manhã toda sem parar, mantendo o ritmo estabelecido. Havia muito tempo que estava caminhando, mas havia caminhado poucos quilômetros e carona não apareceu nenhuma. Já sentia falta de um banho. Era pobre, mas sempre tomava banho todos os dias, e sabia que naquela situação não seria possível. Andou mais um pouco e avistou um posto de gasolina. Parou nele, bebeu água gelada e, como ainda estava com uma roupa limpa, entrou no restaurante. Havia muitas pessoas naquela hora – era hora do almoço -, outras faziam lanche; sentiu muita fome; saiu e comeu um pedaço do pão que tinha na sacola, e ficou um tempo descansando. Naquele dia teve sorte: arrumou uma carona com um caminhoneiro que a levou até onde podia, deixando-a em terras estranhas bem longe de casa, muito diferente de sua realidade. Já estava escurecendo e a noite caiu rápido, dormiu em um posto de gasolina abandonado na beira da estrada; não tinha água para beber, e estava com muita sede; precisava arrumar uma vasilha para colocar água e seguir em frente. Enrolou-se em uma toalha que tinha na bolsa e adormeceu. Sonhou com seu barraco e com seus dois filhos felizes 19 como se não houvesse ocorrido a fatalidade com o mais novo. Acordou com o sol em seu rosto e com um grande susto: um homem a olhava com cara de poucos amigos. Ainda deu tempo de pegar a bolsa e se encolher em um canto. O homem disse: – Me dá sua bolsa que te deixo em paz. – Não, por favor, a bolsa não! Aqui só tem minhas coisas. Por favor! – retrucou indagada. – Me dê logo, mulher – repetiu mais energicamente o homem. Ela entregou a bolsa, o homem olhou, mexeu, pegou o pedaço de pão que ainda tinha e comeu. Levou tudo, a toalha, as roupas tudo que restava. Olhou para ela, deu uma risada e foi embora, deixando a mulher sem nada; se já não tinha nada, agora é que nada tinha; restou somente chorar. Como havia dormido no chão do posto abandonado, ficou com a roupa toda amarrotada, e despenteada porque o homem também havia levado seu pente. E para completar, estava morrendo de vontade de tomar um banho e um cafezinho. Como não tinha nada disso, seguiu em frente sua caminhada para São Paulo. Andou muito tempo até parar em outro posto de gasolina. Este sim, bonito, grande e cheio de caminhões. Entrou no restaurante e ficou olhando. Logo veio um garçom e disse: – Vai dando o fora, dona! Não tem comida aqui não! – E a empurrou para fora do restaurante. Ela tentou dizer alguma coisa, mas desistiu quando se olhou em um espelho do restaurante e viu uma mulher descabelada, suja em sua frente, Essa mulher não era ela, não podia ser; então entendeu que não poderia entrar em lugar público. Não era assim que havia imaginado sua viagem; parecia que as coisas haviam tomado outro rumo. 20 Saiu do restaurante e foi para o pátio arrumar uma carona de volta para casa. Ainda poderia chegar em casa a tempo, e talvez nem tivessem notado sua falta. Mas pensou melhor e decidiu que iria em frente. Nessa altura, seu marido já deve estar nervoso e seria capaz de bater nela por causa do tempo que esteve fora. Resolveu que manteria o planejado, iria em frente. – Ei, seu moço, o senhor tá indo pra São Paulo? – perguntou Dona Célia a um motorista que encontrou no pátio do posto. – Tô sim, dona, mas não me vai dizer que vai querer uma carona? Primeiro precisa tomar um banho – respondeu e saiu rindo, deixando a mulher desorientada. Agora ficou mais difícil. “Vou ter de caminhar mesmo”, pensou a mulher, seguindo em frente. Andou, e quanto mais andava, mais achava que não havia rendido a viagem. Olhava pra trás e sempre via as mesmas coisas, as mesmas paisagens. A solidão já fazia companhia, e estava falando sozinha, teria de tomar cuidado, senão ficaria louca. Nesse dia caminhou bastante, somente parando em uma sombra para descansar os pés, beber água, ou fazer suas necessidades. Seu pensamento voava, ela já imaginava sua chegada em São Paulo. Só não sabia que mesmo depois da carona que havia conseguido havia caminhado poucos quilômetros; estava muito longe de seu destino. No outro dia, enquanto caminhava debaixo de um sol quente, com seu pano amarrado na cabeça, viu que em sua direção caminhava um homem de barba branca, parecendo que há muito não via um banho. Como estavam longe um do outro, resolveu trocar de lado na estrada e quase foi atropelada por uma carreta, que a jogou no chão com o vácuo do 21 deslocamento do ar. Atravessou a estrada e foi para o outro lado. O homem também atravessou. Voltou para o lado que estava antes e ele também voltou. Ficou com medo e preparou-se para o pior; o homem veio em sua direção. – Bom dia, dona! Tá indo pra onde? – perguntou o homem. – Tô indo pra São Paulo – respondeu, torcendo para ele ir embora. Mas ele queria conversar com ela. – A senhora por acaso tem água? Como havia guardado uma garrafa de plástico com água, deu para o homem, que bebeu e agradeceu, e continuou a conversa: – Sabe, dona, eu tô vindo de lá, estou voltando pro Pernambuco, meu estado natal. Lá em São Paulo as coisas estão muito ruins, muita gente pobre pedindo. Se eu fosse a senhora, voltava pra casa. Vejo que a senhora ainda está no começo da caminhada, mas daqui a uns dias vai ficar igual a mim. Acredite, dona, a coisa não é fácil lá. Se tiver algum parente te esperando fica mais fácil. – Não, não tenho. Ela comentou – Vou procurar emprego de doméstica, qualquer coisa, pra minha casa não posso voltar mais. – Tudo bem, dona. Então, vai com Deus! – O senhor viu algum posto de gasolina, algum lugar em que eu possa descansar? – Tem não. Se estivesse de carro tinha; mas a pé, tem não; tá muito longe; vai ter de dormir na estrada. Procure uma sarjeta limpa enquanto está de dia. Depois se arruma e reza para não ter ratos, cobras ou outros bichos, e durma, descanse; a caminhada é dura e precisa se alimentar e ganhar energia – continuou aconselhando o velho andarilho. 22 – Tente arrumar carona em um caminhão, tem motorista que leva. Vá com Deus e boa viagem! – aconselhou o homem. Ouvindo os conselhos do senhor idoso, continuou sua caminhada. Mais uma vez teve medo de dormir, sozinha, no mato, com medo dos bichos e de outros homens enquanto dormisse. Mas, por enquanto, era fazer como o homem havia dito: arrumou um lugar limpo e seguro. A noite caiu. Estava em uma sarjeta limpa perto de um morro. Não havia estrela no céu; a lua não apareceu; era uma noite de breu intenso, mas como estava muito cansada, adormeceu com fome. Acordou de manhã assustada com o barulho dos caminhões passando rente onde estava dormindo, porque para ultrapassar outros veículos eles tomavam a faixa do acostamento. Levantou e sentiu falta de um cafezinho, um pão ou mesmo de um pente para se assear, pois estava descabelada. Amarrou o lenço na cabeça e recomeçou a caminhada. Andou muito, já nem sentia os pés; precisava arrumar uma carona para levá-la mais rápido, ou pelo menos mais perto de São Paulo. Mas sabia que seria difícil. Não demorou e encontrou uma pequena cidade. Parecia com o lugar onde havia nascido. Entrou no vilarejo, suja, desarrumada, viu algumas mulheres sentadas em uma varanda de uma casa, e pediu auxílio. – Bom dia. Estou viajando, poderiam me dar um copo de água? – Sai fora, mulher, todo dia é a mesma coisa, gente e mais gente pedindo; também somos pobres, nem por isso saímos pedindo nada para os outros – respondeu umas das mulheres na varanda. – O que é isso, tia? Não é coisa que se faça com um ser humano – disse uma jovem que também estava na varanda. 23 – Vem cá, dona, espera um pouco! Descanse ali perto daquela árvore que vou pegar um lanche pra senhora. Precisa perdoar minha tia; é que todos os dias as pessoas passam pessoas aqui pedindo ajuda; alguns roubam nossas roupas no varal, por isso ficamos preocupadas quando aparece estranho por aqui. Mas venha, vou te dar alguma coisa. Tomou um café, comeu pão com salame, agradeceu a garota que a ajudou e pensou.: “Meu Deus do céu! Nasci pobre, casei mal e vivi mais pobre ainda... E agora estou aqui, suja, maltrapilha e mendigando comida e sendo humilhada por todos.” Com estes pensamentos, continuou sua caminhada. 24 Hoje é muito mais fácil publicar um livro do que se imagina. A Editora Kiron é a solução para autores que desejam publicar seu livro em grande e pequenas quantidades, com um custo acessível e boa qualidade. Com um processo inovador de produção de livro por demanda (pequenas quantidades), o autor pode realizar o sonho de publicar uma obra. Com a assessoria dos nossos profissionais, você pode ter sucesso e obter um bom retorno. Conheça as publicações da Editora Kiron no site www.editorakiron.com.br Brasília (DF): C-01, lote 01/12, sala 434 - Ed. TTC - Taguatinga CEP: 72.010-010 - Fone: (61) 3563.5048 [email protected] | www.editorakiron.com.br