a história de um soldado brasileiro
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a história de um soldado brasileiro
A HISTÓRIA DE UM SOLDADO BRASILEIRO JOBER ROCHA 2010 1 AVISO AOS LEITORES Este livro é uma obra de ficção. Os personagens, diálogos e acontecimentos foram criados a partir da imaginação do autor, porém, transcorreram em locais verdadeiramente existentes e passaram-se antes, durante ou após batalhas reais travadas pela Força Expedicionária Brasileira – FEB, que lutou em território italiano durante o período de 16 de julho de 1943, quando o primeiro escalão desembarcou em Nápoles, até 01 de maio de 1945, quando cessou a guerra no ‘front’ italiano. Todos os nomes de civis e de militares, citados como pertencentes ao Exército Brasileiro e a instituições públicas e privadas, bem como acontecimentos e personagens que fazem parte da História do Brasil, são verdadeiros. Entretanto, qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas, vivas ou mortas, terá sido mera coincidência. 2 PRÓLOGO Caro leitor, as páginas apresentadas a seguir fazem parte de um diário por mim encontrado, recentemente, dentro de um armário trancado e abandonado no depósito de materiais do Terceiro Batalhão de Infantaria, localizado em Venda da Cruz, no Município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro. Como oficial temporário, naquele dia, comandava uma equipe que procedia a limpeza do referido depósito, objetivando abrir espaço para vários caixotes que chegariam de outras Organizações Militares. Constatei que alguns armários de madeira imprestáveis, carcomidos pelo tempo e pelos cupins, teriam de ser retirados dali para serem queimados, em área própria, nos fundos do batalhão. Como um dos armários estivesse fechado à chave, antes de queimá-lo, forcei sua fechadura. Dentro encontrei um grosso caderno com capa de couro. Ao folhear rapidamente suas páginas, já amareladas pelo tempo, constatei tratarem de relatos diários sobre a vida de um militar daquele batalhão. Pelo mau estado de conservação percebi que o diário permaneceu esquecido, ali dentro, por 3 dezenas de anos; o que, de certa forma, o manteve preservado, embora os cupins houvessem destruído partes da capa e de algumas páginas. Guardando o diário para posterior observação mais detalhada, mandei colocar fogo aos armários e dei minha missão por encerrada. Mais tarde no alojamento lembrei-me do diário e, ao tornar a abri-lo e examiná-lo com mais detalhes, vi que tratava de relatos que abrangiam o período de março de 1942 a setembro de 1946, e que incluíam a participação de seu autor em combates travados no território italiano durante a Segunda Guerra Mundial. Em nenhuma parte do caderno encontrei o nome do dono daquelas memórias; razão pela qual dei ao presente relato, o simples nome de ‘A História de um Soldado Brasileiro’. Considerando o grande volume de páginas tomei a liberdade de resumir algumas passagens que me pareceram muito extensas, e de abreviar algumas outras cuja pouca clareza de exposição deixaria os leitores confusos. Mantive a seqüência cronológica dos relatos, dando nova redação a alguns trechos escritos certamente sob forte emoção póscombate. Assim, reuni os relatos diários e condensei-os anualmente iniciando a narração em 1942 e terminando em 1946, ano em que imagino ter o diário sido esquecido dentro daquele armário. Procurei ainda dar um tom coloquial para tornar a leitura mais agradável e menos cansativa. Muito do que é relatado referente à vida e aos pensamentos do autor foi obtido através do rascunho de várias cartas, dirigidas ao seu pai e a sua namorada, encontradas entre as folhas do diário. O que verdadeiramente me levou a divulgar o referido diário da forma como o faço agora, foi o sentimento por mim vivenciado, após lê-lo integralmente, de que devia pelo menos isso ao seu autor. 4 Conforme os leitores poderão constatar emocionados, sua dedicação incondicional ao serviço da pátria e seu sofrimento, tanto durante a guerra quanto após seu retorno ao Brasil, foram relegados e esquecidos, por parte daqueles a quem pretendeu defender. Esta estória narrando a história dramática deste herói anônimo, certamente será muito parecida com outras estórias de veteranos da Segunda Guerra Mundial, quaisquer que sejam suas nacionalidades. O que, todavia, será sem dúvida diferente, infelizmente para nós, é a forma como o nosso país tratou, naquela ocasião, os heróis que retornaram vivos do conflito, bem como os familiares daqueles que não retornaram e cujos restos mortais ficaram sepultados durante muitos anos na cidade italiana de Pistoia, ou foram dados como desaparecidos. Leis e regulamentos em benefício dos ex-combatentes e de seus familiares, só foram promulgados cerca de quinze anos após haver terminado o conflito. Enquanto outros paises souberam recompensar a dor e o sofrimento de seus soldados, o Brasil desmobilizou os dele ainda mesmo na Itália, deixando-os totalmente desamparados, após seu retorno àquela ingrata pátria que com o risco da própria vida foram defender em solo europeu. A permanência de uma ditadura Getulista em nosso país, a principio prógermânica, certamente fez com que o governo não desse nenhum apoio aqueles militares que haviam combatido as ditaduras nazi-fascistas, e que agora retornavam vencedores. A quase totalidade daqueles ex-combatentes chegados ao Brasil após sofrerem as agruras do ‘front’ italiano, não concordava com o Estado Novo Getulista. Em que pese o Marechal Eurico Gaspar Dutra haver sido eleito, em janeiro de 1946, como resultado final das eleições de 1945/1946, constatou-se que o comando da política nacional e sua base eleitoral, como também a estrutura dos interesses políticos do PSD 5 e do PTB, respectivamente lideranças rurais e proletariado, continuavam firmemente nas mãos de Getulio Vargas. Com isto os interesses dos ex-combatentes, considerados verdadeiros heróis pela população, foram relegados e esquecidos pelo governo, só sendo retomados após a eleição de Juscelino Kubitschek. Finalmente, à memória deste desconhecido soldado de infantaria, que deixou para as futuras gerações o relato de suas vicissitudes em solo italiano, dedico todo o trabalho que tive ao compilar, transcrever e tornar público o presente livro. O Autor 6 ÍNDICE 08 1942 26 1943 37 1944 61 1945 105 1946 7 1942 8 Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ. Hoje faz vários meses que, pela primeira vez, adentrei o portão da guarda do quartel do Terceiro Regimento de Infantaria, de São Gonçalo, localizado, segundo nos disseram, em área de antiga fazenda pertencente a uma família inglesa. No ano de 1935 foi criado neste local o 14º Regimento de Infantaria, com sede na Chácara Paraíso, nome da fazenda naquela ocasião. Quatro anos depois, o 14º Regimento passou a denominar-se Terceiro Regimento de Infantaria, de São Gonçalo, em substituição ao Terceiro Regimento de Infantaria, da Praia Vermelha, que havia sido extinto logo após pegar fogo, ao ser bombardeado durante a Intentona Comunista de 1935. O terreno é muito amplo e abrange até um pequeno morro ao fundo, chamado Morro do Cruzeiro, de cima do qual avistamos a Baia de Guanabara, o porto do Rio de Janeiro, a estação das barcas em Niterói e a fabrica de fósforos do Barreto, bairro próximo ao quartel. Possui diversas árvores frutíferas, destacando-se as mangueiras e as goiabeiras. Durante o dia nossas atividades são acompanhadas por milhares de pios e cantos de centenas de pássaros que habitam e circulam por aquelas árvores. Certo dia, enquanto eu trocava de roupa no alojamento preparando-me para a atividade de educação física, notei um pássaro amarelo que me pareceu um Bem-te-vi, pousando na janela do alojamento e ficando, por alguns minutos, olhando-me fixamente. Com a chegada de outros companheiros alçou vôo para uma das mangueiras próximas, de onde ficou cantando até eu perdê-lo de vista. Pequenos macacos e micos também são freqüentes nos galhos das árvores. 9 Entrando pelo terreno do quartel vê-se, logo em frente, uma alameda de palmeiras que conduz ao prédio principal, antiga sede da fazenda. À esquerda, e ao fundo deste, encontram-se alojamentos que dão frente para o campo de futebol. À direita existem novos alojamentos e um pátio para exercícios e formaturas. A comida do rancho é de muito boa qualidade e servida com fartura. Após seis meses de exercícios diários e de boa alimentação, já somos verdadeiros soldados atletas. Praticamos várias modalidades de esporte; entretanto, a mais concorrida é o futebol, praticamente jogado por todos. Por vezes subimos correndo o Morro do Castro, localizado quase em frente ao quartel, onde existem duas enormes pedras que, por formarem interessante figura, são alvo de piadas e gozações dos soldados. Aqui dizem que em caso de tentativa de tomada do quartel por forças externas, temos de tomar rapidamente o Morro do Castro, que domina o mesmo. Esta é a razão do treinamento de subi-lo correndo, como fazemos. Já fiz diversos amigos e, a julgar por nossas afinidades, creio que todos seriamos capazes de dar a própria vida em defesa da dos demais, tão forte é a amizade que nos une. Muitos companheiros, sabendo que moro no próprio quartel, convidam-me para visitar suas casas nos fins de semana. Alguns, inclusive, sabendo que curso a Faculdade de Direito, já deixaram claro que têm irmãs solteiras que querem me apresentar. Pelo que sei a guerra que convulsiona a Europa, aos poucos, chegará ao Brasil. Em maio um navio chamado Parnaíba foi atacado por submarinos alemães nas proximidades da Ilha de trindade. Com este já são seis os navios brasileiros atacados. Alguns oficiais falam que nosso país talvez venha a participar do conflito enviando tropas para a Europa. 10 Na Faculdade de Direito meu desempenho tem sido razoável, considerando o pouco tempo que disponho para os estudos. Felizmente a presença não é obrigatória, pois embora o Cel. Mazza, comandante do quartel, tenha me dispensado de várias atividades, não é sempre que consigo assistir às aulas. Meus professores são muito bons, todos catedráticos e com vasta cultura jurídica. Em que pesem todas as dificuldades, tenho conseguido me sair bem nas provas escritas e orais. Para tal, agradeço muito a ajuda de um amigo que fiz, creio que professor assistente, formado há dois anos atrás na própria faculdade, chamado Ranieri Mazzilli e que conhecendo minha condição de soldado tem procurado me ajudar, fornecendo material para leitura e orientando sobre os assuntos importantes a estudar. A faculdade foi fundada, em 03 de junho de 1912, sob o nome de Faculdade de Direito Teixeira de Freitas, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1915, fundiu-se com a Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro e, em 25 de março do mesmo ano, passou a funcionar em Niterói com o nome de Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro. No ano de 1921, passou a denominar-se Faculdade de Direito de Niterói, com sede na Rua Visconde do Rio Branco 15, no centro de Niterói. Seu fundador foi o professor Doutor Joaquim Abílio Borges, escolhido para ser seu primeiro diretor. A faculdade já conta, pois, com trinta anos de funcionamento. O município de São Gonçalo, onde está situado o quartel, foi fundado, em 06 de abril de 1579, por Gonçalo Gonçalves e o Distrito de São Gonçalo foi emancipado de Niterói em 1890. Esta emancipação, posteriormente, foi revogada e somente em 1923 o município foi finalmente emancipado definitivamente. 11 No local exato da sua fundação encontra-se a Igreja de São Gonçalo do Amarante, santo da devoção do fundador. Ao tempo da sua colonização, era habitado pelos índios Tamoios. A Capela de São João, o Porto do Gradim e a Fazenda da Luz, em Itaóca, são os principais marcos do passado colonial de São Gonçalo. Até a Revolta da Armada constituía uma freguesia de Niterói, porém, quando da eclosão da revolta (1893), a capital (que era Niterói) tendo sido transferida para Petrópolis, permitiu a fragmentação de algumas freguesias próximas, passando a constituir o município de São Gonçalo. Pelo que percebo o município passa por um período de grande desenvolvimento. Muitas novas empresas planejam instalar-se aqui e o clima é de grande expansão das atividades empresariais. Em abril os jornais noticiaram a detenção de diversos cidadãos de nacionalidade alemã, acusados de espionagem. Foram enviados a um campo de concentração na Ilha das Flores, próxima do litoral de São Gonçalo. Em meados de agosto o rádio noticiou que o governo havia transmitido uma declaração de guerra aos governos da Alemanha e da Itália. Ao final do mês foi declarado o estado de guerra em todo o país. Em setembro foi decretada a mobilização geral. Pelo rádio tem tocado, muito, um samba do carnaval deste ano chamado ‘Ai que saudades de Amélia’, de autoria de Mario Lago e Ataulfo Alves. Também toca bastante ‘Aos pés da cruz’, ‘Emilia’ e ‘Praça Onze’, este último de Herivelto Martins e Grande Otelo. Soubemos, pela imprensa, de um ataque aéreo britânico à cidade alemã de Dusseldorf, bem como da invasão da França, pela Alemanha. 12 Carta escrita no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ. “Pai, já faz quase seis meses que fui incorporado como recruta no Terceiro Regimento de Infantaria, em Venda da Cruz, São Gonçalo. Entretanto, somente agora encontro tempo para lhe contar alguma coisa sobre minha nova situação como soldado e como militar. Como você já sabe, pelo fato de estar matriculado na Faculdade de Direito de Niterói, fiz minha inscrição para o serviço militar também em Niterói, de modo a poder conciliar as duas atividades. A vida de recruta nestes primeiros meses é muito dura, pois são tantas as atividades e tantas as coisas que temos de aprender que, durante o dia, não conseguimos pensar em outra coisa a não ser naquilo que fazemos no momento. À noite, entretanto, lembrome sempre com saudades de você e da mamãe e me transporto, em pensamento, para nossa casa. Vejo-me chegando de mansinho e abrindo a porta da frente. Você e mamãe estão sentados à mesa do jantar e dividem o que têm para a ceia daquele dia. Ela olha na minha direção, porém, não me vê chegando. Noto que seus olhos estão úmidos e que se esforça para não chorar. Vou até meu quarto e encontro-o igual como estava no dia em que parti. Parece que nada mudou em nossa casa desde aquele dia. Tento permanecer ainda um pouco mais junto de vocês, porém, o sono chega inexorável e sou conduzido às profundezas do inconsciente. Quando acordo de manhã tenho a sensação de que os abandonei e sinto-me muito mal. Desejaria permanecer para sempre ao lado de vocês, mas o destino me conduziu à carreira de advogado, e somente consegui matricula nesta faculdade em Niterói. 13 Conforme já lhe havia dito, seria impraticável estudar em Niterói e residir em subúrbio distante no Rio de Janeiro. A travessia de barcas e a utilização de dois ônibus, sairia muito caro, além de tomar muito tempo. Por outro lado, a necessidade de prestar o serviço militar obrigatório, também dificultaria meu curso em qualquer faculdade que exigisse a presença diária. Na faculdade de Niterói não há a necessidade da presença todos os dias, sendo apenas necessário efetuar as provas escritas e orais. A razão desta carta é para tranqüilizá-los com respeito a minha atual situação Estou bem e já fiz alguns bons amigos. Nosso comandante, o coronel Adriano Saldanha Mazza, ao saber que eu havia passado nos exames para a Faculdade de Direito de Niterói, prometeu dispensar-me de algumas atividades para que eu tenha mais tempo livre para estudar. O Terceiro Regimento de Infantaria, de São Gonçalo, substituiu o Terceiro Regimento de Infantaria da Praia Vermelha, cuja história recente foi palco de sangrentos acontecimentos. Folheando documentos da época, que encontrei aqui no quartel, fiquei sabendo que, na madrugada do dia 27 de novembro de 1935, o Terceiro Regimento rebelou-se, estando os rebelados a serviço da implantação de um regime comunista no Brasil. Os rebeldes do regimento eram chefiados por três capitães que conseguiram, após violentos combates no interior do quartel, dominar quase totalmente a unidade. Na manhã do dia 27 restava apenas um núcleo de resistência legalista, situado no pavilhão do comando onde se encontrava o coronel comandante do regimento. A reação dos legalistas impediu que os rebelados deixassem o quartel para outras missões, pré-determinadas pelo plano da insurreição, que incluíam o assalto ao palácio presidencial do Catete. 14 Nas últimas horas da madrugada, acionados diretamente pelo comandante da Primeira Região Militar, general Eurico Gaspar Dutra, o Batalhão de Guardas e o Primeiro Grupo de Obuses, tomaram posição nas proximidades do quartel rebelado e iniciaram o bombardeio. Durante toda a manhã do dia 27, desenvolveram-se intensos combates. O prédio do Terceiro Regimento transformou-se em uma verdadeira fortaleza, guarnecida pelas metralhadoras dos rebeldes que ocuparam, ainda, as elevações vizinhas. Explosões de granadas de artilharia reduziram o edifício a escombros e o quartel começou a pegar fogo. A infantaria legalista, então, avançou em direção ao prédio em chamas. As 13:30 horas os amotinados apresentaram sua rendição e deixaram o edifício destruído pelos bombardeios. O edifício, em escombros, foi abandonado e, pouco tempo depois, o Terceiro Regimento da Praia Vermelha, considerado como traidor do Exército e da pátria, foi extinto. Anos após este episódio foi recriado em Venda da Cruz, São Gonçalo, do outro lado da Baia de Guanabara, em local distante, talvez com receio das autoridades de que no futuro pudesse, novamente, rebelar-se. Os militares que participaram da Intentona Comunista foram expulsos das Forças Armadas e julgados e condenados a penas diversas, conforme a gravidade de suas ações. Pai, iniciei a elaboração de um diário sobre este novo período da minha vida, na faculdade em Niterói e no quartel em São Gonçalo, para que, mais tarde, após ter sido um advogado famoso, caso o destino não permita vir a conhecer meus netos, eles possam saber alguma coisa sobre a vida de seu avô, sobre as cidades que conheci quando jovem e sobre as experiências pelas quais passei. 15 Muitos avós não têm a felicidade de poder conhecer seus netos. Entretanto, se deixarem por escrito algum relato sobre suas existências, estes poderão, no futuro quando já estiverem maiores, conhecê-los com mais intimidade e em maior profundidade. Bem, fico por aqui e logo que o tempo permita tornarei, novamente, a escrever-lhes. Um beijo para a mamãe e um forte abraço do filho que os ama”. 16 Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz.São Gonçalo.RJ. Estive baixado por quase uma semana no posto médico do quartel, com muita febre e vômitos. Os médicos não chegaram a um acordo sobre o que tive, e o fato é que melhorei sem a ajuda deles. Neste período perdi duas importantes provas na faculdade, às quais tive de fazer em segunda chamada. Os professores, embora competentes e profundos conhecedores das matérias que lecionam; talvez mesmo por isso, não estão interessados em averiguar o que não sabemos, mas, sim, aquilo de sabemos. As provas, portanto, são muito objetivas e versam apenas sobre a matéria dada. O final das atividades deste ano no quartel foi coroado com uma marcha de, aproximadamente, trinta quilômetros e um acampamento onde aprendemos alguns rudimentos de infantaria: exercícios de mobilidade, armar barracas, cavar trincheiras, fazer patrulhas, atirar com os fuzis Mosin-Nagant e Mauser 08 e com as metralhadoras Madsen e HotchKiss. Na faculdade fui aprovado em todas as matérias, passando, assim, para o segundo ano. Alojado no quartel aproveito para, nos fins de semana, conhecer os pontos turísticos de Niterói; já que São Gonçalo quase não os tem. A história de Niterói remonta ao final da guerra entre portugueses e franceses na capitânia do Rio de Janeiro, quando Estácio de Sá, objetivando evitar que o cacique Ararigbóia (cobra da tempestade ou cobra feroz), que o havia ajudado contra os franceses, retornasse para a capitania do Espírito Santo. 17 Estácio de Sá, então, ofereceu-lhe qualquer uma das regiões da Guanabara. Ararigbóia teria, então, escolhido a região das águas escondidas (Niterói, em TupiGuarani). O cacique trouxe, a seguir, sua tribo para a Vila de São Lourenço dos Índios. No ano de 1819, esta passou a chamar-se Vila Real da Praia Grande. Em 1834 passou a ser a capital da província do Rio de Janeiro e, em 1835, passou a denominarse Nictheróy. Diversas capelas erguidas na chamada Aldeia de São Lourenço dos Índios, deram origem a diversos bairros de Niterói: São Francisco Xavier (Saco de São Francisco), São Domingos (bairro do mesmo nome), São João de Icaraí (Icaraí), Nossa Senhora da Boa Viagem (Boa Viagem), São Sebastião de Itaipu (Itaipu), São Pedro do Maruí (Maruí, no Barreto) e Nossa Senhora da Conceição (Centro). No episódio da Revolta da Armada (1893/1894), contra a presidência do Marechal Floriano Peixoto, perdeu a condição de capital para a cidade de Petrópolis. Terminada a Revolta, no ano de 1903 voltou a ser a capital. Na gestão do prefeito João Ferraz (1906/1910) foram feitas diversas construções e embelezamentos, que modificaram muito a paisagem urbana da cidade, como, por exemplo, a pavimentação da Alameda São Boaventura e da Avenida da Praia de Icaraí, a construção do jardim do Gragoatá, a construção da sede da prefeitura (Palácio Ararigbóia) e a urbanização do Campo de São Bento. A obra de desmonte do Morro do Campo Sujo ou Morro Dr. Celestino (área de esgotamento sanitário da cidade) possibilitou o surgimento de um centro político no Município de Niterói, representado pela Praça da República e pela construção dos edifícios da Câmara Municipal, do Palácio da Justiça, da Biblioteca Pública e da Escola Normal (Liceu Nilo Peçanha) 18 Quando de folga no quartel, costumo ir a Niterói, onde tomo banho de mar em frente ao trampolim da praia de Icaraí, praia esta cujas areias são finas e quase brancas, de tão limpas. Inúmeras conchas, estrelas do mar e siris habitam aquelas areias. A água é transparente e podemos avistar cardumes de peixes pequenos que nadam entre os banhistas. Muitos jovens costumam saltar do primeiro estágio do trampolim, mas o segundo estágio é destinado apenas àqueles mais corajosos. Icaraí é um local muito agradável. Casas e palacetes dão frente para a praia, onde pescadores recolhem suas redes abarrotadas de peixes. Os moradores adquirem os peixes quase de graça, diretamente dos pescadores, porém, os maiores vão para os restaurantes dos hotéis. Muitos costumam pescar com vara na beira do mar, aonde os peixes chegam, em busca de alimentos. Por várias vezes observei tartarugas caminhando pelas areias, procurando um bom lugar para depositar seus ovos. Na saída da praia costumo parar um pouco, sentado em uma mesa no bar da Praça Luzitânia, ao final da praia, para tomar uma cerveja. Nesta praça existe um monumento que consiste em uma esfera, sustentando uma cruz de malta e uma placa de bronze com os dizeres: ‘Monumento comemorativo da primeira travessia do Oceano Atlântico, de Portugal ao Brasil, pelos aviadores portugueses Capitão-de-Mar-eGuerra Sacadura Cabral e Almirante Gago Coutinho- 1922’. Às vezes assisto a uma partida de futebol no Estádio Caio Martins. No ano passado, havia sido inaugurado um monumento, no local, em homenagem ao jovem Caio Martins, dando, assim, nome ao estádio. Segundo noticia dos jornais, como escoteiro que era, havia falecido em desastre de trem na Serra da Mantiqueira, após ajudar a salvar vários passageiros feridos. Para perpetuar o heroísmo deste acontecimento, o governador resolveu dar seu nome ao estádio. 19 Como torço pelo Flamengo, assisti a duas partidas do meu time no Caio Martins. Uma foi em fevereiro, contra o Fluminense Atlético Clube, de Niterói, na qual o placar foi Fluminense 2 e Flamengo 1. O time do Flamengo era formado por: Martinho, Pedro, Barradas, Biguá, Jocelino, Médio, Lupércio, Jacir, Nahib, Vicente e Jarbas. O autor do gol foi Vicente. A outra partida foi em junho, contra o Canto do Rio. Nesta fomos vencedores por 5 a 2. Nosso time era composto por: Jurandir., Domingos, Norival, Biguá, Quirino, Jaime, Valido, Zizinho, Perilo, Nandinho e Vevé. Os gols foram de Zizinho, Vevé, Nandinho, Valido e Gerson (contra) Depois da partida de futebol costumo passear pelo Campo de São Bento, em Icaraí, admirando as árvores, os pássaros e os micos que correm pelos galhos, além das bandas de música que tocam no coreto. Certo dia, sentado em um destes bancos, em meio àquela paisagem deslumbrante, meu pensamento, como ondas, vagava entre as lembranças de minha juventude em casa com meus pais e os questionamentos sobre tudo aquilo que o destino me reservaria, como futuro advogado em Niterói. Em algumas ocasiões tomo o bonde em frente ao quartel e vou até o Rodo de São Gonçalo. Lá, o bonde retorna e faz o trajeto de volta, passando de novo em frente ao quartel e indo até a estação das barcas, em Niterói. Em outras ocasiões vou andando do quartel até o Ponto Cem Réis, onde, então, tomo um bonde para Icaraí. Durante a caminhada passo em frente ao mercado de frutas do Barreto, que possuí um palco armado na frente, onde compro bananas que serão o meu almoço daquele dia. A Praça do Barreto possui um lago com um chafariz e duas estatuas de deusas gregas e é cercada por uma mureta baixa, onde as pessoas costumam sentar-se para descansar. 20 Ao lado da praça estão localizados o Bazar Coelho, o Foto Brasil, a Padaria Pão Quente, o Clube Cinco de Julho e a sede do Byron Futebol Clube, cujo campo fica ao lado da Fabrica Fluminense de Tecidos. Às vezes paro no Armazém Brasil, do seu Miranda, que chamo carinhosamente de Dodoca, onde compro um pouco de queijo e de goiabada. O armazém fica na Rua General Castrioto 511 e, quando de folga, gosto de ir até lá conversar com seu Miranda. Ele é maçom e uma vez me convidou para ingressar na maçonaria. Aos domingos assisto missa na Igreja de São Lourenço da Várzea (onde está colocada a imagem de São Lourenço, vinda de Portugal em 1897), ou na igreja de São Lourenço dos Índios (com sua arquitetura jesuítica do século XVII, o retábulo-mor que é um precioso exemplar da arte barroca do fim do século XVI, bem como outras peças históricas em bom estado de conservação) e, logo a seguir, tomo o bonde no qual passo a manhã toda circulando. Vou ao Largo do Marrão, ao Largo do Quartel, ao Viradouro, a Santa Rosa, ao Canto do Rio e ao Cubango. Algumas vezes salto em Icaraí e vou ao Cinema Icaraí, inaugurado há dois anos. Freqüento também, nos fins de semana, o Cine Central ou o Cine Odeon, situados ambos na Rua Visconde do Rio Branco, próximo das barcas, no centro de Niterói. O Cine Mandaro, no Largo do Marrão, em Santa Rosa, passa ótimos filmes de ‘cow boy’. Quando não tenho tempo, nem vontade de ir à Niterói, freqüento os cinemas Palace, no Largo do Barradas e o Cine Brasil, no Barreto. Aos sábados, eu e alguns amigos costumamos pescar no rio Bomba, que corta o bairro de Venda da Cruz, onde está localizado o quartel do Terceiro Regimento. Um dia, passeando de bonde, sentei-me próximo a uma jovem lindíssima que viajava sozinha. A certa altura, não me contendo mais, perguntei-lhe qual o seu destino. Ela, com um sorriso maravilhoso, respondeu que saltaria em São Domingos. Ràpidamente 21 respondi-lhe, inventando uma estória, que este também era o meu destino, pois, sendo militar deveria ir ao Forte do Gragoatá, localizado próximo, entregar uma mensagem urgente e secreta. Acompanhei-a até seu destino e, a partir daí, passamos a nos encontrar aos fins de semana. Letícia é maravilhosa. Filha única, seus pais faleceram em um acidente com a barca da Companhia Cantareira, na travessia entre o Rio e Niterói, há muitos anos atrás. Parece que uma barca, a primeira a ter luz elétrica, apresentou um curto circuito durante a travessia, pegou fogo e afundou, matando várias crianças e os pais de Letícia. Desde aquela ocasião reside em São Domingos, com a avó viúva. Estuda no Rio de Janeiro para ser professora e pensa em trabalhar, depois de formada, na capital, Niterói, ou no interior do Estado. Em 01 de dezembro, fui com Letícia e a avó ao Rio de Janeiro assistir a um filme. Eu preferia assistir ‘Aconteceu em Havana’, com Carmem Miranda e Cezar Romero, no Cine Rian, em Copacabana, ou ‘O mistério do quarto secreto’, no Cine Odeon. Sua avó queria ver ‘Canção do Hawai’, com Betty Grable, no Cine Rex; porém, acabamos por fazer a vontade de Letícia, indo assistir ‘Lua de mel, lua de fel’, com Robert Montgomery, no Cine Metro Passeio. Acabou que todos nós gostamos muito da comédia. Não sei se Letícia quis mandar algum recado, dissimulado, para mim, através do filme. No Teatro Serrador levava a peça ‘Bicho do Mato’. No Teatro Rival estava em cartaz a comédia ‘Galinha Verde’. No Teatro João Caetano encenava-se a peça ‘2ª Frente’ e no Teatro Carlos Gomes a ‘Comédia da Vida’. A ida ao teatro, para nós, que vivemos do outro lado da baía é quase impraticável. Os espetáculos, em geral, começam as 20:00 horas e é muito complicado, para quem 22 mora em Niterói, ir ao Rio de Janeiro, a partir do anoitecer, utilizando as barcas que fazem a travessia da Baia de Guanabara. Na véspera do natal ouvi, pelo rádio, que o Presidente da República criou uma Força Expedicionária, cuja missão seria a de participar do atual conflito que está se estendendo pelo mundo todo. 23 Carta escrita no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ. “Pai, estou definitivamente apaixonado. Conheci a mulher mais linda do mundo. Estamos namorando e em breve lhe enviarei uma foto dela, tão logo a tenha. Estou certo de que mamãe ficará feliz quando a conhecer. Não sei como foi entre você e a mamãe, mas, eu, não consigo mais viver sem ela. Pretendemos nos casar na Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, no bairro de Santa Rosa, logo que eu me formar na faculdade. Ela também está para se formar como professora e ficaremos residindo em Niterói, ou iremos para o interior dependendo das oportunidades. Emprego para advogado e para professora é o que não falta neste país. O nosso casamento será bem simples, apenas você, mamãe, a avó de Letícia e alguns amigos da faculdade e do quartel, além de algumas colegas de Letícia, do Instituto de Educação. Após o casamento, faremos uma recepção na casa da avó dela, em São Domingos. No início pretendemos ficar morando com sua avó, até que possamos alugar um imóvel em algum outro lugar. Não pretendo ficar muito tempo incomodando a avó dela, pois acho que facilmente conseguirei minhas causas e, em breve, já estarei em condições de manter a mim e a Letícia sozinho. Quando a nossa situação melhorar, traremos vocês dois para viverem conosco. Se ambos trabalharmos o dia inteiro, precisaremos de vocês para ficar tomando conta dos netos, que certamente serão muitos. Não poderei passar o natal e o ano novo em casa como gostaria, porém, estarei pensando em vocês com muito carinho. Tenho me saído muito bem na faculdade e já estou praticamente no segundo ano. 24 Aqui pelo quartel dizem que o Brasil enviará uma tropa para lutar na Europa. Antes de conhecer Letícia não me importaria em ir, mas, agora, não sei. Desejo me formar o mais breve possível para podermos nos casar e iniciar logo a minha vida profissional. Aceitem um forte abraço do filho que os ama”. 25 1943 26 Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo.RJ. No quartel agora já somos veteranos engajados. Uma nova turma de conscritos iniciou o ano de instrução e a nossa turma, agora mais antiga, ficou encarregada dos serviços de guarda do quartel. As aulas começaram na faculdade, e o segundo ano parece ser muito mais difícil que o primeiro. Espero que o Cel. Mazza mantenha, durante este ano, o apoio que me deu no ano anterior. Finalmente Letícia me convidou para conhecer sua avó, no sábado. Ao sair do quartel passei no mercado do Barreto, onde comprei dois buquês de flores, um com rosas vermelhas e o outro com rosas amarelas. Tomei o bonde para as barcas, ali mesmo, em frente ao mercado. Das barcas fui andando até São Domingos. Durante o caminho pensava em como a vida havia sido generosa para comigo. Uma carreira promissora, uma bela namorada que me amava e pais maravilhosos, que também me amavam. Perdido nestes pensamentos, quando dei por mim já estava em frente à casa dela. Após haver tocado a campainha, Letícia veio ao portão, acompanhada por uma senhora idosa com os cabelos bem brancos. Cumprimentei-a e entreguei-lhe o buquê de rosas amarelas, entregando para Letícia o de rosas vermelhas. Vi que as duas gostaram muito do presente, pelos olhares que trocaram. Entrando na casa, a mesa já estava posta. A decoração do interior, embora simples, era de muito bom gosto. A avó havia sido professora em sua juventude e fora ela que influenciara Letícia a seguir a mesma carreira. 27 Após o almoço, totalmente diferente daquele a que eu estava acostumado no quartel, pedimos licença a sua avó e fomos passear pelas ruas do bairro. Seguimos conversando até a Praia da Boa Viagem, onde paramos para contemplar a velha igreja, no alto da ilha do mesmo nome. Naquela ilha existem dois monumentos coloniais. Um é a igreja de Nossa Senhora da boa Viagem. Abaixo da igreja, e oculta pela vegetação, acham-se as ruínas de uma antiga fortificação que, no final do século XVII, foi erguida com o nome de Forte da Barra e, tempos depois, passou a denominar-se Forte da boa Viagem. O forte ofereceu tenaz resistência às tentativas de invasão do Rio de janeiro, pelas esquadras de corsários que assediaram a cidade. Daquele local continuamos andando até chegar ao Forte do Gragoatá, onde, identificando-me no portão da guarda, entramos para uma visita. Ficamos um bom tempo de mãos dadas admirando a entrada da Baia da Guanabara, o porto do Rio de Janeiro, a estação de hidroaviões próxima da estação das barcas e as barcas da Cantareira que, com suas grandes rodas formadas de pás de madeira girando na parte de trás da embarcação, seguiam lentamente seu rumo, ora para Niterói, ora para o Rio. Admiramos também os velhos canhões do Forte, apontados para o fundo da baia e para o porto. O forte está localizado na antiga praia de São Domingos, assim denominada devido à capela de São Domingos, erguida em 1652. O nome de Gragoatá vem da palavra gravatá, vegetação predominante no local, porém seu primeiro nome foi Forte de São Domingos. Dizem que sua primitiva fortificação data de 1610, sendo o segundo forte mais antigo de Niterói. 28 Segundo dizem, cruzava fogos com a Bateria da Boa Viagem e com a Bateria da Ilha de Vilegaignom. Parece que, junto com a Bateria da Boa Viagem, fez fogo sobre a esquadra do corsário francês René Duguay-Trouin, em setembro de 1711. No Portão da Guarda, logo na entrada do forte, existe uma inscrição informando, em latim: “Sendo Pedro II Imperador Constitucional do Brasil, foi acabada esta fortificação, no quadragésimo ano da independência da pátria-1863”. Durante a Revolta da Armada (1893-1894), o forte foi ocupado por um batalhão de estudantes da antiga Escola Politécnica e das escolas militares, sob o comando de um tenente que manteve a defesa do governo de Floriano Peixoto. Na madrugada de 9 de fevereiro de 1894, os revoltosos da marinha desembarcaram na ponta da Armação, em Niterói, tentando tomar de assalto ao Forte de Gragoatá, onde o Batalhão de Estudantes, apoiado pela Fortaleza de Villegaignom e pela Fortaleza da Ilha das Cobras, resistia ao fogo do Encouraçado Aquidabã e do Cruzador República. Uma granada vinda de um dos navios matou, naquela ocasião, vários estudantes, sem que o forte, embora bastante destruído pelo fogo dos revoltosos, se rendesse. Ao cair da tarde retornamos, passando em frente à oficina das barcas da Cantareira, localizada em frente a Praça de São Domingos, e seguimos para a casa de Letícia. No portão, antes de me despedir, trocamos alguns beijos abraçados. Confesso que não tinha a menor vontade de voltar para o quartel. Na faculdade as matérias estão cada vez mais difíceis, porém, pude contar com amigos que me ajudavam, emprestando livros, resumo das matérias e, mesmo, fornecendo indicações sobre os assuntos que deveriam cair nas provas, ouvido dos próprios professores nas conversas pelos corredores da faculdade. 29 Os jornais noticiaram outros cinco afundamentos de navios brasileiros. Ao todo já são cerca de vinte embarcações afundadas, tanto nas costas brasileiras quanto em outros locais. Os nomes de alguns são: Baependy, Itagiba, Araraquara, Arará, Anníbal Benévolo, Buarque, Olinda, Cabedelo, Arabutã, Cairú, Comandante Lira, Gonçalves Dias, Alegrete, Paracuri, Pedrinhas, Tamandaré, Barbacena e Jacira. Pelas ruas de Niterói e de São Gonçalo ocorreram várias manifestações populares contra a campanha submarina alemã nas águas territoriais brasileiras. Soubemos também pela imprensa que os aliados desembarcaram na Sicília e que bombardearam Roma, além de a Itália haver declarado guerra à Alemanha. No quartel já se fala em organizar listas de voluntários para compor a Força Expedicionária. Muitos são os que se apresentaram. Embora deseje ir com meus companheiros, o pensamento em meus pais e em Letícia retira qualquer iniciativa de me apresentar como voluntário. Esta semana faleceu um sargento da minha companhia em decorrência de uma queda, ao saltar andando do bonde em frente ao quartel. Quem viu o acidente disse que ele tropeçou e bateu fortemente com a cabeça no chão. Ficou um dia na enfermaria do quartel e morreu na manhã do dia seguinte. Seu enterro foi no cemitério do Maruí Grande, na Rua General Castrioto 409, no Largo do Barradas, próximo do quartel. Por fim, chegou o dia das provas finais na faculdade. Com a ajuda dos colegas consegui um resultado satisfatório e passei para o terceiro ano. Cada vez mais sonho com o meu futuro de advogado criminalista, defendendo meus clientes no Fórum de Niterói ou no de São Gonçalo. Com a baixa do exército ao final deste ano, espero, no futuro, poder me dedicar com mais afinco aos estudos. 30 Em um domingo de sol fui com alguns colegas do quartel, visitar a Fortaleza de Santa Cruz, localizada em um bairro chamado Jurujuba. Fomos de bonde até São Francisco e, de lá, seguimos a pé até a fortaleza, passando por Charitas e pelas praias de Adão e Eva, até o início da estrada ligando Jurujuba à fortaleza, que ficou pronta este ano. Até então o único acesso a fortaleza era por mar. Segundo fiquei sabendo, em 1555, os franceses montaram duas bocas de canhão naquele local, para controlar a entrada da Baia da Guanabara. Ocupado o terreno em 1584 pelos portugueses, estes ergueram ali uma bateria de canhões, denominada Nossa Senhora da Guia. Em 1599 a bateria repeliu o ataque da esquadra do almirante Oliver Van Noort. Após a expulsão total dos franceses pelos portugueses, estes ergueram no local a Capela de Santa Bárbara e, em 1612, já contando com 20 peças de artilharia, o local passou a ser denominado Fortaleza de Santa Cruz da Barra. Sua guarnição, naquela ocasião, consistia em um capitão, um alferes, vinte soldados e um bombardeiro. Em 06 de agosto de 1710, repeliu a esquadra de cinco navios e mil homens do corsário francês Jean François Duclerc, logo a seguir aprisionado e morto no Rio de Janeiro. Em setembro de 1711, quando da invasão de 18 navios e 5764 homens da esquadra do corsário francês René Duguay-Trouin, que viera vingar a morte de Duclerc, o governador Francisco de Castro Morais desguarneceu a fortaleza, traiçoeiramente, permitindo que a esquadra entrasse na baia e tomasse a cidade do Rio de Janeiro. A Fortaleza foi tomada e ficou em poder dos invasores até novembro de 1711, quando, após haverem cobrado um resgate pago pelos cofres públicos e pelos moradores da cidade, retiraram-se do Rio de Janeiro. 31 Em 1870, foram construídas as três baterias denominadas ‘25 de Março’, no piso inferior, ‘2 de Dezembro’, no piso intermediário e ‘Santa Tereza’, no piso superior. No ano de 1885 possuía 145 peças de grosso calibre e era guarnecida por um batalhão de artilharia a pé, servindo, também, para fazer o registro dos navios que entravam na Baia da Guanabara. Durante a Revolta da Armada a fortaleza disparou contra navios revoltosos e também contra a Fortaleza de Villegaignom, que havia aderido à revolta. Foi, porém, tomada de assalto por uma companhia de fuzileiros navais dos revoltosos. No ano de 1910, passou a ser guarnecida pelo Primeiro Grupo de Artilharia de Posição, sucedido em agosto de 1917, pelo Primeiro Grupo de Artilharia de Costa, ao final da primeira Guerra Mundial. No ano de 1922 abriu fogo contra o Forte de Copacabana, durante a Revolta dos Tenentes. Em 1924 disparou 33 tiros de canhão contra o cruzador São Paulo (amotinado sob a liderança do tenente da marinha Cascardo) que, com o fogo de seus canhões, forçou a saída da barra da Baia da Guanabara rumo a Montevidéo, onde os rebeldes solicitaram e obtiveram asilo político. Os locais mais importantes que visitamos na fortaleza, foram: a capela de Santa Bárbara, as baterias de artilharia, o farol, o mastro da bandeira (uma peça única de Pau Brasil, entalhada com degraus), o relógio de sol (em pedra e com algarismos romanos), a cisterna, o salão de pedras (paiol), os pátios e galerias em cantaria de granito, o local dos enforcamentos (no pátio da cisterna), o paredão de fuzilamentos (na galeria 25 de março), as celas dos calabouços, as masmorras (em três alturas diferentes, de modo a que os prisioneiros nunca pudessem ficar de pé) localizadas em frente ao local das forcas (para que os condenados vissem a morte daqueles que os antecederam) 32 e a cova da onça (local de torturas, onde os prisioneiros ficavam presos junto ao teto, pelos braços, aguardando sua vez e vendo aqueles que os antecediam serem torturados). Em uma das paredes da capela de Santa Bárbara existe um túmulo, embutido, que a lenda afirma pertencer a jovem Iracema, filha do capitão Potyguara, comandante da fortaleza. Apaixonada por um cabo que ali servia, e não podendo casar-se com ele por imposição de seu pai, teria se atirado ao mar, do alto do paredão da fortaleza, em dezembro de 1906. Outro túmulo, também embutido na parede da capela, é atribuído como pertencente a um dos dois oficiais (malquistos pela guarnição por espancarem seus soldados), que foram mortos pelos seus subordinados no pátio da fortaleza. O episódio teria ocorrido em 07 de novembro de 1905, quando os dois oficiais (tenente Pedro Fernandes Torres e major Diogo Freire), acusados de maus tratos à tropa, foram assassinados. A guarnição revoltosa prendeu, ainda, todos os demais oficiais. A Fortaleza de São João, naquela ocasião, abriu fogo contra Santa Cruz, sendo também organizada uma tropa para marchar contra a mesma. Assediada pela tropa que chegava, os revoltosos se renderam. Não ficamos sabendo a qual dos dois oficiais pertencia o corpo enterrado na capela. Anteriormente a este episódio, a fortaleza já se havia rebelado outra vez. Em janeiro de 1892, sob a liderança de um sargento chamado Silvino, foram aprisionados todos os oficiais e libertados os prisioneiros. O sargento tinha por objetivo a restituição do governo ao marechal Deodoro da Fonseca. O movimento sedicioso foi debelado pelo coronel Moreira César (nome de ruas em Niterói e em São Gonçalo) que, tendo tomado de assalto o Forte do Pico, que domina a fortaleza, também este em poder dos 33 revoltosos, desceu sobre a mesma enquanto ela era bombardeada por navios, sob o comando do próprio Ministro da Marinha, Almirante Custodio José de Melo. Na fortaleza soubemos que ali já estiveram presos: André Artigas (1820), José Bonifácio de Andrada e Silva (1823), Onofre Pires e José de Almeida Corte Real (líderes farroupilhas que estiveram presos em 1836 e que se evadiram em 1837), Bento Gonçalves (1837), Pedro Ivo Veloso da Silveira (líder da Revolução Praieira), Fructuoso Rivera (primeiro presidente do Uruguai, que esteve preso em 1851), Euclides da Cunha (1888) e Juarez Távora, Alcides Teixeira e Estilac Leal (que dela fugiram em 1930, descendo por uma corda até o mar). O Forte do Pico que também visitamos, após uma íngreme caminhada até o topo do morro situado atrás da fortaleza, teve sua construção iniciada em 1715 e terminada em 1770. Em 1775, foi fundado o Forte de São Luis, nas proximidades do Forte do Pico, sob cujo portão está escrito: “Josepho I. Imperante Fidel.mo Portugaliae Rege, Provident.mo Príncipe, Arx Hoec, Divo Aloísio Socrata. Fundata est.1775”. Em 1891 os dois fortes foram ligados, passando a constituir um único conjunto. O forte protegia, além da entrada da barra, a Fortaleza de Santa cruz de possíveis ataques. Em 1918, na presidência de Wenceslau Brás, foi concluída a construção de outra fortificação, na parte mais elevada do morro, onde foram instalados obuses de 280 mm, importados da Alemanha. Terminado o passeio, ao final da tarde, retornamos exaustos para o quartel em Venda da Cruz. No rádio, ouço com freqüência a marcha carnavalesca ‘China Pau’, de João de Barro e Alberto Ribeiro; bem como ‘Laurindo’, samba de carnaval de Herivelto Martins; além de ‘Pra machucar meu coração’ e ‘Cinco horas da manhã’, sambas de Ary Barroso. 34 Carta escrita no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ. “Pai, o final do ano se aproxima e, com ele, a hora da minha baixa do exército. No ano que vem pretendo conseguir uma vaga na casa de dona Maria Júlia Braga, que hospeda estudantes carentes no bairro de São Domingos. Fica na Rua Professor Hernani de Melo, que é próxima da casa de Letícia. Assim, também, poderei vê-la com mais assiduidade. Na faculdade estou me saindo bem e já estou, agora, no terceiro ano. Já sou quase advogado. Algum dia quando já estiver advogando pretendo ir, com você e mamãe, ao fórum para que assistam a uma sessão do tribunal do júri, na qual eu esteja defendendo um cliente. Vocês poderão ver, então, seu filho aplicando todo o conhecimento, aprendido na faculdade com os professores, e todo o sentimento, aprendido em casa com vocês, na defesa de um ser humano. Aqui no quartel abriu um voluntariado para participar da Força Expedicionária Brasileira, porém, não me ofereci, pensando em vocês e em Letícia. Vários companheiros alistaram-se como voluntários e o clima é de euforia e de patriotismo. Os que não se alistaram passaram a ser vistos como medrosos, porém, afirmo-lhes que este não é o meu caso, como vocês devem saber muito bem. Envio um beijo para mamãe e aceite um forte abraço do filho que os ama”. 35 Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo.RJ. As baixas foram suspensas e todos os soldados engajados foram enviados para fazer exames médicos e físicos na Vila Militar. Estão selecionando os mais aptos, física e intelectualmente, para fazerem parte da Força Expedicionária Brasileira. Meu exame médico e físico foi excelente e, por ser universitário, fui escolhido para fazer parte da força combatente. Isto, sem dúvida, mudará bastante meus planos. Terei de trancar a matrícula na faculdade para retornar ao curso, somente, após minha volta ao Brasil. Também muda minha situação perante Letícia, pois a nossa pretensão de casar, no máximo em dois anos, terá de ser adiada. Seremos transferidos para a Vila Militar, onde iniciaremos treinamento de adaptação às normas, técnicas e armamentos norte-americanos, já que o modelo adotado pelo Brasil, até agora, era o francês. Em uma manhã chuvosa, junto com aqueles companheiros da minha companhia que haviam sido selecionados, tomamos um bonde em frente ao quartel e rumamos para a estação das barcas, no centro de Niterói. Lá, embarcamos em uma barca da Cantareira com destino a Praça XV de Novembro, de onde nos dirigimos, em outro bonde, até a estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, próxima do Ministério da Guerra. A seguir, embarcamos em um trem que nos deixou na Vila Militar, no subúrbio de Deodoro e dali nos dirigimos, marchando, para o Regimento Escola de Infantaria, onde ficamos alojados. O novo quartel é imenso e bem instalado. A Vila Militar possui inúmeros quartéis situados em uma área imensa. Uma grande avenida arborizada separa os vários quartéis e inicia-se na estação da estrada de ferro, de onde nos dirigimos para nosso quartel. 36 1944 37 Diário escrito no Regimento Escola de Infantaria, na Vila Militar. Deodoro.RJ. Segui para a Vila Militar junto com meus companheiros, para re-completar um Regimento de Infantaria integrante da Força Expedicionária Brasileira. Iniciamos, a partir daí, intenso treinamento sobre técnicas de patrulha, embarque e desembarque de navios através de escadas de corda, progressão no terreno, construção de abrigos e trincheiras, manuseio e emprego das armas de infantaria norteamericanas, rastejo sob fogo real, etc. Nossos exercícios são realizados no Campo de Gericinó e no Morro do Capistrano, na Vila Militar. A partir de determinada data, as saídas foram suspensas e passamos a fazer deslocamentos simulados, como se fossemos embarcar naquele dia. Diziam que aquilo era para enganar possíveis agentes alemães (denominados de Quinta Coluna), que poderiam informar aos submarinos inimigos a data de nossa partida por mar. Finalmente o grande dia, tão esperado, chegou e o nosso deslocamento, hoje, será verdadeiro. 38 Carta escrita no Regimento Escola de Infantaria, na Vila Militar. Deodoro.RJ. “Querida Letícia, há vários dias estamos incomunicáveis no quartel. Passamos os dias em treinamentos estafantes, preparando-nos para as eventualidades que encontraremos no ‘front’ europeu. Todos nós levamos muito a sério estes treinamentos, pois sabemos que deles poderá depender a nossa sobrevivência. Sinto muito a sua falta e, um dia desses, após o jantar, sentei-me em meu beliche e escrevi um verso para você. Lamento não ser um poeta como Machado de Assis para poder perpetuá-la em versos, como ele fez com a esposa Carolina. Entretanto, saiba que você estará para sempre em meu coração. Ao verso, dei o nome de A Flecha Mágica e pretendo mantê-lo sempre comigo, junto a sua foto, aonde quer que o destino me leve nesta campanha na Itália. Você o encontrará em uma folha anexa a esta carta. Ao lê-lo, lembre-se de que, embora flechado por Cupido, não sou um poeta e, portanto, não consigo expressar da forma mais adequada tudo aquilo que de belo imagino. Aceite um beijo carinhoso, e até breve”. 39 A FLEXA MÁGICA Ledo engano, caro amigo sonhador, Esperar achar abrigo em algum lugar do mundo, Tão logo Cupido lhe atire a flecha mágica do amor. Isto só fará aumentar ainda mais o seu desejo, Como aconteceu comigo, em um segundo, Impelindo-me, quase louco por um beijo, Aos pés daquela a quem me destinou o Criador. 40 Diário escrito em Tenuta di San Rossore, Itália. Viajei para a Itália no segundo escalão. Nossa saída deu-se em vinte e dois de setembro de 1944, a bordo do navio transporte americano General Mann. No cais do porto, esperando a partida dos navios, ouvíamos pelos alto-falantes a ‘Canção do Expedicionário’, marcha de Spartaco Rossi e Guilherme de Almeida. A seguir tocou ‘Atire a primeira pedra’, do carnaval deste ano. Neste dia conheci uma bebida nova que era distribuída, à vontade, aos nossos soldados. Chamava-se Coca Cola e tinha um gosto estranho. Quando o navio partiu, iniciaram-se os acordes de ‘Dos meus braços não sairás’, de Roberto Roberti. Logo que ouvi as primeiras notas daquela canção, não me contive e meus olhos ficaram marejados de lágrimas. Lembrei-me, na ocasião, de uma conversa que tivera com Letícia no ano anterior, em Niterói, quando ela demonstrou receio de que eu fosse para a guerra. Naquela oportunidade, recordava-me no convés do navio com lágrimas nos olhos, beijando-lhe amorosamente a face e apertando-a entre os braços, afirmara:- Não tenha medo que dos meus braços não sairás! O navio foi comboiado pelos cruzadores Rio Grande do Sul, do Brasil, e Memphis, dos Estados Unidos, além dos contratorpedeiros Trumpeter e Cannon, também americanos. Nosso escalão é comandado pelo General Oswaldo Cordeiro de Farias e compõe-se de 5.133 homens. O navio é muito limpo e bem organizado. Durante a viagem foram feitos vários exercícios de salvamento, de ataque de submarinos, de ataque aéreo, etc. 41 A comida é de boa qualidade e em abundância. Temos duas refeições ao dia e, estando bem alimentados, estamos todos animados com relação ao futuro. O banho, entretanto, é com água salgada, deixando no corpo uma sensação de sujeira. Folheando o Jornal do Brasil, a bordo, soube que o escalão da FEB que nos antecedera, enfrentando intenso fogo de artilharia inimiga, e sem perder um só combatente, tomou Camaiore, situada na zona dos Apeninos. Soube também, que o ministro da guerra, o general Gaspar Dutra, havia partido, na véspera, de avião, com destino à Europa em viagem de inspeção à FEB, operando no ‘front’ italiano. No Cine Pathé passava o filme ‘Por quem os sinos dobram’. No Cine República, o filme ‘Tarzan, o vingador’. No Teatro Ginástico a peça ‘Bodas de Sangue’, com Dulcina e Odilon. No João Caetano as peças ‘As lavadeiras’ e ‘Toca pro pau’, esta com Oscarito e Beatriz Costa. Embora tivesse partido há apenas poucas horas, já começava a sentir uma saudade imensa do meu país e das pessoas queridas que deixara para trás, fato este que me provocava um nó apertado na garganta. Meu animo começou a decair logo que desembarquei no Porto de Nápoles, a seis de outubro de 1944. O porto está todo destruído, navios emborcados ou afundados e apenas com as chaminés aparecendo à flor da água. Desembarcando, fomos cercados por uma multidão de habitantes locais, famintos. Desesperados pediam qualquer coisa que tivéssemos. Infelizmente, não dispúnhamos de nada para minorar o sofrimento daquelas pessoas, já que carregávamos conosco apenas o saco A. De Nápoles, nos dirigimos para o porto de Livorno, em embarcações de desembarque americanas denominadas LCI. 42 Eram aproximadamente cinqüenta embarcações, deslocando-se próximas uma das outras e com velocidade, em um mar bastante agitado. As ondas que venciam eram enormes e a grande maioria de nós começou a enjoar. Em breve o chão da embarcação e os uniformes estavam todos vomitados. Durante a travessia pensava em quantas vezes a Itália já havia sido assediada, tanto por povos mais desenvolvidos quanto por povos bárbaros. Em todas essas ocasiões soubera sair-se bem. Torcia para que suas obras de arquitetura e de arte pudessem ser preservadas da destruição, em prol das gerações seguintes; já que o poder de destruição dos exércitos atuais é, milhares de vezes, maior que o dos exércitos daquele passado distante. Em Livorno recebemos uniformes americanos, pois passamos a integrar o IV Corpo, do Quinto Exército dos Estados Unidos (este sob o comando do General Mark Clark) que, além da Divisão de Infantaria Expedicionária Brasileira, é constituído por: uma Divisão Blindada Norte-Americana, uma Divisão Sul-Africana e outra Divisão Inglesa; bem como da Décima Divisão de Montanha Norte-Americana. A nossa divisão é uma das 20 divisões aliadas presentes no ‘front’ italiano Comparando a qualidade do fardamento americano que recebemos, com a do nosso, sentimos que se esta guerra depender da qualidade dos uniformes já está ganha. De Livorno seguimos de caminhão para um acampamento em Tenuta di San Rossore, onde recebemos o armamento que utilizaríamos. Recebi um fuzil semi-automático Garand com capacidade de oito tiros, em calibre 30-06. Granadas e outros petrechos seriam recebidos na linha de frente, antes das missões. 43 Carta escrita em Tenuta di San Rossore. Itália. “Pai, finalmente, cheguei à Itália. O estado de devastação que vejo por toda parte e a miséria humana com que me defronto diariamente, são inimagináveis para quem vive aí no Brasil. As famílias se desagregam todos os dias. Mães são separadas de filhos e pais vendem as filhas para que a família sobreviva. Contingentes enormes de seres humanos mendigam pelas ruas, não medindo as conseqüências dos seus atos, no afã de obterem alimentos, agasalho e dinheiro. O frio também é impossível de ser imaginado no Brasil. Se não houvéssemos recebido uniformes e agasalhos norte-americanos, sem dúvida alguma, já teríamos morrido de frio, pois os nossos são de péssima qualidade e não protegem contra as temperaturas daqui. A cor dos nossos uniformes brasileiros é muito parecida com a dos alemães. Quando chegamos a Nápoles, muitos italianos pensavam que fôssemos prisioneiros alemães. Ainda não conhecemos ao inimigo que viemos enfrentar; porém, sem agasalhos adequados, apenas o frio já seria suficiente para nos dizimar, tal a intensidade com que tem nos assolado, acostumados que estamos com sol durante o ano todo. Ao embarcar para cá, mamãe não pode estar presente ao cais para nossas despedidas por se encontrar enferma, segundo você me relatou. Como está seu estado agora? Conte-me, também, o que você achou de Letícia? Não é a mulher mais bonita que já viu, depois de mamãe, é claro. Ainda não posso relatar nada sobre a guerra, em si, pois não participei de nenhum contato com o inimigo. Estou bem disposto e procurarei sempre me cuidar para poder voltar ao convívio de vocês e aos braços de Letícia. Sinto saudades de vocês e também 44 do sol que fazia ai, do calor, da comida, da calma, da conversa despreocupada, da ausência de maldade e da inocência das pessoas. Embora tenha acabado de chegar, sinto uma falta imensa de estar próximo de vocês. Não imagino quanto tempo irá durar esta guerra, mas torço para que não dure muito. Tenho grandes planos para o futuro, ao lado de vocês e de Letícia, e pretendo logo poder colocá-los em prática. Está guerra não pode demorar muito. Um beijo para mamãe e aceite um forte abraço do filho que sempre os amará”. 45 Diário escrito em Monte Castelo, Itália Segundo nos informaram a frente em que atuaremos tem uma extensão de cerca de dez quilômetros e localiza-se na região dos Montes Apeninos. A FEB está combatendo contra nove divisões alemãs e três divisões italianas. Nosso Quartel General estará situado em Porreta-Terme, localizada próximo da cidade de Pistoia e situada no vale de um pequeno rio chamado Reno. A área é cercada por montanhas sob controle alemão e tem um perímetro de aproximadamente quinze quilômetros. As posições alemãs são bastante privilegiadas, submetendo-nos a uma constante vigilância e dificultando qualquer movimentação da nossa parte. O rigoroso inverno, o frio intenso e as chuvas torrenciais, prejudicam bastante nossas tropas. As estradas esburacadas e a lama impedem o deslocamento de viaturas e da artilharia. As forças Alemãs que defendem Monte Castelo, segundo soubemos, totalizam aproximadamente 9.000 homens e constituem a força mais combativa de toda a frente Apenina. Ficamos sabendo, também, sobre o primeiro contato de nossas tropas com o inimigo, em meados de setembro, no vale do rio Serchio, ao norte da cidade de Lucca. As primeiras vitórias ocorreram, no mesmo mês, com a tomada de Massarosa, Camaiore e Monte Prano, onde se defrontaram com a Décima Sexta Divisão SS Alemã. Todavia, em outubro, na região de Barga, nossa Força Expedicionária sofreu seus primeiros reveses. O comandante do meu pelotão é um segundo-tenente, que morava na Tijuca antes de vir para a Itália. Ele também cursava direito ao sair do Brasil, porém, na Faculdade 46 Nacional, e gosta muito de conversar comigo, pois, considera-me um intelectual perdido no meio desta guerra. Um dia, à noite, sentados no que restava da varanda de uma residência abandonada em razão de haver sido destruída por um impacto de artilharia, conversávamos sobre aspectos e dificuldades da profissão de advogado. Perguntou-me se achava que o advogado deveria defender uma pessoa verdadeiramente culpada. Respondi-lhe que pensava não ser função do advogado fazer justiça, mas que esta função era, tão somente, da autoridade judicial. Aleguei que o individuo pode ser verdadeiramente culpado e ter suas razões, e que estas serão argüidas e defendidas pelo advogado, cabendo ao juiz analisar se são razões válidas ou não. Acrescentei que existem advogados que se gabam de nunca haver perdido uma causa e a explicação que encontro para o fato é que, simplesmente, defenderam apenas réus comprovadamente inocentes. Falamos também sobre a sociedade e sobre o paradoxo com que o advogado se defronta, em tempos de paz e em tempos de guerra. Matar alguém que não nos tenha feito nada, em tempos de paz, é crime qualificado que pode conter agravantes. Em tempos de guerra, pode ser ato de heroísmo digno de medalha e de reconhecimento por parte dos superiores e da sociedade. Roubar do inimigo, seja lá o que for, é também meritório. Grande parte das matanças, realizadas durante a guerra, são premeditadas pelos chefes militares, sem que a premeditação constitua agravante e sem que as matanças constituam crime. Durante estes períodos em que conversávamos, despreocupados, sobre valores morais da sociedade, parecíamos dois estudantes sentados em um bar próximo da faculdade, em Niterói, tomando cerveja e filosofando sobre a vida, sobre as coisas e sobre as instituições. 47 Como a vida poderia ser diferente, se os homens não almejassem o que pertence a outros homens, se a inveja e a ambição não dominassem o dia a dia daqueles que detém o poder no mundo. Milhões de seres humanos perderam suas vidas, ao longo da história, simplesmente a serviço de causas cujas origens, motivações e conseqüências desconheciam inteiramente. Como poderia ser diferente a história do nosso futuro, se todos nós fizéssemos parte de uma única nação, com apenas uma única língua, uma só moeda e um só governante. Todos trabalhando pelo progresso do planeta, convivendo em harmonia, sem disputas territoriais, raciais, religiosas, sociais, militares e financeiras. A única restrição que víamos, numa situação como esta é que, caso fosse possível a humanidade viver desta forma, a profissão de advogado talvez não fosse mais necessária. Em meados de novembro, nos deslocamos para Granaglione, aonde chegamos sob uma forte chuva. O terreno estava todo enlameado e os alemães nos mantiveram sob fogo de morteiros durante muito tempo. Daquele local, nos dirigimos para Guanella, que ficava em frente ao Monte Castelo, forte reduto alemão. Monte Castelo situa-se a aproximadamente 62 quilômetros à sudeste de Bolonha, a 977 metros de altitude. As temperaturas costumam ser extremamente baixas. Em uma manha com o céu claro e sem nuvens, pela primeira vez avistei uma aeronave alemã. Tratava-se de um Messerschmitt BF 109, segundo disseram na ocasião, que sobrevoou a área de grande altura, certamente tirando fotografias de nossas tropas. Ao ser perseguido por alguns P-47 do Grupo de Caça Brasileiro, afastouse a grande velocidade. 48 Na noite de 28 para 29 de novembro, nossa artilharia preparou o terreno para a invasão do monte, batendo as posições inimigas com seus obuses de 105 e de 155 mm. Nos dias 24 e 25 de novembro, um destacamento norte-americano (Task-Force 45), junto com um batalhão de infantaria e um esquadrão de reconhecimento, brasileiros, haviam infrutiferamente tentado tomar a posição alemã. No dia 25 tudo indicava que a operação teria êxito, já que alguns soldados norte-americanos conseguiram alcançar o cume de Monte Castelo, após conquistarem o Monte Belvedere, vizinho deste. Os alemães pertencentes a 232 ª Divisão de Infantaria encarregada da defesa dos montes Castelo e Della Torracia, entretanto, promoveram uma contra-ofensiva violenta e conseguiram tomar de volta as posições perdidas, obrigando os brasileiros e os norteamericanos a abandonarem aquelas posições já conquistadas, a exceção do Monte Belvedere. No dia 29 de novembro às oito horas da manhã, tentamos, pela segunda vez, dominar as defesas alemãs. Nesta nova ofensiva a formação do ataque seria efetuada por três batalhões da 1ª DIE, sendo apoiada por três pelotões de tanques dos Estados Unidos. Entretanto, na véspera, 28 de novembro, os alemães haviam efetuado um contra-ataque contra o Monte Belvedere, onde estavam os americanos, deixando sem defesa o flanco esquerdo. Este fato levou a que a 1ª DIE pensasse em adiar o ataque. Entretanto, como as tropas já se encontravam em suas posições, o ataque foi mantido. Assim, a nova tentativa teve início naquela manhã. O tempo estava muito ruim, com chuva e céu encoberto, dificultando o apoio do Grupo de Caça Brasileiro e tornando impraticável a participação dos tanques. Os combatentes alemães, pertencentes aos 1.043, 1.044 e 1.045 Regimentos de Infantaria, impediram o avanço das nossas tropas. Muito bem aferrados ao terreno em suas casamatas no alto do morro, varriam nossas tropas com o fogo de metralhadoras, fuzis e até mesmo de canhão 88. 49 A quantidade de mortos e feridos foi grande naquele primeiro dia. Permanecemos na tentativa durante três dias, sendo continuamente alvejados pelos alemães. Nossos tiros, mesmo os de artilharia, nenhum efeito faziam sobre eles, já que estavam bem protegidos em suas trincheiras e casamatas camufladas. O terreno, que deveríamos percorrer até o cume do morro, era quase que totalmente desabrigado, íngreme e escorregadio, deixando-nos bastante expostos aos disparos inimigos. Por várias vezes tive de socorrer companheiros feridos e retirar mortos da linha de fogo. Em determinados momentos, quando os disparos cessavam de ambos os lados, faziase um silêncio sepulcral, apenas cortado por um ou outro gemido de feridos. Nenhum pio ou canto de pássaro, nenhum latido de cachorro, nenhum mugido de vaca. Parecia que o universo todo havia parado de girar e, mudo, contemplava a imbecilidade humana. Nestes momentos, ambos os lados aproveitavam para recolher seus mortos e feridos, durante aquela trégua tácita entre ambos os exércitos. No ar sentíamos o cheiro característico do odor da pólvora, misturado ao odor do sangue e do suor. Creio que jamais me esquecerei deste cheiro, pois ele impregnou meu corpo inteiro e também a minha alma. Às vezes, penso que os soldados inimigos que estamos combatendo, certamente, entre eles próprios, deverão ser pessoas com boas qualidades, amistosos e amáveis, como nós, entre nós mesmos. A situação de conflito entre nossos países, entretanto, nos coloca na posição de antagonistas, sem que ao menos nos conheçamos. Talvez, em outra situação, pudéssemos ser grandes amigos. Na guerra o soldado com alguma experiência em combate, perde o medo da morte. Não que, em razão disto, se arrisque desnecessàriamente ou se exponha de maneira 50 temerária ao perigo, mas, de tanto conviver com ela passa apenas a respeitá-la e não mais a temê-la. Não podendo mais sustentar as posições já atingidas, fomos obrigados a recuar e houve um retraimento geral. 51 Carta escrita em Monte Castelo, Itália. “Querida Letícia, desde que saí do Rio de Janeiro, tenho pensado muito em você. Embora a vida de um simples soldado seja muito dura aqui onde estou, a sua lembrança e a recordação dos momentos em que estivemos juntos, me conforta e anima para enfrentar tudo aquilo por que ainda terei que passar, antes de poder retornar para junto de você. Às vezes, por volta do meio-dia, quando o sol está a pino, fico imaginando o que você estará fazendo naquele momento; pois sei que aí já amanheceu. Vejo-a tomando a barca da Cantareira, junto com suas amigas do Instituto de Educação, desembarcando na praça XV de Novembro e caminhando até o Tabuleiro da Baiana, para tomar o bonde com destino a Praça da Bandeira ou a Tijuca. Sei que sua formatura será neste final de ano, e sinto não poder estar presente para desejar-lhe boa sorte na carreira de professora. Peço-lhe, entretanto, que converse sempre com seus alunos alertando-os para a insensatez das guerras. Reconheço que será apenas uma gota de água no oceano, mas o oceano é feito de gotas. Um dia, quem sabe, as gotas terão a consciência de que são elas que formam o oceano. Outras vezes, fico me lembrando de nossos passeios pelo bairro de Icaraí e suas adjacências. Vejo-me de mãos dadas com você diante da Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, onde pretendíamos nos casar ao som da antiga melodia ‘Salve Regina’, que ouvíamos sendo tocada pelos quatro grandes sinos da igreja, durante aquelas tardes de verão em que por ali passeávamos. Um dia, após retornar de uma patrulha, avistei pousada em um galho próximo uma ave amarela, parecida com um Bem-te-vi que já havia visto no parapeito de uma janela do alojamento do Terceiro Regimento. Não poderia ser o mesmo, pois estávamos a 52 milhares de quilômetros de distância de São Gonçalo. Não se espantou com a minha presença e ficou me olhando, fixamente, como se desejasse, também, dizer-me algo. Naquela ocasião tive um mau pressentimento, porém, com a chegada dos demais companheiros ela acabou voando em direção a um vale que se estendia bem a nossa frente. O comandante do meu pelotão, fiquei sabendo, estudava Direito ai no Rio antes de vir para a guerra. Quando nos formarmos pretendemos montar um escritório de advocacia para trabalharmos juntos. Gostaria de possuir o dom de escrever, para poder dizer-lhe, em novos versos ou em prosa, tudo aquilo que sinto por você. Falar da saudade que sinto do seu perfume, do toque cálido da sua mão e dos seus lábios, da maciez de seus cabelos. Por vezes sinto, insuportavelmente, sua ausência e, se não estivesse a milhares de quilômetros de Niterói, certamente desertaria para ir correndo ao seu encontro, a fim de estreitá-la em meus braços e sufocá-la de beijos carinhosos. Com certeza nenhum de meus companheiros sente por suas mulheres, noivas ou namoradas, alguma coisa parecida como a que sinto por você. Às vezes fico pensando que se houvesse nascido alguns anos antes, ou depois, certamente não teria sido convocado para esta guerra e poderíamos, talvez, já estar casados e residindo em algum bonito lugar deste nosso vasto país. E o poema que lhe enviei, gostou dele? Aqui, infelizmente, não disponho de tranqüilidade para pensar em fazer um outro. Espero que este conflito acabe logo e que eu possa voltar para o seu lado, entretanto, se algo de mal me suceder, quero que prometa prosseguir com a carreira de professora e com sua vida, ao lado de alguma outra pessoa que, tenho certeza, você saberá encontrar e que irá fazê-la muito feliz. 53 Nesta eventualidade quero que saiba que, esteja eu onde estiver, estarei sempre torcendo por sua felicidade. Você foi a minha primeira e única namorada e, por isto, jamais irei esquecê-la e aos momentos felizes que passamos juntos, onde quer que me encontre. Tenho tomado cuidado, me alimentado bem e aguardo ansioso o término desta guerra para estar novamente com você. Tenho planos de ter muitos filhos e, como ambos trabalharemos fora, penso em levar meus pais para perto de nós, de modo a poder contar com a ajuda e supervisão deles nos cuidados com as crianças. Quando a situação melhorar, contrataremos empregadas para cuidar de nossos filhos. Sua avó também poderá morar conosco, caso queira. Poderíamos nos reunir todos em uma imensa casa, em algum bairro tranqüilo, onde viveríamos pacatamente a nossa vida em família. Sonho com isto todos os dias. Envio um beijo para sua avó e, para você, um abraço apertado e um beijo apaixonado”. 54 Diário escrito em Monte Castelo, Itália. No dia 05 de dezembro, o General Mascarenhas de Morais havia recebido ordens do IV Corpo do Exército dos Estados Unidos de capturar e manter os montes Della Torracia e Belvedere. No dia 12 de dezembro, sob o comando do General Zenóbio da Costa, fizemos uma nova tentativa de chegar ao cume, porém, como nas demais, de maneira infrutífera em razão do pesado fogo de artilharia alemã. Chovia intensamente e uma forte neblina restringia a visibilidade. Disparos de artilharia antecipados alertaram o inimigo, que passou a efetuar violenta barragem de artilharia e de morteiros. Por volta das 13 horas o ataque foi suspenso, em razão de termos os dois flancos expostos e, por volta das 15 horas, o General Zenóbio passou o comando da frente para o coronel Caiado de Castro e nossas tropas retraíram para a linha de partida, embora tivéssemos chegado a conquistar Zolfo, a cerca de 300 metros do cimo, e atingido Abetaia. Tivemos neste dia, também, grandes perdas em mortos e feridos. Cerca de 150 baixas, com 20 mortos. De tanto recolher companheiros mortos e feridos, meu uniforme está todo sujo de sangue. Creio que só conseguiremos atingir o topo do monte se antes, efetivamente, tomarmos o Monte Belvedere, mais elevado, que cobre nosso flanco esquerdo. Após o frustrado ataque do dia 12 e com a chegada forte do inverno, com temperaturas beirando aos vinte graus centígrados negativos, a frente estabilizou-se e tivemos alguns dias de descanso. Durante este período, fiquei conhecendo um oficial norte-americano cuja mãe era brasileira e que falava português, em razão de haver passado a infância no interior do 55 Estado de São Paulo. Viera da cidade americana de Detroit para o front da Itália. Disse-me que seu país produzia, naquele esforço de guerra, uma aeronave por dia e um navio por semana. A mim, que vim de um país que não produzia praticamente nada, além de produtos agrícolas, aquelas informações pareciam soar como fanfarronice do americano. Olhando em volta, porém, constatei que tanto os caminhões e jipes que usávamos, quanto às armas e munições que carregávamos, a comida que comíamos, a roupa e o calçado que vestíamos, os medicamentos que tomávamos, os canhões, os aviões , os navios, em suma, tudo aquilo que utilizávamos era fabricado nos Estados Unidos. Afirmou, ainda, o oficial, que toda a população norte-americana, abrangendo homens e mulheres, encontrava trabalho nas indústrias e na agricultura, não existindo desempregados. Considerando as informações ouvidas do oficial, e o fato de que os parques industriais europeu, russo e japonês, encontravam-se praticamente destruídos, em razão dos bombardeios aéreos e dos disparos de artilharia, bem como da guerra ter sido travada em seus territórios, imagino que os Estados Unidos, certamente, despontarão como a única potência mundial após o termino deste conflito. Os norte-americanos são muito profissionais. Para todas as eventualidades têm uma norma de procedimento, já testada, para fazer face àquela situação; diferentemente de nós, que improvisamos durante todo o tempo. Entretanto, nosso improviso por vezes dá certo e o procedimento que adotamos, na ocasião, é até melhor que o deles. Noto que existe um acentuado racismo entre brancos e negros nas tropas americanas. Ouvi falar que existem divisões inteiras formadas por militares negros e por descendentes de japoneses, a 92ª e a 442ª, respectivamente, comandadas por oficiais brancos, porém, nunca vi nenhuma das duas em ação. A altura dos militares americanos é, visivelmente, 56 maior do que a dos nossos militares. A dos militares alemães também é maior do que a nossa, a qual se assemelha mais com a dos italianos. Pela observação que tenho feito do comportamento do soldado alemão, percebo que é muito profissional e aguerrido. Aferra-se ao terreno com disposição, só deixando uma posição em último caso. Aqueles feitos prisioneiros comportam-se, perante nossos oficiais e subalternos, como se fossem nossos soldados e não nossos prisioneiros. Creio que sabem, entretanto, que o fim da guerra está próximo e que eles a perderam. Os italianos não gostam dos soldados alemães, pois estes os tratam com desdém, muito embora houvessem sido aliados até pouco tempo atrás, antes de a Itália declarar guerra à Alemanha. Já pelos soldados brasileiros têm simpatia e afinidade, talvez porque um grande contingente de italianos tenha emigrado para o Brasil, no passado, e nossas origens, de um modo geral, sejam latinas. A resistência italiana, formada pelos ‘partisanos’ ou ‘partigiani’ consiste em um movimento armado de oposição ao fascismo e a ocupação da Itália pela Alemanha. Baseia-se em uma estrutura de guerrilhas e surgiu quando a Itália foi invadida pela Alemanha, embora alguns acreditem que já existia desde 1922, quando teve inicio a ascensão do fascismo. Da resistência italiana fazem parte tanto ‘partisanos’ que são católicos, quanto comunistas, liberais, socialistas, monarquistas e anarquistas, dentre outros. Os ‘partisanos’ odeiam os alemães, sobretudo pelo que estes fizeram as suas famílias. Cerca de vinte deles colaboram com nossas tropas, como guias, nas regiões montanhosas de Belvedere, Torre de Nerone, Monte Castelo e outras. 57 Os ‘partisanos’ são muito violentos com os prisioneiros alemães que fazem. Geralmente os matam, após torturá-los. Muitos deles tiveram as mães, esposas e filhas abusadas pelos soldados. Utilizam o armamento que caí em suas mãos, quer seja de origem alemã, italiana ou norte-americana. Por conhecerem muito bem a região, são mestres na realização de emboscadas e exímios atiradores. Creio que nos ajudam não porque gostem de nós, porém, como uma maneira de, mais rapidamente, poderem expulsar aqueles invasores de seu território. 58 Carta escrita em Monte Castelo, Itália. “Pai, nossa situação, agora, é bastante tranqüila. O inverno ainda tem fustigado nossas tropas, porém, já estamos mais acostumados e sabemos como enfrentá-lo. Já tivemos alguns contatos com o inimigo a que viemos enfrentar; porém, nada de muito importante. A paisagem daqui é muito bonita. Para mim que nunca havia visto neve, vê-la cair de dia ou de noite é um espetáculo magnífico. Por vezes quando a artilharia inimiga começa a bombardear nossas posições e nos atiramos ao solo, sentimos a neve deslocada pelas explosões cair com força sobre nossas costas, como se nos cumprimentassem por havermos escapado vivos daquela vez. Os civis italianos com os quais tenho tido contato, são muito cordatos e educados, embora extremamente pobres. Eu diria até que, embora sejamos invasores de sua terra, gostam da nossa presença, pois percebem que os ajudamos como amigos e não como conquistadores. Os alemães, com freqüência, requisitam todos os alimentos disponíveis encontrados com os italianos. Isto, também, faz com que estes não gostem deles. Todavia, para nós, sempre oferecem um pouco de vinho ou de ‘grappa’, aguardente produzida em suas propriedades. Quando a temperatura é muito baixa, o álcool parece não fazer nenhum mal ao organismo. Pelo contrário, parece que o corpo sente necessidade dele para esquentarse. Alguns povoados são muito antigos, com casas de pedra e ruas estreitas. Sentimos o peso dos anos naquelas construções. 59 Às vezes, quando nos deslocamos pelos campos, sinto-me como um legionário das hostes romanas, atravessando o país para combater os inimigos do império. A paisagem dos campos e dos bosques é extremamente bela e penso que a estamos destruindo com esta guerra, através de nossas bombas, morteiros e obuses. Em muitos lugares as crateras das explosões são tantas que, em razão da chuva que cai com freqüência, formam-se inúmeros lagos que congelam com as baixas temperaturas do inverno. Tenho me cuidado e alimentado bem. Não se preocupem comigo, pois aprendi a me cuidar. Como vai mamãe? Seu estado de saúde melhorou? Espero que se recupere logo, pois esta guerra não deve demorar muito e em breve estarei aí. Logo que chegue ao Brasil, pretendo levá-los a Niterói para que fiquem conhecendo Letícia e a avó dela. Tenho certeza de que gostarão muito delas, pois são pessoas tão simples quanto nós. Por ocasião desta visita, pretendo tratar das providências para o nosso casamento, que deverá ser em seguida. Fiquei tanto tempo longe de Letícia que não pretendo mais abandoná-la, por um segundo mais, tão logo chegue aí. Aqui distante, passei a entender o quanto é importante na vida do ser humano o contato familiar. Como é importante estar entre pessoas que nos amam e a quem nós amamos, em um local tranqüilo, sem violência e sem maldade, onde todos se querem e apenas buscam a felicidade. Imagino que este seja o sonho de todo ser humano normal, porém, poucos conseguem atingi-lo durante sua existência. Fico imaginando que este talvez não tenha sido o projeto do Criador para conosco, simples mortais. Em razão do nosso orgulho e egoísmo desmedidos, julgamos que o mundo foi feito para nós e acreditamos que a ele viemos apenas para viver e sermos felizes. Entretanto, como tão poucos conseguem 60 atingir este objetivo, creio que nossa análise sobre as razões da criação do Universo está totalmente errada. Envio um beijo para mamãe e aceite um forte abraço do filho que os ama”. 61 1945 62 Diário escrito nas cercanias de Abetaia, Itália. Minha missão, a partir do início de janeiro, passou a ser a de participar de patrulhas de reconhecimento e de ataque em uma frente de quase 18 quilômetros que se estende pela região de Belvedere a Castelnuovo. As patrulhas, normalmente, são feitas à noite; porém, também participei de patrulhas pela manhã. Em uma destas, ao me aproximar rastejando de uma pequena construção em ruínas, deparei-me com quatro soldados alemães que preparavam suas refeições em um fogareiro improvisado. Eles tinham deixado suas armas encostadas em um tronco e pareciam despreocupados. Ao me aproximar mais vi que haviam percebido minha presença e corriam para apanhá-las. Se eu estivesse portando um fuzil de ferrolho Springfield, como muitos de nós carregávamos naquela ocasião, igual ao Mauser 98 K usado por eles, também de ferrolho, talvez tivesse morrido naquela manhã. Como portava um Garand, semi-automático, fuzilei os quatro logo que alcançaram suas armas. Ao me aproximar vi que três deles já estavam mortos e o quarto agonizava. Recolhi as armas e munições e vistoriei a construção em busca de mapas, documentos ou qualquer outra coisa de interesse. Ao voltar para fora constatei que o quarto já havia morrido. Embora fossem as primeiras pessoas que eu matara, não senti naquela ocasião nada de especial, como, por exemplo, remorso ou compaixão. Senti-me, apenas, bastante eufórico, como se fosse um ser quase imortal. O fato de saber que eu fora capaz de abater aqueles quatro alemães, certamente soldados antigos e com experiência naquela guerra, trouxe-me uma calma e uma alegria que se mantiveram comigo durante muito tempo. 63 Em uma das patrulhas em que participei, durante a noite, passamos por uma casamata que nos pareceu vazia e seguimos em frente. Pouco depois, foram lançados diversos artefatos (very light) que iluminaram todo o campo a nossa volta. Da casamata que havíamos ultrapassado partiram rajadas de metralhadoras MG 42 e disparos de fuzis em nossa direção. O procedimento padrão, neste caso, era ficar totalmente imóvel para não ser identificado pelo inimigo, que nos confundiria com um tronco de árvore ou outro qualquer obstáculo do terreno. Porém, dada a grande quantidade de ‘very lights’ lançada, a noite ficou clara como o dia. Os que ficaram imóveis foram abatidos. Lanceime dentro de um córrego, cujas águas geladas me incomodaram bastante, onde permaneci até que as luzes se apagaram e a noite escura, novamente, tomou conta do terreno. Na imobilidade, percebi que dois outros companheiros também se encontravam dentro do córrego. Fazendo contato silencioso entre nós, resolvemos retornar até a casamata, visando, talvez, surpreender seus ocupantes. Rastejando devagar por sobre o leito do pequeno riacho, saímos em um ponto mais abaixo. Dali, com cuidado, seguimos na direção da casamata. Talvez pensando que haviam abatido a todos os membros da nossa patrulha, os alemães que a guarneciam voltaram para o interior de seu abrigo, dada à intensidade do frio que fazia naquela ocasião. As casamatas daquele tipo, incrustadas nas pedras, possuíam uma sala onde havia beliches e vigias para as armas. Tinham, ademais, uma sala subterrânea com a entrada camuflada por feno ou capim onde se escondiam, principalmente nos dias mais frios. Olhando de fora, parecia que a casamata estava totalmente vazia. 64 Como, agora, sabíamos que eles estavam ali, entocados, entramos devagar, cada um com uma granada MK II na mão, e fomos até a entrada da sala subterrânea. Encontramos a porta do alçapão, que abrimos apenas o suficiente para atirar as três granadas. A explosão que se seguiu foi enorme, pois pareceu que as três granadas explodiram ao mesmo tempo. Nós, que nos encontrávamos no piso superior, fomos sacudidos pela explosão. Como a noite estava muito escura e não tivéssemos nenhuma luz para iluminar o local, fomos embora sem saber quantos soldados inimigos havíamos matado naquela ocasião. Retornando ao terreno onde havíamos sido emboscados, encontramos dois de nossos companheiros feridos e os demais mortos, inclusive o sargento comandante da patrulha. Recolhemos as ‘Dog Tags’ (placas de identificação) dos mortos e, com os feridos nos ombros, voltamos para nossas posições. Imobilizados pelo frio e pela neve, passamos vários dias no acampamento. Neste período, um sargento do nosso pelotão, cujo irmão é piloto do Grupo de Caça formado por aviadores brasileiros que operam em Tarquinia, contou-me sobre a vida do irmão, de quem sente muito orgulho, e sobre seu trabalho como piloto neste grupo, que faz parte do 350º Grupo de Caça da Força Aérea Norte-Americana. Disse que seu irmão serve na Base Aérea de Tarquínia, a pouco mais de dois quilômetros da cidade de Tarquínia, que está localizada a 150 quilômetros ao norte de Roma. Pilota uma aeronave P-47, em operações de bombardeio picado e ataque à tropas e equipamentos terrestres. O motor deste avião, disse ele, possui 2.300 HP, com 18 cilindros que formam uma verdadeira couraça protetora do piloto. A estrutura do avião era muito forte, segundo dizia. Vários companheiros do irmão já haviam passado 65 por milagrosos retornos do campo de batalha, em que qualquer outro aparelho teria sido destruído. Citou o caso de um deles que, em um mergulho de baixa altitude, quando metralhava uma instalação industrial, sem querer havia colidido com sua asa direita em uma chaminé que lhe cortou mais de metro e meio da asa. Assim mesmo, retornou à base e fez o pouso normalmente. Outro companheiro do irmão foi acertado no motor, tendo dois dos cilindros voado para espaço com a explosão, deixando, em seguida, os pistões trabalhando ao ar livre. O incêndio que se seguiu, em razão do óleo derramado, foi contornado e o avião continuou voando por mais meia hora, pousando em um campo de emergência. O Grupo de Caça dos brasileiros possuía quatro esquadrilhas: A (vermelha), B (amarela), C (azul) e D (verde). Cada esquadrilha possuía seis aeronaves (1,2,3,4,5,6). Na fuselagem de cada avião (notadamente no nariz) era pintada uma letra e um número, indicando qual era aquela aeronave e de qual esquadrilha. A aeronave de número 1 era a do comandante, a número 2 do subcomandante, e os demais números seriam dos pilotos, obedecendo à ordem de antiguidade. Ele tinha receio que seu irmão pudesse ser abatido e feito prisioneiro dos alemães, que removiam os prisioneiros para campos de concentração na Alemanha, onde estes sofriam com o clima, a falta de alimentos e medicamentos e aonde eram, além disto, torturados. Em nosso acampamento certo dia, tive a oportunidade de conversar com um prisioneiro alemão, nascido no Brasil, em Santa Catarina. Seu pai era funcionário diplomático da Alemanha e servira muitos anos em nosso país. Tendo ele nascido em Santa Catarina, havia feito o preliminar e o curso primário 66 naquele Estado. Com o retorno dos seus pais para a Alemanha, terminara seus estudos em Berlim e alistara-se no Exército Alemão. Conhecendo nosso povo, falando nossa língua e tendo no Brasil nascido, era para ele muito difícil lutar contra nós. Possuía exata compreensão sobre a situação da guerra naquele momento, e achara melhor forçar sua captura por nossas tropas, para, quem sabe, poder retornar um dia ao Brasil, ao invés ser feito prisioneiro pelos americanos, vir a morrer ou talvez ser ferido, próximo do fim do conflito que antevia para breve. Um colega dele, também prisioneiro, um dia conseguiu evadir-se do local onde era mantido prisioneiro. Passados alguns dias, seu corpo foi trazido por alguns ‘partisanos’ que colaboravam conosco, que o haviam encontrado escondido em um bosque e o matado, ao tentar reagir à captura. Na região onde atuávamos, por vezes, éramos alvo dos tiros de franco-atiradores (ou ‘snipers’ como os denominavam os americanos). Visavam atingir principalmente os oficiais mais graduados. Após as primeiras vitimas, os oficiais passaram a não mais usar suas divisas durante os deslocamentos. Do nosso lado também utilizávamos estes atiradores contra o inimigo. Os fuzis, comumente utilizados pelos franco-atiradores, possuíam lunetas de grande alcance. Os atiradores agiam sozinhos ou em duplas. A arma mais utilizada pelos nossos era o fuzil Springfield em calibre 30.06. Os alemães utilizavam o fuzil Mauzer 98-K e os italianos o fuzil Carcano. Vários militares de ambas as partes perderam a vida vitimas dos disparos mortais de franco-atiradores. Em certa ocasião, após uma nevada em que ficamos imobilizados, como fazia um dia bonito e claro, o céu estava azul e fazia sol, um companheiro levantou-se do seu abrigo 67 e, caminhando com dificuldade sobre a neve que estava alta, dirigiu-se para um tronco de arvore caído no terreno, onde pretendia sentar-se para apanhar um pouco de sol. Na metade do trajeto, entre o abrigo e o tronco, foi atingido por um disparo certeiro na cabeça. Ficou ali caído até o anoitecer, pois não podíamos retirá-lo de onde estava, já que sempre que o tentávamos éramos alvo de novos disparos. Para caçar um franco atirador, nada melhor que outro franco-atirador. Como são atiradores de precisão, quase nunca erram o primeiro disparo. Ficam em sua posição por dias seguidos, apenas aguardando que um alvo se aproxime ao alcance de sua arma. Após o disparo, estão sempre mudando de posição para evitar serem descobertos. Em 19 de fevereiro, com o arrefecimento do inverno, o V Exército Norte Americano determinou nova ofensiva para conquistar Monte Castelo. Esta ofensiva incluiria todas as tropas aliadas, objetivando, após a tomada do monte, o deslocamento das tropas para o Vale do Pó, até a fronteira com a França. Em 21 de fevereiro de 1945, por volta das seis horas da manhã, iniciamos a quarta tentativa de tomar Monte Castelo, através de uma operação denominada Encore (Uma vez mais) As tropas brasileiras, entretanto, seriam utilizadas para a conquista do Monte Castelo e a expulsão dos alemães. Na véspera, a 10º Divisão de Montanha norte-americana atacou e tomou o Monte Belvedere e a região de Gorgolesco, cobrindo assim parte do flanco esquerdo de nossas tropas. Também na véspera, tivemos uma trágica noticia. Nosso capelão, capitão Antonio Álvares da Silva, “Frei Orlando”, tinha sido vitima de um tiro acidental de um ‘partisano’ e havia falecido aos trinta e dois anos, quando se dirigia de Docce para 68 Bombiana, a fim de levar assistência espiritual e religiosa aos soldados que participariam do ataque. Terminada uma reunião para tratar assuntos relativos à Capelania, Frei Orlando deveria regressar à Riola, onde estava situado o Posto de Comando, porém, não dispunha de viatura naquela ocasião. Decidiu ir a pé e, ao chegar a cerca de trezentos metros de Bombiana, encontrou um capitão do seu batalhão, que lhe ofereceu uma carona. Depois de andarem alguns quilômetros o veículo, um jipe, passou por cima de uma pedra e ficou preso. Os ocupantes da viatura desceram da mesma, inclusive um ‘partisano’ que ia junto. Este procurou remover a grande pedra sob o eixo traseiro com a coronha do fuzil. A arma estava carregada e, com o movimento, disparou, atingindo, em cheio, o coração do Frei Orlando que teve morte imediata. O fato causou enorme tristeza entre nossas tropas, onde a quase totalidade era formada por católicos. Antes das missões perigosas, a maioria dos soldados religiosos procurava pedir proteção e conforto aos seus deuses. No caso de perecerem, esperavam que a divindade os tratasse com benevolência, em que pesem as mortes ou outras quaisquer atrocidades que houvessem praticado. O Batalhão Uzeda subia pela direita, o Batalhão Franklin pelo centro e o Batalhão Sizeno Sarmento aguardava, na posição que alcançara a noite, o momento de juntar-se aos outros. Nossa subida foi precedida de maciço ataque de artilharia e de intenso bombardeio por parte do 1º Grupo de Aviação de Caça, formado por oficiais aviadores brasileiros, em seus P-47 ‘Thunderbolt’. Olhando através de binóculos os aviões em mergulho, lembro-me dos números A-4 e B-2, pintados no nariz de dois deles. Na ocasião, 69 imaginei que o irmão do nosso sargento poderia ser um daqueles pilotos que nos ajudavam metralhando e bombardeando os alemães. Esta tentativa, embora rechaçada com fúria pelos alemães, foi diferente das anteriores, já que os inimigos entrincheirados no cume do morro agora sofriam ataques também de americanos e brasileiros, que haviam se apoderado do Monte Belvedere e do Pico Della Torracia que dominavam Monte Castelo. Por volta das 17 horas a nossa artilharia bombardeou a cota 930, que representava o cume do monte. A montanha parecia arder como um vulcão em erupção, tamanha a quantidade de explosivos lançada pela artilharia. Todavia, como as casamatas alemãs eram muito bem construídas, aqueles impactos causavam pouco efeito no alto do morro. Durante a subida meu pelotão foi duramente castigado pelas metralhadoras alemãs. Vários companheiros ficaram caídos pelo caminho. Aos poucos, fui tentando ganhar altura. Minha preocupação não era a de atirar, mas sim a de galgar o terreno escorregadio do monte. Perto das 18 horas, com o céu bastante escuro, consegui, finalmente, chegar ao topo. A resistência alemã já havia diminuído bastante, com muitos inimigos em retirada. Poucos ainda permaneciam entocados em suas magníficas defesas. Na posição em que me encontrava, pude perceber o clarão que saia da boca de uma metralhadora alemã, muito bem camuflada. Dirigi-me, cautelosamente, por um ângulo que me ocultava e aproximei-me devagar, com uma granada de mão. Já bem próximo, puxei o pino de segurança e atirei-a pela seteira da casamata. 70 A explosão que se seguiu atirou para fora alguma coisa que passou voando pela seteira. Dando a volta, entrei pela parte de trás, aonde uma escada de madeira com alguns degraus conduzia ao local da metralhadora. No chão, deitados em posições estranhas, visualizei dois corpos, um deles sem a cabeça. Vasculhando a casamata, deparei com algumas fotografias contendo a imagem de mulheres e crianças, bem como algumas cartas em alemão. Recolhi-as, mais pela sensação de que aquele material me aproximava da vida civil, onde o carinho e a afetividade imperavam entre as pessoas. Não imaginava o que faria com aquelas coisas, porém, não queria que permanecessem ali dentro, onde apenas a morte reinava. Saindo daquele local encontrei a cabeça do soldado caída do lado de fora da casamata, próxima da seteira. Seguindo em frente, ao passar por Abetaia, onde paramos para descanso, pude ver cerca de dezessete corpos congelados de soldados brasileiros, mortos durante a tentativa frustrada de 12 de dezembro, em frente à casamata alemã que dominava aquela região. Os alemães, talvez antevendo que perderiam a posição de Monte Castelo, conservaram-nos no local para que fossem resgatados por nós, quando por aqui passássemos. Na guerra, onde os indivíduos muitas vezes perdem sua condição racional e humana, deparamo-nos com alguns episódios que nos emocionam e que parecem indicar que, por baixo de toda aquela selvageria, uma pequena luz divina continua brilhando no coração dos soldados. Tais gestos parecem querer deixar bem claro que nós, os soldados, embora combatamos e nos matemos uns aos outros, não somos totalmente maus. Que ainda 71 somos capazes de demonstrar sentimentos e que não estamos completamente embrutecidos. A história das guerras relata inúmeros episódios de cavalheirismo entre soldados inimigos. Creio, todavia, que tais episódios são protagonizados por soldados profissionais, isto é, aqueles que consideram a profissão de soldado como um emprego a que foram conduzidos, apenas, por vocação. Estes não combatem por ideologia, religião ou sectarismo, mas pelo simples prazer do combate, pela emoção única de colocar a vida em risco. O soldado que participa de conflitos por haver sido convocado, tende a se deixar levar pela ideologia da guerra, pela emoção e pelo sentimento e, neste sentido, vê no oponente um ser maligno ao qual precisa destruir a todo custo. Por isso, muitas vezes, é protagonista de cenas de barbárie contra militares e civis inimigos. Após algumas horas de descanso prosseguimos nosso caminho. Com cerca de uma hora de marcha, nosso pelotão foi surpreendido por uma guarnição alemã de um canhão de 75 mm e de várias metralhadoras, que defendia uma posição mais elevada à frente. O primeiro disparo do canhão acertou em cheio o sargento de uma companhia, que praticamente foi pulverizado. Lançado a distância, seus restos espalharam-se por vários metros. O matraquear das metralhadoras MG 42 colheram, também, vários dos nossos soldados. Aferrados ao terreno, pensávamos em como sair daquela posição vulnerável em que nos encontrávamos. A situação era tão aflitiva que um soldado, próximo a mim, desesperou-se e, ao levantar-se para fugir dali, foi mortalmente alvejado pelas metralhadoras. Felizmente, um disparo de morteiro, partido de um outro pelotão, na retaguarda do nosso, atingiu diretamente a posição alemã, calando-a. Prosseguimos, em seguida, após recolher nossos mortos e feridos. 72 Em algumas ocasiões de perigo, o ser humano, por não dispor de domínio sobre a situação, entra em pânico e perde, totalmente, o controle de si mesmo. Por duas vezes presenciei fatos dessa natureza. Na primeira vez, observei um soldado que, ao ter o local onde se abrigara bombardeado pela artilharia alemã, largara sua arma e saíra correndo pelo terreno, gritando histericamente. Foi encontrado horas depois de haver cessado o bombardeio, sentado em um tronco de arvore caído, murmurando palavras desconexas. Levado para a retaguarda foi recambiado para o Brasil, tendo sido dado como louco. A tensão gerada durante os momentos de combate, e o medo não dominado nestas ocasiões, produz, com relativa freqüência, episódios como estes. Com isto, alguns soldados procuram ir ficando para trás, deixando as posições avançadas para os demais companheiros. Outros atiram a esmo, ou mesmo não atiram. Em contrapartida, muitos são os que tomam a iniciativa e a dianteira, partindo em direção ao inimigo com disposição. Outro aspecto, que pude também perceber algumas vezes, é a falta de liderança por parte de alguns oficiais e graduados em determinados momentos perigosos. Nestas ocasiões, felizmente, outros lideres de fato substituem aqueles lideres de direito, e a tropa passa a contar com estes lideres naturais para sair daquela situação aflitiva. Terminado o confronto, os lideres de direito muitas vezes voltam a assumir a antiga liderança. Outras vezes, envergonhados pelo comportamento frente ao perigo, solicitam sua substituição ou transferência. O fato é que, continuando na mesma posição, suas lideranças estarão para sempre comprometidas. É na guerra, onde cada um depende dos demais, que a alma humana verdadeiramente se revela. As virtudes e os vícios se desnudam em toda a sua plenitude. Ninguém consegue esconder dos demais companheiros, seu caráter e sua 73 maneira de ser. Assim, cada um procura a companhia daqueles que lhe são iguais em caráter, tanto para ser por eles protegido, quanto para protegê-los. Ninguém pode saber como irá reagir em uma situação real de combate antes que ela, efetivamente, ocorra. O comportamento de nossos lideres, no entanto, é fundamental para infundir coragem à tropa. Qualquer vacilo no comando pode ser interpretado, pelos soldados, como a perda do controle da situação, dando ensejo ao surgimento de desconfiança na ação que será empreendida, bem como ao medo de suas conseqüências. Na vida militar a liderança é imposta pelo regulamento. Quando esta liderança, além de imposta, é conquistada pelo seu detentor, nos deparamos, certamente, com uma tropa quase invencível e capaz das missões mais temerárias. Nosso comandante de pelotão é uma dessas pessoas. Líder nato sabe como conduzir seus homens e como protegê-los. Suas ordens, muitas vezes, são comunicadas apenas com um olhar ou através de um sinal. Nossa integração com ele é tanta que, em muitas ocasiões, antecipamos suas ordens. Da parte dele, conhece, pessoalmente, cada integrante do pelotão e está sempre pronto a ouvir cada um, isoladamente, a qualquer momento. Antes da ação, explica, detalhadamente, aquilo que faremos e consulta a todos do pelotão se estão de acordo com o procedimento adotado. Defende seus soldados como se fossem seus filhos, perante o comandante da companhia e perante o comandante do batalhão. 74 Carta escrita nas cercanias de Abetaia, Itália. Pai, estou preocupado com a falta de notícias de mamãe. Em sua última carta você me disse que ela estava acamada e que o médico tentava descobrir o que ela tinha. Espero que não seja nada de grave e que ela se restabeleça logo. Você deveria tentar interná-la no hospital do IAPTEC. Dizem que as equipes médicas de lá são muito competentes. O tratamento em casa normalmente é muito precário, pois, não é possível uma supervisão constante do paciente pelo médico. Os médicos daqui utilizam muito um medicamento conhecido como penicilina, fabricado nos Estados Unidos. È excelente, dizem, para infecções de qualquer tipo. Veja se existe por aí este medicamento. Tentarei obtê-lo aqui e ver se é possível enviá-lo para você. Outro remédio que é muito utilizado para dores chama-se aspirina. Também é útil para abaixar a febre. Não sei se o encontrará por aí, mas tente. Às vezes, alguns pilotos de linhas aéreas trazem, de fora do Brasil, estes medicamentos para quem os esteja necessitando. Não tenho noticias também de Letícia. Espero que a formatura dela tenha sido muito alegre e que já tenha obtido emprego em alguma escola em Niterói. Só falta, agora, eu me formar para podermos nos casar e dar-lhes um neto ou uma neta, como tenho certeza é o desejo da mamãe. Por aqui nada de novo. Apenas o frio incomoda muito, pois, com o terreno molhado e pelo fato de muitas vezes dormirmos ao relento, acordo me sentindo mal e tremendo de frio. Mesmo me agasalhando bem e colocando palha dentro dos ‘boots’ (coturnos), não consigo parar de tremer. Creio que pode ser também um pouco de febre, embora 75 não me sinta doente. Em breve, entretanto, isto tudo será coisa do passado e estaremos todos juntos, comemorando eventos tão importantes quanto casamento, nascimentos, e aniversários. Sinto não poder estar aí com vocês para dar mais atenção à mamãe e cuidar um pouco dela, nessa fase tão difícil da vida de vocês. Logo que a guerra terminar e após retornar ao Brasil, pretendo leva-los até Niterói, para que conheçam Letícia e a avó dela. Daremos um passeio juntos por Icaraí e levarei vocês para conhecerem o Terceiro Regimento de Infantaria, em Venda da Cruz, onde passei dois anos maravilhosos. Passaremos um dia agradável e, caso faça sol, poderemos até caminhar pela beira d’água, na praia de Icaraí, como eu fazia outrora com Letícia. Levarei vocês para conhecerem a Faculdade de Direito e, ao final da tarde, retornaremos para o Rio na barca da Cantareira. Da Praça XV de Novembro, tomaremos um bonde até a estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, de onde vocês seguirão para casa de trem. Esperando que esse dia chegue breve, fico por aqui enviando um beijo para mamãe e um forte abraço do filho que os ama”. 76 Diário escrito em Castelnuovo, Itália. A 23 de fevereiro, dirigimo-nos para a região de La Serra, objetivando ajudar tropas americanas retidas em Possione. Com a nossa chegada os alemães ofereceram tenaz resistência, porém, acabaram por perder a posição e nos apoderamos da linha Roncovechio-Seneveglio. Nesta região coberta por um bosque com muitas arvores, havia um cruzamento entre duas estradas vicinais. O comandante do nosso pelotão resolveu parar para um bivaque (descanso da tropa) antes de seguir adiante rumo a Castelnuovo, tendo o pelotão se acomodado por entre as arvores que ladeavam o cruzamento. Pouco tempo depois, ouvimos o ronco de motores distantes que pareciam o de um carro de combate e de alguns caminhões. Observando uma das estradas com o uso de binóculos, verificamos tratar-se de um tanque Panter V alemão, seguido por dois caminhões. Nosso comandante ordenou que preparássemos uma emboscada, o que foi feito ocupando ambos os lados da estrada, onde montamos um dispositivo destinado a surpreendê-los quando passassem por nós. De nossos postos observávamos os veículos se aproximando. Ao passarem por nós, um disparo de rojão certeiro penetrou a blindagem lateral do tanque, explodindo em seu interior. Com disparos de metralhadora e de fuzil, além do lançamento de granadas, acertamos os caminhões que transportavam tropas e munições. Alguns soldados saltaram das carrocerias para abrigarem-se, mas foram por nós abatidos. 77 Em determinado momento, as munições transportadas em um dos caminhões explodiram, lançando para o ar pedaços do caminhão e de corpos de soldados. Felizmente, não tivemos nenhuma baixa durante este episódio. Em seguida, procuramos, por entre os destroços e nas roupas dos mortos, algum detalhe que pudesse ser de importância sobre as operações que se desenvolviam naquele setor. Nada encontrando, seguimos em frente. Ao nos deslocarmos pela estrada enquanto partíamos, olhando para trás contemplei os restos daquele carro de combate e dos caminhões destruídos, bem como os cadáveres dos soldados alemães que matáramos. Um cheiro de pólvora, de combustível e de sangue pairava no ar. No silencio reinante apenas se ouviam nossos passos e o ruído do equipamento que carregávamos, balançando de encontro aos nossos corpos. A cinco de março estávamos nas cercanias de Castelnuovo, onde deparamos com inúmeros campos minados cuja travessia era dificultada pela resistência inimiga. Ao atravessar um destes campos que já havia sido mapeado, um companheiro meu, que já me havia salvado a vida várias vezes, caminhando pouco a frente teve a infelicidade de pisar em uma mina Schuhmine (de madeira) que não havia sido descoberta, pois os detectores apenas detectavam minas magnéticas. Seguindo atrás dele vi quando foi atirado para o ar já sem a perna, que ficou caída próxima. Do local do corpo de onde sua perna havia sido extraída esguichava tanto sangue, que me atingiu no peito e no rosto quando fui ajudá-lo. Embora conseguisse colocá-lo nos ombros e tirá-lo dali, não conseguiu sobreviver em razão da grande quantidade de sangue perdida. A partir deste momento meu ódio pelos soldados alemães foi tão intenso, que prometi a mim mesmo jamais fazer prisioneiros. 78 Com o anoitecer ligaram holofotes em direção a Castelnuovo e a nossa tropa penetrou na cidade. Percorrendo as ruas da cidade, éramos alvejados por todos os lados. Um carro de combate alemão, estacionado na esquina de uma rua lateral, metralhava tudo aquilo que se mexesse, dificultando nossa progressão no terreno. Um dos nossos conseguiu arrastar-se sem ser visto e colocou, sob o tanque, uma carga explosiva. A explosão que se seguiu levantou o veículo a alguns centímetros do solo, fazendo com que seu canhão dobrasse. Um outro, portando um lança-chamas, dirigiu seu jato de fogo para o veículo que incendiou. Próximo, ficamos esperando que seus ocupantes saíssem do carro para então alvejálos, porém, ninguém saiu de dentro do tanque. Do alto da torre de uma igreja, alguns atiradores alemães atingiram um capitão e dois sargentos. Trouxeram, então, um canhão de campanha que destruiu a torre com dois disparos. Logo ao primeiro tiro, um dos ocupantes da torre foi lançado ao espaço, pela força do impacto do projétil. Em uma residência que tomei de assalto, encontrei dois sargentos alemães a mesa, no porão, jantando. Ao me verem apontando-lhes o fuzil, levantaram as mãos em sinal de rendição, pois, creio que já consideravam a guerra perdida e até desejassem se entregar. Fiz pontaria no peito do primeiro e disparei. Ao ver o que eu havia feito, o segundo tentou um gesto de reação; porém, acertei-lhe um disparo que o atingiu na coxa. Caído ao chão enterrei-lhe a baioneta no peito, o que o fez estremecer. Ficou, mesmo depois de morto, olhando-me fixamente com seus olhos de um azul muito intenso, como a perguntar: - Por que? 79 Saindo dali caminhei por um quarteirão cujas lojas estavam todas destruídas. Ao parar, agachado em uma esquina, para observar possíveis inimigos entrincheirados em algum dos lados do cruzamento, fui surpreendido por um soldado alemão que, saindo de trás da porta de uma loja, tentou atingir-me na cabeça com o que me pareceu uma pá de cavar trincheira. Desviei do golpe e atraquei-me com ele na calçada, onde lutamos por alguns minutos, ambos segurando a pá de trincheira. Largando uma das mãos enfiei os dedos em seus olhos com tanta força que senti escorrer um liquido viscoso em minha mão. Ele gritou de dor, largou a pá e colocou ambas as mãos nos olhos machucados. Peguei aquela pá e vibrei-a, seguidas vezes, em sua cabeça, até vê-lo imóvel e com a face ensangüentada. Deixando-o no chão caído, atirei a pá sobre seu corpo e segui em frente, em busca do meu pelotão. Convivendo com a morte, diariamente, sou levado a crer que ela não é o fim de tudo. Com ela o ser humano termina, porém o ser espiritual começa. A morte parece ser apenas uma mudança no estado físico da matéria, que talvez tenha sido classificado pelos sábios, erroneamente, como apenas sólido, líquido e gasoso. Eles, imagino, esqueceram-se do quarto estado, o etéreo. Morrer, no meu ponto de vista, assemelha a libertar-se de um estado físico e passar a outro, e não a consumir-se, já que pela Lei da Conservação da Energia isto seria impossível. Muitos dos companheiros mortos apresentam no rosto sinais de extrema tranqüilidade, como se tivessem deixado para trás, além de seu próprio corpo todos os seus problemas. Acredito que o ar de tranqüilidade que apresentam seja decorrente de tudo aquilo que contemplam, naquela ocasião, do outro lado da existência, após passarem pela fronteira da vida e penetrarem no território da morte. 80 Neste território, tenho a absoluta convicção de que a vida, sob a forma espiritual, continua seu caminho, como também os restos mortais, que ficaram para trás são, por sua vez, novamente incorporados ao ciclo da vida. Estou, ainda, convencido de que ao final da existência todos nos encontraremos novamente. Nesta ocasião, certamente, não saberei o que dizer àqueles inimigos que matei em solo italiano. 81 Carta escrita em Castelnuovo, Itália. “Querida Letícia, há muito não tenho recebido notícias suas. Desejo muito saber sobre sua formatura e se já obteve emprego em alguma escola de Niterói. Sonho acordado com os passeios que fazíamos pelo Campo de São Bento naqueles domingos ensolarados. Lembro-me daquele beijo que trocamos, sentados em um banco da Praia das Flechas vendo, ao longe, os pescadores em suas canoas jogarem as redes no mar. Também recordo, com saudade, daquelas caminhadas ao entardecer pelas areias da Praia de Icaraí, quando andávamos de mãos dadas desde o início da praia, na Pedra da Itapúca, até o seu final, no Canto do Rio. Ao passar em frente ao trampolim, avistavamos alguns rapazes saltando do primeiro estágio e, mais a frente, junto a uns coqueiros quase no final da praia, algumas crianças pequenas junto de suas mães e babás brincando de cavar buracos com suas pás de madeira. Com freqüência avistávamos pequenos siris correndo pelas areias brancas ou penetrando em pequenos buracos que cavavam rapidamente. Ao caminharmos, nossos passos faziam um estranho ruído ao deslocarem a areia. Às vezes andávamos com os pés dentro da água fria e, em algumas ocasiões, molhávamos nossas roupas com a quebra de uma onda aos nossos pés. O que eu não daria para reviver estes momentos. Por aqui nada de novo, exceto uma febrezinha que me ocorre durante a noite. Como pela manhã me sinto bem, não procuro auxílio médico; até porque, se buscar apoio médico, eles podem descobrir outras coisas mais e acabarem por me obrigar a baixar ao hospital. Enquanto der, vou-me agüentando. Com isto, não perco nenhum dos acontecimentos que ocorrem por aqui. 82 Por vezes, após nevar com intensidade, a camada de neve que se forma sobre o solo é tão espessa que quase não conseguimos nos deslocar, visto não dispormos das conhecidas raquetes, próprias para caminhar sobre a neve. Nestas ocasiões permanecemos estacionados onde quer que nos encontremos, e aproveito a oportunidade para escrever para você e para meus pais. Isolados na neve, e na falta de uma comida quente, somos obrigados a nos contentar com o conteúdo das rações K, B ou C. Em uma dessas oportunidades, enquanto lhe escrevia, avistei novamente aquela ave amarela sobre a qual já lhe falei em outra carta. Desta vez ela chegou bem perto de mim e, mais uma vez, parecia querer dizer-me algo. Achei que aquilo tinha a ver com você ou com meus pais e fiquei um pouco sobressaltado. Preocupa-me muito o estado de saúde de minha mãe. Papai não tem dado notícias e temo que ela tenha piorado. Se souber de algo me escreva. Como as cartas demoram a chegar e muitas vezes se extraviam, procure enviar-me pelo menos uma linha todos os dias. Assim, sempre terei você perto de mim, mesmo que seja através, apenas, de algumas palavras. Por aqui não temos jornais que nos informem sobre os fatos e acontecimentos que são notícias no Brasil. Estamos totalmente isolados com respeito ao que ocorre por aí. Da mesma forma, sobre o desenrolar desta guerra, temos apenas as notícias que ouvimos através da BBC de Londres, cujas transmissões captamos via rádio. Aguardando ansioso o dia em que nos encontraremos novamente, aceite um carinhoso beijo e não deixe de mandar notícias”. 83 Diário escrito em Montese, Itália. Em 14 de abril de 1945, por volta das 13 horas, após forte ataque de nossa artilharia sobre Montese, partimos da base em que nos encontrava-mos, em Montaurígola, na direção da localidade que deveríamos tomar de assalto e conquistar. A região de Montese é constituída por bosques, colinas e vários rios, estando situada próxima de Bolonha e de Modena. Naquela tarde a reação inimiga foi também muito forte e tivemos que deter, momentaneamente, nossa ação. Nesta ocasião, sofremos pesadas baixas. Dois companheiros de meu pelotão foram atingidos por disparos de metralhadora. Um deles recebeu vários impactos no peito que quase o cortaram ao meio. Ainda ficou durante alguns minutos agonizando. Estando ao seu lado pude confortá-lo, naqueles momentos, segurando sua mão. Olhando seu rosto contraído pela dor, pude ver o exato momento em que partia, quando então sua fisionomia relaxou, seus olhos se fecharam e sua face adquiriu aquela tranqüilidade típica daqueles que conhecem o outro lado. Em razão da densa fumaça que tomou conta da região, tanto em decorrência das explosões de nossa artilharia quanto da artilharia deles, meu pelotão foi se deslocando em direção ao objetivo e, sorrateiramente, conseguiu atingir as primeiras posições alemãs. Enquanto a fumaça permanecia no ar, os alemães mantinham-se agachados no fundo das suas trincheiras. Talvez pensassem que só atacaríamos quando ela se dissipasse. Atirei em um soldado que, sentado em uma delas, levantou-se logo que me viu. Após vê-lo cair, segui em frente protegido pela fumaça. 84 Passada esta primeira linha de defesa, começamos a subir as elevações de Montese. Ao chegar ao cume de uma elevação, fomos detidos pelos disparos oriundos de uma grande casa que parecia uma posição fortificada. Com o uso de lança rojões de 2.36 polegadas, de fuzis metralhadores BAR cal 30.06, de metralhadoras Browning cal.50 e de morteiros de 60 mm., conseguimos vencer a resistência daquele ponto forte e prosseguimos. Entrando na cidade, propriamente dita, o combate passou a se efetuar de casa em casa. Naquelas estreitas ruas recebíamos disparos vindos de várias casas, disparos estes que vitimaram diversos dos nossos. Ao fugir dos tiros inimigos, entrei em uma casa vazia. Depois de alguns minutos lá dentro percebi que, da casa ao lado, soldados alemães disparavam contra nossas tropas. Subindo até o andar de cima, constatei que havia uma varanda na parte de trás, e que esta era contígua à varanda da casa ao lado onde estavam os alemães, pois pareciam casas geminadas. Pulando para a varanda do lado desci, devagar, a escada que dava acesso ao térreo. Visualizei três soldados que agachados com seus fuzis, atrás da janela aberta, procuravam alvos na rua. De onde estava atirei nos três. Pude notar o olhar de surpresa que demonstraram, enquanto caiam ao solo após terem sido atingidos. Depois de confirmar que estavam mortos, prossegui pelas ruas da cidade. Em uma praça, abrigado atrás de um coreto, deparei com um tanque Panter IV fechando uma das ruas que desembocava na praça. Fazia disparos mortais contra as nossas tropas, que para ali se dirigiam. Pude observar de longe, quando um dos nossos disparou um rojão em sua direção, que acabou por atingi-lo na lagarta. O disparo, embora não mortífero, incendiou o tanque por fora. Este, impossibilitado de se 85 locomover em razão da lagarta destruída, foi alvo das chamas. Antes que seus tripulantes tivessem tempo de abrir a portinhola de escape, foi sacudido por violenta explosão interna que abalou toda a vizinhança. Ao passar pelos seus restos calcinados, ainda pude sentir o calor que desprendia daquela massa de aço retorcida. Finalmente a resistência dentro da cidade foi silenciada, o que não impediu que a artilharia alemã despejasse cerca de três mil granadas de obus, sobre a mesma, durante a noite. Na manhã seguinte, ainda sob bombardeio, a cidade nos pertencia totalmente. Na guerra, ocorrem inúmeras situações onde a nossa vida depende, exclusivamente, do comportamento ou da ação de um ou de vários companheiros. Este fato acarreta o surgimento de uma amizade indestrutível, entre aqueles que vivenciaram tais situações. Somos muito mais que simples companheiros de infortúnio, pois estamos dispostos a nos sacrificar uns pelos outros. Em muitas situações fui salvo por um companheiro, ao abater um inimigo que ia me atingir, ou a me avisar sobre um alemão escondido em uma posição onde eu não o havia percebido. Da mesma forma, também evitei que companheiros meus fossem mortos, ao manter fogo cerrado sobre o inimigo, enquanto eles se evadiam da posição vulnerável em que se encontravam. Em certa ocasião, ao ter nosso pelotão fustigado por um carro de combate, cuja metralhadora martelava sem parar nossa tropa com risco de dizimá-la, pude esgueirarme por trás dele e abater sua guarnição com uma granada atirada para o interior do veículo, através da portinhola de escape do carro. Distante da pátria, o soldado luta apenas para sobreviver e permitir que seu grupo sobreviva, eliminando tudo o que represente uma ameaça para ambos. Por isto, não é vitima de sentimentos de remorso, pena ou compaixão, pelos atos que é compelido a 86 praticar. Na manhã seguinte já se esqueceu dos inimigos que matou na noite anterior e a luta prossegue, inexoràvelmente, até que seja ele o próximo a tombar. Embora os soldados sofram com a guerra, pelo menos estão acostumados à violência e possuem um lado que os apóia, alimenta e cuida de sua saúde. As populações civis nas zonas de conflito, entretanto, estão por sua própria conta e risco, não tendo ninguém a velar por elas e a protegê-las. Elas são, com isso, quem mais sofre com a situação de guerra. Em muitas aldeias, ou propriedades isoladas, soldados combatentes de ambas as partes, por vezes, maltratam, matam e até abusam de mulheres, tomam animais, alimentos e bebidas; além de roubarem qualquer coisa que represente riqueza e que seja fácil de carregar e ocultar. A pena para estes crimes, caso sejam descobertos, muitas vezes é a morte; entretanto, sua aplicação dependerá do fato de serem descobertos e de não serem acobertados por superiores imediatos. Estes, certamente, são os motivos do acentuado ódio dos ‘partisanos’ aos estrangeiros que ocupam seu país e seus ‘paesi’ (povoações), não importa se amigos ou inimigos. 87 Carta escrita em Montese, Itália. “Pai, foi com enorme tristeza que soube do falecimento de mamãe. Pelo que você relatou em sua carta, os médicos não atinaram com sua enfermidade e ela definhou até morrer. Senti muito não poder estar ao seu lado nesta hora tão difícil. Imagino como deve ter sido terrível para você, que a amava muito, vê-la naquele estado e não poder fazer nada. Fico imaginando você, sozinho, tendo que providenciar tudo para enterrar os restos mortais dela. Onde eles estão enterrados? Logo que chegar ao Brasil, após o término da guerra, providenciarei um jazigo de mármore para seu túmulo. Como você viverá a partir de agora? Quem cuidará de você? Maldita hora em que fui convocado para esta guerra, tendo que deixar vocês ai no Brasil, sozinhos, para, junto com meus companheiros mais próximos, e fazendo parte de um exército de pessoas que nem conheço, lutar contra pessoas outras que também desconheço. Gostaria de estar lutando por vocês, aí no meu país, diariamente, ajudando-os em tudo aquilo que precisam para ter uma vida feliz nestes poucos anos que lhes restam. O pior de tudo é saber o que ocorre com vocês sem poder fazer nada, sem poder ajudá-los de nenhuma forma, tendo apenas que me conformar com esta situação. Estes pensamentos apenas fazer aumentar meu ódio contra os inimigos que enfrento; pois foram eles, em última análise, que começaram tudo isto. Não digo ódio dos soldados inimigos, em si, que, tanto quanto nós, também desconhecem as verdadeiras motivações das guerras; mas sim dos povos a que pertencem, que nada fizeram para impedir seus dirigentes de promovê-las. 88 Os indivíduos, por não se interessarem, normalmente, pela política, deixam a cargo de seus representantes a tomada de decisões que, muitas vezes, representando apenas o interesse de pequenos grupos, arrastam o povo inteiro para um conflito em que o próprio povo será, em última análise, o grande sofredor e perdedor. Por aqui nada de novo. Sigo meu caminho pensando apenas no dia em que retornarei ao Brasil, quando então poderei ficar ao seu lado e junto de Letícia para sempre. Pretendemos levá-lo para residir conosco, assim que nos casarmos. Desta forma você poderá contar com a nossa presença e a dos netos, diariamente. Conto com você para que os conduza, pelas mãos, a alguma pracinha arborizada onde, sentado em um banco sob a sombra de uma árvore, tomará conta deles enquanto brincam no gramado com outros meninos, jogando bola, correndo por entre as plantas ou sentados a sua volta ouvindo estórias. Na volta para casa, você comprará algumas balas ou pirulitos para eles que, ao chegarem, dirão para a mãe que não estão mais com fome e que querem dormir. Letícia, então, alertará você para que não compre mais guloseimas para eles antes do almoço e, no dia seguinte, como bom avô, você fará tudo aquilo, novamente. Após o almoço, você irá levá-los ao colégio próximo e, ao final da tarde, estará no portão esperando-os na hora da saída. No caminho para a casa, carregando suas pastas, você contar-lhes-á alguma coisa sobre o tempo em que o pai deles estava na guerra. Eles, certamente entusiasmados, dirão que também serão soldados quando crescerem. Você, então, lhes dirá que, para os pais, a pior coisa que pode acontecer é ver os filhos irem para a guerra. 89 Falará sobre as noites de insônia, passadas em claro, imaginando o que estaria acontecendo com aquele menino de quem você tanto gosta e cujo retorno, para junto de si, não tem certeza se irá acontecer. Mencionará a agonia de passar semanas sem receber resposta às cartas que enviou, ouvindo pelo rádio noticias sobre bombardeios com inúmeros mortos, feridos e desaparecidos, naquele longínquo cenário de guerra. Dirá do receio de receber a visita de um militar fardado, batendo em seu portão, a qualquer hora do dia. Aquela visita, você de longe imediatamente saberá do que se trata e lágrimas incontroláveis escorrerão pelo seu rosto, sem que ninguém precise lhe dizer nada. Fará menção a um sentimento contraditório, que carrega dentro de si: de um lado o orgulho de ter um filho participando do conflito, trabalhando pelo esforço de guerra e, de outro, a inveja que sente daqueles pais cujos filhos não foram convocados. Enfim, dirá que sente muito orgulho do pai deles, seu filho, porém, que jamais desejaria que eles, seus netos, trilhassem o mesmo caminho. Sem dúvida não irão entender seu ponto de vista, porém, nesta hora, vocês já estarão chegando a casa, para o banho, o jantar e a cama. Cuide-se bem e aceite um forte abraço do filho que o ama”. 90 Diário escrito no Hospital de Nápoles, Itália. Em 27 de abril de 1945, tendo a frente vários carros de combate M-8, tanques Sherman M4 e algumas viaturas de meia-lagarta M-3, os brasileiros iniciaram o ataque a Collechio. Aproximadamente por volta das 13 horas, ao atingirmos a ponte Scodogna, fomos alvo de violenta barragem de fogos inimigos que obrigaram os veículos a se deter. Atrás de um carro de combate que nos protegia, ouvíamos os disparos de armas leves inimigas, fuzis e metralhadoras, atingirem as paredes de aço do veículo como pipocas estourando dentro de uma panela. Um destes veículos, próximo ao que servia de escudo ao meu pelotão, sofreu um impacto direto de morteiro alemão, incendiando-se. Enquanto contemplava aquela cena, a portinhola de acesso ao interior do carro de combate se abriu e pude ver um soldado ainda vivo, porém, bastante queimado, tentando, sem conseguir, deixar o interior do veículo que ardia em chamas. Corri para ajudá-lo e quando o peguei pelos braços, na tentativa de puxá-lo, as mangas de sua jaqueta queimada, com as carnes e os ossos de seus braços dentro, também queimados, soltaram-se e ficaram em minhas mãos. Ele caiu de volta para o interior do carro e eu fiquei segurando seus, braços dentro dos braços da jaqueta, sem saber o que fazer com eles. Deixando-os com todo o cuidado sobre o terreno gelado, segui em frente com o pelotão. A partir daí progredimos através das colinas e dos montes existentes na região, onde havia vários bosques cobertos de neve. Ao atravessar um destes, fomos surpreendidos por uma emboscada do inimigo que, por detrás das árvores, nos alvejaram. Ao avançar para procurar abrigo, deparei-me com um soldado alemão que, parado atrás de uma árvore, me mantinha sob sua mira. Ele não atirou, tentando, talvez, me fazer seu prisioneiro. Meu fuzil, que trazia seguro na mão direita, abaixada, tinha uma bala na 91 câmara e estava destravado. Mesmo sem fazer pontaria, virei lentamente o cano em sua direção e apertei o gatilho. Embora atingido na barriga pela bala, em um ato reflexo, também comprimiu o gatilho. Senti o deslocamento daquela bala, passar bem rente ao meu rosto. Como o pelotão resistisse bem aos alemães estes foram, aos poucos, retraindo e abandonando o bosque, conosco em seu encalço. Ao saírem em campo aberto foram imediatamente, alvo de nossos disparos. Creio que foram todos atingidos, pois constituíam um alvo fácil. Considerando o longo tempo em que já combatiam e sabedores do que os esperava ao fim daquela guerra praticamente perdida, com seu país quase totalmente arrasado pelos bombardeios aliados, creio que para eles foi uma situação até mesmo procurada, pois não ofereceram muita resistência. Nas cercanias de Gaiano, ao percorrer uma estrada que descia rumo às linhas inimigas, fomos alvo de muitos disparos de morteiro e de metralhadora antiaéreas alemãs. Eu caminhava à esquerda, um pouco distante dos demais companheiros, quando uma súbita explosão, próxima de mim, atirou-me ao solo. Perdi, instantaneamente, toda a visão e a audição. Em questão de segundos pareceu-me não mais estar ali, naquela guerra. O silencio era total e, de uma posição mais alta, via-me no solo caído. Ao lado do meu corpo enxerguei minha mãe, sorrindo para mim e tentando dizer-me algo. Quando acordei, duas semanas depois, encontrava-me no 7Th Station Hospital, em Livorno. Este hospital era o mais próximo da linha de frente e, após quatorze dias em coma, em uma manhã fria e com o sol penetrando por entre as nuvens, despertei para tomar ciência daquilo que me ocorrera, através de enfermeiras brasileiras que ali trabalhavam. 92 Um disparo de morteiro que explodira bem próximo havia me decepado parte do braço e da perna, além de arrancar o olho e a orelha esquerdos; bem como ocasionado traumatismo craniano e vários ferimentos menores na boca e no nariz. Dado como morto naquela ocasião, fui, no entanto, conduzido ao hospital de Livorno. Um fato estranho, ocorrido comigo naquele hospital, e que nenhum médico soube explicar, é que, no período em que permaneci em coma, tinha absoluta consciência do que se passava ao meu redor, embora, segundo me disseram depois, mantivesse o olho direito cerrado. Via os médicos e as enfermeiras entrando e saindo do quarto, ministrando medicamentos e conversando entre si. Conquanto me esforçasse, na oportunidade, não conseguia me comunicar com eles para dizer-lhes que estava bem. A enfermaria onde me encontrava possuía quatro outras camas, ocupadas por militares norte-americanos. Embora feridos, todos podiam falar. Conversavam muito entre si, talvez falando sobre suas cidades e seus familiares. Eu, enquanto os escutava em silencio sem entender o que diziam, pensava em Letícia e em meu pai. O que estariam fazendo naquele momento? Será que pensavam, também, em mim? Será que nos encontraríamos, novamente, algum dia? Que notícias teriam desta guerra, lá no Brasil? Poucos dias depois, um dos meus companheiros de infortúnio foi retirado em uma maca, daquela enfermaria, por haver falecido durante a noite. Em seguida, outro veio preencher seu lugar. Este, todavia, estava em estado de coma e bastante ferido, segundo parecia, pois o ir e vir de médicos em sua cabeceira era bastante intenso. O Sétimo Hospital, em Livorno, era a maior e mais bem equipada Unidade Hospitalar daquele setor do Teatro de Operações Italiano e, também, a que possuía maior contingente de médicos brasileiros. 93 Ali fui carinhosamente tratado pela enfermeira-chefe brasileira Elza Cansanção de Medeiros e pelas enfermeiras Acácia Cruz, Hilda Ribeiro, Jacy Chaves e Lygia Fonseca, dentre outras, que se mostraram incansáveis nas atividades necessárias à minha recuperação. Após um mês naquele hospital, fui transferido para o General Hospital Headquarter Building, em Nápoles, onde me encontro redigindo estas notas. Neste novo hospital, disseram-me, teria melhor atendimento e poderia ter uma recuperação mais rápida. Aqui fiquei sabendo, através das enfermeiras Carlota Mello, Lucia Osório e Nair Paula de Mello, que nossas tropas haviam aprisionado em Colechio e Fornovo a 148ª Divisão de Infantaria Alemã, comandada pelo general Otto Freter Pico, além de remanescentes da Divisão Bersaglieri Italiana, comandada pelo general Mario Carloni. Havíamos feito um total de 26.000 prisioneiros, segundo me informaram no hospital. Disseram-me que Benito Mussolini havia sido morto em 25 de abril e pendurado pelos pés, junto com a amante, na Praça Sire Raul, em Milão. Em 30 de abril Adolf Hitler se suicidara em Berlim, que havia sido tomada pelos Russos. Soube também ali que a guerra acabara, no princípio de maio de 1945, na Itália, com a rendição de todas as tropas alemãs e italianas. Após tantas notícias boas recebi uma má, que me deixou arrasado durante vários dias. O Tenente, comandante do meu pelotão, após nossas tropas haverem tomado Collechio, morrera em decorrência da explosão de uma carga colocada sob uma pistola alemã, Luger, caída ao solo. Ao apanhá-la, talvez como uma lembrança que desejasse trazer para o Brasil daquela guerra, a carga detonou matando-o. Acabara-se, assim, tragicamente, o sonho que acalentávamos de sermos sócios na banca de advocacia em Niterói. 94 Os alemães eram mestres em preparar armadilhas deste tipo, principalmente em cadáveres de soldados mortos, que, ao serem tocados, explodiam. O Ministério da Guerra, em 06 de junho de 1945, ordenou que as unidades da FEB ainda na Itália se subordinassem não mais ao comando do V Exército Norte Americano, porém, ao comandante da Primeira Região Militar, sediada na cidade do Rio de Janeiro; o que significou a dissolução do contingente brasileiro. Em junho, nossas tropas começaram a deixar a Itália, rumo ao Brasil. Ao final do ano, praticamente todos já haviam partido. A enfermeira Lucia Osório providenciou a recuperação da minha mochila, onde guardo o diário que sempre me acompanhou. Com o diário em mãos e um lápis que também obtive por seu intermédio, reiniciei a elaboração das memórias desta guerra.. No hospital eu me locomovia em uma cadeira de rodas, usada, que a enfermeira Nair Mello havia conseguido obter emprestado. Estava praticamente surdo, pois havia perdido um ouvido e do outro escutava muito pouco. Conforme pude constatar, ao me olhar, pela primeira vez depois do acidente, em um espelho, meu rosto estava bastante deformado. A ausência do olho e da orelha esquerdos, além de uma cicatriz que descia da testa ao queixo, dava-me uma aparência horrível. Fui submetido a tratamento psiquiátrico, visando me conformar com meu novo corpo e minha nova aparência; porém, sabia que minha vida jamais seria a mesma. Deslocando-me pelos corredores na cadeira de rodas, podia alcançar um pátio externo onde se reuniam outros pacientes, além de enfermeiras e médicos, para pegar um pouco de sol e respirar ar puro. Ali encontrei alguns brasileiros, vítimas de ferimentos graves, como os meus, que aguardavam, também, o dia da alta. Alguns deles foram para hospitais nos Estados Unidos, dar continuidade aos seus tratamentos. 95 Certo dia no jardim onde costumava apanhar sol, fiquei conhecendo um piloto da RAF que se encontrava naquele hospital convalescendo de pequeno ferimento. Falava português e, ao ficar sabendo que eu era oriundo do Terceiro Regimento de Infantaria, de São Gonçalo, abraçou-me efusivamente para surpresa minha. Contou-me que sua família era toda de Niterói e descendente de ingleses. Ele morava na Estrada Fróes da Cruz, número 643, entre os bairros de Icaraí e do Saco de São Francisco, em Niterói, com sua mãe, irmãos e irmãs. Chamava-se Daniel Causer e era tenente da RAF. Disse-me que seu irmão, Malcolm Causer, havia servido no Terceiro Regimento de Infantaria e, tão logo fora possível, alistara-se, como filho de ingleses que era, na Marinha Britânica, por ser exímio um navegador e nadador e gostar das coisas do mar. Como Sub-Oficial, aos vinte e dois anos, participara de várias missões a serviço da Inglaterra. Em uma delas, em companhia de um marinheiro chamado Harry Smith, dirigiu um torpedo humano que afundou o cruzador Bolzano, munido de canhões de oito polegadas, último com que a Itália entrou na guerra. Seu ousado ataque, o segundo realizado com torpedos humanos na guerra, acabou com a carreira do Bolzano, fundeado no Porto de Spezzia. Contou-me Daniel que na escuridão de 21 de junho de 1942, um torpedo de dois lugares foi arriado de um navio inglês nas águas ao largo de Spezzia. Malcolm e Harry, trajando escafandros, subiram sobre o torpedo e partiram para o porto. O navio que os deixou foi alvo das poderosas baterias alemãs que defendiam a entrada do porto e, logo em seguida, os holofotes começaram a varrer a superfície do mar. 96 Os dois terminaram a missão, conforme previsto, afundando o cruzador, porém, foram feitos prisioneiros dos alemães. Fotografias aéreas feitas no dia seguinte mostravam o navio com a maior parte do costado debaixo d’água. Tempos depois, havendo fugido da prisão onde se encontrava e conseguindo chegar à Inglaterra, foi novamente enviado em missão de comandos navais na costa da Noruega. Ali, nas águas geladas do Mar do Norte, sofreu um naufrágio. Na companhia de dois outros membros da unidade afundada, aliais os únicos sobreviventes, conseguiu alcançar à costa norueguesa em zona ocupada pelos nazistas. Esquivando-se a perseguição movida pelos alemães, viu seus dois companheiros sucumbirem ao frio e à fome. Malcolm, conforme seu irmão me relatou, resistiu de maneira assombrosa, durante onze dias, a todas as dificuldades para, finalmente, atingir a Suécia onde foi internado. Durante um mês, esteve na eminência de perder ambas as pernas, em razão de gangrena por congelamento. De volta à Inglaterra, já havia sido destinado, novamente, para outra missão no Mediterrâneo. No dia da sua alta, Daniel perguntou-me se desejava alguma coisa, ou mandar algum recado para alguém no Brasil, pois, através da embaixada Britânica no Rio de Janeiro, poderia fazer chegar minha mensagem. Agradeci-lhe, porém, dizendo que não seria necessário, pois esperava, em breve, ter alta e embarcar para o Brasil. Uma coisa que pude perceber é a seriedade com que os militares americanos e britânicos enfrentaram esta guerra. Creio que tinham muito mais consciência do que nós, sobre os interesses mundiais envolvidos no conflito. 97 Em nosso país distante, havíamos nos envolvido naquela guerra, mais por um oportunismo político que por uma ameaça imediata. Também não éramos uma potencia belicosa que almejasse o domínio de territórios, recursos naturais e recursos humanos. Seguíamos como um país dependente, produtor de matérias primas, pouco ou nada industrializado, separado das potências mundiais por um oceano e por florestas. Achávamos que ali era a verdadeira localização do paraíso na Terra, e até afirmávamos que Deus era brasileiro. Não imaginávamos, sequer, o que representava a escassez de alimentos e de recursos naturais para as nações em guerra; bem como a ganância das elites dominantes destas nações, sobre a conquista e a posse de tais recursos aonde quer que, no mundo, eles se encontrassem. No hospital, deitado na cama, por vezes pensava em como minha vida havia se modificado em tão pouco tempo. Daquele jovem feliz, religioso e confiante no futuro, com uma mulher a quem amava e por quem era amado, transformei-me em um ser disforme que já havia matado cerca de duas dezenas de outros seres humanos e cujo futuro, tanto profissional quanto amoroso, havia se encerrado para sempre. Muitos de meus companheiros de pelotão, a começar pelo meu comandante, estavam mortos, feridos ou mutilados como eu. A guerra, embora ganha pelos aliados, havia deixado um saldo de milhões de mortos, feridos e desaparecidos; bem como de cidades inteiras arrasadas e campos totalmente despovoados e sem cultivo. A recuperação da destruição física, moral, cultural e espiritual, de inúmeros países, levará, sem dúvida, bastante tempo. As seqüelas de um conflito como este não se apagam, facilmente, da memória dos sobreviventes. 98 Os únicos a ganharem com a guerra são aqueles que enriqueceram com a destruição geral e que enriquecerão, novamente, com a reconstrução de tudo aquilo que foi destruído. Os soldados não são mais que inocentes agentes da guerra, defendendo interesses cujos beneficiários desconhecem, mobilizados através das mais variadas mensagens, quer de patriotismo, de coragem ou de defesa dos valores tradicionais da civilização. Milhões de vidas humanas foram e estão sendo inutilmente sacrificadas com esta guerra, apenas para que algumas poucas famílias possam continuar desfrutando das posições importantes que sempre ocuparam no mundo dos negócios e da política. Antes do inicio das guerras entre as nações, suas populações são levadas a crer que estas serão travadas apenas para proteger seus cidadãos e seus interesses. Todavia, os cidadãos que são protegidos das guerras são aqueles que dela não participam, por serem seus idealizadores, e os interesses a serem defendidos são os daqueles que detém toda a riqueza e todo o poder. Enquanto a população da Terra não se conscientizar de que todos nós pertencemos a uma única espécie criada pelos desígnios desconhecidos do Criador, que possuímos uma vida breve, que habitamos um planeta minúsculo (e com recursos naturais finitos) a viajar pelo universo desconhecido; e decidirem abolir as fronteiras (acabando com o sentimento de nacionalidade, que desune e torna antagônicas as pessoas), unificar as religiões (que também desunem os seres humanos, por fazerem estes acreditar que seu Deus é diferente e mais poderoso que o Deus do outro irmão) e as línguas (que também desunem, na medida em que impedem ou dificultam a comunicação entre as pessoas), abdicar da concentração excessiva da riqueza em mãos de poucos (que constitui um fator de injustiça social que gera revolta), não nos livraremos do fantasma das guerras. 99 Não creio que algum dia, venhamos a chegar à unanimidade de pensamento com relação a esta questão. Por muito tempo, ainda, continuaremos a nos matar como inimigos, nos campos de batalha. 100 Carta escrita no Hospital de Nápoles, Itália. “Querida Letícia, finalmente acabaram-se as lutas e os sofrimentos para os nossos soldados. Para mim acabou um pouco antes, pois fui ferido e encontro-me, atualmente, em tratamento em um hospital americano em Nápoles. Estou em um quarto amplo, com uma grande janela que se abre para um jardim ensolarado. Por duas vezes, ao acordar pela manhã e olhar para a janela aberta, avistei aquele pássaro amarelo que já havia visto em outras ocasiões, pousado no patamar. Nestas duas ocasiões notei que ele cantava, emitindo alguns sons, enquanto me observava deitado na cama. Com a entrada de enfermeiras, voou para as árvores existentes no jardim. Disseram-me que em fevereiro já poderei estar no Brasil. Como você já deve saber, minha mãe faleceu. Tenho tido poucas notícias da parte de meu pai, que há muito não me escreve. Não tenho a menor idéia de como ele estará se saindo, sem a mamãe ao seu lado. Embora desejoso de estar com você, reconheço que certamente não estará preparada para receber-me de volta. A guerra deixa muitas cicatrizes no corpo e na alma daqueles que dela participam. Não sou mais aquele afável e tranqüilo cidadão que acreditava nas virtudes humanas e na providência divina. Aprendi que o homem é capaz dos atos mais baixos e vis e das piores maldades, e que o criador não interfere na ordem natural das coisas. Também não sou mais aquele jovem saudável que você conheceu e por quem se apaixonou. Aqueles tempos acabaram-se para sempre e aquele jovem não existe mais, a não ser nas suas e nas minhas lembranças. Temo muito reencontrá-la, pois sei que você não gostará daquilo com que ira se deparar. 101 Ao chegar, pretendo ficar uns meses junto ao meu pai, apoiando-o neste momento difícil. Com o passar do tempo, verei o que pretendo fazer. Reconheço que aquilo que imaginamos para o nosso futuro, muitas vezes não se cumpre, continuando apenas como sonhos não realizados. Temos que ter a sabedoria de reformular nossos objetivos e recomeçar de novo, não importa se estes outros objetivos continuarão sendo apenas novos sonhos. No hospital onde me encontro, quase diariamente morrem companheiros internados, de várias nacionalidades. Espero não ter nenhuma complicação que leve meu estado a piorar, embora, constantemente, tenha tido febre ao cair da tarde. Alguns aviadores brasileiros do Grupo de Caça ‘Senta à Pua’ encontram-se baixados no hospital. Às vezes relatam um ou outro episódio, ocorrido com eles, nos céus da Itália. Outras vezes, falam sobre acidentes com companheiros que vieram a falecer. Nestas ocasiões suas vozes ficam embargadas e seus olhos umedecem, relembrando aqueles trágicos acidentes. Compartilho da dor que sentem, pois também já chorei a morte de, alguns, bons companheiros. Aceite um carinhoso beijo daquele que sempre a amará”. 102 Carta escrita no Hospital de Nápoles, Itália. “Pai, está bem próximo o dia do meu retorno. Meses atrás, ao ser ferido, vi claramente mamãe sorrindo e me acenando. Tenho certeza de que ela está bem, aonde quer que esteja, pois, da forma como me sorriu, pude perceber que estava feliz. Temo por você, sozinho e já idoso. Lamento, profundamente, não poder estar aí para compartilharmos, juntos, nossas dores pela perda da mamãe. Meus ferimentos, graças a Deus, foram leves e você não precisa se preocupar, pois estou bem. Não tenho planos para o futuro, desejando apenas estar em sua companhia, enquanto pudermos, para desfrutarmos um do outro. Tenho algumas economias que pretendo usar para fazer um bonito túmulo para mamãe, além de algumas obras aí em casa. Há muito não recebo noticias de Letícia. Imagino que já deve ter arranjado um emprego em alguma escola municipal. Boa professora como é certamente os colégios públicos irão querer contar com seus serviços, já que eles proporcionam um ensino da melhor qualidade, melhor mesmo que o dos colégios particulares. Foi uma pena que mamãe e Letícia não tenham se conhecido nesta existência. Não tenho dúvidas de que ambas gostariam muito uma da outra. O temperamento delas era muito parecido, pois ambas eram calmas, agradáveis, inteligentes e bondosas. A você que continua sendo uma pessoa religiosa peço que reze ao Criador pedindo por ela, mais para tranqüilizar a si próprio do que pelo benefício que ela poderia obter. Em que pese acreditar na existência de um criador, não creio que ele interfira na vida e na morte de quem quer que seja. 103 Imaginamos o Criador agindo, segundo nossas crenças e valores; entretanto, quem somos nós, simples mortais, para tentar determinar como pensa, age e julga o Criador. Quão pobre de espírito seria este, e quão imperfeita teria sido sua criação, caso necessitasse de louvações, de orações, de pedidos e de oferendas para estabelecer seus desígnios e para processar seus atos. Convivendo algum tempo na guerra, tenho a convicção de que as coisas acontecem, inexoravelmente, quando têm que acontecer. Se todas as mães e todos os pais de ambos os lados do conflito, rezar ao Criador pedindo por seus filhos combatentes (o que certamente fazem) estes, independentemente da quantidade de orações feitas, continuarão a morrer em decorrência dos tiros, das bombas e dos acidentes. Caso contrário seria possível uma guerra sem mortes. Nunca soube de nenhuma. Se o Criador quisesse interferir na contenda, tê-lo-ia feito antes que ela se iniciasse, impedindo-a, e não somente por ouvir os apelos de pais e mães dos combatentes. Como diria Voltaire, podemos imaginar quatro alternativas: ou o Criador quer e não pode (é bom, mas não tem poder), ou pode e não quer (tem poder, mas não é bom), ou não quer e não pode (não é bom e não tem poder), ou quer e pode (é bom e tem poder). Em minha opinião acredito na última hipótese, porém, sei que todos nós temos algo a aprender, nesta e em outras existências. Por este motivo o Criador, embora podendo, não interfere, modificando suas leis imutáveis em benefício de quem quer que seja. Esperando que você se conforme com o sucedido, aguardo noticias suas e aceite um forte abraço do filho que o ama”. 104 1946 105 Diário escrito na enfermaria do Terceiro Regimento, em Venda da Cruz, SG.RJ. Finalmente, em 22 de junho de 1946, cheguei ao Rio de Janeiro, após quase dois anos na Itália. Papai não estava me esperando no aeroporto. Em minha cadeira de rodas, que havia ganhado de presente ao deixar o hospital, dirigi-me para o ponto de táxi. Embarcando, dei ao motorista o endereço para onde desejava ir. Após cerca de uma hora e meia de viagem, chegamos à rua na qual eu brincava quando criança. Nada ali havia mudado para mim. A rua continuava de terra batida e as casas, embora modestas, apresentavam flores nos pequenos jardins que possuíam. Várias crianças correram em direção ao carro, quando este parou em frente à casa de meu pai. Quando desci e sentei-me na cadeira de rodas que o motorista havia retirado da mala, notei que recuaram ao olharem para mim. Chamando a porta, ninguém atendeu. Pouco depois uma vizinha veio em minha direção e contou-me que meu pai havia falecido logo após a morte de minha mãe. Estavam ambos enterrados no pequeno cemitério, próximo dali. No mesmo carro que me trouxera até ali, voltei para o centro da cidade, após passar pelo cemitério onde contemplei os túmulos de meu pai e de minha mãe, separados apenas por uma fileira de arbustos com flores amarelas. Hospedei-me no andar térreo de um hotel na Rua do Lavradio e permaneci encerrado no quarto durante vários dias, apenas saindo para fazer as refeições. No restaurante, notava a sensação desagradável de quantos me fitavam sentado à mesa. Assim, transcorreram-se dois meses. 106 Desde que chegara ao Rio de Janeiro, sentia-me na obrigação de visitar a família do tenente comandante do meu pelotão, de quem além de subordinado era amigo. Um dia, tomando coragem, embarquei em um táxi e dirigi-me à rua, no bairro da Tijuca, cujo endereço ele havia me dado certa ocasião. Não foi difícil localizar sua casa. Tocando a campainha, uma senhora com aproximadamente 50 anos veio até o portão atender. Ao identificar-me como sendo da mesma companhia e do mesmo pelotão de seu filho, abraçou-me carinhosamente e mandou que entrasse. Em casa estavam, apenas, ela e sua filha, cuja idade regulava com a do meu amigo e comandante. No início, apresentaram um comportamento muito tímido, porém, com o transcorrer da conversa pediram-me que relatasse, com detalhes, a nossa vida nos campos de batalha da Itália. Pediram-me, também, que falasse sobre as condições em que ocorrera a morte do filho e irmão. Com respeito a esta, disse apenas aquilo que ouvira dizer no hospital de Nápoles. Com relação ao nosso dia a dia, falei-lhes da nossa amizade, iniciada tão logo nos conhecemos. Disse-lhes que eu também estudava Direito e pretendia ser seu sócio, quando a guerra terminasse e ambos concluíssemos o curso. Contei-lhes das inúmeras situações difíceis que vivenciamos juntos e das incontáveis vezes em que havíamos salvado a vida um do outro. Lamentei estar no hospital quando soube de sua morte, pois, se estivesse ao seu lado, talvez pudesse ter evitado aquele triste desfecho. Discorri sobre as inúmeras ocasiões em que conversávamos sobre nossos entes queridos. Naqueles momentos, ambos ficávamos com os olhos marejados pela saudade que sentíamos de casa e dos familiares que deixáramos. 107 Falei-lhes sobre as misérias da guerra que fazem com que, aos poucos, nos transformemos e nos tornemos insensíveis à dor e ao sofrimento, nosso e dos demais. Disse-lhes da emoção de ver companheiros feridos morrer em nossos braços, sem que possamos fazer outra coisa, além de segurar suas mãos e torcer para que resistam um pouco mais, até a chegada do socorro médico. Falei do espírito de solidariedade que, muitas vezes, faz com que um companheiro se sacrifique ou, até mesmo, dê a vida pelo outro. Mencionei o fato de, durante o tempo em que permaneci no ‘front’ não haver visto nenhum ateu entre os infantes combatentes. A proximidade diuturna com a morte impede, em todos nós, a dúvida quanto à existência de um criador. Elas me ouviam em silêncio e, quando parei de falar, a mãe começou a soluçar. Disse-me, então, que sempre tivera um pressentimento de que alguma coisa ruim ocorreria com seu filho, logo após a partida dele do Brasil. Falou das inúmeras vezes em que não conseguia conciliar o sono, pensando no que o filho estaria fazendo e por quais dificuldades estaria passando. Disse-me das centenas de ocasiões em que fora à igreja orar pela volta do filho, salvo e com saúde. Mencionou as centenas de velas que havia acendido nas igrejas, os terços que havia rezado e as novenas de que participara; tudo aquilo em vão. Não podia compreender porque o criador havia deixado de atender aos seus pedidos e permitira que um filho tão bom, trabalhador e patriota (pois havia sido voluntário) tivesse aquele trágico destino. Sem saber o que dizer-lhe, afirmei, na ocasião, que jamais poderemos compreender os desígnios do Criador. Muitas vezes temos um objetivo na vida que não corresponde ao objetivo que o Criador tem para conosco. 108 Com a chegada do marido, de volta do trabalho, despedi-me de todos e retornei para o meu hotel. Um dia pela manhã resolvi ir a São Domingos, em Niterói, apenas para passar em frente à casa de Letícia, contando que, com um pouco de sorte, talvez pudesse contemplá-la no jardim regando algumas plantas, ou mesmo vê-la caminhar pela calçada com seu porte esguio e seu andar macio e elegante. Tomei um táxi na porta do hotel e dirigi-me a Praça XV de Novembro. Lá chegando peguei uma barca para Niterói onde, novamente, embarquei em um táxi que me levou até São Domingos. Passei, por várias vezes, em frente à casa de Letícia, que me pareceu totalmente deserta. Por fim, não me contendo, pedi ao motorista que parasse. Descendo, com esforço, toquei a campainha. Como ninguém atendesse, dirigi-me a casa ao lado. Lá, uma senhora informou-me que a avó de Letícia havia falecido meses antes e que esta, tendo recebido notícias de que seu namorado, ou noivo, havia falecido na guerra, mudara-se dali para uma cidade no interior do Estado, onde havia obtido emprego como professora. Não sabia dizer para que município fora, pois Letícia mudara-se sem deixar endereço. Embarcando novamente no táxi, pedi ao motorista que rumasse para o Terceiro Regimento de Infantaria, em Venda da Cruz. Ao trafegar pela Rua Dr. March e contemplar as lojas e as pessoas circulando, era como se aquele passado de militar, servindo no Terceiro Regimento, voltasse ao presente, fazendo com que aqueles anos passados nos campos de batalha da Itália não houvessem ocorrido. 109 Ao contemplar os muros do quartel, o portão da guarda e a alameda com palmeiras que conduzia ao prédio principal, meus olhos encheram-se de lágrimas. Lembrei-me de quando, apenas dois anos antes, eu percorria aquelas alamedas correndo junto com outros companheiros durante as atividades de ginástica. Recordeime dos dias de corte de cabelos na barbearia do quartel quando, reunidos por companhias, ficávamos longas horas conversando sobre nosso futuro e sobre amenidades. Notava naquelas ocasiões, que, por estudar Direito, os colegas tinham um pouco de inveja de mim; já que muitos eram analfabetos, a maioria tinha apenas o curso primário e alguns poucos haviam cursado o ginásio. Identificando-me no portão da guarda, pedi para falar com o comandante do quartel. Este já não era mais o antigo Coronel Mazza e, embora também coronel, chamavase Oscar Rosa Nepomuceno da Silva. Atendeu-me com cortesia e, sabendo de minha situação, ofereceu-me hospedagem no quartel, por uns meses, até que minha vida se regularizasse. Deu-me uma cama e um armário de madeira, em um canto vazio da enfermaria. O pouco que havia economizado, gastei mandando fazer dois túmulos de mármore para meus pais e comprando uma cadeira de rodas nova, pois a antiga era muito incomoda e me tinha sido dada, em caráter provisório, lá no hospital de Nápoles. Recomendaram-me, naquela ocasião, que, logo que fosse possível, adquirisse uma mais moderna. No quartel fiquei sabendo através de alguns companheiros que haviam servido ali e que, tendo dado baixa após o seu retorno da Itália, lá compareciam para matar as saudades do Terceiro Regimento, que grande parte dos militares mantidos na ativa após retornarem da guerra, estavam sendo objeto de discriminação, em maior ou 110 menor intensidade, nas novas unidades para onde haviam sido designados, por parte de alguns militares que não haviam participado do conflito mundial. Alguns dos que não haviam tomado parte nos combates da Itália, encaravam aos veteranos que chegavam com certa inveja e injustificado temor. Achavam, talvez, que os veteranos ocupariam seus lugares nas funções mais importantes, dada suas experiências de guerra. Muitos que já eram oficiais antes de partirem para a guerra, tiveram, ao voltar, de matricular-se na Escola de Formação de Oficiais. Vários outros foram preteridos na carreira. Como disse um filósofo, a natureza humana é de tal ordem que, em condições normais, cada um preocupa-se apenas consigo e com os seus. Um dia, resolvi descer, na cadeira nova, a Rua Dr. March, em direção a Rua General Castrioto. Pretendia fazer uma visita ao seu Miranda, com quem costumava conversar quando servia como soldado no Terceiro Regimento. Descendo em direção ao armazém do Miranda, ia contemplando as lojas que se estendiam pela Rua Dr. March. Fazia tão pouco tempo que percorrera, pela última vez, aquele caminho, porém, para mim, tudo tinha agora um aspecto diferente. As pessoas com as quais cruzava em minha cadeira, não tinham a mínima idéia de por onde eu havia andado e o que havia feito. Muitas delas sentiam-se visivelmente incomodadas, quando tinham que ceder o lugar ou desviar-se do caminho da minha cadeira de rodas. O calor e o sol forte que faziam obrigavam-me a andar devagar com a cadeira, que era movimentada pela minha própria mão agindo sobre a roda direita. Nenhum dos passantes que trilhavam o mesmo caminho meu, se ofereceu para empurrá-la. 111 A calma existente naquele recanto do mundo era muito diferente da tensão diuturna que eu vivenciara nos últimos dois anos, há milhares de quilômetros dali. No trajeto cruzei com vários militares fardados que retornavam, andando, para o quartel do Terceiro Regimento. Eram todos jovens e alegres como eu fora, também, há apenas alguns anos antes. Olhando aquelas vitrines que expunham artigos que me faziam falta, mas que não poderia adquirir com o meu soldo, senti uma tristeza enorme por tudo aquilo que o destino me havia reservado. Absorto em meus pensamentos, quando dei por mim já me encontrava em frente ao armazém do Miranda. Ao entrar com a cadeira, notei que me olhou, porém, vi que não havia me reconhecido. Ao chegar mais próximo e perguntar o que eu desejava, percebi que só então me reconhecera, pois seus olhos azuis encheram-se de lágrimas e, dando a volta ao balcão, aproximou-se de mim e me abraçou. Ficamos abraçados, chorando, durante vários minutos. Em seguida, cerrou as portas e mandou-me entrar em sua casa, que ficava nos fundos do armazém. Passei o dia contando-lhe sobre minha vida e meus infortúnios, durante e depois da guerra. Disse-me, naquela ocasião, após ouvir-me, que, através das lojas maçônicas espalhadas pelo interior do Estado, poderia tentar localizar Letícia. Agradeci-lhe e declinei do favor. Certamente ela já teria refeito sua vida, até mesmo casado, talvez tivesse um filho. Eu, na vida dela, seria somente um fardo a mais para carregar e desejava que mantivesse, com relação a mim, apenas boas recordações. Miranda pediu a esposa, dona Totinha, que mostrasse o filho que havia nascido no ano anterior. Com o bebê no colo e olhando-me firmemente, disse emocionado: - Este será militar, em sua homenagem! 112 Despedi-me do Miranda sabendo, naquele momento, que nunca mais voltaria ali. Minha carreira, como advogado, era coisa do passado. Com a dificuldade de locomoção que tinha e com o meu aspecto físico, dificilmente conseguiria clientes. Talvez nem conseguisse me formar advogado, com as limitações que apresentava. Sem objetivo na vida, com a reduzida pensão que recebo e que me obriga a morar de favor nas dependências do quartel, praticamente sem amigos e sabendo que causo repugnância àqueles que me vêem, desejaria ter ficado nos campos de batalha da Itália, junto com meus companheiros mortos e com os inimigos que matei. Talvez o Criador fosse um pouco condescendente comigo e me permitisse re-encontrar meu pai e minha mãe. Neste dia finalizo este diário que me acompanhou, durante os últimos anos, por lugares tão distantes. Não há mais razão para continuar a redigi-lo, pois sei inteiramente seu conteúdo, não possuo descendentes para quem deixá-lo e, certamente, ninguém se interessará pelo que contém; já que fala, tão somente, sobre a vida de um simples soldado de infantaria, até então sobrevivente aos apelos da morte para um encontro pessoal, encontro este, finalmente, marcado para hoje. 113