Spirito Santo DO SAMBA AO FUNK DO JORJÃO
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Spirito Santo DO SAMBA AO FUNK DO JORJÃO
DO SAMBA AO FUNK DO JORJÃO Ritmos, mitos e ledos enganos no enredo de um samba chamado Brasil Spirito Santo DO SAMBA AO FUNK DO JORJÃO Ritmos, mitos e ledos enganos no enredo de um samba chamado Brasil 1ª Edição POD Petrópolis KBR 2011 Edição e revisão KBR Editoração APED Capa KBR Imagem da capa Congada, Festa de São Benedito, Poços de Caldas, MG (arquivo Google) Copyright © 2011 Spirito Santo Todos os direitos reservados ao autor ISBN: 978-85-64046-78-8 KBR Editora Digital Ltda. www.kbrdigital.com.br [email protected] 24 2222.3491 B869-4 Ensaios Brasileiros Para minha mãe Geny, mãe de mim, logo mãe de tudo Reflexões gerais acerca das origens e dos significados do Samba, à luz de algumas das características mais evidentes de sua evolução através do tempo e do espaço, seus meios — o disco, o rádio, as bandas musicais e os conjuntos de percussão de rua — e seus fins — dentre os quais o de ser a síntese de todos os dramas e dilemas socioculturais do Brasil. Sumário Apresentação Agradecimentos Sobre o autor Prefácio 11 13 17 21 Prólogo: Espaço/ Tempo Concentração O Abre-alas: um conceito Samba “de fato” Os nagôs e a morte cultural dos bantos 27 29 33 35 43 43 PARTE 1 Samba no tempo — O Rito e a Passagem Os bakongos e nós... Samba e Escolas de Samba E qual seria o samba deste enredo? 57 59 63 71 PARTE 2 Samba no tempo — Fogo no caldeirão Tambores de Zambi, Xangô e todos os santos Senhor canhão: bucha escrava Batuque caduco Deus e o diabo sambam 77 79 79 97 105 121 PARTE 3 Samba no espaço — Corte e cidade Malungos e mussurumins Tambores e gênese das Baterias de Samba O samba e as escolas matrizes O samba da Mangueira 139 141 147 147 163 171 |9| PARTE 4 Samba no espaço — Roça Jinongonongo! Império Serrano O samba das escolas rurais O samba da Portela 175 177 195 199 205 PARTE 5 Samba no espaço — Serra Pontos de moçambiques (ou candombe) Reinado de Kongo no Salgueiro O samba e as escolas tijucanas O samba da Acadêmicos do Salgueiro 209 211 213 227 231 PARTE 6 Samba no espaço Subúrbio O samba das escolas suburbanas O samba da Mocidade Independente 235 237 243 PARTE 7 Samba de uns e outros — Conceito e Preconceito Mas, afinal... o que será mesmo samba? Os puristas do mal Native Brazilian Music Modernistas de ocasião Influência reversa Axé de academia O hibridismo miscigenado Jongo “da Serrinha” Jongo basam: o samba ao contrário A manjedoura do samba 253 255 255 259 275 285 291 295 299 305 315 329 EPÍLOGO — O juízo final Terreno baldio Predadores e ralé festeira Escolas de samba 343 345 347 357 Bibliografia 361 Apresentação O som africano de muitas diásporas H á que se perceber, antes de tudo, a combinação de gingado e erudição desse espírito inquieto, mal disfarçado em sobrenome plácido e fala mansa. Sem isso, compreende-se o argumento, mas não a moldura de Do Samba ao Funk do Jorjão, de Spirito Santo. Seu percurso transatlântico, envolvendo África, Europa e Américas, procede criteriosamente entre registros de séculos passados e depoimentos tomados em tempo real, perscrutando as possíveis trajetórias das múltiplas práticas musicais africanas em sua diáspora infinda. É marcado por um radicalismo corajoso ainda em demanda à nossa volta, simultaneamente politizado e refratário ao racismo “cordial”, renitente e demolidor de reduções mistificadoras e pseudomilitantes da experiência africana no Brasil, e apoiado em pesquisa histórica e etnográfica consistente, realizada, diga-se de passagem, fora da academia, mas com ela dialogando de modo independente e criativo. Passa assim em revista a aventura do jongo, do samba, dos ranchos carnavalescos e outros instrumentos de afirmação da negritude em | 11 | Spirito Santo solo brasileiro, em sua assimilação crítica e seletiva de influências variadas, como o bolero, o jazz e o funk — ao inverso do clamado por visões puristas, que, como bem observa Spirito Santo, muitas vezes não são ingênuas e travestem formas ainda mais sutis de racismo, indicando, mais do que impondo aos oprimidos, os limites de sua própria libertação. Ressalte-se, por fim, a oportunidade dessa publicação em meio à discussão, a carecer de aprofundamento, sobre o conceito de patrimônio imaterial, das políticas a ele relacionadas e suas consequências para os povos e comunidades por elas afetadas. Samuel Mello Araújo Diretor do Laboratório de Etnomusicologia da Escola de Música da UFRJ | 12 | Agradecimentos Garimpo da Memória N ão sei se ele se lembra, mas ali pelo final dos anos 1970, muito do que viria a ser este livro andou sendo vagamente conversado entre nós dois em meio a muitos chopes no Amarelinho, em rodas sem compromisso. O tema central desses papos raros, mas sempre enriquecedores, girava em torno das profundas marcas deixadas na cultura brasileira pelos escravos angolanos — os bantos —, das quais eu e o meu Grupo Vissungo garimpávamos diligentemente os indícios musicais em apaixonadas viagens pelo interior de Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Bahia, numa época em que o assunto era tratado por nossa intelligentsia — inclusive a do movimento negro — com total indiferença e descaso, como, aliás, até hoje. Ele não: cada vez mais ligado, lavrando palavras. Vez por outra, sempre que a gente se esbarrava, a pilha de cartelas de chope aumentava junto com o glossário de um kimbundo, um umbundo corriqueiros, que a gente ia garimpando no ar, como num jogo de adivinhas, doidos pra | 13 | Spirito Santo falar africano de novo, com o resto da galera da mesa nos olhando de banda, nos achando meio metidos a poliglotas de línguas exóticas — olha só que maldade — como aquele falador de javanês do Lima Barreto, ídolo das letras de todos nós: “E bolo? E bunda? E gongolo? E banana? E cachimbo? E bengala? E dengosa? E quizumba?...” Acho que Brasil e Angola têm hoje mais um grande dicionário de kimbundo — língua falada pela maior parte dos escravos da região do Vale do Rio Paraíba do Sul e umas das línguas mais determinantes do nosso linguajar brasileiro — um pouco por causa daquelas cartelas. É que ele acabou fazendo mesmo muitos livros sobre isso e sobre tantos outros garimpos posteriores. Quando nos reencontramos, pouco tempo atrás, muitos anos depois daqueles chopes e com as cabeças já grisalhas, eu sem saber o que fazer com um calhamaço sobre a formação das Baterias de Samba que tinha nas mãos, gostei de ouvi-lo mandar o conselho: “Faz um livro!” É por essa e outras que o primeiro agradecimento vai mesmo para ele, Nei Lopes, o patrono emocional do garimpo que foi este livro. O segundo tem que ser para Fernanda Felisberto, responsável pela transformação do calhamaço — que com a força do Nei já havia crescido a olhos vistos —, num livro de verdade, enfim, sugerindo a possibilidade de o material vir a ser editado — o que não ocorreu na época, mas que mesmo assim valeu. Daí, com a força dos dois, ficou fácil. Como pilha de cartelas de chope em mesa de bom papo, a lista dos colaboradores só fez crescer. Devo agradecer a Heitor dos Prazeres Filho, que prontamente se dispôs a me ajudar em tudo, força que infelizmente acabei não utilizando porque, embrenhado e tateando nos labirintos e becos escuros do samba de rua, descobri que passaria ao largo da história do samba “esporte fino”, construído por Heitor dos Prazeres, o pai, e por Pixinguinha, Ismael Silva e tantos outros pais e precursores. É de lei agradecer também, e vivamente, à garotada do Kebração — Fábio Florenço, Alexandre Nascimento, André Rocha, Hugo Barbosa, Lincoln dos Santos, Priscila Pessoa e William Barbosa —, grupo de aguerridos alunos de Ciências Sociais, Letras e História da PUC que, surgindo quase do nada, se tornaram alunos do Musikfabrik no mesmo momento em que Fernanda me sugeria a possibilidade de editar este trabalho. Como verdadeira tropa de choque, esse pessoal do Kebração assumiu francamente a função de garimpar meticulosamente parte da | 14 | Do Samba ao Funk do Jorjão bibliografia consultada para o livro, argutos pré-leitores que se dispuseram ainda a discutir quase tudo com o já então privilegiado autor, livrando o calhamaço de alguns dos muitos erros e equívocos que ele continha — e deve conter ainda, é claro —, mesmo já alçado à condição de livro. Devo agradecer a eles, sobretudo, por possuírem, mesmo sem o saber, aquela pura e sincera energia de militantes do movimento negro dos anos 1970, coisa que orgulhosamente fomos e seremos ainda por mais algum tempo. Ah... E tem o João Batista Costa, da UERJ, que com seu seminário ensejou as primeiras páginas do calhamaço; e Hiram Araújo e Zózimo Bulbul, que com o pessoal da LIESA — Liga Independente das escolas de samba — me permitiram ver um pouco dos desfiles da Marquês de Sapucaí, ali, como jurado, cara a cara na cova do leão. E ainda o tal presidente de uma das grandes escolas — devo confessar: foi o presidente da Mangueira — que, decidindo me defenestrar do júri, me assanhou os brios de garimpeiro e pesquisador. Agradeço, sobretudo, aos leitores destas linhas, aos quais peço sinceras desculpas pela talvez excessiva — mas de forma alguma tendenciosa — citação de dados da minha Mocidade Independente de Padre Miguel, primeira emoção “sambística” da minha vida; e pela insistente defesa da herança bakongo na formação cultural brasileira, instigada com certeza por minha provável ascendência angolana, neto ou bisneto que sou de vissungueiros benguelas de algum lugarejo remoto perto de Diamantina, Minas Gerais, de onde veio meu pai. Por ter sido uma das maiores emoções da minha infância e adolescência ouvir um tambor de Folia de Reis na Vila do Vintém, sentir o estômago tremer durante a passagem de uma seção de surdos da bateria da Mocidade Independente na Rua Coronel Tamarindo, em Padre Miguel, o último agradecimento só poderia ser para o meu povo malungo: o pessoal de Padre Miguel, representado aqui pelo Tiãozinho da Mocidade, um mestre na história da cultura “padremiguelina” e suburbana; Mestre Bira, verdadeiro pai da “paradinha funk”; Tião Miquimba, provável inventor do surdo de “terceira”; e Mestre Jorjão, homenageado aqui como símbolo de ousadia artística. Com a maior das emoções, dedico este livro ao “jovem-maisvelho” Umberto Alves, também padremiguelense como eu, infelizmente falecido enquanto este livro ainda estava nos finalmentes — alunosímbolo do nosso projeto Musikfabrik, aquele que garimpou conosco | 15 | Spirito Santo as histórias da lendária bateria de Moça Bonita, além de arregimentar todos os depoentes locais. Finalmente, dedico este livro também e, honrosamente, aos Mestres de Bateria de Samba do Rio de Janeiro André e Waldemiro, estes que, comandando tudo ali, no apito, nas convenções da memória e nos rufos e breques da emoção, conduziram este livro-escola até a sua paradinha final. Spirito Santo | 16 | Sobre o autor Intelectual, ser político, artista, artesão, ponte antropofágica de fluxos incessantes entre África e diáspora, demiurgo no país dos bruzundangas, estas e tantas outras facetas caberiam no ser humano aqui homenageado, também capaz do papo mais saboroso e suingado à mesa de um bar, na Lapa de mitos e heróis, famosos e anônimos. Do intelectual, que se autotraduz aos interlocutores por meio de linguagem polimorfa, abrangendo sons, gestos e escritas interpenetrantes, transborda a inquietude, a pesquisa densa e infinda dos mistérios desta vida tão simultaneamente festiva quanto fúnebre, cantada em vissungos por trabalhadores escravos espalhados pelas áreas de garimpo das Minas Gerais, sob a servidão forçada e iniquidades que perduram, mesmo após substituírem-se os grilhões de ferro e madeira por grilhões ideológicos de maior ou menor sutileza, e até aqui, de estúpida eficácia. Do ser político, a fibra de quem não se dobra ante o autoritarismo e violência dos verdugos de plantão, passando a outras gerações o exemplo de ser possível resistir ao mais aparentemente irresistível furor opressivo, cultivando sensível e dignamente a semente mais tenra da verdade. | 17 | Spirito Santo Mas há também o artista, ou algo além do mesmo, pois fabrica seus instrumentos de trabalho, múltiplos tambores, xilofones, raspadores, arcos musicais, campânulas e laminofones que, em mãos de populações africanas escravizadas, aportaram no Novo Mundo e especificamente no Brasil, povoando as Américas com sonoridades, ritmos e escalas que, explicitamente ou não, ainda podem ser ouvidos desde a terra batida das regiões remotas do interior do país até os estúdios de alta tecnologia e salas de espetáculo urbanas. Estranho mistério esse, que, aliás, só mesmo um Spirito Santo talvez pudesse desvendar: se os seus produtos sonoros, escalares e rítmicos ainda são perceptíveis hoje de modo indireto, em modos de entoação vocal, traços de afinação diferenciada da que se padronizou no Ocidente, ou polifonias percussivas de tão clara ligação com modelos africanos, por que a grande variedade de instrumentos de procedência africana que aqui chegaram — como o laminofone registrado pelo tenente inglês Henry Chamberlain, tocado por escravo, em pé e com um cesto de lenha na cabeça, no Largo da Glória, Rio de Janeiro, em meados do século XIX; ou o instrumento de corda friccionada com arco registrado por Debret, também no Rio oitocentista — teria praticamente desaparecido do cotidiano brasileiro com raras exceções, mais conhecidas pelos contemporâneos como agogôs, atabaques ou cuícas? Desse patrimônio, fustigado pela mesquinharia e ódio, surge imponente a cultura dos “africanos das Américas”, como disse o eminente músico senegalês Ali Farka Touré em recente documentário de Martin Scorcese sobre o blues. Equivalente a um atestado de esquizofrenia social das elites brancas e europeizadas, plasmada por séculos de políticas de apartheid ou de assimilação forçada, o mesmo certamente se poderia dizer do samba — corrido, duro, de crioula, de quadra ou de enredo —, do Recôncavo baiano às escolas de samba cariocas ou plantações de café paulista, samba que, filtrado e elevado a ícone no bairro de Padre Miguel, desperta em Spirito Santo desde a infância a inquietação vital em torno de seus tambores e sonoridades, signos de uma história de resistência férrea ainda em curso. A busca de referências familiares em atividade musical o leva inicialmente a identificar como laço mais próximo um tio, mestre de banda em Jerônimo Monteiro, no, imaginem, estado do Espírito Santo. E é desse inquietar que se inicia um trajeto de vida com escolhas deter| 18 | Do Samba ao Funk do Jorjão minadas, nem sempre fáceis, entre os imperativos da sobrevivência e, do lado quase sempre oposto, da expressão artística urgente, do estudo da diáspora africana em sua complexidade, do ato político certeiro e inegociável. No início dos anos 1970, época de chumbo grosso, assisto no sempre seminal Estácio a um ensaio doméstico do Sarará Miolo, grupo vocal-instrumental formado por cinco jovens, entre eles Spirito Santo e Lula, a interrogar a realidade dos negros e pobres com uma música vigorosa, embebida de história africana e com incisões de referências urbanas variadas. Impossível resistir à dança, ao movimento. Nem ainda terminada a turbulenta década, uma nova senda se abre para Spirito Santo pela leitura de O negro e o garimpo em Minas Gerais, clássico de Ayres da Matta Machado Filho sobre a cultura dos afrodescendentes trabalhadores da mineração, com indicações poucas, mas preciosas, sobre a música no contexto em questão. O vissungo, termo em dialeto quimbundo para certo tipo de cantiga associada aos africanos escravizados e seus descendentes, usada no trabalho como refúgio do humano, impulsiona a criação e nomeação de um novo grupo musical, também composto por jovens e talentosos músicos negros. Inicialmente, as referências documentais são limitadas, mas, a partir daí, será sempre ponto fundamental na trajetória do artista a pesquisa profunda e incessante, aliada à criatividade com foco, embora sem limites, como arma de ativismo cultural, muito antes e muito além do politicamente correto de hoje, enxergando com clareza a trama perversa entre relações de produção e desigualdades raciais e sociais, um jamais sobrepujando o outro. O grupo Vissungo se torna, então, passageiro de viagens incessantes entre a cidade do Rio de Janeiro e os rincões do Sudeste, tendo como foco os muitos amálgamas da diáspora africana em solo brasileiro reprocessados em sua música, levados prioritariamente às áreas suburbanas pobres com escalas ecumênicas em locais à primeira vista díspares, como centros espíritas ou igrejas pentecostais. Essa viagem passará ainda pela Europa e mais significativamente pela Áustria, onde há um encontro com referências até então inexploradas sobre a música africana, entre as quais técnicas de construção de instrumentos tradicionais africanos, que para Spirito Santo se tornam o cerne de nova exploração criativa e social, a oficina Musikfabrik. Sem ter a pretensão de abordar exaustivamente tão multifacetada trajetória, | 19 | Spirito Santo noto apenas, concluindo, que muito chão se cobriu desde os tambores de Padre Miguel, mas certamente ainda muito há de percorrer este Spirito Santo indomável, com membranas retesadas de amor e entrega, únicas forças eficazes na árdua reinvenção poética da epopeia humana. Samuel Araújo (Texto parcialmente extraído do catálogo da exposição “Musikfabrik”, na galeria Candido Portinari da UERJ, em setembro de 2010) | 20 | Para comprar, acesse a página do livro http://www.kbrdigital.com.br/do-samba-ao-funk-do-jorjao.html