Mondrian e os números irracionais
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Mondrian e os números irracionais
MONDRIAN E OS NÚMEROS IRRACIONAIS Ana Maria Petraitis Liblik Universidade Federal do Paraná [email protected] Resumo O trabalho a ser apresentado é fruto não apenas de um estudo sobre o ensino de números irracionais (número real que não pode ser obtido pela divisão de dois números inteiros), e Piet Mondrian (pintor holandês da vertente modernista), mas principalmente, uma reflexão sobre a sala de aula na disciplina de Matemática, para os anos finais do ensino fundamental. Este estudo inicial apresenta uma atividade específica que foi utilizada com sucesso em sala de aula e está sendo disponibilizada para que outros professores possam conhecê-la e, se for de interesse, aplicá-la em seu cotidiano escolar. Palavras-chave: Educação Matemática, números irracionais e racionais, Arte Abstrata, Piet Mondrian. Abstract This present paper is the result not only from a study on the teaching of irrational numbers (real numbers that cannot be obtained by dividing two integer numbers) and the art of Piet Mondrian (Dutch painter modernist strand), but mainly a reflection about the Mathematics classroom for High School. This initial study shows a specific activity that was successfully used in the classroom and is being made available for other teachers to know it and, if appropriate, apply it in their daily school routine. Keywords: Mathematical Education, irrational and rational numbers, Abstract Art, Piet Mondrian. 1 Introdução Este trabalho é fruto não apenas de um estudo inicial sobre números irracionais (número real que não pode ser obtido pela divisão de dois números inteiros), e Piet Mondrian (pintor holandês da vertente modernista abstrata), mas principalmente, uma reflexão sobre a sala de aula na disciplina de Matemática, para os anos finais do ensino fundamental. A importância de se utilizar diferentes linguagens para o ensino, principalmente valorizar as diferentes expressões gráficas, tais como trabalhos de artistas, desenhos e outras manifestações gráficas bidimensionais, é o objetivo deste artigo. 2 Relatando o percurso: teoria e prática em parceria Entre os conteúdos que são ensinados nas séries finais do ensino fundamental, está o conjunto dos números Reais, sendo que este conjunto numérico é onde majoritariamente se trabalha nestas séries. Ele surge na união do conjunto de números racionais e o conjunto dos números irracionais. Enquanto explicitar e apresentar exemplos para o conjunto dos racionais (formado pela união dos naturais, inteiros mais os fracionários) é relativamente fácil, o mesmo não acontece com o conjunto dos números irracionais, onde exemplos são dados, mas dificilmente os alunos entendem como é ele formado, o que efetivamente representa. Sabemos que nem sempre é possível resolver equações e funções, dentro dos padrões matemáticos e de acordo com a condição de existência da incógnita na expressão, sem entender que esta incógnita pode pertencer ao conjunto dos números racionais ou ao conjunto dos números irracionais (talvez por isso façamos todos os exemplos serem do conjunto dos números reais, sem “separar” se são respostas racionais ou irracionais). Acreditamos que, se os alunos “visualizarem” estes conjuntos, se tornará, de certa forma, mais fácil o seu entendimento e principalmente talvez seja “mais fácil” encontrar a solução de problemas, determinar cálculos de áreas, volumes, centros de gravidade, previsão populacional, e muitos outros temas pertinentes a este conteúdo. Então, números racionais são números que podem ser escritos na forma m/n, onde m e n são números inteiros, sendo que n deve ser não nulo, isto é, n deve ser diferente de zero. Frequentemente usamos m/n para significar a divisão de m por n. Alguns exemplos de números racionais: 5 : 3 = 1,666666..... 8 : 5 = 1,6 10 : 3 = 4, 3333333....... 13 : 8 = 1,625 21 : 13 = 1,6153846153846153846153846153846 ... Todo número racional tem uma fração geratriz que o “gera”. Os números irracionais serão então os reais que não têm uma fração geratriz. Isto parece simples, mas na realidade é difícil ensinar como determinar as frações geratrizes. Não é fácil também explicar que o zero, por exemplo, é racional. Estes conteúdos são bastante abstratos. Vejamos alguns exemplos de números irracionais: 0,232355525447... 2,102030569... √2 , √3 , √5, √7 Para melhor explicitar a nossa relação com o ensino, vamos assumir que Matemática seja uma busca por padrões, repetições, e isso poder ser percebido em números racionais, onde há certamente um padrão, uma dízima que se repete, por exemplo, 3, 00000 (três inteiros) ou 27, 5033333... (vinte e sete vírgula cinco zero três três três...). Por extensão, podemos dizer que então números irracionais são aqueles que não têm um padrão aparente, que não há repetição em sua representação. Segundo Hardy, Um matemático como um pintor ou um poeta, é um criador de padrões (modelos). [...] Os padrões dos matemáticos, como os dos pintores ou dos poetas, precisam ser belos; as idéias, como as cores ou palavras, precisam se ajustar em um caminho harmonioso. Beleza é o primeiro teste, não há lugar permanente no mundo para matemática desagradável. (HARDY, citado por BARBOSA (1993, p.58). Uma das primeiras vezes em que a ideia de um número irracional aparece em um texto é a Bíblia, no Primeiro Livro dos Reis, capítulo 7, versículo 23: “Fez mais o mar de fundição, de dez côvados, de uma borda até a outra borda, redondo ao redor, e de cinco côvados ao alto; e um cordão de trinta côvados o cingia, em redor.” O valor de é 3, pouco exato neste texto, não representa a razão entre a circunferência e seu diâmetro, sendo que, desde 2000 a.C., os homens têm consciência de que a razão entre a circunferência e o seu diâmetro igual para todos os círculos, é uma constante: 3.14159265358979323846264338327950288419716939937510582097494459230781 640628620899... A letra grega foi introduzida em 1706 por William Jones (1675-1749) para representar esta constante. Só no sec. XVIII é que se provou que é um número irracional, isto é, que não pode ser expresso como uma fração. Em termos práticos, isso significa que o número de casas decimais que pode ter é infinito, mas também quer dizer que não apresenta um padrão, uma sequência que se repete. Piet Mondrian era um artista considerado abstrato, e ele e outros abstracionistas “aprenderam com a diversidade de artes decorativas, com a arquitetura, com as belas estruturas da matemática e da arte. [...] A abstração não suplantou a arte representacional, mas ocupou um lugar ao seu lado, descobrindo novas possibilidades de visão, mudando a maneira como as coisas são vistas e conhecidas”. (GOODING, 2002, p. 09) (grifos nossos). Mondrian (1872-1944) afirmava que paisagens são feitas pelo homem e dominadas “pela geometria da linha reta e do ângulo reto, da horizontal e da vertical”. (GOODING, 2002, p. 26). Seu trabalho ia em direção a uma “calma equilibrada e para a simplicidade aparente da abstração pura [que] se caracteriza por uma redução rigorosamente lógica...” (GOODING, 2002, p. 25). Praticamente todas as obras de Mondrian, após 1921, “se atém às cores primárias, além do preto, branco, cinza, os arranjos são assimétricos e as relações composicionais são controladas dentro de uma estrutura ortogonal, isto é, perpendicular com ângulos retos (“ortogonal” combina os termos gregos para “vertical” e “ângulo”)”. (GOODING, 2002, p. 30) Chipp (1999), ao escrever sobre o neoplasticismo e construtivismo – Arte abstrata e não objetiva, nos diz que a pintura deveria “compor-se de formas totalmente abstratas que tinham sua origem na mente humana” (CHIPP, 1999, p. 313). E os números, não são construções da mente humana, totalmente abstratos? A sua representação, pelos numerais, faz com que se torne mais “palpável” a aproximação com o mundo da sala de aula. Representações são re-apresentações do pensado, do visto, do que se “construiu” com o pensamento humano, e isto pode ser feito a partir de diferentes linguagens, diferentes códigos. De forma alguma pensamos que as Artes Visuais possam servir como “muleta” para o ensino dos números irracionais, mas já que muito do que os nossos alunos apreendem e aprendem se dá pelo sentido da visão, é possível associar os conjuntos dos números racionais e irracionais ao trabalho de Mondrian. Tendo a ousadia de traçar um paralelo entre o Neoplasticismo de Mondrian e os números irracionais, podemos desenhar uma tabela estabelecendo uma relação biunívoca entre numerais e cores. Vejamos na prática como isto pode ser aplicado em sala de aula. Desenhe uma tabela, (10 x 10)1, ou na tela do computador ou no papel já quadriculado grande, considerando que é um “recorte” de um todo. Tanto dízimas periódicas quanto números irracionais são infinitos, portanto não podem ser “limitados” pelas bordas do desenho da tabela, por isso consideramos o traçado apenas como um recorte de um todo e aberto “embaixo”, para uma continuidade. Depois, a partir do referencial em cores abaixo, preencha os quadradinhos da tabela com o “código” do número escolhido. 1 A tabela poderia ser de outro formato, mas visualmente, esta de 10 x 10, parece ser mais familiar ao que o olho humano nosso, ocidental, está acostumado. 1 2 3 4 5 6 7 8 Figura 01: Tabela 10 x 10 em branco Coluna dos números inteiros a) 1, 898989... Figura 02: Tabela de 1, 898989... 9 0 Coluna dos números inteiros b) 0,352035203520... Figura 03: Tabela de 0,3520352... Coluna dos números inteiros c) 73,000 (setenta e três inteiros) Figura 04: Tabela de 73 (inteiros) Observe que nos exemplos há um padrão, uma cor que se repete. No primeiro: 1, 898989... na coloração da tabela se formam três colunas, cada uma da mesma cor. No segundo, 0,352035203520..., há um “ritmo” colorido que é constante e se repete: No terceiro exemplo, o zero é o que se mantém constante. Alguns números irracionais fogem de um padrão assim estabelecido. Por exemplo, 4,70700700070007.... possui uma “regra” em sua composição e que produz um padrão definido, mas não repete o mesmo modelo. Vejamos agora, utilizando a malha 10 x 10 e o código de cores apresentado acima e não separando a coluna dos inteiros, como podemos representar um número irracional. Figura 05: 2,1020305697705924452531778999012512588953467668907696655512345678900987 6543211010010001000777551213... Mais um exemplo, o valor que representa a relação entre o comprimento de qualquer circunferência e o diâmetro e correspondente a, 3.14159265358979323846264338327950288419716939937510582097494459230781 640628620899... Figura 06: Tabela do A partir do preenchimento colorido da tabela, é fácil perceber que na representação gráfica dos números irracionais não há um padrão, uma repetição visualmente percebida. E agora observemos algumas obras de Piet Mondrian (DEICHER, 2001), onde não se percebe um padrão colorido específico, que se repete. Figura 07: Piet Mondrian Composição no Tabuleiro de Damas, com cores escuras, 1919 Óleo sobre tela, 84 x 102 cm Haia, Haags Gemeentemuseum Figura 08: Piet Mondrian Composição em vermelho, amarelo, azul e preto, 1921 Óleo sobre tela, 59,5 x 59,5 cm Haia, Haags Gemeentemuseum As duas obras anteriores são de certo modo “comportadas”, pois apresentam o trabalho por sobre uma malha ortogonal fixa. No decorrer do tempo, Mondrian passou a desconfigurar esta base, fazendo com que as figuras geométricas como que flutuassem no plano. A idéia do não-padrão continua, esta obra abaixo também poderia ser uma representação de um número irracional. Figura 10 - Piet Mondrian Recorte de Composição em superfícies coloridas, No. 3, 1917 Óleo sobre tela, 48 x 61 cm Haia, Haags Gemeentemuseum Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados. O objetivo, porém, é apenas o de mostrar mais uma maneira de ensinar aos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental, o que são números racionais e irracionais, de maneira visual. Os próprios professores e alunos podem pesquisar outras obras e outros artistas, tais como Jasper Jones, que representa numerais em muitas de suas obras. Expressar graficamente a idéia de que um número racional tem um “padrão” visual e a que um número irracional não apresenta um padrão determinado é algo que, acreditamos, alunos entendem muito mais facilmente do que estudar como determinar frações geratrizes e depois “ver” se elas representam ou não números racionais/irracionais. Nessas obras de Piet Mondrian não há um padrão, uma repetição de figuras geométricas coloridas, portanto podemos concluir muito audaciosamente que, nestas obras, ele “pinta” números irracionais. Estas atividades foram realizadas nos vários anos em que ministramos aulas de Matemática e Desenho Geométrico em escolas de ensino básico e também na disciplina de Didática para o curso de Matemática na UFPR. O aprendizado destes conceitos foi bem sucedido, de acordo com provas realizadas na época. Algumas experiências também foram feitas nas aulas de Didática na UFPR. Aparentemente os resultados são sempre satisfatórios, como atesta a escrita de um aluno: É incrível! Vergonhoso, mas incrível. (...) Depois de 29 (vinte e nove) anos de vida escolar! Fiquei realmente impressionado com a forma simples usada para se distinguir estes números. Eu nunca iria imaginar que aprenderia isto numa aula de Didática. É tudo uma questão de padrão de repetição. Mas porque nunca me disseram isso? Ou se disseram, não lembro (SFL, 2005). Mas o objetivo deste texto é apenas o de apresentar possibilidades metodológicas diferenciadas das usuais e não o de fazer uma análise acadêmica de seus resultados, proposta que poderá em breve ser escrita. 3 Algumas considerações finais A idéia de se usar a visão para o entendimento de conceitos e demonstrações matemáticas não é nova, mas é muito pouco utilizada em sala de aula. Usar imagens para explicar conceitos, idéias, já era algo que Jan Amos Comenius (1592-1670), considerado o pai da Didática, fazia. Autor de Didactica Magna, em 1658 ele publicou Orbis sensualium pictus considerado o primeiro texto escolar ilustrado, o qual foi usado como tal, até o final do século XVIII. Pela observação, pelo olhar, associando imagens e texto, Comenius vislumbrava um caminho para ensinar e o conseqüente aprender. Esta mesma forma de entender a importância da imagem para a explicação das idéias foi retomada por Denis Diderot e Jean le Rond D'Alembert em 1772, quando da escrita e da publicação da Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Esta imensa obra é formada por 28 volumes com 71.818 artigos e 2885 ilustrações, dando uma média de praticamente 25 artigos para cada página de ilustrações, sendo que assim os conceitos eram explicados por meio de duas linguagens, dois códigos: a escrita e o desenho. Sabendo que nossos alunos fazem parte de uma geração fortemente visual, seria ingênuo hoje supor que bastaria a apresentação de desenhos, figuras para que o conteúdo fosse efetivamente absorvido pelo aluno. Sem dúvida, o que se apresenta como imagem, é mais bem percebido uma vez que basta “ver” para, na maior parte das vezes, entender e talvez até, aprender. Mas muito mais do que apenas “ver”, devemos possibilitar a interação, o interagir do aluno entre a imagem e o conhecimento para que essas idéias possam ser efetivamente apropriadas e aprendidas e finalmente talvez assim aconteça a tão esperada compreensão e apropriação do que sejam números irracionais e racionais. (LIBLIK, 2001, p.153) Neste artigo apresenta-se uma maneira diferenciada (talvez não tão Matemática) de ensinar o que sejam números irracionais e racionais. Valorizar as variadas expressões gráficas que auxiliam os processos de ensinar e aprender é uma das metas a serem atingidas pelas pesquisas mais recentes realizadas no campo da Educação. Segundo Meira (2003, p. 132), “o sujeito enfrenta, hoje, no cotidiano, uma verdadeira epopéia do olho e da pulsão de ter que ler com o olhar”. A leitura com o olhar é uma leitura realizada por meio de diferentes códigos. Ensinar a ser capaz de decifrá-los, comunicar-se por meio deles é o que as instituições de ensino – dos mais diferentes graus – deveriam fazer. E a própria autora alerta que “não se prepara o professor para desempenhos comunicativos e expressivos ao nível do desafio do ensino e das crianças atuais, não se prepara o professor, sobretudo, para dialogar com o mundo através de um universo imaginal” (p. 132-3). Mas se preparar o professor para que ele possa ampliar o seu olhar, o seu universo imagético e nele transitar com os alunos por meio das diferentes expressões representativas do que ele tem a ensinar, é a proposta de qualquer curso de formação de professores, seja nos cursos de Pedagogia, seja nos cursos de Licenciatura das mais diversas áreas, por que isso não acontece? Devemos considerar então que não importa se é História, Matemática, Biologia, Artes ou Inglês, o importante é permitir que nossos alunos se apropriem de linguagens e de códigos dos mais variados, para facilitar/melhorar processos de aprendizagem. Afinal de contas, saber não é ter o domínio de conteúdos dos mais variados e por eles transitar? Dessa forma será possível dar um novo valor ao que já se tem feito fora da sala de aula – comunicação visual intensa - e, quem sabe assim, ampliar as diferentes escolhas metodológicas de ensino dos professores, mas sempre considerando prioritárias as gráficas, tanto bidimensionais quanto tridimensionais. A representação tridimensional da ideia de números racionais e irracionais no espaço é tema para outro texto. Referencial bibliográfico BARBOSA, Ruy Madsen. Descobrindo padrões pitagóricos geométricos e numéricos. São Paulo: Atual, 1993. CHIPP, H.B. Teorias da Arte Moderna. Tradução Waltensir Dutra et al. 2ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. DEICHER, Susanne. Mondrian. Köln: Taschen, 2001. GOODING, Mel. Arte Abstrata. Tradução Otacílio Nunes e Valter Ponte. São Paulo: Cosac Naify, 2002. LIBLIK, A.M.P. Cultura científica e cultura humanística: uma possível mediação pela imagem. São Paulo: Universidade de São Paulo, novembro 2001. 218 p. Tese, Doutorado em Educação, Linha de Pesquisa Ensino de Ciências e Matemática. MEIRA, M. R. Educação estética, arte e cultura do cotidiano. In: PILLAR, A. D. A Educação do olhar no ensino das artes. (pp.119-140). Porto Alegre: Mediação, 2003.
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