Aqui - Luís Valente Rosa
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Aqui - Luís Valente Rosa
Editor: DG edições Av. D. Pedro V, 15 - 5.º Esq.º 2795-151 Linda-a-Velha Composição e maquetagem: DG edições Capa: Carlos Mateus Fotografia da capa: Maria João Valente Rosa Impressão e acabamento: Digital XXI ISBN: 978-989-8135-47-6 Depósito Legal: 310503/10 Primeira edição: Maio de 2010 © 2010, Luís Valente Rosa e DG edições. Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor. 2 Luís Valente Rosa A prisão da liberdade romance 3 4 Em memória do meu avô Filipe Em memória do meu pai 5 6 Abertura Talvez a melhor solução seja escrever um romance. Um romance broástico. Estes dois anos que passaram mudaram profundamente a minha perspectiva das coisas. E o que foi inicialmente insignificante, como o local, ou mesmo as gentes que o habitaram, é hoje elemento essencial da minha melancolia. Perante tudo o que se passou, só encontro a palavra fantástico para o descrever. Palavra curiosa, cheia de significados diversos, com uma etimologia lá para os lados da imaginação. Fantástico de fantasia e de irreal. E portanto de inacreditável. Mas fantástico também no sentido de prodígio, de constatação de uma realização acima do esperado. Consequentemente, originário de uma causa bem real. Ora, tudo o que testemunhámos – e combinámos um pacto de silêncio sobre certos pormenores relativos ao que se passou – tem essa dupla dimensão: vimos como o irreal, o impossível, o sobrenatural, não fazem qualquer sentido como conceitos exteriores à realidade. O irreal é o homem que o constrói. Pertence ao outro sonho do homem, ao outro mundo que ele ousou construir dentro de si. Porque no Universo não há limites, não há impossíveis. Não existe a fantasia, no Universo. Existe o fantástico. Por isso se 7 falava, a propósito do Bergier e seguidores, do “realismo fantástico”. Mas nunca tinha pensado sobre o verdadeiro alcance da palavra. Sobretudo associada ao realismo. Os homens vivem fechados numa concha de ignorância, com os olhos totalmente tapados, mas, acima de tudo, numa concha de uma total falta de imaginação. Tudo o que está para além dessa pequenez é projectado na fantasia. Os homens evitam a confrontação com a existência de tudo o que os excede. Existiam mundos por descobrir – soubemo-lo perante o susto de uma visita inverosímil, mesmo para mim – e, de certo modo, fomos os eleitos. Os iniciados. A luz apareceu e deixou-nos lívidos de espanto. Confronto de humanidades, ou talvez não tanto, fomos timoneiros de um barco perdido em busca de um novo horizonte longínquo. – Longe… onde? Quando Daniela, a bela Daniela, respondia – Não sei Os barcos levam as pessoas para longe. O assombro da distância, Gonçalo temia-o, nas suas vozes proféticas e assombradas. Pensava na segurança perdida da sua infância e no que esse assombro representava de abismo sobre o nada, o vazio, a ausência. Melancolia também do mar, sobretudo quando há noites de luar, que sempre me inunda os olhos quando os fecho por alturas da solidão e dos momentos em que não sei o que fazer, ou não sei, apesar de todo esse fantástico que se produziu, se, do ponto de vista científico, não perdi, desbaratei, dois anos da minha vida. E tanto que esses anos eram supostos ser os mais importantes de todos. Era o meu castelo filosófico que tinha de nascer. E eu tinha que escrever 8 o livro final – ainda hoje tenho, embora cada vez me falte mais a convicção –, o livro decisivo, o livro absoluto. E o mais incrível é o facto de ter hoje material – mesmo respeitando o pacto de silêncio – para escrever um livro científico lapidar, que viraria o mundo do avesso. Um livro que serviria de luz guiadora dos homens, que atingiria o cerne da sua felicidade futura por via de uma sociedade nova, verdadeiramente justa e em liberdade. Mas as grandes questões só são verdadeiramente importantes enquanto não conhecemos as respostas. Depois, passamos para um segundo nível do entendimento sobre o que nos rodeia, um nível mais além, e as premissas do passado desaparecem subitamente, dando lugar a algo totalmente novo. Ou seja, queremos muito saber a resposta a determinada pergunta, mas, quando a conhecemos, percebemos que a pergunta verdadeiramente interessante vem sempre a seguir. Não é bem isso, não me explico bem. É uma questão de hierarquia na importância de certos valores. Prezamos o conhecimento como instrumento máximo da nossa “salvação” e, quando o adquirimos – atingindo esse estado que normalmente designamos por sabedoria –, compreendemos que, afinal, esse não era o valor essencial, o valor final. Como eu lembro aquela noite em que o mar se iluminou, como uma cidade em bulício. O intenso luar nele espelhado mal se distinguia, perante aquela luz forte e amarelada que dele saía. Eram doces, os momentos intermináveis de espera. Manuel tocava, ou dizia – As mulheres nuas. E era enquanto os seus olhos se lhe turvavam de amor, e os meus se me varriam de claridade, que eu pensava em como era tão forte essa imagem de o homem inserir toda a sua grandeza, toda a sua vida, numa fresta da realidade onde nada existia, num momento de rarefacção da existência, como Jean e Hélène, numa fracção existencial como se 9 o mundo parasse, todos ficassem suspensos do tempo, imóveis, e só eles os dois vivessem, para dizer duas palavras de amor. A luz do mar voltava para nós, com todo o seu esplendor, para nos confundir. Luz impossível, como que acompanhando, em desamparo, o milagre da música do Manuel. O mar todo iluminado à superfície, uma luz que vinha do fundo para sentir uma harmonia de vida que emergia por entre as notas dissonantes que habitavam aquela música tão bela. Momentos intermináveis de espera. Os olhos quase a fechar e eu a impedi-lo por todos os meios ao meu alcance. E os outros, é verdade, a ajudar. Se não fossem eles, não teria conseguido alterar os ritmos ao ponto de viver de noite, atento, e descansar durante o dia. Foi sorte, também. De facto, vivemos a vida sempre à nossa maneira. Às vezes penso que nunca, como aqui, houve gente a viver tão à margem da pressão de um qualquer controlo superior. Até os povos que vivem isolados, longe da civilização, têm os seus hábitos e normas a vigiá-los. Mais os chefes, por mais pequena que seja a comunidade. Aqui, nunca houve nada disso. Prisão abandonada, esquecida, no meio do mar, quatro homens sozinhos perante os mensageiros do Universo. Apenas acompanhados por uma luz que costumava vir do fundo do mar, à noite – luz amarelada forte –, vinham ouvir o Manuel tocar. Prisão solitária, quatro homens sozinhos como se vivessem num mundo à parte. E vivemos. Fizemos sempre o que nos apeteceu, nunca fomos aborrecidos. Também é verdade que vim com um estatuto muito especial. Provavelmente, os outros dois foram cá deixados só para me acompanhar. Para não falar do guarda, Gonçalo, certamente escolhido por esse determinismo misterioso, embora inevitável, que marca os acontecimentos do futuro. Mas falava do mar. E é engraçado como a minha visão mudou. Antes, a minha abordagem era totalmente racional, 10 científica ou filosófica, como se quiser. Hoje é puramente emocional. Uma visão de beleza. Tenho ideia de que não passou um dia em que não assistíssemos ao nascer e ao pôr-do-sol no mar. A torre está tão isolada do resto da prisão, e do resto da ilha, que conseguíamos ver o nascer de um lado e o ocaso do outro. E era só depois do nascer do sol que nos deitávamos, lá para as dez da manhã, depois da última refeição. Mas era bom ver o azul do mar antes de deitar. Ver o inesperado das suas cores, ora verde, ora azul, ora cinzento, ora prata – de manhã era seguramente a altura mais azul –, às vezes mesmo sem cor. E as pequenas ondas, que até se viam de noite, quando o reflexo da Lua se juntava à nossa vigília nocturna, ou quando a luz proveniente das galáxias longínquas irrompia à superfície e alastrava em redor. Quando cheguei, o mar era, por assim dizer, o foco de todas as minhas atenções. Consegui trazer um equipamento bastante sofisticado que instalei na torre do farol, lá mesmo em cima, equipamento de luz, de som, antenas de captação parabólica, monitores de radar, rádios e coisas assim. Mas, com o evoluir dos meses, acabei por passar quase o tempo todo no andar cá em baixo, com os outros, usufruindo do mar numa perspectiva de prazer. Mas não perdi nada com isso. Pelo contrário, passei aqui as melhores e mesmo mais divertidas noites da minha vida. Coisa que obviamente nunca esperei, pois escolhi este local com intenções de estudioso e perspectivas de eremita. Mas quem é que poderia alguma vez ser eremita com aquele Manuel maluco por perto? Como são relativas as verdades do mundo. Foi o Manuel que me ensinou o pleno sentido da palavra liberdade. Não tinha grande capacidade para falar, mas tinha a sua música. A sua emoção total. E com ela construía um mundo, de cada vez que tocava. E o mar abria-se de luz para o ouvir. Não tinha grande capacidade de ser ele através da linguagem, mas falava das pessoas que perdem o seu tempo a pensar, e decidir, o que é que os outros devem pensar. 11 A pouco e pouco, fui-me convencendo de que eu era uma dessas pessoas. Espécie de altruísmo egoísta, onde o que está certo para os outros, o seu bem, depende daquilo que nos dá prazer imaginar. O fim do princípio unificador estava à espreita, iria entrar dentro de mim quando menos esperasse. A revelação final, como um milagre, iria apagar em mim todos os vestígios de um passado de reflexão profunda, mas sem salvação. Pensamento menor, das profundezas, ideologia de catacumbas, submersa pela superioridade imensa, talvez infinita, de uma verdade nova e universal. Talvez por isso, o que mais sinto hoje é um certo desenraizamento da vida, a vaga sensação de já tudo ter sido atingido, como se a morte pudesse enfim chegar. Uma espécie de estado de plenitude que não pode ser ultrapassado, a não ser pela comoção das recordações de infância – como dizem que é o prenúncio da morte –, quando o tio Saúl me levava pelo campo, ou pelas ruas da cidade, falando do sonho desse mundo de perfeição e de felicidade que eu passei a vida a procurar. Emoções antigas, evocação das férias de Verão, como se um palco com múltiplas personagens que irradiavam de excitação, e ternura, a abertura quase explosiva, embora tão passageira, da minha solidão. Recordação dos mortos, constatação violenta do efémero que foi a minha importância para eles – O meu rapaz! tudo tão forte e tão sem sentido perante a evidente aproximação do fim. Locais do passado, gentes do passado, misturavam-seme com um futuro ainda todo por acontecer. A minha pobre ideia de criar uma marca para sempre. Uma obra. A filosofia que marcaria o século XXI. Uma obra decisiva para a Humanidade. E uma Humanidade feliz, como imaginava o tio Saúl, que lutava pela verdade da vida e pela liberdade dos homens. E pela justiça. E pela protecção dos mais 12 fracos. Que registos ficarão para memória futura desses momentos que foram tão importantes para nós? Toda uma vida que se sumiu, ou que se sumirá com a minha morte. A História só lembrará os grandes homens, e seguramente nem todos. Mas como se define um grande homem? São só aqueles que tiveram grandes tarefas a desempenhar na sociedade? Os que deixaram grandes feitos? Não! Não foram necessariamente esses os grandes homens. O tio Saúl foi-o, e ninguém o recordará daqui a cem anos. E, por isso, tanto que eu queria escrever aquele livro, a tal obra. Deixar a minha marca, e o meu nome em seu nome, para sempre. Agora já não sei se sou capaz. Terei talvez orientado o meu projecto num sentido desajustado. E, daí, a ideia de poder ter desbaratado dois anos da minha vida. O tio Saúl falava em verdade e liberdade. Eu pensei perfeição. E só agora percebo o fosso enorme que há entre essas duas visões. Também Rui e Gonçalo falavam de perfeição. Também eles imaginavam um mundo de perfeição para os homens. Um fio condutor, uma teoria unificadora. Rui tinha uma visão para o futuro – embora também já acabasse por ser uma visão ultrapassada –, Gonçalo estava amarrado ao passado, mas a ideia de ambos sobre a existência de um princípio unificador era a mesma. Gonçalo dizia: – Livremo-nos do abismo do vazio. Mostrava-se, por vezes, como um personagem misterioso, tão longe da sua missão de guardião. Tinha uma enorme ferida dentro de si. E as suas falas mostravam o seu desamparo perante o mundo exterior, a sua fragilidade. Eram falas pessimistas, que revelavam o próprio abismo do seu eu: 13 – Temam a confrontação súbita com a ausência. Ficávamos à espera do resto da frase, mas ele não existia. Gonçalo falava do nada, da ameaça da rarefacção. Só Manuel não tinha amarras. Vivia no vazio de quaisquer unificações exteriores, vivia numa loucura – o tio Saúl dizia sempre a palavra doido, palavra tão bela – que assentava totalmente nessas suas duas palavras mágicas: verdade e liberdade. O tio Saúl. Foi numa noite terrível que ele me falou para a posteridade com o seu olhar perdido na lonjura das estrelas: “Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar”. O meu tio. Solene. Que este era o maior segredo do Universo. Revelação do velho padre, à hora da morte. Viviam em ditadura, eu não podia adivinhar logo. E o tio Saúl guardou a revelação para tarde de mais. Mas foi com a maior das ternuras do mundo que este mistério me acompanhou ao longo da vida. Provavelmente, esse tempo de procura terá sido a razão que transformou a minha descoberta em revelação. Eles não podiam dizer logo, havia a censura de tudo o que era dito – “No meu país há uma palavra proibida” e o “segredo do mar” era a única frase que a sua liberdade lhes permitia. Verdade e liberdade. As palavras mágicas, como as que viviam dentro de Manuel. No entanto, ao mesmo tempo, tão importante que é para mim cumprir o projecto. Finalizá-lo. Não deixar que se destrua a minha luta de tantos anos. A minha obra. Prometia ao meu passado. Aos meus mortos. Escrever o livro do século XXI. Um livro que pense a sociedade e o homem do futuro. Como O Capital terá sido o livro do século XX. Marx foi o homem que mais condicionou os homens do último século. As pessoas foram marxistas ou anti-marxistas. 14 Ele dividiu o mundo. Foi decisivo. E eu também quero ser decisivo. Mas quero unir os homens. A minha filosofia será unificadora. Ele inventou a filosofia mais entusiasmante e mais mobilizadora para a sociedade, mas essa filosofia falhou. E é absolutamente necessário substituí-la. Os homens precisam de uma esperança, de um rumo. De uma luz. E eu tenho essa luz em mim. Nesse sentido, os meus dois anos de cativeiro cumpriram totalmente o seu papel. O que significa que eu poderia, de facto, deixar a minha marca para a posteridade. Ser um grande homem. E vingar a ausência futura dos meus mortos, que não foi só o tio Saúl que condicionou esta minha busca de uma orientação científica e filosófica. A começar pelos professores dos três cursos que tirei: Antropologia, Sociologia e Filosofia. Faltou-me talvez a Matemática, tanto que nela pensei no confronto com os do outro mundo, naquela noite, sob a luz do farol. Porque o que falhou em Marx foi a ausência de ciência. Inicialmente ele tentou. E depois outros, por ele, mais tarde, quando lhe chamaram “socialismo científico”. Mas não conseguiu, porque a ciência que tinha não era a adequada. Precisava, antes, de uma ciência que tivesse como objecto de estudo os homens, e não as moedas. Por isso a sua mensagem se centrou na parte filosófica. Mas eu falaria, neste meu livro – que é a essência da minha vida ao longo destes últimos vinte anos –, de uma filosofia misturada com os ensinamentos da Sociologia e, sobretudo, com os da Antropologia, que são as ciências que estudam os homens. E esqueceria a Economia de vez. Por outras palavras, apesar da presença constante da Filosofia, a minha obra tem que ser de índole científica, e não o contrário, com a ciência em regime de apêndice. Marx pensou a sociedade ideal através da Economia – a sociedade sem classes. Ou seja, uma Economia misturada com alguma Sociologia. Mas esqueceu a Antropologia. Não há certamente universidade no mundo civilizado onde não se ensine Marx nas licenciaturas em Sociologia, como não haverá universidade onde ele se estude no âmbito da Antropologia. 15 Mas, se calhar, toda esta reflexão se perde no não-mundo, e o que eu devia mesmo fazer era escrever um romance, porque a arte apela para o tal vazio de que falava há pouco, e para a liberdade infinita que dele nasce, enquanto as ciências apelam para a ideia de perfeição sobre a qual tanto me interrogo. Manuel representou, um dia, com tamanha grandeza, que Rui abriu muito os olhos como se visitado pelo além de um irreal insuportável. E quando Manuel finalizou – O caminho a infância O caminho da infância, por onde é? Rui chorou. Também ele – acabou por contar – tinha um segredo terrível de amor. Protegido pelas incompreensíveis telas de arte abstracta, a arte dos fúteis, esse amor seria o seu refúgio final. Rui mostrou assim a sua humanidade escondida, como os outros que nos olhavam, quase de lágrima visível, perante o assombro da sua identidade perdida. Arte, música, loucura que irrompe do vazio dos constrangimentos, como as falas do Manuel maluco – A lua hoje está broástica, parece tanto que já é de manhã que apetece-me impanzinasticar uma comezaina que eu recordo vezes sem fim neste meu derradeiro momento solitário, na nossa prisão onde ainda me encontro – Manuel partiu, Rui partiu –, sem vontade de viver o futuro, assim como recordo as minhas alegrias de miúdo, quando também não havia qualquer vivência de mundos científicos à minha volta, apenas uma antropologia de homens 16 com pouca instrução mas com muito amor pelos outros homens. E antropologia de artistas que compreenderam, ao longo da história, a verdadeira dimensão do sentir da Humanidade. Alegria – talvez felicidade –, gostos simples, projectos simples, como limpar as “adriças” para no dia seguinte ir ao lingueirão na ria, ou comprar verdemãs para ir a uma pescaria de achigãs na barragem. Vidas simples, em harmonia com a Natureza – vidas naturásticas, dizia o Manuel –, que é o mesmo do que falar da origem dos homens, a inocência irradiante das pequenas coisas, tão longínquas já de todas as filosofias e de todas as ciências. Os passeios no campo, tantas vezes à procura das perdizes, o cheiro inebriante da terra, sobretudo depois de uma chuvada, no limite do cansaço e do suor. À hora da morte, agarrando-me as mãos com toda a força que tinha, o tio Saúl, contou-me a ida do velho padre a uma missa em Harlem. Contou-mo com a tremura da morte. Os coros do gospel, música do amor. O tio Saúl tinha a certeza de que eu iria encontrar. Uma palavra que salvaria a Humanidade. O padre tinha descoberto uma verdade grandiosa junto dos homens verdadeiros, os que tinham descoberto a religião verdadeira, ou foi ele que não quis dizer tudo e descobriu-a nuns livros muito antigos, ou nas aldeias dos mais pobres que passava a vida a visitar. Palavra proibida, frase tão bela, revelação final no meu caminho de procura e interrogação. E, na igreja de Harlem, num dia perdido na lonjura do tempo, o velho padre e o seu sobrinho presenciaram o milagre final. Os assistentes viraram costas aos seus deuses e anjos, e vieram, pelo corredor central, viraram costas ao sagrado dos altares, e vieram direitos ao afago quente dos desconhecidos, e abraçaram essas pessoas estranhas que tinham a seu lado, abraçaram-nas com toda a ternura que encontraram nas suas almas, abraçaram um velho homem e uma criança que não conheciam 17 – Obrigado por terem vindo os olhos, afogados num mar de rugas negras, transbordavam de uma visão líquida de comoção, ou de amor – Estamos tão felizes por terem estado connosco o padre não conseguia mais conter o embate violento com a descoberta da verdadeira religiosidade daquelas gentes. Depois, as outras pessoas, todas elas em cortejo, vieram também – o miúdo, estarrecido, não se mexia – e o velho padre não aguentou, os olhos cheios de água, agarrou-se aos homens e às mulheres, e abraçou-os, e beijou-os, e agarrou-lhes também as mãos, não conseguindo conter as lágrimas que lhe caíam, soluçando perante tão sublime lição de amor. Largou o sobrinho e deixou-se levar pela ternura daqueles momentos tão belos – eles vinham do fundo da igreja com os suas roupas aprumadas de domingo, os miúdos de gravata e as pequenas de grandes fitas de seda a apanhar os cabelos escuros – Prazer em tê-los aqui. O meu problema maior é ter talvez descoberto uma verdade dramática: a hipótese de a ausência de um princípio unificador do mundo poder não ser substituída por um novo princípio unificador. Segundo esta hipótese, o fim desse princípio unificador não seria o fim dos valores, e o fim do humanismo, mas o início de uma nova maneira de os homens se posicionarem na sociedade. O início de uma cultura nova baseada precisamente no vazio provocado pelo abandono, ou pela recusa, do antigo sistema integrado de valores. É num momento em que o homem conseguiu, com tanta dificuldade, libertar-se da opressão cultural destes últimos dois mil anos que eu me vou pôr a criar uma nova visão filosófica unificadora? Sou assim tão parecido com o Rui? Ou com o Gonçalo? Ainda por cima partindo 18 para essa criação com parte do material importado de um outro mundo, apesar de ter acabado por concluir que não era bem assim? Os homens do futuro precisarão de mim? Ou precisarão antes de si próprios? De usar o pleno das capacidades que existem em si próprios, agora que começam a ser verdadeiramente livres? Os filósofos que falaram do vazio dos valores, resultante do esboroar do princípio unificador, deviam ter, antes, pensado na vitória progressiva da liberdade a que esse estado de coisas conduzia. Era do vazio da antiga ordem que iria nascer uma ordem nova. Como, após os grandes incêndios das savanas de África, nasce o verde da regeneração. A ausência dos valores antigos era a condição necessária para o início de uma nova maneira de o homem se posicionar no mundo. Não sei. Talvez esteja mais próximo do Manuel, que conhece esse vazio há tanto tempo. O vazio e a liberdade mais autêntica. Se calhar, a minha doutrina poderá, tal como aconteceu com o Marx, vir a suscitar a paixão cega que conduz à violência e à morte. Doutrinas de sangue. Manuel olhou para mim um dia, e ficou parado, à espera. Depois disse: – Então, não queres vir comigo? Vou mostrar-te o meu segredo. Sim, Manuel, mas não vês que o sangue das doutrinas é um sangue diferente daquele a que me refiro quando falo a propósito da arte? Na arte, o sangue é de comunhão, porque vem das vísceras do sentir. Vem da pertença comum, do mais profundo que há em nós. Arte dos homens, fascínio supremo daqueles não-homens que já tudo experimentaram, já quase tudo sabem, e se permitem andar a visitar os outros mundos. Têm tudo arrumado, estão no zénite do conhecimento, da organização e do desenvolvimento. Mas 19 falta-lhes o poder maior de todos, que é o de procurar algo mais, o de encontrar uma vivência que transcenda a própria vida, o poder da transfiguração. E nós temos esse poder. Porque não fazer dele a essência do nosso devir? Manuel estendeu a mão, como que para eu parar de falar, e mergulhou. Desapareceu durante uns segundos, mais de um minuto, talvez, e eu pensei para mim – Foi buscar o segredo ao fundo do mar. Tem algo escondido no fundo do mar. E eu voltei a recordar – Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar. Porquê a necessidade de uma ideologia política, ou, no limite, da própria filosofia inovadora que procuro? Que restará da actividade humana daqui a 10 séculos? Que interessará, nessa altura, se o homem aguentou mais cem ou duzentos anos? O que restará, para memória galáctica, não pode ser outra coisa senão a arte. A música. O máximo do homem. Um dia, li que os astronautas da N. A. S. A. tinham deixado vários objectos na Lua, para o caso de um dia lá passarem seres vindos de um qualquer planeta longínquo. Para darmos a conhecer os seres humanos. Havia gravações de vozes em diferentes línguas, imagens de monumentos das diversas regiões do mundo, imagens de seres humanos com diferentes roupagens, exemplos de obras de arte, e por aí fora. De entre isso tudo, lembro-me da presença de um disco com uma gravação do 1.º prelúdio de Bach, tocado pelo Glenn Gould. Ainda hoje me comovo só de pensar nisso. Talvez uma das obras mais fáceis de Bach. A primeira obra que eu, e muitos alunos como eu, aprendemos a tocar em piano. Uma peça 20 que Bach escreveu para ensinar, a começar pelos seus filhos pequenos. E que nunca publicou, face à sua simplicidade. Foi depois que Anna Magdalena o editou no livro com o seu nome. No entanto, que beleza sublime, imortalizada pelo enorme Gould. A reincarnação de Bach em forma de intérprete. Às vezes, imagino um Bach ressuscitado – como reagiria ele a essa revelação? E imagino também a reacção de quaisquer visitantes longínquos perante o assombro de uma tal manifestação da grandeza humana. Bach. O meu Bach. O meu prelúdio tão simples. Haverá um dia um museu algures no Universo – talvez no centro, que é o local do nosso merecimento – onde para sempre ficarão patentes as capacidades do génio humano. E, aí, não caberão as ideologias, nem tão pouco as filosofias unificadoras. Ninguém quererá saber quem foi Marx. Nem quem foi o habilidoso que encontrou a filosofia que se seguiu, seja do século vinte e um ou vinte e dois. Nem se havia ditadura ou democracia, pois esses conceitos não se inscrevem na memória que deixaremos para o futuro. Talvez Manuel, se lhe derem a imortalidade, possa lá estar para assistir. Ou seja mesmo ele o criador desse museu que imagino. Só ele pôde partir, pois só ele estava despido. Um dia sonhei que ela entrava pelo teatro dentro e me pedia que voltasse. Tenho que contar a noite em que sonhei o impossível de mim. Amália e um filho pela mão. O seu vestido era longo e branco, que é a cor das grandes revelações. Se calhar vinha de noiva, cansada de procurar um futuro longe do meu. A dada altura, perante o meu tremor profundo – Vem vindo dizia ela baixinho, com a cabeça levemente tombada, numa aproximação de carinho. Amália estava bela no seu vestido branco. Dizia coisas incompreensíveis, a cabeça levemente tombada – tanto que eu tentei esconder a minha comoção 21 – Joãozinho aprendeu a escrever o teu nome Não sei se devia. Amália vinha do infinito, ou da eternidade, para me dizer que voltasse. Lancei um grito horrível – Amália! Um dia partiu, ia à procura do seu próprio futuro. Um futuro que tinha que ser construído sem mim. Um corpo de brutal beleza que saía do mar. E eu aterrado perante a minha pequenez. Um dia foi-se embora – Não amarei mais ninguém. Assim. E eu parado. Sem entender. Vão dar-te a imortalidade, Manuel? Tão tarde que entendemos o sentido da sua obsessão com a nudez. Ou tão tarde percebi que podia ter encontrado nele a solução para o que procurava. Que também vivia nele a palavra mágica que iria ser a descoberta final de toda a minha reflexão. Palavra de uma vida. A mesma que residia no segredo do tio Saúl e no mistério do mar. Despido do passado, da História, do jugo das tradições, Manuel vivia por dentro da nudez que tanto ambicionava, reduzido ao essencial – iria eu descobrir mais tarde que o termo não era bem esse. Será que Manuel cumpriu o seu sonho, lá no infinito onde se encontra? Continuas a tocar para eles e a ofuscar o brilho das estrelas? A dada altura, eu iria procurar a minha nudez, também. Através de um conceito de essência que iria ser, de facto, a primeira pedra na edificação do meu castelo filosófico. Essência no sentido de fuga ao materialismo e à sedução da futilidade. O novo princípio unificador. Criado por mim. 22 Filosofia zen, talvez, no sentido de uma procura de um mais espiritual, associada ao desejo de um menos material. Minimalismo, portanto. Despirmo-nos do supérfluo e do mundano. Como quem se despe de roupa. Mas o que é impressionante – e façamos aqui um parêntesis para ir mais longe – é que nunca percebi o quanto a obsessão da nudez estava adiantada em relação à minha filosofia. Sempre pensei na mania da nudez do Manuel como algo de curioso, assim como se se dissesse: olha que engraçado até que ponto tal pode ilustrar a minha teoria. Assim como algo de superficial que pode dar algum realce ao que é profundo. Sem perceber que a verdadeira profundidade estava do outro lado. Ou seja, eu associava a roupa a um certo supérfluo, como disse, e via a nudez como a redução à essência. Mas pensava numa essência no sentido de mínimo, quando essa visão era altamente redutora. De facto, Manuel, ao defender a nudez, tinha a visão de uma outra dimensão da palavra essência: o que é verdadeiro. O que é autêntico. Porque o que está a mais não é só desnecessário. É um véu, uma máscara. A sua mulher nua, que tanto o fascinava, não era só uma mulher livre do peso do desnecessário, das convenções ditadas pela imposição exterior, era também, ou sobretudo, a visão do seu ser mais autêntico. Tinha tudo à mostra, não tinha nada a esconder. Tudo o que nela se via era a verdade do seu ser. Por isso sempre associei, de certa forma, o Manuel e o tio Saúl. Como penso já ter dito – se não o disse, di-lo-ei mais à frente –, ambos tinham duas ideias a orientá-los: verdade e liberdade. Assim, a nudez deveria ser vista nesta dupla perspectiva. A liberdade era talvez a ideia mais aparente, a que surgia com mais rapidez. Em contrapartida, a verdade, menos perceptível, era provavelmente a mais determinante. E o que se passava com a nudez devia ter sido imediatamente transponível para a noção de essência, pois ela também tinha que ser enquadrada pela ampla busca da verdade. A redução do materialismo tinha que ser acompanhada por 23 uma redução da mentira que o acompanha, as convenções exteriores não podendo só ser vistas como fardos, mas como máscaras também. Como a mentira que assustou Manuel quando me questionou sobre o processo artístico. Quis que eu lhe explicasse o que era a arte, o que era o romance, e eu não conseguia arrancá-lo à realidade. Ele brincava com uma mosca, com medo de perder a ligação com o seu mundo concreto, enquanto eu o arrastava a todo o custo na direcção do etéreo e do irreal. Ele agarrava-se à mosca, e perguntava, desalentado – É tudo mentira, no romance? E eu lá lhe explicava que não era bem mentira, mas também não era bem o que se passava na realidade. Porque não era a descrição de algo de concreto, mas antes o que o eventual concreto permitia em nós de lição para a vida. De transponível para os outros – por via da abstracção entretanto criada – e para sempre. Como se fosse uma transposição para a imortalidade. Não lhe expliquei, não sei se o entenderia, a visão do Malraux sobre as grandes fases da pintura: “o irreal” e, mais tarde, “o intemporal”. O essencial da arte tinha a ver com esse desenraizamento da realidade e a posterior projecção na intemporalidade. A arte é a tentativa de imortalização da nossa vivência como homens. O artista é como o homem que perdurou para lá do tempo. E, por isso, tem que fugir ao concreto da conjuntura. Mas a minha preocupação com a busca da verdade não pairava no mundo da arte, o que fez agarrar-me à tal filosofia zen na procura de um mais espiritual, procura que me empurrou progressivamente para o conceito de saber. A Antropologia também ajudou. Com a memória dos povos primitivos, onde opera uma diferenciação baseada no conhecimento (ou melhor, numa progressão – agora está na 24 moda dizer coisas destas – conhecimento-saber-sabedoria), com os conselhos de sábios a possuírem o poder por via do respeito dos outros e não por via da submissão. Isto porque, e embora não queira falar de partidos políticos, o voto democrático também implica uma submissão: à maioria. Ou seja, é necessária uma legitimação, o que só acontece (ensina-nos a Antropologia) quando há déficit de legitimidade. Os tais sábios tinham o poder por respeito natural: uma legitimidade indiscutível e baseada nas suas maiores capacidades espirituais. Era incrível quanto o saber se adaptava ao complexo plano cartesiano do meu amparo. Quase tive pena quando, mais tarde, percebi que era necessário ir mais longe. Era a lógica do princípio unificador que estava a mais, fosse ele qual fosse. E o saber não era mais do que uma variante, porventura mais inteligente, desse mesmo princípio. Também os outros, quando chegaram, indefesos, vinham à procura de uma mesma solução. Mundo limitado pelo pensar, sem a alma arrebatadora da criatividade humana – devia ter reflectido sobre a ausência de frustração do Manuel quando Rui lhe chamava “ignorástico”. A sabedoria, de certa forma, envolve uma prisão. Uma prisão cognitiva. Que não permite expressão plena da alma humana. E Manuel sabia-o, ou sentia-o. Manuel vivia bem com o seu eu. Querido Manuel, tinhas todas as soluções dentro de ti. Eras tu, o doido, o suposto descontrolado, que tinhas em ti a verdade original. Maluco. Agarrou-me com muita força, naquele dia, para eu sentir que se tratava de algo muito grave, e, abrindo muito os olhos, disse: – Um romance broástico. Manuel tinha sentido o apelo irreprimível da arte. Tinha percebido o quanto a passagem para o outro mundo se faz num sofrimento de plenitude. Sobretudo, tinha encontrado a “Porta”. A porta da outra dimensão. Uma dimensão para além desta. A transfiguração. 25 Como um professor meu, que falava, há muitos anos, do grande matemático Cantor, um homem que, no século XIX, descobrira os números maiores do que o infinito. E os alunos não entendiam como era isso possível. E ele levava-os à janela e pedia-lhes para olhar o infinito. E eles transpunham a prisão da sala de aula, com os olhos postos na liberdade que lhes trazia o limite do horizonte. E o professor perguntava – É aí que está o infinito? Porque é que vós não olhastes para o céu? Porque olhastes para o chão? Um dia, um aluno mais esperto olhou para o céu, e para o chão, e explicou que o infinito era isso tudo, era tridimensional. O velho professor sorriu e acenou que sim com a cabeça – Olhaste bem, pensaste bem. O infinito é isso. E o aluno, rápido – Onde está então o que excede o infinito? Havia um número ilimitado de dimensões, nós só vemos três, só concebemos três. Mas há muitas mais, a análise matemática pode mostrá-lo, a Estatística mostra-o todos os dias. E os nossos amigos do outro mundo deram-nos depois grandes explicações sobre esse assunto. Há aquilo que não vemos. Há aquilo que não concebemos, há uma irrealidade que excede a realidade. Uma vivência que não é daqui. O aluno, se calhar, não o poderia entender. Como não entenderia nunca o amor antes de o viver. Mundo da transfiguração, Manuel vivia-o. Sem ter consciência disso. Sem o racionalizar, atitude que, embora involuntária, era a mais inteligente possível. Ele queria ser um artista e viver num mundo que está fora deste, para além deste. A perfeição da arte. Emoção essencial. Como o saber o era 26 no domínio do pensar, do cognitivo. Quem sabe se não é a mesma procura da essência, mas numa outra dimensão, uma dimensão muito mais longínqua: a do sentir. Longínqua como os números que são maiores do que o infinito. Uma dimensão para lá do nosso entendimento. Quando fui defender Rui, o juiz achou-me uma pessoa acima de qualquer suspeita, um cientista já com fama internacional. Confirmei que Rui diria sempre a verdade. – Jure por Deus disse o juiz. Mas Rui nunca o faria – Juro pela minha honra. Era um Rui inabalável que iria, mais tarde, jurar pelo que tinha de mais intenso em si: o seu amor. Também Gonçalo testemunhou – Juro pelo saudosismo da minha infância. O juiz não entendia. – Juro pela minha segurança perdida. Gonçalo também jurou, andava de novo a vaguear no país da ausência. Gonçalo dizia coisas como – O mistério da lonjura. Era numa infância longínqua que ele buscava ainda um pouco de protecção. – Mundo da rarefacção sublime. 27 Manuel queria escrever um romance sobre a liberdade e sobre a beleza. E, certamente, sobre o amor. Era esse amor que lhe fazia doer o coração – Aquilo quando dói aqui à esquerda… Ele sentia, mas não conseguia explicar, o quanto a arte e o amor nos fazem doer por dentro. Uma dor de libertação. O desenraizamento. A tal transfiguração. Uma dor como algo que nos rasga, nos arranca à vivência quotidiana e nos projecta para o além-mundo, a outra vida. Como se o corpo se tornasse subitamente imaterial. Sim, como uma outra vida. Foi assim que ele disse: – Para eu poder escrever um romance de amor. Escreveste o teu romance de amor, Manuel? Ensinaste a arte aos teus novos companheiros? Conseguiram eles perceber – tanto que eles queriam – o que é a liberdade absoluta? O que é o milagre da criação e o maior dos actos dos homens? Era essa maior de todas as emoções que te fazia torcer todo, agarrado ao piano, quando a tua música estava mais próxima do fim. Procuravas, já muito perto, a tua melodia absoluta. As notas sucediam-se – por vezes dissonantes e incómodas como a vida imperfeita dos homens – em busca da harmonia perfeita dos deuses. Os viajantes no limite da lágrima que será, um dia, a revelação absoluta da sua humanidade. Conseguiste esse milagre, Manuel? Fizeste chorar os seres das galáxias por onde passaste? A beleza da música, e a sensação de plenitude que nos enchia a todos, transformou Manuel no maior dos homens que jamais existiu sobre a face da Terra. Foi a mais bela das mulheres que o disse. A ameaça de uma lágrima era, para os visitantes, a ameaça da transformação brutal da sua condição de servos – eles 28 nunca choraram, ignoravam a comoção como ignoravam a beleza das palavras – na aurora do contacto com um mundo superior, o mundo da beleza suprema. Música da minha perdição total, senti-me feliz por ser homem. Os galácticos e as divindades nada tinham para me ensinar. Manuel, com um simples instrumento, construía um mundo total. Construía o mundo. O mundo da rarefacção. Manuel tocava para além dos limites da nossa capacidade de sentir. E os outros, tão habituados à transposição de dimensões, não estavam programados para essa transfiguração. Foi comovido que percebi que Manuel iria inundar as galáxias do mais belo que elas jamais ouviram. Iria deixar nelas o registo incomensurável da arte humana. Manuel, foste ensinar às estrelas as tuas palavras broásticas, o mistério da liberdade que vivia em ti? Desejei tanto que fosses em paz. Queria tanto que fosses feliz. Foste à procura da beleza absoluta da arte e do amor. Levaste o teu piano, e a tua Maria que nos cegava com os seus seios nus, e ficaste responsável por dar notícia, ao Universo, da mais bela das histórias. Por lhes explicar que fomos nós que inventámos o Absoluto. O outro mundo. No entanto, não era só o Manuel que tinha as soluções dentro de si. Era também eu. A verdade original. A verdade adormecida em mim. Só no fim de tudo o percebi. Amália. Partiste à procura do teu eu, do teu futuro – Não amarei mais ninguém e o meu futuro morreu. A verdade adormecida. A palavra mágica só existia na minha memória. Ganhaste, talvez, o futuro, eu fiquei com o passado. E com a palavra – apagada, ou envolta na neblina da desilusão – dentro de mim. Foste violenta, como o Manuel, que me agarrou com muita força, naquele dia, para eu sentir mais ainda, 29 – Um romance broástico como ainda as mãos tão fortes do tio Saúl, tentando revelar o segredo que o padre havia descoberto. Violência antiga da minha memória, a morte do tio Saúl. Quando a luz das janelas inundou o quarto, com um raio direccionado que caía, oblíquo, por cima da cama. E ele agarrou-me as mãos com muita força para eu ouvir, ou talvez sentir, a sua lição final – ... o amor dos homens. E eu infeliz, desamparado. Era o céu que se iluminava repentinamente. A incidir forte sobre a cama. Pensei-o em homenagem à chegada do mais corajoso e mais justo de todos os homens. Um raio opaco, amarelo, como um túnel por onde eu o deixava fugir. Ele lá ia, só, enfrentar o que não sei. Eu ali fiquei. Em solidão absoluta. Se me chamasse, estaria ali. Mas não chamou. Nunca mais. Como tu, minha Amália, que foste tão violenta quando partiste. Eu não estava à espera. A minha vida estava organizada assim, não estava preparado. Pensei que era um engano, um erro, uma maluquice, sei lá. E, também nessa altura, fiquei à espera. Deve ser uma espécie de característica minha, ou de destino meu. Ficar à espera. Sonhar o impossível. Sim, também nessa altura, esperei em vão. Mas nunca mais voltaste, a não ser naquele teatro, naquele sonho em que vinhas de branco, com uma criança pela mão. Chego ao final da minha vida com a melancolia terna de um homem que perdeu tudo, o seu herói, o seu amor, a possibilidade de ser uma referência para as gerações vindouras. Mas descobriu a palavra, cumpriu a missão que lhe estava destinada. E, assim, a minha última tarefa é revelá-la, usando da capacidade da transfiguração do meu 30 real triste, sombrio e desalentado, num irreal cheio de confiança no futuro, que possa fazer com que os homens do século XXI, os filhos que eu poderia ter tido, sonhem projectos de alegria e de beleza. E sintam, sintam muito, a plenitude redentora do amor. Acho que sim, acho que vou usar o pouco tempo que me resta para escrever um romance. Um romance parecido com o que o Manuel queria tanto escrever. Um romance broástico. Um romance de amor. 31 32 I Pontinhos e mais pontinhos. A caneta não escrevia e por isso ele batia com ela no maço de folhas de papel, com energia, enquanto ia protestando e dizendo coisas incompreensíveis. E fazia milhares de pequenos pontos de tinta no papel, como se fossem estrelas no céu. E também fazia riscos, quando a caneta escrevia melhor, e nisto estava horas e horas enquanto Rui, só para o irritar, dizia que era impossível ele escrever qualquer coisa de jeito porque era analfabeto e ninguém o tinha ensinado a escrever, ao que Manuel, não se ralando um segundo, respondia que a mãe de Rui é que era “ignorástica” e assim a conversa continuava, num litígio que tinha tanto de constante como de quase carinhoso, com Manuel a acabar por ameaçar despir-se, como não conseguia deixar de fazer de cada vez que era libertado, era nas lojas, nos centros comerciais, às vezes na rua, e assim não passava um mês ou dois sem vir parar à prisão de novo, ele dizia que era a sua casa, sempre a protestar a propósito da sua falta de liberdade e de todos os que não o compreendiam, mundo exterior onde as pessoas viviam amarradas – mundo esse que ele sentia como a verdadeira prisão –, e a caneta era para escrever uma carta ao Presidente a explicar a sua ideia, que as pessoas deviam poder andar nuas em todo o lado, pelo menos as mulheres – isto se o Presidente achasse que os homens é que não podia mesmo ser –, mas a carta não havia meio de arrancar, porcaria da caneta, eram só pintinhas por todo o lado, mas ele não desistia, e falava sozinho com muita convicção a respeito de as mulheres 33 nuas serem a coisa mais bonita que havia, ele tinha visto muitas em revistas e uma até ao natural, era a sua paixão de toda a vida, tinha-a visto nua, tinha sentido nas mãos a beleza do seu corpo, mas ninguém acreditava nessa sua história de amor, e era por isso que às vezes lhe caía uma lágrima quando falava nisso. Dizia – As mulheres nuas e depois não dizia mais nada, o olhar turvava-se-lhe, calava-se, engolia em seco e escondia o olhar humedecido do sarcasmo de Rui, uma vez foi mesmo preciso Gonçalo intervir e ameaçar Rui com a solitária. Como se ele fosse capaz disso. Gonçalo era o guarda, mas era nosso amigo. Era como se fosse um de nós, aliás nem andava armado, mas tinha um transístor à cintura e dizia que se carregasse naquele botão vermelho – ele apontava sempre – vinham os outros guardas – de uma outra prisão que havia numa ilha ali perto –, que eram guardas “mesmo a sério”, e então é que nós veríamos o que era estar numa verdadeira prisão. Gonçalo era uma pessoa solitária e triste. Nunca ria. Nem mesmo quando o Manuel dava aquelas gargalhadas cujo eco parecia subir pela torre do farol acima. Vivia parado no século XIX, ou, se calhar, era no princípio do século XX. Rui dizia que era no século XIX, porque o marxismo nasceu ainda aí e portanto todo o século XX já era dominado por essa sua adoração e não pelo mundo absurdamente parado que Gonçalo defendia. Talvez tivesse razão. E talvez eles dividissem os dois séculos, um para cada um, ou talvez dividissem apenas as ideologias, tradição e revolução, coisas tão antagónicas que eles andavam sempre à bulha, e em relação às quais eu via cada vez menos diferença. Mas Gonçalo esforçava-se por ser como uma rocha. Guardava-nos 34 a nós e – embora fosse cada vez menos claro à medida que o tempo ia passando – tentava igualmente guardar a justiça e o aprumo das nossas ideias. Guardá-las, por assim dizer, dos malefícios da modernidade. Rui chamava-lhe fascista, ao que o outro perguntava se ele se estava a referir ao Estaline, ou se os fascistas eram os que tentavam proteger as coisas boas que os seres humanos tinham inventado ao longo dos séculos e que os separavam dos animais: a família, o conforto de um lar, a educação e a compostura, os valores do respeito e da consideração pelos outros, da defesa da dignidade e da segurança dos concidadãos contra os inimigos exteriores, ao passo que ele, Rui, como bom revolucionário que era, preconizava certamente que certos iluminados andassem a roubar, em nome do Estado, todos os bens que as famílias haviam conseguido juntar ao longo de séculos, preconizava o afastamento dramático entre pais e filhos, e defendia, ou mesmo fomentava – que era por isso que estava preso –, uma guerra civil de tipo russo, com os operários a matar os camponeses só porque estes não tinham grande vontade de fazer revoluções. Rui berrava, chamava-lhe fascista outra vez e voltava a explicar, pela milionésima vez, que não tinha nada a ver com russos nem com chineses, que a sua ideologia não era uma ideologia de opressão e que o marxismo era uma visão de futuro, enquanto eu tentava montar o equipamento todo que tinha trazido e pensava o quanto aquilo era conversa de surdos, pois tanto conservadores como revolucionários estavam totalmente enganados quanto à viabilidade futura das suas ideologias. Que estavam irremediavelmente datadas. E, enquanto regulava a lente do telescópio, recordo-me de ter dito isso mesmo – Vocês não percebem que estão a falar de mundos datados? O homem do futuro precisa de uma filosofia que lhe permita viver os próximos mil ou dois mil anos em paz, e as vossas questiúnculas – porque vocês no fundo dizem quase o mesmo e as vossas ideias são 35 tão opressivas uma como a outra – não fizeram mais do que conduzir o homem ao beco sem saída em que se encontra. O vosso século XIX e o vosso século XX são ambos culpados pelo colapso eminente do planeta, quer seja por via de uma terceira guerra mundial, quer seja pelo descalabro ambiental provocado pela vossa cegueira irresponsável. Era raro eu dizer estas coisas, mas quando o fazia, sentia-me bem, convencido de que podia contribuir para a clarividência daquelas pobres almas perdidas. Mas Rui não aceitava o determinismo da História e só queria falar da hipótese de um futuro, de uma utopia, tudo radicalmente diferente das asneiras passadas. No entanto, Gonçalo era sempre certeiro – Mas és contra a ditadura do proletariado? ao que Rui já não sabia o que responder sem ser aos gritos, como o Manuel que também berrava – Não me deixam escrever a porra da carta ao homem enquanto fazia pontinhos na folha de papel, já toda cravejada da enorme energia que tinha. Às vezes, aquela barulheira toda lembrava-me os ensaios no meu antigo teatro, inexplicavelmente barulhentos se pensarmos que não havia qualquer público a assistir. Só estávamos nós – meia dúzia de jovens inexperientes e maravilhados –, podíamos falar baixo, não cansar a voz. Mas não. O teatro tem um dramatismo que não passa só pelo que se diz, mas também pela força com que se diz. A “alma”, dizem alguns. Não! Tínhamos que falar alto na mesma. Ou talvez mais alto ainda. Como se tivéssemos que 36 compensar a solidão das cadeiras vazias com um ambiente mais forte, talvez mais dramático – como quando a Carminda dizia, muito solene – Penso um rio e mergulho Ou era o António que lho dizia a ela – foi naquela peça que falava de amor e, como acontece com as estrelas de Hollywood, também eles decidiram apaixonar-se durante os ensaios. Assim, quando, nas actuações perante o público, ele continuava a deixa anterior e, olhando fixamente para ela, dizia – Há uma veia no teu braço onde tudo é possível. era certo e sabido que ela se emocionava a ponto de se atrapalhar na próxima fala, e nós todos aflitos a ver como é que aquilo iria acabar. Manuel ficava frequentemente saturado com o barulho daqueles dois – Deixem de andar a chatear os outros, pensem mas é no vosso mundo parvoástico que não vos deixa fazer o que querem – olha, eu quero-me despidástico e as pessoas não deixam, ficam a olhar sempre a chatear e a olhar, para que é que olham? Eu não quero ver as pessoas nuas, não quero saber, eles que não olhem... Manuel dizia existirem pessoas que perdem demasiado tempo a pensar, e decidir, o que é que os outros devem dizer, fazer. Era um falso altruísmo, achava ele, o que essas pessoas queriam era obrigar os outros a ter uma determinada maneira de ser, impedindo-os de ser livres e donos das suas vidas, dizia 37 – Vocês querem é mandar nos outros. Querem parecer bonzinhos, que querem o melhor para as pessoas, mas a vossa cabeça está cheia de coisas moralizásticas, as pessoas querem sempre mandar em mim. Porque o princípio unificador do mundo não era senão uma prisão para ele. E não entendia as fracas nuances entre o conservadorismo dos tradicionalistas e o pretenso modernismo dos revolucionários. Para ele, a vida era aberta, livre, cheia de amanhãs vividos numa inocência de primórdios, como se todos pudéssemos ser bons selvagens à procura das origens e da essência do humanismo. Em contrapartida, Rui achava que a procura dessa inocência feliz era totalmente irresponsável, pois os homens não eram inocentes e estavam sempre à espreita da possibilidade de oprimir os outros homens. E achava que a única solução era um Estado (ele dizia sempre com maiúscula) protector, que impedisse as desigualdades provocadas pela ganância materialista daqueles que mais importância tinham na hierarquia económica. – E quando a hierarquia económica acaba por se confundir com a hierarquia do teu Estado protector? perguntava Gonçalo, que não se sentia arredado das conversas por via das suas funções de guardador das normas e da ordem. Rui parecia não querer saber de mais nada, não entendendo ou não querendo entender. A certa altura, e para mudar de assunto, virou-se para o Manuel, como que tentando ajudálo a escrever finalmente a sua longa carta. E brincou: – O Presidente já deve estar a estranhar nunca mais receber a tua carta. Perante estas ironias de Rui, o outro respondeu num desabafo furibundo e quase ininteligível 38 – És de uma estupidez broástica, que nunca foste mais longe do que era permitido na tua aldeia, seguramente o padre era fanástico e a tua família tinha santinhos dentro das peúgas mal cheirásticas. E riu, dando gargalhadas que ecoaram por todo o espaço à volta, que era limitado, convenhamos, mas Rui reagia sempre mal a estas humilhações, como se as ofensas fossem ouvidas por uma multidão de populares ali reunida para receber as suas instruções divinas sobre o modo como organizar a revolução. Gonçalo, por vezes, resolvia, nesses momentos, chamar para a refeição – ou mesmo para a sua preparação –, normalmente o almoço da meia-noite, mas Manuel não desistia da sua irreverência – Cá estão a chamar os carneiros para a comida fast-foodástica. Antes de começarmos a comer, Gonçalo fazia quase sempre um pequeno discurso. Assim uma espécie de prece de agradecimento, como fazem as pessoas muito religiosas, mas totalmente transformada. Ali, não podia começar a puxar ao beato, senão tinha o Rui à perna. E o Manuel também, que não era desses mundos. Um dia, Gonçalo disse: – Livremo-nos do abismo do vazio. O que pregava tinha que ser rápido, Rui não lhe dava muito tempo de tolerância até começar a comer. Por isso, as frases eram sempre demasiado curtas. E tão enigmáticas que faziam dele um personagem misterioso que contrastava com a sua personalidade socrática. Eram falas pessimistas, que revelavam a sua profunda solidão 39 – Temam a confrontação súbita com a ausência. Ficávamos à espera do resto da frase, mas não havia. Gonçalo falava do nada, da ameaça da rarefacção. Temia a aproximação da incerteza, a possível negação do seu castelo de convicções tão antigas quanto inabaláveis. Assim que ele acabava, ou parecia acabar, Rui começava logo a comer. Fazia-o com gana de proletário faminto, dizendo sempre – Vocês não sabem o que é passar fome como se fosse obrigatório ter passado fome para ser marxista. E falava, absortamente, dos dias futuros em que todos os homens teriam a possibilidade de matar a fome, sobretudo essas pobres crianças que morriam aos milhões em África, relembrando que não havia hipótese de obrigar os ditadores africanos a pensar mais nas crianças do que na guerra, a não ser por via de um movimento de cúpulas, de estados soberanos que os obrigassem a vergar em nome dos mais elevados interesses da humanidade, ou se calhar era do humanismo, já não me lembro bem. E era sem surpresa que se voltavam a ouvir as frases perdidas dos meados do século XX, como a referência ao internacionalismo proletário, que era coisa que Gonçalo perguntava se era norma de sermos todos pobres por esse mundo fora, mas Rui não se calava, com o olhar ausente, e eu só pensava no tio Saúl, quando falava com os olhos postos no tecto, e eu chegava a não ouvir o que ele dizia, não tanto por saber de antemão o conteúdo, mas mais por observar, estarrecido, a sua cara de profeta e os seus olhos, sobretudo os seus olhos, virados para um infinito onde todos sabíamos que morava a verdade, um infinito familiar, como eu costumava dizer. Rui era parecido com o tio Saúl, pelo menos nas coisas que dizia, mas faltava-lhe a alma, não sei explicar. Ou então era de eu ser tão novo, e confundir a alma com a grandiosidade 40 das coisas que ele me ensinava, mergulhado no meu amor quase filial quando o olhava, no meio das praças da cidade, e ouvia, por entre a arquitectura tão antiga, a modernidade rouca da sua voz. Quando era mais pequeno, dava-lhe a mão e, confusamente, sentia que ia ser conduzido a um mundo de revelações absolutas, revelações escondidas desde o início dos tempos, guardadas só para mim. Eu era pequeno, mas, como nunca ninguém havia feito, ele tratava-me como se eu fosse adulto, partilhava comigo segredos só conhecidos do mundo dos crescidos, como a existência da opressão e a promessa da liberdade. Era uma espécie de verdade, mas uma verdade global, enorme como as leis do Cosmos, uma verdade que nos ultrapassava a todos, a mim, ao próprio tio Saúl, e aos que o ouviam no ambiente de solidão austera dos velhos monumentos que nos envolviam, como se fosse uma casa muito grande, e também muito acolhedora, com paredes muito largas e tectos ainda mais desmesurados, perdidos nos confins das galáxias que víamos nos céus infinitos das noites quentes de Verão. Foi numa dessas noites – hei-de contar mais adiante –, que ele me disse aquela frase terrível que ecoou para sempre na minha cabeça, a frase mágica e misteriosa: “Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar”. O tio Saúl muito direito, solene, dizendo que este era o maior segredo do Universo. Tinha sido o velho padre, à hora da morte, que lho havia revelado. Mas, naquele mundo de censura e morte em que vivíamos – os carrascos sempre à espreita –, não me era possível conhecer mais. O tio Saúl não podia dizer mais. Talvez um dia pudesse dizer. E citou o Manuel Alegre, quando elevou a voz – “No meu país há uma palavra proibida.” Não, ele não podia dizer. Era eu que tinha de procurar. Era parte do meu destino. Deste modo, o mar era – ou parecia ser – o último reduto da salvação do homem. Se calhar, por não ter fim, ou por 41 ser praticamente desconhecido. Reserva de água, fonte da vida. Sem ele não haveria chuvas nem alimentos, nem talvez ventos – apeteceu-me sentir um pouco de poesia. Mas como pensar que o segredo do mar pudesse alguma vez estar em nós, estar em mim? Tantas vezes que me encostava na cadeira, ou me deitava, a pensar nessa frase tão enigmática, e tão bela. O segredo do mar. Seria a água? Talvez. O nosso corpo tem uma enorme quantidade de água. Água purificadora? Aquela que se deita na cabeça das crianças para passarem a ter uma qualquer ligação com o além? Mas o tio Saúl foi claro: era um segredo que respondia àquilo que eu toda a vida iria procurar, por isso nunca mo disse, nem à hora da morte, agarrando-me as mãos com toda a força que tinha. À hora da morte. Mas, na comoção líquida dos meus olhos, eu senti, eu vi – na água que me inundava a visão do mundo – que estava mais perto da solução do enigma, do que jamais havia estado. O que eu senti foi seguramente a expressão mais clara possível dessa palavra mágica proibida. O tio Saúl tinha a certeza de que eu iria encontrar. Uma palavra que salvaria a Humanidade. O padre tinha descoberto uma verdade grandiosa nuns livros muito antigos, ou então nas aldeias perdidas que visitava, aldeias dos mais pobres, de pessoas totalmente isoladas do mundo. Palavra proibida, frase tão bela – como poderiam essas gentes conhecer os segredos do mar? Gentes do campo longínquo que, seguramente, nunca haviam visto o mar. Por vezes, quando o Manuel olhava da janela a imensidão das águas, eu sentia que, mesmo sem ter consciência disso, ele conhecia esse segredo. O que quer que fosse que pudesse existir dentro de nós relacionado com esse segredo, Manuel vivia-o de forma intensa. “Mergulha em ti”. Sim, devia ter a ver com a água. Manuel só bebia água – mas isso não devia ter nada a ver. Não, a água teria certamente que ver com outra dimensão: vi sempre Manuel lavado de uma 42 água primordial. Nu. Lavado. Puro. Seria esse o segredo do mar? O mar. Nome de uma peça antiga. Não, estou a dizer mal. “O cheiro do mar”. Nome lindo, que apelava à lonjura de uma felicidade de infância, banhos na água quente do final da tarde, com o Sol a ameaçar o cair da noite e o início das trevas e da solidão. Era a Daniela, creio eu, que falava do cheiro do mar que não se conseguia sentir nas grandes cidades, cheiro impossível na aridez do betão. Mas a peça vivia dessa nostalgia de um cheiro ausente, sem qualquer hipótese de concretização. Nostalgia de um cheiro absoluto. Maresia das tardes quentes de Verão, a pele a estalar de queimada e o corpo dorido de tantos banhos na violência das ondas. Daniela virava-se para o público, a luz de todos os holofotes a cair-lhe em cima, e estendia a mão, como que a anunciar qualquer coisa de milagroso – Com vento favorável começava ela, fazendo uma pausa para olhar fixamente para a audiência que não via, cega pela luz – Mesmo junto dos edifícios dos bancos os olhos abertos – E dos grandes escritórios e concluía a primeira parte, baixando a cabeça – Pode sentir-se o cheiro do mar As pessoas vibravam desse momento tão dramático, não pelo que ela dizia – texto meio absurdo –, mas pelo sentir que dela transbordava. Daniela era tremendamente bela – hei-de o dizer um dia – e eu amava-a sem a poder amar. E ela também me amava, de um amor triste da negação que em mim havia. 43 Nesses momentos, nós estávamos todos parados, de cabeça baixa, com uma luz muito ténue que permitia apenas adivinhar os nossos contornos diante do fundo negro do cenário. Já não sei se havia um piano a soar muito ao longe, ou se era o ruído impossível das ondas a quebrar. De repente – Vem do cais! Não é absoluto nem abafa as buzinas dos carros Lentamente, levantava a cabeça outra vez. E os olhos. – Não leva o perdão aos sonhos dos homens E, por fim, a mão, de novo, apontando na direcção da sala – Mas com vento favorável Boa vontade E raiva Pode sentir-se Chega a sentir-se O cheiro do mar. E caía ajoelhada no chão. E o pano caía também, perante a comoção abrupta de todos nós. Tantas vezes representámos a peça e nunca conseguimos deixar de nos emocionar quando ela se dobrava – tão bela e elegante – e o pano caía com um público já levantado em aplauso apaixonado. Daniela trazia, àquelas plateias de homens indefesos perante a desmesura brutal da arte, o anúncio do triunfo da irrealidade por sobre a limitação aparente da vida. Arte da minha juventude. E do depois disso, quando, ao fim da tarde, ia a correr para o teatro, para uns ensaios que se prolongavam até tão tarde, numa urgência estranha e implacável que impunha à minha felicidade. 44 Andamos sempre à procura de uma verdade. Na prisão, essa ânsia era evidente. Menos o Manuel. Ele tinha uma verdade. Não estava visível. Vivia dentro dele. Por outro lado, também era possível pensar que essa sua verdade fundamental era constituída por muitas verdades, umas atrás das outras, consoante o que lhe passava pela cabeça. A sua verdade era hoje uma, amanhã outra, e esse era o registo maior da sua liberdade de pensamento. Porque a liberdade do tio Saúl era dirigida a uma determinada opressão, num determinado contexto político, num determinado momento do tempo. Mas a liberdade de Manuel era absoluta, pois não era redutível a um só momento ou a uma só dimensão da vida. Era uma liberdade como em nenhum de nós havia. Verdades sucessivas, sem responsabilidade maior que não fosse a de respeitar de forma inocente os desejos sinceros dos homens, e a alegria, a alegria, que é uma felicidade sem preocupações futuras – Manuel havia de o dizer um dia, num poema lindo que inventou. Verdades sucessivas mas, estranhamente, pareciam nunca entrar em contradição, como se estivessem ligadas por uma lógica interior, talvez matemática, ou axiomática – como o meu amor por Amália, falarei dele quando conseguir –, uma lógica seguramente indestrutível. E, acima de tudo, de uma inocência incompreensível – Os homens são impressionásticos tão incompreensível que nem Rui nem Gonçalo sabiam como assimilá-lo. Manuel estava para lá do seu entendimento unificador. Como estava também para lá da minha visão de perfeição. E era por isso que ele era tão livre. Não tinha a permanente necessidade de argumentar perante as nossas discussões sem fim. Estava sempre à parte e, de repente, dizia algo. E esse algo era exterior à discussão. Ou era algo para lá da discussão. Sem amarras. Verdadeiramente libertador. Talvez sem nexo, embora nenhum de nós o acreditasse verdadeiramente, sobretudo eu, que já sentia demasiado cansaço em relação a tamanha dialéctica. 45 O meu propósito não era aquele. Eu não era um preso. Não era maluco nem revolucionário bombista. Era um cientista com permissão para desenvolver o meu trabalho de investigação naquela prisão isolada no fim do mundo. A minha pena a cumprir era interna, ou seja, era um problema que eu tinha que resolver com a ciência e a filosofia. Era o projecto científico mais inovador que alguma vez havia sido considerado. Haveria de ser o primeiro homem a encontrar-me com os outros, os do outro mundo – tão pueril que hoje acho aquela frase do “grande passo para a Humanidade”, ou lá como era, só porque viajou até um planetita minúsculo aqui mesmo ao lado. Eu ia encontrar os vindos do Espaço, quantas dimensões acima de tanta mediocridade. Os meus companheiros não sabiam, é claro, limitavam-se a observar os meus preparativos, mesmo quando estes envolviam uma tecnologia totalmente desproporcionada para um ambiente prisional. Não valia a pena explicar-lhes que o meu propósito era totalmente científico, oriundo da ciência dos homens – Rui nunca o iria entender. De qualquer modo, olhavam para mim com uma certa reverência, percebiam que eu não era um deles, quanto mais não fosse pelo modo como o pobre Gonçalo agia, eu mais parecia ser um seu superior hierárquico. A versão oficial apresentava-me como um escritor que queria escrever um romance sobre a vida de um astrónomo, foi assim que o Manuel um dia me sentou em frente dele para ter uma conversa muito séria, talvez conte daqui a pouco, uma conversa para me explicar que também ele queria muito escrever um romance. E o próprio arsenal tecnológico obrigava, reconheço-o, a um certo respeito, não era qualquer um que conseguia juntar aquela maquinaria toda. Embora não percebessem para que é que ela poderia servir concretamente. E eu não dizia nada. Pelo menos, quase nada expliquei até ao momento crucial, que todos presenciaram. O momento mais fantástico – já pareço o Manuel – a que todos jamais assistiram na história das suas vidas. 46 O meu projecto começava por ser um projecto científico. Ou filosófico, pouco importa. O meu objectivo, creio que já o disse, era descobrir os elementos teóricos que pudessem guiar a Humanidade no futuro. E, com eles, construir uma teoria, uma ideologia global, como fez o Marx, que pudesse condicionar o homem de amanhã. Uma ideologia que pudesse marcar o século XXI como o marxismo marcou o século XX. Não era a invenção de um regime político novo, por acaso sempre me havia irritado o nunca se ter descoberto um regime alternativo à ditadura e à democracia. Mas não! Era algo mais vasto, era como se fosse uma religião, algo pelo qual os homens se pudessem apaixonar, e talvez lutar, pondo em risco a própria vida. Era isso que eu achava comovente e infinitamente belo nos revolucionários marxistas. Também houve, claro, milhares de tipos a morrer para defender a pátria e o rei e essas coisas, mas em nenhum desses casos eu via aquela aura de beleza romântica que quase nos faz chorar. O marxismo era como uma religião porque envolvia uma adoração cega. E eu queria algo de igual, ou seja, com o mesmo tipo de efeito: um sonho totalmente puro de amor em relação aos homens. Tinha estudado muito, feito milhares de esboços – e esquemas, como fazem os intelectuais franceses –, mas tinha chegado a uma triste conclusão: tudo o que os homens inventaram e pensaram ao longo do tempo, homens cada vez mais inteligentes, mais sábios, mais cultos e conhecedores de tudo, só serviu para piorar as coisas. Estávamos à beira da destruição do planeta. Foi aí que pensei nos das galáxias longínquas, tão avançados que eles deveriam estar em relação a nós e, simultaneamente, tão bem que deverão ter superado as crises provocadas pelo seu conhecimento. Era preciso uma ideologia nova que guiasse o homem, mas também que salvasse o planeta. E eu estava em condições de o conseguir. Do muito que tinha lido sobre fenómenos ufológicos, tudo me conduzia àquele local. Por ser abandonado pelos homens – eles, é óbvio que o sabiam –, aquele mar permitia a sua vinda sem serem vistos. Eu sabia o que eles procuravam, mas interrogava-me sobre o seu maior segredo: como teriam 47 eles conseguido harmonizar o desenvolvimento tecnológico – porque não falar mesmo em ciência – com a salvação das vidas e com a redenção das almas? Seriam eles os deuses dos homens, como me parecia cada vez mais claro depois de todos os estudos que fiz, sobretudo em matéria de Etnologia? Pensava se teriam sido eles, ou outros como eles, a passar cá há muitos milhares de anos atrás, com toda a probabilidade mesmo mais de um milhão, para nos ajudar a ser homens. Mas não. Era mesmo mania minha, essa de atribuir a outros a génese da nossa humanidade. Mania estúpida, aliás, porque contrariava totalmente o meu sonho enquanto investigador de Antropologia. Sempre tinha achado que o homem tinha construído, ele próprio, a sua transformação. Tinha que ser assim. De outra forma, o homem não passaria de um joguete nas mãos de poderosos galácticos. Uma outra forma de religião. Mas isso agora era irrelevante. A minha preocupação não era a origem do homem, mas o seu futuro, o rumo que estava prestes a seguir. E era eu que tinha que definir esse rumo. Se calhar não tanto por razões que tivessem a ver com a minha preocupação com o homem, mas porque queria deixar o meu nome bem marcado na história do século XXI. Por toleima, talvez. Ou então – como também estava convencido – para deixar uma marca indirecta da passagem do tio Saúl por esta Terra. Mas devia ser por toleima mesmo, às vezes imaginava a minha cara em posters nos quartos dos adolescentes, ou estampada nas t-shirts, com dizeres da minha filosofia, entretanto de referência obrigatória para quem quisesse estar à frente do seu tempo. Porque os conservadores (não seriam chamados reaccionários) continuariam a existir. Por isso, seriam as gerações e as elites afectas ao modernismo que iriam acompanhar o meu ideal. Estava muito consciente de que não queria encontrar um “ismo” – socialismo, comunismo –, em grande parte porque 48 não queria descobrir um novo regime político. A minha proposta era mais livre: era a de encontrar uma ideia global que definisse a atitude a tomar. O regime seria o resultado da aplicação dessa ideia, partindo eu do pressuposto de que o homem tinha que ter toda a liberdade no âmbito dessa aplicação. Assim, o regime não estaria definido à partida. Seria diferente de grupo para grupo, de povo para povo, não queria cair na esparrela do Marx e começar com as aulas de catequese. Uma ideia mais brilhante do que a dele – não seria certamente a igualdade –, mas seguramente com o mesmo tipo de embrulho. Na linha do religiosobeato-fanático. Mas não porque as perguntas não tivessem respostas, como no caso do marxismo ou da religião – na minha filosofia tudo teria sempre que ser humanizado. As pessoas tinham que poder discutir, ou reflectir, para além de acreditar. Uma ideia absorvente, e justa, mas exequível. Ou seja, prática, também. Por vezes, achava que o Marx tinha diminuído os ideais da Revolução Francesa. No sentido em que tinha privilegiado a componente menor da trilogia, que era a igualdade. E achava-o porque ela era a mais distante da essência do ser humano. E deixou de lado os dois valores essenciais, impondo uma ditadura (numa perspectiva contrária da liberdade) de ódio entre irmãos (numa perspectiva contrária da fraternidade). Operários, camponeses, soldados, ricos, pobres, explorados, exploradores. Todos irmãos na sua essência mais profunda. Com diferenças de conjuntura. Tão conjunturais, aliás, que, logo após as revoluções (russa, chinesa), os explorados não passaram nem dois dias a passar a exploradores, nem os ricos demoraram mais de duas horas a passar a pobres. O meu objectivo era, afinal, anular essas diferenças de conjuntura, não pensando neste ou naquele homem, mas pensando no homem em geral, naquilo que o une dentro da sua diversidade. Para que pudesse estar para lá de regimes políticos concretizáveis em função do tempo, do espaço, ou das oportunidades oferecidas aos seus dirigentes. 49 No meio de todos os devaneios, subsistia a minha preocupação legítima em arrumar tudo muito cedo no topo do farol. O material era complexo e demorou muito tempo a estar todo montado como devia. Eu tinha que estar preparado para qualquer eventualidade relacionada com as minhas pesquisas. Nunca poderia antecipadamente saber quando seria o momento decisivo. E esse momento não poderia ser perdido por nada deste mundo. Restava-me ficar à espera. Papel manuscrito nº 1 (tempo da prisão) O farol é vermelho, e junta o branco do edifício num contraste potente com o azul em redor. Está no cume de uma enorme rocha que cai em escarpa sobre o mar. Rochas em precipício a toda a volta da ilha, só há um sítio com uma pequena enseada, assim como uma praia de calhaus. É a única possibilidade de acesso ao mar. Hoje o mar está mais calmo, abrandou o vento, podia aproveitar para dar um passeio até essa praia – sou o único que o pode fazer e quase nunca o faço. Mas não gosto de ir lá de noite. E nós só quase vivemos de noite. Vejo o luar reflectido nas águas de forma mais nítida do que o habitual. Não sei se é impressão, 50 ou sugestão, por causa de ontem. E fico a olhar o vento a frisar a água, em pequenos arrepios que às vezes não é o vento e são cardumes de peixes a nadar à superfície. Quando passam as nuvens, surgem formas escuras no longo rectângulo prateado que espelha a luz da Lua. Como as “sombras japonesas”, já não sei se é assim que se chamam. Tento adivinhar concretizações para o abstracto das sombras: objectos, animais. E penso: não terá sido assim que se “avistaram” muitos monstros marinhos? Enormes serpentes, onduladas, a deslocarem-se à velocidade das nuvens e, por vezes, do arrepio provocado pelo vento no mar? Mas quando a luz do farol passa, vemos que é tudo ilusão, como quando as crianças vêem carantonhas no escuro, ou na penumbra provocada pelas frestas das portas, e depois nós chegamos ao quarto e acendemos a luz, e elas percebem que não havia nada a não ser a sua imaginação, e o medo da noite. O mar não tem fim, e por isso os seus mistérios são ainda maiores. Mas não é por o mar ter duas, ou três, ou quatro vezes – também já não sei – a vastidão da superfície sólida do planeta. 51 O mar é infinitamente maior porque a terra é bidimensional e o mar não. Ou seja, se eu olhar a vastidão da terra, uma planície sem fim, por exemplo, ou o deserto, só penso no que o meu olhar alcança. Não penso na profundidade. Não imagino, um segundo, que essa enorme “dimensão” possa ser multiplicada, se calhar exponencialmente, pela dimensão do que está por baixo. Não imagino o volume. Só a área superficial. No mar, não. Acho logo, aliás, que a superfície é o menos importante, pois tudo o que se passa está escondido e é, como sabemos – e é verdade –, infinitamente maior. Cada ponto que vejo pode ser multiplicado por uma infinidade de pontos que podem ir até um quilómetro, ou dois, ou mais, no eixo perpendicular ao plano que consigo ver. Se olhar para um metro quadrado de terra, só lá poderei ver um animal de médias proporções. No mesmo metro quadrado, observado no mar, podem esconder-se centenas de animais, consoante a profundidade em que habitam. Subitamente, penso que é estúpido olhar o mar e pensar nos infinitos de uma forma racional. Mas 52 hoje é quase só o que tenho. A racionalidade. A emoção perdi-a algures, há muito tempo. Por um lado, claro, com a morte do tio Saúl. Mas, antes, com a outra morte, que não foi bem uma morte, mas senti como se fosse. Porque algo morreu dentro de mim. Amália. Foi talvez a capacidade de amar que perdi para sempre. Foi primeiro o futuro que me morreu. Depois, foi o passado. Penso nela, gosto de o dizer – ela –, sempre detestei o nome Amália. Por isso, por vezes penso para mim que gostava que ela estivesse aqui. E cada vez que alguém diz a palavra ela, eu penso nela. E nos tempos que passámos à beira-mar, nas praias, por vezes sozinhos a toda a extensão do areal. Como era bela. Um dia partiu, ia à procura do seu próprio futuro. Um futuro que tinha que ser construído sem mim. Quando vejo o mar, lembro-me dela. Um corpo de brutal beleza que saía do mar. E eu aterrado perante a minha pequenez. Um dia foi-se embora. E disse, ou imaginei – Não amarei mais ninguém. 53 Assim. Só assim. E eu parado. Sem entender. À espera de um milagre. Eu, que sei que os milagres nunca existiram. Também nunca mais amei. Fiquei sem essa capacidade. O amor passou a ser coisa difusa, imaterial. Apenas existindo nas doces evocações do passado. Como me acontece com tudo, hoje em dia. Porque tudo o que existiu de emoção profunda, dentro de mim, morreu. Fiquei com a dimensão racional de um sonho filosófico, que não sei se algum dia vai existir mesmo. Se calhar, vai ser só isso. Um sonho. A minha vida está no cruzamento do sonho e da memória – Não amarei mais ninguém. Eu também não. Conhecemo-nos ainda em miúdos. Fomos um só. Da amizade de quase irmãos, passámos para a paixão, depois o amor. Acabou por não fazer sentido pensar a nossa vida sem ser um com o outro. Foi por isso que deves ter partido. Foste procurar o teu eu. Coisa de que eu não 54 precisava, tinha-te a ti. Mas tu quiseste. E lá foste. Deixando-me totalmente desamparado. E só. Estou a escrever tudo isto, pacientemente, porque espero. Tenho a certeza de que a luz que apareceu ontem aparecerá hoje de novo. Ao lado da luz reflectida da Lua – luz, reflectida no mar, que também não era da Lua, mas proveniente, através dela, de um Sol longínquo –, apareceu uma outra, que vinha do fundo das águas. Tenho a certeza disso porque vi um enorme peixe a passar por cima e a tapá-la um pouco. Por isso, não podia ser uma luz vinda de cima. E essa luz não era de prata, era amarelada e, quando fugiu, avermelhada. Afastou-se rapidamente, fazendo um sulco nítido e linear, coisa que os arrepios do vento não fazem. Eles levam a ondulação em grandes manchas horizontais em relação a mim. Como se fossem barcos que se deslocam de lado. A luz seguiu vertical, numa linha que apontava o limite do horizonte. Longitudinal. E os cardumes de peixes não se deslocam numa fila indiana perfeita. 55 A luz apareceu ontem, enquanto o Manuel tocava piano, com a sua concentração habitual. Mas ontem estava mais alegre, por vezes olhava para nós e sorria. Como se estivesse a dizer uma piada. Ao piano, a sua comunicação é mais fácil. Está mais à vontade. É o seu modo natural de ser. Ao piano, não tem nada de maluco. Pelo contrário, somos nós que nos sentimos inferiorizados, excepto o Rui, que teima em dizer enormidades como essa de a arte não servir para dar de comer às crianças com fome. Mas tenho a certeza de que também ele sente a visita da transcendência quando o Manuel toca aquelas suas harmonias complexas e, por vezes, perturbantes de dissonância. Nem ele conseguirá resistir a esse apelo grandioso de vibração e de ternura. – Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar. Há um segredo no mar. E eu vou descobri-lo, como prometi ao tio Saúl. Vou esperar pela luz. Os outros dormem, cada um para seu lado. Podes vir, luz. Estou só. Não direi a ninguém qual 56 é o mistério do teu mar. Podes vir. Preciso de desvendar o teu segredo, pois preciso de salvar os homens. O segredo está dentro mim. Ao que parece, perdi-o um dia, mas guardei as réstias em mim. Vem, luz, podes vir. Vem para me ajudar. Era uma luz de grandes proporções que parecia iluminar todo o fundo do mar. De vez em quando, aumentava de intensidade, depois diminuía. Como se estivesse a fazer sinais. Não sei que sinais posso fazer. Mas posso esperar. É isso que vou fazer. O dia em que terminei toda a montagem e teste dos aparelhos foi muito especial, não só porque acalmei os meus anseios e medos de ser apanhado desprevenido, mas, acima de tudo, por ser dia de fazermos a nossa comida, o que dava sempre para grande divertimento. Por isso, tinha que acabar de arrumar tudo ainda cedo, para poder ajudar os outros na cozinha. Na prática, eram mais eles que me ajudavam a mim. Um dia por semana, havia licença para nós cozinharmos. Sobretudo eu, como disse, porque o Rui achava sempre que a culinária era coisa de excentricidades burguesas, a comida era para nos alimentarmos, e só se tornava objecto de culto para quem tinha comida a mais, o que era um desperdício próprio de ricos. E passar três horas a cozinhar só podia 57 ser prazer de pessoas desocupadas e que não precisavam de trabalhar. Gonçalo cozinharia nesse dia. Muito excepcionalmente. Era muito metódico e preparava tudo com imenso rigor. Cortava, lavava, pesava, separava os ingredientes, media – passava uns bons dois minutos a dosear uma colher de manteiga. Seria colher de sopa? De sobremesa? Gonçalo era um cozinheiro extraordinário. A culinária estava, descobrimo-lo mais tarde, indissociavelmente ligada ao seu passado. E quando cozinhava era como se, de repente, se separasse de nós e mergulhasse numa outra dimensão. Quase não falava, totalmente fechado em si. Misturava os temperos, fazia-o sempre de modo diferente de cada vez, como se estivesse sempre – tal como o Manuel ao piano – a criar uma nova obra de arte, sempre inédita, sempre original. Gonçalo cozinhava melhor do que qualquer pessoa que alguma vez conheci. Porém, raramente o fazia. Não queria cozinhar. Nós pedíamos-lhe, mas ele normalmente recusava. No entanto, havia também alturas em que dizia que sim. Havia momentos em que ele se revelava uma pessoa muito misteriosa, e nós desde sempre percebemos que a culinária era inseparável desse seu sofrer. Por vezes, dizia coisas incompreensíveis para si próprio, só entendíamos palavras difusas, frases cortadas ao meio – A atracção do abismo. Nesse dia, ouvimos-lhe uma frase completa, entre dentes, e mais misteriosa ainda – Descobri que o vazio é a base da libertação. Olhou para nós quando o disse, mas não estava a ver-nos. O seu olhar trespassava-nos a caminho de um lugar outro, 58 algures por detrás de nós. E, calmamente, voltou a cortar as batatas em pequenas esferas, perfeitas, que ia fritar na gordura da carne já terminada. Ao cortar as batatas, grandes, em quatro, para, de cada quarto, fazer uma pequena esfera, ia deixando todo o desperdício que restava da batata, o que justificou logo uma intervenção correctiva da rígida moralidade da esquerda presente: – Vais deitar essa comida toda fora? Rui gostava muito de batatas fritas, mas, ao mesmo tempo, não permitia nunca que a sua barriga se impusesse ao seu cérebro todo programado de regras e de recomendações. – Com o resto, vou fazer puré para ti. Gonçalo interrompera a sua concentração por breves instantes, para lhe responder à letra. Depois, voltou ao seu mundo de deleite quase infantil, vivência de um passado longínquo onde encontrava a memória da sua segurança perdida. Nesse dia, Manuel tinha chegado de novo com a cabeça toda molhada. Não podiam ser banhos no mar, ele estava proibido de descer as escarpas pelo único caminho possível para chegar à enseada. A proibição era um pouco absurda, embora fosse normal numa prisão evitar fugas através do mar. Mas Manuel não sabia nadar, e também não tinha com que fazer uma jangada ou coisa do estilo. Ele dizia que molhava a cabeça no lavatório porque ficava com calores súbitos. Mas o estranho é que a cabeça só aparecia molhada nos dias em que ele estava várias horas sem aparecer, ia pensar, dizia ele, atrás dos penhascos mais altos que havia a nascente. Ia pensar em quê? Manuel vivia a vida em intensidade e em proximidade. Ela não lhe exigia a lonjura do metafísico. Se calhar, ia só sentir. O seu piano, talvez. Manuel era totalmente diferente de nós. 59 Quando chegou, pediu-me – Faz aquele arrozástico com rebuçado. – Com refogado … – Pois, esse, que é um arroz que fica duro, e os bagos ficam separados para eu contar. E era capaz de ficar não sei quanto tempo a contar os bagos, obsessivamente, enquanto a carne esfriava e perdia a graça toda. Mas ele não queria saber, nem quando ouvia o Rui berrar – Vê-se mesmo que nunca passaste fome, para estares assim a brincar com a comida. Continuava, meticulosamente a contar os bagos de arroz, pondo os maiores para um lado e os mais pequenos para outro. De vez em quando, descobria um bago escuro, ou uma pequena pedra, e mostrava, vitorioso, como que justificando, com a deficiente escolha do arroz, a necessidade da sua absurda dedicação a tal tarefa. Mas o Manuel ajudava à culinária. Algumas coisas davam-lhe um prazer imenso, por exemplo, lavar a salada. Demorava horas, acariciava os talos mais grossos com os dedos antes de os cortar e depois estendia as folhas de alface, com muito cuidado, para ficarem muito lisas. Depois tirava a mão, as folhas enrugavam outra vez e ele ria, divertido com os mistérios e caprichos da Natureza. Outras vezes, queria cortar a cebola. Cortava muito, em pedaços muito pequeninos, para ficar muito “chorástica”, como ele dizia. As lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo, e ele fingia que estava triste, ou mesmo que estava a chorar. E depois desatava a rir outra vez. Gonçalo ficava sempre histérico, pedindo-lhe para não mexer em nada – para não ficar tudo besuntado e impregnado de cheiro a cebola –, e 60 o tempo assim passava mais depressa com a ânsia de irmos comer um petisco tão especial. Um dia, depois de uma refeição dessas, resolvi pôr música. O que, não sendo propriamente proibido, não era muito habitual. Era mais frequente ouvirmos o Manuel tocar. Era música suave, jazz, um trio de jazz moderno e ao mesmo tempo clássico: baixo, piano e bateria. Jazz nórdico e adequado a um dia especial. Nesse dia, tínhamos bebido vinho – algo que era ali muito impensável, afinal estávamos numa prisão. Mas tinha convencido o Gonçalo, afinal era uma data festiva qualquer que já não recordo. Coitado, porque, ainda por cima, não gostava daquele jazz. Era demasiado dissonante – ele não o disse assim, mas foi o que entendi – para o seu conservadorismo apreciador de um ritmo swingado dos primórdios e à maneira do Glenn Miller. Ele tinha uma teoria despropositada a respeito da necessidade absoluta de um ritmo marcado no jazz. Leituras antigas, com certeza. Mas também não fez grandes comentários. Rui também não. Não cheguei a perceber em que alínea do marxismo é que o jazz se inscrevia. Ou não inscrevia. Percebi que tinha pontos positivos: a origem negra, os escravos, a fuga a uma realidade dolorosa, a perpetuação das origens africanas e, tal como Gonçalo – o contrário é que seria de estranhar –, o ritmo. Espiritualmente, Rui e Gonçalo encontravam-se mais frequentemente do que seria de esperar, embora Rui falasse de um ritmo de revolta, tal como a dissonância – aí talvez mais interessante –, que também era, em sua opinião, a recusa da facilidade herdada dos avós da composição. Recusa de um mundo harmónico completamente ultrapassado, onde se sentia um ritmo que surgia como um tambor, mítico, de resistência e de coragem. O que me impressionou, tanto num como noutro (Gonçalo e Rui), foi a prontidão da resposta. A rapidez do comentário, como se não estivessem a falar daquela obra em particular, mas do que ela lhes sugeria, em regime de opinião globali61 zante – ou de associação de ideias. Como se fosse uma ideia feita; os cientistas chamam pré-conceito a essa ideia vaga e abstracta que se aplica sem se ter em conta as características concretas do que se está a analisar. Se é jazz, não gosto. Nem vale a pena ouvir a música, não gosto. Ou se é um jazz com uma determinada etiqueta, não gosto, só se for da outra etiqueta. Como os miúdos que não gostam de peixe e nós dizemos-lhes que é “carne branca”. São opiniões que são axiomáticas, verdades indemonstráveis, como na matemática. Não vale a pena teimar. Em contrapartida, Manuel ficou agarrado ao aparelho, de olhos esbugalhados, a ouvir. Ouviu com toda a atenção do mundo e, de tempos a tempos, fechava os olhos e inclinava a cabeça para a frente, fazendo um gesto com os dedos, parecia que ia tocar uma tecla. Rui, a certa altura, perguntou: – Não cantam? Para ele, a música era cantada, era a que estava mais próxima da sua emoção. Tal como estava habituado, a música tinha que ter palavras, para o guiar na irrealidade difícil que a complexidade da música potenciava. Rui tinha uma mensagem para transmitir aos outros, e essa mensagem só fazia sentido através da palavra. Ele não sabia que a grande música não era cantada. Essa não era a grande música para ele. Papel manuscrito nº 2 (tempo final da prisão) Olho o mar, é fim de tarde e estou nos confins do mundo, isolado numa ilha no meio do oceano. 62 E, instintivamente, é como se vivesse de novo os meus tempos felizes com ela. Como é possível sentir-te ainda, como se estivesses aqui? As árvores mexem com o vento e vão apagando e acendendo, sucessivamente, a luz do Sol na mesa onde escrevo. Estou longe de tudo. E estou só. Olho o mar, tão distante do da minha referência contigo, e sinto-o da mesma origem emocional. O mar de quando andávamos de mão dada pelas praias, na amizade de crianças, depois no amor de adultos, o que, para nós, foi sempre o mesmo sentir. Aqui não há praia de areia branca – como no poema do Muralha –, não existe aquele azul tropical onde via o teu corpo recortado. O mar bate na rocha e a sua cor é escura como são as águas profundas dos oceanos. Escura como a noite que me inundou desde que me deixaste. Longe de tudo, é uma música bela que me acompanha. Com ela, relembro também os tempos felizes da prisão e a enorme força de esperança e de liberdade que neles existiu. Nos agudos melancólicos do piano, ainda vive a saudade dos meus sonhos antigos. O sol vai pôr-se mesmo à minha frente. A música embala o adeus das 63 ondas e o Sol deve ter corado de vergonha, pois é agora mais vermelho, não deixando dúvidas sobre a sua vontade de partir. Deixando-me ainda mais só. Já não vou encontrar nenhuma luz vinda do mar. Não preciso de esperar pela noite. A noite será totalmente escura. O Manuel não estará aqui para tocar e eles virem esconder-se por debaixo das ondas para o ouvir. Para Rui, a música tinha que ser mais concreta. A irrealidade era de mais para ele. Lembro-me – Mas eles não cantam? Não, Rui, eles não cantam. Bate sol, bate nas vidraças e, quase a partir, ilumina uma última vez o meu papel, a minha mão que tenta aplacar ainda o mistério da folha em branco, por entre as folhas – as outras folhas, as folhas das árvores – tremendo em sombras sobre a secretária. São as réstias da luz do dia, 64 que anunciam a noite triste nesta solidão em que me encontro. O tempo que me resta ficará, assim, todo ele ocupado pela luz desta música que envolve a sedução absoluta da recordação do teu olhar. Que me acompanhará até ao fim. Não cantam, Rui, porque o que tu ouvias era a música mais bela do mundo. A música mais abstracta de todas. Chamam-lhe a música absoluta. A mais bela. Mais bela do que a tua revolução, do que o teu sonho ingénuo de justiça. Manuel voltou a abrir muito os olhos, como se compreendesse para além do que eu afinal disse. Mas, a certa altura, percebi, percebemos todos, que aquela outra voz que só ele ouvia, porventura a mais abstracta de todas as vozes da música, tomou conta dele e as suas mãos, os seus dedos, levantaram-se como que para agarrar o imaterial fugidio daquele deslumbramento. Manuel fazia curvas com o dedo indicador espetado, fechando os olhos, e abanando a cabeça para um lado e para o outro. Até que, num assomo de concentração, baixou a cabeça e ficou inerte, punhos cerrados, levemente em cima do peito. De certa forma, aquela música era muito semelhante à sua, e era como se ele tivesse encontrado um ser com ele parecido, e pudesse, ao fim de milénios de incompreensão, iniciar um diálogo novo, numa linguagem para nós desconhecida. Como se fosse um animal que compreendesse a linguagem de um outro da mesma espécie. E ali ficou, em concentração absoluta, a decifrar o sentir profundo do outro músico, linguagem emocional inata – ele nunca aprendera música – que a maior parte dos seres humanos perdeu. Deve ter nascido com a Humanidade e, a certa altura, virou-nos as costas. Agora, só nasce com alguns. Os que têm o dom. Um dom 65 cujo verdadeiro valor esses homens desconhecem. Um dom que ignoram e que é o orgulho de todos os outros. Quanto mais não fosse por respeito ao sentir profundo do Manuel, fechámos todos os olhos e deixámo-nos embalar pelo ondulado da nossa comoção. Por momentos, fomos todos homens, sem desavenças nem teorias políticas ou filosóficas. Por momentos, fomos todos fraternos no sentir daquela espécie de aflição de uma beleza que nos excedia de forma tão visível. Sim. Por momentos, fomos todos irmãos. 66 II A vida na prisão era, muito frequentemente, de uma melancolia profundamente bela. Rui falava sobre a alegria das gentes simples, que iam trabalhar logo de manhã com energia, cantando a confiança de alentejos verdejantes, amando as plantas e os animais na sua convicção de uma pertença total à Natureza, amando os outros homens, sem competitividades, nem invejas, enquanto Gonçalo fazia de uma espécie de dona-de-casa, vendo se tudo estava arrumado, em segurança – as janelas fechadas, a programação eléctrica do farol com o relógio certo. Manuel dizia coisas incompreensíveis, vagueando pelas salas, ou sentando-se em frente do piano – como era seu frequente costume –, sem tocar nas teclas, talvez imaginando melodias que em si nasciam, ou, se calhar, apenas sentindo ondas imperceptíveis que o piano talvez emitisse e que só ele estivesse capacitado para receber. E assim ficava, longo tempo, olhando para as teclas, cantarolando uns gemidos que me faziam senti-lo demasiado distante, na lonjura da evocação de nostalgias antigas, e doridas, ou das suas melodias perdidas que não iria repetir nunca mais. Um dia, iria agarrar-me com toda a força, para eu finalmente me aperceber da importância do que me dizia: – Um romance broástico. 67 Era um Manuel consciente do fervilhar da arte na sua vida, desejoso de um pouco de imortalidade, que, abrindo ainda mais os olhos, disse: – Um romance de amor. Seguro. Certo de que havia um futuro longínquo que esperava por si. Um futuro acima de todas as esperanças humanas. O amor. A arte. A viagem infinita. Estavam guardadas para Manuel as maiores surpresas que algum homem jamais poderia esperar. E só Manuel as merecia. Eu passeava perto das janelas e olhava cá para fora, por cima das escarpas, para ver o mar. E era como se o ambiente de paz que reinava fizesse amansar as ondas, agora reduzidas àquele mar frisado pelo vento que tanto me distraía, pareciam cardumes de peixes a deslizar à superfície, obsessivamente, sempre na mesma direcção, mas sem destino, voltando sucessivamente ao ponto inicial para fazerem a viagem de novo. Era impressionante a sensação de infinito – ou mais do que infinito, como dizia o velho professor – que o mar produzia em mim. E, com a sensação de infinito, vinha a sensação de liberdade total, a ideia súbita de não haver limites para onde podemos ir, uma total ausência de pessoas e constrangimentos que nos possam impedir em que dimensão seja, solidão absoluta. Uma sensação de liberdade que, para sempre, associei àquela prisão. O ambiente de paz adormecia Gonçalo, que nem se lembrava de contradizer as deambulações emocionais de um Rui que, apanhado distraído da sua militância, acabava por implicitamente valorizar aquilo que sempre dizia odiar, que era a imagem de felicidade dos pobres. E falava da alegria destes, do bem que estavam na sua pele, da capacidade enorme que tinham de se contentar com o pouco que tinham, mais ainda, da facilidade com que misturavam o imaginário e a realidade, tal era a fronteira ténue que a imaginação operava em relação ao real. Eram desejos por vezes tão 68 simples, ou seja, esse imaginário era por vezes tão próximo do que lhes era possível em termos de realidade, que acabava por frequentemente se concretizar. Por exemplo, a alegria de os filhos terem dois nacos de pão com carne para o jantar. Ou terem um quarto separado para dormir. Ou água quente. Como um homem que ele conhecia – e até se tinha safado muito bem na vida porque tinha emigrado para a América. Mais tarde, já regressado dos anos de emigração, lembrava esses tempos pobres, e felizes, dizendo: – Isso era um sonho. Mas, depois, Rui caía em si e lamentava a ignorância daquela pobre gente, condenando a sua idolatria da miséria. E dizia da sua desgraça, por serem gente simples, sem desejos de ter mais, de melhorar a sua vida; para mais, pouco instruídos, ou mesmo analfabetos, o que também era material que permitia alimentar essa tal ideia de simplicidade que ele recusava. Dizia que o seu projecto não queria homens vergados, submissos, felizes com o nada que tinham, mas sim homens exigentes, suficientemente instruídos e conhecedores do mundo para não se deixarem enganar e explorar pelos capitalistas sem escrúpulos. Mas ainda hoje sinto essa melancolia quando também recordo os momentos em que a vida na prisão era de uma beleza diferente e todos recomeçavam a discutir uns com os outros. Era precisamente quando Rui falava sobre o embrião de revolução que iria, mais dia menos dia, nascer nos homens que trabalhavam de sol a sol nos alentejos verdejantes, que Gonçalo argumentava se só existiam homens bons no Alentejo e se no restante país eram todos fascistas, como por exemplo os operários do Norte. Ao que Rui respondia sobre a alienação das gentes acima do Tejo, e da perturbação que o minifúndio tinha causado em Portugal, e eu pensava que a teoria estava toda ao contrário. Dantes eram os operários contra os camponeses, agora era quase o inverso, o marxismo tinha uma capacidade 69 de adaptação brutal e, sem dúvida, era por ser demasiado abstracto: o sonho perdurava, intacto, apesar das múltiplas concretizações azaradas. O absoluto, não concretizável, subsistia à degradação da experimentação. Pensando bem, o que o marxismo teve de especial, o seu segredo, mais do que uma doutrina política ou económica, ou mesmo social, foi o ser uma doutrina emocional. Num primeiro nível, houve um investimento importante na dimensão social. E foi essa sociedade totalmente nova que começou por dar ao marxismo a sua dimensão onírica. Mas, mais do que a igualdade – que nunca se veio a verificar nos regimes que levaram o marxismo à prática –, o que o marxismo vendia como sociedade-limite (a sociedade comunista) era a sociedade feliz. Uma sociedade tão perfeita que as pessoas não haveriam de ambicionar ter melhor. Por isso a ideia de limite. A partir daí não haveria mais nada. O homem teria assim chegado a uma espécie de topo evolutivo, a um máximo de felicidade possível. E porquê? Muito simplesmente porque já não haveria ricos nem pobres, explorados nem exploradores, não haveria diversidade de classe social. Como se a felicidade dos homens pudesse ser apenas determinada pela ausência de desigualdades económicas ou de estatuto social. Nesse sentido, mesmo falhando como doutrina social, o marxismo conseguiu manter sempre a esperança no futuro, por ter, acima de tudo, uma genial capacidade de imposição psicológica, emocional. Enquanto tentava pôr ordem nas ideias, pensei o quanto queria mesmo escrever um livro e tomei consciência da importância dessa dimensão onírica, que não deveria nunca subestimar aquando da definição final da minha própria ideologia. Durante esses dois últimos anos, tinha acabado por não escrever o livro – o que se compreende, pois ainda esperava os outros –, mas tomara notas e mais notas, tantas notas e registos que estava agora completamente entupido. Houve um dia em que Gonçalo decidiu que também tinha que intervir nas nossas conversas, afinal ele estava ali à 70 mão de semear e era indecente considerá-lo como uma figura de corpo presente. Tendo consciência disso, acabou por dizer, muito sério: -Os homens precisam de se proteger uns aos outros. Foi por isso que se juntaram em grupos alargados, compostos por essa invenção única no mundo animal que foi a família. Rui discordava, falando sobre o que Gonçalo desconhecia a propósito do mundo animal, tantos exemplos que ele podia dar de famílias, mas Gonçalo não o deixou continuar. -A família, tal como a conhecemos hoje em dia nos humanos, não tem paralelo – por mais que protestem – no mundo animal. É o garante da protecção, mas, acima de tudo, é o garante da formação dos indivíduos, da sua educação, da sua preparação para a vida. -Isso é o que acontece em todos os animais, para lá do facto de essa educação de que falas ser o germe do principal factor de desigualdade social: famílias de ricos a praticar educação de ricos e de pessoas com um nível educacional e cultural elevado, e famílias de pobres a ensinar o pouco que sabem sobre a arte de sobreviver, nem que seja a roubar respondia Rui, que não conseguia deixar os outros falar, tal era o frenesim que nele habitava, tão seguro que estava da sua missão divina. Mas Gonçalo também tinha as suas certezas e dissertava sobre a diferença que havia entre o responder ao instinto da alimentação e da perpetuação das espécies e o amor e a protecção para toda a vida. Na Natureza, os animais largam os filhos e abandonam-nos para criar outros, e depois outros, e por aí fora. O suposto amor e protecção só existe enquanto há dependência, depois termina. E mesmo 71 quando há dependência, muitas vezes abandonam os mais fracos, ou deixam-nos para trás quando têm de mudar de território ou de fugir dos predadores. Mas esta era apenas uma versão racional da teorização de Gonçalo, aquela que habitava aquilo a que os especialistas chamam o “consciente”. Porque, lá por baixo, havia um mundo vulcânico prestes a explodir. Muitas eram as vezes em que falava num tom de alarme misterioso, dizia palavras estranhas, impregnadas de lonjura e eternidade. Responsável pela nossa segurança, mostrava um horror absoluto perante a hipótese de uma qualquer falha dessa segurança, receando o abismo de um mundo caótico se algo abanasse e destruísse os alicerces da fortaleza normativa que o protegia. – O abismo do vazio. O vazio era, para ele, o resultado de todos os aventureirismos, a consequência terrível da permanente vontade de mudança que havia nos homens. – Mudar porquê? Teremos nós a certeza de mudar para melhor? O conservadorismo de Gonçalo era – percebia-se de forma clara – ditado pelo medo. – E quem pode decidir essa mudança? É por ensaios e tentativas? Não, a incerteza acaba sempre com a ausência. Ausência de normas, de pilares, de referências. O caos. Depois, mergulhava numa espécie de concentração absorta e voltava às palavras estranhas que lhe surgiam, perdidas, do mais fundo de si. 72 – Um dia, olhamos as nossas mãos e não temos nada. Perdemos tudo. Só nos resta a memória longínqua. Perdidos para sempre. Sem hipótese de futuro. A felicidade habita a lonjura do passado, uma eternidade antiga, virada para trás. O presente é o nada. E o futuro o vazio. E, num momento de perturbação profunda, revirando os olhos como um alucinado – O livre arbítrio é o fim da eternidade. Ou é a eternidade da ausência. Como um gigantesco redemoinho no meio do oceano, que tudo suga e suga para sempre. Como o abismo do vazio. Era como se nós não existíssemos. Falava agora só para si próprio. O silêncio a toda a volta. A cabeça baixa. – O livre arbítrio é a atracção do fim. Por vezes, Gonçalo deixava lentamente de existir. Mas, voltando a mim, e voltando ao marxismo, e até porque também queria ter uma opinião perante aquela maluquice toda, pensei em como é impressionante as pessoas, sobretudo as elites, não terem percebido imediatamente que tudo aquilo tinha que falhar. Em primeiro lugar, porque a ideia de igualdade é muito bela mas não tem nada a ver com a estrutura do ser humano. Daí que o mundo actual tenha passado a considerar este conceito num outro âmbito: o da igualdade de oportunidades. O que tem toda a razão de ser. O homem busca a diferença, pois ela é a base da identidade específica de cada um. Identidade dos grupos, das nações, dos países, mas também dos indivíduos. Ninguém quer ser igual ao parceiro do lado. E mesmo que quisesse, não o seria nunca. É esse o grande ensinamento da arte. Logo, uma determinada ideologia 73 basear a sua essência num conceito que pura e simplesmente não existe, é votar-se ao fracasso. Aliás, podemos ir mais longe e concluir que algo que é verdadeiramente específico do homem, por oposição ao animal, é precisamente esse desejo de diferença. A criação de uma individualidade por oposição à ideia de manada. Em segundo lugar, seria completamente absurdo pensar que o homem pudesse algum dia chegar a um patamar que não quisesse ultrapassar. Essa ideia de sociedade parada, mesmo porque demasiado perfeita, é totalmente inverosímil para quem quer que tenha estudado Antropologia em profundidade. O homem, mais uma vez por oposição ao animal, não se caracterizará por esse desejo de mais? Assim que um homem atinge o seu sonho, mesmo que seja o sonho de uma vida, começa logo a tentar descobrir outras coisas que não conhece, que não tem. Ou seja, não pára de procurar. Deste modo, imaginar uma sociedade parada, sem futuro, sem sonhos, sem motivações para se ir mais longe, é imaginar uma sociedade condenada. Por outras palavras, a sociedade comunista, sonho do marxismo, acaba por negar a condição essencial que a fez nascer: o sonho. É uma contradição terrível, ninguém percebeu que a magia do marxismo era algo que aquele longo caminho iria acabar por fazer desaparecer. Como aquela história que se conta sobre o facto de a existência de um homem muito solitário o tornar altamente sedutor para uma mulher, tendo ela assim o desejo de se juntar a ele – movimento estúpido pelo facto de esse homem acabar justamente por perder a característica que fez a mulher apaixonar-se, ou, pelo menos, aproximar-se. Em suma, o sonho daquela ideologia era criar uma sociedade de homens parados, sem sonhos, sem futuro. Mas, na penumbra do meu sonho, eis que surgia de novo a Carminda, com os holofotes a ganhar luz a pouco e pouco, e um som de piano muito ao longe. Perguntava 74 – Seria mesmo o professor de piano? A voz potente, muito dirigida, a plateia em suspense – Ou apenas fazia um pequena pausa – Ou apenas o ruído do mar na minha cabeça? O nosso teatro era muito dramático. Porque o drama foi o sucedâneo da tragédia, quando acabou o coro, e esse instrumento solista – como nos concertos – que o coro significava. Ele representava, os especialistas disseram-no, uma voz humana, uma voz civil, num enredo que apenas dizia respeito aos deuses. Porque a tragédia era uma história de deuses. Pertencia-lhes. Quando o coro acabou, a trama passou a envolver os homens e a tragédia passou a pasta ao drama. Embora às vezes nem por isso. Houve resquícios do coro mais tarde, quando a coisa já era só entre homens. Mas esqueçamos isso. O que importa é que passou a chamar-se drama. E os autores, dramaturgos. E tudo se vulgarizou assim. Mas o nosso teatro não. Queríamo-lo trágico até ao limite. Havia sempre uma voz longínqua que ecoava como um coro ausente. Algo de tão forte, que nos ultrapassava a todos e nos aproximava dos deuses. Algo acima de nós. Mas não eram os deuses. Nem o fado da tragédia. Era algo de humano. Mas num plano mais além. Queríamos um teatro que emocionasse. Que deixasse os nervos em franja àquelas assistências cheias de vontade de viver o impossível de um momento sublime. Por isso, quisemos o nosso teatro cheio de poesia. Mas não de uma poesia triste. Muito menos alegre. Uma poesia para além disso. Para além do sentir concreto das gentes humanas. Sonhámos uma poesia abstracta. Uma poesia absurda. A poesia abstracta dos deuses. Como na tragédia. E, por isso, sempre com a autorização dos autores, colocávamos pequenos poemas exteriores à peça no meio das 75 representações. A assistência não percebia o nexo, porque não havia nexo a entender. As falas pertenciam a um mundo de sensibilidade exterior, longínquo. – Nas ilhas onde não há aves Nenhum homem Explicávamos aos autores que queríamos uma poesia abstracta. – O que se chama um homem Procurávamos a poesia dos deuses – Lá pode viver. Como na tragédia. Em terceiro lugar, a ideia marxista segundo a qual a felicidade se conquista por se atingir um determinado nível económico, ou social, também é completamente disparatada. É possível que tal aconteça conjunturalmente, durante um período de tempo limitado. É possível que o sonho de um pobre seja ter dinheiro, e o sonho de um indivíduo nascido numa classe inferior seja o de um dia pertencer à alta sociedade. Mas já desconfio muito de que o sonho do primeiro pudesse ser o de todos os indivíduos do planeta passarem a ser tão ricos (ou pobres, porque iria dar ao mesmo) quanto ele, ou de todos os homens pertencerem a uma mesma classe social em privilégios e mordomias. De facto, deixava de existir uma classe superior como referência (todos pertenciam a uma classe que não era inferior nem superior). Mas mesmo admitindo que o pobre de classe baixa enriquecesse e acedesse à classe social acima, uma vez lá chegado, será que se situaria num patamar fixo de elevada felicidade? Depois de ser rico, e pertencer à classe social 76 que ambicionou, será que passaria a ter todas as condições para ser feliz? Não é isso que a observação da sociedade nos mostra, com milhares de exemplos de milionários ou herdeiros de milionários que foram profundamente infelizes. Alguns até se suicidaram. Se calhar, essas pessoas, recentemente ricas e socialmente valorizadas, iriam acabar por achar que o que as poderia fazer felizes era algo novo: serem artistas, criarem cavalos, estudarem física nuclear ou outra coisa qualquer. Coisa que nunca lhes teria passado pela cabeça se não tivessem saído do meio extremamente pobre e inculto em que se encontravam. Porque a verdadeira felicidade, Marx não o percebeu, não é material, é espiritual. Todas estas reflexões iam-me empurrando para o convencimento progressivo de que a minha ideologia tinha que assentar em três bases: promoção da diferença, e da individualidade, alimentação permanente do sonho, através do desejo de atingir algo mais, ou mais além, e, finalmente, um certo despojo do materialismo económico, com vista a uma plenitude espiritual. Ou seja, a uma sociedade onde a diferenciação social fosse o produto de uma distinção (o tal mais) cultural, ou de conhecimento, e não económica, ou de poder. Em quarto lugar, e esse terá sido o erro mais óbvio, e imediato também, o marxismo decidiu assentar tudo – bem sei que o “socialismo” era um estado transitório, intermédio – na coisa que os homens sempre mais odiaram a propósito do mundo político: o poder ditatorial. Dizia eu que era transitório, mas quem tivesse dois dedos de testa perceberia logo que era de um transitório demasiado longo. E pura e simplesmente porque esse poder intercalar só terminaria com a existência da sociedade comunista que, por definição, era a sociedadelimite. Ou seja, o regime caminhava para um limite sempre longínquo, pelo que o transitório tinha necessariamente que durar uma eternidade. Se, por um lado, todos deveriam ter percebido que as ditaduras, sobretudo quando se legitimam a longo prazo, 77 nunca dão lugar a nada que não seja a sua perpetuação, por outro, não passa pela cabeça de ninguém propor que a opressão se cure com a opressão de sinal contrário. Porque o que está errado na opressão é ela própria, e não o lado de onde ela vem. Assim, depressa se devia ter percebido que a solução para o sofrimento e para o ódio era a generosidade e o amor. O marxismo preconizou o prolongamento do ódio entre classes – como é que ele podia, alguma vez, fazê-las desaparecer? Clara ficou então também a necessidade de a minha ideologia assentar num pressuposto de liberdade individual, à maneira dos legados de uma Revolução Francesa entretanto muito esquecida. E este ponto transformava-se cada vez mais, para mim, no aspecto essencial. Isto, porque as pessoas esquecem, frequentemente, que o que se opõe de forma mais intensa à ditadura não é a democracia, é a liberdade. Porque o que está em questão não é um problema de regimes políticos, mas um problema de homens. O que faz cair as ditaduras é a opressão e a negação da liberdade. Ninguém faz cair um regime ditatorial por querer votar. Se os povos fossem inteiramente livres, e – suponhamos – felizes, quem iria preocupar-se em votar? O voto é um meio que conhecemos e usamos hoje – poderemos não usar amanhã – para impedir que haja atropelos à liberdade (o que sempre acontece no caso das ditaduras). Não é um fim em si. O fim é a liberdade. Se um líder governasse bem e em total liberdade para os governados, quem quereria alguma vez promover eleições? Não que se admita que essas eleições não pudessem ser necessárias para legitimar o líder no poder. Mas não eram certamente desejadas com ansiedade pela população. Assim, a minha ideologia poderia eventualmente não obrigar ao voto, mas teria sempre que obrigar à mais ampla das liberdades. 78 Mas isto pensava eu no meu isolamento intelectual, solidão de quem não podia partilhar os pensamentos com os companheiros – a minha missão era secreta –, enquanto Rui falava sobre a alegria das gentes simples, que cantavam em coro a confiança da manhã e Manuel sempre aliviava a conversa, contando as suas histórias irreais, feliz que estava de ver todos os outros a discutir e a deixá-lo um pouco em paz -Outro dia, nem me deixaram acender a vela e eu não via o tinteiro para molhar a caneta para escrever aquela carta azoástica ao Presidentário, se ele sonhasse que eu estava aqui com tipos como vocês já me tinha deixado sair, mesmo que fosse para mostrar o pirilástico àquelas mulheres que vão àquela loja, ou então às mulheres nuas. e dizia “mulheres nuas” como se estivesse por escassos momentos a recordar prazeres antigos que todos sabíamos que não disfrutara, mas era a inocência da própria mentira que nos seduzia, tão convicto que ele estava da segurança do seu mundo perdido – Vocês têm, aliás todos têm, uma invejástica de quando as mulheres nuas diziam “Ó Manuel, tu és broástico”, e vocês dizem que não é verdade, mas eu sei que elas também queriam tirar a roupa e andar felizes, foi por isso que o juiz me prendeu, o barbudo do hospital psicolástico foi lá dizer que eu na prisão estaria mais feliz, o barbudo deve ser um homem sexualástico ao que todos ríamos e corrigíamos – Deve ser homossexual mas o Manuel não admitia correcções, porque o mundo dele é que estava certo e nós não percebíamos nada a respeito do que lhe passava pela cabeça e iria condicionar a percepção dos homens nos séculos vindouros 79 – Os homens historásticos daqui a muitos anos vão estar todos presos. Manuel achava, sem dúvida, que, de todos nós, ele seria o único a ficar para a História. E achava que todos os como ele teriam que ter o mesmo fim entre grades. Não concebia o futuro triunfo da sua liberdade. Doía-me o seu não acreditar no homem. Mas, afinal, que razões tinha ele para acreditar? – Todos contra mim. Não concebia um colectivo que não fosse opressor. A sua maneira de opor o individual ao colectivo era concreta: a oposição dele em relação aos outros. Em contrapartida, o que eu queria construir era um colectivo baseado na individualidade. Manuel recusava esse princípio e fazia-me pensar: serão todos os colectivos opressores? Será tão estúpido procurar o bom colectivo como procurar a boa ditadura? Era frequente sentir, quando ouvia o Manuel, que o verdadeiro mundo da sabedoria existia, escondido, algures dentro daquele homem que a sociedade perdera para sempre. Mas também senti que tinha que avançar na organização das notas do meu livro e, por isso, também senti que foi assim muito claro para mim, desde sempre, que o marxismo era uma ideologia pouco inteligente, talvez mesmo pouco racional. Que tudo compensou com uma quase violenta emoção que, como dizia há pouco, fez esquecer tudo o resto. Uma emoção baseada em sentimentos nobres que envolviam a protecção e a dedicação aos mais fracos. Uma emotividade um pouco paternalista, convenhamos, mas muito própria dos seres humanos: basta ver a ficção, ou os filmes, que assentam nessa defesa dos mais fracos. Esse paternalismo era o recurso primeiro dos filmes épicos, ou dos filmes sobre o Oeste americano, em que o herói salva os mais fracos 80 da crueldade dos homens maus. Por isso o herói era bom. Muitos artistas perceberam, rapidamente, que esses enredos eram os que mais emoção causavam junto dos receptores. E, para aumentar essa emoção, era frequente o herói ter que salvar mulheres e crianças – os mais indefesos –, o que, de certa forma, aumentava a crueldade dos outros. Assim como também era frequente o herói arriscar a sua própria vida, como aconteceu a tantos revolucionários marxistas, ou comunistas, tanto faz. Mas, acima de tudo, o marxismo teve algo que levou o emocional ao seu estado supremo. Esse algo era o desejo de mudar o mundo. Marx não queria compreender o mundo nem os homens, queria transformá-lo. Havia uns posters, antigamente, com a cara do Marx e com esta sua frase (mais ou menos, já não me lembro bem): “Os filósofos, ao longo da História, esforçaram-se em compreender e explicar o mundo de diversas formas. Porém, o que importa é transformá-lo”. Esta frase mostra o quão pouco ele estava interessado no mundo verdadeiro e nos desejos dos homens que o habitam. A sua preocupação era com a sua própria ideia. Com a filosofia que tinha inventado. Mas isso agora não interessa. O que interessa é que essa ideia da transformação do mundo é emocionante. É bela e, simultaneamente, representa uma aventura toda ela projectada para o futuro e para o além. Por isso resultou numa quase religião. Na prática, é um truque de magia simples: se as pessoas sofrem e não gostam do mundo em que vivem, a ideia de o transformar vai passar a ter uma força máxima. Como um absoluto. E ainda por cima um absoluto cego. Como acontece precisamente com a religião e, de uma maneira geral, com o sagrado. O mundo novo. O sagrado de um mundo novo. O truque tem a grande vantagem de as pessoas não pensarem, beneficia da total ausência do racional. É como se se dissesse: “se não estás contente, junta-te a nós”. E quem pode alguma vez dizer que está contente? Muito poucos são aqueles que gostam do mundo em que vivem. Porque há sempre razões de insatisfação. O marxismo não diz: “se estás insatisfeito com 81 a tua mulher, ou se tens um filho deficiente, não podemos fazer nada por ti”. Fala de uma forma mais abstracta: “se queres mudar a tua vida, o mundo que te rodeia, e ser feliz, torna-te comunista”. Vais ficar a amargar ainda mais a vida inteira, porque essa coisa da sociedade comunista perfeita, que é o objectivo último, só vai acontecer daqui a três séculos. Mas vais sonhando com a coisa. A minha grande dúvida era então se eu conseguiria, ou não, introduzir um toque emocional deste tipo na minha ideologia. Ser-me-ia possível anunciar um mundo novo? Começar do zero? E propor uma revolução emocional? Mas, para o poder ir parar às mãos de quem? Era para mim cada vez mais óbvio que a sociedade é uma consequência de diversas filosofias, de diferentes maneiras de pensar o homem. Contra uma filosofia marcadamente económica, como poderia eu propor uma filosofia antropológica? Era o que eu pensava sempre: como é que os meus conhecimentos e o meu mundo de antropólogo poderiam superar ou, pelo menos, igualar a construção de filosofia e de sagrado do meu antecessor? Do ponto de vista teórico, a minha filosofia era simples: o cultural, e não o económico, devia condicionar o social. Mas o como é que era a minha grande interrogação. É claro que fui, ao longo do tempo, criando a minha ideia, desenvolvendo o meu sistema. Mas também é verdade que esperava que os outros respondessem, com a sua longínqua e imensa sabedoria. Embora essa ajuda sempre me tenha levantado a maior das dúvidas: como poderiam contribuir para a solução do problema se não sabiam nada de Antropologia, se não conheciam de todo a essência da Humanidade? Eu queria uma ideologia feita a pensar nos homens, uma ideologia feita para atingir o mais íntimo dos seus segredos e da sua felicidade. Para esquecer a essência do sentir dos homens já tinha chegado o Marx. Mas talvez esses seres vindos do além pudessem, e era essa a minha esperança, dar-me alguma ideia inteligente, algo que se encaixasse plenamente na minha progressivamente complexa visão das coisas. 82 Diferença, procura de mais – ou seja, de sonho –, plenitude espiritual, em detrimento do material, e liberdade. Era assim que eu via as premissas da minha reflexão, até fiz um esquema em jeito de plano quase cartesiano, um eixo horizontal e um eixo vertical opondo os quatro conceitos (na realidade, os conceitos não se opunham – pelo contrário, eram complementares –, daí o não ser um plano cartesiano), sem dúvida para ver se isso ajudava às minhas reflexões profundas. O objectivo último era encontrar uma palavra, uma ideia, que encaixasse no centro do esquema, um conceito que fosse suficientemente amplo para englobar os outros quatro conceitos. Diferenciação / individualidade Liberdade Mais / sonho Plenitude espiritual / espírito E demorei horas a olhar para as quatro palavras mágicas – diferença, sonho, espírito, liberdade – tentando integrá-las no meu sistema reflexivo. Quando, por vezes, me demorava a olhar aquele esquema maluco (também não sei para que fui imaginar semelhante coisa), e enquanto ia tirando notas infindas para a futura construção do livro, os meus companheiros também participavam com comentários. Embora desconhecendo o pormenor do meu trabalho, iam reagindo às reflexões que 83 eu colocava no ar, Rui achando que eu estava a complicar o que era simples, pois não era com conceitos complexos que os homens iriam deixar de ter fome, Gonçalo dizendo que as palavras essenciais não eram aquelas – devia certamente propor a família, Deus, a pátria e mais qualquer coisa do mesmo género – e o Manuel rosnando ideias avulsas enquanto não voltava com aquela ideia – que eu sentia atingir-me de forma certeira e profunda – segundo a qual era incompreensível o prazer que certas pessoas tinham em pensar aquilo que era bom para os outros, até porque, ainda segundo ele, tudo terminava sempre em pensar sobre o que é que essas pessoas deviam fazer, às vezes até pensar, para o seu próprio bem. – Eu não quero que as pessoas pensem em mim. Rui dizia que ele era maluco, como se essa não fosse a verdade oficial, verdade que eu sentia cada vez mais como aparente. – Quando pensam em mim é só para me chatear. Manuel não se atrapalhava, lá continuando a falar a respeito das mulheres nuas e sobre o porquê de não se poder despir à vontade nas lojas – Perguntei ao polícia se aquilo não era um loja de roupa, se as pessoas não se podiam despir para vestir qualquer coisa, eu não queria vestir nada, mas havia uma mulher, imaginei-a despidástica de todo, e o barbudo do hospital, que dizia que era psiquiástrico e que só queria o meu bem, ele falava com muitos erres e eu pensei que era “que ria”, que ele “que ria o meu bem”, estão a perceber que era para rir? Manuel ria alto, os outros com cara de parvos a olhar para ele, enquanto eu pensava em como aquele tipo devia ser estudado por gente competente, que entendesse o segredo 84 profundo que nele havia. Dizia aquelas coisas, parecia às vezes que se divertia com ele próprio, ou com o nosso ar meio apalermado. Depois partia para as escarpas, para pensar, se calhar nas maluquices que iria dizer mais tarde. E lá ficava horas, sozinho, a ver o mar, até lhe darem os calores que o faziam voltar para ensopar a cabeça no lavatório como os miúdos quando estão cheios de calor. Mas Gonçalo, já recomposto, continuava o discurso que deixara em suspenso há tanto tempo atrás: – A família é o pólo impulsionador do amor em toda a sociedade. Tudo começa aí. As pessoas que não foram amadas no seio da família nunca amarão ninguém. A família é o centro do amor, mas ao mesmo tempo é ela que assegura o respeito pelos outros, assim como a disciplina perante os interesses mais elevados do grupo mais vasto em que nos inserimos. – Dos mais poderosos, queres tu dizer insinuava Rui, sempre atento ao menor deslize do adversário, ou ao que ele achava serem deslizes, mas Gonçalo não respondia às provocações e continuava, agora pedindo ajuda à mais-valia da protecção divina – Por mais que discutamos, só Deus alguma vez poderá julgar-nos e dizer o que está bem e o que está mal, vocês aqui podem dizer o que quiserem, mas, um dia, tudo voltará ao seu devido lugar. Deus está só à espera que encontremos o nosso caminho. Foi aí que Rui disse a Manuel para dizer ao Presidente que estávamos a ser vigiados por um guarda fascista e apadralhado, quando Gonçalo terminava – Não vale a pena insistir, quando morrermos havemos de ter todos a mesma visão das coisas, eu não preciso 85 de ter razão já hoje, mas conforta-me saber que, apesar de ainda não termos morrido, já sou eu que sou guarda, enquanto vocês estão presos. Quer dizer que a sociedade não está tão equivocada assim, pelo que não faz sentido eu estar a gastar o meu latim com estas paredes em forma de seres humanos que sois vós. – Parede é o que tu vês cada vez que abres os olhos, já falas como os padres: “que sois vós”; daqui a pouco estás a rezar uma missa aqui ao carneirame. Rui não desistia de um sonho que vivia de uma outra religião. Eu voltava a olhar para o plano das quatro palavras inertes, à espera de uma luz – diferença, sonho, espírito, liberdade – e pensava em como é que essa luz podia ser aquela que o tio Saúl tinha anunciado, ele que não tinha acompanhado toda esta minha reflexão. Houve um dia – já contei, mas vou contar outra vez, que é uma maneira de contar melhor – que me falou da existência de um segredo que estava associado àquilo que eu iria procurar toda a vida. Ele sabia que o meu destino era ajudar os homens a serem livres, a encontrarem-se consigo próprios e a, dessa forma, se salvarem. Perguntei-lhe, como é natural, por que razão não me dizia o segredo logo. Poupava imenso tempo, a mim, e à Humanidade. Ele riu da minha simplicidade inocente e explicou que apenas me diria uma frase misteriosa para me ajudar a descobrir. Ele não podia dizer a não ser através dessa frase “codificada”, porque éramos todos vigiados e não podíamos, sobretudo eu, correr quaisquer perigos. Como naqueles filmes de espionagem, saber o segredo era meio caminho andado para me acontecer qualquer coisa. Relembro a frase terrível: “mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar”. O tio Saúl disse, solene, que este era o 86 maior segredo do Universo. Tinha sido o velho padre, à hora da morte, que lho havia revelado. E eu não podia saber mais. Mas havia uma outra razão, se calhar mais válida, para ser melhor não me contar. Ele conhecia o segredo, mas não sabia o porquê de ter que ser essa palavra e não outra. Nem tão pouco sabia como explicar a sua indiscutibilidade aos outros. Em contrapartida, eu, se passasse muitos anos a pensar sobre o assunto, para descobrir a palavra, iria perceber tudo. Assim, o meu objectivo último passou a estar prisioneiro do porquê dessa palavra – o segredo resumia-se a uma palavra –, e mais, do porquê de essa palavra ser a única que podia ser usada para a salvação dos homens. Mas, mesmo que quisesse, o tio Saúl não podia dizer mais. – “No meu país há uma palavra proibida.” Não, ele não podia dizer. Mas como pensar que o segredo do mar pudesse alguma vez estar em mim? O tio Saúl foi claro: era um segredo que respondia àquilo que toda a vida iria procurar, por isso, nem à hora da morte, agarrando-me as mãos com toda a força que tinha. À hora da morte. O tio Saúl tinha a certeza de que eu iria encontrar. Uma palavra que salvaria a Humanidade. E essa palavra estava dentro de mim. Algo que a vida me fez perder e que eu guardei no mais fundo de mim. De uma forma muito séria, foi o que ele disse. O padre tinha descoberto uma verdade grandiosa nuns livros muito antigos, ou nas aldeias dos mais pobres que passava a vida a visitar. Palavra proibida, frase tão bela – conheci esse padre na infância. Tenho a sua imagem ainda nos meus olhos, apesar do dorido da distância. Já não me lembro do nome dele, mas sei que era o maior amigo do tio Saúl, apesar do ódio que o tio e os amigos dele tinham àquela gente. Andava com roupa de frade, ou monge – não sou grande especialista nesses 87 assuntos –, que era roupa de quem não precisava de roupa e podia viver sem se preocupar com ela. A única coisa que variava era a roupa interior que, dizia ele, era velha e oferecida por pessoas com dinheiro, lá na igreja. Lembro-me de o padre falar – ele falava a sorrir – da diferença entre religiosidade e religião, pois a religiosidade era um sinónimo de adoração, a Deus e aos homens, enquanto a religião era um hábito e um mecanismo de poder em benefício da Igreja. E dizia que tal era válido para todas as religiões. E o tio Saúl dizia que ele era um bom homem, se não adorasse Deus e só adorasse os homens teria sido um homem perfeito. E o velho padre sorria sempre e continuava a dissertar sobre como a religiosidade podia, por exemplo, ser entendida num sentido mais lato, caso dos artistas que adoravam a sua arte, uma vez que a colocavam acima de todas as restantes coisas que os rodeavam. Ou os cientistas. Ou os revolucionários, e olhava de soslaio para o tio Saúl – que não se desmanchava e dizia que estava de acordo com ele. Eu nunca escrevi nenhum diário, mas escrevi coisas desde muito pequeno, assim como se fossem crónicas, diria hoje. Um dia descobri um papel amarrotado onde tinha escrito o seguinte: Papel manuscrito nº 3 (tempo anterior à prisão) Hoje estive a brincar com a Amália, jogámos a um jogo de formar palavras, assim para ver quem tem mais vocabulário, disse o professor de Português. Nós somos bons alunos a Português, mas isso não chega. É preciso estar com muita atenção e esforçarmo-nos para imaginar palavras 88 muito difíceis, que é a melhor maneira para poder derrotar o outro. É claro que perdi. Enquanto ela estava muito preocupada em pensar nas palavras, eu não parava de olhar para o decote dela, trazia uma camisa, ou blusa, não sei, assim mais aberta e eu conseguia ver-lhe as maminhas, que já são grandes como as das mulheres. E senti-me mal por estar a fazer isso, e também porque era como se a Amália passasse a ser uma pessoa diferente daquela que sempre foi para mim. Eu tinha vontade de lhe mexer nas maminhas, mas ela é como se fosse minha irmã. Depois, fiquei a pensar e não sei se hoje não tenho sentimentos diferentes em relação a ela. Talvez gostasse que fosse minha namorada. Já muitos dos meus amigos as têm, mas eu não consigo interessar-me por outras raparigas, porque senão passo a dar menos atenção à Amália. Mas também não tenho coragem de lhe falar nisso. Tenho medo de que as coisas entre mim e ela deixem de ser como até aqui. Tive vontade de lhe dar um beijo na boca. Mas tenho a certeza de que ela me daria logo um estalo e não iria querer falar mais comigo. 89 Pensei pedir ajuda ao tio Saúl. O tio Saúl sabe sempre o que devemos e não devemos fazer. O tio Saúl e aquele padre amigo dele sabem tudo sobre a vida e sobre os homens e estão sempre muito preocupados em ajudar as outras pessoas. Mas não têm mulher. Se calhar não sabem nada sobre o que pensam as mulheres e o modo como elas se comportam. Que faria a Amália se lhe desse um beijo na boca? Será que eles conseguiam dizer-me o que ela faria? Se calhar nunca mais queria saber de mim. O tio Saúl e o padre passeiam muitas vezes na praça, de um lado para o outro, conversando prolongadamente, mas baixinho – nunca se sabe muito bem quem haverá ali por perto –, às vezes de braço dado, o padre com umas longas vestes castanhas, e eu lembro-me muito bem de quando era mais novo e via esses passeios ao anoitecer, e em como tentava adivinhar as conversas que tinham. Eles nunca se riam, falavam sempre de coisas muito sérias, coisas que eram da política e que tinham a ver com o país e com os homens que mandavam e que impediam a felicidade das outras pessoas. Eles tentavam sempre ajudar os outros. O Tio Saúl tinha muita força e foi 90 a pessoa mais corajosa que alguma vez conheci. Um dia atirou-se a três homens que estavam a maltratar uma rapariga e bateu-lhes com tanta força que os deixou a todos no chão. Não bateu muito, bastou um soco grande em cada um, um soco seco, que fez um grande eco em redor. O tio Saúl e o padre eram como heróis, e eu via-os a passear na praça, às vezes ia ao lado deles – suficientemente afastado para não ouvir a conversa – e fazia de conta que estava a acompanhar o que iam falando. Normalmente não ouvia nada, mas lá ia, a fingir que pensava em coisas dos adultos, se calhar sem conseguir pensar em nada a não ser na minha pequena vida do dia-a-dia. Mas às vezes ouvia mesmo. E eles não se ralavam. O tio Saúl sorria para mim e fazia-me uma festa na cabeça com energia – Grande homem. Eu não era homem, mas era como se fosse. Porque a grandeza dos homens está nos seus sentimentos. E eu já sentia muitas coisas que não tinham muito a ver com a minha vida de criança. Por momentos, não podia imaginar-me mais importante. E mais feliz. 91 Eu sabia que aquele padre era o único homem a quem o tio Saúl pedia para lhe ensinar coisas, eu não sabia o quê, tinha sempre a sensação de que o tio Saúl já sabia tudo, mas sei que uma noite vi o tio Saúl sozinho a chorar e pergunteilhe o que tinha. E ele, que nunca me tratou como se eu fosse uma criança, mesmo quando era mais pequeno, explicou-me que o padre o tinha levado a uma aldeia distante, onde as pessoas eram muito pobres e não tinham que comer, e estavam muito sujas. Havia uma família em que o pai estava na cama sem se poder mexer, e não podia trabalhar, e todos viviam quase sem roupa, apanhando no campo ervas e pequenos frutos para se alimentarem. Então o tio Saúl contou que um dos filhos desse homem, que tinha a minha idade, o convidou para entrar na cabana e perguntou se ele queria almoçar e, indo procurar uma faca toda torta e ferrugenta que tinha, partiu uma bolota ao meio para comerem os dois. E o tio Saúl então calou-se, não me contou mais nada, mas tinha os olhos cheios de lágrimas, e eu nunca mais me esqueci dessa noite. Percebi que os grandes homens também choram, e percebi 92 também que era por isso que ele gostava tanto daquele padre, a andar sempre de um lado para o outro, de terra em terra, a pedir coisas a toda a gente, mas não era para ele – que ele também não tinha nada –, era para dar às pessoas dessa aldeia, e era por isso que o Tio Saúl dizia que ele era o melhor homem que havia sobre a Terra. Esta religião, ou religiosidade, não era a de Rui, nem tão pouco a de Gonçalo. E, por isso, sempre que me falavam em religião, eu dizia, com olhar ausente, que as pessoas não sabiam do que estavam a falar. A recordação deste episódio faz-me pensar o quão fútil pode ser a minha preocupação filosófica em escrever livros que fiquem para a História. Mesmo que esses livros sejam sobre as formas teóricas de fazer felizes os homens. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, dá-me energia para tentar mudar o mundo, como o Marx, embora de outra maneira. Mudar o mundo. Como eu compreendo a paixão de Rui. E como compreendo aquela tristeza profunda do tio Saúl quando se confrontava com as misérias de um país aprisionado. Mudar o mundo é a missão que trago da infância. Um dia, foi combinado que faríamos um teatro na prisão. Representámos uma peça sobre a infância. Era uma peça muito pequena. Não sei se apelava a alguma especial mudança do mundo, mas eu queria muito ver o Rui a representar a sua fala final. Era uma parte muito poética, como sempre, mas também muito libertária, muito adequada ao revolucionário que ele era. 93 Ao Manuel, coube-lhe um papel menor. Mas andava radiante a decorar o texto. Escrevi-lho em três folhas de papel diferentes, e ele pousou-as, todas três, no chão, lado a lado mas afastadas. Depois, deitou-se de barriga para baixo para ler a primeira, esteve naquilo cerca de cinco minutos e depois rebolou na direcção da segunda folha, ficando um pouco de barriga para cima para ver se tinha decorado o texto. Se tivesse decorado, rebolava para direita, na direcção da segunda folha, e punha-se de barriga para baixo, de novo, a lê-la. Se não tivesse conseguido, rebolava para a esquerda e retomava a posição inicial. E esteve nisto durante mais de duas horas. Rui começou por sentar-se num sofá, mas não aguentou. Estava profundamente abalado com o texto, embora não tivesse tido a coragem de dizer nada. Eu, propositadamente, não lhe tinha dito quem era o autor. Deste modo, ele estava desarmado. Podia ser um autor de direita – não, de direita não podia. Mas podia ser um homem da esquerda não comunista, como são todos os homens de esquerda – coisa que ele não achava. Achava antes que essa gente era perigosíssima. No entanto, também podia ser comunista, por isso, ele não podia dizer mal. O texto era suficientemente incerto, de uma arte muito distante de qualquer concretização política. Pelo sim, pelo não, não fez qualquer comentário. Mas a sua sedução era evidente. Enquanto o Manuel se ia rebolando de um lado para o outro, agora fixando as falas através de movimentos dos dedos como se estivesse a relacioná-las com notas de música, Gonçalo sentou-se na mesa grande, onde costumávamos jantar, e pôs-se a decorar os textos com papel e caneta ao lado. Perguntei-me se estaria a pensar fazer “cábulas”. Tomava notas esquisitas, como se imaginasse uma longa mnemónica. Rapidamente confirmei a minha suspeita: – Não podemos ler? 94 Respondi que, naturalmente, só nos ensaios. Mas ele não parecia convencido – Mas não vai assistir ninguém à representação da peça, pois não? Gonçalo não concebia a grandeza da arte. Não entendia a solenidade do momento da representação. Nesses momentos, não podia haver papéis nas mãos. Porque as mãos também eram arte. As mãos, Daniela fazia-o melhor do que ninguém, eram o impulsionador maior da comoção. As mãos e os olhos. E a voz. Fui ríspido, disse-lhe que ninguém podia ler. Mais uma vez, Gonçalo tinha medo de falhar. O horror da incerteza. – E se eu não me lembrar? Se houver uma branca? Ele não conseguia lidar com a ameaça do nada. Com o seu abismo do vazio. E a arte dramática é isso: a confrontação com a hipótese de triunfo em paridade com o risco de fracasso. Porque só com uma grande emoção o actor consegue a comoção geral. E o movimento do público a erguer-se, e a bater palmas com força, e a gritar vivas e bravo (em francês, claro). Mas isso, Gonçalo não iria nunca sentir. Porque nunca o iria viver. Quando o Manuel acabou de decorar as suas pequenas três frases, convidei-o a pintar o cenário comigo – tínhamos mandado vir tintas para trabalhar num velho biombo que lá havia, já meio roto mas enorme, de um pano amarelo desbotado. A excitação de Manuel era imensa. Uma das frases que ele tinha que dizer era – Qual Tarzan Mais ano, menos músculo Eis que salto de árvore em árvore. 95 E lá tive que lhe explicar quem era o Tarzan para ele perceber. A dada altura, Manuel pintava o cenário com as mãos, esfregava-as na lona do biombo, ora de um amarelo mais claro, ora de um amarelo mais escuro, e começou – Vou dizer assim: qual tarzanástico, pensas que sou algum macacório? E olhou para mim de lado, mas eu não reagi. Voltou então a pintar, agora besuntando a tinta com os dedos e passava-os pelo cenário, a tinta muito espessa e a dedada larga, como um quadro de Van Gogh. De vez em quando, olhava para mim a pedir aprovação. Depois, dizia: – Vou dizer antes assim: qual tarzanástico, tens músculos de macacório! Não resisti… – Tens que dizer isso como deve ser. Não te armes em maluco, que não és. – Sou, sou malucório de árvore em árvore, Tarzanástico não é saltitão! E foi a correr à cozinha buscar uma colher pequena para pintar papoilas. Apertava o tubo da tinta para a colher e depois deitava na lona, como se estivesse a medir as quantidades. Com este processo, encheu a base do biombo de pequenas bolas vermelhas. Quando as pequenas bolas estavam quase a secar, empurrava o centro com o dedo, para ficar mais fundo e fazer sobressair as “pétalas” em relevo. De repente, com ares teatrais, exclamou: – Isto está biombástico! Vamos fazer a peça! 96 Representámos a seguir ao jantar. Rui estava confiante mas muito calado, Gonçalo continuava angustiado e Manuel tinha o ar de quem podia fazer qualquer coisa, de bem ou de mal. Comecei eu, para ambientar – era o que tinha os textos mais longos, mas já os sabia de cor. Depois, foi o Gonçalo, que representou com pouca abertura, mas com uma perfeição total de texto e de entoação. Rui estava estranhamente direito, totalmente concentrado no seu dizer – Ficou da infância a febre De correr parado pelas estradas Rui de preto, o cenário, muito amarelo, ao longe, como uma seara alentejana. Aqui e ali, sobreiros e também oliveiras que pareciam ter crescido sobre pedras. Mais imperceptíveis, as papoilas do Manuel. E era como se se ouvisse o vento – talvez houvesse uma janela aberta algures no farol – Podes chamar-lhes versos, são viagens Versos da infância, que corriam parados pelas estradas. – Ficou da infância a fisga De arremessar ao vento Rui sentia muito. E inclinou a cabeça para trás, como se estivesse de cabelos ao vento e como se, no verso final, estivesse concentrada toda a coragem dos homens – Podes chamar-lhes versos, são pedradas. 97 Rui disse bem, terminou bem, com muito sentir. Todo ele tremia, quando olhou para mim, comovido, sem dúvida para me agradecer aquele momento de libertação. A peça estava num andamento perfeito, e já muito próximo do final. Manuel tinha as falas finais, e eu estava ansioso por perceber o que é que ele ia acabar por fazer. Foi quando ele se curvou e estendeu os braços na direcção da hipotética audiência, e declamou: – Qual Tarzan Mais ano, menos músculo Eis que salto de árvore em árvore Fiquei profundamente emocionado. Parecia um profissional. As suas falas eram todas muito juntas e contavam uma pequena história no final da história principal da peça – A floresta é densa E a noite imensa Diz-me Chita E baixou-se, como se estivesse a falar com a macaca. A presença em palco do Manuel era de tamanha grandeza, que Rui abriu os olhos como se ali tivesse aparecido uma alma do outro mundo. E, lentamente, num pleno de emoção controlada, Manuel terminou – O caminho a infância O caminho da infância, por onde é? Foi a primeira vez que vi o Rui chorar. 98 III Foi um dia que o Manuel me sentou numa cadeira perto da vidraça virada a Sul e, buscando uma cadeira também para si, me explicou a sua urgência em falar comigo. Eu seria o único capaz de o poder entender. Depois de várias hesitações, e tosses breves e provocadas, disse-me, da forma mais brusca e desajeitada que seja possível imaginar, que o sonho da sua vida era escrever um romance. Estava tão sério, e olhando-me directamente nos olhos, que eu tive vontade de rir. O que me acontecia frequentemente na sua presença. Tendo talvez percebido o que me passava pela cabeça, agarrou-me com muita força, certamente para eu sentir que se tratava de algo muito grave, e, abrindo ainda mais os olhos, disse: – Um romance broástico. Fiquei curioso em deslindar o que é que ele entendia como sendo um romance – seria uma história que ele tinha para contar? – Quero viver o resto da vida com uma mulher, aquela que vos expliquei um dia, mas aqueles parvoásticos não acreditam em mim, e começam a rir e não me deixam escrever uma carta ao Presidentário, como é 99 que eu vou escrever um romance, se dizem que eu sou ignorástico? Percebi que Manuel tinha dois problemas, o do romance e o da mulher. De repente, não consegui imaginar qual dos dois era mais virtual. Não o via, claro, a escrever qualquer romance que fosse, mas também não o via ligado emocionalmente a uma pessoa, tal era o isolamento libertário em que vivia. Também não percebi qual era a ligação entre uma coisa e outra, mas essa ligação existia, ele explicou: – O romance é para explicar que os homens podem andar nus e podem ver as mulheres nuas. E, como sempre que falava de mulheres nuas, ficava com os olhos líquidos e olhava o longe. Não dizia mais nada durante alguns minutos e eu aproveitava sempre para desviar o assunto, ou ir-me embora, mas, naquele dia, fiquei com algum interesse em fazer-lhe mais perguntas sobre essa ligação estranha entre o romance e as mulheres nuas. Ele olhava o longe, como eu fazia em miúdo, para me sentir filósofo, ou para me posicionar superiormente como um pensador em avanço em relação à minha idade. Não sei bem em que é que pensava – como o Manuel, em que pensará ele agora? –, talvez no meu destino de pensador do devir do mundo, da sociedade dos homens. Pressentia que tinha uma missão difícil pela frente, e ficava horas com os olhos postos no limite do horizonte, à espera do futuro grandioso que me estava reservado, ou à espera de uma qualquer coisa que não sei. Parado, olhando o longe, entrava num outro espaço – o espaço turvo da vida imaginada –, e talvez num outro tempo. Uma grande pedra para me sentar, um ramo de árvore, transformado em simples pau, para ir batendo no chão, e as garras do sonho e da imaginação caíam sobre mim, fazendo-me partir na direcção de mundos belos e perenes, onde só o que era digno de perdurar existia. Era miúdo, os outros brincavam e pulavam de alegria. Mas eu tinha um 100 mundo para organizar, uma enorme responsabilidade pela frente. Não podia pular. E ali ficava, sonhador, à espera de que a vida concreta tomasse de novo conta de mim. Só quarenta anos depois iria entender o que se passava comigo nesses momentos. Manuel olhava o longe e, de repente, fez uma pergunta que me pareceu sair-lhe com muita dificuldade: – O romance não é aquilo que vocês chamam arte, que é o que fala sobre as coisas mais broásticas do mundo? Acenei com a cabeça e tentei ajudá-lo: – O romance é uma forma de arte, sim. E a arte pode ser de muitas maneiras, pintar, cantar, dançar, tocar música, e por aí fora. O romance pertence a uma forma de arte que se chama a literatura. E é também verdade que todas as artes se dedicam de uma maneira geral a coisas que são muito bonitas. Chamamos a isso a beleza… – É o que é broástico? – Sim, Manuel, é o que é broástico! E lá ficou ele a remoer as ideias e a falar para dentro, desviando o olhar – que era sinal de estar envergonhado. Fez uma pausa grande, e eu senti uma dor profunda que o percorria. Olhou o mar, mas percebia-se que não estava a ver nada. Tinha os olhos líquidos, olhava o longe para eu não ver. Como quando queremos que não nos vejam chorar. E levantou-se para se poder afastar um pouco e, discretamente, secar os olhos. Quando chegou perto de uma das janelas, fez um movimento brusco para apanhar uma mosca. De vez em quando fazia isso. Depois, atirava a mosca com força contra a janela para a mosca cair, atordoada, e 101 para, em seguida, a apanhar e observar com toda a atenção e delicadeza. Naquele dia, a fúria do gesto fê-lo libertar-se da sua momentânea escravidão emocional: – Então, vês? Eu quero mesmo escrever o romance para que ela saiba que estou a dizer coisas sobre ela, que sou um tipo literástico, como disseste, e que os homens podem andar nus para fazerem as coisas como quiserem… – Para serem mais livres? – E para fazerem sempre aquilo quando dói aqui à esquerda… – O que é aquilo, Manuel? – Aquilo quando estão nus e fazem com as mulheres nuas… Apontava à esquerda, para o coração, dizia que era quando lhe doía que queria a tal mulher, de cuja existência eu duvidava, e insistia em dizer que era a mulher mais broástica do mundo. Manuel apontava à esquerda e dizia que tinha saudades dela, e que a queria só para si, para estarem juntos, os dois nus, e também queria que ela o admirasse, que o achasse digno de estar com ela – Vou ser um homem literástico, sabes? E voltou a olhar para a mosca, tão indefesa quanto ele perante a grandeza infinita de algo que os transcendia. Pegava na asa, pendurava a mosca e olhava para ela muito de perto, para descobrir um qualquer mistério que a 102 habitava. Manuel amava os animais, apesar da sua episódica brutalidade. Porque Manuel amava a vida. Amava-a por dentro, não sei bem explicar. Esse amor devia nascer-lhe numa qualquer parte do corpo que ele desconhecia, que era de onde lhe vinha a música e a imagem das mulheres nuas que lhe nublava o olhar. O romance, percebia eu lentamente, nascia-lhe desse mesmo sítio nas profundezas de si e transformava-se repentinamente numa necessidade absoluta de vida. Como a música, quando dele transbordava. O romance era o instrumento do seu triunfo sobre a maldade dos homens que sempre o haviam confinado à loucura e à prisão. Era para se elevar acima das suas capacidades, para ser digno, para sair vitorioso desse desafio, para cumprir um sonho, não sei. Manuel queria escrever um romance sobre a liberdade e sobre a beleza. E, certamente, sobre o amor. Era esse amor que lhe fazia doer à esquerda, sonhando o amor com uma mulher que tinha visto algures – numa revista, provavelmente – e que tinha idealizado a vida inteira. E eu senti em mim o enorme poder da arte. A força brutal do seu apelo. Um homem simples, como o Manuel, sentiu esse chamamento – vontade súbita que tanto me assolava, mas que eu recusava com quantas forças tinha –, de como que uma projecção na transcendência. Às vezes, pensava. Escrever um outro tipo de livro. Entregar-me à arte. Irmanar-me aos deuses. Escrever um romance. Partir para o não-mundo da beleza sublime. Mas achava que não podia. Não podia abandonar os homens para seguir os deuses. Tinha que ajudar os meus semelhantes, como o Prometeu. E como o prometera, a mim próprio, há tantos anos. Que não iria ceder ao que considerava ser uma cobardia, traição de abandonar este mundo para viver nesse outro, tão sedutor de plenitude. Não. Tinha que ficar com os homens e dar-lhes uma outra 103 espécie de fogo para se aquecerem. O fogo da esperança. A idealização da sociedade perfeita. Tinha que escrever o meu livro e dar-lhes a salvação para o seu futuro. Não podia pensar só em mim, no meu prazer. – Como se escreve um romance? Manuel queria saber da arte da escrita, ele só conhecia o seu dom. Ou, se calhar, não conhecia, pois ele tocava música como respirava. E quantos de nós sabemos como funciona o nosso sistema respiratório, apesar de termos respirado toda a vida? Desde cedo que eu tinha decidido imaginar uma ordem nova. Outros chamavam-lhe o princípio unificador. Tinha que descobrir uma palavra. O tio Saúl soube-o sempre. Essa palavra estava guardada para mim. E algures dentro de mim. Perdida. Os filósofos diriam que era um conceito novo. A criação dos conceitos é a sua profissão. Como aprendemos nos livros. Mas o que eu procurava era uma palavra. Quando me falaram de conceitos, já era tarde. Procurava uma palavra há muito. Uma palavra de um tempo anterior aos livros. Os livros ensinavam os conceitos dos filósofos, cada um tinha uma série de conceitos inventados só para si, para criar distinção suficiente em relação aos outros. Assim como os artistas, queriam ter também as suas especificidades. Um professor dizia, já não me lembro qual nem em que período da minha vida, que a Filosofia estava a meio caminho entre a arte e a ciência – copiava, sem o sabermos na altura, as ideias de um filósofo para nós desconhecido. Assim uma espécie de meio-termo. Como aquelas pessoas que não tomam posição quando há problemas, para receber elogios dos dois lados. Isto, pensava eu, quando era miúdo, e quando ignorava tudo a respeito da Filosofia. A diferença entre a palavra e o conceito é uma questão de sofisticação. O conceito é complexo, leva anos a construir. 104 Para que nada possa entrar em contradição. Como um edifício que não pode desabar. E quanto mais difícil de entender, melhor. Mas eu procurei apenas uma palavra. Simples. Natural. De entendimento imediato. E sensível. Sem grandes reflexões. Uma palavra para todos poderem entender dentro de si. E à qual pudessem aderir, qualquer que fosse a sua instrução, a sua história de vida, a sua maneira de ser. Porque a minha palavra era para sentir. Enquanto os conceitos são para pensar. – Um romance de amor é uma história de amor? Manuel, Manuel, porque me fazias essas perguntas a que ninguém sabe responder? – Um romance é as pessoas fazerem com uma caneta o mesmo do que tu fazes com as teclas do piano. Acaso tu contas, no piano, uma história de amor? – Não sei. – Também no romance as pessoas não sabem muito bem. É o que lhes sai lá de dentro. Uma história, um sonho, algo que imaginaram. É muitas vezes qualquer coisa que os outros não entendem muito bem, pois essa coisa é só nossa, está dentro de nós. – Como o eu andar todo nuzástico – pode ser isso um romance? Manuel, como podia eu explicar-te o maior dos mistérios do homem? Como podia eu falar-te da criação da arte? Entenderias alguma coisa se te falasse do absoluto e da transfiguração? – Não Manuel, o tu andares nu acontece no mundo em que vivemos. O romance, ou seja, o que está dentro do romance, não pode pertencer a este mundo, mas 105 a um outro. É nesse outro mundo que aquilo que é dito no romance tem significado. Como a tua música. Achas que é possível explicar tudo o que se passa na tua música através do que se passa na nossa vida de aqui, de todos os dias? Percebes? O romance não fala do que existe. Como toda a arte, fala do modo como nós transformamos essa realidade para construir uma outra realidade, diferente, onde tudo é grande, forte. Sobretudo, duradouro. Onde nos sentimos nervosos, com tremores, a sentir muito cá dentro. – Como quando vemos as mulheres nuas? – Sim, é parecido com o que sentimos quando vemos as mulheres nuas. Eu não conseguia falar-lhe a não ser usando os seus próprios conceitos. E não conseguia arrancá-lo à realidade. Ele olhava agora com toda a atenção para a mosca, sem dúvida com medo de perder a ligação com o seu mundo concreto, num momento em que eu o arrastava a todo o custo na direcção do etéreo e do irreal. Ele agarrava-se à mosca, mas eu voltava a tentar – Sim, é parecido com o que sentimos nessas alturas, mas, ao mesmo tempo, não é, porque essa outra vida não existe realmente, é só uma coisa que imaginamos e sentimos dentro de nós. – É tudo mentira, no romance? – Não, não é mentira, mas também não é bem o que se passa na realidade. Porque não é a descrição de algo de concreto, mas antes o que o eventual concreto permite em nós de lição para a vida. De transponível para os outros – por via da abstracção entretanto criada – e para sempre. Como se fosse uma transposição para a imortalidade. O que acontece, no concreto, acaba 106 logo ali. Não dura. Por isso, tu não falas sobre o que aconteceu, mas antes sobre o modo como os teus sentimentos alteraram a realidade verdadeiramente acontecida, transformando-a em algo de outro, que te podia acontecer um dia e, quem sabe, viver para sempre dentro de ti. Manuel olhava-me, muito sério e com muita atenção. Totalmente concentrado. E eu perdido, por sentir que não o conseguia ajudar. Como explicar-lhe a ausência e a distância? Como anunciar-lhe a existência de uma leitura abstracta da vida? Manuel sofria, desesperado para conhecer o maior mistério que existe, com a mosca nos dedos, pendurada, já a querer esvoaçar, com a asa que não estava presa a vibrar com força. Manuel olhou-a com compaixão, e depois virou-se para mim – Imagina um homem preso, pendurástico por uma perna nas mãos de um monstro enorme e maluco, e a fazer movimentos broásticos com a perna que não está presa como se quisesse correr para fugir. E olhava com melancolia e ternura para a mosca, sua irmã em destino e aflição. Com a outra mão, fez um movimento que parecia querer fazer-lhe uma festa. E foi ainda melancólico que me perguntou – Não posso contar que ando no mar, nuzástico, durante muitas horas, agarrado às costas de um peixe? – Podes, Manuel, isso podes. Vês? Isso foi uma coisa que tu imaginaste. É nisso que tu pensas quando tocas? Por exemplo, se há coisas que tu imaginas quando tocas, ou coisas que tu sonhas durante a noite, podes depois escrever sobre elas. Se escreveres com muita paixão, sentindo muito, vais escrever um romance muito belo. 107 – Não os sentes, de vez em quando, aqui perto de nós? Sinto-os muito quando vou para o piano e toco. Interroguei-me sobre quem eram eles, enquanto Manuel levantou os braços e largou a mosca, numa atitude dramática, como se dançasse num bailado imaginário. E a mosca, sentindo de certeza tanto alívio quanto ele, voou como podia, ainda atordoada. Manuel ficou a olhá-la como se lhe tivesse oferecido a vida. Como um deus assistindo à criação absoluta. Perguntei mesmo: – Sinto quem? De quem estás a falar? Quem são eles, Manuel? – São eles, não sei. Pensei, ou disse: – Não, Manuel, tu não percebes. O que tu sentes é a liberdade. O teu desenraizamento. A dilaceração da tua loucura. Tu partes, sim, é verdade. Mas para um local que está algures dentro de ti. Vais para longe, é verdade, mais não sais do mesmo sítio. Tu não precisas de fugir para parte nenhuma, pois tens a liberdade toda dentro dessa tua loucura, toda dentro de ti. – E posso falar dela? – Podes falar dessa mulher que imaginaste, sim, claro. Mas repara que as pessoas que aparecem no romance são inventadas. Chamam-se personagens. Podem ser ou não mais ou menos parecidas contigo ou com outras pessoas que conheças, mas elas não existem. – Mas ela é verdadeira, estás a chamar-me mentirástico? 108 E levantou-se, irritado, e foi olhar o mar. E eu fiquei perturbado, sem conseguir perceber o que ele tinha retido de toda aquela conversa. Manuel era muito difícil de entender. Misturava nele próprio a realidade e a irrealidade. No seu caso, escrever sobre a sua realidade era provavelmente já uma obra de ficção, tal era a confusão instalada em si. Sentou-se sobre o tampo de uma mesa, como eu, de novo – quarenta anos –, sobre uma pedra no meio do campo. O calor insuportável e eu a tentar ignorá-lo, como se saindo do próprio corpo. Tinha lido sobre revolucionários que o faziam quando eram torturados pelos carrascos. Porque o maior perigo de ser revolucionário era o ser preso. Não era o morrer. Mas ser preso, e torturado, e não poder falar. Não trair. O calor abrasador e eu a imaginar a água fresca que percorria o meu corpo – nós somos feitos de água –, quase a sentia correr de tempos a tempos. A água que estava para lá da pobreza concreta da vida. O Manuel nunca o entenderia. A água redentora. Mas as revelações não iam ficar por ali. A dada altura, agarrou-me a mão de novo e algo se alterou na sua cara. Chegou-se mais perto de mim e disse baixinho: – Eu tenho um segredo. E, se calhar, vou-to contar. Tu guardas um segredo? Não contas àqueles parvoásticos? Também Rui tinha um segredo. E descobrimos também o quão ele era infeliz. Chorara quando representámos a peça sobre a infância e voltou a comover-se de outra vez em que falávamos sobre o amor e sobre a sua importância na vida e na felicidade dos homens. Falávamos na generalidade, não do amor de alguém em particular, mas acabámos por constatar que todos tínhamos histórias de amor secretas, reprimidas. Excepto Gonçalo. Rui começou por defender uma tese muito especial, segundo a qual o seu amor era inteiramente dedicado aos ideais 109 da revolução. Como as freiras, que só podem amar as divindades. Era um amor teórico, racional, de quem queria transformar o mundo num paraíso de bem-estar, justiça, e um tão grande infinito de coisas, que parecia aqueles miúdos que chegam às lojas e pedem aos pais para lhes comprar tudo e mais alguma coisa, desvairados de desejo e de ambição. Mas Gonçalo queria saber mais, agora sem rivalidades políticas à mistura. – Mas nunca te apaixonaste por uma mulher? Era óbvio que sim – Gonçalo não percebia patavina do amor revolucionário –, uma paixão de pessoas que partilhavam o mesmo ideal, companheiros de luta que se confrontavam com a pressão do desejo. Mas o amor era livre, hoje com uma, amanhã com outra, havia paixão, claro, mas sem essa mania burguesa de ver as mulheres como um objecto de posse. Eram todos livres e amavam-se quando lhes apetecia – Quando estão cansados de tirar fotocópias dos panfletos subversivos, ou de fabricar e armar as bombas, embrulham-se uns com os outros para fomentar a vossa camaradagem e a necessária unidade perante a verdadeira missão, que, essa sim, traduz o vosso amor autêntico? De novo cínico e mordaz, Gonçalo tentava entender tão estranha forma de se ser gente. Mas Rui não desarmava, era o contacto amoroso que era possível na sua situação, ou seja, quando não se é fútil e se tem uma tarefa de enorme dimensão a cumprir. Felizmente ou infelizmente, um revolucionário não tem hipótese de ter um amor convencional. Ele explicava: ter que ir a reuniões secretas, ou ter que estar três dias em paradeiro incerto, e ela começar a perguntar aonde é que vais, mas porque é que tens que ir – já não 110 gostas de mim? E parvoíces do género. E no fim, nunca se sabe, denunciar-nos à polícia. Rui começou a irritar-se, é certo que o Gonçalo também estava a pedi-las, mas as suas reacções eram cada vez mais enérgicas, e estranhas – O amor de que vocês falam é como uma religião; uma espécie de adoração sem sentido, sem interrogações, que faz com que um tipo – eu conheci alguns – adore um ser que não merece o mínimo de consideração e de respeito. Uma espécie de amor misturado com fé. Vendo a coisa complicar-se, Manuel começou a cantar e a assobiar. E eu disse: – O amor é como cada um o vê, não vale a pena começar a divagar. É como cada um o sente, não serve de nada comparar com o da pessoa do lado. Rui estava agora calado e de cabeça baixa, sofrendo por qualquer razão. Gonçalo calara-se igualmente com os gracejos de mau gosto. E o Manuel olhava o mar na janela ao fundo. Vendo Rui assim, tive a má ideia de lhe falar de uma outra peça antiga – réstias da arte que tinha vivido em mim – que falava do amor de uma forma diferente, uma espécie de amor axiomático, ou seja, um amor anterior a todas as razões que o poderiam explicar. Um amor irracional. Sem palavras que o pudessem definir. Contei-lhe. Disse-lhe que era um amor de silêncios longos. Contei-lhe como o António começava, lento. E como todos sentíamos o seu sofrimento genuíno quando dizia – O homem pousou a mão no ventre nu da sua companheira Muito ao longe, apitava a sereia de um barco 111 Rui tinha a cabeça baixa, e assim parecia querer continuar, entalando a cabeça nas mãos – Se aquilo não era a felicidade … … e o homem tinha as suas razões para supor que não fosse Parei um pouco, como se representasse – O que devemos, ao certo, entender por uma tal palavra? Terminei convencido de que o Rui pouco tinha ouvido da minha representação. Mas não. Inexplicavelmente, percebi depois que estava apenas a esconder a cara, para eu não ver os seus olhos inundados de névoa. Não sabia o que fazer com ele, assim como me foi difícil responder de forma honesta ao Manuel. Mas, claro, guardaria o segredo para sempre. – Eu conto-te o segredo. Mas tens de me ajudar a dar o pirástico daqui. Perante a minha surpresa, embora não tenha reagido nem dito nada, ele abanou que sim com a cabeça, olhou para os outros, que estavam do lado Norte da sala, assim como quem diz “vê lá se eles não percebem”, e passou os olhos pelos meus num trajecto que os levava para o mar e para o infinito, em jeito de sinal para onde queria ir. Talvez por eu não ter tido qualquer reacção, nem ter esboçado a mais leve intenção de recusar, Manuel bateu-me no ombro, piscou-me o olho e roçou as palmas das mãos uma na outra com rapidez a representar o acto de fugir. – Mas, Manuel, porque é que queres fugir? – Para ir ter com ela. 112 Manuel, eu não te podia ajudar a fugir. Tinhas que entender: – Manuel, eu não te posso ajudar a fugir. – Eu não quero isso, eu dou o pirástico sozinho. Só quero que me ajudes para ver se os psiquiástricos não vão atrás de mim. Eles não podem descobrir logo, senão vão logo atrás de mim. Tinha-se-me acabado a capacidade de improvisar. – Manuel, eu não te posso deixar fugir. E tu não tens para onde ir. Dizes que vais para perto dela, mas isso não vai acontecer. Eu sei que não. – Mas ela é verdadeira, estás a chamar-me mentirástico outra vez? Eu tinha que o deter de qualquer maneira. E só uma ideia, talvez estúpida, me ocorreu: – Porque não ma apresentas? Eu gostava de a conhecer. Era talvez uma boa estratégia, ele ficaria desarmado e teria que me explicar porque é que eu não a podia conhecer. Mas a resposta dele é que foi desarmante. – Podes conhecê-la da próxima vez que ela me vier visitar. Tens é que ir à outra prisão, lá dos outros parvoásticos. Para a semana. – Ela vem visitar-te para a semana? – Vem. E, sorrindo 113 – Vai ser broástico. Perante a minha repetida ausência de reacção, ou reacção de parvo, o Manuel olhou para mim como eu olhara há pouco: sem saber se eu tinha entendido bem. Ficou parado, à espera, e depois disse: – Então, não queres vir comigo? Vou mostrar-te o meu segredo. Como um autómato, segui-o. Ele começou a fazer gestos que significavam que os outros dois, principalmente Gonçalo, não podiam desconfiar de nada. E segredou-me ao ouvido que era talvez melhor dizer-lhes que íamos dar uma volta, para eles não irem atrás de nós. Passámos a porta de vidro e fomos na direcção da escarpa alta. Assim que passámos para o outro lado, seguimos um carreiro muito estreito que começou a dar a volta à ilha. Quando dei por mim, estava no lado poente, uns metros abaixo do caminho que por vezes usava para ir para a enseada. Os caminhos cruzavam-se, e o Manuel começou a descer na direcção do mar. Percebi então que o malandro dizia que ia para detrás do penhasco para pensar, mas o que fazia era dar a volta à ilha e descer para a pequena praia, onde certamente se molhava, por isso aparecia com o cabelo todo encharcado lá em cima. Manuel desceu, muito rápido, e quando dei por mim, estávamos na pequena praia, com o mar, muito límpido, diante de nós. – Era este então o teu segredo, o vires para aqui quando todos pensávamos que estavas a reflectir atrás do penhasco? Mas Manuel estava muito sério 114 – Não, não é este o meu segredo. Num instante, Manuel despiu-se e atirou-se ao mar. Ainda tive um gesto brusco, tentando impedi-lo, mas não consegui chegar-lhe. Foi pouco o tempo da minha aflição. Manuel começou a nadar com toda a perfeição e, só aí, percebi o embuste. Manuel nadava bem e ia fugir pelo mar. Convencera-nos de que não sabia nadar para não desconfiarmos de nada. E para não colocarmos muitas interrogações a respeito do seu cabelo molhado. Nadou um pouco e, quando voltou, perguntei-lhe: – Era este então o teu segredo, malandro, saberes nadar e vires para aqui tomar banho? Manuel estendeu a mão, como que para eu parar de falar, e mergulhou. Desapareceu durante uns segundos, mais de um minuto, talvez, e eu pensei para mim – Foi buscar o segredo ao fundo do mar. Tem algo escondido no fundo do mar. E voltei a pensar em mim – Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar. Por momentos, imaginei que a minha vinda para a prisão tivesse sido organizada, mesmo que inconscientemente, com o objectivo, não de escrever o livro, mas de conhecer o Manuel. Como se acreditasse em deuses longínquos e misteriosos. E, com esse homem estranho, pudesse descobrir o meu segredo, a minha palavra perdida. O meu segredo era talvez igual ao dele, quem sabe? Ambos os segredos viviam no mar, e eu cada vez sentia mais desamparo na minha busca sem resultados. Mas Manuel voltou à superfície com uma negação: – Não, não é este o meu segredo. 115 Algo estava ainda para vir. O que iria o Manuel inventar agora? Foi então que começou a emitir um silvo com a boca e, fechando as mãos em concha, lançou um som rouco, surdo, como se soprasse num búzio grande e vazio. E ficou inerte, olhando o horizonte. Fiquei com uma impressão estranha, muito nervoso, as pernas quase a tremer. Manuel estava direito, totalmente concentrado de novo, como se estivesse prestes a iniciar uma nova viagem pelo seu outro mundo. Como quando se sentava em frente do piano antes de tocar. Num total isolamento. Olhava para o longe, resignado à sua espera. Apeteceu-me desistir e voltar para trás, pensando que tínhamos todos ali um problema muito grave para resolver. Manuel tinha seguramente uma perturbação mental complexa, difícil de entender. Não era à toa que achávamos que ele era maluco. Manuel mandou-me olhar para o fim do oceano visível, e perguntou: – Não queres ir comigo lá para o longe? Pensei “longe… onde?”, a Daniela convidava-me – E se nós fôssemos… se fôssemos para longe? e eu era sempre isso que respondia – Longe… onde? Como respondi ao Manuel, que apontava em frente, para coisa nenhuma. Quando a Daniela respondia, melancólica – Não sei Os barcos levam as pessoas para longe. 116 O fascínio da lonjura. E a beleza infinita da Daniela. O infinito é uma forma de eternidade que podemos ver. O infinito pode, assim, ser físico. Mas há também um infinito metafísico, como o da beleza da Daniela. Os infinitos, ambos, impunham-me o absoluto do seu deslumbramento. Ia quase a voltar-me para regressar, quando vi, no tal longe, uma barbatana dorsal enorme, cortando a superfície do mar na nossa direcção. Manuel voltou a entrar dentro de água, à medida que um enorme golfinho, tanto quanto sei a respeito do tamanho dos golfinhos, se aproximou de nós, emitindo um som agudo e repetido. Manuel emitiu um som também e, perante uma forte sensação nervosa que me paralisou de novo, saltou para as costas do golfinho e, com o braço direito espetado a apontar para o longe, partiu, partiram ambos, rápidos, na direcção do limite do desconhecido. Manuel – via-o bem por cima das águas – seguia de novo para o seu mundo de liberdade. De vez em quando, o golfinho mergulhava um pouco e desapareciam os dois. Mais adiante, emergiam das águas de novo – como deveria ser imensa a felicidade do Manuel. Que outros segredos esconderia o Manuel? A mulher seria mesmo verdadeira? E como que raio terá ele conseguido domesticar o golfinho? E comunicar com ele? As suas explicações, dadas cerca de uma hora depois, que foi quando voltaram da sua louca divagação mar adentro, deixaram-me confuso, de novo. A minha visão a respeito do Manuel oscilava entre a profunda admiração por um homem de grande dimensão e alguma incredulidade face a tudo o que eu acabava por achar serem maluquices e devaneios de uma pessoa perturbada, ou, pelo menos, de uma pessoa com dificuldades de integração numa sociedade como a nossa. A sua explicação foi de novo fantasiosa: – Não fui eu que escolhi o peixe. 117 Nem por um momento contrariei os seus parcos conhecimentos de zoologia… – Foi ela. – Ela quem? A tua apaixonada, aquela que vou ver para a semana? – Não. Quer dizer, sim, foi através dela, mas quem enviou o peixe foram os deuses do mar. Ela é amiga da deusástica dos animais do mar. – Não é um peixe, Manuel. Chama-se um golfinho. – Foi essa deusástica que falou com o peixe que tu dizes que é um golfinho para vir ter comigo. – E a tua amiga é amiga desses deuses? – Sim, e o peixe-golfinho faz tudo como eu quero. Eu digo-lhe as coisas com uns guinchos que parecem apitos e ele percebe tudo. É com ele que eu vou fugir. – Não, tu não vais fugir coisa nenhuma. Nós temos mas é que voltar para a prisão. Os outros podem desconfiar. Manuel fez-me um sinal com a mão que queria dizer que ainda não era altura de partirmos. Ainda tinha algo para me dizer. – Eu vou partir para viver com ela e com os deuses do mar. O peixe sabe para onde me deve levar. Eu tenho de dar o pirástico, entendes? Manuel estava a sofrer. Ele tinha mesmo que partir para o destino da sua loucura. Era a sua liberdade que estava à espreita. E era o amor que preenchia os seus sonhos. A sua 118 mulher imaginária, aquela que vivia com os deuses. Eu só pensei na figura ridícula que fiz ao tentar ensinar-lhe o que era a arte e a transfiguração. O que era o outro mundo. Era ele que me devia ensinar a mim a escrever um romance. Todo ele estava cheio dessa transferência permanente para o irreal. Se ele conseguisse descrever o seu mundo – que eu já não sabia se era real ou imaginário –, escreveria o maior de todos os romances. Depois, Manuel levantou-se e disse: – Eu tenho de dar o pirástico. Manuel voltava a estar muito sério. – Para poder escrever um romance de amor. E foi-se embora, deixando-me atordoado com essa frase final, tão bem dita, tão límpida, tão segura nos conceitos, como se insinuasse que todo o seu atabalhoamento habitual não passava de uma complexa e planeada encenação. E fiquei a pensar que a sua liberdade, ou aquela que ele desejava, não era toda possível ali. Faltava-lhe o amor, ou algo que ele entendia como isso. Eu tinha que descobrir se a tal mulher existia de verdade. Os deuses do mar. É óbvio que não existiam deuses no mar. Mas também não existiam golfinhos amestrados, enviados para obedecer aos guinchos de um tipo meio doido que mal sabia falar. Assim como não existem pessoas que tocam piano de forma perfeita sem aprender. O Manuel começou a subir as rochas de novo, e lá foi, sempre a remoer comentários surdos, a caminho da prisão. E eu fiquei com a sensação de que deveria existir algo de muito inacreditável, quase absurdo, que poderia talvez explicar tudo aquilo. A história do golfinho provava que ele não vivia totalmente no mundo imaginário. Aquilo era verdade. E se 119 o resto também fosse? E se existissem mesmo os deuses do mar? Por mais irracional que fosse a minha interrogação, não consegui evitá-la: e se os doidos fôssemos nós? Doidos por sistematicamente recusar, em nome da ciência e da Razão, as realidades que desconhecemos, colando aos que com elas convivem rótulos pejorativos que conseguem, de facto, afastá-los da nossa vida em sociedade. A nossa sociedade tinha decidido que os loucos deviam ser calados. Em prisões, em hospícios. Mas o Manuel tinha confirmado algo que me era familiar há muito. Tinha-o lido, tinha-o estudado: o louco era o que dizia a verdade. Tempos da leitura do Deleuze, e da sua denúncia permanente da opressão do colectivo sobre o individual. O Anti-Édipo. Tanto que ele malhou na psiquiatria. E na psicanálise, que estava ali mesmo ao pé e a jeito de levar também. Quem mandou o palerma do Freud ir roubar coisas à tragédia grega? Tragédia grega é quase um pleonasmo – quem o mandou roubar no terreno da adoração do seu querido Nietzsche? Os loucos é que viviam no mundo da verdade. E da liberdade. O Artaud, profeta, ou ícone, talvez mesmo deus. Louco. Artista. Anarquista. Deleuze idolatrou-o à desmesura. Os loucos da inocência também. Sem máscara, sem fingimento. Como o Manuel. E como aquele louco – uma vez fui com o tio Saúl a um hospício. Eu era pequeno, talvez tivéssemos só passado em frente das grades e ele estava à porta, não sei. Pediu um cigarro ao tio Saúl. O tio não tinha, mas perguntou-lhe para que queria ele um cigarro – Para me aquecer, que me mijei todo pelas pernas abaixo. E ria, sem dentes, a barba por fazer – Não me deixam mijar nas flores, que ficam amarelas… 120 Sorria, feliz, e apontava para as flores. Era oriundo de um mundo que não existia para mim. Vinha das profundezas de um mistério qualquer. Depois, falou mais alto – Mas as flores já são amarelas, estás a vê-las ali? Falava para mim. O tio Saúl, rápido, agarrou-me na mão: não tenhas medo. – Mas as folhas são verdes, como as grades aqui – essas é que podem ficar amarelas… O tio Saúl empurrou-me, para continuarmos, enquanto o outro continuava a explicar que também não ia fazê-lo nas grades, à frente de toda a gente – Também não vou mijar nas grades, não achas, petiz? Perguntei ao tio Saúl o que era isso de “petiz”; e ele disseme que era eu. O louco dizia a verdade. Era por isso que tinha que ser calado. O Deleuze disse-o, com a autoridade de ser o maior filósofo do século. Enquanto imaginava conceitos novos – a palavra certa era fabricar, ou elaborar –, ia dizendo coisas que eu conseguia entender. E o que eu entendi é que os loucos tinham que ser calados. Por isso os internaram todos em hospitais. Para os isolar do mundo. Para não contagiarem a restante Humanidade com a sua verdade subversiva. Com o seu profundo e perfeito entendimento da sociedade que nos rodeia. E os “sãos”, coitados, viviam na exterioridade dessa perfeição. Convencidos de que os seus conhecimentos superficiais não podiam ser postos em causa. Defendidos da doença, ficavam antes privados da compreensão essencial do Universo. O Gonçalo dizia-o, de tempos a tempos, quando mergulhava na sua loucura, também. 121 – É depois do abismo que chega a revelação. E se tudo o que o Manuel inventara fosse, afinal, verdade? E se a mulher dos seus sonhos existisse mesmo? Tal como o golfinho inverosímil? E se fôssemos nós os loucos – tantas vezes que o pensei –, e se existissem deuses no mar? Há um mundo para além do mundo, os artistas conhecem-no bem. E, nesse mundo do sonho e da imaginação, quantas são as coisas que estão vedadas a todos aqueles que não sabem sonhar? A todos os prisioneiros do mundo daqui? Gonçalo soltara-se das amarras da vida e gritara: – Temos que nos confrontar com o mundo da ausência para podemos acreditar nele. E eu não conseguia afastar essa grande e maravilhosa loucura de admitir essa hipótese impossível de os deuses do mar, afinal, poderem existir. Papel manuscrito nº 4 (tempo da prisão) Hoje, o Manuel abalou todo o meu organizado mundo. Ainda estou a ver o golfinho na nossa direcção, a barbatana muito direita a cortar o mar e o Manuel sorrindo, vitorioso sobre a minha incredulidade tão rapidamente, e também tão dramaticamente, transformada em estupidez. 122 Depois voltou a falar da sua mulher imaginária, que às tantas é tão real quanto o golfinho, e do seu gigantesco projecto de amor. E, logo, o meu passado todo em turbilhão. Primeiro a minha “ela”, como eu gosto de o dizer. Quando o Manuel falou da dor, à esquerda, tão bem que o entendi. Amália. Tanto que eu queria voltar para a enseada e chamá-la. Amália. E amá-la. Amália. Chamá-la. Chamá-lia. E perguntar-lhe: há aí algum golfinho destinado para mim? Um golfinho que viva com os deuses do mar? Existe ainda amor, guardado no futuro, para mim? Há amor no mar? 123 Depois o tio Saúl, muito direito, a olhar para mim. “Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar”. Será que o segredo ser-me-á um dia revelado por uns quaisquer deuses marinhos? Estarei já perto da revelação? Não pude deixar de lembrar essa frase, de o sentir de uma forma muito intensa quando o Manuel – Um romance de amor. O tio Saúl disse, solene, que aquele era o maior segredo do Universo. O velho padre, sim. À hora da morte. Era um segredo do mar. Mas estava em mim. Era um segredo que respondia àquilo que toda a vida iria procurar. Nem à hora da morte me disse mais, agarrando-me as mãos com toda a força que tinha. À hora da morte. Uma palavra que salvaria a Humanidade. Ainda lhe perguntei, um dia: – Tio, porque é que o segredo está dentro de mim? Porque tenho que mergulhar dentro de mim? A sua resposta não me esclareceu: 124 – Está dentro de ti porque foi algo que tu tiveste nas tuas mãos e perdeste. E depois guardaste na memória e no coração. Frase tão bela – porque a senti tão perto quando o Manuel se levantou? Que semelhança poderá existir entre o meu segredo do mar e o dele? E para onde será que o golfinho o levará um dia? Gonçalo estava mais calmo ao jantar, mas Rui continuava mergulhado numa profunda prostração. Foi então que o Manuel começou a brincar, como tantas vezes era seu hábito, para ver se animava – ou irritava, às vezes era difícil distinguir – o pobre Rui. Começou a fazer bolinhas de pão com os dedos nojentos de comer os talos da couve à mão, que ia tirando da sopa um a um, e a atirá-las para dentro da sopa do Rui. Fazia uma catapulta com o garfo, punha a bola de pão na base do garfo – onde pegamos – e depois batia com o punho, verticalmente, nos dentes do garfo, para a cauda deste levantar e projectar o pão para dentro da sopa do Rui. Fazia-o meticulosamente, com uma exactidão que divertiria toda a gente se aquele dia não fosse um pouco especial para o Rui, não recomposto das suas emoções lacrimejantes, e para o próprio Gonçalo, hoje muito agitado, embora bastante absorto à mesa. – Pula a pulga na balança, dá – pimba – um saltório e vai para a França e o pão caía, milimetricamente, na sopa de Rui. Mas este não reagia. Estava mergulhado na sua melancolia profunda, 125 algo lhe havia acordado as trevas que viviam dentro de si. Acabara-se a euforia evangelizadora, a confiança nos amanhãs verdejantes do seu Alentejo proletário, estava reduzido ao mais essencial de si. Era o seu eu profundo que precisava de uma qualquer salvação. Que não era certamente a que as maluquices do Manuel tentavam, em vão, provocar. Mas foi Gonçalo quem reagiu, inexplicavelmente – Não podes estar quieto? Isso são maneiras de se estar num restaurante? Até o Rui levantou a cabeça – Restaurante? – Desculpem, estava a pensar noutra coisa. Parou um pouco para se recompor. Mas, perante os três olhares interrogativos que o fulminavam, Gonçalo achou que tinha que explicar mais qualquer coisa – Esqueçam o que eu disse. Olhámo-nos com curiosidade e não dissemos mais nada. Era seguramente um dia muito especial para todos. – Disse uma coisa sem sentido. Como se fosse a primeira vez que o fazia, com aquelas frases alucinadas que ninguém percebia o que queriam significar. Mas, perante o nosso silêncio fundo, e, seguramente, interrogativo, ele não resistiu – É que eu, em tempos, tive um restaurante. 126 Ficámos sem fala. Agora sim, percebia-se o seu fascínio pela culinária. Uma espécie de amor-ódio. Mas como é que um dono de um restaurante vem parar a guarda de uma prisão? Sim, era essa a pergunta que poderia esclarecer o seu mistério, as suas falas loucas sobre o abismo e a ausência, a lonjura e a perdição, momento caótico, e conjuntural, a interromper o seu estado conservador. – Mas como é que um dono de um restaurante vem parar a guarda de uma prisão? – Tive um grupo de amigos – não, não eram amigos –, tive um grupo de vizinhos de quem eu gostava e que iam muito ao meu restaurante. Mas faziam tanto barulho e armavam tanta confusão que as outras pessoas começaram a deixar de lá ir. Eles eram divertidos, não era por mal... Gonçalo baixou os olhos. Via-se que sofria de um mal há muito tempo reprimido. – Mas não há desculpa para a desordem. – E depois? Rui parecia feliz. Percebeu que não era o único com dores fundas, impenetráveis. – Comecei a perder clientes e expulsei os meus vizinhos. Um dia, de vingança, partiram-me o restaurante todo. Mas não era preciso. Os meus clientes não iriam voltar nunca mais. Rui indignou-se – Não chamaste a polícia? – Eram meus vizinhos. Gostava deles. E, depois, os clientes já não tinham intenções de voltar. Não eram 127 como eu, não queriam apostar na incerteza. A incerteza conduz ao caos. Ao mesmo tempo, Gonçalo parecia aliviado por ter conseguido desabafar. Mas tremia face à violência da recordação das suas aventuras passadas. – Um dia percebi o abismo da ausência. É preciso ter certezas na vida. A aventura conduz à destruição. Fiquei sem nada. A não ser muitas dívidas. Que não podia pagar. Todos percebemos o mistério de Gonçalo, não era preciso ele explicar mais nada. E todos tivemos pena dele, até o Rui, que não começou a atribuir todas as culpas a esse sonho absurdo da propriedade privada. Ainda pensei que o Manuel, para variar na distracção, virasse agora a catapulta na direcção do prato do Gonçalo. Mas não. Estava calmo, olhava Gonçalo com ternura, batia-lhe suavemente nas costas, e chegou mesmo a dizer – É mau, isso. Porque tu és um cozinheiro broástico. Perante a prostração de Gonçalo e Rui, e perante um Manuel que, farto daquilo tudo, esfregava o garfo e a faca – como antes fizera com as mãos – tentando convencer-me de que a melhor solução para mim, e, acima de tudo, para ele, era dar o “pirástico” dali para fora, o que me veio à lembrança foi a minha palavra perdida, a palavra redentora dos homens, silenciadora de todas as opressões e libertadora de todos os recalcamentos. Era seguramente dessa palavra que Rui e Gonçalo precisavam agora. Não seguramente o Manuel, porque ela vivia por certo no seu interior de liberdade absoluta. Uma palavra total perante a fragilidade enorme de nós. Ela triunfaria face aos nossos sonhos desfeitos, à nossa 128 confrontação permanente com o abismo. Ela salvar-nos-ia da nossa incapacidade de sermos livres, de sermos felizes, ela proteger-nos-ia dos nossos maiores medos. Lembrei-me do tio Saúl e do que morava nele de confiança no futuro e na felicidade dos homens. A minha mão agarrada à sua – Não tenhas medo. Não, não tinha medo. E um dia, prometi alto, escreveria um livro para ajudar os homens e salvar o planeta. Um dia, eu sentia-o há tantos anos, ninguém teria mais medo. Nunca mais. 129 130 IV Foi a palavra essência a que primeiro cirandou à volta do centro do meu plano abstruso. A ideia começou por ser simples: Marx tentou anular as desigualdades a posteriori. Tentou equilibrar essas desigualdades existentes dando aos que tinham pouco as riquezas e os bens dos que tinham muito. A intenção era distribuir o parque – de bens, de produtos – existente. A minha ideia era a contrária. Ou seja, acabar com as desigualdades, eliminando-lhes a origem. Recordo o Manuel dizer – Quero andar nu, não quero usar essas bugigangásticas que vocês inventaram... Manuel tinha razão. Enchemos as nossas vidas de bugigangas que não servem para nada. E para produzir toda essa superficialidade inútil despendemos um tempo infindo, a trabalhar e a sacrificar o tempo que podíamos dedicar às coisas mais importantes, como o amor, a educação e a formação dos nossos filhos, a arte. Parte substancial da desigualdade social é, na nossa sociedade, motivada por uma diferenciação de posse. Por um desequilíbrio de cariz económico. Ou seja, é resultante dessa bugigangada mais ou menos inútil que produzimos ao 131 longo dos séculos. Ora, se reduzirmos esse parque de posse à sua essência (foi o tipo de essência que me demorou a ser compreendido), teremos cortado pela base a origem de toda a diferenciação económica. E, consequentemente, parte importante da diferenciação social. Não estou, portanto, a falar de reduzir a posse de alguns bens de alguns indivíduos. Estou a referir-me a esses bens supérfluos na sua totalidade, e em relação a todos os indivíduos. Esta desigualdade baseada no económico tem uma outra característica perversa: não é facilmente alterável. Ou seja, a sociedade está organizada de forma a os filhos dos ricos serem ricos também e a ser difícil aos pobres alterar a sua condição. Por isso o tão apregoado “sonho americano”. Justamente para dar a entender que a sociedade americana é livre e tão justa que um homem nascido pobre pode vir a ser milionário. Mas o simples facto de essa ideia ser tão célebre prova imediatamente o quão ela é tão rara. Se fosse muito frequente, ninguém falava nisso. Por outras palavras – e isto foi muito importante para a minha ideia filosófica –, uma pessoa que se diga a si própria “vou enriquecer”, ou mesmo “vou esforçar-me muito por enriquecer”, não tem grande probabilidade de o conseguir. O que prova que ela não é verdadeiramente livre. Não vive numa sociedade verdadeiramente livre. E é por isso que a desigualdade se perpetua de geração em geração, garantindo os privilégios aos ricos e poderosos. Porque o que é valorizado, o que dá importância à pessoa nesta sociedade é a posse de um determinado conjunto de bens materiais. Dir-se-á: então, voltamos ao “bom selvagem”, é essa a solução? E ficamos como quase animais outra vez? Agora que a globalização, através da Internet, cada vez mais nos apresenta os nossos semelhantes, mesmo vivendo nos países mais longínquos, como pessoas iguais a nós, é que vamos voltar a viver em tribos fechadas, sem saber conhecer os outros, e a matar todos os que se aproximem do nosso território? 132 Esta reflexão foi, sem dúvida, da maior importância para mim. E havia que lhe dar a volta. Reduzir à essência significava limitarmo-nos ao que é útil, ou necessário. A Internet podia ser uma dessas necessidades. Porque tem a ver com a informação, com a cultura, com o saber. Ora, a minha ideia de redução não se aplicava ao saber, ao espiritual, mas ao material, ao económico. Se todos os homens do planeta estivessem ligados por Internet, não precisavam de milhares de outros aparelhos, a começar pelos próprios telemóveis. Mas, para os computadores possuídos, tínhamos que acabar com a diferenciação materialista: deixarmo-nos de preocupar se alguns são de pele, de titânio ou de ouro. Tinha que ser compreendido que o essencial era o que estava dentro deles e, sobretudo, o que era possível fazer com essa informação para aumentar a felicidade dos homens. Mas havia também a objecção da arte. Para que serve a arte? Não seria uma das actividades a eliminar num mundo reduzido à sua essência? Bem sei que a arte não é um bem material, embora esteja impregnada dessa dimensão materialista: a pintura, a escultura, a arquitectura. Vende-se uma assinatura num quadro ou numa casa por valores elevadíssimos. Não teria a nossa defesa da essência que considerar a hipótese da sua inevitável anulação? Era uma hipótese que ia de encontro à visão de Rui, pelo menos em relação à maioria das artes. Defendia a arte de intervenção por oposição à arte fútil (a que não serve para nada). A arte abstracta – ele falava normalmente sobre pintura – não contribuía em nada para o bem da Humanidade. Ora, para ele, a arte tinha que comunicar a hipótese de um mundo melhor. Fosse na literatura, onde se denunciavam as injustiças e a opressão e onde se mostrava o quanto os verdadeiros homens eram altruístas e aceitavam todos os sacrifícios do mundo para proteger os mais desfavorecidos, fosse na pintura, que ele exigia que retratasse de forma chocante as assimetrias sociais – os ricos, gordos, sentados a fumar charutos com os seus chapéus altos, e os 133 pobres, esfaimados e sem roupa, trabalhando ao sol com instrumentos agrícolas arcaicos. Assumia-se como defensor da única arte que alguma vez contribui com alguma coisa para a felicidade dos seres humanos: o neo-realismo. O Manuel ouvia, por vezes, as longas dissertações de Rui e, após a nossa conversa sobre a arte, costumava olhar para mim com ar interrogativo, para ver se eu entrava em desacordo com a teoria do outro, teoria que não tinha nada a ver – ele percebera-o tão bem – com as ideias que lhe havia transmitido aquando da nossa conversa sobre o romance. Houve uma vez em que Rui foi um pouco longe de mais: – A arte, de uma maneira geral – ou seja, se excluirmos o neo-realismo –, é uma fuga à realidade, aos problemas do dia-a-dia, é uma cobardia. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o nosso amigo Manuel não se conteve – É verdade que foges à realidade porque é uma mentirástica. Mas não é por seres cobardório. E olhou para mim, a pedir ajuda. Abria-me muito os olhos, mas de forma escondida, para o Rui não perceber que o seu esboço de argumentação precisava urgentemente de reforços. Mas ele tinha razão, era imperioso que eu reagisse. E foi assim que iniciei uma enorme discussão com o Rui. – O que ele quer dizer, Rui, é que a arte pressupõe um corte com a realidade, é verdade, porque projecta a nossa vivência numa dimensão de irrealidade, caracterizada pelo abstracto e pelo intemporal. – Isso é mesmo conversa para boi dormir. Várias palavras ligadas umas às outras numa frase não a transformam numa ideia. É preciso haver conteúdo. 134 – Mas há conteúdo! Vou dar-te um exemplo: qual é a mais arte de todas as artes? – Isso é que é o exemplo? Pareceu-me uma pergunta, mas sou eu que devo ser muito estúpido. – Mas responde! – Não sei, deves achar que é a literatura, mas eu prefiro a pintura. – Então, não vês que é a música? – Mas porquê? Só porque tu achas? – Não. É porque é a arte mais difundida, aquela que toda a gente usa no dia-a-dia. É também aquela que está presente na maior variedade de povos e de culturas. – Ai isso é que não é: muitas pessoas vivem debaixo de um tecto, mesmo quando não ouvem música, nem têm quadros, nem lêem livros. Por isso, é a arquitectura. Manuel olhava para mim com um ar de quem não achava que a minha argumentação estivesse a ser brilhante. Mas eu não desarmei – Ora aí está um bom exemplo: nem todas as casas onde as pessoas moram têm alguma coisa que ver com a arquitectura. A maior parte das casas, diria melhor, das habitações – porque incluem as palhotas, os tipis, ou os igloos dos povos mais antigos –, não ultrapassam o seu funcionalismo. Estão construídas em função de um objectivo que é o de proteger da chuva, do frio, dos animais, e por aí fora. A arquitectura só começa quando se constrói algo para além disso. Porque, justamente, a arte só se revela quando termina a submissão em relação à realidade. 135 Rui abanava a cabeça e encolhia os ombros para provar que eu só dizia disparates e voltava a perguntar alto para que servia uma pintura abstracta que eram dois traços a vermelho e um a preto sobre uma tela branca. Tinha visto um quadro assim numa galeria. E custava uma montanha de dinheiro, havia pessoas que esbanjavam o dinheiro que tanta falta fazia aos outros em coisas sem sentido. Aqueles quadros até ele os conseguiria imaginar. E pintar. A arte tinha-se tornado, para ele, numa fantasia de ricos que já não sabiam o que fazer ao dinheiro e, por já não poderem comprar coisas ligadas à realidade e utilidade quotidiana, empatavam o dinheiro em coisas inimagináveis. A essência da arte não era a irrealidade – dizia ele, já só para me agredir –, era a imoralidade. A dada altura, já em desespero de causa, até se virou para o Gonçalo. Queria que ele desse uma opinião. Sem dúvida, achou que ele, embora não sendo certamente neo-realista, devia ter um mínimo de bom-senso para desempatar aquela conversa de doidos. Rui e Gonçalo eram, frequentemente, muito próximos nas suas ideias e maneiras de pensar. Gonçalo, apesar de não parecer disponível para grandes conversas – voltara a dizer frases desconexas de tempos a tempos –, acabou por intervir no sentido de confirmar os meus medos iniciais sobre o materialismo da arte e sobre a incompatibilidade deste com a ideia de essência: – A arte, hoje, não passa de um negócio. São os quadros, as esculturas, que se vendem por milhares ou milhões. São os contratos milionários que são feitos a certos escritores para os vincular a certas editoras e as consequentes estratégias de marketing para os vender como sendo os melhores autores. É o custo astronómico do cinema e os cachets imorais pagos aos actores. E assim por diante. Rui reconfortou-se e voltou à carga com o malvado do neo-realismo e o suposto facto de ser o único movimento 136 artístico capaz de dar utilidade à arte, de a envolver de humanismo – Como é que é possível acharem a arte a actividade mais nobre do ser humano, se ela não serve para nada? Se ela não o ajuda em nada? Parecem doidos – olha, como Deus, entretido a criar um mundo de maldade e de injustiça. E depois a olhar lá de cima, feito tolinho, a admirar a sua obra medíocre, sem se esforçar por a alterar. Também a arte é assim. Uns tolinhos que se perdem em “irrealidades” e se divertem enquanto os outros não param de sofrer enquanto eu cada vez me convencia mais de que a minha definição de essência tinha muito para ser trabalhada e aperfeiçoada. Em grande parte, esse aprofundamento do conceito acabou por ser influenciado pelas manias do Manuel a respeito da nudez e das mulheres nuas. Embora, diga-se de passagem, que a coisa que mais o seduzia nessa nudez feminina era a beleza do corpo das mulheres – o que não iria ser considerado como elemento estruturante do meu conceito (a essência). Mas, quando uma vez ouvi o Manuel falar sobre os índios, que andavam nus – ou sobre os africanos, já não sei –, foi essa a imagem que me perturbou: a essência de um homem despido da História. Despido dos constrangimentos das lições do passado, livre da tirania da tradição. Ou seja, o primeiro elemento de referência da sua obsessão pela nudez que retive foi a liberdade. Até porque o vestir obriga a outro tipo de tiranias, como a moda, por exemplo, ou, mesmo para quem não liga a essas coisas, existe sempre essa violência de um indivíduo receber imediatamente um enorme conjunto de rótulos em função da maneira como se 137 veste: rico ou pobre, materialista ou intelectual, com gosto ou sem gosto, e por aí fora. Mas a liberdade que encontrava associada a esse desejo de nudez tinha uma outra dimensão mais subtil. Era uma liberdade, sim, mas uma liberdade definida em pureza e inocência. Quer isto dizer que a nudez é a forma como vimos ao mundo, inocentes, sem maldade. Quando nascemos, a primeira coisa que fazem é vestir-nos, de azul ou rosa, consoante o sexo: o nosso primeiro rótulo. Assim, aos dois ou três anos, se for rapaz e começar a pedir para me vestir de cor-de-rosa, alguém vai começar a tirar certas conclusões a meu respeito. Não é só um problema de ausência de liberdade de me vestir como quiser. É mais. É o facto de perder a inocência: começo a ser vítima da maldade dos outros. Assim, o despir simboliza o desejo de voltar a um tempo em que as pessoas não estão corrompidas pela maldade dos outros e pelas violências da sociedade. Simboliza o desejo de nascermos outra vez. E começarmos tudo de novo. O que demorei tanto tempo a entender era intrínseco, talvez inato, no Manuel. Porque é essa a forma como ele vivia o grande mistério do seu ser. Como ele vivia a sua música. É talvez por isso que ele tocava sempre um trecho diferente de cada vez. Ao fazê-lo, enfrentava permanentemente o seu interior virgem. Recusando uma cobertura de protecção, como nós fazemos com a roupa que vestimos. Porque é que um compositor tem um reportório? Porque não compõe no preciso momento em que dá um espectáculo? Precisamente porque precisa de uma protecção, não vá a inspiração não chegar e ficar impedido de compor alguma coisa de jeito. No fundo, e numa comparação extrema e talvez exagerada, é como um cantor que canta em playback. Aí, o público não ouve o cantor, mas um disco. Uma máscara. É certo que o compositor, ou o cantor, apenas querem evitar fazer má figura. No entanto, evitam mais do que isso: evitam mostrar-se eles próprios, ser eles próprios. Ou, pelo menos, aquilo 138 que eles próprios são naquele momento. Como uma mulher mais velha esconde as rugas, pintando-se e maquilhando-se como se tivesse vinte anos. Sim, seguindo esta lógica de raciocínio, vim ainda a descobrir uma última dimensão na nudez: a busca da verdade. Isto, porque a roupa esconde o que realmente somos, funciona como uma máscara que permite a mentira, que permite levar os outros ao engano. O que o Manuel sempre procurou, mais do que o seu eu inocente, foi a verdade que havia em si. E que há em todos nós, e que desconhecemos na maioria das vezes. Ele não tocava para mostrar aos outros o que quer que fosse. Ele queria receber, por essa via, a sua própria verdade. Como se tentasse compreender a posição que ocupava no mundo, como se tentasse conhecer quem era. Fechado em si, dobrado sobre o piano, o que observávamos era a sua procura obstinada da beleza, a sua entrega ao outro mundo que em si morava e que transfigurava a sua imagem frágil e indefesa – numa errância em desajuste em relação ao mundo daqui – num homem completo, total, pleno no controle de si, que irrompia em nós numa imposição inquestionável que nos vergava perante a sua dimensão quase violenta, irreal e absoluta. Mas eu não desisti de explicar ao Rui porque é que a música era a arte das artes. A minha tese era baseada no facto de a música ser a arte mais abstracta: – Eu disse-te que a arte projectava a nossa vivência numa dimensão abstracta e intemporal. E tu disseste que era conversa para boi dormir. Mas não é. A música é a maior das artes porque é a mais abstracta: não se vê, não se apalpa, não mostra nada em concreto. Porque o som não é concreto, é uma abstracção. 139 Contrariamente à pintura ou à literatura, não consegue atingir o nosso cérebro – ou seja, a nossa dimensão racional – de modo nenhum. Não tem qualquer contacto com a nossa Razão. E está escrita numa linguagem totalmente inventada de raiz e totalmente exterior à nossa realidade. É, assim, algo que nós não conseguimos de todo entender. Num quadro há uma imagem que entendemos, mesmo não sendo pintura neo-realista. À excepção da arte totalmente abstracta. Na literatura, então aí, não há qualquer hipótese de se atingir uma abstracção plena: o texto tem sempre que ser “entendível”. Ora, é por todas essas razões que, por outro lado, ela é a arte mais intemporal. Hoje, ouvimos com prazer a música do séc. XV, ou a batida africana tão mais antiga, quando já não existe qualquer pachorra para ler os romances de cavalaria da Idade Média ou a pintura de reis e santinhos anterior à pintura moderna. Em contrapartida, para voltar à música, ninguém ousa preferir Schoenberg a Bach. Ao passo que a pintura começa em Goya, e a literatura em Cervantes! Rui abriu os olhos de satisfação. Ia responder-me à letra, ele era muito inteligente. Tinha certamente descoberto uma brecha por onde me atingir: – Goya e Cervantes? Muito bem. Tragédia grega, nada? E os baixos-relevos do Parténon, ainda menos? Sófocles, Fídias, não sabes quem são. Só Goya e o Cervantes. Devo então deduzir que foi em Espanha que nasceu a cultura clássica e a civilização ocidental? Eu calei-me, ferido de morte. E Gonçalo, muito rápido para mim: ele tem razão. O meu amor à música traíra-me. A minha música. O meu amor. 140 Papel manuscrito nº 5, parte I (tempo da prisão) Volto à visão do mar. E enquanto o Manuel toca e os olhos se me inundam de luz, penso em como é fantástico o homem inserir toda a sua grandeza, toda a sua vida, numa fresta da realidade onde nada existe, num momento de rarefacção da existência, como o Sartre, quando colocou “Jean” e “Hélène” numa fracção existencial onde só eles estavam presentes, apesar das pessoas todas que os envolviam. Como se o mundo parasse, todos ficassem suspensos do tempo, imóveis, e só eles os dois vivessem, para dizerem duas palavras de amor antes de “Jean” ser executado. Durante breves minutos, só eles dois existiram à face da Terra. Era a transfiguração provocada pelo amor, o acesso a esse absoluto que é a abstracção máxima, imaterial e inexistente, onde moramos quando acedemos ao “outro mundo”. E, então, é como se o mundo daqui não existisse, ou seja, é como se fosse dominado por uma “rarefacção” da existência, uma fresta, como dizia há pouco, uma clivagem no espaço e no tempo. 141 Quando li esse livro, imaginei-me e à Amália como “Jean” e “Hélène”. Uma ligação tão forte que, mesmo não existindo no nível superficial da existência quotidiana, existiria para sempre no mais fundo do nosso interior, no coração, na alma, não sei. Achei que era isso o verdadeiro amor. E era o que eu sentia pela Amália. Ela estava presente em mim mesmo quando não estava comigo. E quando estávamos juntos, era também como na peça, como se mais ninguém existisse. O mundo inteiro parava para nos ver brincar, ou rir, ou correr pela praia e tomar banhos no mar. Mas a separação era inevitável, “Jean” ia morrer. Amar-se-iam para sempre, mas na inexistência física dos seus corpos, Amar-se-iam talvez na memória, que é onde tudo o que foi bom resiste à erosão do tempo. Eu como que também morri – Não amarei mais ninguém. Passei, como “Jean” e “Hélène”, a viver o 142 amor fora do tempo, e fora do mundo, como o Manuel, totalmente submerso pela sua arte, que, no fundo, não é tanto uma outra vida para ele, mas a sua vida verdadeira. Anda agora para cima e para baixo no piano, desnorteado e à procura de um rumo, ou então à procura de coisa nenhuma, entregue à ausência da Razão e, por aí, à ausência de um qualquer objectivo definido – ou por nós entendível. Ascensão a um mundo pleno, como uma esfera de vácuo que se eleva no ar e abandona as referências terrestres. Um vácuo repleto do imaterial do sentir. Da Arte. Do impossível que há em nós. Manuel descobriu agora um caminho, acalmou, e, de vez em quando, dá suaves gemidos, como que a ajudar ao parto do deslumbramento. Nós ainda não podemos compreender, ele está só a falar para si. A sua harmonia ainda não se nos revelou. Existe apenas no seu outro mundo. Nós ficamos aqui, sozinhos, parados no tempo, à espera de podermos sentir também. 143 A luz do mar volta, com todo o seu esplendor, para nos confundir. Luz impossível, como que acompanhando, em inverosímil, o milagre da música do Manuel. O mar está todo iluminado à superfície, mas de uma luz que vem do fundo, vemos os peixes maiores a passar por cima, serenos, confiantes perante esta tão grande sensação de paz e de harmonia da vida. A luz para sentir a harmonia da vida e a harmonia da música. Agora sim, Manuel regressou a uma sensibilidade humana. E nós já podemos partilhar a maravilha que o preenche. Agora muito calmo, por vezes forte, embala-nos com uma doce melodia, que acompanha com um pequeno esforço de voz. Nunca mais ouvirei esta melodia. Ele nunca mais a tocará de novo. Por isso, hoje, aqui, fomos todos testemunhas, nós e a luz imensa que vem do fundo do mar, de um momento único, embora todo ele cheio de eternidade, de um momento irrepetível na História da Humanidade. E assim ficámos, embevecidos, sentindo o quanto o Manuel, e a sua loucura, incarnam o que 144 de mais elevado um homem consegue dar de si mesmo. Enquanto Rui gesticulava, eufórico da sua vitória sobre mim, pronto a dizer-me ainda mais qualquer coisa, confiante como se a estocada final estivesse ao seu alcance fácil, dei comigo a pensar que só poderia considerar a essência, enquanto conceito a inserir no centro do meu plano, se a olhasse nas suas múltiplas vertentes, criadas a partir da reflexão sobre a nudez do Manuel – despojo do material e concentração no espiritual (1), liberdade (2), inocência (3) e verdade (4) –, o que me pareceu não poder ser visto senão como enriquecedor para o próprio conceito. Mais uma vez, o Manuel estava no centro de todas as ideias a que eu podia recorrer. Mais uma vez, a sua loucura me aparecia como algo muito superficial. Assim, voltando ao plano, vemos que a concentração no espiritual e a liberdade estavam lá. Faltavam, portanto, a inocência e a verdade. A ideia natural seria, então, a de encaixar o conceito de essência no conjunto destes outros seis conceitos, como se fosse um meta-conceito, como dizemos dos factores em relação às variáveis quando trabalhamos a análise factorial. Também dizemos que eles são meta-variáveis, ou seja, são umas variáveis mais amplas, porventura mais complexas, que estão para além das outras e que as ultrapassam e englobam. Esse encaixar, não sendo evidente, também não me surgiu como impossível de explicar, ou de tornar funcional. Ou então o conceito não estava bem. E essa suspeita cada vez crescia com mais intensidade dentro de mim. Sobretudo, voltava sempre aí, quando pensava na sua incompatibilidade 145 com a arte. Por mais voltas que desse, por mais conceitos que pudesse imaginar, eu não estaria nunca disposto a imaginar um mundo sem arte. Mas Rui queria mesmo dizer qualquer coisa mais. Algo lapidar. Para ficar para a posteridade. – Fica sabendo: a maior parte dos artistas são uns complexados. Uns frustrados, uns impotentes. Nunca ouviste dizer que a arte é a sublimação do sexo? E é só por isso que querem fugir à realidade. É por serem traumatizados. Querem evitar a realidade que lhes dói. Não são corajosos, não são altruístas. E a sua euforia louca foi a sua perdição. – Os meus pintores dão metade do valor da venda das obras, às vezes a totalidade, para pagar uma parte significativa das despesas do nosso movimento revolucionário. Era agora a vez de Gonçalo se vingar do seu lapso a respeito do restaurante. – Os teus pintores? Que pintores tens tu? Rui corou, mas decidiu, numa fracção de segundo, ir em frente e não dar o braço a torcer: – Eu tenho uma galeria de arte. E os pintores levam lá os quadros, nós vendemos, e metade da venda, normalmente mais, é para a causa. A outra metade, ou o restante, é para os pintores, nós só ficamos com muito pouco. – Vocês vendem? Vocês, quem? 146 – Eu e a minha sócia. Agora é só ela, porque eu estou aqui feito parvo. – E ela também é do movimento? – Não quero conversas sobre ela. E virou-nos as costas, de novo remetido a um silêncio que começava a ser típico nele. Era um silêncio de lágrimas contidas, um abandono ao mais interior dos sofrimentos. Também Rui tinha um mistério, um mistério que envolvia uma mulher e uma galeria de arte. Tive uma vontade irresistível, sem dúvida por vingança também, de saber um detalhe: – Nessa galeria, vocês só vendem neo-realismo ou também vendem arte fútil, assim abstracta com duas pinceladas a vermelho e uma a preto sobre fundo branco? – Acho que sim, também vendemos. Não a posso obrigar a vender só os quadros que não nos dão dinheiro algum. E Gonçalo, muito acutilante – Então – já percebi – ela não é do movimento. Quem é ela, Rui? Rui não merecia sofrer assim, quase a chorar de novo. Para distrair o ambiente, contei-lhe de uma peça, lá do meu teatro longínquo, que fazia a síntese entre as nossas duas ideias: a minha e a dele. Já não me lembrava muito bem, era uma síntese sobre a realidade e a irrealidade – a Carminda aparecia com um vestido todo pintado de flores e com uma enorme nuvem de algodão na mão esquerda. 147 Era nessa nuvem que ela pegava para dizer a primeira fala. Muito a custo, tentava levantar a nuvem, escondendo-se: – Se ele andava perdido nos labirintos do sonho E largava a nuvem, deixava-a ficar para trás e aproximava-se mais da boca da cena – E eu marchava garbosamente (esticando o peito) pela estrada plana da realidade Rui levantou os olhos húmidos à espera de mais, olhos inocentes a estalar de amor e revolução – Como é que acabámos por apanhar as mesmas flores? Enquanto Carminda acabava, agarrando as flores do seu vestido, peguei suavemente na mão de Rui. Em vez de um pranto, eventualmente um pouco descontrolado, que eu esperava, Rui levantou-se e abraçou-me com ternura. Manuel sorriu e piscou-me o olho. E fui eu que me emocionei para além do esperado. Teria Rui entendido a força insuperável do sentir da arte? Não a do seu entendimento em projectos de futuro. Não. Apenas o sentir abstracto. Imaterial. Intemporal. E assim ficámos em silêncio. Quatro homens, quatro solidões, quatro histórias de amor e de desalento. Ficámos sentados, à espera não sabíamos de quê. Era impressionante a diversidade da nossa humanidade. Quatro maneiras tão distintas de sermos homens e, ao mesmo tempo, uma mesma vontade de cumprirmos em grandeza o nosso destino. E ajudarmos os homens e o mundo a, um dia, serem melhores. 148 Tinha que me recompor, voltando à minha essência, agora cada vez mais convencido de que, se calhar, não era a palavra que procurava, tantas eram as dificuldades que ela me trazia, tão difícil que se tinha tornado confiar nela. Uma das piores constatações foi o facto suplementar de a essência levantar um problema de base que é o de alguém ter que decidir o que é essência e o que não é. Por exemplo, vamos supor que a Internet, como dizia há pouco, é aceite como bem não supérfluo. Mas, e um automóvel? E um avião? Como conhecer o mundo e abater as barreiras ridículas que separam os seres humanos uns dos outros sem a capacidade de viajar, sem a intercomunicação? Aceita-se, então, que haja aviões? E são usados em que circunstâncias? Mas, acima de todos os problemas, quem é que decide isso tudo? A minha teoria exigia uma quase polícia de costumes, como o Marx precisou do cacete da ditadura do proletariado. Por outro lado, a essência tinha outro problema que me desagradava: a valorização da redução. Ou seja, a avaliação positiva do negativo. Talvez não fosse nada de novo. O Marx tinha feito bandeira da sociedade sem classes. Também era a valorização de algo que não existia. Porque é que eu não podia valorizar a ausência de bens supérfluos? Não ser mais rico do que os outros não me parece muito diferente de não ter mais bens materiais do que os outros. Vai dar ao mesmo. Mas essa era, justamente, a terceira coisa que me irritava: o facto de a minha ideia ser tão parecida com a do Marx. Para pior. Porque a lógica dele era a da igualdade (era estupidez, mas as pessoas acreditavam que iriam viver tão bem como os ricos). E a minha qual era? Era a de os pobres não terem nem o pouco que tinham? E que lhes servisse de consolo que os ricos também não teriam? Abóbora. Eu precisava, já o tinha dito, de algo empolgante, que apelasse ao sonho, a algo que nos transcendesse e nos 149 motivasse com todas as forças que temos. Algo, já agora, um pouco parecido com a arte – que nos desse um pouco de transfiguração. E andava à volta de um conceito que punha a arte em causa! A essência era o aquém de. E eu iria perceber mais tarde que o meu conceito devia estar para além de. Um apelo ao máximo de nós. Não, este conceito não iria vingar. Iria descobrir um outro mais próximo do que sonhava. Um conceito mais próximo de uma certa transcendência. Porque ele também tinha que ter uma dimensão de tipo religioso. Um conceito mais além. Como a arte e a transfiguração. Também o Manuel apareceu transfigurado, de novo com o cabelo molhado, interrompendo as minhas reflexões e apontando discretamente com os olhos na direcção de um Gonçalo que, ao fundo, o olhava com ar reprovador. Piscou-me o olho e disse, com um à vontade que cada vez mais me parecia genuíno – e não a atrapalhação maluca que nos queria impingir: – Fui tomar banho na minha piscinástica. Gonçalo nem pestanejou – Vê lá mas é se não transformaste a casa de banho numa piscinástica só para te fazeres de maluco. Os olhos de Manuel mostravam bem o quanto ele estava acima da menoridade que pretendia evidenciar. Passou no piano e tocou dois ou três acordes, assim como que para mostrar que os malucos éramos nós, e Rui não resistiu – Toca! Era um Rui aparentemente derrotado, apesar da monumentalidade das suas convicções. 150 – Toca! Papel manuscrito nº 5, parte II (tempo da prisão) Sim, Manuel, toca. Tu, que escondes os maiores segredos, toca. Para sentires esses tais seres que, como tu dizes, não sabes quem são. Esses espíritos que te rodeiam quando dás o máximo de ti. Talvez sejam os teus deuses do mar. Eu não lhes conto, toca para os chamares. Eles virão, mas eu não direi que eles estarão entre nós. Toca, Manuel. Para eu esquecer o meu livro, e a filosofia, e o mundo, para eu sentir a tua partida para o lugar da ausência. – Não toco! Só se tu me ajudares a escrever a carta ao presidentário. Manuel olhava Rui de lado, para ver a reacção. – Eu ajudo! Tu ditas e eu escrevo. Dizes o que quiseres. Manuel parecia não acreditar. E foi a medo que se sentou na mesa, enquanto Rui procurava papel e uma caneta. Rui, estranhamente, não estava com ar de brincadeira. Que teria sentido ele de diferente naquele dia? Teria tido um alívio provocado pela sua confissão relativa à galeria de arte? Seria algo relacionado com a rapariga? Se calhar – pensei –, não 151 era só eu que via Manuel de forma diferente, à medida que o tempo ia passando. Embora eu soubesse de muitas coisas que eles desconheciam. Mas era óbvio o respeito, talvez carinho, de Rui naquele momento. – Diz! – Muito bem! Vou começar com uma graça, vou dizer “De presidiário para presidentário”. Enquanto Manuel ria, Rui olhava-o com um misto de surpresa e de admiração. – Não, Manuel! Tem que ser “Excelentíssimo Senhor Presidente”. – Presidentário. Está bem, escreve lá à tua maneira. – E depois? Que lhe queres dizer? – Queria perguntar-lhe, primeiro, se ele não acha que faz mal às pessoas por andar com o nariz à mostra, mais o bigodástico, cheio de pêlos, as senhoras que gritam nos supermercados quando me dispo devem achar que ele deve ser preso, como eu, por causa daquele bigodástico tão feio. Depois, saber se as mulheres, nuzásticas de todo, se ele não as acha broásticas como eu? Ele deve ser um homem sexualástico e os psiquiástricos já devem andar todos atrás dele – ele que tenha cuidado. – Manuel, eu não posso escrever isto... – Pergunta-lhe se ele conhece aquele país, acho que é na China, onde as pessoas que andam com bigodástico à mostra são todas presas. Porque fazem mal às outras pessoas e os psiquiástricos não deixam. 152 Era impossível. Rui mal tinha começado e já estava sem saber o que fazer. Manuel continuava a inventar coisas, ninguém percebia onde as ia buscar, Gonçalo também já perdia a paciência – Eu não deixo seguir essa carta! e Rui já não tinha forças para lhe chamar fascista. Acabei por deixá-los, ainda tinha as minhas notas por terminar, enquanto Manuel apalhaçava definitivamente e andava às voltas, dançando em volta de Rui, frente a um Gonçalo cada vez mais enervado com as suas cantorias: – O presidentário e o psiquiástrico casaram os dois! Um era homem sexualástico e o outro gostava de bigodásticos e de narizes grandes! Agora vão ter muitos filhinhos iguais a eles e eu estou salvo porque não tenho que os ver, não tenho que os aturar. Estou completamente livre dessa gentástica toda porque estou na prisão... A cantilena era completamente desencontrada em termos de letra e música, mas ele cantava com convicção perante um Rui mais do que arrependido do seu altruísmo e da sua bondade. Eles lá ficaram no andar de baixo e eu subi, sorrindo do divertimento do Manuel e, ao mesmo tempo, apreensivo da mudança profunda que estava a ter o meu projecto. No topo do farol estava tudo organizado, embora parado. À espera. E eu andava um pouco desleixado. Haviam passado alguns dias e eu não tinha controlado os indicadores, os registos do radar, os registos de temperatura, as variações sísmicas. Os dias haviam passado sem que me apetecesse trabalhar lá para os lados do hipotético. A vida com aqueles três era suficiente para o avanço da minha reflexão, embora esse avanço não fosse, tinha que o admitir, muito visível. 153 Os registos não tinham nada de especial, uns picos – eventualmente estranhos – de temperatura. Sobretudo à noite. E mais nada. O mundo exterior estava calmo. Na análise dos sons, houve uns zumbidos, também à noite. Deviam ser barcos que passavam ao longe e tocavam a sereia ao ver o farol. Sereia. Sinónimo de sirene. A palavra deve ter derivado do latim, que em italiano sirena é sereia e sirene ao mesmo tempo. Acho eu, que não sei italiano nem latim. De repente, pensei se as deusas do mar de que o Manuel falava não poderiam ser sereias. As outras sereias. Pensei, será que a mulher que ele tanto ama não passa de uma sereia? Seriam os relatos sobre a existência de sereias a prova da visita de seres extraterrestres? As sereias que cantavam para os marinheiros ouvirem, como a lenda da Lorelei dos fiordes noruegueses? Sem dúvida que sirenes e sereias tinham origem nos barcos e no mar. Seria possível pensar que o verdadeiro contacto com esses seres só fosse possível no mar? O que me faria estar no bom caminho? Seriam tentativas de comunicação através da música? Como no filme do Spielberg, os Encontros Imediatos …, o Truffaut a comunicar com eles através dos sons e das cores. Música, pintura, a abstracção da arte. Terão os extraterrestres a experiência de tão profundo sentir? Sentei-me a ler um livro, à luz frouxa do candeeiro, enquanto eles, lá em baixo, faziam um concurso de poesia. Era suposto eu ir mais tarde e nomear um vencedor. O livro era um ensaio sobre a disparidade de conceitos de vida em função dos diversos animais, sobretudo – mas não só – no que tinha a ver com a sua dimensão. Isto, a propósito da capacidade de os humanos poderem detectar a presença dos não humanos, se um dia chegarem a confrontar-se. Um dos exemplos analisados no livro era a capacidade de uma formiga ter consciência da existência de um elefante. Ou de um insecto, que não vê o mundo e as cores do mesmo modo que nós, poder organizar o mesmo exterior em função de parâmetros radicalmente distintos. Por exemplo, há objectos que esses insectos, pura e simplesmente, não conseguem localizar, não 154 se apercebendo da sua presença. O que me levou a pensar se os extraterrestres não estariam entre nós, eventualmente há muito tempo, sem nós termos capacidade para os ver, para nos apercebermos, como o insecto, da sua presença? Havia depois outra questão, a das sereias. Suponhamos que os extraterrestres têm uma forma estranha, que foge à normalidade. Nessas circunstâncias, podem acontecer duas coisas: ou não percebemos que “aquilo” são eles, ou achamos que as pessoas que os avistaram são doidas – ou sofrem alucinações. Há ainda a hipótese remota da visitação da divindade, como em Fátima. Estas reflexões tornavam-se tanto mais interessantes quanto mais me lembrava da loucura do Manuel. Com efeito, para ele, não existia essa coisa da normalidade. O que me fazia supor que, provavelmente, só ele estivesse preparado para os ver. E, quem sabe, só ele tivesse sido escolhido para os receber. Justamente por causa da sua inocência. Pelo livro, era possível perceber o quanto o “cosmos” de uma formiga não ultrapassava umas centenas de metros. Objecção do autor: mas a formiga não tem a nossa inteligência; quem diz que, se a tivesse, não era capaz de construir telescópios (não sei como uma formiga podia construir telescópios, mas admitamos que sim) e entender o Universo como nós? Resposta do autor: e quem diz que a relação existente entre a inteligência (e o conhecimento, deduz-se) da formiga e o nosso não é precisamente igual à relação entre o nosso e o dos extraterrestres? Ou seja, se nós formos um milhão de vezes mais inteligentes do que a formiga e os extraterrestres o mesmo em relação a nós? Possivelmente, o nosso Universo de milhões de anos-luz será tão infimamente pequeno perante o deles, como o da formiga o é perante o nosso. Estava assim sentado à secretária, lendo o livro na penumbra, quando o tio Saúl me fez uma festa na cabeça e disse: – Não estudes mais. Já são horas de dormir. 155 Mas eu não estava a estudar, aquele livro era já uma tentativa de me situar no mundo enorme que me envolvia. Era um livro de Ciências. É certo que eu tinha que o estudar para a escola, mas falava de um tempo em que ainda não havia seres humanos, só havia dinossauros. E eu tinha uma caderneta de cromos com o nome e a imagem dos dinossauros todos. E queria perceber porque é que tinham existido dinossauros numa altura em que não havia pessoas. Eu era pequeno, mas tinha essa questão: que sentido fazia haver o mundo todo, cheio de plantas e animais, e não haver homens? Não concebia a existência, durante milhões e milhões de anos, de um mundo sem a presença humana. E também duvidava da coisa por causa de Deus. Achava que Deus, caso existisse, não podia ter concebido as coisas dessa maneira. O tio Saúl devia saber – Tio, que sentido faz o nosso mundo ter existido, durante milhões e milhões de anos, cheio de plantas e animais, e sem haver homens? E que sentido faz Deus ter criado as coisas assim? O meu tio sorriu, orgulhoso da minha busca, tão precoce, dos milagres da existência. Fez-me uma festa – Não estudes mais. Mas eu tinha que fixar o nome dos dinossauros, era um mundo paralelo – as pessoas não entendiam. Eu criava um mundo meu, um segredo que era o início da minha confrontação com a violência exterior. Do mundo dos dinossauros, eu era o que sabia mais. Mesmo mais do que o tio Saúl. Ele também tinha um mundo seu que os outros não conheciam. Desse mundo sabia ele. Ele e o seu amigo padre. O meu mundo era comigo. Era um mundo impossível de ter sido verdade – era a minha interrogação metafísica a nascer que mo revelava –, mas, ao mesmo tempo, os livros diziam que era assim. E o tio Saúl confirmava. 156 Um dia, expliquei-lhe: – Os homens não existiam porque os dinossauros eram muito grandes e pisavam e destruíam tudo quando passavam. Por isso, os homens não podiam ter casas, cidades, porque os dinossauros não deixavam. O tio Saúl dizia que sim com a cabeça, que entendia a minha tese, e eu ficava todo emproado por estar a explicar coisas aos adultos. E passeávamos pelas ruas da cidade, depois do jantar, a ver os monumentos que, evidentemente, não existiriam se ainda houvesse dinossauros por ali. E depois chegávamos a casa para dormir, beber o leite e comer as bolachas, e eu deitava-me com uma incompreensível sensação de plenitude. Mas era já o Manuel que me chamava lá de baixo, aos berros, dizendo que os outros nunca mais acabavam de escrever os poemas e ele já estava farto de esperar. Era hora de eu descer e despedir-me do tio Saúl. Olhei o mar, depois de apagar a luz, e dei por mim a pensar em como o mar era o único sítio onde os dinossauros poderiam ainda morar. A primeira ideia do concurso de poesia era fazê-lo todos os meses, pelo menos, e, depois, organizar um livro para memória futura, para que nos lembrássemos, para sempre, dos tempos felizes da prisão. Mas a coisa nunca correu bem e os poemas acabavam por ir todos para o lixo. Aquele dia era apenas mais um a juntar a tantos outros. O Manuel tinha sido o primeiro a terminar – era sempre, aliás – e tinha, também para não variar, um poema muito curtinho. Gonçalo havia terminado, mas Rui ainda estava às voltas com a inspiração. Também eu pedi mais uns minutos para escrever o meu. Já tinha pensado um pouco nisso, lá em cima, enquanto recordava as minhas angústias metafísicas e a minha relação, progressivamente mais difícil, com os deuses e as religiões. 157 Quando os poemas estavam prontos, era costume lê-los em voz alta, eu primeiro, depois o Manuel, depois o Gonçalo e, finalmente, o Rui. Já não me lembro porque é que a ordem era esta, se calhar tirámos à sorte. Cabia-me então a mim começar, mas o Rui precisava de mais uns minutos. O Manuel estava excitadíssimo – O mundo é como um elástico, ora é uma porra ora é broástico. Gonçalo indignou-se – Não era a tua vez. Não consegues fazer as coisas como está combinado? – Não era o meu poema, estava só a cantar. E lá continuou a cantar a canção do elástico, enquanto Rui, muito irritado, decidiu dar a tarefa por finda. Decidi então começar – O meu poema chama-se “A Deus”. Perceberam? “A Deus”, como “A Gonçalo”, ou “A Rui”. – Ou “A Manuel”! – Sim, claro, Manuel. Posso continuar? Vou dizer então o poema. O poema é Adeus. Ficaram todos calados. – Já terminei. Era só isso. 158 O Manuel não se conteve – Pára de dizer o título, já sabemos. Diz agora o poema. – Não, Manuel. Eu disse o poema. O poema é Adeus. – Como quando as pessoas se despedem umas das outras. Adeus, até qualquer dia. Estou a despedir-me de Deus, percebes? Manuel ficou a olhar muito sério. Olhou para os outros, assim como se duvidasse de o maluco ser mesmo ele, e disse: – Não sabia que havia poesias com uma só palavra, já podiam ter avisado. São poesias aldrabásticas. Bem, agora sou eu. O meu poema chama-se “Alegria”. Vou dizer. Atenção que também é pequenino. Mas para a próxima ainda vai ser mais. Também vou fazer uma aldrabástica. Alegria Felicidade sem amanhã. – Também pensei chamar-lhe “Felicidade”. Ficava assim: A felicidade É a alegria Mais a eternidade. 159 Enquanto eu cada vez me convencia mais de que a maluquice do Manuel era uma enorme impostura – nenhum maluco conseguiria alguma vez escrever um poema com aquela profundidade, Gonçalo avançou e disse apenas: – O teu poema é muito bonito. Gosto mais da 2ª versão. Parabéns, Manuel. O meu poema é maior, mas não tem título. Vou ler: Quando eu era miúdo A vida girava em torno dos mais velhos Eram eles que tinham a importância do passado Hoje A vida gira em torno dos mais novos São eles que têm a importância do futuro Não sei quando Ou se alguma vez A vida girou em torno de mim. Sentimos forte a solidão de Gonçalo. Era como se, mais uma vez, nos alertasse para a iminência do vazio. Manuel também deu uma palmada nas costas de Gonçalo – As poesias, hoje, estão broásticas. Rui estava alarmado. Todos os nossos olhares convergiram na sua direcção. – A minha poesia chama-se “Sem ti”. Estava a dizer coisas surdas, só para si, e as mãos faziam tremer o papel, já amarrotado, que tinha à sua frente. Rui tinha um olhar de grande melancolia, e foi com esse olhar que repetiu: 160 – A minha poesia chama-se “Sem ti”. É importante fixar o título. E leu. Esta coisa cá dentro Dá voltas, fica a remoer Por vezes dói Assim um ardor Outras vezes é de uma doçura Como nunca senti Deve ser uma palavra a nascer Deve ser uma palavra de amor Deve ser para ti. E foi como se dele tivesse saído um grito fundo, um uivo de dor. E todos ficámos petrificados perante essa assombração. Alguns dias mais tarde, Rui iria revelar-nos o seu terrível segredo, e iríamos ouvir a mais bela das histórias que ele poderia alguma vez contar. Ela iria falar-nos – apesar de eu ainda não estar preparado para a entender assim – do que de mais alto os homens poderão algum dia atingir. 161 162 V E lá chegou o dia planeado para ir ver a suposta amiga do Manuel. Combinámos dizer-lhe que ele estava doente e que o Gonçalo não o deixava ir à visita para não piorar. E, nessas circunstâncias, alguém tinha que ir receber a pessoa para lhe dar uma explicação e não a deixar ficar alarmada. Era esta a justificação para eu poder aparecer e, simultaneamente, falar-lhe a sós – se ela existisse mesmo, precisava de perceber bem quem era. Manuel estava excitadíssimo. E eu convencido de que tudo aquilo era uma estupidez, pois de certeza que ninguém iria aparecer. De certeza que era tudo imaginação delirante dele, a sua visão louca de uma irrealidade impossível. Por outro lado, tudo o que tinha acontecido no passado recente, tal como as suas reacções naquele momento, indiciavam em tudo o contrário: agarrava-se a mim, perguntava-me se eu tinha gostado do seu “peixe”, fazia-me festas na cara e dizia que eu era “porreirástico”. E, depois, lembrava-me, pela milionésima vez, que devia explicar que a doença não era nada de especial, evitando assim preocupações desnecessárias. E pedia-me para lhe dizer o quanto estava apaixonado. E que só pensava nela a toda a hora do dia e da noite. Para ela acreditar. A dada altura, perguntou-me – Sabes o que é o amor? Sabes explicar-lhe isso do amor que sinto? 163 Fiquei a perguntar-me o mesmo. E cheguei à conclusão de que não saberia dar-lhe resposta verdadeira – Não amarei mais ninguém (e a dor, para sempre, em mim) ou talvez não quisesse simplesmente ouvi-la. Mas é óbvio que respondi que sim, naquele estado do campeonato, não o podia desiludir. Mas o pior de tudo foi o seu pedido final, o pedido mais difícil. Era também preciso eu dizer-lhe que ele, mais dia menos dia, iria fugir da prisão, e que ela devia estar preparada para irem para muito longe – Para muito longe. Dizia, olhando novamente para os infinitos do céu e do mar. A minha primeira reacção foi muito negativa. Não me queria sujeitar a colocar em risco a minha permanência na prisão e, consequentemente, toda a minha investigação, por causa da maluquice dele. Ainda por cima, as visitas eram efectuadas numa outra prisão, numa ilha próxima (havia um trajecto duas vezes por semana para vir buscar os presos, juntamente com o próprio Gonçalo, para levar às visitas, ao médico, a certas refeições especiais, etc., enquanto alguém ficava na nossa ilha a limpar, a reabastecer as faltas e a deixar as coisas preparadas para as outras refeições). E eu não tinha facilidade de falar com os guardas de lá para arranjar uma solução para uma conversa mais privada. O trajecto para a outra ilha foi, assim, um pouco tenso, com o Manuel a olhar-me de lado e a sussurrar – És um cobardolástico 164 e outros insultos, certamente ainda piores, em surdina. Mas, quando chegámos, e perante a sua insistência quase lacrimejante, lá me resolvi a ir falar com o guarda responsável pelas visitas para me arranjar uma mesa um pouco separada das outras, embora os guardas escutassem normalmente as conversas todas, invocando que a visita era para mim e que eu não estava ao abrigo das regras habitualmente usadas para os outros presos. E foi assim que, face ao meu estatuto diferenciado, foi possível arranjar um local quase perfeito. Quando chegou a hora, Manuel, com o olhar atrevido – mas, ao mesmo tempo, comovido –, veio ter comigo, pousou-me as mãos sobre os ombros, olhou-me e abraçou-me ternamente. E assim ficámos um pouco. Por momentos, senti de novo Manuel como um homem de uma dimensão superior, e o seu coração, que batia tão perto do meu, contagiou-me de uma sensação de pureza absoluta. Manuel amava até ao limite. Amava a sua mulher, mas, acima de tudo, a sua visão de uma vida sensível e bela. E amava a sua liberdade total. Manuel era um homem bom. Puro. Era óbvio que alguém o esperava. Ele merecia. Era um homem com um interior que justificava o amor da mais bela das mulheres. E essa mulher, cuja presença na visita eu já não punha em dúvida, devia ser de igual dimensão. Pensei que a dimensão das mulheres é um pouco aquela que os seus homens merecem. E, de facto, que mulher podia alguma vez amar o Manuel se não compreendesse em profundidade a grandeza que nele havia? Uma grandeza funda, escondida, que só uma grande mulher pode entender. A mim, a dimensão de mulher que me coube foi a da ausência. Foi a que mereci. A minha grandeza nula. No entanto, ela disse-me – Não amarei mais ninguém sim, ela disse-me isso, que nunca amaria mais ninguém. Ou então fui eu que imaginei. O que poderia significar que 165 nunca poderia amar ninguém depois de mim. Mas como posso eu ter a certeza disso? E o significado disso seria o que penso, ou seja, que a minha grandeza existia, apesar de tudo? Ou existia antes em mim o vácuo, a rarefacção, a ausência que ela me deixou? A rapariga já estava sentada quando cheguei. Era extremamente bela de cara e parecia ser muito elegante. Alta, cabelos louros, olhos claros, chamava-se Maria qualquer coisa, não percebi bem – foi estupidez ter-me esquecido de perguntar ao Manuel –, mas, para mim, Maria era suficiente. Olhava-me séria, imperturbável, enquanto eu me desfazia em explicações e em tentativas de simpatia. Ela parecia ser muito inteligente, pelo menos comparando com a minha fraca figura a tentar justificar a ausência do Manuel. Quando terminei o rol de justificações que tinha preparado, ela agradeceu e fez um gesto para se levantar e sair, reacção óbvia de quem não tinha nada para me dizer. Mas agarrei-lhe o braço, e foi aí que senti a sua pele sedosa e suave, mas lisa, terrivelmente lisa. E fria. Senti algo de estranho nela, assim de certo modo ausente, como se a minha presença e o que dizia não lhe pudesse interessar para coisa nenhuma. Nem tão-pouco conseguindo perceber o que é que eu teria mais para lhe dizer. De certa forma, senti-me pressionado, e foi de forma abrupta que lhe expliquei, baixinho, que tinha sido “mobilizado” para ajudar o Manuel a fugir da prisão. Ela não respondeu, ficou séria a olhar para mim, como se estivesse a estudar-me, ou à espera que eu dissesse mais coisas, ou talvez terminasse de uma vez. Com o ar de quem não tem que me explicar coisa nenhuma e só está ali para receber informação. Um ar altivo, mas talvez também um pouco receoso. Sentindo-me de novo pressionado, disse-lhe o quanto o Manuel a amava, falei-lhe da sua ideia de escrever um romance “broástico”, de se ter apaixonado por ela e, daí decorrendo, de se ter apaixonado por uma beleza mais global, onde estava incluída a arte, neste caso a literatura. 166 E expliquei-lhe que o Manuel ficava por vezes absorto – não lhe falei, é claro, das mulheres nuas –, demonstrando a sua vontade de partir e olhando para um longe perdido nos confins do céu e do mar. Nesse momento, reparei num ligeiro acenar vertical de cabeça, como se me transmitisse a ideia de estar a perceber perfeitamente o que eu queria dizer. Mais, como se entendendo perfeitamente a razão de tal reacção por parte dele. E eu calei-me, já não sabia o que havia de dizer mais, quando percebi que ela se decidira a falar, mas tão baixo que mal a ouvi: – Eu sei isso tudo, o Manuel é um ser humano excepcional. Disse mais qualquer coisa que me pareceu “é um exemplar único”, coisa estranha de se dizer, se calhar disse que ele era exemplar e único. Depois, continuou: – Quanto àquela história de ele fugir, não acredito numa coisa dessas. Manuel será libertado em breve, tenho a certeza. Não precisa de fugir, nem ele é capaz de o fazer. No entanto, se ele assim o decidir, ou se o convencerem ... Fez uma pausa e olhou-me nos olhos com severidade – ... eu preciso de saber antes. Tenho que ser previamente avisada da data. Eu estava nervoso, um pouco constrangido, agora que sabia que aquela mulher existia e que o Manuel não tinha inventado tudo. Nem tinha mentido. Era, aliás, impressionante o ele não ter inventado nada, nem mentido em relação a coisa alguma. Primeiro, o golfinho. Agora, a mulher. Era como 167 se se provasse, naquela situação, a hipótese por mim já equacionada de os malucos sermos todos nós. Ou como se nós vivêssemos num mundo paralelo ao dele, e, por isso, o seu mundo nos parecesse estranho. Como, muito provavelmente ele sentiria em relação a nós. Mas dois mundos de igual verdade, de idêntica autenticidade. Não falando pelos outros, era absolutamente urgente eu começar a lidar com o Manuel como um igual. Estava a olhar para ela, numa fracção de segundo intercalar às secas palavras e frases que íamos trocando, quando percebi que usava um fio ao pescoço com um pequeno golfinho branco pendurado. Pareceu-me que ela reparara na minha descoberta, mas, talvez para se recompor, ia dizer uma qualquer coisa que eu interrompi – Maria, você sabe da história do golfinho? – Qual golfinho? – O Manuel diz que vai fugir a cavalo num golfinho, singrando pelos mares a caminho dos deuses seus amigos. – Amigos dele? – Não, seus. E apontei com os olhos para ela. Ela esboçou um leve sorriso, mas fez um esforço – estranho, pensei – para eu não perceber. – Ai é assim que ele vai fugir? – É. – E vocês acreditam numa história dessas? Ele provavelmente imaginou isso por eu lhe dizer que gosto muito de golfinhos e por usar um golfinho ao peito… 168 Ela mal me olhava, mantinha um ar distante. Por isso, sentime um pouco ofendido, como se fosse um palerma que só ia ali dizer coisas inconsequentes. Apesar de o querer evitar, perante um novo gesto seu que traduzia a sua impaciência e a vontade premente de se ir embora, acabei por confessar – Maria, eu vi o golfinho! – Eu também já vi muitos. – Mas eu vi o Manuel montado nele a passear no meio do mar. – Malucos. Acredite que vocês são mais malucos do que ele. Ela falava de forma monocórdica, assim um bocadinho aos solavancos, parecia frieza, como a das mãos. Parecia que não tinha entoação. Ou que não tinha emoção. Dava a sensação de querer medir de forma exacta, e cautelosa, tudo o que dizia. Seria por desconfiar de mim? Para a testar um pouco, atrevi-me: – Sabe quem eu sou? – Já me disse. – O Manuel nunca lhe falou de mim? – Vagamente. – Sabe que eu não sou um preso? – É um guarda? Mas disse-me que era um companheiro do Manuel! – É importante que perceba que não sou um preso comum, sou um cientista que veio para esta prisão fazer 169 um conjunto de estudos sobre o mar e sobre algumas estranhas aparições que nele têm ocorrido. Maria pareceu subitamente interessada. – Aparições? – Sim, não posso falar muito em detalhe sobre isso, mas espero detectar a presença de inteligência nãohumana. É tudo o que lhe posso dizer. Ela baixou a cabeça, sorriu – o que aconteceu pela primeira vez –, e tentou levantar-se. Mas foi no limite que eu consegui ainda uma última pergunta: – Maria, você gosta mesmo do Manuel? – Dava a vida por ele. Terminou de falar, baixou a cabeça e saiu. E eu não pude evitá-lo. Ela saiu com energia transbordante, e alguma teatralidade, e eu não consegui deixar de olhar para o seu corpo, de uma elegância de invejar o Manuel até ao fim dos tempos. Fiquei tão aparvalhado, que me deixei ficar sentado um pouco mais, sem saber ao certo como contar tudo ao Manuel e, confesso, fechando os olhos para recordar o seu corpo, o peito, o ondear das ancas e o rabo, sobretudo o rabo, perfeito, emergindo, vitorioso, de um vestido justo. Os guardas, que, felizmente, se mantiveram distantes e não ouviram nada da conversa, piscaram-me o olho e fizeram um gesto com a mão, com o polegar erguido, para me mostrar quanta inveja tinham da minha pessoa e dos meus dotes de conquistador. De repente, surgiu-me uma dúvida essencial: não a teriam já visto com o Manuel? Como é que eu me pude esquecer de tal coisa? Que terão os guardas pensado? Que eu roubei 170 a rapariga ao desgraçado? Não, pensei melhor, desgraçado era mesmo eu, que nunca haveria de conseguir arranjar uma mulher assim. No entanto, fiquei preocupado. Preocupou-me, em primeiro lugar, a sua falta de naturalidade. Parecia que respondia de uma forma artificial – sem emoção, é certo –, mas sobretudo como se as respostas fossem escolhidas de entre várias respostas possíveis previamente programadas. Era isso! Parecia um robot, como se a sua fala fosse emitida por um computador. Mas não era robot nenhum. Nem o Miguel Ângelo conseguia esculpir um corpo daqueles. Nem nenhum robot conseguiria alguma vez produzir aquele sorriso final. Aí, a sua humanidade, mesmo a sua feminilidade, foi total. Pensei em como ela era um “exemplar único” – como ela disse a propósito do Manuel – de mulher. Eu não conseguia afastar a imagem sublime daquele seu rabo perfeito da minha retina. Mas fiquei também a matutar na sua frieza. Pensei que talvez fosse desconfiança, eu podia ser um guarda disfarçado. Só no fim é que lhe expliquei que era um cientista. Podia ter estado com aquela conversa para tentar descobrir se havia algum plano de fuga. Ela foi esperta em negar. E daí, se calhar, a frieza. Deve ter pensado que era uma armadilha. Pois! Era isso que iria contar ao Manuel. Que ela não só era linda, como uma pessoa extremamente inteligente e prudente. Ele haveria de ficar contente. Mas não pude deixar de voltar a sentir alguma estranheza em relação à situação. A atitude dela tinha-me levantado muitas dúvidas. Ela não era muito normal. Responder que dava a vida por ele? Que coisa mais exagerada, sobretudo numa pessoa que foi tão prudente e parca de palavras. E qual o objectivo de saber o dia da fuga? Porquê ter que ser avisada antes? Se era para se preparar, tinha uma certa lógica. Ou seria para poder justificar-se, caso eu fosse polícia, com a necessidade de denunciar, atempadamente, 171 a fuga às autoridades? Mas porque não supor a hipótese de ser ela própria uma polícia que se insinuou junto do Manuel para conhecer pormenores da vida na prisão, como fugas, por exemplo? O Manuel, desbocado como era, contar-lhe-ia tudo. Era um bom truque. Mas, pensando bem, altamente inverosímil. Nessas circunstâncias, não teria negado a hipótese de o Manuel ter decidido tal coisa. Haveria, antes, de ter perguntado os pormenores todos. Assim como não iria responder aquela coisa de dar a vida por ele. Por outro lado, que história era essa de ele ser libertado em breve? Que sabia ela sobre isso? E como o saberia? Porque é que nunca tinha falado disso ao Manuel? Sim, porque se tivesse falado, ele não haveria de estar tão desejoso de fugir… – Não deves fugir dos cães. Eu, no início, tinha medo dos cães. Fugia-lhes e eles começavam a correr atrás de mim para me morder. Um dia, o tio Saúl e eu passeávamos no campo, embora perto da cidade, e apareceu um cão a ladrar. E ele disse – Não deves fugir, vou-te mostrar. Baixou-se em frente ao cão, pôs-se de cócoras e estendeu-lhe as mãos falando-lhe baixo. Olhava muito sério para o cão e, com muita calma, dizia-lhe – Anda cá. Muito sério. E o cão veio até muito perto, cheirou-lhe as mãos e foi-se embora sem ladrar mais. O tio Saúl explicou-me que os cães sentiam o nosso medo. Sobretudo se fugíssemos. Tínhamos que olhar sério, sentir força, ter coragem – por exemplo, pensando assim para nós próprios: “cão, se me mordes, levas uma coça”. E falar com o cão baixinho, mostrar-lhe as mãos, para provar que não 172 tínhamos medo. Só não podíamos fazer isso, ele também explicou, com cães especialmente treinados, com cães presos, ou com cães que estivessem a guardar qualquer coisa. Depois, disse também que os homens não devem fugir – o tio Saúl não tinha medo de ninguém. Não era só por ser muito forte, que era, mas, acima de tudo, por ser muito corajoso. O tio Saúl era o mais corajoso dos homens. – Não deves fugir. E, depois, pensei em algo que me tinha passado despercebido. Maria tinha-me mentido. Ela disse que tinha explicado ao Manuel que gostava muito de golfinhos, mas ele nunca tinha ouvido falar de golfinhos na vida. Ele chamava-lhe peixe. Aliás, ela não parecera muito convincente quando mostrou tanto espanto a respeito da fuga do Manuel às costas de um golfinho. Toda esta história não deixava de ser muito estranha. Mas disse, e isso já não era tão estranho – eu já o havia pensado mil vezes –, que os maiores malucos éramos nós. O que, sendo uma resposta lógica perante aquela troca de palavras, me parecera ter um outro alcance. Aliás, ela tinha dito que nós éramos mais malucos do que ele. Nós quem? E o ar superior, doutoral, mas também paternalista – Acredite que vocês são mais malucos do que ele. Por último, fiquei perfeitamente convencido de que ela sabia de toda a história do golfinho. Tal implicava, para mim, repensar a fundo, e urgentemente, toda a nossa visão sobre a doidice do Manuel. A nossa compreensão da sua pessoa, a nossa “teoria” sobre ele, tinha que ser reformulada. Tal como a minha teoria filosófica. A essência surgia-me cada vez mais longínqua, já começava mesmo a ter dúvidas sobre o interesse do meu plano analítico, que antes me tinha parecido 173 tão fundamental. O meu raciocínio deixava cada vez mais embalar-se pela imaginação, por outras palavras, a velha e douta Razão conduzia-me a um cada vez maior impasse. Independentemente do plano que definia os quatro conceitos identificativos da minha reflexão, era talvez a velha Antropologia que ia, progressivamente, orientando a busca da palavra central, quer empurrando-me para a ideia de cultura – no fundo, o seu objecto de estudo –, quer recordando-me os primórdios da organização humana, através do estudo dos chamados povos “primitivos”, onde se privilegia o saber como fonte de autoridade na comunidade. São os conselhos dos sábios, normalmente associando essa sabedoria ao peso da idade, que condicionam a acção desse conjunto de humanos, mesmo quando o poder executivo é confiado a um chefe mais jovem, o que é feito com o objectivo de conduzir esse povo na caça, ou na guerra. De resto, essa ideia de “respeito pelos mais velhos” é certamente originária desse tempo, em que os mais velhos não tinham, como hoje acontece, mais poder por via da idade e, muitas vezes, por via do maior poderio material – posse de terras, posse dos bens –, mas pelo facto de serem mais cultos, mais sábios. Voltei a olhar para o meu velho plano, Diferenciação / individualidade Liberdade Mais / sonho Plenitude espiritual / espírito e foi com excitação que compreendi até que ponto o saber, visto numa perspectiva cultural, ou seja, entendido como um 174 instrumento útil para a vida concreta dos povos e não como um mero deleite de erudição, podia perfeitamente adaptar-se ao centro dos quatro pólos pré-definidos. Diferenciação certamente, porque o saber é infinito (pelo menos hoje – Leibniz terá sido o último homem que soube tudo sobre o seu tempo) e portanto é sempre possível alguém “especializarse” num determinado campo e assegurar a diferenciação. Ou mesmo apresentar uma diferente perspectiva das coisas. Plenitude espiritual: dificilmente se encontrará outra actividade humana – talvez só a arte – que incida tanto sobre a actividade do espírito e na qual seja tão fácil o acesso a essa ideia difusa de plenitude espiritual. Aliás, muitas foram as religiões antigas que identificaram o Absoluto com o máximo de conhecimento. Uma espécie de sobreposição entre o divino e a sabedoria. De facto, e voltando à questão de há pouco, o saber permitia uma diferenciação espiritual por oposição, tal como eu pretendia, a uma diferenciação material ou económica. Por outro lado, o saber está intimamente ligado a essa aspiração de mais, procurar algo para além de. A perspectiva de ir mais longe. É engraçado o quanto existe uma consciência generalizada de que o saber não tem fim. E havia ainda a liberdade. Aqui, o saber teria que ser associado à actividade científica. O que, aliás, também acontecia um pouco no ponto anterior. No fundo, é a ideia da procura não constrangida da informação. Não ter limitações. Ser possível orientar o saber na direcção que se quiser. Por último, o saber também englobava os conceitos do Manuel: a inocência e a verdade. A inocência, a pureza, confundem-se com a aprendizagem. É na infância que existe maior vontade de adquirir conhecimentos. É nesse momento que estamos prontos 175 para aprender tudo. E tudo recebemos. Porque não filtramos. Acreditamos que vale a pena tudo aprender. Não perguntamos: “para que é que isto me servirá no futuro?” A inocência é a base da aquisição do saber profundo. E que outro objectivo existe no saber, senão a descoberta da verdade? Ou, pelo menos, o ensaio de múltiplas tentativas para descobrir a verdade, interpretar o modo como o mundo funciona, tentar compreender a vida. Tanto que se valoriza a palavra verdade no abstracto, mas nem sempre no concreto da vida real. Mas era agora o Manuel que me puxava, com toda a força, para lhe contar sobre o meu encontro com Maria. Ao contarlhe, por alto, a nossa conversa, temi que ele tentasse conhecer a verdade da minha opinião, que ele tentasse saber mais do que eu queria dizer. Mas o nosso amigo não achou nada estranho. Também não lhe contei aquela história de ele vir a ser libertado em breve. Mas, quanto ao resto, disse que ela era mesmo assim, muito calma e recatada, não se entusiasmando com facilidade. Manuel perguntava-me com ansiedade se eu achava que ela o amava. Ao que eu respondi que sim, e voltei a insistir que sim, para ele ficar sossegado. Apeteceu-me dizer que achava que ela daria a vida por ele. Só não percebeu – confirmando as minhas suspeitas – porque é que ela não queria que ele fugisse. E ficou um pouco pensativo. E eu fiquei também a pensar no que é que se passaria naquela cabeça tão misteriosa... Na minha, não consegui afastar a ideia daquela mulher tão bela, mas ao mesmo tempo tão reduzida a um contacto humano essencial, ou seja, tão focalizada no essencial da conversa. Talvez daí a ideia de frieza que senti. Frieza que me enche a memória de uma frieza ainda maior, mágoa do meu amor perdido. Penso na Amália, sim, claro, sempre, mas também na Daniela que, a dada altura, resolveu apaixonar-se por mim. Ou então foi só um devaneio. Mas 176 eu não podia permiti-lo. Também eu, tal como a Amália, não podia amar mais ninguém. E depois, lá no teatro, era muito complicado se houvesse relações amorosas entre nós. Já chegava o António e a Carminda. Mas a Daniela era linda, tinha uma beleza infinita – eu costumava dizer assim. Estranho, o mundo do amor. É o mundo mais belo que alguma vez pode existir. Mais belo ainda do que o da arte. Aliás, o mundo da arte é seu filho. Porque é o mundo do amor que produz tudo o que de mais belo existe. Mas é, ao mesmo tempo, um mundo de sofrimento. E de negações. Prisões emocionais, regras às quais nos obrigamos. Sem muitas vezes perceber porquê. O mundo do amor sempre foi um mistério para mim. Sempre me interroguei sobre o que é que leva uma mulher bela a amar um homem com fraca figura, ou feio, ou sem categoria. E sobre o que é que leva uma pessoa a escolher uma outra em milhares de pessoas que conheceu. Porquê aquela pessoa? Porque é que tem que ser aquela? E, por vezes, com um amor que dura uma vida inteira? Um dia, no meio de uma peça – e, acima de tudo, em frente de uma plateia cheia –, Daniela resolveu acrescentar uma fala ao guião, só para me perturbar. E para mostrar o seu amor por mim. De repente, lá quando achou apropriado, agarrou-me e como que declamou, com intensidade – Nasci virada para o mar sem nome Com o tempo, voltei-me para ti. E eu pensei: agarra-a – Não deves fugir e ama-a. Pensei em ceder às minhas amarras e beijá-la, como se fizesse também parte da peça. Eu, de certa maneira, amava-a. Mas 177 não podia amar. Amália olhava-me lá do longe onde mora, lá para os lados de todas ausências. Não, eu não podia amar a beleza infinita da Daniela. Papel manuscrito nº 6 (tempo da prisão) O saber é, definitivamente, a palavra. Acredito que a tenha encontrado. Só não percebo o que tem a ver com o segredo do mar. Nem com o que estava dentro de mim e, hipoteticamente, perdi. É verdade que o desejo de saber foi muito importante para mim no passado. Na adolescência, foi uma experiência muito intensa. Mas, em contrapartida, não acho que seja algo que eu tenha perdido. Mantenho essa febre intacta, e é com ela que conto chegar ao fim do meu projecto e à construção da minha filosofia. A cultura, o saber, o sonho de ser mais. Tudo isso me lembro de ter vivido. Mal tinha entrado na adolescência, ou saído – foi tudo tão rápido –, comprei um cachimbo para me irmanar aos deuses da filosofia, da intelectualidade, do saber desmesurado. Mas o meu mundo ainda não era esse. As ideias voavam, etéreas, sem que em mim 178 houvesse carne que as assimilasse. O meu mundo era o da música. O da música “pop”, aquela que foi música para mim antes de todas as outras. O fascínio que em mim causava a dissonância, os sons difíceis, metálicos, percussores. Era como se estivesse em avanço em relação aos outros, aos da minha idade. A sensação de ter passado uma fronteira qualquer. Visitando um país estranho e longínquo. E, por isso, misterioso e sedutor. Mas também a consciência – não sei se era bem consciência ou apenas um sentir embrionário – de que a verdadeira arte tinha que necessariamente ser difícil. Porque só isso a tornaria especial e diferenciada em relação à outra. E depois, de repente, a beleza da harmonia, que nos dava a certeza de termos feito bem em esperar. De aquele ser mesmo o mundo que procurávamos. O som “progressivo”, ou o “rock progressivo”, já não me lembro. E o orgulho em conhecer os nomes, os percursos, as manias e as excentricidades, o orgulho ainda maior de conhecer os nomes dos músicos mais sombrios, tenebrosos de génio e de inverosímil. Aqueles com que só os iniciados conviviam. Ir à Alemanha, pela primeira vez na 179 vida, e procurar, como os nativos, os discos dos Amon Duul. Ou dos Can. O limite ao alcance das mãos de uma ainda criança, no entanto já tão longe do seu país natal. Mas éramos adolescentes, não tínhamos país, morávamos no mundo global da nossa imaginação. No mundo total, o mundo das guitarras e da liberdade. A vida estava toda ainda para vir. Uma vida grandiosa, mas, sobretudo, uma vida muito sentida. Negação da superficialidade, do efémero. Uma vontade muito grande de sermos. De vivermos uma vida autêntica. E única. Éramos três ou quatro amigos e amávamos a música. E o saber da música. Cada um gostava dos seus grupos, dos seus discos específicos. Estávamos também a aprender a nossa individualidade. À procura de sermos homens, amámos a elevação espiritual do saber como amámos o sonho de mudar o mundo. Demos tudo. Pelo amor às causas, aos ideais. Ao mundo à nossa volta. Éramos pequenos mas éramos grandes. Tínhamos nas nossas mãos a vida e os sonhos do futuro. Individualidade, sonho, deleite espiritual, liberdade. Éramos nós próprios o centro do plano 180 interpretativo que procuro hoje. Porventura estive mais perto do segredo nesse tempo. Todos esses conceitos, e mais a inocência e a verdade que disse serem próprias do saber. Procurávamos uma nova humanidade, um futuro feito à medida de quem queria tudo o que era possível esperar dos deuses. Com a música como bandeira da modernidade dos tempos. E enquanto os outros da nossa idade usavam a música mais melódica para dançar com as raparigas, fazendo justiça à sua condição de adolescentes iniciados às seduções do amor e da beleza do corpo das mulheres, nós descobríamos a música mais complexa e mais sublime, na invenção de um mundo novo que se sobrepunha à mesquinhez do nosso mundo vivido, para fazermos as revoluções onde espalhávamos o amor pelos homens e a beleza dos ideais da liberdade. Havia um termo na altura, lembro-me agora, que era “psicadélico”. Música feita com as drogas alucinogénias que recusávamos. A nossa música, embora também de experiencialismo sonoro, era de uma outra dimensão. Dizíamos que a nossa era música “de vanguarda”, para estarmos mais à frente no tempo. Já sentados, 181 instalados, no mundo de futuro que nos esperava. A nossa visão cultural era, toda ela, construída em ruptura com um passado que nos havia crucificado. Passado de sufoco e de prisão, tinha-nos tirado a possibilidade de viver uma vida baseada no prazer e na alegria. Uma vida confinada ao mundo das ideias, obrigados a arriscar tudo o que nos era possível com a nossa idade. Obrigados a arriscar o que tínhamos de mais precioso: o futuro. O medo de sermos apanhados, de ser presos, de ir para a guerra. De perder tudo. Fomos obrigados a um heroísmo de homens, quando precisávamos do juvenil afago do amor. Fomos empurrados para a necessidade de dar tudo de nós, quando era a vez de a vida ser generosa connosco, após quase duas décadas de submissão à escola, à família, a um mundo exterior cujo peso nos vergava e oprimia. Avançámos com o peito aberto na direcção da fúria das espingardas, quando era idade para outros peitos, e outras armas. E tanto que ignorávamos a música antiga – meu Bach, como te deves ter rido de mim. Às vezes havia pianos disfarçados que vinham 182 desses tempos antigos e nós não sabíamos. O nosso presente já havia sido o futuro de outros. E era sempre a música a trazer essa notícia de que havia algo que justificava a paixão dos homens. A música era, para nós, a maior dessas paixões. Era música com letra, fascínio de quem não sabia que existia a música absoluta. E não conhecia o doce aconchego da poesia. As ideias, as mensagens, ajudavam-nos a construir o homem do futuro. Tínhamos esse sonho altruísta. Oferecíamos a nossa vida, se preciso fosse, com um desprendimento que só era possível pelo facto de a nossa vida, em bom rigor, ainda não existir. Era a oferecê-la que nós a íamos, a pouco e pouco, fazendo nascer. A cultura. O sonho da cultura. O saber. A Filosofia. Pensar o mundo. A música. Sentir o mundo. Amar o mundo. Amar os homens. A essência da vida. Foi este o amor do início da minha adolescência. Quando Amália era apenas uma amiga quase irmã. Era o amor pelo mundo que nos rodeia, por contraponto ao amor sexual. Não é bem isso, era um sentimento em oposição ao amor dirigido. 183 Porque há o amor dirigido, concreto, por uma mulher, por um filho, por um livro, por uma profissão. E depois há o amor abstracto, o amor pelos homens no seu todo, mas também pelas plantas e pela Natureza. Pelo mar. É um amor abstracto, absoluto. Era este último que me preenchia na adolescência, como é o que me preenche agora. É esse amor que nos traz uma espécie de paz interior, uma sensação de serenidade, assim como a consciência de estarmos a ser altruístas – e não egoístas, como no caso do amor concreto –, com vista a deixar a nossa marca para sempre. O nosso amor abstracto é a fonte da nossa dedicação ao bem comum e, consequentemente, a origem do rasto de esperança que deixamos. Como acontecia naquele texto, que eu tanto gostava de declamar, tentando fazê-lo com força, para compensar a voz que sempre me tremia, e tantas vezes me falhava. Chegava à boca de cena com umas vestes compridas, cinzentas, e um enorme bordão, qual Moisés a anunciar o futuro radioso da Humanidade. Era então que pedia tudo à voz e aos meus nervos sempre frágeis nestes momentos – É possível sorrirmos Ter nas pontas dos dedos a angústia dos homens E olhar E olhava para toda a assistência, em pausa, antes de terminar - É possível olharmos. O amor abstracto. O amor total. Anunciador da esperança dos homens. Esperança renascida, agora, com a minha descoberta do saber, de facto, um conceito, uma palavra, infinitamente mais inteligente do que a essência. 184 Projectemos uma aplicação concreta desta minha teoria, tal como a imaginei na altura. Suponhamos que ela era posta em prática neste momento. Quais seriam, num contexto assim, as suas vantagens relativamente à teoria da essência ou, mesmo, à teoria marxista? Veremos que, de facto, a teoria do saber é muito mais inteligente. Primeiro, porque ninguém tem que decidir nada. Não tem que existir uma autoridade por detrás, com todos os poderes, para obrigar os ricos a dar aos pobres ou para impedir que se fabrique mais do que o essencial. Foi assim que o marxismo sempre degenerou em opressão duradoura. A necessidade de existir uma entidade reguladora transforma os líderes de uma revolução em ditadores que nunca mais quererão abandonar o poder e os privilégios. No caso da minha teoria, não. Os mais poderosos serão os mais sábios, e só ficarão no poder enquanto não houver um maior ou mais adaptado tipo de conhecimento. Cada um pode decidir por si o saber a conquistar, ou a teorização do mundo a inventar, em vez de estar dependente de outros para poder descobrir a essência que lhe cabe. Segundo, porque tem, como eu queria, uma valorização pela positiva. Não corresponde a algo que nós sonhamos não ter, mas sim um inesgotável, um ilimitado a adquirir. Esse inesgotável permite um sonho que perdurará para sempre. A sociedade não evoluirá para uma situação parada, estagnada, como seria o caso do comunismo, mas para uma tendência eterna, para um limite infinito de perfeição e de conhecimento total. Terceiro, nenhuma ideia seria alguma vez tão distante das do Marx, como esta. É por essa razão que a palavra se aplica tanto ao meu plano maluco, plano esse que foi criado de forma a opor-se totalmente à teoria marxista. Finalmente, e acima de tudo, o saber não é determinista para o futuro. Quer isso dizer que, neste caso, todo o futuro de um homem depende de si próprio. Não precisa 185 de qualquer “sonho americano”, não precisa de ganhar a lotaria, não precisa sequer de ter sorte. Nem precisa de viver debaixo de uma ditadura, como no caso do Marx, para que o seu sonho seja real. O homem quebrado perante a desigualdade material que chega e diz “quero viver como um rico” é completamente diferente do homem que, perante a desigualdade espiritual e de saber, diz “quero saber, quero ser um sábio”. Só depende dele. Não tem barreiras que não sejam as da sua vontade de vingar na vida. Assim, a minha teoria corresponde à vitória absoluta da ideia de liberdade. Em resumo, posso dizer que o saber, sim, é esse algo empolgante que apela ao sonho, a algo que nos transcende e nos motiva para além de nós. E mais ainda. Porque está ao nosso alcance. Porque sabemos de antemão que o vamos conseguir. E tende para um limite, ou seja, é um caminho de aperfeiçoamento em que o amanhã será sempre melhor do que o hoje. O que significa que há sempre estímulo para progredir. A minha filosofia não iria, assim, pedir aos homens que confiassem cegamente em mim, como fez o Marx: tomem lá a ditadura e aguentem; e confiem em mim que o vosso amanhã será radioso. Se esta ideia era “um sonho de beleza e de fé” no amanhã, a minha sê-lo-ia muito mais. Porque os homens não precisariam de acreditar em mim. Só precisariam de acreditar em si próprios. Mas há ainda mais: Marx prometeu ao homem ser mais feliz. Embora sem razões aparentes para isso, a não ser o ser mais rico, ou menos pobre. Mais concretamente, ser tão pobre como todos os outros. Ora, o que eu propunha ao homem era ser melhor. O que é mais grandioso. E, se calhar, ser mais feliz. Mas ser mais feliz por ser melhor. À custa do seu esforço. À custa do seu próprio triunfo e não das decisões dos políticos ou dos dirigentes. Algo que conseguiu conquistar, em vez de o receber de bandeja. 186 Tive vontade de chamar o tio e explicar-lhe que o saber seria, daqui em diante, toda a fonte de desigualdade social. E toda a fonte de poder. Tive vontade – Tio, vem cá! Vem ver que já sei os nomes de todos os dinossauros! E o tio sentou-se na borda da minha cama – Já são horas de dormir. Eu estava excitado, tinha o saber todo de um mundo desaparecido. Não queria dormir. Tinha sido um esforço enorme, não era altura de dormir – Tio, conta-me uma história! Mas uma história de homens verdadeiros. O Tio Saúl dizia que eu não tinha idade para histórias verdadeiras e queria sempre ir buscar uns livros antigos de contos para crianças. Mas eu teimava sempre – Uma história de homens verdadeiros. E o tio contava-me histórias de homens corajosos que combatiam os poderosos que maltratavam as pessoas humildes. Contava-me histórias de coragem e opressão. No entanto, nessa altura em que me enchia de certezas em relação à progressão da minha filosofia do século XXI, havia uma dúvida que me perturbava profundamente: era este o meu segredo antigo? Era este o segredo do mar? Aquele que imaginara estar na água, na pureza essencial com que se criou a vida? O tio Saúl tão sério. Um segredo que estava em mim e que perdi? Não, não era. Não era esta a palavra que procurava. Ou seja, era. Achei que teria sido certamente o tio Saúl que não percebeu. Ou o outro padre que se enganou. O saber estava certo. Era a palavra certa. 187 O saber tinha que ser a única fonte de poder dos homens. Um poder legitimado pelo respeito dos outros e não pelo medo. Não mais ricos e pobres, ou senhores e escravos. Mas antes sábios e aprendizes. Mundo onde o aceder ao poder seria só função do esforço e do desejo de cada um. Sábios. Pessoas que, mais do que o conhecimento, conseguiriam compreender o seu sentido e a sua importância para o destino dos homens. Um mundo de sábios. Homens capazes de transformar o mundo e salvar a Humanidade. Naquela noite, o tio Saúl perguntou-me se eu já tinha ouvido falar do Romeu e da Julieta. Era uma história inventada por um inglês há muitos anos – Tio, conta-me uma história de homens verdadeiros. Afinal, não era a história do inglês que ele queria contar, mas uma outra, parecida e, tanto quanto sei, verídica. – Tudo se passou com um rapaz e uma rapariga de uma terra que eu conheço. O rapaz era muito pobre e a rapariga muito rica, mas apaixonaram-se e queriam casar. Só que o pai dela não deixou por ele ser pobre. E, como era um homem muito poderoso, conseguiu mandar o rapaz para a guerra, para um sítio muito perigoso e ele morreu. Passados uns dias, a rapariga morreu também. De desgosto. As histórias do tio Saúl, as histórias sobre homens verdadeiros, eram sempre muito curtas. Hoje, penso que ele o fazia para me poupar pormenores ainda mais dolorosos, ou que me excitassem mais a imaginação. As histórias não eram, evidentemente, para a minha idade. Ou, então, queria evitar que essas conversas me fizessem nascer ainda mais perguntas – Tio, como é que se morre de desgosto? 188 – Foi um desgosto de amor. E o amor vem do coração. Se calhar, foi o coração que parou. Ela não queria mais viver sem o seu amor, sem o rapaz. E o coração fez-lhe a vontade e parou. Era, para mim, inverosímil morrer-se amor. A bem dizer, com aquela idade, não fazia ideia do que era o amor. E perguntei. Mas o tio Saúl já não falou mais – São horas de dormir. Havia de mo explicar, tempos mais tarde, quando eu comecei a sentir aquela maneira de estar diferente com a Amália. Aquela fixação, aquela obsessão. Como quando Jean olhou para Hélène e toda a gente desapareceu à volta deles. O não haver mais ninguém. O mundo parado. – Ninguém mais conta, para mim. Explicava-me o Manuel, quando, finalmente, falámos com mais calma sobre a Maria. Ele, com aquela cara cómica, a fazer muitos gestos para os outros não perceberem. Mas eu queria mudar o curso da vida naquela prisão e insisti com ele para contarmos aos outros. Era muito importante para todos nós que o Manuel fosse visto de outra maneira. – Não contas a do peixe-golfinho… Sim, podíamos não contar tudo, mas já era tempo de o Manuel deixar de ser visto como um alucinado e um inconsequente. Eu não iria permitir mais farsas. Mas o Manuel queria saber dela, e não dos outros: – E ela, também só pensa em mim? Sim, Manuel, ela amava-te. E era justamente isso que queria contar aos outros. Para eles saberem. Para o conhecerem 189 melhor. Para terem uma opinião mais verdadeira, mais fundamentada. – Linda? Rui estava incrédulo. E o meu objectivo era ser o mais entusiasta possível. – Sim, linda de morrer. E loucamente apaixonada pelo Manuel. E desejosa que ele saia para se juntar a ele. – Como é que uma mulher linda pode apaixonar-se por este “presidiástico”? E eu pensei: é o amor, Rui, é o amor. E Gonçalo, que cada vez via mais o Manuel com outros olhos também, decidiu intervir contra Rui, embora da pior maneira – Ninguém tem culpa que tu não saibas o que é o amor. Só conheces essas galdérias das tuas amigas que vão para a cama com todos! Perante o nosso espanto, Rui atirou-se a Gonçalo, pronto a matá-lo com todas as suas forças, mas Gonçalo empurrouo e puxou de uma arma de raios paralisantes – penso que seriam descargas eléctricas – que deixaram Rui inanimado, estendido no chão. Manuel não se conseguia mexer, tive que ser eu a tomar a iniciativa de agarrar Rui para ver se lhe tinha acontecido alguma coisa. Mas não, estava só desmaiado. Rui tinha um segredo, estava prestes a revelá-lo. Todos nós temos coisas escondidas, que muitas vezes contrariam aquilo que queremos ser. Pensamos uma linha de rumo, um futuro, para a nossa vida, mas nem sempre vivemos confortavelmente com essas projecções. Há sempre um outro que vive dentro de nós. Um outro, nosso irmão, que tudo partilha connosco e que se nos não dá a conhecer. Um outro muito diferente daquilo que queremos ser. E o mais 190 estranho é que, na maior parte das situações, e apesar da nossa luta fratricida, não o conseguimos derrotar. Quando Rui recuperou a consciência, tentei dissuadir Gonçalo de o meter na solitária, o que não foi fácil, dada a sua irritação, aliás, algo justificada. Rui tinha, de novo, os olhos repletos de lágrimas. – Qual é o teu segredo, Rui? Rui fechava os olhos e abanava com a cabeça, dizia que não em resposta à pergunta carinhosa de Manuel. Rui tinha, de facto, um segredo terrível, haveria de o contar um pouco mais tarde. Também ele era vítima do amor concreto e sem sentido. Do amor absurdo. Não era uma qualquer mulher revolucionária que ele amava, nem tão-pouco a coerência em relação aos seus ideais parecia ser, agora, a coisa mais importante da sua vida. – Vou abandonar as minhas actividades revolucionárias. Já só espero o momento de sair da prisão e voltar a vê-la. Não vou arriscar a ficar preso outra vez. Rui explicou que ela não o podia visitar porque o partido não autorizava, não fosse ela dizer coisas inoportunas durante a hora da visita, com os guardas todos a ouvir. O partido não tinha confiança nela e tinha medo que ela soubesse de mais. E ela sabia. Porque Rui tinha toda a confiança nela. Deixámos Rui por momentos sozinho, a tentar organizar a sua própria cabeça, a limpar a sua memória de todo o lixo que tinha acumulado durante anos, sempre mentindo para tentar conciliar o seu eu com as exigências, por vezes absurdas, ditadas pelos seus ideais. – Eu já conto, eu já conto. E limpava as lágrimas, e tentava acalmar-se, perante um Manuel que lhe fazia festas na cabeça e lhe repetia o quão 191 “broástico” era o amor. Com as pernas estendidas no chão, ao lado de um Gonçalo já com tudo perdoado, e mesmo evidenciando alguma ternura, Rui olhava para nós com o ar de quem era a pessoa mais infeliz do mundo. Ao mesmo tempo, iria aliviar a tensão que os seus conflitos internos provocavam há já muitos anos. Iria, finalmente, libertar-se da sua dilaceração interna. – Quando sair, a única coisa que farei pela causa é escrever livros. Ensaios sobre questões filosóficas e ideológicas que tenham a ver com a minha maneira de pensar. Luta armada, nunca mais. E vou amá-la para sempre. Ela era a sua sócia da galeria – contou por fim –, a que gostava da arte abstracta, a arte dos fúteis. E a sorte dela era que o pai era muito rico e muito poderoso, por isso nunca a aborreceram por aceitar quadros que eram donativos encobertos para o partido de Rui. Que ela nunca teve nada a ver com a causa, achava aqueles tipos uns tontos. Mas amava Rui. E foi por isso também que o pai dela não descansou enquanto Rui não foi preso. Para ver se ela se esquecia dele. Mas isso, Rui sabia que nunca iria acontecer. Tanto um como o outro prefeririam morrer. Era uma bela história de amor, como a história que o tio Saúl contara há tantos anos. O amor vencia as barreiras todas que se colocavam à sua frente: as barreiras políticas, as financeiras, a distância, tudo. A cabeça não resistia ao coração. Mas o que mais me perturbou foi a visão de um Rui agora profundamente humano. Um Rui que mostrava o melhor de si. Um Rui autêntico, não escondido. Que, por entre lágrimas, revelava agora um sofrimento todo ele em grandeza. Porque não era um sofrimento de um homem perante um determinado acontecimento, mas sim o sofrimento do 192 Homem perante o que o excede e é de mais para ele. Porque não era um sofrimento pequeno, moldado do pontual e do conjuntural. Não. Era um sofrimento total. Que remetia para a totalidade do sentir, para a totalidade do ser. Rui mostrava, de uma forma expressiva, até que ponto o amor, oriundo de algo que podíamos pensar ser uma mistura do coração e da alma, era aquilo que, de forma mais perfeita, podia representar o melhor do ser humano. E eu, com uma comoção profunda, lembrando os jovens do tio Saúl que morreram por amor, senti algo que não sei bem descrever. Uma espécie de abanão, de abalo profundo em mim. Como se existisse um terramoto e a terra abrisse sob os meus pés uma fenda a toda a largura do horizonte. Como se uma ferida impossível de sarar. 193 194 VI Nunca teria imaginado que eram seres tão frágeis. Vieram de longe e do desconhecido, utilizando tecnologia e saberes que ignoramos, para se renderem aos poderes do nosso humanismo terreno. Um astrofísico teria ficado abismado com as suas revelações sobre as rápidas viagens interestelares e as condicionantes do mundo físico que permitem a sua quase imortalidade. Era calmamente que se decidiam revelar as distinções entre as alterações de dimensão longitudinal e transversal, como se fosse a coisa mais evidente do mundo, enquanto também explicavam a decisão, para nós agora mais do que lógica, de circularem sempre por debaixo de água, a elevada profundidade – coitados dos cientistas que gastam fortunas e tempo a explorar os céus (para chegarem ao nosso planeta não usaram os céus, mas a quebra de dimensão longitudinal que já explicarei). Usaram esse corte de dimensão longitudinal para mergulhar num ponto isolado do oceano, sendo virtualmente impossível reconhecer o seu movimento nos céus. Depois, na água, as suas capacidades eram mais facilitadas, já várias gerações – se assim lhes podemos chamar – de tlédios, pois foi assim que os baptizei, nos visitaram antes destes. Ao que parece, gostam do nosso planeta. Por razões que não imaginaríamos. Mas o que mais me impressionou inicialmente – já que quero fazer uma descrição o mais pormenorizada possível dentro do pacto de silêncio que prometemos – foi a sua capacidade de comunicação por telepatia. Conseguiam enviar, sem 195 dúvida para o nosso cérebro, imagens, cores, como se um filme a três dimensões, até chegavam a transmitir a sensação de quente ou de frio, talvez pela riqueza das imagens. Um filme a três dimensões, sem dúvida, mas um filme mudo. Tudo isto porque não tinham linguagem, não falavam. E ainda bem, porque senão não os perceberíamos, embora tivessem uma capacidade brutal de camuflagem. Tal como eram capazes de alterar a forma do corpo, também seria certamente possível adaptarem-se a uma linguagem desconhecida. Mas só se a tivessem. Ora, acontece que não tinham – explicaram mais tarde que a haviam perdido há muitos anos e só os antigos a conheceram, por isso, só estes tinham uma vaga memória do que se tratava. Eles só sabiam o significado da única palavra que sobrevivera. Acabámos por conhecê-la mais tarde. Quando chegaram, vindos do mar, fizeram emergir a sua nave, ou navio, trazendo uma luz que se espalhou em volta de toda a ilha. Chegaram ao nível da enseada, mas, depois, e como por milagre, elevaram a nave até à altura da rocha do farol, nave que ficou a pairar, imóvel, colada à rocha, mas em suspensão. A qualquer momento, poderiam descer a nave e desaparecer no mar. Mas, incrivelmente, a nave não se iria mexer. O primeiro visitante que saiu, percebemos depois que era uma espécie de chefe, ou coordenador, era incrivelmente parecido com um ser humano. Decerto, veio ver se não havia perigo. Era, aparentemente, um homem. E nu. Rui, Gonçalo e Manuel não queriam acreditar. Quando olharam para mim e me viram a regular alguns equipamentos de captação de áudio e de vídeo, começaram por achar estranho o meu “à-vontade” com toda aquela situação. Só depois, e voltando a olhar para mim repentinamente, é que perceberam a razão de ser da minha ida para aquela ilha, e a explicação para a existência de tão completo e sofisticado material – que, afinal, para pouco serviu. – Isto é broástico. 196 Manuel não tinha capacidade para dizer da emoção que o assaltava. Olhava esbugalhado para o aparente homem que saíra da nave, mal sonhando o choque ainda mais forte que iria ter mais tarde. Este homem, este visitante inicial, quis certificar-se da ausência de qualquer má intenção do nosso lado. O que era fácil para ele, justamente por causa da telepatia. Ele percebia as nossas interrogações, como, por exemplo, de onde tinham vindo, e assim surgia a imagem de uma galáxia e de um planeta lá no meio – percebemos mais tarde que aquele planeta era artificial, construído por eles próprios com materiais e depósitos de matérias-primas trazidas não sei donde –, um planeta também banhado pela luz de uma qualquer estrela, como o nosso Sol. Mas era um planeta escuro, faltava-lhes o nosso azul, havia uma ausência do mar e das planícies verdes. E das florestas impenetráveis. Havia uma sensação de ausência do fervilhar da vida. E também queríamos saber como eram os habitantes desse planeta, não sonhando a enorme surpresa que iríamos ter. Nós, humanos, não estaremos nunca preparados para a confrontação com algo de tão diferente, de tão absurdamente estranho. O tlédio continuou a inundar-nos de imagens e sensações diversas, mas Rui perguntou – não percebendo que de nada adiantava falar, bastava pensar –, de novo, como eram os habitantes desse planeta distante. Rui tinha a missão de catequizar os homens, porque não fazer ali uma pequena extensão galáctica? As imagens que nos chegaram davam a sensação de haver uma espécie de equivalência estranha entre os animais, as máquinas e aquilo a que nós chamaríamos seres humanos. Mas não eram de todo parecidos connosco, nem tão pouco com aquele tlédio agora ali camuflado. Cedo percebemos que aquela figura que nos surgia diante dos olhos era transformada, através de um mimetismo seguramente muito sofisticado, num exemplar quase perfeito da espécie 197 humana. Porque os residentes no planeta eram seres com uma mistura de animal, máquina e uma profusão quase infinita de formas mais ou menos parecidas connosco. Alguns eram bípedes, outros não, embora todos se deslocassem na horizontal, alguns mesmo com múltiplos membros ou com uma espécie de rodas, ou “lagartas”, como têm os tanques e alguns camiões. E o corpo era um misto daquilo a que chamaríamos ser humano e animal, como se aqueles seres fossem um puzzle erradamente construído, ou como se fossem o resultado de uma associação mal feita por parte de uma criança que não soubesse juntar as peças correctas de uma figura – como é o caso daqueles jogos para miúdos pequenos – e tivesse misturado as peças correspondentes a um animal, a um homem e a uma máquina. Por exemplo, corpo de homem, cabeça de animal e membros inferiores de máquina – de um carro, ou de um comboio. E à pergunta por nós imaginada do porquê ele ter aquele aspecto semelhante a nós, logo esclareceu que se podia adaptar às formas dos seres das outras galáxias, através da elaboração de moldes, que se transformariam em implantes a aplicar ao seu próprio corpo, tudo isto circulando nos nossos olhos, através da tal telepatia, como se estivessem de facto a construir um ser humano a partir de material desconhecido. Seria plástico? Silicone? Era um bocado estúpido, perante tamanha novidade e inverosimilhança, tentar perceber que tipo de material era. Se a Física era tão diferente da nossa, a Química não o devia ser menos. Para tudo parecer ainda mais inacreditável, o nosso visitante, a dada altura, reparou em qualquer coisa que não devia estar bem na superfície da nave e, para total espanto de todos, estendeu o braço direito na horizontal e dele levantou na vertical um punho “humano”. Do buraco resultante desse levantamento, fez sair uma ferramenta longa, parecida com o aço, com uma série de apetrechos na ponta, quase como se fosse um canivete suíço, e, criando a partir desses apetrechos uma espécie de chave inglesa, rodou e apertou 198 uma anilha – ou porca – que estava no topo direito da nave. Depois, recolheu aquela ferragem toda para dentro do braço, que permanecia horizontal, e baixou a mão como se fosse o portão de uma garagem a baixar. Mas o mais incrível, eu reparei, foi que o braço ficou de novo todo ligado, homogéneo, não se observando qualquer fissura que pudesse dar origem ao levantamento da mão. Era como se a abertura do pulso tivesse desaparecido e o tecido da pele tivesse unido de novo. – São máquinas disse Rui, muito desejoso de tirar conclusões definitivas. – São robots disse Gonçalo, tentando trazer maior sofisticação à conversa. Manuel, por sua vez, não dizia nada, a não ser um “isto é broástico” entre dentes, que não se cansava de repetir. Mas eu achei que não, e tentei explicar o que me parecia, com o visitante agora muito quieto a olhar para mim, percebendo tudo o que eu dizia, ou melhor, percebendo tudo aquilo em que eu pensava. E expliquei aos outros que deviam ser seres mistos, chamados seres biónicos. Ou uma espécie disso, porque aquilo a que chamávamos seres biónicos eram aqueles que combinavam componentes humanas com componentes materiais, ou tecnológicas. Mais exactamente, eram humanos com implantes tecnológicos – tipo componentes informáticas, chips, e por aí fora – e com implantes de tipo industrial, como aquele braço que tínhamos visto. A grande diferença em relação aos habitantes do planeta que havíamos visto era a componente animal, como, por exemplo, uma cabeça parecida com um lagarto. Teria uma função estética? Porque, de resto, era algo já habitual para nós, tantos eram os criadores de ficção científica que 199 já o tinham imaginado. E já tinha sido imaginado pela robótica. Mas Gonçalo não estava de acordo – Não sei, podem ser robots, pura e simplesmente. A assim não ser, como teria sido possível virem lá das galáxias distantes sem morrer? Galáxias que estão a milhares – ou milhões, não sei – de anos-luz de distância. Eu acho que são robots hiper-inteligentes com capacidade de construir o seu próprio corpo em função das necessidades que têm pela frente. Pensei que Gonçalo não tinha razão em relação aos robots. Mas em relação à capacidade de construírem o próprio corpo, já achei que ele estava no caminho certo. Tinha, aliás, ficado convencido de que a mostra muito diversificada de formas físicas que o tlédio tinha mostrado (animais, máquinas, etc.…) não eram exemplares de indivíduos diferentes, mas formas diferentes que cada indivíduo podia assumir, consoante as circunstâncias em que se encontrasse (por exemplo, cabeça de lagarto se estivesse numa zona com lagartos, ou membros inferiores em forma de barco se tivesse que ultrapassar um lago). O visitante não se mexia nem enviava qualquer mensagem durante a nossa troca de palavras. Tornara-se mero receptor. – E um robot conseguiria manter este diálogo connosco, independentemente da história da telepatia? Rui tinha esquecido a sua obsessão revolucionária e interrogava-se agora a respeito de uma outra realidade muito acima das pequenas e efémeras questões políticas dos humanos. Como elas pareciam mesquinhas agora, perante a enorme confrontação do homem com o não-homem. Aqueles seres, que por enquanto era só um, tinham reavivado a velha 200 questão da definição da humanidade. No nosso passado científico e cultural, toda a oposição tinha sido construída em torno da dicotomia entre o homem e o animal. Ou entre o homem e o macaco superior, para ser mais exacto. Inevitavelmente, surgia agora, com o desenvolvimento da tecnologia tinha mesmo que acabar por surgir de forma concreta – porque, teoricamente, já havia múltiplas reflexões neste domínio –, a dicotomia entre o homem e a máquina. Ou entre o homem e a inteligência artificial, para ser, de novo, mais exacto. Onde acabaria a animalidade, ou a artificialidade dos robots quase perfeitos, para começar a humanidade? Era essa a grande questão agora. E Rui não tinha resposta para ela. Estranhamente, o nosso tlédio também parecia estar embatucado. Não emitia o mínimo sinal – Fundiu. Talvez Gonçalo estivesse perto da verdade, o que supunha uma clara inclinação para a variante artificial, não humana, daquela criatura. Mas o visitante virou as costas e dirigiu-se para o topo da nave, mandando avançar alguém. Lá deve ter achado que éramos boas pessoas e que os restantes tlédios não corriam perigo. Ou, se calhar, já não tinha capacidade para entender os nossos raciocínios terráqueos. Estávamos todos um pouco nervosos, tensos, mas foi o Manuel o primeiro a reagir, lançando um grito de aflição quando viu a sua apaixonada, a tal Maria que conheci na prisão, a sair calmamente da nave. A minha primeira reacção, perante a imprevisibilidade das atitudes do Manuel, foi agarrá-lo. Também ele teve a mesma ideia que eu: seria ela um deles? Estaria ela prisioneira? Era absolutamente necessário estarmos quietos 201 e esperar o desenrolar dos acontecimentos. Senão, iria dar asneira. Embora não tivéssemos qualquer hipótese de nos defendermos daquela gente, caso estivessem com intenções hostis. Mas não. Isso era impossível. Só nos filmes americanos de série B. Maria também vinha nua. E o seu peito, ostensivamente visível, deixou-nos a todos sem pinga de sangue: Maria era uma mulher impossivelmente bela, e o aparecer assim, nua, dava ainda maior ênfase ao insólito do momento. Enquanto ela nos olhava, sem dizer nada, lembrei-me de um dado importantíssimo: ela falava. Falou comigo na prisão. Ora, estes tlédios não tinham linguagem. Ou já a tinham perdido. Por isso, ela não podia ser um deles. Era certamente humana. E, portanto, devia estar prisioneira. E, assim pensando, agarrei Manuel com mais força. Mas, por outro lado, ela tinha-me parecido tão estranha da outra vez. A pele tão fria, a voz aos sacões. E uma conversa, já não me lembrando dos pormenores, que me deixou as maiores das dúvidas. Apesar de o estar a agarrar, o amor foi mais forte do que tudo, e Manuel correu para a abraçar. O Manuel devia saber. Ele tinha dentro dele a maior das verdades: a da autenticidade do sentir, da inocência. E assim estiveram longos minutos, abraçados, enquanto eu e os outros nos interrogávamos sobre o que fazer. A dada altura, Manuel despiu-se e juntou-se a ela de novo, agravando o insólito da situação que nos era dado assistir. O tlédio olhou para os dois com uma expressão que parecia um sorriso. Um sorriso que poderia esconder uma disfarçada ternura. Mas foi Maria que, entretanto, desfez o impasse. – Sou humana. E vivo com estes seres há cerca de um ano. É desde essa altura, mais ou menos, que eles 202 estão entre nós. Procuraram-me por eu ter sempre tido um enorme fascínio pela possibilidade de existência de vida inteligente fora da Terra. Fiz, aliás, estudos ligados à astrofísica, mas não foi por isso que eles me escolheram. Foi por saberem – souberam-no por telepatia, sem dúvida – que eu gostaria de ir viver para um outro mundo. Como o deles, por exemplo. Eles souberam que eu queria partir. Assim, eu não sou como eles, apenas me introduziram um chip para aumento das capacidades cerebrais – que inclui a aprendizagem de uma série de coisas, a começar pela telepatia e por certas normas relativas às regras de vida em comum da sociedade em que vivem –, e me alteraram a composição da pele, sobrepondo-lhe uma camada de um produto que desconheço, mas que me protege do frio, da dor, dos materiais cortantes ou perfurantes, e coisas assim. De resto, sou totalmente humana. O que não acontece com eles. Mas já explicarei adiante. O que interessa é que eu posso comunicar melhor convosco, através da nossa linguagem comum e através das minhas alterações cerebrais, que também facilitam a minha comunicação com eles. Não é que eles não conseguissem a comunicação directa convosco. Mas iria certamente ser difícil traduzir algumas interrogações que eles têm e que seriam muito difíceis de transmitir sem a linguagem. Também já explicarei porquê. Por outro lado, queria dizer-vos que amo o Manuel. E é natural eu amar o Manuel, apesar de ver nas vossas caras muita admiração. O Manuel é um grande homem. Um grande ser humano. Por muitos motivos diferentes. Curiosamente, estes meus novos amigos também ficaram admirados e seduzidos pelas descrições que fiz dele. Consideraram, e eu estou de acordo com eles, 203 que o Manuel é um ser único. Por maioria de razão para eles, mas penso que também para nós, humanos. Porque representa aquilo que o homem tem de mais autêntico: a primazia do sentir. Mas não estou a falar de um sentir físico, refiro-me antes a um sentir com alma. Um sentir profundo, que envolve uma consciência de si. Um sentir livre. O sentir que não está subjugado às normas cognitivas da moral, da tradição, das convenções. Esse homem que eles vêem no Manuel é um homem totalmente oposto do homem que existe no seu mundo. Do nosso ponto de vista, temos tendência para associar a humanidade à inteligência, ao pensar. Associando, por sua vez, o sentir aos animais. Vemos frequentemente os homens como sendo aqueles seres que conseguiram ultrapassar a dependência do sentir – que muitas vezes é colado ao instinto. Mas, como disse atrás, o sentir de que falo, e que este povo tanto procura, é um outro sentir. Refiro-me ao sentir que nos fez homens quando, há muitos milhares de anos, inventámos a transcendência. Através da arte. E não por via da invenção dos deuses, como tantos anos se pensou. Foi com esse sentir outro, foi com o surgimento do nosso outro mundo, que abandonámos de vez a animalidade e nos instalámos na terra da humanidade. Por outro lado, há o problema da nudez. A obsessão do Manuel em relação a este modo de estar não é senão a prova evidente da sua total autenticidade. Contrariamente à maior parte dos seres humanos, o Manuel é totalmente verdadeiro, não tem nada a esconder. Como imaginam, perante as excepcionais capacidades de telepatia destes seres, não é possível ser-se fingido e, simultaneamente, viver no seu seio. Quando ela disse seio, não pude deixar de, uma vez mais, e porque ela não o escondia, olhar para o seu peito. Senti-me 204 um pouco envergonhado perante o Manuel, mas depressa realizei que ele não quereria nunca saber de tal pequenez. Ele estava acima de tudo isso. O seu interesse por Maria era de uma elevação suprema, era de puro amor. Enquanto Maria falava, eu estava meio ausente no território longínquo do meu desejo perante a sua beleza total. – Este homem fascina de forma absoluta os nossos visitantes. Porque ele tem tudo o que procuram e lhes falta. Eles não lhe chamarão homem, mas também não lhe conseguem chamar nada. Por isso, podemos continuar a falar de humanidade mesmo no que lhes diz respeito. Isto para vos dizer que, por todas estas razões, pensamos levar o Manuel connosco, se ele quiser, pois vamos partir muito em breve. O Manuel abriu os braços de alegria – Eu não vos disse que ela me amava, seus parvoásticos? Eu não vos disse que ela era a mulher mais bonita e mais broástica do mundo? Em contrapartida, nem aquele momento histórico tirava a Gonçalo a sua responsabilidade de guarda – Está tudo doido, não vou permitir que levem o Manuel, ele está à minha guarda. Nem mesmo que ele queira partir. Mas Maria tinha argumentos que falavam de algo superior às capacidades humanas – Você não pode fazer nada. Qualquer pequeno laser paralisante impedi-lo-á de mexer um dedo sequer. Por outro lado, ninguém conhece o Manuel. Não tem família, nem quaisquer próximos. Aos da outra prisão, pode dizer que ele desapareceu de noite, que se atirou ao mar, que foi comido pelos tubarões, o que você quiser. 205 Não tente contar tudo o que viu aqui porque ninguém acreditará em si. A não ser que nós, antes de partir, lhe façamos o favor de lhe ministrar um soro de amnésia correspondente às horas em que aqui estivemos. Prefere assim? Prefere não saber? Gonçalo engoliu em seco. Como era possível preferir não saber? Não, era absolutamente fundamental ficar com aquele momento gravado para a vida inteira. A visão que tinha do mundo e dos homens teria que ser revista à luz daquela experiência única na História da Humanidade. Ele tinha mas era que agradecer o enorme privilégio de ter estado presente. Depois de uma pequena pausa, Maria como que arrumou o assunto – Esteja quieto, não vale a pena. E logo a seguir – Manuel, queres vir connosco? Como é que ele não haveria de querer ir? Com aquela mulher, e para uma aventura daquelas, até eu queria. Maria era linda, aquele corpo, ela já devia ser assim antes deles a encontrarem. Como é que uma mulher daquelas se apaixona por um sujeito como o Manuel? Qual grande homem, qual carapuça. Qual autenticidade. Eu achava-me infinitamente mais interessante, por via da minha inteligência, dos meus conhecimentos, do projecto enorme de vir a ser eu a condicionar o mundo no século XXI. Ela devia escolher-me a mim. Como a Daniela, que me escolheu um dia, não sabendo que eu não podia escolher ninguém. Daniela não sabia que eu não era livre no amor. Para sempre amarrado. Mesmo agora o sonhar com a Maria era pura fantasia. Era o seu corpo que 206 eu admirava, assim como reconheço a inveja por o Manuel a ter. Mas eu não a queria. Apenas queria o meu sonho de beleza. Daniela também era linda. No entanto, eu não a poderia nunca amar. Havia um amor todo ele submisso à pressão do desejo. Mas não me era possível querer apenas um corpo belo de mulher. Queria algo mais, e era esse algo que tornava esse corpo único. E esse algo era o outro amor. O que estava para lá do concreto de um corpo, eventualmente mesmo para além do concreto da beleza. O amor abstracto, como a arte que ensinei ao Manuel. O amor absoluto. De maneira que, cada vez que havia frases belas para declamar, ou textos que se prestavam à sobreposição em relação à nossa vida comum, sonhada por ela mas inexistente na realidade, Daniela fazia questão de mostrar que não se tratava apenas de uma mera fala abstracta, mas que se estava a dirigir mesmo a mim. De uma vez, a peça prestava-se muito à sua pressão – e ela tão bem conhecia os meus constrangimentos. Ela sabia quando é que eu sofria, e eu sabia quando é que ela ia começar a caminhar, com o olhar lânguido, na minha direcção – Não existires É um pormenor da nossa intimidade Depois, mais perto de mim - Não existires E pesares sobre o meu ombro. O texto anunciava a vitória da irrealidade sobre a realidade, como ela gostava que pudesse ser. E como eu gostaria também, se não tivesse o passado em suspenso, à espera do que não vinha. Um dia sonhei que Amália entrava pelo teatro dentro e, representando um texto, me anunciava que voltara – não posso contar agora – e um filho, um filho – não, 207 não posso contar. O tio Saúl também dizia que havia um seu companheiro antigo, que tinha sido morto pela polícia, que ele sentia perto de si, mesmo sabendo muito bem que já tinha morrido. Não, não posso contar agora a história do meu sonho – Tio, vem cá! Vem ver que já sei os nomes de todos os dinossauros! E o tio sentou-se na borda da minha cama – Já são horas de dormir. O tio Saúl dizia que, por vezes, ouvia o amigo morto a respirar ao seu lado. Mas foi Rui que repôs a profundidade da conversa, pondo fim ao meu curto intervalo de estupidez – Mas se eles não são homens, ou humanos, ou aquilo que nós achamos que significa ser humano, então o que são? São robots? Maria partiu para outra longa explicação, enquanto mais seres, parecidos com o primeiro – e elas parecidas com a Maria –, saíam lentamente da nave e assistiam à conversa, agora toda concentrada na fala de Maria – Não são humanos – continuemos a usar esse tipo de terminologia –, nem robots. Nem tão-pouco animais. São criaturas-mosaico, que começaram por ser humanas e foram progressivamente aplicando, sobretudo à medida que a idade avançava, múltiplos componentes no seu corpo. Ou seja, implantes. Mas não implantes como nós temos quando transplantamos órgãos e colocamos um coração ou um rim humano. Não, os implantes deles são tecnológicos: são pequenos aparelhos mecânicos, às vezes eléctricos, e com uma espécie de pilhas que 208 não se descarregam. Assim, começaram a conseguir impedir o aparecimento de doenças, não apanham frio ou calor em excesso, não se cortam, não podem sofrer a perfuração de objectos, como as balas – lembrem-se do que vos disse a respeito do revestimento de pele que me colocaram –, tal como lhes é possível curar as doenças quando elas surgem, prolongando a sua longevidade, que hoje é quase uma imortalidade, mas isso é mais por outra razão que já explicarei. Com estes implantes, têm sempre a possibilidade de os reparar, ou mesmo substituir, quando se estragam. Ou quando se gastam. Mesmo o cérebro, como vos disse, também recebe implantes para reparar neurónios estragados e para aumentar a rapidez de raciocínio – podemos chamar-lhe computação, se quisermos. Entre outras razões, é essa longevidade que lhes permite viagens interestelares. Mas, para responder directamente à sua pergunta, faço-lhe uma outra: como é que classificaria um ser humano cujo coração é uma máquina e com um cérebro em grande medida dominado por um chip electrónico que está permanentemente em contacto com um computador central através de comunicação sem fios? – Não sei respondeu Rui, sincero e totalmente desorientado. – Pois é. É como eles. Também não sabem. Andam à procura da sua eventual humanidade. Por essa razão nos visitaram. E, por essa razão, querem a minha ajuda. E é ainda por essa razão que tanto querem aprender com o Manuel. Eles vivem perante a necessidade de uma interrogação metafísica, mas deparam-se, na minha opinião, com um 209 problema enorme: não têm linguagem. A única palavra que conhecem é esta. E Maria mostra-nos uns símbolos estranhos que eu tentei decifrar. Instintivamente, li o que, na nossa linguagem, mais me fez lembrar uma palavra completa – Tlédia. – Pode chamar-lhe isso ou outra coisa qualquer. Eles só sabem que é o nome que os mais velhos usam para designar o local onde todos vivem, penso que o seu planeta. Não sabem mais nada. Mas dizia eu que, não tendo linguagem, a comunicação deles é toda ela baseada em imagens, sons, cheiros. Ou seja, é concreta. Por outras palavras, penso que eles, juntamente com a linguagem, perderam a capacidade de abstracção. Não a capacidade de abstracção total, pois têm um grande desenvolvimento matemático, que lhes permite conceber, por exemplo, espaços a n dimensões – dez, vinte, trinta –, o que, para nós, é totalmente impossível. Em contrapartida, é-lhes totalmente ausente a capacidade de abstracção filosófica. Seriam totalmente incapazes de entender um conceito como o Absoluto. Mesmo a sua abstracção matemática tem uma certa dimensão vivencial, prática, concreta. Funcional. Em qualquer caso, é essencialmente lógica e cognitiva. É o metafísico, associado ao sensorial, que lhes falta. Usam sons para comunicar, mas a música é-lhes totalmente estranha. Estes seres não têm dois mundos. Vivem só no mundo daqui. Nem o espaço a n dimensões os ajuda a abrir a “Porta”. Pelo contrário, usam essa capacidade de percepção peculiar, esse entendimento multidimensional, para conseguir soluções vivenciais – concretas, portanto – impensáveis para nós. Era curioso o quanto Maria utilizava conceitos e ideias que me eram tão próximos. Senti estranheza em ter encontrado 210 uma mulher que parecia pensar como eu, falar como eu. E ia divagar no quanto desejava que ela me amasse a mim, quando me lembrei das suas elevadas capacidades telepáticas. E voltei a envergonhar-me dos meus pensamentos de há pouco sobre o seu peito, para o qual, apesar de tudo, voltei a olhar estarrecido. Mas Maria ignorava os meus pensamentos carnais e seguia o seu raciocínio. Imperturbável. – A primeira delas, e seguramente a mais importante, é a noção de dimensão transversal. Para perceberem bem o que isso significa, imaginem um vidro muito grande, a perder de vista. E imaginem que o conseguem atravessar. A partir daí, entram numa outra dimensão, como se entrassem numa outra vida. Uma dimensão paralela à nossa. Na qual começamos a viver, juntamente com outros seres, que aí habitam e não têm nada a ver com os seres da dimensão anterior. Podem ter formas completamente diferentes, hábitos diferentes, pode mesmo não existir forma humana nessa dimensão. Podem só existir animais. Pode mesmo não existir vida. Fazendo um parêntesis, é talvez por isso – ou seja, para copiar as formas existentes noutras dimensões – que os habitantes deste planeta têm por vezes formas mistas e tão heterogéneas, integrando por vezes elementos animais. Formas que vão alterando, à medida das suas necessidades. Mas, voltando ao que dizia, podemos partir e viver nessa outra dimensão o tempo que quisermos. E podemos, inclusivamente, partir dela para outras dimensões paralelas. No entanto, durante esse período, o tempo parou na dimensão de origem. Ou seja, quando voltamos ao ponto de partida, passando o tal vidro de novo, voltamos precisamente no segundo em que partimos. Se estiverem a falar com uma pessoa e ela 211 partir para a outra dimensão e lá andar séculos, não notarão a interrupção na conversa quando ela voltar. Quer dizer que, na dimensão inicial, a vida recomeça. Por isso, não são bem dimensões paralelas, há pouco disse mal. Se tiverem conhecimentos suficientes em Matemática perceberão, se eu disser que a segunda dimensão é ortogonal em relação à primeira. Tal significa perpendicular, como nos eixos cartesianos: única maneira de os eixos serem independentes. Assim, se se percorrer um caminho ao longo de um dos eixos, quer dizer, se houver variação, ou movimento, ao longo de um dos eixos, a nossa posição – chama-se coordenada – em relação ao outro não se altera. Então, é como se a vida fosse uma recta ... Entrava um avião pela boca de Rui, tal era o espanto perante aquela mulher colossal, já nem sonhava em vender-lhe revolução ... e com ela se cruzassem infinitas rectas perpendiculares, nas quais nos podemos mover até ao infinito – neste caso, até à eternidade – sem nos movermos, seja em termos geográficos seja em termos temporais, da nossa posição inicial. Aqui estamos a falar de rectas, mas, na realidade, não é bem disso que se trata, mas sim de planos. Nem planos, porque implicariam unicamente duas dimensões, mas sim espaços a n dimensões que são ortogonais, perpendiculares, a outros espaços a n dimensões. Existe, em relação a cada espaço, uma infinidade de espaços ortogonais. Assim, eu posso viver cinquenta anos na dimensão 2 e, quando voltar à dimensão 1, não perco nem um segundo. Passado algum tempo, posso voltar a partir, para uma dimensão 3, por exemplo. E posso mesmo, antes de voltar à dimensão 1, passar da dimensão 3 para a 4 e lá passar mais outros cinquenta anos. E assim sucessivamente. 212 Maria parou para respirar, Rui fechou a boca, mas percebi que tinha perdido o fio à meada há muito, e Gonçalo parecia não ouvir nada, ou fingir não ouvir nada. Manuel fazia festas a Maria, como que fechado em si, num autismo absoluto. E Maria retomou – Através destes saltos nas dimensões transversais, eles podem viver eternamente. Podem transitar permanentemente de dimensão em dimensão, que o tempo não passa. Eu, que estava mais ou menos a seguir o raciocínio, resolvi interromper – E a velocidade da luz, é ultrapassável? Maria sabia tudo – Não numa determinada dimensão. Mas, na prática, é. Devido a um outro caso que não referi ainda, que é a transposição longitudinal das dimensões. Suponha uma porta. E suponha que, passando essa porta, entra num espaço a quilómetros de distância. Abre a porta em França e quando a fecha do outro lado está na Austrália. Tem apenas que passar por um pequeno espaço escuro sem gravidade que tem uma espessura inferior à da porta. Este tipo de passagem existe dentro da mesma dimensão vivencial, por isso é uma transição de dimensão diferente da outra. É uma transição ao longo da dimensão, ou seja, longitudinal e não transversal. É uma transição que se mede em distância. E tal como pode ir de França à Austrália, também pode ir de uma galáxia a outra. Em fracções de segundo. Por isso a velocidade da luz é ultrapassável, embora não dentro do mesmo espaço dimensional, como já disse. Por outras 213 palavras, só é possível ultrapassá-la transpondo uma dimensão longitudinal. Quanto à transposição de uma dimensão transversal, o problema não se põe, pois transita-se para um outro espaço. Outra diferença entre as duas transposições, transversal e longitudinal, é o facto de a primeira depender da vontade – e da capacidade cognitiva – do indivíduo, enquanto a segunda depende de fissuras existentes no espaço, que não estão sempre presentes. É necessário aproveitar aquelas que existem. – E Deus? perguntei eu, já muito à frente de toda aquela dissertação científica que, no entanto, me impressionava profundamente. Era uma pergunta quase final, como quando uma história nos está a interessar muito e queremos saber logo como acaba. Maria vacilou. – Não sei. Eles não sabem. É um conceito que não entendem. Talvez o mais próximo que tenham é o dos antigos. Assim uma espécie de mito fundador das sociedades primitivas. Como disse há pouco, eles perderam a noção da abstracção. Não entendem Deus, como não entendem o Absoluto, que é o mesmo. De certa forma, andam à procura de uma libertação da sua condição. Algo que tem a ver, se calhar, com a necessidade da descoberta de um qualquer deus. – Mas eles são homens, ou robots? voltou Rui, que certamente queria saber se ainda havia hipótese de uma qualquer catequese multidimensional 214 – Ou seja, independentemente de a Maria dizer que eles são criaturas-mosaico, o que é que eles acham que são? – Não sabem. Todos eles começaram por ser humanos, lá à sua maneira. Mas depois, começaram a enxertar implantes e mais implantes e acabaram por condicionar fortemente o cérebro, que é hoje prodigioso de conhecimentos e de capacidade de realização de problemas, mas, ao mesmo tempo, condicionado por uma disciplina utilitária. Quer dizer que o cérebro foi alterado com uma programação toda ela virada para a funcionalidade e para a resolução prática de problemas concretos. Por outro lado, têm uma capacidade de adaptação ao meio envolvente muito grande. Um mimetismo total. Por isso, podem agora ter uma forma exterior e amanhã outra. Em grande medida, eles já não se conhecem a si próprios. São todos corporalmente iguais, distinguindose por características mentais e um número de código. O que significa que, quando se inicia o processo de telepatia, os seres trocam automaticamente números de código que os identificam. Independentemente dos corpos que assumem no momento. De facto, se nos limitarmos a uma análise fria em relação ao seu comportamento concreto, eles estarão hoje mais próximo dos robots. – Amam? Fazem sexo? – Fazem sexo, mas não sei se amam. Não consigo a telepatia nesses momentos mais privados. Não sei o que sentem nessas ocasiões. Mas será certamente um amor muito espiritual. E o sexo que fazem, parece-me que é mais por hábito, talvez perpetuando as ideias que perduram do tal mito fundador. Juntam-se por 215 afinidades intelectuais, na maior parte das vezes em função de resultados de softwares específicos que traçam o perfil da personalidade, ou, melhor dizendo, das características mentais ou cerebrais da pessoa ideal para se unirem. E não têm filhos. Quando alguém nasce, o que não é frequente – devido à elevada longevidade e aos limites impostos pelo controle demográfico –, é sempre através de clonagem. São sempre réplicas de alguém, se quiser. Portanto, e para voltar ao que dizia há pouco, eles procuram uma superação do seu estado de submissão em relação à máquina, às normas, ao saber. É por isso que tanto admiram o Manuel. A sua individualidade, a sua liberdade total. E, acima de tudo, a sua música. – E o seu saber? Não lhes dá individualidade? Não lhes dá liberdade e, ao mesmo tempo, poder? Era eu, também com dúvidas por esclarecer. Eu, mais o meu modelo, o meu plano, o meu saber, a minha filosofia, que andava ali à volta, a tentar furar. Se havia coisa que podíamos aprender com aqueles seres, era o resultado de tantos séculos de acumulação de saber. – O saber está muito dominado pelas máquinas. É precisamente por o saber se ter revelado a verdadeira fonte de poder que eles hoje se sentem dominados pelas máquinas, pelos computadores, que cada vez mais condicionam a sua vida. De certa forma, e como dizia há pouco, o saber enorme que existe está à disposição de todos, através de um servidor informático único. Eles recebem essa informação, permanentemente actualizada no computador central, através dos chips cerebrais que fazem actuar por comunicação sem fios. Por isso, já não há diferenciação entre eles. Todos recebem a mesma informação. Portanto, e infelizmente, ao acabar essa individualidade, acaba também uma boa parte da sua liberdade. 216 Assim, quanto à humanidade, acho que é um bocado inútil tentar defini-los. São como são. À nossa luz, não serão humanos, se não amam, se não têm metafísica, se não têm individualidade, se não têm arte. O que mais os impressiona no ser humano é a arte. Ou seja, aquilo que eu tentei descrever como sendo arte. Aliás, a dada altura, até pedimos a sua ajuda através de perguntas do Manuel… E olhou para mim. - Sim, está a perguntar-se quando é que isso foi… Não se lembra de o Manuel lhe fazer perguntas sobre o romance e a arte? - Lembro. - Essas interrogações foram por nós aproveitadas – e, em parte, por mim induzidas. Indignei-me - Mas, assim, estão a prejudicar a liberdade do Manuel! - Não. De outra forma, não aprenderíamos nada com ele. A ideia foi por mim induzida porque eu lhe falei nisso numa visita, não foi por indução telepática. Aliás, fique descansado: após a nossa partida, não lhe vai ser aplicado qualquer chip cerebral. Mas esqueça isso, o que eu queria explicar é o fascínio deles com a arte. Quando ouvem o Manuel tocar, ficam num estado de confusão total, parece que perdem a sua programação. – Mas eles já ouviram o Manuel tocar? Era informação de mais para mim. Tinha que interromper para introduzir algo de mais prosaico. Fazer uma espécie de corte para dar tempo à assimilação daquilo tudo. 217 – Quando vocês viam luzes no mar, era porque nós nos aproximávamos para o ouvir. Mas o Rui estava mais interessado na história do amor – A Maria dizia que eles não amam, mas se calhar amam de um modo diferente, amam à sua maneira, não podemos pensar que seres tão diferentes tenham uma maneira de agir semelhante a nós. – Pelo menos segundo o nosso entendimento, é difícil aceitar a ideia de amor. Porque não existe o amor absurdo. O amor abstracto. Na realidade deles, não seria possível a união do belo com o feio, do bom com o mau, do preguiçoso com o trabalhador, do religioso com o não religioso, e por aí fora. Isto, apesar de, no seu caso, toda esta heterogeneidade ser muito atenuada em função da programação informática dos seus cérebros. A dada altura, lembrei-me de uma pergunta óbvia: – Maria, você sabia da história do golfinho… – Claro que sabia, por isso fiquei assustada com a hipótese de o Manuel fugir nele. Não era isso que eu estava a planear. Ele poderia perder-se. Foi por essa razão que lhe pedi para me avisar da data se ele decidisse mesmo fugir. Os outros olharam para mim, interrogativos em relação a essa história de um golfinho, percebendo que eu sabia mais do que eles e, claro, que lhes tinha escondido muita coisa. Mas eu queria mais informação e, por isso, não me ralei que viessem, sobretudo o Gonçalo, a conhecer a história toda. – Maria, porque é que o golfinho obedecia ao Manuel? 218 – Pois, essa questão também é interessante. Os tlédios, como você diz, comunicam com os animais. O que também tem contribuído – é preciso dizê-lo – para as suas confusões em matéria de humanidade. E comunicam através de um processo muito simples. Colocando um chip no cérebro que, não só o desenvolve, como permite o acesso por telepatia. Os animais pensam, embora de forma rudimentar – também depende dos animais que são – e entendem o nosso pensamento. Todos sabemos – não é novidade – que um cão entende muitas das coisas que queremos dele. E obedece. Mesmo sem telepatia. Por isso eles comunicam tão bem com os animais. Para eles, os animais são uma espécie igual a eles, embora com menos recursos mentais. Como nós, humanos, encaramos uma pessoa menos inteligente. Que não deixamos de considerar um ser humano com os mesmos direitos que nós. Os visitantes eram cerca de vinte e começaram a dar sinais de actividade, por exemplo, explicando ao Manuel que gostavam de o ouvir tocar. E foi assim, com todos calados e o Manuel a começar a explorar uma melodia qualquer, que tive o momento de sossego necessário para reflectir um pouco sobre toda aquela informação. Maria também parecia ter terminado tudo o que tinha para nos dizer. Sorria a olhar para o Manuel e pensava certamente na sua felicidade por ir partir para longe, e com ele. Iam desbravar o Universo, levando um dos maiores mundos que nele jamais existiu: o mundo da arte, o mundo dos homens. Maria entendia bem esse conceito de rarefacção sobre o qual tanto reflecti. A rarefacção da vida, a nossa súbita ausência em relação a essa vida vivida, perante o assombro do tal mundo que nos é exterior. É isso que eu chamo transfiguração. A ausência do corpo. A ausência de um referencial em relação ao que nos rodeia, pois nada 219 nos rodeia. Apenas ausência. Nada nos existe. Rarefacção, vácuo, de vida. Projecção no não-mundo. Transfiguração. Maria e Manuel iam explicar ao Universo que ser homem tinha esse significado. Esses homens tinham inventado essa capacidade transcendente. E, tenho a certeza, única no Universo. Talvez o Universo se transforme, face à mensagem que eles levaram, nus, no seu caminho feliz e apaixonado. Talvez o Universo se transforme perante a lição sublime do Homem. Estava eu à espera da ajuda destes seres vindos de tão longe quando, afinal, eles não tinham lições para me trazer. Pelo contrário. Vinham cheios de dúvidas e interrogações. Não podiam ajudar porque precisavam eles próprios de ajuda. Queriam essa ajuda para descobrir se ainda tinham em si uma espécie de humanidade, ou se já a tinham perdido, sendo agora apenas máquinas. No fundo, resolveram os problemas decorrentes da sua evolução tecnológica através da uniformização e da limitação da liberdade. Também o planeta deles deve ter estado à beira da destruição, à conta da loucura do desenvolvimento tecnológico. Limitaram a capacidade de actuação do homem, ou do tlédio, talvez por já não terem tempo para salvar o planeta através da educação natural. Impuseram uma educação através de chips cerebrais. A educação natural demoraria anos e anos. E já não era possível. Já não deviam ter tempo suficiente. Ou então foi por os conhecimentos já não poderem ser transmissíveis através da educação. O conhecimento passou a ser implantado em vez de transmitido. Assim, a diferenciação por via do saber anulou-se. Por outro lado, devem ter cortado o pio aos políticos, eliminando a linguagem. Eliminando a abstracção. Sem dúvida, devem ter percebido o quanto a palavra pode enganar. Dizendo, e nada dizendo. Se calhar, a palavra era usada para criar facções politicas artificiais, ou religiosas, e lutas, e guerras, criando ideais belos e vazios, como o nosso 220 Comunismo, como a Democracia, como o Casamento, eu sei lá. Ou outros mais estúpidos, como a Pátria, ou a Tradição. Se calhar tinham guerras para defender umas palavras contra outras, quando, no fim, o que era preciso era reciclar lixos e terminar de vez com a poluição. No entanto, daquilo que percebi, devem ter mesmo destruído o planeta deles, pois o local onde vivem agora, a sua espécie de planeta, é todo artificial. Possivelmente, os mais antigos, os mais humanos, ou os mais tlédios, pereceram com o planeta morto e só se safaram os mais práticos, os mais “máquinas”. Sem palavras e sem deuses para armarem confusão. E os antigos lá ficaram, agarrados à sua humanidade, à sua linguagem, à sua casa planetária moribunda. Por outro lado, também percebi que eram estes os deuses do mar do Manuel. Os tais deuses com quem ele ia viver. E foi com alguma desilusão que também percebi que eles não poderiam vir a ajudar-me na minha procura do segredo do mar. O tal que eu acharia se mergulhasse dentro de mim. Muito pelo contrário: tornaram a minha teoria do saber obsoleta, antes de ter nascido. Fui estúpido, também. Com o advento da internet e da nanotecnologia, já sabia que seria possível concentrar todo o saber do mundo num pequeno formato e difundi-lo para toda a gente. Só não imaginei a sua implantação nos cérebros e, a partir daí, o armazenamento do conhecimento num banco de memória separado. Ou seja, a novidade dos tlédios é a criação de um “disco externo”, como se diz em informática, ao qual o indivíduo pode recorrer com facilidade. Quer dizer que não é necessário encher o cérebro. Quando é precisa certa informação, vai-se lá. Assim, todos têm a mesma informação. Mesmo os cientistas, que criam mais saber para além do que existe, não ficam em situação de vantagem, a não ser por pouco tempo, pois esse novo saber é imediatamente descarregado e partilhado. 221 E pensei para mim - E agora, tio Saúl? Amália? Que será de mim? Daniela, por onde andas? E agora? Agora que os tlédios vieram e não me disseram nada de novo? E destruíram a minha teoria do saber? Eras tu, meu tio, que tinhas razão. Afinal, o segredo está dentro de mim. E perdi-o. Não, não é o saber. Esse, porventura, tê-lo-ei cada vez mais desenvolvido. Em detrimento do outro. Do verdadeiro. Como pude alguma vez supor que tu te tinhas enganado, meu tio? E o padre teu amigo? Mas o Manuel enchia a sala com a sua música, saída da profundidade longínqua da sua humanidade autêntica. Música de outras dimensões, dimensões para além da compreensão daqueles tlédios. Dimensões que eles nunca visitaram. Música do absoluto que não entendem. Atónitos, parados, em êxtase, fundidos – como dizia o Rui –, os tlédios olhavam para o céu à procura do Absoluto que não tinham. Que reminiscências passadas acordaria aquela música nos cérebros de capacidades infinitas daqueles seres? Quantos gigas estariam ainda ocupados com a recordação, agora sofrida, da sua humanidade tlédia? Que minúscula parte do seu corpo vibrava ainda ao apelo da potencialidade máxima dos homens? Sentiriam eles a música no seu coração de metal? No seu cérebro programado? Como poderiam eles ser humanos sem a invenção do outro mundo? A dimensão emocional que não é transversal nem longitudinal, mas exterior à vida vivida. Teriam eles ainda alma? Em que parte do seu complexo equipamento estaria alojada a sua alma? Residiria aí a réstia final da sua origem humana? Manuel já havia terminado aquela sua tão habitual procura inicial, experimentando todas as suas aberturas do sentir, e estava agora lançado numa nova viagem – era sempre uma viagem diferente de cada vez que tocava – que percorria uma outra estrada daquele mundo mais além que o habitava. 222 Manuel não sabia tocar músicas, não as conhecia. Às vezes pedíamos – toca esta, toca aquela, conheces alguma música clássica? Não sabia, nunca tinha aprendido nenhuma música clássica. Nunca tinha sequer aprendido música. A música tinha nascido com ele. Estava dentro dele. Era o seu modo natural de comunicar. Tinha havido um piano, algures na sua infância, que tinha substituído a aprendizagem da fala. Conversa atabalhoada, parecia o maluco que lhe chamavam. De modo que, sentado ao piano, era tão fácil expressar-se em maravilha, como nós desabafamos na baixeza da linguagem vernácula. Tocava uma peça nova de cada vez. Como um pintor que produz uma pintura original. Única. O resultado da unicidade da sua expressão artística do momento. Uma peça sempre diferente. Sempre no seu estilo, mas sempre diferente. Como quando falamos, e as nossas frases raramente se repetem. Não falamos como um computador programado para dar certas respostas fixas perante certo tipo de perguntas. Não, respondemos com a nossa criatividade, com a nossa liberdade de alterar as nossas ideias em função do que nos vai na alma no momento. Manuel fazia o mesmo com a música. Ele não concebia tocar uma peça musical vezes a fio, como os pianistas de concerto. Ou tocar várias peças pré-definidas, como é normal no “reportório” desses pianistas. Para ele, isso era como ir a um país estrangeiro e só conhecer vinte ou trinta palavras da língua local e tentar estabelecer toda a comunicação com combinações diversas – e por vezes absurdas – dessas palavras. Como fazer uma intervenção falada, e profunda, numa língua que não dominamos totalmente? Como um discurso, por exemplo? Ou uma palestra num congresso? É muito provável que Maria tenha razão. E que os tlédios tenham perdido a capacidade de abstracção com o fim da sua linguagem. E, desse modo, tenham perdido a capacidade de revelar e de comunicar, de forma perfeita, a profundidade do seu sentir. Do conteúdo da sua alma. É mesmo provável que tenham acabado por perder a sua própria capacidade de sentir. Manuel não tinha capacidade de ser ele através da linguagem. Mas tinha a sua música. Que era agora muito ritmada, quase 223 obsessiva. Batia com a mão no tampo superior do piano, para marcar de forma mais nítida a cadência. Os tlédios olhavam para ele com um misto de fascínio e de assombro. Assustavam-se quando o Manuel batia com a mão, às vezes também com o pé. E abanavam um pouco a cabeça a acompanhar o ritmo. Ainda tinham um pouco de humanidade dentro de si. Naquele momento, ela acordava do seu longo sono e manifestava-se perante o embate do impossível. Manuel torcia-se agora mais, mais próximo que estava do fim. Eu conseguia perceber sempre quando ele entrava no auge da harmonia, já perto do final. Procurava, já muito perto, a sua melodia absoluta. Aquele que era sempre o objectivo último da sua música. Em atropelo, as notas sucediam-se – por vezes dissonantes e incómodas, como a vida imperfeita dos homens – em busca da harmonia perfeita dos deuses. E, de súbito, uma sucessão de notas, talvez de acordes, onde eu senti, de forma nítida, o caminho final. É nesse tipo de momentos que reconheço que não existe maior plenitude emocional do que acompanhar este caminhar dos artistas pelo seu outro mundo ausente. Com os tlédios no limite da lágrima que seria a revelação absoluta da sua humanidade, Manuel enchia o pequeno espaço com a grandiosidade sobre-humana que fez, um dia, os homens emergirem da confusão animal em que viviam. A beleza da música, e a sensação de plenitude – sim, era esse o termo – que nos enchia a todos, transformava Manuel no maior dos homens que jamais existiu. Como a Maria dizia. E os tlédios também pareciam estoirar, do preenchimento total – pleno – que essa música provocava. A iminência de uma lágrima era, para eles, o revelar de uma vivência nova. Uma lágrima que não era de dor, mas fruto de uma comoção, até àquele momento, totalmente alheia ao seu sentir. A iminência de uma lágrima era, para eles, a ameaça da transformação brutal da sua condição de servos na aurora da vivência de um mundo superior, o mundo da beleza suprema. Música dos abismos do ser, senti-me feliz por ser homem. Os galácticos e as divindades nada tinham para me ensinar. 224 Manuel mostrava até que ponto um simples instrumento, com menos de uma centena de teclas, e de sons, era o suficiente para permitir uma infinidade de combinações sonoras que, por si só, construíam um mundo total. Construíam o mundo. O mundo da nossa rarefacção. Da nossa ausência. Da nossa transfiguração. Manuel existia apenas na nossa imaginação. E tocava para além dos limites da nossa capacidade de sentir. Numa pátria que não era a nossa. Os tlédios, tão habituados à transposição de dimensões, não estavam programados para a transposição de mundos que os humanos inventaram. Comovido, dorido, realizei que era a última vez que ouviria o Manuel tocar. Pois ele iria partir. Iria inundar as galáxias do mais belo que elas jamais ouviram, ou sentiram. Iria deixar nelas o rasto da beleza incomensurável da arte humana. Iria deixar a marca do que de mais elevado marcou a existência dos homens. E disse, por fim - Lembra-te, Manuel, serás o nosso embaixador. Tenho hoje a certeza de que não poderíamos, nunca, estar melhor representados. Maria soube-o desde o início. Ensinarás às estrelas as tuas palavras azoásticas e broásticas cujo significado profundo nós talvez não entendamos. Porque tu estás mais além. Ensina-lhes o mistério da liberdade total. Corta-lhes as amarras do pensar e perdoa-lhes a baixeza da vida concreta. Esmaga-os da tua beleza, e inocência, e bondade. Inunda-os da música infinita que existe dentro de ti. Milhares, talvez milhões de homens dedicaram a sua vida ao desenvolvimento da tua arte sublime, para que agora possas dar ao Universo inteiro a notícia dessa obra. Boa sorte, Manuel. Vai em paz. Vai à procura da beleza absoluta da arte e do amor. Irás amar a mais bela das mulheres. Eu, ficarei com os humanos. Percorremos um 225 caminho longo. Milhares, milhões de anos. Foi aqui que chegámos. Provavelmente, o nosso planeta perecerá. Ficarei, como os antigos tlédios, a guardar a palavra. Tu serás responsável por dar notícia, ao Universo, da mais bela das histórias. A história da arte. A história do amor. A história do Homem. Adeus, Manuel, leva o teu piano. E lembra-te de mim. Lembra-te de nós. E tem sempre orgulho da nossa longínqua espécie humana. Explica-lhes que fomos nós que inventámos o Absoluto, o excesso de ser. Explica-lhes que inventámos um mundo novo. Um mundo outro. Diz-lhes que inventámos um outro Universo. 226 VII O tio Saúl agarrou-me as mãos com muita força, ia morrer. Mas tinha ainda um mistério em si, o maior dos segredos para me revelar. Falava com dificuldade, mas os olhos abertos, tão abertos, pareciam explicar metade do que eu precisava saber. Tão frágil, o tio Saúl. Magro, muito velhinho, mantinha a sua compostura solene, a sua pose de homem corajoso e forte – contavam-se histórias de ter sido o mais forte do seu tempo –, no branco dos lençóis da sua cama austera. Quem para ele olhasse não diria que aquele homem tinha sido temido por quantos o conheciam, ele e o seu braço justiceiro face à maldade da vida. Estava muito direito, com as costas levantadas por almofadas grandes, olhando o tecto do quarto enquanto parava para respirar, e engolir, como que pedindo um pouco mais de tempo para poder partir em paz. Nas janelas ao fundo, a luz entrava ténue, pressagiando a aproximação do fim e a terrível notícia da sua ausência futura. Os meus mortos. Como aceitá-lo? O tio Saúl iria deixar-me mais só. Mas não era o ficar sozinho para ser mais livre, como era hábito eu dizer em relação às pessoas em geral – reminiscências do “L’enfer c’est les autres” das peças de teatro do querido Sartre da minha quase infância –, mas ficar mais sozinho mesmo, para ficar mais desamparado perante a vida. Ficar abandonado. Perder o tio Saúl era perder esse 227 amparo que os outros encontram na religião, a sensação de que temos algo a que nos agarrar nos momentos de aflição. Agora, estava preso às suas mãos, fazendo tanto esforço para o ouvir como ele fazia para conseguir falar. Foi assim, com dificuldade, que contou da morte do padre e desse segredo último, e divino, que este lhe havia revelado, e que agora tinha que passar para mim. Chegara a hora de ser eu o guardião do templo, ouvindo primeiro uma história de uma ida do padre a Nova Iorque – eu sentia de uma forma nítida que a dimensão da história, e o tempo que ela demoraria a contar para uma pessoa naquele estado de fraqueza, iria impedir-me de ter acesso à revelação final –, uma ida ao bairro negro de Harlem, bairro tão perigoso, na altura, que poucos brancos tinham coragem de o visitar. O padre tinha lá ido com o objectivo de ouvir uma missa. Tio Saúl insistia que a história de Harlem era importante porque explicava a revelação final do meu segredo. Pouco tempo depois dessa viagem, o padre morreria. Mas, antes, ainda conseguiu transmitir ao tio Saúl a sua mensagem final: – A visita a essa igreja acabou por ser o cumprimento de um destino. O padre tinha ido à missa com um sobrinho, mas fora à civil, sem qualquer identificação exterior das suas crenças ou pertenças religiosas. Ouvira falar de uma igreja onde os cânticos eram especiais, um dos melhores coros do tal gospel de que tanto tinha ouvido falar. Não só era um dos melhores, como era um dos maiores: o coro incluía para aí uns 30 ou 40 elementos. Era uma igreja onde iam turistas – tal era a fama espalhada –, que desembarcavam mesmo em frente, de autocarros com guias específicos para o efeito. Tal como aconteceu nesse dia. Quando o padre chegou, havia um sem-número de autocarros parados à porta, 228 autocarros enormes – como caberia tanta gente lá dentro? Os guias andavam, frenéticos, a receber pequenos papéis das mãos dos visitantes e a entregar aos porteiros da igreja, que eram vários, pois as entradas estavam distribuídas por três pequenos portões. Era difícil chegar aos porteiros, as pessoas acotovelavam-se, o padre voltava a perguntar-se como caberia lá tanta gente… Não cabia. Assim que conseguiu chegar próximo de um dos porteiros, foi informado da impossibilidade de entrar. Só com bilhete pago previamente, ou com reserva. Numa igreja? A ideia não era assistir a uma sessão de uma casa de espectáculos… o padre protestou. Pois, tudo isso estava muito certo, mas a verdade é que não havia lugar, não podia entrar toda a gente. Mas, e só duas pessoas? Uma das quais uma criança? Não. Nem os pedidos invocando o ter vindo de propósito de tão longe, nem mesmo o facto de ter trazido o miúdo para assistir a uma missa pela primeira vez, conseguiam demover o homem, que recebia com todas as amabilidades os milhentos outros turistas que pagaram caro para poder assistir. Era tudo negócio, os porteiros não tinham mãos a medir, por vezes ajudados por raparigas com longas vestes de cor púrpura a entrar e a sair, e com a igreja a receber o dinheiro dessas grandes organizações que envolviam agências de turismo, autocarros enormes e em grande quantidade, guias, e negócio, muito negócio. O padre não queria acreditar. Ainda foi falar com outro porteiro, mas a resposta, como era previsível, foi a mesma. Abatido, e imensamente desiludido, o padre decidiu perguntar onde poderia encontrar outras igrejas. Mas aquela gente só conhecia aquela. Ou seja, só conhecia aquele negócio, porque aquilo não era uma igreja. Todos, de facto, lhe disseram que, como aquela, não havia mais nenhuma. Era única, daí aquela confusão toda e a necessidade de reservar com antecedência. O padre resignou-se então a ir-se dali, caminhando, com o miúdo pela mão, à procura de uma outra igreja qualquer, 229 com algum receio pela segurança de ambos, mas, sobretudo, com o receio de não conseguir encontrar um local com aqueles cânticos que todos diziam ser tão belos. O velho padre andava à procura da beleza, soube depois que andava à procura de mais. Andava também à procura de uma outra espécie de amor. Tal como Rui, quando partiu. Também ele ia à procura do seu mais profundo amor, já tão longe do amor pelos ideais. Foi graças a mim que ele saiu mais cedo. Para correr para a sua amada. Depois da partida de Manuel, apresentada às autoridades como um desaparecimento misterioso – Talvez tenha caído de um precipício abaixo e desaparecido no mar explicou um Gonçalo muito embaraçado, já não fazia sentido eu ficar mais naquela prisão. A prisão iria ficar deserta – iria custar-me horrivelmente –, daqui a pouco irei contar. Não fazia sentido ficar eu, nem ninguém. A prisão, de certa forma, não podia existir sem o Manuel. A prisão tinha que morrer em nós. Rui apresentou um recurso ao tribunal, invocando bom comportamento – ainda falei em arrependimento, mas ele recusou –, e eu lá fui testemunhar, com convicção profunda – Tenho a certeza absoluta de que ele abandonará a luta armada. Fui categórico, o juiz achou-me uma pessoa acima de qualquer suspeita, um cientista já com algum renome, prestes a publicar um livro que todos diziam que iria ficar para a história da Filosofia – o meu editor estava já a trabalhar afincadamente na área do marketing. – Juro pela minha honra que abandonarei a luta armada. 230 confirmou Rui. – Jure por Deus disse o juiz. Mas Rui nunca juraria por Deus – Juro pela minha honra. Também Gonçalo testemunhou – Juro pelo saudosismo da minha infância. O juiz não entendia. – Juro pela minha segurança perdida. Gonçalo também jurou, andava de novo a vaguear no país da ausência. Também ele acreditava na inocência final de Rui, após tantos anos de discussões que acabavam por ecoar na nossa memória com uma aura de ternura. E também Gonçalo iria abandonar a prisão, e mesmo aquela profissão – ia pedir emprego como cozinheiro num restaurante muito conhecido. Afinal, a culinária era a sua paixão. E Gonçalo merecia reencontrar-se com o conforto da vida. Merecia um pouco de felicidade. Às vezes, abrimos uma nesga dentro de nós e ela entra. Gonçalo merecia que ela entrasse. Merecia um dia uma família, como era estranho que ele não a tivesse. Ele, que era o seu maior defensor. Também o velho padre vagueava no desespero da ausência iminente do seu sonho. Mas, a dada altura, e depois de andar algum tempo um pouco perdido – perguntando aqui e ali por igrejas hipotéticas, e recebendo em troca informações algo desconexas –, viu, numa rua perpendicular, aquilo que parecia ser uma pequena igreja e, puxando o miúdo, foi indagar. Embora sem grandes esperanças. O facto de não haver ninguém à porta, a fazer fila indiana – não se via, aliás, ninguém nas redondezas – não era certamente um 231 bom presságio. Era um edifício muito pequeno, nem estava isolado dos edifícios adjacentes, como estão as grandes igrejas, e era necessário subir uma série de degraus para poder entrar. Ficou em frente da igreja, a tentar perceber se havia uma missa ou não – porque percebeu que era, de facto, uma igreja –, quando uma senhora chegou e começou a subir os degraus. Com algum acanhamento, o padre perguntou-lhe se havia missa e, mais importante, se havia cânticos de gospel. A senhora sorriu e disse que sim, que, na missa que agora se ia iniciar, também costumavam cantar todos em conjunto. Mas o que mais impressionou o padre foi o facto de ela, sem terminar a sua resposta, ter acrescentado, com um sorriso de fraternidade sincera, que todos teriam muito prazer em recebê-los na sua igreja e celebrar a missa em conjunto. E, recuando os degraus que havia subido, fez com os braços um gesto que os convidava a subir também. O padre sentiu qualquer coisa de especial naquele convite, algo de diferente no comportamento tranquilo e gentil daquela mulher. A mulher ficou parada, em frente das escadas, como que a insistir na aceitação da sua proposta, fazendo um sorriso genuíno e uma pequena festa no cabelo do miúdo. O padre não pensou. Mecanicamente, pousou a mão direita sobre o ombro direito do sobrinho e, puxando-o de novo para si, conduziu-o escada acima, atrás da mulher que subiu num instante para lhes abrir a porta. A igreja era pequena, de facto, só tinha uma dúzia de filas de bancos, e era muito branca. Curiosamente, era uma igreja católica – percebia-se pela iconografia –, o que, ali, não era certamente habitual. O padre e o miúdo eram os únicos brancos, e todos olharam para trás, como que não habituados à presença de estranhos. Todos muito bem vestidos, os homens – e mesmo os rapazes mais pequenos – de camisa branca e gravata, e elas de chapéu, por vezes com rendas, e algumas miúdas com o cabelo apanhado com vistosos laços de seda. 232 Quando a missa começou, o padre reparou, na ala lateral direita da igreja, que ali também havia um coro, só de mulheres, só uma meia dúzia, talvez dez, todas vestidas com umas longas túnicas até aos pés, vestes semelhantes às das raparigas que vira na entrada da outra igreja, embora estas fossem de um vermelho escuro e brilhante. O padre ficou a olhar para elas, viradas para os assistentes e para um piano pequeno que havia em frente, onde um pianista iria fazer simultaneamente de maestro. Mas o que o padre mais reteve foi o olhar feliz das raparigas, sorridentes, e radiosas, antes mesmo de a música começar. Alegria da juventude, olhavam para o padre e para o miúdo com uma ternura absurda, afinal não os conheciam de parte alguma, nunca os haviam sequer visto, donde é que vinha aquela sensação de prazer em os ter ali? Seria também encenação com fins comerciais, como na outra igreja grande? Que sentido fazia aquela demonstração de afecto especial por aqueles que, justamente, menos pertenciam àquele mundo? Quando abandonou a prisão, Rui convidou-me a ir um dia conhecer a sua galeria, e a sua futura mulher. A sua missão, o seu destino era agora amar uma mulher e, quem sabe, a pintura abstracta também. Brincou comigo – Vem ver a pintura de que gostas. Rui queria que eu os visitasse. Talvez para mostrar que, afinal, também acreditava na família, ou talvez para relembrar os tempos felizes que passámos juntos – nunca uma prisão havia sido tão digna de recordação e celebração. E abraçou-me com energia e sentimento. E agradeceu-me baixinho. Abraçado a ele, percebi o que, de certa forma, sentia na narrativa sobre aquela igreja: pertencemos todos aos mesmos mundos, que se vão entrecruzando através de uma recentemente descoberta transposição transversal das dimensões da nossa vida. E percebi também até que ponto a discussão – mesmo, por vezes, violenta – das ideias era tão pouco, perante a imensidão de um sentir fraterno 233 de homens sensíveis. Até que, bruscamente, me comovi. Comovi-me tanto. Inexplicavelmente, eu passara, naquela prisão, alguns dos melhores anos da minha vida. De repente, a música ecoou por todo aquele espaço, que agora parecia grande, e as raparigas começaram a cantar. Abanavam o corpo para um lado e para o outro, ao ritmo daquela cadência tão vincada. E o sorriso abriu-se ainda mais. O padre sentiu intensamente que o mistério da música tinha tomado conta de todo o espaço em redor. O mistério da música e – o padre não conseguia afastá-lo – o mistério do sorriso das raparigas. E também o do abanar do seu corpo ao som daquela música ritmada – quando deu por ele, estava também a dançar –, da mesma maneira que o miúdo, hirto de espanto, abanava ligeiramente a cabeça num enlevo que o afastava, com toda a certeza, do nosso pobre mundo vivido. Também ele estava para lá do entendimento limitado do imediato. Gonçalo dizia – O mistério da lonjura. Certamente que o pequeno também partilhava o outro além, que ali se confundia, inesperadamente, com o além das divindades e das religiões. – Mundo da rarefacção sublime. Aquela pequena igreja foi, por momentos – imagino-o hoje, com uma intensidade segura, no pleno da minha solidão –, a verdadeira casa da música, tributo ao mais belo dos feitos dos homens. Imagino as raparigas a cantar, a dançar, e a sorrir, e o padre a abanar todo por dentro, perante a revelação cada vez mais violenta do amor que sentia pelo homem seu semelhante. Também o tio Saúl abanava as mãos, talvez quase o corpo, numa vibração imperceptível. Havia um som de uma melodia 234 algures, ele ouvia-a dentro de si, já a meio do caminho que o conduzia à ausência da vida. Antes de partir, havia ainda a maravilha humana a prendê-lo a uma mão – a minha –, no derradeiro esforço para cumprir a sua missão final. Era um padre comovido que descobria os mistérios do Novo Mundo, pegando na mão da criança para não estoirar, para canalizar para ela um pouco do amor que transbordava em si. Um padre que reencontrava, através daquela música e daquelas gentes, o seu verdadeiro deus, deus que o abandonou a maior parte do tempo, o deus das injustiças gritantes e da morte dos inocentes, tanto que ele havia tentado, e há tanto tempo, não desistir dos caminhos da fé e dos juramentos de pertença à casa desse deus injusto. O velho padre só pensava no quanto gostaria de que todas as igrejas fossem iguais àquela, e de que todos os homens fossem feitos daquela mesma carne que ali encontrou. Carne, sangue, sentir. E uma enorme gentileza, afecto, porque não chamar-lhe amor? As canções iam-se sucedendo e aquele fascínio enchia a pequena igreja, agora um fascínio mais doce, talvez mais subtil, pois a canção era mais lenta, e as raparigas, como que para compensar essa lentidão, rodavam o corpo com mais amplitude, balançavam e inclinavam mais a cabeça, com sorrisos sinceros de ternura. O padre agarrava com mais força na mão do miúdo – que nem devia sentir, de tão absorto que estava – porque percebia que a sua comoção crescia ao ponto de ter uma vontade súbita e irreprimível de chorar. Enquanto me abraçava e dizia, baixinho – Obrigado por tudo Rui também não resistiu a partilhar uma última lágrima comigo. A vida na prisão tinha sido intensa. E profundos foram os laços que, durante esse tempo, nos uniram. E 235 fantásticas as experiências que vivemos em conjunto. Rui abandonava a prisão, e a revolução, a caminho do sossego de um lar. E eu comovi-me com ele. Rui era jovem, tinha a vida toda à sua frente. E já tinha sofrido demasiado. Em termos de amor ao próximo, já tinha dado tudo de si durante anos e anos de abnegação. Ninguém lhe poderia pedir mais. Já era tempo de ir a caminho do conforto do amor, do inverosímil de uma família, de uma outra promessa de um mundo novo, mundo tão diferente e, simultaneamente tão semelhante, daquele que sempre havia sonhado. Mas o velho padre ia acabar por chorar. Sim. Não iria ser naquele preciso momento, mas um pouco mais tarde, quando a missa terminou e os participantes se começaram a beijar e a cumprimentar entre eles, todos concentrados nas primeiras seis ou sete filas de bancos da igreja. O padre e o miúdo, com a cerimónia e o acanhamento próprio dos estranhos ao local, tinham-se colocado, sozinhos, na última fila. E foi quando o padre que disse a missa – nos intervalos do ofuscante da música, da alegria contagiante daquelas gentes e de tudo o mais que fez reduzir a celebração propriamente dita a uma quase insignificância – veio pelo corredor central, com simplicidade e alegria, e se dirigiu ao padre, e ao miúdo, e os abraçou a ambos, dizendo – Obrigado por terem vindo, foi um prazer tão grande tê-los connosco que o velho padre sentiu uma comoção indizível, a não ser pelas lágrimas – que teimosamente lhe nasciam nas profundezas de si – e pelo tremor irreprimível do seu corpo cansado, uma comoção tão profunda que não lhe permitiu fazer mais do que acenar um pobre agradecimento, fechando os olhos para não sofrer mais. Puro engano. Quando os abriu, viu todos os outros virem na sua direcção, o primeiro era um senhor já muito velhinho, que sorria de orelha a orelha, aumentando as rugas dos olhos num esgar de felicidade genuína 236 – Obrigado por terem vindo estendendo as mãos, mãos que agarrou com força às mãos do padre – como o tio Saúl, que cada vez fazia mais força, tremendo, enquanto contava o que restava da história –, e abrindo os olhos, afogados num mar de rugas negras, que transbordavam de uma visão líquida de comoção, ou de amor – Estamos tão felizes por estarem aqui o padre não conseguia mais do que pensar em como não há limite para o sentir dos homens. Depois, as outras pessoas, todas elas em cortejo, vieram também, o miúdo, estarrecido, não se mexia, e o velho padre não aguentou, os olhos cheios de água, agarrou-se aos homens que lentamente chegavam, e às mulheres, e abraçava-os, e beijava-os, e agarrava-lhes também as mãos, não conseguindo conter as lágrimas que lhe caíam, nem pretendendo sequer fazê-lo, para não esconder a emoção que sentia. Largou o miúdo e deixou-se levar pela ternura daqueles momentos tão belos, eles vinham do fundo da igreja com a alegria do domingo – Prazer em tê-los connosco e ele sofria de forma absurda, sentimentos em destroços – o coração apertado com uma violência superior ao que permitiam as suas pobres forças –, o velho homem desfalecia de uma comoção toda ela moldada de uma alegria e de uma felicidade que tinham tanto de absolutas como de reveladoras de toda uma outra maneira de estar na vida que os homens do Novo Mundo pareciam ter inventado. Como o tio Saúl que, com os olhos rasos de lágrimas também, parou de falar, largou uma das minhas mãos e agarrou o peito como se fulminado por uma dor infinita. 237 A luz das janelas ao fundo quebrou um pouco mais, o Sol pareceu estar repentinamente mais distante, e o quarto escureceu com a aproximação negra da morte. O tio Saúl fechou os olhos e balbuciou imperceptivelmente uma frase que não entendi, mas que terminava com – ... o amor dos homens. E foi então que a luz das janelas, de uma forma bruscamente violenta, voltou a iluminar o quarto, com um raio volumoso que caía, oblíquo, mesmo por cima do corpo inerte. Era uma luz mais forte, mas mais opaca, não deixava ver nada através dela. Uma luz direccionada, forte, mas de um brilho baço. Era certamente o céu que se iluminava em homenagem à chegada do maior de todos os amigos, do mais corajoso de todos os protectores dos mais fracos, do mais justo de todos os homens. Era um feixe de luz opaca, como um túnel. Era por dentro desse túnel que ele, com toda a certeza, estava a partir. E eu fiquei, gelado, a olhar para a cama, sem saber se ele ainda estaria ali. Limpando as lágrimas do meu choro contido, pensei em como nunca mais iria ser feliz. – O amor dos homens. Legado inverosímil, o segredo afinal não revelado – Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar a sensação, em atropelo, do impossível da vivência sem a presença da mão que me fazia sentir homem grande quando passeávamos nas praças ao cair da noite, já tarde quando era Verão, e da partilha da conversa dos adultos, homens corajosos que lutavam contra a repetição agreste dos dias e que sonhavam a luz mais além da aurora da liberdade. As falas silenciosas, as conversas criptadas, em que se dizia o frade para referir o ditador – era ainda o anti-clericalismo dos 238 amigos do tio Saúl, que misturavam o horror daquele mundo político com o contraponto de uma religião subserviente, desumanizada e sem sentido. Não era como a outra, a dos americanos negros de Harlem, que era uma religião de face humana. Memória da cara das raparigas – a beleza de uma cara humana, sorridente ou lacrimejante –, que enalteciam a grandeza dos afectos e expunham, aos quatro ventos, essa coisa imensa que era o amor dos homens – a religião deveria sempre ser assim. Esses rostos e a música, primeiro uns e depois a outra, levaram o velho padre, que inicialmente não queria chorar em frente da criança, a abraçar aqueles homens e aquelas mulheres, puros e de uma beleza de origens – gentes que nunca havia conhecido –, com as lágrimas a cair e sem vergonha de o mostrar, se preciso fosse, ao Universo inteiro. Sim, a verdadeira religião era certamente essa, e o tio Saúl, que sempre o havia sentido, só nesse momento o deve ter compreendido verdadeiramente, só nesse momento o deve ter realizado em si. Sim, essa era a sua ideologia global de sempre. A sua religião, se tal se poderia dizer de uma coisa que ele desprezava. Mas era certamente a sua razão de viver, a visão do mundo por que tinha lutado toda a sua vida – certamente o sentira quando a criança faminta da aldeia distante o convidou para almoçar uma bolota partida ao meio. Religião que certamente fez, penso-o hoje, o padre perceber que a sua vocação máxima não era o amor a um qualquer deus, pequeno e injusto como ia demonstrando ao sabor das circunstâncias, mas o amor ao Homem. O tio Saúl disse-o, mas eu não ouvi tudo – ... o amor dos homens. Aquela missa tinha significado que havia um local longínquo onde homens verdadeiros tinham inventado uma religião verdadeira, que os faziam abraçar e beijar os estrangeiros que não conheciam, dizer-lhes coisas simples e emocionadas 239 – Obrigado por terem vindo e sorrir-lhes com a face iluminada pela alegria das manhãs festivas de domingo. Havia uma religião que não era a verdadeira, e a nossa prisão também não o havia sido. Porque prisão devia ser o contrário de libertação. E, perante a prisão deserta do fim, a convicção a que chego foi a da enorme libertação de todos nós. Primeiro, a do Manuel, que lá seguiu a sua viagem na direcção da infinitude inverosímil das galáxias. Os tlédios levaram-no e, com ele, a beleza nua de Maria. E a sua esperança no retorno da humanidade. Cilindrados pelo peso excessivo da beleza humana, lá foram procurar a sua identidade perdida. Depois partiu Rui, liberto após os nossos testemunhos, mas, mais do que tudo, liberto de uma missão que havia escravizado a sua alma durante tantos anos. Mas era ainda tão jovem. Tinha tudo ainda por acontecer na vida. Livre da escravidão, Rui manteve, no entanto, a sua grandeza intacta – Juro pela minha honra. Partiu de cabeça levantada, disse coisas belas e poéticas durante o julgamento. Rui percebeu que não são as ideologias que fazem a grandeza dos homens, mas antes o modo como eles as transformam em acção. Em exemplo para os outros e para as gerações vindouras. E disse-o em voz alta, ecoou pela sala de audiências, ele que não quis advogado para o defender. Disse que queria falar com o juiz, uma conversa entre homens que têm responsabilidade perante os outros homens. E perante o seu futuro. O juiz ouviu-o com uma atenção silenciosa. No fim, acabou por o elogiar – O senhor não merece envelhecer numa prisão. 240 Gonçalo também partirá daqui a pouco, livre como os outros, mas em busca de uma outra espécie de amor. Gonçalo precisa ainda de encontrar o amor-próprio. Porque sem amor-próprio não se pode amar ninguém. Aquela religião era a que o velho padre sentia como verdadeira, e era também a única que o tio Saúl entendia. Unia-os esse amor fraterno pelas pessoas simples, desprotegidas, boas, fosse na aldeia mais perdida e atrasada, fosse no centro da civilização. Os homens e as mulheres que assistiam à missa, todos tão bem vestidos por cima da sua pele escura tão bela e tão pouco habitual para os nossos olhos – certamente que prepararam as suas roupas durante uma semana inteira –, viraram subitamente costas ao seu deus, ao altar, às enormes cruzes e aos anjos escondidos, e vieram, uns atrás dos outros, mostrar aos estrangeiros longínquos o quanto aquela missa fora um acto de amor. Aos estrangeiros longínquos, ensinaram a lição da sua religião de amor, ensinaram a sua lição mais querida, a lição que, há muitos milhares de anos, terá feito nascer o homem e a humanidade. Papel manuscrito nº 7 (tempo final da prisão) O amor universal, será que ele existe? Manuel, onde estás? Manuel? Como o Ferré que gritava pelo Manuel de Falla no “L’ éspoir”, obra do Malraux que pensou a arte como talvez mais ninguém – onde estamos todos? E tu, meu amor? Encontraste o teu futuro? Voltaste a amar? De que forma estamos unidos com o que 241 já não existe? Onde estaremos no fim? Vamos todos encontrarmo-nos um dia? Os meus mortos. A minha solidão. Existe um amor universal, Manuel? Os galácticos sabem o que é o amor? Encontraste a minha Amália por aí? Ela falou-te de mim? E tu, escreveste o teu romance broástico? Cumpriste o teu sonho de amor e arte? É contigo que eu irei ter dentro em breve? É com os meus mortos? É com ela? Ela partiu um dia. Queria saber do seu futuro possível – Não amarei mais ninguém. Ou é tudo mentira – como tu disseste um dia, a propósito do romance –, e não nos encontraremos nunca mais? E então eles viraram costas aos seus deuses e anjos, e vieram, pelo corredor central, viraram costas à madeira e ao mármore frio, e vieram, virando-se para o sangue quente dos homens, e abraçaram as pessoas que tinham a seu lado, os habituais de todos os dias prometidos de domingo, mas também os desconhecidos, viessem eles de qualquer parte do planeta. Abraçaram-nos com toda a ternura que encontraram nas suas almas esculpidas na bondade que há nos sonhos dos seres comuns. E o último abraço estava destinado a Gonçalo, eu e ele deveríamos ser os últimos a partir. Devíamos despedir-nos 242 deixando para trás uma prisão deserta. Nela ficariam os vestígios da alegria e da excitação. A memória da confrontação com o outro mundo, Maria explicando a busca desesperada daqueles seres porém tão frágeis. Acabaram por descobrir a individualidade em nós. A liberdade. E, com essa descoberta, lá foram tentar recuperar a sua humanidade perdida. A recordação de Maria. Tão bela. E, enquanto ela falava da transposição de dimensões, os meus olhos sucumbiam ao impacte do esplendor do seu peito nu. Manuel tocava no piano uma derradeira melodia, o seu último adeus. E dizia – Isto é broástico. Uma prisão deserta. Nela iria ficar, para sempre, uma parte de nós. Gonçalo partia feliz – eu tinha mesmo que ficar mais um pouco. Ele percebera que precisava de perdoar ao seu passado. E esquecer a ameaça do abismo. A experiência da prisão também lhe tinha permitido uma libertação. E, assim, o seu objectivo era, agora, encontrar a segurança da infância, o seu último refúgio de protecção. Manuel tinha, naquele dia longínquo, representado a nossa peça com a grandeza que nele habitava. Quando já estava perto do fim - Diz-me Chita baixou-se, como se estivesse a falar com a macaca. Rui abriu muito os olhos e, num pleno de emoção controlada, Manuel terminou – O caminho a infância O caminho da infância, por onde é? 243 Gonçalo precisava de o saber. O “segredo do mar”? Não o encontrei, nem na visita dos outros, que vieram de tão longe, nem na récita inacabada do tio Saúl. Mas ele sabia que eu iria descobrir. Ele via-me como uma espécie de garante do futuro. Ele sabia que eu iria continuar por ele. E lutar por uma verdade derradeira. Pela nossa verdade. E sonhar. Ele sabia que eu não o iria abandonar, que não iria esvaziar a sua lição. Pelo que confiava de pleno em mim – não havia vez que não me deixasse recados para depois da sua morte – Promete-me que, quando morrer, não me vão trazer padres, ouviste? Nem me levam para a igreja... E eu “sim, tio”, com a convicção de que o que ele me pedia era, naquele momento, de uma importância absoluta para o seu descanso final. E, quando chegou o momento, disse-lhe - Sim, tio, prometo. Não haverá padres para ensombrar o teu repouso de homem que lutou pelo mundo mais além. Não te envergonharei, nem aos teus amigos, que tanto me ajudaram a crescer e a pensar como um homem. Irás só, entender-te-ás com quem tiver que ser. E dirás o homem que foste, o que sonhaste, falarás da liberdade e falarás do mundo de justiça que procuraste, dos fracos que sempre defendeste, mesmo à custa das sovas que pregavas nos homens malvados que acabaram por te temer. Dirás como os indefesos se sentiam protegidos, e como confiavam no teu sentido de justiça e na tua coragem como em mais ninguém. Falarás da tua luta por um mundo melhor, contarás as histórias do teu padre amigo e revelarás, não sei a quem, o segredo que te matou de comoção antes de mo poderes explicar, e, virando-te lá de longe para mim, de novo dirás “mergulha em ti, e encontrarás o segredo do mar”. 244 Foi numa noite quente, à luz do luar, estávamos, como de costume, a beber um leite antes de deitar. Eu bebia um leite com chocolate e comia aquelas bolachas que adorava, enquanto olhava as estrelas. Já sabia encontrar a Estrela Polar. Tu só me deixavas comer seis bolachas, por isso eu demorava tempo, contando, a partir da Ursa Maior, cinco espaços correspondentes à distância entre Alfa e Beta, de Beta para Alfa – já não me lembro bem. Já sabia encontrar o Norte. E tu sabias dessa minha capacidade tão precoce, melhor do que ninguém. Por isso me confiavas os mistérios da existência humana. E por isso eu era tão feliz. Foi nessa noite quente que me assustaste com a tua cara tão séria, como se algo de muito grave estivesse a acontecer. Disseste-me que havia um segredo que eu iria um dia descobrir. O segredo dos segredos. Eu era pequeno, tão mal que eu dormi nessa noite. Mas, no dia seguinte, acordei com a sensação de me ter tornado um homem. Havia um mistério na vida que ia salvar a espécie humana, e eu iria descobri-lo um dia. Tinha-me sido atribuída uma missão. O tio Saúl tinha dito uma frase sobre esse mistério secreto que só os adultos conheciam. E eu podia, a partir daí, aspirar a partilhar o seu mundo clandestino. E assim passei, perante a gravidade da situação, a andar com eles na praça, para trás e para a frente, com um ar sério e concentrado. Quando nos cruzávamos com outras pessoas, eles baixavam a voz, e eu, de mãos atrás das costas como eles, tossia para disfarçar. Tanto que pensei nessa frase. Havia, eu acreditava, um segredo no mar, mas a história à beira da morte era uma história de amor. Talvez o maior amor de todos, porque não visava este ou aquela, mas essa totalidade a que chamamos Humanidade. Era uma história que cheirava a terra, como acontece no campo, depois das grandes chuvadas. Se havia um segredo, ele estava no coração daqueles homens; se havia água, ela estava na ternura dos seus olhos. Que 245 segredo há no mar? Que segredo tenho eu que descobrir, tio Saúl? Qual é a palavra mágica que escondeste? Qual a palavra proibida? Aquela que está dentro de mim, apesar de a ter perdido, um dia – foste tu que o disseste. - Que segredo é esse que levas contigo, agora que vais tão só? Vais só, não me esqueças. Vais só, e falarás a quem quiseres do teu sobrinho que te amou com a inocência das crianças, vais só, e explicarás que ele não te esquecerá. E verás como escreverá um livro, um dia, para honrar e perpetuar a tua memória de homem grande, e livre, perante a maldade e a pequenez do mundo. Para velar a tua morte, não haverá nunca padres, só eu. Ficarei sentado à tua espera. Como se tivesse a certeza do teu retorno. Se me quiseres chamar, estarei aqui. Ao pé de ti. Para sempre. Quando chegou o momento, disse-o. Mas não sei se ele ouviu. O mar. Amor. Quantas vezes escrevi estas palavras. Estava nelas o segredo escondido. E foram muitas as vezes que as liguei, de facto, até um dia perceber que as duas palavras eram uma só. O padre e o tio Saúl viviam numa ditadura e, quando o tio disse essa frase mágica, ela estava codificada. Após o fim da ditadura, o tio Saúl guardou a revelação tempo de mais, para um momento em que o seu coração não aguentou. Contava uma história sublime de amor, passada nos confins da América, do mundo novo. E o seu coração frágil, que é onde guardamos o amor, não aguentou. O mar. Amor. Omar-amor, bastava uma pequena troca de vogais para tudo ser claro para mim. O segredo de que falavam era, afinal, o segredo do amor. Era como se o tio Saúl voltasse lá não sei de onde, se virasse para mim de repente, e dissesse – Mergulha em ti, e encontrarás o segredo do amor. 246 Na ditadura, também o amor era proibido. Manuel Alegre: era também essa a palavra proibida do teu país? O amor? Não o amor particular, por uma pessoa em especial, mas o amor total – afinal, o tio Saúl tinha conseguido dizê-lo. Num esforço final, juntando todas as forças que tinha, acabou por dizer a frase necessária – ... o amor dos homens. E eu tinha ouvido o essencial. Porque não percebi logo? Não se tratava apenas do amor por um determinado ser, mas um amor mais global, por todos os homens. Como o padre amigo do tio Saúl lhe explicou um dia, que era por isso que os padres não se podiam casar. Para poderem dedicar todo o seu amor às pessoas em geral, sem benefício para um ou para outro. Era esse o segredo para a minha filosofia do século XXI. O Sartre tinha-o dito, tantos anos atrás. A engrenagem. O livro da minha adolescência. O amor ditava mais alto. Jean, que partiu o copo na mão, e a encheu de vidros, quando Hélène subiu as escadas com Lucien. E depois disse à outra – já não lembro do nome – “limpa-me lá isto”, estendendo-lhe a mão cheia de sangue e de vidros. O amor é o segredo milenar dos homens. Mais de um milhão de anos – para que raio tinha eu estudado tantos anos de Antropologia? O amor absurdo. Já o tinha dito, e escrito, antes. Também Maria o disse. O amor sem objectivo. O amor que nega o instinto, o interesse, a protecção. O amor absoluto. O amor absoluto dos homens. Não era o segredo do mar que eu devia procurar em mim. Tinha estado cego todo aquele tempo. O que me esperava era o segredo do amor. Como fui capaz de o ignorar? Ele bem dizia que eu o tinha perdido… Sim, tive-o nas minhas mãos, Amália que partiste para sempre. E eu guardei o amor dentro de mim. Escondido, na memória – o tio Saúl o disse – e no coração. 247 Um dia sonhei que ela entrava pelo teatro dentro e, representando um texto, me anunciava que voltara – já posso contar agora – e um filho, um filho – sim, vou contar agora. Amália pedia-me que voltasse – como assim, se era ela que tinha partido? Tenho que contar a noite em que sonhei o impossível de mim. Amália e um filho pela mão. Ou então ela vinha sozinha para o anunciar. O sonho de a vida poder ser como a imaginei em pequeno, quando as maminhas lhe cresceram e eu olhava com rapidez e disfarce na aflição de mim. Algo crescia em nós, eu pensava que era a nossa preparação para a vida. Eu pensava que o corpo nos crescia como uma promessa do nosso destino feliz. E tinha aquele medo de ela não ser mais minha amiga. Eu queria tanto beijá-la, mexer-lhe no peito para ver como era a sensação. E beijá-lo também, para lhe conhecer o sabor. Ela trazia uma camisa decotada. E já tinha maminhas como as mulheres. A minha Amália. No meu sonho, o seu vestido era longo e branco, que é a cor das grandes revelações. Se calhar vinha de noiva, cansada de procurar um futuro longe do meu. Ou então era porque sabia que o cenário iria ser todo preto, a nossa roupa também tão escura, e ela, como uma luz, avançava lenta para iluminar o escuro que havia dentro de mim. Tinha, de novo, um decote cavado. Mas eu não estava em estado de redescobrir o que nele havia. A dada altura, perante o meu tremor profundo – Vem vindo dizia ela baixinho, com a cabeça levemente tombada, numa aproximação de carinho. Eu tentei olhar para o lado, esconder a minha comoção. Mas ela sabia de todos os meus segredos. E voltou a falar numa voz de ternura que, de tão doce e familiar, me fez voltar a olhar para ela. Enfrentando, perante ela, a minha fraqueza de olhos tristes. 248 – Vem vindo As crianças cresceram Traz a poeira das estradas contigo Cantos da casa Tardes tão fortes Dois olhos, dois braços Esperam por ti Amália estava bela no seu vestido branco. Dizia coisas incompreensíveis, como se tivesse sido eu a fugir-lhe um dia. A cabeça levemente tombada – tanto que eu tentei esconder a minha comoção. Mas ela já tinha tomado conta, como sempre, dos meus olhos tristes. – Vem vindo Joãozinho pergunta O mundo lhe interessa Os sonhos colhidos (ano chuvoso, famosa colheita) Estão já no celeiro Ela queria dizer-me algo sobre a existência de um filho, talvez dois, não sei – teria sido por isso que ela partiu assim, daquele modo tão cruel? – Joãozinho aprendeu a escrever o teu nome Amália vinha do infinito – ou da eternidade, que é o infinito que há no tempo –, para me dizer que voltasse. Mas, voltar para onde? Afinal, não fora eu a partir e a procurar um outro futuro. – Joãozinho aprendeu a escrever o teu nome Não sei se devia. 249 Amália. Lancei um grito horrível – Amália! Amália, querida Amália, descobri o segredo para a salvação futura dos homens. Haverias de ter orgulho em mim. Deverias voltar agora, para ter orgulho em mim. O segredo esteve sempre comigo. E o tio Saúl sempre o soube. Mas não me disse. Lembras-te do tio Saúl? Ele gostava tanto de ti. Já morreu, sabias? Morreu numa tarde em que a luz do Sol entrava de esguelha pela janela. Dizia-me sempre – Não deixes que tragam padres, ouviste? Não vieram padres, tio, eu tinha prometido. – Nem deixes que me levem para a igreja... Não, tio, não deixei. Para velar a tua morte, não haveria nunca padres, só eu. Se me quisesses chamar, estaria ao pé de ti. Mas não chamaste. Nunca mais. – ... o amor dos homens. Ele disse-o, percebes Amália? Ele disse-o, mas eu não compreendi. Era o amor a palavra que eu procurava. Eu tinha ficado a guardá-la. Tinha-me sido deixada por ti. 250 VIII E tudo, lentamente, chega ao fim. O meu romance, a minha vida. O tempo da prisão terminou. E, com ele, as minhas réstias de alegria. Olho à volta e já não vejo mais motivos para ficar. Sem Manuel, sem Rui, com um Gonçalo já todo a vibrar com a sua promessa de harmonia futura, é hora de desmantelar tudo e partir. Vão tirar todos os apetrechos da torre, afinal de pouco serviram. No fundo, quando estão em jogo as grandes questões da humanidade, a tecnologia não tem a utilidade que pensamos. Os tlédios explicaram-no à desmesura. É hora de libertar o pobre Gonçalo, agora já só à minha espera para se ver livre desta sua profissão prisioneira. Tudo chegou ao fim para mim. Terminei a minha busca, descobri a palavra perdida e é agora hora de deixar os homens seguirem o seu próprio caminho. Também o meu livro já pouco tem para acrescentar. Escrevi-o tão rápido, tão febril, nestes últimos dias. Depois da fuga de Manuel para as estrelas, e da entrega corajosa de Rui ao amor, só o meu livro poderia manter-me aqui. Gostava de um fim épico, agora que já não é o monumento científico com o qual sonhei todos estes anos. É apenas um romance de amor. Ou talvez um longo ensaio emocional. Sonho com um fim grandioso, para o romance e para mim. Mas estou tão cansado de tudo, não tenho mais nada para contar. Só talvez Amália me poderia salvar. Mas isso não vai acontecer. 251 Ela já não vai chegar a tempo. Ela não vai voltar nunca mais. Gostava de um fim épico para o meu romance, mas já não tenho forças que me cheguem. O meu derradeiro esforço, concentrei-o na extensa compreensão que envolveu a minha descoberta. Primeiro, o desamparo provocado pela constatação violenta da insensatez do princípio unificador. Que foi o sonho da minha vida durante anos. Depois, todo um esgotamento baseado no entendimento necessário perante mil coisas a relacionar: o amor por uma mulher, o amor pelos homens, o amor que existe na arte... Obcecado que sempre andei com a filosofia da arte, nunca tinha percebido convenientemente como ela não era mais do que o produto do amor. O conceito de amor englobava, assim, o da própria arte. E era também por isso que tanto eu como Maria falávamos do amor absurdo. E o identificávamos com uma característica tão humana. Esse amor absurdo justificava-se, afinal, com a tal rarefacção característica da arte. Como pode uma mulher linda e de sentimentos nobres amar um tipo feio, gordo, e de mau fundo? Foi a pergunta estúpida que sempre me fiz. Ainda mais estúpida quando me perguntava como podia a Maria amar o Manuel. A explicação é simples e tem a ver com essa rarefacção. Também no amor há uma transfiguração. Há uma ausência face a este mundo de aqui. Uma relação amorosa vive-se num outro mundo, também ele inexistente e irreal. Nesse mundo, não existem corpos feios nem bonitos, não existe o bem nem o mal. É como a música: existe apenas uma essência que se transfigura em algo de irreal. E perfeito. E, por isso, imortal. Tudo isso significa que o poder da arte tem que ser englobado no poder mais vasto do amor. Tal como o amor por uma mulher, ou por um homem, tem que ser englobado no poder mais vasto do amor pelos homens – ... o amor dos homens. O verdadeiro segredo, a salvação da Humanidade, virá então desse amor pelos homens. Foi o contacto com a 252 transcendência, e a rarefacção de vida que ela implicou, que nos fez ser homens. E esse contacto nasceu da descoberta do amor. Um amor que não nos chegou dos neurónios cerebrais, como no caso dos tlédios – que amam em função dos resultados da programação dos computadores –, mas de um local minúsculo, possivelmente no coração, um local denso como os buracos negros, um local que é a origem de todas as manifestações desse amor. Como a arte. Como a música. Como um filho. Em relação ao qual também nós sentimos uma rarefacção, como se deixássemos de existir e agora só ele contasse. Como se passássemos a existir num outro corpo. A esse local não sei o que chamar. Mas sei que é aí que está a alma. Manuel quis, um dia, que eu lhe explicasse o que era a arte, o que era o romance, e eu não consegui explicar-lhe que a arte também vinha lá do fundo desse local sem nome. Lá onde vive a alma e nasce o amor também. Manuel brincava com uma mosca que o ligava ao mundo concreto, enquanto eu o puxava na direcção do irreal. – É tudo mentira, no romance? Tanto que eu queria explicar-lhe a essência da arte, no acto estúpido de não entender que esse sentir existia nele desde que nasceu. Disse: – Não, não é mentira, mas também não é bem o que se passa na realidade. Porque não é a descrição de algo de concreto, mas antes o que o eventual concreto permite em nós de lição para a vida. De transponível para os outros – por via da abstracção entretanto criada – e para sempre. Como se fosse uma transposição para a imortalidade. Não sei se Manuel percebeu o etéreo das minhas explicações sem carne, com os seus olhos esbugalhados 253 de deslumbramento. Perguntei-me: como explicar-lhe a ausência e a distância, como anunciar-lhe a existência de uma leitura abstracta da vida? Não lhe expliquei, explico-mo eu agora, que esse abstracto está no centro da verdadeira compreensão da arte. Do seu mistério. Do que a distingue de tudo o mais. Malraux imaginou nomes para os dois períodos áureos da arte: o “irreal” e, mais tarde, o “intemporal”. Os dois períodos mais tardios. O “irreal” caracterizava-se sobretudo pela ausência de contornos – ele estava, na prática, a falar da pintura – e pela força da profundidade e do contraluz. O tempo do maior de todos os mestres, Rembrandt. O “intemporal” surgiu quando os pintores deixaram de pintar paisagens, pessoas, imagens variadas, e passaram a pintar quadros. Ou seja, quando concentraram toda a importância na própria obra e não no motivo que lhe deu origem. A arte torna-se, assim, no verdadeiro valor, independentemente das referências que contém. É por isso que ele lhe chama “intemporal”. Precisamente porque a arte, ao libertar-se totalmente da concretização a que estava sujeita por via do modelo que lhe deu origem, perde a durabilidade associada a esse modelo, tornando-se imortal. É o advento da arte abstracta. A abstracção é, deste modo, o ponto de união destes dois conceitos “irreal” e “intemporal”. Mesmo esquecendo um pouco a teoria de Malraux, vemos como é perfeita a união desses conceitos, segundo a nossa interpretação de senso comum, em torno do conceito-mãe: a abstracção. O essencial da arte está, assim, dependente desse desenraizamento da realidade e da posterior projecção na intemporalidade. A arte é a tentativa de imortalização da nossa vivência enquanto seres humanos. É o esforço que fazemos para que os mundos interior e exterior que nos habitaram não morram connosco. O artista é como o homem que perdurou para lá do tempo. E por isso tem que fugir ao concreto da conjuntura. Ao escrever uma cena de amor, por exemplo, tem que ultrapassar as características da pessoa amada, 254 assim como as circunstâncias em que o amor se desenvolve (as razões que lhe deram origem), para se projectar numa “ficção” (ruptura com o concreto e o real) onde todos os potenciais leitores se podem encaixar (globalização), e para sempre, ou seja, qualquer que seja o tempo futuro em que o romance é lido e quaisquer que sejam os “ritos nupciais” desse tempo (imortalização). Essa projecção é feita através da abstracção. Pobre Manuel, como poderia eu ter conseguido dizer-lhe tudo isto, tão desesperadamente longínquo que ele estava em relação ao entendimento racional de que, momentaneamente, precisava. No fundo, como eu, que tanto pensei que a revelação vinha do mar, com os do outro mundo à mistura. Antes de estar com eles, tinha quase a certeza. Era ali que o segredo se iria revelar. Não percebia como é que o padre tinha tido esse conhecimento, ou essa premonição. Como saberia ele da existência dos outros? E como sabia que eles vinham do mar e não dos céus? Foi por achar que o segredo seria revelado desse modo que sempre tive a certeza de que o iria descobrir. Ou de que me iria ser revelado. Mas, depois de ter estado com eles, fiquei desamparado. Os tlédios nada me ensinaram sobre o segredo do mar. Eram eles que vinham à procura de uma lição. Rui e Gonçalo, com os olhos em alarme, não estavam preparados para a confrontação com o que os excedia. Embora Rui já estivesse próximo de se converter à sua paixão escondida – Jure por Deus disse o juiz. Mas ele não – Juro pela minha honra. Não tinham nada para ensinar. A arte humana subjugouos em pequenez. Não recebi deles a lição do além-mundo. 255 Nem o segredo que eu tanto esperava. Como iria descobrir o segredo nessas condições? Os pobres tlédios apenas procuravam um caminho de retorno para a sua humanidade perdida. A individualidade, a liberdade, foi o que descobriram. E encontraram o Manuel, tão agarrado que estava à sua Maria, fazendo-lhe festas ternas nos cabelos. Também ele nos empurrou para a revelação da vitória absoluta do amor impossível. Como Rui – Juro pelo meu amor. E como Gonçalo, que progressivamente ia perdoando o seu passado. O amor. Voltei uma última vez ao meu plano cartesiano, que já trazia numa pobre folha amarelada e amarrotada. O amor estava no centro, como eu queria? Não sei se o amor cabia ali. O saber, sim, demonstrei-o fazendo uso da minha inteligência estruturada e fria como as neves das montanhas. Pobre plano. É como os tlédios. Não conhece a transcendência. Não conhece a transfiguração. Está aquém da superioridade das capacidades humanas. Está preso da pobreza dos poderes da Razão. A minha busca terminava. Porque era o objectivo em si que estava deslocado. Toda a vida procurara um princípio orientador para os homens. Um princípio que substituísse o das gerações anteriores, do século anterior. De facto, o que eu queria era a revelação de um princípio unificador. A essência, mais tarde o saber. E, de cada vez, uma sensação de ter encontrado o que procurava e, ao mesmo tempo, de, afinal, não poder ser aquilo. O meu maior erro foi pensar que a solução podia vir de cima. De um qualquer aparelho normativo, por mais justo que fosse. Por mais bela que fosse a imagem que dele transparecia. Como era o caso do saber. 256 Pensar um princípio unificador era, ao mesmo tempo, pensar uma ajuda exterior. Um amparo para o homem. Uma cobardia. E, para além disso, uma imposição. Algo que punha em causa a capacidade de a Humanidade decidir o seu próprio caminho. E o que descobri de mais sublime foi que nenhum princípio, nenhuma palavra mágica se pode impor. Nunca mais. A palavra não pode ser imposta aos homens. Ela tem que nascer dentro deles. A solução está dentro dos homens. Esta lição mostra-nos que eles têm tudo à sua disposição. Que tudo depende deles próprios. O segredo estava também em mim. Amália partiu, mas deixou a essência do segredo comigo. – Não amarei mais ninguém. Não amar mais ninguém era deixar o amor, para sempre, dentro de mim. Amália partiu e deixou o coração. O tio Saúl deve-o ter entendido. Foi por isso que o tio Saúl sabia que eu iria, mais tarde ou mais cedo, perceber tudo. O amor de Amália ficou retido em mim. Por isso eu tinha que mergulhar em mim. Amor, Amália. Até o teu nome era também uma pista para a revelação. Como posso eu não ter entendido? Amália partiu, mas, ao partir, deixou a memória. Deixou a palavra. E foi essa palavra que fui registando, mesmo sem ter consciência disso, em dezenas de papéis manuscritos que sempre guardei próximo de mim. Em todos havia a referência ao amor, de uma forma mais ou menos visível. De entre as múltiplas coisas que sempre me envolveram, essa palavra estava sempre presente. E chamava permanentemente por mim. Puxava-me pelas calças, como se dissesse – Escuta, estou aqui. O meu plano cartesiano não tinha sentido. Teria, sim, se fosse o “saber” a palavra final. Como ela se adaptava ao 257 plano – era indiscutível a sua perfeição. Teria uma teoria que ninguém poderia alguma vez questionar. Era irrefutável, como dizem aqueles pretendentes a cientistas que também dizem “está provado”, “está demonstrado”. Ficaria conhecido para várias gerações. Uma referência mundial, com posters no quarto dos adolescentes, com fotografias nas capas dos livros, com a celebridade gravada nos livros de História. Até ao fim. Até ao fim dos tempos – breves, sem dúvida, face à ausência da regeneração dos homens. Mas eu quero essa regeneração. Eu quero o bem dos homens. Um futuro radioso para eles. Eu, que perdi o futuro, quero oferecer-lhes a felicidade que me falta. Por isso reneguei o plano. Por isso renego a Razão. Porque há uma outra palavra e essa, sim, é que é a verdadeira. Surgiu contra todas as demonstrações existentes nas universidades. Uma palavra de beleza e de bondade. Uma palavra para sentir. Em humildade plena, saiu de uma fenda algures, como no poema de Rui, quando revelou o seu verdadeiro eu enquanto homem, quando revelou o seu amor impossível, o seu amor absurdo por uma mulher que ignorava a ideologia das revoluções violentas e amava a pintura sem modelo. Rui estava a sofrer, as mãos faziam tremer o papel que amarrotava, sem dúvida para esconder aquele pequeno fruto do seu amor, que terminava com emoção Deve ser uma palavra a nascer Deve ser uma palavra de amor Deve ser para ti. E foi como se dele tivesse saído um grito fundo, um uivo de dor. Era uma palavra que nascia dentro de si. Uma palavra de amor. Não há princípio unificador. Nem na Humanidade, nem fora dela. Só há liberdade, arte, amor. Três palavras que não se podem separar. Encontrar uma que as resuma? O conceito 258 englobante? Pensei nisso depois, já tinha abandonado o meu plano cartesiano de intelectual impotente. Não encontrei, a não ser a palavra total. A palavra absoluta. A palavra Homem. Foi a esse Homem que quis dirigir o meu romance. Como Manuel, quis escrever um romance broástico. E acho que, de certa maneira, o consegui. Falta-me um fim épico. Ou um fim romântico, de comoção profunda. Como quando as adolescentes choram com o fim de uma história de amor. Porque ela casa, ou morre. De facto, o amor e a morte conduzem ao limite da emoção. E eu só penso que, no meu caso, o amor já não é mais possível. Mas agora é altura de partir. Gonçalo tem os seus planos. E a sua pressa. A tralha lá de cima será doada a um laboratório de uma universidade qualquer, eles ficaram de a vir buscar. As minhas coisas também, ao que parece, já seguiram. Pergunto-me para onde. Faltam-me as forças para ir morar num qualquer sítio que não seja este. Como é possível amar-se uma prisão? Mas, antes de a deixar – Gonçalo já vai longe, descendo pelo caminho na direcção da enseada e do barco que nos levará para não sei onde –, ainda quero ficar um último momento. Para escrever umas últimas linhas. E olhar o grande salão, que parece querer despedir-se de mim, escondendo, ao fundo, a escada para o farol. Inexplicavelmente, inesperadamente, inunda-me uma nostalgia súbita, o desejo estranho de ficar aqui para sempre. Como se a vida parasse, o tempo se mantivesse em suspensão e, assim, a morte pudesse nunca chegar. Como se fosse uma transposição de uma dimensão – os tlédios não nos ensinaram a fazê-lo. A minha sensação é a de, ao partir, vir a ficar irremediavelmente preso da minha solidão. E dependente da urgência do quotidiano, da mesquinhez da realidade. 259 Penso em como encontrei as palavras que procurava, mas também em como estou longe de encontrar um rumo final para a minha vida, porém tão breve. Gonçalo já me chama, muito ao longe. O concreto da realidade também. Mas, antes de fechar a porta, quero ficar ainda um pouco, preso a uma melodia de piano que ecoa, em silêncio, por toda a sala. Quero escrever ainda um pouco, tentando vencer esta dor que me dilacera, embora em plenitude. Para meu grande espanto, Manuel está aqui ao pé de mim – voltaste, de tão longe, para um último adeus –, torce-se ao piano, fazendo um esforço desmesurado. E a música que dele sai é a mais bela de sempre. Não foi ao Universo que ele deu o absoluto de si. Guardou-o para a emoção final que havia em mim. E, assim, enche todo o espaço, rodeia-me por todos os lados, parece que me empurra na direcção do mar, na direcção do infinito. Não pode haver melhor definição para a beleza, dou por mim a pensá-lo, embalado, rodopiando em levitação, quando Amália, de repente, abriu os braços para dançarmos uma última vez. Por entre o azul das águas, que se vêem ao longe, o meu olhar sente-se perdido, a sala toda a girar à minha volta, quando Amália encosta a sua cara à minha. E, à medida que o piano de Manuel aumenta de volume e de nostalgia, o mundo parece cada vez mais rarefeito, Amália mais etérea, o meu coração mais dorido. A minha emoção sabese absurda, afinal Amália não deverá estar ali. No entanto, a realidade não é assim tão importante: os homens vivem na base dos seus sonhos impossíveis. O que é facto é que a última dança com Amália é-me verdadeira, real, dentro da comoção que me assalta. A comoção que me anuncia o fim dos tempos, como no clímax de uma tragédia grega. As minhas mãos suam e tremem. Estou a dançar com um fantasma. Um augúrio de beleza e morte. E Amália parece 260 querer deixar nos meus lábios um último beijo, impossível de sentir. Amália está mais linda na idade que passou por ela. É impossível não sofrer com o tempo desunido que decorreu por entre nós. Como no fim de uma peça – teatro de uma vida –, já não é só Manuel e Amália que estão aqui. Veio Rui, veio Gonçalo, vieram de mão dada agradecer os aplausos do fim. Uma plateia ausente aplaude, como nos tempos antigos. Carminda e António acabaram por vir também, possivelmente ainda unidos pelos laços do amor, e dão também as mãos. É assim que, todos juntos e virados para o mar, nos agarramos, com força e sentimento, fazendo vénias de agradecimento final. A minha peça está a terminar, o público aplaude ainda – embora já não seja tempo de encores –, quando a bela Daniela interrompe a mão que me une a Amália. E, sem preconceitos, beijam-me as duas, como que a explicar que o amor é um infinito de liberdade. Daniela veste de preto, porque pertence à minha vida real. Amália manteve o branco de um fantasma que partiu antes de eu ser alguém. Agarrado às duas, e elas agarradas a todos os outros numa apoteose final, o que eu mais sinto é o desespero da beleza da música. Manuel toca no limite de si. E as ondas, muito ao fundo, parecem corpos de pé que celebram, em êxtase de alegria, o excesso destes meus momentos derradeiros. Lentamente, muito ao fundo, vejo que Maria e os seus tlédios voltam também, todos nus, exibindo o esplendor da beleza dos seus corpos, dançando ao ritmo das lágrimas que a música impõe. Vieram do longínquo das galáxias para me dizer adeus. Maria surge envolvida em luz, talvez para mostrar que a beleza é o último dos deuses antigos, o último que podemos adorar. Manuel torce-se, num delírio quase final. Maria exibe o peito nu ao pleno da minha humilhação. 261 E é quando eu já estou dilacerado de dor, sentindo feridas imensas no fundo de mim – certamente também de uma felicidade total –, que entram o padre, o sobrinho e as gentes da missa de Harlem, as raparigas das longas vestes a abanarem o corpo, e a irradiarem alegria com os seus sorrisos, ao som de algo que já ultrapassa as minhas capacidades de resistir. Como na missa que ocupou as réstias da memória do tio Saúl, vêm todos beijar-me, abraçar-me, e dizer - Obrigado por teres existido. Vêm certamente de longe, um por um, como se deixassem para trás anjos e altares, agarrando-me as mãos em alegria contagiante e declarações de amor - O mundo foi melhor contigo. É então que todos os presentes voltam a dar as mãos, de novo em linha horizontal mas agora diante de mim, e iniciam aplausos e gritos, como se saídos de um público delirante e imaginário, mas agora dirigidos à minha pessoa. Compreendendo o cenário, Manuel dedilha mais agudo, notas rápidas e constantes que parecem palmas, talvez bravos tímidos em celebração daquilo que devem pretender ser o meu desempenho de vida. E, de vez em quando, todos fazem pequenos movimentos com a mão, acenos com lágrimas, como que me saudando antes de o pano cair. Por fim, vejo o tio Saúl, Amália correu para o beijar, e todos se abraçam a ele numa derradeira hipótese de contacto para memória futura. O tio Saúl, de novo muito direito, abre os braços para os receber e sorri ao longe para mim. Eu sou como um pano que vai cair, na trágica iminência do fim, e o tio Saúl parece dizer 262 - Não sofras mais. Parece insinuar a presença de um mundo redentor do outro lado, ou seja lá de onde vem. Está agora mais alegre, menos solene, bamboleia-se também, como as jovens negras de Harlem. Dançam ao som da música que contém em si todos os milagres da vida. O tio Saúl sorri para mim. Afinal, sempre voltou. E eu, tal como lhe prometi, mantinha-me preparado para o receber. Mas há algo de diferente agora, parece ele a criança e eu um homem já muito velho, em desalento e solidão. Mesmo assim, ainda paternal - Não estudes mais. Já são horas de dormir. Mas eu já não estou a estudar o livro dos dinossauros, tio. Não irei estudar nunca mais. O tio Saúl interrompe-me, colando o indicador vertical aos lábios – mandando-me calar. Parece trazer uma última mensagem para mim. Vem com uma missão, ainda. Uma missão final. De apaziguamento. Sorri para mim, parecendo anunciar-me o advento de um outro caminho, de uma alegria de infância, talvez de uma outra vida. Todos dançam, com os braços invisíveis misturados num novelo impenetrável – enquanto a música vai terminando num limite impossível de beleza –, quando, progressivamente, tudo começa a parecer fugir e desvanecer-se perante mim. Cada vez o movimento dos seus corpos me surge mais distante, a nitidez dos seus contornos mais difusa, os seus gritos e aplausos assemelham-se agora a claros acenos de despedida, cada vez mais escondidos no nevoeiro dos meus olhos. Percorro o salão uma última vez, em ansiedade crescente, e sinto a minha solidão inundada de uma melancolia dilacerada 263 em alarme e plenitude – o meu peito a estoirar, como um rasgão que me corta de alto a baixo. Perante a súbita aproximação do fim, e enquanto tento um último esforço para não largar a caneta, o tio Saúl parece dizer ainda – lá tão longe - Não tenhas medo. A música enche o espaço, e todo o meu ser, quando, ao lançar um derradeiro olhar à minha Amália perdida, uma luz brutal me cega, vinda oblíqua do céu – como um anjo –, a abafar, também em mim, a vitória da irrealidade que mora na alma dos homens. 264 265 As falas teatrais constantes deste livro foram retiradas da minha antologia da obra de Jaime Salazar Sampaio As primeiras palavras foram de amor Por um lado, é de assinalar a relação profunda que o título desta obra tem com a essência deste meu romance. Por outro, indo o presente livro para a tipografia uma semana após o Jaime nos ter deixado (apesar de ele o ter lido – com a inclusão dos seus textos – na sua quase totalidade), que estas citações sejam vistas como uma homenagem sentida à sua memória e à da sua poesia. 266 Índice Abertura . . . . . . . . . . . . . . . 7 I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195 VII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 VIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 267