Caderno 2
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Caderno 2
Coletivo de Educação do MAB CADERNO PEDAGÓGICO Textos m e a n t d o n u e f o d r e p bat a e de Coletivo de Educação do MAB CADERNO PEDAGÓGICO Textos de aprofundamento e debate ANAB Junho de 2008 1 Produção: Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB Coletivo de educação Organização: Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB Equipe de Elaboração: Robson Fórmica Liciane Maria Andrioli Alice Akemi Yamasaki Gisele Antunes Rocha Colaboração: Ana Rita de Lima Ferreira Leila Aparecida Mendonça Lima Fotos: Arquivo MAB João Zinclar Arquivo Jornal Brasil de Fato Edição: Junho de 2008 Projeto Gráfico: MDA Comunicação Integrada 2 Movimento dos Atingidos por Barragens Avenida Central Bloco 555 Casa 06 Núcleo Bandeirante/DF CEP 71710-012, Fone/Fax: (061) 3386 1938 Home-page: www.mabnacional.org.br [email protected] [email protected] Sumário As mãos constroem Estas mãos _____________________________________________________________________15 O teatro das mãos ________________________________________________________________16 Carranca_______________________________________________________________________17 “Tem muita gente angustiada e doente por causa da barragem”, diz atingido por barragem _______18 Luta por moradia - Despejo da maior ocupação vertical da América Latina é iminente __________20 A cultura popular - Modos de vida O som dos tambores: ecos de resistência e luta do povo negro ______________________________23 A cultura, a consciência e a mística __________________________________________________24 Refletindo um pouco sobre a história da música _________________________________________34 Violar é preciso __________________________________________________________________36 A infância e seu processo formativo Infância, Formação e Conscientização: O que é a nossa Ciranda? ___________________________41 Jornada dos Sem Terrinha _________________________________________________________42 Brinquedos _____________________________________________________________________43 Sem Terrinha aprendem e ensinam na Escola Paulo Freire _________________________________44 A terra é o sentido da vida para os Guarani - Fotógrafo mostra a força da cultura indígena na luta contra a expansão do agronegócio no MS _______________________________________45 Carta da terra - Conferência mundial dos povos indígenas sobre Território, meio ambiente e desenvolvimento - rio-92 _____________________________________________47 Violência e destruição na prisão dos atingidos Uma criança de sete anos é levada presa com o pai _____________________________________49 Educação emancipadora, educação popular, Educação do campo! Educação: Exercício de viver _______________________________________________________53 Educação popular: alguns apontamentos ______________________________________________54 Os atingidos por barragens construindo a luta e valores coletivos ___________________________56 O MAB e a Educação do Campo ____________________________________________________57 3 Na luta por um mundo socialista! Em Tucuruí, atingidos por barragens ocupam obra de eclusa novamente ______________________61 Legado de Exclusão Social _________________________________________________________61 Mobilização é reprimida com violência na Colômbia _____________________________________63 Ato em memória de Galdino lembra lideranças que morreram na luta pela terra ________________64 Modelo energético soberano-popular Para que construir usinas hidrelétricas? _______________________________________________69 A falácia do risco da falta de energia - Especialista e movimentos sociais rebatem alarmismo da mídia corporativa, governos e investidores de que faltará energia _________________________70 “Antes de produzir energia, as hidrelétricas produzem excluídos”, diz Dom Orlando Dotti _________72 Ditadura na barranca dos rios brasileiros: perseguição e criminalização de militantes da luta contra as barragens ______________________________________________73 Hidrelétricas e violações de Direitos Humanos __________________________________________75 MAB denuncia violação dos direitos humanos - Comissões visitam regiões mais afetadas ________76 Usinas hidrelétricas do Rio Madeira e a cobiça internacional - O que está por trás da construção de Jirau e Santo Antônio? Rapinagem das riquezas amazônicas pela hidrovia, fortalecimento da indústria da barragem, energia barata para as indústrias eletrointensivas e uma fábrica de dinheiro com a venda da energia para o povo brasileiro ________________________________79 Os donos de nossos rios. Até quando? ________________________________________________81 Como funciona a exploração nas tarifas de energia elétrica - “O modelo de energia elétrica no Brasil está a serviço dos banqueiros e das grandes empresas multinacionais” _______________________82 Água, patrimônio da humanidade Declaração universal dos direitos da água _____________________________________________93 Legislação sobre a água ___________________________________________________________94 Privatização da água _____________________________________________________________96 O Nordeste é Viável sem Transposição e com Ética na Política _____________________________97 Ao São Francisco ________________________________________________________________99 A Reforma Hídrica _______________________________________________________________100 Exploração da força de trabalho Por trabalho, eles perdem a saúde - Expostos a tarefas extremamente prejudiciais e degradantes, crianças, adultos e idosos enfrentam jornadas de semi-escravidão __________________________105 Por que morrem os cortadores de cana? ______________________________________________106 Trabalho escravo no Brasil de hoje __________________________________________________111 Dados parciais de conflitos no campo em 2007 42,5% de conflitos pela água ocorreram nos estados banhados pelo Rio São Francisco _________113 Dossiê trabalho escravo - Como alguém se torna escravo ________________________________115 Trabalhadoras rurais - Quebradeiras de coco reescrevem a história No Maranhão, mulheres lutam contra derrubada das palmeiras de babaçu e conquistam acesso livre ao coco _____________________________________________________________116 4 Soberania alimentar Agrocombustíveis e produção de alimentos ____________________________________________121 Fome e direitos humanos __________________________________________________________122 Colapso do agronegócio e a agricultura do futuro _______________________________________124 Fome: alimentos como negócio _____________________________________________________125 Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome _______________________________126 Algumas paisagens de nosso país Cerrado _______________________________________________________________________131 Muitas histórias e tantas paisagens sobre a destruição e a resistência no cerrado Um dos ecossistemas mais ricos do país, fonte de águas de muitos rios, a região, no coração do Brasil, é oferecida em holocausto ao agronegócio; ela e os brasileiros que a povoam vêm sofrendo contínua devastação e violência. _____________________________131 O Semi-Árido é belo e constrói conhecimentos _________________________________________133 A natureza não é muda ___________________________________________________________133 Mudanças climáticas _____________________________________________________________135 Amsterdã, Holanda - Novo relatório do Greenpeace mostra o papel da agricultura nas mudanças climáticas e o que se pode fazer para reduzir suas emissões de CO2 ____________135 5 6 Apresentação A o longo dos últimos anos o MAB vem desenvolvendo várias experiências no âmbito da educação, principalmente com Jovens e Adultos, e a partir disso tem se consolidado como um importante sujeito político nesta área. Mediante o desenvolvimento destas experiências surgem desafios os quais nos exigem refletir e organizar o que ao longo desta caminhada viemos construindo. Dentre os desafios colocados está a necessidade de produzirmos materiais pedagógicos que tenham vínculo e relação direta com a realidade das populações atingidas por barragens e com o conjunto das organizações que trabalham na perspectiva atual da educação do campo. Nesse sentido o MAB vem a elaborar e produzir três cadernos pedagógicos: 1) Imagens em Movimento; 2) Imagens em Movimento: Textos de aprofundamento e debate; 3) Imagens em Movimento: Sugestões de Atividades de Letramento e Etnomatemática. Estes cadernos pedagógicos desempenham o papel de subsidiar o planejamento e a realização de práticas educativas realizadas na educação do campo, nas turmas de Alfabetização de Jovens e Adultos. Outro aspecto é que este material servirá também para que educadores e educandos conheçam várias culturas e realidades do Brasil, possibilitando, assim, que se pense em outras maneiras de expressar, conhecer e interpretar o mundo em que vive. Assim haverá conhecimento, descoberta, compreensão e tolerância para com o diferente: outras pessoas, outras sociedades, outras épocas, outros costumes. Desta forma esperamos contribuir para a qualificação e aprimoramento das atividades desenvolvidas nas comunidades, já que este material busca estabelecer um diálogo direto e profundo com a história, a memória, os costumes, as culturas, as formas de produzir, as relações estabelecidas com a natureza, com os empreendimentos hidrelétricos e com os problemas e desafios que a realidade do campo nos apresenta. Assim conhecemos a seguir o objetivo geral de cada caderno pedagógico: No primeiro caderno pedagógico “Imagens em Movimento” consta imagens seguidas de pequenos textos que buscam auxiliar os educadores na reflexão com os educandos buscando interpretar a realidade a partir das sensações e pontos de vista de quem as observa, do que elas nos representam e nos transmitem a partir de suas expressões. O objetivo é provocar nos educadores e educandos o interesse por uma forma de linguagem que distrai, ilustra, espanta, inova, renova, perturba e faz pensar. A imagem e a palavra remetem para o fato de que ver, pensar, lembrar e sentir estão sempre juntos. E tudo isso são formas de conhecimento e de questionamento sobre as coisas que os rodeia. A imagem retira novidade e grandeza do cotidiano. Ela as registra e tira-as de seu contexto habitual e faz com que as pessoas vejam suas próprias vidas com outros olhos. 7 No segundo caderno, além das imagens, serão apresentados textos que ajudam na reflexão dos temas refletidos sobre as imagens. Com esse caderno o educador e educando serão desafiados a se colocar frente a diferentes questões. Sentindo-se provocados a compartilharem suas idéias, propor alternativas, produzir conhecimento e expressar seus valores e convicções. No terceiro caderno constam sugestões e dicas de atividades que poderão ser desempenhadas em aula, buscando sempre relação e vínculo direto com a vida dos educandos, com a intenção de contribuir com a formação humana integral, de sujeitos participativos do processo histórico e da realidade na qual se encontram. São atividades relacionadas com o tema de cada imagem que contemplam a oralidade, escrita e leitura. De acordo com a especificidade de cada turma, alguns temas e atividades serão mais interessantes para uns do que para outros, e a estrutura do Caderno propicia uma liberdade na utilização do material. A seqüência das dicas e sugestões de atividades tem um caráter organizativo e não significa que deva ser seguida com rigorosidade em seqüência das páginas do caderno. O conjunto dos três cadernos pedagógicos propõe ações educativas que levem os educadores e educandos: a) Desenvolver novas habilidades e adquirir conhecimentos para tomar decisões apoiadas em uma consciência solidária e tolerante. b) Aprender a ler a realidade e obter conhecimentos para interpretá-la criticamente e buscar soluções para as situações limites que vivenciam. c) Ter acesso a bens culturais que apóiem e fortaleçam a conquista e a garantia de direitos e cidadania. Em suma, com este material pretendemos dar um importante passo no sentido de qualificar e potencializar o processo educativo do MAB, o qual pretende formar sujeitos na sua totalidade, com capacidade de compreender de forma critica a realidade e em condições de intervir de maneira direta e transformadora na mesma contribuindo no processo da educação do campo. Movimento dos Atingidos por Barragens Coletivo de educação São Paulo, junho de 2008. 8 Introdução 9 10 11 12 13 14 Estas mãos1 Daiane dos Santos Carlos2 lexandra, Judite, Ivanei, Nivia, Suerda, Rosana. Olha para estas mãos, de mulher roceira, esforçadas, mãos cavocadeiras. Sonia, Flávia, Claudia, Raquel, Tânia, mãos trabalhadeiras. A Edson, Claret, Rogério, Marcos, Océlio, Yuri, Diego, Aildo. Olha para estas mãos: pesadas, sem trato, sem carinho.... Mãos de ribeirinhos, camponeses, quilombolas, indígenas, pescadores, de trabalhadores. Dos quatro cantos do país, mãos dos atingidos por grandes construções de represas. Ossudas e grosseiras. Mãos que varreram e cozinharam. Lavaram e estenderam roupas nos varais. Pouparam e remendaram. Mãos domésticas e remendonas. Íntimas da economia, do arroz e do feijão, da casa, do tacho de cobre, da panela de barro, da cinza na fornalha. E faziam sabão. Minhas mãos roceiras, fecundas, ásperas de lavrar a terra. Semear e cuidadosamente cuidar e ter a certeza da colheita. Mãos pensativas que sabem que organizados podem transformar o mundo, mãos de lideranças que carregam a indignação e fazem cotidianamente algo para transformar. Mãos guerreiras que não se deixam calar. Jamais ociosas. Mãos doceiras. Imensas e ocupadas. Mãos laboriosas. Abertas sempre para dar, ajudar, unir e abençoar. Mãos tenazes e absoletas, feridas na remoção de pedras e tropeços. Convidadas a contar um pouco de sua sabedoria, um pouco de suas vivências, suas experiências de organização, suas vitórias, seus medos, suas dificuldades, suas convicções para construir dias melhores para as futuras gerações, quebrando as arestas da vida gerando libertação. Mãos que se dedicam a escrever, a propor um projeto energético alternativo, a decidir sobre os próximos passos da organização, mãos que trazem a simbologia da mística, dos cantos e perfumes, dos relatórios de intensos estudos, de pautas de negociação. Mãos que não se aquietarão até que alguma injustiça ainda esteja sendo cometida contra qualquer pessoa em qualquer lugar. Mãos que se reúnem para cuidar e preservar tudo que a natureza gerou, mãos que conhecem a importância da água, da terra, das sementes, da vida. Mãos como reflexo de todas as mulheres. A mulher que traz no seu interior a humanidade, o ideal de justiça, a fraternidade, a igualdade como direito de todos. O amor como princípio. O carinho da mãe. O desejo de ser feliz. O trabalho por paixão. A intuição e uma sensualidade, capaz de converter o mais irreverente dos homens, num amante da vida, num homem livre. O que pode ser o começo da transformação, do reencontro da humanidade com o melhor de si. Mãos que lutam incansavelmente. Já são tantas. Milhares. Milhões. Uma verdadeira rama florescendo. São mãos se agrupando, se organizando, construindo acampamento, enfrentando a opressão, hasteando bandeira, buscando lenha, fazendo estudo, exigindo verdades. Tudo isso porque reconhece que é tempo propício de gerar igualdade. A esperança que é partilhada quando se reúnem, quando conversam e vêem que os problemas são os mesmos e as saídas devem ser buscadas em conjunto. Uma organização com muitos sonhos e muito a superar, ainda vão mais homens pra negociação, ainda há mulheres escondidas na sombra masculina, dependente do pai, do marido, ainda te apresentas como filha ou mulher do fulano. Na verdade por trás de um grande homem, esconde qualidades de que esteve na frente uma grande mulher. Há libertação há de chegar por luta. 1 Texto elaborado a partir de um trabalho pedagógico feito com militantes educadores, inspirado através do poema “Estas mãos” da autora Cora Coralina. 2 Daiane é militante do Movimento dos Atingidos por Barragens. 15 Estas mãos sabem que precisamos avançar e por isso toda a direção está se propondo a estudar, construir novas relações entre homens e mulheres. E a formação há de ajudar. Mãos não importa a origem, seja do campo ou cidade, não depende de cor nem idade. O sentimento é de transformar numa nova sociedade. Falamos muito no novo homem e na nova mulher. Mãos que escalam montanhas, descem baixadas, passam sede e fome, em busca de seus ideais elas deixam famílias, perdem dias, noites de sono. Nesse caminho o que nunca podem perder é o amor pela igualdade, pela liberdade, a felici- dade dos povos, a mística do sorriso no rosto de uma criança de quem já conheceu a liberdade, a felicidade de quem luta. Mas quando nos perguntamos onde está esse novo homem e essa nova mulher, digamos: eles estão dentro de nós. Mãos de militantes, dirigentes, de trabalhadores e trabalhadoras que não se cansam até o dia em que juntos homens e mulheres, todos e todas, em todas as comunidades, grupos de base, em todas as cidades, campos e construções, possam edificar o poder popular. Mãos alavancas na escava de construções inconclusas. O teatro das mãos3 Ana Miranda4 ricô e crochê, torno mecânico, carpintaria, jardinagem, culinária, rabiscos distraídos que fazemos quando conversamos... O trabalho manual concentra, cria sensação de paz, e traz alguma felicidade. T Uma das atividades que mais me preenchem é a de trabalhos manuais. Gosto de desenhar, de dedilhar um violão, de costurar um botão de camisa, de lavar folhas, uma a uma sob a torneira, de descascar batatas... Entregar-se, pertencer às próprias mãos, traz um sentimento reconfortante. Tenho diversos cadernos de desenho preenchidos. Até hoje desenho, rabisco, minuciosos traços e coloridos vão delineando meus seres imaginários: um gato de asas, uma sereia com chifres, bailarinas ou hermafroditas, um peito aberto por uma fenda de onde nasce uma flor, uma mulher-árvore com as mãos enterradas como se fossem raízes, ou um corpo de mulher composto de vários rostos, coisas assim. Costumo fazer para as crianças aquele teatro de sombras com as mãos juntas; também, medir as coisas com os dedos estendidos, a contar quantos palmos. Dizem alguns cientistas que somos deO trabalho senvolvidos tecnologicamente apenas porque temos nosso polegar, manual que nos permite a preensão. Tive uma blusa de renda toda bordada por mim, quando eu era adolescente. Sobre cada flor eu pregava cinco contas brancas em círculo e, nas folhas, mais cinco, em ficoncentra, leiras reviradas. Não terminei o traQuando me entrego ao trabacria sensação balho, e a blusa ficou perdida numa lho manual, parece que esqueço os de minhas mudanças. Mudei-me de paz, e traz problemas, me transporto para ouconstantemente, durante toda a mitros recantos do mundo, outras esfelicidade nha vida mudei de casa, ou cidade. feras muito mais bucólicas, puras, Talvez tenha me esquecido de uma prazerosas, próximas às minhas oricasa onde morei. Mas a blusa jamais saiu de gens ligadas à natureza, à memória animal. É minhas recordações mais nítidas. como se me recordasse dos primeiros gestos 16 3 Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br 4 Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Amrik, Dias & Dias e colunista da revista mensal Caros Amigos. humanos. Os gestos mais naturais são os manuais. Os mais sofisticados e civilizados são os olhares com significados específicos. Segundo certas teorias antropológicas, talvez o primeiro gesto tenha sido, com um pequenino impulso lírico, o côncavo da mão para colher uma fruta; ou a concha, para beber água. A manuelage, como os franceses chamam a linguagem das mãos, é universal e milenar. Tem a idade do ser humano. Ninguém precisa aprendê-la. Nascemos providos dos gestos, desde os primeiros impulsos obstinados de procurar o seio materno para sugar o leite, a mão fechada que revela o instinto de posse, o gesto radicular e profundo de pôr a mão sobre algo para se afirmar possuidor, a nossa obstinação em levar tudo à boca antes de ser capazes de escolher o que podemos comer... Parece que todos os demais gestos derivam dessa caudal original e autêntica. O gesto nos revela, e, embora seja comum a todos, nos torna diferenciados e únicos. O gesto do qual resulta alguma coisa é, quase sempre, uma espécie de realização de nosso mundo inconsciente. Todas as pessoas deveriam realizar trabalhos manuais, mesmo aquelas que não possuem o dom. Essas tarefas aperfeiçoam os gestos como expressão insubstituível da mente, como, por exemplo, tricô e crochê, torno mecânico, bordados, escultura em argila, carpintaria, pintura, jardinagem, culinária, miniaturas, caligrafia, ou mesmo um manuscrito garranchoso, ou aqueles rabiscos distraídos que fazemos quando conversamos ao telefone. O trabalho manual nos ensina a nos concentrar, cria em nós uma sensação de paz, e traz alguma felicidade. Carranca ocê já ouviu ou fez a seguinte pergunta: por que está tão carrancudo? A pessoa que é assim interrogada supostamente deve estar em um dia de mau humor, quando não há simpatia ou sorrisos. V Assim também são as caras das carrancas talhadas na madeira, o lábio não se abre para o sorriso, mas da boca escancaram-se dentes. Os artesãos e as artesãs parecem respeitar o ditado popular que diz: “Quanto mais feia melhor!”. Segundo a reportagem do site www.ambiente.brasil.com.br, a carranca serve, [...] “para espantar o mau olhado, espírito presepeiro, mal-assombro e pescaria ruim: caretas. [...] Na proa, esculpidas em madeira, um rosto assustador, são monstros temíveis cuja função é botar pra correr os mitos originários e residentes no São Francisco, como a Mãe-d’água e o Minhocão. De sobra, no passado, susto também para os indesejáveis jacarés, hoje extintos. Em algumas partes, as figuras de proa eram chamadas também de cara de pau ou leão de barca. Os personagens Negro d’Água, que sai das águas para pedir fumo, e a Mãe d’Água, amiga das lavadeiras, que adora presentes, já fazem parte da cultura local”. 17 “Tem muita gente angustiada e doente por causa da barragem”, diz atingido por barragem5 ernardo Cruz Souza é maranhense, mas há 18 anos mora em Minas Gerais. Depois que foi atingido pela barragem de Candonga ficou desempregado e hoje mora de favor em uma casa no município de Rio Doce. Bernardo ajuda na organização do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) na sua região e conta que por esse motivo sofre ameaças. Em entrevista ao Setor de Comunicação do MAB, ele relatou a angústia ao ver sua casa sendo destruída, sua situação de vida e suas esperanças. Hoje, 30 de agosto, a barragem está sendo inaugurada pelas empresas e pelo governador do estado, mas a população local não se cala, repudia o ato e se mobiliza dizendo que já basta de ditadura aos atingidos. B Setor de Comunicação: Qual seu sentimento quando você vai ao lago da barragem? Bernardo Cruz Souza: Antes era tudo bonito, agora eu não me conformo e infelizmente tenho que olhar e dizer: eu morava ali naquele local onde agora é o lago. Sempre que vem gente visitar eu digo: você quer ver onde a nós morava? A empresa chegou oferecendo mil maravilhas, dizendo que nós teria uma vida melhor, que os filhos iriam para a escola... Só que hoje o pessoal está passando fome, tem famílias que estão pensando em vender a casa, querendo comprar um pedacinho de terra e ir para a roça. Na Velha Soberbo era um lugarzinho feio, mas todo muito gostava. Até mesmo eu que cheguei depois fui acostumando com as pessoas. Setor de Comunicação: O que os funcionários da empresa diziam quando foram para Minas construir Candonga? Bernardo: Quando eles vieram para Minas, diziam que eram psicólogos, mas na verdade eram negociadores. Mostravam um documento pra gente dizendo que todo mundo ia receber moradia, eu lembro muito bem. Há oito anos atrás, quando eles andaram fazendo as primeiras visitas, fazendo os levantamentos, eles mostravam esse documento, não pra todo mundo, mas pra gente que procurava. Nos tiraram e botaram até em outro município. E nos diziam: espera ali ou vai pra justiça. E quem vai se meter com a justiça? Ela só vale para alguns... E como eu estava falando antes, essa necessidade, essa falta de alimentação, eu vim passar em Minas Gerais por causa da barragem. Nunca tinha me acontecido e já tenho 44 anos. Setor de Comunicação: Qual era a base da economia na região? Setor de Comunicação: No dia 3 de maio de 2007 a polícia destruiu o povoado onde vocês moravam. Nos conte como foi aquela situação. Bernardo: Muitos garimpeiros moravam ali mesmo, tiravam ouro e pedras preciosas. Tinha bastante gente que vivia da extração, mas tam- Bernardo: Na verdade a gente já estava com medo uma semana antes do dia 3. A gente tinha medo que eles poderiam nos ata- 5 18 bém tinha os que plantavam para a sobrevivência. Não faltava alimentação para ninguém, hoje a maioria das pessoas atingidas está desempregada, em torno de 95%. Eu passo uma grande necessidade e posso falar que nem no nordeste, que foi a região que eu nasci, não passei tanta necessidade como estou passando nesse local, pois agora eu estou desempregado. Fazem 20 anos que eu trabalho no garimpo e graças a Deus, sempre tinha alguma coisa pra mim me manter. Texto disponível em http://www.consciencia.net/agencia/2005/3108-mabmg.html car à noite, então fizemos várias barricadas, botamos madeira e fogo na estrada. Naquela semana o comandante foi na comunidade e disse que era melhor a gente sair, pois, segundo ele, aquelas terras já eram da empresa. Os policiais ficavam 24 horas por dia lá, vigiando cada passo que nós dava. Então naquele dia 3, às 5 e meia da manhã eles vieram, tinham várias viaturas, caminhões de bombeiros, cães farejadores... Também vieram autoridades, juízes, promotores. Isso pra nos tirar, mas quando foi para resolver os problemas, eles não voltaram. Algumas famílias já haviam saído, pois ficaram com muito medo. E os que restaram não queriam ficar, mas ficaram, pois não tinham pra onde ir. Setor de Comunicação: E o sentimento de ver as casas sendo destruídas pelas máquinas? Bernardo: Isso foi horroroso. Seis meses depois daquilo eu não conseguia comer, nem dormir bem. Às vezes eu vou lá e parece que vejo tudo de novo começando. Mas quem sofreu foram as pessoas mais idosas que viram a última construção ser destruída, a igreja católica. E se não fosse chegar uma pessoa na hora, tinham destruído a igreja com todas as imagens dentro. Foi uma imensa falta de respeito, isso por volta das nove horas da noite. Quando destruíam as casas, várias pessoas passaram mal, teve uma senhora que ficou com o braço machucado por um policial, pois quando começaram a destruir a casa da mãe dela, ela ficou muito nervosa. Eu mesmo, que sou forte, nessa hora fui fraco e não consegui ficar olhando. Num dia destruíram tudo e no local ainda moravam 14 famílias. Setor de Comunicação: E agora? Bernardo: Agora já encheu o lago e o pessoal está com a mão na cabeça, como diz o ditado. Não sabemos o que fazer. Isso sem falar que algumas famílias que receberam casas, tem que se mudar, pois as casas já estão caindo, outras estão escoradas com ferragem e paus pra não cair. E mais, há 15 dias atrás teve uma reunião numa cidade vizinha e falaram sobre proteção ao meio ambiente. Na verdade a gente já escutava falar que não teremos mais acesso ao lago, nem para pescar. Garimpar nunca mais. Setor de Comunicação: Qual sua maior esperança? Bernardo: A minha maior esperança é que todos tenham consciência que em qualquer região que forem construídas, as bar ragens só trarão problemas. Por exemplo, lá onde eu moro, só 5% dos garimpeiros foram reconhecidos. Fomos comparados com plantadores de maconha, diziam que nós tínhamos um trabalho ilegal. E os meeiros receberam uma proposta miserável e se não quisessem aquilo, teriam que entrar na justiça ou senão ficar sem nada. Mas o que eu mais quero é que um dia a gente tenha um espaço para viver, uma moradia e terra pra trabalhar, porque todas as pessoas que agora estão em Nova Soberbo estão sem terra. Setor de Comunicação: O que significa o MAB em Candonga e o que você diria para quem construiu a barragem? Bernardo: No início, quando o MAB chegou, foi rejeitado pelas pessoas, pois ainda não conheciam o Movimento. Mas foi rejeitado só por aquelas poucas famílias que estavam sendo indenizados. Eu sei que nós só conseguiremos as coisas se estivermos organizados no MAB. E para a Novelis e Alcan, eu diria que eles não tem nada de humanidade. Eles estão matando o povo. Tem muita gente angustiada e doente por causa da barragem. Eu não concordo com as barragens, nem que eles pagassem todo mundo direitinho, porque você perde todos os espaços para viver. 19 Luta por moradia Despejo da maior ocupação vertical da América Latina é iminente6 Rafael Sampaio roprietários venceram causa na Justiça e desocupação de edifício na Av. Prestes Maia, no centro de São Paulo, deve ocorrer até 4 de março, a menos que Prefeitura faça uma ‘intervenção política’. 1630 pessoas ficarão sem moradia. P SÃO PAULO – A maior ocupação vertical da América Latina está sob risco iminente de despejo. O edifício, localizado na avenida Prestes Maia, no centro de São Paulo, tem 22 andares e há dois anos abriga 468 famílias, que reúnem 1630 pessoas. A reintegração de posse, movida na Justiça pelo ex-candidato a vereador Jorge Hamuche (PHS), um dos proprietários do prédio, será executada até o dia 4 de março. “Em termos jurídicos não há mais nada a fazer”, lamenta o advogado dos sem-teto, Manoel Del Rio. Ele crê em somente uma solução para o problema: a intervenção política da prefeitura junto ao juiz que acompanha o caso. Desde segunda-feira (5), 300 sem-teto montaram um acampamento diante do prédio da Prefeitura, e prometem sair apenas quando for apresentada uma solução para as famílias que habitam o prédio da Prestes Maia. O secretário municipal de Habitação, Orlando de Almeida Filho, não deu sinais de que receberá qualquer comissão dos acampados. Ivonete Araújo, coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), reclama da omissão do poder público. “Faz dois anos que a prefeitura nos diz que não tem interesse em permitir que as famílias do Prestes Maia fiquem na rua. E agora eles deixam que o despejo aconteça, que todos nós sejamos jogados fora”, reclama. 6 20 Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br Poucas saídas Del Rio diz que o edifício está avaliado pela Caixa Econômica Federal em R$ 7 milhões, e que os proprietários – Jorge Hamuche e Eduardo Amorim – têm uma dívida de R$ 5,8 milhões acumulada com o município, devido ao não-pagamento de IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano). Em 2003, a gestão petista na Prefeitura, encabeçada por Marta Suplicy (PT-SP), se dispôs a pagar a diferença (R$ 1,2 milhão) para desapropriar o edifício. “Então se iniciou o processo de compra do prédio da ocupação”, lembra o advogado. Segundo o jornal Brasil de Fato, a Justiça exigiu que o valor da propriedade - R$ 7 milhões - fosse depositado integralmente pela prefeitura para que fosse feita a desapropriação. Como o poder público não pôde pagar, nada foi feito. “A prefeitura não dá sinais de que intervirá a favor dos moradores do Prestes Maia. Gilberto Kassab entregou o caso para a Justiça”, reclama Del Rio. O MSTC entrou em contato com o Ministério das Cidades para pedir apoio político, mas o governo federal pode fazer pouco, neste caso. O advogado sugere que a Prefeitura poderia propor um projeto de lei na Câmara dos Vereadores para desapropriar o edifício, ou então retomar o acordo iniciado durante a gestão petista. Osmar Silva Borges, coordenador da Frente de Luta por Moradia (FLM), informa que na quinta-feira (08) haverá uma reunião com o comando da Polícia Militar, para discutir sobre como será feita a reintegração. “A prefeitura tem que nos atender e dar um destino para as famílias”, diz ele. A FLM integra o acampamento erguido para pressionar o poder público a atender os moradores da ocupação Prestes Maia. 21 22 O som dos tambores: ecos de resistência e luta do povo negro á tempos os tambores são utilizados como forma de expressão dos negros no Brasil. O som vibrante eram escutados nos terreiros das fazendas, quando o povo africano desapropriado de suas origens se reunia para festejar, louvar os ancestrais e reafirmar os ideais de resistência e luta. H Ainda hoje, várias danças e manifestações culturais são embaladas pelo som dos tambores e fica difícil permanecer imóvel em meio à energia que eles transmitem. Na reportagem do jornal Brasil de Fato intitulada “A riqueza multicultural de São Paulo”7, a cena descrita oferece uma idéia do corpo embalado pelo ritmo da batucada: Entre os grupos de dança, apresentações de folias de reis, congadas, moçambiques, catira e folias do divino. Muita cor, muita música e muita descontração contagiavam a platéia, que procurava seguir os passos dos grupos e acompanhava com palmas o ritmo caipira. Para entender um pouco mais sobre as diversas manifestações culturais do nosso país, destacamos a seguir um Pequeno Dicionário Cultural, como foi nomeado pela equipe de reportagem do jornal: Congada paulista Congado é sinônimo de encontro ritual de vários grupos de Congos, Moçambiques e Assemelhados. Cortejos de forte raiz africana, existem nos mais diversos pontos do país, em festas religiosas, principalmente nas dedicadas à Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito. Reisado Folias de Reis são grupos que, em forma de ranchos, recontam a lendária viagem dos Três Reis Magos do Oriente para adorar o Deus Menino. Jongo Dança de origem banto, do mesmo tronco do batuque, ambos ancestrais do samba e 7 do pagode, que resiste em alguns pontos do Vale do Paraíba. Nela, são homenageados São Benedito e antepassados negros. Fandango de Tamancos Fandango, no interior Sul e litoral Sul, continua a designar os bailes de sítio, as folganças que animam ocasiões especiais (casamentos e aniversários). Neles, sapateados e palmas se alternam com valsados e danças de sapateado forte (fandango de tamancos e fandango de chilenas). Samba de Bumbo e Samba de Lenço Duas variantes do samba tradicional em São Paulo, consideradas como os ancestrais do samba cosmopolita. Guardam traços que os aproximam do jongo e do batuque. O de Bumbo é característico da festa do Bom Jesus, em Pirapora. O de Lenço é em devoção a São Benedito. Catira Outra dança de palmeados e sapateados, acompanhados, sempre, por duplas de violeiros, que alternam as modas com a atuação dos catireiros. De tradição masculina, muitos grupos já admitem a participação de mulheres. Coco Dança típica das regiões praieiras, e comum no Norte e Nordeste. O coco vem do canto dos tiradores de coco. Tem uma coreografia básica: os participantes formam filas, ou rodas, sapateiam, respondem o coco, trocam umbigadas e batem palmas marcando o ritmo. A dança tem influência dos bailados indígenas Tupis e dos negros, os batuques africanos. Os instrumentos mais utilizados de percussão: ganzá, bombos, zabumbas, caracaxás, pandeiros e cuícas. Jornal Brasil de Fato de 25 de setembro a 1º de outubro de 2003. Cultura (pág. 16) 23 O pesquisador Paulo Dias 8 utiliza a expressão “Comunidades do Tambor” ao se referir aos diferentes estilos regionais das danças-músicas negras (como os batuques, as congadas, os candomblés e o samba urbano). E destaca: [...] um certo repertório de padrões rítmicos que se reproduz, em diferentes con- juntos instrumentais, através do imenso território do Brasil e das Américas negras, criando laços simbólicos de parentesco com a África distante. Linhagens rítmicas que, mais resistentes ao tempo que qualquer palavra ou canto, atualizam-se a todo instante pelas mãos que tocam e pelos pés que dançam. A cultura, a consciência e a mística9 Ademar Bogo T rês elementos se combinam na formação do sujeito histórico Sem Terra: a cultura a consciência e a mística. Um ser humano independentemente das circunstâncias de que é gerado, nasce pelo empenho e esforço de outros que se relacionam. Os hábitos do cuidado para que este ser se desenvolva são recolhidos dos ensinamentos passados pelas gerações que fizeram sua experiência e descobriram que determinadas ervas se transformam em remédios, frutas e cereais se transformam em alimentos etc. Ao rebentar, o ser humano indefeso, deixa de ser apenas rebento e passa fazer parte de uma sociedade determinada, por isso torna-se ser social. Encontra, portanto uma estrutura social montada que lhes facilita a vida e ao mesmo tempo impõe limites estabelecidos por dois poderes: temporal e espiritual. O Estado cuida da estrutura das leis, e a religião da moralidade. Aprende a manejar as coisas a partir dos ensinamentos produzidos pela experiência de seus genitores e se produz a si próprio a partir das iniciativas e determinações estabelecidas. Tem como obrigação nesta escala da formação humana, primeiro aprender o nome dos objetos que usará para se comunicar e produzir a própria existência; segundo: seguindo a tradição, educar-se em uma escola, freqüentar 24 a igreja assumindo uma religião, assimilar valores e pô-los em prática, e terceiro, dedicar-se ao trabalho para daí extrair os alimentos, buscar meios para edificar sua moradia, comprar utensílios, roupas, calçados, portanto lidar com o mercado etc. Se os pais são camponeses e possuem terra, aprenderá cedo o ofício da agricultura executando tarefas determinadas e perceberá que o alimento vem da terra cultivada. Se os pais forem operários, aprenderá que o alimento vem do salário. Quem não tem salário não tem alimentos. Essa é a ordem de comando do capital. Acompanha esta trajetória, preceitos morais, ou seja, normas que se baseiam em valores morais que objetivam formar costumes. É isso que diz a palavra “moral” no latim significa mores, ou seja, costumes. Estes ao serem assimilados, seguem os passos da obediência pacífica. No caso de dúvidas ou desrespeitos, apela-se para a ética que refletirá o modo de ser e retificará os desvios de caráter. Os costumes padronizam o comportamento, de grupos ou de toda a sociedade que podem ser alterados de tempos em tempos. Em sociedades igualitárias as normas são mais duradouras. Em sociedades desiguais, as normas e os valores são ultrapassados constantemente pelos interesses do capital, que busca atingir através da “massificação da cultura” (cultura de massas) o caráter das 8 Trabalho publicado (ver site do Min. das Relações exteriores http://www.dc.mre.gov.br) Foi escrito originalmente para apresentar a exposição multimídia “Comunidades do Tambor”, montada no SESC Vila Mariana, em São Paulo, durante o evento “Percussões do Brasil”, em 1999. 9 Estudo feito com o setor de cultura do MST em Ibirité em 19 e 20 de maio de 2001. pessoas, para que se submetam à ordem dos interesses político ideológicos da classe dominante. Os grupos e as sociedades não consumistas se defendem através da “cultura popular” repassando os conhecimentos pela afetividade existente na relação comunitária que a seqüência de gerações estabelece. senvolvimento. Estabelecem mudanças nas relações sociais e deixam à margem da sociedade uma quantidade significativa de seres sociais que, não podendo reproduzir os hábitos anteriores, nem podendo assimilar os hábitos novos na totalidade, se colocam entre duas alternativas: misturar o possível entre o velho que resta e o novo emergente, modificando a prática e deformando o caráter, ou resistir para não deixar-se excluir e assimilar o possível conscientemente da evolução. Isso acontece em ambas as condições e é possível, porque os seres humanos não nascem prontos e acabados. Há espaço na consciência social e poAs mudanças lítica para acrescentar elementos tecnológicas que dão identidade ao caráter, e mudam com isso, os seres humanos adquirem características próprias, a rapidamente partir de seu próprio esforço e inhábitos e, teresse, ou pela manipulação e alienação de instituições criadas quando não bem para este fim. assimiladas, Mas tornam-se cultura também os aspectos negativos em uma sociedade desigual. Isso ocorre quando as pessoas aceitam as condições e reproduzem os interesses alheios sem reagir. Aceitam ver gente desempregada, sem terra, analfabeta, faminta, prisões superlotadas, transporte ruim etc. como aspectos naturais de uma sociedade “desenvolvida”. A cultura representando tornam as tudo o que fazemos, parte dela pessoas vítimas conduzida pela superestrutura da do próprio As reações espontâneas sociedade, e parte dela pelo senso comum, condiciona o ser hu- desenvolvimento. não resistem à dominação cultural, elas devem se propor a dar mano a executar gestos que reidentidade aos gestos que simbolicamente se force a harmonia social, obrigando-se a cetransformam em referência de resistência perder em pontos particulares quando estes esmanente. Nasce assim, a ideologia da resistão fora de seu alcance ou ferem os direitos tência como novo conteúdo da cultura que se dos outros. Mas por outro lado, aprende na manifesta no fazer acontecer possibilidades até produção da existência a ter direitos como: então desapercebidas. propriedade (terra, casa, objetos de uso) comprar e vender, passear, amar etc. Esta trajetória histórica e seus limites é que As mudanças tecnológicas mudam rapidamente hábitos e quando não bem assimiladas, tornam as pessoas vítimas do próprio de- demonstraremos na existência feita pelo MST e as possibilidades de mudanças que descobriu pelo simples fato de pensar e fazer diferente. Da cultura produzida para a produção da cultura O conhecimento sociológico e histórico pode explicar as transformações econômicas e sociais que ocorreram no campo brasileiro nos últimos 50 anos, onde passamos, de sociedade agrária, para sociedade urbana industrializada. Mas é o caipira que faz a cidade e fica fora dela. Esta transferência de cultura de um lugar para outro nos deixa quatro elementos para analisar a desconstrução e os pilares da reconstrução cultural. 1º Ironia Caipira O êxodo rural transferiu dentro de sacarias atadas com cordões de couro e cipós, em baús de madeira feitos á machadinha, a riqueza cultural de alguns séculos de existência produzida ás margens das trilhas de terra que levavam e traziam o progresso, mas os ventos da industrialização e das invenções tecnológicas, 25 um dia sopraram os últimos ciscos humanos para os centros urbanos onde o capital engoliu o espaço e tudo ficou apertado. Ali a consciência e a mística se misturam para dar forma a esta nova maneira de produzir a existência. Assim o caipira conta sua história de quando chega na cidade através da Música de Tião Carreiro “Cochilou o Cachimbo Cai” “Quando cheguei em São Paulo Dava pena dava dó Minha mala era um saco O cadeado era um nó” 2º Mudança de Natureza Esta mudança de lugar social, e de separação do ser de sua categoria de origem para formar uma nova categoria do dia para noite sem especialização, explica-se como sendo o desmanche de um modo de vida social, para no simples descarregar das mudanças, formar outro, com mais luzes mas com menos claridade para iluminar os passos futuros. Muda o lugar social mudase a base da formação da consciência. 3º Incerteza e Dúvida Os que teimam ficar na agricultura, agarraram-se aos próprios suspiros. Pesarosos, olhando para quem parte sem saber se estão certos em deixar a roda da história seguir sem eles. Mesmo sem terra para trabalhar, resistem. Alimentam a tradição de serem posseiros, meeiros, arrendatários ou peões de fazendas. Os filhos dos pequenos proprietários saem da adolescência, recebem o aviso que devem se quiserem casar e constituir uma família, procurar outro galho para fazerem o ninho, pois aquele no qual vivem com os pais, já não resiste a muito mais peso. O sentimento da resistência é o caminho para a reconstrução do ser humano, misturando consciência e mística para produzir um tempo novo. 26 Ao mesmo tempo que alimentam a categoria aprendem coisas novas, que vão fazendo mudanças no comportamento e na forma de pensar. Coisas boas que enraízam ainda mais a cultura mas também coisas ruis que ficaram como cicatrizes para serem apagadas no futuro. 4º A construção da identidade Esta condição de ser sem-terra se transforma em consciência, onde a mesma condição social serve para dar nome a um Movimento em que seu desenvolvimento confere a mesma identidade às pessoas, mudando sua cultura, a consciência e a mística tornando-se condição social. Por isso, mesmo conquistando a terra, os homens, as mulheres e as crianças, ficaram marcadas por este sinal de ser Sem Terra. Na produção da existência com uma nova consciência alimentada pela mística, aparece o processo da formação da nova cultura, o sem-terra (condição social) de ontem, se torna no Sem Terra (sujeito histórico) de hoje, conviveu e convive com três formações culturais combinadas. a) A cultura imposta Enquanto categoria sem-terra vivendo nos campos e nas periferias das, ficando cada vez mais à margem da modernização tecnológica, a normatização da sociedade organizada e os preceitos morais difundidos pelas religiões e pela mídia, são mediadoras em submeter a massa deserdada e desinformada dos próprios direitos, aos caprichos e interesses da classe dominante que acumulou sem piedade a terra, a renda, a riqueza, o poder e os conhecimentos. Com isso, dia-a-dia as pessoas foram vendo seus conhecimentos históricos, hábitos de convivência, valores e costumes sendo arrancados da própria consciência a golpes e a empurrões, e em seu lugar, plantados pela propaganda massiva, viram nascer o interesse pelo consumismo, a competição, o desrespeito pela vida e a aceitação passiva da destruição da própria identidade. A ideologia dominante, na busca de esconder a verdade, encarregou-se de justificar, através da mídia o mal estar e o abandono dos caipiras agora na cidade. Como uma árvore adulta transplantada, mantém-se abatida, murcha, mas sobrevive por algum tempo. A semelhança entre os hábitos, levam os jovens do uso do cigarro ao consumo de drogas mais perversas. A linguagem ganha novos vocábulos e a ingenuidade caipira cede lugar à gíria. O modismo condiciona os interesses e ocupa o espaço da consciência social com nomes, marcas, cores. A mídia, sábia, vai até o campo através da arte buscar pedaços de raízes decepadas, e as traz para a cidade, para consolar, ao mesmo tempo que faz consumir os desconsolados. Através da música adaptada, demonstra que se pode ter em casa em forma de som, o que já não se tinha mais na vida. A mística através de um de seus elementos principais, a arte, cumpre o papel de preencher os vazios na consciência estética e no sentimento dos pobres desenraizados. Quem se adapta e se dá bem na cidade, passa a integrar o mundo urbano dos incluídos, vivendo como àqueles que ali nasceram em condições favoráveis. Mas para àqueles que nada conseguem a não ser a marginalidade do desenvolvimento, a saída é raciocinar e vivenciar misticamente as fantasias. Perdem-se com as batidas nas barrancas da história, pedaços da cultura produzida e alimentada por diversas gerações. Ficam para trás despedaçados os valores, utensílios domésticos rejeitados ou impedidos de serem usados, conhecimentos no trato com os animais, nomes de plantas e de sementes, as superstições, a religião, fantasias, contos e estórias de caçadores, viajantes, boiadeiros etc. Estes vazios deixados pelos pedaços de vida perdidos, são agora substituídos pela pomposidade dos interesses dominantes. Vem a desmotivação a dor e o desespero. Quem está dominado perde a condição de expressar com liberdade o que sente. b) A contestação da cultura Estes elementos positivos e negativos, presentes e passados acompanham os Sem Terra antes e depois de se tornarem categoria social, que em determinado momento ajuda alinhar os passos para o lado certo. É um período de transição entre a imposição e a contestação da cultura, mas que, pela insegurança e desconhecimento, muitas coisas ainda são impostas. Tudo inicia com a assimilação do pensamento; “A terra é para quem nela trabalha”. De uma frase confusa, se origina a filosofia da contestação cultural e a formação do MST. Confusa porque não específica “quem nela trabalha” e nem a quantidade de terra necessária para trabalhar. Mas por outro lado dá a entender que ninguém pode ter terra se não trabalha nela, e ninguém pode ficar sem terra, se ela existe em quantidade. Sendo assim os que tem terra perdem o direito de arrendá-la ou de mantê-la como reserva de valor. Esta contestação terá dois sustentáculos que outrora serviram exclusivamente para dominar os excluídos: A Constituição Federal e a Bíblia. Ou seja, do poder temporal vem a lei, do poder espiritual vem o direito. Associando os dois poderes, quebra-se as barreiras da proibição e gera-se um “terceiro poder”: o poder popular, que faz perder o medo de buscar através da luta o que pertence a cada um. Neste lutar, definem-se os amigos e os aliados. Na esfera política surgem os políticos contrários que se articulam para reprimir, e também os aliados que buscam através dos Sem Terra, autoafirmar-se como políticos profissionais. O conhecimento das classes sociais pela via prática, traz, para a consciência dos lutadores pela conquista da terra um elemento novo, que é o de perceber como se exerce o poder político no país. A diferenciação dos três poderes, aprende-se na prática e descobre-se que o judiciário é o poder que está mais próximo, justamente para garantir o direito de propriedade aos homens influentes da região. O legislativo é mais “liso” e oportunista, e o executivo é lento e melindroso. Mas a força da consciência os decifra facilmente para enfrentá-los. A ação direta tem o poder de colocar em circulação os que até então eram desconsiderados na da superestrutrutura da sociedade e isso leva a mexer com os poderes: local, regional, nacional e posteriormente internacional. As organizações sociais e políticas como sindicatos e partidos, buscam articular formas de defesa jurídica, solidariedade e propaganda da ação. A imprensa se manifesta a favor e contra, procurando divulgar o fato para ajudar a resolver o conflito pela via da negociação ou pelo desgaste político de quem luta, para que a repressão atue com maior tranqüilidade. As igrejas, através de seus representantes, com as devidas precauções, também se manifestam para intermediar, podendo ajudar o fazendeiro como os trabalhadores. Essas intervenções deixam marcas, como cicatrizes na face, que serão reconhecidas no 27 futuro, e assim como podem atrair aliados, podem afastá-los, pois a cultura tem este poder de ao fazer a existência, provocar o aumento da dominação, como também incentivar o nascimento da autonomia. Esta reação ativa e coletiva, contrária da anterior provocada pelo êxodo rural passiva e individualizada, exige o surgimento de uma organização, nasce então a cultura do movimento. Ninguém sabe o que significa e nem as conseqüências que terá, fazendo parte de um movimento, mas as circunstâncias naturalmente empurram as pessoas para este caminho que lhes dará de imediato tarefas para cumprir. Cooperar exige trabalho e emprego de mais esforço. A cultura do movimento ganha conteúdo. E aos poucos se estende e avança para formar um movimento social, como instrumento de defesa e resistência frente às injustiças. O que vem antes, portanto, é a injustiça compreendida pela consciência. Em nosso país não é difícil perceber isso, pois já a décadas, a injustiça se transformou em exclusão, e a exclusão em indigência. Não há para onde fugir, pois o espaço está todo tomado, embora não ocupado como é o caso da agricultura. Temos no Brasil 850 milhões de hectares de terras e apenas 34 milhões de há, são utilizados com lavouras. Isso demonstra que a cabeça de nossos governantes está no primeiro mundo, mas os pés estão presos nas capitanias hereditárias. Agora é o momento que ganha importância as velhas panelas, os velhos colchões e cobertores, as ferramentas inativas, os facões cujo tempo lhes roubou o direito de cortar e todos os conhecimentos adormecidos despertam para ajudar na viajem que construirá a nova existência. Mas, por outro lado o MST consegue utilizar outros elementos um pouco esquecidos, mas que dão condição às pessoas de firmarem os passos na direção da libertação. Vejamos alguns deles. 1º A autonomia O surgimento dos movimentos sociais trouxe consigo esta característica de desde o início querer ser autônomos. Isto não significa isolamento e desarticulação. O fato de buscar definir os critérios de participação, elaborar o próprio método, definir datas, horários etc. é a demonstração prática de que o sujeito da história somente o é quando tem liberdade de pensar e decidir sobre si próprio. Os movimentos sociais forjaram a liberdade de se constituírem sem manuais. Por isso nasce com eles uma nova consciência e um novo jeito de ser sujeito histórico. Ninguém pode querer medir a velocidade dos passos de quem quer correr para chegar mais cedo. É a marcha da história que se choca com a burocracia do Estado. Os limites superam-se combinando força e inteligência. c) A construção da nova cultura A nova cultura tem seu germe na reunião de base onde se toma a decisão de ocupar, acampar ou pressionar o governo de alguma forma para que distribua a terra. É hora da consciência perfumar com a mística a existência que está sendo produzida. Utiliza-se a velha noite. Ela é a referência primeira para se fazer uma ação. A escuridão representa medo, mas neste caso dá segurança para quem precisa mover-se. É nessa via contraditória entre esta contradição de sono e rebeldia da busca apaixonada do encontro da terra com os seres humanos, como se ambos tivessem vergonha de nascer do latifúndio durante o dia, precisam dos braços da noite para realizar o grande nascimento. O resgate do velho, mas útil compõe o carregamento da mudança que leva este velho ser para uma nova terra, para na solidariedade formar-se nova gente. As reuniões são feitas à noite quando os Sem Terra, ainda operários voltam do trabalho, onde deixaram toda a força de trabalho mas não o ânimo de buscar sua própria terra. Renasce nas pessoas o espírito adormecido de liderança e começa aparecer os nomes de quem se envolvem. O nome está ligado à responsabilidade e ao poder de resolver os problemas. Quanto mais se envolve mais comprometido fica. 28 2º A noite Por isso também temos o preto como uma das cores de nossa bandeira. Representa mais que o luto pelos companheiros mortos, que certamente gostam de ser homenageados pela cor vermelha, mas a noite como simbologia do sofrimento que pretendemos eliminar indo ao rumo do dia. A existência do MST começa pela noite, ao contrário de outras organizações que esperam pelo horário comercial para abrir suas portas. A noite não é só dos seresteiros, mas de todos os apaixonados que buscam na relação humana coletiva e solidária fazer nascer das fantasias um mundo de verdade. 3º A família A velha família criada pela divisão social do trabalho e utilizada como espaço de dominação entre àqueles que se amam, ganha novo significado na luta dos Sem Terra. Recorre-se à família como força de referência para aumentar o número de pessoas na ocupação, mas também como forma de respeitar o princípio de que a terra pertence somente àqueles que por ela lutam e nela querem viver. A família, embora se estruture de forma autoritária e nela se reproduza a dominação entre entes-queridos, é o espaço do cultivo do amor e das paixões, envolve as pessoas tornando-as “uma só carne e um só espírito” e através dela, resgata-se a identidade, os valores e o companheirismo entre os lutadores. Além do mais ela mantém as pessoas unidas. Pode-se deixar para trás pedaços de lonas, mas nunca pedaços da família. O destino de uns está ligado ao destino dos outros. Por isso é difícil desmobilizar uma ocupação, mesmo com violência nos despejos, as pessoas permanecem organizadas, pois não tem como voltar para casa. Tanto a casa quanto a mudança estão junto com os lutadores. Os utensílios mantém as pessoas agrupadas ao redor deles. Como estamos em um estágio de lutas de massas este fator é importante pois as formas de luta não exigem muita mobilidade. 4º Os símbolos Tudo passa ter significado próprio. Discos velhos de arado servem de sino para expressar em códigos através de batidas, quando é assembléia ou emergência. Alguns resgatados da tradição como a cruz e a bandeira. Estes objetos além de ganharem significado próprio, alimentam a ideologia e a utopia daqueles que lutam. As ferramentas de trabalho ganham importância como a simbologia do trabalho, mas também como instrumento de defesa. As ferramentas simples são essenciais, usadas desde a construção do barraco, revelam a defesa de um modelo de agricultura que não excluí a mão de obra pela tecnificação. Pena que isso nem sempre se sustente e a sedução das máquinas levam a encostá-los, submetendo a agricultura familiar aos inventos da grande empresa. Máquinas também fazem parte dos instrumentos de trabalho e demonstram o desejo de cooperar e produzir em grande escala de forma cooperativada. A tecnologia que ajuda no desenvolvimento econômico social e humano deve estar sempre ao alcance das mãos daqueles que sabem quem estão com os pés firmes no chão. 5º As tarefas Surgem da noite para o dia as comissões, e àquele que mal aprendeu viajar precisa embarcar em um avião para ir até a capital negociar com o governador, que nunca o viu nem sequer sabe qual é sua opinião sobre a reforma agrária. A consciência e a mística se misturam nesta nova relação é preciso arranjar uma roupa melhor, um calçado adequado é o resgate da auto-estima que começa a nascer a partir dos cuidados com o corpo. Os que ficam ansiosos por notícias são transformados em soldados da guarda popular, armados de paus e foices para garantir a integridade física daquela comunidade. Há os que se dedicam à saúde, à educação e a outros serviços voluntários. Na medida em que o conflito vai se resolvendo e a terra está prestes a passar para 29 as mãos de quem lutou por ela, começa haver uma certa acomodação, justamente porque agora a idéia não é organizar para o conflito mas para a passividade. Não é a disposição que enfraquece, mas a consciência que ganha novos elementos e a mística nasce por outras frestas abertas nesta construção do sonho familiar. A consciência passa a receber novas informações e símbolos que os interesses pessoais desenham sobre ela com muita rapidez. O pequeno aviário feito de varas, a arapuca para pegar passarinhos, o anzol armado na margem do rio é a velha cultura despertando em uma nova consciência através de hábitos simples. Dependendo da incapacidade de estabelecer objetivos coletivos, os interesses revelam as marcas nas consciências como: propriedade privada dos lotes, moradia individual para ficar distante dos vizinhos, aquisição de máquinas individualmente para não coletivizar, uso do fogo em demasia, de adubos químicos, herbicidas e inseticidas. Estes elementos definem a produção da existência das pessoas depois da terra conquistada, que geram novas tarefas. A reflexão e a prática da cooperação aos poucos demonstra que a libertação dos fracos está na unificação das forças dispersas. 6º A Escola Muitas famílias se reúnem e lutam se primeiro tiver escola para os filhos. A educação para a grande maioria é tão importante como o alimento. Ninguém quer que os filhos cresçam sem ter o direito de estudar. Por isso uma das primeiras coisas a fazer após instalar-se na ocupação da terra é a escola, onde alguém é solici- tado a iniciar as aulas enquanto uma comissão luta pelo reconhecimento na secretaria de educação no município. Na preocupação com a busca do conhecimento escolar, está a mística de que os filhos sejam “diferentes” dos pais que não tiveram esta oportunidade de estudar. Há nisso um valor ,mas também um preconceito. O valor é que a preocupação em conhecer sempre, mais liberta o ser humano da ignorância. O preconceito é de que o ser humano que não tem escolaridade é inferior e nunca será “alguém na vida”. 7º A Alegria Muitas músicas são cantadas para animar as reuniões e as assembléias antes e depois da ocupação. Festas são organizadas e fogueiras são acesas como elemento de unidade e confraternização. A luz e o barulho espantam o medo e evitam o isolamento. Cerimônias religiosas, refletem os sentimentos mas também trazem bem-estar e consciência dos atos que devem ser assumidos por todos. Estes e outros elementos e objetos utilizados se agregam-se à consciência das pessoas e se transformam em aprendizado na produção deste pedaço de existência. Posteriormente as festas de comemoração das colheitas, das conquistas e de datas significativas fazem da memória histórica elementos de reflexão, onde o prazer de Ter feito se mistura ao prazer de dizer que fez. Por isso a mística é um mistério que não acaba nunca. Dezenas de outros aspectos se misturam nesta reconstrução da história, por isso o resgate daquilo que em um ambiente desgastado pelas deformações ajuda a forjar uma nova estrutura com coisas simples. A formação da consciência e a mística 30 A consciência está ligada ao conhecimento. As coisas passam para a esfera do conhecimento e se tornam consciência. Isto acontece sempre que uma nova informação aparece, a ignorância sede lugar ao conhecimento. Enquanto não conhecemos a existência e a causa dos fenômenos, somos escravos deles. Quando tomamos conhecimento de sua existência, aprendemos a dominá-los ou a conviver com eles. Há por sua vez, formas distintas de conhecer, ligadas à necessidade humana. A emoção de descobrir somente sente àquele que procura. É na busca de satisfazer as necessidades básicas, que os seres humanos aprendem a dominar a natureza e a lidar com ela. No convívio com a natureza e com a sociedade, vamos aprendendo coisas que possibilitam defender a vida, e desenvolvemos capacidades de produzir objetos que se conformam na cultura de um determinado grupo social. Esta consciência social, formada pela convivência social tem maior ou menor nível de conhecimentos a partir do esforço empregado e os interesses que tem os próprios indivíduos. Há culturas de grupos sociais altamente desenvolvidas pelo fato de terem desenvolvido o conhecimento e aprenderam a dominar a realidade, transformando a natureza e alcançando um alto nível de desenvolvimento. Há necessidades que encontram meios favoráveis na realidade e favorecem as descobertas tecnológicas. Existem povos na história da humanidade que desenvolveram, antes mesmo do desenvolvimento da ciência, conhecimentos altamente importantes para seu crescimento. Por isso, a consciência na formação dessa nova existência é: criar em cada momento histórico soluções para as contradições que se formaram, produzindo mais contradições. Mística A mística é mais do que alimento nesta produção da existência, é o fator que provoca a fome de querer mais e melhor. A mística no MST tem três vertentes fundamentais: 1ª) A contemplação O camponês é condicionado a pensar através do ciclo do desenvolvimento das coisas. No preparo do solo ele espera a chuva para semear. Ao semear espera a planta nascer para limpar a roça e cuidar dos insetos. Depois espera as flores, os frutos verdes e maduros. Aí vem a colheita e a repartição da safra em três partes na seguinte ordem: sementes, comer e mercado. Com os animais é a mesma coisa. O período de gestação de uma fêmea é acompanhado de cuidados e admiração. É o ciclo da vida que ensina no silêncio a ser contemplativos. 2ª) A espiritualidade Identidade Ela é o conhecimento das coisas e ao mesmo tempo o conhecimento de quem conhece, através das capacidades desenvolvidas. Quanto mais se conhece, mais nítida se torna a identidade pessoal e de um povo. Consciência confusa, forma identidades confusas e confuso também fica o caráter das pessoas. Ao mesmo tempo que afirmam, negam pela prática deformada dos valores. Memória Memória são saberes retidos evitando que se percam, disponíveis para serem usados sempre que os interesses pessoais exigirem. Por isso é que a consciência além de conhecimento é sentimento, emoções, vontade e imaginação. O saber são experiências desenvolvidas por seres sociais que a seu modo conseguiram O camponês vive para alguém. Tem a sensação de que está sendo vigiado por alguém superior a ele, por isso recorre a ele sempre que tem dificuldades na doença das pessoas e dos animais, quando falta chuva ou quando quer alcançar algum objetivo. A religião através de seus ritos transforma o camponês também num ser místico, ligando a matéria ao transcendente. 3ª) A música Não é apenas o canto da natureza, as vozes dos zunidos dos insetos, das asas das abelhas que faz o camponês um ser místico, senão o seu próprio canto. Canta-se a vida com todas as fantasias e dores. Estas três vertentes se ligam no momento da organização da luta dos Sem Terra. O gosto pela beleza, a capacidade de esperar meses e anos embaixo de lonas pretas, a alegria das 31 noites ao redor das fogueiras, a motivação de participar das marchas etc. Por isso compreende-se porque os camponeses querem ver resultado concretos nas mobilizações, pois precisam visualizar para poder contemplar seus próprios passos. A Alienação Há, porém um processo contrário a este que leva a alienação e a dominação, onde o ser humano se deixa dominar pela sua própria obra criada. Isto ocorre porque, na vontade de explicar o desconhecido, os seres humanos formulam explicações e se tornam escravas da própria ignorância. Ao imaginar algo com características próprias, se submetem a ele como se existisse de fato esta realidade, e se acomodam esquecendo-se que é sua própria criação que os domina. Após a criação desta obra os seres humanos se separam dela e não se reconhecem na obra criada, sendo esta independente e superior a força humana. Sendo assim os seres sociais fazem a sociedade e perdem o controle sobre ela, tornando-se vítimas da própria criação, e aceitam pacificamente seu funcionamento. Os seres humanos criaram a propriedade privada e tornaram-se vítimas dela, por não poder limitar a quantidade de seu uso. Elegem os governantes e tornam-se vítimas deles. Criam instituições de todos os tipos com leis, normas e valores e tornam-se vítimas delas. Mas lhes dão legitimidade por acreditar na sua superioridade e assim se tornam obedientes. Na filosofia materialista aparece clara esta divisão: divisão sexual e social do trabalho, divisão social das riquezas, divisão, divisão social das trocas, divisão social do poder econômico, político, militar e religioso. Também haverá a divisão social do saber. Surge portanto as classes sociais, onde uma tem mais poder que as outras. Ocorre então a alienação de uma parte da sociedade pois não compreende como funciona a sociedade que ela ajuda a manter e acaba se submetendo as normas estabelecidas porque o poder temporal lhes oprime no presente, e o poder espiritual promete lhes punir no futuro. 32 Segundo M. Chauí existem três tipos de alienação. Social, econômica e intelectual. A alienação social acontece quando os seres humanos não se reconhecem como produtores das instituições e se comportam dubiamente: ou aceitam passivamente tudo o que existe por ser natural ou divino, ou se rebelam individualmente julgando que podem mais que a própria realidade. A alienação econômica acontece quando os produtores não se reconhecem como tal, nem como condição nem pelos objetos produzidos. Justamente porque da forma como se relacionam com a produção os trabalhadores são uma mercadoria que produz outra mercadoria de outro gênero com preço diferente que ninguém se preocupa pela sua origem. Os trabalhadores percebem que produzem coisas, mas sentem que estas não lhes pertence pela lógica do sistema de produção. A alienação intelectual ocorre pela separação entre trabalho material e trabalho intelectual. Muitos intelectuais passam a acreditar que o trabalho prático não depende de conhecimento, as idéias e o conhecimento é tarefa de quem estuda. Não percebem que as idéias são reflexos das coisas e das relações existentes na sociedade em que vivem e que devem ser usadas para explicar esta mesma realidade, com o intuito de transformá-la. As idéias não criam a realidade, ao contrário, são criadas por ela, por isso quem transforma a realidade transforma também a ignorância em conhecimento. Não pode haver separação entre pensar e fazer. Na relação da formação da consciência através da organização dos Sem Terra, há que entender que a espontaneidade não pode elevar o nível de consciência, apenas pode levar a um sentimento de revolta, mas sem condições de estabelecer uma clara relação entre as causas e os efeitos dos problemas. É preciso planejar a formação da consciência a partir de diretrizes e métodos corretos que invertam as formas de alienação para não incorrer no risco da alienação, agora com identidade popular. Na medida em que a alienação econômica deve ser rejeitada é preciso buscar formas de compreender as contradições da matriz produtiva, que está na consciência social das pessoas. Este aprendizado vem a partir da convivência com os objetos. alienam. A estrutura social deve estar a serviço da sociedade, mas para que isso aconteça deve ser apropriada por ela. A delegação de poderes é o primeiro sintoma de que uma grande maioria participará menos. As estruturas não podem ser estáticas. Quando isso acontece se burocratizam. A delegação de poderes possibilita a diferenciação entre os membros da mesma organização. Hierarquiza-se para eu alguns possam ter mais poder que outros. Não se pode querer, porém que se tenha uma organização anárquica, sem instâncias e coordenações, mas é preciso saber como participam àqueles que ficam fora dessas esferas? Que discussões fazem e que decipessoas, com sões tomam? Há por exemplo uma preocupação muito grande com a propriedade privada da terra e precisamos respeitar conscientemente esta vontade. Há no imaginário familiar que a organização fundiária é a grande fazenda ou o pequeno sítio. O capitalismo não desenvolveu ainda grandes propriedades cooperadas. Os trabalhadores assalariados na grande maioria das atividades são sazonais e se diferenciam dos operários porque podem ser substituídos a qualquer momento. Por isso que a primeira coisa após a liberação da terra é dividi-la em lotes. Soma-se a isso a visão do uso da mão de obra familiar. O problema não está nestes aspectos da propriedade, do tra- As A produção da organização balho e da moradia, mas sim na o tempo, podem é também a produção de seu compreensão de que é preciso organizar a convivência social a rejeitar aspectos organizador. Um não cresce sem o outro. Quando uma organização partir desta realidade que ajuda impostos a no melhoramento das condições forma poucos quadros, é sinal que partir do está se burocratizando e que a esde vida, na elevação do nível de nascimento e trutura e a teoria dessa organizaconsciência e no fortalecimento ção está sendo assimilada por pouda mística. Tudo o que utilizamos buscar sua gente. Mesmo sendo um movipara produzir vai sendo relacioprópria forma de ca mento de massas, a grande maionado pela consciência, que se orexistência. ria está alienada da organização, ganiza em forma de memória e se participa dela, mas não sabe como revelará toda vez que o ser portase compõe nem o que pretende alcançar. Com dor deste conhecimento acumulado sentir neo tempo vem o cansaço acomodação e a desiscessidade dele. Por isso, não basta teorizar sotência. A mística foi embora. bre a destruição da natureza, pelas derrubadas e queimadas, ou fazer longos discursos Na parte intelectual referimo-nos à produsobre envenenamento da terra, dos rios e das ção do pensamento da organização. O pensamenpessoas, se lentamente não for colocado para to evolui na medida em que a prática evolui. As substituir na consciência social os elementos necessidades provocam os conhecimentos para que possuam a equivalência, mas com valores que se transforme em idéias e práticas. diferentes. Elabora-se mais quando as condições de O capitalismo e o imperialismo agem dessa crescimento são favoráveis. Em muitos casos as forma quando querem deformar a consciência e idéias não vingam porque a prática está deficiente. a cultura. Se apropriam primeiro do que já existe Enfim a consciência para se firmar precie transformam com uma nova tintura, mais persa passar a barreira da revolta e alcançar a linha versa, com conteúdo diferente, que visa alienar e da indignação consciente. Há pessoas que parnão conscientizar. Por isso é que de um dia para ticipam das lutas por influência de alguma coioutro aparece uma nova dança, onde seus consa, com o tempo a abandonam. Neste caso o sumidores não sabem de onde vem, nem que havia era apenas ideologia, mas esta não tampouco como foi produzida e porque, como chegou a se transformar em consciência. Assim qualquer mercadoria, mas a influência da moda que surgiram outras idéias, substituíram as que leva grandes massas a participar para não correr haviam e passaram a conduzir este ser social o risco de ser classificados de atrasados, conserpara outros objetivos. vadores. Assim as mulheres são chamadas de “cachorras” e levam como elogio. A imposição de algo criado é tão perverso Na parte social, as formas organizativas poquanto o descontrole sobre o que é criado, por dem alienar as massas como as estruturas sociais isso que muitas coisas se transformam em mito. 33 Há dezenas de aspectos impostos a partir do nascimento de uma pessoa, desde a religião até as idéias de transformação da sociedade. As pessoas, com o tempo, podem rejeitar tudo e buscar sua própria forma de existência. Com a religião vemos muitas pessoas abandonarem a igreja depois que conquistam a terra. Ás vezes é por desleixo, mas às vezes é conscientemente. Porque lhes deram de presente um Deus já pronto que se confunde com aquele divulgado pela Igreja. Mas há lugares e quem muitos religiosos são contra a ocupação e o raciocínio concluí que: como pode alguém que quer levá-lo para o céu não quer levá-lo para terra que é mais perto? Na luta política também podemos chegar à mesma coisa: como podemos levar alguém ao socialismo se não aceitamos a liberdade de escolha de alguém quem quer produzir sua própria existência. A conclusão, portanto é de que o dogmatismo e o sectarismo nunca construirão a liberdade porque se agarram ao velho como algo estático. Tudo aquilo que pensamos ser estático é apenas um nome a mais que se dá à decadência. Refletindo um pouco sobre a história da música10 Jadir Bonacina Ser Humano possui em sua vida sete “dimensões”: Física, Espiritual, Intelectual, Social, Profissional, Afetiva e Familiar. De todas as realizações do Homem, a Arte é a que mais intrinsecamente permeia todas essas dimensões da existência humana. E de todas as Artes, a mais antiga é a Música. O A música é nossa mais antiga forma de expressão, possivelmente até mais antiga que a linguagem. De fato, a música é o Homem, muito mais que as palavras, pois estas são símbolos abstratos. A música toca nossos sentimentos mais profundamente que a maioria das palavras e nos faz responder com todo nosso ser. Muito antes de o ser humano aprender a pintar, esculpir, escrever ou projetar algo, já sabia a produzir e apreciar os sons. Obviamente esses sons seriam hoje considerados apenas ruídos, mas considerando que “música é a arte de manipular os sons”, o que o Homem primitivo produzia era música, ou um “embrião” musical. O “instrumento” musical mais antigo que existe é a voz humana, Com ela, o homem aprendeu a produzir os mais diversos sons, e a agrupar 10 34 esses sons, formando as primeiras linhas melódicas. Depois inventou os instrumentos musicais, que se multiplicaram e evoluíram ao longo da História, muitos destes desapareceram, e a Música mudou muito em todo este tempo, mas o gosto do ser humano pela música permanece intacto. A música sempre foi uma parte importante da vida cotidiana e da cultura geral do homem. Hoje vê a Música sendo transformada em mero produto pela “Indústria do Entretenimento”, e do mercado. Muitas vezes ela se torna um simples ornamento que permite preencher noites vazias com idas a consertos ou shows, organizar festividades públicas, etc... As pessoas ouvem, atualmente, muito mais música do que antes, mas esta representa, na prática, bem pouco, e possuí muitas vezes, não mais que uma mera função decorativa. Mas em todo o Mundo ela ainda mantém vivo seu caráter social, de transmitir sentimentos, de servir de elo com a Divindade, de perpetuar a História, a língua, a cultura e as tradições de cada povo. A música é a mais sublime das Artes, a arte que homens e anjos compartilham, deve ser ensinada como uma língua, e não como mera técnica e prática, sem vida. Trechos extraídos do trabalho de conclusão do curso Realidade Brasileira. A música como instrumento político e ideológico no processo de formação. Chapecó, 2007. Pág, 4 e 8. A música como instrumento político na formação da consciência nos movimentos sociais Música, este é um tema que parece ser fácil ou mesmo óbvio, afinal, em nosso dia-adia convivemos com música, e não temos muita dificuldade em saber do que se trata, ligamos o rádio para ouvir um pouco de música enquanto dirigimos, cantamos no chuveiro, dançamos ao som de música, nas rodas de chimarrão. ralmente reúne melodia, poesias, as coisas da nossa gente, do nosso dia-a-dia, que representa as culturas do nosso povo. Uma das questões que é um desafio para os movimentos e também para toda a sociedade é a Música para ser usada como instrumento político, que forma os sujeitos. Uma música cultu- lho reafirmando a música como um forte instrumento político-ideológico que deve ser mais bem potencializado em nossos movimentos sociais e organizações populares. O capitalismo se apossou da música como ato de preencher um vazio que ele não consegue preencher na vida dos seres humanos, casado com isso vem as drogas, bebidas, cigarro, maconha, dizendo que isso é fazer festa e diversão. As músicas desculturadas, sem conteúAs manifestações musicais são extremado, fazem com que os jovens ficam alienados a mente diversificadas, um grupo de rock, de rap, comprar roupas de marcas, ficam atrelados a de pagode, um grupo de ciranda, de maracatu, empresas que só vendem marketing, acabam sade reisado, o coral da igreja, o canto na proindo por ai usando chapéu de cissão, a roda de amigos que cancowboy escutando cowtry amerita na mesa de bar, ao redor da A música cano, e dizendo que é música serfogueira, o violão na varanda da não deve ser taneja popular. casa, a música de viola caipira, considerada são manifestações musicais difeNós devemos entender a renciadas, produções populares, algo apenas para música como parte fundamental ou da indústria cultural - todas preencher nosso para a nossa vida, pois contribui, são músicas. Mas suas característempo, mas sim e muito, na nossa formação. ticas, conteúdos, Ideologias, são A música está vinculada inpoliticamente diferentes. para divulgar no nosso dia-a-dia, a nossa utopia, teiramente Nesse processo de formação pois dificilmente lemos um livro, de novos seres humanos, de sujei- construir e passar mas escutamos cinco músicas tos de uma nova história se tem por dia. Essa música que escua mensagem muitos desafios travados na formatamos quase sempre vem preene a realidade ção da consciência do novo homem cher um tempo que nos sobra da nova mulher, que faz a luta pelos da classe para descanso, neste momento seus direitos, e que também busca o capitalismo, a indústria musitrabalhadora. a sua dignidade, corre em busca de cal se aproveita para entrar nas seus sonhos e de uma vida melhor, nossas mentes através da música introduzine mais humana. do a sua ideologia com valores do individualismo, da desvalorização da mulher e do hoEsses seres humanos que travam uma luta mem também, em especial desprezando os de classes, ideológica, contra o modelo capiCamponeses, e o seu modo de vida. talista implantado, que faz do ser humano uma máquina para trabalhar a mando de alguns que No entanto a música não deve ser considese utilizam do estado para repreender, e atarada algo apenas para preencher nosso tempo, car as organizações e aqueles que querem consmas sim para divulgar a nossa utopia, construir e truir um mundo diferente, sem exclusão, com passar a mensagem e a realidade da classe trabamais dignidade. lhadora. Nesse ponto de vista finalizo esse traba- 35 Violar é preciso Nina Fideles A valorização da cultura caipira na construção de um projeto popular para o país11 centenária figueira, símbolo do Sítio Pau D´Alho, em Ribeirão Preto, interior paulista, serviu de inspiração há quatro anos, quando abrigava mais uma roda de viola, para a idealização de um encontro de violeiros. Mas deveria ser um encontro diferente. Um espaço onde violeiros e violeiras pudessem tocar e trocar experiências e conhecimento, sem competição ou cachê. Não seria um festival, mas um encontro entre amigos e amigas, que se reconhecem na arte de tocar viola e de levar adiante a cultura caipira brasileira. Estava definido o formato do Encontro Nacional de Violeiros. A No ano seguinte, em 2003, aconteceu a primeira versão do encontro, com cerca de trinta apresentações em apenas um dia de festa. Em 2004, na segunda edição, mais artistas. Um dia foi pouco para tantas apresentações, o que fez com que a organização optasse por dois dias de festa na terceira edição, em 2005. Este ano, confirmando as expectativas, mais de 100 violeiros, violeiras, duplas, orquestras e grupos de folias de reis passaram pelo palco montado em frente à grande figueira. Apesar da chuva no primeiro dia, o IV Encontro Nacional de Violeiros foi prestigiado por cerca de 15 mil pessoas, entre militantes do MST e apreciadores de boa música de todos os cantos do Brasil. Construção Uma forma diferente de construção do Encontro dos Violeiros foi colocada em prática este ano. Militantes vindos de todas as regionais do MST no estado de São Paulo participaram de oficinas com o objetivo de contribuir em alguma área. A oficina de expressão corporal preparou os participantes da mística de abertura, que contou com uma apresentação de dança e percussão, comandada pelos participantes da oficina de tambor. A ornamentação ficou por conta da oficina de bonecos, 36 11 que construiu um modelo de São Francisco de Assis, homenageado na festa. Os instrumentos construídos pelos participantes da oficina de fabricação de viola ficaram expostos na galeria de arte, junto com os quadros de Blanco Castro, autor do desenho do cartaz do encontro. A oficina de comunicação ficou responsável pela produção de fotos e vídeos, documentando as oficinas e as apresentações. Apresentar as milhares de maneiras possíveis de lidar com a viola sempre foi uma preocupação da organização do encontro. Cada violeiro tem a sua mão e, claro, seu estilo. Tudo cabe na proposta do Encontro, desde as tradicionais duplas, passando por violeiros e violeiras solo, orquestras e grupos modernos. Toda esta diversidade prova que existe cada vez mais gente tocando viola no Brasil. E como nem só de viola vive a cultura caipira, o Encontro abriu espaço para manifestações populares de música e dança, como a Folia de Reis e a Capina. Apresentada por um grupo de senhores vindos de Jequitibá, em Minas Gerais, a Capina chamou a atenção do público por usar enxadas em sua dança e também pelo discurso do líder do grupo. Nelson Jacó afirmou que seu grupo é o último que ensaia e apresenta a dança em sua região. Para ele, a dispersão das manifestações culturais dos camponeses se dá pelo avanço implacável do latifúndio, realidade em todos os cantos do Brasil. “Se nós não dançarmos, ninguém mais dança”. Trincheira Para Edvar Lavratti, da direção estadual do Movimento em São Paulo, realizar o Encontro Nacional de Violeiros em Ribeirão Preto é também um posicionamento político. Capital do agronegócio, a cidade e arredores estão tomados pelas grandes propriedades monocultoras de cana-de-açúcar. A cidade é também rota de passagem do gênero conhecido como country, com suas roupas de cowboy e músi- Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=2379 cas pasteurizadas no estilo dos grandes rodeios, como a festa do peão de Barretos. “Nada disso é nosso”, defendeu Lavratti. trumento essencialmente brasileiro, já que foi em terras brasileiras que suas potencialidades foram ampliadas e diversificadas. O violeiro e professor Ivan João Ba, artista de 74 Um encontro entre anos e 53 de estrada, concorVilella se diz preocupado quando afirma que antigamente, toda e defende que sua música é amigos e amigas, das as manifestações culturais que se reconhecem inspirada pelos pequenos eleestrangeiras que chegavam ao mentos da natureza, como o na arte de tocar Brasil não eram puramente astrabalho do bicho da seda, por viola e de levar similadas, mas se fundiam com exemplo. João, que não é proadiante a cultura nosso repertório. A diferença é priamente violeiro (seu instruque hoje está cada vez mais dimento é o violão) mas sim um caipira brasileira. fícil que a mistura aconteça, pois cantador, participou do EnconEste é o perfil do essas referências nacionais estro pela primeira vez, trazido Encontro Nacional por parceiros que já conhecitão se perdendo. A missão de de Violeiros. quem procura preservar as am a festa. raízes culturais brasileiras hoje Para o ano seguinte, fica a certeza de que vai além de uma atitude puramente xenófoba, o V Encontro Nacional dos Violeiros será ainda de negar o que vem de fora, mas sim garantir maior em 2007, com a presença de mais violeiros, que não haja apenas assimilação, mas uma fuansiosos por apresentar sua arte em um espaço são com nossos elementos. bonito e festivo. Fica também a certeza, de que Para Vilella, por mais que a cultura country apesar de não estar presente nos grandes meios esteja presente na região, muita gente faz questão de comunicação, a arte da viola sobrevive na bede ir ao encontro e assistir às apresentações, o leza do trabalho de velhos e novos violeiros. O que explica o grande público. O violeiro afirma que prova que a valorização da cultura popular que apesar de ter sido trazida para o Brasil duestá estritamente ligada à construção de um prorante a colonização portuguesa, a viola é um insjeto popular para o Brasil. 37 38 39 40 Infância,Formação e Conscientização: O que é a nossa Ciranda? Gisele Antunes Rocha alvez a primeira lembrança que venha em nossa mente ao falarmos em Ciranda é da tradicional cantiga infantil que assim cantávamos: “ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia-volta, volta e meia vamos dar [...]”. T do nas mãos dos que já estão dançando. Tanto na hora de entrar como na hora de sair, a pessoa pode fazê-lo sem o menor problema. Quando a roda atinge um tamanho que dificulta a movimentação, forma-se outra menor no interior da roda maior. Os participantes são denominados de cirandeiros e cirandeiras, havendo também o mestre, o contra-mestre e os músicos, que ficam no centro da roda. Voltados para o centro da roda, os dançadores dão-se as mãos e balançam o corpo à medida que fazem o movimento de translação em sentido anti-horário. A “É uma dança típica das praicoreografia é bastante simples: no Ciranda é a as que começou a aparecer no litoral compasso da música, dá-se quatro norte de Pernambuco. [...] É muito participação passos para a direita, começando-se comum no Brasil definir ciranda como ativa da criança com o pé esquerdo, na batida forte uma brincadeira de roda infantil, poreconhecê-la do bombo, balançando os ombros de rém na região Nordeste e, principalno sentido da direção da roda. como sujeito leve mente, em Pernambuco ela é conheHá cirandeiros que acompanham cida como uma dança de rodas de histórico que esse movimento elevando e baixanadultos. Os participantes podem ser do os braços de mãos dadas. O está sendo de várias faixas etárias, não havenneste mundo bombo ou zabumba, mineiro ou do impedimentos para a participação ganzá, maracá, caracaxá (espécie de em constante chocalho), a caixa ou tarol formam o de crianças também. construção. instrumental mais comum de uma ciHá várias interpretações para randa tradicional, podendo também a origem da palavra ciranda, mas ser utilizados a cuíca, o pandeiro, a sanfona ou segundo o Padre Jaime Diniz, um dos pioneialgum instrumento de sopro. ros a estudarem o assunto, vem do vocábulo espanhol zaranda, que significa instrumento de O mestre cirandeiro é o integrante mais impeneirar farinha e que seria uma evolução da portante da ciranda, cabendo a ele “tirar as canpalavra árabe çarand. tigas” (cirandas), improvisar versos, tocar o ganzá e presidir a brincadeira. Ele utiliza um apito penA ciranda, assim como o coco em Pernamdurado no pescoço para ajudá-lo nas suas funbuco, era mais dançada nas pontas-de-rua e nos ções. O contra-mestre pode tocar tanto o bombo terreiros de casas de trabalhadores rurais, parquanto a caixa e substitui o mestre quando netindo depois para praças, avenidas, ruas, resicessário. As músicas podem ser as já decoradas, dências, clubes sociais, bares, restaurantes. Em improvisadas ou até canções comerciais de doalguns desses lugares passou a ser um produto mínio público transformadas em ritmo de cirande consumo para turistas. da. Pode-se destacar três passos mais conheciÉ uma dança comunitária que não tem predos dos cirandeiros: a onda, o sacudidinho e o conceito quanto ao sexo, cor, idade, condição machucadinho. Alguns dançarinos criam passos social ou econômica dos participantes, assim como e movimentos de corpo, mas sempre obedecennão há limite para o número de pessoas que dela do a marcação que lhes impõe o bombo. Não há podem participar. Começa com uma roda pequefigurino próprio. Os participantes podem usar na que vai aumentando, a medida que as pessoas qualquer tipo de roupa e a ciranda é dançada chegam para dançar, abrindo o círculo e segurandurante todo o ano. Outra associação é a dança conhecida como Ciranda. Segundo o site http:// www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.p/ resentation.NavigationServlet?publicationCode= 16&pageCode=300&textCode=92 , a ciranda: 41 A partir da década de 70 as cirandas começaram a ser dançadas em locais turísticos do Recife, como o Pátio de São Pedro e a Casa da Cultura, modificando um pouco a dança que se tornou mais um espetáculo. O mestre, contra-mestre e músicos saíram do cento da roda para melhor se adaptarem aos microfones e aparelhos de som, passando também a haver limite de tempo para a brincadeira. Compositores pernambucanos como Chico Science e Lenine enriqueceram seus repertórios, utilizando a ciranda nos seus trabalhos”. Após conhecermos um pouco sobre outros significados encontrados para a palavra ciranda, retomemos a questão inicial apresentada neste texto: o que é a nossa Ciranda? A origem da Ciranda no MAB foi para permitir a participação das mães e outros familiares das crianças nos encontros. Assim, enquanto os adultos participam das discussões e pensam as intervenções necessárias para um novo projeto de sociedade, as crianças encontram no mundo lúdico um momento de descontração e também de formação. Ciranda é a participação ativa da criança reconhecê-la como sujeito histórico que está sendo neste mundo em constante construção. Diferente do comum, quando à criança é atribuída a esperança do futuro, acreditamos que nossos meninos e nossas meninas já atuam política e conscientemente no presente. Seja através de brinca- deiras, de jogos ou histórias, as crianças interagem com o mundo, buscam entendê-lo e expressam as suas opiniões sobre ele. Desta forma, apresentam a sua visão para aquilo que as rodeia e também as pistas das mudanças necessárias para alcançarem seus sonhos, anseios e desejos. Relembrando o movimento que muitos de nós fazíamos ao brincar da cantiga de roda “Ciranda, Cirandinha” e também ao observar ou dançar a Ciranda, podemos associar tal movimento que, intencionalmente, é desenvolvido nestes momentos de formação da infância. As mãos dadas representam à união, o entrelaçamento dos dedos é como o emaranhado de idéias que se juntam para fazer girar a história. É nesse movimento incessante de ir e vir, viver, analisar e retomar a vivência, que está as possibilidades de mudanças sociais. Tudo que é novo nunca é novo de fato, sempre guarda algo do velho, vem potencializado, renovado... Assim são nossas crianças, carregam a história do seu povo e possuem condições de tecer contribuições para que a vida vá em frente, mesmo que em alguns momentos seja necessário dar “meia-volta e volta e meia vamos dar”. A cada criança que chega para compor a ciranda, o movimento vai sendo potencializado pelos novos membros e ao ritmo da formação para a luta, nossos meninos e nossas meninas não são só o amanhã, mas reafirmam o seu compromisso com a transformação social desde o hoje. Jornada dos Sem Terrinha12 ma das cenas mais bonitas que já vi foi uma “mística” realizada pelos Sem Terrinha no centro de treinamento no norte do Espírito Santo. Crianças vindas dos acampamentos e assentamentos, bem cuidadas, sendo educadas, aprendendo desde cedo a pensar em valores comunitários e solidários, muito ao contrário de nossa juventude tantas vezes alienada e egocêntrica. U 12 42 Hoje, duzentos Sem Terrinha ocupavam uma praça aqui em Juazeiro, reivindicando escola. Depois me disseram que jornada é nacional. Fiquei pensando como me comportaria, como pai, vendo meus filhos debaixo da lona preta e tendo que participar de manifestações, desde a infância, para reivindicar o direito de estudar. É o que experimentam aqueles pais e crianças. Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4346. Reflexões feitas por Roberto Malvezzi (Gogo). Coordenador nacional da CPT. 11/10/2007 Um deles é o Vavá, que conheci ainda adolescente nas Comunidades Eclesiais de Base. Hoje casado, pai, liderança do movimento, estava cuidando das crianças enquanto uma comissão de lideranças e crianças era recebida pelo prefeito. Há muita gente digna nesse país. O ódio de parcela da elite brasileira contra os Sem Terra não se arrefece. Pelo contrário, parece que cresce. Entretanto, abandonadas por todas as instituições do Estado, aquelas crianças só tem alguma esperança na vida porque existe um movimento que pensa nelas, que as organiza, que lhes dá uma esperança consistente, na terra e no estudo. Um país que deixa suas crianças entregues à lona preta, quando não ao tráfico, não pode ter futuro. O único futuro vem das entranhas de seus próprios corações. Marginalizados, agredidos, perseguidos, carregam o orgulho da consciência esclarecida, conhecem a sociedade em que vivem, combatem suas desigualdades, propõem uma outra sociedade onde todos possam ter lugar...E escola. O “povo” Sem Terra é “aquele que foi ao inferno e levou do demônio um tapa na cara”, costuma dizer João Pedro Stedile. Debaixo das lonas, nas praças, nas escolas, as crianças aprendem a percorrer os caminhos sofridos de seus pais. Porém, prosseguem com a cabeça erguida, para desespero de quem preferiria que não existissem. Brinquedos13 Crônica - Moacyr Scliar B rinquedos atendem à necessidade que temos de usar a imaginação como uma forma de dar vazão à fantasia, Moacyr Scliar. Foi lançada no mercado brasileiro uma boneca absolutamente prodigiosa, capaz de falar dezenas de frases e de mudar a expressão facial no diálogo com a sua pequena dona. A boneca custa por volta de R$ 800 e, obviamente, será a sensação das compras natalinas, dividindo a classe média em dois grupos, aqueles (poucos) que podem comprá-la e aqueles que vão reclamar do absurdo que representa uma oferta dessas. E aí emerge uma questão importante: o que é, mesmo, um brinquedo? O que significa um brinquedo para uma criança ou para um adulto? Brinquedo é coisa antiga: na Europa são numerosos os museus que conservam bonecas e outros objetos com os quais as crianças brincavam num passado não raro remoto. Brinquedos e histórias atendem a necessidades infantis, e de um modo similar: em ambos os casos trata-se de usar a imaginação como uma forma de dar vazão à fantasia. E precisamos dar vazão às nossas fan- 13 Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br tasias. Guardadas dentro de nós, elas nos prejudicam, nos intoxicam. Quando uma menina repreende sua boneca, está deixando de repreender a si própria, com óbvios benefícios. O que a tecnologia está fazendo é prever esta interação, é fazer dos brinquedos entidades cada vez mais autônomas. O videogame é um exemplo: ali está o bandido, armado, desafiando o jogador que depende de sua habilidade para eliminá-lo. Mas e quando a tecnologia não dispunha de tais recursos? Como é que as coisas funcionavam? Penso na minha própria infância, uma infância pobre (ainda que não indigente: fome não passávamos) vivida no bairro do Bom Fim. Não lembro, até certa fase de minha vida, de ter tido um único brinquedo comprado em loja. Brinquedos, a gente fazia. No meu caso, eu contava com uma facilidade: a fábrica de móveis do meu tio. Eu usava os pedaços de madeira que sobravam para fazer os meus brinquedos. E que brinquedos eram esses? Brinquedos de guerra, naturalmente, semelhantes àqueles que a gente 43 via nos filmes. Uma pistola automática, por exemNotem: não estou dizendo que antigaplo. Ou um avião. Ou um destroyer. Cujos canhões mente era melhor, uma frase que, no meu eram pregos. A corrida bélica naquemodo de ver, deveria ser abolida, la época era resolvida com muita simporque, além de não ser verdadei“Brinquedos plicidade: quanto mais pregos num ra, não ajuda as pessoas em atendem à navio de madeira, maior o poder de nada. Os brinquedos de hoje infogo. E pregos não eram muito caros. necessidade que troduzem a criança à tecnologia, Os modernos traficantes de armas cer- temos de usar a e tecnologia em nosso mundo é tamente nos invejariam. palavra-chave. imaginação Dá para comparar aqueles brinMas a imaginação é mais como uma quedos com os de agora? Não, não importante ainda. Imaginação forma de dar dá. Eram coisas simples, toscas mesmuda a nossa vida. Se a imagimo. Diferente era a nossa imaginação. vazão à fantasia” nação transforma um pedaço de Moacyr Scliar Porque ela era muito mais mobilizamadeira com pregos num navio da, muito mais exigida. Fico me perpoderosamente armado, então, guntando se estes brinquedos não ajudaram a que seguramente estamos prontos para conquiseu me tornasse um escritor. Acho que sim. tar o mundo. Sem Terrinha aprendem e ensinam na Escola Paulo Freire14 lautas, cirandas, capoeira, argila, música, balangandãs, pernas de pau, chocalhos. As brincadeiras da Escola Itinerante Paulo Freire, montada para o 5º Congresso Nacional do MST, refletem a diversidade cultural e o afeto com as crianças, os mais de 600 Sem Terrinha que são acolhidos por cerca de 400 educadores e educadores de todos os estados brasileiros. A baiana Andreza Gonçalves dos Santos, de 10 anos, abre um sorriso enorme quando se diz sem-terra. “Quando a gente mora na cidade, não consegue o que a gente quer. Agora, tudo o que eu quero ter eu estou conquistando”, afirma. F “Esperamos que a criança seja um sujeito, que tenha voz ativa na sociedade”, explica Cristina Vargas, do Setor de Educação Nacional do MST. Cícero da Silva Júnior, do Pernambuco, é um dos responsáveis pela brigada que cuida 44 14 Matéria feita por Joana Tavares de Brasília (DF). 13/06/2007 das crianças de 09 e 10 anos. Na manhã de terça-feira (dia 12), ele conversou com os educandos sobre o nome da escola: “Paulo Freire foi um grande revolucionário, que trabalhava a educação com o intuito de libertar a classe operária”. No processo contínuo de ensinar-aprender, Júnior conta que aprendeu novas brincadeiras de diferentes cantos do país. História Em 2007, são celebrados 10 anos de morte de Paulo Freire. O ano marca ainda os 10 anos de ciranda infantil dentro do MST. E em 2006 foi a Escola Itinerante que fez seu décimo aniversário. “A proposta de Escola Itinerante foi idéia dos próprios Sem Terrinha, que reivindicaram seu direito de ter uma escola perto de casa, que acompanhasse a dinâmi- ca de suas famílias”, contextualiza Paola Pereira, do Distrito Federal. A primeira experiência de Escola Itinerante foi no Rio Grande do Sul e atualmente ela é reconhecida em seis estados, mantendo sua concepção de educação ligada à realidade das crianças. capacitação para 60 educadores e educadoras. Nesta oficina, depois multiplicada nos estados, foi feito um planejamento diário das atividades, dividido por faixa etária. São sete brigadas, que contemplam as crianças de 0 a 11 anos de idade. Foi justamente essa concepção que encantou Eterilda da Silva Santos, da Bahia. Nove anos atrás, ela substituiu uma professora em um acampamento. A professora voltou, Etelvina não saiu mais e hoje coordena uma regional do seu Estado. “A educação do MST é muito diferenciada daquela feita nas cidades. Aqui a gente se dedica, acompanha as crianças. Na cidade muitos professores dão aula só pelo dinheiro, no movimento a gente trabalha por amor”, diz. A proposta da Escola é trabalhar com as crianças os temas do 5º Congresso, com uma linguagem próxima e lúdica. Uma das oficinas da Escola trabalha a reforma agrária, a partir da concepção dos Sem Terrinha. “É uma forma de ajudar as pessoas que não têm onde morar e não têm o que comer”, diz um. “É uma luta que todos nós fazemos”, completa outro. Krisleyde Travassas, do Pernambuco, explica que a idéia é discutir temas geradores, como ocupação e reforma agrária. Estudante de pedagogia, ela começou a participar do setor há três anos e diz que mudou sua percepção sobre a relação com as crianças pequenas. “A gente aprende a respeitar seu espaço, seu momento. Se tem uma palavra que aprendi nesses últimos nesses três anos é construção”. Mãe de uma Sem Terrinha de 3 meses, ela conta que se sente realizada como profissional e como mãe e que sua experiência no setor lhe mostrou outras formas de educar sua filha 15. Durante o Congresso, Eterilda se juntou a cozinheiros e cozinheiras dos estados para contribuir na cozinha da escola. Todos os dias, as crianças fazem um lanche pela manhã e outro pela tarde. A Escola conta também com uma equipe de saúde, composta por médico, enfermeiras e auxiliares, da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Uma escola com princípios Em maio deste ano, foi realizado um seminário sobre a infância e uma oficina de AterraéosentidodavidaparaosGuarani Fotógrafo mostra a força da cultura indígena na luta contra a expansão do agronegócio no MS16 ara o povo guarani, a terra é o sentido da vida. É a mãe, a conexão com o Criador, e o local sagrado. É nas “casas de reza” que fazem seus rituais, mantêm a transferência da sabedoria milenar para os mais jovens. P 15 16 A terra não tem função de acúmulo. Não é para ser usada para monocultura, venda do excedente e ampliação para latifúndio. Quando tiramos a terra dos Guarani, tiramos literalmente o chão dos pés deles. Ficam sem norte e sem reza. Perdem a noção do sentido de vida, se matam. Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=3694 Matéria feita por João Roberto Ripper do Rio de Janeiro (RJ). Publicada no Jornal Brasil de Fato, de 28 de abril a 4 de maio de 2005, pág 16. 45 se mata”, resume o cacique e pajé Marcos Veron, Como não acumulam, não lutam e não 68 anos, da Aldeia Takuára. guerreiam, diversas teses tentaram decifrar a “passividade” desse povo. Mas, no Mato Grosso O Mato Grosso do Sul é o Estado que do Sul, a década de 90 foi uma virada de repossui a segunda maior população indígena do cuperação cultural e de retorno à Brasil: são cerca de 56 mil índios terra; lideranças indígenas partiram divididos entre várias etnias: A terra para o confronto. O resultado foi a Guarani Kaiowás e Nandeva, recuperação de muitas áreas sagraé a mãe, Guató, Terena, Kadiuei, Ofaié. Há das, com vestígios de casa de reza, a conexão 200 anos, os Guarani chegaram a mas sobretudo o uso do argumento ocupar 25% do Mato Grosso do Sul, irrefutável sobre a recuperação de com o Criador, possuindo cerca de 8,7 milhões de algo que, um dia, lhes pertenceu de e o local hectares. Atualmente, formam a fato e permaneceu sendo espiritusagrado maioria da população indígena, almente deles. principalmente os Kaiowá, que se distribuem por 28 pequenas áreas indígenas As crianças guarani do Mato Grosso do Sul demarcadas pelo governo. morrem semanalmente, por desnutrição, por falta de terras. É um trabalho de limpeza étnica. O processo de criação das reservas indígenas no Mato Grosso do Sul teve início no final da década de 20, quando os Guarani coOs rituais meçaram a ser expulsos de suas terVejamos como são os rituais ras e a ser usados como escravos No alto, desse povo. No alto, as estrelas paem fazendas de cultivo de ervaas estrelas recem astros leves e sensuais, exermate. O governo brasileiro, nas décendo a dança da solidariedade no parecem astros cadas de 30 e 40, removeu os indícéu, voluntárias em manter o equileves e sensuais, genas para oito reservas demarcalíbrio, a beleza e a harmonia com a exercendo a das, de pequenos espaços – cerca lua, nas noites que iluminam as dande 1,5 hectare por pessoa. Atualças e os cânticos das aldeias dança da mente os índios ocupam menos de Kaiowá. Cá na terra os índios cansolidariedade um por cento das antigas terras. tam, dançam e brincam, até o amano céu, Hoje, o Mato Grosso do Sul é nhecer quando, então, se despedem o Estado com a maior concentração do espetáculo, como as estrelas, voluntárias fundiária do Brasil. Segundo dados para que o sol seja novamente o em manter do Instituto Brasileiro de Geografia dono da festa. o equilíbrio, e Estatística (IBGE), 50 mil proprieMas não foi sempre assim. dades rurais detêm, pelo menos, 20 a beleza Há mais de 20 anos essa nação e a harmonia milhões dos 35 milhões de hectares. indígena sofria com a freqüência Segundo o Conselho Indigecom que seus jovens guerreiros e com a lua nista Missionário (Cimi), existem mulheres se suicidavam. Desde ainda cerca de quatro mil Guarani Kaiowá 1986, foram registrados 310 casos de suicídio, a maioria de moças e rapazes, sem horidesaldeados nas periferias das cidades, às marzontes ou perspectivas. gens de rodovias, sobrevivendo do artesanato e subempregados em fazendas. Entretanto, são Mas o retorno dos indígenas às suas antipovos que ainda mantêm a noção do seu terrigas terras vem reduzindo drasticamente os casos. tório sagrado, que se estende ao norte, até os rios Apa e Dourados, e ao sul, até a Serra de “Hoje, o Kaiowá ou luta ou morre. Onde Maracaju e afluentes do Rio Jejuí17. ele conquista sua terra sagrada de volta, ele não 17 46 Todos esses aspectos estão documentados nas fotos da pagina do Brasil de Fato desta matéria. Carta da terra18 Conferência mundial dos povos indígenas sobre Território,meio ambiente e desenvolvimento - rio-92 Apoio Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Comitê Intertribal - Memória e Ciência Indígena Histórico Declaração da Aldeia Kari-Oca Nossos antepassados sempre nos ensinaram a sermos verdadeiros e corajosos, quando queremos vencer desafios e sermos respeitados. Por isso, quando a ONU decidiu realizar a RIO- 92, vários indígenas componentes do Comitê Intertribal - 500 Anos de Resistência, responsável pela articulação no Brasil, idealizaram e decidiram concretizar a Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nós, Povos Indígenas das Américas, Ásia, África, Austrália, Europa e Pacífico, unidos em só voz na Aldeia Kari-Oca, expressamos a nossa gratidão coletiva aos povos indígenas do Brasil. Não bastava apenas ajuntar nossos líderes, era preciso que a nossa voz fosse ouvida pelo homem moderno, preocupado com seu futuro. Assim, rebuscando a luta de outros líderes do passado e a iniciativa de 15 estudantes-índios que, em 1980, desafiaram critérios pré-estabelecidos e criaram o primeiro movimento político no Brasil, a UNIND (União das Nações Indígenas), era preciso também na ECO- 92 arriscar para que pudéssemos caminhar com nossas próprias pernas. Então sete povos do Alto Xingu - MT e o povo Tukano do Amazonas construíram a Kari-Oca, um templo para abrigar a sabedoria indígena e traduzir um verdadeiro parlamento para a Terra. Uma arquitetura e engenharia que não se aprende nas escolas urbanas, mas certamente numa longínqua aldeia na selva. Plantada como folclore, mas pra nós, um código de vida jamais decifrado pelo homem branco. Um criminoso incêndio, porém, acabou com a Kari-Oca, mas não acabou com o sonho indígena de termos a terra assegurada, de viver com dignidade e de contribuir com o bem estar da humanidade, que vive graves crises sociais e ambientais. Por isso, a Declaração da Kari-Oca e a Carta da Terra são documentos históricos que devem ser registrados como documentos oficiais pelos governos e pela sociedade. Nós consideramos assim, afinal foi inspirada na nossa magia de bem viver e na íntima relação espiritual, cultural e física com a natureza, um cotidiano que nos permitiu resistir às várias pressões de “integração” e “desenvolvimento consumista”. Marcos Terena - Coordenador Geral 18 Inspirados por este encontro histórico, celebramos a unidade espiritual dos povos indígenas com a Terra e nossos antepassados. Continuamos construindo e formulando nosso compromisso mútuo de salvar a nossa mãe Terra. Nós, Povos Indígenas, apoiamos como nossa responsabilidade coletiva para que nossas mentes e nossas vozes continuem no futuro, a seguinte Declaração: Nós, Povos Indígenas, caminhamos em direção ao futuro nas trilhas dos nossos antepassados. Do maior ao menor ser vivente, das quatro direções do ar, da água, da terra e das montanhas, o Criador colocou a nós, povos indígenas, em nossa terra, que é nossa mãe. As pegadas de nossos antepassados estão permanentemente gravadas nas terras de nossos povos. Nós, Povos Indígenas, mantemos nossos direitos inerentes à autodeterminação. Sempre tivemos o direito de decidir as nossas próprias formas de governo, de usar nossas próprias leis, de criar e educar nossos filhos, direito a nossa própria identidade cultural sem interferências. Continuamos mantendo nossos direitos inalienáveis as nossas terras e territórios, e a todos os nossos recursos do solo e do subsolo, e das nossas águas. Afirmamos nossa contínua responsabilidade de passar todos esses direitos às gerações futuras. Não podemos ser desalojados de nossas terras. Nós, Povos Indígenas, estamos unidos pelo círculo da vida em nossas terras e nosso meio ambiente. Nós, Povos Indígenas, caminhamos em direção ao futuro, nas trilhas dos nossos antepassados! (Assinado na Aldeia Kari-Oca, Brasil, em 30 de maio de 1992) Texto disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/et000018.pdf 47 Carta da terra - Alguns destaques: [...] 15. Os governos não devem obrigar-nos a aceitar mudanças de localização de nossas populações. 16. Devemos manter nosso direito às formas tradicionais de nossas vidas. [...] 18. Devemos manter nosso direito de não sermos pressionados pelas multinacionais, sobre nossas vidas e nossas terras. Todas as incorporações que violarem nossas terras nativas devem ser denunciadas às representações da ONU a nível internacional. [...] 31. Os Povos Indígenas foram colocados pelo Criador na Mãe Terra. Nós pertencemos à Terra, não podemos ser separados de nossas terras e de nossos territórios. 32. Os nossos territórios sempre viveram total e em permanente relação vital, seres humanos e natureza. Estar neles representa o desenvolvimento de nossas culturas. Nossa propriedade territorial deve ser inalienável. 33. Os direitos inalienáveis dos Povos Indígenas sobre a Terra e os recursos existentes reafirmam a necessidade de termos assegurado sua posse e sua administração feitas por nós mesmos, e isso deve ser respeitado. 34. Ratificamos nossos direitos à demarcação de nossos territórios tradicionais. A definição de “território” deve incluir o espaço (o ar), a terra e as águas, como tradição especial indígena. 35. Onde os territórios indígenas tenham sido degradados deve-se facilitar recursos para restaurálos. A recuperação desses territórios é um dever dos estados nacionais que não pode tardar. Dentro deste processo de recuperação, a compensação da dívida histórica ecológica deve ser levada em conta. Os estados nacionais devem revisar em profundidade suas políticas agrárias, minerais e florestais. [...] 38. Se um governo não indígena, indivíduos ou corporações obrigarem o uso de nossas terras, deve ser estabelecido um acordo formal e as condições. Nós, os Povos Indígenas, devemos ter a segurança de uso de nossas terras para o bem comum e a compensação para nossas populações. 48 39. As fronteiras tradicionais de nossos territórios, incluindo as águas, devem ser respeitadas. [...] 42. Os povos indígenas não devem ser expulsos de suas terras para dá-las aos colonizadores ou para outras formas de atividade econômica. [...] 58. As florestas têm sido destruídas em nome do “desenvolvimento econômico”, ocasionando a destruição do equilíbrio ecológico. Essas atividades não beneficiam o ser humano, os animais do campo, das águas e do mar. Recomendamos que as concessões e os incentivos às madeireiras, mineradores e garimpeiros sejam evitados pois nossa experiência prevê agressão ao meio ambiente e aos recursos naturais. [...] 61. Os povos indígenas devem ser consultados para quaisquer trabalhos e projetos em seus territórios. Antes do consentimento ser obtido, as pessoas indígenas devem estar totalmente envolvidas nas decisões. A eles devem ser dadas todas as informações a respeito do projeto e seus efeitos. Do contrário, será considerado um crime contra os Povos Indígenas. A pessoa ou as pessoas que violarem isto devem ser julgadas em um tribunal mundial com o controle das pessoas indígenas designadas para esse propósito, que pode ser similar aos julgamentos feitos depois da Segunda Guerra Mundial contra crimes à humanidade. [...] 64. Qualquer estratégia de desenvolvimento deve priorizar a eliminação da pobreza, a garantia relativa ao clima, a administração sustentável dos recursos naturais, a continuidade das sociedades democráticas e o respeito às diferenças culturais. [...] 67. Reconhecendo a relação harmônica que existe entre os povos indígenas e a natureza, os modelos de desenvolvimento ambiental e valores culturais devem ser respeitados como distintas e vitais fontes de sabedoria. [...] 78. Há diferentes formas de desenvolvimento, como a construção de estradas, comunicações, eletricidade, que facilitam acesso às terras dos Povos Indígenas. Essa industrialização tem efeitos destrutivos sobre nossos povos. Violência e destruição na prisão de atingidos Uma criança de sete anos é levada presa com o pai19 prisão de cinco agricultores atingidos por barragem foi marcada por violência e destruição. A prisão ilegal ocorreu no sábado dia 12-03 por volta das 08:00 horas. Nenhum dos agricultores foi informado do motivo de sua prisão. A A polícia militar de Santa Catarina montou verdadeira operação de guerra, com 10 viaturas e policiais fortemente armados para prender os cinco agricultores, desarmados, que estavam em suas casas com a mulher e filhos, e alguns até na lavoura. Edio Grasse, de Celso Ramos, encontrava-se na lavoura com seu filho de 07 anos quando o batalhão chegou. Teve sua casa revistada e seu carro foi apreendido sob a acusação de que com ele seriam transportados agricultores para as mobilizações do MAB. A criança de sete anos foi levada presa junto com seu pai até a delegacia de Campos Novos. O carro, que foi quebrado pelos policiais durante o deslocamento, foi abandonado numa estrada do interior. A família de Edio ficou isolada porque o carro era o único meio de transporte e moram numa localidade distante, onde não há ônibus. Leodato Vicente, 70 anos, de Campos Novos, estava saindo com seu caminhão boiadeiro para buscar uma vaca, quando o batalhão chegou e revistou sua casa, causando desordem e estragos, arrombando portas e objetos. Os policiais perguntaram se ele ia transportar gente do MAB nas mobilizações de 14 março e o levaram preso depois de aprender o caminhão. Sua mulher Maria de Lurdes presenciou tudo. 19 Aurélio Dutra, de Anita Garibaldi, que a poucos dias acertou sua indenização com a ENERCAN sob a promessa de que não seria mais incomodado pela empresa também foi preso. Não bastasse a seca que penaliza os agricultores Aurélio poderá ficar sem crédito para plantar a próxima safra pois necessitava ir no Banco do Brasil amanhã (15/03) para solicitar uma vistoria do PRONAF. Carlos da Silva, trabalhador rural em Campos Novos foi preso no sítio Pinheiro Seco e algemado. Quando perguntou qual seria o motivo da prisão foi agredido com socos no estômago. Os policiais aprenderam paus que são usados na lida com o gado e perguntavam “Vão se manifestar agora vagabundedo?”. Carlos pediu para trocar de roupa e foi novamente agredido com socos na cabeça e empurrado para dentro de uma Kombi, tendo ficado só com a roupa de corpo e um par de chinelo de dedos. Dorneles Vicente, de Anita Garibaldi, foi preso em sua casa, enquanto sua filha ainda estava dormindo. A Policia também recolheu o ônibus que faz o transporte escolar no município de Abdon Batista, sob a justificativa que seria usado para transportar agricultores que iriam na mobilização. No dia de hoje as crianças não puderam ir a escola por falta do ônibus. Os presos foram transferidos para o presídio de Joaçaba, a 120 Km de Anita Garibaldi, onde seus familiares não têm condições de ir visitálos e nem lhes levar roupas. Além dos presos, há uma lista de mais 05 companheiros agricultores com mandato de prisão, são eles: (Otacílio da Rosa, João Vilmar, Joldemir De Nez, Gilberto dos Santos e Danilo Olterbak). Texto disponível em http://www.movimientos.org/cloc/show_text.php3?key=4246 49 50 51 52 Educação: exercício de viver Aroldo Magno de Oliveira20 O ícone na foto dos dois meninos – vejam os seus olhos - é este momento mágico que nos persegue, que entra sem pedir licença em nossa trilha, movendo a nossa curiosidade e a nossa ousadia de querer exercitar a vida. Esse exercício que faz do homem companheiro do homem, que nutre a utopia de um tempo em que o homem solidário seja, pelos menos, menos só, e que a terra, a água, o ar e toda a energia da mãe-natureza sejam para o bem de todos nós, revertendo o processo histórico de apropriação ilegal daquilo que é para a digna sobrevivência de todos os seres humanos. ste título pode parecer simplório, mas vejamos se realmente é. A nossa base de reflexão está no ícone acima: dois meninos em uma sala de aula com papel e lápis. Olhares de expectativa ante a câmera fotográfica, aguardando o clique que dá por encerrado o trabalho do fotógrafo. E Sala de aula, momento do viver, aprendizagem do ler e escrever. Exercício psicomotor de desenhar letras, sílabas, palavras, frases e textos. Textos, início, meio e fim do processo pedagógico. Todos nós interagimos através da ininterrupta produção de textos: orais e escritos. São eles que dinamizam a vida, a engrenagem insubstituível na atribuição de sentidos nos processos interlocutivos. Aquele que fala quer ser ouvido, sobretudo compreendido. Todo o seu esforço na formulação das frases e textos concentra-se no desejo de fazer o melhor possível para o outro. E o outro: viceversa. A vida acontecendo, de fato. As condições de produção dos textos, em função dos contextos sócio-políticos específicos, determinam/orientam o trabalho dos sujeitos com a linguagem na produção dos discursos. Dessa forma, o ato de ler e escrever, em uma escola alternativa, ganha outro contorno. Ler e escrever já não são só para ter acesso ao saber universal, mas para saber fazer. Saber fazer implica conhecer as condições de produção dos textos, as condições de vida de uma comunidade e as condições que queremos viver. 20 Nesse sentido, ler e escrever são ações que ultrapassam os limites do conceito tradicional de alfabetização. Ler e escrever se caracterizam como ações integradoras – de integridade - e transformadoras. A primeira, responsável pela formação mais integral do homem e a segunda, responsável pela ativação articulada da ação transformadora avaliada como necessária para o bem viver de todos. Parece estar aí a importante distinção entre a escola do sistema formal/oficial de ensino e a escola alternativa: aquela domestica e esta emancipa. Domesticar significa entender o alfabetizar para ter acesso ao saber universal, enquanto emancipar significa entender o alfabetizar para além do saber universal, significa entender o indivíduo como sujeito histórico, sujeito do saber fazer. Saber fazer o possível para criar as condições para uma vida mais bonita para todos. Instrumentalizado o sujeito para o enfrentamento digno contra as adversidades, e contra eventuais grupos humanos que entendem a vida de forma banalizada/banalizadora. Educação: exercício de viver. A palavra exercício inscreve-se no campo semântico de ação, ação ininterrupta até a morte: final do viver. Portanto, educação, na perspectiva aqui sinteticamente esboçada, é uma ação integradora – de integridade - e transformadora que só se interrompe no indivíduo na hora de sua morte. Reafirmação da vida. Docente da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro e pesquisador em Linguagem, Educação, Ideologia e Mídia. 53 Educação popular:algunsapontamentos Sônia Fátima Schwendler21 screver sobre a Educação Popular nos leva a refletir sobre as práticas educativas e políticas, enquanto sujeitos, enquanto classe social, movimento organizado, intelectuais orgânicos. E tes de um processo. Ao escolher ir aos que ficaram à margem, ao convocá-los ao circulo do diálogo o educador aprende a viver a sua realidade (Brandão, 2002). A Educação Popular é um processo de formação e capacitação na perspectiva do compromisso com as classes populares. Este processo contínuo, sistemático e intencional de formação, implica em momentos de reflexão e estudo sobre a prática sistematizada, com elementos de interpretação e informação que permitem levar a novos níveis de compreensão da prática social. Implica também na ação transformadora, do contexto e dos sujeitos nele envolvidos. O processo educativo popular busca, através de uma metodologia dialética, articular conteúdo e forma, com a finalidade de gerar ações transformadoras. A metodologia da Educação Popular nos permite ter como ponto de partida o que o grupo faz, vive e sente. Neste processo, a prática educativa precisa estar baseada numa relação dialógica, que respeite a compreensão de mundo, a cultura do povo, seu saber de experiência feito, como nos diz o grande mestre da Pedagogia do Oprimido. Para Brandão (2002), a que damos o nome de educação popular, é o processo do gesto pedagógico, de escolha de falar com eles, entre eles e a respeito deles. De dirigir a eles de uma maneira preferencial a fala de um ofício. “A educação popular não é tanto uma teoria ou um método restrito de trabalho pedagógico atrelado a uma tendência ideológica única a respeito da pessoa humana, da sociedade, da educação. Ela é o imaginário e a vocação múltipla de uma ou de algumas vocações de escolhas. Escolhas de sujeitos, de modos de interação, de sentidos e de significados dados a destinos humanos através do saber. Escolhas, que uma vez estabelecidas, podem ser pensadas dentro de mais de uma teoria e podem ser realizadas por meio de mais do que um único método”. (Brandão, 2002, p. 41) A educação popular lida com “rostos que tornam o seu rosto, entre tantos outros, popular”. A educação popular constitui-se num estilo de educação, com compromisso de teor político realizado através de um trabalho cultural com sujeitos, compreendidos como protagonistas emergen21 54 “Como educador preciso ir ‘lendo’ cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares , desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo ‘leitura do mundo’ que precede a ‘leitura da palavra’. Se, de um lado, não posso me adaptar ou me ‘converter’ ao saber ingênuo dos grupos populares, de outro, não posso, se realmente progressista, impor-lhes arrogantemente o meu saber como verdadeiro. O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história social como experiência igualmente social de seus membros vai revelando a necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão mostrando sua ‘incompetência’ para explicar os fatos” (Freire, 1996, p. 90-1). Pedagoga e professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Extensão Rural. Desenvolve atividades de Pesquisa e Extensão junto aos Movimentos Sociais. Atuou na coordenação e na assessoria do Projeto de Educação de Jovens e Adultos nos Assentamentos de Reforma Agrária na região Sul do Paraná: alfabetização, escolarização e capacitação, vinculado ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - Pronera. Coordenou a Educação do Campo na Secretaria de Estado da Educação do Paraná e o Curso de Especialização em Educação do Campo pela UFPR. Na pratica educativa da Educação Popular, tomar como refêrencia de uma reflexão mais sistemática o saber de experiência feito, implica em situar o cotidiano, o imediato, o individual e parcial dentro do social, do histórico e estrutural, na perspectiva de uma visão totalizadora da realidade. Este processo dialético, que busca entender cada acontecimento em sua articulação com a totalidade social em um momento histórico concreto, se completa com o regresso da prática para transformá-la. O regresso à prática se constitui num novo ponto de partida. Freire (1987), compreende que somente na unidade dialética entre ação e reflexão, prática-teoria-prãtica, é que se pode superar o caráter alienador das práticas sociais. Os oprimidos, no ‘contexto concreto’, imersos na sua experiência cotidiana, tomam consciência de sua condição de oprimidos, mas não, da razão de ser de sua própria condição de opressão. Esta é uma das tarefas centrais da reflexão teórica, onde tomando distância do concreto vivido, problematizando-o, torna-se possível superar o senso comum, pelo senso crítico, compreendendo a razão de ser dos fatos. Contudo, este desvelamento da realidade, somente tem sentido, se estiver orientado numa ação política sobre a mesma, no sentido de modificá-la, sem a qual os homens e mulheres nela inseridos não podem alcançar a sua humanização. Neste sentido, se coloca como fundamental um projeto de formação humana que articule diferentes praticas educativas em torno de um projeto educativo que radicalize a formação de sujeitos para a práxis revolucionária. No processo da Educação Popular o fundamental não é compreender como podemos educar, conscientizar e humanizar os oprimidos, mas sim entender como eles se educam, se humanizam, aprendem, se formam como sujeitos políticos, sociais, culturais, cognitivos na situação desumanizadora, bem como na luta pela humanização. Neste processo, na ação cultural para a libertação, numa opção revolucionária, o diálogo com o povo não pode ser uma formalidade, mas sim uma condição indispensável ao ato de conhecer, ao ato de transformar, ao processo de conscientização. Freire destaca que a dialetização da denúncia e do anúncio requer um compromisso, uma coerência teórico-prático das lideranças revolucionárias que, segundo ele, não podem: “a) denunciar a realidade sem conhecê-la. b) anunciar a nova realidade sem ter um préprojeto que, emergindo na denúncia, somente se viabiliza na prática. c) conhecer a realidade distante dos fatos concretos, fontes de seu conhecimento. d) denunciar e anunciar sozinha. e) não confiar nas massas populares, renunciando à sua comunhão com elas.” (Freire, 1982, p.78). Nesta perspectiva, a Educação popular deve possibilitar por um lado, uma prática autônoma, o que implica que as organizações populares fomentem, organizem, propiciem para si novas formas de educação, articuladas as suas lutas específicas e promovidas pelos seus intelectuais orgânicos e, por outro, contribuir para a elaboração de um saber social que emane das próprias classes, a partir da prática política, organizativa e produtiva, seja significativo para elas, capacitando-as para o exercício da tarefa organizativa e dirigente. Segundo Freire (1991), a educação enquanto diretiva e política deve sempre “possibilitar nas classes populares o desenvolvimento de sua linguagem, jamais pelo blábláblá autoritário e sectário dos ‘educadores’, de sua linguagem, que emergindo da e voltando-se sobre sua realidade, perfile as conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo.”(p.41). Neste sentido, o diálogo implica no respeito entre os sujeitos nele envolvidos. “Não penso autenticamente se os outros também não pensam (...) não posso pensar pelos outros nem para os outros nem sem os outros” (p.117). A Educação Popular portanto, se constitui numa pratica política e educativa, numa concepção de mundo, de ser humano, de educação. Ela é fundamento, método, é ação cultural para a libertação. Atuar como educador da Educação Popular, implica em compromisso político, em prática social orgânica e libertadora. Este é um grande desafio! Referências Bibliográficas: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Educação Popular na escola cidadã. Petrópolis: Vozes, 2002. FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ___. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ___. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. ___. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 55 Os atingidos por barragens construindo luta e valores coletivos m sua história de mais de 15 anos, o MAB vem buscando fortalecer a luta em favor de um mundo menos desigual e menos injusto. Para tanto, sua frente de lutas insere-se na história dos movimentos sociais que, organicamente, vem questionando os modelos e processos de desenvolvimento baseados na manutenção de privilégios, concentração de renda e poder. Contrapondo-se aos interesses hegemônicos do capital nacional e internacional, o MAB assu- E me suas lutas específicas nos setores energético e do controle das águas. São lutas históricas que buscam articular necessidades e direitos dos atingidos frente às organizações que defendem interesses predominantemente mercadológicos, como as políticas de Estado neoliberais e os conglomerados empresariais nacionais e transnacionais. Entre as lutas permanentes do MAB encontram-se: ª construção de política energética baseada em fontes alternativas e de acesso a todos, controlada pelo Estado a serviço do povo; ª luta pelo respeito e garantia dos Direitos dos atingidos; ª luta contra a privatização da água e o modelo capitalista neoliberal; ª construção de modelo socialista para o Brasil. São lutas que se fortalecem na medida em que os sujeitos são envolvidos em um “permanente processo de formação e mobilização onde os atingidos vão compreendendo a realidade, tomando consciência de sua situação, participando e deci- dindo os rumos da vida coletiva. (Trindade (org.), 2005, p. 13)”. A vivência e a construção cotidiana da luta dos povos atingidos por barragens exigiu do Movimento a disseminação de valores coletivos (Trindade (org.), 2005, p. 19) como: a) Alegria, auto-estima, esperança; b) Fé, paixão e amor pelo povo oprimido e pela causa popular; c) Solidariedade em todo momento; d) Indignação e rebeldia contra qualquer injustiça; e) Coragem alimentada por convicções; f) Humildade, simplicidade e coerência, sem arrogância, submissão ou ingenuidade; g) Honestidade, verdade, transparência, compromisso e responsabilidade; h) Respeito a todo ser humano, sem discriminação ou preconceito; i) Disciplina consciente e voluntária; j) Capacidade de trabalho em equipe; k) Companheirismo mais forte que os laços de sangue; l) Disposição e espírito de sacrifício. 56 O MAB e a Educação do Campo22 educação no MAB está vinculada aos acúmulos, lutas e desafios do projeto da educação do campo no Brasil. Busca se orientar no movimento da Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo23 que, desde 1998, vem associando a educação do campo ao projeto de desenvolvimento do campo, aprofundando o debate político da realidade, das diretrizes e perspectivas da educação do campo e, principalmente contribuindo para que esta se torne uma política pública coerente com a vida, a luta, a identidade, o trabalho, a cultura e a história dos camponeses no Brasil, sem perder de vista as interfaces campo e cidade, particularmente do projeto de desenvolvimento para a Nação brasileira. A Primeiramente se faz necessário trazer presente os objetivos a que se propõe a Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo (1999 p. 78): Mobilizar o povo que vive no campo, com suas diferentes identidades, e suas organizações para conquista/construção de políticas públicas na área de educação e, prioritariamente, da escolarização em todos os níveis; Contribuir na reflexão político-pedagógica da educação do campo, partindo das práticas já existentes e projetando novas ações educativas que ajudem na formação de sujeitos do campo. A luta por uma educação do campo surge no contexto da luta pelo reconhecimento do campo como espaço de vida, moradia e trabalho, bem como pela justiça e humanização dos povos que lá vivem, moram e trabalham, os camponeses. Campo, nas palavras de Fernandes e Molina (2004, p. 68), como “um espaço que tem suas particularidades e que é ao mesmo tempo um campo de possibilidades da relação dos seres humanos com a produção das condições da existência social”, não como um espa- ço do atraso, da morada do jeca tatu, da desigualdade e da opressão, da exclusão do direito à educação e à cultura letrada a que historicamente foram submetidos os camponeses ao longo do processo histórico. Essa realidade exige mudanças sociais de base, necessárias e urgentes para o desenvolvimento não apenas do campo, mas da sociedade brasileira. Talvez a educação do campo seja a maior contribuição que os movimentos sociais e organizações populares tenham dado à reorientação do projeto da educação brasileira, pensando e praticando uma educação vinculada à realidade, à história, à identidade, à cultura e ao trabalho dos camponeses. Educação aqui entendida não apenas como aquela desenvolvida na escola (espaço formal), mas aquela gerada no próprio movimento da sociedade, na família, na igreja, na escola, na comunidade, no trabalho e nos grupos sociais, sobretudo na organização intencionalmente dirigida e travada pelos movimentos sociais populares que resistem e protagonizam a luta pela humanização dos povos do campo e da cidade. No momento em que os camponeses passam a participar dos movimentos organizados, independente dos motivos que os levem a isso, estão inseridos em processos de educação, pois passam a compreender a sua situação de vida e a realidade maior, a praticar os valores coletivos e a intervir na mudança da sociedade. É necessário que, a partir das lutas, se consiga ressignificar os espaços existentes e criar espaços de estudo, reflexão e debate que resultem em novas experiências, conhecimentos, relações e movimentos, cada vez mais humanizados e politicamente qualificados. [...] 22 Caderno Pedagógico do MAB, 2005, p: 26-31 23 Para maior conhecimento sobre a Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo consultar os cinco cadernos da coleção Por Uma Educação do Campo, organizados e editados a partir de 1999, pela própria Articulação Nacional. 57 A educação do MAB: intenções políticas e pedagógicas Embora concebida na lei como um direito social, a educação ainda é excludente, classista, a favor das elites, seletiva, promotora da alienação, pedagogicamente tradicional, desvinculada das necessidades e interesses das classes populares, particularmente do desenvolvimento das potencialidades intelectuais, físicas, emocionais, éticas, estéticas, políticas, culturais e sociais dos seres humanos. No campo, a questão se agrava, porque as elites negligenciaram e inviabilizaram um projeto de desenvolvimento específico para os povos que lá vivem, moram, estudam e trabalham, implantando políticas neoliberais24. Repensar esta forma de se conceber e fazer a educação, é tão necessário quanto urgente. Assim como coloca Trindade (2002, p. 107-108), o caminho a ser empreendido pelas classes populares para a superação da opressão-exclusão do capitalismo passa, necessariamente pela educação. Enquanto o capitalismo avança desfazendo a identidade das classes populares e fragmentando a sua consciência, na educação encontra-se a possibilidade concreta da libertação e da emancipação dessas classes. Fica evidente, então, que a sociedade e a educação socialista têm sua gênese nas contradições da sociedade e da educação capitalista. A educação deve se colocar a favor das classes populares, “uma educação que se propõe a transformar as mentalidades, as consciências, atitudes e, conseqüentemente a estrutura que sustenta a velha sociedade” (Torres, 1988, p.68), canalizando esforços, idéias e ações para a liberta- 24 58 ção dos camponeses, para o fortalecimento dos movimentos sociais do campo e para o desenvolvimento do campo. No atual momento histórico, mais do que simplesmente ensinar a ler e escrever, é preciso articular, pedagógica e politicamente, a educação das crianças, a alfabetização/escolarização dos jovens e adultos e a formação dos educadores à construção da consciência de classe, ou seja, a educação deve estar vinculada à vida, à cultura, à realidade, à história, ao trabalho e às relações com a natureza e a comunidade. Neste sentido, cabe reconhecer a importância dos atingidos, sejam adultos, jovens ou crianças, elevarem seus níveis de compreensão da realidade, não apenas pela mobilização, mas também pelo acesso ao conhecimento, à informação e à cultura universal. A problematização das próprias experiências e relações e à assimilação crítica do conhecimento, poderão potencializar ainda mais a identidade e a consciência dos atingidos, fortalecendo a história de luta e organização do MAB, o sentimento de pertença a esse grupo social e à Nação brasileira. Povo que conhece a sua história é povo que luta pela sua identidade, memória e cultura, consciente do projeto de sociedade que cotidianamente se vem construindo na e pelas lutas organizadas. Por isso, os atingidos têm o direito de acessar o conhecimento universal acumulado pela humanidade, capacitando-se à leitura, à compreensão e ao enfrentamento da realidade atual. Os governos neoliberais implementaram a política da nucleação das escolas do campo, as chamadas escolas pólos, onde crianças e jovens são retirados das suas comunidades, transportadas para as cidades e submetidos a currículos alheios à vida do campo, perdendo vínculos sociais e culturais com a sua gente e o seu contexto. 59 60 Em Tucuruí,atingidos por barragens ocupam obra de eclusa novamente25 pós dois meses da primeira ocupação, cerca de 300 pescadores e ribeirinhos voltaram a ocupar o canteiro de obras de uma das eclusas da hidrelétrica de Tucuruí. A ocupação ocorreu na madrugada de ontem, dia 4. O objetivo da ocupação é impedir a continuação da obra. A “Resolvemos voltar ao local e impedir a continuação da obra até que nossa pauta seja atendida pelos órgãos responsáveis, como nos foi prometido anteriormente”, explicou Euvanice Furtado, da coordenação estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Pará. Na segunda-feira estava marcada uma assembléia popular com a participação de representantes da empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte), do Ministério Público e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas ninguém compareceu. Além disso, a indenização dos pescadores que perderam seu meio de sustento não foi concedida até agora e as casas que estão sendo construídas para substituir as que foram atingidas pela obra são muito pequenas. “As famílias são grandes e precisam de casas com no mínimo três quartos”, justifica Euvanice Furtado. Desde a primeira ocupação, aconteceram duas reuniões com a Eletronorte e Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP), mas até agora a única providência tomada foi a entrega de cestas básicas para os pescadores até fevereiro. O contrato assinado para a construção das eclusas entre o Departamento Nacional de InfraEstrutura de Transportes (Dnit), Eletronorte e o Consórcio Camargo Corrêa tem valor de R$ 440 milhões. As duas eclusas, ligadas por um canal intermediário, com 5,5 quilômetros de extensão, irão possibilitar a navegabilidade no Rio Tocantins, facilitando o escoamento de grãos e minérios de ferro para a exportação. Legado de Exclusão Social26 recente liberação prévia pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Ibama) para a construção de duas usinas hidrelétricas no Rio Madeira, região Norte do país, está gerando polêmica. Até mesmo setores do governo federal estão divididos sobre o tema. Entre os movimentos sociais, Gilberto Cervinski, da direção nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), alerta para as conseqüências da construção das usinas para as populações. A De acordo com Cervinski, as obras irão beneficiar principalmente indústrias transnacionais que requerem uma grande quantidade de energia, caso da metalúrgica Alcoa, e não trarão nenhum benefício para a população local - inclusive afetando um número de famílias muito maior do que o que está sendo divulgado pelos estudos realizados. Qual é a realidade por trás das obras das hidrelétricas no rio Madeira? As hidrelétricas foram planejadas com o único interesse de atender as demandas por energia de multinacionais dos Estados Unidos e da Europa - em especial, as chamadas empresas eletro-intensivas, caso da norte-americana Alcoa. Atende também ao interesse das brasileiras Vale do Rio Doce e Votorantim, que também consomem muita energia; esta última, por exemplo, consome 4% de toda a energia disponível no Brasil. 25 Matéria de 05/12/2007. Fonte: Assessoria de Comunicação do MAB (disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4607, acessado em 18/05/2008). 26 Matéria de 11/07/2007, por Mateus Alves. Correio da Cidadania 61 No caso das transnacionais, estas sofrem com a crise energética em seus países e precisam, portanto, transferir suas indústrias para cá. Necessitam de energia barata para se viabilizar. Uma indústria de alumínio, por exemplo, só se viabiliza se paga menos de 34 dólares - ou menos de 70 reais - por megawatt/hora (MW/h). A Alcoa recebe da usina de Tucuruí, que é do governo, energia a 20 dólares o MW/h, enquanto o povo brasileiro paga mais de 200 dólares por MW/h. Isso é dez vezes mais. Qual será o impacto social e ambiental das obras na região? Um estudo publicado diz que serão deslocadas 1.800 pessoas, mas de acordo com nossas estimativas cerca de 5 mil famílias serão prejudicadas em toda a extensão de 260 quilômetros do rio afetada pelas obras. As obras vão deixar um legado de muita exclusão social e muito pouco emprego, pois estas indústrias eletro-intensivas não os geram. São empresas de alta tecnologia, automatizadas. As pessoas da região serão expulsas, perderão sua fonte de renda e podem ter como destino as favelas. O investimento é, na realidade, uma loucura. As duas hidrelétricas que obtiveram o licenciamento fazem parte de um conjunto de obras do chamado “Complexo do rio Madeira”, que irá custar cerca de 43 bilhões de reais - dinheiro que sairá do BNDES para as mãos de quatro ou cinco empresas transnacionais. A população de Rondônia é de 1,5 milhão de habitantes. Serão investidos no projeto, portanto, 28 mil reais por habitante - ou seja, é um investimento muito alto para algo que não tem nada a ver com as necessidades da população local, que não vai trazer progresso. Quantas casas, quantos hospitais, quantas escolas poderiam ser construídas com esse montante? Quantas famílias poderiam ser assentadas? Os problemas ambientais também são graves, como por exemplo a possibilidade de contaminação pelo mercúrio que será utilizado nas indústrias. Com a liberação, há um documento condicionante, mas qual a garantia que esse documento trará? Está escrito que as empresas precisam resolver problemas em relação ao meio ambiente, mas o que ocorrerá se não resolverem? 62 O que você acredita que está por trás da decisão de liberar as obras? O que está por trás é que o governo jogou no lixo sua história de vinte anos. O que estão fazendo é atender aos interesses dos grupos que, de fato, mandam no governo: o capital internacional e grupos financeiros. Teremos que esperar a história mostrar qual será o resultado dos investimentos que estão sendo feitos. Outra coisa é que o Brasil tem um dos maiores potenciais de produção de energia elétrica através de barragens do mundo, e a Amazônia concentra 50% desse potencial. São 110 mil MW/ h de potência na região. A liberação da construção das usinas significa liberar as obras em todos os rios que possuem esse potencial; por isso essa demonstração, essa sinalização de que as multinacionais podem se instalar na região pois o governo garantirá novas liberações. Você considera que tais projetos de obras cujos benefícios só servirão a poucos são o eixo principal do PAC? Com certeza. Dizemos que PAC significa “programa de afogamento dos camponeses”, pois grande parte de seus investimentos não são para o povo e sim para a energia que será consumida pelos países centrais. Como há uma crise de energia no mundo, e essa energia tem como base o petróleo, o PAC atende a esse interesse de buscar novas fontes energéticas. As grandes obras do programa servem para criar infra-estrutura e gerar energia para essas empresas multinacionais que sofrem com a crise energética e, ao mesmo tempo, fazer a transferência do dinheiro do povo do brasileiro a grupos do exterior. Para se ter uma idéia, as duas hidrelétricas do rio Madeira vão gerar um faturamento de 500 mil reais por hora para a empresa que ganhar a licitação - por isso, inclusive, está previsto o fechamento das minas de ouro que existem na região pelo lago artificial que será criado. A produção de energia vale mais do que ouro. Como será a agenda do MAB nestes próximos meses? Qual será a principal pauta do movimento? Nosso principal compromisso é enfrentar os projetos que não interessam ao povo. Um exemplo muito bom para nós foi a ocupação em Cabrobó contra a transposição do rio São Francisco. Em setembro nos concentraremos na realização do plebiscito sobre o leilão da Vale do Rio Doce. Ele abordará também a questão das tarifas de energia no país e o nosso modelo energético. Em relação a questões mais imediatas, tenho a confiança de que o povo não irá aceitar a liberação da construção das usinas no rio Madeira. Haverá certamente uma reação. Mobilização é reprimida com violência na Colômbia27 a Colômbia, as mobilizações de povos indígenas e camponeses, que ocorrem desde 15 de maio, estão sendo fortemente reprimidas pela força pública nacional. A violência contra os atos, que acontecem nos estados de Cauca, Nariño, Valle e Meta, teve como resultado mais de 100 pessoas feridas, 30 desaparecidos e o assassinato do líder indígena Pedro Coscue. N Os manifestantes protestam contra a assinatura do Tratado de Livre Comércio, a reeleição do atual presidente Álvaro Uribe e em defesa da soberania nacional. Eles estão reunidos em uma Cúpula Itinerante discutindo as necessidades, demandas e propostas para um desenvolvimento soberano e alternativo ao neoliberalismo, que foram construídas coletivamente durante muitos anos. Para dissolver as mobilizações, os militares utilizam a via aérea, lançando gases la- crimogêneos e aterrorizando a população. As autoridades civis do país justificam o uso da força por uma suposta infiltração da guerrilha, o que comprova o total desconhecimento da grave situação social que vivem milhares de camponeses, indígenas e afro-descendentes. Estas populações estão ainda mais ameaçadas diante da assinatura do Tratado de Livre Comércio entre a Colômbia e os Estados Unidos, o que deixaria os povos colombianos sem nenhum tipo de proteção na economia, no território e no modo de vida. Estes povos se organizaram diversas vezes para expressar o rechaço à assinatura do TLC e não foram atendidos pelo atual governo, sem vontade de dialogar com os setores populares. Diante disso, a Associação Nacional de Usuários Camponeses Unidade e Reconstrução (ANUCUR) exige que as autoridades civis e militares: ) Respeitem o direito constitucional de livre expressão e mobilização; ) Cessem a brutal repressão realizada pela força pública; ) Garantam a vida e a segurança de maneira integral às comunidades que se mobilizam nas diferentes regiões nesta Cúpula Social; ) Instalem uma mesa de diálogo entre autoridades competentes e representantes das comunidades; ) Atendam às demandas do população mobilizada; Convocamos as organizações sociais e de direitos humanos nacionais e internacionais a se pronunciar, denunciar e acompanhar esta mobilização 27 dos povos camponeses, indígenas e afrodescendentes por uma vida digna, em defesa de seus territórios, cultura, autonomia e soberania nacional. Matéria de 18/05/2006. Fonte ANUCUR/ Minga Informativa (disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=1160) 63 Ato em memória de Galdino lembra lideranças que morreram na luta pela terra28 Pataxó Hã Hã Hãe, povo ao qual pertencia Galdino, aguarda há 24 anos decisão do STF sobre suas terras. Manifestação lembrou os 257 indígenas que foram assassinados desde 1997. A violência contra os indígenas e a criminalização de suas lideranças foram algumas das questões debatidas nas atividades que antecederam o ato no acampamento Terra Livre. m ato para marcar os 10 anos do assassinato de Galdino Pataxó Hã Hã Hãe fechou o segundo dia (17/4) do Acampamento Terra Livre, que permanece até quinta-feira, 19 de abril, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Os cerca de mil indígenas, de 100 povos, que estão acampados no local, caminharam até a Praça Galdino, onde o indígena foi queimado vivo em abril de 1997 por jovens da classe média alta de Brasília. U A manifestação também lembrou os 257 indígenas que foram assassinados desde aquela data, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Muitas pessoas carregavam cartazes com os nomes de lideranças que foram mortas na luta pela terra. “Continuam ameaçando nosso povo. Os assassinos do cacique João montaram casa dentro de nossa terra e continuam nos perseguindo. A Justiça não fez nada,” repetia indignada Antônia Guajajara, que carregava o cartaz com o nome de João Araújo, assassinado em 2005, em meio à luta pela demarcação da terra Bacurizinho, no Maranhão. 28 64 Galdino também foi assassinado quando estava em Brasília lutando pela terra de seu povo, que, há 24 anos, aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o processo que pede a nulidade dos títulos de terra concedidos pelo governo da Bahia à fazendeiros que invadem a área Hã Hã Hãe. “Esse processo parado contribui para aumentar a violência. Os fazendeiros contratam pistoleiros para ameaçar a gente e também têm uma proposta para acabar com a nossa terra”, reforça Reginaldo Vieira, cacique da aldeia Caramuru, que estava com Galdino na época do assassinato. Ao chegarem na Praça Galdino, onde há um monumento em memória ao indígena, houve um ritual feito por líderes religiosos de diversos povos. Em seguida, os manifestantes limparam e pintaram a obra, que estava suja e abandonada. “É para mostrar que o movimento indígena está forte. Por isso vamos cuidar da memória de nossos mártires que morreram na luta”, afirmou Jecinaldo Sateré-Mawé, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amâzônia Brasileira (Coiab). [18/04/2007 11:32], por Marcy Picanço, com colaboração de Oswaldo Braga de Souza. (disponível em http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2443, acessado em 18/05/2008) O acampamento Terra Livre é a principal mobilização do Abril Indígena, conjunto de manifestações e protestos do movimento indígena que marcam o mês de abril já pelo terceiro ano consecutivo. Neste ano, o acampamento reúne cerca de mil indígenas, de mais de cem povos diferentes. Estão ocorrendo plenárias, debates, atividades culturais e manifestações para propor soluções aos principais problemas das comunidades indígenas e denunciar as agressões aos seus direitos. Terra – demarcação e proteção A violência contra os indígenas e a criminalização de suas lideranças foram algumas das questões debatidas nas atividades que antecederam o ato. Pela manhã, divididos em grupos por região ou povos, os indígenas acampados iniciaram a discussão sobre os problemas que os afetam. Eles apresentaram as dificuldades que passam e as suas reivindicações principais. Apesar das diferenças culturais e regionais, a maior parte dos grupos destacou os problemas que enfrentam na questão fundiária, tanto os que sofrem com a demora nos processos de demarcação, quanto os que têm suas terras ameaçadas por invasores ou por grandes projetos que podem afetá-las. “Somos acusados de ser invasores de Parques, mas os Parques foram criados depois de nossa terra”, falou uma liderança Guarani M´byá sobre o problema dos Guarani do litoral com a sobreposição de Terras Indígenas em Unidades de Conservação. Maurício Gonçalves, liderança Guarani do Rio Grande do Sul, disse que a Funai alega que a Constituição não contempla a dinâmica de perambulação dos Guarani e a relação que eles têm com o território, por isso este povo é um dos que mais sofre com a falta de terra. “A fronteira foi inventada pelas classes dominantes! Ela não existia antes. Para nós, não existe. E a terra é nossa. São nossos antepassados que estão enterrados nela. Não são os antepassados dos donos das multinacionais”, declarou Toninho Guarani, liderança do Espírito Santo, cuja terra é invadida pela empresa Aracruz Celulose. Saúde e educação diferenciadas Os indígenas também apresentaram os problemas que enfrentam na educação e saúde e as propostas para estas áreas. Na educação, o reconhecimento dos professores indígenas como uma categoria diferenciada e concursos específicos são reivindicações de quase todas as regiões. “Não queremos que não-índio dêem aula para nosso povo. Isso é desrespeito”, pontuou Eliza Truká, que apresentou o resultado do debate entre os povos do Nordeste. A ausência de aulas de 5ª a 8ª e do ensino médio nas aldeias e as barreiras enfrentadas pelos indígenas que pretendem fazer um curso superior também foram destacados como problemas da educação escolar indígena. Cotas, bolsas de estudos, cursos específicos foram algumas das propostas apresentadas. Em relação à saúde, além da falta de equipamentos generalizada, os indígenas da Amazônia Ocidental (AC, AM, RO e RR) afirmaram que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) não tem atendido as decisões das comunidades. Ainda em relação ao controle social, reforçaram que os indígenas devem participar mais da discussão das políticas públicas voltadas para eles, por exemplo, ficando atentos para o Fundo Indígena, que reparte verbas para vários projetos de diversos ministérios. 65 Controle da CNPI A instalação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) foi lembrada pelos indígenas como uma vitória, pois é um espaço para participarem da discussão das políticas que os afetam. Na análise de conjuntura que Saulo Feitosa, vice-presidente do Cimi fez antes dos debates em grupo, 66 ele lembrou que a CNPI não será uma solução imediata, mas será fortalecida a medida que o movimento indígena ocupá-la e fiscalizá-la. Na avaliação de Feitosa, o movimento indígena precisa se articular cada vez mais com os camponeses, quilombolas e ribeirinhos para se fortalecer. 67 68 Para que construir usinas hidrelétricas?29 história atual da humanidade tem sido a história da luta de classes. A história da luta entre os que fazem tudo para explorar, se apropriar das riquezas naturais e do produto do trabalho social realizado pelas maiorias, e a história dos que lutam para que a organização e o resultado da produção, realizado pela maioria, sejam divididos entre todos os seres humanos, ou seja, dos que acreditam que todos devem ter o direito de desfrutar dos resultados do trabalho, dos bens naturais existentes e do conhecimento adquirido pela história da humanidade. A Os atingidos por barragens, por sua vez, são as maiores vitimas de uma política social e ambiental irresponsável: centenas de pessoas expulsas a força de suas propriedades e atividades, perda de terras férteis e produtivas, florestas devastadas, vidas destruídas, culturas condenadas à morte, meio ambiente degradado. Hoje não são somente as populações ribeirinhas que sofrem com essa política, mas sim todos nós, o povo brasileiro que é atingido por uma política energética irresponsável e insustentável. Por isso, temos que aprofundar o estudo e o debate sobre as origens da crise energética e as melhores maneiras de superá-la. Isso é importante não apenas para os atingidos por barragens, mas também para os demais movimentos populares e para toda a sociedade brasileira. Para que todos entendam que podemos atender às necessidades de água e energia do povo brasileiro sem mandar para as periferias das cidades as populações ribeirinhas, sem destruir a vida nos vales, como é caso do “Vale de São Marcos”, sem condenar à morte de nossos rios e nossas florestas, sem destruir a fauna terrestre e fluvial e principalmente nosso cerrado. O preço da Luz é um roubo A vítima é você Nos últimos anos, as tarifas de luz, água e telefone têm aumentado muito, sempre acima da inflação. De 1995 a 2002 a tarifa de energia residencial aumentou mais de 180%, enquanto o IPC (Índice que mede a inflação) teve um aumento de 58%. Para onde vai todo o dinheiro? Você Imagina quanto as empresas arrecadam nas contas de luz? Sim, é muito dinheiro. E a maior parte vai para fora do Brasil, pois essas empresas, na maioria dos casos, são multinacionais (Tractebel, AES, Alcoa, Bradesco, Alcam). A parte que o governo arrecada com os impostos - ou seja, recursos públicos -também vai para fora do Brasil, para pagar os juros da dívida ou em forma de subsídios para estas mesmas empresas fazerem suas obras. Além do alto preço cobrado pelas empresas, os governos ainda acrescentam mais 25% a 30% de imposto. O resultado você vê todo mês nas contas, cada vez mais caras. Sendo assim, devemos considerar duas questões: para quem e para onde vai a energia. Quantos empregos são gerados? A lógica da sociedade capitalista é considerar tudo como mercadoria e ter o controle total dos locais de produção, isto é, o controle direto da exploração do trabalho. Desse modo, acontece a exploração do trabalho e a formação do lucro capitalista. Na maioria dos casos são muitos poucos os empregos, tantos nas usinas, como é caso de UHE de três Ranchos (FURNAS) que emprega oito funcionários, quanto nas empresas que vendem ou consomem muita energia. E vem com o debate de gerar 1400 à 1800 emprego na região. A produção de energia, por sua vez, não escapa a essa lógica e é, também, considerada mercadoria. O que sobra para os brasileiros? 29 A conta alta para pagar todo mês. Nos últimos anos a tarifa de energia aumentou cerca de 400%. Texto elaborado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens. 69 VOCÊ SABIA? ¾ Que o custo para produção de um kilowatt de energia é menos de 10 centavos e você paga mais de 50 centavos o kilowatt? ¾ Que as mesmas empresas norte americanas cobram no Brasil o dobro do valor cobrado nos Estados Unidos pela mesma quantia de energia? ¾ Que no Paraná as famílias que gastam menos de 100 kilowatt de energia por mês não pagam a conta de luz? ¾ Que a Alcoa - empresa dos Estados Unidos – paga somente seis centavos o kilowatt de energia, para abastecer suas fabricas que exploram o alumínio no Brasil? ¾ Que as empresas que mais gastam energia são as que menos geram empregos no Brasil? ¾ Que o povo brasileiro paga uma das taxas mais altas do mundo no preço da luz? ¾ A cada 1000 MWh consumidos na indústria de alimentos e bebias geram 70,2 empregos enquanto nas indústrias de alumínio geram 2,7 empregos; ¾ 6% da população mundial que vive nos países ricos consomem 1/3 de toda a energia produzida no mundo. A falácia do risco da falta de energia30 Especialista e movimentos sociais rebatem alarmismo da mídia corporativa, governo e investidores de que faltará energia escassez de energia é apontada pela mídia, governo e investidores como o grande problema para o desenvolvimento do país. Em coerência com essa idéia, a maior parte do orçamento (R$ 274,8 bi) do Programa de Aceleração do crescimento – PAC, divulgado pelo governo no último mês, foi destinada para a rubrica “investimento em infra-estrutura energética”. A 70 30 Porém, especialista e movimento social refutam essa tese com base nos próprios dados divulgados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). O Ministério de Minas e Energia (MME) definiu que, está dentre os objetivos do programa, “garantir a segurança do suprimento de energia elétrica” contando, inclusive, com a “partici- Disponível em www.mabnacional.org.br/noticias/050307_falta_energia.htm - 29k. pação efetiva do setor privado”. Para isso, está prevista a construção de mais hidrelétricas até 2010 capazes de gerar 12.386 MW, e a implementação de alguns instrumentos de incentivo ao investimento privado. Além disso, um Grupo Gestor (GGPAC/ MME) do Ministério foi formado na última terça-feira (6/2) para acompanhar e assegurar as ações previstas no Programa. Todas essas medidas foram feitas em nome do “desenvolvimento” e do “crescimento econômico” do país. No entanto, Dorival Gonçalves Júnior, professor de engenharia elétrica da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), desconstrói a tese do risco de falta de energia. Para isso ele examina, inicialmente, a capacidade de fornecimento médio de eletricidade durante todo o ano, que é denominada de “energia assegurada” pela ANEEL. Segundo o banco de dados da Agência, a capacidade de gerar energia elétrica na atualidade é de 57.500 megawatts (MW) médios. Comparando agora com a demanada requerida durante o ano de 2006 (que foi de 47.500 MW), de acordo com os dados da ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico Interligado), conclui-se que sobrou 10 MW de energia no ano passado. Para reforçar, ele dá um exemplo mais recente, de janeiro de 2007, onde o consumo de energia foi de 49.183 MW médios, sobrando assim, 8.317 MW médios de energia. Dorival conclui: “considerando que esse excedente de 8.317 MW é, praticamente, a energia assegurada da Itaipu (atribuída pela ANNEL), podemos dizer que hoje o sistema elétrico interligado nacional opera com uma Itaipu em stand by”. Já o prof. Luiz Pinguelli Rosa, Coordenador do Programa de Planejamento Energético COPPE/UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás, o Brasil tem uma projeção de crescimento econômico e precisa gerar emprego. Portanto, “é necessária a expansão de energia, eu não tenho dúvidas disso”, alerta Pinguelli. Ele acrescenta ainda que a energia per capita do Brasil é muito pequena. “Se comparar com os EUA ou Europa é uma disparidade. Mesmo na América Latina, se comparar com Argentina ou Chile, é muito menor”, avalia. Demanda Futura O principal argumento dos defensores da “tese da escassez” é que o crescimento econômico do Brasil nos próximos anos deve fazer com que a atual energia assegurada (57.500 MW) não seja suficiente. Contrariando essa opinião, Gonçalves Jr. mostra que, seguindo a previsão do Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica 20062015 (PDEE), elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), não teremos falta de energia nos próximos anos. O plano aponta três cenários de crescimento da demanda de energia: O primeiro, denominado “trajetória alta”, estima o crescimento anual da carga de energia para os próximos 4 anos de 5,1%. O segundo, chamado de “trajetória referência”, prevê o crescimento anual até 2010 de 4,9% ao ano. E, o terceiro, “trajetória baixa”, admite a variação da carga em 3,9% ao ano no período. A partir desses números (ver tabela 1), levando em conta a oferta e o consumo, Gonçalves Jr. conclui que o único cenário que ultrapassa a energia assegurada de hoje em 2010 é o de trajetória alta (que teria demanda de 57.956,8MW em 2010). “Ele ultrapassa somente 456,8 MW médios. Semana passada começaram a construir a hidrelétrica de Estreito, em Tocantins, que vai produzir mais de 1.000MW de energia, ou seja, muito acima do necessário”, afirma o professor. Gonçalves Jr. pondera ainda que esta hipótese de crescimento para a demanda (5,1% ao ano) parece muito improvável de se realizar, pois os dados registrados pelo ONS nos anos 2005 e 2006, foram respectivamente de 4,5% e 3,9%, e para este ano o ONS estima um aumento de 3,6%. “Então é difícil acontecer esse cenário de trajetória alta. Mesmo que não seja adicionado nem uma nova fonte até 2010, não faltará energia”, argumenta Dorival. Energia para quem? O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, que junto com outras entidades está puxando a campanha O preço da luz é um roubo, considera a tese do défcit de energia uma chantagem do setor elétrico. “Isso é uma especulação na comercialização de energia elétrica. O que eles querem é que tenha energia sobrando para comprá-la cada vez mais barata e em forma de subsidio do governo”, alerta Marco Antonio Trieveiller, da coordenação do movimento. Isso acontece, por exemplo, no Pará com a Albrás e no Maranhão com a Alumar. 71 Apesar de defender que o país precisa de mais fontes de energia, Pinguelli acredita que o que deveria ser feito é usar a energia dos produtores de alumínio (eletro-intensivos) para a população. “Existe um grupo de privilegiados chamados de consumidores livres, que consomem 30% da energia do Brasil a um preço baratinho. Quem paga é o pobre”. Hidrelétricas na Amazônia Para Dorival Gonçalves Jr., sob o discurso da escassez iminente de eletricidade, “está submersa uma matriz de interesses que de modo algum expressam qualquer interesse dos trabalhadores”. Segundo ele, desde a privatização do setor o preço da tarifa residencial subiu. (ver tabela 2). A eletricidade saiu da faixa dos US$ 70 dólares para mais de US$130, mantendo-se no nível dos US$ 100. O complexo do Rio Madeira prevê a construção das usinas hidrelétricas Santo Antônio e Jirau que, juntas, poderão gerar cerca de 7,5 mil MW. Segundo Wesley Ferreira Lopes, do MAB, esses empreendimentos são pra atender as necessidades do capital e não do povo, já que a energia produzida pelas hidrelétricas é para abastecer as empresas e não o a população. Além disso, “as obras vão elevar o nível do rio em mais de 4m em algumas regiões, desabrigando mais de 3 mil famílias”, denuncia. Mecanismos de sustentação deste modelo foram inclusos no PAC. No caso dos financiamentos do BNDES, que já eram bastante favoráveis, ficaram ainda mais, já que o banco financiará até 80% do empreendimento e o prazo de pagamento aumentou de 14 para 20 anos. Além disso, está sendo criado o Fundo de Investimento em Infra-estrutura com o uso do FGTS. “O PAC veio para aperfeiçoar esse modelo energético lucrativo” conclui Dorival. As hidrelétricas do Rio Madeira (RO) e de Belo Monte(PA) são dois polêmicos projetos que constam no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ambos são alvos de críticas e protestos por parte de movimentos sociais e ambientais. Belo Monte, com geração prevista de 11 mil MW, teve sua autorização de estudo ambiental questionada pelo Ministério Público Federal do Pará na semana passada. Eles exigem uma consulta aos indígenas da região pelo Congresso Nacional, além de discutirem possíveis alternativas à obra. “Antes de produzirenergia, as hidrelétricas produzem excluídos”, diz Dom Orlando Dotti31 Setor de Comunicação: Como o senhor vê a organização do MAB e a inserção do Movimento na sociedade? Dom Orlando Dotti: O meu pensamento não é exclusivamente meu, é um pensamento que nós da Igreja temos. Em primeiro lugar dize31 72 mos que o MAB é o legítimo representante dos atingidos por barragens. Dentro desse contexto de exclusão, é um movimento próprio desses excluídos, não alguma coisa superior, nem alguma coisa lateral. Em segundo lugar preciso mencionar sua atuação. Eu conheci o movimento quando morava na Dom Orlando Dotti, bispo Emérito da diocese de Vacaria/RS, é um dos grandes apoiados do Movimento dos Atingidos por Barragens desde a sua criação, acompanhou atingidos por barragens na Bahia, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul e mesmo como bispo emérito, continua junto à luta dos pobres do campo. Dom Orlando fala ao Jornal do MAB sobre o papel da Igreja entre os movimentos sociais e a criminalização dos mesmos. Matéria publicada no Jornal do MAB. Bahia, era pequeno, regional. Agora percebo que cresceu e amadureceu em muitos aspectos, tornou-se movimento nacional e articulou-se internacionalmente. Há uma expansão muito grande do MAB e acima de tudo, há uma qualificação de suas ações. Setor de Comunicação: Do seu ponto de vista, qual é o papel da Igreja junto aos Movimentos? Dom Orlando: Eu penso que hoje a Igreja se situa num outro patamar. Principalmente durante o período da ditadura ela fazia quase tudo: organizava e mobilizava o povo, produzia os subsídios, etc. Com o passar do tempo a Igreja entendeu que não é toda a sociedade, mas uma parte dela. Eu diria que o projeto do MAB e dos demais movimentos sociais é o mesmo que o nosso: queremos uma vida melhor, o bem comum para todos, o projeto de uma sociedade livre, democrática, que haja menos desigualdade social. Setor de Comunicação: As prisões que aconteceram contra os atingidos retomam ações da ditadura militar? Dom Orlando: A opressão aos atingidos acontece porque existe uma promiscuidade entre as empresas, o ministério público e o judiciá- rio. Uma promiscuidade que dita o que se deve fazer para que a barragem seja construída e para o lucro das empresas, não se importando com o que acontece com o povo. E o que está acontecendo em algumas regiões do país é um abuso, a coisa mais fácil para se acabar com um movimento é criminalizar as lideranças, e é o que estão fazendo neste pacto que existe entre o poder constituído e as empresas. Então criminalizam dando ordens de prisão, são supostos como criminosos e fica por isso mesmo. Setor de Comunicação: Como o senhor vê os próximos passos da luta? Dom Orlando: Criou-se a mentalidade de ser contra as barragens porque sabe-se de antemão que elas vão trazer grande malefícios para as pessoas. É a vida humana que está em jogo e até hoje as barragens nunca melhoraram a vida dos atingidos. Por isso tem tanta gente que é contra esse modelo de produção de energia, o governo tem que implantar um novo modelo, que privilegie a pessoa humana. O MAB tem que lutar cada vez mais por isso e os investimentos públicos, que servirão somente a interesses particulares, devem ser revertidos ao bem estar dos pobres ribeirinhos, pois antes de produzir energia, estas usinas produzem excluídos e isso deve acabar. Ditadura na barranca dos rios brasileiros: perseguição e criminalização de militantes da luta contra as barragens32 Eduardo Luiz Zen R 32 ecentemente temos presenciado uma forte ofensiva das empresas do setor elétrico contra militantes sociais e de- fensores dos direitos humanos das populações atingidas por barragens. Na medida em que a resistência das comunidades ribeirinhas con- Artigo disponível em www.mabnacional.org.br/textos/index.htm - 51k 73 tra o atual modelo energético vai se tornando mais forte, intensifica-se também as ações de força da polícia contra os atingidos, não só nas reintegrações de posse dadas pela justiça, mas principalmente nas ações violentas para dispersar manifestações em rodovias, nas invasões e destruição de acampamentos e até nas audiências públicas oficiais para discutir as barragens, quando os atingidos são impedidos de se expressar ou expulsos de forma violenta do local da audiência. A ação policial tem aumentado de maneira significativa também nas ações de despejos, quando os atingidos se recusam a abandonar suas terras e casas, que ficarão embaixo dos lagos das barragens. Nestes casos, a polícia se encarrega de expulsar a família de sua casa, que logo é demolida ou incendiada, como forma de impedir que os moradores retornem. Em 2004 uma comunidade inteira atingida pela barragem de Candonga, em Minas Gerais, passou por esta situação. Na vila de São Sebastião do Soberbo, dezenas de famílias resistiram durante semanas contra as investidas da polícia militar com apoio da polícia federal para efetuar o despejo de todos. No final, com aumento do efetivo policial ocupando a vila, as famílias não puderam conter as retroescavadeiras que destruíram suas casas. Perto dali, no dia 08 de março de 2005, 35 pessoas ficaram feridas durante a realização de uma audiência pública para discutir a construção da barragem de Jurumirim, no município de Rio Casca. Mulheres e crianças foram espancadas pela polícia, que também manteve presos por um dia, seis pessoas apontadas como líderes do MAB. No estado do Pará, tropas do exército com autorização para agirem como polícia, chegaram a ser utilizadas no mês de março de 2005, para “proteger” as instalações da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (PA), que há duas décadas atrás expulsou 30 mil pessoas de suas terras, a maioria sem reparação até hoje. Mais recentemente, no dia 05 de outubro de 2005, 50 policiais invadiram e destruíram completamente um acampamento de agricultores próximo ao Rio Canoas, na região atingida pela barragem de Campos Novos, em Santa Catarina. Após esta ação, a tropa dirigiu-se a outro acampamento localizado próximo ao can- 74 teiro de obras da Usina, onde houve confronto e um agricultor foi preso. Estes são apenas alguns exemplos do tratamento que às populações ribeirinhas recebem, quando estão organizadas e em luta pelos garantia dos seus direitos. Mas o que mais chama atenção na tática do governo e das empresas do setor elétrico para combater a organização e resistência das populações atingidas por barragens são as perseguições políticas, difamação, ameaças e tentativa de criminalização das lideranças e apoiadores desta luta. Um levantamento preliminar feito na bacia do Rio Uruguai, sul do país, mostrou que nesta região, 107 atingidos por barragens respondem a processos civis ou criminais demandados pelas empresas construtoras ou por outros agentes a seu serviço. As principais lideranças do MAB na região sul do Brasil respondem sozinhas a mais de 15 processos cada uma. Os autos dos processos judiciais, somam mais de 30 mil páginas. Para 36 atingidos processados em ações criminais, são pedidas penas que vão de 1 a 30 anos de prisão por participarem do movimento e 9 pessoas respondem a ação onde se pede indenização de R$ 1 milhão de reais por danos na Usina de Camp o s N o v o s . A l é m d i s s o, a d v o g a d o s e apoiadores do MAB também estão na lista de processados, como forma de coagi-los a pararem de apoiar a luta dos atingidos. Toda esta tentativa de criminalização tem como objetivo geral enfraquecer a luta contra as barragens. Para isso, os processos judiciais cumprem o papel de intimidar os atingidos ou seus apoiadores, para que abandonem a organização e parem de lutar. Os processos também mantêm os dirigentes ocupados, levandoos a usarem parte significativa de seu tempo em se defenderem, quando poderiam estar organizando a resistência. A criminalização também busca desqualificar os atingidos perante a opinião pública, tachando-os de marginais e bandidos. Para isso, as empresas construtoras contam com valioso apoio da mídia. Em última instância, o objetivo final dos processos é levar a prisão os principais dirigentes e militantes da luta contra as barragens. Os fatos de criminalização ocorridos são apenas um dos desdobramentos de um pro- cesso bem mais amplo, que levam o MAB a denunciar à sociedade brasileira a existência de uma verdadeira “ditadura” na barranca dos nossos rios. nifestações populares contra as barragens; na perseguição política, tentativas de criminalização e prisões arbitrárias de militantes sociais e líderes que organizam a resistência das populações. Esta ditadura se materializa na retirada e expropriação dos meios de vida e subsistência das população não-proprietária que são afetadas por uma represa; na negação sistemática dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais destas populações; na incapacidade total do ministério público e do poder judiciário em garantir estes direitos; na utilização da violência policial e até de tropas do exército para guarnecer os canteiros de obras e dispersar ma- Além disso, os processos de licenciamento ambiental das obras são marcados por irregularidades e fraudes, onde impera a política do fato consumado em desacordo com a legislação vigente no país. As decisões sobre as liberações das obras não são técnicas e nem acontecem em ambiente democrático, são decisões políticas tomadas por governos submissos aos interesses das grandes empresas. Hidrelétricas eviolações de Direitos Humanos Leandro Gaspar Scalabrin lucratividade do sistema energético privatizado brasileiro é tanta que as empresas de energia e gás estabelecidas no Brasil foram o segundo maior segmento a remeter lucros para o exterior em 2006: US$1,378 bilhão, ficando atrás apenas dos bancos.Apenas no segundo trimestre de 2007, o lucro líquido da Tractebel Energia (subsidiária da multinacional franco-belga Suez-Tractebel) - maior empresa privada geradora de energia no Brasil – foi de R$229,5 milhões. A Apesar da enorme dívida social e ecológica em aberto nas inúmeras barragens já em operação, dos inúmeros casos de violações de direitos humanos não reparados, o governo federal insiste no modelo de construção de barragens. Atualmente, integram o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – e estão em fase de construção as seguintes usinas hidrelétricas (e seus respectivos orçamentos): Ö UHE Estreito (Tocantins / Maranhão)..............................................................R$2 bilhões Ö Eclusas da UHE de Tucuruí (Pará).............................................................R$611 milhões Ö UHE Foz do Chapecó (Rio Grande do Sul / Santa Catarina).......................R$2,2 bilhões Ö UHE São Salvador (Tocantins / Goiás) - Tractebel.........................................R$424 milhões Ö UHE Serra do Facão (Goiás).......................................................................R$707 milhões Ö UHE Salto Pilão (Santa Catarina)..............................................................R$352 milhões Ö UHE Castro Alves (Rio Grande do Sul).......................................................R$47 milhões Ö UHE 14 de julho (Rio Grande do Sul)..........................................................72,7 milhões 75 O modelo energético brasileiro é a causa das violações de direitos humanos: os rios são públicos, as concessões das obras são públicas, o licenciamento ambiental é público, mas os lucros são privados. O Artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), reconhecido pelo Brasil, reconhece o direito de toda pessoa a uma melhora continua de suas condições de vida. Ter acesso à energia elétrica não é um luxo e sim um direito de todo cidadão. O preço da energia tem obrigado as famílias carentes, se alimentar menos, se vestir pior, ter menos lazer e pior condição de moradia, num claro retrocesso nas suas condições de vida: duas pessoas morreram, uma no Ceará e outra em Rondônia, ambas doentes, que tiveram suas contas de energia cortada porque não tinham condições de pagar. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tem tido papel de destaque nas violações de direitos humanos na implantação de hidrelétricas, na medida em que não exige dos financiados o respeito aos pactos internacionais firmados pelo Brasil. O BNDES aprovou R$ 8,3 bilhões em financiamento para o setor de Energia Elétrica nos últimos 12 meses. Os atingidos por barragens, organizados em movimento, precisam e continuarão, exigindo do Estado a sua responsabilidade para cumprimento dos diplomas nacionais e internacionais que garantem a defesa e promoção dos direitos humanos, em especial no que se refere às suas obrigações para com PIDESC, no que tange a garantia da melhoria contínua das condições de vida da população brasileira. Apenas nestas obras, cerca de vinte mil famílias serão atingidas e deslocadas compulsoriamente, ou seja, serão obrigadas a abandonar seu modo de vida tradicional, suas terras e suas casas – porque estas foram declaradas de “utilidade pública” para fins de “aproveitamentos hidrelétricos”. MAB denuncia violação dos direitos humanos33 Comissões visitam regiões mais afetadas omunidades esquecidas, isoladas. Repressão policial. Direitos negados ou não reconhecidos. Tradições culturais extintas. Na tentativa de pautar estes e outros problemas sofridos pela população atingida junto aos órgãos competentes do país, o MAB encaminhou diversas denúncias de violações de direitos humanos decorrentes do processo de construções das barragens ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) do governo federal. C 76 33 Texto feito pelo Movimento dos Atingidos por Barragens Em uma reunião do CDDPH do ano passado foi formada uma Comissão Especial que durante esse ano visitou a barragem de Acauã, na Paraíba, e as hidrelétricas de Foz do Chapecó, em Santa Catarina, Tucuruí, no Pará, Aimorés, Emboque e Fumaça, em Minas Gerais, e Cana Brava, em Goiás. O representante da Defensoria Pública da União na Comissão, João Paulo Dorini, afirma que em todas as visitas as denúncias feitas pelo MAB foram confirmadas. O caso que mais causou espanto para Dorini foi o da Barragem de Acauã. “Muitas pessoas saíram de suas casas já com a água nos pés. E a comunidade está totalmente esquecida, isolada”. Um relatório final feito pela Comissão será entregue ao CDDPH. A Comissão Especial só tem poder de sugerir medidas, até mesmo de caráter de urgência, mas não de executá-las. “Espero que o relatório não seja mais um documento que vá pra gaveta. Se ele servir pelo menos para a discussão pública sobre o tema já cumpriu boa parte do seu papel”, afirmou Dorini. Para o MAB, o relatório será mais um instrumento de luta e pressão política. A Comissão esta constituída com representação do Ministério do Meio Ambiente, Ministério de Minas e Energia, Movimento dos Atingidos por Barragens, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Câmara dos Deputados, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União. Veja algumas das denúncias encaminhadas em cada região: UHE de Cana Brava (GO) (recebeu a visita entre 15 e 18 de agosto) No cadastro do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) constam 808 famílias atingidas pela usina hidrelétrica de Cana Brava, localizada município de Minaçu (GO) que ainda não receberam qualquer tipo de indenização. Esta é a principal denúncia encaminhada pelo movimento ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). O projeto da usina de Cana Brava foi concedido à CEM – Companhia Energética Meridional, subsidiária da Tractebel Energia S.A, como resultado de uma licitação internacional promovida pela ANEEL, em março de 1998. Segundo o MAB, 946 famílias foram atingidas (entre ribeirinhos, semterra, pescadores, arrendatários, meeiros, mineradores, professores de escolas fechadas, etc), mas só 121 foram reconhecidas. O processo de reassentamento das famílias reconhecidas ainda não foi concluído. Estas famílias encontram-se acampadas e organizadas em grupo. UHE de Tucuruí (PA) (recebeu visita entre 4 e 6 de agosto) Criada durante o regime militar, a usina deslocou 32 mil famílias, segundo dados da própria Eletronorte. Como foi construída antes da lei que exige que seja feito o estudo de impacto ambiental antes da construção da barragem, o mesmo foi elaborado simultaneamente à construção da obra. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa da Amazônia (INPA), as conseqüências sociais e ambientais da hidrelétrica de Tucuruí foram, e continuam a ser, negativas e prejudiciais. Algumas delas: o deslocamento da população na área de inundação e a sua realocação subseqüente devido a uma praga de mosquitos Mansonia; o desaparecimento da pescaria que sustentava, tradicionalmente, a população a jusante da barragem; os efeitos sobre a saúde devido à malária e a contaminação por mercúrio; e o deslocamento e perturbações de grupos indígenas (Parakanã, Pucurui e Montanha) 77 Barragem de Acauã (PB) (recebeu a visita entre 18 e 20 de abril) Os reassentamentos de Cajá, Melância e Pedro Velho na Paraíba são considerados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) a pior situação social das famílias reassentadas por uma barragem no país. O MAB denuncia: déficit habitacional de 240 mora- dias; escolas inexistentes ou com funcionamento precário; merenda escolar insuficiente; posto médico inexistente ou com funcionamento precário; assistência médica ruim; inexistência de área para desenvolvimento da agricultura e pecuária, entre outros déficits. UHE de Foz de Chapecó (SC) (recebeu a visita entre 27 e 29 de julho) Até agora foram desapropriadas 71 famílias na região do canteiro de obras de Foz do Chapecó. Dessas, segundo o MAB, mais de 30 tiveram os direitos negados ou “não reconhecidos” pela empresa. Além disso, o consórcio, formado pelo grupo CPFL (Votorantim, Camargo Corrêa e Bradesco), Furnas e a concessionária CEEE, estaria induzindo as famílias a escolherem carta de crédito ou indenização em dinheiro ao invés de reassentamento coletivo, desrespeitando a livre opção de escolha garantida por lei. Entre as práticas utilizadas pela empresa e denunciadas pelo Movimento, destacamse: ameaças, cooptação, pressão psicológica, uso da força, queima e destruição de casas, omissão de informações ao Poder Judiciário. UHE de Emboque (MG) (recebeu visita no dia 29 de agosto) Famílias atingidas pela UHE de Emboque, da empresa CAT–LÉO ENERGIA, relatam casos de total desrespeito aos Direitos Humanos como. Um deles foi o caso de Sílvio Clemente, que suicidou-se por causa da truculência e maus tratos da empresa. Ângela, que foi tirada de sua própria casa por vinte policiais e está sem indenização até hoje. A barragem de Emboque, localizada no rio Matipó, municípios de Abre Campo e Raul Soares, em nove anos de funcionamento, acumula um triste saldo de dez mortes. Na época da construção da barragem de Emboque morreram cinco pessoas, sendo dois operários e três atingidos. Depois do lago cheio, morreram mais cinco, dois em acidente nas curvas perigosas das estradas relocadas pela empresa. UHE de Fumaça (MG) (recebeu visita no dia 30 de agosto) A empresa norte americana Novelis, dona da barragem de Fumaça, localizada no Rio Gualaxo do Sul, municípios de Mariana e Diogo de Vasconcelos, comprometeu 300 anos de artesanato em pedra sabão na região próxima a Ouro Preto e afetou, diretamente, a atividade cultural 78 de centenas de artesãos e a sobrevivência de mais de duas mil pessoas. Muitos artesãos estão até hoje sem nenhum tipo de indenização. O lago da bar ragem inviabilizou a exploração de quarenta pedreiras, que ficaram em área de risco ou debaixo d’água. Usinas hidrelétricas no Rio Madeira e a cobiça internacional O que está por trás da construção de Jirau e Santo Antônio? Rapinagem das riquezas amazônicas pela hidrovia, fortalecimento da indústria da barragem, energia barata para as indústrias eletrointensivas e uma fábrica de dinheiro com a venda da energia para o povo brasileiro. dia 9 de agosto de 2007 ficou marcado na história do nosso país como mais um dia em que o governo federal se curvou e cedeu aos interesses das grandes transnacionais. Nesta data o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) concedeu a licença prévia, atestando a viabilidade ambiental das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no coração da floresta amazônica, em Rondônia. O Estes dois projetos de hidrelétricas no Rio Madeira vêm sendo discutidos há vários anos e fazem parte de um plano maior de saqueio da Amazônia. Desde setembro do ano 2000, através de uma iniciativa do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o plano dessas hidrelétricas foi ganhando forma e força e, mais a frente, o Governo Lula passou a assumir como um dos principais projetos de geração de energia de seu governo pelo chamado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Segundo o debate que o Movimento dos Atingidos por Barragens vem fazendo, a crise mundial de energia está atraindo para países como o Brasil as indústrias que, nas suas nações de origem, já não têm condições de adquirir a elevada carga de energia que consomem. E como necessitam de energia barata para se viabilizar, encontraram aqui todas as vantagens que precisam, sob a conivência e incentivo do Estado brasileiro. Além disso, o fato é que o entreguismo dos recursos naturais da Amazônia agora vem mascarado por uma mentira, ou seja, foi criada uma necessidade de energia para evitar um novo ‘apagão’ num futuro breve, no entanto, dados apontam que se o crescimento do país continuar na média dos últimos anos, temos energia elétrica suficiente até 2010. Mas esses dados não são publicizados e o pânico que o governo e a grande mídia criaram na população com possibilidade de um novo racionamento de energia foram condições para este primeiro licenciamento dado pelo Ibama, sob forte pressão de interesses privados. Para o governo federal as duas usinas podem produzir o que hoje representa 8% da demanda nacional, necessários para impedir o ‘apagão’, mas para o MAB a falta de energia e a construção das duas usinas é um pretexto e significa abrir hidrovias para o escoamento das riquezas minerais que estão na região amazônica, além de garantir o funcionamento da indústria da barragem com a venda de turbinas, geradores, cimento, entre outros. Com a licença prévia, concedida à estatal Furnas Elétricas, a obra já pode ser leiloada e as verdadeiras interessadas nas obras são a Companhia Vale do Rio Doce, Alcoa, Citicorp, Duke Energy, todas dos Estados Unidos; a Votorantim e o Banco Bradesco, do Brasil; além da inglesa Billington Metais e da chinesa CTIC. A energia elétrica gerada em Jirau e Santo Antônio terá o preço de custo (R$ 51,00/ megawatt/hora – MW/h) para as suas indústrias de alumínio, siderurgia, celulose, papel, cimento, ferro-ligas e petroquímica, o que já é um grande vantagem. 79 Mas o verdadeiro lucro que as emprebanco público, do povo brasileiro controlado sas acionistas terão será com a venda da enerpelo Governo Federal, que utiliza recursos do gia, que com um custo de produção muito reFundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para duzido e beneficiadas pelos altos preços nas seus empréstimos. Ou seja, o BNDES pega ditarifas de energia no Brasil, obtém altos lunheiro dos trabalhadores para investir em emcros na venda do excedente. De acordo com presas internacionais, dá 14 anos para o pacálculos do MAB, considerando que o valor é gamento deste empréstimo e o que o povo rede R$ 130 por megawatt nos leilões de energia cebe em troca é a quinta tarifa de energia no Brasil e que a capacidade é de mais cara do mundo. 4.051 MW/hora nas duas usinas, Se transformarmos estes 43 Grande parte as empresas acionistas de Jirau e bilhões de reais da construção de Santo Antônia podem faturar até da energia Jirau e Santo Antônio em renda R$ 530 mil a cada hora. para a população local, teremos produzida Segundo dados do PAC uma noção do lucro extraordinápelas duas Programa de Aceleração de Cresrio que as empresas terão com a hidrelétricas venda de energia. cimento, grande parte energia produzida pelas duas hidrelétricas será levada será levada principalmente para Por exemplo: a capital de os estados onde as empresas aci- para os estados Rondônia, Porto Velho, segundo onistas possuem suas indústrias onde as estimativas de 2006, possui uma consumidoras de energia, como população de 380.971 pessoas. empresas São Paulo, Rio de Janeiro e MiSe compararmos com o total do acionistas nas Gerais. Ou seja, pouca ou investimento, ou seja, 43 bilhões quase nada da energia produzida possuem suas de reais, isso equivale a 113 mil será utilizada pelo estado de reais para cada habitante do indústrias Rondônia, então o discurso de município. desenvolvimento regional com a construção de usinas hidrelétricas mais uma vez é uma falácia. Ameaçar a cobiça Povo brasileiro paga para ser roubado Na região amazônica o desnível do terreno é pouco e os impactos sociais e ambientais que as duas obras ocasionarão são incalculáveis. Com 529,36 km² (53 mil hectares) de área inundada, o MAB estima que serão atingidas cinco mil famílias da região. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) fala em 2,8 mil pessoas, no entanto, segundo o Movimento, estão sendo contabilizadas apenas as pessoas que possuem título de propriedade sobre as terras, como é recorrente em todas as construções de barragens no país. 80 A dignidade do povo não interessa à cobiça internacional, mas o dinheiro do povo interessa e muito para a construção da obra. Os 43 bilhões de reais necessários para o conjunto de obras do chamado “Complexo do rio Madeira” sairá do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um internacional: esta é a força da organização do povo O capitalismo tem medo do povo e esta é a tarefa dos verdadeiros donos dos rios e florestas: ameaçar, amedrontar e expulsar os mascarados que se instalam em todo o país, e agora em especial na Amazônia, para saquear nossas riquezas. Para a coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens, nosso principal compromisso é enfrentar os projetos que não interessam ao povo e entregar nossas fontes de energia, nossos rios, nossa água, nossos minérios e florestas para grupos internacionais, é entregar nosso território e nossa gente à dominação estrangeira. É comprometer nosso futuro como povo e como Nação. Os donos de nossos rios. Até quando?34 Movimento dos Atingidos por Barragens- MAB tem entre suas principais bandeiras de luta a construção de um novo modelo energético, onde a água e a energia estarão a serviço e sob controle do povo Brasileiro. As empresas abaixo são inimigas de nossa proposta e do povo brasileiro. Estas empresas transnacionais controlam hoje a exploração de nossos rios para produção de energia, e fazem de maneira ditatorial e excludente. Dentro das novas leis brasileiras de recursos hídricos, poderão controlar dentro brevemente o uso de nossos rios para irrigação, transporte e abastecimento de água. O Tractebel-Suez Subsidiária belga do conglomerado francês de exploração de água, Suez, S.A.. A Tractebel está construindo a barragem de Cana Brava, no rio Tocantins, com US$160 milhões em financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A Tractebel se recusou a reunir com o MAB para discutir a situação de centenas de famílias atingidas, excluídas arbitrariamente de programas de compensação. Controla também as barragens de Itá e Machadinho (rio Uruguai) e tenta adquirir a concessão para construir mais barragens no Tocantins. Alcoa (Aluminium Company of America) A maior empresa de alumínio do mundo, com sede nos Estados Unidos, vem se beneficiando de cerca de 200 milhões de dólares anuais através do uso de energia subsidiada da barragem de Tucuruí (que inundou cerca de 2.820 km2 de florestas tropicais) para sua fábrica de alumínio, Alumar. Planeja construir três grandes barragens na Amazônia que inundarão comunidades indígenas e reservas ecológicas. São sócios também em barragens no rio Pelotas e Uruguai, no Sul do Brasil. Tem parceria também nos rios Pelotas e Uruguai no Sul do Brasil. 34 Texto feito pelo Movimento dos Atingidos por Barragens. BHP Billiton A maior empresa de minérios do mundo, sediada nos Reinos Unidos, é sócia da ALCOA no controle da Alumar e planeja barragens para a Amazônia. Também é acionista de peso na Cia. Vale do Rio Doce. Citicorp Banco dos Estados Unidos que tem parte do controle da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a maior empresa de mineração do Brasil, e da fábrica de alumínio Albrás junto a um consórcio japonês. Está unindo-se a Alcoa e Billiton em planos de novas barragens para a Amazônia para satisfazer sua gula por eletricidade. AES Corporation Empresa sediada nos Estados Unidos e o maior investidor privado no Brasil. Embora afirme “ter orgulho” de sua responsabilidade social, AES tem controle da CEMIG (Companhia Energética de Minas Gerais), que em parceria com a CVRD está construindo barragens como as de Aimorés, Igarapava, e Porto Estrela que expulsarão milhares de famílias. AEP (American Eletrical Power) Empresa sediada nos Estados Unidos e principal acionária da barragem de Lajeado, no rio Tocantins. 15.000 pessoas foram expulsas pela barragem, e o reservatório já está em enchimento. Mas o maior parte dos planos de mitigação dos impactos sociais e ambientais ainda não foi implementado, levando promotores públicos a acusar que há “fraude” no processo de licenciamento. Eletricidade de Portugal Associada a AEP na barragem de Lajeado planeja quatro novas barragens no rio Tocantins. 81 Southern Company (USA) Associada a AES no controle da CEMIG. Outras: Duke Energy (USA) Proprietária de barragens no rio Paranapanema e de usina termelétrica em Corumbá (rio Paraguai, no Pantanal). Electricité de France Associada a AES no controle da Light. Endesa (Spain) Dona da barragem de Cachoeira Dourada. Como funciona a exploração nas tarifas de energia elétrica35 “O modelo de energia elétrica no Brasil está a serviço dos banqueiros e das grandes empresas multinacionais” 1 2 35 82 Como vimos, a energia é tida pelos capitalistas como uma mercadoria que gera muito lucro. A partir do processo de privatização do setor elétrico brasileiro, a energia foi transformada numa grande mercadoria e quem passou a controlá-la foram as empresas multinacionais. Além disso, tornou-se um grande negócio que movimenta em torno de 100 bilhões de reais por ano, entre dezembro 1995 (início da privatização) e final de 2006 a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) reajustou as tarifas residenciais de energia elétrica em 386,2%, quase o dobro da inflação. O domínio privado trouxe conseqüências desastrosas ao povo brasileiro, tem privatizado a água e a energia e impôs uma superexploração da população ao mesmo tempo em que privilegia os mais ricos (grandes consumidores de energia). O setor elétrico brasileiro, antes da privatização possuía mais de 200 mil trabalhadores/as, mais da metade foram demitidos e hoje temos pouco mais de 100 mil. Além disso, as empresas que mais gastam energia são as que menos produzem empregos. Os dados atuais apontam que estas empresas consideradas extrativas (as que extraem as riquezas do Brasil principalmente para exportar) são as que mais estão crescendo no país. 3 No Brasil, mais de 80% da energia elétrica vem de fonte hídrica, considerada uma das energias com o menor custo de produção. Em grande parte, o baixo custo de produção da energia é fruto do descaso com que as empresas cons- Texto extraído da cartilha “O Preço da Luz é um Roubo”. Publicada pela Assembléia Popular. São Paulo, 2008. trutoras de barragens tratam a população atingida pelas obras, não ressarcindo o que é de direito de cada família. Hoje, 70% das famílias atingidas por barragens no Brasil, não são consideradas pelas empresas construtoras, portanto, ficam sem terra, sem casa, sem nada. Outro fator para o baixo custo de produção da energia é em virtude das empresas não considerarem nem repararem os graves custos ambientais. Mesmo com o suposto baixo custo, o preço da energia elétrica deixou de ser cobrado pelo seu custo de produção real (baseado na hidroeletricidade) para ser definido pelos padrões internacionais e determinado pela energia que tem o maior custo de produção, predominante nos demais países: a energia térmica, proveniente principalmente do petróleo. Isso significa que o modelo energético brasileiro foi organizado para permitir que as empresas controladoras da energia (multinacionais) possam extrair as mais altas taxas de lucro (lucros extraordinários). 4 5 Dessa forma, nós pagamos um dos preços mais altos do mundo pela energia, superior ao de muitos países onde a população tem um salário muito maior do que o salário do povo brasileiro. Por exemplo, em média, os brasileiros pagam o dobro do preço cobrado nos Estados Unidos. A fonte de energia é a mesma que a nossa – a água – e as empresas que vendem a energia também são as mesmas que vendem aqui no Brasil. No mais, todos sabemos que eles têm um ganho salarial muito maior do que os brasileiros. O problema central na questão da energia é a estruturação do modelo energético, baseado no atual modo de produção – o capitalismo. Portanto, no atual estágio de dominação, a luta em torno da energia ultrapassa a luta pelos direitos das famílias e também não é um problema puramente de natureza tecnológica. Todos os planos de novas hidrelétricas, ou os planos de aproveitamento de outras fontes, estão pensados para gerar energia ao imperialismo, ou seja, para que as grandes empresas multinacionais aumentem seus lucros, aproveitando o potencial energético brasileiro. A tendência para os próximos anos, se não ocorrer nenhuma transformação de caráter popular, é acelerar a construção de usinas em todas as regiões do Brasil, especialmente na região amazônica. 6 7 Os planos de hidrelétricas no Rio Madeira tem sido exemplo disso. Ao mesmo tempo, que é porta de entrada para um conjunto de hidrelétricas a serem construídas na Amazônia, é possível afirmar que estas obras estão pensadas na lógica do atual modelo energético e, portanto, são anti-populares. Combatê-las deve ser um compromisso de todo povo brasileiro. Não se trata de uma luta apenas da população atingida pelos lagos das hidrelétricas, todo povo brasileiro é atingido pelas altas tarifas, pela privatização da água e da energia, pelo caráter do financiamento via BNDES, ou porque coloca as empresas públicas e o dinheiro de todo o povo, a serviço desta lógica perversa. Portanto, a luta da energia deve se transformar em luta popular porque, antes de tudo, é uma luta pela soberania de nosso país. O discurso de escassez de energia tem sido o principal argumento ideológico para justificar novas obras, os aumentos de tarifas e o financiamento público, através do BNDES. No entanto, o cenário mundial de crise energética afeta principalmente os países centrais do capitalismo (Estados Unidos, Europa e Japão), pois são eles que consomem 70% de toda energia do mundo, apesar de possuir apenas 21% da população mundial. Ao analisarmos estes números percebemos que não se trata 83 de uma questão referente à quantidade de energia a ser produzida, e sim de um padrão de vida e de consumo nestes países, é incompatível com a possibilidade de ser reproduzido mundialmente. Ou seja, é impossível manter o nível de produção de energia para satisfazer este padrão de consumo. 9 Existe energia suficiente para todos os brasileiros. Em estudo recente, o professor Dr. Dorival Gonçalves Junior, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), informou que no Brasil sobram, hoje, mais de 8 mil megawatts de energia elétrica, ou seja, 8 milhões de kilowatts. Esta sobra de energia equivale a toda a produção de Itaipu, que é a maior barragem do Brasil e uma das maiores do mundo. No mesmo estudo, o professor aponta que, mantendo os atuais níveis de crescimento econômico, não vai faltar energia até o ano 2010, nem que o governo não faça nenhuma nova usina. Hoje, a produção de energia é de 57.500 MW/ hora médios. 8 A luta em torno da energia deve ser entendida em sua totalidade, como parte da luta pela transformação do atual modelo de sociedade. Na esfera da geração de energia, a luta contra as hidrelétricas tem se transformado numa luta anti-imperialista, ou seja, o enfrentamento se concentra contra as maiores transnacionais do mundo; Na esfera da transmissão e distribuição de energia, a luta contra o alto preço das tarifas, apesar de seu caráter tático, também pode ser uma luta importante, pois afeta a esfera de realização dos lucros pelos capitalistas, já que o povo brasileiro paga uma das tarifas de energia elétrica das mais caras do mundo. 84 1 0 Afirmamos que o modelo energético brasileiro está organizado na lógica do capital financeiro, para permitir os maiores saqueios e rapinas. Atualmente, os chamados “donos da energia” tem sido uma fusão de grandes bancos (Santander, Bradesco, Citigroup, Votorantim, etc.), grandes empresas energéticas mundiais (Suez, AES, Duke, Endesa, General Eléctric, Votorantim, etc.), grandes empresas mineradoras e metalúrgicas mundiais (ALCOA, BHP Billiton, Vale, Votorantim, Gerdau, Siemens, General Motors, Alstom, etc.), grandes empreiteiras (Camargo Correa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, etc.), e grandes empresas do agronegócio (Aracruz, Klabin, Amaggi, Bunge Fertilizantes, Stora Enso, etc.). O lucro das grandes empresas que mandam no setor elétrico brasileiro tem sido cada vez maior. Em um estudo recente, o engenheiro José Paulo Vieira chegou a seguinte constatação: o brasileiro paga, por ano, R$ 15 bilhões a mais pelas tarifas de energia do que quando as empresas eram estatais. O estudo mostra que a privatização, seguida de racionamento, revisão tarifária e aumento de encargos, elevou custo do serviço para a população. A privatização do setor elétrico brasileiro não cumpriu a maior parte das promessas que fez. Se fossem levados em consideração os custos do chamado seguro apagão, esse valor seria ainda maior. Esta é a conclusão da tese de doutorado defendida pelo engenheiro e diretor presidente da Termoaçu, José Paulo Vieira, no Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da Universidade de São Paulo (USP). Para chegar ao valor, o especialista também levou em conta a elevação dos tributos e encargos setoriais posteriores ao racionamento. 1 1 1 2 No atual modelo energético a destruição da natureza é cada vez mais evidente e alarmante. São grandes quantidades de terra e de floresta que são alagadas para fazer mais e mais barragens. São grandes quantidades de florestas derrubadas e de solos revirados para retirar os minerais. São enormes plantações de eucalipto e cana para exportar, transformando grandes áreas em verdadeiros desertos verdes. Com a construção de barragens, as empresas construtoras não enriquecem somente com a produção da energia, mas se apropriam indevidamente do nosso território, da riqueza de nosso país. Ou seja, barram nossos rios e ficam donas de nossas terras e da nossa água. E querem fazer cada vez mais obras, agora entrando na Floresta Amazônica. Todas as usinas hidrelétricas foram construídas ou financiadas com dinheiro público. Todo o sistema elétrico nacional foi montado pelos governos, durante muitos anos, com dinheiro público. Depois, durante os governos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, houve a famosa privatização, onde foi entregue muito do patrimônio para as grandes empresas do setor. Muitas empresas foram privatizadas: como a Eletropaulo, parte da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica), parte da Eletrosul. Mesmo que algumas sejam ainda consideradas estatais, têm boa parte do seu capital na mão de empresários particulares. É bom sabermos que mesmo as que se dizem particulares – tanto as empresas quanto as usinas – pegaram e continuam pegando dinheiro do governo para seu financiamento. Na maioria dos casos, usam todo o dinheiro para fazer a obra. Com o lucro da venda da energia, a obra se paga em 3 ou 4 anos e eles têm um prazo de mais 10 anos para pagar o empréstimo para o governo, ficando por 30 anos donos da produção da energia. Um exemplo de dinheiro público favorecendo as grandes empresas privadas é o do Complexo Madeira, que prevê a construção das barragens de Santo Antônio e Jirau. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) já anunciou que vai financiar até 75% do total das obras das barragens. A empresa estatal Furnas, que participa do consórcio, também deverá desembolsar uma grande parcela para a construção. Assim, as empresas privadas do consórcio ficarão de donas das barragens, usufruindo do lucro da venda da energia, sem colocar quase nada de dinheiro para as obras. O consumo da energia no Brasil “Os grandes consumidores de energia são os que menos pagam” No atual modelo do setor elétrico, os consumidores são divididos em dois grupos: de um lado os grandes consumidores de energia elétrica, chamados “consumidores livres”, e de outro os pequenos e médios consumidores, chamados “consumidores cativos”. prazo (mais de 20 anos). Na prática são as multinacionais, através da grande indústria (principalmente eletrointensiva) e grandes supermercados (shoppings). Atualmente, existem no Brasil 665 consumidores livres e consomem sozinhos quase 30% da eletricidade. Aos consumidores livres é fornecido energia ao preço de custo real. São aqueles que conseguem comprovar que consomem em um determinado momento mais de 3.000 quilowatt e, com isso, eles obtém o direito de negociar livremente com as geradoras o preço da energia através de contratos que podem ser de curto, médio e longo Os chamados consumidores cativos são os consumidores residenciais e quase a totalidade da pequena e média indústria e do pequeno e médio comércio. O objetivo das empresas que dominam a energia é vender a energia ao preço mais alto possível para este grupo de consumidores e, desta forma, buscam obter as mais altas 85 taxas de lucro. Quem define a tarifa que deve ser paga por este grupo de consumidores é a Aneel. E, como vimos, nestes últimos dez anos de privatização os preços foram reajustados em cerca de 400%. A justificativa para os aumentos é sempre o mesmo: escassez de energia. Os consumidores cativos estão divididos em subgrupos (A1, A2, B1, B2,...). Um destes subgrupos é o que chamamos de “Subclasse Residencial Baixa Renda”. Este grupo, por ser considerado famílias de consumidores de baixa renda, possui uma política de preços subsidiados. Conforme a média de consumo brasileira, teríamos em torno de 17,5 milhões de famílias que se enquadrariam neste subgrupo, no entanto, a Aneel tenta criar critérios para excluir a grande parte destas famílias do acesso a este direito. Transformando em exemplo: A empresa estadunidense ALCOA e a Vale possuem indústrias de alumínio e ferro no Maranhão e no Pará (a Alumar e a Albrás) e desde 1984 recebem energia subsidiada da Eletronorte. Em 2004, seus contratos com a Eletronorte foram renovados. A ALCOA, que nestes últimos 20 anos recebeu energia ao preço médio de 20 dólares ao megawatt-hora (cerca de 38 reais), em maio de 2004 renegociou o contrato até 2024 para receber 820 Mw médios e pagará em média 25 dólares ao Mwh (cerca de 45 reais). A Vale, que recebia energia ao preço médio de 13 dólares (24 reais) por megawatt-hora até 2004, renegociou seu contrato de 800 Mwh médios até 2024 ao preço médio de 18 dólares/megawatthora (33 reais/Mwh). Enquanto estas multinacionais (livres) recebem a energia a um preço de 03 a 05 centavos por Kwh/mês, os trabalhadores das cidades, agricultores e pequenos e médios empresários (cativos) pagam de 700 a 1000% mais que este preço. Na tabela abaixo vemos a diferença de preço pago pela mesma quantidade de energia consumida por estas duas empresas, comparando com o preço pago pelas famílias no Estado do Rio Grande do Sul: Consumo Valor por kw em R$ Total em R$ Vale (Albrás) 100 Kw 0,033 3,30 Alcoa (Alumar) 100 Kw 0,045 4,50 Consumidor residencial – tarifa normal – RGE/RS 100 Kw 0,467 46,70 Consumidor residencial – tarifa rural – RGE/RS 100 Kw 0,255 25,50 Consumidor residencial – tarifa social – RGE/RS 100 Kw ---- 24,33 Consumidores 86 Elaboração do gráfico: MAB Veja no gráfico abaixo o preço pago pelas duas empresas (ALCOA e Vale) e os demais consumidores, tomando como exemplo a tarifa cobrada no Rio Grande do Sul: Pelo gráfico, vemos que, enquanto a Alcoa e a Vale pagam menos de R$ 5,00 por 100Kwh de energia, os consumidores residenciais e as empresas e o comércio de pequeno e médio porte pagam mais de R$ 45,00 pela mesma quantidade de energia consumida. Ainda pelo gráfico, vemos que as famílias gaúchas residentes no meio rural pagam pouco mais de R$ 25,00 e as famílias que se enquadrariam na tarifa social, pagariam mais de 24 reais, ou seja, 500% mais caro que as multinacionais citadas. A luta pela tarifa social Famílias que consomem até 220 kwh/mês podem ter acesso à Tarifa Social mediante autodeclaração 1. A tarifa social de energia elétrica é um preço cobrado das famílias mais pobres, varia de local para local, mas na maioria dos casos funciona com preços mais baixos do que a tarifa normal. Os descontos na conta de luz podem variar de 10% até 65% do valor da tarifa normal. 2. Conforme a lei em vigor neste momento (maio de 2008), as orientações para as famílias interessadas são as seguintes: A) Para todas as famílias que consomem menos de 80 kwh/mês, o reconhecimento pela distribuidora de energia elétrica deve ser emitido de forma automática nas contas de luz, não havendo necessidade nenhuma de comprovação de baixa renda. B) Para as famílias que seu consumo situa-se na faixa de 80 kwh/mês até no máximo 220 kwh/mês, podem ser enquadradas observando os seguintes orientações: Ö O gasto de energia da família não pode ultrapassar o chamado “limite regional máximo”. A Aneel definiu uma tabela que apresenta os limites para cada Estado. Ö As ligações devem ser monofásicas. Ö Para quem se inclui nestes critérios e ainda não está cadastrado na concessionária basta preencher um documento chamado de “Autodeclaração”. Este documento deve ser assinado pelo responsável pela conta da energia e entregue na sede da distribuidora local. Depois de entregue, a empresa é obrigada a colocar imediatamente estas novas famílias como beneficiárias dos subsídios constantes na Tarifa Social Baixa Renda. Ö As famílias não precisam provar sua inscrição no Programa Soci- al do Governo Federal (Fome Zero) para serem reconhecidas pela distribuidora ou para se autodeclarar. Ö Os prazos estão em aberto e não há datas limites para apresentar novas autodeclarações. Ö A decisão é de abrangência nacional, ou seja, em todos os estados as famílias podem se autodeclarar. 87 As batalhas na justiça É bom saber que para garantir esta lei está se travando também uma batalha na justiça, que já teve os seguintes passos realizados: 1. 2. 3. rifa Social Baixa Renda, basta entregar inicialmente uma autodeclaração na distribuidora de energia elétrica de sua região. Desta forma, novas famílias podem ser enquadradas na chamada Tarifa de energia elétrica Subclasse Baixa Renda. Em 2004, a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (ProTeste) e a Fundação Procon de São Paulo entraram na justiça com uma Ação Civil Pública contra a Aneel e contra o Governo Federal para garantir às famílias que consomem menos de 220 kwh/ mês o direito a pagarem a chamada “Tarifa Social de Energia Elétrica” ou “Baixa Renda”. 4. Este processo está em andamento na Justiça Federal. Em abril de 2006, um Juiz de Brasília deu uma decisão favorável às famílias, podendo o benefício chegar para mais de 17 milhões de famílias no Brasil inteiro. Verificamos que milhares de famílias têm o direito, mas não vem recebendo os descontos nas “contas de luz” porque ainda não estão cadastradas. Desde setembro de 2007, todas as concessionárias e distribuidoras de energia elétrica foram notificadas e orientadas pela Agencia Nacional de Energia Elétrica, para que cumpram a decisão judicial (através do ofício circular nº 560/2007 - Aneel). No entanto, as empresas têm buscado abafar a notícia, para evitar que as famílias com direito possam se autodeclarar. 5. Finalmente é importante destacar que muitas famílias que encaminharam suas autodeclarações de forma organizada para as empresas que vendem energia já estão ganhando os descontos nas suas contas de energia elétrica. 6. Conforme mencionamos acima, os limites máximos regionais variam de local para local. Na página ao lado, segue uma tabela com os limites máximos, definidos pela Aneel, conforme a empresa distribuidora de energia. E em maio de 2007 as famílias brasileiras tiveram nova vitória. Conforme a decisão do Sr. Catão Alves, Desembargador Federal de Brasília, todas as famílias que consomem abaixo de 220 kwh/mês de energia elétrica, para receberem os descontos referentes a Ta- Companheiros e companheiras, todos os elementos citados no texto só têm sentido se existir a organização e a pressão popular. Então, como militantes que somos, também somos responsáveis por assumir esta campanha contra os altos preços da energia elétrica. Temos que organizar nossas comunidades, bairros e vilas, fazer panfletagens e ações de agitação e propaganda para que a informação chegue ao maior número possível de famílias, e dessa forma consigamos baixar o preço da luz e mobilizar o povo. 88 EMPRESAS Limite regional - kWh CERON - Centrais Elétricas de Rondônia CELPA - Centrais Elétricas do Pará CEMAT - Centrais Elétricas Matogrossenses CENF - Companhia de Eletricidade de Nova Friburgo CEA - Companhia de Eletricidade do Amapá COELBA - Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia CERJ - Companhia de Eletricidade do Estado do Rio de Janeiro CELB - Companhia Energética da Borborema CEAL - Companhia Energética de Alagoas CELPE - Companhia Energética de Pernambuco CER COELCE - Companhia Energética do Ceará CEMAR - Companhia Energética do Maranhão CEPISA - Companhia Energética do Piauí COSERN - Companhia Energética do Rio Grande do Norte SULGIPE - Companhia Sul Sergipana de Eletricidade ENERGIPE - Empresa Energética de Sergipe LIGHT Jarcel Celulose SAELPA - Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba 140 ENERSUL - Empresa Energética do Mato Grosso do Sul 150 AES SUL ELETROCAR - Centrais Elétricas de Carazinho CELESC - Centrais Elétricas de Santa Catarina COCEL - Companhia Campolarguense de Energia - PR CFLO - Companhia Força e Luz do Oeste CEEE - Companhia Estadual de Energia Elétrica - RS COPEL - Companhia Paranaense de Energia COOPERALIANÇA DEMEI - Departamento Municipal de Energia de Ijuí EFLUL - Empresa Força e Luz de Urussanga - SC JOÃO CESA FORCEL XANXERÊ HIDROPAN - Hidrelétrica Panambi UHENPAL - Usina Hidrelétrica de Nova Palma - RS RGE - Rio Grande Energia - RS MMC 160 CELTINS - Companhia de Energia Elétrica do Estado do Tocantins CEB - Companhia Energética de Brasília CELG - Centrais Elétricas de Goiás CEMIG - Companhia Energética de Minas Gerais CHESP - Companhia Hidroelétrica de São Paulo CFLCL - Companhia Força e Luz Cataguazes Leopoldina - MG DMEPC - Departamento Municipal de Eletricidade de Poços de Caldas - MG ESCELSA - Espírito Santo Centrais Elétricas ELFSM - Empresa de Luz e Força Santa Maria - ES 180 ELETROACRE - Companhia de Eletricidade do Acre CEAM - Companhia Energética do Amazonas MANAUS ENERGIA BOA VISTA ENERGIA 200 BANDEIRANTE Caiuá CJE CLFM CNEE - Companhia Nacional de Energia Elétrica CLFSC - Companhia Luz e Força Santa Cruz CPEE - Companhia Paulista de Energia Elétrica CPFL PIRATININGA CSPE ELEKTRO EEB EEVP ELETROPAULO 220 89 90 91 92 Declaração universal dos direitos da água E m 22 de março de 1992 a ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu o “Dia Mundial da Água”, publi- cando um documento intitulado “Declaração Universal dos Direitos da Água”. Eis o texto que vale uma reflexão: 01 A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo, cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão, é plenamente responsável aos olhos de todos. 02 A água é a seiva de nosso planeta. Ela é condição essencial de vida de todo vegetal, animal ou ser humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. 03 Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada com racionalidade, precaução e parcimônia. 04 O equilíbrio e o futuro de nosso planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos. Estes devem permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Este equilíbrio depende em particular, da preservação dos mares e oceanos, por onde os ciclos começam. 05 A água não é somente herança de nossos predecessores; ela é, sobretudo, um empréstimo aos nossos sucessores. Sua proteção constitui uma necessidade vital, assim como a obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras. 06 A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo. 07 A água não deve ser desperdiçada, poluída, nem envenenada. De maneira geral, sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas atualmente disponíveis. 08 A utilização da água implica em respeito à lei. Sua proteção constitui uma obrigação jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta questão não deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado. 09 A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção e as necessidades de ordem econômica, sanitária e social. 10 O planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra. 93 Legislação sobre a água36 a história das sociedades, os direitos humanos foram e estão sendo construídos através das lutas e da organização do povo. Os direitos ambientais foram consagrados há pouco tempo pelas Nações Unidas, particularmente consignados na Agenda 21, promulgada pela ECO-92, a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Trata-se de um conjunto de direitos que pretendem assegurar a vida no Planeta Terra pela proteção, preservação e recuperação das condições ambientais e pelo uso sustentável dos recursos naturais (terra, ar, água e biodiversidade). O Brasil se comprometeu em implementar a Agenda 21, apesar de não ter força de lei. N Dentre os direitos ambientais, queremos destacar o direito à água. Nada mais justo que o povo se organize em defesa da conquista desse direito. Para isso, é necessário o conhecimento da legislação sobre os recursos hídricos. Seguem alguns tópicos: 1 - Em nível internacional A Declaração Universal dos Direitos da Água, proclamada em 1992, pela ONU, embora não tenha força de lei, representa uma carta de intenções das Nações Unidas sobre o direito à água. Essa Declaração é, na verdade, uma convocatória aos cidadãos e aos países do mundo inteiro para que se esforcem no desenvolvimento da cultura do direito e dos deveres em relação à água. Os Art. 1 e 2 da Declaração afirmam que: Art. 1 - “A água faz parte do patrimônio do planeta”. Art. 2 - “A água é a seiva do nosso Planeta. Ela é a condição essencial da vida de todo ser vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou agricultura. O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano [...]”. A Declaração entende a água como um patrimônio da humanidade, condição essencial para a vida, um direito humano e um bem público. 94 36 Texto disponível em www.mabnacional.org.br Como todos somos responsáveis por ela, devemos utilizá-la com consciência e racionalidade, ou seja, com precaução, cuidado e preservação. A gestão econômica, sanitária e social da água deve ser controlada pelo Poder Público com a participação de toda a sociedade. O Art. 6 da mesma Declaração, aponta: “A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo.” Este artigo entende a água como “valor econômico”, o que evidencia uma contradição em relação aos Art. 1 e 2, citados anteriormente. Se a água é considerada “condição essencial de vida” e “patrimônio do planeta”, não pode ser considerado bem econômico, desfrutável mediante pagamento como bem. O único pagamento deve ser pelo serviço de disponibilizá-lo. 2 - Em Nível Nacional a) A Constituição do Brasil, promulgada em 04/10/1988, chamada “Constituição Cidadã”, traça a política nacional das águas em três artigos: Art. 20 – “São bens da União: III – os lagos, os rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. Art. 26 - “Incluem-se entre os bens dos Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União.” Art. 21 - “Compete à União: XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. b) A Lei N. 9.433, de 08/01/1997, institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. O Art. 1 da Lei N. 9.433 estabelece os fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos: I – a água é um bem de domínio público; II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implantação da Política Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Com esse conjunto de fundamentos, a Política Nacional de Recursos Hídricos tem como objetivos preservar o direito ao acesso à água em padrões de qualidade para as gerações atuais e futuras; utilizar racionalmente a água integrando-a ao projeto de desenvolvimento sustentável do País; prevenir e defender a água de usos inadequados. Alguns aspectos dessa lei a serem considerados A cobrança do uso dos recursos hídricos Quando a legislação define a cobrança do uso dos recursos hídricos pretende reconhecer o fornecimento da água como um bem econômico dando ao usuário a indicação do seu real valor e incentivar a racionalização de seu uso. Os valores arrecadados deverão, necessariamente, ser aplicados na bacia hidrográfica na qual foram gerados para assegurar o direito à água para as futuras gerações. Quem define os valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos? São as Agências de Água, autarquias vinculadas ao Ministério do Meio Ambiente, que exercem a função de secretaria executiva dos Comitês de Bacia Hidrográfica. É a Lei N. 9.984, de 17/07/2000, que dispõe sobre a criação da Agência Nacional da Água – ANA. Portanto, a ANA controla o mecanismo de gerenciamento das águas, isto é, a outorga (licença de uso), a determinação do custo das águas, e é a arrecadadora do valor estipulado pela água utilizada pelo consumidor e a aplicadora das respectivas arrecadações. O sistema nacional de gestão dos recursos hídricos A gestão da água deverá ser feita por um sistema integrado e descentralizado, envolvendo: o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, os Comitês de Bacia Hidrográfica, os órgãos dos poderes públicos federal, estadual e municipal cujas competências estejam relacionadas à gestão dos recursos hídricos e as Agências de Água. Em especial, cabe a cada cidadão buscar a informação e a participação nos Comitês de Bacia Hidrográfica. O que é um Comitê de Bacia Hidrográfica? O Comitê é um agrupamento de pessoas representantes do Poder Público, dos usuários e da sociedade civil que se organizam para planejar a gestão das águas de uma Bacia Hidrográfica, isto é, de um conjunto de afluentes situados numa mesma região e que deságuam em um rio principal. Um Comitê tem, portanto, a área de atuação geográfica de uma Bacia Hidrográfica. O Comitê tem como principais competências: debater e articular as questões relativas aos recursos hídricos; resolver conflitos, em primeira instância, relacionados à questão; aprovar e acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da Bacia; estabelecer mecanismos de cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sugerir valores a serem cobrados dos usuários; definir critérios e ratear custos das obras de uso coletivo; propor mapeamento e demarcação de pequenas nascentes, córregos e mananciais aos Conselhos Nacional e Estadual de Recursos Hídricos. A Resolução N. 5, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de 10/04/2000, ao regulamentar a criação dos comitês, estabeleceu que os mesmos devem ser compostos por uma tríplice representação: 40% do poder público; 40% de usuários; e 20% da sociedade civil organizada. Todos de uma forma ou de outra, podem participar dos Comitês de Bacia Hidrográfica e das demais lutas em defesa do direito à água para contribuir na tomada de decisão sobre os rumos de sua comunidade (local, municipal, estadual e federal), assegurando o acesso e a qualidade da água, sua preservação e sua gestão pública. 95 3 - Em nível estadual a) A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de 1989, em seu Art. 171 institui: “o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, integrado ao sistema nacional de gerenciamento desses recursos, adotando as Bacias Hidrográficas como unidades de planejamento e gestão, observados os aspectos de uso e ocupação do solo, com vistas a promover: I – a melhoria da qualidade dos recursos hídricos do Estado; II – o regular abastecimento de água às populações urbanas e rurais, às indústrias e aos estabelecimentos agrícolas”. b) A Lei N. 10.350, de 30/12/1994, regulamenta o Art. 171 da Constituição Estadual, instituindo o Sistema Estadual de Recursos Hídricos. O objetivo do Sistema Estadual é definido no Art. 2 da Lei que pretende “promover a harmonização entre os múltiplos e competitivos usos dos recursos hídricos e sua limitada e aleatória disponibilidade temporal e espacial, de modo a: I – assegurar o prioritário abastecimento da população humana e permitir a continuidade e desenvolvimento das atividades econômicas; II – combater os efeitos adversos das enchentes e estiagens e da erosão do solo; III – impedir a degradação e promover a melhoria de qualidade e o aumento da capacidade de suprimento dos corpos de água superficiais e subterrâneos, a fim de que as atividades humanas se processem em um contexto de desenvolvimento socioeconômico que assegure a disponibilidade dos recursos hídricos aos seus usuários atuais e às gerações futuras, em padrões quantitativa e qualitativamente adequados”. Em conformidade com a legislação federal, o Estado pretende assegurar água em qualidade e quantidade para o abastecimento humano e econômico, descentralizando suas ações na gestão da água por regiões e Bacias Hidrográficas, bem como por meio da participação comunitária através de Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica e a criação de Agências de Região Hidrográfica. Privatização da água37 Silvio Caccia Bava38 Brasil está pressionado pelo FMI e pelo Banco Mundial a privatizar os serviços de água e esgoto. De fato, este processo já começou. Estima-se que sejam cerca de trinta municípios que já privatizaram esses serviços. A iniciativa mais expressiva talvez seja a do governo do Estado do Amazonas, que em junho de 2000 leiloou a Manaus Saneamento, responsável por 96% das atividades da Companhia de Saneamento do Amazonas. Quem comprou a Manaus Saneamento foi a transnacional francesa SuezLyonnaise. Pagou R$ 180 milhões, mas 50% destes recursos foram financiados pelo BNDES. Segundo especialistas, estes recursos teriam sido O 96 recuperados pela empresa em apenas 14 meses de operação. A fonte destes recursos são as tarifas pagas pela população. A privatização da água é um processo que ganha escala em todo o mundo. Em 1980 eram 12 milhões de domicílios. Hoje são 600 milhões. Os países pioneiros são a Inglaterra, a França, o Chile. Com o discurso das PPP (parcerias público-privado), que não tem nada de brasileiro, quatro grandes multinacionais – com o respaldo das agências multilaterais de financiamento – avançam sobre os serviços públicos de saneamento básico no mundo inteiro. São elas: Ondeo, uma 37 Estudos da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental revelam que a privatização dos serviços sai muito mais cara para o consumidor. Se os investimentos forem feitos por órgãos públicos municipais, preço da água seria até 48% menor do que no modelo das PPPs. Texto disponível em http://www.polis.org.br/artigo_interno.asp?codigo=94. 38 Sociólogo, é diretor do Instituto Pólis e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). filial da Suez-Lionnaise, com 125 milhões de clientes; Veolia (ex-Vivendi), com 110 milhões de clientes; Saur, com 29 milhões de clientes. A estas três companhias francesas se soma a RWE alemã e sua filial inglesa, a Thames Water. 818,8 milhões, mas até o fim do ano tinham sido pagos apenas R$ 53,6 milhões e comprometidos outros R$ 454,7 milhões. Os recursos programados e não liberados foram para o pagamento dos juros da dívida pública. O resultado destas privatizações é um aumento exorbitante no preço da água. Em 1995 a empresa Générale des Eaux (Veolia) ganhou o leilão de privatização da água na província Argentina de Tucumán. Ao assumir os serviços a empresa aumentou em 104% o preço dos serviços. Em 2000 a empresa norte-americana Betchel assumiu o controle dos serviços de água de Cochabamba, na Bolívia. Em semanas a empresa triplicou o preço dos serviços para as famílias mais pobres. Os exemplos poderiam se multiplicar, pois esta é a lógica das empresas que operam neste novo mercado. Mas estes exemplos têm outro significado também. Nos dois casos a mobilização popular obrigou seus governos a rescindirem os contratos com estas empresas e a assumirem diretamente a prestação destes serviços públicos. Segundo estudos da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental a privatização sai muito mais cara para o consumidor. Se os investimentos forem feitos por órgãos públicos municipais, o preço da água seria de 37% a 48% menor do que no modelo proposto pelas PPP. Além de observar que as empresas que participam das privatizações têm financiado seus investimentos com recursos do BNDES e do FGTS, que poderiam ser direcionados para as autarquias municipais ou as companhias estaduais de saneamento. Estimativas do Ministério das Cidades dizem que são necessários R$ 178 bilhões para universalizar os serviços de água e esgoto até 2020. Algo como R$ 9 bilhões por ano. Dinheiro para atender aos 10,7% de domicílios urbanos que ainda não tem água e os 23,3% que ainda não tem esgoto, além de investimentos para garantir o sistema atual. O histórico de investimentos em saneamento básico não é animador. Nos anos 70 ele foi de 0,34% do PIB; nos anos 80 foi de 0,28%; nos anos 90 foi de 0,13%. Em 2003 foram gastos apenas R$ 60 milhões; em 2004 foram autorizados R$ O acesso à água é um direito humano fundamental. O abastecimento de água e o saneamento devem ser serviços públicos prestados pelo Estado. Estas são proposições da Plataforma Global da Água, documento elaborado por uma articulação de movimentos sociais do mundo inteiro, e são uma reação à onda de privatizações dos serviços públicos que transformam a água de um bem público em mercadoria. A África do Sul e o Uruguai já incluíram nas suas Constituições que a água não pode ser privatizada. A Frente Nacional de Saneamento Ambiental apresentou ao Congresso um documento com 720.000 assinaturas contra a privatização da água no Brasil. Não podemos abrir mão de que todo brasileiro tem direito à água potável de qualidade, mesmo se não tiver dinheiro para pagar. O Nordeste é Viável sem Transposição e com Ética na Política39 e São João a São Pedro, o Nordeste todo se une em sua maior festa. Coincidente com as colheitas no sertão, é a festa da fartura, da solidariedade e da alegria. Do Nordeste viável, auto-sustentável e soberano. Nós, os movimentos populares e enti- D 39 dades civis da Bacia do Rio São Francisco e de todo o Nordeste, vimos festejar em Cabrobó-PE para mostrar que o Nordeste não precisa deste projeto traiçoeiro chamado “integração de bacias”, a mesma antiga transposição. Acampados em cerca de 2000 pessoas junto ao canteiro Declaração dos movimentos sociais (disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/imagens/banners/anexos/ 20070626-1.doc, acessado em 18/05/2008) 97 de obras, no km 29 da BR 428, vimos exigir a imediata suspensão das ações que dão início às obras da transposição. Em sinal de outro desenvolvimento, voltado para a população e não para o capital, nos irmanamos ao Povo Truká e aos indígenas de todo o Nordeste na retomada desta terra, da Fazenda Mãe Rosa, desapropriada para a transposição, território Truká desde tempos imemoriais. Água nos açudes e cisternas, caatinga verdejante, comidas de milho, requeijão e paçoca, licores e muito forró ao redor da fogueira... Sinais do Nordeste bonito e viável, evidências do que pode o período chuvoso do semi-árido, se para ele deslocarmos o foco, concentrarmos os esforços, investirmos. Ao optar por obra contra a seca e não a favor do semi-árido e sua dinâmica sócioambiental, o governo erra mais uma vez, como tem acontecido historicamente. A proposta de conviver com o semi-árido – esperava-se desse governo – sepultaria a política e a indústria do combate à seca e consolidaria a política do aproveitamento do chuvoso, pois é neste, e não na seca, que se decide a vida do sertão e do sertanejo. A transposição, barganhada e em nome de uma falsa revitalização das bacias do Nordeste, significa uma “travessia para o passado”. A questão não é doar água ou não, mas qual desenvolvimento, a que preço e para quem. E como enfrentar os limites impostos pelas mudanças climáticas globais, que tendem a diminuir os mananciais do Rio São Francisco e desertificar o semi-árido. Este é o terceiro acampamento que fazemos, o último em Brasília por uma semana no mês de março, com 740 pessoas. Já se somam quase uma centena de manifestações públicas. Sequer fomos recebidos, muito menos ouvidos ou considerados. Será por que significamos a incômoda verdade sobre esse projeto e o que ele vai trazer de falso desenvolvimento para o Nordeste? Ou é porque vivemos num blefe de democracia? Ditadura 98 de novo, com desenvolvimentismo e até ação do Exército? O processo transcorrido até aqui não foi democrático nem republicano e desabona o projeto, seus promotores e lobistas: ¾ Estudos de impacto ambiental formais e incompletos; ¾ Críticas fundamentadas dos principais especialistas; ¾ Desrespeito às decisões do Comitê de Bacia; ¾ Descumprimento do acordo feito com D. Luiz Cappio, ao encerrar a greve de fome, em novembro de 2005, para que houvesse um amplo e sério debate nacional sobre o assunto; ¾ Incertezas e inverdades quanto as reais motivações do projeto, quanto a seus custos e a quem vai pagar a conta; ¾ Propaganda enganosa sobre seu alcance, ao manipular a opinião pública e inventar um público beneficiário de 12 milhões de sedentos, na verdade, os que vão pagar a conta dos grandes usos econômicos intensivos em água; ¾ Irregularidades flagrantes detectadas pelo Tribunal de Contas da União; ¾ Indícios de corrupção (caso da Gautama, empreiteira candidata ao segundo trecho mais caro da obra); ¾ Ocultação ao debate público dos projetos de transposição do Rio Tocantins para os Rios São Francisco e Parnaíba; ¾ Compra descarada de apoio dos políti- cos do São Francisco, com verbas da revitalização; ¾ Chantagens de um pseudo-desenvol- vimento transmutado em crescimento econômico a qualquer custo e sem futuro... São motivos mais que suficientes para que esse projeto seja arquivado. E que a sociedade cobre essa única atitude digna de um Estado de Direito democrático e republicano. Transposição não é solução esta a verdade que não quer calar! √ √ Queremos um programa verdadeiro de convivência com o semi-árido; √ Queremos a democratização do acesso à água, com acesso livre da população aos açudes e às adutoras; √ Queremos controle social sobre os usos das águas dos açudes e reservatórios geridos com competência; √ √ Queremos destinação prioritária das águas para a agricultura familiar e camponesa; √ Queremos programas que ampliem, divulguem e implantem as mais de 140 tecnologias hídricas, agrícolas e ambientais de convivência com o bioma caatinga e o clima semi-árido; √ Queremos reforma agrária ampla e efetiva e regularização dos territórios tradicionais, a começar pelas áreas dos Povos Truká, Tumbalalá, Pipipã e Cambiwá, atingidos pela transposição; √ Queremos a suspensão das barragens de Pedra Branca, Riacho Seco e Pão de Açúcar e de Centrais Nucleares na região; √ √ Queremos uma revitalização do Rio São Francisco que seja para valer! √ Queremos o arquivamento definitivo do projeto de transposição! Queremos um projeto de desenvolvimento regional que atenda às reais necessidades da população do semi-árido e do São Francisco e não de uma minoria de empresários nacionais e estrangeiros; Queremos a implementação imediata das 530 obras do Atlas Nordeste da ANA – Agência Nacional de Águas para levar água a 34 milhões de habitantes do Polígono das Seca; Queremos que o Supremo Tribunal Federal tome finalmente a decisão e que essa seja contrária ao projeto; Conviver com o semi-árido é a solução! São Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo! Cabrobó, 26 de junho de 2007. Ao São Francisco40 Ademar Bogo ão Francisco, rio e santo. Águas vertidas do pranto das margens secas estendidas. Margens que perderam a vida, águas que perderam o encanto. S Margens de velhas carcaças pelos anos carcomidas. Por não serem protegidas desbarrancaram no leito, como um peso sobre o peito o rio já não respira; e parece uma mentira, mas também 40 não se alimenta; e quem do rio se sustenta, sente que não tem mais jeito. Pensam em sangrar o rio cortando qual estilete. Pra desviar um filete do sangue que já não tem. Dizem que é para o bem da pobreza do nordeste; na verdade os cafajestes controlarão o canal; não haverá nada igual, nos novos tempos vindouros, a água vai virar ouro nos baldes do capital. Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=565, acessado em 18/05/2008. 99 Este é o grande dilema que teremos de enPra manter o Chico vivo é a grande reação. frentar, aqui e em qualquer lugar, que exista água Contra a transposição, desta armação tão perfeita. corrente. Creiam, que daqui pra frente, nossas fonNão pode querer colheita quem nunca plantou um tes naturais, com políticas liberais, serão todas pergrão! Nem pode existir razão em um projeto polêseguidas, saqueadas ou mesmo venmico. O Chico é um escravo anêmico, que está indo ao mercado e será São Francisco, didas, para empresas comerciais. privatizado se não houver reação. Por isso é que a confiança está Em nosso grande nordeste há dez milhões de camponeses, e foi por diversas vezes que votaram em eleições; aguardando soluções que aqui nunca chegaram, somente os ricos ganharam e haverá continuidade, se a solidariedade não assumir os desafios, pois só as águas dos rios, ainda não são propriedade. rio e santo. Águas vertidas do pranto das margens secas estendidas. Margens que perderam a vida, águas que perderam o encanto. perdendo a paciência, pois os sinais de incoerência estão por todos os lados! Vemos milhões de acampados sem ver um palmo de terra! O agronegócio impera, poluindo o ambiente; e é o mesmo presidente, dos transgênicos e das barragens, que em tudo acha vantagem num modelo decadente. Se o presidente quisesse fazer uma obra bonita, atacaria a maldita propriedade fundiária, faria a Reforma Agrária e daria condições, para que os nossos sertões fossem todos protegidos. Tendo isto resolvido, se voltaria pra cidade, teria água em quantidade com os rios abastecidos. Então se torna importante apoiar o Frei Luiz. É o orgulho do país aos poucos se levantando. Ele está no comando, contra a transposição; fez da fome a condição de um movimento de massas; contra as mentiras e trapaças se ergue descalça a verdade, impondo-se a crueldade, para evitar a desgraça. Poderia então transpor as águas do São Francisco; não correria nenhum risco no conteúdo e na forma. Depois de feita a reforma e revitalizado o rio, pra não ficar no vazio teria leis por garantia, que enquanto raiasse os dias, as águas dos rios ou paradas, não seriam privatizadas nem vendidas suas bacias. Todo povo brasileiro está chamado a jejuar, é a forma de lutar que encontramos neste instante; seja aqui perto ou distante terá força este protesto, que aos poucos e em um só gesto se ampliará esta rede. Se não houver solução, seguindo a transposição, o frei morrerá de fome e o rio morrerá de sede. A Reforma Hídrica41 Roberto Malvezzi “Estão cercando os lagos brasileiros”, adverte o Movimento dos Atingidos por Barragens. O povo já não pode aproximar-se sequer para retirar um caneco de água. Cercaram o “Eixão” que leva água do Castanhão, no Ceará, para o porto de Pecém, na grande Fortaleza. A água está protegida por arame, guardas em moto, câmeras 41 100 filmando os movimentos de quem ousar aproximar-se do canal. Foi também por isso que Géssia, a menina sem água de 12 anos, morreu em Petrolina, ao cair de um canal de 15 metros de altura que leva água para irrigação. Ela tentava roubar um balde de água para suprir as necessidades básicas de sua família. Texto publicado em 26/03/2008, disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=5137 (consulta realizada em 18/05/2008) O Dr. Manoel Bonfim, por tantos anos diretor do DENOCS, em seu livro “Potencialidades do Semi-árido”, afirma que o “grande erro do DENOCS foi não fazer a distribuição das águas estocadas no Nordeste”. Assim, 70 mil açudes feitos em toda a região – a mais açudada do planeta – guardam águas que nunca são democratizadas, porque as adutoras que visem sua distribuição jamais são feitas. Os poços, feitos com dinheiro público, acabaram trancafiados em propriedades particulares de latifundiários. Finalmente, se o governo conseguir realizar a transposição do São Francisco, todos os grandes açudes receptores terão suas águas privatizadas, tanto as originadas pela chuva – potencial de 37 bilhões de metros cúbicos - quanto aquelas oriundas do rio São Francisco. Finalmente uma elite nordestina restrita vai conseguir impor o primeiro grande “mercado de águas” no Brasil, como já queria o Banco Mundial ainda na década de 90. Pouco a pouco, sem grande reação da população brasileira, nossas águas vão conhecendo o caminho da privatização, embora constitucionalmente continuem como um “bem da União”. Quando falamos em reforma hídrica, propomos exatamente o empenho do Estado para garantir que a água continue um bem comum, acessível a todos, fora das regras do mercado. Parece que, assim como a terra, não será possível, a não ser pela luta popular. Ao construirmos aproximad amente 300 mil cisternas, ao propormos a captação da água de chuva para a produção, ao propormos a construção das adutoras que estão previstas no Atlas do Nordeste, estamos propondo a segurança hídrica para milhões de pessoas e também a socialização de um bem que constitucionalmente ainda continua de todos os brasileiros. Seria o princípio da reforma hídrica, a começar pelo Nordeste. Ou então vamos para o pior, assim como aconteceu com a terra. 101 102 103 104 Por trabalho,eles perdem a saúde42 Expostos a tarefas extremamente prejudiciais e degradantes, crianças, adultos e idosos enfrentam jornadas de semi-escravidão o sertão mineiro, os homens carvoeiros trabalham desde a madrugada, ao som seco de tosses repetidas. Enchem sacos de carvão e pulmões de fuligem. N às vezes, só saio às 4 da tarde. Só estudei até a segunda série completa e mal sei assinar o nome. Meus filhos estudam e não quero que sejam carvoeiros”, diz Santos. Sob vento de areia preta, José dos Santos trabalha solitário e solidário com o parceiro que, enfermo, não veio para a labuta. Não reclama da vida, não reclama das dores nas costas nem da tosse. Os olhos choram às vezes, mas quase todos, algum dia, choram no carvão. Deve ser a fuligem; se é algo do coração, todos disfarçam, ninguém sabe não. Na sua equipe, trabalha o ensacador Francisco Ramos Sales, de 43 anos, desde os oito na labuta. Nascido em Rio Pardo (MG), está casado pela segunda vez. Tem seis filhos dos dois casamentos. Os filhos estudam, mas ele só fez a primeira série. “Quem está nesse trabalho, é porque não tem outro. A gente fica cativo da pobreza e da ignorância. Aí, como tem muita gente assim,o empreiteiro tem sempre trabalhador”, afirma Sales. Santos tem 27 anos e trabalha desde os dez. Há nove, transporta sacos de carvão. Normalmente trabalha com mais três companheiros: dois ensacando e um carregando nas costas sacos que chegam a 40 quilos. Esse trabalhador sobe cerca de 450 vezes uma escada, com os sacos nas costas, para encher um caminhão. Quando o caminhão é grande, sobe 600 vezes. Como enche dois caminhões por dia, pode chegar a subir e descer 1200 vezes... com 40 quilos nas costas. Alguns dias existem dois carregadores para subir no caminhão e essa tarefa é dividida. Recebem por produtividade, por carga executada – curiosamente, o salário não aumenta quando o caminhão comporta 600 sacos, mas baixa quando, por motivos alheios à vontade do trabalhador, não tem caminhão para dois carregamentos. Começam a trabalhar às 2 horas da manhã. Eles vêm de longe, em bicicletas, porque a firma, a empreiteira Carvoaria e Transporte Irmãos Santos, apesar do nome, não fornece transporte para os carvoeiros. Alguns demoram duas horas de bicicleta para ir, duas para voltar e trabalham 14 horas por dia. “Me revolto calado todos os dias. Esse serviço é muito ruim. Pego muito cedo porque o solacaba com a gente e, 42 Exploração Infantil Santos está tentando romper uma corrente perversa que alimenta uma cadeia de trabalho degradante nas carvoarias brasileiras, assim como nos sisais, nas fazendas, nos canaviais, nas pedreiras e em vários setores do segmento rural que alimentam indústrias urbanas. O trabalhador que vive em trabalho degradante ou análogo a escravo é, na sua imensa maioria, analfabeto, e foi explorado como trabalhador infantil. Aconteceu assim com seus pais e seus avós. O normal é acontecer com os filhos e netos. Ainda não existe no Brasil uma política social que faça a associação entre trabalho infantil e trabalho degradante, análogo a escravo, de forma a romper esse círculo. A realidade é que o trabalhador escravo de hoje foi o trabalhador infantil de ontem. “A gente custa a entender que nasceu para ser peixe de engordar gato que engorda rico e, em casa, a gente fabrica com todo amor os próximos Matéria feita por João Roberto Ripper de Rio Pardo (MG). Publicada no Jornal Brasil de Fato, Ano 1, Número 37, São Paulo de 13 a 19 de novembro de 2003. Pág. 13. 105 peixinhos. Para fugir disso, botei todo mundo para estudar, mas sinto um aperto no peito porque sei que o ensino é muito ruim. Filho de pobre, mesmo depois de estudar um, dois, quatro anos, continua analfabeto”, conta Santos. Muitas vezes o trabalho não é considerado trabalho escravo, mas sempre é um trabalho extremamente pesado e, quase sempre, mesmo em casos de carteira assinada, quando se recebe em média um salário mínimo, trata-se de um trabalho degradante. Acaba com a saúde do trabalhador. As fórmulas encontradas para exploração dos carvoeiros e burlas da legislação trabalhista têm nuances diferentes em alguns Estados como Minas Gerais, Maranhão e Mato Grosso do Sul, onde se concentram mais de 100 mil carvoeiros explorados por siderúrgicas e madeireiras. Contudo, uma coisa é sempre comum. Quem mais lucra, quase nunca contrata. As siderúrgicas não consideram o carvão trabalho fim, mas meio para a produção do ferro e do metal. Por isso, contratam as empreiteiras, terceirizam o trabalho e, dessa forma, se eximem da responsabilidade sobre o calvário do carvoeiro. Escravidão Em Minas Gerais, no ano passado, 42 madeireiras e carvoarias foram autuadas por descumprir a legislação trabalhista e, em alguns casos, manter os trabalhadores em condições análogas à de escravo. O resultado da fiscalização foi encaminhado ao Ministério Público e à Comissão Parlamen- tar de Inquérito (CPI) de Minas Gerais e gerou a CPI do Trabalho Escravo. O coordenador da Fiscalização do Trabalho Rural em Minas Gerais, Marcelo Campos, explicou que “essas empresas têm utilizado a terceirização ilegal de suas atividades finais, usando empreiteiras de fachada para contratar trabalhadores necessários ao processo produtivo. Com isso, tentam mascarar a verdadeira relação de emprego e as conseqüências dela advindas”. Para Campos, o número de trabalhadores explorados em trabalho degradante nas carvoarias de Minas Gerais pode passar de 50 mil. Segundo o presidente da CPI das carvoarias, deputado Adelmo Leão, do PT, a situação é ainda mais grave porque, além do trabalho escravo, existe a exploração do trabalho infantil. No Norte de Minas Gerais, as empresas siderúrgicas que mais exploram o carvão e os carvoeiros são a V&M (Vallourec & Mannesman) Florestal e a Plantar Reflorestamento, ambas certificadas por qualidade ecológica pelo Forest Sewardship Council (FSC), apesar de todas as denúncias de irregularidades trabalhistas, humanas e ecológicas feitas contra elas. Expostos a tarefas extremamente prejudiciais e degradantes, crianças, adultos e idosos enfrentam jornadas de semiescravidão Mais de 100 mil pessoas são exploradas em carvoarias e siderúrgicas de Minas Gerais, Maranhão e Mato Grosso do Sul. As condições de trabalho beiram a escravidão: são 14 horas por dia carregando sacos de 40 quilos nas costas, sem carteira assinada e salário fixo. Por que morrem os cortadores de cana? 43 Francisco Alves44 S 106 egundo a Pastoral do Migrante, entre as safras 2004/2005 e 2005/2006 morreram 10 cortadores de cana na Região Canavi- eira de São Paulo. Eram trabalhadores jovens, com idades variando entre 24 e 50 anos, todos eram migrantes, que tinham vindo de outras regiões do 43 ALVES, F. (2006). Por que Morrem os Cortadores de Cana, in Saúde e Sociedade, set/dez 2006, No. 15/3, p 90 a 98. Texto disponível em http://www.pastoraldomigrante.com.br. 44 Professor Adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar. país (Norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí) para o corte de cana. As causas mortis em seus atestados de óbitos são vagas a respeito do que ocasionou verdadeiramente as mortes, os atestados dizem apenas que morreram por parada cardíaca. Para entendermos as razões destas mortes é necessário entendermos o processo de trabalho a que os cortadores de cana estão submetidos nesta atividade produtiva. O processo de trabalho passou por mudanças significativas da década de 80 até a presente década. Na década de 80, logo no seu início, o país, e mais especificamente o setor sucro-alcooleiro, vivia o seu período áureo, em plena vigência do Proálcool, na sua segunda fase (após 1979), que incentivava a produção de álcool hidratado e anidro, produzido em destilarias autônomas, direcionadas a atender ao enorme crescimento da demanda por álcool, derivadas da produção nacional de automóveis movidos unicamente a este novo combustível. O Proálcool foi o maior programa público mundial de produção de combustível alternativo aos derivados do petróleo. Em decorrência do Proálcool cresceu a produção de cana-de-açúcar, novas destilarias e usinas foram instaladas e cresceu o número de empregos diretos em toda a cadeia produtiva; da indústria produtora de máquinas e equipamentos para o setor sucro-alcooleiro à comercialização de álcool e açúcar, isto é, houve a criação de novos postos de trabalho industrial a novos postos de trabalho agrícola. Naquele período cresceu também a produtividade da cultura agrícola, medida em quantidade de cana por hectare ocupado com a atividade que saiu de 50 toneladas por hectare e atingiu mais de 80, entre as décadas de 50 e 80. Cresceu também a produtividade do trabalho no corte de cana, medida em toneladas de cana cortadas por dia por homem ocupado. Se na década de 60 a produtividade do trabalho era, em média, de 3 toneladas de cana por dia de trabalho, na década de 80 a produtividade média passa para 6 toneladas de cana por dia por homem ocupado e no final da década de 90 e início da presente década, atinge 12 toneladas de cana por dia. O processo de trabalho no corte de cana consistia, na década de 80, no trabalhador cortar um retângulo; com 8,5 metros de largura, em 5 ruas (linhas em que é plantada a cana), por um comprimento que varia de trabalhador para trabalhador, que é determinado pelo que ele consegue cortar num dia de trabalho. Este retângulo é chamado pelos trabalhadores de eito e o comprimento do eito varia de trabalhador para trabalhador, porque depende do ritmo de trabalho e da resistência física de cada um e é esta distância, que é medida ao final do dia e será o indicador do seu ganho diário. Estes metros lineares de cana, multiplicados pelo valor da cana pesada pela usina, dá o valor do dia de trabalho no corte de cana para cada trabalhador. Estima-se que para cortar 6 toneladas de cana num dia, considerando uma cana de primeiro corte, de crescimento ereto, que o comprimento do eito é de aproximadamente 200 metros. O trabalhador, além de cortar a cana contida na área deste retângulo (1.700 m²), deve cortar também as pontas e transportar a cana para a linha do meio (3ª linha) que dista 3 metros de cada uma das extremidades do eito. O pagamento dos trabalhadores era, e é feito, a partir da quantidade de cana que é cortada por dia de trabalho, portanto, era, e ainda é, um pagamento por produção. Os motivos que levam as usinas a adotarem o pagamento por produção, que é uma das formas de trabalho já denunciada por Adam Smith, no final do século XVIII, e por Karl Marx, no século XIX, como uma das mais desumanas e perversas, pois o trabalhador tem o seu ganho atrelado a força de trabalho despendida por ele por dia. É verdade que tanto Adam Smith quanto Karl Marx denunciavam este trabalho, chamando-o de perverso e desumano, analisando apenas esta forma de trabalho em situações em que o trabalhador controlava o seu processo de trabalho e tinham, ao final do dia, pleno conhecimento do valor que tinham ganho, isto porque conheciam o valor do trabalho executado. No corte de cana é diferente porque os trabalhadores só sabem quantos metros de cana cortaram num dia, mas não sabem, a priori, do valor do metro de cana para aquele eito cortado por ele, este desconhecimento é devido a que o valor do metro de cana do eito depende do peso da cana, que varia em função da qualidade da cana naquele espaço e a qualidade da cana naquele espaço depende, por sua vez de uma série de variáveis (variedade da cana, fertilidade do solo, sombreamento etc.). Nestas condições, as usinas pesam a cana cortada pelos trabalhadores e 107 atribuem o valor do metro, através da relação entre peso da cana, valor da cana e metros que foram cortados. Tudo isto é feito nas usinas, onde estão localizadas as balanças, sem controle do trabalhador. Portanto, entre aquelas situações de trabalho analisadas pelos dois pensadores nos séculos XVIII e XIX e as praticadas na cana nos séculos XX e XXI há uma enorme distância, que é o não controle do salário e do processo de trabalho pelos trabalhadores, este é controlado pelas usinas. Os trabalhadores trabalham no corte de cana por produção, em pleno século XXI, sem saberem quanto ganham, porque isto depende de quanto cortam. Além disto, mesmo cortando muitos metros podem ter um ganho pequeno, porque o valor do metro depende de uma conversão que não é controlada pelos trabalhadores e sim pelas usinas. Portanto, se todos os autores declaram que o pagamento por produção, além de ser uma forma de salário arcaica, perversa e desgasta os trabalhadores, porque sua produção e salário dependem de seu esforço físico, na cana esta forma de trabalho é mais perversa porque o ganho não depende dos trabalhadores mas de uma conversão feita pelo departamento técnico das usinas. Há inúmeros casos de desavenças entre trabalhadores e usinas derivados desta conversão de toneladas de cana em metro. Estas desavenças foram responsáveis, inclusive pela deflagração de uma greve em 1986, que começou nas cidades de Leme, no Estado de São Paulo e de lá alastrou-se para outras cidades e regiões canavieiras do Estado e do país. Esta já era a segunda grande greve realizada pelos trabalhadores, após a greve de Guariba de 1984 contra o sistema de corte em 7 ruas. Na greve de 1986 os trabalhadores reivindicavam o pagamento por metro de cana cortado e não por tonelada. A reivindicação era simples: cada metro de cana cortada, dependendo do tipo de cana (cana de primeiro corte, cana de segundo e demais cortes, cana de ano e meio, cana caída e enrolada) teria um preço definido no acordo coletivo de trabalho, os trabalhadores, ao final do dia receberiam um recibo (pirulito), onde viria gravado, a quantidade de metros cortadas naquele dia e o valor do metro de cana naquele eito. 108 Os empresários contra-argumentavam, dizendo que era impossível para a usina adotar o pagamento por metro, porque a sua unidade de medida, utilizada em todas as etapas do processo produtivo, era a tonelada de cana. Na verdade a argumentação dos empresários escondia o essencial. Se os trabalhadores adquirissem o controle do processo de trabalho e o controle do seu pagamento, as usinas perderiam o principal meio de pressão que as empresas dispõem para aumentar a produtividade do trabalho. Isto porque o processo de trabalho no corte de cana depende única e exclusivamente da destreza do trabalhador, isto é, depende de um conjunto de atividades manuais, exercida pelos trabalhadores, independente da administração do processo. No corte de cana os trabalhadores têm o controle da atividade, o que não ocorre em outros processos de produção, que através do sistema de máquinas, há a subordinação do trabalhador e do trabalho ao sistema, onde os aumentos de produtividade são alcançados através do sistema de máquinas. No corte de cana, o trabalhador recebe o eito de cana definido pelo supervisor da turma e realiza as atividades exigidas: começa a cortar pela linha central, a linha que será depositada a cana, em seguida corta as duas linhas laterais à central, de forma a que todas as linhas do eito sejam cortadas simultaneamente, sem deixar linhas sem cortar (deixar telefone). No corte, especificamente, o trabalhador abraça um feixe de cana (contendo entre cinco e dez canas) e curva-se para cortar a base da cana. O corte da base tem que ser feito bem rente ao chão, porque é no pé da cana que se concentra a sacarose. O corte rente ao chão não pode atingir a raiz para não prejudicar a rebrota. Depois de cortadas todas as canas do feixe o trabalhador corta o palmito, isto é a parte de cima da cana, onde estão as folhas verdes, que são jogadas ao solo. Em algumas usinas é permitido aos trabalhadores o corte do palmito no chão, na fileira do meio, onde os feixes são amontoados. Neste caso, além de cortar o palmito o trabalhador tem que realizar um movimento com os pés, para separar as pontas das canas amontoadas na linha central. Em algumas usinas as canas amontoadas na fileira central devem ser dispostas em montes, que distam um metro um do outro, em outras usinas é permitido ao trabalhador fazer uma esteira de canas amontoadas sem a necessidade dos montes. Com isto, fica claro que a quantidade cortada por dia por trabalhador depende mais, para ganhar mais, e de sua força física e habilidade para execução da atividade. Eu comparo o cortador de cana a um corredor fundista, porque os trabalhadores com maior produtividade não são necessariamente os que têm maior massa muscular, são os que têm maior resistência física para a realização de uma atividade repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na presença de fuligem, poeira e fumaça, em alguns casos, e por um período que varia entre 8 a 12 horas de trabalho diários. Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num talhão de 200metreos de comprimento, por 8,5 metros de largura, caminha, durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 183.150 golpes no dia (considerando uma cana em pé, não caída e não enrolada e que tenha uma densidade de 5 a 10 canas a cada 30cm.). Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que a cada 30cm. abaixar-se e torcer-se para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima. Além disto, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.400 metros por dia, mas transporta, em seus braços, 6 toneladas de cana, com um peso equivalente a 15 Kg, a uma distância que varia de 1,5 a 3 metros. Além de todo este dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionandose e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta composta de butina com biqueira de açõ, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote, também de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné. Este dispêndio de energia sob o sol, com esta vestimenta, leva a que os trabalhadores suem abundantemente e percam muita água e junto com o suor perdem sais minerais e a perda de água e sais minerais leva a desidratação e a freqüente ocorrência de câimbras. As câimbras começam , em geral, pelas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, que fazem pensar que o trabalhador esteja tendo um ataque nervoso. Para conter as cãimbas e a desidratação, algumas usinas já levam para o campo e ministram aos trabalhadores soro fisiológico e, em alguns casos suplementos energéticos, para reposição de sais minerais. O fim da greve de 1986 só foi alcançado quando acordou-se que o pagamento dos trabalhadores seria feito a partir da tonelada de cana convertida em metro linear, com a possibilidade de controle pelos trabalhadores desta conversão, que deixava de ser apenas uma atribuição técnica dos funcionários das usinas, mas podiam ser fiscalizadas pelos trabalhadores e seria feita da seguinte forma: ª Ao início do trabalho, de manhã cedo, um caminhão, chamado de campeão vai ao local de corte; ª Este caminhão é cheio com cana colhida de três pontos diferentes do talhão, para realizar uma amostra representativa da qualidade e especificidades da cana no local; ª Os trabalhadores podem participar da escolha dos três pontos; ª Este caminhão depois de cheio com cana colhida dos três pontos do talhão vai para a usina para ser pesado, já sabendo que aquela carga corresponde a um determinado número de metros lineares; ª Os trabalhadores podem acompanhar o caminhão para verificar a pesagem na balança das usinas e certificarem-se que não há roubo; ª Depois de realizada a pesagem é realizada a conversão de tonelada de cana para metro, já atribuído o valor do metro, na medida em que a tonelada de cana paga aos trabalhadores já tem seu valor definido pelo acordo coletivo; ª Este valor do metro obtido da conversão é informado aos trabalhadores no canavial antes do fim do dia; ª No fim do dia de trabalho cada eito de cana de cada trabalhador daquele talhão é medido através de um compasso de ponta de ferro com 2 metros de largura entre uma ponta e outra; ª Feita a medição do eito é elaborado, no campo, um recibo (pirulito) onde consta a quantidade de metros cortados por cada trabalhador, o valor de cada metro e o total de rendimentos obtidos pelos trabalhadores naquele dia de trabalho. 109 Apesar de todo este procedimento constar dos acordos coletivos desde 1986, na prática, ele nunca funcionou, porque a base para o seu funcionamento era a participação dos trabalhadores nas seguintes etapas: I)escolha dos três pontos representativos da cana do talhão; II) medição em metros da cana para carregar o campeão; III) fiscalização da pesagem da cana na usina; IV) participar do cálculo de conversão da tonelada em metro. Como os trabalhadores são remunerados por produção, aqueles que se dispõem a acompanhar aquelas 4 etapas, que exigem participação dos trabalhadores, perdem, no mínimo meio dia de trabalho, portanto se não trabalham, não ganham. Além disto, aqueles que se dispõem a participar se sentem marcados pelos gatos, fiscais e apontadores e pelas usinas e temem perderem seus empregos. O que passou a ocorrer, na prática, é que mesmo nas usinas que mantiveram o campeão, a conversão de tonelada em metros é de responsabilidade exclusiva das usinas e podem conter roubos. A partir da década de 90 houve um grande aumento da produtividade do trabalho. Os trabalhadores para manterem seus empregos na cana necessitam hoje cortar no mínimo 10 toneladas de cana por dia, para se manterem empregados; a média cortada expandiu-se para 12 toneladas de cana por dia. Portanto a produtividade média cresceu em 100%, saiu de 6 toneladas/homem/dia, na década de 80, e chegou a 12 toneladas de cana por dia, na presente década. O fato dos trabalhadores hoje terem uma produtividade duas vezes superior a da década de 80 se deve a um conjunto de fatores: ª O aumento da quantidade de trabalhadores disponíveis para o corte de cana e esta maior disponibilidade se devem a três fatores: 1. aumento da mecanização do corte de cana; 2. o aumento do desemprego geral da economia, provocada por duas dé- 110 cadas de baixo crescimento econômico e 3. expansão da fronteira agrícola para as regiões do cerrado, atingindo o sul do Piauí e a região da pré-amazônia maranhense, destruindo as formas de reprodução da pequena propriedade agrícola familiar, predominante nestes estados. ª Possibilidade de seleção mais apurada pelos departamentos de recursos humanos das usinas. Esta seleção mais apurada de trabalhadores leva a: seleção de trabalhadores mais jovens, redução da contratação de mulheres e a possibilidade de contratação de trabalhadores oriundos de regiões mais distantes de São Paulo (Norte de Minas, Sul da Bahia, Maranhão e Piauí). ª A seleção mais apurada permite que as usinas implementem a contratação por período de experiência , onde os trabalhadores que não conseguem atingir a nova média de produção, 10 toneladas de cana por dia, são demitidos antes de completarem três meses de contrato. Um trabalhador que corta hoje 12 toneladas de cana em média por dia de trabalho realiza as seguintes atividades no dia: ª Caminha 8.800 metros; ª Despende 366.300 golpes de podão; ª Carrega 12 toneladas de cana em montes de 15 kg. em média cada um, portanto, ele faz 800 trajetos levando 15Kg. nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros; ª Faz aproximadamente 36.630 flexões de perna para golpear a cana; ª Perde, em média 8 litros de água por dia, por realizar toda esta atividade sob sol forte do interior de São Paulo, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada, trajando uma indumentária que o protege, da cana, mas aumenta a temperatura corporal. Com todo este detalhamento pormenorizado da atividade do corte de cana, fica fácil entendermos porque morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em São Paulo. A solução para este problema, ao meu ver, não se dará através mudanças que não vão ao cerne da questão. O que vai ao centro da questão, que são as mortes dos trabalhadores cortadores de cana pelo excesso de trabalho é o pagamento por produção. Enquanto o setor sucro-alcooleiro permanecer com esta dicotomia interna: de um lado, utiliza o que há de mais moderno em termos tecnológicos e organizacionais, uma tecnologia típica do século XXI (tratores e máquinas agrí- colas de última geração, agricultura de precisão, controlada por geo-processamento via satélite etc.); mas manter, de outro lado, relações de trabalho, já combatidas e banidas do mundo desde o século XVIII, trabalhadores continuarão morrendo. Isto porque os 10 que morreram nas duas últimas décadas são uma amostra insignificante do total que deve morrer todas as safras clandestinamente. Ao longo dos últimos vinte anos que me dedico a análise das condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais, colhi vários depoimentos de trabalhadores que relatavam mortes como as agora tornadas públicas através do excelente trabalho da Pastoral do Migrante de Guariba. Trabalho escravo no Brasil de hoje45 Leonardo Sakamoto escravidão contemporânea é diferente daquela que existia até o final do século 19, quando o Estado garantia que comprar, vender e usar gente era uma atividade legal. Mas é tão perversa quanto, por roubar do ser humano sua liberdade e dignidade. E ela não se resume à terra de ninguém que é a região de expansão agrícola amazônica, mas está presente nas carvoarias do cerrado, nos laranjais e canaviais do interior paulista, em fazendas de frutas e algodão do Nordeste, nas pequenas tecelagens do Brás e Bom Retiro, da cidade de São Paulo. A Antigamente, a propriedade legal era permitida, hoje não. Mas era muito mais caro comprar e manter um escravo do que hoje. O negro africano era um investimento dispendioso que poucas pessoas podiam ter. Hoje, o custo é quase zero - paga-se apenas o transporte e, no máximo, a dívida que o sujeito tinha em algum comércio ou hotel. Além do fato de que, se o trabalhador fica doente, é só largá-lo na estrada mais próxima e aliciar outra pessoa. O desemprego é gigantesco no país, e a mão-de-obra, farta. Na escravidão contemporânea, não faz diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são miseráveis, independente45 Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br mente de raça. Porém, tanto na escravidão imperial quanto na do Brasil de hoje, mantém-se a ordem por meio de ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos. Ossadas têm sido encontradas em propriedades durante ações de fiscalização, como na fazenda de Gilberto Andrade, família influente da região Sul do Pará. Não há estatística exata para o número de trabalhadores em situação de escravidão no país. Estima-se que sejam entre 25 mil e 40 mil, de acordo com número da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – órgão, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e a mais importante entidade não-governamental que atua nessa área – e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A forma de trabalho forçado mais encontrada no país é a da servidão, ou “peonagem”, por dívida. Nela, a pessoa empenha sua própria capacidade de trabalho ou a de pessoas sob sua responsabilidade (esposa, filhos, pais) para saldar uma conta. E isso acontece sem que o valor do serviço executado seja aplicado no abatimento da conta de forma razoável ou que a duração e a natureza do serviço estejam claramente definidas. 111 E não é apenas o cerceamento da liberdade que configura o trabalho escravo, mas sim uma série de etapas. Segundo Ela Wiecko de Castilho46, o processo inclui: recrutamento, transporte, alojamento, alimentação e vigilância. E cada qual com a existência de maus-tratos, fraudes, ameaças e violências física ou psicológica. As primeiras denúncias de formas contemporâneas de escravidão no Brasil foram feitas em 1971 por dom Pedro Casaldáliga, na Amazônia. Sete anos depois, a CPT denunciou a fazenda Vale do Rio Cristalino, pertencente à montadora de veículos Volkswagen e localizada no sul do Pará. O depoimento dos peões que conseguiram fugir a pé da propriedade deu visibilidade internacional ao problema. Outro exemplo de envolvimento de grandes empresas é o das fazendas reunidas Taina Recan, em Santa do Araguaia, e Alto Rio Capim, em Paragominas, ambas no Pará, pertencentes ao grupo Bradesco, onde, entre as décadas de 70 e 80, foram encontrados trabalhadores reduzidos à condição de escravidão. O governo acaba envolvido indiretamente com o trabalho forçado quando financia empresas que se utilizam da prática. A Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), por exemplo, bancou a Companhia Real Agroindústria e as fazendas Agropalma, também no Pará, pertencentes ao Banco Real, em que foram encontradas irregularidades no início da década de 90. Tudo isso é fruto da política de desenvolvimento adotada durante a ditadura militar, de incentivar os grandes empreendimentos na região amazônica, que fechou o olho para os direitos humanos e trabalhistas. Quem protestava ou reivindicava era preso e torturado. Apesar de as convenções internacionais de 1926 e a de 1956, que proibiam a servidão por dívida, entrarem em vigor no Brasil em janeiro de 1966, o país demorou para criar um mecanismo para combatê-la. O que veio a acontecer apenas em 1995, quando foram instituídos os grupos móveis de fiscalização. Essas equipes, coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego, respondem diretamente a Brasília, são acompanhadas de policiais federais e contam com o suporte do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho. 112 46 O Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, lançado no início de 2003, reúne 76 medidas de combate à prática. Entre elas, projetos de lei como o que expropria terras em que for encontrado trabalho escravo e transfere para a esfera federal os crimes contra os direitos humanos, limitando assim as influências locais nos processos. A implantação do plano tem sido lenta e muitas vezes esbarra na falta de verbas, pressão da bancada ruralista e na incapacidade do governo federal de liberar recursos para aumentar e aparelhar a fiscalização. Nos últimos meses, mudanças na legislação tornaram mais duras as penas para quem for pego com trabalho escravo. Outros importante instrumentos foram a determinação da suspensão no crédito agrícola de quem foi condenado pela prática e a criação de 269 novas Varas do Trabalho, a primeira delas a ser instalada em Redenção, sul do Pará. Vale ressaltar que o combate ao trabalho escravo avançou graças à dedicação pessoal dos auditores do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, mesmo com falta de recursos financeiros, equipamentos, veículos que não quebrem em serviço e telefones que funcionem na imensidão verde da Amazônia. Mas mesmo fiscalização, multas, prisão dos envolvidos, cortes em linhas de crédito atacam as conseqüências, deixando muitas vezes a causa em aberto. O trabalhador resgatado não vê opções para a sobrevivência e acaba caindo de novo na armadilha. “Com terra para plantar não teria ido embora [da minha terra]. Além disso, pessoa bem estudada não precisa sair, arruma emprego. Os outros têm de ir para o machado mesmo”, afirma um trabalhador libertado. Escravidão no Brasil é sintoma de algo maior: desigualdade. “Os trabalhadores que vêm para cá são de locais onde a situação de pobreza é terrível. Se não houver uma política de fundo para gerar emprego e renda e fixar a população nos seus Estados de origem, de nada vai adiantar”, afirma José Batista Afonso, coordenador da CPT em Marabá. Uma efetiva política de reforma agrária, acompanhada de juros baixos para o crédito rural e transferência de conhecimento. Infelizmente, o que vemos hoje é uma grande quantidade de desempregados, reserva de contingente para o trabalho forçado nas regiões de fronteira agrícola. Subprocuradora-geral da República e professora de direito penal na Universidade de Brasília e na Universidade Federal de SC. Dados parciais de conflitos no campo em 200747 42,5% de conflitos pela água ocorreram nos estados banhados pelo Rio São Francisco stamos oferecendo hoje à sociedade brasileira os dados parciais dos conflitos no campo, relativos aos meses de janeiro a setembro de 2007. Acompanham esta nota, as tabelas de Violência contra a Ocupação e a Posse; de Violência contra a Pessoa, um Relatório Síntese dos conflitos e uma tabela de Manifestações. Todos de janeiro a setembro de 2006 e 2007. Segue também, a relação de todos os assassinatos ocorridos no campo até dezembro de 2007, somando um total de 25. E Os conflitos pela água, neste ano, apresentaram crescimento em relação a igual período de 2006. De 38 conflitos para 40 em 2007. O número de pessoas envolvidas, porém, mais que dobrou: de 12.632 para 25.919. Na região Sudeste houve o maior crescimento desses conflitos, de 6, em 2006, para 14, em 2007. Destes, 11 são em Minas Gerais. 17 dos 40 conflitos, 42,5%, foram registrados nos Estados banhados pelo rio São Francisco, objeto do projeto de Transposição do governo federal. Diminuição de conflitos não esconde a violência Mesmo que em termos absolutos tenha havido uma queda geral nos números dos conflitos, em termos relativos há crescimento da violência. Em 2006, para cada ocorrência de conflito houve 1,2 famílias expulsas, 16 despejadas e os assassinatos correspondiam a um para cada 47 conflitos. No mesmo período de 2007, (é bom ressaltar que são dados ainda parciais) para cada ocorrência de conflito se computam 5 famílias expulsas, 19 despejadas e um assassinato para 44 conflitos. Mas é em relação ao número de famílias expulsas pelo poder privado que se verifica o maior 47 crescimento da violência, não seguindo a tendência de queda verificada em outros indicadores. As famílias expulsas passaram de 1.657, em 2006, para 2.711, em 2007, mais de 100% a mais. Este aumento verificou-se em todas as regiões do País, sem exceção: Famílias expulsas Região 2006 Centro-Oeste 2007 0 318 Nordeste 459 491 Norte 714 757 Sudeste 95 435 Sul 49 710 1.317 2.711 Total Isto mostra que o poder do latifúndio e do agronegócio está atento e atuante, disposto a agir por conta própria caso o poder público não atenda suas reivindicações de punir os trabalhadores que se levantam na defesa de seus direitos. Número de conflitos em queda No geral, porém, o ano de 2007 apresenta números inferiores aos de igual período de 2006. O total de conflitos no campo (conflitos por terra, por água, trabalhistas e etc.) de 1.414, em 2006, caiu para 837. O número de pessoas envolvidas passou de 652.284 para 561.926, e o número de assassinatos de 30 para 19. Também em relação ao trabalho escravo o número de ocorrências caiu de 214, em 2006, para 177, em 2007, com, respectivamente, 5.767 e 5.127 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. Os conflitos exclusivamente por terra passaram de 1.042, para 540. As ocupações Texto disponível em http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=2108&eid=6 113 despencaram de 329 para 247, e os acampamentos de 60 para 35. O número de famílias, nas ocupações, porém, cresceu, passou de 35.315 para 37.630. O número de famílias despejadas foi menor: 17.443, em 2006; 10.669, em 2007. Maranhão. Também ali se configura uma situação em que o avanço do agronegócio não respeita nada, muito menos comunidades tradicionais, taxadas de improdutivas e de serem empecilho para o progresso. Por outro lado, o número de Manifestações cresceu passando de 579, com a participação de 359.998 pessoas, em 2006, para 671, com a participação de 465.394 pessoas, em 2007. No Centro-Oeste, cresceu o número de pessoas submetidas ao trabalho escravo. De 1.078, em 2006, passaram para 1.157, em 2007, com destaque para Goiás que de 3 ocorrências, em 2006, passou para 8, em 2007, com envolvimento de pessoas passando de 113 para 441. O mesmo acontecendo em Mato Grosso do Sul onde se registraram 9 ocorrências, envolvendo 628 pessoas, em 2007, contra 3 ocorrências e 39 pessoas, em 2006. O trabalho escravo também cresceu expressivamente no Maranhão e no Piauí. Goiás também se destaca por ter aumentado o número geral de conflitos, de 28 para 31 e de famílias envolvidas de 16.870 para 25.904. O que explicam esses números O aumento no número de famílias em ocupações, apesar de estas terem sofrido uma diminuição expressiva, acaba evidenciando que o número de famílias sem terra continua muito elevado e que há necessidade de um programa efetivo de reforma agrária. A queda acentuada no número de conflitos se dá não porque tenha sido adotada uma política mais eficaz de reforma agrária ou de combate à violência. O que se pode sentir é que a não execução da reforma agrária, com famílias acampadas há 4, 5, 6 ou mais anos, desestimula a ação dos trabalhadores e dos seus movimentos, daí a queda expressiva dos números de ocupações e acampamentos. Aliado a isso, o bolsa-família dando um mínimo de condições para as famílias terem o alimento de cada dia, acaba arrefecendo o ímpeto de quem, premido pela necessidade, tem que buscar a qualquer custo seus meios de sobrevivência. Número de assassinatos dobra no Centro-Oeste Analisando os números em detalhe, o que se vê é que o número de assassinatos que decresceu no país como um todo, teve um aumento de 100% no Centro-Oeste passando de 2, em 2006, para 4 em 2007; e de 50% na região Nordeste, passando de 4 para 6. No Centro-Oeste, 3 dos 4 assassinatos são de indígenas, dois deles no Mato Grosso do Sul onde os Guarani-Kaiowá vivem a situação mais dramática de que se tem conhecimento, encurralados em pequenas áreas ou acampados na margem de estradas, não se garantindo espaço para quem era o dono de toda aquela região. O outro indígena foi assassinado no Mato Grosso. No Nordeste, dos 6 assassinatos, 3 são também de indígenas, 1 na Bahia, 1 no Ceará, e 1 no 114 Sudeste, onde conflitos e violência crescem O que mais chama a atenção, porém, na análise mais regionalizada dos números é a região Sudeste que se comportou de modo inverso ao restante do país. A região foi a única que apresentou crescimento no número de conflitos passando de 180, para 193 e no número de pessoas envolvidas, que saltou de 71.983 para 112.356. Em relação às famílias expulsas a região Sudeste seguiu a tendência geral do País, passaram de 95 para 435. O Sudeste também foi o único que apresentou crescimento no número de famílias despejadas passando de 980 para 1.477. Foi só nessa região, ainda, que houve crescimento no número de ocupações: 78, em 2006; 88, em 2007, e de acampamentos: 4, em 2006; 7, em 2007. Na região mais rica e urbanizada do País é impressionante constatar que ocorreram 23,5% de todos os conflitos no campo, e onde estão 20% das pessoas envolvidas em conflitos. O grande progresso tecnológico aplicado ao campo e o avanço das monoculturas geram, além das riquezas propagandeadas, maior desigualdade, exclusão e, em conseqüência disso, novos e graves conflitos. A bem da verdade pode-se imputar este destaque do Sudeste à presença mais próxima dos meios de comunicação que registram os fatos, na maior parte das vezes, para criticar a ação dos trabalhadores. Em outras regiões do País, boa parte dos conflitos nunca chegam ao conhecimento público. Como diz o professor Carlos Walter Porto Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense: “Não deixa de ser preocupante que a região mais rica do Brasil apresente crescimento da violência no campo em relação às demais regiões. Uma nova geografia da violência está se desenhando, conforme indicam estes dados parciais de 2007. Tudo indica que o avanço do cultivo da cana, diante da febre dos agrocombustíveis, esteja trazendo implicações no aumento do preço da terra, que rebate no programa de Reforma Agrária, e consigo carrega o aumento da violência”. Dossiê trabalho escravo Como alguém se torna escravo48 Leonardo Sakamoto s direitos dos trabalhadores rurais freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”, onde a floresta amazônica perde espaço a cada dia para grandes fazendas. Péssimos alojamentos e alimentação, atraso ou não-pagamento de salários e até privação de liberdade sob ameaça de morte acontecem com freqüência na região. junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família. O “Quando eu cheguei aqui, a coisa era muito diferente do que havia sido prometido.” Nos últimos tempos, uma praga atingiu as fazendas de cacau onde Uexlei Pereira trabalhava no Sul da Bahia, deixando muita gente sem serviço. Aliciado por um “gato”, saiu de sua cidade, Ibirapitanga, com a oferta de um bom salário, alimentação e condições dignas de alojamento. No Sul do Pará, Uexlei percebeu que havia sido enganado. Quando foi resgatado, recebia há dois meses só comida. Não tinha idéia de quanto devia ao gato, conhecido como Baiano, e nem quando iria receber. 2 3 4 A sua história não é diferente da dos demais trabalhadores que fogem do desemprego para cair na rede da escravidão. A seguir, estão detalhados oito passos que transformam um homem livre em um escravo, padrão que se repete com triste freqüência. 1 48 Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governos para fixação do homem no campo, aos altos juros do crédito agrícola, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br 5 Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, mesmo em terras distantes, ele ruma para esses locais. O Tocantins e a região Nordeste, tendo à frente os Estados do Maranhão e Piauí, são grandes fornecedores de escravos. Alguns vão espontaneamente. Outros são aliciados por “gatos” (contratadores de mão-deobra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara. O destino principal é a região de expansão agrícola, onde a floresta amazônica tomba diariamente para dar lugar a pastos e plantações. Pará e Mato Grosso são campeões em denúncias e resgates de trabalhadores pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Há os “trecheiros” ou “peões do trecho” que deixaram sua terra um dia e, sem residência fixa, vão de trecho em trecho, de um canto a outro em busca de trabalho. Muitos deles acabam se hospedando nos chamados “hotéis peoneiros”, ficando dias até que algum gato venha buscá-los, compre suas dívidas e os leve 115 às fazendas. A partir daí, tornam-se seus credores e devem trabalhar para abater o saldo. Muitos seguem contrariados por estarem sendo negociados. Mas há os que vão felizes, pois acreditam ter conseguido um emprego que possibilitará honrar seus compromissos e ainda ganhar dinheiro. 6 Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na cantina do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um “caderninho”, e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Pedro conta que um par de botas sai por R$ 25 na cantina da fazenda Nossa Senhora Aparecida. Uma rede, R$ 16 e uma foice, R$ 12. Material de trabalho que deveria ser entregue gratuitamente. Junto com o equipamento mínimo de segurança, que também não existia. 7 Meses de serviço e nada de dinheiro. Sob a promessa de que vão receber tudo no final, o trabalhador continua derrubando a mata, aplicando veneno, erguendo cercas e outras atividades degradantes e insalubres. Cobra-se pelo uso de alojamentos sem condições de higiene. 8 No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Se for necessário, até força física e armas são usadas para mantê-lo no serviço. Trabalhadoras rurais Quebradeiras de Coco reescrevem a história No Maranhão,mulheres lutam contra derrubada das palmeiras de babaçu e conquistam acesso livre ao coco49 á cerca de 20 anos, no Médio Mearim, Estado do Maranhão, mulheres quebradeiras de coco babaçu decidiram escrever um novo roteiro para a história das palmeiras de babaçu. “Ou a gente brigava contra a derrubada e a queima das palmeiras, ou a gente ia morrer”, conta a vereadora e quebradeira de coco, Maria Alaíde, do município de Lago do Junco. H 49 116 A vereadora diz que as mulheres começaram avisando aos fazendeiros, que não as deixavam entrar no babaçual, que eles não podiam juntar o coco para vendê-lo em grandes quantidades, nem podiam cortá-lo porque só uma pessoa seria beneficiada. “A gente ganhou mais força quando os homens sentiram na pele a necessidade de lutar pela terra. Eles disseram aos fazendeiros que não iam mais passar por baixo de arame”, acrescenta Maria Alaíde. Matéria feita por Fátima Lessa, de São Luis (MA). Publicada no Jornal Brasil de Fato, de 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005. Foi o começo dos conflitos e perseguições às quebradeiras de coco babaçu e aos trabalhadores rurais. Em 1987, elas criaram a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR). Em 1989, surgia a Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema), para prestar assistência técnica aos trabalhadores rurais nas áreas de assentamento. Em 1991, foi a vez do Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB, hoje AMIQCB). Conquistas A luta valeu a pena. “A gente não está mais sonhando. Nosso sonhos deixaram de ser utopia para ser realidade”, diz, alegre, a coordenadora da Associação e Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco Babaçu (AMIQCB), Maria Adelina de Souza Chagas, a Dada. A região do Médio Mearim é a de maior concentração de babaçu do Brasil: dez milhões de hectares. A imensa maioria das palmeirasestá em grandes fazendas, que cobravam para deixar as quebradeiras tirar o coco, ou simplesmente barravam a sua entrada. São mais de 300 mil extrativistas que têm no babaçu a principal fonte de renda no Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins. Sua vida não era fácil, permeada de obstáculos para ter acesso aos babaçuais. Hoje, o acesso ao coco é livre, garantido por lei em vários municípios e por lei estadual. Além de garantir o livre acesso, a legislação proíbe derrubadas, cortes de cachos e uso de herbicidas nos babaçuais. Atravessadores não mandam mais A história da palmeira do coco babaçu confunde-se com a história das quebradeiras de coco. Geralmente,elas começam na atividade aos sete anos e vão até a velhice. Uma trajetória que as torna vítimas de doenças graves e seqüelas físicas muitas vezes irreversíveis. Apesar de serem responsáveis por cerca de 70% das 115 mil toneladas de amêndoas produzidas no país, a maioria das quebradeiras de coco vive sem assistência médica, dentária e social. Entretanto, esse desamparo não desanima essas guerreiras. No Maranhão, além do “coco livre”, as quebradeiras conseguiram criar o “kit babaçu livre”: sabonete, carvão, farinha do mesocarpo, papel reciclado, óleo etc. Elas também montaram uma fábrica de sabonetes e, pela Cooperativa Agroextrativista de Lago do Junco (Coppalj) uma planta de produção de óleo. Para montar a unidade de óleo, elas receberam R$ 80 mil do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef). O óleo extraído já tem destino certo: 30% vão para fora do país, para a indústria inglesa Body Shop; 5% para a fabricação do sabonete, e o restante é vendido a empresas da região. O contrato com os ingleses foi assinado há mais de cinco anos. “Se não fosse a compra da Body Shop, a gente não teria recursos para repassar às quebradeiras de coco todo fi nal de ano. Antes disso, a cooperativa não saía do vermelho”, conta a vereadora Alaíde. A empresa inglesa paga à cooperativa o dobro do preço do mercado pelo litro de óleo. Agora quem dita as regras é a Coppalj, não o atravessador, como antes. “Estamos conseguindo que o atravessador acompanhe o nosso preço ou então vai ficar sem o produto”, informa o presidente da cooperativa, Raimundo Vidal. É dura a vida da quebradeira do coco. Para conseguir cerca de 10 quilos de amêndoas, são necessários mais de 120 quilos do coco. Elas trabalham, em média, oito horas por dia, segundo levantamento feito por estudantes de uma faculdade do Maranhão. Do babaçu, aproveita-se tudo. Com o mesocarpo, é fabricado um complemento alimentar que substitui o chocolate. O óleo é matéria prima para a produção de sabonetes, e as cascas para a de carvão. A palmeira é utilizada tanto na cobertura de casas, como na produção de papel e de embalagens. (FL). Mulheres organizadas A Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema) é a entidade que articula as várias associações nas quais as mulheres quebradeiras de coco babaçu se organizam. Por meio do Programa de Organização das Mulheres, as quebradeiras de coco participam de discussões sobre políticas ambientais, direito e valorização da mulher, entre outras. 117 “A meta é fortalecer as organizações de mulheres vinculadas à Assema e ao Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)”, diz a coordenadora da Associação e Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco Babaçu (AMIQCB), Maria Adelina, Dada. Ela avalia que o Programa vem contribuindo para a redução das desigualdades nas relações de gênero, para garantir o livre acesso aos babaçuais e para a participação das mulheres nas discussões sobre projetos produtivos. Nesse aspecto, o Programa trabalha com associações e grupos de mulheres quebradeiras de coco babaçu, incentivando a criação de alternativas produtivas e de geração de renda, como a fábrica de sabonete, extração de óleos especiais, fabricação de papel reciclado, farmácia viva, compotas de frutas. Na área de articulação política, o Programa de Organização das Mulheres acompanha a discussão e a criação de leis municipais que liberam o acesso aos babaçuais, e desenvolve um trabalho de fortalecimento regional do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu. Legislação Primeiro, elas atingiram seus objetivos na luta diária, depois partiram para as esferas políticas convencionais – Câmaras e Assembléia 118 Legislativa – para brigar pela criação de leis que protegessem a palmeira do babaçu. Em 1997, no município de Lago do Junco, as quebradeiras de coco conseguiram a aprovação do projeto de Lei Babaçu Livre. A luta foi iniciada pela Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e de Lago dos Rodrigues. Dois anos depois, foi a vez do município de Lago dos Rodrigues, onde a associação local de mulheres trabalhadoras rurais conseguiu a aprovação da Lei Babaçu Livre (nº 32/99). Em dezembro de 1999, em Esperantinópolis, foi aprovada a Lei nº 255/99. Em setembro de 2001, a secretaria da mulher do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais lutou e conseguiu a aprovação da Lei nº 319/2001 no município de São Luiz Gonzaga do Maranhão. Nesse município, as quebradeiras conquistaram, ainda, a aplicação de advertência e penalidades, medidas que até então não estavam contempladas em lei. Segundo a vereadora e quebradeira de coco Maria Alaíde, a luta das quebradeiras incluiu a proteção das palmeiras de babaçu, desde junho de 1986 amparadas pela Lei Estadual nº 4.734, que proíbe a sua derrubada. Recentemente, a lei sofreu uma emenda que prevê a aplicação de multas aos infratores. (FL). 119 120 Agrocombustíveis e produção de alimentos50 Por Ariovaldo Umbelino51 relação entre a expansão dos agrocombustíveis e a produção de alimentos ganhou a agenda política internacional. A agricultura mundial continua passando por transformações profundas. O avanço da “comoditização” dos alimentos e do controle genético das sementes que sempre foram patrimônio da humanidade foi acelerado. A Dois processos monopolistas comandam a produção agrícola mundial. De um lado, está a territorialização dos monopólios, que atuam simultaneamente no controle da propriedade privada da terra, do processo produtivo no campo e do processamento industrial da produção agropecuária. O principal exemplo é o setor sucroalcooleiro. De outro lado, está a monopolização do território pelas empresas de comercialização e processamento industrial da produção agropecuária, que, sem produzir absolutamente nada no campo, controlam, por meio de mecanismos de sujeição, camponeses e capitalistas produtores do campo. As empresas monopolistas do setor de grãos atuam como “players” no mercado futuro das Bolsas de mercadorias do mundo e, muitas vezes, têm também o controle igualmente monopolista da produção dos agrotóxicos e dos fertilizantes. A crise, portanto, tem dois fundamentos. O primeiro, de reflexo mais limitado, refere-se à alta dos preços internacionais do petróleo e, conseqüentemente, à elevação dos custos dos fertilizantes e agrotóxicos. O segundo é conseqüência do aumento do consumo, mas não do consumo direto como alimento, como quer fazer crer o governo brasileiro, mas, isto sim, daquele decorrente da opção dos Estados Unidos pela produção do etanol a partir do milho. Esse caminho levou à redução dos estoques internacionais desse cereal e à elevação de seus preços e dos preços de outros grãos -trigo, arroz, soja. 50 51 Assim, a “solução” norte-americana contra o aquecimento global se tornou o paraíso dos ganhos fáceis dos “players” dos monopólios internacionais que nada produzem, mas que sujeitam produtores e consumidores à sua lógica de acumulação. Certamente, não há caminho de volta para a crise, pois, no caso norte-americano, os solos disponíveis para o cultivo são disputados entre trigo, milho e soja. O avanço de um se reflete inevitavelmente no recuo dos outros. Daí a crítica radical de Jean Ziegler, da ONU (Organização das Nações Unidas), que classificou o etanol como “crime contra a humanidade”. É no interior dessa crise que o agronegócio do agrocombustível brasileiro quer pegar carona no futuro fundado na reprodução do passado. O governo está pavimentando o caminho. Por isso, a questão dos agrocombustíveis e a produção de alimentos rebatem diretamente no campo brasileiro. A área plantada de cana-deaçúcar na última safra chegou perto de 7 milhões de hectares e, em São Paulo, onde se concentra mais de 50% do total, já ocupa a quase totalidade dos solos mais férteis existentes. Em meio à expansão dos agrocombustíveis, uma pergunta se faz necessária: quais foram as conseqüências, para a produção de alimentos no Brasil, da expansão da cultura da cana nos últimos 15 anos? Os dados do IBGE, entre 1990 e 2006, revelam a redução da produção dos alimentos imposta pela expansão da área plantada de canade-açúcar, que cresceu, nesse período, mais de 2,7 milhões de hectares. Tomando-se os municípios que tiveram a expansão de mais de 500 hectares de cana no período, verifica-se que, neles, ocorreu a redução de 261 mil hectares de feijão e 340 mil hectares de arroz. Essa área reduzida poderia produzir 400 mil toneladas de feijão, ou seja, 12% da produção Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=5310 Ariovaldo Umbelino é professor titular de geografia agrária da USP e diretor da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária). 121 nacional, e 1 milhão de toneladas de arroz, o que equivale a 9% do total do país. Além disso, reduziram-se nesses municípios a produção de 460 milhões de litros de leite e mais de 4,5 milhões de cabeças de gado bovino. Embora a expansão esteja mais concentrada em São Paulo, já o está também no Paraná, em Mato Grosso do Sul, no Triângulo Mineiro, em Goiás e em Mato Grosso. Nesses Estados, reduziu-se a área de produção de alimentos agrícolas e se deslocou a pecuária na direção da Amazô- nia. Isso deu, conseqüentemente, em desmatamento. Por isso, a expansão dos agrocombustíveis continuará a gerar a redução da produção de alimentos. A produção dos três alimentos básicos no país - arroz, feijão e mandioca - também não cresce desde os anos 90, e o Brasil se tornou o maior país importador de trigo do mundo. Portanto, o caminho para a saída da crise e da construção de uma política de soberania alimentar continua sendo a realização de uma reforma agrária ampla, geral e massiva. Fome e direitos humanos52 Por Jean Ziegler53 I II A cada cinco segundos, uma criança menor de dez anos morre de fome ou em decorrência das seqüelas imediatas. Mais de seis milhões em 2007. A cada quatro minutos, alguém perde a visão devido à falta de vitamina A. Há 854 milhões de seres humanos gravemente desnutridos, mutilados pela fome permanente54. O maior número de pessoas desnutridas, 515 milhões, vive na Ásia, onde representam 24% da população total. Mas se consideramos a proporção das vítimas, o preço mais alto é pago pela África subsaariana, onde há 186 milhões de seres humanos permanente e severamente desnutridas, ou seja, 34% da população total da região. A maioria dessas pessoas padece o que a FAO chama de “fome extrema”, sua ração diária se situa em média em 300 calorias abaixo do regime da sobrevivência em condições suportáveis. Isto acontece num planeta que transborda de riquezas. A FAO é dirigida por um homem corajoso e competente, Jacques Diouf. Ele constata que no estado atual de desenvolvimento das forças agrícolas de produção, o planeta poderia alimentar sem problemas 12 bilhões de seres humanos, ou seja, o dobro da população mundial atual55. Conclusão: este massacre cotidiano devido à fome não obedece a nenhuma fatalidade. Por trás de cada vítima há um assassino. A atual ordem mundial não é apenas mortífera, mas também absurda. O massacre está instalado numa normalidade imóve A equação é simples: quem tem dinheiro come e vive. Quem não tem sofre, torna-se inválido e morre. Não existe a fatalidade. Qualquer morte por fome é um assassinato. 52 53 54 55 122 56 Uma criança privada da alimentação adequada em quantidade suficiente, desde que nasce até os cinco anos, sofrerá as seqüelas durante toda a sua vida. Por meio de terapias especiais praticadas sob supervisão médica, é possível reintegrar à existência normal um adulto insuficientemente alimentado temporariamente. Mas, no caso de uma criança de cinco anos isso é impossível. Privadas de alimento, suas células cerebrais terão sido prejudicadas irremediavelmente. Régis Debray chama estes pequenos de “crucificados de nascimento”56. Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=5327 Jean Ziegler é sociólogo suíço e relator especial da ONU sobre o direito à alimentação. A tradução é do Cepat (Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores). FAO, O estado da insegurança alimentar no mundo. Roma, 2006. Uma alimentação normal significa proporcionar diariamente 2.700 calorias a cada indivíduo adulto. Régis Debray e Jean Ziegler. Il s’agit de ne pas se rendre. Paris: Arléa, 1994. A fome e a desnutrição crônicas constituem uma maldição hereditária: todos os anos, centenas de milhares de mulheres africanas severamente desnutridas dão à luz a centenas de milhares de crianças irremediavelmente afetadas. Todas essas mães desnutridas e que, contudo, dão à vida, lembram as mulheres condenadas de Samuel Beckett, que “dão à luz a um cavalo sobre um túmulo. O dia brilha por um instante e depois, de novo, a noite”57. Uma dimensão do sofrimento humano está ausente desta descrição: a da pungente e intolerável angústia que tortura qualquer ser morto de fome desde que acorda. Como, durante o dia que começa, poderá assegurar a sobrevivência dos seus, e à sua própria? Viver nessa angústia é, talvez, ainda mais terrível do que suportar as múltiplas doenças e dores físicas que se abatem sobre esse corpo faminto. A destruição de milhões de africanos pela fome acontece numa espécie de normalidade estática, todos os dias, num planeta desbordante de riquezas. Na África subsaariana, entre 1998 e 2005, o número de pessoas grave e permanentemente desnutridas aumentou em 5,6 milhões. III Jean-Jacques Rousseau escreveu: “Entre o fraco e o forte a liberdade oprime e a lei liberta”. Com a finalidade de reduzir as desastrosas conseqüências das políticas de liberalização e privatização executadas ao extremo pelos senhores do mundo e seus mercenários (FMI, OMC), a Assembléia Geral da ONU decidiu criar e proclamar como questão de justiça um novo direito humano: o direito à alimentação. O direito à alimentação é o direito de ter acesso regular, permanente e livre, quer seja diretamente ou por meio da compra com dinheiro, a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada e suficiente, que corresponda às tradições culturais do povo a que pertence o consumidor e que garanta a existência física e psíquica, individual e coletiva, livre de angústia, satisfatória e digna. Os direitos humanos – infelizmente! – não estão inscritos no Direito positivo. Isso significa que ainda não existe nenhum tribunal internacional que faça justiça aos famintos, defenda seu direito à alimentação, reconheça seu direito de produzir seus alimentos ou de obtê-los comprandoos com dinheiro e proteja seu direito à vida. 57 58 IV Tudo vai melhor quando governos como o do presidente Lula, no Brasil, ou o presidente Evo Morales, da Bolívia, mobilizam por vontade própria os recursos do Estado, com a finalidade de garantir a cada cidadão seu direito à alimentação. A África do Sul é outro exemplo. O direito à alimentação está inscrito na sua Constituição. Esta estabelece a criação de uma Comissão Nacional dos Direitos Humanos, composta em paridade por membros nomeados pelas organizações da sociedade civil (Igrejas, sindicatos e diferentes movimentos sociais) e membros designados pelo Congresso. As competências da Comissão são amplas. Desde que entrou em funcionamento, há cinco anos, a Comissão já conseguiu vitórias importantes. Pode intervir em todos os âmbitos implicados na negação do direito à alimentação: expulsão de camponeses de suas terras; autorização dos municípios a sociedades privadas para a gestão do abastecimento da água potável, que implique taxas proibitivas para os habitantes mais pobres; desvio da água por parte de uma sociedade privada em detrimento dos agricultores; falta de controle sobre a qualidade dos alimentos vendidos nas periferias, etc. Mas, em quantos governos, especialmente no Terceiro Mundo, existe a preocupação cotidiana prioritária pelo respeito à alimentação de seus cidadãos? Pois bem, nos 122 países do Terceiro Mundo vivem atualmente 4,8 bilhões dos 6,2 bilhões de pessoas que povoam o Planeta. V Os novos senhores do mundo têm ojeriza aos direitos humanos. Eles os temem como o diabo a água benta. Porque é evidente que uma política econômica, social e financeira que cumprisse ao pé da letra todos os direitos humanos, romperia taxativamente a absurda e mortífera ordem do mundo atual e produziria necessariamente uma distribuição mais eqüitativa dos bens, satisfaria as necessidades vitais das pessoas e as protegeria da fome e de uma grande parte de suas angústias. Portanto, o objetivo final dos direitos humanos encarna um mundo completamente diferente, solidário, liberto do menosprezo e mais favorável à felicidade. Os direitos humanos políticos e civis, econômicos, sociais e culturais, individuais e coletivos58 são universais, interdependentes e indivisíveis. E são, hoje, o horizonte de nossa luta. Samuel Beckett. Esperando Godot (1953). São Paulo: Cosac Naify, 2005. Direitos humanos coletivos são, por exemplo, o direito à autodeterminação ou o direito ao desenvolvimento. 123 Colapso do agronegócio e a agricultura do futuro59 Gerson Teixeira60 interação de dois fenômenos estruturais são preditivos de uma atividade agrícola no futuro, organizada sob bases incompatíveis com a manutenção do agronegócio nos termos atuais. O primeiro fenômeno, de ordem econômica, subproduto da modernização conservadora da agricultura, diz respeito à trajetória erosiva, no longo prazo, dos níveis de rentabilidade econômica da base primária da atividade, decorrente do gap continuado entre preços agrícolas e custos de produção. Esse descompasso teve início com a auto-suficiência alimentar da Europa no final da década de 1970. À título de exemplo, de acordo com a FAO, entre 1980 e 2005, os níveis reais dos preços do milho, arroz, trigo e algodão declinaram, respectivamente, 55%, 50%, 46%, 60% e 54%. A Interagem com esse fenômeno os ganhos de produtividade agrícola em escalas incapazes de convergir as curvas dos preços e custos. A este respeito, vale consultar na Central de Informações Agropecuárias da Conab (www.conab.gov.br) os dados sobre a evolução dessas variáveis, para várias culturas, no período de 1998 a 2007. Nos países ricos, o colapso da agricultura, por força desses fenômenos, tem sido evitado por políticas protecionistas vigorosas que incluem bilhões de dólares em ajuda aos agricultores. No Brasil, a grande exploração agrícola tem resistido, com competitividade internacional, graças ao concurso de fatores como: a “cultura” da inadimplência no crédito rural, a precarização do trabalho, os baixos preços relativos da terra, o uso predatório dos recursos naturais e os incentivos da Lei Kandir. Decorre das tendências acima, portanto, a rota desestruturante da base primária da agricultura empresarial, ao que tudo indica, inevitável, à medida que resultante de fatores dificilmente reversíveis, a exemplo do protecionismo agrícola, da imanência excedentária do modelo agrícola e 59 60 124 dos processos de concentração e a centralização econômica dos capitais industrial, financeiro e comercial no entorno da atividade agrícola. Poder-se-ia contra-argumentar que a economia dos agrocombustíveis imporá inflexão nessas tendências. Mas, o governo brasileiro, os agrosenhores e os seus agro-intelectuais garantem que não haverá competição com a produção de alimentos! Aliás, recomenda-se àqueles que ainda apostam na mega-economia dos agrocombustíveis, a interpretação política da lista de bens ambientais, sem o etanol, apresentada em Bali na COP 13, pelos EUA e Europa, em atropelo e desrespeito, como de praxe, às negociações entabuladas pelos mais de 150 membros do Comitê de Comércio e Meio Ambiente da OMC. Esta ameaça à agricultura empresarial perde intensidade no caso da agricultura familiar e camponesa por conta dos valores e relações com a terra não restritos à lógica marginalista. Com esta maior blindagem e levando em conta os efeitos do segundo fenômeno tratado na seqüência, a pequena produção agroecológica se habilita para hegemonizar, no futuro, a paisagem agrária, principalmente em países como o Brasil. O segundo fenômeno deriva dos impactos na atividade agrícola das mudanças climáticas globais e, ao mesmo tempo, das contribuições da agricultura para o aquecimento global. O mundo se depara com o grandioso (e ao que tudo indica, irrealizável) desafio de reduzir, entre 50% e 80% as emissões de gases de efeitoestufa, nos próximos 50 anos, para evitar que a temperatura global ultrapasse os 2 graus centígrados. E as medidas nesta direção devem ser implementadas, nas hipóteses mais otimistas, no prazo de até 15 anos. A agricultura contribui de forma importante e será fortemente afetada por esse processo. Calcula-se que esta atividade seja responsável por 30% das emissões globais de gases geradores do Texto disponível em www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4803 - 15k Gerson Teixeira é coordenador geral da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA, no DF. efeito estufa. Afora as queimadas em países como o Brasil, o principal fator da contribuição da agricultura para o aquecimento global é o emprego intensivo de fertilizantes químicos. Daí decorre o seguinte dilema: sem a redução massiva da utilização dos agroquímicos não há possibilidade de redução do aquecimento global e, ao mesmo tempo, sem o uso crescente desses insumos a agricultura produtivista estará inviabilizada. Neste quadro, no qual a grande exploração agrícola conspira contra a sua própria sobrevivência e a do planeta, os impactos do aquecimento global desestabilizadores da agricultura, previstos no último Relatório do IPCC, exigirão mudanças de profundidade na base técnica da agricultura sob pena de severas ameaças à segurança alimentar da população mundial. É óbvio que os centros de pesquisa em todo o mundo já vêm se empenhando por soluções técnicas agronômicas para as situações de superstress que advirão do aquecimento global. Todavia, se, por exemplo, é possível a obtenção de variedades compatíveis com adversidades ambientais previstas, não parece razoável supor uma atividade agrícola no futuro ultra-intensiva em fertilizantes. A não ser que a opção seja pela destruição do planeta! Não sendo assim, é possível imaginar o atual modelo agrícola, sem os agroquímicos? Aí já seria um outro modelo agrícola! Do mesmo modo, muitos cientistas asseguram que a agricultura com biodiversidade será essencial para a convivência com os desdobramentos das mudanças climáticas. Como isto seria possível com um tipo de agricultura no qual a biodiversidade tem sido uma das suas principais vítimas? Além disso, sem monocultivos em escala não há possibilidade de viabilidade econômica para a base primária do agronegócio, nos termos atuais. De novo, agora por razões ambientais, a pequena produção agroecológica se credencia para dominar a paisagem agrária do futuro. Em suma, se fatores desestabilizadores da natureza e da economia tendem a criar essa oportunidade de hegemonia para a agricultura familiar e camponesa, no futuro, resta que, na política, as suas organizações atuem para tal sob perspectiva estratégica. Para tanto, mais do que nunca, reforma agrária, agricultura familiar e meio ambiente devem passar a ser pontos de convergência das agendas das lutas populares no campo. E cumpre que se perceba a necessidade de luta pela revisão do Pronaf à medida que, na concepção atual o programa nivela as formas de gestão e produção dos camponeses às bases de organização da agricultura produtivista. Isto não ajuda a construir o futuro! Fome:alimentos como negócio Leonardo Boff - 29/4/2008 mundo está se alarmando com a alta do preço dos alimentos e com as previsões do aumento da fome no mundo. A fome representa um problema ético, denunciado por Gandhi: “a fome é um insulto, ela avilta, desumaniza e destrói o corpo e o espírito; é a forma mais assassina que existe”. Mas ela é também resultado de uma politica econômica. O alimento se transformou em ocasião de lucro e o processo agroalimentar num negócio rentoso. Mudou-se a visão básica que predominava até o advento da industrialização moderna, visão de que a Terra era vista como a O Grande Mãe. Entre a Terra e o ser humano vigoravam relações de respeito e de mútua colaboração. O processo de produção industrialista considera a Terra apenas como baú de recursos a serem explorados até à exaustão. A agricultura mais que uma arte e uma técnica de produção de meios de vida se transformou numa empresa para lucrar. Mediante a mecanização e a alta tecnologia pode-se produzir muito com menos terras. A “revolução verde” introduzida a partir dos anos 70 do século XX e difundida em todo mundo, quimicalizou quase toda a produção. Os efeitos são perceptíveis 125 agora: empobrecimento dos solos, devastadora erosão, desfloretamento e perda de milhares de variedades naturais de sementes que são reservas face a crises futuras. A criação de animais modificou-se profundamente devido aos estimulantes de crescimento, práticas intensivas, vacinas, antibióticos, inseminação artificial e clonagem. Os agricultores clássicos foram substituídos pelos empresários do campo. Todo este quadro foi agravado pela acelerada urbanização do mundo e o consequente esvaziamento dos campos. A cidade coloca uma demanda por alimentos que ela não produz e que depende do campo. Vigora uma verdadeira guerra comercial por alimentos. Os países ricos subsidiam safras inteiras ou a produção de carnes para colocá-las a melhor preço no mercado mundial, prejudicando os paises pobres, cuja principal riqueza consiste na produção e exportação de produtos agrícolas e carnes. Muitas vezes, para se viabilizarem economicamente, se obrigam a exportar grãos e cereais que vão alimentar o gado dos países industrializados quando poderiam, no mercado interno, servir de alimento para suas populações. No afã de garantir lucros, há uma tendência mundial, no quadro do modo de produção capitalista, de privatizar tudo especialmente as sementes. Menos de uma dezena de empresas transnacionais controla o mercado de sementes em todo o mundo. Introduziram as sementes transgênicas que não se reproduzem nas safras e que precisam ser, cada vez, compradas com altos lucros para as empresas. A compra das sementes constitui parte de um pacote maior que inclui a tecnologia, os pesticidas, o maquinário e o financiamento bancário, atrelando os produtores aos interesses agroalimentares das empresas transnacionais. No fundo, o que interessa mesmo é garantir ganhos para os negócios e menos alimentar pessoas. Se não houver uma inversão na ordem das coisas, isto é: uma economia submetida à política, uma política orientada pela ética e uma ética inspirada por uma sensibilidade humanitária mínima, não haverá solução para a fome e a subnutrição mundial. Continuaremos na barbárie que estigmatiza o atual processo de globalização. Gritos caninos de milhões de famintos sobem continuamente aos céus sem que respostas eficazes lhes venham de algum lugar e façam calar este clamor. É a hora da compaixão humanitária traduzida em políticas globais de combate sistemático à fome. Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome61 Boaventura de Sousa Santos á muito conhecido dos que estudam a questão alimentar, o escândalo finalmente estalou na opinião pública: a substituição da agricultura familiar, camponesa, orientada para a auto-suficiência alimentar e os mercados locais, pela grande agro-indústria, orientada para a monocultura de produtos de H 61 126 exportação (flores ou tomates), longe de resolver o problema alimentar do mundo, agravou-o. Tendo prometido erradicar a fome do mundo no espaço de vinte anos, confrontamo-nos hoje com uma situação pior do que a que existia há quarenta anos. Cerca de um sexto da humanidade A fome no mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos. A análise é de Boaventura de Sousa Santos. Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14976. passa fome; segundo o Banco Mundial, 33 países estão à beira de uma crise alimentar grave; mesmo nos países mais desenvolvidos os bancos alimentares estão a perder as suas reservas; e voltaram as revoltas da fome que em alguns países já causaram mortes. Entretanto, a ajuda alimentar da ONU está hoje a comprar a 780 dólares a tonelada de alimentos que no passado mês de março comprava a 460 dólares. rem os preços, mais fome haverá no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os retornos dos investimentos financeiros. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos. O escândalo do enriquecimento de alguns à custa da fome e subnutrição de milhões já não pode ser disfarçado com as “generosas” ajudas alimentares. Tais ajudas são uma fraude que encobre outra maior: as políticas econômicas neoliberais que há trinta anos têm vindo a forçar os países do terceiro mundo a deixar de produzir os produtos agrícolas necessários para alimentar as suas próprias populações e a concenA fome no trar-se em produtos de exportação, mundo não é com os quais ganharão divisas que lhes um fenômeno permitirão importar produtos agríconovo. Ficaram las... dos países mais desenvolvidos. A opinião pública está a ser sistematicamente desinformada sobre esta matéria para que se não dê conta do que se está a passar. É que o que se está a passar é explosivo e pode ser resumido do seguinte modo: a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome. A fome no mundo não é um fenômeno novo. Ficaram famosas na Europa as revoltas da fome (com o saque dos comerciantes e a imposição da distribuição gratuita do pão) Quem tenha dúvidas sobre esta famosas na desde a Idade Média até ao século fraude que compare a recente “geneXIX. O que é novo na fome do sécuEuropa as rosidade” dos EUA na ajuda alimenlo XXI diz respeito às suas causas e tar com o seu consistente voto na ONU revoltas da fome ao modo como as principais são contra o direito à alimentação recoocultadas. A opinião pública tem sido desde a Idade nhecido por todos os outros países. informada que o surto da fome está Média até o O terrorismo foi o primeiro granligado à escassez de produtos agríséculo XIX. de aviso de que se não pode impunecolas, e que esta se deve às más comente continuar a destruir ou a pilhar lheitas provocadas pelo aquecimena riqueza de alguns países para benefício exclusito global e às alterações climáticas; ao aumento vo de um pequeno grupo de países mais poderode consumo de cereais na Índia e na China; ao sos. A fome e a revolta que acarreta parece ser o aumento dos custos dos transportes devido à susegundo aviso. Para lhes responder eficazmente bida do petróleo; à crescente reserva de terra agríserá preciso pôr termo à globalização neoliberal, cola para produção dos agro-combustíveis. tal como a conhecemos. Todas estas causas têm contribuído para o O capitalismo global tem de voltar a sujeiproblema, mas não são suficientes para explicar tar-se a regras que não as que ele próprio estabeque o preço da tonelada do arroz tenha triplicado lece para seu benefício. Deve ser exigida uma desde o início de 2007. Estes aumentos especulamoratória imediata nas negociações sobre protivos, tal como os do preço do petróleo, resultam dutos agrícolas em curso na Organização Mundide o capital financeiro (bancos, fundos de penal do Comércio. sões, fundos hedge [de alto risco e rendimento]) ter começado a investir fortemente nos mercados Os cidadãos têm de começar a privilegiar internacionais de produtos agrícolas depois da os mercados locais, recusar nos supermercados crise do investimento no sector imobiliário. os produtos que vêm de longe, exigir do Estado e dos municípios que criem incentivos à produção Em articulação com as grandes empresas agrícola local, exigir da União Europeia e das que controlam o mercado de sementes e a distriagências nacionais para a segurança alimentar buição mundial de cereais, o capital financeiro que entendam que a agricultura e a alimentação investe no mercado de futuros na expectativa de industriais não são o remédio contra a inseguranque os preços continuarão a subir, e, ao fazê-lo, ça alimentar. Bem pelo contrário. reforça essa expectativa. Quanto mais altos fo- 127 128 129 130 Cerrado62 onsiderado atualmente a savana mais rica do mundo em biodiversidade, o Cerrado brasileiro reúne, numa grande variedade de paisagens, mais de 10.000 espécies de plantas e 1.575 qualidades de animais. Entre chapadas e vales, com uma vegetação que vai do campo seco às matas de galeria, esse bioma se estende por uma vastidão de 2 milhões de km² (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, Tocantins, Piauí e Distrito Federal, além de ser encontrado, também, em trechos de outros sete estados brasileiros), ocupando um quarto do território nacional. C O Cerrado vive, atualmente, forte descaracterização pela expansão desordenada da fronteira agrícola, que já ocupa cerca de metade da região. Mais do que sua exuberante biodiversidade, a atual devastação põe em risco uma região que é o berço das águas das principais bacias hidrográficas brasileiras, além de base da sobrevivência cultural e material de extrativistas, indígenas, quilombolas e produtores familiares agroextrativistas, que têm, no uso dos seus recursos, a fonte de sua subsistência e geração de renda. Baru – Baruzeir (Dipteryx alata) Árvore frutífera do Cerrado brasileiro, que possui uma castanha de excelente sabor e propriedades nutricionais. É rico em proteínas, fibras, magnésio, potássio e ferro, além de possuir alto valor energético. O baru está fortemente ameaçado pelo desmatamento para plantio de grãos, implantação de pastagens e utilização de sua madeira. O aproveitamento dos frutos contribui para a conservação da espécie e do Cerrado, além de melhorar a qualidade de vida das comunidades envolvidas na coleta e no beneficiamento. Muitas histórias e tantas paisagens sobre a destruição e a resistência no cerrado63 Um dos ecossistemas mais ricos do país, fonte de águas de muitos rios, a região, no coração do Brasil, é oferecida em holocausto ao agronegócio; ela e os brasileiros que a povoam vêm sofrendo contínua devastação e violência. iderança entre os trabalhadores rurais do cerrado, Manuel da Conceição, assim como a terra em que vive, teve o corpo devastado pelas torturas da ditadura. Uma de suas pernas secou, como secaram tantos brejos, veredas, igarapés e pântanos. L 62 63 O cerrado, a partir de seu coração, no centro do Brasil, se mistura com o pantanal; a mata de araucária, no sul do país; a mata atlântica; a caatinga, no Nordeste; a zona dos cocais e babaçuais, no Maranhão e Piauí; e a Floresta Amazônica. Hoje, o cerrado é oferecido em Texto disponível em http://www.nordestecerrado.com.br/cerrado/ Matéria feita por João Roberto Ripper, de Rio de Janeiro (RJ). Publicada no Jornal Brasil de Fato, Ano 2, Número 97, São Paulo de 6 a 12 de janeiro de 2005. Pág. 12 e 13. 131 holocausto, em troca da Amazônia, por uma política que ignora as suas populações. A partir dos anos 70, o agronegócio tem como sócio majoritário a soja. Há tratores de 230 mil dólares, mas a monocultura significa não produzir para o próprio povo e não contemplar quem produz nem suas famílias. Quantas sementes têm que ser plantadas para dar retorno a esse investimento? Que quantidade de terra é necessária pra tanta semente ser cultivada? Quantos chapadões são sacrificados e deixam de gerar agricultura diversificada, extrativismo e caça para os povos do cerrado? Além da soja, tem a cana-de-açúcar, os eucaliptos e sua produção de carvão vegetal com utilização de mão-de-obra escrava, tudo sugando as chapadas, chupando água do lençol freático que sempre foi a garantia de vida das veredas, das matas ciliares, dos pântanos, igarapés, rios. Manuel teve o corpo e o coração muito machucados pelos militares, mas não perdeu a beleza, pois sua dignidade é perene, límpida, transparece e aparece em tantos outros homens e mulheres que povoam o cerrado brasileiro. Disse um índio no Fórum Social Mundial: “Indiscutivelmente, a expansão do agronegócio está matando as culturas dos povos do cerrado. Existe um conhecimento sobre o cerrado que está inscrito na prática das populações. Com toda certeza, quando seca um pântano, um igarapé, um rio, ou quando migra um camponês, um indígena, um quilombola, a humanidade fica mais pobre”. Destruição Os camponeses, habitantes originários do cerrado, sempre trabalharam com paisagens diversificadas. Nas baixadas, a agricultura; nas chapadas, o gado à solta, a caça e coleta de ervas medicinais e de frutos, como o pequi; nas encostas, uma mistura de agricultura, extrativismo, um pouco de pecuária. Os chapadões foram um grande achado para o agronegócio. Que consegue, hoje, captar água a até 150 metros de profundidade, trazendo para a superfície a água do lençol freático, num local onde a água já é escassa por seis meses. 132 Essa operação provoca um desequilíbrio hídrico de tal porte que rios, córregos e lagoas, antes perenes, tornam- se intermitentes e até deixam de existir. Com a falta d’água, antes de o agronegócio produzir grãos para exportação, produz a sede, a fome e a expulsão de milhares de habitantes. O problema afeta as bacias do Prata e Amazônica. Rios Mortos O líder rural lamenta que os rios da região estejam sendo devastados, aterrados por areia, envenenados por adubos químicos. “Os rios só têm água roxa e preta. Acabou a fartura de peixes, pássaros, cutia, tatu, anta, veado. O que tem agora é eucalipto, capim pra criar gado. Não tem mais mata ciliar. Os tratores devastam as florestas e as terras. Nas chuvas tudo é arrastado, entupindo os rios”. Manuel diz que estão desertificando o Maranhão. Mais: “Quando falarmos dos seres humanos, a coisa é ainda mais grave. Quero ver qual é o governo que vai conseguir segurar a violência no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, São Luís com essa grande quantidade de trabalhadores pobres que são expulsos, com fome e sem trabalho ”Os pobres viram marginais, diz, e não vai ter governo que dê conta de atender esses milhões de brasileiros que, sem querer, caem na marginalidade para sobreviver.” Resistência Para fazer frente a tudo isso foram criados, há 18 anos, o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural e, mais recentemente, a Central de Cooperativas Agroextrativistas do Maranhão (CCAMA), em Imperatriz. Antes de se organizar, esses trabalhadores não tinham nem terra e nem ferramentas. Hoje, são mais de 30 mil trabalhadores assentados em Buriticupu, onde 38 grandes fazendas foram ocupadas. “Eles ainda estão muito pobres, mas pelo menos já têm o que comer” – conta Manuel. Declarando seu amor pelo cerrado, ele lembra que nele deixou sua família quando foi preso e depois se refugiou na Suíça. “Aqui fiz a minha roça, colhi meu babaçu. Eu tenho todo interesse de dizer que o que faço hoje é tentar levantar as vozes adormecidas dos povos do cerrado”. O Semi-Árido é belo e constrói conhecimentos64 Antonio Gomes Barbosa65 Semi-Árido é, sem dúvida, um dos ecossistemas mais intrigantes e fascinantes do planeta! Esta expressão, que caracteriza admiração e encantamento, é a de quem passa a observar de perto esta região, sobretudo, estudiosos da Biologia, Botânica, Antropologia, Geografia, Paleontologia, História, Sociologia, Jornalismo, Fotografia, dentre tantas outras áreas do conhecimento. sa região não se expressa apenas em sua fauna, flora, pinturas rupestres e/ou formações rochosas (cristalino na maior parte). O maior patrimônio do Semi-Árido é, principalmente, a diversidade cultural de seu povo: agricultores/as, vaqueiros/ as, ribeirinhos/as, quilombolas, indígenas, extrativistas, quebradeiras de coco; que cultivam, criam, extraem, cantam, dançam, observam e produzem conhecimentos. Rico em biodiversidade, o Semi-Árido, que alguns preferem denominar de “sertão”, para diferi-lo do litoral, apresenta mais de 160 microclimas, de acordo com a Embrapa SemiÁrido; todos caracterizados por um alto poder de resistência e resiliência. Mesmo com longos períodos de estiagem, plantas e animais resistem e apresentam grande capacidade de regeneração. E é só cair as primeiras chuvas e tudo que era cinza e parecia morto, vira verde e esbanja vida. Portadores de um vasto saber, adquiridos a partir da observação da natureza ao longo dos tempos, homens e mulheres aprenderam a arte de conviver com o meio ambiente, olhando os ciclos das chuvas, o comportamento das plantas, dos animais e as características do clima e do solo. Foi esse conhecimento que construiu as melhores estratégias de convivência com o Semi-Árido, favorecendo o armazenamento de água para o consumo da família, através das cisternas; dos animais e das plantas por meio dos barreiros, tanques de pedra, caldeirões, barragens subterrâneas; e a estocagem de comida (bancos de sementes, paiol, armazéns, etc.) e forragem para os animais (pastagens nativas, silos, fenos). O É também no Semi-Árido, de acordo com a pesquisadora Niéde Guidon, que se registram as primeiras marcas de ocupação humana das Américas. Ou seja, podemos dizer que a riqueza des- A natureza não é muda66 Eduardo Galeano mundo pinta naturezas mortas, sucumbem os bosques naturais, derretem os pólos, o ar torna-se irrespirável e a água imprestável, plastificam-se as flores e a comida, e o céu e a terra ficam completamente loucos. O E, enquanto tudo isto acontece, um país latino-americano, o Equador, está discutindo uma nova Constituição. E nessa Constituição abre-se a possibilidade de reconhecer, pela primeira vez na história universal, os direitos da natureza. A natureza tem muito a dizer, e já vai sendo hora de que nós, seus filhos, paremos de nos fingir de surdos. E talvez até Deus escute o chamado que soa saindo deste país Texto disponível em http://www.asabrasil.org.br Sociólogo e Coordenador Pedagógico do P1+2 66 O Equador está discutindo uma nova Constituição. Entre as propostas, abre-se a possibilidade de reconhecer, pela primeira vez na história, os direitos da natureza. Parece loucura querer que a natureza tenha direitos. Em compensação, parece normal que as grandes empresas dos EUA desfrutem de direitos humanos, conforme foi aprovado pela Suprema Corte, em 1886. Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14956 64 65 133 andino, e acrescente o décimo primeiro mandamento, que ele esqueceu nas instruções que nos deu lá do monte Sinai: “Amarás a natureza, da qual fazes parte”. Um objeto que quer ser sujeito Durante milhares de anos, quase todo o mundo teve direito de não ter direitos. Nos fatos, não são poucos os que continuam sem direitos, mas pelo menos se reconhece, agora, o direito a tê-los; e isso é bastante mais do que um gesto de caridade dos senhores do mundo para consolo dos seus servos. E a natureza? De certo modo, pode-se dizer que os direitos humanos abrangem a natureza, porque ela não é um cartão postal para ser olhado desde fora; mas bem sabe a natureza que até as melhores leis humanas tratam-na como objeto de propriedade, e nunca como sujeito de direito. Reduzida a uma mera fonte de recursos naturais e bons negócios, ela pode ser legalmente maltratada, e até exterminada, sem que suas queixas sejam escutadas e sem que as normas jurídicas impeçam a impunidade dos criminosos. No máximo, no melhor dos casos, são as vítimas humanas que podem exigir uma indenização mais ou menos simbólica, e isso sempre depois que o mal já foi feito, mas as leis não evitam nem detêm os atentados contra a terra, a água ou o ar. Parece estranho, não é? Isto de que a natureza tenha direitos... Uma loucura. Como se a natureza fosse pessoa! Em compensação, parece muito normal que as grandes empresas dos Estados Unidos desfrutem de direitos humanos. Em 1886, a Suprema Corte dos Estados Unidos, modelo da justiça universal, estendeu os direitos humanos às corporações privadas. A lei reconheceu para elas os mesmos direitos das pessoas: direito à vida, à livre expressão, à privacidade e a todo o resto, como se as empresas respirassem. Mais de 120 anos já se passaram e assim continua sendo. Ninguém fica estranhado com isso. Gritos e sussurros 134 Nada há de estranho, nem de anormal, o projeto que quer incorporar os direitos da natureza à nova Constituição do Equador. Este país sofreu numerosas devastações ao longo da sua história. Para citar apenas um exemplo, durante mais de um quarto de século, até 1992, a empresa petroleira Texaco vomitou impunemente 18 bilhões de galões de veneno sobre terras, rios e pessoas. Uma vez cumprida esta obra de beneficência na Amazônia equatoriana, a empresa nascida no Texas celebrou seu casamento com a Standard Oil. Nessa época, a Standard Oil, de Rockefeller, havia passado a se chamar Chevron e era dirigida por Condoleezza Rice. Depois, um oleoduto transportou Condoleezza até a Casa Branca, enquanto a família Chevron-Texaco continuava contaminando o mundo. Mas as feridas abertas no corpo do Equador pela Texaco e outras empresas não são a única fonte de inspiração desta grande novidade jurídica que se tenta levar adiante. Além disso, e não é o menos importante, a reivindicação da natureza faz parte de um processo de recuperação das mais antigas tradições do Equador e de toda a América. Visa a que o Estado reconheça e garanta o direito de manter e regenerar os ciclos vitais naturais, e não é por acaso que a Assembléia Constituinte começou por identificar seus objetivos de renascimento nacional com o ideal de vida do sumak kausai. Isso significa, em língua quechua, vida harmoniosa: harmonia entre nós e harmonia com a natureza, que nos gera, nos alimenta e nos abriga e que tem vida própria, e valores próprios, para além de nós. Essas tradições continuam miraculosamente vivas, apesar da pesada herança do racismo, que no Equador, como em toda a América, continua mutilando a realidade e a memória. E não são patrimônio apenas da sua numerosa população indígena, que soube perpetuá-las ao longo de cinco séculos de proibição e desprezo. Pertencem a todo o país, e ao mundo inteiro, estas vozes do passado que ajudam a adivinhar outro futuro possível. Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a conquista européia castigou a adoração da natureza, que era pecado de idolatria, com penas de açoite, forca ou fogo. A comunhão entre a natureza e o povo, costume pagão, foi abolida em nome de Deus e depois em nome da civilização. Em toda a América, e no mundo, continuamos pagando as conseqüências desse divorcio obrigatório. Mudanças Climáticas67 Clima pode ser definido como o conjunto de condições meteorológicas (temperatura, umidade, chuvas, pressão e ventos) que mantém características comuns em uma determinada região. Variações no clima fazem parte da dinâmica ambiental do planeta. Por exemplo, a diferença das características de uma mesma estação de um ano para outro, que pode ser mais quente ou fria, úmida ou seca, chuvosa ou não. Também são evidências das variações do clima os fenômenos como tempestades, ciclones e secas. O As mudanças climáticas são uma alteração permanente nessas características e aconteceram diversas vezes no passado, por causas naturais. Entretanto, as atividades humanas, em especial as que utilizam combustíveis fósseis, vêm influenciando a ocorrência desse tipo de evento, por meio da alteração do equilíbrio climático do planeta. A causa central deste fenômeno é a intensificação do efeito estufa, que modifica o modo com que a energia solar interage com a atmosfera, provocando graves conseqüências. Alguns indicadores das mudanças climáticas nos últimos 15 anos são o aquecimento global, alterações bruscas em características básicas das estações do ano em diferentes partes do planeta, como temperatura e ocorrência de chuvas, ou aumento inédito nas últimas décadas de fenômenos abruptos como vendavais, ciclones e enchentes. Se hoje existe um consenso entre cientistas de que mudanças climáticas estão em curso e têm como origem a influência das atividades humanas no ambiente, ainda há um longo caminho a se percorrer no que diz respeito à mitigação das causas desse fenômeno e à adoção de energias alternativas para as atividades produtivas. Os tratados internacionais abriram caminhos para lidar com esse problema, ao estabelecerem diretrizes para redução de emissões dos gases do efeito estufa (GEEs) e ferramentas de ordem prática, como os mecanismos de flexibilização do Protocolo de Kyoto. Amsterdã,Holanda Novo relatório do Greenpeace mostra o papel da agricultura nas mudanças climáticas e o que se pode fazer para reduzir suas emissões de CO268 agricultura é atualmente uma das mais importantes fontes de emissão de gases do efeito estufa e mudanças urgentes precisam ser feitas no modo como a atividade é exercida para torná-la ambientalmente sustentável. Isso é o que conclui o novo relatório do Greenpeace, Mudanças do Clima, Mudanças no Campo69. A “Os impactos da agricultura industrial no clima não podem ser ignorados”, afirma Gabriela Vuolo, do Greenpeace Brasil. “É preciso trabalhar para que o futuro da agricultura seja produzindo alimentos em comunhão com a natureza e a população, e não contra elas”. O novo relatório traz detalhes de como a agricultura baseada no uso intensivo de energia e produtos Texto disponível em http://www.bioclimatico.com.br/document.aspx?IDDocument=24 Texto disponível em http://www.greenpeace.org/brasil/greenpeace-brasil-clima/noticias/mudan-as-do-clima-mudan-as-no. 69 O relatório foi escrito pelo professor Pete Smith, da Universidade de Aberdeen – um dos autores do mais recente relatório do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) – e é o primeiro a detalhar os efeitos diretos e indiretos da agricultura nas mudanças climáticas. 67 68 135 químicos provocou um aumento nos níveis de emissões de gases do efeito estufa, principalmente devido ao excessivo uso de fertilizantes, desmatamento, degradação do solo e criação intensiva de animais. A contribuição total da agricultura mundial para as mudanças climáticas, incluindo desmatamento para plantações e outros usos, é estimado em algo entre 8,5 bilhões e 16,5 bilhões de toneladas de dióxido de carbono, ou entre 17% e 32% de todas as emissões de gases do efeito estufa provocadas pelo ser humano. O uso excessivo de fertilizantes é responsável pela maior parte das emissões de gases do efeito estufa, estando hoje em torno de 2,1 bilhões de toneladas de CO2 anualmente. O excesso de fertilizantes provoca a emissão de óxido nitroso (N2O), que é algo em torno de 300 vezes mais potente que o CO2 na mudança do clima. 136 O relatório detalha ainda a variedade de soluções práticas que podem reduzir as mudanças climáticas e que são fáceis de ser implementadas, incluindo aí a redução do desmatamento, do uso de fertilizantes e a proteção do solo. “Do ponto de vista do clima global, o grande vilão é a queima de combustíveis fósseis seguido da mudança de uso do solo, como as queimadas na Amazônia e as atividades agrícolas em geral. No Brasil, essa é a maior parte do problema”, afirmou Luís Piva, coordenador da campanha de clima do Greenpeace. “Ações urgentes são necessárias para que o setor agrícola deixe de ser parte do problema das mudanças climáticas e passe a colaborar com a retirada de carbono da atmosfera e ao mesmo tempo garantir a segurança alimentar”.