Caderno 2

Transcrição

Caderno 2
Coletivo de Educação do MAB
CADERNO PEDAGÓGICO
Textos
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de
Coletivo de Educação do MAB
CADERNO PEDAGÓGICO
Textos
de aprofundamento e debate
ANAB
Junho de 2008
1
Produção:
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Coletivo de educação
Organização:
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Equipe de Elaboração:
Robson Fórmica
Liciane Maria Andrioli
Alice Akemi Yamasaki
Gisele Antunes Rocha
Colaboração:
Ana Rita de Lima Ferreira
Leila Aparecida Mendonça Lima
Fotos:
Arquivo MAB
João Zinclar
Arquivo Jornal Brasil de Fato
Edição:
Junho de 2008
Projeto Gráfico:
MDA Comunicação Integrada
2
Movimento dos Atingidos por Barragens
Avenida Central Bloco 555 Casa 06
Núcleo Bandeirante/DF
CEP 71710-012, Fone/Fax: (061) 3386 1938
Home-page: www.mabnacional.org.br
[email protected]
[email protected]
Sumário
As mãos constroem
Estas mãos _____________________________________________________________________15
O teatro das mãos ________________________________________________________________16
Carranca_______________________________________________________________________17
“Tem muita gente angustiada e doente por causa da barragem”, diz atingido por barragem _______18
Luta por moradia - Despejo da maior ocupação vertical da América Latina é iminente __________20
A cultura popular - Modos de vida
O som dos tambores: ecos de resistência e luta do povo negro ______________________________23
A cultura, a consciência e a mística __________________________________________________24
Refletindo um pouco sobre a história da música _________________________________________34
Violar é preciso __________________________________________________________________36
A infância e seu processo formativo
Infância, Formação e Conscientização: O que é a nossa Ciranda? ___________________________41
Jornada dos Sem Terrinha _________________________________________________________42
Brinquedos _____________________________________________________________________43
Sem Terrinha aprendem e ensinam na Escola Paulo Freire _________________________________44
A terra é o sentido da vida para os Guarani - Fotógrafo mostra a força da cultura indígena
na luta contra a expansão do agronegócio no MS _______________________________________45
Carta da terra - Conferência mundial dos povos indígenas sobre Território,
meio ambiente e desenvolvimento - rio-92 _____________________________________________47
Violência e destruição na prisão dos atingidos
Uma criança de sete anos é levada presa com o pai _____________________________________49
Educação emancipadora, educação popular, Educação do campo!
Educação: Exercício de viver _______________________________________________________53
Educação popular: alguns apontamentos ______________________________________________54
Os atingidos por barragens construindo a luta e valores coletivos ___________________________56
O MAB e a Educação do Campo ____________________________________________________57
3
Na luta por um mundo socialista!
Em Tucuruí, atingidos por barragens ocupam obra de eclusa novamente ______________________61
Legado de Exclusão Social _________________________________________________________61
Mobilização é reprimida com violência na Colômbia _____________________________________63
Ato em memória de Galdino lembra lideranças que morreram na luta pela terra ________________64
Modelo energético soberano-popular
Para que construir usinas hidrelétricas? _______________________________________________69
A falácia do risco da falta de energia - Especialista e movimentos sociais rebatem alarmismo
da mídia corporativa, governos e investidores de que faltará energia _________________________70
“Antes de produzir energia, as hidrelétricas produzem excluídos”, diz Dom Orlando Dotti _________72
Ditadura na barranca dos rios brasileiros: perseguição e criminalização
de militantes da luta contra as barragens ______________________________________________73
Hidrelétricas e violações de Direitos Humanos __________________________________________75
MAB denuncia violação dos direitos humanos - Comissões visitam regiões mais afetadas ________76
Usinas hidrelétricas do Rio Madeira e a cobiça internacional - O que está por trás da construção
de Jirau e Santo Antônio? Rapinagem das riquezas amazônicas pela hidrovia, fortalecimento
da indústria da barragem, energia barata para as indústrias eletrointensivas e uma fábrica
de dinheiro com a venda da energia para o povo brasileiro ________________________________79
Os donos de nossos rios. Até quando? ________________________________________________81
Como funciona a exploração nas tarifas de energia elétrica - “O modelo de energia elétrica no Brasil
está a serviço dos banqueiros e das grandes empresas multinacionais” _______________________82
Água, patrimônio da humanidade
Declaração universal dos direitos da água _____________________________________________93
Legislação sobre a água ___________________________________________________________94
Privatização da água _____________________________________________________________96
O Nordeste é Viável sem Transposição e com Ética na Política _____________________________97
Ao São Francisco ________________________________________________________________99
A Reforma Hídrica _______________________________________________________________100
Exploração da força de trabalho
Por trabalho, eles perdem a saúde - Expostos a tarefas extremamente prejudiciais e degradantes,
crianças, adultos e idosos enfrentam jornadas de semi-escravidão __________________________105
Por que morrem os cortadores de cana? ______________________________________________106
Trabalho escravo no Brasil de hoje __________________________________________________111
Dados parciais de conflitos no campo em 2007
42,5% de conflitos pela água ocorreram nos estados banhados pelo Rio São Francisco _________113
Dossiê trabalho escravo - Como alguém se torna escravo ________________________________115
Trabalhadoras rurais - Quebradeiras de coco reescrevem a história
No Maranhão, mulheres lutam contra derrubada das palmeiras de babaçu e conquistam
acesso livre ao coco _____________________________________________________________116
4
Soberania alimentar
Agrocombustíveis e produção de alimentos ____________________________________________121
Fome e direitos humanos __________________________________________________________122
Colapso do agronegócio e a agricultura do futuro _______________________________________124
Fome: alimentos como negócio _____________________________________________________125
Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome _______________________________126
Algumas paisagens de nosso país
Cerrado _______________________________________________________________________131
Muitas histórias e tantas paisagens sobre a destruição e a resistência no cerrado
Um dos ecossistemas mais ricos do país, fonte de águas de muitos rios, a região,
no coração do Brasil, é oferecida em holocausto ao agronegócio; ela e os brasileiros
que a povoam vêm sofrendo contínua devastação e violência. _____________________________131
O Semi-Árido é belo e constrói conhecimentos _________________________________________133
A natureza não é muda ___________________________________________________________133
Mudanças climáticas _____________________________________________________________135
Amsterdã, Holanda - Novo relatório do Greenpeace mostra o papel da agricultura
nas mudanças climáticas e o que se pode fazer para reduzir suas emissões de CO2 ____________135
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6
Apresentação
A
o longo dos últimos anos o MAB vem desenvolvendo várias experiências no âmbito da educação, principalmente com Jovens e Adultos, e a partir disso tem se consolidado como um importante sujeito político nesta área.
Mediante o desenvolvimento destas experiências surgem desafios os quais nos exigem refletir e
organizar o que ao longo desta caminhada viemos construindo. Dentre os desafios colocados está a
necessidade de produzirmos materiais pedagógicos que tenham vínculo e relação direta com a realidade
das populações atingidas por barragens e com o conjunto das organizações que trabalham na perspectiva atual da educação do campo.
Nesse sentido o MAB vem a elaborar e produzir três cadernos pedagógicos:
1) Imagens em Movimento;
2) Imagens em Movimento: Textos de aprofundamento e debate;
3) Imagens em Movimento: Sugestões de Atividades de Letramento e Etnomatemática.
Estes cadernos pedagógicos desempenham o papel de subsidiar o planejamento e a realização de
práticas educativas realizadas na educação do campo, nas turmas de Alfabetização de Jovens e Adultos.
Outro aspecto é que este material servirá também para que educadores e educandos conheçam várias
culturas e realidades do Brasil, possibilitando, assim, que se pense em outras maneiras de expressar,
conhecer e interpretar o mundo em que vive. Assim haverá conhecimento, descoberta, compreensão e
tolerância para com o diferente: outras pessoas, outras sociedades, outras épocas, outros costumes.
Desta forma esperamos contribuir para a qualificação e aprimoramento das atividades desenvolvidas nas comunidades, já que este material busca estabelecer um diálogo direto e profundo
com a história, a memória, os costumes, as culturas, as formas de produzir, as relações estabelecidas com a natureza, com os empreendimentos hidrelétricos e com os problemas e desafios que a
realidade do campo nos apresenta.
Assim conhecemos a seguir o objetivo geral de cada caderno pedagógico:
No primeiro caderno pedagógico “Imagens em Movimento” consta imagens seguidas de pequenos
textos que buscam auxiliar os educadores na reflexão com os educandos buscando interpretar a realidade a partir das sensações e pontos de vista de quem as observa, do que elas nos representam e nos
transmitem a partir de suas expressões.
O objetivo é provocar nos educadores e educandos o interesse por uma forma de linguagem
que distrai, ilustra, espanta, inova, renova, perturba e faz pensar. A imagem e a palavra remetem
para o fato de que ver, pensar, lembrar e sentir estão sempre juntos. E tudo isso são formas de
conhecimento e de questionamento sobre as coisas que os rodeia. A imagem retira novidade e
grandeza do cotidiano. Ela as registra e tira-as de seu contexto habitual e faz com que as pessoas
vejam suas próprias vidas com outros olhos.
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No segundo caderno, além das imagens, serão apresentados textos que ajudam na reflexão dos
temas refletidos sobre as imagens. Com esse caderno o educador e educando serão desafiados a se
colocar frente a diferentes questões. Sentindo-se provocados a compartilharem suas idéias, propor alternativas, produzir conhecimento e expressar seus valores e convicções.
No terceiro caderno constam sugestões e dicas de atividades que poderão ser desempenhadas
em aula, buscando sempre relação e vínculo direto com a vida dos educandos, com a intenção de
contribuir com a formação humana integral, de sujeitos participativos do processo histórico e da
realidade na qual se encontram. São atividades relacionadas com o tema de cada imagem que contemplam a oralidade, escrita e leitura.
De acordo com a especificidade de cada turma, alguns temas e atividades serão mais interessantes para uns do que para outros, e a estrutura do Caderno propicia uma liberdade na utilização do
material. A seqüência das dicas e sugestões de atividades tem um caráter organizativo e não significa
que deva ser seguida com rigorosidade em seqüência das páginas do caderno.
O conjunto dos três cadernos pedagógicos propõe ações educativas que levem os educadores
e educandos:
a) Desenvolver novas habilidades e adquirir conhecimentos para tomar decisões apoiadas em
uma consciência solidária e tolerante.
b) Aprender a ler a realidade e obter conhecimentos para interpretá-la criticamente e buscar
soluções para as situações limites que vivenciam.
c) Ter acesso a bens culturais que apóiem e fortaleçam a conquista e a garantia de direitos e
cidadania.
Em suma, com este material pretendemos dar um importante passo no sentido de qualificar e
potencializar o processo educativo do MAB, o qual pretende formar sujeitos na sua totalidade, com
capacidade de compreender de forma critica a realidade e em condições de intervir de maneira direta e
transformadora na mesma contribuindo no processo da educação do campo.
Movimento dos Atingidos por Barragens
Coletivo de educação
São Paulo, junho de 2008.
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Introdução
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Estas mãos1
Daiane dos Santos Carlos2
lexandra, Judite, Ivanei, Nivia, Suerda,
Rosana. Olha para estas mãos, de mulher roceira, esforçadas, mãos cavocadeiras. Sonia, Flávia, Claudia, Raquel, Tânia,
mãos trabalhadeiras.
A
Edson, Claret, Rogério, Marcos, Océlio, Yuri,
Diego, Aildo. Olha para estas mãos: pesadas, sem
trato, sem carinho....
Mãos de ribeirinhos, camponeses,
quilombolas, indígenas, pescadores, de trabalhadores. Dos quatro cantos do país, mãos dos atingidos por grandes construções de represas. Ossudas e grosseiras. Mãos que varreram e cozinharam. Lavaram e estenderam roupas nos varais.
Pouparam e remendaram. Mãos domésticas e
remendonas. Íntimas da economia, do arroz e do
feijão, da casa, do tacho de cobre, da panela de
barro, da cinza na fornalha. E faziam sabão.
Minhas mãos roceiras, fecundas, ásperas
de lavrar a terra. Semear e cuidadosamente cuidar e ter a certeza da colheita. Mãos pensativas
que sabem que organizados podem transformar
o mundo, mãos de lideranças que carregam a
indignação e fazem cotidianamente algo para
transformar.
Mãos guerreiras que não se deixam calar.
Jamais ociosas. Mãos doceiras. Imensas e
ocupadas. Mãos laboriosas. Abertas sempre para
dar, ajudar, unir e abençoar. Mãos tenazes e
absoletas, feridas na remoção de pedras e tropeços.
Convidadas a contar um pouco de sua sabedoria, um pouco de suas vivências, suas experiências de organização, suas vitórias, seus medos, suas dificuldades, suas convicções para construir dias melhores para as futuras gerações, quebrando as arestas da vida gerando libertação.
Mãos que se dedicam a escrever, a propor
um projeto energético alternativo, a decidir sobre
os próximos passos da organização, mãos que trazem a simbologia da mística, dos cantos e perfumes, dos relatórios de intensos estudos, de pautas
de negociação.
Mãos que não se aquietarão até que alguma injustiça ainda esteja sendo cometida contra
qualquer pessoa em qualquer lugar.
Mãos que se reúnem para cuidar e preservar tudo que a natureza gerou, mãos que
conhecem a importância da água, da terra, das
sementes, da vida.
Mãos como reflexo de todas as mulheres. A
mulher que traz no seu interior a humanidade, o
ideal de justiça, a fraternidade, a igualdade como
direito de todos.
O amor como princípio. O carinho da mãe.
O desejo de ser feliz. O trabalho por paixão. A
intuição e uma sensualidade, capaz de converter
o mais irreverente dos homens, num amante da
vida, num homem livre.
O que pode ser o começo da transformação, do reencontro da humanidade com o
melhor de si.
Mãos que lutam incansavelmente. Já são
tantas. Milhares. Milhões. Uma verdadeira rama
florescendo.
São mãos se agrupando, se organizando,
construindo acampamento, enfrentando a opressão, hasteando bandeira, buscando lenha, fazendo estudo, exigindo verdades.
Tudo isso porque reconhece que é tempo
propício de gerar igualdade. A esperança que é
partilhada quando se reúnem, quando conversam
e vêem que os problemas são os mesmos e as saídas devem ser buscadas em conjunto.
Uma organização com muitos sonhos e
muito a superar, ainda vão mais homens pra
negociação, ainda há mulheres escondidas na
sombra masculina, dependente do pai, do
marido, ainda te apresentas como filha ou
mulher do fulano.
Na verdade por trás de um grande homem, esconde qualidades de que esteve na frente uma grande mulher. Há libertação há de chegar por luta.
1
Texto elaborado a partir de um trabalho pedagógico feito com militantes educadores, inspirado através do poema “Estas
mãos” da autora Cora Coralina.
2
Daiane é militante do Movimento dos Atingidos por Barragens.
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Estas mãos sabem que precisamos avançar e por isso toda a direção está se propondo a
estudar, construir novas relações entre homens e
mulheres. E a formação há de ajudar.
Mãos não importa a origem, seja do campo
ou cidade, não depende de cor nem idade. O sentimento é de transformar numa nova sociedade.
Falamos muito no novo homem e na nova mulher.
Mãos que escalam montanhas, descem baixadas,
passam sede e fome, em busca de seus ideais elas
deixam famílias, perdem dias, noites de sono.
Nesse caminho o que nunca podem perder
é o amor pela igualdade, pela liberdade, a felici-
dade dos povos, a mística do sorriso no rosto de
uma criança de quem já conheceu a liberdade, a
felicidade de quem luta.
Mas quando nos perguntamos onde está
esse novo homem e essa nova mulher, digamos:
eles estão dentro de nós.
Mãos de militantes, dirigentes, de trabalhadores e trabalhadoras que não se cansam até o
dia em que juntos homens e mulheres, todos e
todas, em todas as comunidades, grupos de base,
em todas as cidades, campos e construções, possam edificar o poder popular. Mãos alavancas na
escava de construções inconclusas.
O teatro das mãos3
Ana Miranda4
ricô e crochê, torno mecânico, carpintaria, jardinagem, culinária, rabiscos distraídos que fazemos quando conversamos... O trabalho manual concentra, cria sensação de paz, e traz alguma felicidade.
T
Uma das atividades que mais me preenchem é a de trabalhos manuais. Gosto de desenhar, de dedilhar um violão, de costurar um botão de camisa, de lavar folhas, uma a uma sob
a torneira, de descascar batatas... Entregar-se,
pertencer às próprias mãos, traz um sentimento
reconfortante.
Tenho diversos cadernos de desenho preenchidos. Até hoje desenho, rabisco, minuciosos
traços e coloridos vão delineando meus seres imaginários: um gato de asas, uma sereia com chifres, bailarinas ou hermafroditas, um peito aberto
por uma fenda de onde nasce uma flor, uma mulher-árvore com as mãos enterradas como se fossem raízes, ou um corpo de mulher composto de
vários rostos, coisas assim.
Costumo fazer para as crianças aquele
teatro de sombras com as mãos juntas; também, medir as coisas com os dedos estendidos, a contar quantos palmos. Dizem alguns cientistas que somos deO trabalho senvolvidos tecnologicamente apenas porque temos nosso polegar,
manual
que nos permite a preensão.
Tive uma blusa de renda toda
bordada por mim, quando eu era
adolescente. Sobre cada flor eu pregava cinco contas brancas em círculo e, nas folhas, mais cinco, em ficoncentra,
leiras reviradas. Não terminei o traQuando me entrego ao trabacria
sensação
balho, e a blusa ficou perdida numa
lho manual, parece que esqueço os
de minhas mudanças. Mudei-me de paz, e traz problemas, me transporto para ouconstantemente, durante toda a mitros recantos do mundo, outras esfelicidade
nha vida mudei de casa, ou cidade.
feras muito mais bucólicas, puras,
Talvez tenha me esquecido de uma
prazerosas, próximas às minhas oricasa onde morei. Mas a blusa jamais saiu de
gens ligadas à natureza, à memória animal. É
minhas recordações mais nítidas.
como se me recordasse dos primeiros gestos
16
3
Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br
4
Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Amrik, Dias & Dias e colunista da revista mensal Caros Amigos.
humanos. Os gestos mais naturais são os manuais. Os mais sofisticados e civilizados são
os olhares com significados específicos.
Segundo certas teorias antropológicas,
talvez o primeiro gesto tenha sido, com um
pequenino impulso lírico, o côncavo da mão
para colher uma fruta; ou a concha, para beber água. A manuelage, como os franceses chamam a linguagem das mãos, é universal e
milenar. Tem a idade do ser humano. Ninguém
precisa aprendê-la.
Nascemos providos dos gestos, desde os
primeiros impulsos obstinados de procurar o
seio materno para sugar o leite, a mão fechada que revela o instinto de posse, o gesto
radicular e profundo de pôr a mão sobre algo
para se afirmar possuidor, a nossa obstinação
em levar tudo à boca antes de ser capazes de
escolher o que podemos comer... Parece que
todos os demais gestos derivam dessa caudal
original e autêntica.
O gesto nos revela, e, embora seja comum
a todos, nos torna diferenciados e únicos. O gesto do qual resulta alguma coisa é, quase sempre, uma espécie de realização de nosso mundo inconsciente.
Todas as pessoas deveriam realizar trabalhos manuais, mesmo aquelas que não possuem
o dom. Essas tarefas aperfeiçoam os gestos como
expressão insubstituível da mente, como, por
exemplo, tricô e crochê, torno mecânico, bordados, escultura em argila, carpintaria, pintura, jardinagem, culinária, miniaturas, caligrafia, ou mesmo um manuscrito garranchoso, ou aqueles rabiscos distraídos que fazemos quando conversamos ao telefone. O trabalho manual nos ensina
a nos concentrar, cria em nós uma sensação de
paz, e traz alguma felicidade.
Carranca
ocê já ouviu ou fez a seguinte pergunta:
por que está tão carrancudo? A pessoa
que é assim interrogada supostamente
deve estar em um dia de mau humor, quando não
há simpatia ou sorrisos.
V
Assim também são as caras das carrancas
talhadas na madeira, o lábio não se abre para o
sorriso, mas da boca escancaram-se dentes. Os
artesãos e as artesãs parecem respeitar o ditado
popular que diz: “Quanto mais feia melhor!”.
Segundo a reportagem do site www.ambiente.brasil.com.br,
a carranca serve,
[...] “para espantar o mau olhado, espírito presepeiro, mal-assombro e pescaria ruim: caretas.
[...] Na proa, esculpidas em madeira, um rosto assustador,
são monstros temíveis cuja função é botar pra correr os
mitos originários e residentes no São Francisco, como a
Mãe-d’água e o Minhocão. De sobra, no passado, susto
também para os indesejáveis jacarés, hoje extintos. Em
algumas partes, as figuras de proa eram chamadas também de cara de pau ou leão de barca. Os personagens
Negro d’Água, que sai das águas para pedir fumo, e a Mãe
d’Água, amiga das lavadeiras, que adora presentes, já fazem parte da cultura local”.
17
“Tem muita gente angustiada
e doente por causa da barragem”,
diz atingido por barragem5
ernardo Cruz Souza é maranhense, mas
há 18 anos mora em Minas Gerais. Depois que foi atingido pela barragem de
Candonga ficou desempregado e hoje mora de favor em uma casa no município de Rio Doce.
Bernardo ajuda na organização do Movimento
dos Atingidos por Barragens (MAB) na sua região e conta que por esse motivo sofre ameaças.
Em entrevista ao Setor de Comunicação do MAB,
ele relatou a angústia ao ver sua casa sendo destruída, sua situação de vida e suas esperanças.
Hoje, 30 de agosto, a barragem está sendo inaugurada pelas empresas e pelo governador do
estado, mas a população local não se cala, repudia o ato e se mobiliza dizendo que já basta
de ditadura aos atingidos.
B
Setor de Comunicação: Qual seu sentimento quando você vai ao lago da
barragem?
Bernardo Cruz Souza: Antes era tudo bonito,
agora eu não me conformo e infelizmente tenho que olhar e dizer: eu morava ali naquele
local onde agora é o lago. Sempre que vem
gente visitar eu digo: você quer ver onde a
nós morava? A empresa chegou oferecendo
mil maravilhas, dizendo que nós teria uma
vida melhor, que os filhos iriam para a escola... Só que hoje o pessoal está passando
fome, tem famílias que estão pensando em
vender a casa, querendo comprar um pedacinho de terra e ir para a roça. Na Velha Soberbo era um lugarzinho feio, mas todo muito gostava. Até mesmo eu que cheguei depois fui acostumando com as pessoas.
Setor de Comunicação: O que os funcionários da empresa diziam quando foram para Minas construir
Candonga?
Bernardo: Quando eles vieram para Minas, diziam que eram psicólogos, mas na verdade
eram negociadores. Mostravam um documento pra gente dizendo que todo mundo ia
receber moradia, eu lembro muito bem. Há
oito anos atrás, quando eles andaram fazendo as primeiras visitas, fazendo os levantamentos, eles mostravam esse documento,
não pra todo mundo, mas pra gente que procurava. Nos tiraram e botaram até em outro
município. E nos diziam: espera ali ou vai
pra justiça. E quem vai se meter com a justiça? Ela só vale para alguns... E como eu estava falando antes, essa necessidade, essa
falta de alimentação, eu vim passar em Minas Gerais por causa da barragem. Nunca
tinha me acontecido e já tenho 44 anos.
Setor de Comunicação: Qual era a
base da economia na região?
Setor de Comunicação: No dia 3 de
maio de 2007 a polícia destruiu o
povoado onde vocês moravam. Nos
conte como foi aquela situação.
Bernardo: Muitos garimpeiros moravam ali mesmo, tiravam ouro e pedras preciosas. Tinha
bastante gente que vivia da extração, mas tam-
Bernardo: Na verdade a gente já estava com
medo uma semana antes do dia 3. A gente tinha medo que eles poderiam nos ata-
5
18
bém tinha os que plantavam para a sobrevivência. Não faltava alimentação para ninguém, hoje a maioria das pessoas atingidas
está desempregada, em torno de 95%. Eu
passo uma grande necessidade e posso falar
que nem no nordeste, que foi a região que eu
nasci, não passei tanta necessidade como
estou passando nesse local, pois agora eu estou desempregado. Fazem 20 anos que eu trabalho no garimpo e graças a Deus, sempre
tinha alguma coisa pra mim me manter.
Texto disponível em http://www.consciencia.net/agencia/2005/3108-mabmg.html
car à noite, então fizemos várias barricadas, botamos madeira e fogo na estrada.
Naquela semana o comandante foi na comunidade e disse que era melhor a gente
sair, pois, segundo ele, aquelas terras já
eram da empresa. Os policiais ficavam 24
horas por dia lá, vigiando cada passo que
nós dava.
Então naquele dia 3, às 5 e meia da manhã
eles vieram, tinham várias viaturas, caminhões de bombeiros, cães farejadores...
Também vieram autoridades, juízes, promotores. Isso pra nos tirar, mas quando foi para
resolver os problemas, eles não voltaram.
Algumas famílias já haviam saído, pois ficaram com muito medo. E os que restaram
não queriam ficar, mas ficaram, pois não
tinham pra onde ir.
Setor de Comunicação: E o sentimento de ver as casas sendo destruídas
pelas máquinas?
Bernardo: Isso foi horroroso. Seis meses depois daquilo eu não conseguia comer, nem
dormir bem. Às vezes eu vou lá e parece
que vejo tudo de novo começando. Mas
quem sofreu foram as pessoas mais idosas
que viram a última construção ser destruída, a igreja católica. E se não fosse chegar
uma pessoa na hora, tinham destruído a
igreja com todas as imagens dentro. Foi
uma imensa falta de respeito, isso por volta das nove horas da noite.
Quando destruíam as casas, várias pessoas passaram mal, teve uma senhora que
ficou com o braço machucado por um policial, pois quando começaram a destruir
a casa da mãe dela, ela ficou muito nervosa. Eu mesmo, que sou forte, nessa hora
fui fraco e não consegui ficar olhando. Num
dia destruíram tudo e no local ainda moravam 14 famílias.
Setor de Comunicação: E agora?
Bernardo: Agora já encheu o lago e o pessoal está com a mão na cabeça, como
diz o ditado. Não sabemos o que fazer.
Isso sem falar que algumas famílias que
receberam casas, tem que se mudar, pois
as casas já estão caindo, outras estão
escoradas com ferragem e paus pra não
cair. E mais, há 15 dias atrás teve uma
reunião numa cidade vizinha e falaram
sobre proteção ao meio ambiente. Na
verdade a gente já escutava falar que não
teremos mais acesso ao lago, nem para
pescar. Garimpar nunca mais.
Setor de Comunicação: Qual sua maior esperança?
Bernardo: A minha maior esperança é que
todos tenham consciência que em qualquer região que forem construídas, as
bar ragens só trarão problemas. Por
exemplo, lá onde eu moro, só 5% dos
garimpeiros foram reconhecidos. Fomos
comparados com plantadores de maconha, diziam que nós tínhamos um trabalho ilegal. E os meeiros receberam uma
proposta miserável e se não quisessem
aquilo, teriam que entrar na justiça ou
senão ficar sem nada.
Mas o que eu mais quero é que um dia a
gente tenha um espaço para viver, uma moradia e terra pra trabalhar, porque todas
as pessoas que agora estão em Nova Soberbo estão sem terra.
Setor de Comunicação: O que significa o MAB em Candonga e o que
você diria para quem construiu a
barragem?
Bernardo: No início, quando o MAB chegou, foi
rejeitado pelas pessoas, pois ainda não conheciam o Movimento. Mas foi rejeitado só
por aquelas poucas famílias que estavam sendo indenizados. Eu sei que nós só conseguiremos as coisas se estivermos organizados no
MAB. E para a Novelis e Alcan, eu diria que
eles não tem nada de humanidade. Eles estão matando o povo.
Tem muita gente angustiada e doente por causa da barragem. Eu não concordo com as
barragens, nem que eles pagassem todo mundo direitinho, porque você perde todos os espaços para viver.
19
Luta por moradia
Despejo da maior ocupação vertical
da América Latina é iminente6
Rafael Sampaio
roprietários venceram causa na Justiça
e desocupação de edifício na Av. Prestes Maia, no centro de São Paulo, deve
ocorrer até 4 de março, a menos que Prefeitura
faça uma ‘intervenção política’. 1630 pessoas ficarão sem moradia.
P
SÃO PAULO – A maior ocupação vertical da América Latina está sob risco iminente
de despejo. O edifício, localizado na avenida
Prestes Maia, no centro de São Paulo, tem 22
andares e há dois anos abriga 468 famílias, que
reúnem 1630 pessoas.
A reintegração de posse, movida na Justiça
pelo ex-candidato a vereador Jorge Hamuche
(PHS), um dos proprietários do prédio, será executada até o dia 4 de março. “Em termos jurídicos não há mais nada a fazer”, lamenta o advogado dos sem-teto, Manoel Del Rio. Ele crê em
somente uma solução para o problema: a intervenção política da prefeitura junto ao juiz que
acompanha o caso.
Desde segunda-feira (5), 300 sem-teto montaram um acampamento diante do prédio da Prefeitura, e prometem sair apenas quando for apresentada uma solução para as famílias que habitam o prédio da Prestes Maia. O secretário municipal de Habitação, Orlando de Almeida Filho,
não deu sinais de que receberá qualquer comissão dos acampados.
Ivonete Araújo, coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), reclama da omissão do poder público. “Faz dois
anos que a prefeitura nos diz que não tem interesse em permitir que as famílias do Prestes
Maia fiquem na rua. E agora eles deixam que
o despejo aconteça, que todos nós sejamos
jogados fora”, reclama.
6
20
Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br
Poucas saídas
Del Rio diz que o edifício está avaliado pela
Caixa Econômica Federal em R$ 7 milhões, e que
os proprietários – Jorge Hamuche e Eduardo
Amorim – têm uma dívida de R$ 5,8 milhões acumulada com o município, devido ao não-pagamento
de IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano).
Em 2003, a gestão petista na Prefeitura,
encabeçada por Marta Suplicy (PT-SP), se dispôs
a pagar a diferença (R$ 1,2 milhão) para desapropriar o edifício. “Então se iniciou o processo
de compra do prédio da ocupação”, lembra o advogado. Segundo o jornal Brasil de Fato, a Justiça
exigiu que o valor da propriedade - R$ 7 milhões
- fosse depositado integralmente pela prefeitura
para que fosse feita a desapropriação. Como o
poder público não pôde pagar, nada foi feito.
“A prefeitura não dá sinais de que intervirá a favor dos moradores do Prestes Maia. Gilberto Kassab entregou o caso para a Justiça”,
reclama Del Rio. O MSTC entrou em contato
com o Ministério das Cidades para pedir apoio
político, mas o governo federal pode fazer pouco, neste caso. O advogado sugere que a Prefeitura poderia propor um projeto de lei na Câmara dos Vereadores para desapropriar o edifício, ou então retomar o acordo iniciado durante a gestão petista.
Osmar Silva Borges, coordenador da Frente de Luta por Moradia (FLM), informa que na
quinta-feira (08) haverá uma reunião com o comando da Polícia Militar, para discutir sobre como
será feita a reintegração. “A prefeitura tem que
nos atender e dar um destino para as famílias”,
diz ele. A FLM integra o acampamento erguido
para pressionar o poder público a atender os moradores da ocupação Prestes Maia.
21
22
O som dos tambores:
ecos de resistência e luta do povo negro
á tempos os tambores são utilizados
como forma de expressão dos negros
no Brasil. O som vibrante eram escutados nos terreiros das fazendas, quando o povo
africano desapropriado de suas origens se reunia
para festejar, louvar os ancestrais e reafirmar os
ideais de resistência e luta.
H
Ainda hoje, várias danças e manifestações
culturais são embaladas pelo som dos tambores e
fica difícil permanecer imóvel em meio à energia
que eles transmitem. Na reportagem do jornal Brasil de Fato intitulada “A riqueza multicultural de São
Paulo”7, a cena descrita oferece uma idéia do corpo embalado pelo ritmo da batucada:
Entre os grupos de dança, apresentações de
folias de reis, congadas, moçambiques, catira e
folias do divino. Muita cor, muita música e muita
descontração contagiavam a platéia, que procurava seguir os passos dos grupos e acompanhava
com palmas o ritmo caipira.
Para entender um pouco mais sobre as diversas manifestações culturais do nosso país, destacamos a seguir um Pequeno Dicionário Cultural, como
foi nomeado pela equipe de reportagem do jornal:
Congada paulista
Congado é sinônimo de encontro ritual de
vários grupos de Congos, Moçambiques e
Assemelhados. Cortejos de forte raiz africana, existem nos mais diversos pontos do
país, em festas religiosas, principalmente
nas dedicadas à Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito.
Reisado
Folias de Reis são grupos que, em forma de
ranchos, recontam a lendária viagem dos
Três Reis Magos do Oriente para adorar o
Deus Menino.
Jongo
Dança de origem banto, do mesmo tronco
do batuque, ambos ancestrais do samba e
7
do pagode, que resiste em alguns pontos do
Vale do Paraíba. Nela, são homenageados
São Benedito e antepassados negros.
Fandango de Tamancos
Fandango, no interior Sul e litoral Sul, continua a designar os bailes de sítio, as
folganças que animam ocasiões especiais
(casamentos e aniversários). Neles, sapateados e palmas se alternam com valsados
e danças de sapateado forte (fandango de
tamancos e fandango de chilenas).
Samba de Bumbo e Samba de Lenço
Duas variantes do samba tradicional em
São Paulo, consideradas como os ancestrais
do samba cosmopolita. Guardam traços que
os aproximam do jongo e do batuque. O de
Bumbo é característico da festa do Bom Jesus, em Pirapora. O de Lenço é em devoção a São Benedito.
Catira
Outra dança de palmeados e sapateados,
acompanhados, sempre, por duplas de
violeiros, que alternam as modas com a atuação dos catireiros. De tradição masculina, muitos grupos já admitem a participação de mulheres.
Coco
Dança típica das regiões praieiras, e comum no Norte e Nordeste. O coco vem
do canto dos tiradores de coco. Tem uma
coreografia básica: os participantes formam filas, ou rodas, sapateiam, respondem o coco, trocam umbigadas e batem
palmas marcando o ritmo. A dança tem
influência dos bailados indígenas Tupis e
dos negros, os batuques africanos. Os instrumentos mais utilizados de percussão:
ganzá, bombos, zabumbas, caracaxás,
pandeiros e cuícas.
Jornal Brasil de Fato de 25 de setembro a 1º de outubro de 2003. Cultura (pág. 16)
23
O pesquisador Paulo Dias 8 utiliza a expressão “Comunidades do Tambor” ao se referir aos diferentes estilos regionais das danças-músicas negras (como os batuques, as
congadas, os candomblés e o samba urbano).
E destaca: [...] um certo repertório de padrões
rítmicos que se reproduz, em diferentes con-
juntos instrumentais, através do imenso território do Brasil e das Américas negras, criando
laços simbólicos de parentesco com a África
distante. Linhagens rítmicas que, mais resistentes ao tempo que qualquer palavra ou canto, atualizam-se a todo instante pelas mãos que
tocam e pelos pés que dançam.
A cultura, a consciência e a mística9
Ademar Bogo
T
rês elementos se combinam na formação do sujeito histórico Sem Terra:
a cultura a consciência e a mística.
Um ser humano independentemente das
circunstâncias de que é gerado, nasce pelo empenho e esforço de outros que se relacionam.
Os hábitos do cuidado para que este ser se desenvolva são recolhidos dos ensinamentos passados pelas gerações que fizeram sua experiência e descobriram que determinadas ervas se
transformam em remédios, frutas e cereais se
transformam em alimentos etc.
Ao rebentar, o ser humano indefeso, deixa de ser apenas rebento e passa fazer parte
de uma sociedade determinada, por isso torna-se ser social.
Encontra, portanto uma estrutura social
montada que lhes facilita a vida e ao mesmo tempo impõe limites estabelecidos por dois poderes:
temporal e espiritual. O Estado cuida da estrutura
das leis, e a religião da moralidade.
Aprende a manejar as coisas a partir dos
ensinamentos produzidos pela experiência de seus
genitores e se produz a si próprio a partir das iniciativas e determinações estabelecidas.
Tem como obrigação nesta escala da formação humana, primeiro aprender o nome dos
objetos que usará para se comunicar e produzir a própria existência; segundo: seguindo a
tradição, educar-se em uma escola, freqüentar
24
a igreja assumindo uma religião, assimilar valores e pô-los em prática, e terceiro, dedicar-se
ao trabalho para daí extrair os alimentos, buscar meios para edificar sua moradia, comprar
utensílios, roupas, calçados, portanto lidar com
o mercado etc. Se os pais são camponeses e
possuem terra, aprenderá cedo o ofício da agricultura executando tarefas determinadas e perceberá que o alimento vem da terra cultivada.
Se os pais forem operários, aprenderá que o
alimento vem do salário. Quem não tem salário não tem alimentos. Essa é a ordem de comando do capital.
Acompanha esta trajetória, preceitos morais, ou seja, normas que se baseiam em valores
morais que objetivam formar costumes. É isso
que diz a palavra “moral” no latim significa mores, ou seja, costumes. Estes ao serem assimilados, seguem os passos da obediência pacífica.
No caso de dúvidas ou desrespeitos, apela-se
para a ética que refletirá o modo de ser e retificará os desvios de caráter.
Os costumes padronizam o comportamento, de grupos ou de toda a sociedade que
podem ser alterados de tempos em tempos.
Em sociedades igualitárias as normas são
mais duradouras. Em sociedades desiguais,
as normas e os valores são ultrapassados
constantemente pelos interesses do capital,
que busca atingir através da “massificação
da cultura” (cultura de massas) o caráter das
8
Trabalho publicado (ver site do Min. das Relações exteriores http://www.dc.mre.gov.br) Foi escrito originalmente para
apresentar a exposição multimídia “Comunidades do Tambor”, montada no SESC Vila Mariana, em São Paulo, durante o
evento “Percussões do Brasil”, em 1999.
9
Estudo feito com o setor de cultura do MST em Ibirité em 19 e 20 de maio de 2001.
pessoas, para que se submetam à ordem dos
interesses político ideológicos da classe dominante. Os grupos e as sociedades não
consumistas se defendem através da “cultura
popular” repassando os conhecimentos pela
afetividade existente na relação comunitária
que a seqüência de gerações estabelece.
senvolvimento. Estabelecem mudanças nas relações sociais e deixam à margem da sociedade uma quantidade significativa de seres sociais que, não podendo reproduzir os hábitos anteriores, nem podendo assimilar os hábitos novos na totalidade, se colocam entre duas alternativas: misturar o possível entre o velho que
resta e o novo emergente, modificando a prática e deformando o caráter, ou resistir para não
deixar-se excluir e assimilar o possível conscientemente da evolução.
Isso acontece em ambas as condições e
é possível, porque os seres humanos não nascem prontos e acabados. Há espaço na consciência social e poAs mudanças
lítica para acrescentar elementos
tecnológicas
que dão identidade ao caráter, e
mudam
com isso, os seres humanos adquirem características próprias, a
rapidamente
partir de seu próprio esforço e inhábitos e,
teresse, ou pela manipulação e
alienação de instituições criadas quando não bem
para este fim.
assimiladas,
Mas tornam-se cultura também os aspectos negativos em uma
sociedade desigual. Isso ocorre
quando as pessoas aceitam as condições e reproduzem os interesses
alheios sem reagir. Aceitam ver gente desempregada, sem terra, analfabeta,
faminta,
prisões
superlotadas, transporte ruim etc.
como aspectos naturais de uma sociedade “desenvolvida”.
A cultura representando
tornam as
tudo o que fazemos, parte dela
pessoas vítimas
conduzida pela superestrutura da
do próprio
As reações espontâneas
sociedade, e parte dela pelo senso comum, condiciona o ser hu- desenvolvimento. não resistem à dominação cultural, elas devem se propor a dar
mano a executar gestos que reidentidade aos gestos que simbolicamente se
force a harmonia social, obrigando-se a cetransformam em referência de resistência perder em pontos particulares quando estes esmanente. Nasce assim, a ideologia da resistão fora de seu alcance ou ferem os direitos
tência como novo conteúdo da cultura que se
dos outros. Mas por outro lado, aprende na
manifesta no fazer acontecer possibilidades até
produção da existência a ter direitos como:
então desapercebidas.
propriedade (terra, casa, objetos de uso) comprar e vender, passear, amar etc.
Esta trajetória histórica e seus limites é que
As mudanças tecnológicas mudam rapidamente hábitos e quando não bem assimiladas, tornam as pessoas vítimas do próprio de-
demonstraremos na existência feita pelo MST e
as possibilidades de mudanças que descobriu pelo
simples fato de pensar e fazer diferente.
Da cultura produzida para a produção da cultura
O conhecimento sociológico e histórico
pode explicar as transformações econômicas e
sociais que ocorreram no campo brasileiro nos
últimos 50 anos, onde passamos, de sociedade
agrária, para sociedade urbana industrializada.
Mas é o caipira que faz a cidade e fica fora dela.
Esta transferência de cultura de um lugar para outro nos deixa quatro elementos para
analisar a desconstrução e os pilares da reconstrução cultural.
1º
Ironia Caipira
O êxodo rural transferiu dentro de sacarias atadas com cordões de couro e cipós, em
baús de madeira feitos á machadinha, a riqueza cultural de alguns séculos de existência produzida ás margens das trilhas de terra que levavam e traziam o progresso, mas os ventos da
industrialização e das invenções tecnológicas,
25
um dia sopraram os últimos ciscos humanos
para os centros urbanos onde o capital engoliu
o espaço e tudo ficou apertado. Ali a consciência e a mística se misturam para dar forma a
esta nova maneira de produzir a existência. Assim o caipira conta sua história de quando chega na cidade através da Música de Tião Carreiro
“Cochilou o Cachimbo Cai”
“Quando cheguei em São Paulo
Dava pena dava dó
Minha mala era um saco
O cadeado era um nó”
2º
Mudança de Natureza
Esta mudança de lugar social, e de separação do ser de sua categoria de origem para formar uma nova categoria do dia para noite sem
especialização, explica-se como sendo o desmanche de um modo de vida social, para no simples
descarregar das mudanças, formar outro, com
mais luzes mas com menos claridade para iluminar os passos futuros. Muda o lugar social mudase a base da formação da consciência.
3º
Incerteza e Dúvida
Os que teimam ficar na agricultura, agarraram-se aos próprios suspiros. Pesarosos, olhando
para quem parte sem saber se estão certos em deixar a roda da história seguir sem eles. Mesmo sem
terra para trabalhar, resistem. Alimentam a tradição de serem posseiros, meeiros, arrendatários ou
peões de fazendas. Os filhos dos pequenos proprietários saem da adolescência, recebem o aviso
que devem se quiserem casar e constituir uma família, procurar outro galho para fazerem o ninho,
pois aquele no qual vivem com os pais, já não
resiste a muito mais peso. O sentimento da resistência é o caminho para a reconstrução do ser
humano, misturando consciência e mística para
produzir um tempo novo.
26
Ao mesmo tempo que alimentam a categoria aprendem coisas novas, que vão fazendo mudanças no comportamento e na forma de pensar.
Coisas boas que enraízam ainda mais a cultura
mas também coisas ruis que ficaram como cicatrizes para serem apagadas no futuro.
4º
A construção da identidade
Esta condição de ser sem-terra se transforma em consciência, onde a mesma condição social serve para dar nome a um Movimento em que
seu desenvolvimento confere a mesma identidade
às pessoas, mudando sua cultura, a consciência
e a mística tornando-se condição social. Por isso,
mesmo conquistando a terra, os homens, as mulheres e as crianças, ficaram marcadas por este
sinal de ser Sem Terra.
Na produção da existência com uma
nova consciência alimentada pela mística,
aparece o processo da formação da nova cultura, o sem-terra (condição social) de ontem,
se torna no Sem Terra (sujeito histórico) de
hoje, conviveu e convive com três formações
culturais combinadas.
a) A cultura imposta
Enquanto categoria sem-terra vivendo nos
campos e nas periferias das, ficando cada vez mais
à margem da modernização tecnológica, a
normatização da sociedade organizada e os preceitos morais difundidos pelas religiões e pela
mídia, são mediadoras em submeter a massa
deserdada e desinformada dos próprios direitos,
aos caprichos e interesses da classe dominante
que acumulou sem piedade a terra, a renda, a riqueza, o poder e os conhecimentos.
Com isso, dia-a-dia as pessoas foram vendo seus conhecimentos históricos, hábitos de convivência, valores e costumes sendo arrancados da
própria consciência a golpes e a empurrões, e em
seu lugar, plantados pela propaganda massiva,
viram nascer o interesse pelo consumismo, a competição, o desrespeito pela vida e a aceitação passiva da destruição da própria identidade.
A ideologia dominante, na busca de esconder a verdade, encarregou-se de justificar, através da mídia o mal estar e o abandono dos caipiras agora na cidade. Como uma árvore adulta
transplantada, mantém-se abatida, murcha, mas
sobrevive por algum tempo.
A semelhança entre os hábitos, levam os jovens do uso do cigarro ao consumo de drogas mais
perversas. A linguagem ganha novos vocábulos e
a ingenuidade caipira cede lugar à gíria. O modismo condiciona os interesses e ocupa o espaço
da consciência social com nomes, marcas, cores.
A mídia, sábia, vai até o campo através
da arte buscar pedaços de raízes decepadas, e
as traz para a cidade, para consolar, ao mesmo
tempo que faz consumir os desconsolados. Através da música adaptada, demonstra que se pode
ter em casa em forma de som, o que já não se
tinha mais na vida.
A mística através de um de seus elementos
principais, a arte, cumpre o papel de preencher
os vazios na consciência estética e no sentimento
dos pobres desenraizados.
Quem se adapta e se dá bem na cidade,
passa a integrar o mundo urbano dos incluídos,
vivendo como àqueles que ali nasceram em condições favoráveis. Mas para àqueles que nada
conseguem a não ser a marginalidade do desenvolvimento, a saída é raciocinar e vivenciar misticamente as fantasias.
Perdem-se com as batidas nas barrancas
da história, pedaços da cultura produzida e alimentada por diversas gerações. Ficam para trás
despedaçados os valores, utensílios domésticos
rejeitados ou impedidos de serem usados, conhecimentos no trato com os animais, nomes
de plantas e de sementes, as superstições, a religião, fantasias, contos e estórias de caçadores, viajantes, boiadeiros etc. Estes vazios deixados pelos pedaços de vida perdidos, são agora substituídos pela pomposidade dos interesses dominantes. Vem a desmotivação a dor e o
desespero. Quem está dominado perde a condição de expressar com liberdade o que sente.
b) A contestação da cultura
Estes elementos positivos e negativos, presentes e passados acompanham os Sem Terra
antes e depois de se tornarem categoria social,
que em determinado momento ajuda alinhar os
passos para o lado certo.
É um período de transição entre a imposição e a contestação da cultura, mas que, pela insegurança e desconhecimento, muitas coisas ainda são impostas.
Tudo inicia com a assimilação do pensamento; “A terra é para quem nela trabalha”. De
uma frase confusa, se origina a filosofia da contestação cultural e a formação do MST. Confusa porque não específica “quem nela trabalha”
e nem a quantidade de terra necessária para
trabalhar. Mas por outro lado dá a entender que
ninguém pode ter terra se não trabalha nela, e
ninguém pode ficar sem terra, se ela existe em
quantidade. Sendo assim os que tem terra perdem o direito de arrendá-la ou de mantê-la como
reserva de valor.
Esta contestação terá dois sustentáculos
que outrora serviram exclusivamente para dominar os excluídos: A Constituição Federal e a Bíblia. Ou seja, do poder temporal vem a lei, do
poder espiritual vem o direito. Associando os dois
poderes, quebra-se as barreiras da proibição e
gera-se um “terceiro poder”: o poder popular, que
faz perder o medo de buscar através da luta o
que pertence a cada um.
Neste lutar, definem-se os amigos e os aliados. Na esfera política surgem os políticos contrários que se articulam para reprimir, e também os
aliados que buscam através dos Sem Terra, autoafirmar-se como políticos profissionais.
O conhecimento das classes sociais pela
via prática, traz, para a consciência dos lutadores pela conquista da terra um elemento novo,
que é o de perceber como se exerce o poder político no país. A diferenciação dos três poderes,
aprende-se na prática e descobre-se que o judiciário é o poder que está mais próximo, justamente para garantir o direito de propriedade aos
homens influentes da região. O legislativo é mais
“liso” e oportunista, e o executivo é lento e melindroso. Mas a força da consciência os decifra
facilmente para enfrentá-los.
A ação direta tem o poder de colocar em
circulação os que até então eram desconsiderados
na da superestrutrutura da sociedade e isso leva a
mexer com os poderes: local, regional, nacional e
posteriormente internacional. As organizações
sociais e políticas como sindicatos e partidos,
buscam articular formas de defesa jurídica, solidariedade e propaganda da ação.
A imprensa se manifesta a favor e contra,
procurando divulgar o fato para ajudar a resolver
o conflito pela via da negociação ou pelo desgaste político de quem luta, para que a repressão atue
com maior tranqüilidade.
As igrejas, através de seus representantes,
com as devidas precauções, também se manifestam para intermediar, podendo ajudar o fazendeiro
como os trabalhadores.
Essas intervenções deixam marcas, como
cicatrizes na face, que serão reconhecidas no
27
futuro, e assim como podem atrair aliados, podem afastá-los, pois a cultura tem este poder de
ao fazer a existência, provocar o aumento da
dominação, como também incentivar o nascimento da autonomia.
Esta reação ativa e coletiva, contrária da
anterior provocada pelo êxodo rural passiva e individualizada, exige o surgimento de uma organização, nasce então a cultura do movimento.
Ninguém sabe o que significa e nem as conseqüências que terá, fazendo parte de um movimento, mas as circunstâncias naturalmente empurram as pessoas para este caminho que lhes
dará de imediato tarefas para cumprir. Cooperar
exige trabalho e emprego de mais esforço.
A cultura do movimento ganha conteúdo. E aos poucos se estende e avança para formar um movimento social, como instrumento
de defesa e resistência frente às injustiças. O
que vem antes, portanto, é a injustiça compreendida pela consciência.
Em nosso país não é difícil perceber isso,
pois já a décadas, a injustiça se transformou
em exclusão, e a exclusão em indigência. Não
há para onde fugir, pois o espaço está todo tomado, embora não ocupado como é o caso da
agricultura. Temos no Brasil 850 milhões de
hectares de terras e apenas 34 milhões de há,
são utilizados com lavouras. Isso demonstra que
a cabeça de nossos governantes está no primeiro mundo, mas os pés estão presos nas capitanias hereditárias.
Agora é o momento que ganha importância as velhas panelas, os velhos colchões e cobertores, as ferramentas inativas, os facões cujo tempo lhes roubou o direito de cortar e todos os conhecimentos adormecidos despertam para ajudar
na viajem que construirá a nova existência.
Mas, por outro lado o MST consegue utilizar outros elementos um pouco esquecidos,
mas que dão condição às pessoas de firmarem os passos na direção da libertação. Vejamos alguns deles.
1º
A autonomia
O surgimento dos movimentos sociais trouxe consigo esta característica de desde o início
querer ser autônomos. Isto não significa isolamento e desarticulação. O fato de buscar definir
os critérios de participação, elaborar o próprio
método, definir datas, horários etc. é a demonstração prática de que o sujeito da história somente o é quando tem liberdade de pensar e decidir sobre si próprio.
Os movimentos sociais forjaram a liberdade de se constituírem sem manuais. Por isso nasce com eles uma nova consciência e um novo jeito de ser sujeito histórico.
Ninguém pode querer medir a velocidade
dos passos de quem quer correr para chegar mais
cedo. É a marcha da história que se choca com a
burocracia do Estado. Os limites superam-se combinando força e inteligência.
c) A construção da nova cultura
A nova cultura tem seu germe na reunião
de base onde se toma a decisão de ocupar, acampar ou pressionar o governo de alguma forma para
que distribua a terra.
É hora da consciência perfumar com a mística a existência que está sendo produzida.
Utiliza-se a velha noite. Ela é a referência
primeira para se fazer uma ação. A escuridão
representa medo, mas neste caso dá segurança
para quem precisa mover-se. É nessa via contraditória entre esta contradição de sono e rebeldia da busca apaixonada do encontro da terra com os seres humanos, como se ambos tivessem vergonha de nascer do latifúndio durante
o dia, precisam dos braços da noite para realizar o grande nascimento.
O resgate do velho, mas útil compõe o carregamento da mudança que leva este velho ser
para uma nova terra, para na solidariedade formar-se nova gente.
As reuniões são feitas à noite quando os
Sem Terra, ainda operários voltam do trabalho,
onde deixaram toda a força de trabalho mas não
o ânimo de buscar sua própria terra.
Renasce nas pessoas o espírito adormecido de liderança e começa aparecer os nomes de quem se envolvem. O nome está ligado
à responsabilidade e ao poder de resolver os
problemas. Quanto mais se envolve mais comprometido fica.
28
2º
A noite
Por isso também temos o preto como
uma das cores de nossa bandeira. Representa mais que o luto pelos companheiros mortos, que certamente gostam de ser homenageados pela cor vermelha, mas a noite como
simbologia do sofrimento que pretendemos eliminar indo ao rumo do dia. A existência do
MST começa pela noite, ao contrário de outras organizações que esperam pelo horário
comercial para abrir suas portas.
A noite não é só dos seresteiros, mas de todos os apaixonados que buscam na relação humana coletiva e solidária fazer nascer das fantasias um mundo de verdade.
3º
A família
A velha família criada pela divisão social
do trabalho e utilizada como espaço de dominação entre àqueles que se amam, ganha novo significado na luta dos Sem Terra.
Recorre-se à família como força de referência para aumentar o número de pessoas na ocupação, mas também como forma
de respeitar o princípio de que a terra pertence somente àqueles que por ela lutam e
nela querem viver.
A família, embora se estruture de forma
autoritária e nela se reproduza a dominação
entre entes-queridos, é o espaço do cultivo do
amor e das paixões, envolve as pessoas tornando-as “uma só carne e um só espírito” e
através dela, resgata-se a identidade, os valores e o companheirismo entre os lutadores.
Além do mais ela mantém as pessoas unidas.
Pode-se deixar para trás pedaços de lonas, mas
nunca pedaços da família.
O destino de uns está ligado ao destino dos outros. Por isso é difícil desmobilizar
uma ocupação, mesmo com violência nos
despejos, as pessoas permanecem organizadas, pois não tem como voltar para casa.
Tanto a casa quanto a mudança estão junto
com os lutadores.
Os utensílios mantém as pessoas agrupadas ao redor deles. Como estamos em um
estágio de lutas de massas este fator é importante pois as formas de luta não exigem muita mobilidade.
4º
Os símbolos
Tudo passa ter significado próprio. Discos
velhos de arado servem de sino para expressar
em códigos através de batidas, quando é assembléia ou emergência. Alguns resgatados da tradição como a cruz e a bandeira. Estes objetos além
de ganharem significado próprio, alimentam a ideologia e a utopia daqueles que lutam.
As ferramentas de trabalho ganham importância como a simbologia do trabalho, mas também como instrumento de defesa.
As ferramentas simples são essenciais,
usadas desde a construção do barraco, revelam a defesa de um modelo de agricultura que
não excluí a mão de obra pela tecnificação.
Pena que isso nem sempre se sustente e a sedução das máquinas levam a encostá-los, submetendo a agricultura familiar aos inventos da
grande empresa.
Máquinas também fazem parte dos instrumentos de trabalho e demonstram o desejo de
cooperar e produzir em grande escala de forma
cooperativada. A tecnologia que ajuda no desenvolvimento econômico social e humano deve estar sempre ao alcance das mãos daqueles que
sabem quem estão com os pés firmes no chão.
5º
As tarefas
Surgem da noite para o dia as comissões,
e àquele que mal aprendeu viajar precisa embarcar em um avião para ir até a capital negociar com o governador, que nunca o viu nem sequer sabe qual é sua opinião sobre a reforma
agrária. A consciência e a mística se misturam
nesta nova relação é preciso arranjar uma roupa melhor, um calçado adequado é o resgate da
auto-estima que começa a nascer a partir dos
cuidados com o corpo.
Os que ficam ansiosos por notícias são
transformados em soldados da guarda popular,
armados de paus e foices para garantir a integridade física daquela comunidade. Há os que se
dedicam à saúde, à educação e a outros serviços voluntários.
Na medida em que o conflito vai se resolvendo e a terra está prestes a passar para
29
as mãos de quem lutou por ela, começa haver
uma certa acomodação, justamente porque
agora a idéia não é organizar para o conflito
mas para a passividade.
Não é a disposição que enfraquece, mas
a consciência que ganha novos elementos e a
mística nasce por outras frestas abertas nesta
construção do sonho familiar. A consciência passa a receber novas informações e símbolos que
os interesses pessoais desenham sobre ela com
muita rapidez. O pequeno aviário feito de varas, a arapuca para pegar passarinhos, o anzol
armado na margem do rio é a velha cultura despertando em uma nova consciência através de
hábitos simples.
Dependendo da incapacidade de estabelecer objetivos coletivos, os interesses revelam as marcas nas consciências como: propriedade privada dos lotes, moradia individual para ficar distante dos vizinhos, aquisição de máquinas individualmente para não
coletivizar, uso do fogo em demasia, de adubos químicos, herbicidas e inseticidas. Estes
elementos definem a produção da existência
das pessoas depois da terra conquistada, que
geram novas tarefas.
A reflexão e a prática da cooperação aos
poucos demonstra que a libertação dos fracos está
na unificação das forças dispersas.
6º
A Escola
Muitas famílias se reúnem e lutam se primeiro tiver escola para os filhos. A educação
para a grande maioria é tão importante como o
alimento. Ninguém quer que os filhos cresçam
sem ter o direito de estudar. Por isso uma das
primeiras coisas a fazer após instalar-se na ocupação da terra é a escola, onde alguém é solici-
tado a iniciar as aulas enquanto uma comissão
luta pelo reconhecimento na secretaria de educação no município.
Na preocupação com a busca do conhecimento escolar, está a mística de que os filhos sejam “diferentes” dos pais que não tiveram esta
oportunidade de estudar. Há nisso um valor ,mas
também um preconceito. O valor é que a preocupação em conhecer sempre, mais liberta o ser humano da ignorância. O preconceito é de que o
ser humano que não tem escolaridade é inferior e
nunca será “alguém na vida”.
7º
A Alegria
Muitas músicas são cantadas para animar
as reuniões e as assembléias antes e depois da
ocupação. Festas são organizadas e fogueiras são
acesas como elemento de unidade e confraternização. A luz e o barulho espantam o medo e evitam o isolamento.
Cerimônias religiosas, refletem os sentimentos mas também trazem bem-estar e consciência dos atos que devem ser assumidos por
todos. Estes e outros elementos e objetos utilizados se agregam-se à consciência das pessoas
e se transformam em aprendizado na produção
deste pedaço de existência.
Posteriormente as festas de comemoração
das colheitas, das conquistas e de datas significativas fazem da memória histórica elementos de reflexão, onde o prazer de Ter feito se mistura ao
prazer de dizer que fez. Por isso a mística é um
mistério que não acaba nunca.
Dezenas de outros aspectos se misturam
nesta reconstrução da história, por isso o resgate
daquilo que em um ambiente desgastado pelas
deformações ajuda a forjar uma nova estrutura
com coisas simples.
A formação da consciência e a mística
30
A consciência está ligada ao conhecimento. As coisas passam para a esfera do conhecimento e se tornam consciência. Isto acontece sempre que uma nova informação aparece, a ignorância sede lugar ao conhecimento.
Enquanto não conhecemos a existência
e a causa dos fenômenos, somos escravos deles. Quando tomamos conhecimento de sua
existência, aprendemos a dominá-los ou a conviver com eles.
Há por sua vez, formas distintas de conhecer, ligadas à necessidade humana. A emoção de
descobrir somente sente àquele que procura.
É na busca de satisfazer as necessidades
básicas, que os seres humanos aprendem a dominar a natureza e a lidar com ela. No convívio
com a natureza e com a sociedade, vamos aprendendo coisas que possibilitam defender a vida, e
desenvolvemos capacidades de produzir objetos
que se conformam na cultura de um determinado grupo social.
Esta consciência social, formada pela convivência social tem maior ou menor nível de conhecimentos a partir do esforço empregado e os
interesses que tem os próprios indivíduos.
Há culturas de grupos sociais altamente
desenvolvidas pelo fato de terem desenvolvido o
conhecimento e aprenderam a dominar a realidade, transformando a natureza e alcançando um
alto nível de desenvolvimento. Há necessidades
que encontram meios favoráveis na realidade e
favorecem as descobertas tecnológicas.
Existem povos na história da humanidade que desenvolveram, antes mesmo do desenvolvimento da ciência, conhecimentos altamente importantes para seu crescimento. Por
isso, a consciência na formação dessa nova
existência é:
criar em cada momento histórico soluções para
as contradições que se formaram, produzindo
mais contradições.
Mística
A mística é mais do que alimento nesta produção da existência, é o fator que provoca a fome
de querer mais e melhor.
A mística no MST tem três vertentes fundamentais:
1ª) A contemplação
O camponês é condicionado a pensar
através do ciclo do desenvolvimento das coisas. No preparo do solo ele espera a chuva
para semear. Ao semear espera a planta nascer para limpar a roça e cuidar dos insetos.
Depois espera as flores, os frutos verdes e maduros. Aí vem a colheita e a repartição da safra em três partes na seguinte ordem: sementes, comer e mercado.
Com os animais é a mesma coisa. O período de gestação de uma fêmea é acompanhado de
cuidados e admiração. É o ciclo da vida que ensina no silêncio a ser contemplativos.
2ª) A espiritualidade
Identidade
Ela é o conhecimento das coisas e ao mesmo tempo o conhecimento de quem conhece, através das capacidades desenvolvidas. Quanto mais
se conhece, mais nítida se torna a identidade pessoal e de um povo.
Consciência confusa, forma identidades
confusas e confuso também fica o caráter das
pessoas. Ao mesmo tempo que afirmam, negam
pela prática deformada dos valores.
Memória
Memória são saberes retidos evitando que
se percam, disponíveis para serem usados sempre que os interesses pessoais exigirem. Por isso é
que a consciência além de conhecimento é sentimento, emoções, vontade e imaginação.
O saber são experiências desenvolvidas
por seres sociais que a seu modo conseguiram
O camponês vive para alguém. Tem a sensação de que está sendo vigiado por alguém superior a ele, por isso recorre a ele sempre que
tem dificuldades na doença das pessoas e dos
animais, quando falta chuva ou quando quer alcançar algum objetivo.
A religião através de seus ritos transforma o
camponês também num ser místico, ligando a
matéria ao transcendente.
3ª) A música
Não é apenas o canto da natureza, as vozes dos zunidos dos insetos, das asas das abelhas que faz o camponês um ser místico, senão o
seu próprio canto. Canta-se a vida com todas as
fantasias e dores.
Estas três vertentes se ligam no momento
da organização da luta dos Sem Terra. O gosto pela beleza, a capacidade de esperar meses
e anos embaixo de lonas pretas, a alegria das
31
noites ao redor das fogueiras, a motivação de
participar das marchas etc. Por isso compreende-se porque os camponeses querem ver resultado concretos nas mobilizações, pois precisam visualizar para poder contemplar seus
próprios passos.
A Alienação
Há, porém um processo contrário a este
que leva a alienação e a dominação, onde o
ser humano se deixa dominar pela sua própria
obra criada.
Isto ocorre porque, na vontade de explicar
o desconhecido, os seres humanos formulam explicações e se tornam escravas da própria ignorância. Ao imaginar algo com características próprias, se submetem a ele como se existisse de fato
esta realidade, e se acomodam esquecendo-se que
é sua própria criação que os domina.
Após a criação desta obra os seres humanos se separam dela e não se reconhecem na obra
criada, sendo esta independente e superior a força humana.
Sendo assim os seres sociais fazem a sociedade e perdem o controle sobre ela, tornando-se
vítimas da própria criação, e aceitam pacificamente seu funcionamento.
Os seres humanos criaram a propriedade
privada e tornaram-se vítimas dela, por não poder limitar a quantidade de seu uso. Elegem os
governantes e tornam-se vítimas deles. Criam instituições de todos os tipos com leis, normas e valores e tornam-se vítimas delas. Mas lhes dão legitimidade por acreditar na sua superioridade e assim se tornam obedientes.
Na filosofia materialista aparece clara esta
divisão: divisão sexual e social do trabalho, divisão social das riquezas, divisão, divisão social das
trocas, divisão social do poder econômico, político, militar e religioso. Também haverá a divisão
social do saber. Surge portanto as classes sociais, onde uma tem mais poder que as outras.
Ocorre então a alienação de uma parte da sociedade pois não compreende como
funciona a sociedade que ela ajuda a manter e acaba se submetendo as normas estabelecidas porque o poder temporal lhes oprime no presente, e o poder espiritual promete
lhes punir no futuro.
32
Segundo M. Chauí existem três tipos de alienação. Social, econômica e intelectual.
A alienação social acontece quando os seres
humanos não se reconhecem como produtores das
instituições e se comportam dubiamente: ou aceitam passivamente tudo o que existe por ser natural
ou divino, ou se rebelam individualmente julgando
que podem mais que a própria realidade.
A alienação econômica acontece quando os produtores não se reconhecem como tal,
nem como condição nem pelos objetos produzidos. Justamente porque da forma como se
relacionam com a produção os trabalhadores
são uma mercadoria que produz outra mercadoria de outro gênero com preço diferente que
ninguém se preocupa pela sua origem. Os trabalhadores percebem que produzem coisas,
mas sentem que estas não lhes pertence pela
lógica do sistema de produção.
A alienação intelectual ocorre pela separação entre trabalho material e trabalho intelectual. Muitos intelectuais passam a acreditar que
o trabalho prático não depende de conhecimento, as idéias e o conhecimento é tarefa de quem
estuda. Não percebem que as idéias são reflexos
das coisas e das relações existentes na sociedade em que vivem e que devem ser usadas para
explicar esta mesma realidade, com o intuito de
transformá-la. As idéias não criam a realidade,
ao contrário, são criadas por ela, por isso quem
transforma a realidade transforma também a ignorância em conhecimento. Não pode haver separação entre pensar e fazer.
Na relação da formação da consciência
através da organização dos Sem Terra, há que entender que a espontaneidade não pode elevar o
nível de consciência, apenas pode levar a um sentimento de revolta, mas sem condições de estabelecer uma clara relação entre as causas e os efeitos dos problemas.
É preciso planejar a formação da consciência a partir de diretrizes e métodos corretos
que invertam as formas de alienação para não
incorrer no risco da alienação, agora com identidade popular.
Na medida em que a alienação econômica deve ser rejeitada é preciso buscar formas de
compreender as contradições da matriz produtiva, que está na consciência social das pessoas.
Este aprendizado vem a partir da convivência
com os objetos.
alienam. A estrutura social deve estar a serviço
da sociedade, mas para que isso aconteça deve
ser apropriada por ela. A delegação de poderes é
o primeiro sintoma de que uma grande maioria
participará menos. As estruturas não podem ser
estáticas. Quando isso acontece se burocratizam.
A delegação de poderes possibilita a diferenciação entre os membros da mesma organização.
Hierarquiza-se para eu alguns possam ter mais
poder que outros. Não se pode querer, porém que
se tenha uma organização anárquica, sem instâncias e coordenações, mas é preciso saber como
participam àqueles que ficam fora dessas esferas?
Que discussões fazem e que decipessoas, com sões tomam?
Há por exemplo uma preocupação muito
grande com a propriedade privada da terra e precisamos respeitar conscientemente esta vontade.
Há no imaginário familiar que a organização
fundiária é a grande fazenda ou o pequeno sítio.
O capitalismo não desenvolveu ainda grandes
propriedades cooperadas. Os trabalhadores assalariados na grande maioria das atividades são
sazonais e se diferenciam dos operários porque
podem ser substituídos a qualquer momento. Por
isso que a primeira coisa após a liberação da terra é dividi-la em lotes. Soma-se a isso a visão do
uso da mão de obra familiar.
O problema não está nestes
aspectos da propriedade, do tra- As
A produção da organização
balho e da moradia, mas sim na o tempo, podem
é também a produção de seu
compreensão de que é preciso organizar a convivência social a rejeitar aspectos organizador. Um não cresce sem
o outro. Quando uma organização
partir desta realidade que ajuda
impostos a
no melhoramento das condições
forma poucos quadros, é sinal que
partir do
está se burocratizando e que a esde vida, na elevação do nível de
nascimento
e
trutura e a teoria dessa organizaconsciência e no fortalecimento
ção está sendo assimilada por pouda mística. Tudo o que utilizamos
buscar sua
gente. Mesmo sendo um movipara produzir vai sendo relacioprópria forma de ca
mento de massas, a grande maionado pela consciência, que se orexistência.
ria está alienada da organização,
ganiza em forma de memória e se
participa dela, mas não sabe como
revelará toda vez que o ser portase compõe nem o que pretende alcançar. Com
dor deste conhecimento acumulado sentir neo tempo vem o cansaço acomodação e a desiscessidade dele. Por isso, não basta teorizar sotência. A mística foi embora.
bre a destruição da natureza, pelas derrubadas e queimadas, ou fazer longos discursos
Na parte intelectual referimo-nos à produsobre envenenamento da terra, dos rios e das
ção do pensamento da organização. O pensamenpessoas, se lentamente não for colocado para
to evolui na medida em que a prática evolui. As
substituir na consciência social os elementos
necessidades provocam os conhecimentos para
que possuam a equivalência, mas com valores
que se transforme em idéias e práticas.
diferentes.
Elabora-se mais quando as condições de
O capitalismo e o imperialismo agem dessa
crescimento são favoráveis. Em muitos casos as
forma quando querem deformar a consciência e
idéias não vingam porque a prática está deficiente.
a cultura. Se apropriam primeiro do que já existe
Enfim a consciência para se firmar precie transformam com uma nova tintura, mais persa passar a barreira da revolta e alcançar a linha
versa, com conteúdo diferente, que visa alienar e
da indignação consciente. Há pessoas que parnão conscientizar. Por isso é que de um dia para
ticipam das lutas por influência de alguma coioutro aparece uma nova dança, onde seus consa, com o tempo a abandonam. Neste caso o
sumidores não sabem de onde vem, nem
que havia era apenas ideologia, mas esta não
tampouco como foi produzida e porque, como
chegou a se transformar em consciência. Assim
qualquer mercadoria, mas a influência da moda
que surgiram outras idéias, substituíram as que
leva grandes massas a participar para não correr
haviam e passaram a conduzir este ser social
o risco de ser classificados de atrasados, conserpara outros objetivos.
vadores. Assim as mulheres são chamadas de “cachorras” e levam como elogio.
A imposição de algo criado é tão perverso
Na parte social, as formas organizativas poquanto o descontrole sobre o que é criado, por
dem alienar as massas como as estruturas sociais
isso que muitas coisas se transformam em mito.
33
Há dezenas de aspectos impostos a partir
do nascimento de uma pessoa, desde a religião
até as idéias de transformação da sociedade. As
pessoas, com o tempo, podem rejeitar tudo e buscar sua própria forma de existência.
Com a religião vemos muitas pessoas abandonarem a igreja depois que conquistam a terra.
Ás vezes é por desleixo, mas às vezes é conscientemente. Porque lhes deram de presente um Deus
já pronto que se confunde com aquele divulgado
pela Igreja. Mas há lugares e quem muitos religiosos são contra a ocupação e o raciocínio concluí
que: como pode alguém que quer levá-lo para o
céu não quer levá-lo para terra que é mais perto?
Na luta política também podemos chegar à mesma coisa: como podemos levar alguém ao socialismo se não aceitamos a liberdade de escolha de alguém quem quer produzir sua própria existência.
A conclusão, portanto é de que o dogmatismo e o sectarismo nunca construirão a liberdade
porque se agarram ao velho como algo estático.
Tudo aquilo que pensamos ser estático é apenas
um nome a mais que se dá à decadência.
Refletindo um pouco sobre
a história da música10
Jadir Bonacina
Ser Humano possui em sua vida sete “dimensões”: Física, Espiritual, Intelectual,
Social, Profissional, Afetiva e Familiar.
De todas as realizações do Homem, a Arte é a
que mais intrinsecamente permeia todas essas
dimensões da existência humana. E de todas as
Artes, a mais antiga é a Música.
O
A música é nossa mais antiga forma de expressão, possivelmente até mais antiga que a linguagem. De fato, a música é o Homem, muito
mais que as palavras, pois estas são símbolos
abstratos. A música toca nossos sentimentos mais
profundamente que a maioria das palavras e nos
faz responder com todo nosso ser.
Muito antes de o ser humano aprender a
pintar, esculpir, escrever ou projetar algo, já sabia
a produzir e apreciar os sons. Obviamente esses
sons seriam hoje considerados apenas ruídos, mas
considerando que “música é a arte de manipular
os sons”, o que o Homem primitivo produzia era
música, ou um “embrião” musical.
O “instrumento” musical mais antigo que
existe é a voz humana, Com ela, o homem aprendeu a produzir os mais diversos sons, e a agrupar
10
34
esses sons, formando as primeiras linhas melódicas. Depois inventou os instrumentos musicais,
que se multiplicaram e evoluíram ao longo da História, muitos destes desapareceram, e a Música
mudou muito em todo este tempo, mas o gosto do
ser humano pela música permanece intacto.
A música sempre foi uma parte importante
da vida cotidiana e da cultura geral do homem.
Hoje vê a Música sendo transformada em mero
produto pela “Indústria do Entretenimento”, e do
mercado. Muitas vezes ela se torna um simples ornamento que permite preencher noites vazias com
idas a consertos ou shows, organizar festividades
públicas, etc... As pessoas ouvem, atualmente,
muito mais música do que antes, mas esta representa, na prática, bem pouco, e possuí muitas vezes, não mais que uma mera função decorativa.
Mas em todo o Mundo ela ainda mantém vivo
seu caráter social, de transmitir sentimentos, de servir
de elo com a Divindade, de perpetuar a História, a
língua, a cultura e as tradições de cada povo. A música é a mais sublime das Artes, a arte que homens e
anjos compartilham, deve ser ensinada como uma
língua, e não como mera técnica e prática, sem vida.
Trechos extraídos do trabalho de conclusão do curso Realidade Brasileira. A música como instrumento político e ideológico
no processo de formação. Chapecó, 2007. Pág, 4 e 8.
A música
como instrumento político
na formação da consciência nos movimentos sociais
Música, este é um tema que parece ser
fácil ou mesmo óbvio, afinal, em nosso dia-adia convivemos com música, e não temos muita dificuldade em saber do que se trata, ligamos o rádio para ouvir um pouco de música
enquanto dirigimos, cantamos no chuveiro,
dançamos ao som de música, nas rodas de
chimarrão.
ralmente reúne melodia, poesias, as coisas da
nossa gente, do nosso dia-a-dia, que representa
as culturas do nosso povo.
Uma das questões que é um desafio para
os movimentos e também para toda a sociedade
é a Música para ser usada como instrumento político, que forma os sujeitos. Uma música cultu-
lho reafirmando a música como um forte instrumento político-ideológico que deve ser mais bem
potencializado em nossos movimentos sociais e
organizações populares.
O capitalismo se apossou da música como
ato de preencher um vazio que ele não consegue preencher na vida dos seres humanos, casado com isso vem as drogas, bebidas, cigarro,
maconha, dizendo que isso é fazer festa e diversão. As músicas desculturadas, sem conteúAs manifestações musicais são extremado, fazem com que os jovens ficam alienados a
mente diversificadas, um grupo de rock, de rap,
comprar roupas de marcas, ficam atrelados a
de pagode, um grupo de ciranda, de maracatu,
empresas que só vendem marketing, acabam sade reisado, o coral da igreja, o canto na proindo por ai usando chapéu de
cissão, a roda de amigos que cancowboy escutando cowtry amerita na mesa de bar, ao redor da
A música
cano, e dizendo que é música serfogueira, o violão na varanda da
não
deve
ser
taneja popular.
casa, a música de viola caipira,
considerada
são manifestações musicais difeNós devemos entender a
renciadas, produções populares, algo apenas para música como parte fundamental
ou da indústria cultural - todas
preencher nosso para a nossa vida, pois contribui,
são músicas. Mas suas característempo, mas sim e muito, na nossa formação.
ticas, conteúdos, Ideologias, são
A música está vinculada inpoliticamente diferentes.
para divulgar
no nosso dia-a-dia,
a nossa utopia, teiramente
Nesse processo de formação
pois dificilmente lemos um livro,
de novos seres humanos, de sujei- construir e passar
mas escutamos cinco músicas
tos de uma nova história se tem
por dia. Essa música que escua mensagem
muitos desafios travados na formatamos quase sempre vem preene a realidade
ção da consciência do novo homem
cher um tempo que nos sobra
da nova mulher, que faz a luta pelos
da classe
para descanso, neste momento
seus direitos, e que também busca
o capitalismo, a indústria musitrabalhadora.
a sua dignidade, corre em busca de
cal se aproveita para entrar nas
seus sonhos e de uma vida melhor,
nossas mentes através da música introduzine mais humana.
do a sua ideologia com valores do individualismo, da desvalorização da mulher e do hoEsses seres humanos que travam uma luta
mem também, em especial desprezando os
de classes, ideológica, contra o modelo capiCamponeses, e o seu modo de vida.
talista implantado, que faz do ser humano uma
máquina para trabalhar a mando de alguns que
No entanto a música não deve ser considese utilizam do estado para repreender, e atarada algo apenas para preencher nosso tempo,
car as organizações e aqueles que querem consmas sim para divulgar a nossa utopia, construir e
truir um mundo diferente, sem exclusão, com
passar a mensagem e a realidade da classe trabamais dignidade.
lhadora. Nesse ponto de vista finalizo esse traba-
35
Violar é preciso
Nina Fideles
A valorização da cultura caipira
na construção de um projeto popular para o país11
centenária figueira, símbolo do Sítio
Pau D´Alho, em Ribeirão Preto, interior paulista, serviu de inspiração
há quatro anos, quando abrigava mais uma
roda de viola, para a idealização de um encontro de violeiros. Mas deveria ser um encontro diferente. Um espaço onde violeiros e
violeiras pudessem tocar e trocar experiências
e conhecimento, sem competição ou cachê.
Não seria um festival, mas um encontro entre
amigos e amigas, que se reconhecem na arte
de tocar viola e de levar adiante a cultura caipira brasileira. Estava definido o formato do
Encontro Nacional de Violeiros.
A
No ano seguinte, em 2003, aconteceu a primeira versão do encontro, com cerca de trinta
apresentações em apenas um dia de festa. Em
2004, na segunda edição, mais artistas. Um dia
foi pouco para tantas apresentações, o que fez com
que a organização optasse por dois dias de festa
na terceira edição, em 2005.
Este ano, confirmando as expectativas,
mais de 100 violeiros, violeiras, duplas, orquestras e grupos de folias de reis passaram pelo
palco montado em frente à grande figueira.
Apesar da chuva no primeiro dia, o IV Encontro Nacional de Violeiros foi prestigiado por
cerca de 15 mil pessoas, entre militantes do
MST e apreciadores de boa música de todos
os cantos do Brasil.
Construção
Uma forma diferente de construção do
Encontro dos Violeiros foi colocada em prática este ano. Militantes vindos de todas as regionais do MST no estado de São Paulo participaram de oficinas com o objetivo de contribuir em alguma área. A oficina de expressão
corporal preparou os participantes da mística
de abertura, que contou com uma apresentação de dança e percussão, comandada pelos
participantes da oficina de tambor. A ornamentação ficou por conta da oficina de bonecos,
36
11
que construiu um modelo de São Francisco de
Assis, homenageado na festa. Os instrumentos construídos pelos participantes da oficina
de fabricação de viola ficaram expostos na galeria de arte, junto com os quadros de Blanco
Castro, autor do desenho do cartaz do encontro. A oficina de comunicação ficou responsável pela produção de fotos e vídeos, documentando as oficinas e as apresentações.
Apresentar as milhares de maneiras possíveis de lidar com a viola sempre foi uma preocupação da organização do encontro. Cada violeiro
tem a sua mão e, claro, seu estilo. Tudo cabe na
proposta do Encontro, desde as tradicionais duplas, passando por violeiros e violeiras solo, orquestras e grupos modernos. Toda esta diversidade prova que existe cada vez mais gente tocando
viola no Brasil. E como nem só de viola vive a
cultura caipira, o Encontro abriu espaço para manifestações populares de música e dança, como a
Folia de Reis e a Capina.
Apresentada por um grupo de senhores
vindos de Jequitibá, em Minas Gerais, a Capina chamou a atenção do público por usar enxadas em sua dança e também pelo discurso
do líder do grupo. Nelson Jacó afirmou que seu
grupo é o último que ensaia e apresenta a dança em sua região. Para ele, a dispersão das manifestações culturais dos camponeses se dá pelo
avanço implacável do latifúndio, realidade em
todos os cantos do Brasil. “Se nós não dançarmos, ninguém mais dança”.
Trincheira
Para Edvar Lavratti, da direção estadual
do Movimento em São Paulo, realizar o Encontro Nacional de Violeiros em Ribeirão Preto é
também um posicionamento político. Capital do
agronegócio, a cidade e arredores estão tomados pelas grandes propriedades monocultoras
de cana-de-açúcar. A cidade é também rota
de passagem do gênero conhecido como
country, com suas roupas de cowboy e músi-
Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=2379
cas pasteurizadas no estilo dos grandes rodeios, como a festa do peão de Barretos. “Nada
disso é nosso”, defendeu Lavratti.
trumento essencialmente brasileiro, já que foi em
terras brasileiras que suas potencialidades foram
ampliadas e diversificadas.
O violeiro e professor Ivan
João Ba, artista de 74
Um encontro entre anos e 53 de estrada, concorVilella se diz preocupado quando afirma que antigamente, toda e defende que sua música é
amigos e amigas,
das as manifestações culturais
que se reconhecem inspirada pelos pequenos eleestrangeiras que chegavam ao
mentos da natureza, como o
na arte de tocar
Brasil não eram puramente astrabalho do bicho da seda, por
viola e de levar
similadas, mas se fundiam com
exemplo. João, que não é proadiante a cultura
nosso repertório. A diferença é
priamente violeiro (seu instruque hoje está cada vez mais dimento é o violão) mas sim um
caipira brasileira.
fícil que a mistura aconteça, pois
cantador, participou do EnconEste é o perfil do
essas referências nacionais estro pela primeira vez, trazido
Encontro Nacional por parceiros que já conhecitão se perdendo. A missão de
de Violeiros.
quem procura preservar as
am a festa.
raízes culturais brasileiras hoje
Para o ano seguinte, fica a certeza de que
vai além de uma atitude puramente xenófoba,
o V Encontro Nacional dos Violeiros será ainda
de negar o que vem de fora, mas sim garantir
maior em 2007, com a presença de mais violeiros,
que não haja apenas assimilação, mas uma fuansiosos por apresentar sua arte em um espaço
são com nossos elementos.
bonito e festivo. Fica também a certeza, de que
Para Vilella, por mais que a cultura country
apesar de não estar presente nos grandes meios
esteja presente na região, muita gente faz questão
de comunicação, a arte da viola sobrevive na bede ir ao encontro e assistir às apresentações, o
leza do trabalho de velhos e novos violeiros. O
que explica o grande público. O violeiro afirma
que prova que a valorização da cultura popular
que apesar de ter sido trazida para o Brasil duestá estritamente ligada à construção de um prorante a colonização portuguesa, a viola é um insjeto popular para o Brasil.
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Infância,Formação e Conscientização:
O que é a nossa Ciranda?
Gisele Antunes Rocha
alvez a primeira lembrança que venha
em nossa mente ao falarmos em Ciranda é da tradicional cantiga infantil que
assim cantávamos: “ciranda, cirandinha, vamos
todos cirandar, vamos dar a meia-volta, volta e
meia vamos dar [...]”.
T
do nas mãos dos que já estão dançando. Tanto
na hora de entrar como na hora de sair, a pessoa
pode fazê-lo sem o menor problema. Quando a roda
atinge um tamanho que dificulta a movimentação,
forma-se outra menor no interior da roda maior.
Os participantes são denominados de
cirandeiros e cirandeiras, havendo também o
mestre, o contra-mestre e os músicos, que ficam
no centro da roda. Voltados para o centro da
roda, os dançadores dão-se as mãos e balançam
o corpo à medida que fazem o movimento de
translação em sentido anti-horário. A
“É uma dança típica das praicoreografia é bastante simples: no
Ciranda é a
as que começou a aparecer no litoral
compasso da música, dá-se quatro
norte de Pernambuco. [...] É muito
participação passos para a direita, começando-se
comum no Brasil definir ciranda como
ativa da criança com o pé esquerdo, na batida forte
uma brincadeira de roda infantil, poreconhecê-la do bombo, balançando os ombros de
rém na região Nordeste e, principalno sentido da direção da roda.
como sujeito leve
mente, em Pernambuco ela é conheHá cirandeiros que acompanham
cida como uma dança de rodas de
histórico que esse movimento elevando e baixanadultos. Os participantes podem ser
do os braços de mãos dadas. O
está sendo
de várias faixas etárias, não havenneste mundo bombo ou zabumba, mineiro ou
do impedimentos para a participação
ganzá, maracá, caracaxá (espécie de
em constante chocalho), a caixa ou tarol formam o
de crianças também.
construção.
instrumental mais comum de uma ciHá várias interpretações para
randa tradicional, podendo também
a origem da palavra ciranda, mas
ser
utilizados
a cuíca, o pandeiro, a sanfona ou
segundo o Padre Jaime Diniz, um dos pioneialgum instrumento de sopro.
ros a estudarem o assunto, vem do vocábulo
espanhol zaranda, que significa instrumento de
O mestre cirandeiro é o integrante mais impeneirar farinha e que seria uma evolução da
portante da ciranda, cabendo a ele “tirar as canpalavra árabe çarand.
tigas” (cirandas), improvisar versos, tocar o ganzá
e presidir a brincadeira. Ele utiliza um apito penA ciranda, assim como o coco em Pernamdurado no pescoço para ajudá-lo nas suas funbuco, era mais dançada nas pontas-de-rua e nos
ções. O contra-mestre pode tocar tanto o bombo
terreiros de casas de trabalhadores rurais, parquanto a caixa e substitui o mestre quando netindo depois para praças, avenidas, ruas, resicessário. As músicas podem ser as já decoradas,
dências, clubes sociais, bares, restaurantes. Em
improvisadas ou até canções comerciais de doalguns desses lugares passou a ser um produto
mínio público transformadas em ritmo de cirande consumo para turistas.
da. Pode-se destacar três passos mais conheciÉ uma dança comunitária que não tem predos dos cirandeiros: a onda, o sacudidinho e o
conceito quanto ao sexo, cor, idade, condição
machucadinho. Alguns dançarinos criam passos
social ou econômica dos participantes, assim como
e movimentos de corpo, mas sempre obedecennão há limite para o número de pessoas que dela
do a marcação que lhes impõe o bombo. Não há
podem participar. Começa com uma roda pequefigurino próprio. Os participantes podem usar
na que vai aumentando, a medida que as pessoas
qualquer tipo de roupa e a ciranda é dançada
chegam para dançar, abrindo o círculo e segurandurante todo o ano.
Outra associação é a dança conhecida
como Ciranda. Segundo o site http://
www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.p/
resentation.NavigationServlet?publicationCode=
16&pageCode=300&textCode=92 , a ciranda:
41
A partir da década de 70 as cirandas começaram a ser dançadas em locais turísticos do
Recife, como o Pátio de São Pedro e a Casa da
Cultura, modificando um pouco a dança que se
tornou mais um espetáculo. O mestre, contra-mestre e músicos saíram do cento da roda para melhor se adaptarem aos microfones e aparelhos
de som, passando também a haver limite de tempo para a brincadeira. Compositores
pernambucanos como Chico Science e Lenine
enriqueceram seus repertórios, utilizando a ciranda nos seus trabalhos”.
Após conhecermos um pouco sobre outros
significados encontrados para a palavra ciranda,
retomemos a questão inicial apresentada neste texto: o que é a nossa Ciranda?
A origem da Ciranda no MAB foi para permitir a participação das mães e outros familiares das crianças nos encontros. Assim, enquanto os adultos participam das discussões e pensam as intervenções necessárias para um novo
projeto de sociedade, as crianças encontram no
mundo lúdico um momento de descontração e
também de formação.
Ciranda é a participação ativa da criança
reconhecê-la como sujeito histórico que está sendo neste mundo em constante construção. Diferente do comum, quando à criança é atribuída a
esperança do futuro, acreditamos que nossos meninos e nossas meninas já atuam política e conscientemente no presente. Seja através de brinca-
deiras, de jogos ou histórias, as crianças interagem
com o mundo, buscam entendê-lo e expressam as
suas opiniões sobre ele. Desta forma, apresentam
a sua visão para aquilo que as rodeia e também
as pistas das mudanças necessárias para alcançarem seus sonhos, anseios e desejos.
Relembrando o movimento que muitos de
nós fazíamos ao brincar da cantiga de roda “Ciranda, Cirandinha” e também ao observar ou dançar a Ciranda, podemos associar tal movimento
que, intencionalmente, é desenvolvido nestes momentos de formação da infância. As mãos dadas
representam à união, o entrelaçamento dos dedos
é como o emaranhado de idéias que se juntam
para fazer girar a história.
É nesse movimento incessante de ir e vir,
viver, analisar e retomar a vivência, que está as
possibilidades de mudanças sociais. Tudo que é
novo nunca é novo de fato, sempre guarda algo
do velho, vem potencializado, renovado... Assim
são nossas crianças, carregam a história do seu
povo e possuem condições de tecer contribuições
para que a vida vá em frente, mesmo que em alguns momentos seja necessário dar “meia-volta e
volta e meia vamos dar”.
A cada criança que chega para compor a
ciranda, o movimento vai sendo potencializado
pelos novos membros e ao ritmo da formação para
a luta, nossos meninos e nossas meninas não são
só o amanhã, mas reafirmam o seu compromisso
com a transformação social desde o hoje.
Jornada dos Sem Terrinha12
ma das cenas mais bonitas que já vi
foi uma “mística” realizada pelos Sem
Terrinha no centro de treinamento no
norte do Espírito Santo. Crianças vindas dos
acampamentos e assentamentos, bem cuidadas,
sendo educadas, aprendendo desde cedo a pensar em valores comunitários e solidários, muito
ao contrário de nossa juventude tantas vezes alienada e egocêntrica.
U
12
42
Hoje, duzentos Sem Terrinha ocupavam
uma praça aqui em Juazeiro, reivindicando
escola. Depois me disseram que jornada é nacional. Fiquei pensando como me comportaria, como pai, vendo meus filhos debaixo da
lona preta e tendo que participar de manifestações, desde a infância, para reivindicar o
direito de estudar. É o que experimentam
aqueles pais e crianças.
Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4346. Reflexões feitas por Roberto Malvezzi (Gogo). Coordenador nacional da CPT. 11/10/2007
Um deles é o Vavá, que conheci ainda adolescente nas Comunidades Eclesiais de Base. Hoje
casado, pai, liderança do movimento, estava cuidando das crianças enquanto uma comissão de
lideranças e crianças era recebida pelo prefeito.
Há muita gente digna nesse país.
O ódio de parcela da elite brasileira contra os
Sem Terra não se arrefece. Pelo contrário, parece
que cresce. Entretanto, abandonadas por todas as
instituições do Estado, aquelas crianças só tem alguma esperança na vida porque existe um movimento que pensa nelas, que as organiza, que lhes dá
uma esperança consistente, na terra e no estudo.
Um país que deixa suas crianças entregues à lona preta, quando não ao tráfico, não
pode ter futuro. O único futuro vem das entranhas de seus próprios corações. Marginalizados,
agredidos, perseguidos, carregam o orgulho da
consciência esclarecida, conhecem a sociedade em que vivem, combatem suas desigualdades, propõem uma outra sociedade onde todos
possam ter lugar...E escola.
O “povo” Sem Terra é “aquele que foi ao
inferno e levou do demônio um tapa na cara”,
costuma dizer João Pedro Stedile. Debaixo das
lonas, nas praças, nas escolas, as crianças
aprendem a percorrer os caminhos sofridos de
seus pais. Porém, prosseguem com a cabeça
erguida, para desespero de quem preferiria que
não existissem.
Brinquedos13
Crônica - Moacyr Scliar
B
rinquedos atendem à necessidade que temos de usar a imaginação como uma forma de dar vazão à fantasia, Moacyr Scliar.
Foi lançada no mercado brasileiro uma boneca absolutamente prodigiosa, capaz de falar
dezenas de frases e de mudar a expressão facial
no diálogo com a sua pequena dona. A boneca
custa por volta de R$ 800 e, obviamente, será a
sensação das compras natalinas, dividindo a classe média em dois grupos, aqueles (poucos) que
podem comprá-la e aqueles que vão reclamar do
absurdo que representa uma oferta dessas. E aí
emerge uma questão importante: o que é, mesmo,
um brinquedo? O que significa um brinquedo para
uma criança ou para um adulto?
Brinquedo é coisa antiga: na Europa são
numerosos os museus que conservam bonecas e
outros objetos com os quais as crianças brincavam num passado não raro remoto. Brinquedos e
histórias atendem a necessidades infantis, e de um
modo similar: em ambos os casos trata-se de usar
a imaginação como uma forma de dar vazão à
fantasia. E precisamos dar vazão às nossas fan-
13
Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br
tasias. Guardadas dentro de nós, elas nos prejudicam, nos intoxicam. Quando uma menina repreende sua boneca, está deixando de repreender
a si própria, com óbvios benefícios.
O que a tecnologia está fazendo é prever
esta interação, é fazer dos brinquedos entidades cada vez mais autônomas. O videogame é
um exemplo: ali está o bandido, armado, desafiando o jogador que depende de sua habilidade para eliminá-lo. Mas e quando a tecnologia
não dispunha de tais recursos? Como é que as
coisas funcionavam?
Penso na minha própria infância, uma infância pobre (ainda que não indigente: fome não
passávamos) vivida no bairro do Bom Fim. Não
lembro, até certa fase de minha vida, de ter tido
um único brinquedo comprado em loja. Brinquedos, a gente fazia. No meu caso, eu contava
com uma facilidade: a fábrica de móveis do meu
tio. Eu usava os pedaços de madeira que sobravam para fazer os meus brinquedos. E que
brinquedos eram esses? Brinquedos de guerra,
naturalmente, semelhantes àqueles que a gente
43
via nos filmes. Uma pistola automática, por exemNotem: não estou dizendo que antigaplo. Ou um avião. Ou um destroyer. Cujos canhões
mente era melhor, uma frase que, no meu
eram pregos. A corrida bélica naquemodo de ver, deveria ser abolida,
la época era resolvida com muita simporque, além de não ser verdadei“Brinquedos
plicidade: quanto mais pregos num
ra, não ajuda as pessoas em
atendem à
navio de madeira, maior o poder de
nada. Os brinquedos de hoje infogo. E pregos não eram muito caros. necessidade que troduzem a criança à tecnologia,
Os modernos traficantes de armas cer- temos de usar a e tecnologia em nosso mundo é
tamente nos invejariam.
palavra-chave.
imaginação
Dá para comparar aqueles brinMas a imaginação é mais
como uma
quedos com os de agora? Não, não
importante ainda. Imaginação
forma de dar
dá. Eram coisas simples, toscas mesmuda a nossa vida. Se a imagimo. Diferente era a nossa imaginação. vazão à fantasia” nação transforma um pedaço de
Moacyr Scliar
Porque ela era muito mais mobilizamadeira com pregos num navio
da, muito mais exigida. Fico me perpoderosamente armado, então,
guntando se estes brinquedos não ajudaram a que
seguramente estamos prontos para conquiseu me tornasse um escritor. Acho que sim.
tar o mundo.
Sem Terrinha aprendem e ensinam
na Escola Paulo Freire14
lautas, cirandas, capoeira, argila, música, balangandãs, pernas de pau, chocalhos. As brincadeiras da Escola
Itinerante Paulo Freire, montada para o 5º Congresso Nacional do MST, refletem a diversidade
cultural e o afeto com as crianças, os mais de
600 Sem Terrinha que são acolhidos por cerca
de 400 educadores e educadores de todos os
estados brasileiros. A baiana Andreza Gonçalves dos Santos, de 10 anos, abre um sorriso
enorme quando se diz sem-terra. “Quando a gente mora na cidade, não consegue o que a gente
quer. Agora, tudo o que eu quero ter eu estou
conquistando”, afirma.
F
“Esperamos que a criança seja um sujeito,
que tenha voz ativa na sociedade”, explica
Cristina Vargas, do Setor de Educação Nacional
do MST. Cícero da Silva Júnior, do Pernambuco,
é um dos responsáveis pela brigada que cuida
44
14
Matéria feita por Joana Tavares de Brasília (DF). 13/06/2007
das crianças de 09 e 10 anos. Na manhã de terça-feira (dia 12), ele conversou com os educandos
sobre o nome da escola: “Paulo Freire foi um
grande revolucionário, que trabalhava a educação com o intuito de libertar a classe operária”.
No processo contínuo de ensinar-aprender,
Júnior conta que aprendeu novas brincadeiras
de diferentes cantos do país.
História
Em 2007, são celebrados 10 anos de morte de Paulo Freire. O ano marca ainda os 10
anos de ciranda infantil dentro do MST. E em
2006 foi a Escola Itinerante que fez seu décimo aniversário. “A proposta de Escola
Itinerante foi idéia dos próprios Sem Terrinha,
que reivindicaram seu direito de ter uma escola perto de casa, que acompanhasse a dinâmi-
ca de suas famílias”, contextualiza Paola Pereira,
do Distrito Federal. A primeira experiência de Escola Itinerante foi no Rio Grande do Sul e atualmente ela é reconhecida em seis estados, mantendo sua concepção de educação ligada à realidade das crianças.
capacitação para 60 educadores e educadoras. Nesta oficina, depois multiplicada nos
estados, foi feito um planejamento diário das
atividades, dividido por faixa etária. São sete
brigadas, que contemplam as crianças de 0
a 11 anos de idade.
Foi justamente essa concepção que encantou Eterilda da Silva Santos, da Bahia. Nove
anos atrás, ela substituiu uma professora em um
acampamento. A professora voltou, Etelvina não
saiu mais e hoje coordena uma regional do seu
Estado. “A educação do MST é muito diferenciada daquela feita nas cidades. Aqui a gente se
dedica, acompanha as crianças. Na cidade
muitos professores dão aula só pelo dinheiro,
no movimento a gente trabalha por amor”, diz.
A proposta da Escola é trabalhar com
as crianças os temas do 5º Congresso, com
uma linguagem próxima e lúdica. Uma das
oficinas da Escola trabalha a reforma agrária, a partir da concepção dos Sem Terrinha.
“É uma forma de ajudar as pessoas que não
têm onde morar e não têm o que comer”, diz
um. “É uma luta que todos nós fazemos”, completa outro. Krisleyde Travassas, do Pernambuco, explica que a idéia é discutir temas geradores, como ocupação e reforma agrária.
Estudante de pedagogia, ela começou a participar do setor há três anos e diz que mudou
sua percepção sobre a relação com as crianças pequenas. “A gente aprende a respeitar
seu espaço, seu momento. Se tem uma palavra que aprendi nesses últimos nesses três
anos é construção”. Mãe de uma Sem Terrinha
de 3 meses, ela conta que se sente realizada
como profissional e como mãe e que sua experiência no setor lhe mostrou outras formas
de educar sua filha 15.
Durante o Congresso, Eterilda se juntou a
cozinheiros e cozinheiras dos estados para contribuir na cozinha da escola. Todos os dias, as crianças fazem um lanche pela manhã e outro pela tarde. A Escola conta também com uma equipe de
saúde, composta por médico, enfermeiras e auxiliares, da Secretaria de Saúde do Distrito Federal.
Uma escola com princípios
Em maio deste ano, foi realizado um
seminário sobre a infância e uma oficina de
AterraéosentidodavidaparaosGuarani
Fotógrafo mostra a força da cultura indígena na
luta contra a expansão do agronegócio no MS16
ara o povo guarani, a terra é o sentido da vida. É a mãe, a conexão com
o Criador, e o local sagrado. É nas
“casas de reza” que fazem seus rituais, mantêm a transferência da sabedoria milenar para
os mais jovens.
P
15
16
A terra não tem função de acúmulo. Não é
para ser usada para monocultura, venda do excedente e ampliação para latifúndio. Quando tiramos a terra dos Guarani, tiramos literalmente o
chão dos pés deles. Ficam sem norte e sem reza.
Perdem a noção do sentido de vida, se matam.
Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=3694
Matéria feita por João Roberto Ripper do Rio de Janeiro (RJ). Publicada no Jornal Brasil de Fato, de 28 de abril a 4 de maio
de 2005, pág 16.
45
se mata”, resume o cacique e pajé Marcos Veron,
Como não acumulam, não lutam e não
68 anos, da Aldeia Takuára.
guerreiam, diversas teses tentaram decifrar a
“passividade” desse povo. Mas, no Mato Grosso
O Mato Grosso do Sul é o Estado que
do Sul, a década de 90 foi uma virada de repossui a segunda maior população indígena do
cuperação cultural e de retorno à
Brasil: são cerca de 56 mil índios
terra; lideranças indígenas partiram
divididos entre várias etnias:
A terra
para o confronto. O resultado foi a
Guarani Kaiowás e Nandeva,
recuperação de muitas áreas sagraé a mãe,
Guató, Terena, Kadiuei, Ofaié. Há
das, com vestígios de casa de reza,
a
conexão
200 anos, os Guarani chegaram a
mas sobretudo o uso do argumento
ocupar 25% do Mato Grosso do Sul,
irrefutável sobre a recuperação de com o Criador,
possuindo cerca de 8,7 milhões de
algo que, um dia, lhes pertenceu de
e o local
hectares. Atualmente, formam a
fato e permaneceu sendo espiritusagrado
maioria da população indígena,
almente deles.
principalmente os Kaiowá, que se
distribuem por 28 pequenas áreas indígenas
As crianças guarani do Mato Grosso do Sul
demarcadas pelo governo.
morrem semanalmente, por desnutrição, por falta
de terras. É um trabalho de limpeza étnica.
O processo de criação das reservas indígenas no Mato Grosso do Sul teve início no final da década de 20, quando os Guarani coOs rituais
meçaram a ser expulsos de suas terVejamos como são os rituais
ras e a ser usados como escravos
No alto,
desse povo. No alto, as estrelas paem fazendas de cultivo de ervaas estrelas
recem astros leves e sensuais, exermate. O governo brasileiro, nas décendo a dança da solidariedade no parecem astros cadas de 30 e 40, removeu os indícéu, voluntárias em manter o equileves e sensuais, genas para oito reservas demarcalíbrio, a beleza e a harmonia com a
exercendo a das, de pequenos espaços – cerca
lua, nas noites que iluminam as dande 1,5 hectare por pessoa. Atualças e os cânticos das aldeias
dança da
mente os índios ocupam menos de
Kaiowá. Cá na terra os índios cansolidariedade um por cento das antigas terras.
tam, dançam e brincam, até o amano céu,
Hoje, o Mato Grosso do Sul é
nhecer quando, então, se despedem
o
Estado
com a maior concentração
do espetáculo, como as estrelas,
voluntárias
fundiária do Brasil. Segundo dados
para que o sol seja novamente o
em manter
do Instituto Brasileiro de Geografia
dono da festa.
o equilíbrio, e Estatística (IBGE), 50 mil proprieMas não foi sempre assim.
dades rurais detêm, pelo menos, 20
a beleza
Há mais de 20 anos essa nação
e a harmonia milhões dos 35 milhões de hectares.
indígena sofria com a freqüência
Segundo o Conselho Indigecom que seus jovens guerreiros e
com a lua
nista Missionário (Cimi), existem
mulheres se suicidavam. Desde
ainda cerca de quatro mil Guarani Kaiowá
1986, foram registrados 310 casos de suicídio, a maioria de moças e rapazes, sem horidesaldeados nas periferias das cidades, às marzontes ou perspectivas.
gens de rodovias, sobrevivendo do artesanato e
subempregados em fazendas. Entretanto, são
Mas o retorno dos indígenas às suas antipovos que ainda mantêm a noção do seu terrigas terras vem reduzindo drasticamente os casos.
tório sagrado, que se estende ao norte, até os
rios Apa e Dourados, e ao sul, até a Serra de
“Hoje, o Kaiowá ou luta ou morre. Onde
Maracaju e afluentes do Rio Jejuí17.
ele conquista sua terra sagrada de volta, ele não
17
46
Todos esses aspectos estão documentados nas fotos da pagina do Brasil de Fato desta matéria.
Carta da terra18
Conferência mundial dos povos indígenas sobre
Território,meio ambiente e desenvolvimento - rio-92
Apoio
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Comitê Intertribal - Memória e Ciência Indígena
Histórico
Declaração da Aldeia Kari-Oca
Nossos antepassados sempre nos ensinaram
a sermos verdadeiros e corajosos, quando queremos vencer desafios e sermos respeitados. Por isso,
quando a ONU decidiu realizar a RIO- 92, vários
indígenas componentes do Comitê Intertribal - 500
Anos de Resistência, responsável pela articulação
no Brasil, idealizaram e decidiram concretizar a
Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre
Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Nós, Povos Indígenas das Américas, Ásia,
África, Austrália, Europa e Pacífico, unidos em só
voz na Aldeia Kari-Oca, expressamos a nossa gratidão coletiva aos povos indígenas do Brasil.
Não bastava apenas ajuntar nossos líderes,
era preciso que a nossa voz fosse ouvida pelo homem moderno, preocupado com seu futuro. Assim, rebuscando a luta de outros líderes do passado e a iniciativa de 15 estudantes-índios que, em
1980, desafiaram critérios pré-estabelecidos e criaram o primeiro movimento político no Brasil, a
UNIND (União das Nações Indígenas), era preciso também na ECO- 92 arriscar para que pudéssemos caminhar com nossas próprias pernas.
Então sete povos do Alto Xingu - MT e o povo
Tukano do Amazonas construíram a Kari-Oca, um
templo para abrigar a sabedoria indígena e traduzir
um verdadeiro parlamento para a Terra. Uma arquitetura e engenharia que não se aprende nas escolas
urbanas, mas certamente numa longínqua aldeia na
selva. Plantada como folclore, mas pra nós, um código de vida jamais decifrado pelo homem branco.
Um criminoso incêndio, porém, acabou com a
Kari-Oca, mas não acabou com o sonho indígena de
termos a terra assegurada, de viver com dignidade e
de contribuir com o bem estar da humanidade, que
vive graves crises sociais e ambientais. Por isso, a
Declaração da Kari-Oca e a Carta da Terra são documentos históricos que devem ser registrados como
documentos oficiais pelos governos e pela sociedade.
Nós consideramos assim, afinal foi inspirada na nossa magia de bem viver e na íntima relação espiritual,
cultural e física com a natureza, um cotidiano que
nos permitiu resistir às várias pressões de “integração”
e “desenvolvimento consumista”.
Marcos Terena - Coordenador Geral
18
Inspirados por este encontro histórico, celebramos a unidade espiritual dos povos indígenas
com a Terra e nossos antepassados.
Continuamos construindo e formulando nosso
compromisso mútuo de salvar a nossa mãe Terra.
Nós, Povos Indígenas, apoiamos como nossa responsabilidade coletiva para que nossas mentes e nossas vozes continuem no futuro, a seguinte
Declaração:
Nós, Povos Indígenas, caminhamos em direção ao futuro nas trilhas dos nossos antepassados. Do maior ao menor ser vivente, das quatro
direções do ar, da água, da terra e das montanhas, o Criador colocou a nós, povos indígenas,
em nossa terra, que é nossa mãe. As pegadas de
nossos antepassados estão permanentemente gravadas nas terras de nossos povos. Nós, Povos Indígenas, mantemos nossos direitos inerentes à
autodeterminação. Sempre tivemos o direito de
decidir as nossas próprias formas de governo, de
usar nossas próprias leis, de criar e educar nossos
filhos, direito a nossa própria identidade cultural
sem interferências. Continuamos mantendo nossos direitos inalienáveis as nossas terras e territórios, e a todos os nossos recursos do solo e do
subsolo, e das nossas águas.
Afirmamos nossa contínua responsabilidade
de passar todos esses direitos às gerações futuras.
Não podemos ser desalojados de nossas terras. Nós, Povos Indígenas, estamos unidos pelo círculo da vida em nossas terras e nosso meio ambiente. Nós, Povos Indígenas, caminhamos em direção ao futuro, nas trilhas dos nossos antepassados!
(Assinado na Aldeia Kari-Oca, Brasil,
em 30 de maio de 1992)
Texto disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/et000018.pdf
47
Carta da terra - Alguns destaques:
[...]
15. Os governos não devem obrigar-nos a aceitar
mudanças de localização de nossas populações.
16. Devemos manter nosso direito às formas tradicionais de nossas vidas.
[...]
18. Devemos manter nosso direito de não sermos
pressionados pelas multinacionais, sobre nossas vidas e nossas terras. Todas as incorporações que violarem nossas terras nativas devem ser denunciadas às representações da
ONU a nível internacional.
[...]
31. Os Povos Indígenas foram colocados pelo Criador na Mãe Terra. Nós pertencemos à Terra,
não podemos ser separados de nossas terras
e de nossos territórios.
32. Os nossos territórios sempre viveram total e
em permanente relação vital, seres humanos
e natureza. Estar neles representa o desenvolvimento de nossas culturas. Nossa propriedade territorial deve ser inalienável.
33. Os direitos inalienáveis dos Povos Indígenas
sobre a Terra e os recursos existentes reafirmam a necessidade de termos assegurado sua
posse e sua administração feitas por nós mesmos, e isso deve ser respeitado.
34. Ratificamos nossos direitos à demarcação de
nossos territórios tradicionais. A definição de
“território” deve incluir o espaço (o ar), a terra
e as águas, como tradição especial indígena.
35. Onde os territórios indígenas tenham sido degradados deve-se facilitar recursos para restaurálos. A recuperação desses territórios é um dever
dos estados nacionais que não pode tardar.
Dentro deste processo de recuperação, a compensação da dívida histórica ecológica deve ser levada
em conta. Os estados nacionais devem revisar em profundidade suas políticas agrárias, minerais e florestais.
[...]
38. Se um governo não indígena, indivíduos ou
corporações obrigarem o uso de nossas terras, deve ser estabelecido um acordo formal e
as condições. Nós, os Povos Indígenas, devemos ter a segurança de uso de nossas terras
para o bem comum e a compensação para
nossas populações.
48
39. As fronteiras tradicionais de nossos territórios, incluindo as águas, devem ser respeitadas.
[...]
42. Os povos indígenas não devem ser expulsos de
suas terras para dá-las aos colonizadores ou
para outras formas de atividade econômica.
[...]
58. As florestas têm sido destruídas em nome do
“desenvolvimento econômico”, ocasionando a
destruição do equilíbrio ecológico. Essas atividades não beneficiam o ser humano, os animais do campo, das águas e do mar. Recomendamos que as concessões e os incentivos às
madeireiras, mineradores e garimpeiros sejam
evitados pois nossa experiência prevê agressão
ao meio ambiente e aos recursos naturais.
[...]
61. Os povos indígenas devem ser consultados
para quaisquer trabalhos e projetos em seus
territórios. Antes do consentimento ser obtido,
as pessoas indígenas devem estar totalmente
envolvidas nas decisões. A eles devem ser dadas todas as informações a respeito do projeto e seus efeitos. Do contrário, será considerado um crime contra os Povos Indígenas. A pessoa ou as pessoas que violarem isto devem
ser julgadas em um tribunal mundial com o
controle das pessoas indígenas designadas
para esse propósito, que pode ser similar aos
julgamentos feitos depois da Segunda Guerra
Mundial contra crimes à humanidade.
[...]
64. Qualquer estratégia de desenvolvimento deve
priorizar a eliminação da pobreza, a garantia relativa ao clima, a administração sustentável dos
recursos naturais, a continuidade das sociedades
democráticas e o respeito às diferenças culturais.
[...]
67. Reconhecendo a relação harmônica que existe entre os povos indígenas e a natureza, os
modelos de desenvolvimento ambiental e valores culturais devem ser respeitados como distintas e vitais fontes de sabedoria.
[...]
78. Há diferentes formas de desenvolvimento,
como a construção de estradas, comunicações, eletricidade, que facilitam acesso às terras dos Povos Indígenas. Essa industrialização
tem efeitos destrutivos sobre nossos povos.
Violência e destruição na prisão de atingidos
Uma criança de sete anos
é levada presa com o pai19
prisão de cinco agricultores atingidos
por barragem foi marcada por violência e destruição. A prisão ilegal ocorreu
no sábado dia 12-03 por volta das 08:00 horas.
Nenhum dos agricultores foi informado do motivo de sua prisão.
A
A polícia militar de Santa Catarina montou verdadeira operação de guerra, com 10 viaturas e policiais fortemente armados para prender os cinco agricultores, desarmados, que estavam em suas casas com a mulher e filhos, e alguns até na lavoura.
Edio Grasse, de Celso Ramos, encontrava-se na lavoura com seu filho de 07 anos
quando o batalhão chegou. Teve sua casa revistada e seu carro foi apreendido sob a acusação de que com ele seriam transportados
agricultores para as mobilizações do MAB. A
criança de sete anos foi levada presa junto
com seu pai até a delegacia de Campos Novos. O carro, que foi quebrado pelos policiais
durante o deslocamento, foi abandonado
numa estrada do interior. A família de Edio
ficou isolada porque o carro era o único meio
de transporte e moram numa localidade distante, onde não há ônibus.
Leodato Vicente, 70 anos, de Campos
Novos, estava saindo com seu caminhão
boiadeiro para buscar uma vaca, quando o
batalhão chegou e revistou sua casa, causando desordem e estragos, arrombando portas
e objetos. Os policiais perguntaram se ele ia
transportar gente do MAB nas mobilizações
de 14 março e o levaram preso depois de
aprender o caminhão. Sua mulher Maria de
Lurdes presenciou tudo.
19
Aurélio Dutra, de Anita Garibaldi, que a
poucos dias acertou sua indenização com a
ENERCAN sob a promessa de que não seria
mais incomodado pela empresa também foi preso. Não bastasse a seca que penaliza os agricultores Aurélio poderá ficar sem crédito para
plantar a próxima safra pois necessitava ir no
Banco do Brasil amanhã (15/03) para solicitar
uma vistoria do PRONAF.
Carlos da Silva, trabalhador rural em Campos Novos foi preso no sítio Pinheiro Seco e algemado. Quando perguntou qual seria o motivo da
prisão foi agredido com socos no estômago. Os
policiais aprenderam paus que são usados na lida
com o gado e perguntavam “Vão se manifestar
agora vagabundedo?”. Carlos pediu para trocar
de roupa e foi novamente agredido com socos na
cabeça e empurrado para dentro de uma Kombi,
tendo ficado só com a roupa de corpo e um par
de chinelo de dedos.
Dorneles Vicente, de Anita Garibaldi, foi
preso em sua casa, enquanto sua filha ainda estava dormindo.
A Policia também recolheu o ônibus que faz
o transporte escolar no município de Abdon Batista, sob a justificativa que seria usado para transportar agricultores que iriam na mobilização. No
dia de hoje as crianças não puderam ir a escola
por falta do ônibus.
Os presos foram transferidos para o presídio de Joaçaba, a 120 Km de Anita Garibaldi,
onde seus familiares não têm condições de ir visitálos e nem lhes levar roupas. Além dos presos, há
uma lista de mais 05 companheiros agricultores
com mandato de prisão, são eles: (Otacílio da
Rosa, João Vilmar, Joldemir De Nez, Gilberto dos
Santos e Danilo Olterbak).
Texto disponível em http://www.movimientos.org/cloc/show_text.php3?key=4246
49
50
51
52
Educação:
exercício de viver
Aroldo Magno de Oliveira20
O ícone na foto dos dois meninos – vejam os
seus olhos - é este momento mágico que nos
persegue, que entra sem pedir licença em nossa trilha, movendo a nossa curiosidade e a nossa ousadia de querer exercitar a vida. Esse exercício que faz do homem companheiro do homem, que nutre a utopia de um tempo em
que o homem solidário seja, pelos menos, menos só, e que a terra, a água, o ar e toda a
energia da mãe-natureza sejam para o bem de
todos nós, revertendo o processo histórico de
apropriação ilegal daquilo que é para a digna
sobrevivência de todos os seres humanos.
ste título pode parecer simplório, mas
vejamos se realmente é. A nossa base
de reflexão está no ícone acima: dois
meninos em uma sala de aula com papel e lápis.
Olhares de expectativa ante a câmera fotográfica, aguardando o clique que dá por encerrado o
trabalho do fotógrafo.
E
Sala de aula, momento do viver, aprendizagem do ler e escrever. Exercício psicomotor de
desenhar letras, sílabas, palavras, frases e textos.
Textos, início, meio e fim do processo pedagógico. Todos nós interagimos através da ininterrupta
produção de textos: orais e escritos. São eles que
dinamizam a vida, a engrenagem insubstituível na
atribuição de sentidos nos processos interlocutivos.
Aquele que fala quer ser ouvido, sobretudo
compreendido. Todo o seu esforço na formulação
das frases e textos concentra-se no desejo de fazer o melhor possível para o outro. E o outro: viceversa. A vida acontecendo, de fato.
As condições de produção dos textos, em
função dos contextos sócio-políticos específicos,
determinam/orientam o trabalho dos sujeitos com
a linguagem na produção dos discursos. Dessa
forma, o ato de ler e escrever, em uma escola
alternativa, ganha outro contorno. Ler e escrever
já não são só para ter acesso ao saber universal,
mas para saber fazer. Saber fazer implica conhecer as condições de produção dos textos, as condições de vida de uma comunidade e as condições que queremos viver.
20
Nesse sentido, ler e escrever são ações que
ultrapassam os limites do conceito tradicional de
alfabetização. Ler e escrever se caracterizam
como ações integradoras – de integridade - e
transformadoras. A primeira, responsável pela
formação mais integral do homem e a segunda,
responsável pela ativação articulada da ação
transformadora avaliada como necessária para
o bem viver de todos.
Parece estar aí a importante distinção entre a escola do sistema formal/oficial de ensino
e a escola alternativa: aquela domestica e esta
emancipa. Domesticar significa entender o alfabetizar para ter acesso ao saber universal, enquanto emancipar significa entender o alfabetizar para além do saber universal, significa entender o indivíduo como sujeito histórico, sujeito do saber fazer. Saber fazer o possível para
criar as condições para uma vida mais bonita
para todos. Instrumentalizado o sujeito para o
enfrentamento digno contra as adversidades, e
contra eventuais grupos humanos que entendem
a vida de forma banalizada/banalizadora.
Educação: exercício de viver. A palavra
exercício inscreve-se no campo semântico de
ação, ação ininterrupta até a morte: final do viver. Portanto, educação, na perspectiva aqui sinteticamente esboçada, é uma ação integradora
– de integridade - e transformadora que só se
interrompe no indivíduo na hora de sua morte.
Reafirmação da vida.
Docente da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro e pesquisador em Linguagem, Educação, Ideologia e Mídia.
53
Educação popular:algunsapontamentos
Sônia Fátima Schwendler21
screver sobre a Educação Popular nos
leva a refletir sobre as práticas educativas e políticas, enquanto sujeitos, enquanto classe social, movimento organizado, intelectuais orgânicos.
E
tes de um processo. Ao escolher ir aos que ficaram à margem, ao convocá-los ao circulo do diálogo o educador aprende a viver a sua realidade
(Brandão, 2002).
A Educação Popular é um processo de formação e capacitação na perspectiva do compromisso com as classes populares. Este processo
contínuo, sistemático e intencional de formação,
implica em momentos de reflexão e estudo sobre
a prática sistematizada, com elementos de interpretação e informação que permitem levar a novos níveis de compreensão da prática social. Implica também na ação transformadora, do contexto e dos sujeitos nele envolvidos.
O processo educativo popular busca, através de uma metodologia dialética, articular conteúdo e forma, com a finalidade de gerar ações
transformadoras. A metodologia da Educação
Popular nos permite ter como ponto de partida o
que o grupo faz, vive e sente. Neste processo, a
prática educativa precisa estar baseada numa relação dialógica, que respeite a compreensão de
mundo, a cultura do povo, seu saber de experiência feito, como nos diz o grande mestre da Pedagogia do Oprimido.
Para Brandão (2002), a que damos o nome
de educação popular, é o processo do gesto pedagógico, de escolha de falar com eles, entre eles e a
respeito deles. De dirigir a eles de uma maneira
preferencial a fala de um ofício.
“A educação popular não é tanto uma
teoria ou um método restrito de trabalho pedagógico atrelado a uma tendência ideológica única a respeito da pessoa humana, da sociedade, da educação. Ela é o imaginário e a vocação
múltipla de uma ou de algumas vocações de escolhas. Escolhas de sujeitos,
de modos de interação, de sentidos e
de significados dados a destinos humanos através do saber. Escolhas, que
uma vez estabelecidas, podem ser pensadas dentro de mais de uma teoria e
podem ser realizadas por meio de mais
do que um único método”. (Brandão,
2002, p. 41)
A educação popular lida com “rostos que
tornam o seu rosto, entre tantos outros, popular”.
A educação popular constitui-se num estilo de
educação, com compromisso de teor político realizado através de um trabalho cultural com sujeitos, compreendidos como protagonistas emergen21
54
“Como educador preciso ir ‘lendo’ cada
vez melhor a leitura do mundo que os
grupos populares com quem trabalho
fazem de seu contexto imediato e do
maior de que o seu é parte. O que quero
dizer é o seguinte: não posso de maneira
alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares ,
desconsiderar seu saber de experiência
feito. Sua explicação do mundo de que
faz parte a compreensão de sua própria
presença no mundo. E isso tudo vem
explicitado ou sugerido ou escondido no
que chamo ‘leitura do mundo’ que precede a ‘leitura da palavra’.
Se, de um lado, não posso me adaptar
ou me ‘converter’ ao saber ingênuo dos
grupos populares, de outro, não posso,
se realmente progressista, impor-lhes arrogantemente o meu saber como verdadeiro. O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história
social como experiência igualmente social de seus membros vai revelando a necessidade de superar certos saberes que,
desnudados, vão mostrando sua ‘incompetência’ para explicar os fatos” (Freire,
1996, p. 90-1).
Pedagoga e professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da Universidade Federal do Paraná. Mestre em
Extensão Rural. Desenvolve atividades de Pesquisa e Extensão junto aos Movimentos Sociais. Atuou na coordenação e na
assessoria do Projeto de Educação de Jovens e Adultos nos Assentamentos de Reforma Agrária na região Sul do Paraná: alfabetização,
escolarização e capacitação, vinculado ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - Pronera. Coordenou a Educação do
Campo na Secretaria de Estado da Educação do Paraná e o Curso de Especialização em Educação do Campo pela UFPR.
Na pratica educativa da Educação Popular, tomar como refêrencia de uma reflexão mais
sistemática o saber de experiência feito, implica
em situar o cotidiano, o imediato, o individual e
parcial dentro do social, do histórico e estrutural,
na perspectiva de uma visão totalizadora da realidade. Este processo dialético, que busca entender cada acontecimento em sua articulação com
a totalidade social em um momento histórico concreto, se completa com o regresso da prática para
transformá-la. O regresso à prática se constitui
num novo ponto de partida.
Freire (1987), compreende que somente
na unidade dialética entre ação e reflexão, prática-teoria-prãtica, é que se pode superar o caráter alienador das práticas sociais. Os oprimidos, no ‘contexto concreto’, imersos na sua experiência cotidiana, tomam consciência de sua
condição de oprimidos, mas não, da razão de
ser de sua própria condição de opressão. Esta é
uma das tarefas centrais da reflexão teórica,
onde tomando distância do concreto vivido, problematizando-o, torna-se possível superar o senso comum, pelo senso crítico, compreendendo
a razão de ser dos fatos. Contudo, este
desvelamento da realidade, somente tem sentido, se estiver orientado numa ação política sobre a mesma, no sentido de modificá-la, sem a
qual os homens e mulheres nela inseridos não
podem alcançar a sua humanização.
Neste sentido, se coloca como fundamental
um projeto de formação humana que articule diferentes praticas educativas em torno de um projeto educativo que radicalize a formação de sujeitos para a práxis revolucionária. No processo da
Educação Popular o fundamental não é compreender como podemos educar, conscientizar e
humanizar os oprimidos, mas sim entender como
eles se educam, se humanizam, aprendem, se formam como sujeitos políticos, sociais, culturais,
cognitivos na situação desumanizadora, bem
como na luta pela humanização.
Neste processo, na ação cultural para a
libertação, numa opção revolucionária, o diálogo com o povo não pode ser uma formalidade, mas sim uma condição indispensável ao ato
de conhecer, ao ato de transformar, ao processo de conscientização. Freire destaca que a
dialetização da denúncia e do anúncio requer
um compromisso, uma coerência teórico-prático das lideranças revolucionárias que, segundo
ele, não podem:
“a) denunciar a realidade sem conhecê-la.
b) anunciar a nova realidade sem ter um préprojeto que, emergindo na denúncia, somente
se viabiliza na prática.
c) conhecer a realidade distante dos fatos concretos, fontes de seu conhecimento.
d) denunciar e anunciar sozinha.
e) não confiar nas massas populares, renunciando
à sua comunhão com elas.” (Freire, 1982, p.78).
Nesta perspectiva, a Educação popular deve
possibilitar por um lado, uma prática autônoma, o
que implica que as organizações populares fomentem, organizem, propiciem para si novas formas
de educação, articuladas as suas lutas específicas
e promovidas pelos seus intelectuais orgânicos e,
por outro, contribuir para a elaboração de um saber social que emane das próprias classes, a partir
da prática política, organizativa e produtiva, seja
significativo para elas, capacitando-as para o exercício da tarefa organizativa e dirigente.
Segundo Freire (1991), a educação enquanto diretiva e política deve sempre “possibilitar nas
classes populares o desenvolvimento de sua linguagem, jamais pelo blábláblá autoritário e sectário
dos ‘educadores’, de sua linguagem, que emergindo da e voltando-se sobre sua realidade, perfile as
conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo.”(p.41). Neste sentido, o diálogo implica
no respeito entre os sujeitos nele envolvidos. “Não
penso autenticamente se os outros também não
pensam (...) não posso pensar pelos outros nem
para os outros nem sem os outros” (p.117).
A Educação Popular portanto, se constitui
numa pratica política e educativa, numa concepção
de mundo, de ser humano, de educação. Ela é fundamento, método, é ação cultural para a libertação.
Atuar como educador da Educação Popular, implica em compromisso político, em prática social orgânica e libertadora. Este é um grande desafio!
Referências Bibliográficas:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Educação Popular
na escola cidadã. Petrópolis: Vozes, 2002.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e
outros escritos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
___. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
___. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a
pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
___. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
55
Os atingidos por barragens
construindo luta e valores coletivos
m sua história de mais de 15 anos, o
MAB vem buscando fortalecer a luta em
favor de um mundo menos desigual e
menos injusto. Para tanto, sua frente de lutas insere-se na história dos movimentos sociais que, organicamente, vem questionando os modelos e processos de desenvolvimento baseados na manutenção de privilégios, concentração de renda e poder. Contrapondo-se aos interesses hegemônicos
do capital nacional e internacional, o MAB assu-
E
me suas lutas específicas nos setores energético e
do controle das águas.
São lutas históricas que buscam articular
necessidades e direitos dos atingidos frente às organizações que defendem interesses predominantemente mercadológicos, como as políticas de
Estado neoliberais e os conglomerados empresariais nacionais e transnacionais. Entre as lutas permanentes do MAB encontram-se:
ª construção de política energética baseada em fontes alternativas e de
acesso a todos, controlada pelo Estado a serviço do povo;
ª luta pelo respeito e garantia dos Direitos dos atingidos;
ª luta contra a privatização da água e o modelo capitalista neoliberal;
ª construção de modelo socialista para o Brasil.
São lutas que se fortalecem na medida em
que os sujeitos são envolvidos em um “permanente
processo de formação e mobilização onde os atingidos vão compreendendo a realidade, tomando
consciência de sua situação, participando e deci-
dindo os rumos da vida coletiva. (Trindade (org.),
2005, p. 13)”. A vivência e a construção cotidiana da luta dos povos atingidos por barragens exigiu do Movimento a disseminação de valores coletivos (Trindade (org.), 2005, p. 19) como:
a) Alegria, auto-estima, esperança;
b) Fé, paixão e amor pelo povo oprimido e pela causa popular;
c) Solidariedade em todo momento;
d) Indignação e rebeldia contra qualquer injustiça;
e) Coragem alimentada por convicções;
f) Humildade, simplicidade e coerência, sem arrogância, submissão ou ingenuidade;
g) Honestidade, verdade, transparência, compromisso e responsabilidade;
h) Respeito a todo ser humano, sem discriminação ou preconceito;
i) Disciplina consciente e voluntária;
j) Capacidade de trabalho em equipe;
k) Companheirismo mais forte que os laços de sangue;
l) Disposição e espírito de sacrifício.
56
O MAB e a Educação do Campo22
educação no MAB está vinculada aos
acúmulos, lutas e desafios do projeto
da educação do campo no Brasil.
Busca se orientar no movimento da Articulação
Nacional Por Uma Educação do Campo23 que,
desde 1998, vem associando a educação do
campo ao projeto de desenvolvimento do campo, aprofundando o debate político da realidade, das diretrizes e perspectivas da educação
do campo e, principalmente contribuindo para
que esta se torne uma política pública coerente
com a vida, a luta, a identidade, o trabalho, a
cultura e a história dos camponeses no Brasil,
sem perder de vista as interfaces campo e cidade, particularmente do projeto de desenvolvimento para a Nação brasileira.
A
Primeiramente se faz necessário trazer presente os objetivos a que se propõe a Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo
(1999 p. 78):
Mobilizar o povo que vive no campo, com suas diferentes identidades, e suas organizações para conquista/construção de políticas públicas na área de educação e, prioritariamente, da escolarização em
todos os níveis;
Contribuir na reflexão político-pedagógica da educação do campo,
partindo das práticas já existentes
e projetando novas ações educativas que ajudem na formação de
sujeitos do campo.
A luta por uma educação do campo surge
no contexto da luta pelo reconhecimento do
campo como espaço de vida, moradia e trabalho, bem como pela justiça e humanização dos
povos que lá vivem, moram e trabalham, os
camponeses. Campo, nas palavras de Fernandes
e Molina (2004, p. 68), como “um espaço que
tem suas particularidades e que é ao mesmo
tempo um campo de possibilidades da relação
dos seres humanos com a produção das condições da existência social”, não como um espa-
ço do atraso, da morada do jeca tatu, da desigualdade e da opressão, da exclusão do direito
à educação e à cultura letrada a que historicamente foram submetidos os camponeses ao longo do processo histórico.
Essa realidade exige mudanças sociais de
base, necessárias e urgentes para o desenvolvimento não apenas do campo, mas da sociedade brasileira.
Talvez a educação do campo
seja a maior contribuição
que os movimentos sociais
e organizações populares
tenham dado à reorientação
do projeto da educação brasileira,
pensando e praticando uma educação
vinculada à realidade, à história,
à identidade, à cultura
e ao trabalho dos camponeses.
Educação aqui entendida não apenas
como aquela desenvolvida na escola (espaço
formal), mas aquela gerada no próprio movimento da sociedade, na família, na igreja, na
escola, na comunidade, no trabalho e nos grupos sociais, sobretudo na organização intencionalmente dirigida e travada pelos movimentos sociais populares que resistem e protagonizam a luta pela humanização dos povos do
campo e da cidade.
No momento em que os camponeses passam a participar dos movimentos organizados,
independente dos motivos que os levem a isso,
estão inseridos em processos de educação, pois
passam a compreender a sua situação de vida e a
realidade maior, a praticar os valores coletivos e
a intervir na mudança da sociedade.
É necessário que, a partir das lutas, se consiga ressignificar os espaços existentes e criar espaços de estudo, reflexão e debate que resultem
em novas experiências, conhecimentos, relações
e movimentos, cada vez mais humanizados e politicamente qualificados.
[...]
22
Caderno Pedagógico do MAB, 2005, p: 26-31
23
Para maior conhecimento sobre a Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo consultar os cinco cadernos da
coleção Por Uma Educação do Campo, organizados e editados a partir de 1999, pela própria Articulação Nacional.
57
A educação do MAB:
intenções políticas e pedagógicas
Embora concebida na lei como um direito
social, a educação ainda é excludente, classista,
a favor das elites, seletiva, promotora da alienação, pedagogicamente tradicional, desvinculada
das necessidades e interesses das classes populares, particularmente do desenvolvimento das
potencialidades intelectuais, físicas, emocionais,
éticas, estéticas, políticas, culturais e sociais dos
seres humanos. No campo, a questão se agrava,
porque as elites negligenciaram e inviabilizaram
um projeto de desenvolvimento específico para os
povos que lá vivem, moram, estudam e trabalham,
implantando políticas neoliberais24.
Repensar esta forma de se conceber e fazer
a educação, é tão necessário quanto urgente. Assim como coloca Trindade (2002, p. 107-108), o
caminho a ser empreendido pelas classes populares para a superação da opressão-exclusão do
capitalismo passa, necessariamente pela educação. Enquanto o capitalismo avança desfazendo
a identidade das classes populares e fragmentando a sua consciência, na educação encontra-se a
possibilidade concreta da libertação e da emancipação dessas classes. Fica evidente, então, que
a sociedade e a educação socialista têm sua gênese nas contradições da sociedade e da educação capitalista.
A educação deve se colocar a favor das classes populares, “uma educação que se propõe a
transformar as mentalidades, as consciências, atitudes e, conseqüentemente a estrutura que sustenta a velha sociedade” (Torres, 1988, p.68), canalizando esforços, idéias e ações para a liberta-
24
58
ção dos camponeses, para o fortalecimento dos
movimentos sociais do campo e para o desenvolvimento do campo.
No atual momento histórico, mais do que
simplesmente ensinar a ler e escrever, é preciso articular, pedagógica e politicamente, a educação das crianças, a alfabetização/escolarização dos jovens e adultos e a formação dos
educadores à construção da consciência de
classe, ou seja, a educação deve estar vinculada à vida, à cultura, à realidade, à história, ao
trabalho e às relações com a natureza e a comunidade. Neste sentido, cabe reconhecer a
importância dos atingidos, sejam adultos, jovens ou crianças, elevarem seus níveis de compreensão da realidade, não apenas pela
mobilização, mas também pelo acesso ao conhecimento, à informação e à cultura universal. A problematização das próprias experiências e relações e à assimilação crítica do conhecimento, poderão potencializar ainda mais
a identidade e a consciência dos atingidos,
fortalecendo a história de luta e organização
do MAB, o sentimento de pertença a esse grupo social e à Nação brasileira.
Povo que conhece a sua história é povo que
luta pela sua identidade, memória e cultura, consciente do projeto de sociedade que cotidianamente
se vem construindo na e pelas lutas organizadas.
Por isso, os atingidos têm o direito de acessar o
conhecimento universal acumulado pela humanidade, capacitando-se à leitura, à compreensão e
ao enfrentamento da realidade atual.
Os governos neoliberais implementaram a política da nucleação das escolas do campo, as chamadas escolas pólos, onde
crianças e jovens são retirados das suas comunidades, transportadas para as cidades e submetidos a currículos alheios à
vida do campo, perdendo vínculos sociais e culturais com a sua gente e o seu contexto.
59
60
Em Tucuruí,atingidos por barragens
ocupam obra de eclusa novamente25
pós dois meses da primeira ocupação,
cerca de 300 pescadores e ribeirinhos
voltaram a ocupar o canteiro de obras
de uma das eclusas da hidrelétrica de Tucuruí. A
ocupação ocorreu na madrugada de ontem, dia
4. O objetivo da ocupação é impedir a continuação da obra.
A
“Resolvemos voltar ao local e impedir a continuação da obra até que nossa pauta seja atendida pelos órgãos responsáveis, como nos foi prometido anteriormente”, explicou Euvanice Furtado, da coordenação estadual do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB) no Pará.
Na segunda-feira estava marcada uma assembléia popular com a participação de representantes da empresa Centrais Elétricas do Norte do
Brasil (Eletronorte), do Ministério Público e do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas ninguém compareceu. Além disso, a indenização dos
pescadores que perderam seu meio de sustento
não foi concedida até agora e as casas que estão
sendo construídas para substituir as que foram
atingidas pela obra são muito pequenas. “As famílias são grandes e precisam de casas com no
mínimo três quartos”, justifica Euvanice Furtado.
Desde a primeira ocupação, aconteceram
duas reuniões com a Eletronorte e Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP), mas até agora
a única providência tomada foi a entrega de cestas
básicas para os pescadores até fevereiro.
O contrato assinado para a construção das
eclusas entre o Departamento Nacional de InfraEstrutura de Transportes (Dnit), Eletronorte e o
Consórcio Camargo Corrêa tem valor de R$ 440
milhões. As duas eclusas, ligadas por um canal
intermediário, com 5,5 quilômetros de extensão,
irão possibilitar a navegabilidade no Rio
Tocantins, facilitando o escoamento de grãos e
minérios de ferro para a exportação.
Legado de Exclusão Social26
recente liberação prévia pelo Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Ibama) para a construção de duas usinas hidrelétricas no Rio Madeira, região Norte do país, está gerando polêmica.
Até mesmo setores do governo federal estão divididos sobre o tema. Entre os movimentos sociais, Gilberto Cervinski, da direção nacional do
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB),
alerta para as conseqüências da construção das
usinas para as populações.
A
De acordo com Cervinski, as obras irão beneficiar principalmente indústrias transnacionais
que requerem uma grande quantidade de energia,
caso da metalúrgica Alcoa, e não trarão nenhum
benefício para a população local - inclusive afetando um número de famílias muito maior do que o
que está sendo divulgado pelos estudos realizados.
Qual é a realidade por trás das obras
das hidrelétricas no rio Madeira?
As hidrelétricas foram planejadas com o
único interesse de atender as demandas por energia de multinacionais dos Estados Unidos e da
Europa - em especial, as chamadas empresas
eletro-intensivas, caso da norte-americana Alcoa.
Atende também ao interesse das brasileiras Vale
do Rio Doce e Votorantim, que também consomem muita energia; esta última, por exemplo, consome 4% de toda a energia disponível no Brasil.
25
Matéria de 05/12/2007. Fonte: Assessoria de Comunicação do MAB
(disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4607, acessado em 18/05/2008).
26
Matéria de 11/07/2007, por Mateus Alves. Correio da Cidadania
61
No caso das transnacionais, estas sofrem
com a crise energética em seus países e precisam, portanto, transferir suas indústrias para cá.
Necessitam de energia barata para se viabilizar.
Uma indústria de alumínio, por exemplo, só se
viabiliza se paga menos de 34 dólares - ou menos de 70 reais - por megawatt/hora (MW/h). A
Alcoa recebe da usina de Tucuruí, que é do governo, energia a 20 dólares o MW/h, enquanto o
povo brasileiro paga mais de 200 dólares por
MW/h. Isso é dez vezes mais.
Qual será o impacto social e
ambiental das obras na região?
Um estudo publicado diz que serão
deslocadas 1.800 pessoas, mas de acordo com
nossas estimativas cerca de 5 mil famílias serão
prejudicadas em toda a extensão de 260 quilômetros do rio afetada pelas obras.
As obras vão deixar um legado de muita
exclusão social e muito pouco emprego, pois
estas indústrias eletro-intensivas não os geram.
São empresas de alta tecnologia, automatizadas. As pessoas da região serão expulsas, perderão sua fonte de renda e podem ter como
destino as favelas.
O investimento é, na realidade, uma loucura. As duas hidrelétricas que obtiveram o
licenciamento fazem parte de um conjunto de obras
do chamado “Complexo do rio Madeira”, que irá
custar cerca de 43 bilhões de reais - dinheiro que
sairá do BNDES para as mãos de quatro ou cinco empresas transnacionais.
A população de Rondônia é de 1,5 milhão
de habitantes. Serão investidos no projeto, portanto, 28 mil reais por habitante - ou seja, é um
investimento muito alto para algo que não tem
nada a ver com as necessidades da população
local, que não vai trazer progresso. Quantas casas, quantos hospitais, quantas escolas poderiam
ser construídas com esse montante? Quantas famílias poderiam ser assentadas?
Os problemas ambientais também são
graves, como por exemplo a possibilidade de
contaminação pelo mercúrio que será utilizado nas indústrias. Com a liberação, há um documento condicionante, mas qual a garantia
que esse documento trará? Está escrito que as
empresas precisam resolver problemas em relação ao meio ambiente, mas o que ocorrerá
se não resolverem?
62
O que você acredita que está por trás
da decisão de liberar as obras?
O que está por trás é que o governo jogou
no lixo sua história de vinte anos. O que estão
fazendo é atender aos interesses dos grupos que,
de fato, mandam no governo: o capital internacional e grupos financeiros. Teremos que esperar a
história mostrar qual será o resultado dos investimentos que estão sendo feitos.
Outra coisa é que o Brasil tem um dos maiores potenciais de produção de energia elétrica
através de barragens do mundo, e a Amazônia
concentra 50% desse potencial. São 110 mil MW/
h de potência na região. A liberação da construção das usinas significa liberar as obras em todos
os rios que possuem esse potencial; por isso essa
demonstração, essa sinalização de que as multinacionais podem se instalar na região pois o governo garantirá novas liberações.
Você considera que tais projetos de
obras cujos benefícios só servirão a
poucos são o eixo principal do PAC?
Com certeza. Dizemos que PAC significa “programa de afogamento dos camponeses”, pois grande
parte de seus investimentos não são para o povo e
sim para a energia que será consumida pelos países
centrais. Como há uma crise de energia no mundo, e
essa energia tem como base o petróleo, o PAC atende
a esse interesse de buscar novas fontes energéticas.
As grandes obras do programa servem para
criar infra-estrutura e gerar energia para essas empresas multinacionais que sofrem com a crise
energética e, ao mesmo tempo, fazer a transferência do dinheiro do povo do brasileiro a grupos do
exterior. Para se ter uma idéia, as duas hidrelétricas do rio Madeira vão gerar um faturamento de
500 mil reais por hora para a empresa que ganhar a licitação - por isso, inclusive, está previsto
o fechamento das minas de ouro que existem na
região pelo lago artificial que será criado. A produção de energia vale mais do que ouro.
Como será a agenda do MAB
nestes próximos meses? Qual será
a principal pauta do movimento?
Nosso principal compromisso é enfrentar os
projetos que não interessam ao povo. Um exemplo
muito bom para nós foi a ocupação em Cabrobó
contra a transposição do rio São Francisco.
Em setembro nos concentraremos na realização do plebiscito sobre o leilão da Vale do Rio
Doce. Ele abordará também a questão das tarifas
de energia no país e o nosso modelo energético.
Em relação a questões mais imediatas, tenho a confiança de que o povo não irá aceitar a
liberação da construção das usinas no rio Madeira. Haverá certamente uma reação.
Mobilização é reprimida
com violência na Colômbia27
a Colômbia, as mobilizações de povos indígenas e camponeses, que
ocorrem desde 15 de maio, estão sendo fortemente reprimidas pela força pública nacional. A violência contra os atos, que acontecem nos estados de Cauca, Nariño, Valle e Meta,
teve como resultado mais de 100 pessoas feridas, 30 desaparecidos e o assassinato do líder
indígena Pedro Coscue.
N
Os manifestantes protestam contra a assinatura do Tratado de Livre Comércio, a reeleição do atual presidente Álvaro Uribe e em
defesa da soberania nacional. Eles estão reunidos em uma Cúpula Itinerante discutindo as necessidades, demandas e propostas para um desenvolvimento soberano e alternativo ao
neoliberalismo, que foram construídas coletivamente durante muitos anos.
Para dissolver as mobilizações, os militares utilizam a via aérea, lançando gases la-
crimogêneos e aterrorizando a população. As
autoridades civis do país justificam o uso da
força por uma suposta infiltração da guerrilha,
o que comprova o total desconhecimento da
grave situação social que vivem milhares de
camponeses, indígenas e afro-descendentes.
Estas populações estão ainda mais ameaçadas
diante da assinatura do Tratado de Livre Comércio entre a Colômbia e os Estados Unidos,
o que deixaria os povos colombianos sem nenhum tipo de proteção na economia, no território e no modo de vida.
Estes povos se organizaram diversas vezes para expressar o rechaço à assinatura do
TLC e não foram atendidos pelo atual governo, sem vontade de dialogar com os setores populares. Diante disso, a Associação Nacional
de Usuários Camponeses Unidade e Reconstrução (ANUCUR) exige que as autoridades civis e militares:
) Respeitem o direito constitucional de livre expressão e mobilização;
) Cessem a brutal repressão realizada pela força pública;
) Garantam a vida e a segurança de maneira integral às comunidades que se mobilizam
nas diferentes regiões nesta Cúpula Social;
) Instalem uma mesa de diálogo entre autoridades competentes e representantes das
comunidades;
) Atendam às demandas do população mobilizada;
Convocamos as organizações sociais e de direitos humanos nacionais e internacionais a se pronunciar, denunciar e acompanhar esta mobilização
27
dos povos camponeses, indígenas e afrodescendentes
por uma vida digna, em defesa de seus territórios,
cultura, autonomia e soberania nacional.
Matéria de 18/05/2006. Fonte ANUCUR/ Minga Informativa (disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=1160)
63
Ato em memória de Galdino
lembra lideranças que morreram
na luta pela terra28
Pataxó Hã Hã Hãe,
povo ao qual pertencia Galdino,
aguarda há 24 anos
decisão do STF sobre suas terras.
Manifestação lembrou os 257 indígenas
que foram assassinados desde 1997.
A violência contra os indígenas
e a criminalização de suas lideranças
foram algumas das questões debatidas
nas atividades que antecederam
o ato no acampamento Terra Livre.
m ato para marcar os 10 anos do assassinato de Galdino Pataxó Hã Hã
Hãe fechou o segundo dia (17/4) do
Acampamento Terra Livre, que permanece até
quinta-feira, 19 de abril, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Os cerca de mil indígenas, de
100 povos, que estão acampados no local, caminharam até a Praça Galdino, onde o indígena foi
queimado vivo em abril de 1997 por jovens da
classe média alta de Brasília.
U
A manifestação também lembrou os 257
indígenas que foram assassinados desde aquela
data, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Muitas pessoas carregavam cartazes com os nomes de lideranças
que foram mortas na luta pela terra. “Continuam ameaçando nosso povo. Os assassinos do
cacique João montaram casa dentro de nossa
terra e continuam nos perseguindo. A Justiça
não fez nada,” repetia indignada Antônia
Guajajara, que carregava o cartaz com o nome
de João Araújo, assassinado em 2005, em
meio à luta pela demarcação da terra
Bacurizinho, no Maranhão.
28
64
Galdino também foi assassinado quando
estava em Brasília lutando pela terra de seu povo,
que, há 24 anos, aguarda decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) sobre o processo que pede
a nulidade dos títulos de terra concedidos pelo
governo da Bahia à fazendeiros que invadem a
área Hã Hã Hãe. “Esse processo parado contribui para aumentar a violência. Os fazendeiros
contratam pistoleiros para ameaçar a gente e também têm uma proposta para acabar com a nossa terra”, reforça Reginaldo Vieira, cacique da
aldeia Caramuru, que estava com Galdino na
época do assassinato.
Ao chegarem na Praça Galdino, onde há
um monumento em memória ao indígena, houve
um ritual feito por líderes religiosos de diversos
povos. Em seguida, os manifestantes limparam e
pintaram a obra, que estava suja e abandonada.
“É para mostrar que o movimento indígena está
forte. Por isso vamos cuidar da memória de nossos mártires que morreram na luta”, afirmou
Jecinaldo Sateré-Mawé, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amâzônia Brasileira (Coiab).
[18/04/2007 11:32], por Marcy Picanço, com colaboração de Oswaldo Braga de Souza.
(disponível em http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2443, acessado em 18/05/2008)
O acampamento Terra Livre é a principal
mobilização do Abril Indígena, conjunto de manifestações e protestos do movimento indígena que
marcam o mês de abril já pelo terceiro ano consecutivo. Neste ano, o acampamento reúne cerca de
mil indígenas, de mais de cem povos diferentes.
Estão ocorrendo plenárias, debates, atividades culturais e manifestações para propor soluções aos
principais problemas das comunidades indígenas
e denunciar as agressões aos seus direitos.
Terra – demarcação e proteção
A violência contra os indígenas e a
criminalização de suas lideranças foram algumas das questões debatidas nas atividades que antecederam o ato. Pela manhã,
divididos em grupos por região ou povos,
os indígenas acampados iniciaram a discussão sobre os problemas que os afetam.
Eles apresentaram as dificuldades que passam e as suas reivindicações principais.
Apesar das diferenças culturais e regionais, a maior parte dos grupos destacou os problemas que enfrentam na questão fundiária, tanto os que sofrem com a
demora nos processos de demarcação,
quanto os que têm suas terras ameaçadas
por invasores ou por grandes projetos que
podem afetá-las. “Somos acusados de ser
invasores de Parques, mas os Parques foram criados depois de nossa terra”, falou
uma liderança Guarani M´byá sobre o problema dos Guarani do litoral com a
sobreposição de Terras Indígenas em Unidades de Conservação. Maurício Gonçalves, liderança Guarani do Rio Grande do
Sul, disse que a Funai alega que a Constituição não contempla a dinâmica de
perambulação dos Guarani e a relação que
eles têm com o território, por isso este povo
é um dos que mais sofre com a falta de
terra.
“A fronteira foi inventada pelas classes dominantes! Ela não existia antes. Para
nós, não existe. E a terra é nossa. São nossos antepassados que estão enterrados nela.
Não são os antepassados dos donos das
multinacionais”, declarou Toninho Guarani,
liderança do Espírito Santo, cuja terra é invadida pela empresa Aracruz Celulose.
Saúde e educação diferenciadas
Os indígenas também apresentaram
os problemas que enfrentam na educação e
saúde e as propostas para estas áreas. Na
educação, o reconhecimento dos professores indígenas como uma categoria diferenciada e concursos específicos são reivindicações de quase todas as regiões. “Não queremos que não-índio dêem aula para nosso
povo. Isso é desrespeito”, pontuou Eliza
Truká, que apresentou o resultado do debate entre os povos do Nordeste.
A ausência de aulas de 5ª a 8ª e do
ensino médio nas aldeias e as barreiras enfrentadas pelos indígenas que pretendem
fazer um curso superior também foram
destacados como problemas da educação
escolar indígena. Cotas, bolsas de estudos,
cursos específicos foram algumas das propostas apresentadas.
Em relação à saúde, além da falta
de equipamentos generalizada, os indígenas da Amazônia Ocidental (AC, AM,
RO e RR) afirmaram que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) não tem atendido as decisões das comunidades. Ainda em relação ao controle social, reforçaram que os indígenas devem participar mais da discussão das políticas públicas voltadas para eles, por exemplo, ficando atentos para o Fundo Indígena, que
reparte verbas para vários projetos de diversos ministérios.
65
Controle da CNPI
A instalação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) foi
lembrada pelos indígenas como uma
vitória, pois é um espaço para participarem da discussão das políticas que
os afetam. Na análise de conjuntura
que Saulo Feitosa, vice-presidente do
Cimi fez antes dos debates em grupo,
66
ele lembrou que a CNPI não será uma
solução imediata, mas será fortalecida
a medida que o movimento indígena
ocupá-la e fiscalizá-la. Na avaliação
de Feitosa, o movimento indígena precisa se articular cada vez mais com os
camponeses, quilombolas e ribeirinhos
para se fortalecer.
67
68
Para que construir
usinas hidrelétricas?29
história atual da humanidade tem sido
a história da luta de classes. A história
da luta entre os que fazem tudo para
explorar, se apropriar das riquezas naturais e do
produto do trabalho social realizado pelas maiorias, e a história dos que lutam para que a organização e o resultado da produção, realizado pela
maioria, sejam divididos entre todos os seres humanos, ou seja, dos que acreditam que todos devem ter o direito de desfrutar dos resultados do
trabalho, dos bens naturais existentes e do conhecimento adquirido pela história da humanidade.
A
Os atingidos por barragens, por sua vez, são
as maiores vitimas de uma política social e
ambiental irresponsável: centenas de pessoas expulsas a força de suas propriedades e atividades,
perda de terras férteis e produtivas, florestas devastadas, vidas destruídas, culturas condenadas
à morte, meio ambiente degradado. Hoje não são
somente as populações ribeirinhas que sofrem com
essa política, mas sim todos nós, o povo brasileiro que é atingido por uma política energética irresponsável e insustentável.
Por isso, temos que aprofundar o estudo e o
debate sobre as origens da crise energética e as melhores maneiras de superá-la. Isso é importante não
apenas para os atingidos por barragens, mas também para os demais movimentos populares e para
toda a sociedade brasileira. Para que todos entendam que podemos atender às necessidades de água
e energia do povo brasileiro sem mandar para as
periferias das cidades as populações ribeirinhas, sem
destruir a vida nos vales, como é caso do “Vale de
São Marcos”, sem condenar à morte de nossos rios
e nossas florestas, sem destruir a fauna terrestre e
fluvial e principalmente nosso cerrado.
O preço da Luz é um roubo
A vítima é você
Nos últimos anos, as tarifas de luz, água e
telefone têm aumentado muito, sempre acima
da inflação. De 1995 a 2002 a tarifa de energia
residencial aumentou mais de 180%, enquanto
o IPC (Índice que mede a inflação) teve um aumento de 58%.
Para onde vai todo o dinheiro?
Você Imagina quanto as empresas arrecadam nas contas de luz? Sim, é muito dinheiro. E a
maior parte vai para fora do Brasil, pois essas
empresas, na maioria dos casos, são multinacionais (Tractebel, AES, Alcoa, Bradesco, Alcam).
A parte que o governo arrecada com os impostos - ou seja, recursos públicos -também vai
para fora do Brasil, para pagar os juros da dívida
ou em forma de subsídios para estas mesmas
empresas fazerem suas obras.
Além do alto preço cobrado pelas empresas, os governos ainda acrescentam mais 25%
a 30% de imposto. O resultado você vê todo mês
nas contas, cada vez mais caras. Sendo assim,
devemos considerar duas questões: para quem
e para onde vai a energia.
Quantos empregos são gerados?
A lógica da sociedade capitalista é considerar tudo como mercadoria e ter o controle total dos locais de produção, isto é, o controle direto da exploração do trabalho. Desse modo,
acontece a exploração do trabalho e a formação do lucro capitalista.
Na maioria dos casos são muitos poucos
os empregos, tantos nas usinas, como é caso de
UHE de três Ranchos (FURNAS) que emprega
oito funcionários, quanto nas empresas que vendem ou consomem muita energia. E vem com o
debate de gerar 1400 à 1800 emprego na região.
A produção de energia, por sua vez, não
escapa a essa lógica e é, também, considerada
mercadoria.
O que sobra para os brasileiros?
29
A conta alta para pagar todo mês. Nos últimos
anos a tarifa de energia aumentou cerca de 400%.
Texto elaborado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens.
69
VOCÊ SABIA?
¾ Que o custo para produção de um kilowatt de energia é menos de 10 centavos e
você paga mais de 50 centavos o kilowatt?
¾ Que as mesmas empresas norte americanas cobram no Brasil o dobro do valor
cobrado nos Estados Unidos pela mesma quantia de energia?
¾ Que no Paraná as famílias que gastam menos de 100 kilowatt de energia por mês
não pagam a conta de luz?
¾ Que a Alcoa - empresa dos Estados Unidos – paga somente seis centavos o kilowatt
de energia, para abastecer suas fabricas que exploram o alumínio no Brasil?
¾ Que as empresas que mais gastam energia são as que menos geram empregos
no Brasil?
¾ Que o povo brasileiro paga uma das taxas mais altas do mundo no preço da luz?
¾ A cada 1000 MWh consumidos na indústria de alimentos e bebias geram 70,2 empregos enquanto nas indústrias de alumínio geram 2,7 empregos;
¾ 6% da população mundial que vive nos países ricos consomem 1/3 de toda a
energia produzida no mundo.
A falácia do risco da falta de energia30
Especialista e movimentos sociais rebatem
alarmismo da mídia corporativa, governo e investidores de que faltará energia
escassez de energia é apontada pela
mídia, governo e investidores como o
grande problema para o desenvolvimento do país. Em coerência com essa idéia, a maior
parte do orçamento (R$ 274,8 bi) do Programa
de Aceleração do crescimento – PAC, divulgado
pelo governo no último mês, foi destinada para a
rubrica “investimento em infra-estrutura energética”.
A
70
30
Porém, especialista e movimento social refutam
essa tese com base nos próprios dados divulgados pela Agência Nacional de Energia Elétrica
(ANEEL).
O Ministério de Minas e Energia (MME)
definiu que, está dentre os objetivos do programa, “garantir a segurança do suprimento de energia elétrica” contando, inclusive, com a “partici-
Disponível em www.mabnacional.org.br/noticias/050307_falta_energia.htm - 29k.
pação efetiva do setor privado”. Para isso, está
prevista a construção de mais hidrelétricas até
2010 capazes de gerar 12.386 MW, e a
implementação de alguns instrumentos de incentivo ao investimento privado. Além disso, um Grupo Gestor (GGPAC/ MME) do Ministério foi formado na última terça-feira (6/2) para acompanhar e assegurar as ações previstas no Programa.
Todas essas medidas foram feitas em nome
do “desenvolvimento” e do “crescimento econômico” do país.
No entanto, Dorival Gonçalves Júnior,
professor de engenharia elétrica da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), desconstrói
a tese do risco de falta de energia. Para isso ele
examina, inicialmente, a capacidade de fornecimento médio de eletricidade durante todo o
ano, que é denominada de “energia assegurada” pela ANEEL. Segundo o banco de dados
da Agência, a capacidade de gerar energia elétrica na atualidade é de 57.500 megawatts (MW)
médios. Comparando agora com a demanada
requerida durante o ano de 2006 (que foi de
47.500 MW), de acordo com os dados da ONS
(Operador Nacional do Sistema Elétrico Interligado), conclui-se que sobrou 10 MW de energia no ano passado. Para reforçar, ele dá um
exemplo mais recente, de janeiro de 2007,
onde o consumo de energia foi de 49.183 MW
médios, sobrando assim, 8.317 MW médios de
energia. Dorival conclui: “considerando que
esse excedente de 8.317 MW é, praticamente,
a energia assegurada da Itaipu (atribuída pela
ANNEL), podemos dizer que hoje o sistema elétrico interligado nacional opera com uma
Itaipu em stand by”.
Já o prof. Luiz Pinguelli Rosa, Coordenador do Programa de Planejamento Energético
COPPE/UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás, o
Brasil tem uma projeção de crescimento econômico e precisa gerar emprego. Portanto, “é necessária a expansão de energia, eu não tenho
dúvidas disso”, alerta Pinguelli. Ele acrescenta
ainda que a energia per capita do Brasil é muito
pequena. “Se comparar com os EUA ou Europa
é uma disparidade. Mesmo na América Latina,
se comparar com Argentina ou Chile, é muito
menor”, avalia.
ƒ Demanda Futura
O principal argumento dos defensores da
“tese da escassez” é que o crescimento econômico do Brasil nos próximos anos deve fazer com
que a atual energia assegurada (57.500 MW) não
seja suficiente. Contrariando essa opinião, Gonçalves Jr. mostra que, seguindo a previsão do Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica 20062015 (PDEE), elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), não teremos falta de energia
nos próximos anos.
O plano aponta três cenários de crescimento da demanda de energia: O primeiro, denominado “trajetória alta”, estima o crescimento anual da carga de energia para os próximos
4 anos de 5,1%. O segundo, chamado de “trajetória referência”, prevê o crescimento anual
até 2010 de 4,9% ao ano. E, o terceiro, “trajetória baixa”, admite a variação da carga em
3,9% ao ano no período.
A partir desses números (ver tabela 1), levando em conta a oferta e o consumo, Gonçalves Jr. conclui que o único cenário que ultrapassa a energia assegurada de hoje em 2010 é
o de trajetória alta (que teria demanda de
57.956,8MW em 2010). “Ele ultrapassa somente 456,8 MW médios. Semana passada começaram a construir a hidrelétrica de Estreito, em
Tocantins, que vai produzir mais de 1.000MW
de energia, ou seja, muito acima do necessário”, afirma o professor.
Gonçalves Jr. pondera ainda que esta hipótese de crescimento para a demanda (5,1% ao
ano) parece muito improvável de se realizar, pois
os dados registrados pelo ONS nos anos 2005 e
2006, foram respectivamente de 4,5% e 3,9%, e
para este ano o ONS estima um aumento de 3,6%.
“Então é difícil acontecer esse cenário de trajetória alta. Mesmo que não seja adicionado nem uma
nova fonte até 2010, não faltará energia”, argumenta Dorival.
Energia para quem?
O Movimento dos Atingidos por Barragens
– MAB, que junto com outras entidades está puxando a campanha O preço da luz é um roubo,
considera a tese do défcit de energia uma chantagem do setor elétrico. “Isso é uma especulação na
comercialização de energia elétrica. O que eles
querem é que tenha energia sobrando para
comprá-la cada vez mais barata e em forma de
subsidio do governo”, alerta Marco Antonio
Trieveiller, da coordenação do movimento. Isso
acontece, por exemplo, no Pará com a Albrás e
no Maranhão com a Alumar.
71
Apesar de defender que o país precisa de
mais fontes de energia, Pinguelli acredita que o
que deveria ser feito é usar a energia dos produtores de alumínio (eletro-intensivos) para a população. “Existe um grupo de privilegiados chamados
de consumidores livres, que consomem 30% da
energia do Brasil a um preço baratinho. Quem
paga é o pobre”.
Hidrelétricas na Amazônia
Para Dorival Gonçalves Jr., sob o discurso da
escassez iminente de eletricidade, “está submersa
uma matriz de interesses que de modo algum expressam qualquer interesse dos trabalhadores”. Segundo ele, desde a privatização do setor o preço da
tarifa residencial subiu. (ver tabela 2). A eletricidade
saiu da faixa dos US$ 70 dólares para mais de
US$130, mantendo-se no nível dos US$ 100.
O complexo do Rio Madeira prevê a construção das usinas hidrelétricas Santo Antônio e
Jirau que, juntas, poderão gerar cerca de 7,5 mil
MW. Segundo Wesley Ferreira Lopes, do MAB,
esses empreendimentos são pra atender as necessidades do capital e não do povo, já que a
energia produzida pelas hidrelétricas é para abastecer as empresas e não o a população. Além disso, “as obras vão elevar o nível do rio em mais
de 4m em algumas regiões, desabrigando mais
de 3 mil famílias”, denuncia.
Mecanismos de sustentação deste modelo
foram inclusos no PAC. No caso dos financiamentos do BNDES, que já eram bastante favoráveis,
ficaram ainda mais, já que o banco financiará
até 80% do empreendimento e o prazo de pagamento aumentou de 14 para 20 anos. Além disso,
está sendo criado o Fundo de Investimento em
Infra-estrutura com o uso do FGTS. “O PAC veio
para aperfeiçoar esse modelo energético lucrativo” conclui Dorival.
As hidrelétricas do Rio Madeira (RO) e
de Belo Monte(PA) são dois polêmicos projetos
que constam no Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC). Ambos são alvos de críticas e protestos por parte de movimentos sociais
e ambientais.
Belo Monte, com geração prevista de 11
mil MW, teve sua autorização de estudo
ambiental questionada pelo Ministério Público
Federal do Pará na semana passada. Eles exigem uma consulta aos indígenas da região pelo
Congresso Nacional, além de discutirem possíveis alternativas à obra.
“Antes de produzirenergia,
as hidrelétricas produzem excluídos”,
diz Dom Orlando Dotti31
Setor de Comunicação: Como o senhor
vê a organização do MAB e a inserção do Movimento na sociedade?
Dom Orlando Dotti: O meu pensamento não é
exclusivamente meu, é um pensamento que
nós da Igreja temos. Em primeiro lugar dize31
72
mos que o MAB é o legítimo representante
dos atingidos por barragens. Dentro desse
contexto de exclusão, é um movimento próprio desses excluídos, não alguma coisa superior, nem alguma coisa lateral. Em segundo lugar preciso mencionar sua atuação. Eu
conheci o movimento quando morava na
Dom Orlando Dotti, bispo Emérito da diocese de Vacaria/RS, é um dos grandes apoiados do Movimento dos Atingidos por
Barragens desde a sua criação, acompanhou atingidos por barragens na Bahia, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul e
mesmo como bispo emérito, continua junto à luta dos pobres do campo. Dom Orlando fala ao Jornal do MAB sobre o papel
da Igreja entre os movimentos sociais e a criminalização dos mesmos. Matéria publicada no Jornal do MAB.
Bahia, era pequeno, regional. Agora percebo
que cresceu e amadureceu em muitos aspectos, tornou-se movimento nacional e articulou-se internacionalmente. Há uma expansão
muito grande do MAB e acima de tudo, há
uma qualificação de suas ações.
Setor de Comunicação: Do seu ponto
de vista, qual é o papel da Igreja
junto aos Movimentos?
Dom Orlando: Eu penso que hoje a Igreja se
situa num outro patamar. Principalmente durante o período da ditadura ela fazia quase
tudo: organizava e mobilizava o povo, produzia os subsídios, etc. Com o passar do tempo
a Igreja entendeu que não é toda a sociedade, mas uma parte dela. Eu diria que o projeto do MAB e dos demais movimentos sociais
é o mesmo que o nosso: queremos uma vida
melhor, o bem comum para todos, o projeto
de uma sociedade livre, democrática, que haja
menos desigualdade social.
Setor de Comunicação: As prisões que
aconteceram contra os atingidos retomam ações da ditadura militar?
Dom Orlando: A opressão aos atingidos acontece porque existe uma promiscuidade entre
as empresas, o ministério público e o judiciá-
rio. Uma promiscuidade que dita o que se
deve fazer para que a barragem seja
construída e para o lucro das empresas, não
se importando com o que acontece com o
povo. E o que está acontecendo em algumas
regiões do país é um abuso, a coisa mais fácil
para se acabar com um movimento é
criminalizar as lideranças, e é o que estão fazendo neste pacto que existe entre o poder
constituído e as empresas. Então criminalizam
dando ordens de prisão, são supostos como
criminosos e fica por isso mesmo.
Setor de Comunicação: Como o senhor
vê os próximos passos da luta?
Dom Orlando: Criou-se a mentalidade de ser
contra as barragens porque sabe-se de antemão que elas vão trazer grande malefícios
para as pessoas. É a vida humana que está
em jogo e até hoje as barragens nunca melhoraram a vida dos atingidos. Por isso tem
tanta gente que é contra esse modelo de produção de energia, o governo tem que implantar um novo modelo, que privilegie a pessoa
humana. O MAB tem que lutar cada vez
mais por isso e os investimentos públicos,
que servirão somente a interesses particulares, devem ser revertidos ao bem estar dos
pobres ribeirinhos, pois antes de produzir
energia, estas usinas produzem excluídos e
isso deve acabar.
Ditadura na barranca dos rios brasileiros:
perseguição e criminalização de
militantes da luta contra as barragens32
Eduardo Luiz Zen
R
32
ecentemente temos presenciado uma
forte ofensiva das empresas do setor
elétrico contra militantes sociais e de-
fensores dos direitos humanos das populações
atingidas por barragens. Na medida em que a
resistência das comunidades ribeirinhas con-
Artigo disponível em www.mabnacional.org.br/textos/index.htm - 51k
73
tra o atual modelo energético vai se tornando
mais forte, intensifica-se também as ações de
força da polícia contra os atingidos, não só nas
reintegrações de posse dadas pela justiça, mas
principalmente nas ações violentas para dispersar manifestações em rodovias, nas invasões e destruição de acampamentos e até nas
audiências públicas oficiais para discutir as
barragens, quando os atingidos são impedidos
de se expressar ou expulsos de forma violenta
do local da audiência.
A ação policial tem aumentado de maneira significativa também nas ações de despejos,
quando os atingidos se recusam a abandonar
suas terras e casas, que ficarão embaixo dos lagos das barragens. Nestes casos, a polícia se encarrega de expulsar a família de sua casa, que
logo é demolida ou incendiada, como forma de
impedir que os moradores retornem.
Em 2004 uma comunidade inteira atingida pela barragem de Candonga, em Minas Gerais, passou por esta situação. Na vila de São
Sebastião do Soberbo, dezenas de famílias resistiram durante semanas contra as investidas da
polícia militar com apoio da polícia federal para
efetuar o despejo de todos. No final, com aumento do efetivo policial ocupando a vila, as famílias
não puderam conter as retroescavadeiras que destruíram suas casas.
Perto dali, no dia 08 de março de 2005,
35 pessoas ficaram feridas durante a realização de uma audiência pública para discutir a
construção da barragem de Jurumirim, no município de Rio Casca. Mulheres e crianças foram espancadas pela polícia, que também manteve presos por um dia, seis pessoas apontadas
como líderes do MAB.
No estado do Pará, tropas do exército com
autorização para agirem como polícia, chegaram
a ser utilizadas no mês de março de 2005, para
“proteger” as instalações da Usina Hidrelétrica de
Tucuruí (PA), que há duas décadas atrás expulsou 30 mil pessoas de suas terras, a maioria sem
reparação até hoje.
Mais recentemente, no dia 05 de outubro
de 2005, 50 policiais invadiram e destruíram
completamente um acampamento de agricultores próximo ao Rio Canoas, na região atingida
pela barragem de Campos Novos, em Santa
Catarina. Após esta ação, a tropa dirigiu-se a
outro acampamento localizado próximo ao can-
74
teiro de obras da Usina, onde houve confronto
e um agricultor foi preso.
Estes são apenas alguns exemplos do tratamento que às populações ribeirinhas recebem,
quando estão organizadas e em luta pelos garantia dos seus direitos. Mas o que mais chama atenção na tática do governo e das empresas do setor
elétrico para combater a organização e resistência das populações atingidas por barragens são
as perseguições políticas, difamação, ameaças e
tentativa de criminalização das lideranças e
apoiadores desta luta.
Um levantamento preliminar feito na bacia do Rio Uruguai, sul do país, mostrou que
nesta região, 107 atingidos por barragens respondem a processos civis ou criminais demandados pelas empresas construtoras ou por outros agentes a seu serviço. As principais lideranças do MAB na região sul do Brasil respondem sozinhas a mais de 15 processos cada
uma. Os autos dos processos judiciais, somam
mais de 30 mil páginas. Para 36 atingidos processados em ações criminais, são pedidas penas que vão de 1 a 30 anos de prisão por participarem do movimento e 9 pessoas respondem a ação onde se pede indenização de R$
1 milhão de reais por danos na Usina de Camp o s N o v o s . A l é m d i s s o, a d v o g a d o s e
apoiadores do MAB também estão na lista de
processados, como forma de coagi-los a pararem de apoiar a luta dos atingidos.
Toda esta tentativa de criminalização tem
como objetivo geral enfraquecer a luta contra
as barragens. Para isso, os processos judiciais
cumprem o papel de intimidar os atingidos ou
seus apoiadores, para que abandonem a organização e parem de lutar. Os processos também mantêm os dirigentes ocupados, levandoos a usarem parte significativa de seu tempo
em se defenderem, quando poderiam estar organizando a resistência.
A criminalização também busca desqualificar os atingidos perante a opinião pública,
tachando-os de marginais e bandidos. Para
isso, as empresas construtoras contam com valioso apoio da mídia. Em última instância, o
objetivo final dos processos é levar a prisão os
principais dirigentes e militantes da luta contra as barragens.
Os fatos de criminalização ocorridos são
apenas um dos desdobramentos de um pro-
cesso bem mais amplo, que levam o MAB a
denunciar à sociedade brasileira a existência
de uma verdadeira “ditadura” na barranca
dos nossos rios.
nifestações populares contra as barragens; na perseguição política, tentativas de criminalização e
prisões arbitrárias de militantes sociais e líderes
que organizam a resistência das populações.
Esta ditadura se materializa na retirada e
expropriação dos meios de vida e subsistência
das população não-proprietária que são afetadas por uma represa; na negação sistemática dos
direitos humanos, econômicos, sociais, culturais
e ambientais destas populações; na incapacidade total do ministério público e do poder judiciário em garantir estes direitos; na utilização da
violência policial e até de tropas do exército para
guarnecer os canteiros de obras e dispersar ma-
Além disso, os processos de licenciamento
ambiental das obras são marcados por irregularidades e fraudes, onde impera a política do
fato consumado em desacordo com a legislação vigente no país.
As decisões sobre as liberações das obras
não são técnicas e nem acontecem em ambiente democrático, são decisões políticas tomadas por governos submissos aos interesses das
grandes empresas.
Hidrelétricas eviolações
de Direitos Humanos
Leandro Gaspar Scalabrin
lucratividade do sistema energético
privatizado brasileiro é tanta que as empresas de energia e gás estabelecidas no
Brasil foram o segundo maior segmento a remeter
lucros para o exterior em 2006: US$1,378 bilhão,
ficando atrás apenas dos bancos.Apenas no segundo trimestre de 2007, o lucro líquido da Tractebel
Energia (subsidiária da multinacional franco-belga
Suez-Tractebel) - maior empresa privada geradora
de energia no Brasil – foi de R$229,5 milhões.
A
Apesar da enorme dívida social e ecológica em aberto nas inúmeras barragens já
em operação, dos inúmeros casos de violações de direitos humanos não reparados, o
governo federal insiste no modelo de construção de barragens. Atualmente, integram o
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – e estão em fase de construção as
seguintes usinas hidrelétricas (e seus respectivos orçamentos):
Ö UHE Estreito (Tocantins / Maranhão)..............................................................R$2 bilhões
Ö Eclusas da UHE de Tucuruí (Pará).............................................................R$611 milhões
Ö UHE Foz do Chapecó (Rio Grande do Sul / Santa Catarina).......................R$2,2 bilhões
Ö UHE São Salvador (Tocantins / Goiás) - Tractebel.........................................R$424 milhões
Ö UHE Serra do Facão (Goiás).......................................................................R$707 milhões
Ö UHE Salto Pilão (Santa Catarina)..............................................................R$352 milhões
Ö UHE Castro Alves (Rio Grande do Sul).......................................................R$47 milhões
Ö UHE 14 de julho (Rio Grande do Sul)..........................................................72,7 milhões
75
O modelo energético brasileiro é a causa
das violações de direitos humanos: os rios são
públicos, as concessões das obras são públicas,
o licenciamento ambiental é público, mas os lucros são privados.
O Artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC),
reconhecido pelo Brasil, reconhece o direito de
toda pessoa a uma melhora continua de suas condições de vida. Ter acesso à energia elétrica não é
um luxo e sim um direito de todo cidadão. O preço da energia tem obrigado as famílias carentes,
se alimentar menos, se vestir pior, ter menos lazer
e pior condição de moradia, num claro retrocesso
nas suas condições de vida: duas pessoas morreram, uma no Ceará e outra em Rondônia, ambas
doentes, que tiveram suas contas de energia cortada porque não tinham condições de pagar.
O Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), tem tido papel
de destaque nas violações de direitos humanos na implantação de hidrelétricas, na medida em que não exige dos financiados o respeito aos pactos internacionais firmados pelo Brasil. O BNDES aprovou R$ 8,3 bilhões em financiamento para o setor de Energia Elétrica
nos últimos 12 meses.
Os atingidos por barragens, organizados em
movimento, precisam e continuarão, exigindo do
Estado a sua responsabilidade para cumprimento dos diplomas nacionais e internacionais que
garantem a defesa e promoção dos direitos humanos, em especial no que se refere às suas obrigações para com PIDESC, no que tange a garantia da melhoria contínua das condições de vida
da população brasileira.
Apenas nestas obras, cerca de vinte mil
famílias serão atingidas e deslocadas compulsoriamente, ou seja, serão obrigadas a abandonar seu modo de vida tradicional, suas terras
e suas casas – porque estas foram declaradas
de “utilidade pública” para fins de “aproveitamentos hidrelétricos”.
MAB denuncia violação
dos direitos humanos33
Comissões visitam regiões mais afetadas
omunidades esquecidas, isoladas. Repressão policial. Direitos negados ou
não reconhecidos. Tradições culturais
extintas. Na tentativa de pautar estes e outros problemas sofridos pela população atingida junto aos
órgãos competentes do país, o MAB encaminhou
diversas denúncias de violações de direitos humanos decorrentes do processo de construções
das barragens ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado a
Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH)
do governo federal.
C
76
33
Texto feito pelo Movimento dos Atingidos por Barragens
Em uma reunião do CDDPH do ano passado foi formada uma Comissão Especial que durante esse ano visitou a barragem de Acauã, na
Paraíba, e as hidrelétricas de Foz do Chapecó, em
Santa Catarina, Tucuruí, no Pará, Aimorés,
Emboque e Fumaça, em Minas Gerais, e Cana
Brava, em Goiás.
O representante da Defensoria Pública da
União na Comissão, João Paulo Dorini, afirma que
em todas as visitas as denúncias feitas pelo MAB
foram confirmadas. O caso que mais causou espanto para Dorini foi o da Barragem de Acauã.
“Muitas pessoas saíram de suas casas já com a
água nos pés. E a comunidade está totalmente
esquecida, isolada”.
Um relatório final feito pela Comissão será
entregue ao CDDPH. A Comissão Especial só tem
poder de sugerir medidas, até mesmo de caráter
de urgência, mas não de executá-las. “Espero que
o relatório não seja mais um documento que vá
pra gaveta. Se ele servir pelo menos para a discussão pública sobre o tema já cumpriu boa parte do seu papel”, afirmou Dorini.
Para o MAB, o relatório será mais um instrumento de luta e pressão política.
A Comissão esta constituída com representação do Ministério do Meio Ambiente, Ministério de Minas e Energia, Movimento dos
Atingidos por Barragens, Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana, Câmara dos
Deputados, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Ministério Público
Federal e Defensoria Pública da União.
Veja algumas das denúncias
encaminhadas em cada região:
UHE de Cana Brava (GO)
(recebeu a visita entre 15 e 18 de agosto)
No cadastro do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) constam 808 famílias atingidas pela usina hidrelétrica de Cana
Brava, localizada município de Minaçu (GO)
que ainda não receberam qualquer tipo de indenização. Esta é a principal denúncia encaminhada pelo movimento ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CDDPH), órgão ligado à Secretaria Especial
de Direitos Humanos (SEDH).
O projeto da usina de Cana Brava foi
concedido à CEM – Companhia Energética
Meridional, subsidiária da Tractebel Energia S.A, como resultado de uma licitação
internacional promovida pela ANEEL, em
março de 1998. Segundo o MAB, 946 famílias foram atingidas (entre ribeirinhos, semterra, pescadores, arrendatários, meeiros,
mineradores, professores de escolas fechadas, etc), mas só 121 foram reconhecidas.
O processo de reassentamento das famílias
reconhecidas ainda não foi concluído. Estas famílias encontram-se acampadas e organizadas em grupo.
UHE de Tucuruí (PA)
(recebeu visita entre 4 e 6 de agosto)
Criada durante o regime militar, a usina deslocou 32 mil famílias, segundo dados
da própria Eletronorte. Como foi construída
antes da lei que exige que seja feito o estudo
de impacto ambiental antes da construção da
barragem, o mesmo foi elaborado simultaneamente à construção da obra.
Segundo estudo do Instituto de Pesquisa da Amazônia (INPA), as conseqüências sociais e ambientais da hidrelétrica de Tucuruí
foram, e continuam a ser, negativas e prejudiciais. Algumas delas: o deslocamento da
população na área de inundação e a sua
realocação subseqüente devido a uma praga de mosquitos Mansonia; o desaparecimento da pescaria que sustentava, tradicionalmente, a população a jusante da barragem;
os efeitos sobre a saúde devido à malária e a
contaminação por mercúrio; e o deslocamento e perturbações de grupos indígenas
(Parakanã, Pucurui e Montanha)
77
Barragem de Acauã (PB)
(recebeu a visita entre 18 e 20 de abril)
Os reassentamentos de Cajá, Melância
e Pedro Velho na Paraíba são considerados
pelo Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB) a pior situação social das famílias reassentadas por uma barragem no país. O MAB
denuncia: déficit habitacional de 240 mora-
dias; escolas inexistentes ou com funcionamento precário; merenda escolar insuficiente; posto médico inexistente ou com funcionamento precário; assistência médica ruim;
inexistência de área para desenvolvimento da
agricultura e pecuária, entre outros déficits.
UHE de Foz de Chapecó (SC)
(recebeu a visita entre 27 e 29 de julho)
Até agora foram desapropriadas 71
famílias na região do canteiro de obras de
Foz do Chapecó. Dessas, segundo o MAB,
mais de 30 tiveram os direitos negados ou
“não reconhecidos” pela empresa. Além
disso, o consórcio, formado pelo grupo
CPFL (Votorantim, Camargo Corrêa e
Bradesco), Furnas e a concessionária CEEE,
estaria induzindo as famílias a escolherem
carta de crédito ou indenização em dinheiro
ao invés de reassentamento coletivo, desrespeitando a livre opção de escolha garantida por lei.
Entre as práticas utilizadas pela empresa e denunciadas pelo Movimento, destacamse: ameaças, cooptação, pressão psicológica,
uso da força, queima e destruição de casas,
omissão de informações ao Poder Judiciário.
UHE de Emboque (MG)
(recebeu visita no dia 29 de agosto)
Famílias atingidas pela UHE de
Emboque, da empresa CAT–LÉO ENERGIA, relatam casos de total desrespeito aos
Direitos Humanos como. Um deles foi o
caso de Sílvio Clemente, que suicidou-se por
causa da truculência e maus tratos da empresa. Ângela, que foi tirada de sua própria
casa por vinte policiais e está sem indenização até hoje.
A barragem de Emboque, localizada no
rio Matipó, municípios de Abre Campo e Raul
Soares, em nove anos de funcionamento, acumula um triste saldo de dez mortes. Na época
da construção da barragem de Emboque morreram cinco pessoas, sendo dois operários e
três atingidos. Depois do lago cheio, morreram
mais cinco, dois em acidente nas curvas perigosas das estradas relocadas pela empresa.
UHE de Fumaça (MG)
(recebeu visita no dia 30 de agosto)
A empresa norte americana Novelis,
dona da barragem de Fumaça, localizada
no Rio Gualaxo do Sul, municípios de
Mariana e Diogo de Vasconcelos, comprometeu 300 anos de artesanato em pedra
sabão na região próxima a Ouro Preto e
afetou, diretamente, a atividade cultural
78
de centenas de artesãos e a sobrevivência
de mais de duas mil pessoas. Muitos
artesãos estão até hoje sem nenhum tipo
de indenização. O lago da bar ragem
inviabilizou a exploração de quarenta pedreiras, que ficaram em área de risco ou
debaixo d’água.
Usinas hidrelétricas no Rio Madeira
e a cobiça internacional
O que está por trás da construção de Jirau e Santo Antônio?
Rapinagem das riquezas amazônicas pela hidrovia, fortalecimento da indústria da barragem, energia barata para as indústrias eletrointensivas e uma fábrica de dinheiro com a venda da
energia para o povo brasileiro.
dia 9 de agosto de 2007 ficou marcado
na história do nosso país como mais um
dia em que o governo federal se curvou e
cedeu aos interesses das grandes transnacionais.
Nesta data o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) concedeu a licença prévia, atestando
a viabilidade ambiental das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no coração da floresta amazônica, em Rondônia.
O
Estes dois projetos de hidrelétricas no Rio
Madeira vêm sendo discutidos há vários anos e
fazem parte de um plano maior de saqueio da
Amazônia. Desde setembro do ano 2000, através
de uma iniciativa do então presidente Fernando
Henrique Cardoso, o plano dessas hidrelétricas foi
ganhando forma e força e, mais a frente, o Governo Lula passou a assumir como um dos principais projetos de geração de energia de seu governo pelo chamado Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC).
Segundo o debate que o Movimento dos
Atingidos por Barragens vem fazendo, a crise
mundial de energia está atraindo para países como
o Brasil as indústrias que, nas suas nações de origem, já não têm condições de adquirir a elevada
carga de energia que consomem. E como necessitam de energia barata para se viabilizar, encontraram aqui todas as vantagens que precisam, sob
a conivência e incentivo do Estado brasileiro.
Além disso, o fato é que o entreguismo dos
recursos naturais da Amazônia agora vem mascarado por uma mentira, ou seja, foi criada uma
necessidade de energia para evitar um novo
‘apagão’ num futuro breve, no entanto, dados
apontam que se o crescimento do país continuar na média dos últimos anos, temos energia
elétrica suficiente até 2010. Mas esses dados não
são publicizados e o pânico que o governo e a
grande mídia criaram na população com possibilidade de um novo racionamento de energia
foram condições para este primeiro licenciamento dado pelo Ibama, sob forte pressão de interesses privados.
Para o governo federal as duas usinas podem produzir o que hoje representa 8% da demanda nacional, necessários para impedir o
‘apagão’, mas para o MAB a falta de energia e a
construção das duas usinas é um pretexto e significa abrir hidrovias para o escoamento das riquezas minerais que estão na região amazônica, além
de garantir o funcionamento da indústria da barragem com a venda de turbinas, geradores, cimento, entre outros.
Com a licença prévia, concedida à estatal Furnas Elétricas, a obra já pode ser leiloada e as verdadeiras interessadas nas obras são
a Companhia Vale do Rio Doce, Alcoa,
Citicorp, Duke Energy, todas dos Estados Unidos; a Votorantim e o Banco Bradesco, do Brasil; além da inglesa Billington Metais e da chinesa CTIC. A energia elétrica gerada em Jirau
e Santo Antônio terá o preço de custo (R$
51,00/ megawatt/hora – MW/h) para as suas
indústrias de alumínio, siderurgia, celulose, papel, cimento, ferro-ligas e petroquímica, o que
já é um grande vantagem.
79
Mas o verdadeiro lucro que as emprebanco público, do povo brasileiro controlado
sas acionistas terão será com a venda da enerpelo Governo Federal, que utiliza recursos do
gia, que com um custo de produção muito reFundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para
duzido e beneficiadas pelos altos preços nas
seus empréstimos. Ou seja, o BNDES pega ditarifas de energia no Brasil, obtém altos lunheiro dos trabalhadores para investir em emcros na venda do excedente. De acordo com
presas internacionais, dá 14 anos para o pacálculos do MAB, considerando que o valor é
gamento deste empréstimo e o que o povo rede R$ 130 por megawatt nos leilões de energia
cebe em troca é a quinta tarifa de energia
no Brasil e que a capacidade é de
mais cara do mundo.
4.051 MW/hora nas duas usinas,
Se transformarmos estes 43
Grande parte
as empresas acionistas de Jirau e
bilhões de reais da construção de
Santo Antônia podem faturar até
da energia
Jirau e Santo Antônio em renda
R$ 530 mil a cada hora.
para a população local, teremos
produzida
Segundo dados do PAC uma noção do lucro extraordinápelas duas
Programa de Aceleração de Cresrio que as empresas terão com a
hidrelétricas venda de energia.
cimento, grande parte energia produzida pelas duas hidrelétricas
será levada
será levada principalmente para
Por exemplo: a capital de
os estados onde as empresas aci- para os estados
Rondônia, Porto Velho, segundo
onistas possuem suas indústrias
onde as
estimativas de 2006, possui uma
consumidoras de energia, como
população de 380.971 pessoas.
empresas
São Paulo, Rio de Janeiro e MiSe compararmos com o total do
acionistas
nas Gerais. Ou seja, pouca ou
investimento, ou seja, 43 bilhões
quase nada da energia produzida
possuem suas de reais, isso equivale a 113 mil
será utilizada pelo estado de
reais para cada habitante do
indústrias
Rondônia, então o discurso de
município.
desenvolvimento regional com a
construção de usinas hidrelétricas mais uma
vez é uma falácia.
Ameaçar a cobiça
Povo brasileiro paga
para ser roubado
Na região amazônica o desnível do terreno é pouco e os impactos sociais e
ambientais que as duas obras ocasionarão são
incalculáveis. Com 529,36 km² (53 mil hectares) de área inundada, o MAB estima que serão atingidas cinco mil famílias da região. O
Estudo de Impacto Ambiental (EIA) fala em 2,8
mil pessoas, no entanto, segundo o Movimento, estão sendo contabilizadas apenas as pessoas que possuem título de propriedade sobre
as terras, como é recorrente em todas as construções de barragens no país.
80
A dignidade do povo não interessa à cobiça internacional, mas o dinheiro do povo
interessa e muito para a construção da obra.
Os 43 bilhões de reais necessários para o conjunto de obras do chamado “Complexo do rio
Madeira” sairá do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um
internacional: esta é a força
da organização do povo
O capitalismo tem medo do povo e esta
é a tarefa dos verdadeiros donos dos rios e
florestas: ameaçar, amedrontar e expulsar os
mascarados que se instalam em todo o país,
e agora em especial na Amazônia, para saquear nossas riquezas.
Para a coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens, nosso
principal compromisso é enfrentar os projetos que não interessam ao povo e entregar
nossas fontes de energia, nossos rios, nossa água, nossos minérios e florestas para grupos
internacionais, é entregar nosso território e nossa gente à dominação estrangeira. É comprometer nosso futuro como povo
e como Nação.
Os donos de nossos rios. Até quando?34
Movimento dos Atingidos por Barragens- MAB tem entre suas principais
bandeiras de luta a construção de um
novo modelo energético, onde a água e a energia estarão a serviço e sob controle do povo Brasileiro. As empresas abaixo são inimigas de
nossa proposta e do povo brasileiro. Estas empresas transnacionais controlam hoje a exploração de nossos rios para produção de energia,
e fazem de maneira ditatorial e excludente. Dentro das novas leis brasileiras de recursos hídricos,
poderão controlar dentro brevemente o uso de
nossos rios para irrigação, transporte e abastecimento de água.
O
Tractebel-Suez
Subsidiária belga do conglomerado
francês de exploração de água, Suez, S.A..
A Tractebel está construindo a barragem de
Cana Brava, no rio Tocantins, com US$160
milhões em financiamento do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID). A
Tractebel se recusou a reunir com o MAB para
discutir a situação de centenas de famílias
atingidas, excluídas arbitrariamente de programas de compensação. Controla também
as barragens de Itá e Machadinho (rio Uruguai) e tenta adquirir a concessão para construir mais barragens no Tocantins.
Alcoa
(Aluminium Company of America)
A maior empresa de alumínio do mundo, com sede nos Estados Unidos, vem se beneficiando de cerca de 200 milhões de dólares anuais através do uso de energia subsidiada da barragem de Tucuruí (que inundou
cerca de 2.820 km2 de florestas tropicais)
para sua fábrica de alumínio, Alumar. Planeja construir três grandes barragens na Amazônia que inundarão comunidades indígenas
e reservas ecológicas. São sócios também em
barragens no rio Pelotas e Uruguai, no Sul do
Brasil. Tem parceria também nos rios Pelotas
e Uruguai no Sul do Brasil.
34
Texto feito pelo Movimento dos Atingidos por Barragens.
BHP Billiton
A maior empresa de minérios do mundo,
sediada nos Reinos Unidos, é sócia da ALCOA
no controle da Alumar e planeja barragens para a
Amazônia. Também é acionista de peso na Cia.
Vale do Rio Doce.
Citicorp
Banco dos Estados Unidos que tem parte
do controle da Companhia Vale do Rio Doce
(CVRD), a maior empresa de mineração do Brasil, e da fábrica de alumínio Albrás junto a um
consórcio japonês. Está unindo-se a Alcoa e Billiton
em planos de novas barragens para a Amazônia
para satisfazer sua gula por eletricidade.
AES Corporation
Empresa sediada nos Estados Unidos e o
maior investidor privado no Brasil. Embora afirme “ter orgulho” de sua responsabilidade social,
AES tem controle da CEMIG (Companhia Energética de Minas Gerais), que em parceria com a
CVRD está construindo barragens como as de
Aimorés, Igarapava, e Porto Estrela que expulsarão milhares de famílias.
AEP
(American Eletrical Power)
Empresa sediada nos Estados Unidos e
principal acionária da barragem de Lajeado, no
rio Tocantins. 15.000 pessoas foram expulsas
pela barragem, e o reservatório já está em enchimento. Mas o maior parte dos planos de
mitigação dos impactos sociais e ambientais
ainda não foi implementado, levando promotores públicos a acusar que há “fraude” no processo de licenciamento.
Eletricidade de Portugal
Associada a AEP na barragem de Lajeado
planeja quatro novas barragens no rio Tocantins.
81
Southern Company (USA)
Associada a AES no controle da CEMIG.
Outras:
Duke Energy (USA)
Proprietária de barragens no rio Paranapanema e de usina termelétrica em Corumbá (rio
Paraguai, no Pantanal).
Electricité de France
Associada a AES no controle da Light.
Endesa (Spain)
Dona da barragem de Cachoeira Dourada.
Como funciona a exploração nas
tarifas de energia elétrica35
“O modelo de energia elétrica no Brasil está a serviço dos
banqueiros e das grandes empresas multinacionais”
1
2
35
82
Como vimos, a energia é tida pelos
capitalistas como uma mercadoria
que gera muito lucro. A partir do processo de privatização do setor elétrico brasileiro, a energia foi transformada numa grande mercadoria e quem
passou a controlá-la foram as empresas multinacionais. Além disso, tornou-se um grande negócio que movimenta em torno de 100 bilhões de reais por ano, entre dezembro 1995 (início da privatização) e final de 2006 a
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) reajustou as tarifas residenciais de energia elétrica em 386,2%,
quase o dobro da inflação.
O domínio privado trouxe conseqüências desastrosas ao povo brasileiro, tem privatizado a água e
a energia e impôs uma superexploração da população ao mesmo
tempo em que privilegia os mais
ricos (grandes consumidores de
energia). O setor elétrico brasileiro, antes da privatização possuía
mais de 200 mil trabalhadores/as,
mais da metade foram demitidos
e hoje temos pouco mais de 100
mil. Além disso, as empresas que
mais gastam energia são as que
menos produzem empregos. Os
dados atuais apontam que estas
empresas consideradas extrativas
(as que extraem as riquezas do
Brasil principalmente para exportar) são as que mais estão crescendo no país.
3
No Brasil, mais de 80% da energia elétrica vem de fonte hídrica,
considerada uma das energias com
o menor custo de produção. Em
grande parte, o baixo custo de produção da energia é fruto do descaso com que as empresas cons-
Texto extraído da cartilha “O Preço da Luz é um Roubo”. Publicada pela Assembléia Popular. São Paulo, 2008.
trutoras de barragens tratam a população atingida pelas obras, não ressarcindo o que é de direito de cada
família. Hoje, 70% das famílias atingidas por barragens no Brasil, não são
consideradas pelas empresas construtoras, portanto, ficam sem terra, sem
casa, sem nada. Outro fator para o
baixo custo de produção da energia
é em virtude das empresas não considerarem nem repararem os graves
custos ambientais.
Mesmo com o suposto baixo
custo, o preço da energia elétrica deixou de ser cobrado pelo seu custo de
produção real (baseado na hidroeletricidade) para ser definido pelos padrões internacionais e determinado
pela energia que tem o maior custo
de produção, predominante nos demais países: a energia térmica, proveniente principalmente do petróleo.
Isso significa que o modelo energético
brasileiro foi organizado para permitir que as empresas controladoras da
energia (multinacionais) possam extrair as mais altas taxas de lucro (lucros extraordinários).
4
5
Dessa forma, nós pagamos um dos
preços mais altos do mundo pela
energia, superior ao de muitos países onde a população tem um salário muito maior do que o salário do
povo brasileiro. Por exemplo, em média, os brasileiros pagam o dobro do
preço cobrado nos Estados Unidos.
A fonte de energia é a mesma que a
nossa – a água – e as empresas que
vendem a energia também são as
mesmas que vendem aqui no Brasil.
No mais, todos sabemos que eles têm
um ganho salarial muito maior do
que os brasileiros.
O problema central na questão da
energia é a estruturação do modelo
energético, baseado no atual modo de
produção – o capitalismo. Portanto,
no atual estágio de dominação, a luta
em torno da energia ultrapassa a luta
pelos direitos das famílias e também
não é um problema puramente de
natureza tecnológica. Todos os planos
de novas hidrelétricas, ou os planos
de aproveitamento de outras fontes,
estão pensados para gerar energia ao
imperialismo, ou seja, para que as
grandes empresas multinacionais aumentem seus lucros, aproveitando o
potencial energético brasileiro.
A tendência para os próximos anos,
se não ocorrer nenhuma transformação de caráter popular, é acelerar a
construção de usinas em todas as regiões do Brasil, especialmente na região amazônica.
6
7
Os planos de hidrelétricas no Rio Madeira tem sido exemplo disso. Ao
mesmo tempo, que é porta de entrada para um conjunto de hidrelétricas a serem construídas na Amazônia, é possível afirmar que estas obras
estão pensadas na lógica do atual
modelo energético e, portanto, são
anti-populares. Combatê-las deve ser
um compromisso de todo povo brasileiro. Não se trata de uma luta apenas da população atingida pelos lagos das hidrelétricas, todo povo brasileiro é atingido pelas altas tarifas,
pela privatização da água e da energia, pelo caráter do financiamento
via BNDES, ou porque coloca as empresas públicas e o dinheiro de todo
o povo, a serviço desta lógica perversa. Portanto, a luta da energia deve
se transformar em luta popular porque, antes de tudo, é uma luta pela
soberania de nosso país.
O discurso de escassez de energia
tem sido o principal argumento ideológico para justificar novas obras,
os aumentos de tarifas e o financiamento público, através do BNDES.
No entanto, o cenário mundial de
crise energética afeta principalmente os países centrais do capitalismo
(Estados Unidos, Europa e Japão),
pois são eles que consomem 70% de
toda energia do mundo, apesar de
possuir apenas 21% da população
mundial. Ao analisarmos estes números percebemos que não se trata
83
de uma questão referente à quantidade de energia a ser produzida, e
sim de um padrão de vida e de consumo nestes países, é incompatível
com a possibilidade de ser reproduzido mundialmente. Ou seja, é impossível manter o nível de produção
de energia para satisfazer este padrão de consumo.
9
Existe energia suficiente para todos
os brasileiros. Em estudo recente,
o professor Dr. Dorival Gonçalves
Junior, da Universidade Federal do
Mato Grosso (UFMT), informou que
no Brasil sobram, hoje, mais de 8
mil megawatts de energia elétrica,
ou seja, 8 milhões de kilowatts. Esta
sobra de energia equivale a toda a
produção de Itaipu, que é a maior
barragem do Brasil e uma das maiores do mundo.
No mesmo estudo, o professor
aponta que, mantendo os atuais
níveis de crescimento econômico,
não vai faltar energia até o ano
2010, nem que o governo não faça
nenhuma nova usina. Hoje, a produção de energia é de 57.500 MW/
hora médios.
8
A luta em torno da energia deve ser
entendida em sua totalidade, como
parte da luta pela transformação do
atual modelo de sociedade.
„ Na esfera da geração de energia, a
luta contra as hidrelétricas tem se
transformado numa luta anti-imperialista, ou seja, o enfrentamento se
concentra contra as maiores transnacionais do mundo;
„ Na
esfera da transmissão e distribuição de energia, a luta contra o
alto preço das tarifas, apesar de
seu caráter tático, também pode
ser uma luta importante, pois afeta a esfera de realização dos lucros pelos capitalistas, já que o
povo brasileiro paga uma das tarifas de energia elétrica das mais
caras do mundo.
84
1
0
Afirmamos que o modelo energético
brasileiro está organizado na lógica
do capital financeiro, para permitir
os maiores saqueios e rapinas. Atualmente, os chamados “donos da
energia” tem sido uma fusão de grandes bancos (Santander, Bradesco,
Citigroup, Votorantim, etc.), grandes
empresas energéticas mundiais
(Suez, AES, Duke, Endesa, General
Eléctric, Votorantim, etc.), grandes
empresas mineradoras e metalúrgicas mundiais (ALCOA, BHP Billiton,
Vale, Votorantim, Gerdau, Siemens,
General Motors, Alstom, etc.), grandes empreiteiras (Camargo Correa,
Odebrecht, Andrade Gutierrez,
Queiroz Galvão, etc.), e grandes empresas do agronegócio (Aracruz,
Klabin, Amaggi, Bunge Fertilizantes,
Stora Enso, etc.).
O lucro das grandes empresas que
mandam no setor elétrico brasileiro
tem sido cada vez maior. Em um estudo recente, o engenheiro José Paulo Vieira chegou a seguinte constatação: o brasileiro paga, por ano, R$
15 bilhões a mais pelas tarifas de
energia do que quando as empresas eram estatais. O estudo mostra
que a privatização, seguida de racionamento, revisão tarifária e aumento de encargos, elevou custo do
serviço para a população. A privatização do setor elétrico brasileiro
não cumpriu a maior parte das promessas que fez.
Se fossem levados em consideração
os custos do chamado seguro
apagão, esse valor seria ainda maior. Esta é a conclusão da tese de doutorado defendida pelo engenheiro e
diretor presidente da Termoaçu, José
Paulo Vieira, no Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da Universidade de São Paulo (USP). Para chegar ao valor, o especialista também
levou em conta a elevação dos tributos e encargos setoriais posteriores
ao racionamento.
1
1
1
2
No atual modelo energético a destruição da natureza é cada vez mais evidente e alarmante. São grandes quantidades de terra e de floresta que são
alagadas para fazer mais e mais barragens. São grandes quantidades de
florestas derrubadas e de solos revirados para retirar os minerais. São enormes plantações de eucalipto e cana
para exportar, transformando grandes
áreas em verdadeiros desertos verdes.
Com a construção de barragens, as
empresas construtoras não enriquecem somente com a produção da
energia, mas se apropriam indevidamente do nosso território, da riqueza
de nosso país. Ou seja, barram nossos rios e ficam donas de nossas terras e da nossa água. E querem fazer
cada vez mais obras, agora entrando
na Floresta Amazônica.
Todas as usinas hidrelétricas foram
construídas ou financiadas com dinheiro público. Todo o sistema elétrico nacional foi montado pelos governos, durante muitos anos, com dinheiro público. Depois, durante os governos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso,
houve a famosa privatização, onde foi
entregue muito do patrimônio para as
grandes empresas do setor.
Muitas empresas foram privatizadas: como
a Eletropaulo, parte da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica), parte da Eletrosul. Mesmo que algumas sejam ainda consideradas estatais, têm boa parte do seu capital na mão de empresários particulares.
É bom sabermos que mesmo as que se dizem particulares – tanto as empresas quanto as
usinas – pegaram e continuam pegando dinheiro
do governo para seu financiamento. Na maioria dos casos, usam todo o dinheiro para fazer
a obra. Com o lucro da venda da energia, a obra
se paga em 3 ou 4 anos e eles têm um prazo de
mais 10 anos para pagar o empréstimo para o
governo, ficando por 30 anos donos da produção da energia.
Um exemplo de dinheiro público favorecendo as grandes empresas privadas é o do Complexo Madeira, que prevê a construção das barragens de Santo Antônio e Jirau.
O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) já anunciou que
vai financiar até 75% do total das obras das
barragens. A empresa estatal Furnas, que participa do consórcio, também deverá desembolsar uma grande parcela para a construção. Assim, as empresas privadas do consórcio ficarão
de donas das barragens, usufruindo do lucro da
venda da energia, sem colocar quase nada de
dinheiro para as obras.
O consumo da energia no Brasil
“Os grandes consumidores de energia são os que menos pagam”
No atual modelo do setor elétrico, os consumidores são divididos em dois grupos: de um lado
os grandes consumidores de energia elétrica, chamados “consumidores livres”, e de outro os pequenos e médios consumidores, chamados “consumidores cativos”.
prazo (mais de 20 anos). Na prática são as multinacionais, através da grande indústria (principalmente eletrointensiva) e grandes supermercados
(shoppings). Atualmente, existem no Brasil 665
consumidores livres e consomem sozinhos quase
30% da eletricidade.
Aos consumidores livres é fornecido energia ao preço de custo real. São aqueles que conseguem comprovar que consomem em um determinado momento mais de 3.000 quilowatt e, com
isso, eles obtém o direito de negociar livremente
com as geradoras o preço da energia através de
contratos que podem ser de curto, médio e longo
Os chamados consumidores cativos são os
consumidores residenciais e quase a totalidade
da pequena e média indústria e do pequeno e
médio comércio. O objetivo das empresas que
dominam a energia é vender a energia ao preço
mais alto possível para este grupo de consumidores e, desta forma, buscam obter as mais altas
85
taxas de lucro. Quem define a tarifa que deve ser
paga por este grupo de consumidores é a Aneel.
E, como vimos, nestes últimos dez anos de privatização os preços foram reajustados em cerca
de 400%. A justificativa para os aumentos é sempre o mesmo: escassez de energia.
Os consumidores cativos estão divididos em
subgrupos (A1, A2, B1, B2,...). Um destes
subgrupos é o que chamamos de “Subclasse
Residencial Baixa Renda”. Este grupo, por ser
considerado famílias de consumidores de baixa
renda, possui uma política de preços subsidiados.
Conforme a média de consumo brasileira, teríamos em torno de 17,5 milhões de famílias que se
enquadrariam neste subgrupo, no entanto, a Aneel
tenta criar critérios para excluir a grande parte destas famílias do acesso a este direito.
Transformando em exemplo:
A empresa estadunidense ALCOA e a Vale
possuem indústrias de alumínio e ferro no
Maranhão e no Pará (a Alumar e a Albrás) e desde 1984 recebem energia subsidiada da
Eletronorte. Em 2004, seus contratos com a
Eletronorte foram renovados. A ALCOA, que nestes últimos 20 anos recebeu energia ao preço médio de 20 dólares ao megawatt-hora (cerca de 38
reais), em maio de 2004 renegociou o contrato
até 2024 para receber 820 Mw médios e pagará
em média 25 dólares ao Mwh (cerca de 45 reais).
A Vale, que recebia energia ao preço médio de 13
dólares (24 reais) por megawatt-hora até 2004,
renegociou seu contrato de 800 Mwh médios até
2024 ao preço médio de 18 dólares/megawatthora (33 reais/Mwh).
Enquanto estas multinacionais (livres)
recebem a energia a um preço de 03 a 05 centavos por Kwh/mês, os trabalhadores das cidades, agricultores e pequenos e médios empresários (cativos) pagam de 700 a 1000%
mais que este preço.
Na tabela abaixo vemos a diferença de preço pago pela mesma quantidade de energia
consumida por estas duas empresas, comparando com o preço pago pelas famílias no Estado do
Rio Grande do Sul:
Consumo
Valor por kw
em R$
Total
em R$
Vale (Albrás)
100 Kw
0,033
3,30
Alcoa (Alumar)
100 Kw
0,045
4,50
Consumidor residencial – tarifa normal – RGE/RS
100 Kw
0,467
46,70
Consumidor residencial – tarifa rural – RGE/RS
100 Kw
0,255
25,50
Consumidor residencial – tarifa social – RGE/RS
100 Kw
----
24,33
Consumidores
86
Elaboração do gráfico: MAB
Veja no gráfico abaixo o preço pago pelas duas empresas (ALCOA e Vale) e os demais consumidores, tomando como exemplo a tarifa cobrada no Rio Grande do Sul:
Pelo gráfico, vemos que, enquanto a Alcoa
e a Vale pagam menos de R$ 5,00 por 100Kwh de
energia, os consumidores residenciais e as empresas e o comércio de pequeno e médio porte
pagam mais de R$ 45,00 pela mesma quantidade
de energia consumida.
Ainda pelo gráfico, vemos que as famílias
gaúchas residentes no meio rural pagam pouco
mais de R$ 25,00 e as famílias que se enquadrariam na tarifa social, pagariam mais de 24
reais, ou seja, 500% mais caro que as multinacionais citadas.
A luta pela tarifa social
Famílias que consomem até 220 kwh/mês podem ter acesso
à Tarifa Social mediante autodeclaração
1. A tarifa social de energia elétrica é um preço
cobrado das famílias mais pobres, varia de
local para local, mas na maioria dos casos
funciona com preços mais baixos do que a
tarifa normal. Os descontos na conta de luz
podem variar de 10% até 65% do valor da
tarifa normal.
2. Conforme a lei em vigor neste momento (maio
de 2008), as orientações para as famílias interessadas são as seguintes:
A) Para todas as famílias que consomem
menos de 80 kwh/mês, o reconhecimento
pela distribuidora de energia elétrica deve ser
emitido de forma automática nas contas de luz,
não havendo necessidade nenhuma de comprovação de baixa renda.
B) Para as famílias que seu consumo situa-se na faixa de 80 kwh/mês até no
máximo 220 kwh/mês, podem ser enquadradas observando os seguintes orientações:
Ö O gasto de energia da família não pode ultrapassar o chamado
“limite regional máximo”. A Aneel definiu uma tabela que
apresenta os limites para cada Estado.
Ö As ligações devem ser monofásicas.
Ö Para quem se inclui nestes critérios e ainda não está cadastrado na
concessionária basta preencher um documento chamado de
“Autodeclaração”. Este documento deve ser assinado pelo responsável pela conta da energia e entregue na sede da distribuidora
local. Depois de entregue, a empresa é obrigada a colocar imediatamente estas novas famílias como beneficiárias dos subsídios constantes na Tarifa Social Baixa Renda.
Ö As famílias não precisam provar sua inscrição no Programa Soci-
al do Governo Federal (Fome Zero) para serem reconhecidas pela
distribuidora ou para se autodeclarar.
Ö Os prazos estão em aberto e não há datas limites para apresentar
novas autodeclarações.
Ö A decisão é de abrangência nacional, ou seja, em todos os estados
as famílias podem se autodeclarar.
87
As batalhas na justiça
É bom saber que para garantir esta lei está
se travando também uma batalha na justiça,
que já teve os seguintes passos realizados:
1.
2.
3.
rifa Social Baixa Renda, basta entregar inicialmente uma autodeclaração
na distribuidora de energia elétrica de
sua região. Desta forma, novas famílias podem ser enquadradas na chamada Tarifa de energia elétrica Subclasse
Baixa Renda.
Em 2004, a Associação Brasileira de
Defesa do Consumidor (ProTeste) e a
Fundação Procon de São Paulo entraram na justiça com uma Ação Civil Pública contra a Aneel e contra o Governo Federal para garantir às famílias que consomem menos de 220 kwh/
mês o direito a pagarem a chamada
“Tarifa Social de Energia Elétrica” ou
“Baixa Renda”.
4.
Este processo está em andamento na
Justiça Federal. Em abril de 2006, um
Juiz de Brasília deu uma decisão favorável às famílias, podendo o benefício chegar para mais de 17 milhões
de famílias no Brasil inteiro. Verificamos que milhares de famílias têm o
direito, mas não vem recebendo os
descontos nas “contas de luz” porque
ainda não estão cadastradas.
Desde setembro de 2007, todas as
concessionárias e distribuidoras de
energia elétrica foram notificadas e
orientadas pela Agencia Nacional de
Energia Elétrica, para que cumpram a
decisão judicial (através do ofício circular nº 560/2007 - Aneel). No entanto, as empresas têm buscado abafar a
notícia, para evitar que as famílias com
direito possam se autodeclarar.
5.
Finalmente é importante destacar
que muitas famílias que encaminharam suas autodeclarações de forma
organizada para as empresas que vendem energia já estão ganhando os
descontos nas suas contas de energia elétrica.
6.
Conforme mencionamos acima, os limites máximos regionais variam de local
para local. Na página ao lado, segue
uma tabela com os limites máximos, definidos pela Aneel, conforme a empresa distribuidora de energia.
E em maio de 2007 as famílias brasileiras tiveram nova vitória. Conforme
a decisão do Sr. Catão Alves, Desembargador Federal de Brasília, todas as
famílias que consomem abaixo de 220
kwh/mês de energia elétrica, para receberem os descontos referentes a Ta-
Companheiros e companheiras, todos os elementos citados no texto só têm sentido se existir a organização e a pressão popular. Então, como militantes que somos, também somos responsáveis por assumir esta campanha contra os altos
preços da energia elétrica.
Temos que organizar nossas comunidades, bairros e vilas, fazer panfletagens e ações de agitação e propaganda
para que a informação chegue ao maior número possível de
famílias, e dessa forma consigamos baixar o preço da luz e
mobilizar o povo.
88
EMPRESAS
Limite regional - kWh
CERON - Centrais Elétricas de Rondônia
CELPA - Centrais Elétricas do Pará
CEMAT - Centrais Elétricas Matogrossenses
CENF - Companhia de Eletricidade de Nova Friburgo
CEA - Companhia de Eletricidade do Amapá
COELBA - Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia
CERJ - Companhia de Eletricidade do Estado do Rio de Janeiro
CELB - Companhia Energética da Borborema
CEAL - Companhia Energética de Alagoas
CELPE - Companhia Energética de Pernambuco
CER
COELCE - Companhia Energética do Ceará
CEMAR - Companhia Energética do Maranhão
CEPISA - Companhia Energética do Piauí
COSERN - Companhia Energética do Rio Grande do Norte
SULGIPE - Companhia Sul Sergipana de Eletricidade
ENERGIPE - Empresa Energética de Sergipe
LIGHT
Jarcel Celulose
SAELPA - Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba
140
ENERSUL - Empresa Energética do Mato Grosso do Sul
150
AES SUL
ELETROCAR - Centrais Elétricas de Carazinho
CELESC - Centrais Elétricas de Santa Catarina
COCEL - Companhia Campolarguense de Energia - PR
CFLO - Companhia Força e Luz do Oeste
CEEE - Companhia Estadual de Energia Elétrica - RS
COPEL - Companhia Paranaense de Energia
COOPERALIANÇA
DEMEI - Departamento Municipal de Energia de Ijuí
EFLUL - Empresa Força e Luz de Urussanga - SC
JOÃO CESA
FORCEL
XANXERÊ
HIDROPAN - Hidrelétrica Panambi
UHENPAL - Usina Hidrelétrica de Nova Palma - RS
RGE - Rio Grande Energia - RS
MMC
160
CELTINS - Companhia de Energia Elétrica do Estado do Tocantins
CEB - Companhia Energética de Brasília
CELG - Centrais Elétricas de Goiás
CEMIG - Companhia Energética de Minas Gerais
CHESP - Companhia Hidroelétrica de São Paulo
CFLCL - Companhia Força e Luz Cataguazes Leopoldina - MG
DMEPC - Departamento Municipal de Eletricidade de Poços de Caldas - MG
ESCELSA - Espírito Santo Centrais Elétricas
ELFSM - Empresa de Luz e Força Santa Maria - ES
180
ELETROACRE - Companhia de Eletricidade do Acre
CEAM - Companhia Energética do Amazonas
MANAUS ENERGIA
BOA VISTA ENERGIA
200
BANDEIRANTE
Caiuá
CJE
CLFM
CNEE - Companhia Nacional de Energia Elétrica
CLFSC - Companhia Luz e Força Santa Cruz
CPEE - Companhia Paulista de Energia Elétrica
CPFL
PIRATININGA
CSPE
ELEKTRO
EEB
EEVP
ELETROPAULO
220
89
90
91
92
Declaração universal
dos direitos da água
E
m 22 de março de 1992 a ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu o “Dia Mundial da Água”, publi-
cando um documento intitulado “Declaração
Universal dos Direitos da Água”. Eis o texto que
vale uma reflexão:
01
A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo,
cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão, é plenamente responsável aos olhos de todos.
02
A água é a seiva de nosso planeta. Ela é condição essencial de vida
de todo vegetal, animal ou ser humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a
agricultura.
03
Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada
com racionalidade, precaução e parcimônia.
04
O equilíbrio e o futuro de nosso planeta dependem da preservação da
água e de seus ciclos. Estes devem permanecer intactos e funcionando
normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Este
equilíbrio depende em particular, da preservação dos mares e oceanos,
por onde os ciclos começam.
05
A água não é somente herança de nossos predecessores; ela é, sobretudo,
um empréstimo aos nossos sucessores. Sua proteção constitui uma necessidade vital, assim como a obrigação moral do homem para com as gerações presentes e futuras.
06
A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que
pode muito bem escassear em qualquer região do mundo.
07
A água não deve ser desperdiçada, poluída, nem envenenada. De maneira
geral, sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para
que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da
qualidade das reservas atualmente disponíveis.
08
A utilização da água implica em respeito à lei. Sua proteção constitui uma
obrigação jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta
questão não deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado.
09
A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua proteção
e as necessidades de ordem econômica, sanitária e social.
10
O planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o
consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.
93
Legislação sobre a água36
a história das sociedades, os direitos humanos foram e estão sendo
construídos através das lutas e da
organização do povo. Os direitos ambientais
foram consagrados há pouco tempo pelas Nações Unidas, particularmente consignados na
Agenda 21, promulgada pela ECO-92, a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Trata-se de
um conjunto de direitos que pretendem assegurar a vida no Planeta Terra pela proteção,
preservação e recuperação das condições
ambientais e pelo uso sustentável dos recursos
naturais (terra, ar, água e biodiversidade). O
Brasil se comprometeu em implementar a Agenda 21, apesar de não ter força de lei.
N
Dentre os direitos ambientais, queremos
destacar o direito à água. Nada mais justo que o
povo se organize em defesa da conquista desse
direito. Para isso, é necessário o conhecimento da
legislação sobre os recursos hídricos. Seguem alguns tópicos:
1 - Em nível internacional
A Declaração Universal dos Direitos da Água,
proclamada em 1992, pela ONU, embora não tenha força de lei, representa uma carta de intenções
das Nações Unidas sobre o direito à água. Essa
Declaração é, na verdade, uma convocatória aos
cidadãos e aos países do mundo inteiro para que
se esforcem no desenvolvimento da cultura do direito e dos deveres em relação à água.
Os Art. 1 e 2 da Declaração afirmam que:
Art. 1 - “A água faz parte do patrimônio do
planeta”.
Art. 2 - “A água é a seiva do nosso Planeta.
Ela é a condição essencial da vida de
todo ser vegetal, animal ou humano.
Sem ela não poderíamos conceber
como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou agricultura. O
direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano [...]”.
A Declaração entende a água como um
patrimônio da humanidade, condição essencial
para a vida, um direito humano e um bem público.
94
36
Texto disponível em www.mabnacional.org.br
Como todos somos responsáveis por ela, devemos
utilizá-la com consciência e racionalidade, ou seja,
com precaução, cuidado e preservação. A gestão
econômica, sanitária e social da água deve ser
controlada pelo Poder Público com a participação de toda a sociedade.
O Art. 6 da mesma Declaração, aponta: “A
água não é uma doação gratuita da natureza; ela
tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é,
algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito
bem escassear em qualquer região do mundo.”
Este artigo entende a água como “valor econômico”, o que evidencia uma contradição em
relação aos Art. 1 e 2, citados anteriormente. Se a
água é considerada “condição essencial de vida”
e “patrimônio do planeta”, não pode ser considerado bem econômico, desfrutável mediante pagamento como bem. O único pagamento deve ser
pelo serviço de disponibilizá-lo.
2 - Em Nível Nacional
a) A Constituição do Brasil, promulgada em
04/10/1988, chamada “Constituição Cidadã”,
traça a política nacional das águas em três artigos:
Art. 20 – “São bens da União:
III – os lagos, os rios e quaisquer correntes
de água em terrenos de seu domínio, ou
que banhem mais de um Estado, sirvam
de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais
e as praias fluviais.
Art. 26 - “Incluem-se entre os bens dos Estados:
I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União.”
Art. 21 - “Compete à União:
XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”.
b) A Lei N. 9.433, de 08/01/1997, institui a
Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
O Art. 1 da Lei N. 9.433 estabelece os
fundamentos da Política Nacional
de Recursos Hídricos:
I – a água é um bem de domínio público;
II – a água é um recurso natural limitado,
dotado de valor econômico;
III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo
humano e a dessedentação de animais;
IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;
V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial
para implantação da Política Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser
descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e
das comunidades.
Com esse conjunto de fundamentos, a Política Nacional de Recursos Hídricos tem como objetivos preservar o direito ao acesso à água em padrões de qualidade para as gerações atuais e futuras; utilizar racionalmente a água integrando-a ao
projeto de desenvolvimento sustentável do País;
prevenir e defender a água de usos inadequados.
Alguns aspectos dessa lei
a serem considerados
A cobrança do uso
dos recursos hídricos
Quando a legislação define a cobrança do uso
dos recursos hídricos pretende reconhecer o fornecimento da água como um bem econômico dando ao
usuário a indicação do seu real valor e incentivar a
racionalização de seu uso. Os valores arrecadados
deverão, necessariamente, ser aplicados na bacia
hidrográfica na qual foram gerados para assegurar
o direito à água para as futuras gerações.
Quem define os valores a serem cobrados pelo
uso dos recursos hídricos? São as Agências de Água,
autarquias vinculadas ao Ministério do Meio Ambiente, que exercem a função de secretaria executiva
dos Comitês de Bacia Hidrográfica. É a Lei N. 9.984,
de 17/07/2000, que dispõe sobre a criação da Agência Nacional da Água – ANA. Portanto, a ANA controla o mecanismo de gerenciamento das águas, isto
é, a outorga (licença de uso), a determinação do
custo das águas, e é a arrecadadora do valor estipulado pela água utilizada pelo consumidor e a
aplicadora das respectivas arrecadações.
O sistema nacional de gestão
dos recursos hídricos
A gestão da água deverá ser feita por um
sistema integrado e descentralizado, envolvendo:
o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os
Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, os Comitês de Bacia Hidrográfica, os órgãos dos poderes públicos federal, estadual e municipal cujas
competências estejam relacionadas à gestão dos
recursos hídricos e as Agências de Água.
Em especial, cabe a cada cidadão buscar a
informação e a participação nos Comitês de Bacia Hidrográfica.
O que é um Comitê de Bacia
Hidrográfica?
O Comitê é um agrupamento de pessoas
representantes do Poder Público, dos usuários e
da sociedade civil que se organizam para planejar a gestão das águas de uma Bacia Hidrográfica,
isto é, de um conjunto de afluentes situados numa
mesma região e que deságuam em um rio principal. Um Comitê tem, portanto, a área de atuação
geográfica de uma Bacia Hidrográfica.
O Comitê tem como principais competências:
debater e articular as questões relativas aos recursos
hídricos; resolver conflitos, em primeira instância, relacionados à questão; aprovar e acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da Bacia; estabelecer mecanismos de cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sugerir valores a serem cobrados dos
usuários; definir critérios e ratear custos das obras de
uso coletivo; propor mapeamento e demarcação de
pequenas nascentes, córregos e mananciais aos Conselhos Nacional e Estadual de Recursos Hídricos.
A Resolução N. 5, do Conselho Nacional
de Recursos Hídricos, de 10/04/2000, ao regulamentar a criação dos comitês, estabeleceu que os
mesmos devem ser compostos por uma tríplice
representação: 40% do poder público; 40% de
usuários; e 20% da sociedade civil organizada.
Todos de uma forma ou de outra, podem
participar dos Comitês de Bacia Hidrográfica e
das demais lutas em defesa do direito à água para
contribuir na tomada de decisão sobre os rumos
de sua comunidade (local, municipal, estadual e
federal), assegurando o acesso e a qualidade da
água, sua preservação e sua gestão pública.
95
3 - Em nível estadual
a) A Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de 1989, em seu Art. 171 institui:
“o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, integrado ao sistema nacional de gerenciamento
desses recursos, adotando as Bacias Hidrográficas como unidades de planejamento e gestão, observados os aspectos de uso e ocupação do solo, com vistas a promover:
I – a melhoria da qualidade dos recursos
hídricos do Estado;
II – o regular abastecimento de água às populações urbanas e rurais, às indústrias e
aos estabelecimentos agrícolas”.
b) A Lei N. 10.350, de 30/12/1994, regulamenta o Art. 171 da Constituição Estadual,
instituindo o Sistema Estadual de Recursos
Hídricos. O objetivo do Sistema Estadual é definido no Art. 2 da Lei que pretende “promover a harmonização entre os múltiplos e competitivos usos dos recursos hídricos e sua limitada e aleatória disponibilidade temporal e espacial, de modo a:
I – assegurar o prioritário abastecimento da
população humana e permitir a continuidade e desenvolvimento das atividades
econômicas;
II – combater os efeitos adversos das enchentes e estiagens e da erosão do solo;
III – impedir a degradação e promover a
melhoria de qualidade e o aumento da capacidade de suprimento dos corpos de água
superficiais e subterrâneos, a fim de que as
atividades humanas se processem em um
contexto de desenvolvimento socioeconômico que assegure a disponibilidade dos
recursos hídricos aos seus usuários atuais
e às gerações futuras, em padrões quantitativa e qualitativamente adequados”.
Em conformidade com a legislação federal,
o Estado pretende assegurar água em qualidade e
quantidade para o abastecimento humano e econômico, descentralizando suas ações na gestão da
água por regiões e Bacias Hidrográficas, bem como
por meio da participação comunitária através de
Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica
e a criação de Agências de Região Hidrográfica.
Privatização da água37
Silvio Caccia Bava38
Brasil está pressionado pelo FMI e pelo
Banco Mundial a privatizar os serviços
de água e esgoto. De fato, este processo
já começou. Estima-se que sejam cerca de trinta
municípios que já privatizaram esses serviços. A
iniciativa mais expressiva talvez seja a do governo do Estado do Amazonas, que em junho de
2000 leiloou a Manaus Saneamento, responsável
por 96% das atividades da Companhia de Saneamento do Amazonas. Quem comprou a Manaus
Saneamento foi a transnacional francesa SuezLyonnaise. Pagou R$ 180 milhões, mas 50% destes recursos foram financiados pelo BNDES. Segundo especialistas, estes recursos teriam sido
O
96
recuperados pela empresa em apenas 14 meses
de operação. A fonte destes recursos são as tarifas pagas pela população.
A privatização da água é um processo que
ganha escala em todo o mundo. Em 1980 eram
12 milhões de domicílios. Hoje são 600 milhões.
Os países pioneiros são a Inglaterra, a França, o
Chile. Com o discurso das PPP (parcerias público-privado), que não tem nada de brasileiro, quatro grandes multinacionais – com o respaldo das
agências multilaterais de financiamento – avançam sobre os serviços públicos de saneamento
básico no mundo inteiro. São elas: Ondeo, uma
37
Estudos da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental revelam que a privatização dos serviços sai muito mais cara para
o consumidor. Se os investimentos forem feitos por órgãos públicos municipais, preço da água seria até 48% menor do que
no modelo das PPPs. Texto disponível em http://www.polis.org.br/artigo_interno.asp?codigo=94.
38
Sociólogo, é diretor do Instituto Pólis e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
filial da Suez-Lionnaise, com 125 milhões de clientes; Veolia (ex-Vivendi), com 110 milhões de
clientes; Saur, com 29 milhões de clientes. A estas
três companhias francesas se soma a RWE alemã
e sua filial inglesa, a Thames Water.
818,8 milhões, mas até o fim do ano tinham sido
pagos apenas R$ 53,6 milhões e comprometidos
outros R$ 454,7 milhões. Os recursos programados e não liberados foram para o pagamento dos
juros da dívida pública.
O resultado destas privatizações é um aumento exorbitante no preço da água. Em 1995 a empresa
Générale des Eaux (Veolia) ganhou o leilão de privatização da água na província Argentina de Tucumán.
Ao assumir os serviços a empresa aumentou em 104%
o preço dos serviços. Em 2000 a empresa norte-americana Betchel assumiu o controle dos serviços de água
de Cochabamba, na Bolívia. Em semanas a empresa
triplicou o preço dos serviços para as famílias mais
pobres. Os exemplos poderiam se multiplicar, pois esta
é a lógica das empresas que operam neste novo mercado. Mas estes exemplos têm outro significado também. Nos dois casos a mobilização popular obrigou
seus governos a rescindirem os contratos com estas
empresas e a assumirem diretamente a prestação destes serviços públicos.
Segundo estudos da Frente Nacional pelo
Saneamento Ambiental a privatização sai muito
mais cara para o consumidor. Se os investimentos forem feitos por órgãos públicos municipais, o
preço da água seria de 37% a 48% menor do que
no modelo proposto pelas PPP. Além de observar
que as empresas que participam das privatizações
têm financiado seus investimentos com recursos
do BNDES e do FGTS, que poderiam ser
direcionados para as autarquias municipais ou
as companhias estaduais de saneamento.
Estimativas do Ministério das Cidades dizem
que são necessários R$ 178 bilhões para
universalizar os serviços de água e esgoto até 2020.
Algo como R$ 9 bilhões por ano. Dinheiro para atender aos 10,7% de domicílios urbanos que ainda não
tem água e os 23,3% que ainda não tem esgoto, além
de investimentos para garantir o sistema atual.
O histórico de investimentos em saneamento básico não é animador. Nos anos 70 ele foi de
0,34% do PIB; nos anos 80 foi de 0,28%; nos anos
90 foi de 0,13%. Em 2003 foram gastos apenas
R$ 60 milhões; em 2004 foram autorizados R$
O acesso à água é um direito humano fundamental. O abastecimento de água e o saneamento devem ser serviços públicos prestados pelo
Estado. Estas são proposições da Plataforma Global da Água, documento elaborado por uma articulação de movimentos sociais do mundo inteiro,
e são uma reação à onda de privatizações dos
serviços públicos que transformam a água de um
bem público em mercadoria.
A África do Sul e o Uruguai já incluíram
nas suas Constituições que a água não pode ser
privatizada. A Frente Nacional de Saneamento
Ambiental apresentou ao Congresso um documento com 720.000 assinaturas contra a privatização
da água no Brasil. Não podemos abrir mão de que
todo brasileiro tem direito à água potável de qualidade, mesmo se não tiver dinheiro para pagar.
O Nordeste é Viável sem Transposição
e com Ética na Política39
e São João a São Pedro, o Nordeste
todo se une em sua maior festa. Coincidente com as colheitas no sertão,
é a festa da fartura, da solidariedade e da alegria. Do Nordeste viável, auto-sustentável e soberano. Nós, os movimentos populares e enti-
D
39
dades civis da Bacia do Rio São Francisco e de
todo o Nordeste, vimos festejar em Cabrobó-PE
para mostrar que o Nordeste não precisa deste
projeto traiçoeiro chamado “integração de bacias”, a mesma antiga transposição. Acampados em cerca de 2000 pessoas junto ao canteiro
Declaração dos movimentos sociais
(disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/imagens/banners/anexos/ 20070626-1.doc, acessado em 18/05/2008)
97
de obras, no km 29 da BR 428, vimos exigir a
imediata suspensão das ações que dão início
às obras da transposição. Em sinal de outro desenvolvimento, voltado para a população e não
para o capital, nos irmanamos ao Povo Truká e
aos indígenas de todo o Nordeste na retomada
desta terra, da Fazenda Mãe Rosa, desapropriada para a transposição, território Truká desde
tempos imemoriais.
Água nos açudes e cisternas,
caatinga verdejante,
comidas de milho, requeijão e
paçoca, licores e muito forró
ao redor da fogueira...
Sinais do Nordeste bonito e
viável, evidências do que pode
o período chuvoso do semi-árido,
se para ele deslocarmos o foco,
concentrarmos os esforços,
investirmos.
Ao optar por obra contra a seca e não a
favor do semi-árido e sua dinâmica sócioambiental, o governo erra mais uma vez, como
tem acontecido historicamente. A proposta de
conviver com o semi-árido – esperava-se desse governo – sepultaria a política e a indústria do combate à seca e consolidaria a política do aproveitamento do chuvoso, pois é
neste, e não na seca, que se decide a vida do
sertão e do sertanejo. A transposição, barganhada e em nome de uma falsa revitalização
das bacias do Nordeste, significa uma “travessia para o passado”.
A questão não é doar água ou não, mas
qual desenvolvimento, a que preço e para quem.
E como enfrentar os limites impostos pelas mudanças climáticas globais, que tendem a diminuir os mananciais do Rio São Francisco e
desertificar o semi-árido.
Este é o terceiro acampamento que fazemos, o último em Brasília por uma semana no mês de março, com 740 pessoas. Já se
somam quase uma centena de manifestações
públicas. Sequer fomos recebidos, muito
menos ouvidos ou considerados. Será por que
significamos a incômoda verdade sobre esse
projeto e o que ele vai trazer de falso desenvolvimento para o Nordeste? Ou é porque vivemos num blefe de democracia? Ditadura
98
de novo, com desenvolvimentismo e até ação
do Exército?
O processo transcorrido até aqui não foi democrático nem republicano e desabona o projeto,
seus promotores e lobistas:
¾ Estudos de impacto ambiental formais e
incompletos;
¾ Críticas fundamentadas dos principais
especialistas;
¾ Desrespeito às decisões do Comitê de
Bacia;
¾ Descumprimento do acordo feito com D.
Luiz Cappio, ao encerrar a greve de
fome, em novembro de 2005, para que
houvesse um amplo e sério debate nacional sobre o assunto;
¾ Incertezas e inverdades quanto as reais
motivações do projeto, quanto a seus
custos e a quem vai pagar a conta;
¾ Propaganda enganosa sobre seu alcance, ao manipular a opinião pública e inventar um público beneficiário de 12 milhões de sedentos, na verdade, os que vão
pagar a conta dos grandes usos econômicos intensivos em água;
¾ Irregularidades flagrantes detectadas pelo
Tribunal de Contas da União;
¾ Indícios
de corrupção (caso da
Gautama, empreiteira candidata ao segundo trecho mais caro da obra);
¾ Ocultação
ao debate público dos
projetos de transposição do Rio
Tocantins para os Rios São Francisco e Parnaíba;
¾ Compra descarada de apoio dos políti-
cos do São Francisco, com verbas da
revitalização;
¾ Chantagens de um pseudo-desenvol-
vimento transmutado em crescimento econômico a qualquer custo e sem
futuro...
São motivos mais que suficientes para que
esse projeto seja arquivado. E que a sociedade
cobre essa única atitude digna de um Estado de
Direito democrático e republicano.
Transposição não é solução
esta a verdade que não quer calar!
√
√
Queremos um programa verdadeiro de convivência com o semi-árido;
√
Queremos a democratização do acesso à água, com acesso livre da população aos açudes
e às adutoras;
√
Queremos controle social sobre os usos das águas dos açudes e reservatórios geridos com
competência;
√
√
Queremos destinação prioritária das águas para a agricultura familiar e camponesa;
√
Queremos programas que ampliem, divulguem e implantem as mais de 140 tecnologias
hídricas, agrícolas e ambientais de convivência com o bioma caatinga e o clima semi-árido;
√
Queremos reforma agrária ampla e efetiva e regularização dos territórios tradicionais, a começar pelas áreas dos Povos Truká, Tumbalalá, Pipipã e Cambiwá, atingidos pela transposição;
√
Queremos a suspensão das barragens de Pedra Branca, Riacho Seco e Pão de Açúcar e de
Centrais Nucleares na região;
√
√
Queremos uma revitalização do Rio São Francisco que seja para valer!
√
Queremos o arquivamento definitivo do projeto de transposição!
Queremos um projeto de desenvolvimento regional que atenda às reais necessidades da
população do semi-árido e do São Francisco e não de uma minoria de empresários nacionais e estrangeiros;
Queremos a implementação imediata das 530 obras do Atlas Nordeste da ANA – Agência
Nacional de Águas para levar água a 34 milhões de habitantes do Polígono das Seca;
Queremos que o Supremo Tribunal Federal tome finalmente a decisão e que essa seja contrária ao projeto;
Conviver com o semi-árido é a solução!
São Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo!
Cabrobó, 26 de junho de 2007.
Ao São Francisco40
Ademar Bogo
ão Francisco, rio e santo. Águas vertidas do pranto das margens secas estendidas. Margens que perderam a vida,
águas que perderam o encanto.
S
Margens de velhas carcaças pelos anos carcomidas. Por não serem protegidas desbarrancaram no leito, como um peso sobre o peito o rio já
não respira; e parece uma mentira, mas também
40
não se alimenta; e quem do rio se sustenta, sente
que não tem mais jeito.
Pensam em sangrar o rio cortando qual
estilete. Pra desviar um filete do sangue que já não
tem. Dizem que é para o bem da pobreza do nordeste; na verdade os cafajestes controlarão o canal; não
haverá nada igual, nos novos tempos vindouros, a
água vai virar ouro nos baldes do capital.
Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=565, acessado em 18/05/2008.
99
Este é o grande dilema que teremos de enPra manter o Chico vivo é a grande reação.
frentar, aqui e em qualquer lugar, que exista água
Contra a transposição, desta armação tão perfeita.
corrente. Creiam, que daqui pra frente, nossas fonNão pode querer colheita quem nunca plantou um
tes naturais, com políticas liberais, serão todas pergrão! Nem pode existir razão em um projeto polêseguidas, saqueadas ou mesmo venmico. O Chico é um escravo anêmico,
que está indo ao mercado e será São Francisco, didas, para empresas comerciais.
privatizado se não houver reação.
Por isso é que a confiança está
Em nosso grande nordeste há
dez milhões de camponeses, e foi por
diversas vezes que votaram em eleições; aguardando soluções que aqui
nunca chegaram, somente os ricos
ganharam e haverá continuidade, se
a solidariedade não assumir os desafios, pois só as águas dos rios, ainda
não são propriedade.
rio e santo.
Águas vertidas
do pranto das
margens secas
estendidas.
Margens que
perderam a
vida, águas
que perderam
o encanto.
perdendo a paciência, pois os sinais
de incoerência estão por todos os lados! Vemos milhões de acampados
sem ver um palmo de terra! O agronegócio impera, poluindo o ambiente; e
é o mesmo presidente, dos transgênicos
e das barragens, que em tudo acha
vantagem num modelo decadente.
Se o presidente quisesse fazer
uma obra bonita, atacaria a maldita
propriedade fundiária, faria a Reforma Agrária e daria condições, para
que os nossos sertões fossem todos protegidos.
Tendo isto resolvido, se voltaria pra cidade, teria
água em quantidade com os rios abastecidos.
Então se torna importante apoiar o Frei Luiz. É o orgulho do país
aos poucos se levantando. Ele está no
comando, contra a transposição; fez
da fome a condição de um movimento de massas; contra as mentiras e trapaças se
ergue descalça a verdade, impondo-se a crueldade, para evitar a desgraça.
Poderia então transpor as águas do São
Francisco; não correria nenhum risco no conteúdo e na forma. Depois de feita a reforma e
revitalizado o rio, pra não ficar no vazio teria leis
por garantia, que enquanto raiasse os dias, as
águas dos rios ou paradas, não seriam privatizadas nem vendidas suas bacias.
Todo povo brasileiro está chamado a jejuar, é a forma de lutar que encontramos neste instante; seja aqui perto ou distante terá força este
protesto, que aos poucos e em um só gesto se
ampliará esta rede. Se não houver solução, seguindo a transposição, o frei morrerá de fome e o
rio morrerá de sede.
A Reforma Hídrica41
Roberto Malvezzi
“Estão cercando os lagos brasileiros”, adverte o Movimento dos Atingidos por Barragens.
O povo já não pode aproximar-se sequer para
retirar um caneco de água. Cercaram o “Eixão”
que leva água do Castanhão, no Ceará, para o
porto de Pecém, na grande Fortaleza. A água está
protegida por arame, guardas em moto, câmeras
41
100
filmando os movimentos de quem ousar aproximar-se do canal. Foi também por isso que Géssia,
a menina sem água de 12 anos, morreu em
Petrolina, ao cair de um canal de 15 metros de
altura que leva água para irrigação. Ela tentava
roubar um balde de água para suprir as necessidades básicas de sua família.
Texto publicado em 26/03/2008, disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=5137
(consulta realizada em 18/05/2008)
O Dr. Manoel Bonfim, por tantos anos diretor do DENOCS, em seu livro “Potencialidades
do Semi-árido”, afirma que o “grande erro do
DENOCS foi não fazer a distribuição das águas
estocadas no Nordeste”. Assim, 70 mil açudes feitos em toda a região – a mais açudada do planeta
– guardam águas que nunca são democratizadas,
porque as adutoras que visem sua distribuição
jamais são feitas. Os poços, feitos com dinheiro
público, acabaram trancafiados em propriedades
particulares de latifundiários.
Finalmente, se o governo conseguir realizar a transposição do São Francisco, todos os
grandes açudes receptores terão suas águas privatizadas, tanto as originadas pela chuva – potencial de 37 bilhões de metros cúbicos - quanto
aquelas oriundas do rio São Francisco. Finalmente uma elite nordestina restrita vai conseguir impor o primeiro grande “mercado de
águas” no Brasil, como já queria o Banco Mundial ainda na década de 90.
Pouco a pouco, sem grande reação da população brasileira, nossas águas vão conhecendo
o caminho da privatização, embora constitucionalmente continuem como um “bem da União”.
Quando falamos em reforma hídrica, propomos exatamente o empenho do Estado para
garantir que a água continue um bem comum,
acessível a todos, fora das regras do mercado.
Parece que, assim como a terra, não será possível, a não ser pela luta popular.
Ao construirmos aproximad amente 300 mil
cisternas, ao propormos a captação da água de
chuva para a produção, ao propormos a construção
das adutoras que estão previstas no Atlas do
Nordeste, estamos propondo a segurança hídrica
para milhões de pessoas e também a socialização
de um bem que constitucionalmente ainda continua
de todos os brasileiros. Seria o princípio da reforma
hídrica, a começar pelo Nordeste. Ou então vamos
para o pior, assim como aconteceu com a terra.
101
102
103
104
Por trabalho,eles perdem a saúde42
Expostos a tarefas extremamente prejudiciais e
degradantes, crianças, adultos e idosos enfrentam
jornadas de semi-escravidão
o sertão mineiro, os homens carvoeiros trabalham desde a madrugada, ao
som seco de tosses repetidas. Enchem
sacos de carvão e pulmões de fuligem.
N
às vezes, só saio às 4 da tarde. Só estudei até a
segunda série completa e mal sei assinar o
nome. Meus filhos estudam e não quero que
sejam carvoeiros”, diz Santos.
Sob vento de areia preta, José dos Santos
trabalha solitário e solidário com o parceiro que,
enfermo, não veio para a labuta. Não reclama da
vida, não reclama das dores nas costas nem da
tosse. Os olhos choram às vezes, mas quase todos, algum dia, choram no carvão. Deve ser a fuligem; se é algo do coração, todos disfarçam, ninguém sabe não.
Na sua equipe, trabalha o ensacador Francisco Ramos Sales, de 43 anos, desde os oito
na labuta. Nascido em Rio Pardo (MG), está
casado pela segunda vez. Tem seis filhos dos
dois casamentos. Os filhos estudam, mas ele só
fez a primeira série. “Quem está nesse trabalho, é porque não tem outro. A gente fica cativo
da pobreza e da ignorância. Aí, como tem muita gente assim,o empreiteiro tem sempre trabalhador”, afirma Sales.
Santos tem 27 anos e trabalha desde os dez.
Há nove, transporta sacos de carvão. Normalmente trabalha com mais três companheiros: dois
ensacando e um carregando nas costas sacos que
chegam a 40 quilos. Esse trabalhador sobe cerca
de 450 vezes uma escada, com os sacos nas costas, para encher um caminhão. Quando o caminhão é grande, sobe 600 vezes. Como enche dois
caminhões por dia, pode chegar a subir e descer
1200 vezes... com 40 quilos nas costas.
Alguns dias existem dois carregadores para
subir no caminhão e essa tarefa é dividida. Recebem por produtividade, por carga executada –
curiosamente, o salário não aumenta quando o
caminhão comporta 600 sacos, mas baixa quando, por motivos alheios à vontade do trabalhador,
não tem caminhão para dois carregamentos.
Começam a trabalhar às 2 horas da manhã. Eles vêm de longe, em bicicletas, porque a
firma, a empreiteira Carvoaria e Transporte Irmãos Santos, apesar do nome, não fornece
transporte para os carvoeiros. Alguns demoram
duas horas de bicicleta para ir, duas para voltar
e trabalham 14 horas por dia. “Me revolto calado todos os dias. Esse serviço é muito ruim. Pego
muito cedo porque o solacaba com a gente e,
42
Exploração Infantil
Santos está tentando romper uma corrente
perversa que alimenta uma cadeia de trabalho
degradante nas carvoarias brasileiras, assim
como nos sisais, nas fazendas, nos canaviais, nas
pedreiras e em vários setores do segmento rural
que alimentam indústrias urbanas.
O trabalhador que vive em trabalho degradante ou análogo a escravo é, na sua imensa maioria, analfabeto, e foi explorado como
trabalhador infantil. Aconteceu assim com seus
pais e seus avós. O normal é acontecer com os
filhos e netos.
Ainda não existe no Brasil uma política
social que faça a associação entre trabalho infantil e trabalho degradante, análogo a escravo,
de forma a romper esse círculo. A realidade é
que o trabalhador escravo de hoje foi o trabalhador infantil de ontem.
“A gente custa a entender que nasceu para ser
peixe de engordar gato que engorda rico e, em
casa, a gente fabrica com todo amor os próximos
Matéria feita por João Roberto Ripper de Rio Pardo (MG). Publicada no Jornal Brasil de Fato, Ano 1, Número 37, São Paulo
de 13 a 19 de novembro de 2003. Pág. 13.
105
peixinhos. Para fugir disso, botei todo mundo para
estudar, mas sinto um aperto no peito porque sei
que o ensino é muito ruim. Filho de pobre, mesmo depois de estudar um, dois, quatro anos, continua analfabeto”, conta Santos.
Muitas vezes o trabalho não é considerado trabalho escravo, mas sempre é um trabalho extremamente pesado e, quase sempre,
mesmo em casos de carteira assinada, quando se recebe em média um salário mínimo, trata-se de um trabalho degradante. Acaba com
a saúde do trabalhador.
As fórmulas encontradas para exploração dos
carvoeiros e burlas da legislação trabalhista têm
nuances diferentes em alguns Estados como Minas
Gerais, Maranhão e Mato Grosso do Sul, onde se
concentram mais de 100 mil carvoeiros explorados
por siderúrgicas e madeireiras. Contudo, uma coisa
é sempre comum. Quem mais lucra, quase nunca
contrata. As siderúrgicas não consideram o carvão
trabalho fim, mas meio para a produção do ferro e
do metal. Por isso, contratam as empreiteiras,
terceirizam o trabalho e, dessa forma, se eximem da
responsabilidade sobre o calvário do carvoeiro.
Escravidão
Em Minas Gerais, no ano passado, 42 madeireiras e carvoarias foram autuadas por
descumprir a legislação trabalhista e, em alguns
casos, manter os trabalhadores em condições análogas à de escravo.
O resultado da fiscalização foi encaminhado ao Ministério Público e à Comissão Parlamen-
tar de Inquérito (CPI) de Minas Gerais e gerou a
CPI do Trabalho Escravo. O coordenador da Fiscalização do Trabalho Rural em Minas Gerais,
Marcelo Campos, explicou que “essas empresas
têm utilizado a terceirização ilegal de suas atividades finais, usando empreiteiras de fachada para
contratar trabalhadores necessários ao processo
produtivo. Com isso, tentam mascarar a verdadeira relação de emprego e as conseqüências dela
advindas”. Para Campos, o número de trabalhadores explorados em trabalho degradante nas carvoarias de Minas Gerais pode passar de 50 mil.
Segundo o presidente da CPI das carvoarias, deputado Adelmo Leão, do PT, a situação é ainda mais grave porque, além do
trabalho escravo, existe a exploração do trabalho infantil.
No Norte de Minas Gerais, as empresas
siderúrgicas que mais exploram o carvão e os
carvoeiros são a V&M (Vallourec & Mannesman)
Florestal e a Plantar Reflorestamento, ambas
certificadas por qualidade ecológica pelo Forest
Sewardship Council (FSC), apesar de todas as
denúncias de irregularidades trabalhistas, humanas e ecológicas feitas contra elas.
Expostos a tarefas extremamente prejudiciais e degradantes, crianças, adultos e idosos enfrentam jornadas de semiescravidão Mais
de 100 mil pessoas são exploradas em carvoarias e siderúrgicas de Minas Gerais, Maranhão
e Mato Grosso do Sul. As condições de trabalho beiram a escravidão: são 14 horas por dia
carregando sacos de 40 quilos nas costas, sem
carteira assinada e salário fixo.
Por que morrem
os cortadores de cana?
43
Francisco Alves44
S
106
egundo a Pastoral do Migrante, entre as
safras 2004/2005 e 2005/2006 morreram
10 cortadores de cana na Região Canavi-
eira de São Paulo. Eram trabalhadores jovens, com
idades variando entre 24 e 50 anos, todos eram
migrantes, que tinham vindo de outras regiões do
43
ALVES, F. (2006). Por que Morrem os Cortadores de Cana, in Saúde e Sociedade, set/dez 2006, No. 15/3, p 90 a 98.
Texto disponível em http://www.pastoraldomigrante.com.br.
44
Professor Adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar.
país (Norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí)
para o corte de cana. As causas mortis em seus
atestados de óbitos são vagas a respeito do que
ocasionou verdadeiramente as mortes, os atestados dizem apenas que morreram por parada
cardíaca.
Para entendermos as razões destas mortes
é necessário entendermos o processo de trabalho
a que os cortadores de cana estão submetidos
nesta atividade produtiva. O processo de trabalho
passou por mudanças significativas da década de
80 até a presente década. Na década de 80, logo
no seu início, o país, e mais especificamente o
setor sucro-alcooleiro, vivia o seu período áureo,
em plena vigência do Proálcool, na sua segunda
fase (após 1979), que incentivava a produção
de álcool hidratado e anidro, produzido em destilarias autônomas, direcionadas a atender ao
enorme crescimento da demanda por álcool, derivadas da produção nacional de automóveis
movidos unicamente a este novo combustível. O
Proálcool foi o maior programa público mundial
de produção de combustível alternativo aos derivados do petróleo.
Em decorrência do Proálcool cresceu a produção de cana-de-açúcar, novas destilarias e usinas foram instaladas e cresceu o número de empregos diretos em toda a cadeia produtiva; da indústria produtora de máquinas e equipamentos
para o setor sucro-alcooleiro à comercialização
de álcool e açúcar, isto é, houve a criação de novos postos de trabalho industrial a novos postos
de trabalho agrícola.
Naquele período cresceu também a produtividade da cultura agrícola, medida em quantidade de cana por hectare ocupado com a atividade que saiu de 50 toneladas por hectare e atingiu mais de 80, entre as décadas de 50 e 80. Cresceu também a produtividade do trabalho no corte
de cana, medida em toneladas de cana cortadas
por dia por homem ocupado.
Se na década de 60 a produtividade do trabalho era, em média, de 3 toneladas de cana por
dia de trabalho, na década de 80 a produtividade
média passa para 6 toneladas de cana por dia
por homem ocupado e no final da década de 90 e
início da presente década, atinge 12 toneladas de
cana por dia.
O processo de trabalho no corte de cana
consistia, na década de 80, no trabalhador cortar
um retângulo; com 8,5 metros de largura, em 5
ruas (linhas em que é plantada a cana), por um
comprimento que varia de trabalhador para trabalhador, que é determinado pelo que ele consegue cortar num dia de trabalho. Este retângulo é
chamado pelos trabalhadores de eito e o comprimento do eito varia de trabalhador para trabalhador, porque depende do ritmo de trabalho e da
resistência física de cada um e é esta distância,
que é medida ao final do dia e será o indicador
do seu ganho diário. Estes metros lineares de cana,
multiplicados pelo valor da cana pesada pela usina, dá o valor do dia de trabalho no corte de cana
para cada trabalhador.
Estima-se que para cortar 6 toneladas de
cana num dia, considerando uma cana de primeiro corte, de crescimento ereto, que o comprimento do eito é de aproximadamente 200 metros.
O trabalhador, além de cortar a cana contida na
área deste retângulo (1.700 m²), deve cortar também as pontas e transportar a cana para a linha
do meio (3ª linha) que dista 3 metros de cada uma
das extremidades do eito.
O pagamento dos trabalhadores era, e é feito, a partir da quantidade de cana que é cortada
por dia de trabalho, portanto, era, e ainda é, um
pagamento por produção. Os motivos que levam
as usinas a adotarem o pagamento por produção,
que é uma das formas de trabalho já denunciada
por Adam Smith, no final do século XVIII, e por
Karl Marx, no século XIX, como uma das mais
desumanas e perversas, pois o trabalhador tem o
seu ganho atrelado a força de trabalho despendida
por ele por dia.
É verdade que tanto Adam Smith quanto
Karl Marx denunciavam este trabalho, chamando-o de perverso e desumano, analisando apenas
esta forma de trabalho em situações em que o trabalhador controlava o seu processo de trabalho e
tinham, ao final do dia, pleno conhecimento do
valor que tinham ganho, isto porque conheciam o
valor do trabalho executado.
No corte de cana é diferente porque os trabalhadores só sabem quantos metros de cana cortaram num dia, mas não sabem, a priori, do valor
do metro de cana para aquele eito cortado por
ele, este desconhecimento é devido a que o valor
do metro de cana do eito depende do peso da
cana, que varia em função da qualidade da cana
naquele espaço e a qualidade da cana naquele
espaço depende, por sua vez de uma série de variáveis (variedade da cana, fertilidade do solo,
sombreamento etc.). Nestas condições, as usinas
pesam a cana cortada pelos trabalhadores e
107
atribuem o valor do metro, através da relação
entre peso da cana, valor da cana e metros que
foram cortados. Tudo isto é feito nas usinas,
onde estão localizadas as balanças, sem controle do trabalhador. Portanto, entre aquelas situações de trabalho analisadas pelos dois pensadores nos séculos XVIII e XIX e as praticadas
na cana nos séculos XX e XXI há uma enorme
distância, que é o não controle do salário e do
processo de trabalho pelos trabalhadores, este
é controlado pelas usinas.
Os trabalhadores trabalham no corte de
cana por produção, em pleno século XXI, sem
saberem quanto ganham, porque isto depende de
quanto cortam. Além disto, mesmo cortando muitos metros podem ter um ganho pequeno, porque
o valor do metro depende de uma conversão que
não é controlada pelos trabalhadores e sim pelas
usinas. Portanto, se todos os autores declaram que
o pagamento por produção, além de ser uma forma de salário arcaica, perversa e desgasta os trabalhadores, porque sua produção e salário dependem de seu esforço físico, na cana esta forma de
trabalho é mais perversa porque o ganho não depende dos trabalhadores mas de uma conversão
feita pelo departamento técnico das usinas.
Há inúmeros casos de desavenças entre
trabalhadores e usinas derivados desta conversão de toneladas de cana em metro. Estas desavenças foram responsáveis, inclusive pela
deflagração de uma greve em 1986, que começou nas cidades de Leme, no Estado de São Paulo e de lá alastrou-se para outras cidades e regiões canavieiras do Estado e do país. Esta já era
a segunda grande greve realizada pelos trabalhadores, após a greve de Guariba de 1984 contra
o sistema de corte em 7 ruas.
Na greve de 1986 os trabalhadores reivindicavam o pagamento por metro de cana cortado
e não por tonelada. A reivindicação era simples:
cada metro de cana cortada, dependendo do tipo
de cana (cana de primeiro corte, cana de segundo e demais cortes, cana de ano e meio, cana
caída e enrolada) teria um preço definido no acordo coletivo de trabalho, os trabalhadores, ao final
do dia receberiam um recibo (pirulito), onde viria
gravado, a quantidade de metros cortadas naquele
dia e o valor do metro de cana naquele eito.
108
Os empresários contra-argumentavam, dizendo que era impossível para a usina adotar o
pagamento por metro, porque a sua unidade de
medida, utilizada em todas as etapas do processo
produtivo, era a tonelada de cana. Na verdade a
argumentação dos empresários escondia o essencial. Se os trabalhadores adquirissem o controle
do processo de trabalho e o controle do seu pagamento, as usinas perderiam o principal meio de
pressão que as empresas dispõem para aumentar
a produtividade do trabalho. Isto porque o processo de trabalho no corte de cana depende única e exclusivamente da destreza do trabalhador,
isto é, depende de um conjunto de atividades
manuais, exercida pelos trabalhadores, independente da administração do processo.
No corte de cana os trabalhadores têm o
controle da atividade, o que não ocorre em outros processos de produção, que através do sistema de máquinas, há a subordinação do trabalhador e do trabalho ao sistema, onde os aumentos de produtividade são alcançados através do
sistema de máquinas.
No corte de cana, o trabalhador recebe o
eito de cana definido pelo supervisor da turma e
realiza as atividades exigidas: começa a cortar
pela linha central, a linha que será depositada a
cana, em seguida corta as duas linhas laterais à
central, de forma a que todas as linhas do eito
sejam cortadas simultaneamente, sem deixar linhas sem cortar (deixar telefone).
No corte, especificamente, o trabalhador
abraça um feixe de cana (contendo entre cinco e
dez canas) e curva-se para cortar a base da cana.
O corte da base tem que ser feito bem rente ao
chão, porque é no pé da cana que se concentra a
sacarose. O corte rente ao chão não pode atingir
a raiz para não prejudicar a rebrota. Depois de
cortadas todas as canas do feixe o trabalhador
corta o palmito, isto é a parte de cima da cana,
onde estão as folhas verdes, que são jogadas ao
solo. Em algumas usinas é permitido aos trabalhadores o corte do palmito no chão, na fileira do
meio, onde os feixes são amontoados. Neste caso,
além de cortar o palmito o trabalhador tem que realizar um movimento com os pés, para separar as
pontas das canas amontoadas na linha central.
Em algumas usinas as canas amontoadas
na fileira central devem ser dispostas em montes,
que distam um metro um do outro, em outras usinas é permitido ao trabalhador fazer uma esteira
de canas amontoadas sem a necessidade dos montes. Com isto, fica claro que a quantidade cortada
por dia por trabalhador depende mais, para ganhar mais, e de sua força física e habilidade para
execução da atividade.
Eu comparo o cortador de cana a um corredor fundista, porque os trabalhadores com maior produtividade não são necessariamente os que
têm maior massa muscular, são os que têm maior
resistência física para a realização de uma atividade repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na presença de fuligem, poeira e fumaça, em alguns casos, e por um período que varia
entre 8 a 12 horas de trabalho diários.
Um trabalhador que corte 6 toneladas de
cana, num talhão de 200metreos de comprimento, por 8,5 metros de largura, caminha,
durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe
de cana, o que equivale a 183.150 golpes no
dia (considerando uma cana em pé, não caída e não enrolada e que tenha uma densidade
de 5 a 10 canas a cada 30cm.). Além de andar
e golpear a cana, o trabalhador tem que a cada
30cm. abaixar-se e torcer-se para abraçar e
golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se
para golpeá-la em cima. Além disto, ele ainda
amontoa vários feixes de cana cortados em
uma linha e os transporta até a linha central.
Isto significa que ele não apenas anda 4.400
metros por dia, mas transporta, em seus braços, 6 toneladas de cana, com um peso equivalente a 15 Kg, a uma distância que varia de
1,5 a 3 metros.
Além de todo este dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionandose e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta composta de butina com
biqueira de açõ, perneiras de couro até o joelho,
calças de brim, camisa de manga comprida com
mangote, também de brim, luvas de raspa de couro,
lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné.
Este dispêndio de energia sob o sol, com
esta vestimenta, leva a que os trabalhadores
suem abundantemente e percam muita água e
junto com o suor perdem sais minerais e a perda de água e sais minerais leva a desidratação
e a freqüente ocorrência de câimbras. As
câimbras começam , em geral, pelas mãos e pés,
avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que
provoca fortes dores e convulsões, que fazem
pensar que o trabalhador esteja tendo um ataque nervoso. Para conter as cãimbas e a desidratação, algumas usinas já levam para o campo e ministram aos trabalhadores soro fisiológico e, em alguns casos suplementos energéticos,
para reposição de sais minerais.
O fim da greve de 1986 só foi alcançado
quando acordou-se que o pagamento dos trabalhadores seria feito a partir da tonelada de
cana convertida em metro linear, com a possibilidade de controle pelos trabalhadores desta
conversão, que deixava de ser apenas uma atribuição técnica dos funcionários das usinas, mas
podiam ser fiscalizadas pelos trabalhadores e
seria feita da seguinte forma:
ª Ao início do trabalho, de manhã cedo, um
caminhão, chamado de campeão vai ao
local de corte;
ª Este caminhão é cheio com cana colhida
de três pontos diferentes do talhão, para
realizar uma amostra representativa da qualidade e especificidades da cana no local;
ª Os trabalhadores podem participar da escolha dos três pontos;
ª Este caminhão depois de cheio com cana
colhida dos três pontos do talhão vai para
a usina para ser pesado, já sabendo que
aquela carga corresponde a um determinado número de metros lineares;
ª Os trabalhadores podem acompanhar o
caminhão para verificar a pesagem na balança das usinas e certificarem-se que não
há roubo;
ª Depois de realizada a pesagem é realizada a conversão de tonelada de cana para
metro, já atribuído o valor do metro, na
medida em que a tonelada de cana paga
aos trabalhadores já tem seu valor definido pelo acordo coletivo;
ª Este valor do metro obtido da conversão é
informado aos trabalhadores no canavial
antes do fim do dia;
ª No fim do dia de trabalho cada eito de
cana de cada trabalhador daquele talhão
é medido através de um compasso de ponta de ferro com 2 metros de largura entre
uma ponta e outra;
ª Feita a medição do eito é elaborado, no
campo, um recibo (pirulito) onde consta
a quantidade de metros cortados por cada
trabalhador, o valor de cada metro e o total de rendimentos obtidos pelos trabalhadores naquele dia de trabalho.
109
Apesar de todo este procedimento constar dos acordos coletivos desde 1986, na prática, ele nunca funcionou, porque a base para o
seu funcionamento era a participação dos trabalhadores nas seguintes etapas:
I)escolha dos três pontos representativos da
cana do talhão;
II) medição em metros da cana para carregar
o campeão;
III) fiscalização da pesagem da cana na usina;
IV) participar do cálculo de conversão da tonelada em metro.
Como os trabalhadores são remunerados
por produção, aqueles que se dispõem a acompanhar aquelas 4 etapas, que exigem participação dos trabalhadores, perdem, no mínimo meio
dia de trabalho, portanto se não trabalham, não
ganham. Além disto, aqueles que se dispõem a
participar se sentem marcados pelos gatos, fiscais e apontadores e pelas usinas e temem perderem seus empregos.
O que passou a ocorrer, na prática, é que
mesmo nas usinas que mantiveram o campeão,
a conversão de tonelada em metros é de responsabilidade exclusiva das usinas e podem
conter roubos.
A partir da década de 90 houve um grande aumento da produtividade do trabalho. Os
trabalhadores para manterem seus empregos
na cana necessitam hoje cortar no mínimo 10
toneladas de cana por dia, para se manterem
empregados; a média cortada expandiu-se para
12 toneladas de cana por dia. Portanto a produtividade média cresceu em 100%, saiu de 6
toneladas/homem/dia, na década de 80, e chegou a 12 toneladas de cana por dia, na presente década.
O fato dos trabalhadores hoje terem uma
produtividade duas vezes superior a da década
de 80 se deve a um conjunto de fatores:
ª O aumento da quantidade de trabalhadores disponíveis para o corte de cana e
esta maior disponibilidade se devem a
três fatores:
1. aumento da mecanização do corte de
cana;
2. o aumento do desemprego geral da
economia, provocada por duas dé-
110
cadas de baixo crescimento econômico e
3. expansão da fronteira agrícola para
as regiões do cerrado, atingindo o sul
do Piauí e a região da pré-amazônia
maranhense, destruindo as formas
de reprodução da pequena propriedade agrícola familiar, predominante nestes estados.
ª Possibilidade de seleção mais apurada pelos departamentos de recursos
humanos das usinas. Esta seleção
mais apurada de trabalhadores leva a:
seleção de trabalhadores mais jovens,
redução da contratação de mulheres e
a possibilidade de contratação de trabalhadores oriundos de regiões mais
distantes de São Paulo (Norte de Minas, Sul da Bahia, Maranhão e Piauí).
ª A seleção mais apurada permite que
as usinas implementem a contratação
por período de experiência , onde os
trabalhadores que não conseguem
atingir a nova média de produção, 10
toneladas de cana por dia, são demitidos antes de completarem três meses de contrato.
Um trabalhador que corta hoje 12 toneladas de cana em média por dia de trabalho realiza
as seguintes atividades no dia:
ª Caminha 8.800 metros;
ª Despende 366.300 golpes de podão;
ª Carrega 12 toneladas de cana em montes de 15 kg. em média cada um, portanto, ele faz 800 trajetos levando 15Kg.
nos braços por uma distância de 1,5 a
3 metros;
ª Faz aproximadamente 36.630 flexões de
perna para golpear a cana;
ª Perde, em média 8 litros de água por dia,
por realizar toda esta atividade sob sol
forte do interior de São Paulo, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela
cana queimada, trajando uma indumentária que o protege, da cana, mas aumenta a temperatura corporal.
Com todo este detalhamento pormenorizado da atividade do corte de cana, fica fácil
entendermos porque morrem os trabalhadores
rurais cortadores de cana em São Paulo. A solução para este problema, ao meu ver, não se
dará através mudanças que não vão ao cerne
da questão. O que vai ao centro da questão,
que são as mortes dos trabalhadores cortadores
de cana pelo excesso de trabalho é o pagamento por produção.
Enquanto o setor sucro-alcooleiro permanecer com esta dicotomia interna: de um lado,
utiliza o que há de mais moderno em termos
tecnológicos e organizacionais, uma tecnologia
típica do século XXI (tratores e máquinas agrí-
colas de última geração, agricultura de precisão, controlada por geo-processamento via satélite etc.); mas manter, de outro lado, relações
de trabalho, já combatidas e banidas do mundo desde o século XVIII, trabalhadores continuarão morrendo. Isto porque os 10 que morreram nas duas últimas décadas são uma amostra insignificante do total que deve morrer todas as safras clandestinamente.
Ao longo dos últimos vinte anos que me dedico a análise das condições de vida e trabalho
dos trabalhadores rurais, colhi vários depoimentos de trabalhadores que relatavam mortes como
as agora tornadas públicas através do excelente
trabalho da Pastoral do Migrante de Guariba.
Trabalho escravo no Brasil de hoje45
Leonardo Sakamoto
escravidão contemporânea é diferente
daquela que existia até o final do século 19, quando o Estado garantia que
comprar, vender e usar gente era uma atividade
legal. Mas é tão perversa quanto, por roubar do
ser humano sua liberdade e dignidade. E ela não
se resume à terra de ninguém que é a região de
expansão agrícola amazônica, mas está presente
nas carvoarias do cerrado, nos laranjais e canaviais do interior paulista, em fazendas de frutas e
algodão do Nordeste, nas pequenas tecelagens do
Brás e Bom Retiro, da cidade de São Paulo.
A
Antigamente, a propriedade legal era permitida, hoje não. Mas era muito mais caro comprar e manter um escravo do que hoje. O negro
africano era um investimento dispendioso que
poucas pessoas podiam ter. Hoje, o custo é quase
zero - paga-se apenas o transporte e, no máximo,
a dívida que o sujeito tinha em algum comércio
ou hotel. Além do fato de que, se o trabalhador
fica doente, é só largá-lo na estrada mais próxima
e aliciar outra pessoa. O desemprego é gigantesco no país, e a mão-de-obra, farta.
Na escravidão contemporânea, não faz
diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são miseráveis, independente45
Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br
mente de raça. Porém, tanto na escravidão imperial quanto na do Brasil de hoje, mantém-se
a ordem por meio de ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos.
Ossadas têm sido encontradas em propriedades durante ações de fiscalização, como na fazenda de Gilberto Andrade, família influente da
região Sul do Pará.
Não há estatística exata para o número
de trabalhadores em situação de escravidão no
país. Estima-se que sejam entre 25 mil e
40 mil, de acordo com número da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) – órgão, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e a mais
importante entidade não-governamental que
atua nessa área – e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A forma de trabalho forçado mais encontrada no país é a da servidão, ou “peonagem”, por
dívida. Nela, a pessoa empenha sua própria capacidade de trabalho ou a de pessoas sob sua responsabilidade (esposa, filhos, pais) para saldar uma
conta. E isso acontece sem que o valor do serviço
executado seja aplicado no abatimento da conta
de forma razoável ou que a duração e a natureza
do serviço estejam claramente definidas.
111
E não é apenas o cerceamento da liberdade que configura o trabalho escravo, mas sim uma
série de etapas. Segundo Ela Wiecko de Castilho46,
o processo inclui: recrutamento, transporte, alojamento, alimentação e vigilância. E cada qual com
a existência de maus-tratos, fraudes, ameaças e
violências física ou psicológica.
As primeiras denúncias de formas contemporâneas de escravidão no Brasil foram feitas em
1971 por dom Pedro Casaldáliga, na Amazônia.
Sete anos depois, a CPT denunciou a fazenda
Vale do Rio Cristalino, pertencente à montadora
de veículos Volkswagen e localizada no sul do
Pará. O depoimento dos peões que conseguiram
fugir a pé da propriedade deu visibilidade internacional ao problema.
Outro exemplo de envolvimento de grandes empresas é o das fazendas reunidas Taina
Recan, em Santa do Araguaia, e Alto Rio Capim, em Paragominas, ambas no Pará, pertencentes ao grupo Bradesco, onde, entre as décadas de 70 e 80, foram encontrados trabalhadores reduzidos à condição de escravidão. O governo acaba envolvido indiretamente com o trabalho forçado quando financia empresas que se
utilizam da prática. A Superintendência para o
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), por
exemplo, bancou a Companhia Real Agroindústria e as fazendas Agropalma, também no Pará,
pertencentes ao Banco Real, em que foram encontradas irregularidades no início da década de
90. Tudo isso é fruto da política de desenvolvimento adotada durante a ditadura militar, de incentivar os grandes empreendimentos na região
amazônica, que fechou o olho para os direitos
humanos e trabalhistas. Quem protestava ou reivindicava era preso e torturado.
Apesar de as convenções internacionais de
1926 e a de 1956, que proibiam a servidão por
dívida, entrarem em vigor no Brasil em janeiro
de 1966, o país demorou para criar um mecanismo para combatê-la. O que veio a acontecer
apenas em 1995, quando foram instituídos os
grupos móveis de fiscalização. Essas equipes, coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego, respondem diretamente a Brasília, são acompanhadas de policiais federais e contam com o
suporte do Ministério Público do Trabalho e da
Justiça do Trabalho.
112
46
O Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, lançado no início de 2003, reúne
76 medidas de combate à prática. Entre elas, projetos de lei como o que expropria terras em que
for encontrado trabalho escravo e transfere para
a esfera federal os crimes contra os direitos humanos, limitando assim as influências locais nos
processos. A implantação do plano tem sido lenta
e muitas vezes esbarra na falta de verbas, pressão
da bancada ruralista e na incapacidade do governo federal de liberar recursos para aumentar e
aparelhar a fiscalização.
Nos últimos meses, mudanças na legislação
tornaram mais duras as penas para quem for pego
com trabalho escravo. Outros importante instrumentos foram a determinação da suspensão no
crédito agrícola de quem foi condenado pela prática e a criação de 269 novas Varas do Trabalho,
a primeira delas a ser instalada em Redenção, sul
do Pará. Vale ressaltar que o combate ao trabalho
escravo avançou graças à dedicação pessoal dos
auditores do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, mesmo com falta de recursos financeiros, equipamentos, veículos que não quebrem em serviço e telefones que funcionem na
imensidão verde da Amazônia.
Mas mesmo fiscalização, multas, prisão dos
envolvidos, cortes em linhas de crédito atacam as
conseqüências, deixando muitas vezes a causa em
aberto. O trabalhador resgatado não vê opções
para a sobrevivência e acaba caindo de novo na
armadilha. “Com terra para plantar não teria ido
embora [da minha terra]. Além disso, pessoa bem
estudada não precisa sair, arruma emprego. Os
outros têm de ir para o machado mesmo”, afirma
um trabalhador libertado.
Escravidão no Brasil é sintoma de algo maior: desigualdade. “Os trabalhadores que vêm
para cá são de locais onde a situação de pobreza é terrível. Se não houver uma política de fundo para gerar emprego e renda e fixar a população nos seus Estados de origem, de nada vai adiantar”, afirma José Batista Afonso, coordenador
da CPT em Marabá. Uma efetiva política de reforma agrária, acompanhada de juros baixos
para o crédito rural e transferência de conhecimento. Infelizmente, o que vemos hoje é uma
grande quantidade de desempregados, reserva de
contingente para o trabalho forçado nas regiões
de fronteira agrícola.
Subprocuradora-geral da República e professora de direito penal na Universidade de Brasília e na Universidade Federal de SC.
Dados parciais de conflitos
no campo em 200747
42,5% de conflitos pela água ocorreram nos estados
banhados pelo Rio São Francisco
stamos oferecendo hoje à sociedade brasileira os dados parciais dos conflitos no
campo, relativos aos meses de janeiro a
setembro de 2007. Acompanham esta nota, as
tabelas de Violência contra a Ocupação e a Posse; de Violência contra a Pessoa, um Relatório
Síntese dos conflitos e uma tabela de Manifestações. Todos de janeiro a setembro de 2006 e 2007.
Segue também, a relação de todos os assassinatos ocorridos no campo até dezembro de 2007,
somando um total de 25.
E
Os conflitos pela água, neste ano, apresentaram crescimento em relação a igual período de
2006. De 38 conflitos para 40 em 2007. O número de pessoas envolvidas, porém, mais que dobrou: de 12.632 para 25.919. Na região Sudeste
houve o maior crescimento desses conflitos, de 6,
em 2006, para 14, em 2007. Destes, 11 são em
Minas Gerais. 17 dos 40 conflitos, 42,5%, foram
registrados nos Estados banhados pelo rio São
Francisco, objeto do projeto de Transposição do
governo federal.
Diminuição de conflitos não
esconde a violência
Mesmo que em termos absolutos tenha havido uma queda geral nos números dos conflitos, em termos relativos há crescimento da violência. Em 2006, para cada ocorrência de conflito houve 1,2 famílias expulsas, 16 despejadas
e os assassinatos correspondiam a um para
cada 47 conflitos. No mesmo período de 2007,
(é bom ressaltar que são dados ainda parciais)
para cada ocorrência de conflito se computam
5 famílias expulsas, 19 despejadas e um assassinato para 44 conflitos.
Mas é em relação ao número de famílias
expulsas pelo poder privado que se verifica o maior
47
crescimento da violência, não seguindo a tendência de queda verificada em outros indicadores.
As famílias expulsas passaram de 1.657, em
2006, para 2.711, em 2007, mais de 100% a
mais. Este aumento verificou-se em todas as regiões do País, sem exceção:
Famílias expulsas
Região
2006
Centro-Oeste
2007
0
318
Nordeste
459
491
Norte
714
757
Sudeste
95
435
Sul
49
710
1.317
2.711
Total
Isto mostra que o poder do latifúndio e
do agronegócio está atento e atuante, disposto a agir por conta própria caso o poder público não atenda suas reivindicações de punir os trabalhadores que se levantam na defesa de seus direitos.
Número de conflitos em queda
No geral, porém, o ano de 2007 apresenta
números inferiores aos de igual período de 2006.
O total de conflitos no campo (conflitos por terra,
por água, trabalhistas e etc.) de 1.414, em 2006,
caiu para 837. O número de pessoas envolvidas
passou de 652.284 para 561.926, e o número de
assassinatos de 30 para 19.
Também em relação ao trabalho escravo o
número de ocorrências caiu de 214, em 2006, para
177, em 2007, com, respectivamente, 5.767 e
5.127 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão.
Os conflitos exclusivamente por terra
passaram de 1.042, para 540. As ocupações
Texto disponível em http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=2108&eid=6
113
despencaram de 329 para 247, e os acampamentos de 60 para 35. O número de famílias, nas ocupações, porém, cresceu, passou de 35.315 para
37.630. O número de famílias despejadas foi menor: 17.443, em 2006; 10.669, em 2007.
Maranhão. Também ali se configura uma situação em que o avanço do agronegócio não respeita nada, muito menos comunidades tradicionais,
taxadas de improdutivas e de serem empecilho
para o progresso.
Por outro lado, o número de Manifestações
cresceu passando de 579, com a participação de
359.998 pessoas, em 2006, para 671, com a participação de 465.394 pessoas, em 2007.
No Centro-Oeste, cresceu o número de pessoas submetidas ao trabalho escravo. De 1.078,
em 2006, passaram para 1.157, em 2007, com
destaque para Goiás que de 3 ocorrências, em
2006, passou para 8, em 2007, com envolvimento
de pessoas passando de 113 para 441. O mesmo
acontecendo em Mato Grosso do Sul onde se registraram 9 ocorrências, envolvendo 628 pessoas, em 2007, contra 3 ocorrências e 39 pessoas,
em 2006. O trabalho escravo também cresceu expressivamente no Maranhão e no Piauí. Goiás
também se destaca por ter aumentado o número
geral de conflitos, de 28 para 31 e de famílias envolvidas de 16.870 para 25.904.
O que explicam esses números
O aumento no número de famílias em ocupações, apesar de estas terem sofrido uma diminuição expressiva, acaba evidenciando que o
número de famílias sem terra continua muito elevado e que há necessidade de um programa efetivo de reforma agrária.
A queda acentuada no número de conflitos se dá não porque tenha sido adotada uma
política mais eficaz de reforma agrária ou de
combate à violência. O que se pode sentir é que
a não execução da reforma agrária, com famílias acampadas há 4, 5, 6 ou mais anos, desestimula a ação dos trabalhadores e dos seus movimentos, daí a queda expressiva dos números de
ocupações e acampamentos. Aliado a isso, o
bolsa-família dando um mínimo de condições
para as famílias terem o alimento de cada dia,
acaba arrefecendo o ímpeto de quem, premido
pela necessidade, tem que buscar a qualquer
custo seus meios de sobrevivência.
Número
de assassinatos dobra
no Centro-Oeste
Analisando os números em detalhe, o que
se vê é que o número de assassinatos que decresceu no país como um todo, teve um aumento de
100% no Centro-Oeste passando de 2, em 2006,
para 4 em 2007; e de 50% na região Nordeste,
passando de 4 para 6.
No Centro-Oeste, 3 dos 4 assassinatos são
de indígenas, dois deles no Mato Grosso do Sul
onde os Guarani-Kaiowá vivem a situação mais
dramática de que se tem conhecimento, encurralados em pequenas áreas ou acampados na margem de estradas, não se garantindo espaço para
quem era o dono de toda aquela região. O outro
indígena foi assassinado no Mato Grosso.
No Nordeste, dos 6 assassinatos, 3 são também de indígenas, 1 na Bahia, 1 no Ceará, e 1 no
114
Sudeste, onde conflitos e
violência crescem
O que mais chama a atenção, porém, na
análise mais regionalizada dos números é a região Sudeste que se comportou de modo inverso ao restante do país. A região foi a única que
apresentou crescimento no número de conflitos
passando de 180, para 193 e no número de pessoas envolvidas, que saltou de 71.983 para
112.356. Em relação às famílias expulsas a região Sudeste seguiu a tendência geral do País,
passaram de 95 para 435. O Sudeste também
foi o único que apresentou crescimento no número de famílias despejadas passando de 980
para 1.477. Foi só nessa região, ainda, que houve crescimento no número de ocupações: 78,
em 2006; 88, em 2007, e de acampamentos: 4,
em 2006; 7, em 2007.
Na região mais rica e urbanizada do País
é impressionante constatar que ocorreram
23,5% de todos os conflitos no campo, e onde
estão 20% das pessoas envolvidas em conflitos.
O grande progresso tecnológico aplicado ao
campo e o avanço das monoculturas geram,
além das riquezas propagandeadas, maior desigualdade, exclusão e, em conseqüência disso,
novos e graves conflitos.
A bem da verdade pode-se imputar este
destaque do Sudeste à presença mais próxima
dos meios de comunicação que registram os fatos, na maior parte das vezes, para criticar a ação
dos trabalhadores. Em outras regiões do País,
boa parte dos conflitos nunca chegam ao
conhecimento público. Como diz o professor
Carlos Walter Porto Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense: “Não deixa de ser
preocupante que a região mais rica do Brasil apresente crescimento da violência no campo em relação às demais regiões. Uma nova
geografia da violência está se desenhando,
conforme indicam estes dados parciais de
2007. Tudo indica que o avanço do cultivo
da cana, diante da febre dos agrocombustíveis, esteja trazendo implicações no aumento do preço da terra, que rebate no programa de Reforma Agrária, e consigo carrega o
aumento da violência”.
Dossiê trabalho escravo
Como alguém se torna escravo48
Leonardo Sakamoto
s direitos dos trabalhadores rurais
freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”, onde a floresta amazônica perde espaço a cada dia para
grandes fazendas. Péssimos alojamentos e alimentação, atraso ou não-pagamento de salários e até
privação de liberdade sob ameaça de morte acontecem com freqüência na região.
junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca
de sustento para a família.
O
“Quando eu cheguei aqui, a coisa era muito
diferente do que havia sido prometido.” Nos últimos tempos, uma praga atingiu as fazendas de
cacau onde Uexlei Pereira trabalhava no Sul da
Bahia, deixando muita gente sem serviço. Aliciado
por um “gato”, saiu de sua cidade, Ibirapitanga,
com a oferta de um bom salário, alimentação e condições dignas de alojamento. No Sul do Pará, Uexlei
percebeu que havia sido enganado. Quando foi
resgatado, recebia há dois meses só comida. Não
tinha idéia de quanto devia ao gato, conhecido
como Baiano, e nem quando iria receber.
2
3
4
A sua história não é diferente da dos demais
trabalhadores que fogem do desemprego para cair
na rede da escravidão. A seguir, estão detalhados
oito passos que transformam um homem livre em um
escravo, padrão que se repete com triste freqüência.
1
48
Devido à seca, à falta de terra para plantar
e de incentivos dos governos para fixação
do homem no campo, aos altos juros do
crédito agrícola, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso
Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br
5
Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, mesmo em terras distantes, ele ruma para esses locais. O Tocantins
e a região Nordeste, tendo à frente os Estados do Maranhão e Piauí, são grandes
fornecedores de escravos.
Alguns vão espontaneamente. Outros são aliciados por “gatos” (contratadores de mão-deobra que fazem a ponte entre o empregador e
o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de
ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.
O destino principal é a região de expansão
agrícola, onde a floresta amazônica tomba
diariamente para dar lugar a pastos e plantações. Pará e Mato Grosso são campeões
em denúncias e resgates de trabalhadores
pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Há os “trecheiros” ou “peões do trecho”
que deixaram sua terra um dia e, sem
residência fixa, vão de trecho em trecho,
de um canto a outro em busca de trabalho. Muitos deles acabam se hospedando nos chamados “hotéis peoneiros”, ficando dias até que algum gato venha
buscá-los, compre suas dívidas e os leve
115
às fazendas. A partir daí, tornam-se seus
credores e devem trabalhar para abater
o saldo. Muitos seguem contrariados por
estarem sendo negociados. Mas há os
que vão felizes, pois acreditam ter conseguido um emprego que possibilitará
honrar seus compromissos e ainda ganhar dinheiro.
6
Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por
conta do transporte aumentará em um
ritmo constante, uma vez que o material
de trabalho pessoal, como botas, é comprado na cantina do próprio gato, do
dono da fazenda ou de alguém indicado
por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um
“caderninho”, e o que é cobrado por um
produto dificilmente será o seu preço
real. Um par de chinelos pode custar o
triplo. Além disso, é costume do gato não
informar o montante, só anotar. Pedro
conta que um par de botas sai por R$ 25
na cantina da fazenda Nossa Senhora
Aparecida. Uma rede, R$ 16 e uma foice, R$ 12. Material de trabalho que deveria ser entregue gratuitamente. Junto
com o equipamento mínimo de segurança, que também não existia.
7
Meses de serviço e nada de dinheiro. Sob
a promessa de que vão receber tudo no final, o trabalhador continua derrubando a
mata, aplicando veneno, erguendo cercas
e outras atividades degradantes e insalubres. Cobra-se pelo uso de alojamentos sem
condições de higiene.
8
No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a
receber – isso considerando que o acordo
verbal feito com o gato é quebrado, tendo o
peão direito a um valor bem menor que o
combinado. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do
gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Se
for necessário, até força física e armas são
usadas para mantê-lo no serviço.
Trabalhadoras rurais
Quebradeiras de Coco reescrevem a história
No Maranhão,mulheres lutam contra derrubada das
palmeiras de babaçu e conquistam acesso livre ao coco49
á cerca de 20 anos, no Médio
Mearim, Estado do Maranhão, mulheres quebradeiras de coco babaçu
decidiram escrever um novo roteiro para a história das palmeiras de babaçu. “Ou a gente brigava contra a derrubada e a queima das palmeiras, ou a gente ia morrer”, conta a vereadora e
quebradeira de coco, Maria Alaíde, do município de Lago do Junco.
H
49
116
A vereadora diz que as mulheres começaram
avisando aos fazendeiros, que não as deixavam entrar no babaçual, que eles não podiam juntar o coco
para vendê-lo em grandes quantidades, nem podiam
cortá-lo porque só uma pessoa seria beneficiada.
“A gente ganhou mais força quando os homens
sentiram na pele a necessidade de lutar pela terra.
Eles disseram aos fazendeiros que não iam mais passar por baixo de arame”, acrescenta Maria Alaíde.
Matéria feita por Fátima Lessa, de São Luis (MA). Publicada no Jornal Brasil de Fato, de 30 de dezembro de 2004
a 5 de janeiro de 2005.
Foi o começo dos conflitos e perseguições
às quebradeiras de coco babaçu e aos trabalhadores rurais. Em 1987, elas criaram a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais
(AMTR). Em 1989, surgia a Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão
(Assema), para prestar assistência técnica aos
trabalhadores rurais nas áreas de assentamento. Em 1991, foi a vez do Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco Babaçu
(MIQCB, hoje AMIQCB).
Conquistas
A luta valeu a pena. “A gente não está
mais sonhando. Nosso sonhos deixaram de ser
utopia para ser realidade”, diz, alegre, a coordenadora da Associação e Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de Coco
Babaçu (AMIQCB), Maria Adelina de Souza
Chagas, a Dada.
A região do Médio Mearim é a de maior
concentração de babaçu do Brasil: dez milhões
de hectares. A imensa maioria das palmeirasestá
em grandes fazendas, que cobravam para deixar
as quebradeiras tirar o coco, ou simplesmente
barravam a sua entrada.
São mais de 300 mil extrativistas que têm
no babaçu a principal fonte de renda no
Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins. Sua vida não
era fácil, permeada de obstáculos para ter acesso
aos babaçuais.
Hoje, o acesso ao coco é livre, garantido
por lei em vários municípios e por lei estadual.
Além de garantir o livre acesso, a legislação proíbe derrubadas, cortes de cachos e uso de
herbicidas nos babaçuais.
Atravessadores não mandam mais
A história da palmeira do coco babaçu confunde-se com a história das quebradeiras de coco.
Geralmente,elas começam na atividade aos sete
anos e vão até a velhice. Uma trajetória que as
torna vítimas de doenças graves e seqüelas físicas
muitas vezes irreversíveis.
Apesar de serem responsáveis por cerca
de 70% das 115 mil toneladas de amêndoas produzidas no país, a maioria das quebradeiras de
coco vive sem assistência médica, dentária e
social. Entretanto, esse desamparo não desanima essas guerreiras.
No Maranhão, além do “coco livre”, as quebradeiras conseguiram criar o “kit babaçu livre”:
sabonete, carvão, farinha do mesocarpo, papel
reciclado, óleo etc. Elas também montaram uma
fábrica de sabonetes e, pela Cooperativa Agroextrativista de Lago do Junco (Coppalj) uma planta
de produção de óleo.
Para montar a unidade de óleo, elas receberam R$ 80 mil do Fundo das Nações Unidas
para a Infância e Adolescência (Unicef). O óleo
extraído já tem destino certo: 30% vão para fora
do país, para a indústria inglesa Body Shop; 5%
para a fabricação do sabonete, e o restante é vendido a empresas da região.
O contrato com os ingleses foi assinado há
mais de cinco anos. “Se não fosse a compra da
Body Shop, a gente não teria recursos para repassar às quebradeiras de coco todo fi nal de ano.
Antes disso, a cooperativa não saía do vermelho”,
conta a vereadora Alaíde.
A empresa inglesa paga à cooperativa o
dobro do preço do mercado pelo litro de óleo.
Agora quem dita as regras é a Coppalj, não o
atravessador, como antes. “Estamos conseguindo que o atravessador acompanhe o nosso preço
ou então vai ficar sem o produto”, informa o presidente da cooperativa, Raimundo Vidal.
É dura a vida da quebradeira do coco. Para
conseguir cerca de 10 quilos de amêndoas, são
necessários mais de 120 quilos do coco. Elas trabalham, em média, oito horas por dia, segundo
levantamento feito por estudantes de uma faculdade do Maranhão.
Do babaçu, aproveita-se tudo. Com o
mesocarpo, é fabricado um complemento alimentar que substitui o chocolate. O óleo é matéria
prima para a produção de sabonetes, e as cascas
para a de carvão. A palmeira é utilizada tanto na
cobertura de casas, como na produção de papel e
de embalagens. (FL).
Mulheres organizadas
A Associação em Áreas de Assentamento
no Estado do Maranhão (Assema) é a entidade
que articula as várias associações nas quais as
mulheres quebradeiras de coco babaçu se organizam. Por meio do Programa de Organização das
Mulheres, as quebradeiras de coco participam de
discussões sobre políticas ambientais, direito e
valorização da mulher, entre outras.
117
“A meta é fortalecer as organizações de
mulheres vinculadas à Assema e ao Movimento
Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu
(MIQCB)”, diz a coordenadora da Associação e
Movimento Interinstitucional de Quebradeiras de
Coco Babaçu (AMIQCB), Maria Adelina, Dada.
Ela avalia que o Programa vem contribuindo para a redução das desigualdades nas relações de gênero, para garantir o livre acesso aos
babaçuais e para a participação das mulheres nas
discussões sobre projetos produtivos.
Nesse aspecto, o Programa trabalha com
associações e grupos de mulheres quebradeiras
de coco babaçu, incentivando a criação de alternativas produtivas e de geração de renda,
como a fábrica de sabonete, extração de óleos
especiais, fabricação de papel reciclado, farmácia viva, compotas de frutas.
Na área de articulação política, o Programa de Organização das Mulheres acompanha a discussão e a criação de leis municipais
que liberam o acesso aos babaçuais, e desenvolve um trabalho de fortalecimento regional
do Movimento Interestadual das Quebradeiras
de Coco Babaçu.
Legislação
Primeiro, elas atingiram seus objetivos na
luta diária, depois partiram para as esferas políticas convencionais – Câmaras e Assembléia
118
Legislativa – para brigar pela criação de leis que
protegessem a palmeira do babaçu.
Em 1997, no município de Lago do Junco, as quebradeiras de coco conseguiram a
aprovação do projeto de Lei Babaçu Livre. A
luta foi iniciada pela Associação de Mulheres
Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e de
Lago dos Rodrigues.
Dois anos depois, foi a vez do município de
Lago dos Rodrigues, onde a associação local de
mulheres trabalhadoras rurais conseguiu a aprovação da Lei Babaçu Livre (nº 32/99).
Em dezembro de 1999, em Esperantinópolis,
foi aprovada a Lei nº 255/99.
Em setembro de 2001, a secretaria da
mulher do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais lutou e conseguiu a aprovação da Lei nº 319/2001 no município de
São Luiz Gonzaga do Maranhão. Nesse município, as quebradeiras conquistaram, ainda,
a aplicação de advertência e penalidades, medidas que até então não estavam contempladas em lei.
Segundo a vereadora e quebradeira de coco
Maria Alaíde, a luta das quebradeiras incluiu a
proteção das palmeiras de babaçu, desde junho
de 1986 amparadas pela Lei Estadual nº 4.734,
que proíbe a sua derrubada. Recentemente, a lei
sofreu uma emenda que prevê a aplicação de
multas aos infratores. (FL).
119
120
Agrocombustíveis
e produção de alimentos50
Por Ariovaldo Umbelino51
relação entre a expansão dos agrocombustíveis e a produção de alimentos ganhou a agenda política internacional.
A agricultura mundial continua passando por
transformações profundas. O avanço da “comoditização” dos alimentos e do controle genético
das sementes que sempre foram patrimônio da
humanidade foi acelerado.
A
Dois processos monopolistas comandam a
produção agrícola mundial. De um lado, está a
territorialização dos monopólios, que atuam simultaneamente no controle da propriedade privada
da terra, do processo produtivo no campo e do
processamento industrial da produção
agropecuária. O principal exemplo é o setor
sucroalcooleiro.
De outro lado, está a monopolização do território pelas empresas de comercialização e
processamento industrial da produção
agropecuária, que, sem produzir absolutamente
nada no campo, controlam, por meio de mecanismos de sujeição, camponeses e capitalistas produtores do campo.
As empresas monopolistas do setor de grãos
atuam como “players” no mercado futuro das
Bolsas de mercadorias do mundo e, muitas vezes,
têm também o controle igualmente monopolista
da produção dos agrotóxicos e dos fertilizantes.
A crise, portanto, tem dois fundamentos. O
primeiro, de reflexo mais limitado, refere-se à alta
dos preços internacionais do petróleo e, conseqüentemente, à elevação dos custos dos fertilizantes e agrotóxicos.
O segundo é conseqüência do aumento do
consumo, mas não do consumo direto como alimento, como quer fazer crer o governo brasileiro, mas, isto sim, daquele decorrente da opção
dos Estados Unidos pela produção do etanol a
partir do milho.
Esse caminho levou à redução dos estoques
internacionais desse cereal e à elevação de seus preços e dos preços de outros grãos -trigo, arroz, soja.
50
51
Assim, a “solução” norte-americana contra
o aquecimento global se tornou o paraíso dos ganhos fáceis dos “players” dos monopólios internacionais que nada produzem, mas que sujeitam produtores e consumidores à sua lógica de acumulação.
Certamente, não há caminho de volta para
a crise, pois, no caso norte-americano, os solos
disponíveis para o cultivo são disputados entre
trigo, milho e soja.
O avanço de um se reflete inevitavelmente
no recuo dos outros. Daí a crítica radical de Jean
Ziegler, da ONU (Organização das Nações Unidas), que classificou o etanol como “crime contra
a humanidade”.
É no interior dessa crise que o agronegócio
do agrocombustível brasileiro quer pegar carona
no futuro fundado na reprodução do passado. O
governo está pavimentando o caminho.
Por isso, a questão dos agrocombustíveis e
a produção de alimentos rebatem diretamente no
campo brasileiro. A área plantada de cana-deaçúcar na última safra chegou perto de 7 milhões
de hectares e, em São Paulo, onde se concentra
mais de 50% do total, já ocupa a quase totalidade dos solos mais férteis existentes.
Em meio à expansão dos agrocombustíveis,
uma pergunta se faz necessária: quais foram as
conseqüências, para a produção de alimentos no
Brasil, da expansão da cultura da cana nos últimos 15 anos?
Os dados do IBGE, entre 1990 e 2006, revelam a redução da produção dos alimentos imposta pela expansão da área plantada de canade-açúcar, que cresceu, nesse período, mais de
2,7 milhões de hectares. Tomando-se os municípios que tiveram a expansão de mais de 500 hectares de cana no período, verifica-se que, neles,
ocorreu a redução de 261 mil hectares de feijão e
340 mil hectares de arroz.
Essa área reduzida poderia produzir 400 mil
toneladas de feijão, ou seja, 12% da produção
Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=5310
Ariovaldo Umbelino é professor titular de geografia agrária da USP e diretor da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária).
121
nacional, e 1 milhão de toneladas de arroz, o que
equivale a 9% do total do país. Além disso, reduziram-se nesses municípios a produção de 460
milhões de litros de leite e mais de 4,5 milhões de
cabeças de gado bovino.
Embora a expansão esteja mais concentrada em São Paulo, já o está também no Paraná,
em Mato Grosso do Sul, no Triângulo Mineiro, em
Goiás e em Mato Grosso. Nesses Estados, reduziu-se a área de produção de alimentos agrícolas
e se deslocou a pecuária na direção da Amazô-
nia. Isso deu, conseqüentemente, em desmatamento. Por isso, a expansão dos agrocombustíveis continuará a gerar a redução da produção de alimentos.
A produção dos três alimentos básicos no
país - arroz, feijão e mandioca - também não
cresce desde os anos 90, e o Brasil se tornou o
maior país importador de trigo do mundo. Portanto, o caminho para a saída da crise e da construção de uma política de soberania alimentar
continua sendo a realização de uma reforma
agrária ampla, geral e massiva.
Fome e direitos humanos52
Por Jean Ziegler53
I
II
A cada cinco segundos, uma criança menor de dez anos morre de fome ou em decorrência das seqüelas imediatas. Mais de seis milhões
em 2007. A cada quatro minutos, alguém perde a
visão devido à falta de vitamina A. Há 854 milhões de seres humanos gravemente desnutridos,
mutilados pela fome permanente54.
O maior número de pessoas desnutridas,
515 milhões, vive na Ásia, onde representam
24% da população total. Mas se consideramos
a proporção das vítimas, o preço mais alto é
pago pela África subsaariana, onde há 186 milhões de seres humanos permanente e severamente desnutridas, ou seja, 34% da população total da região. A maioria dessas pessoas
padece o que a FAO chama de “fome extrema”, sua ração diária se situa em média em
300 calorias abaixo do regime da sobrevivência em condições suportáveis.
Isto acontece num planeta que transborda
de riquezas. A FAO é dirigida por um homem corajoso e competente, Jacques Diouf. Ele constata
que no estado atual de desenvolvimento das forças
agrícolas de produção, o planeta poderia alimentar
sem problemas 12 bilhões de seres humanos, ou
seja, o dobro da população mundial atual55.
Conclusão: este massacre cotidiano devido à fome não obedece a nenhuma fatalidade.
Por trás de cada vítima há um assassino. A atual
ordem mundial não é apenas mortífera, mas também absurda. O massacre está instalado numa
normalidade imóve
A equação é simples: quem tem dinheiro
come e vive. Quem não tem sofre, torna-se inválido e morre. Não existe a fatalidade. Qualquer
morte por fome é um assassinato.
52
53
54
55
122
56
Uma criança privada da alimentação
adequada em quantidade suficiente, desde
que nasce até os cinco anos, sofrerá as seqüelas durante toda a sua vida. Por meio de
terapias especiais praticadas sob supervisão
médica, é possível reintegrar à existência normal um adulto insuficientemente alimentado
temporariamente. Mas, no caso de uma criança de cinco anos isso é impossível. Privadas de alimento, suas células cerebrais terão
sido prejudicadas irremediavelmente. Régis
Debray chama estes pequenos de “crucificados de nascimento”56.
Texto disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=5327
Jean Ziegler é sociólogo suíço e relator especial da ONU sobre o direito à alimentação. A tradução é do Cepat (Centro de
Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores).
FAO, O estado da insegurança alimentar no mundo. Roma, 2006.
Uma alimentação normal significa proporcionar diariamente 2.700 calorias a cada indivíduo adulto.
Régis Debray e Jean Ziegler. Il s’agit de ne pas se rendre. Paris: Arléa, 1994.
A fome e a desnutrição crônicas constituem
uma maldição hereditária: todos os anos, centenas
de milhares de mulheres africanas severamente desnutridas dão à luz a centenas de milhares de crianças irremediavelmente afetadas. Todas essas mães
desnutridas e que, contudo, dão à vida, lembram as
mulheres condenadas de Samuel Beckett, que “dão
à luz a um cavalo sobre um túmulo. O dia brilha por
um instante e depois, de novo, a noite”57.
Uma dimensão do sofrimento humano está
ausente desta descrição: a da pungente e intolerável angústia que tortura qualquer ser morto de
fome desde que acorda. Como, durante o dia que
começa, poderá assegurar a sobrevivência dos
seus, e à sua própria? Viver nessa angústia é, talvez, ainda mais terrível do que suportar as múltiplas doenças e dores físicas que se abatem sobre
esse corpo faminto.
A destruição de milhões de africanos pela
fome acontece numa espécie de normalidade estática, todos os dias, num planeta desbordante de
riquezas. Na África subsaariana, entre 1998 e
2005, o número de pessoas grave e permanentemente desnutridas aumentou em 5,6 milhões.
III
Jean-Jacques Rousseau escreveu: “Entre o
fraco e o forte a liberdade oprime e a lei liberta”.
Com a finalidade de reduzir as desastrosas conseqüências das políticas de liberalização e privatização executadas ao extremo pelos senhores do
mundo e seus mercenários (FMI, OMC), a Assembléia Geral da ONU decidiu criar e proclamar
como questão de justiça um novo direito humano: o direito à alimentação.
O direito à alimentação é o direito de ter acesso regular, permanente e livre, quer seja diretamente
ou por meio da compra com dinheiro, a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada e suficiente, que corresponda às tradições culturais do povo a que pertence o consumidor e que
garanta a existência física e psíquica, individual e
coletiva, livre de angústia, satisfatória e digna.
Os direitos humanos – infelizmente! – não
estão inscritos no Direito positivo. Isso significa
que ainda não existe nenhum tribunal internacional que faça justiça aos famintos, defenda seu direito à alimentação, reconheça seu direito de produzir seus alimentos ou de obtê-los comprandoos com dinheiro e proteja seu direito à vida.
57
58
IV
Tudo vai melhor quando governos como o
do presidente Lula, no Brasil, ou o presidente Evo
Morales, da Bolívia, mobilizam por vontade própria os recursos do Estado, com a finalidade de
garantir a cada cidadão seu direito à alimentação.
A África do Sul é outro exemplo. O direito à
alimentação está inscrito na sua Constituição. Esta
estabelece a criação de uma Comissão Nacional
dos Direitos Humanos, composta em paridade por
membros nomeados pelas organizações da sociedade civil (Igrejas, sindicatos e diferentes movimentos sociais) e membros designados pelo Congresso.
As competências da Comissão são amplas. Desde que entrou em funcionamento, há cinco anos, a Comissão já conseguiu vitórias importantes. Pode intervir
em todos os âmbitos implicados na negação do direito à
alimentação: expulsão de camponeses de suas terras;
autorização dos municípios a sociedades privadas para
a gestão do abastecimento da água potável, que implique taxas proibitivas para os habitantes mais pobres;
desvio da água por parte de uma sociedade privada em
detrimento dos agricultores; falta de controle sobre a qualidade dos alimentos vendidos nas periferias, etc.
Mas, em quantos governos, especialmente
no Terceiro Mundo, existe a preocupação cotidiana prioritária pelo respeito à alimentação de seus
cidadãos? Pois bem, nos 122 países do Terceiro
Mundo vivem atualmente 4,8 bilhões dos 6,2 bilhões de pessoas que povoam o Planeta.
V
Os novos senhores do mundo têm ojeriza
aos direitos humanos. Eles os temem como o diabo a água benta. Porque é evidente que uma política econômica, social e financeira que cumprisse ao pé da letra todos os direitos humanos, romperia taxativamente a absurda e mortífera ordem
do mundo atual e produziria necessariamente uma
distribuição mais eqüitativa dos bens, satisfaria
as necessidades vitais das pessoas e as protegeria
da fome e de uma grande parte de suas angústias.
Portanto, o objetivo final dos direitos humanos
encarna um mundo completamente diferente, solidário, liberto do menosprezo e mais favorável à felicidade.
Os direitos humanos políticos e civis, econômicos, sociais e culturais, individuais e coletivos58
são universais, interdependentes e indivisíveis. E
são, hoje, o horizonte de nossa luta.
Samuel Beckett. Esperando Godot (1953). São Paulo: Cosac Naify, 2005.
Direitos humanos coletivos são, por exemplo, o direito à autodeterminação ou o direito ao desenvolvimento.
123
Colapso do agronegócio
e a agricultura do futuro59
Gerson Teixeira60
interação de dois fenômenos estruturais são preditivos de uma atividade
agrícola no futuro, organizada sob
bases incompatíveis com a manutenção do
agronegócio nos termos atuais. O primeiro fenômeno, de ordem econômica, subproduto da
modernização conservadora da agricultura, diz
respeito à trajetória erosiva, no longo prazo,
dos níveis de rentabilidade econômica da base
primária da atividade, decorrente do gap continuado entre preços agrícolas e custos de produção. Esse descompasso teve início com a
auto-suficiência alimentar da Europa no final
da década de 1970. À título de exemplo, de
acordo com a FAO, entre 1980 e 2005, os níveis reais dos preços do milho, arroz, trigo e
algodão declinaram, respectivamente, 55%,
50%, 46%, 60% e 54%.
A
Interagem com esse fenômeno os ganhos de
produtividade agrícola em escalas incapazes de
convergir as curvas dos preços e custos. A este
respeito, vale consultar na Central de Informações
Agropecuárias da Conab (www.conab.gov.br) os
dados sobre a evolução dessas variáveis, para
várias culturas, no período de 1998 a 2007.
Nos países ricos, o colapso da agricultura,
por força desses fenômenos, tem sido evitado por
políticas protecionistas vigorosas que incluem bilhões de dólares em ajuda aos agricultores.
No Brasil, a grande exploração agrícola
tem resistido, com competitividade internacional,
graças ao concurso de fatores como: a “cultura”
da inadimplência no crédito rural, a precarização
do trabalho, os baixos preços relativos da terra,
o uso predatório dos recursos naturais e os incentivos da Lei Kandir.
Decorre das tendências acima, portanto, a
rota desestruturante da base primária da agricultura empresarial, ao que tudo indica, inevitável, à
medida que resultante de fatores dificilmente reversíveis, a exemplo do protecionismo agrícola,
da imanência excedentária do modelo agrícola e
59
60
124
dos processos de concentração e a centralização
econômica dos capitais industrial, financeiro e
comercial no entorno da atividade agrícola.
Poder-se-ia contra-argumentar que a economia dos agrocombustíveis imporá inflexão nessas tendências. Mas, o governo brasileiro, os
agrosenhores e os seus agro-intelectuais garantem
que não haverá competição com a produção de
alimentos! Aliás, recomenda-se àqueles que ainda apostam na mega-economia dos agrocombustíveis, a interpretação política da lista de bens
ambientais, sem o etanol, apresentada em Bali na
COP 13, pelos EUA e Europa, em atropelo e desrespeito, como de praxe, às negociações entabuladas pelos mais de 150 membros do Comitê de
Comércio e Meio Ambiente da OMC.
Esta ameaça à agricultura empresarial perde intensidade no caso da agricultura familiar e
camponesa por conta dos valores e relações com
a terra não restritos à lógica marginalista.
Com esta maior blindagem e levando em
conta os efeitos do segundo fenômeno tratado na
seqüência, a pequena produção agroecológica se
habilita para hegemonizar, no futuro, a paisagem
agrária, principalmente em países como o Brasil.
O segundo fenômeno deriva dos impactos
na atividade agrícola das mudanças climáticas
globais e, ao mesmo tempo, das contribuições da
agricultura para o aquecimento global.
O mundo se depara com o grandioso (e ao
que tudo indica, irrealizável) desafio de reduzir,
entre 50% e 80% as emissões de gases de efeitoestufa, nos próximos 50 anos, para evitar que a
temperatura global ultrapasse os 2 graus centígrados. E as medidas nesta direção devem ser
implementadas, nas hipóteses mais otimistas, no
prazo de até 15 anos.
A agricultura contribui de forma importante e será fortemente afetada por esse processo. Calcula-se que esta atividade seja responsável por
30% das emissões globais de gases geradores do
Texto disponível em www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4803 - 15k
Gerson Teixeira é coordenador geral da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA, no DF.
efeito estufa. Afora as queimadas em países como
o Brasil, o principal fator da contribuição da agricultura para o aquecimento global é o emprego
intensivo de fertilizantes químicos. Daí decorre o
seguinte dilema: sem a redução massiva da utilização dos agroquímicos não há possibilidade de
redução do aquecimento global e, ao mesmo tempo, sem o uso crescente desses insumos a agricultura produtivista estará inviabilizada.
Neste quadro, no qual a grande exploração
agrícola conspira contra a sua própria sobrevivência e a do planeta, os impactos do aquecimento
global desestabilizadores da agricultura, previstos
no último Relatório do IPCC, exigirão mudanças
de profundidade na base técnica da agricultura
sob pena de severas ameaças à segurança alimentar da população mundial.
É óbvio que os centros de pesquisa em todo
o mundo já vêm se empenhando por soluções técnicas agronômicas para as situações de superstress que advirão do aquecimento global. Todavia, se, por exemplo, é possível a obtenção de variedades compatíveis com adversidades ambientais
previstas, não parece razoável supor uma atividade agrícola no futuro ultra-intensiva em fertilizantes. A não ser que a opção seja pela destruição do planeta! Não sendo assim, é possível imaginar o atual modelo agrícola, sem os agroquímicos? Aí já seria um outro modelo agrícola!
Do mesmo modo, muitos cientistas asseguram que a agricultura com biodiversidade
será essencial para a convivência com os desdobramentos das mudanças climáticas. Como
isto seria possível com um tipo de agricultura
no qual a biodiversidade tem sido uma das suas
principais vítimas? Além disso, sem
monocultivos em escala não há possibilidade de
viabilidade econômica para a base primária do
agronegócio, nos termos atuais. De novo, agora
por razões ambientais, a pequena produção
agroecológica se credencia para dominar a paisagem agrária do futuro.
Em suma, se fatores desestabilizadores da
natureza e da economia tendem a criar essa oportunidade de hegemonia para a agricultura familiar e camponesa, no futuro, resta que, na política,
as suas organizações atuem para tal sob perspectiva estratégica.
Para tanto, mais do que nunca, reforma
agrária, agricultura familiar e meio ambiente devem passar a ser pontos de convergência das
agendas das lutas populares no campo. E cumpre que se perceba a necessidade de luta pela
revisão do Pronaf à medida que, na concepção
atual o programa nivela as formas de gestão e
produção dos camponeses às bases de organização da agricultura produtivista. Isto não ajuda
a construir o futuro!
Fome:alimentos como negócio
Leonardo Boff - 29/4/2008
mundo está se alarmando com a alta
do preço dos alimentos e com as previsões do aumento da fome no mundo. A fome representa um problema ético, denunciado por Gandhi: “a fome é um insulto, ela
avilta, desumaniza e destrói o corpo e o espírito; é a forma mais assassina que existe”. Mas
ela é também resultado de uma politica econômica. O alimento se transformou em ocasião
de lucro e o processo agroalimentar num negócio rentoso. Mudou-se a visão básica que predominava até o advento da industrialização moderna, visão de que a Terra era vista como a
O
Grande Mãe. Entre a Terra e o ser humano vigoravam relações de respeito e de mútua colaboração. O processo de produção industrialista
considera a Terra apenas como baú de recursos a serem explorados até à exaustão.
A agricultura mais que uma arte e uma técnica de produção de meios de vida se transformou numa empresa para lucrar. Mediante a mecanização e a alta tecnologia pode-se produzir
muito com menos terras. A “revolução verde”
introduzida a partir dos anos 70 do século XX e
difundida em todo mundo, quimicalizou quase
toda a produção. Os efeitos são perceptíveis
125
agora: empobrecimento dos solos, devastadora
erosão, desfloretamento e perda de milhares de
variedades naturais de sementes que são reservas face a crises futuras.
A criação de animais modificou-se profundamente devido aos estimulantes de crescimento,
práticas intensivas, vacinas, antibióticos, inseminação artificial e clonagem.
Os agricultores clássicos foram substituídos
pelos empresários do campo. Todo este quadro
foi agravado pela acelerada urbanização do mundo e o consequente esvaziamento dos campos. A
cidade coloca uma demanda por alimentos que
ela não produz e que depende do campo.
Vigora uma verdadeira guerra comercial por
alimentos. Os países ricos subsidiam safras inteiras ou a produção de carnes para colocá-las a
melhor preço no mercado mundial, prejudicando
os paises pobres, cuja principal riqueza consiste
na produção e exportação de produtos agrícolas
e carnes. Muitas vezes, para se viabilizarem economicamente, se obrigam a exportar grãos e cereais que vão alimentar o gado dos países industrializados quando poderiam, no mercado interno, servir de alimento para suas populações.
No afã de garantir lucros, há uma tendência mundial, no quadro do modo de produção
capitalista, de privatizar tudo especialmente as
sementes. Menos de uma dezena de empresas
transnacionais controla o mercado de sementes em todo o mundo. Introduziram as sementes
transgênicas que não se reproduzem nas safras
e que precisam ser, cada vez, compradas com
altos lucros para as empresas. A compra das
sementes constitui parte de um pacote maior que
inclui a tecnologia, os pesticidas, o maquinário
e o financiamento bancário, atrelando os produtores aos interesses agroalimentares das empresas transnacionais.
No fundo, o que interessa mesmo é garantir ganhos para os negócios e menos alimentar pessoas. Se não houver uma inversão
na ordem das coisas, isto é: uma economia
submetida à política, uma política orientada
pela ética e uma ética inspirada por uma sensibilidade humanitária mínima, não haverá
solução para a fome e a subnutrição mundial.
Continuaremos na barbárie que estigmatiza o
atual processo de globalização. Gritos caninos
de milhões de famintos sobem continuamente
aos céus sem que respostas eficazes lhes venham de algum lugar e façam calar este clamor. É a hora da compaixão humanitária
traduzida em políticas globais de combate sistemático à fome.
Transnacionais de alimentos lucram
com aumento da fome61
Boaventura de Sousa Santos
á muito conhecido dos que estudam
a questão alimentar, o escândalo finalmente estalou na opinião pública:
a substituição da agricultura familiar, camponesa, orientada para a auto-suficiência alimentar e
os mercados locais, pela grande agro-indústria,
orientada para a monocultura de produtos de
H
61
126
exportação (flores ou tomates), longe de resolver
o problema alimentar do mundo, agravou-o.
Tendo prometido erradicar a fome do mundo no espaço de vinte anos, confrontamo-nos hoje
com uma situação pior do que a que existia há
quarenta anos. Cerca de um sexto da humanidade
A fome no mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que
a fome. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram
83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos. A análise é de Boaventura de Sousa
Santos. Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14976.
passa fome; segundo o Banco Mundial, 33 países
estão à beira de uma crise alimentar grave; mesmo nos países mais desenvolvidos os bancos alimentares estão a perder as suas reservas; e voltaram as revoltas da fome que em alguns países já
causaram mortes. Entretanto, a ajuda alimentar
da ONU está hoje a comprar a 780 dólares a tonelada de alimentos que no passado mês de março comprava a 460 dólares.
rem os preços, mais fome haverá no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os retornos
dos investimentos financeiros.
Nos últimos meses, os meses do aumento
da fome, os lucros da maior empresa de sementes
e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome
de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos.
O escândalo do enriquecimento de alguns à
custa da fome e subnutrição de milhões já não pode
ser disfarçado com as “generosas” ajudas alimentares. Tais ajudas são uma fraude que encobre outra maior: as políticas econômicas neoliberais que
há trinta anos têm vindo a forçar os países do terceiro mundo a deixar de produzir os produtos agrícolas necessários para alimentar as
suas próprias populações e a concenA fome no
trar-se em produtos de exportação,
mundo não é com os quais ganharão divisas que lhes
um fenômeno permitirão importar produtos agríconovo. Ficaram las... dos países mais desenvolvidos.
A opinião pública está a ser sistematicamente desinformada sobre esta matéria para que se
não dê conta do que se está a passar. É que o que
se está a passar é explosivo e pode ser resumido
do seguinte modo: a fome do mundo é a nova
grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma
proporção que a fome.
A fome no mundo não é um fenômeno novo. Ficaram famosas na
Europa as revoltas da fome (com o
saque dos comerciantes e a imposição da distribuição gratuita do pão)
Quem tenha dúvidas sobre esta
famosas na
desde a Idade Média até ao século
fraude que compare a recente “geneXIX. O que é novo na fome do sécuEuropa as
rosidade” dos EUA na ajuda alimenlo XXI diz respeito às suas causas e
tar com o seu consistente voto na ONU
revoltas
da
fome
ao modo como as principais são
contra o direito à alimentação recoocultadas. A opinião pública tem sido desde a Idade nhecido por todos os outros países.
informada que o surto da fome está
Média até o
O terrorismo foi o primeiro granligado à escassez de produtos agríséculo
XIX.
de aviso de que se não pode impunecolas, e que esta se deve às más comente continuar a destruir ou a pilhar
lheitas provocadas pelo aquecimena riqueza de alguns países para benefício exclusito global e às alterações climáticas; ao aumento
vo de um pequeno grupo de países mais poderode consumo de cereais na Índia e na China; ao
sos. A fome e a revolta que acarreta parece ser o
aumento dos custos dos transportes devido à susegundo aviso. Para lhes responder eficazmente
bida do petróleo; à crescente reserva de terra agríserá preciso pôr termo à globalização neoliberal,
cola para produção dos agro-combustíveis.
tal como a conhecemos.
Todas estas causas têm contribuído para o
O capitalismo global tem de voltar a sujeiproblema, mas não são suficientes para explicar
tar-se a regras que não as que ele próprio estabeque o preço da tonelada do arroz tenha triplicado
lece para seu benefício. Deve ser exigida uma
desde o início de 2007. Estes aumentos especulamoratória imediata nas negociações sobre protivos, tal como os do preço do petróleo, resultam
dutos agrícolas em curso na Organização Mundide o capital financeiro (bancos, fundos de penal do Comércio.
sões, fundos hedge [de alto risco e rendimento])
ter começado a investir fortemente nos mercados
Os cidadãos têm de começar a privilegiar
internacionais de produtos agrícolas depois da
os mercados locais, recusar nos supermercados
crise do investimento no sector imobiliário.
os produtos que vêm de longe, exigir do Estado e
dos municípios que criem incentivos à produção
Em articulação com as grandes empresas
agrícola local, exigir da União Europeia e das
que controlam o mercado de sementes e a distriagências nacionais para a segurança alimentar
buição mundial de cereais, o capital financeiro
que entendam que a agricultura e a alimentação
investe no mercado de futuros na expectativa de
industriais não são o remédio contra a inseguranque os preços continuarão a subir, e, ao fazê-lo,
ça alimentar. Bem pelo contrário.
reforça essa expectativa. Quanto mais altos fo-
127
128
129
130
Cerrado62
onsiderado atualmente a savana mais
rica do mundo em biodiversidade, o
Cerrado brasileiro reúne, numa grande
variedade de paisagens, mais de 10.000 espécies
de plantas e 1.575 qualidades de animais. Entre
chapadas e vales, com uma vegetação que vai do
campo seco às matas de galeria, esse bioma se
estende por uma vastidão de 2 milhões de km²
(Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas
Gerais, Tocantins, Piauí e Distrito Federal, além
de ser encontrado, também, em trechos de outros
sete estados brasileiros), ocupando um quarto do
território nacional.
C
O Cerrado vive, atualmente, forte descaracterização pela expansão desordenada da
fronteira agrícola, que já ocupa cerca de metade da região. Mais do que sua exuberante biodiversidade, a atual devastação põe em risco
uma região que é o berço das águas das principais bacias hidrográficas brasileiras, além de
base da sobrevivência cultural e material de
extrativistas, indígenas, quilombolas e produtores familiares agroextrativistas, que têm, no uso
dos seus recursos, a fonte de sua subsistência e
geração de renda.
Baru – Baruzeir (Dipteryx alata)
Árvore frutífera do Cerrado brasileiro, que
possui uma castanha de excelente sabor e propriedades nutricionais. É rico em proteínas, fibras, magnésio, potássio e ferro, além de possuir
alto valor energético. O baru está fortemente ameaçado pelo desmatamento para plantio de grãos,
implantação de pastagens e utilização de sua madeira. O aproveitamento dos frutos contribui para
a conservação da espécie e do Cerrado, além de
melhorar a qualidade de vida das comunidades
envolvidas na coleta e no beneficiamento.
Muitas histórias e tantas paisagens sobre
a destruição e a resistência no cerrado63
Um dos ecossistemas mais ricos do país, fonte de águas de muitos rios, a região, no coração do Brasil, é oferecida em holocausto ao agronegócio; ela e os
brasileiros que a povoam vêm sofrendo contínua devastação e violência.
iderança entre os trabalhadores rurais
do cerrado, Manuel da Conceição, assim como a terra em que vive, teve o
corpo devastado pelas torturas da ditadura. Uma
de suas pernas secou, como secaram tantos brejos, veredas, igarapés e pântanos.
L
62
63
O cerrado, a partir de seu coração, no centro do Brasil, se mistura com o pantanal; a mata
de araucária, no sul do país; a mata atlântica; a
caatinga, no Nordeste; a zona dos cocais e
babaçuais, no Maranhão e Piauí; e a Floresta
Amazônica. Hoje, o cerrado é oferecido em
Texto disponível em http://www.nordestecerrado.com.br/cerrado/
Matéria feita por João Roberto Ripper, de Rio de Janeiro (RJ). Publicada no Jornal Brasil de Fato, Ano 2, Número 97,
São Paulo de 6 a 12 de janeiro de 2005. Pág. 12 e 13.
131
holocausto, em troca da Amazônia, por uma política que ignora as suas populações.
A partir dos anos 70, o agronegócio tem
como sócio majoritário a soja. Há tratores de
230 mil dólares, mas a monocultura significa
não produzir para o próprio povo e não contemplar quem produz nem suas famílias.
Quantas sementes têm que ser plantadas para
dar retorno a esse investimento? Que quantidade de terra é necessária pra tanta semente
ser cultivada? Quantos chapadões são sacrificados e deixam de gerar agricultura
diversificada, extrativismo e caça para os povos do cerrado?
Além da soja, tem a cana-de-açúcar, os
eucaliptos e sua produção de carvão vegetal
com utilização de mão-de-obra escrava, tudo
sugando as chapadas, chupando água do lençol freático que sempre foi a garantia de vida
das veredas, das matas ciliares, dos pântanos,
igarapés, rios.
Manuel teve o corpo e o coração muito
machucados pelos militares, mas não perdeu a
beleza, pois sua dignidade é perene, límpida,
transparece e aparece em tantos outros homens e
mulheres que povoam o cerrado brasileiro.
Disse um índio no Fórum Social Mundial:
“Indiscutivelmente, a expansão do agronegócio
está matando as culturas dos povos do cerrado.
Existe um conhecimento sobre o cerrado que
está inscrito na prática das populações. Com
toda certeza, quando seca um pântano, um
igarapé, um rio, ou quando migra um camponês, um indígena, um quilombola, a humanidade fica mais pobre”.
Destruição
Os camponeses, habitantes originários do
cerrado, sempre trabalharam com paisagens
diversificadas. Nas baixadas, a agricultura; nas
chapadas, o gado à solta, a caça e coleta de ervas
medicinais e de frutos, como o pequi; nas encostas, uma mistura de agricultura, extrativismo, um
pouco de pecuária.
Os chapadões foram um grande achado
para o agronegócio. Que consegue, hoje, captar água a até 150 metros de profundidade, trazendo para a superfície a água do lençol
freático, num local onde a água já é escassa
por seis meses.
132
Essa operação provoca um desequilíbrio
hídrico de tal porte que rios, córregos e lagoas,
antes perenes, tornam- se intermitentes e até deixam de existir. Com a falta d’água, antes de o agronegócio produzir grãos para exportação, produz a sede, a fome e a expulsão de milhares de
habitantes. O problema afeta as bacias do Prata
e Amazônica.
Rios Mortos
O líder rural lamenta que os rios da região
estejam sendo devastados, aterrados por areia,
envenenados por adubos químicos. “Os rios só
têm água roxa e preta. Acabou a fartura de peixes, pássaros, cutia, tatu, anta, veado. O que tem
agora é eucalipto, capim pra criar gado. Não tem
mais mata ciliar. Os tratores devastam as florestas e as terras. Nas chuvas tudo é arrastado, entupindo os rios”.
Manuel diz que estão desertificando o
Maranhão. Mais: “Quando falarmos dos seres
humanos, a coisa é ainda mais grave. Quero ver
qual é o governo que vai conseguir segurar a violência no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, São
Luís com essa grande quantidade de trabalhadores pobres que são expulsos, com fome e sem trabalho ”Os pobres viram marginais, diz, e não vai
ter governo que dê conta de atender esses milhões
de brasileiros que, sem querer, caem na
marginalidade para sobreviver.”
Resistência
Para fazer frente a tudo isso foram criados,
há 18 anos, o Centro de Educação e Cultura do
Trabalhador Rural e, mais recentemente, a Central de Cooperativas Agroextrativistas do
Maranhão (CCAMA), em Imperatriz. Antes de se
organizar, esses trabalhadores não tinham nem
terra e nem ferramentas.
Hoje, são mais de 30 mil trabalhadores
assentados em Buriticupu, onde 38 grandes fazendas foram ocupadas. “Eles ainda estão muito pobres, mas pelo menos já têm o que comer” – conta Manuel. Declarando seu amor
pelo cerrado, ele lembra que nele deixou sua
família quando foi preso e depois se refugiou
na Suíça. “Aqui fiz a minha roça, colhi meu
babaçu. Eu tenho todo interesse de dizer que o
que faço hoje é tentar levantar as vozes adormecidas dos povos do cerrado”.
O Semi-Árido é belo
e constrói conhecimentos64
Antonio Gomes Barbosa65
Semi-Árido é, sem dúvida, um dos
ecossistemas mais intrigantes e fascinantes do planeta! Esta expressão, que caracteriza admiração e encantamento, é a de quem
passa a observar de perto esta região, sobretudo,
estudiosos da Biologia, Botânica, Antropologia,
Geografia, Paleontologia, História, Sociologia,
Jornalismo, Fotografia, dentre tantas outras áreas
do conhecimento.
sa região não se expressa apenas em sua fauna,
flora, pinturas rupestres e/ou formações rochosas
(cristalino na maior parte). O maior patrimônio
do Semi-Árido é, principalmente, a diversidade
cultural de seu povo: agricultores/as, vaqueiros/
as, ribeirinhos/as, quilombolas, indígenas,
extrativistas, quebradeiras de coco; que cultivam,
criam, extraem, cantam, dançam, observam e produzem conhecimentos.
Rico em biodiversidade, o Semi-Árido, que
alguns preferem denominar de “sertão”, para diferi-lo do litoral, apresenta mais de 160
microclimas, de acordo com a Embrapa SemiÁrido; todos caracterizados por um alto poder de
resistência e resiliência. Mesmo com longos períodos de estiagem, plantas e animais resistem e
apresentam grande capacidade de regeneração.
E é só cair as primeiras chuvas e tudo que era
cinza e parecia morto, vira verde e esbanja vida.
Portadores de um vasto saber, adquiridos a
partir da observação da natureza ao longo dos
tempos, homens e mulheres aprenderam a arte de
conviver com o meio ambiente, olhando os ciclos
das chuvas, o comportamento das plantas, dos
animais e as características do clima e do solo.
Foi esse conhecimento que construiu as melhores
estratégias de convivência com o Semi-Árido, favorecendo o armazenamento de água para o consumo da família, através das cisternas; dos animais e das plantas por meio dos barreiros, tanques de pedra, caldeirões, barragens subterrâneas; e a estocagem de comida (bancos de sementes, paiol, armazéns, etc.) e forragem para os animais (pastagens nativas, silos, fenos).
O
É também no Semi-Árido, de acordo com a
pesquisadora Niéde Guidon, que se registram as
primeiras marcas de ocupação humana das Américas. Ou seja, podemos dizer que a riqueza des-
A natureza não é muda66
Eduardo Galeano
mundo pinta naturezas mortas, sucumbem os bosques naturais, derretem os
pólos, o ar torna-se irrespirável e a água
imprestável, plastificam-se as flores e a comida, e
o céu e a terra ficam completamente loucos.
O
E, enquanto tudo isto acontece, um país latino-americano, o Equador, está discutindo uma
nova Constituição. E nessa Constituição abre-se
a possibilidade de reconhecer, pela primeira vez
na história universal, os direitos da natureza.
A natureza tem muito a dizer, e já vai
sendo hora de que nós, seus filhos, paremos
de nos fingir de surdos. E talvez até Deus escute o chamado que soa saindo deste país
Texto disponível em http://www.asabrasil.org.br
Sociólogo e Coordenador Pedagógico do P1+2
66
O Equador está discutindo uma nova Constituição. Entre as propostas, abre-se a possibilidade de reconhecer, pela primeira
vez na história, os direitos da natureza. Parece loucura querer que a natureza tenha direitos. Em compensação, parece
normal que as grandes empresas dos EUA desfrutem de direitos humanos, conforme foi aprovado pela Suprema Corte, em
1886. Texto disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14956
64
65
133
andino, e acrescente o décimo primeiro mandamento, que ele esqueceu nas instruções que
nos deu lá do monte Sinai: “Amarás a natureza, da qual fazes parte”.
Um objeto que quer ser sujeito
Durante milhares de anos, quase todo o
mundo teve direito de não ter direitos.
Nos fatos, não são poucos os que continuam sem direitos, mas pelo menos se reconhece, agora, o direito a tê-los; e isso é bastante
mais do que um gesto de caridade dos senhores
do mundo para consolo dos seus servos.
E a natureza? De certo modo, pode-se dizer que os direitos humanos abrangem a natureza, porque ela não é um cartão postal para
ser olhado desde fora; mas bem sabe a natureza que até as melhores leis humanas tratam-na
como objeto de propriedade, e nunca como sujeito de direito.
Reduzida a uma mera fonte de recursos
naturais e bons negócios, ela pode ser legalmente maltratada, e até exterminada, sem que
suas queixas sejam escutadas e sem que as
normas jurídicas impeçam a impunidade dos
criminosos. No máximo, no melhor dos casos,
são as vítimas humanas que podem exigir uma
indenização mais ou menos simbólica, e isso
sempre depois que o mal já foi feito, mas as
leis não evitam nem detêm os atentados contra a terra, a água ou o ar.
Parece estranho, não é? Isto de que a natureza tenha direitos... Uma loucura. Como se
a natureza fosse pessoa! Em compensação, parece muito normal que as grandes empresas
dos Estados Unidos desfrutem de direitos humanos. Em 1886, a Suprema Corte dos Estados Unidos, modelo da justiça universal, estendeu os direitos humanos às corporações
privadas. A lei reconheceu para elas os mesmos direitos das pessoas: direito à vida, à livre
expressão, à privacidade e a todo o resto, como
se as empresas respirassem. Mais de 120 anos
já se passaram e assim continua sendo. Ninguém fica estranhado com isso.
Gritos e sussurros
134
Nada há de estranho, nem de anormal, o
projeto que quer incorporar os direitos da natureza à nova Constituição do Equador.
Este país sofreu numerosas devastações
ao longo da sua história. Para citar apenas um
exemplo, durante mais de um quarto de século,
até 1992, a empresa petroleira Texaco vomitou
impunemente 18 bilhões de galões de veneno
sobre terras, rios e pessoas. Uma vez cumprida
esta obra de beneficência na Amazônia
equatoriana, a empresa nascida no Texas celebrou seu casamento com a Standard Oil. Nessa época, a Standard Oil, de Rockefeller, havia
passado a se chamar Chevron e era dirigida por
Condoleezza Rice. Depois, um oleoduto transportou Condoleezza até a Casa Branca, enquanto a família Chevron-Texaco continuava contaminando o mundo.
Mas as feridas abertas no corpo do Equador pela Texaco e outras empresas não são a
única fonte de inspiração desta grande novidade jurídica que se tenta levar adiante. Além
disso, e não é o menos importante, a reivindicação da natureza faz parte de um processo
de recuperação das mais antigas tradições do
Equador e de toda a América. Visa a que o
Estado reconheça e garanta o direito de manter e regenerar os ciclos vitais naturais, e não
é por acaso que a Assembléia Constituinte começou por identificar seus objetivos de
renascimento nacional com o ideal de vida do
sumak kausai. Isso significa, em língua
quechua, vida harmoniosa: harmonia entre nós
e harmonia com a natureza, que nos gera, nos
alimenta e nos abriga e que tem vida própria,
e valores próprios, para além de nós.
Essas tradições continuam miraculosamente vivas, apesar da pesada herança do racismo, que no Equador, como em toda a América, continua mutilando a realidade e a memória. E não são patrimônio apenas da sua
numerosa população indígena, que soube
perpetuá-las ao longo de cinco séculos de proibição e desprezo. Pertencem a todo o país, e
ao mundo inteiro, estas vozes do passado que
ajudam a adivinhar outro futuro possível.
Desde que a espada e a cruz desembarcaram em terras americanas, a conquista européia castigou a adoração da natureza, que
era pecado de idolatria, com penas de açoite, forca ou fogo. A comunhão entre a natureza e o povo, costume pagão, foi abolida em
nome de Deus e depois em nome da civilização. Em toda a América, e no mundo, continuamos pagando as conseqüências desse
divorcio obrigatório.
Mudanças Climáticas67
Clima pode ser definido como o conjunto
de condições meteorológicas (temperatura, umidade, chuvas, pressão e ventos) que mantém características comuns em uma
determinada região. Variações no clima fazem
parte da dinâmica ambiental do planeta. Por exemplo, a diferença das características de uma mesma
estação de um ano para outro, que pode ser mais
quente ou fria, úmida ou seca, chuvosa ou não.
Também são evidências das variações do clima os
fenômenos como tempestades, ciclones e secas.
O
As mudanças climáticas são uma alteração
permanente nessas características e aconteceram diversas vezes no passado, por causas naturais. Entretanto, as atividades humanas, em especial as que utilizam combustíveis fósseis, vêm influenciando a ocorrência desse tipo de evento, por meio da alteração do
equilíbrio climático do planeta. A causa central deste
fenômeno é a intensificação do efeito estufa, que
modifica o modo com que a energia solar interage
com a atmosfera, provocando graves conseqüências.
Alguns indicadores das mudanças climáticas nos últimos 15 anos são o aquecimento
global, alterações bruscas em características básicas das estações do ano em diferentes partes
do planeta, como temperatura e ocorrência de
chuvas, ou aumento inédito nas últimas décadas de fenômenos abruptos como vendavais,
ciclones e enchentes.
Se hoje existe um consenso entre cientistas de que mudanças climáticas estão em curso
e têm como origem a influência das atividades
humanas no ambiente, ainda há um longo caminho a se percorrer no que diz respeito à
mitigação das causas desse fenômeno e à adoção de energias alternativas para as atividades
produtivas. Os tratados internacionais abriram
caminhos para lidar com esse problema, ao estabelecerem diretrizes para redução de emissões
dos gases do efeito estufa (GEEs) e ferramentas
de ordem prática, como os mecanismos de
flexibilização do Protocolo de Kyoto.
Amsterdã,Holanda
Novo relatório do Greenpeace mostra o papel da
agricultura nas mudanças climáticas e o que se
pode fazer para reduzir suas emissões de CO268
agricultura é atualmente uma das mais
importantes fontes de emissão de gases do efeito estufa e mudanças urgentes precisam ser feitas no modo como a atividade
é exercida para torná-la ambientalmente sustentável. Isso é o que conclui o novo relatório do
Greenpeace, Mudanças do Clima, Mudanças no
Campo69.
A
“Os impactos da agricultura industrial no
clima não podem ser ignorados”, afirma Gabriela
Vuolo, do Greenpeace Brasil. “É preciso trabalhar para que o futuro da agricultura seja produzindo alimentos em comunhão com a natureza e
a população, e não contra elas”.
O novo relatório traz detalhes de como a agricultura baseada no uso intensivo de energia e produtos
Texto disponível em http://www.bioclimatico.com.br/document.aspx?IDDocument=24
Texto disponível em http://www.greenpeace.org/brasil/greenpeace-brasil-clima/noticias/mudan-as-do-clima-mudan-as-no.
69
O relatório foi escrito pelo professor Pete Smith, da Universidade de Aberdeen – um dos autores do mais recente relatório
do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) – e é o primeiro a detalhar os efeitos diretos
e indiretos da agricultura nas mudanças climáticas.
67
68
135
químicos provocou um aumento nos níveis de emissões de gases do efeito estufa, principalmente devido
ao excessivo uso de fertilizantes, desmatamento, degradação do solo e criação intensiva de animais.
A contribuição total da agricultura mundial
para as mudanças climáticas, incluindo desmatamento para plantações e outros usos, é estimado em algo entre 8,5 bilhões e 16,5 bilhões de toneladas de dióxido de carbono, ou entre 17% e
32% de todas as emissões de gases do efeito estufa provocadas pelo ser humano.
O uso excessivo de fertilizantes é responsável pela maior parte das emissões de gases do efeito
estufa, estando hoje em torno de 2,1 bilhões de
toneladas de CO2 anualmente. O excesso de fertilizantes provoca a emissão de óxido nitroso
(N2O), que é algo em torno de 300 vezes mais
potente que o CO2 na mudança do clima.
136
O relatório detalha ainda a variedade de
soluções práticas que podem reduzir as mudanças climáticas e que são fáceis de ser implementadas, incluindo aí a redução do desmatamento,
do uso de fertilizantes e a proteção do solo.
“Do ponto de vista do clima global, o
grande vilão é a queima de combustíveis fósseis seguido da mudança de uso do solo,
como as queimadas na Amazônia e as
atividades agrícolas em geral. No Brasil,
essa é a maior parte do problema”, afirmou
Luís Piva, coordenador da campanha de clima do Greenpeace. “Ações urgentes são necessárias para que o setor agrícola deixe de
ser parte do problema das mudanças climáticas e passe a colaborar com a retirada de
carbono da atmosfera e ao mesmo tempo garantir a segurança alimentar”.