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LOUCURA SÉRGIO BRANCO Prólogo Eu vou contar-vos a história de um herói. Não um herói como aqueles que veem todos os dias na televisão, nos livros, ou em qualquer outro lugar... Não será um herói que veste uma capa com um símbolo somente dele... Esta é a história de um herói que era demasiado louco para o mundo... Mas, foi graças a essa loucura, que ele conseguiu fazer com que... O herói que me ensinou que, ser louco num mundo fodido, é uma bênção... Sofia era uma mulher como qualquer outra. Tinha o seu emprego numa loja vulgar, sem grandes diferenças das outras. Acordava todos os dias às sete da manhã para ir para o emprego. Tomava banho, preparava-se, apanhava o autocarro, vestia o uniforme, picava o ponto, e passava o dia inteiro a sorrir para as pessoas... No final do dia, chegava a casa... Despia-se, enchia um copo com vinho, de uma garrafa das mais baratas que se poderia comprar, bebia-o e lamentava-se por não ter um marido, por não ter um namorado, por não ter dinheiro para comprar aquilo que os outros tinham. Queixava-se da casa, queixava-se do emprego, queixava-se de tudo aquilo que possuí-a... 4 Desculpem... Não, não é esta a história do nosso herói... Esta é a história de uma mulher normal... Talvez a vossa história, mas se não for, a vossa história não estará muito longe desta realidade. Se Sofia neste preciso momento tivesse perdido um pouco do tempo, que gastava na loja para se lamuriar com as clientes mais conhecidas, e tivesse olhado pela janela, poderia ter visto o herói de que vos falo... Todas as pessoas pareciam reparar nele. Era impossível quase não repararem numa figura como aquela. Ele vestia um fato roxo, muito feio e, como tal, muito vistoso... Tinha a cara maquilhada e caminhava como se fosse um pinguim, em passos curtos e calmos, escondendo o mal que acabara de cometer. Três mil passos... Pensava ele; Três mil passos, nem mais nem menos, só três mil... Na mão dele levava um telemóvel. Não a última invenção tecnológica, mas também não um telemóvel muito antigo. Era um telemóvel normal, como qualquer outro, nada muito diferente daqueles que todos os dias temos nas mãos. Três mil... Parou e carregou num botão do telemóvel. Nada aconteceu. Terei ligado bem os fios? Voltou a carregar no botão. Nada aconteceu. Última tentativa! Pensou ele e carregara pela última vez no mesmo botão esperando que fosse daquela vez que tudo corresse como ele havia planeado. O som de uma explosão ecoou por toda aquela avenida bem movimentada. Ele saltou de alegria, com um riso que se poderia considerar de uma felicidade imensa, quase demente. 5 As pessoas gritaram em socorro e começaram a fugir de medo. O medo de estarem a ser atacadas. Corriam como qualquer animal corre, quando sente que a sua vida está em perigo. Nas notícias de hoje, uma história que está a chocar todo o país. A Estátua do Imperador foi destruída. Ainda não se sabe ao certo o que aconteceu, pensa-se que poderá ter sido um atentado causado por terroristas. A polícia já está a investigar, mas parece ainda não haver suspeitos de quem poderá ter feito este ataque, nem se sabe ainda se terá sido algum ataque terrorista. O Presidente já fez uma declaração dizendo: “Caros cidadãos, não se preocupem com a explosão que aconteceu hoje, não há nada que devam temer. Estão seguros. Já foram disponibilizadas todas as forças policiais possíveis para começarem a investigar o incidente, e a segurança foi reforçada. Não há motivos que nos levem a acreditar que terá sido um ato terrorista; pensa-se que poderá ter sido somente o rebentamento de uma conduta de gás, que passa mesmo por debaixo da estátua. Peço que todos se mantenham calmos, não haverá motivos para preocupação...” - Consegues acreditar nisto? – indagara um mulher baixa que se encontrava a olhar para a televisão. Onde via a imagem de um homem alto, de cabelos brancos, no seu rosto surgia uma 6 queimadura, há muito disfarçada com o tempo, tinha um ar imponente e discursava muito suavemente. - Deve ter sido algum puto, daqueles que acha que é capaz de mudar o mundo... – Riu-se a rapariga, muito mais nova que ela, que se encontrava ao seu lado. - Não sei se será somente isso Carly... – A mulher parecia um pouco ansiosa – O mundo parece estar a querer mudar. Este pode ter sido o início. Carly riu-se. - Tens de parar de ler esses teus livros antigos. – riu-se Um homem somente não pode mudar o mundo, disso podes ter tu a certeza. Uma luz vermelha acendeu-se naquela sala. De seguida um sinal sonoro entoou por ela. - Parece que o doente do quarto 34 está a precisar de nós. - Provavelmente só quer mais comprimidos, ou olhar para as nossas mamas! – Carly era enfermeira e trabalhava no Hospital dos Anjos Loucos. Apesar do nome, aquele hospital era tudo menos um manicómio. Era um hospital normal. O nome que tinha derivava de uma lenda antiga que um anjo enlouquecera e fora expulso do céu, e que depois fundara aquela cidade. Histórias que as pessoas vão contando umas às outras. - Estou cansada deste velho... – reclamara a outra – Mas sou uma enfermeira. Tenho de ser boazinha. – Saiu da sala. Carly ficara ali, a olhar para a televisão. A pensar que todo aquele aparato tinha sido criado por algum lunático que pensava ser capaz de mudar o mundo, mas que, como tantos outros, nunca conseguiria. Ela estava de facto certa sobre o facto de ele ser um lunático... Mas estava bastante enganada quanto à outra parte. 7 1 - Caros senhores espero que já tenham informações quanto ao que se passou hoje, e que já tenham detido aquele que fez este atentado. – O Presidente falara para as vinte pessoas que faziam parte do conselho de estado daquele país, mas ao que parecera nenhum se dignara a responder. Todos sabiam o temperamento que aquele homem tinha, e nenhum tinha a resposta que ele queria ouvir. - Peço desculpa, Senhor Presidente. – Um homem na casa dos quarenta anos, alto, musculado e com um ar robusto tomara a palavra, mas em tom calmo e baixo, com medo do que poderia vir a acontecer-lhe – Tentamos tudo o que pudemos, mas ainda não foi possível identificar quem foi o autor do atentado. - Está-me a dizer que os Serviços Secretos, que deveriam ser a máxima na segurança neste país, e com os quais nós gastamos tanto dinheiro para conseguirmos ter as melhores tecnologias, não conseguem encontrar um simples homem. – o tom dele era de sarcasmo e de irritação. Aquele homem sempre odiara a incompetência, sobretudo a incompetência daqueles que selecionara para o ajudarem a comandar todo aquele país. Mais do que a incompetência deles, aquilo revelava que ele mesmo era insciente por não conseguir encontrar pessoas à altura dos seus cargos. 8 - Peço desculpa... – O homem limitara-se a responder desta maneira, tentando não acordar a fera adormecida que aquele homem tinha sempre dentro dele. - Desculpas não nos farão conseguir apanhar este homem, caro Senhor Almiton. Pensei que já soubesse isso. – sentenciara o Presidente, cortando a esperança que ainda residia viva no interior do homem – E você, caro Morgan, o que é que a polícia já conseguiu investigar... As atenções vidraram-se para um homem baixo, com as sobrancelhas quase coladas. Não tinha ar de atleta, era um pouco gordo para se ser sincero. O seu olhar era vago, não demonstrava ter grande confiança e poder-se-ia dizer, caso não fosse o facto de não se poder olhar para o seu interior, que ele tremia como uma árvore prestes a tombar. - Senhor Presidente... – a voz tremia-lhe – Conseguimos apurar que as pessoas viram um homem vestido com um fato roxo e com a cara maquilhada a avançar pela rua, depois de ter deixado algumas mochilas verdes perto da estátua... - Como se fosse o Joker?! – interrompeu-o uma mulher, com cerca de trinta anos, não demonstrava ser muito bonita, tinha já a cara muito gasta. Se não se soubesse primariamente a idade dela, achar-se-ia que ela seria muito mais velha. - Há quem afirme que sim. – Retorquira Morgan. - Quem? – indagara o presidente, após lançar um olhar desaprovado à mulher por esta o ter interrompido. - É um vilão da banda desenhada do Batman. – explicara a mulher. O facto de o Presidente não saber aquele facto era algo que não a admirava, afinal, ele nunca fora muito dado a cultura, nem a mais nada senão a política. 9 - Está-me então a dizer, caro Morgan, que um doido qualquer, andou vestido de um vilão de uma série de crianças qualquer e que ninguém se dignou a apanhá-lo? - Tentamos tudo o que estava ao nosso alcance. Muitas pessoas e alguns polícias acreditaram que fosse simplesmente um dos muitos artistas de rua que por aí se encontram, por isso, ninguém prestou muita atenção. - Não haverá hipótese de se conseguir saber onde as mochilas foram compradas, ou os explosivos? – indagara um velho homem, o mais velho deles todos, e ao que parecia pelo qual todos tinham muito respeito. Apesar de não ser uma das personalidades mais poderosas daquele país era uma das mais respeitada naquele conselho, com tal o Presidente não se dignou a interrompê-lo. - Os explosivos foram feitos em casa... E as mochilas podem ser compradas em qualquer loja, como tal não poderemos investigar nada disso. – replicara Morgan com toda a calma do mundo. Uma gota de suor correra-lhe pela face, ele sabia bem que aquela poderia ser a última vez que estaria sentado naquela cadeira. Todos ficaram em silêncio. O Presidente colocara os cotovelos apoiados naquela mesa de madeira negra. Entrelaçara os dedos, apoiara o seu queixo neles e expirara. - Estão-me a dizer que alguém se vestiu de palhaço... Colocou algumas mochilas cheias de explosivos, à volta daquele que é o maior ícone da sociedade moderna e que diz às pessoas que têm de se vergar perante nós; Seguiu pela rua, explodiu com a Estátua do Imperador e a polícia não fez nada? – o tom apesar de calmo colocara os corações de todos eles a bater a uma velocidade tenebrosa – Expliquem-me por que é que eu não deverei despedir metade das pessoas que estão nesta mesa? 10 Ninguém respondera. Ele não queria nenhuma resposta, eles sabiam bem isso. Aquela era uma pergunta retórica. Era uma maneira de todos ficarem com medo dele, a arma favorita daquele Presidente que, apesar de ter sido escolhido por um processo democrático trouxera uma completa ditadura àquele país, quando muitos países se prepararam para se associarem e formaram novas Uniões. - Meus caros senhores... Devo relembrar-vos como conseguimos tornar-nos no império que somos hoje? – a perguntara voltara a ser algo a que ele não pretendia ver respondido – Depois de muitos anos, conseguimos finalmente formar diversas uniões entre os diversos países de todo o mundo, para que conseguíssemos ser hoje aquilo que ninguém mais o é... E estamos cada vez mais perto de nos podermos aliar aos Estados Germânicos e quiçá à Nova União Soviética... E talvez, em breve, conquistemos a União do Ouro Negro, afinal, a nossa guerra tem dado frutos... E conseguimos tudo isto porque, por muito tempo, fomos criando ataques terroristas. Pestes... Guerras... Crises económicas, o que fez com que o povo fosse ficando com medo, e nos aceitasse cada vez melhor... Para segurança deles... Devo relembrar-vos que, caso este bandido não seja apanhado nas próximas horas e caso volte a fazer algum ataque, as pessoas começarão a achar que poderão voltar a lutar pela sua liberdade e, se isso acontecer, todo o nosso trabalho será em vão. Se o Império da Última Estrela cair, seguir-se-á as restantes uniões e em breve viveremos num mundo livre. Eu pensei que quando vos contratei estaria a fazer boas escolhas, mas parece que vocês começam a falhar... Aqui nesta mesa estão as vinte pessoas com mais poder deste império... – ele só lhe chamava império quando não falava para o povo, quando assim o era usava simplesmente a palavra país. Apesar de as pessoas já 11 há muito saberem que aquilo era um império, era uma maneira de conseguirem entrar na mente delas e moldá-las. – Por isso, acho que é do interesse de todas que este império se mantenha... Devo relembrar que, qualquer um que perca o cargo, ou que eu tenha de despedir, ou qualquer outro motivo que me faça considerar, levará a que sejam mortos pelas nossas forças especiais... – Todos engoliram a seco. Ambos sabiam desde que tinham entrado naquela sala pela primeira vez que a única saída seria a morte. Aqueles vinte homens sabiam os segredos mais obscuros daquele país e do mundo todo, por isso, se algum fosse expulso daquele conselho, seria logo morto. Sem qualquer piedade. – Penso que todos terão entendido a minha mensagem. Acho que será altura de repensarem bem naquilo que pretendem fazer e acho que deverão encontrar uma forma de prender esse lunático, pois, caso ele consiga fazer algum atentado a mais algum ícone da nossa sociedade, as pessoas começarão a pensar que podem mudar este mundo onde vivem. O discurso terminara. Ninguém se dignara a falar. Tudo aquilo tinha sido mais que entendido por todos. Ou conseguiam prender aquele homem que havia destruído o maior símbolo de poder daquele Império, ou seriam todos mortos. Entreolharam-se. Cada um tinha um sentimento estranho na sua barriga, apesar de não o quererem demonstrar. Que sentimento era aquele nenhum sabia ao certo. Agora seria a hora de eles voltarem a tomar as rédeas de toda aquela situação e de conseguirem prender o homem que causara todos aqueles problemas, afinal, não deveria ser difícil com tudo aquilo que tinham, encontrar um simples homem. 12 13 2 Havia-se passado três dias desd’a destruição da Estátua do Imperador. Não se havia encontrado o suspeito principal. Ninguém parecia saber quem aquele homem poderia ser, nem as câmaras espalhadas pelas ruas pareciam ter apanhado o lugar para onde ele havia ido. Ele tinha desaparecido por completo no meio daquela confusão toda, provavelmente já sabia tudo aquilo que lhe iria acontecer caso alguma vez fosse descoberto. Pensava-se que ele estivesse com medo, o que seria algo ótimo para aqueles que comandavam o país. Seria apenas um ato isolado que em breve as pessoas se esqueceriam, nada de muito preocupante, afinal, todos já se haviam habituado a lunáticos com ideias extremistas. Harlon encontrava-se sentado na sua secretaria. Ele era o dono de todos os bancos daqueles Império e de mais de metade do mundo. A sua família fora sempre uma das cinco famílias mais ricas do mundo. O mais engraçado em tudo isso é que ninguém parecia conhecer o sobrenome dele, para a maioria da sociedade a família dele era uma como tantas outras, todavia, a família dele comandava cerca de 25% de toda a economia mundial. Só os bancos que ele geria eram os originadores de 17% dessa fortuna, tudo o resto vinha de pequenas empresas espalhadas pelo mundo, algumas centrais energéticas, tratos com os diversos governos e da venda de petróleo. 14 Era um dos principais rostos que comandava a economia mundial. Se ele quisesse que algum país entrasse em crise eminente, ou se quisesse que algum território caísse aos seus pés, bastava-lhe uma pequena chamada e tudo isso acontecia. Ele tinha cerca de sessenta anos. Era calvo, com o corpo deformado devido a todo o álcool que ingeria por dia, devido a todo o tabaco que fumara ao longo da sua vida e, sobretudo, por passar a maior parte do tempo sentado. A única atividade que tinha era quando contratava alguma rapariga que lhe agradava aos olhos para perder a dignidade com ele. Apesar de ser casado, uma mulher que ele arranjara por interesses partidários, a luxúria sempre fizera parte dele. E não havia nada melhor do que sentir sempre o sabor da carne fresca. Se tinha dinheiro, então que o gastasse à maneira dele. Apesar de ter passado pelo período de transação onde a crise económica se instalara, onde a guerra nuclear começara, onde metade dos países haviam sido ingeridos pelos maiores mercados económicos mundiais, período esse que ficara conhecido como O Grande Banquete, onde milhares de pessoas morreram, especialmente aqueles que se opuseram com unhas e dentes aos novos governos, ele não podia deixar de continuar a sentir um leve arrepio na espinha quando se lembrava que alguém havia destruído a Estátua do Imperador. Uma estátua que ele mesmo havia ajudado a levantar. Aquele fora um investimento de alguns milhões. Chamaram os melhores escultores e artistas do mundo para que eles criassem aquela que seria a base de todo o novo império que começava a renascer. O desenho fora simples, mas muito bem conseguido. A imagem de um homem sobre meia esfera solar, que demonstrava 15 claramente que eles se encontravam acima de todos. O homem possuía na mão a balança da justiça, dentro de um dos pratos um molho de moedas e no outro o povo. Os pratos encontravam-se equilibrados, o que muitas pessoas acreditavam que simbolizaria igualdade, algo que tinha sido sem dúvida o maior erro deles. Por baixo da estátua a mensagem À saúde dos fortes e daqueles que Deus protege...; que demonstrava claramente que aquele era o símbolo dos grandes, não da minoria que era o povo. Todavia, ninguém parecia ter entendido a real mensagem que aquela estátua mandara, o que por um lado havia sido bom. Todos pensavam que aquela estátua queria dizer que, sim eram os poderosos aqueles que comandavam, mas eles tinham direito à igualdade. O facto de depois eles terem controlado os media para dizerem exatamente isso, tinha feito com que ninguém se opusesse àquele que era o novo símbolo do grande império que se havia construído. Pensar agora que essa grande estátua tinha sido destruída por um lunático qualquer, deixava-o perturbado. Começara a sentir o coração a bater cada vez com mais força, o corpo a ficar cada vez mais quente, um leve sabor a cobre a vir-lhe à boca. A mão que segurava o copo de Brandy tremia-lhe. Aquilo não era raiva, nem medo. Caíra para o chão. O seu corpo criara um som poderoso ao embater, fazendo tremer o chão todo. Ele estava a ter um ataque cardíaco. - Podem-me dar novidades quanto ao que aconteceu ao Sr. Harlon? – a voz do Presidente parecia mais irritada que nunca. 16 Naquela altura só se encontravam 19 pessoas sentadas naquela mesa, o lugar de Harlon estava vazio. - Parece que o homem tivera um ataque cardíaco. Sobreviveu e foi mandado para o Hospital dos Anjos Loucos. – retorquira um homem magro com uma cara mesquinha e que era o responsável por proteger as figuras do império – A minha equipa de proteção está no local para impedir que nenhum fanático atente contra a vida dele. - Espero que a sua equipa consiga protegê-lo, Nobert, já chega de incompetências por uma semana. E é importante que sejam os melhores médicos a tomarem conta de Harlon. Se ele morrer poderá ser visto como uma manifestação do lunático. O que poderá fazer as pessoas pensarem que poderão começar a retaliar contra o seu governo. - Não se preocupe senhor presidente. Tomamos todas as medidas de segurança, ninguém que não seja trabalhador e esteja devidamente credenciado, pode entrar naquele quarto onde o Sr. Harlon descansa. - Nós estamos também a proteger o lugar. – Aquela parecera a altura para Almiton se demonstrar – Já enviamos vários agentes para o local, para aumentarmos a segurança. Eles vão lendo as fichas e as credenciais de todos aqueles que trabalham no hospital, para ver se há alguém com quem nos devamos preocupar. A sala ficara mais uma vez em silêncio. Nunca ninguém sabia se o facto de o Presidente não responder era algo bom ou não. Nunca se poderia dizer ao certo o que os silêncios dele poderiam significar. - Espero que a comunicação social passe a mensagem de que isto foi apenas um mero ataque cardíaco e nada mais, cara Edlin. – Olhara para uma mulher com cerca de trinta anos, mas 17 que aparentava ser mais velha - Que em breve o senhor Harlon estará em casa. Temos de convencer as pessoas de que isto não foi um atentado quase bem sucedido, mas sim um mero ataque cardíaco e nada mais. Que em breve o senhor Harlon estará em casa, junto da família, nada sobre este acontecimento deverá ser retratado como um ato feito por aquele que muitos já apelidam de herói do povo. - Não se preocupe... Nós faremos aquilo que é suposto fazermos. – Ela tentara esconder o tom amedrontado que tentava sair da sua boca, não podia enfraquecer naquele momento. - Devo relembrar-vos que se passaram três dias desd’o incidente... As pessoas vão falando na rua sobre tudo aquilo que aconteceu. Foram raras as que acreditaram que aquilo havia sido uma mera explosão de gás... Portanto, é bom que o Sr. Harlon saia com vida daquele hospital, por que, tendo sido um atentado ou não, poderá ser um gatilho para as pessoas acreditarem, e não há nada pior que a fé do povo. As palavras tornaram o ambiente ainda mais sinistro. Ninguém respondera ao Presidente que mantinha o seu olhar forte e tenebroso. Ambos sabiam que na mente dele não estavam a surgir pensamento construtivos. E a razão era essa, um homem sem qualquer fé, é um homem que vivia simplesmente para aquilo que os outros acreditavam, mas um homem com fé, esse seria sempre o homem que morreria para ver o seu sonho tornar-se numa realidade. Carly deitara-se no sofá que fazia parte da sala de convívio da ala de hospital onde ela trabalhava. Estava completamente exausta. Ainda para mais um dos homens mais 18 poderosos do mundo encontrava-se naquela ala, pelo que ela tivera de passar por uma enorme peça de segurança, montada em todas as entradas. Até mesmo na da casa-de-banho. O que lhe valia era que em cinco minutos o dia de trabalho dela teria acabado (mas o final é sempre o início de uma história ainda não contada) e ela poderia finalmente ir embora, sair daquele lugar. Era sexta e ela não trabalharia no dia seguinte, portanto, já tinha combinado com algumas amigas e iriam sair. Já se encontrava pronta para sair do hospital quando, ao passar pelo corredor que separava aquela ala de todas as outras se deparou com algo que era no mínimo estranho. Um enfermeiro que ela não conhecia ia avançando calmamente. Com um passo lento e curto, parecia quase um pinguim a mover-se. Quando passara por ela ela notara que sorrira, um sorriso que lhe causou alguns arrepios, além disso fizera um movimento estranho com a língua e por um momento parecera que ele piscara-lhe o olho, acontecimentos estranhos para um dia normal. Ela não reconhecera aquele homem, mas o mais certo é que fosse algum enfermeiro de outra ala, afinal, num hospital enorme como aquele, era impossível ela conhecer todos os trabalhadores dele. No entanto, sentira que algo estranho iria acontecer, mas não sabia o quê. Seria simplesmente algum sentimento daqueles que devesse ignorar, aqueles sentimentos que nada significam... São meras ocasiões que, vá-se lá saber porquê nós temos. O homem seguira calmamente em direção à entrada do quarto onde se encontrava Harlon. 19 Fora barrado imediatamente por dois homens que possuíam um ar imponente e de poucos amigos. - O seu cartão! – Inquira um deles num tom muito limpo e forte. - Calma companheiros! – exclamara ele com um sorriso na face, procurando no bolso da sua bata pelo cartão e por mais alguma coisa – Só venho administrar o antibiótico dele! – mostrou um pequeno frasco de vidro com um produto transparente no seu interior. Os dois homens pareceram não prestar muita atenção. Limitaram-se a olhar para o cartão e passa-lo por uma máquina que confirmou a veracidade dele. - Pode entrar. – ladrou um deles. - Vocês deveriam sorrir mais! – dissera num tom animado, um tom de troça. Os dois homens continuaram sem lhe prestar atenção. Abriram-lhe a porta e depois fecharam-na logo a seguir. - Este mundo está cada vez mais malcriado! – exclamara ele ao sentir as portas a fecharem-se. Seguira em direção à única cama daquele quarto. Onde dormia um homem gordo e fraco. Ligado a diversas máquinas que o ajudavam a respirar. - Tão poderoso... E agora tão fraco... – comentara ele – O que vale é que em breve tudo irá acabar... Procurara no bolso por uma seringa que havia posto lá. Estava na altura de acabar o trabalho que viera ali fazer antes que alguém desse por algo. Introduzira a agulha na borracha que selava o topo do frasco e colocara uma enchera a seringa. Um bocadinho a mais nunca fez mal a ninguém! 20 - Dorme bem, gordinho! – rira-se demoniacamente e espetara a agulha no peito do braço, mesmo numa das veias principais. O homem continuava a dormir, até que, nem dois segundos depois, acordara. Olhara atentamente para o homem que se encontrava debruçado sobre ele com o mesmo sorriso que mantivera desde que entrara naquele lugar. Harlon começara a sentir um calor a invadir-lhe as veias. O seu coração acelerara-se, mas as máquinas não emitiram nenhum sinal, afinal, o outro homem havia-lhas desligado. Harlon começara a sufocar e a ter convulsões. - Tempo de me ir embora! – exclamara ele. Um dos seguranças olhara pelo vidro da porta para o interior do quarto. Foi quando viu o enfermeiro que havia entrado prestes a sair pela janela e Harlon a contorcer-se todo na cama. Chamara o seu colega. Deram o alerta e entraram imediatamente no quarto, de arma em punho. Prepararam-se para disparar contra o homem, mas só lhe conseguiram acertar de raspão no braço, o que fez com que ele quase caísse do quarto andar. Mesmo assim, ainda deslizou por toda a barra metálica, o mais depressa que conseguia. O braço doí-lha e a bata branca ficara manchada de um vermelho vívido. Apesar da pouca profundidade do corte, escorria bastante sangue. Sentiu homens a gritarem uns para os outros e a começarem a avançar na sua direção. Tinha de conseguir sair dali o mais depressa possível, mas como? Se calhar era algo que deveria ter pensado antes de ali ter entrado. Era incrível como tinha planeado um ataque cardíaco e uma morte perfeita, todavia não tinha pensado em algo tão simples e importante: como fugir. 21 Continuara a correr por toda a rua do hospital. Uma rua ladeada por uma estrada de alcatrão para os veículos poderem circular. Começava já a escurecer, eram cerca das sete da tarde. Não havia grande movimento naquele momento, senão o movimento que começara a ser causado pelos guardas a procurarem por ele. Não seria muito difícil encontra-lo. Ele não tinha nenhum meio de poder fugir de uma forma rápida, nem haveria nenhum lugar onde se pudesse esconder por algum tempo que fosse. Que iria ele fazer? Um carro parara em frente dele. - Entre! – anunciara uma voz feminina. O homem não pensara duas vezes. Limitara-se a seguir o conselho. Afinal, fosse quem fosse aquela mulher, ele não tinha nada a perder. De qualquer das maneiras poderia estar morto. O carro arrancara com toda a calma do mundo. Ninguém suspeitaria dela. Todos os seguranças conheciam aquele carro, por isso, nunca a mandariam parar, nunca seria revistada, pelo menos, não enquanto não fossem dadas ordens para isso. Passara pela cancela que ainda não se havia fechado. - Quem és tu? – indagara Carly olhando para o homem que havia salvo, nem sabia bem ela porquê, nem como. - Apenas um homem... – retorquira ele. O olhar dele era vago. Não havia agradecido ainda o facto de ela o ter salvo, mesmo tendo ela posto a sua vida em perigo, isso não parecera significar nada para aquele homem, aquele rapaz, afinal, ele deveria ter cerca de 25 anos, a mesma idade que ela – E tu quem és? – indagara ele num tom seco, como se fosse uma pergunta normal. - O meu nome é Carly. – retorquira ela, também como se aquilo se tratasse de uma simples conversa de amigos. Era como se nada tivesse acontecido naquele momento, como se se fossem 22 duas pessoas que se estivessem a conhecer numa circunstância normal, e não duas pessoas que acabavam de fugir da polícia governamental mais poderosa do mundo – Eu devo estar louca! – disse por fim, pensado naquilo que havia feito. Mas não podia voltar atrás, não podia simplesmente voltar ao hospital e entregá-lo aos guardas, seria dada como cúmplice. Não podia deixá-lo no meio da rua, caso alguma câmara filmasse, ela seria executada por ter ajudado aquele homem a fugir depois de ter morto uma das maiores figuras de estado. Agora era muito tarde para se poder arrepender. Além disso, o seu dom de enfermeira obrigava-a a levar aquele homem até a um sítio seguro e a tratar da ferida que ele tinha no braço. Talvez não fosse esse seu dom, mas sim algo diferente, algo que ela não conseguia entender, mas o quê? O que era aquele sentimento que ela tinha naquele momento que a fizera pegar naquele rapaz e ajudá-lo? Que estupidez tinha sido esta que ela havia cometido, afinal, qualquer que fosse o desfecho daquela história, só por sorte é que ela não passaria por cúmplice daquele crime. Só por sorte é que ela não seria condenada à morte. - Somos todos loucos! Alguns é que tentam escondê-lo! – Declarara ele num tom sem grande emoção. Carly só achava que poderia estar realmente a enlouquecer. Só havia um sítio para onde ela poderia ir agora, para sua casa. Esperava ela que ainda lá não estivesse ninguém à sua espera, a segurar alguma arma na mão. Corriam à boca cheia histórias do que acontecia a quem era inimigo daquele governo. Desde privações de sono, a espancamentos excessivos, à tortura de manterem os prisioneiros sentados numa cadeira sem costas, até que a coluna do prisioneiro cedesse e partisse. Todas histórias que não eram propriamente as mais propositadas para 23 nos lembrarmos quando estamos a cometer um crime como aquele. A casa dela ficava numa parte recôndita da cidade, muito longe de todos. Carly sempre gostara de estar sossegada no seu canto, como tal, aproveitara a oportunidade para comprar a sua casa, apesar de velha, naquele lado da cidade, longe dos olhares atentos da polícia governamental, portanto, achava agora que nunca ficara tão contente com uma decisão que tomara. Ajudou o rapaz a sair do carro. O sangue continuava-lhe a escorrer pelo braço. Apesar de a bala ter passado de raspão, deveria ter acertado nalguma veia principal, daí aquele banho de sangue. A casa dela era humilde. Também não tinha um ordenado que lhe permitisse ter muitos luxos. Não era que ela quisesse ter uma imensidão de objetos valiosos, mas gostava de poder ter algum dinheiro para se mimar a ela mesma. Poderia ser um pensamento ganancioso da parte dela, quando sabia perfeitamente que no restante país havia muitas pessoas a passarem fome, mas tinha de perder algum tempo a pensar nela mesma, caso contrário, não tinha ninguém que o fizesse. Sentou o rapaz na poltrona que se encontrava mesmo à entrada da porta, que dava logo entrada para a sala principal daquela casa. Seguira em direção ao seu quarto onde tinha lá um estojo de primeiros socorros, na realidade tinha um estojo em todos os lugares da casa, menos na sala (vá-se lá saber o porquê). Cortara-lhe a camisola deixando o corpo dele seminu. Nada que ela pensasse que a fizesse surpreender-se, mas enganou-se. O corpo dele estava completamente marcado. Cicatrizes antigas, mas que demonstravam claramente alguns anos de maus tratos. 24 Todavia, não poderia agora deixar que o seu pensamento se extraviasse para outro lado. Tinha de tratar daquele rapaz o mais depressa possível… A ferida continuava a sangrar… Mais algum tempo e ele poderia ter algum ataque… Felizmente, para ambos, ela era rápida na arte de coser as feridas, pelo que, em pouco tempo toda aquela fonte havia sido selada. Fora depois procurar no seu armário das bebidas algo com um enorme teor de álcool, nada melhor para conseguir desinfetar a ferida. Pegou numa garrafa de cachaça que comprara há poucos dias para uma festa que pensava dar. Derramou tudo sobre ferida dele. Ele não gemeu. Agora que ela se lembrara de tudo aquilo, ele também não havia gemido quando ela começou a costurá-lo. Era estanho ele não ter emitido um único gemido, aquele ato causava uma enorme dor a qualquer um. Afinal, não era muito normal alguém suportar a dor de carne a ser picada por uma agulha, da linha a trespassar a carne, ou do álcool a desinfetá-la. - Quem és tu?! – Voltara a perguntar ela. - Tens algum sumo de maçã?! – Retorquira ele voltando a fazer um barulho estranho com a língua a passar pelos lábios. Ela não podia acreditar na pergunta que ele lhe acabara de fazer. Como era possível que ele naquele momento fizesse aquela pergunta, uma pergunta sem qualquer preceito de identidade daquela situação, completamente aleatória. - O quê?! - Eu gosto de sumo de maçã… - insistira, como se fosse algo completamente natural, como se fosse um velho amigo dela que fora convidado a jantar naquela casa. Que tinha a autorização para fazer exigências. 25 - Devo ter algum sumo de laranja… - retorquira ela. Parecera que o olhar dele entristecera. Ela não sabia bem se estava a lidar com um assassino em série, ou uma criança. - Serve! – Ripostara ele. Ela seguira em direção à cozinha, que ficava a poucos passos da sala, abrira o frigorífico e enchera um copo com sumo de laranja. Não sabia bem como é que poderia estar a fazer aquilo… Aliás continuava sem saber o que estava a fazer… Parecia que estava enfeitiçada com algo… Ele der três goles seguidos e longos. - Fresco! – Suspirara ele em tom de satisfação. Ela continuava sem saber muito bem o que fazer quanto a tudo aquilo. Não sabia se se deveria rir, afinal, ao que parecia um maluco qualquer havia morto um dos mais poderosos homens do mundo, se deveria fugir dali. - Tu és doido?! – Gritara ela por fim. Não sabendo se aquela deveria ser a atitude a tomar perante ele, mas a verdade é que até agora, ele fora inofensivo para com ela. Ele olhou um pouco para o teto, como se estivesse à busca da resposta nas fendas que se abriam na parede cor de creme. - Sim! – Retorquira convicto – De facto... A resposta fora simplesmente natural. Não houvera traços de arrogância, gozo, ou irritação. Ele respondera à pergunta, qual criança que diz a mais pura das verdades. - Podes ligar a televisão? – pedira ele. Carly ligara a televisão que se encontrava pendurada na parede à frente deles, mas que, como era transparente, dificultava a sua descoberta no meio de todos aqueles móveis e quadros, só quando ela a ligara é que ele pode saber ao certo a localização dela. 26 Notícia de última hora: Sir Harlon, dono do Banco Central Mundial, morreu esta tarde vítima de uma ataque cardíaco. Era tudo aquilo que se podia ler no rodapé da televisão em letras bem destacadas. - Tu... Mataste-o... – Suspirara ela. - Sim... – Concordara – Era algo que tinha de ser feito. – Ficara a olhar para a televisão como se esperasse que algo importante fosse dito. Ela ficara calada por mais alguns momentos. Não sabia o que deveria dizer daquela situação. Não era fácil as palavras saírem-lhe da boca naquela altura. Estava ao lado de um assassino. Isso deveria assusta-la, deixá-la fora de si, ainda para mais tendo ela sido cúmplice na evasão dele. Todavia, havia um sentimento de paz e prosperidade dentro dela. Como se algo lhe dissesse que ela havia agido da forma mais correta do mundo. Que não cometera nenhum erro. Que fizer aquilo que era suposto ser feito. - A polícia deverá vir à nossa procura em breve! – exclamara ele – Teremos de fugir o mais rápido possível. Ela olhara atentamente para ele que mantinha o seu olhar fixo na televisão. Olhando agora de relance e de perfil para ele, ela podia ver que ele era um homem magro, normal, como qualquer outro. O seu olhar era vazio, como se não tivesse habilitado a pensar nem a viver... A sua boca fazia um movimento estranho em intervalos de poucos minutos, a sua língua passava pelos lábios e fazia um barulho estranho. Aquele rapaz era muito diferente de qualquer outro que ela havia conhecido. Tinha o ar de alguém com uma incapacidade mental, 27 mas como é que um homem com incapacidade mental poderia ter feito tudo aquilo. Seria que a loucura era a chave para se poder mudar todo o mundo. - Vais continuar a pensar sobre como eu sou louco ou vamos fugir? – indagara ele, que mesmo sem olhar para ela sabia quais eram os seus pensamentos. Eram os mesmos pensamentos de qualquer pessoa que ele conhecera anteriormente. Ela fugira do mundo dos seus pensamentos por breves momentos. Sabia bem que ele tinha razão. Não se poderia por com dúvidas agora. Era tempo de agir. Era tempo de sair dali. Tinha de conseguir arranjar tempo para poder fugir à polícia governamental, além disso, se ficasse algum tempo com ele, poderia ser que pudesse declarar que ele a raptara e que ela fora obrigada a fazer tudo aquilo e a colaborar. Voltaram ao carro. Ele parecia calmo. Nada o parecia ficar fora de controlo, nem mesmo o facto de poder estar prestes a ser preso. E só Deus saberia o que eles lhe poderiam fazer se ele fosse preso. De uma coisa ela tinha a certeza, se ele fosse preso, ou ela, a morte seria a última das suas preocupações. 28 29 3 Nunca nenhum deles se lembrara de em tão pouco tempo terem existido tantas reuniões de concelhia de estado. Muito pior era o facto de o assunto que havia convocado todas aquelas reuniões, permanecia o mesmo. - Caros senhores, o Harlon foi morto hoje às cinco da tarde, num quarto de hospital, que me garantiram estar completamente seguro. – olhara para Almiton, para Morgan e para Nobert; que engoliram a seco; - Posso saber o que correu mal? Nenhum deles parecia ter grande vontade de responder à pergunta que havia sido feita pelo Presidente. - Os Estados Germânicos começam já a troçar de nós… Perguntado se o nosso império cairá por um simples homem… Perguntaram-me se eu deveria confiar na competência das pessoas que se sentam nesta mesa e, meus caros senhores, terei de dizer, que começo a duvidar dessa vossa competência… - O seu olhar continha um fogo intenso – Que deverei então eu dizer? – O silêncio permanecera – Deverei eu desistir de todos vós…Ou deverei continuar a confiar nas vossas habilidades, podendo isso custar-me todo o império que erguemos? O Presidente era uma pessoa fria e sem qualquer sentido de humildade. O poder subira-lhe à cabeça de uma maneira demasiado rápida. Ele dizia sempre frases como: “O império que 30 eu construí”, ou “perder o meu império”, ele esquecera-se que o papel que tivera na construção daquele império fora meramente secundário. Ele não havia feito nada de muito especial senão juntar um grupo de pessoas prontas a conquistarem aquele império. Tudo o resto havia sido conseguido através dos outros que manipularam os mais diversos órgãos do estado e, até mesmo, o povo. Todavia, apesar de tudo isso, ficara ele o Presidente de todo aquele lugar, logo as ordens dele estavam acima de qualquer outras, pelo que, por muito que eles quisessem, para poderem deitá-lo abaixo tinham de destruir aquilo que lhes era mais importante, aquele país. Como nenhum pensava alguma vez perder aquele império, o respeito por aquele homem reinava. A única pessoa que conseguia manter-se acima dele, era o velho homem que se encontrava sempre sentado à direita dele. Ninguém sabia ao certo aquilo que aquele homem havia feito, mas que era de facto a maior figura daquele império, isso ninguém duvidava. - Ao menos espero que me deem alguma informação! – Ladrara, fazendo a sua voz entoar por toda aquela sala oca. - Ele fugiu com a ajuda de uma Enfermeira do Hospital. – Retorquira Morgan – As câmaras de segurança revelaram eles a fugirem de carro. – Limpara os lábios que lhe tremiam – Fomos até casa dela, todavia não conseguimos encontra-la. No chão vimos algumas compressas com sangue, e algum material de costura… Devemos ter conseguido atingir o homem durante a fuga… - Sendo assim, acho que o Sistema de ADN já deve ter dado alguma novidade quanto à identidade desse homem? – O tom da voz dele era tão calmo que quase serviria para enganar as 31 pessoas e levá-las a pensar que toda a irritação dele havia passado. - Infelizmente não foi encontrada nenhuma correspondência… - Coubera a Nobert ter de dar esta amarga resposta- Ele não se encontra no sistema… A notícia caíra como uma bomba, que explodira silenciosamente, mas que matara mais que qualquer outra. - Pensei que todas as pessoas do Império eram obrigadas a estarem registadas no sistema de ADN! – Relembrara o óbvio uma mulher do fundo da sala. - Sim… - Afirmara Nobert – Todavia, este não se encontra registado… - Poderá ser alguém que tenha vindo de um Estado de fora? - Não, qualquer pessoa que entre no nosso país é obrigada a deixar uma amostra de ADN, juntamente com todos os seus dados, para que a sua identificação seja mais fácil… - Então como é possível que ele não esteja registado no Sistema? – Indagara outro homem. Nobert negara saber a razão com a cabeça. - Só há uma maneira de a pessoa não estar registada no sistema! – Declarara o homem velho que se encontrava à direta do Presidente. Todos ficaram em silêncio tomando atenção àquilo que ele iria dizer. - Qual? – Indagara o Presidente. O velho homem suspirara. - Muito antes de este império ser erguido, já havia esse sistema, que era obrigatório a todos, para prevenir o facto de algum criminoso de outro lugar pudesse cometer crimes tão facilmente. Mas, nessa mesma altura, o estado começava com um projeto que envolvia muitas pessoas e, para salvaguardar 32 essas pessoas, o seu nome e o seu ADN não constavam em nenhuma lista ou sistema. – Terminara. O seu tom de voz demonstrava que havia algo mais a ser dito, mas parecia que não lhe era permitido que isso acontecesse, o que era estranho, pois, supostamente, aquelas vinte pessoas sabiam todos os males que aquele império era para todo o mundo e para os seus cidadãos. - Meus caros senhores, se o homem que procuramos não possui registo no sistema de ADN, significa ser alguém que sabe demasiado bem tudo o que se passa e o que se passou para se erguer este império... - o tom de voz tomara o sentimento de preocupação normal de qualquer pessoa que se apercebe que algo de impiedoso está prestes a acontecer – Ele não será um homem normal como qualquer outro... Não será um homem que poderão chantagear da maneira que vos for pertinente... Ele não tem nada a perder... De facto, a verdade, é que com isto só terá a ganhar... A sala mais um vez tomara o seu habitual silêncio. Um silêncio invulgar, que se vulgarizara desde que aqueles ataques se tinha iniciado. Quem era aquele jogador ainda era algo que lhes era obscuro, mas tinham a certeza que ele estava muito próximo de ganhar o jogo. 33 4 Carly não sabia onde se encontrava. Eles tinham fugido num carro que aquele rapaz roubara, de uma forma tão rápida que comprovava que ele já estaria habituado a toda aquela zaragata. Tinham fugido para um casa isolada. Num lugar coberto por árvores. Não havia muita luz ao redor da casa, o que lhe causara algum medo, mas o seu interior estava bem iluminado, pelo que aquele medo de pessoa que está habituada a lugares bem iluminados desaparecera. - Peço desculpa pela casa. – dissera ele, enquanto retirava a camisola ensanguentada e desaparecia por uma das portas. Carly olhou em volta. A casa era algo muito melhor do que ela esperava. A sala-de-estar estava junta com a cozinha, o que tornava aquele espaço amplo, mas, mesmo assim, o espaço ainda era maior do que aquilo que seria de esperar. Num dos lados da sala encontrava-se uma enorme televisão, um modelo que parecia ser bastante recente e de um fantástico design, como ela nunca antes havia visto. Ao seu lado encontravam-se diversas caixas que deveriam ser, muito possivelmente filmes. Mas ela nunca havia visto aquele tipo de tecnologia antes. Numa altura em que tudo era em formato digital, ela nunca tinha visto aquelas estranhas caixas. 34 No outro lado, encontrava-se uma enorme poltrona que encarava de frente uma enorme estante repleta de livros. Deveriam ser centenas, milhares talvez, todos postos por uma ordem específica ao que parecia. Chegou-se perto para poder admirar aquela coleção. Lera os títulos de alguns livros, títulos que ela nunca ouvira falar. Autores que nunca conhecera. Alguns dos livros nem sequer se encontravam na língua nativa dela. Que estranho lugar era aquele que possuía livros diferentes de qualquer outra biblioteca onde ela havia estado. - Vejo que os meus livros lhe chamaram a atenção... – Ele mantinha a entoação estranha, mas falava de forma eloquente. - Nunca tinha visto nenhum destes livro... – retorquira ela – Parecem ser muito antigos. – declara. - Sim... – Aproximara-se – Os livros são de facto antigos, e raros... São copias das maiores obras literárias de sempre. – explicara. - Mas se são tão boas obras, por que é que nunca ouvi falar delas? – indagara com surpresa, enquanto segurava na mão um cópia de um livro com o título: “Os Demónios”. - Por que foram as obras escolhidas pelos nossos caros governos para nunca serem postas nas prateleiras de nenhuma biblioteca mundial, o seu registo fora apagado. - Então como os conseguiste? - Podemos dizer que tive uma infância avantajada em termos de cultura... – Disse ele segurando-lhe no livro que por pouco ela iria deixar cair. As suas mãos tocaram-se por um leve momento e o seu olhar cruzara-se. O olhar vago dele parecia não demonstrar nenhuma emoção, mas por estranho que parecesse tinha um brilho estranho. 35 - E tudo o resto que aqui possuis? - Músicas e filmes que o governo proibiu que alguma vez pudessem ser vistos ou ouvidos de novo... – Ele carregara num botão do seu relógio e uma música estranha, que ela nunca ouvira começara a soar. A Música era calma, como se fosse uma balada. Uma balada simples, mas possuidora de uma beleza e de uma letra incríveis... - Que música é esta? – perguntara. - Blowin’ in the wind. Um velho músico chamado Bob Dylan, mas que já morrera há muito. Yes and how many years can some people exist Before they're allowed to be free? Yes and how many times can a man turn his head Pretend that he just doesn't see? The answer, my friend, is blowin' in the wind The answer is blowin' in the wind Yeah and how many times must a man look up Before he can see the sky? Haviam-se calado por um tempo para ouvirem a música. - A música é linda... – exclamara ela num tom suave – Como é que o governo pode ter escondido isto de nós? - O governo não quer que um povo educado... Quer que um povo obediente. – dissera num tom grave – Por isso, foi escondendo ao longo dos tempos tudo aquilo que de bom se fizera, substituindo-o por algo que não ensinaria as pessoas nada. - Como conseguiste deitar mão a tamanha coleção? - Os meus avós possuíam grande parte dela... –suspirara levemente como se se relembrasse de algo – Depois, ao longo dos tempos foi roubando tudo isto de lugares onde o governo os 36 escondera. Alguns objetos, infelizmente, só consegui recuperar pequenas partes, doutros, consegui recuperar apenas cópias digitais... – entristecera-se. - Já leste todos estes livros? Já ouviste todas estas músicas? Já vistes todos estes filmes? – perguntara ela, surpresa, afinal, deveriam estar ali horas de trabalho para se conseguir aproveitar toda aquela coleção. - Não... Nem em toda a minha vida conseguirei fazê-lo... – retorquiu – Todavia, li os mais importantes, vi os melhores e ouvi as que faziam o meu coração bater depressa... – explicara – Mas isso não invalida que não deva guardar os outros, afinal, sonho com o dia em que esta coleção poderá ser dada ao povo... - E como pretendes que isso seja possível? – olhara bem nos olhos dele. - Talvez um dia a minha ideia prevaleça sobre a corrupção e sobre o medo, e aí, sejamos livres de conseguir atingir todo o conhecimento que nos é merecido. Ela silenciara-se. As palavras dele entoaram na sua mente como se tivesse acabado de receber uma das melhores lições de vida de alguém bastante sábio. Não sabia aquilo que deveria dizer ao certo. Mas haveria algo que ela pudesse dizer naquela altura? Afinal, que poderia dizer ela naquele momento que pudesse parecer mais sábio que tais palavras, há alturas em que o silêncio não é algo constrangedor, é uma maneira de dizer que por um momento, houve algo que nos conseguiu responder a perguntas que tínhamos, mas que nunca fôramos capazes de silenciar. - Desejas ver um filme comigo? – perguntou ele com um tom calmo, por um momento não lhe parecera que ele teria aquele tom louco. 37 - Que filme me recomendarias a ver? – perguntara, desconhecendo totalmente que tesouro poderia ele ter escondido naquela coleção. - Tenho vários... Todos muito bons... Penso que há uns poucos, pelos quais deveríamos começar... - Porquê? – indagara ela. - Porque a única maneira de entenderes tudo aquilo que irei fazer é vendo-os. Eu sei que estás habituada a ter a mente carregada daquilo que muitos outros estipularam como correto, mas, mesmo no meio de tamanha ingenuidade mental, acho que encontrarás espaço para estas pérolas que te ensinarão lições de vida, como me ensinaram a mim. Ela sentia que tinha sido insultada por um momento, mas ao mesmo tempo que não fora de uma maneira propositada. Sentara-se no sofá, ao lado dele. A televisão ligara-se. Ele não demorara a escolher o filme que eles iriam assistir, era até como se ele já o houvesse programado antes. - Este não é o filme que mais amei, mas penso que será um bom começo para ti. - Como se chama? – perguntara com os seus olhos a brilharem de curiosidade. - La vita è bella. – Replicara – É um filme muito antigo, sobre uma era da qual já deverás ter ouvido falar, apesar de o governo há muito a ter tentado esconder. - O que conta o filme? - Contar qualquer detalhe do filme estragaria a obra. Deixa que seja a tua mente a perceber os ensinamentos que nos são dados. O filme iniciara-se. Ela ficara atenta a todo o filme durante todo o tempo. Não se havia distraído com nada. Ficara colada em todos os pormenores. Era a melhor obra 38 cinematográfica que alguma vez vira. Nunca nenhum filme que estreara desde que ela nascera, nem nenhum filme que ela pudesse encontrar nas lojas se chagava aos pés daquele filme. Limpara as lágrimas que lhe haviam causado. - Ele morreu... – gemera. - Sim, de facto. – Concordara – Mas morreu por aqueles que amava... Para os fazer feliz. Não será esse o melhor contributo de um homem? - Mas... – as palavras teimavam em não saírem. Um leve beep interrompera o pensamento dela. - Peço desculpa. – levantou-se e seguiu sem nenhuma palavra em direção a um quarto, que desde que haviam chegado estava bem iluminado. Carly não sabia se o deveria seguir. Não sabia se isso seria o melhor a fazer, mas mesmo assim, a curiosidade que ela possuí-a naquele momento era superior a tudo o resto. Dera com ele a ajudar um rapariga que se encontrava num estado muito débil a deitar-se de novo na cama. - Quem é? – perguntara a rapariga num tom fraco e fatídico, como se já não tivesse muita vida. - É uma nova amiga. – sorrira ele – Agora está na altura de dormir, irmãzinha. - Podes pôr a tocar alguma música, ajuda-me a acalmar a dor. – pedira. - Claro! – voltara a sorrir. Carregara de novo naquele relógio de pulso que possuí-a. Começara a tocar um estilo música desconhecida para Carly, mas que seria jazz. Era uma música calmante e bela. A rapariga sorrira e fechara os olhos. O rapaz seguira de novo em direção à sala. 39 - Que é que ela tem? – Carly tentara ser o mais agradável possível. - Ela tem uma doença rara... Da qual tu nunca deverás ter ouvido falar... Nem na faculdade de medicina onde possas ter estudado... – a sua voz tomara de novo um tom forte e arrogante, mas que não parecia ter sido causado pela pergunta dela. - Podes ao menos explicar-me melhor tudo o que se passa? Ele olhou seriamente para ela. Causando-lhe medo por ter dito tais palavras. Causando-lhe o temor do que lhe poderia acontecer. Mas, de repente, o seu olhar tornara-se vago de novo, como se ele se tivesse apercebido do medo que lhe havia causado. - Peço desculpa, mas infelizmente o tempo escasseia-se. Terei de guardar para outra hora tais testemunhos. Creio que terás à tua disposição todo um vasto leque de filmes, livros e músicas com as quais te poderás entreter durante a minha ausência. Poder-te-ás servir à vontade de tudo o que quiseres. Caso vejas alguma luz vermelha acesa é a minha irmã a necessitar de algo, por favor, peço-te que vejas o que ela pode precisar e que a ajudes. – pedira com toda a calma – Aqui estás segura, por isso, aproveita bem tudo aquilo que terás à tua disposição. - Onde vais? – Perguntara ela enquanto o via a dirigir-se até à porta. - Aonde o dever me chama... - Já viste a nova que inventaram, John? – Indagara um homem forte, quase uma bola bastante redonda, que seguia ao lado de um homem alto – Vão encerar todo o chão do edifício 40 hoje. Durante toda a noite, vamos ter aqui máquinas a trabalhar. Não vamos ter tempo se quer para dormimos um bocado. - Eles costumam ter destas ideias! – Reclamara John – E ainda por cima temos de ter muita atenção… Eles querem que controlemos todas as pessoas que entram, e todas as pessoas que saem… - Eles têm andado com muito medo ultimamente. – O tom abafado do homem, que tentava caminhar sobre as suas pequenas pernas que pareciam não se conseguirem aguentar com tamanho peso por cima delas. - Não seria de esperar menos da parte deles. Ao que parece há um maluco qualquer que anda com ideias revolucionárias… E parece que não o conseguem apanhar… O homem riu-se e por pouco parecia que ia ter um ataque cardíaco. - É o que nós estamos a precisar… - Replicara com o resto do fôlego que lhe faltava – De alguém que mude tudo isto, para não andarmos por aqui a ter de aturar com estas merdas! – Reclamara. - É só mais um louco que acredita ser um ser superior, nada de mais… - Concluíra com toda a convicção, todavia com uma réstia de contradição, uma esperança de que algo pudesse mesmo se alterar. Haviam chegado todos os funcionários a quem tinha sido dado aquela tarefa superior. Eram cerca da uma da manhã, o edifício principal da rede televisiva estava praticamente deserta à exceção daqueles dois homens que referimos acima. O silêncio e a conversa de café fora substituída pelo barulho das máquinas que trabalhavam exaustivamente, afinal, era para isso que haviam sido construídas, para trabalharem sem 41 questionar. Para serem ligados a um ficha, onde, por uma quantidade certa de energia repetem e repetem o seu trabalho, até ficarem obsoletas e serem deitadas a um lixo qualquer, nunca se dando umas últimas palavras de apreço por todo o trabalho realizado. É aí que apercebemos que tudo é um mero trabalho escravo e que só somos necessários enquanto temos algo a oferecer, tudo o resto são míseras considerações que a vida nos vai dando. John e o seu colega aproveitaram uma pequena pausa para irem tomar aquilo que o corpo pede quando se vai desgastando. A distração tomara conta deles por leves minutos, não muitos, mas fora o suficiente para que o cartão de John, que ele havia deixado em cima do balcão, desaparecesse. Ninguém reparara em quem pegara no cartão, nem que ele havia desaparecido. Poder-se-ia pensar que era simplesmente um cartão, como tantos outros, mas aquele era o cartão que dava acesso a uma parte importante do edifício, mas que poucas pessoas tinham noção da sua existência. A porta que ficava fechada a maior parte do tempo, abrira-se. A sala estava vazia, não havia nada senão uma pequena mesa no seu centro com um computador em cima dela. Um computador portátil, que nunca mais àquela sala voltaria. 42 43 5 Ele regressara a casa. Encontrara Carly a dormir no seu sofá, com o livro "O Rei das Moscas" pousado sobre o seu ventre. Ela já tinha lido uma grande parte do livro, o que justificava que ela deveria ter tentado ficar acordada até ele chegar. Mas a natureza é mais forte que o nosso corpo e como tal ela deixara-se levar pelo sono. Não sabia bem o que deveria fazer naquela altura, mas sabia muito bem que aquele não era o sofá mais confortável para se passar uma noite. Pensou em pegar nela ao colo e levá-la para a sua cama, ele não se importaria de dormir no sofá, afinal, dor era aquilo que já não sentia, mas não sabia se teria autorização para tocar no corpo dela. Ela poderia tomar aquilo como uma ofensa, gritar, insultá-lo e ficar com medo do que ele lhe poderia fazer. Ele não queria que ela sentisse medo dela. Não, ela não… Fora com calma. Colocara a sua mão direita sobre as costas dela e o esquerdo sobre as suas pernas. Elevara-a com todo o cuidado possível para que ela não acordasse. Ela abriu os olhos levemente, mas voltou a fechá-los, como uma criança, abraçara- 44 se a ele. Ele sentira o calor do corpo dela. Sentia o seu coração a palpitar. Não sabia o que fazer naquela altura. Engolira os seus instintos e levara-a até ao seu quarto. Deitara-a. Cobrira-a com uma manta bem quente que tinha sempre aos pés da cama. Ela reconfortara-se. Ele ficara por breves momentos a admirá-la. Não sabia bem o porquê de o fazer, não havia nenhum motivo para tal, mas algo lhe chamava a atenção. Algo que ela tinha. Algo que lhe pertencia, uma espécie de magia que desde a primeira vez que ele a vira o deixara ficar... Desistira de deixar entender o que poderia ter acontecido naquele momento. O melhor era permanecer frio, mentalizar-se naquilo que realmente era importante. Olhara uma última vez para ela. Voltara à sala e deitara-se no sofá. Estava cansado. Todavia, pegou numa espécie de espelho, donde saiu uma imagem mal ele tocou nele. Mexeu com os dedos na imagem que fora revelando diversas músicas. Encontrara aquela que pretendia. Começara a tocar a “Creep” dos Radiohead. Uma música pela qual ele sempre sentira grande apreço. Uma música que revelara aquilo que ele sempre fora. O edifício tomara finalmente o seu ritmo normal. Centenas de pessoas iam tomando lugar, enchendo o vazio de conversas e distúrbio. Eram muitas as pessoas famosas que ali se encontravam, ao lado dos zés-ninguém que os tornavam famosos, pessoas essas que apenas viam os seus nomes colocados num rodapé rápido a quem ninguém tomava conta do nome. 45 - Este estúdio tem um cheiro esquisito…- Queixara-se uma dessas pessoas que ninguém conhecia – Que raio… - Deve ser da cera… - Replicara outro – Isto foi encerado ontem, portanto… - Um café! – Ladrara o chefe deles enquanto ia cambaleando pelo corredor, dirigindo-se ao seu gabinete. Era um homem forte, sem grandes maneiras, muito mal-humorado, que sentia-se impotente por ter o cargo de subpresidente daquela estação de televisão, a única a nível nacional, e por a sua chefe ser uma bela mulher, que conseguira ganhar o seu lugar, sabia-se lá bem como. O homem entrara no seu escritório sem deixar qualquer rasto de boa educação atrás dele. Sentara-se na sua cadeira que lhe servia como uma poltrona, poltrona essa que em pouco tempo se partiria se ele continuasse a engordar daquela maneira. Abrira a sua gaveta, com grande custo, pois os seus braços eram pequenos e a gordura que possuí-a neles impedia-o quase de se movimentar. Tirara um dos seus importados charutos que comprava por uma modéstia quantia que serviria para alimentar quase metade das pessoas daquela cidade. Colocara o charuto na sua papuda boca e acendera-o com um fósforo. Deitara o fósforo ainda a arder para o chão, uma mania que ele tinha, para depois o pagar com o seu rechonchudo pé. O fósforo tocou no chão e, antes que ele pudesse fazer algo, tudo se incendiou, num fogo intenso que se propagara com uma rapidez incessante, sem cansaço. A agitação tomou forma do homem, que caiu da sua poltrona. E não se conseguindo levantar, fora queimado como se de um mero porco se tratasse. 46 No exterior todo o fogo se propagara na mesma intensidade, consumindo tudo. O alarme tocou, muitos correram pelas suas vidas, mas o fogo parecia ser mais rápido que eles. Os dos primeiros andares ainda conseguiram sair a tempo daquele lugar, e por sorte, essas eram as pessoas humildes, os meros trabalhadores que nada mais faziam se não sobreviver. Os seus chefes, que se encontravam nos pisos superiores não tiveram tanta sorte e todos os seus pecados foram tomados pelo fogo, purificados, infelizmente, juntaram-se a eles alguns humildes que o seu único pecado fora trabalhar para aqueles monstros. O fogo tomara partido das condutas de gás e todo o edifício explodira, numa sinfonia de festa, sem receios do mal que fizera, como a congratular-se do seu trabalho, como dizendo: Olhem para mim! Olhem o que fiz! Olha como vos salvei deste triste infortúnio. As pessoas agitaram-se nas ruas para ouvirem a orquestra que o fogo criara. Preocupadas com o final da música. Juntaram-se as sinfonias das sirenes daqueles que em vão tentariam socorrer aqueles homens, mulheres e animais que ali estavam. Carly acordara. O seu coração palpitara com o medo de desconhecer o lugar onde estava deitada. Apercebeu-se que seria a cama onde dele. Viu que ainda estava com as roupas do dia anterior. Tinha adormecido no sofá e ele teria-la levado para ali. Calçou uns chinelos que se encontravam ao lado da sua cama, que ele colocara para ela não sentir o chão frio. 47 Seguira calmamente em direção à cozinha, sentia o cheiro a doces, ouvia o barulho do óleo a borbulhar e uma leve música que ela desconhecia mas que lhe acalmava a mente. - Bom dia! – Exclamara ele alegremente – Espero que tenhas dormido bem... - Sim. – Retorquira, sorrindo por toda aquela boa disposição matinal – Não me lembro de me teres posto naquela cama, nem de chegares... - Peço desculpa. Demorei mais tempo do que preveria... Espero que não te tenhas importado por te ter levado ao colo... mas não me parecia que fosse muito confortável para ti ficar a dormir naquele sofá. - De maneira nenhuma... – Ele colocara um prato com panquecas, ovos e vários doces à sua frente, recheando ainda mais aquela mesa. - Espero que gostes! – Sorrira – Se me dás licença, terei de levar o pequeno-almoço até à minha cara irmã... Desaparecera no corredor. Ela tomara um gole de sumo de laranja fresco e comera um pouco da panqueca que ele colocara à sua frente. Fora sem dúvida das melhores coisas que alguma vez tinha saboreado. Ele demorara um pouco, o que lhe dera tempo para terminar o seu pequeno-almoço com toda a calma do mundo. Ela não sabia se deveria ir ter com ele, não sabia até que ponto poderia chegar perto dele, afinal, era a irmã dele, e ele deveria querer estar sossegado com ela. Decidira ficar ali. Especada. Olhava para o nada e ao mesmo tempo para o tudo, afinal, admirava agora a estante de livros. Aquela estante enorme que deveria ter, como dito anteriormente, milhões de páginas de papel que compunham as melhores histórias alguma vez contadas. 48 - Vejo que já terminaste o teu banquete... – rira-se com as suas próprias palavras. Ela olhara de novo atentamente para ele. A imagem dele começava a parecer-lhe outra, como se fosse mais límpida que antes, como se algo tivesse tornado o espelho que existia entre ela e ele mais transparente, não translúcido o suficiente para ela poder ver toda a imagem dele, mas já grande parte. - Estava delicioso! – sorrira em agradecimento. Ele respondera com o sorriso típico dele que revelava pouca sanidade mental. A televisão ligara-se como que de propósito, como se tivesse sido cronometrada a tal, pois ligara-se mesmo na altura em que começara o jornal que todas as manhãs era apresentado para todo o país. Têm sido momentos complicados, estamos a transmitir no exterior, num estúdio antigo preparado à pressa, todo o edifico continua a ser consumido pelo fogo, os bombeiros têm tentado desde quase madrugada apagarem as chamas que continuam a consumir tudo… Têm sido momentos de pânico, ainda não se sabe o número de mortos, mas acredita-se que todos os que trabalhavam nos últimos quatro pisos terão sido mortos pelas chamas. Ainda não se sabe como o incendio se iniciou, nem como se tem alastrado tão depressa por todo o edifício... Carly ficara em silêncio por breves momentos. A notícia continuava, à sombra, a imagem de um edifício completo, imponente, a ser destruído pelas chamas, que nem corpo têm. Olhara para o rapaz que estava ao seu lado. A sua expressão facial revelava que havia sido ele o culpado daquele crime, mas que nenhum remorso possuí-a. 49 - Foste tu? – Perguntara ainda na esperança de estar enganada quanto aos pensamentos que possuí-a. Ele não respondera. Ela olhara para ele com um olhar vítreo, perdido, culpando-o. Um olhar de repugnância e medo. Um olhar que ele não conseguia entender, uma expressão facial que lhe causara medo, que lhe causara um bater acelerado do seu coração, que tornara aquele momento difícil, que fizera os seus pulmões cessarem a sua vontade por ar. - Tu mataste inúmeras pessoas! – Gritara ela num tom assustado, crítico e violador – Eu... Eu não consigo acreditar... como... Tu... - De facto matei alguns inocentes... – declara ele – E nada me deixou mais triste que fazê-lo... Infelizmente, terei de ser sincero quanto às minhas emoções... Nada fora mais difícil neste trabalho, que saber que havia morto algumas pessoas que nada tinham a ver com esta guerra... – Explicara com toda a calma aproximando-se dela – Todavia, em qualquer guerra é necessário que morram inocentes para que as pessoas se integrem nela... - Não podes estar a falar a sério! – Exaltara-se – Matar inocentes nunca pode ser uma boa causa... Ele riu-se. Parou. Ela olhava para ele com um olhar vago, mas mortífero. - Poderás pensar isso, mas acredita, que se alguma vez conseguimos evoluir, foi graças à morte de milhões de inocentes... Sim, a guerra é algo de facto desprezável, todavia, os maiores períodos de evolução da nossa espécie foram em períodos de guerra... 50 - Não podes acreditar naquilo que dizes... Não podes! – Gemera – És um louco! – sentara-se no chão a chorar. - Ser louco num mundo fodido, é uma bênção! – Chegara perto dela e colocara-lhe o braço por cima dos ombros – Eu sei que pode parecer que o que fiz foi errado, mas é a única maneira de conseguir fazer com que as coisas possam mudar, não é simples conseguir realizar uma ideia, muitas vezes temos de ir contra os nossos princípios, muitas vezes a nossa mente perde-se enquanto criamos tudo aquilo que pretendemos... – Ela retirara o braço dele de cima dos seus ombros quando voltou a si, ele não a censurou – Consigo entender que acredites que aquilo que eu fiz foi errado, mas era a única maneira... Tinha de destruir a maior central de mentiras que temos... Os MIDIA tornaram-se numa excelente forma de dominar as pessoas. Tudo o que tu vês atrás do ecrã é caras bonitas e com vidas fantásticas... Pessoas que te fazem sonhar e dizer ao mesmo tempo que nunca estarás ao nível delas... Elas dizem-te aquilo que deves fazer, aquilo que deves pensar, aquilo que tens por garantido e as tuas obrigações... Nada mais... Enquanto tu pensas que eles te estão a passar informação, eles estão de facto a dar-te a ideia que eles querem, a opinião que deves ter sobre um determinado assunto... A ideia é que as pessoas tenham opiniões diferentes, e ao mesmo tempo, opiniões iguais... Por que assim causam a discussão pública, em que todos usam aquilo que outros disseram, não aquilo que eles pensam... – Respirara um pouco, ela não dissera nada – Entendo se quiseres ir embora, eu mesmo te arranjarei os documentos necessários para saíres do país sem qualquer problema... Gostaria que ficasses para poderes assistir a tudo aquilo que irá acontecer... Mas a decisão final, será tua... Ela olhou seriamente nos olhos dele que se mantinham vagos e sem qualquer toque de sentimento. Não lhe respondeu, a 51 cabeça dela era incapaz de pensar. As perguntas invadiam-na. Quem sou eu? Quem é ele? Por que estou no chão? Que poderei fazer? Que devo fazer? Ele é um assassino, ou alguém com uma causa? Não tinha noção de nada. Ele permanecia ali, especado, olhando para ela, como se fosse simplesmente alguém que não tem qualquer preocupação, como se se limitasse a esperar por uma decisão dela que não lhe importaria muito. Nobert e Almiton permaneciam a olhar de dentro do carro para o exterior, onde as chamas ainda deflagravam, como numa salvadora fogueira no tempo frio, onde os pobres se colocavam em seu redor a sentirem o calor para não morrerem com o seu sangue congelado. - Achas que vai demorar muito até ele nos ligar?! – Indagara Nobert sabendo perfeitamente que em breve o presidente deles acabaria por ligar para a sua linha privada, a linha que os mantinha sempre conectados uns com os outros. A linha que custara muitos milhões de euros, um projeto desconhecido por todos, para impedir que alguma vez pudesse ser invadida. - Deixa-o acabar a sua cagada matinal, e ele deverá ligarnos... – supusera Almiton – E desta vez, nem vai ser bonito! - Quem será este homem que anda a fazer tudo isto? - Não sei, mas tenho de admitir que tem tomates suficientes para fazer o que quer que seja... – O tom de espanto dele era evidente – Nunca ninguém seria capaz de fazer tudo isto que ele vem feito... Ele não pode ter medo... 52 - Achas que alguma vez o encontraremos? – Nobert sabia bem que aquela pergunta não tinha resposta possível naquela altura, e tudo apontava para uma resposta negativa. - Para nossa salvação é bom que consigamos, e depressa! Caso contrário, o nosso futuro não será o melhor... E ele não terá dificuldades a arranjar alguém para nos substituir. - Que quererá este tipo? Ele não age como os outros... Ainda não fez nada... Ainda não revelou o seu plano... Ainda não se gabou de andar a gozar com um dos maiores governos mundiais... É completamente estranho... – Olhara seriamente para o nada – É como se ele quisesse criar o medo, como se quisesse que sejam as a aperceberem-se de que há alguém por detrás de tudo isto... Não consigo entender o que irá na cabeça dele... - Nem todos querem fama, alguns simplesmente querem mostrar o sue ponto de vista, e este tem conseguido aquilo que quer... Nunca vi o nosso presidente tão preocupado com algo como com este homem... Ele tem estado completamente perdido em tudo aquilo que faz... Nunca vi o nosso presidente assim... - Tens medo do que possa acontecer-lhe a ele caso o que procuramos o encontre primeiro? - Não... Tenho de medo de saber o que acontecerá ao povo, quando apanharmos este homem... É que o Presidente não vai querer que isto se volte a repetir... E ambos sabemos o que aquele homem pode fazer por poder. O silêncio restabelecera-se no carro. As palavras entoavam, mas sem se fazerem ouvir. O telemóvel começara a tocar. Já ambos sabiam o que seria. 53 6 Descoberto que a maneira de se incendiar aquele edifício tinha sido através da mistura de explosivos no produto utilizado para encerar o chão daquele edifício, na noite anterior aquele trágico incidente, não tinha deixado nenhum dos 17, visto que o incendio levara com ele a mulher que era a responsável por toda a comunicação social daquele país; propriamente contente. As buscas haviam-se iniciado. Todos os trabalhadores daquela empresa tinham sido passados a pente fino. Todas as informações haviam sido lidas. Todos os ficheiros abertos. Fora feita uma escavação até ao interior da terra para se saberem todos os segredos que eles escondiam. Para se saber se algum tinha um familiar qualquer que tivesse sido rebelde anteriormente, alguma réstia de sangue comunista, ou anarquista. Alguém que houvesse causado distúrbios, ou que fosse capaz de fazer aquilo. Hackearam-se computadores, para se encontrarem receitas culinárias, vídeos de gatos a andarem de um lado para o outros, jogos de computador e alguma pornografia. Mas nada de planos maquiavélicos de como o mundo poderia ser dominado, nenhuma estratégia secreta para se deitar abaixo o governo, nada daquilo que eles esperavam. Fosse quem fosse o responsável por todo aquele ato, não havia sido nenhum daqueles homens. A pergunta continuava no 54 ar. Afinal, não era fácil para alguém colocar explosivos líquidos juntamente com o produto usado para se encerar o chão. Aquele homem ainda fora mais inteligente do que eles alguma vez pensaram. Uma bomba maior ainda havia caído quando se descobriu que o homem responsável por aquilo havia ainda roubado um transmissor de emergência, o único que existia, e que se sobrepunha a todos os sinais de transmissão de televisão, rádio e internet. Fora logo possível ver-se uma veia enorme a emergir da cabeça do presidente que não podia acreditar em tudo o que ouvia. De repente, um homem tornara-se mais inteligente que ele. Um simples homem conseguira superar toda a segurança que alguma vez existira naquele país, entrado num dos edifícios mais importantes do mundo e roubado algo tão importante como aquele pequeno objeto. Era impossível de se saber quem era, ao que parecia, nem as câmaras conseguiram registar-lhe o rosto para se porem cartazes a dizer-se: “Procura-se”. Nada disso. Era um fantasma. Um homem que ia brincando com eles. Fazendo deles pequenos bonecos, a quem podia cortar a cabeça e ninguém se aperceberia. Que aquele rapaz era inteligente, ninguém tinha dúvidas, mas até que ponto ele o era, isso já era uma dúvida muito superior. E era essa a dúvida que fazia com que o velho homem, aquele que se sentava sempre ao lado do presidente, ficasse com os nervos à flor da pele. As preocupações dele eram mais fundadas que as de qualquer outro, pois ele sabia bem que o facto de não haver memória do ADN daquele homem que eles procuravam, era por 55 que aquele homem era alguém que sabia demais sobre tudo aquilo que se passara. Era alguém com um passado, uma justificação, para fazer tudo aquilo. Alguém com inteligência suficiente para conseguir deitar abaixo aquele império todo. Poder-se-ia pensar que pelo facto de ser apenas um homem, que seria fácil derrubá-lo, mas era necessário repensar essa ideia. Aquele homem nunca seria um alvo fácil, como todos os outros que eles haviam tido anteriormente. Aquele seria a maior barreira que existiria entre o poder. Apanhá-lo seria impossível, ele não seria estúpido ao ponto de ser apanhado com facilidade... Nada do que ele fizesse seria ao acaso... Só faltava saber era como alguém como ele poderia estar ali... A fazer aquilo tudo... Como é que ele havia saído do... Ele nunca recebera a notícia de que alguém fugira daquele lugar... Tudo havia sido destruído. Não tinham havido sobreviventes... Tentou acalmar-se, mas o fantasma do passado e o medo do futuro não o permitiam. Nunca tinha sentido aquilo. Nunca nada o pusera tão assustado como o facto de aquele homem existir... Era como se de um momento para o outro, a cadeira onde ele se sentava tivesse perdido uma das suas quatro pernas e uma das outras três estivesse cortada, ainda não caíra, mas em breve a segunda perna podia-se partir e iria cair e aleijar-se. Pegara no telefone que se encontrava à sua frente. Marcara um número que só ele conhecia. - Traz-me o documento 76, por favor... Carly havia-se deitado na cama. Sentia a cabeça a latejar, o medo, o ódio e o lamento a invadir-lhe os ramos cerebrais e a tornarem-na fraca. Ela não sabia por que é que ainda continuava 56 a ali, com ele, naquela casa. Deveria aceitar a proposta dele e fugir. Ele não parecia ser ofensivo, mas a verdade é que matara imensas pessoas e isso para ela, era algo que não seria fácil de suportar. Ele não tinha falado para ela durante o últimos dias. Limitara-se a fazer-lhe as refeições, a dar-lhe cobertores, a fazer com que ela se sentisse o mais em casa possível, todavia não chegava muito próximo dela, como que tentando dar-lhe espaço para que ela pudesse pensar o melhor possível em tudo o que se passara. Ela aproveitara o tempo para ir lendo alguns livros, para ir vendo alguns filmes. Era isso que de certa maneira a mantinha ali. Aquela imensidão de vidas que ela nunca poderia viver. Aquelas personagens todas, aquelas histórias, aquelas palavras. Quando via um filme, ou lia um livro, tudo aquilo que ele fizera de mal desaparecia da mente dela, todos os problemas do mundo em que havia nascido corriam para um sítio bem longe e ela entrava nas personagens. Via com os seus olhos os caminhos que elas seguiam, sonhava com guerras, com dragões, com criaturas encantadas. Sonhava com tempos antigos, onde todos lutavam por um bem comum. Sonhava com um herói que ia lutando por um bem comum, mas ao mesmo tempo, um bem dele. - Não te preocupes... Vai tudo ficar bem em breve, pequenina... – ouvira no quarto ao lado ele a falar com a sua irmã. Era um ritual que ele fazia todos os dias. Sempre que estava em casa, passava grande parte do tempo sentado na cadeira ao lado da cama onde a sua irmã estava deitada. Falava calmamente para ela. Carly normalmente nunca prestava muita atenção, mas naquele dia uma estranha curiosidade atacou-a. 57 Levantou-se e colocou-se alguns passos atrás dele a ouvir o que ele dizia – Em breve teremos o nosso pequeno mundo, como sempre te prometi... – Sorrira. A rapariga olhara seriamente, o mesmo olhar sério, mas vago que o irmão possuí-a, e gemera um pouco. Carly sentiu um leve arrepio. Ele voltou-se. - Desculpa estar a ouvir a vossa conversa... - Não tem mal... Não estávamos a falar de nada importante... – Levantara-se da cadeira e dera um leve beijo na testa da irmã. Seguira em direção à cozinha passando ao lado de Carly. Carly seguira-o, olhando uma última vez para a irmã dele que mantinha um leve sorriso na sua face gasta. - Já tomaste alguma decisão? – Indagara ele, enquanto vasculhava no frigorífico por algo para comer, mas sem demonstrar estar preocupado com a resposta que poderia vir dela. Carly ficara calada. Não sabia ao certo o que responder. Tinha na sua mente a ideia de fugir, mas ao mesmo tempo só lhe apetecia ficar. - Ainda não fui capaz de pensar em nada... Ele olhara para ela calmamente, mas fixo, enquanto trincava uma maçã. - Ouh! – Exclamara – Pensei que já tivesses pensado em algo... – Continuara a trincar a maçã - Já arranjei documentos novos para ti, caso pretendas fugir do país... Por isso, quando tiveres uma decisão, deixa-me sabê-la. Acabara de comer a maçã e deixara o caroço em cima do balcão, e seguira de novo em direção ao quarto. Carly não podia acreditar que ele havia dado somente meia volta e se ido embora. Isso só revelava que ele não se 58 importava minimamente com ela, que não tinha qualquer problema que ela se fosse embora ou não. Ela tinha sido apenas uma mulher que o havia salvado e ao qual ele fizera o possível para agradecer. Um objeto para ser utilizado e para agora ser posto de parte. Nada diferente do que todas as restantes pessoas que ela outrora conhecera não houvessem feito. - Para! – Imperou ela. Ele tomara a ordem. Parara e voltara-se para ela, muito calmamente, como se fosse um bonequinho. - Tu não podes estar a falar a sério... - Desculpa... Perdi-me em algum aspeto e não entendo o que falas... – O seu tom parecia ser de alguém pronto a enganar, mas ao mesmo tempo sincero. - Não podes ter feito tudo isto, por mim, para agora, simplesmente me mandares embora... Sem me explicares tudo o que se passa, e o porquê de fazeres tudo isto – Exaltava-se cada vez mais – Sem me explicares como é que alguém, aparentemente louco, consegue brincar desta maneira com todo o nosso governo... Como é que conseguiu tudo isto e o porquê desta causa... Ele aproximou-se com toda a calma, mantendo o seu passo de pinguim. - Que queres que te revele? – o seu olhar intensificara-se. - Tudo! – Implorou – Quero que me reveles tudo o que se passou... Ele riu-se. A risada entoou pela casa. - Queres que te conte como é que fiquei assim... Doido... – Os seus olhos esbugalharam-se – Queres que te conte que foi por que o meu pai era um drogado, que um dia chegou a casa, completamente de cabeça perdida, endoidecido pelas drogas, que pegou na cabeça da minha mãe, colocou-a sobre a mesa e 59 com um martelo a esmagou mesmo em frente a mim, enquanto ela me prometia que tudo ia ficar bem? – A sua voz ganhara raiva – Queres que te diga que as cicatrizes que tenho no corpo foram feitas por ele, que ia rasgando-me a carne com uma faca aquecida por ele... Queres que te revele que esta cicatriz que tenho no peito – Descera um pouco a sua t-shirt e revelara um enorme risco de pele escura – Foi feito na noite em que ele chegou a casa, a tresandar a álcool e tentou violar a minha irmã? E quanto eu o tentei impedir ele rasgou-me com uma faca... Que a cicatriz que eu tenho na mão direita foi de quando eu lhe peguei na faca, com toda a força que tinha e depois lha espetei bem no seu coração, de maneira a que ele morresse lentamente e pudesse-me olhar bem nos olhos enquanto respirava uma última vez, só para eu poder dizer: “Ganhei!”... É isso que queres que eu diga? Ela conseguia entender agora a dor dele. Começou a chorar. Sentira nas palavras dele todas as suas emoções. Como se as palavras deles tivessem formado imagens nítidas de todos os momentos que se passaram. Ele mantinha o seu olhar sério, perdido, sofrido. Fazendo de conta que nada lhe importava e ao mesmo tempo tudo o que ele acreditava tinha sido destruído. Houve silêncio entre eles. Houve silêncio em todo o bosque onde eles se encontravam. Carly não disse nada, até à manhã seguinte. Durante a noite, toda a sua mente fora corrompida pela imagem das cicatrizes dele... Do seu desespero. Agora ela podia entender o porquê de ele parecer tão vago, tão distante, tão louco. Carly encontrava-se deitada na cama a ler um pouco mais do livro, O Senhor das Moscas. 60 Estava concentrada, para poder apreciar todo o pequeno mundo que ali havia sido criado, quando, de súbitos, começara a ouvir a doce explosão das pipocas. O cheiro do caramelo começava a insurgir também nas suas narinas. Deixou o livro no centro da cama, perdido, quando ninguém lê, um livro não passa de um monte de folhas, facilmente inflamável, onde, por melhor ou pior que seja, não consegue ter valor nenhum. Ao aproximar-se da cozinha o som e o cheiro intensificaram-se. Viu-o a cantarolar enquanto derramava as pequenas pipocas numa taça e devorava algumas. - Oh! Estás aí! – Sorrira ele, quando se voltara, com o mesmo sorriso de sempre – Espero que aprecies pipocas caramelizadas! Ela ficou um pouco surpreendida por o ver a sorrir. Era como se a discussão do dia anterior não tivesse acontecido. Era como ele tivesse sempre um botão que o fazia voltar ao seu velho estado habitual, apesar das memórias que todos os dias tinha presente. - Qual é o filme que vamos assistir? – Indagara ela. - Chama-se: O mundo prestes a queimar! – Rira-se loucamente – Penso que o irás apreciar. Sentaram-se os dois no sofá. Carly não gostara do tom de voz dele, mas também, ele sempre tivera aquele riso estranho. Na mesa que existia entre o ecrã e o sofá, encontrava-se um dispositivo estranho, que se encontrava ligado e que tinha a frase: Pronto a transmitir; colocada no seu visor. - Que é isto? – Perguntou ela com algum receio. - É o que nos permitirá assistir ao nosso filme, minha cara... 61 Ele ligara o ecrã. Surgira nele a imagem do Presidente a dar uma entrevista para a maior televisão daquele país. - Caro senhor presidente, há quem diga que o que tem acontecido ultimamente, tem sido obra de um homem, confirma isso? – perguntara a jornalista em tom calmo. - Isso são calúnias! – A voz dele era forte – Temos sofrido apenas infortúnios. As pessoas tendem a dramatizar. Carly vira o sorriso do rapaz que se encontrava ao seu lado a tomar o contorno do rancor que sentia pela mentira daquele homem. - Bem, tempo de o espetáculo começar. – Carregara no ecrã do aparelho que existia em cima da mesa. A mensagem mudara para: A transmitir... Num segundo, a imagem da televisão mudara de um plano fechado da cara do Presidente, para um plano quase fechado da cara do rapaz que se encontrava ao lado de Carly, só que a cara dele não aparecia nua, estava maquilhada, de branco e com os lábios vermelhos, prolongando-se como cortes. - Bom-dia, meus caros deambulantes deste império... Penso que não precisarei de muitas apresentações, devem apenas saber que tenho sido eu o responsável por estes atentados que se têm manifestado ao longo deste tempo. – O seu tom de voz era bem colocado, as pessoas tomavam a sua atenção nos diversos monitores e rádios – Queria pedir desculpa a todos aqueles que feri nesta guerra e que nada tiveram... Se bem que me deixem dizer, somos todos culpados. – a sombra invadiu a limpidez das palavras – Aos longos dos tempos temos deixado todos estes caros senhores dominarem-nos, pela melhor arma que eles encontraram... A ganância... O Primeiro homem inteligente foi aquele que se virou para outro e disse: Isto é meu... Desde então temos vivido sobre a sombra de uma ganância excessiva, da qual 62 muitos se aproveitaram para nos fazerem querer que só poderíamos ter aquilo que eles pretendiam... Nada mais. Foramnos dizendo que nós éramos demasiado estúpidos para alguma vez sermos capazes de sermos alguém... Tornaram-nos pequenos pedacinhos de esterco ambulante, neste mundo moribundo. Foram-nos dizendo que os sonhos deixariam de ser possíveis, foram-nos dizendo que são eles que mandam, foram-nos dizendo que foram eles os escolhidos para nos controlarem... Todas as nossas decisões foram sempre tomadas por outros... Até o vosso simples nome não foi uma escolha vossa, foi a escolha dos vossos pais... E nós aceitamos... Como se a nossa voz não pudesse ser levantada e ouvida, como se não tivéssemos direito a exprimirmo-nos da maneira que nos é querida... E talvez, eles tivessem razão, talvez sejamos demasiado estúpidos, caso contrário eles nunca teriam chegado onde chegaram... Eles conseguiram fazer com que acreditassem que a culpa de tudo isto era vossa e deram-vos um pequeno mundo onde podiam viver, onde os problemas podiam ser esquecidos, onde todos seriam iguais, venderam-vos uma mentira... Mentira essa que vos tornou tristes, inúteis, sem qualquer razão de viverem... Tornou-vos apenas mais um numa imensidão de corpos que se arrastam por entre as ruas... Fazendo-vos pensar que para serem alguém precisariam de um bom emprego, uma boa casa, um bom carro, uma boa conta bancária, que precisariam sempre de algo bom... Quando na realidade isso é só a maneira de vos poderem tirar uma das duas coisas que só podem fazer uma vez: viver... Se acham que o dinheiro é importante, que farão aqueles que possuem dinheiro, se não tiverem onde o usarem... Dinheiro é um bocado de papel e ferro que vos dão para se enganarem... Mas que fará um gigante quando algum anão pequeno, doido, pegar numa arma e, sem nada a perder, apontá-la bem 63 diretamente à sua cabeça e disparar... Que dinheiro o poderá salvar, então? Olhem para o passado... Grécia foi destruída, o Egito foi destruído, Roma foi destruída, Espanha e Portugal perderam os seus territórios, Napoleão foi derrotado, Inglaterra caiu... Todos os grandes impérios pereceram.... Quanto mais tempo acreditam que esta terra encantada à qual muitos chamaram de Nárnia irá durar? Para sempre? Quantos já não foram postos de lado por este império? Quantos não foram tratados como animais... Houve um homem que disse que Antes morrer de pé, que viver de joelhos... Mas por que não viver de pé e morrermos de joelhos? Afinal, a segunda coisa que podemos fazer apenas uma vez é a morte, mais vale que quando gastemos essa nossa vez, seja depois de fazemos algo importante. – parara um breve momento – Sozinhos não somos mais que um simples ser que será consumido mais cedo ou mais tarde pela terra, mas juntos... – riu-se – Juntos somos uma força invencível, que ninguém poderá domar... Somos uma força capaz de fazer tudo... Por isso, deixarei ao vosso critério, ao vosso arbítrio, se pretendem lutar por uma liberdade que nunca conheceram, ou se irão continuar a ser o mísero pedaço de merda que foi colocado neste mundo para simplesmente fertilizar a terra que outros irão pisar imponentemente. – Parara de falar por leves segundos – Esse homem que se intitula presidente, não passa de um velho ditador, que vos foi tirando todos os confortos que a vida vos poderia ter dado... Como tal, não espero que consiga fazer com que todos se juntem à minha causa... Enquanto o governo que nos possui não ceder, um dos membros dele será morto... Isto não é uma ameaça... Não, uma ameaça pretender simplesmente causar medo... Isto é simplesmente uma maneira de dizer que, ou perdem de uma 64 maneira, ou perdem de outra... – A imagem ficara centralizada no seu sorriso louco e aí parara. Todos os que haviam assistido àquela demanda das palavras de um homem que não demonstrava a sua cara, entoava nos ouvidos de todos como se fosse uma música, ou como se fossem bombas a explodirem num ritmo lento, mas criando muitas mortes. Uns criticavam, outros tomavam a sua atitude como correta, venerando-o. Olhando para ele como um sinal de que os tempos estavam prestes a mudar. Infelizmente, nem todos tinham a coragem de falar sobre os seus verdadeiros sentimentos, não era simples proferir as palavras que pretendiam, sabiam bem que, caso dissessem algo que não devessem, as consequências poderiam ser inigualáveis. Mas aos poucos e em pouco tempo, as discussões pelos cafés, pelas ruas e pelas casas iam surgindo, mas voltaremos a esses meros assuntos daqui a pouco. Carly permanecia atenta à imagem dele que parara na sua televisão. Agora fora substituída por uma mensagem que dizia: Transmissão Interrompida. Nos seus ouvidos continuava a entoar a mensagem dele, cada palavra tinha sido zelosamente guardada para mais tarde poder recordar tudo aquilo que ali fora dito, talvez por que, assim, um dia, poderia usar aquele discurso para entender melhor o porquê de nunca te saído daquela casa, o porquê de permanecer ali, ao lado dele, daquele homem louco, daquele homem que tantos problemas lhe trouxera, que tantas dores lhe causara, mas que, agora, parecia ser um homem com uma justiça ainda maior. 65 - Tu cumprirás a tua palavra? – A questão era a única que lhe ocorria, a única que a preocupava. Ela não queria que ele matasse mais pessoas, não queria que ele continuasse a derramar sangue de inocentes. - Caso eles não aceitem, virei-me obrigado a fazê-lo... – Retorquira com toda a serenidade possível, o habitual dele, sem grandes traços de preocupação ou ressentimento, ou melhor, nenhum traço. Era um tom limpo, calmo, e, de certa forma, moral. Ela ergueu-se. Tentando respirar calmamente, mas já a sua respiração se descontrolada. Ela não podia acreditar que ele voltaria a matar. - Por que é que tu vais continuar a matar pessoas? – Uma lágrima começara a correr dos seus belos olhos azuis, cor que ele até então não havia reparado – Que ganharás com isso? Que bem poderá haver em tais mortes? Curiosamente, apesar de ser sempre tão calmo em questões que poderiam ser tomadas como incorretas, sempre essa calma desaparecia quando ele via Carly a chorar, ou a criticá-lo. Era como se a opinião dela importasse, como se o que ela dizia fosse importante para ele. Parecia que não suportava que ela chorasse, que ela sofresse. - Tomei a liberdade de procurar algo para te mostrar... – Seguira em direção a uma estante e retirara de lá ao que parecia enormes quadros de vidro que com cuidado pus em cima da grande mesa de madeira, antiga, que se encontrava no centro da sala. - Que é isto? – Perguntara ela enquanto olhava para aqueles pedaços de vidro que protegiam duas enormes folhas de papel. 66 - Isto minha cara, são alguns dos mais importantes documentos de toda a história... Documentos que mudaram o rumo de todo o mundo quando este se encontrava em momentos de angustia... E todos eles revelam aquilo que eu te gostaria de demonstrar... – Ela olhara atentamente para aqueles frágeis pedaços de papel que se não tivessem aquele duro vidro a protegê-los há muitos que se haviam destruído – Esta é a décima-terceira emenda da Antiga Constituição dos Estados Unidos. Foi aceite em 1854, muito antes de algum de nós nascer. Foi proposta por um dos possíveis maiores homens de toda a história mundial, Lincoln, mas penso que nunca ouviste falar dele. Com este documento, ele viu-se à beira de poder perder o seu poder e acabou por ser morto depois de a emenda ser aceite... Para conseguir que tudo isto fosse possível, tiveram de morrer centenas de milhares de soldados... – Ela sentira uma emoção estranha ao tocar no vidro que transparecia aqueles documentos, era como se todo o ardor, todas as mortes, todo o suor que constituí-a aqueles documentos tivesse ficado preso neles para sempre – Esta é uma das traduções dos Direitos Humanos. Foi retificada a 10 de dezembro de 1948, num país chamado França. Foi criada logo após um dos maiores massacres da história da humanidade, a II Guerra Mundial... Sabes o que foi a II Guerra Mundial? – O olhar dela demonstrava que não – A II Guerra Mundial foi um dos mais sangrentos momentos de toda a humanidade, todavia foi um momento que fez a humanidade evoluir... Um homem que se vira a ser os seus sonhos recusados, enlouqueceu, e decidiu assassinar a sua raiva juntamente com milhões de homens, mulheres e crianças de determinadas etnias... Ele podia ter sido facilmente travado no início, enquanto a sua ideia ainda era uma simples erva daninha que poderia ser facilmente arrancada, mas 67 como ninguém se importou, a ideia fora crescendo e crescendo... Espalhando-se, e assim a humanidade sofreu com o sangue a ser encrostado nas pedras da calçada... Todavia, se isso não tivesse acontecido, esse documento que possuis na mão, nunca havia sido criado... - Não consigo entender onde pretendes chegar com tudo isto... – Interrompeu-o, sem conseguir retirar os seus olhos daqueles documentos, daqueles pedaços de papel que continuavam a trazer-lhe uma energia estranha. - O que eu te quero dizer é que... – Parara para engolir em seco e depois continuou – A Humanidade precisa de sofrer certas catástrofes para as pessoas entenderem que não são nenhum Deus, são simplesmente seres... E que basta uma arma, basta alguém ser doido o suficiente, para que eles percam tudo... É aí que as pessoas se juntam e lutam. Eu sei que matei inocentes, mas as pessoas agora apercebem-se que numa guerra temos de fazer sacrifícios, mas se isso significar termos um amanhã melhor, então temos de o fazer... As pessoas vão odiarme, mas um dia entenderão que tudo o que eu fiz foi numa tentativa de as salvar, quiçá demorará muito tempo até que isso aconteça, mas pelo menos entenderão que, não é preciso muito para elas conseguirem derrubar um gigante... Basta serem loucas o suficiente para não terem medo... - Tu queres ser o herói desta história, é isso? - Não! – Rira-se intensamente, fazendo-a logo desacreditar-se de que ele procurava heroísmo – Eu, no final, não quero ser o herói desta história, quero ser sinónimo de que ainda há esperança... – Mantivera o seu leve sorriso que ganhara ainda mais significado. Ela olhara bem nos olhos dele que brilhavam, algo que ela nunca vira em ninguém. Pela primeira vez vira uns olhos a 68 terem um brilho, um brilho que demonstrava: Eu estou vivo, eu estou a lutar, olhem para mim, façam a vossa história, juntem-se à minha história, em breve toda a escuridão será levantada pelos nosso olhos, em breve dançaremos como loucos, mas felizes, em torno de um fogo ardente. - E se tu estiveres a vender simplesmente um conto de fadas? E se estiveres simplesmente a demonstrar às pessoas que há dragões? - Se me permites, há uma bela frase que outrora decorei quando, ainda pequeno, comecei a ler contos de fadas... Os contos de fadas não nos contam que há dragões, as pessoas já sabem disso, os contos de fadas contam-nos que um dragão pode ser morto. Carly respirara fundo, tentando acalmar o seu coração que palpitava loucamente dentro do seu corpo. Que ia enlouquecendo, como se fosse explodir. Ela não sabia bem o que aqueles documentos tinham, o que aqueles documentos representavam, nem se as histórias dele eram verdade. Ela apenas podia ter a certeza que havia algum motivo que ainda a prendia àquele lugar, que ainda a fazia ficar ali, a ouvi-lo, a questioná-lo... Podia ser simplesmente a mera curiosidade de alguém que nunca tivera algo diferente, ou seria algo mais? 69 7 Voltando de novo ao que anteriormente fora dito, mas não concluído para não perdermos a coerência temporal desta história; Começavam a rondar por todas as ruas, casas, bares e todos os lugares oportunos as discussões sobre se aquele deveria ser um exemplo a seguir, ou se não passava de um mero terrorista que não tinha o mínimo sentido do que era lutar, que apenas queria causar o caos e a destruição e as suas intenções eram diferentes da que ele transmitira. Apoiando-o ou não, a verdade era que todos falavam dele, todos começavam a pensar, a criar as suas próprias ideias. Poderia parecer que não, mas, de facto, pela primeira vez na vida daquelas pessoas, elas tomavam uma decisão importante por elas mesmas. Lutar ao lado dele, ou não. Ninguém acusava ninguém de cobardia por querer permanecer no seu confortável lar em vez de sair para a rua e protestar. Ninguém acusava ninguém de loucura por se querer chegar à frente e começar a lutar. Muitos começavam a ser os confrontos entre povo, polícia, tropas militares e políticos. Muitos zé-ninguéns haviam sido presos, levados para longe, torturados, numa tentativa contínua de se poder saber a verdadeira identidade do homem que causara todos aqueles tumultos. Numa tentativa de fazer 70 com que todos dessem um passo atrás na ideia de lutarem contra o órgão máximo daquele império. A ideia parecia ser simples, igual a tantas outras anteriores. Gerar o medo e fazer com que as pessoas fiquem quietas, que deixem os outros continuarem a pensar por elas. Sim, a ideia parecia simples, mas a realidade era diferente do demonstrado teoricamente por analistas, psicólogos e membros do governo. Por cada pessoa que o governo capturava, ia aparecendo mais três para se juntarem à luta, nem sempre eram três, claro, são apenas estimativas de números para fazer entender que as pessoas se começavam a revoltar. Que começavam a tentar mudar todo o mundo em que viviam, que tentavam criar um novo mundo, onde não vivessem com medo, onde a informação fosse livre, onde tudo aquilo que eles pretendiam, fosse possível. Tomados conhecimentos de que as ideias para a criação de medo e a geração de abrandamentos nos protestos não estavam a acontecer, logo se começaram de novo a fazer reuniões para se discutirem culpas e o que poderiam fazer a seguir. - Penso que não terei de referir de novo quais são as minhas mais sinceras opiniões quanto ao que se tem passado... – O tom de rancor e raiva que o Presidente possuí-a voltava a deixar todos em tumulto, sobretudo aqueles que eram os principais responsáveis pelos serviços de proteção daquele país – Caros Senhores Nobert, Almiton e Morgan, penso que quando os nomeei para os cargos em que agora se encontram foi por causa de, após muitos anos de serviço, vocês eram os mais indicados para assegurarem a proteção dos membros deste império e, acima de tudo, dos membros deste governo. Todavia, nos últimos tempos, penso que deveria ter repensado a minha 71 decisão, afinal, apesar de toda a tecnologia e meios que têm disponíveis, nenhum de vós conseguiu capturar o homem que procuramos. A mesa permanecia em silêncio. Ninguém se dignara a falar. Os 15 membros daquela mesa que haviam sobrado depois dos diversos atentados, contando que o massacra na televisão tinha acertado num dia em que os três membros responsáveis por controlar os MIDIAS daquele império haviam sido mortos. - O que devemos fazer quanto às ameaças? – Indagara um homem que se encontrava envolto quase na sua totalidade pela sombra. As atenções só se haviam virado para ele, porque ele arranhara a garganta antes de proferir qualquer palavra. Por muito que nenhum admitisse, aquela era a pergunta que catorze dos membros queriam fazer. Só que tinham demasiado medo de o fazer, e o medo era motivado, a expressão na face do Presidente dizia isso mesmo. - Caro Senhor Ell. Penso que será mais do que evidente que o governo nunca irá recuar perante quaisquer tipos de ameaças, declarações essas que serão feitas mal todas as ligações televisivas e de rádio estiverem estabelecidas, mas o senhor deveria saber isso melhor que ninguém, é o responsável pelo nosso sistema de ensino e nas escolas deve ser ensinado que é o povo que deverá ter medo do governo, e não ao contrário. Além disso, nas escolas deve ser ensinado e de forma evidente, que nós somos de facto o órgão máximo estatal, que ninguém se deve sobrepor a nós e que todos os que tentarem fazer perecerão. Nem o fogo que aquelas palavras tinham conseguiu aquecer aquela fria sala, muito menos as almas congeladas daqueles que seguiam as ordens daquele homem. 72 Por muito que tentassem, todos haviam perecido, no primeiro momento que ali haviam entrado, perante ele. - Mas devemos perceber que órgão ele irá atacar a seguir. Qual será o próximo ícone governamental que ele tentará derrubar. – A voz do velho que se encontrava do lado direito do Presidente podia ser fraca, mas ela melhor ouvida que a outra. - Isso será um trabalho para as nossas forças especiais e policiais. – concluiu a mulher que era responsável pelos assuntos parlamentais e que ela uma das mais frias pessoas daquela sala. As palavras dela haviam caído como uma pedra na cabeça daqueles três homens que viam os seus problemas a aumentarem a cada segundo que passava. Almiton, Nobert e Morgan entreolharam-se, sabendo perfeitamente que tinham de se unirem para conseguirem salvar os seus empregos, as suas vidas. Não podiam voltar a falar no que se tratava de apanhar aquele homem que lhes causava os problemas. Aquele homem que se maquilhava para aparecer perante todos os cidadãos daquele império. Que se maquilhava como se fosse um palhaço, imitando, ao que sabiam, um vilão antigo da Banda Desenhada, que eles nem sabiam o que isso era, mas ao que lhe haviam explicado eram histórias contadas em livros, feitas por quadradinhos que iam contendo desenhos. Depois de saírem daquela reunião, com as suas cabeças cheias de protestos e críticas. Nada como antes tinham vivido. O problema era esse, nunca estiveram habituados a tamanho problema. Ambos os três fumavam o seu cigarro, numa tentativa de se acalmarem dos problemas que possuíam em mãos. 73 - Temos de conseguir arranjar uma forma de resolver tudo isto! – Nobert tomara a decisão de ser o primeiro a falar. O fumo ainda saíra pelo sua boca. Os outros três mantinham o seu olhar fixo em objetos inexistentes. - O que haveremos de fazer para conseguir capturá-lo? – A pergunta de Morgan era a mais cuidada e a mais certa de todas – Não será possível estar em constante vigia dos principais pilares deste império. E ele já provou ser muito inteligente... - Por mais espero que ele seja nesta altura, temos de conseguir ser mais espertos que ele. Não podemos deixar que ele consiga simplesmente sair impune de tudo isto... São os nossos cargos que estão em risco, caso ele consiga cumprir a sua promessa... - Caso ele consigo cumprir a sua promessa, Almiton, os nossos cargos serão o menor dos nossos problemas. – Todos voltaram ao seu estado de transe nos seus pensamentos mais moribundos, que vagueavam, mas que voltavam a centrar-se no mesmo assunto. Aquele homem tinha conseguido o que nunca mais nenhum alguma vez conseguira. Tinha criado um medo, uma ideia, um plano, que seria capaz de derrotar todos os que outrora haviam sido os gigantes daquele poderoso império. Se ele conseguiria ou não, isso dependia do tempo que demorariam a apanhá-lo e de qual era verdadeiramente o seu plano. Continuavam então as buscas incessantes por aquele homem que todos finalmente haviam visto, mas que ninguém verdadeiramente conhecia. Ninguém sabia o seu passado, os seus propósitos, os seus objetivos, os seus valores. Apenas 74 sabiam que tentava destruir todo aquele país, não a terra ou as pessoas, mas sim os ideais. Pretendia dar-lhes a liberdade que elas nunca tiveram. Os polícias e as outras forças que ninguém conhecia, continuavam a investigar por toda a rede da Internet, por todas as casas de pessoas que eram presas em protestos, por todas as linhas telefónicas, o mínimo sinal de qual seria o próximo ataque, de quem seria o homem responsável por aquilo tudo. As investigações continuavam a cair num buraco demasiado negro. Um buraco que ninguém conhecia, um buraco que ia abrindo cada vez mais, que ia sendo cavado por aqueles que o queriam fechar. A revolta instalava-se cada vez mais nas ruas, as pessoas procuravam por vingança, procuravam pelo seu novo líder, procuravam por aquilo que seria melhor para elas. O que continuava a suscitar a dúvida, do que seria realmente melhor para elas. Enquanto estas buscas aconteciam no exterior, Carly procurava no interior da sua casa por mais livros e filmes que lhe pudessem ensinar algo diferente. Cada vez mais aprendia sobre assuntos que ela nunca ouvira falar. Sobre histórias que nunca lhe haviam contado, histórias essas que realmente haviam acontecido, mas que não eram boas de serem contadas se queríamos manter o povo calado. Ela já perdia conta aos dias que estava ali fechada, ou aos livros que havia lido, ou aos filmes que havia visto, com ele ao seu lado. Mas pela primeira vez nenhum desse tempo fora perdido. 75 Ele ia explicando-lhe aos poucos tudo aquilo que ela deveria saber, para entender melhor os filmes. Até, pela primeira vez vira uma algo brilhante, que nunca vira antes. Comédia. Fora vendo vários episódios de séries antigas que haviam sido banidas e terminadas muito tempo antes de ela nascer... Havia uma que se chamava os Monty Python, homens que diziam aquilo que pensavam, de forma inteligente, nem ela conseguia perceber todas as suas piadas, faltavam-lhe imensas referencias, mas não deixava de se rir à brava... Os humanos foram depois substituídos pelos desenhos animados, uma família de pessoas amarelas, que se intitulava Os Simpsons. Pela primeira vez ela fizera algo, que não fazia desde de que era criança, ela rira. Por muito que ela adorasse a leitura, os filmes eram os seus favoritos, pois um fantástica história conseguia ser contada em tão pouco tempo. A verdade era que, todos os filmes que ela havia visto, tinham sido os melhores de sempre, que conseguiam capturar quase toda a intensidade da história, pois, nada melhor que palavras para se conseguirem descrever os sentimentos mais desejados do mundo. Aos jantares iam discutindo as ideias que os filmes e os livros transpunham. Iam dando a sua opinião sobre os mais diversos assuntos que eles acreditavam, sobre política, economia e sociedade. Sobre história, ideias e ideais. Muitas vezes ela juntava-se à noite ao lado dele, a ler um livro para a sua irmã. As palavras do livro emergiam no ritmo e tom certo em toda a parte da história que ele contava, o que tornava aquele momento inesquecível. Toda aquela vida lhe começava a parecer muito melhor do que ela alguma vez imaginava. 76 Estava frio, todavia a lareira aquecia-os. Eles estavam no sofá a ver Fight Club. - Foi muito bom o filme! – Disse Carly, mesmo sem ele ter perguntado. Era uma mania que ela tinha, falar antes de as pessoas lhe fazerem as perguntas, ela já sabia as básicas perguntas que todos faziam, portanto, para quê perderem tempo a fazê-las. - Folgo em sabê-lo... – Manteve o seu tom de voz um tom acima do normal, mas típico de alguém com o seu estilo. Ela reconfortou-se no sofá, mas o seu corpo não conseguia encontrar a posição certa para se manter. Ela sentia uma vontade, um formigueiro que lhe aparecera há dias, mas que ela ainda não fora capaz de satisfazer, pois ainda não tivera coragem para dizer aquilo que pensava. Todavia, aquele teria de ser o dia de ela fazer a pergunta que há muito lhe ressaltava forte no seu peito. Tinha de conseguir acalmar a sua curiosidade, por muito que soubesse que isso lhe poderia trazer problemas, que ele poderia não gostar da sua impertinência, mas a força de perguntar era muito maior que a contenção dela. - Posso perguntar-te algo? – O seu tom era calmo e receoso, como seria de esperar. - Penso que sim... – Retorquira calmamente. - Há dias contaste-me a história da tua infância, as tristes memórias que tinhas, mas se bem me lembro falaste de que moraste com os teus avós, que te deram toda esta coleção, mas nunca me contaste essa parte da história... – Ela não terminou a pergunta, não era preciso, era evidente o que ela queria saber. - Eu disse que morei com a minha avó, nunca referi o meu avô. – Corrigira – Esse morrera muito cedo, mesmo antes de eu nascer... Penso que poderei contar-te a história da minha 77 infância e adolescência, daquilo que me lembro, mas estarás tu preparada para ouvi-la? Ela não sabia se deveria responder da maneira que queria àquela pergunta, mas não podia continuar com a sua curiosidade. Anuiu. Ele deu uma leve risada. - Então... Prepara-te... 78 8 Não haverá melhor que contar esta pequena história olhando para o interior da sua mente, onde as suas memórias estão guardadas. Ali estava ele, com cerca de dez anos, a olhar atentamente para as suas mão ensanguentada, a faca com o mesmo tom de sangue no chão. O corpo do homem que lhe dera o material para nascer no chão, morto, com o olhar frio e fixo nele, como se pela primeira vez tivesse orgulho nele e ao mesmo tempo o culpasse do sucedido. Ele tentava chorar, mas não conseguia. Ria-se ainda mais a cada momento que passava. Como poderia ele ficar triste, como poderia ele sentir-se culpado, ficar em depressão, chorar, gritar ou enfraquecer-se. Ele tinha morto o dragão que há muitos anos o atormentava. O dragão que nas histórias todos querem ver morto, quando ele atormenta os pequenos seres que mal força têm para pegar numa espada. Sentiu a porta a ser arrombada. Os vizinhos pela primeira vez tinham decidido fazer algo. Fazer algo para ajudar aquelas pobres crianças, mas em vão, uma já havia sido corrompida, para salvar a outra. Se o tivessem feito mais cedo talvez aquilo nunca se tivesse sucedido. Ele viu dois homens a apontarem-lhe lanternas à sua cara. Mas a luz não o incomodava. Ele mantinha o seu sorriso, o 79 seu doido sorriso que dizia: Eu fiz o que tinha de ser feito e não me arrependo de nada. Depois de uma noite passada numa instituição, na qual não dormiu pois não tinha sono. A euforia daquele dia fez com que ele se mantivesse sentado, com os joelhos encostados ao peito, cima da cadeira. O olhar do seu pai a esvanecer-se era o que o fazia sorrir, aquele olhar que o libertara para sempre daquela dor que ele tinha, daquele medo que o fazia chorar todas as noites, ele poderia ser feliz, não haveria mais nenhum dragão que o pudesse derrubar, e se aparecesse mais algum, ele já tinha a capacidade de ultrapassá-lo. No dia seguinte, a sua avó viera busca-lo à instituição. Mantinha um sorriso esbatido, mas verdadeiro, por ver que o seu neto se encontrava bem. Ela era a mãe, da mãe que lhe o tornara numa boa pessoa, num assassino, sim, mas somente de dragões, e quanto a assassinos de dragões, ninguém tem nada contra. Todos os vizinhos haviam testemunhado que o rapaz fizera o que fizera em desespero, muitas haviam sido as noites em que o ouviram a gritar por ajuda, mas eram demasiados fracos e medrosos para fazer fosse o que fosse. Ficara marcado que ele teria de ser visto por uma psicóloga durante toda a sua adolescência, não fosse ele acabar por ser um assassino em série e estragar-se o heroísmo. Ele chegara finalmente à casa da avó, pelo caminho assistira às pessoas que levavam a sua vida mediana, sem se preocuparem com, por exemplo, aquele sem abrigo que pede uma esmola ou um bocado de pão à frente de uma loja de roupa... E, ao que parecia, alguns diziam não terem o dinheiro necessário para um pão, para lhe dar, todavia, lá entravam na loja e saíam de lá com a uma camisa elegante e dispendiosa. 80 Reparava naqueles seres que iam perdendo tempo numa vida que não era vida. Que se preocupavam com os seus trabalhos, com os seus assuntos mundanos, e que faziam deles os assuntos mais preocupantes do mundo. E ali ia ele. Uma criança que acabara de se corromper, mas continuava a sorrir, estava feliz, sabia que iria para casa com uma pessoa que o amava, que ia puder ficar ao lado da sua irmã. Ao entrar em casa, sentira o cheiro aos doces que ela havia preparado. Dentro da casa encontrava-se uma velhinha, quase da mesma idade da avó, velhinha essa que morreria dois anos depois vítima de alguma daquelas doenças que por aí se apanham, mas que nunca ninguém sabe bem pronunciar. Ele gostava dessa velhinha, era amiga da sua avó e dele. Dera-lhe um rebuçado quando chegara, para ele adocicar a boca, o seu sorriso tornou-se ainda maior. Foi tomar banho, vestira roupas novas, escovara, pela primeira vez desde que a sua mãe morrera, os seus dentes, estavam tão sujos que as suas gengivas sangraram bastante. Depois fora para a cozinha, deliciar-se com um bom queque de chocolate que a sua avó fazia. Sentou-se no sofá juntamente com elas as duas, a ver o novo filme do seu herói favorito, e único conhecido naquela altura, Batman. A sua avó reconfortou-o. Apertando contra o corpo dela, numa tentativa de dizer que tudo ficaria bem, que ele estava seguro, que nada de mal voltaria a acontecer-lhe. O tempo fora passando, ele fora ficando rodeado de livros, que começava a ler aos poucos, tinha aprendido a ler por causa da sua mãe, ele nunca fora à escola, por isso, enquanto a sua mãe vivera, ensinara-lhe um pouco de tudo. O pai fora o 81 responsável por ele nunca ter podido ter uma aprendizagem normal. Como os seus conhecimentos eram suficientes, os psicólogos e todos os restantes, também por causa de o rapaz já ter sofrido demasiado, decidiram que ele deveria começar a frequentar logo a classe que a idade dele propunha, para se integrar melhor. O problema é que ele sempre fora um rapaz que nunca gostara de se dar com ninguém, era demasiado adulto e louco, para se inteirar com aquelas supérfluas crianças. O seu hobby favorito era chegar a casa, e, juntamente com a sua avó ler algum livro em voz alta para a sua irmã. Ou então, pegarem na cadeira de rodas e levarem a irmã a passear no parque, ou sair com a avó, ou com a sua amiga e irem até ao cinema verem alguma obra de arte que estreara. Nada era melhor que tudo isso. Nada era melhor que passar tempo a aprender, a viver no mundo que os livros e os filmes o faziam viver. Todavia, por muito que ele não quisesse, mas a natureza mandava-o, ele não fazia amigos, não brincava com os outros, não convivia com ninguém. Todos o achavam estranho, todos sabiam da história dele, do facto de ele ter matado o seu pai, e de toda a sua trágica infância, mas em vez de isso ser motivo de as pessoas se aproximarem, ainda se afastavam mais, julgavam, maltratavam. Muitas foram as vezes que ele chegara a casa com o corpo marcado, pois os seus amigos, haviam feito tudo aquilo. Mas se as crianças podiam ter uma desculpa, afinal, tudo o que faziam era um retrato de outros, o mesmo não era possível para os professores, que demonstravam claramente o desprezo por aquele rapaz estranho. 82 Apesar de estranho, distraído e impetuoso, ele era o melhor aluno de toda a escola, de toda a localidade, de todo o país. Não se sabia como, mas para ele, aprender era algo que ele fazia com facilidade, com gosto. O rei não lhe crescia na barriga, ele era bom, mas não gostava de ter essa ideia, de se achar que poderia ser maior que qualquer outro, não, era igual a tantos outros. Mas, inteligência não traz felicidade. E quando se tinha um passado como ele, ainda pior. Ele tinha sentimentos, por muito que os escondesse, por muito que tentasse fazer de conta que era um sociopata que havia matado o pai, que vira a cabeça da mãe ser esmagada sobre uma mesa quando ele ainda era pequeno... A verdade é que ele tinha vontade de saber o que era ser uma criança, de saber o que era estar integrado com os grupos de adolescentes, de conviver, de estar com uma rapariga. Gostava de saber o que era por um momento não ser a aberração de que todos falavam. Que todos denegriam com mensagens, com palavras, com pancada. Mas isso nunca acontecera. Era triste. Sim. Era triste. Um ser bom como aquele. Que andava calmamente pelos lugares. Que apreciava a vida, e tudo o que ela lhe dava. Não ter amigos. Não ter namorada. Não ter nada. Somente livros. Somente filmes. 83 Somente conhecimentos teóricos. Por isso, jurara que faria tudo para tentar mudar o mundo por uma vez, para que a sua irmã pudesse viver num mundo melhor, para que todos os seres que fossem como ele, pudessem ser felizes. Uma tarefa difícil, mas não impossível. Vira aos quinze anos a sua irmã a ficar para sempre impedida de voltar a levantar-se. De voltar a poder passear com ele no parque. Podia ouvi-lo, entendê-lo. Mas não podia falar, nem levantar-se daquela cama de novo. A doença ainda era desconhecida, mas havia quem dissesse que era para ela nunca ter de ver o mundo horrível em que vivia, aquelas balelas que são inventadas para se justificarem as maiores atrocidades da vida. Pela primeira vez, ele chorara. Deitara as lágrimas que contivera toda a sua vida cá para fora. Mas jurara que nunca mais voltaria a chorar. Mas isto, fora quando ele tivera quinze anos, muito longe de toda a realidade que ainda estaria para vir... - E assim, fui mantendo o meu sorriso louco, de pessoa que foi enlouquecido pela vida, que perdera tudo... Carly tentara suster as lágrimas depois de ter ouvido toda aquela história, contada com aquela voz de quem não consegue ter as suas ideias no devido lugar, aquela voz de quem sofreu, de quem parece feliz, mas é um caco por dentro. - Uma vez ajudei uma rapariga, por volta da minha idade, que tinha o seu gato ferido. Tratei dele e ele curou-se. Por pouco morreria. Ela gostava de mim, eu dela, demo-nos sempre bem, até ela descobrir a verdade sobre mim. – Terminara ele – E 84 aí apercebi-me, que somos heróis, até alguém nos tornar em vilões, nem todos são capazes de aguentar com a verdade, mesmo que isso os torne infelizes... – O seu sorriso empalidecera. Ela respirou fundo. Por pouco vertia a lágrima que se voltara a esconder no interior da sua alma. Olhou para ele de novo. - Mas, se bem me apercebi essa foi só a tua história até aos quinze anos, o que aconteceu depois? – Perguntara ela curiosa. - Isso, minha cara amiga, terás de esperar que eu te conte outro dia, um bom leitor, sabe que nunca deve ler todo o livro de uma só vez, ou não entenderá a mensagem real que ele transmite. O seu sorriso voltara a ser simples. 85 86 9 - Senhor, mandou-me chamar? – Almiton entrara no gabinete daquele velho homem, com o qual nunca havia falado realmente, nem nunca antes ele o havia chamado. Aquela era uma novidade como ele nunca tivera antes. - Sim, sente-se. Almiton sentira um frio a percorrer-lhe a espinha, apesar de a sala ser quente. Aquela sala era escura, sinistra. Ou pelo menos era o que lhe parecia, pois ela tinha várias lâmpadas cheias de força a fluírem pelo teto, mas parecia que não era suficiente essa força para que a luz passasse pela escuridão que aquele homem transmitia. Sentara-se em frente ao homem. O seu computador estava fechado e sobre o computador encontrava-se um ficheiro. - Caro Senhor Almiton, chamei-o aqui hoje porque precisava de o alertar para algo muito importante, mas espero que isto fique só entre nós... Se mais tarde pensar em falar disto com os Senhores Nobert e Morgan, estarei de total acordo, mas espero que mais ninguém saiba do que aqui será falado. Almiton escutava com todo o cuidado as palavras do velho homem que permanecia com o seu olhar vago fixo nele. Almiton não respondera. Estava demasiado nervoso. Pelo que foi preciso o velho homem voltar a repetir a pergunta, para que ele respondesse que sim, que poderia contar com ele, que nada do que ali fosse falado saíra daquele pequeno ciclo. 87 - Este é um assunto delicado... Como acredito, o senhor tem a plena noção de todos os projetos que este governo criou para poder chegar onde chegou? – A cara de Almiton confirmara – Ao longo dos tempos, fomos falando entre diversos países, os mais poderosos, para criarmos estratégias para podermos dominar todos os países mais pequenos e todas as pessoas... Tudo começou há cerca de vinte anos, em que começamos a criar o stress nos mercados, a levar à falência vários bancos, criamos moedas únicas para serem usadas em diferentes economias, de modo a que só a maior economia pudesse prosperar e todas as outras fossem derrubadas. Não foi simples engendrar todos estes planos, afinal, muitos eram aqueles que lutavam pelos seus direitos. Decidimos então dominar os MIDIA, da melhor maneira possível, para que arranjassem pessoas em que o povo pudesse confiar, pessoas que levariam o povo a acreditar que a melhor solução, era aquela que eles não pretendiam seguir. – Parara um bocado – Claro que isso não chegava, continuavam a haver pessoas que continuavam a pensar por elas mesmas, continuava a haver algo como que se chamava cultura. Aproveitamos os MIDIA, aproveitamos as escolas, as bibliotecas e tudo o resto e começamos a encher tudo de uma imensa merda cultural, que as pessoas iam colocando nas suas cabeças, de maneira a que fosse mais simples dominálos. A ideia parecia ser simples. Estávamos a conseguir dominar bem as pessoas Começamos a criar doenças em laboratório, fazíamos um surto delas para que depois as pessoas ficassem amedrontadas, para que algumas morressem com a maior facilidade possível, para que o medo as invadisse. Fizemos vários ataques terroristas para que as pessoas continuassem a acreditar que quanta mais liberdade tivessem, maior era o risco de serem mortas. Foi uma ideia genial, mas continuava a haver 88 um problema. Ainda existiam pessoas que pensavam por elas mesmas. – Levantou-se e ficou a olhar seriamente para a janela que escurecera – Assim iniciamos um dos períodos mais negros de toda a nossa história... – Mantivera-se calado por algum tempo, como que tentando pensar na melhor maneira de falar de todas as atrocidades – Percebemos que enquanto as pessoas fosse educadas de forma a poderem pensar, enquanto houvessem pessoas suficientemente inteligentes para poderem entender que o que nós fazíamos era errado, existiriam revoluções e manifestações antigovernamentais. Assim, entre todos os países que eram os mais eficazes, criamos o projeto Sophia. O projeto que pretendia prender todos os génios que estivessem ainda a estudar ou não. Dar-lhes a hipótese de trabalharem para o governo, viverem uma vida normal, sem poderem dizer algo contra o governo, ou então morreriam. Poderia parecer que aquela era uma decisão fácil, mas a verdade é que muitos sabiam demasiado, muitos sabiam que acabariam por ter de matar pessoas, compatriotas, então fizemos campos de concentração, onde usávamos vários métodos de tortura para que eles quebrassem e fossem contra tudo aquilo que acreditavam. No início, muitos cederam, mas outros continuaram. E nós continuamos a torturá-los, muitos começaram a morrer, por não aguentarem tamanhas torturas. – Mantinha o seu olhar vago e perdido – Muitos foram aqueles que morreram. Muitos foram aqueles que ficaram completamente perdidos, que acabaram por ter de ser internados em hospícios. Ao mesmo tempo começávamos com o processo de incluir o ADN das pessoas como componente de identificação. A grande base de dados, que dizíamos que ajudaria a resolver crimes, entre outros motivos que arranjamos, assim poderia ser mais simples identificar pessoas que se opusessem ao governo. Mas, para que não 89 houvesse problemas, pensamos que o melhor seria não incluir o ADN daqueles que ainda não tinham sido corrompidos, para que ninguém pudesse alguma vez dar pela falta deles em certos registos, nunca se sabia que informação poderia um dia vazar. – Ele relembrara-se daquele tempo que passara, daqueles negros dias, onde sangue havia sido derramado, mas pelo bem daquelas pessoas, daqueles que agora comandavam todo aquele enorme mundo, antes que toda a humanidade caísse Almiton permanecera a olhar seriamente para o homem que parecia ter mais algo a dizer, mas era incapaz de o fazer. Notava bem que aquela revelação que ele fizer, havia sido algo que ele não poderia crer algum dia vir a revelar. Daquelas verdades que escondemos calmamente no mais profundo abismo que a nossa alma possui, para nunca ninguém ouvir falar de tais atrocidades que cometemos durante a vida e, tanto guardamos, tanto mantemos essas atrocidades para nós, que mais tarde, um dia, contamos a algum ilustre desconhecido sobre a graça de nos tentarmos salvar. O homem respirara fundo. Voltara os seus olhos para Almiton e com a sua boca já cansada de falar, disse: - Nesse ficheiro que vê em cima do computador encontram-se os dados necessário para aceder à base de dados que contém todas as informações sobre esta experiência e atrocidade que o governo foi cometendo. Espero que possa usar essa informação da forma mais correta possível... Entendo que poderá ser difícil para você engolir toda esta informação, mas queria relembrá-lo que, caso esta informação saia destas quatro paredes, ou seja comentada com alguém para além do Senhor Morgan e do Senhor Nobert, eu negarei qualquer envolvimento. Além disso, depois de aceder à base de dados, toda ela será apagada. Estando todas as cópias desses ficheiros colocadas num 90 lugar seguro, onde somente eu poderei chegar, logo não haverá forma de você comprovar que o que eu disse era verdadeiro ou não. O tom voltara a ser o habitual. Frio, sinistro. Com o sentimento de dor, ódio e orgulho. Almiton nunca pensaria em dizer algo contra aquele homem. Nunca ousaria usar qualquer informação que tivesse para ferir a imagem que aquele homem, desconhecido, possuí-a em toda a sociedade. Estaria longe de fazer isso. Acabaria por ser ele o único a sofrer com qualquer tipo de consequências e claro, nunca seria aplaudido como um herói, mas sim, chicoteado como um Cristo. - Compreendo perfeitamente, Senhor! – Pegou no ficheiro. Deu uma pequena vista de olhos, e tentou parecer o mais descontraído que podia, apesar de não ser fácil. Até a sua alma tremia por dentro e pedia para que ele se fosse embora daquele lugar o mais depressa possível. Que ele simplesmente desaparecesse. Que nunca mais ali pusesse os pés e que encontrasse o homem que criara todos aqueles atritos no menor tempo possível. Cada dia que passava era um dia em que ele ia vendo mais nitidamente a sua forca. Pronta. Com um laço já pronto onde ele colocaria o seu pescoço e depois seria içado, enforcado e morreria, lentamente, esperando que alguém fosse cortar a corda e o salvasse. Mas claro, que isso só aconteceria se aquilo fosse um filme, um livro, uma história daquelas que se contam para aí, onde tudo corre bem, onde tudo, simplesmente, é feito de ursos pequeninos e bons, quando na realidade os ursos são animais ferozes e prontos a chacinar os seus inimigos. - Eu soube logo que o senhor compreenderia a gravidade da situação. – Acabou por dizer o homem voltando a sentar-se – Espero que tudo aquilo que está contido nessa base de dados 91 seja suficiente para poder apanhar o homem que fez tudo isto e possa salvar o nosso império. Almiton engolira em seco. Sorrira, anuíra e pensara: O Seu império. O ministério da educação era um lugar como tantos outros, um edifício central, onde tinha a máxima: Re-educação. A máxima havia sido escolhida no início da criação daquele império. A ideia era simples. Definir a ideia de educação, para prevenir que se criassem pessoas que soubessem mais do que aquilo que deveriam saber. Para que ninguém tivesse ideias diferentes daquelas que eram esperadas. O edifício ficava quase no centro da cidade, na ala que ficara conhecida como, A Ruela dos Poetas, uma rua onde apenas as pessoas mais ricas estavam autorizadas a entrar, não se poderia deixar que qualquer um pudesse aceder a grandes peças de teatro. A rua era guardada por vários militares. Era um lugar onde só alguns estavam autorizados a morar, e diziam que era importante manter a segurança naquele lugar, onde, depois de passada essa ruela repleta dos melhores cinemas, bares e teatros, começava a grande avenida dos maiores bancos e onde moravam os grandes diretores. Toda esta rua conduzia então ao centro e ao grande edifício, protegido por mais de trinta militares, munidos com as melhores armas e os melhores treinados. Nada poderia faltar à volta daquele edifício, por isso, existiam lojas com os melhores produtos, as melhores tecnologias, os melhores restaurantes. Tudo isso porque aquele edifício era não mais, nem menos, que o grande Palácio Imperial, como muitos chamavam, apesar de 92 esse não ser o seu nome real, mas também, ninguém sabia qual era o nome original que lhe havia sido posto. Mas, voltando à Ruela dos Poetas e ao edifício que havia sido construído para ser o local onde o futuro da educação e consequentemente da humanidade era decidido. Eram imensas as pessoas que trabalhavam naquele lugar. Procurando quais seriam as melhores matérias a serem lecionadas, quais seriam as obras que deveriam ser proibidas de se encontrarem expostas nas bibliotecas. O que não deveria ser dito pelos professores nas aulas. Muitas pessoas passavam o dia a ler todos os ficheiros que continham toda a vida de cada professor para saberem se havia algo no seu passado que pudesse ser um fundamento para se retirarem as suas licenças de ensino. Mas se antes de todos aqueles atentados tudo aquilo era levado a um extremos, depois de os ataques acontecerem tudo ficou muito, mas muito pior. Qualquer professor que fosse apanhado nos manifestos perdia automaticamente a sua licença. Qualquer aluno que pudesse representar uma ameaça era preso. Qualquer livro que pudesse conter qualquer ideia de uma revolução era banido. Qualquer autor que tivesse na sua biografia alguma luta, era retirado do programa, e deixado no esquecimento. Gosh era o responsável por toda a educação daquele país. Fora um dos melhores alunos de sempre. Muito dado à cultura e a todas as ciências. Um aluno exemplar, como muitos professores lhe haviam chamado. Tinha cerca de cinquenta anos naquela altura, todavia mantinha-se bem conservado. Usava óculos, era magro, alto e tinha o cabelo bem aprontado. Andava sempre bem vestido, aquilo que se pode esperar de alguém que 93 acabara por estudar numa universidade privada, mas a melhor do mundo. A verdade era que Gosh nunca fora muito inteligente, mas sempre fora muito metódico. Passava os dias a estudar e conseguia decorar muito bem tudo aquilo que era preciso. Todavia, a sua pouca inteligência, mas os seus métodos faziam com que ele facilmente conseguisse dar a volta por cima, por isso, era sempre o melhor. Além disso, nunca gostava de ficar atrás de ninguém. Apesar de ter uma infância pouco rodeada de amigos e uma juventude mal aproveitada, ele mal acabara o curso conseguira-se integrar numa grande empresa, e aos poucos, fora calcando aqueles que se encontravam acima dele e tornara-se o dono daquela empresa. Num golpe que se poderia considerar desertor de qualquer tipo de humanidade. Mas, fora graças a isso, que fora logo convidado para aquele cargo quando tudo começou a acontecer. Quando chegou a hora de acabar com tudo aquilo que pudesse acabar com pessoas como ele, ricos, poderosos, gigantes. Ele tinha sido dos primeiros a sugerir que a escola fosse o primeiro palco para se controlarem todas as mentes. Que as grandes obras de arte deveriam ser abolidas. Para o ajudar, sugeriu que o responsável pela cultura deveria ser o seu único amigo, Hallen, um rapaz que mal entendia o que era cultura, mas que tinha os mesmos princípios que ele, que gostava de se manter sempre no topo, como tal, faria tudo para aquele império nunca cair. E assim, sempre conseguiram manter tudo nas rédeas, tudo como era previsto, sem grandes problemas, simplesmente quem tinha ideias que não eram consideradas como boas para o império, ou eram presas, ou sofriam a remodelação mental necessária. 94 Mas naquela altura tudo começava a mudar de novo. As câmaras e os microfones colocados em todas as escolas revelavam que todos os alunos começavam a falar de um tempo novo que estaria para vir, de um salvador que em breve os libertaria das opressões do governo. A criatividade começava a sobressair de novo. Fazendo com que se começassem a fazer obras que iam para lá dos limites impostos pelo governo. O pior era que o governo não poderia fazer muito. Só poderia retirar os principais de jogo, mas mesmo isso não servia. Desde que aquela declaração havia acontecido na televisão, tinham sido colocados mais de trezentos mil alunos em psicólogos por comportamentos impróprios. Gosh e Hallen tentavam chegar a alguma ideia que pudesse por fim àquele novo ato de uma peça de teatro que começara mal, mas que começava a tomar o texto correto para ser considerada uma obra prima da arte e uma maneira de tornar aquela catástrofe, num final feliz. A ideia era criar alguma obra que revelasse que o poder deve pertencer àqueles que realmente o têm, não a qualquer mundano que conta os trocos para comprar pão, pois ele só saberá comprar pão, não saberá dominar um país como aquele. Mas, a ideia logo fora posta de parte. Demoraria tempo a ter tudo isso pronto, demoraria tempo a poder-se criar algo como isso, além disso, nunca se saberia ao certo aquilo que poderia ser apreendido de um livro desse estilo. Pegar em obras estranhas seria algo que não se poderia fazer, afinal, quase todas essas obras falavam contra o poder, tinham mensagens sublimares que levariam as pessoas a pensarem ainda mais a mudarem tudo aquilo que era aquele império. 95 As noites e os dias iam tornando-se iguais, enquanto eles não conseguiam pensar em nada de novo. Continuavam a tentar atenuar tudo com os velhos métodos de sempre, mas não sabiam por quanto tempo isso iria ser possível, tinham de pensar em algo depressa, tinham de fazer algo que não demorasse muito tempo e que pudesse modelar as mentes o mais depressa possível. Enquanto no ministério tudo isto se passava, e o sono desaparecia da mente daqueles dois homens, o vilão de toda esta história permanecia em casa. Sabia que Carly se encontrava na cozinha, tinha decidido fazer um antigo prato que a mãe lhe ensinara, um prato que ela tinha saudades de provar. Ele estava no seu quarto. Sentado num pequeno banco. À sua frente encontrava-se uma bateria que ele tinha há algum tempo. Peça essa que ele havia roubado de uma loja de música antiga. Agora, até para se ter uma peça daquelas, era necessário ter uma licença. Ele olhava para o relógio, como se esperasse por uma hora certa. O ponteiro dos segundos ia mantendo o seu ritmo natural, o ritmo que sempre tivera e, num momento, começara a leve batida de uma velha música que ele sempre adorara. Ele começara a acompanhar a música com o ritmo da sua bateria, estando atento para que todas as batidas fossem corretas. Ao mesmo tempo que a música começara a tocar na casa dele, também por toda a Ruela dos Poetas isso se sucedeu. - Que raio se passa? – Reclamara Gosh, levantando-se da sua mesa e olhando para a janela. Voltando depois a olhar de novo para Hallen. Hallen arguíra com os ombros. 96 - Load up on guns, bring your friends. It's fun to lose and to pretend. She's over bored and self assured. Oh, no, I know a dirty word1 – A voz de Kurt Cobain ia sendo perseguida pela voz daquele doido que ia despejando a sua raiva e a sua ideia sobre os metais e peles da bateria - Hello, hello, hello, how low. Hello, hello, hello, how low. Hello, hello, hello, how low. Hello, hello, hello... – Todas as pessoas ouviam a música que vinha de todas as partes da rua e que sobressaía para o exterior. Todos tinham os olhos postos naquela rua. A música intensificava-se perto do ministério da educação. Ninguém sabia o que se passava. Ninguém sabia o que dizer, o que fazer. Muitos nem haviam ouvido sequer aquela música em toda a sua vida. Os militares aproximavam-se do Ministério, corriam por toda a ruela, por toda a cidade. As pessoas seguiam os seus passos para saberem o que se passava. No interior do ministério apagavam-se todas as luzes. Ele intensificava a sua batida, a música continuava a tocar livremente, criando o apetite de saber o que se iria passar. A batida da bateria tornara-se intensa e então viera a batida final. – With the lights out it's less dangerous, Here we are now, entertain us... I feel stupid, and contagious...2 – E toda a ruela começou a explodir, ao ritmo da música. Todos ouviam. Todos sentiam medo. Todos olhavam para aquilo como mais uma manifestação feita por aquele que eles não conheciam, mas que lhes dissera que poderiam continuar a lutar. 1 Smells Like Teen Spirit, Nirvana; Nevermind, 1991. 2 Carrega as armas. Traz os teus amigos. É fácil perder e fazer de conta. Ela está chateada e confiante. Oh não, eu sei um palavrão. Olá, olá, olá, quão baixo... Com as luzes apagadas é menos perigoso. Aqui estamos, entretenhanos. Sinto-me estúpido e contagioso. (tradução literal) 97 As pessoas permaneciam a olhar para todo aquele espetáculo de fogo de artifício, enquanto aqueles que se encontravam dentro dos edifícios que explodiram e à sua volta sentiam-se a serem consumidos pelo fogo, enquanto ouviam a música que continuava a tocar como última prece. Todo o edifício estava destruído. A frase Re-education, por mera obra do destino, nada que a nossa personagem principal houvesse antecipado, fora destruída somente quando todos os olhos e câmaras estavam postas nela. Como que dizendo que era altura de tudo aquilo ser apagado. Muitos sorriam. Outros choravam. Alguns não sabiam o que deveriam fazer. Foi então que, no ecrã principal que estava naquela avenida principal surgira de novo a cara daquele que lhes trouxera a esperança. - Bom-dia meus caros amigos... – O seu sorriso era ainda maior que antes. Ao mesmo tempo todas as televisões voltavam a demonstrar o mesmo – Espero que esta pequena obra prima não vos tenha assustado. Mas era necessário deitar abaixo este velho edifício de opressão que não tem feito mais senão retirarvos tudo aquilo que alguns deixaram. Se pensam que os vossos filhos vão para a escola para aprender, estão enganados, a escola diz aos vossos filhos que são incapazes de serem alguém na vida. Quanto mais inteligente o vosso filho for, mais depressa a escola o consegue excluir de qualquer maneira para prevenir que ele alguma vez faça algo contra este governo. Está na altura de agirmos. Espero que este dia fica marcado como o dia em que passamos a ser de novos livres de conseguirmos a nossa própria educação. A educação que todos merecemos. – Sorrira de novo – É tempo de se encherem as estantes com livros que realmente ensinam-nos algo e não livros que nos degeneram o nosso 98 cérebro e o tornam num órgão que nada mais serve senão para repetir depois deles: Eu sou livre. Há alguns séculos a igreja destruí-a todos os livros que eram considerados como caluniadores contra a sua imagem, ou que iam contra tudo aquilo que ela pregava. Mas faziam-no à frente das pessoas, para elas saberem perfeitamente que deveriam ter medo deles. Hoje faz-se o mesmo, mas em salas fechadas, onde ninguém o possa ver, para que nunca ninguém acredite que aquele homem que nos fala e diz ser o nosso líder, é na realidade o dono da quinta e nós somos os porcos que ele alimenta com o que pretende. – Rira-se das suas próprias palavras – Penso que volta a ser altura de os livros, os filmes, os teatros, as músicas, que são o único feitiço capaz de nos transformar em sábios, devem ser libertados, para que possamos criticar e aprender a sermos humanos e não meros porcos que, quando chega a nossa hora, somos mandado para um matadouro para depois sermos servidos à mesa daqueles que nos podem comprar. Pensem um pouco em tudo aquilo que foi dito. Começará a chegar às vossas casas pequenos livros que são obras dignas de serem lidas, muito ao contrário de tudo o que hoje veem... Espero que gastem um pouco das vossas medíocres vidas a lerem aquelas palavras que realmente significam algo... Lembrem-se, deve ser o povo a Reeducar o seu governo, não o contrário. – A imagem dele congelara. Todos se mantinham a olhar atentamente para a imagem daquele homem com o olhar louco e um sorriso vermelho pintado na cara. Ouviu-se um bater de mãos, que aos poucos se fora prolongando ao longo de toda a avenida. As pessoas aplaudiam o que havia sido dito. Muitos começavam a gritar, a levantar os seus punhos cerrados no ar. A revolução teria começado? 99 O Presidente atirara o seu copo de vinho contra a parede, este escorreu como se fosse sangue. A raiva tomara-o. Sabia que aquele homem havia trazido esperanças novas ao povo. Que voltara a atacar um dos principais símbolos do país sem que ninguém fosse capaz de o impedir, mais uma vez o governo tornara-se fraco perante a vontade de um simples homem. Ele pegara no telemóvel que tinha na mesa quadrada que existia ao lado da sua poltrona. - Quero que o sinal de emergência seja cortado. Já! – Ladrara ele como nunca havia ladrado aos ouvidos de Morgan. Este estremeceu. Ainda nem havia falado e já ele tinha desligado. Morgan sabia que o fim estava próximo. Que aquilo culminaria numa guerra sem precedentes e sem escrúpulos. Ele mesmo estava na rua. Via o povo a andar de uma lado para o outro. Crianças a sorrirem. Homens a gritarem livremente. Mulheres a abraçarem as suas crianças e a brincarem com elas. Morgan sabia que aquelas pessoas haviam provado algo que não iriam voltar a abrir mão facilmente. A Liberdade. 100 10 Almiton continuava a ler aquelas folhas que havia imprimido depois de aceder à base de dados. Eram milhares de folhas que aos poucos iam revelando as mais tristes histórias, alguma vez contadas, sobre aquele império. Ele nunca conseguiria imaginar que alguma vez algo tão desconcertante como aquilo pudesse ter acontecido. Eram tamanhas as artimanhas que haviam sido criadas para torturar aquelas pobres pessoas, simplesmente por que elas sabiam mais do que o que deviam. Todas elas estavam agora a trabalhar em alguns cargos pequenos, mas que eram os pilares daquela sociedade. Outros estavam mortos. Os seus corpos haviam sido queimados, como se fossem papéis que nunca devessem ser lidos. Outros tinham conseguido fugir, mas nunca se soubera para onde. No meio daqueles papéis estaria a foto, o rosto, o nome, daquele que havia feito tudo aquilo. O nome daquele homem que era o responsável por aquele tremendo atentado contra o ministério da Educação e toda a parte cultural unicamente destinada aos mais avantajados economicamente. Os ricos tinham uma educação diferente dos restantes outros. A reunião que fora convocada para serem dadas as últimas notícias e para serem encontrados culpados havia sido como todas as outras que haviam existido desde que aquilo começara, com a exceção de que desta vez havia menos duas pessoas na mesa que na última reunião, aliás, havia menos três 101 pessoas, o velho homem não viera à reunião, sem nenhum motivo aparente. Almiton mal poderia ter esperado que a reunião terminasse. Estava farto de estar naquele cubículo e queria continuar a sua leitura por entre aqueles papéis que iam contando a história mais sinistra daquele país. Era pena que aquela história nunca viria a ser escrita em nenhum livro dos que nos dão nas aulas. Aqueles ficheiros iam revelando de forma detalhada tudo aquilo que havia acontecido, milhões de histórias que cada um dos prisioneiros havia vivido, bem como o porquê de ter sido escolhido a ingressar nos campos de concentração. Haviam diversos campos espalhados por todo o país. Não havia nenhum que fugisse às regras, por isso, era muito complicado encontrar um ponto de inicio, o melhor que ele poderia fazer era começar por ler os relatórios que envolviam a história de todo o projeto, escritos à mão por alguma pessoa que pusera tudo numa forma informal e pelos diversos desgastes da tinta e do papel, notava-se que aquele documento havia sido escrito em alturas diferentes. PROJETO SOPHIA Hoje foi apresentado o Projeto Sophia. O objetivo do projeto é remover qualquer tipo de obra de cultura que possa fazer as pessoas pensarem por elas mesmas, ou duvidarem de qualquer tipo de ação do governo. 102 A mesa ficou em silêncio pelo tempo que decorreu a apresentação. Ninguém parecia saber que partido tomar. Era como se ninguém soubesse se aquele seria a melhor atitude a tomar. Por muito que as pessoas não liguem à cultura, era muito complicado declarar a abolição da maior parte das obras de arte hoje conhecidas. Para não se falar de que as pessoas começariam a tomar isso como censura. O Projeto Sophia ficara portanto suspenso até ordem nova. O Projeto Sophia voltara a ser discutido. Desta vez não se decidiu começar por retirar todas as obras que pudessem ser perigosas de uma única vez, mas sim aos poucos. A ideia é simples. Vamos começar por todas as editoras de livros, proibindo que elas possam fazer novas edições de certas obras e a partir de agora todas as obras serão visualizadas primeiro pelo governo que irá entender se as obras recentes poderão ser ou não publicadas. Para isso, todos os membros do governo e as famílias que o dominam irão comprar todas as editoras, para que o processo seja o mais simples e silencioso possível. O Projeto Sophia tem corrido da melhor forma possível. Ninguém aparenta suspeitar de nada. Os principais livros que podem criar atividade contra o governo 103 desaparecerão das principais bancas. A ideia é começar a alargar a ideia a bibliotecas e escolas. Começa hoje também a seleção de filmes que serão retirados de todas as redes e de todas as lojas. Um ano passou desde que o Projeto Sophia foi aprovado. A taxa de pessoas com pensamento livre parece ter abrandado. Aos poucos menos e menos obras de culto têm sido desenvolvidas, assim como a sua procura tem diminuído. O Projeto segue agora com a ideia de convencer autores, argumentistas, atores, realizadores e empresas das mais importantes e conceituadas a trabalharem para apenas um grupo privado de pessoas. Todos os grandes contemporâneos do pensamento foram corrompidos. Não fora fácil e o processo demorou alguns meses, mas penso que conseguimos chegar a um ponto crucial na nossas demanda para desencorajar as pessoas a revoltarem-se. O Projeto continua operacional até que todos os principais assuntos do governo estejam tratados e não haja mais nenhum aspeto com que nos preocuparmos. Até à altura foram gastos cerca de 3 biliões, mas nada de muito preocupante pelo que entendemos. Cada vez mais Baleias se têm juntado a nós e investido dinheiro. Em breve teremos o projeto terminado. 104 Hoje, durante a reunião surgiu um problema exposto pelo ministro da educação, de que um aluno havia feito um manifesto onde expunhas as ideias sombrias que o governo estava a criar e o futuro que o povo teria nesta nova era capitalista. A mesa parecia ficar aterrorizada com a capacidade que o rapaz tivera. Era aluno de uma universidade conceituada, mas ninguém parecia acreditar que alguém com o seu passado pudesse ter desenvolvido tal teoria. Decidiu-se que ele deveria ser preso e interrogado, para se saberem de onde surgiam as suas ideias. Ao fim de algumas horas de interrogatório e tortura o rapaz acabara por ceder, afirmando que as ideias haviam surgido durante a conversa dele com diversos dos seus amigos. Ao que parecia vários alunos têm-se juntado a ler diversas obras de arte e a verem filmes de culto. E reparam que de um momento para o outro várias das principais obras de arte tinham desaparecido e que os vários governos se começavam a monopolizar, usando diversos esquemas económicos. Ele morrera mesmo antes de dizer o nome daquele que havia apresentado a ideia que vinha exposta no manifesto. 105 O Projeto Sophia irá ser alargado a todas as Universidades e Escolas, com o intuito de todos os alunos que sejam considerados inteligente e desertores serão aprisionados e interrogados. O nome código da operação ficara conhecido como operação Atena. Devido à inúmera quantidade de pessoas que foram colhidas durante a operação Atena, ficou decidido que seria necessário serem criados campos de concentração com escolas especiais e outros métodos numa tentativa de conseguir tornar estas pessoas fulcrais para o desenvolvimento do país, em apoiantes do estado. Os que recusarem serão mortos. Começa a ser cada vez mais complicado manter o Projeto Sophia secreto. Há pessoas que começam a notar e em breve corremos o risco de que todo ele seja exposto. Têm sido criados planos de recurso que nos permitam controlar toda a atividade que possa sugerir que as pessoas se pretendem revoltar. Todos os que foram colocados no grupo de pensadores têm sido investigados e intimidados para que trabalhem sobre as ordens do governo de modo a que nenhum informação ou ideia possa vazar. 106 Tem sido complicado convencer alguns, pelo que já foi necessário usar a força. Alguns acabaram mortos no confronto. O Governo viu obrigado a incluir os serviços secretos, para impedir que mais informação possa vazar e para que todos aqueles que julgamos necessário que desapareçam, o façam sem levantar suspeita. Os corpos têm sido incinerados. Está a ser preparada a nova lei que obriga a que o ADN de todos seja registado para que seja mais fácil identificar no futuro aqueles que se erguerem contra o nosso império. Os que foram capturados no Projeto Sophia e que se encontram ainda dentro dos campos NÃO CONSTARÃO NO REGISTO DE ADN para impedir que alguém note a falta deles. Foi dado início à construção de uma parte da cidade, vigiada, onde todos os grandes edifícios constarão nela, para impedir que qualquer ideia, ou qualquer mente brilhante, se cruze com qualquer pessoa do povo. Toda essa parte da cidade será rodeada por militares, e dentro dela constarão todas as sedes de empresas e bancos, escolas para os mais ricos e centros científicos e políticos, teatros, cinemas, bibliotecas e escolas livres. Para que ninguém suspeite muito. Edifícios como cinemas, teatros e bibliotecas também serão construídos fora 107 desta parte da cidade, contudo neles não constarão as obras que não tenham sido aprovadas pelo governo. As escolas da parte negra da cidade, assim denominada à área reservada ao povo, seguirão um novo programa, para não incentivar qualquer novo ser a seguir a ir contra o ser governo. EM BREVE TUDO ISTO TERÁ TERMINADO. A construção da outra parte da cidade está praticamente concluída e já começam a ser alojados os nossos, a cidade parece estar operacional e segura, perfeita para que possamos manter este governo estável e sem qualquer pretexto para revoltas. Os campos de concentração continuam operacionais... Ainda há demasiados que não cederam às suas convicções. Têm sido dias difíceis os últimos... Não tem aparentado que todos tenham aceite da melhor maneira a ideia de que o PROJETO SOPHIA tem de conseguir ter resultados o mais depressa possível, mas é possível que dentro em breve alguma informação seja exposta. Todos os envolvidos que não tenham nenhuma relação principal com o governo serão igualmente mortos, juntamente com aqueles que se recusarem a ceder. 108 O processo de fecho de vários dos campos de concentração foi iniciado à meia-noite do dia de hoje. Não têm havido para já nenhum problema. Aqueles que se revelaram serem potenciais seres necessários à manutenção deste império. Todos os restantes foram mortos e os seus corpos incinerados. Ficaram apenas SEIS dos cerca de 100 campos de concentração ainda OPERACIONAIS. Esperemos que consigamos corromper todos os génios que ainda forem possíveis. Têm surgido alguns problemas num determinado campo de concentração. Pensa-se que as alguns deles se começam a comportar como loucos, com alucinações e outros problemas mentais. Não se sabe ao certo o que se passara, mas ao que foi evidenciado, a água possuí-a uma substância estranha que fez com que eles ficassem assim. Não se sabe ainda como tal se sucedeu... Ainda se procura por saber se será possível salvar alguns dos que lá se encontram. Após a cidade já construída e tudo avançar corretamente. Decidiu-se que estava na altura de destruir tudo aquilo que ficou para trás. Em consequência, o campo, onde 109 o problema com a água aconteceu, será destruído e todos as pessoas que se encontravam no seu interior serão mortas. Todos os campos serão repensados e serão construídas escolas para o povo. A ideia é apagar da memória que estes edifícios existiram e mudar por completo tudo o que havia à sua volta, para que nunca ninguém, nem mesmo aqueles que foram vítimas do massacre, possam, de alguma maneira, denunciar tudo aquilo que se passou nestes últimos anos. Iniciou-se por último a OPERAÇÃO NERO. Todos os documentos relativos ao projeto. Todos os operacionais que são dispensáveis, assim mesmo como alguns prisioneiros que não se juntaram às ideias governamentais serão totalmente incinerados. Foi uma acesa discussão aquela que aconteceu enquanto se pensava sobre qual seria a melhor ideia para se terminar com este projeto, mas não há melhor ideia que deixar o fogo queimar todos os pecados que ali foram cometidos. A cidade construída ficará no maior estado de segurança e em alerta para evitar que qualquer informação vaze e para evitar que qualquer pessoa do povo possa entrar no seu interior e descobrir os tesouros que aqui se encontram. 110 O Hospital principal CONTINUARÁ NO EXTERIOR da parte rica da cidade, para que não seja necessário que ninguém entre no interior da cidade por qualquer motivo. Continuamos com o projeto Sophia operacional, mas apenas no escuro, para o caso de ser necessário limar algumas arestas. Ninguém parece ter a certeza de se toda a guerra contra a cultura já terminou, como tal, acharam melhor que o Projeto ainda de MANTIVESSE NO AR. Continua-se ainda a ponderar o que fazer com os novos casos que venham a surgir num futuro próximo. Ninguém parece ter a noção do que se passara durante todos estes anos. As escutas e os nossos bufos revelam que ninguém tem criticado a construção da nova cidade. Há algum barulho de fundo, mas nada de muito preocupante. Ao que se sabe, as críticas diminuíram a pique desde que este projeto se iniciara. Continua a haver a pergunta sobre o que se deverá fazer quando algo vier ao de cima. Temos de ter um plano de evacuação para que não corramos nenhum risco de alguma vez perdermos tudo aquilo que construímos. Temos a plena noção dos pecados que cometemos, e que Deus nos perdoe, mas não podíamos deixar que estes ignorantes, pobre e excrementosos seres o futuro de toda a humanidade. 111 Aguardamos para saber os resultados finais de todo o projeto, mas podemos concluir que TUDO FOI DE ACORDO COM O PRETENDIDO. Almiton acabara de ler todo aquele relatório e sentira vómitos a emergirem pelo seu corpo. Ao lado do relatório encontravam-se diversas fotos de corpos incinerados e dos vários lugares onde os campos se encontravam, entre muitos outros registos de tudo aquilo que se havia passado. Almiton coçara os olhos. Estava cansado e sentia-se culpado de tudo aquilo que acabara de ler de alguma forma. Apesar de nunca ter vivido fora daquela zona rica da cidade, nunca ouvira aquelas histórias, aquilo deveria ter ficado de bem guardado no fundo de algum cofre. Cofre esse que talvez tivesse sido bom nunca ter sido aberto. Reconfortara-se na sua cadeira. Abrira a gaveta do topo da sua secretaria. Retirara a garrafa de gin que lá se encontrava. Naquele momento precisava de um copo de algo bastante forte para acalmar os nervos. Para que a sua alma limpasse os pecados que cometera... Não conseguia entender ao certo aquilo que sentia naquele momento. Aquela repulsão que tinha. Tentara por um momento fechar os olhos mas a imagem do massacre voltavam. Ele sabia que tinha de fazer algo... Por um lado tinha pela primeira a sensação de que deveria dizer a verdade, mas por outro, sabia que se o fizesse toda a sua fantástica vida que tinha, tendo em conta que viver no meio do povo era viver de forma miserável, terminaria. 112 Perderia todas as suas regalias. Teria de viver constantemente com o medo de poder ser acusado de algo que o fizesse desaparecer, como muito se via nos últimos tempos, para não falar, que isso seria mesmo o que iria suceder, afinal, ele já sabia demais. Não, não podia deixar que toda a sua vida fosse destruída por causa de algo que se passara no passado. Tinha de destruir por completo aquele ser que pretendia derrubar aquele enorme império. Sim, isso poderia significar que os restantes iriam continuar a sofrer, mas que importava, o importante era que ele estivesse e vivesse bem. Era muito simples fechar os olhos e fazer de conta que nada se passava. Sim, isso era o mais fácil. Manter tudo como estava. Não andar aí em revoluções que não serviriam de nada. Carly não soubera até ao dia seguinte aquilo que ele havia feito. Até ligar a televisão e ouvir a notícia de que grande parte da zona rica da cidade havia sido destruída, enquanto uma estranha música tocava. E saber que a pessoa que se encontrava na mesma casa com ela havia feito de novo declarações sobre o que se passava e o que iria fazer. Ela não sabia ao certo como se sentia naquele momento. Mas tinha a certeza que não estava triste com tudo o que se passara. Não criticava a atitude dele. Até, de alguma maneira, ficara feliz por saber que, aquela área de opressão havia sido destruída. Todavia não conseguia garantir que assim era. Não conseguia garantir que aquilo que realmente sentia era ou não gosto pelas atitudes que ele começava a tomar. 113 - Vejo que já sabes da minha atuação... – Ele surgira da parte de trás do sofá. O seu mesmo ar de sempre. Um ar descontrolado, simples e totalmente inerte de qualquer compaixão ou sentimento. Carly ficara por um momento calada, pensando nas palavras que deveria dizer. Pensando em tudo aquilo que se pensara. Perguntando-se a si mesma o que ela achava sobre tudo aquilo. Sobre tudo o que se passara. Por fim, depois de algum tempo, onde nem ele disse nada, acabou por suspirar fundo e dizer tudo aquilo que deveria dizer. - Sim... Não sei ao certo se estou a favor da tua atitude, mas também não poderei dizer que sou contra... A verdade é que já não tenho a certeza daquilo que penso. Não sei ao certo se estou a ficar mais fria, ou se simplesmente começo a perceber realmente o que é correto... - Entendo perfeitamente esse sentimento. É normal que surja nesta altura. Mas quero que saibas que, caso necessites de algo, que o que te disse sobre poderes ir embora, continua a ser verdade. Não te impedirei de saíres por aquela porta... Ela pegara nas mãos dele que pela primeira vez tremiam. - Penso que irei ficar... – Olhou-o bem nos olhos que permaneciam vagos – Achas que serás capaz de mudar o mundo? Ele riu-se de novo. O riso de quem não podia acreditar naquela pergunta que ela lhe fizera. Todavia não era um riso trocista, era sim um riso de quem pretendia libertar os seus nervos. - Não há nenhuma ideia política, livro ou qualquer manifestação que possa mudar o mundo por completo... Todavia, não significa que devemos deixar de tentar... 114 As palavras deles caíram com uma força imensa na sua alma. Sentira algo a emergir pelo seu mundo, pelo seu corpo, pelos seus olhos. Algo naquelas palavras fizeram-na repensar em tudo o que havia feito ao longo da sua vida, ao longo de todo o tempo que tivera sem viver. Permaneceu em silêncio. Ainda não tinha a certeza de tudo aquilo que se passara. Algo começava a nascer dentro dela, como uma flor que nasce quando os sol de primavera começa a abri no céu. Se calhar era isso, aquilo era o sol que ela nunca vira. 115 116 11 Era difícil saber o que se passava na mente dele. Pelo menos saber o porquê de ele se encontrar a sorrir, quando estava ali, na cozinha, sozinho, sem ninguém à volta. Talvez fosse a música que se encontrava a tocar levemente nas colunas. I don't care if Monday's blue Tuesday's grey and Wednesday too Thursday I don't care about you It's Friday I'm in love.. Levou dois dedos ao frasco de gelado e lambeu os dedos deliciando-se com o sabor a chocolate, aumentando o seu sorriso, como se fosse uma criança que fica contente com pequenas coisas. Carly que observava ao longe aquele momento rira-se fortemente, o que fez com que ele reparasse nela. Ele mantivera o seu olhar vago e anormal. - Que se passa? – Indagara ele sem conseguir entender o porquê de ela se estar a rir. - Fizeste-me relembrar de quando era mais pequena e fazia exatamente isso que tu estavas a fazer. 117 - Queres um pouco? – Colocara o frasco de gelado mais próximo dela e olhara intensamente para os seus olhos azuisesverdeados. Era informal ela fazer algo como aquilo. Nunca se lembrara desde de crescer de alguma vez fazer algo como aquilo. De estar com alguém tão informalmente. Mas de certa maneira era divertido estar daquela maneira. Ele poderia não ser a pessoa com quem ela alguma vez imaginasse estar, mas tinha de admitir que começavam a ser os melhores momentos que alguma vez havia vivido, apesar de tudo o que se passava à sua volta, ele era sem dúvida algo diferente. Levou também dois dedos ao frasco, amarrados a eles veio uma enorme quantidade de gelado de chocolate que ela também levara à boca e deliciara-se com o doce sabor que lhe surgira nas sua língua. Um sabor que a levara de novo aos momentos em que era criança, em que tudo era diferente. Lembrara-se da sua mãe, que sempre a ensinara da melhor maneira. De se encontrar muitas vezes às cavalitas do seu pai, que parecia um enorme cavalo, daqueles que transportam com coragem as frágeis princesas a mando do seu príncipe. Só que desta vez, não era o doce sorriso da sua mãe que ela tinha à sua frente. Nem o olhar forte do seu pai. Era sim, aquele olhar subtil, vago, feliz daquele rapaz e o seu sorriso doido. Mas isso já não era algo mau, era sim algo que a fazia sorrir por alguns momentos, sem ela saber bem como. Dressed up to the eyes It's a wonderful surprise To see your shoes and your spirits rise 118 Throwing out your frown And just smiling at the sound And as sleek as a shriek Spinning round and round Always take a big bite It's such a gorgeous sight To see you eat in the middle of the night You can never get enough Enough of this stuff It's Friday I'm in love... A música era animada. Aquele momento tornava ainda tudo mais alegre. Esquecera-se tudo o que se passava à volta. Todos os males que haviam acontecido, a vida é um infinidade de acontecimentos negativos que todos temos de viver, para entendermos aquilo que realmente de bom nos acontece. Sentaram-se os dois de novo em torno do sofá, desta vez escolheram um filme qualquer. Sem se preocuparem com as mensagens, com a arte, com nada daqueles pequenos atributos que são meramente classificativos. Aproveitaram aquilo que naquele momento realmente importava, a companhia de um e de outro. A noite já ia longa, mas o sono não parecia querer tomálos. Iam comendo aqueles pequenos doces que ele havia preparado, para aproveitarem mais um bocado dos pequenos pedaços da vida. O filme decorrera. Carly acabara por ceder ao sono, que a impedira de ficar mais tempo a aproveitar todo aquele momento. 119 A cabeça dela caíra no ombro dele e lá fizera almofada, para que aquela pequena criança inofensiva, pudesse descansar calmamente. Ele sentia o coração a palpitar muito depressa. Nunca havia sentido aquilo, ele nunca havia sentido nada na realidade. Nada daquilo que as pessoas falavam... Nenhum daqueles sentimentos descritos em livros, filmes ou em palavras... Nada... Fora sempre frio, insensível... louco. Aquela era a primeira vez que o coração batia daquela maneira. De uma maneira estranha, incoerente, tão louca quanto o que ele era naquela altura. O porquê? Ele não sabia... Apenas era alguma loucura. Algo o enlouquecia e fazia com que ele começasse a palpitar em suplicas incessantes e incoerentes por algo que estava próximo dele. Algo que ele podia sentir, ouvir, cheirar, imaginar... Não era algo... Era alguém... Eram aqueles olhos azuis, aquela pele suave, aquele sorriso infantil e belo... Aqueles cabelos ondulados de forma calma... Era... Era... Era tudo, o nada, o talvez, o amanhã, o hoje, o ontem, a dor, a alegria, a insanidade, a plenitude... Por um momento ele olhou para ela que permanecia inquebrável no seu sono, assim como o seu sorriso se mantinha calmo, belo, insano. Aquele sorriso que dizia que tudo estava bem, que tudo ia acabar de forma correta, que nada mais existe em nós que não a felicidade que nos é dada por aqueles que aparecem quando perdemos o controlo da nossa mente e dos nossos preconceitos. Estava tudo bem, o tempo avançava no seu normal ritmo, o corações é que não... Sentia... Sentia... Nem ele sabia o que sentia ao olhar para aquela terna face daquele pequeno ser que lhe aparecera do nada... Obra do destino, de Deus, dos homens, dos incoerentes seres que inventam algo que não existe... Respirara fundo, tentando conter... Bem, nem ele 120 poderia saber o que estava a tentar conter... Apenas sabia que era algo que lhe emergia pelo corpo, pelo sangue, pela sua mente... Por um momento sentiu tudo aquilo que nunca havia sentido... Por um momento sentiu tudo aquilo que deveria sentir... Que pelo menos uma vez na vida qualquer ser humano, por mais negro, podre ou amargo que seja deve sentir... Por um momento soube o porquê de querer continuar com o seu plano... Não havia nada melhor que lhe poderia oferecer... Estava tudo escuro, excepto aquela pequena mesa de madeira gasta, dura, fria, com um tom cinzento, fraco, esbatido... Sobre ela pousava a cabeça de sua mãe... As lágrimas escorriam pelos seus olhos como se rezasse uma última prece, como se pretendesse que aquelas lágrimas pudessem limpar aquele lugar de todos os pecado. Sobre a sua cabeça encontrava-se uma mão que parecia ter garras no seu final... Como se das de um demónio se tratassem. Ele permanecia ali. Sentado no chão. Com medo... Olhando para os doces olhos daquele ser que lhe havia dado a vida... Aquele ser que ele chamara de mãe... Que lhe dava beijos sempre que ele chegava a casa... Que pegava nele ao colo... Que o emaranhava nos seus braços e prometia que tudo iria ficar bem... Que lhe dizia para ele lutar contra os demónios, contra os monstros que se encontravam de baixo da sua cama... Aquela pessoa que sempre que ele lhe perguntava como é que as pessoas um dia se podiam unir, se eles têm deuses tão diferente; lhe respondia: Podemos ter deuses diferentes, filho, mas todos temos os mesmos demónios. 121 Ela olhara para o seu pequeno ser uma última vez. Apesar do medo, de saber o que lhe iria acontecer... Sorriu. Como se todos os seus medos, todos os seus receios tivessem desaparecido por ela se aperceber do que havia gerado... Por saber que aquele pequeno, grande homem, era fruto dela e somente dela. - Não te preocupes, filho... Lembra-te que a mamã te ama... Chorara uma última vez. Algo saíra da escuridão. Algo negro. Um martelo que embatera na cabeça dela e esmagara-a. Houve um último grito e... Ele acordara sobressaltado. Desta vez o coração batia de novo de forma descontrolada, mas ele sabia bem porquê. - Que se passa? – Indagara a Carly que surgia vinda do quarto. Acabara de acordar. - Nada de especial... Apenas um pequeno pesadelo... – Já não se conseguia lembrar do tempo que passara, desde que alguém lhe fizera aquela pergunta pela última vez. Carly sorrira levemente uma última vez e começara a preparar o pequeno-almoço. Decidira que seria a vez dela de fazer algumas receitas que a sua mãe lhe ensinara. Ela começara a procurar pelos ingredientes necessários. Nada de muito especial. Apenas aqueles básicos. Não iria fazer nada de muito diferente daquilo que era normal, mas pela primeira vez, pensava que seria uma boa ideia dar a ele algo feito por ela. Naquele dia um ambiente estranho pairara naquela casa. Não havia nenhum motivo para que tal acontece. Não havia 122 nenhuma razão aparente. Apenas, talvez, fosse o simples senhor que se encontra lá em cima a mandar, que pretendia dar a entender que algo iria acontecer, numa tentativa de demonstrar que ainda não se esqueceu de nós, que apenas anda um pouco adormecido; um pouco, não muito, dizia ele; só me descuidei um pouco destes seres que criei, não foi muito, acreditem em mim;... Ou talvez fosse a natureza humana. Sim, a parte biológica que nada tem a ver com as crenças... Algum gene que temos que nos dá a conhecer que algo estranho se irá passar mesmo antes de tamanho ato acontecer. Estavam de novo os dois sentados no sofá. Tudo parecia ter acalmado. Era como se ele esperasse que algo acontecesse antes de avançar para o seu próximo passo. Ela podia ver nos olhos dele que ele queria avançar, mas ainda esperava que... Que algo acontecesse... Mas o quê? Que poderia ele estar à espera? Estava tudo a correr como ele pretendia... As pessoas começavam a ficar cada vez mais do lado dele. A avançarem calmamente na escuridão, esperando que o seu líder os guiasse para a luz e eles podem-se erguer-se com toda a convicção e coragem. Para poderem gritar as palavras de ordem que lhes saem silenciosas a cada suspiro. Nos cafés começava-se a falar. Depois de as portas fecharem. Os que queriam debater. Ficavam sentados. Enquanto os outros fugiam. Para não serem apanhados. Falava-se sobre o que deveria ser mudado. Sobre o que o governo fazia. Sobre o que estava mal. Todos concordavam com as ideias daquele homem que aparecera. Aos poucos. Muito pouco. Iam aparecendo mais e mais pessoas, que se juntavam à causa. Nas ruas começavam a aparecer as primeiras flores que transpunham o cheiro da revolução. A lua começava a tomar o 123 tom de guia. De ser que pretendia guiar aqueles corpos moribundos por entre as trevas. Os polícias aumentavam também por todos os becos. Por todos os lados. O governo começava a ficar irritado. Com medo. Podia-se sentir o cheiro do fantasma de uma revolução iminente, e, rapaz, como eles odeiam esse cheiro! Todavia, as pessoas começavam a sentir maior força. Maior segurança. Mais coragem. Começavam a sentir que em breve a gaiola onde tinham sido enjauladas e que conseguiriam voar livremente, mas com calma. Pois as suas asas tinham sido atrofiadas de tanto tempo que se passara desde que haviam sido colocados naquele pequeno lugar, onde nem, simplesmente, o simples gesto de as abanarem podiam. Só faltava algum ser incompleto de amor ou amizade lhes tivesse arrancado aqueles pequenos órgãos para que então nunca mais eles pudessem erguer-se nos céus. Carly pensava sempre em tudo isto e continuava a questionar-se sobre o porquê de tudo o que acontecia. O porquê de ele ter parado. Mas não conseguia encontrar nada que o justificasse. Aliás, ficava ainda com mais dúvidas a cada momento que ia passando. Talvez ele decidisse simplesmente parar por algum tempo. Ficar ali, sentado a aproveitar por mais alguns momentos a doce vida que tinha. Mas como a curiosidade é sempre maior que qualquer outro sentimento que possuímos, ela não conseguiu aguentar-se por muito tempo, pelo que, por muito que não quisesse, se viu obrigada a perguntar. - Posso saber quais são os teus planos? Ele ouvira a pergunta, mas não lhe respondera. Talvez nem ele soubesse o seu plano para já. Ou talvez até o soubesse, mas não quisesse revelá-lo. 124 Ela esperou um pouco. Pensando que ele lhe responderia à pergunta que ela fizera. Mas parecia que nenhuma resposta surgiria da boca dele. Ia para refazer a pergunta quando ele decidiu falar. - Não sei o que poderei dizer-te sobre o que irei fazer. Simplesmente ainda não pensei naquilo que devo fazer... Não sei ao certo o que deve acontecer daqui para a frente... - Pensei que tivesses um plano... – Ela desde do início de tudo aquilo achara sempre que ele tinha a certeza daquilo que fizera. - Não... Tudo o que venho feito é por mero acaso... Não tenho planeado nada mais do que aquilo que deve ser planeado... Ela surpreendeu-se com as palavras e com a calma dele. Tudo aquilo que havia feito, dizia ele, tinha sido simplesmente mero acaso que por ventura correra bem. - Como é que isso pode ser possível? – Perguntara ela – Como esperas deitar abaixo todo o governo, se não tens nenhum plano... Mais uma vez ele rira-se. Mas desta vez ela não conseguia entender o porquê de ele o fazer. - A ideia nunca foi derrubar o governo... – Revelara – A ideia sempre fora dar a entender às pessoas que elas devem lutar por aquilo que acreditam... Seria um tolo em acreditar que somente eu poderia derrubar este símbolo de opressão, para que tal aconteça é preciso que as pessoas se unam... Um homem só não pode fazer a diferença, se não houver alguém a segui-lo. - Mas pensava que pretendias destruir todo este governo... - Não... Eu pretendo é conseguir destruir todo este regime que vivemos em todo o mundo... O único problema que temos não é simplesmente o nosso governo... É o restante 125 mundo... Nós somos apenas uma, se o nosso governo perecer, outro igual tomará o seu lugar... A ideia é acabar com todo o regime político existente... Com a ideia fundamente em que se baseia... Qualquer edifício que tenha uma parede destruída pode ser reparado, mas caso se destrua uma das principais vigas, ele cairá e ter-se-á de o reconstruir todo de novo. A ideia sempre foi essa... Carly pela primeira vez entendia o que ele pretendia fazer realmente. Ele não estava só há espera que todo aquele país o visse como um sinal de esperança, ele estava à espera que todo o mundo seguisse as suas ideias. Destruir tudo e começar do zero. Uma nova ideia, uma nova humanidade, um novo mundo. - Mas isso significa que tu... Muito provavelmente, serás... – Susteve a palavra por alguns segundos – morto... Ele manteve-se a olhar vagamente para a televisão. - Sim, muito provavelmente... Mantivera-se calmo mesmo pós dizer isto. Como se nenhuma diferença lhe fizesse o facto de poder nunca ver a sua obra concluída. - O governo deve-te ter feito algo realmente mau... - O governo nunca fez nada contra mim... Acredita em mim... Nunca fui torturado, preso, ou censurado pelo governo... - Então, por que fazes tu tudo isto... Por que estás a caminha em direção à morte se não é por vingança. Ele ficou em silêncio. Ela também. As palavras ainda ecoavam leves pela sala. Numa tentativa de serem ouvidas por ninguém. - Por que devemos seguir os nossos ideais... Porque quero que a minha irmã tenha um mundo onde possa viver um pouco mais feliz... Porque quero que o povo, por um momento, 126 possa sentir tudo aquilo que eu tive ao longo da minha vida – Olhou fixo para os olhos dela que sentiam a emoção a passar-lhe pelo ar – Porque quero que eles sejam livres. - Tu estás-te a arriscar por todos eles por causa de simplesmente quereres que todos tenham a liberdade que tu sempre tiveste? Não tens mais nenhum motivo... Apenas fazes isto, por que te deu na cabeça fazê-lo? – Ela estava exaltada com tudo aquilo que ele lhe acabara de dizer. Ela não sabia bem porquê é que sentira aquela exaltação toda, ele continuava a lutar por uma causa justa, apesar de não ter motivos para tal. - Sim... – Retorquira simplesmente ele, mantendo a sua calma, o seu leve sorriso e o mesmo olhar de sempre – Um líder, um herói, um humano, não luta por algo por que simplesmente tem o sentimento de vingança... Um verdadeiro herói luta por algo e por alguém, apesar de nunca ter tido qualquer motivo para tal. Carly não sabia bem o que dizer naquela altura. A sua cabeça estava incapaz de pensar fosse no que fosse. Estava completamente desesperada, mas não conseguia entender o porquê de o seu corpo criar aquele sentimento... O porquê de tanto medo por saber que ele poderia morrer... Estava confusa... Perdida... Queria chorar, mas não podia. Não podia chorar ali, à frente dele. Engoliu em seco e tentou esquecer por um momento, tudo o que se passara. Almiton chamara Nobert e Morgan a virem ter com ele. Um encontro casual disse ele, para não causar interesses exagerados, nem para ter de dar explicações. 127 Almiton encontrava-se sentado naquela mesa e restaurante. Estava numa área privada, onde ninguém para além dele e dos seus colegas podia entrar. Aquele era o restaurante mais caro da cidade, mas era também o sítio mais seguro para se marcar uma reunião daquelas. Naquele espaço não havia escutas, nem ninguém que pudesse ir a correr contar a quem quer que fosse o que ali se passara. Morgan chegara alguns minutos depois e seguiu-se Nobert por fim. Ambos perguntaram o que era aquela capa que ele tinha em cima da mesa, mas Almiton respondera que no final do jantar eles saberiam. Algumas garrafas de vinho já se encontravam vazias em cima da mesa. Fora a única forma de Almiton se acalmar por um pouco. Já não conseguia aguentar mais toda aquela pressão, todo aquele conhecimento que havia adquirido. A conversa fora animada. Até àquele momento ainda nenhum decidira falar de nenhum assunto envolvendo a ordem do dia. Tinha aproveitado aquele pouco tempo para falarem de todo o resto. Mas, o assunto teria de surgir mais cedo ou mais tarde, por muito que eles tentassem encobri-lo. - Já ouviram o que aconteceu hoje nos Estados Germânicos? – Perguntara Nobert que imaginava ser o único até então a saber da notícia. A cara que ambos fizeram demonstrava que não. Nobert pegou num cigarro e colocou-o na boca. - Um idiota qualquer... – Disse acendendo o cigarro, fazendo com que o barulho das pedras a embater silenciassem um pouco as suas palavras – Rebentou com o parlamento da zona oceânica deles... Com todos os membros responsáveis por essa zona no seu interior... Bum! – Gritou ele batendo com as 128 mãos na mesa - Nenhum sobreviveu... – Os outros dois pareciam surpresos com a história que ele contava – Ninguém sabe como foi possível alguém fazer tal coisa... O mais estranho é que no lugar onde tudo aconteceu foi deixada uma máscara de Fawkes... Todos acham que o que se tem passado aqui tem sido transmitido para os restantes países... Os restantes governos começam a ficar com medo do que se pode vir a passar nos próximos tempos. - Este filho da puta veio-nos lixar todo o esquema! – Morgan costumava ser muito direto nas suas palavras – Isto vai acabar por sobrar para nós... Não tarda nada teremos também os presidentes dos outros países a virem ter connosco e a lixaremnos a cabeça para que encontremos este homem o mais depressa possível... – O desdém aumentara no tom dele - As pessoas começam a ficar com menos medo de nós... Começam a falar livremente daquilo que pensam... Começam a questionar... Ainda ontem um policia disparou contra um rapaz de dezasseis anos que grafitara numa parede a imagem de um tal de Che Guevara... Um comunista! – Rira-se fortemente – Vejam-me só... Estes gajos já começam a venerar comunistas... Manteve o seu riso que fora acompanhado por Nobert, mas não por Almiton que permanecia pensativo. - As pessoas começam a tomar o sue próprio partido... Não demorará muito até começarem uma revolução... – Dissera Almiton mantendo-se pensativo. - E estás preocupado com o que pode acontecer, caso matemos o gajo que começou tudo isto? – Perguntara Nobert. - Não... O meu medo não é se matarmos o gajo que começou tudo isto... É o que acontecerá se ele matar o presidente e depois nós o matarmos a ele... O povo deixará de ter líderes... Quem é que eles irão seguir? Que irão eles fazer? 129 Que faremos nós? - Houve um leve silêncio por alguns momentos – Nós não poderemos andar por aí a matar qualquer um... – Eles olhavam atentamente para Almiton – As pessoas começam a pensar por elas mesmas... Em breve farão algo... E nós não podemos impedir... Mesmo que o apanhemos... A verdade é que ele simplesmente já pôs as pessoas a pensarem... Não há nada que possamos fazer quanto a isso... – Suspirou – O que eu tenho aqui – Pôs a mão sobre a capa – são documentos que me foram dados pelo homem responsável pela criação deste império... Aqui dentro está talvez a história mais negra contada desda segunda guerra mundial... – Entregou-lhes o documento para eles poderem dar um vista de olhos – Eu sei que nós devemos proteger o nosso governo... Afinal, é ele que nos paga os nossos ordenados, que nos dá as nossas brilhantes casa, roupas, carros e tudo o resto... Mas nós nascemos para proteger o povo, não o governo... Se calhar está na altura de voltarmos ao nosso trabalho... - Estás a dizer que vais tomar o partido do homem? – Nobert tinha um ar de espanto. - Não... Apenas estou a pedir que pensem naquilo que devemos fazer... Não sabemos o que poderá acontecer nos próximos dias... Almiton levantara-se e dirigira-se silenciosamente à casa de banho. Eles os dois ficaram ali na mesa, a tentarem digerir a amarga sobremesa que ele lhes havia dado. 130 13 Ele estava ao lado da cama da sua irmã. Olhava para os olhos dela que começavam a perder o brilho. Havia chegado a hora, sabia-o. Os batimentos dela começavam a ficar cada vez mais brandos. Em breve o seu coração pararia. A doença havia-se alastrado depressa demais nos últimos dias. Ela já havia durado demasiado tempo. Muito mais do que aquilo que ele esperaria. Talvez ele devesse ter começado aquela revolução mais cedo. Para que a sua irmã tivesse a hipótese de viver num mundo livre. Afinal, era por isso que ele lutara também, ou seria por algo mais. Ela começou a engasgar-se e a gemer. - Pronto... Pronto... – Reconfortou ele, colocando uma mão sobre a sua testa e beijando-a – O mano está aqui para ti... Ela continuara a engasgar-se. Olhara fixamente para ele como que se despedisse e lhe agradecesse por tudo o que ele havia feito por ela. Ele tentara conter as suas lágrimas. Sorrira para ela, numa tentativa de demonstrar que todos os momentos que tivera com ela foram isso, uma felicidade imensa. Todos os momentos vieram ao de cima. Apesar da infância dolorosa que ambos haviam vivido. Apesar da dor, da fome, da morte... Do sofrimento... Do choro... Tudo aquilo que, por algum motivo, tiveram de viver, como se fossem culpados de algum crime horrendo, quando na realidade eram apenas crianças; Os únicos momentos que haviam surgido foram 131 aqueles em que eles tinham sido felizes. Como naquele dia em que a mãe pegara nos dois e os levara até ao parque que havia perto de casa. Onde a sentou ao colo dele e os fez quase tocar o céu enquanto toda a terra se desmoronara. Por um momento foram pássaros que tocaram a imensidão da felicidade. Talvez por serem pequenos e a imaginação facilitar a criação de algo inexistente, ou talvez, porque, por um momento, souberam o que era a felicidade, ao fim de tantos momentos de sofrimento. Por um momento o sol fora o pai deles. A mãe era o guia que os conduzia para lá do que o desespero criara. O baloiço eventualmente parara. Tornando a coloca-los de novo no solo feito de pequenos cadáveres de sofrimento. Mas, os seus pés eram agora um amuleto de boa sorte onde por onde passavam traziam luz. Para mais a sua mãe segurava a mão de ambos e eles podiam vê-la a sorrir. Era incrível como o dia mais feliz deles fora também o mais triste. Como fora o último em que eles puderam ver aquele sorriso. Mas as memórias continuavam a surgir. Desta vez da altura da sua avó, em que eles podiam brincar um com o outro, apesar das limitações da sua irmã, eles podiam... Eles podiam ser aquilo que nunca foram... Podiam esquecer-se do que eram e serem simplesmente aquilo que queriam. Podiam esquecer que ela não podia andar e podiam correr. Eram livres. Eram... Eram... Nem eles sabiam o que eram, era impossível encontrar uma palavra para descrever com exatidão aquilo que haviam sido... Sentira a irmã a expirar pela última vez. O seu sorriso mantivera-se. O seu olhar continuava brilhante, dizendo-lhe que tudo estava bem. Que todo o sofrimento terminara. Agradecendo-lhe por ter cuidado dela. Por a ter feito ser alguém, quando para os restantes ela era nada. Por protege-la. Por a não 132 deixar sofrer. Por ser aquilo que não era sua obrigação. Por se ter sacrificado. E deixava a última mensagem: Agora é a tua altura de descansar. A mão dela deslizara pela sua cara uma última vez, um último esforço e no fim... Entrelaçara-a nos seus braço. Tentou conter o grito que queria sair, mas não conseguia. As lágrimas, todavia, decidiram molhar as roupas da irmã, à medida que iam caindo sobre a sua camisa de dormir. Carly havia acordado há pouco tempo. Ainda não conseguira entender aquilo que se passara, apenas tinha ouvido alguém suspirar abruptamente, como se tentasse suster o choro. Estava a olhar para ele que se encontrava de costas voltadas para Carly, segurando a sua irmã ainda entre os seus braços. Carly continuara a tentar entender o que se passara. Fora só passados alguns segundos que finalmente conseguira entender tudo. - Ela está... – Balbuciara ela chegando perto. - Morta. – Terminara ele a frase, com um tom de dor, sofrimento e ao mesmo tempo de alegria por saber que a sua irmã não sofreria mais naquele triste mundo. Carly chegara mais perto. Não sabia muito bem para quê, mas assim o seu corpo lhe mandara. Tocou no ombro dele. Ele largou a sua irmã com calma, voltou-se para Carly e abraçou-lhe a cintura, pois estava à mesma altura dela visto estar sentado, começando a chorar sobre o peito dela. Carly segurou forte a cabeça dela contra o seu peito. Numa tentativa de lhe afagar a dor, tentando fazê-lo sentir um pouco de calor naquele frio ambiente que ali se havia criado. A Morte é um ser que chega sem avisar. Sem dar às pessoas a entender a sua presença... É calma, subtil. Esconde-se 133 sobre o seu manto e nem respira para não nos fazer aperceber da sua presença. É silenciosa, fria e cruel, mas é também a mais magnifica entidade que poderemos ter ao longo de toda a nossa vida, pois é o que nos faz ter medo de nunca fazermos nada de diferente, de nunca deixarmos qualquer marca no mundo. É o que nos faz agir, pois temos medo que o dia em que ela nos venha visitar, seja antecessor do dia em que, supostamente, seriamos felizes. É triste pensar que esta criatura pode chegar no dia anterior a conhecermos a pessoa que nos deveria fazer sentir vivos, ou ao dia em que ouviríamos milhares de pessoas gritar o nosso nome por termos feito algo extraordinário. A Morte é a criatura mais detestada por todos, apesar de ser a vida sempre apelidada de puta. A realidade é que ninguém quer viver, mas ainda pior é morrermos, porque morrer significa que não teremos mais tempo para nos lamuriarmos sobre tudo aquilo que nunca fizemos para mudarmos a nossa inutilidade. A Morte é odiada por ser o único ser que tem a coragem para nos dizer: Se nunca fizeste nada até agora, não será agora que isso irá mudar... Como este trágico acontecimento havia acontecido de manhã, durante a tarde fora aproveitado o sol que decidira brilhar para se pôr em descanso o corpo daquela rapariga, que apesar dos seus problemas, era bela. Por cima do seu corpo fora colocado uma imensidão de flores, para se juntarem às que floresciam aos poucos. Para relembrar que na morte podemos ver a ressurreição. Só houvera ele e Carly naquela cerimónia, mas o que importava não era a quantidade de pessoas, ou a quantidade de flores ou rosas derramadas, isso nada nos diz sobre a nossa vida. O importante é sim, quantas pessoas se recordarão de nós no final de toda a nossa história. 134 Ele voltara para o interior da velha casa de madeira. Era a primeira vez que Carly tomara a noção da imensidão de floresta e campo que existia no interior daquela casa, que ficava quase numa colina. Lá em baixo podia-se ver a frágil cidade que se erguia. Podia-se ver a separação das duas partes. Eram tão diferentes aqueles três lugares. Um oposto do oposto. Nada era igual. Num lado a parte pobre da cidade, a parte do povo, e quem falava na cidade falava naquele império todo; as pessoas sobreviviam a cada dia, tentando ser felizes, quando no seu interior não havia nada. Não havia nenhum ensinamento senão o triste ensinamento que o ninguém lhes deu. Do outro lado a parte rica, onde todos os gigantes se deliciavam com tudo o que podiam... Além de abastados em dinheiro, alimentos, também eram abastados em conhecimento e cultura. E ela estava ali. Naquele pequeno território, onde não havia muros, não havia paredes, não havia tristeza... Havia liberdade, ar puro, pássaros que cantavam e encantavam, onde o sol embatia e aquecia... Onde havia cultura e todos os doces que a vida podia dar... Apesar de saber que a irmã dele morrera, ela não se conseguia sentir triste... Apenas podia pensar na sorte que ela tivera por, para sempre, fazer parte daquela paisagem... Por um momento chorou... Mas não uma lágrima de tristeza, foi uma lágrima de felicidade que o vento levou e espalhou por toda a natureza para que também ela fizesse parte de toda a natureza. Entrara de novo na casa. Viu que ele se encontrava sentado à frente do computador. Mantinha o mesmo ar. Depois de chorar no peito dela, nunca mais havia chorado. Ela não sabia o que lhe deveria dizer. Não tinha a noção daquilo que lhe passava pela cabeça. Apenas conseguia entender que o olhar dele ficara mais intenso e certo. Era como se ele 135 tivesse finalmente se decidido sobre o que iria fazer a seguir... Ela só não sabia ainda o que era. - Como estás? – Perguntou com calma, para não causar distúrbios. - Como poderia estar numa altura como esta. – Retorquira – Não poderei dizer que estou feliz, mas seria invejoso se continuasse a pedir que ela ficasse aqui, naquele sofrimento... - Ela não parecia estar em sofrimento... – Carly sempre achara aquela rapariga muito feliz apesar das suas limitações. - Sim... Eu sei que não... Mas assim sei que ela finalmente poderá correr por entre a natureza, como ela sempre desejou e nada me pode deixar mais feliz que isso. – Sorrira vagamente para ela. - O que pensas fazer agora? Ele demorara um pouco a responder. - Penso que terminarei de vez o meu plano. – A sua voz era forte e calma. Ele estava decidido a terminar com tudo. - Depois da tua irmã morrer, tu continuas com a ideia de terminares tudo! – Gritara – Como é que isso é possível! – Carly sentira-se exaltada, não podia acreditar que ele naquele momento só se conseguia lembrar de terminar o que havia começado – Por que é que tu vais continuar a fazer tudo isso? A tua irmã já morreu... Para quem darás esse mundo novo que estás a tentar criar... - Para ti. – Carly silenciara-se e acalmara-se – Para este rapaz que fora morto por pintar a imagem de Che Guevara numa parede depois de o avô lhe ter falado nele... Por esta mulher que foi morta por ter gritado que queria ser livre... Por tudo isto... Carly tinha tantas palavras que queria dizer mas não lhe saíam. Apenas ficavam presas na sua garganta. 136 - Tu dizes que não queres ser o herói desta história, mas no fundo estás a comportar-te como qualquer outro herói que espera sempre que tudo lhe corra bem... – Acabara por dizer, abalada – Mas se queres tanto ser o herói, diz-me, por que raio te vestes tu como um vilão? – Carly tinha tomado conhecimento que a máscara que ele usava era igual à de um vilão de bandadesenhada, que também era louco. Ele levantara-se calmamente e chegara perto dela. Olhou-a bem nos seus olhos azuis de céu. - Todo o herói é no início visto como um vilão, até que alguém o veja como o contrário... A respiração dos dois susteu-se por um breve bocado. Talvez por mero acaso, ou por algum outro motivo desconhecido pelos dois, começara a tocar a música True Love Waits. - Sabes... – Ele não sabia bem o que estava prestes a dizer, mas não conseguia impedir a sua boca de falar – Eu nunca consegui sentir esse tal sentimento a que muitos chamam: amor... – Os seus olhos não se conseguiam separar. - A maioria das pessoas que usa essa palavra, não conhece qualquer significado para ela... Usam-na somente por que se torna bonito usá-la... A realidade é que nunca será possível descrever esse sentimento em livros, filmes ou qualquer outra manifestação... – Chegou-se perto dele – Só há uma maneira de sentir... – O olhar dele mantinha-se vago e perdido, o dela mantinha o brilho de uma criança. Os seus lábios tocaramse por breves momentos, numa empatia sincronizada que apenas se consegue uma vez em toda a nossa vida. Por um momento não houve histórias, não houve filmes, não houve palavras, não houve sofrimento. Houve somente aquilo que se poderia delimitar como sendo o que nos move no dia a dia. O que nos fará sempre erguer-nos e lutar. 137 Os lábios dos dois separaram-se, com custo, num movimento duro. Ele pela primeira vez deixara o seu sorriso perdido, sorrira verdadeiramente... Os seus olhos brilharam... - Se eu tivesse sentido isto antes talvez... – Fechara os olhos e respirara fundo, com medo e vergonha das palavras que iria dizer. Ela chorava – Mas agora é demasiado tarde. Pegara no saco que estava perto deles e saíra porta fora. Ela chorara. As lágrimas vertiam e deslizavam por toda a sua bela face. Por um momento, o sol escurecera. - É o que eu te digo Nobert... Se continuarmos com isto em breve teremos comunistas para aí a dominarmo-nos... Vagabundos de novo na rua a pedirem e a infestarem tudo com pragas... – Morgan e Nobert haviam discutido durante a tarde aquilo que achavam do que Almiton lhes revelara – Não podemos deixar que hajam de novo esses gangues para aí a matarem-se uns aos outros por causa de putas e droga... Temos de manter este governo de pé... Se não voltamos à merda que éramos anteriormente. O seu desdém era eminente. Morgan era das pessoas que mais apoiava as atitudes do presidente por mais cruéis que elas fossem - Que queres fazer, então? – Indagara Nobert – Não podemos simplesmente andar por aí a matar todos aqueles que vão contra nós... Daqui a pouco não teremos povo... Além disso, quantos mais matarmos, mais os outros se revoltarão... Não demorará muito até que alguém consiga armas e coragem suficiente para nos matarem a todos... - Isso nunca vai acontecer... Aqueles cães são todos cagados... Nenhum se atreverá a levantar uma arma que seja 138 contra os militares ou polícia... Eles vão simplesmente correr de medo mal vejam que os seus amigos andam a morrer... Já o fizemos antes, agora não será diferente... - Na altura em que fizemos isso, eles não tinham um líder para lhes dar a conhecer tudo aquilo que eles deveriam fazer... – O tom de Nobert era de quem acreditava que a certo ponto o povo iria conseguir sobrepor-se a eles – Vivemos numa altura diferente, Morgan... Em breve eles revoltar-se-ão e nós teremos de decidir, se levantaremos as nossas armas pelo povo... Ou se levantaremos as nossas armas por um simples homem... Morgan não respondera. Ficara pensativo, ou simplesmente divagara a sua mente para outro lugar para não ter de lidar com a triste verdade. A noite é a única altura em que nos podemos demonstrar como somos. Na escuridão, onde a luz da lua é a única que pode revelar algo, podemos finalmente retirar as nossas mascaras e avançar calmamente, na penumbra... Talvez pelo facto de a escuridão ser a água que limpa a maquilhagem que nos mascara, inventem sempre as histórias que os demónios e as bruxas surgem nesta altura, para nos impedirem de retirarmos as máscaras que vestimos à luz do dia, para que ela se entranhe na nossa face e nunca dela se possa descolar, para não terem de lidar com verdades incómodas para uma sociedade facilitada. O velho homem acordara do seu sono quando sentiu um barulho estranho. A escuridão do quarto impediu que ele conseguisse ver algo, demorou alguns segundos a aperceber-se do vulto que se encontrava sentado ao lado da sua cama. 139 Voltou-se rapidamente, tentando pegar na arma que sempre tinha debaixo da sua almofado. - Não vale a pena se esforçar! – Dissera o vulto – Todos os alarmes e todas as armas foram retiradas. Eu não sou assim tão estúpido... O velho homem voltara a voltar-se para ele. A luz da lua revelara-lhe a face louca, com o olhar a condizer, daquele vilão de banda-desenhada que começara todo aquele problema. Ele sobressaltou-se. Fez força com os pés para poder dar alguns passos para trás, mas em vão, embatera contra a parede e tudo o que fizera fora somente sentar-se. - Vieste matar-te? – Perguntara com o seu tom rouco, devido à sua velhice. Ele olhara pela janela para a lua. - Provavelmente... – Respondera calmamente e com ar vago, dando ao seu tom a sua característica definidora. - Posso ao menos saber o porquê de teres feito isto tudo? – Rira – Qual foi a atrocidade que este governo cometeu contigo para que tenhas feito tudo isto... – Ele esperava ouvir a resposta que tinha imaginado na sua mente. - Nenhuma... – Retorquira. Ele admirou-se – Ao contrário do que possa pensar, o governo não fez nada.. Isto não é uma vingança... - Então, por que estás tu a fazer tudo isto? - Há algumas pessoas que simplesmente gostam de mudar o mundo, sem nenhum motivo, apenas não gostam do que veem... Penso que nem eu mesmo sei o porquê de ter feito tudo isto... Mas quando se cria uma ideia na nossa mente e ela fica entranhada na nela... Oh meu Deus, não há nada nem ninguém que a consiga tirar e ela só consegue ficar saciada quando 140 conseguimos concluir essa ideia. – O seu tom era certo, calmo e falava eloquentemente. - Estás a fazer então isto tudo, simplesmente por que te apetece? – O homem estava à beira de ter um ataque cardíaco, ele estava à espera que o motivo que aquele rapaz tivera para fazer tudo aquilo fosse devido a algo que lhe tivesse sido causado pelo governo, todavia essa não era a verdade. - Sim... Podemos dizer que é simplesmente porque me apeteceu fazer algo diferente daquilo que se vê todos os dias... E claro, não devemos esquecer que estou a fazer aquilo que o governo fez ao seu povo... Guerras... Caos... Crise... Mortes... Censura... Que é que vocês esperavam? Que simplesmente todo o povo ficasse quieto para sempre? Achavam que poderiam sair imunes de tudo aquilo que fizeram... Que iriam ser uma doença que se alastraria sem uma cura... Já deveriam saber desd’o início que tudo tem um fim... - Nós sabíamos desde que construímos todo este império que mais cedo ou mais tarde haveria alguém que nos tentaria derrubar... – Por um momento ele decidira falar como se fossem iguais. - Por isso criaram o Projeto Sophia... Certo? – A questão era retórica. - Sim... - Mas esqueceram-se que é impossível encarcerarem todos os génios num só lugar e aniquila-los... A natureza encarrega-se de arranjar maneiras diferentes de sobreviver... Como tal, o que vocês fizeram foi apenas atrasar um pouco o inevitável... - Nunca acreditamos que só uma pessoa pudesse derrubar tudo o que construímos... – Interrompera-o. 141 - Mas não vou somente eu a derrubar-vos. Será o povo todo... - Sim, mas somente porque lhes deste a ideia... Caso nunca houvesses falado antes, eles continuariam com as suas calmas vidas... - Apareceria outro... - A hipótese seria uma num bilião... Não é fácil alguém conseguir mover uma legião de pessoas de livre vontade... As pessoas não fazem nada, a menos que lhes seja dado algo em troca... Elas não seguem livremente as ideias de uma simples pessoa... Não são capazes disso... Por isso foi sempre tão fácil dominá-los... Mas tu... Tu não... Tu conseguiste fazer algo diferente... Sabes, o que nós fizemos foi manter o mesmo regime político desde do início da humanidade, moldamos apenas algumas arestas, mas o resto manteve-se. A ideia foi sempre essa... – Descansara a voz por alguns momentos – A ideia da humanidade é simplesmente termos a nossa vida organizada, a dos outros não importa minimamente... Ninguém quer saber se há um sem abrigo nas ruas... Ninguém quer saber se há crianças a passar fome... Desde que eles tenham comida na mesa e roupa lavada é o que importa... As pessoas só se preocupam uma com as outras se houver algo em troca... É tão fácil enganar a humanidade que até mete dó... Basta-lhes dar a entender que se seguirem as nossas ordens tudo vai correr bem... Eles aceitam... Quando ficam chateados, arranja-se um novo doce e assim sucessivamente... As pessoas precisam de alguém que mande nelas para lhes dizer se estão a fazer o que é correto ou não... Elas não querem saber do resto... Custa-lhes demasiado pensar por elas mesmas... – Rira-se, mas começava a sentir-se fraco – O que tu fizeste... Isso foi sem dúvida algo invejável... Conseguiste 142 fazer com que as pessoas te seguissem, sem lhes prometeres nada em troca. Ele mantivera-se calado por mais um bocado, olhando para a lua de novo e pensando em algo importante. - Talvez lhes tenha oferecido algo muito mais importante do que vocês alguma vez fizeram, mas que somente agora entenderam o verdadeiro significado... – Suspirara. O homem começara a gemer. - Então, envenenaste-me, certo? - Isso é apenas uma droga para que não sinta nenhuma dor naquilo que irei fazer a seguir... – Disse demonstrando uma faca – Daqui a pouco deve fazer efeito... - Para quê tanto trabalho? Vais acabar sozinho, ou preso... Sem nenhum seguidor... Para quê teres feito tudo isto?! – O tom de voz demonstrava dor, rancor e medo. - Os homens têm de fazer aquilo que lhes é destinado... Certo, avô? – Sorrira para o homem que sentira o seu coração a parar ao ouvir aquelas palavras. Uma lágrima correra-lhe pela sua cara, enquanto todo o seu corpo paralisava e ele espetava a faca bem fundo no seu peito – Às vezes o maior perigo que temos, vem do mesmo sangue que o que corre nas nossas veias... – Sussurrou-lhe ao ouvido enquanto ele suspirava uma última vez e a sua mão se sujava de sangue. O velho homem entendera então tudo o que se passara. Percebera o porquê de aquele rapaz ter feito tudo aquilo. Ele era seu neto. O neto que ele abandonara, da filha que ele abandonara e que morrera à mercê de um demónio, quando havia sido criada pelo diabo. Abandonara a sua mulher por esta não seguir os seus ideais. Tudo pelo sonho do poder, de escrever o seu nome na história e se libertar da morte... Ironia... Fora isso que o fizera conhecer a morte... O seu neto... O seu sangue... Era ele o ser 143 que vestia preto e sem piedade, ou por pena, retirava a vida dele... Viu que o seu neto não demonstrava nenhum ressentimento da atitude que tomara, ao contrário dele, que pela primeira vez entendera, que o poder não era tudo... Mas sim, o nada. Almiton avançava calmamente por aquela noite tenebrosa. O céu começava a fazer sons de que iria em breve começar uma tempestade, dando um aviso para que todos se resguardassem. Ele pensara que seria melhor ir avisar o velho homem do que se iria passar, de como nenhum dos três havia chegado a um acordo. Ele não sabia bem por que raio acordara àquela hora para ir falar com ele. Ainda para mais ele já deveria estar a dormir. Mais valia dar meia volta e ir embora. Não, tinha de continuar, quanto mais cedo falasse com ele melhor. Ainda para mais tinha um milhão de perguntas às quais não surgia resposta. Ainda vais acabar por ser preso por o acordares a esta hora! Rira-se interiormente. Chegara perto da porta daquela enorme casa quando... O rapaz seguia calmamente, com o saco na mão, a faca ensanguentada a deslizar de dedo para dedo, o sorriso na cara a esbater-se a cada passo, ia cantarolando uma velha música que se lembrava de ouvir sempre que o seu pai ligava o seu velho rádio. Mas, nem sempre todas as histórias tomam o lado dos heróis e este momento foi um desses momentos em que os heróis são capturados por aqueles que nada de importante fizera ao longo da história. - Merda... – Gemeu ele enquanto via Almiton a apontarlhe uma arma. Deixara cair a faca e levantara as mãos, mantendo 144 o seu sorriso torcista – Devia-me ter vindo vestido de coelho... – Ironizara ele sabendo perfeitamente que o jogo havia terminado. 145 14 Carly sentia-se sozinha. Tinha passado grande parte da tarde a chorar depois de ele ter saído e acabara por adormecer no sofá. Num minuto aquela casa ficara completamente vazia, sem qualquer sinal de vida. Sem histórias ou personagens encantadas. Só tinha ficado ela. Não sentia que ele havia regressado, o que era estranho. Ligara a televisão na tentativa de ver se havia alguma notícia sobre o que ele poderia ter feito. Nada. Levantara-se. Talvez ele tivesse somente saído para ir dar uma volta e ainda não tivesse volta, ou talvez, simplesmente, o plano dele demorasse mais que os anteriores. Decidira preparar algo para comer. Estava esfomeada. Vasculhou no frigorifico e nos armários, mas nada lhe parecia ser suficientemente bom para lhe saciar a sua fome. Além disso tinha uma sensação estranha na sua barriga, mas não conseguia saber o quê. Percorreu a casa. Ficou a olhar para ela. Para aquele conjunto de livros, filmes e discos. Tudo aquilo lhe parecia agora uma interminável criação de histórias que nada significavam. 146 Seguiu em direção ao quarto dele, mas que agora lhe pertencia, pois ficara lá desde que chegara àquela casa. Foi então que vira. Em cima da cama estava um amontoado de folhas, uma arma e uma carta que se segurava num biblô que ele pusera por trás. No topo do envelope estava escrito: Carly, Ela sentira-se apreensiva, mas a curiosidade de saber o que tudo aquilo era, era superior a ela mesma. Quando deu de conta já tinha aberto no envelope e havia-se sentado na cama a ler o conteúdo daquelas palavras. Carly, Peço desculpa por ter escrito tudo isto e não to ter contado diretamente, mas penso que é a melhor maneira de poder dizer tudo aquilo que é necessário. Esta será provavelmente a única história de vida que merecerá ser contada num livro, não queria estar a parecer altivo ao escolher estas palavras, mas espero que possas fazer com que esta história chegue a todos os restantes, para que eles entendam o porquê de ter feito tudo isto e para que sigam os seus ideais. Penso que o que me moldou nunca foi o facto de ter morto o meu pai, nem a minha infância que me transtornou, nem ter visto a minha mãe a morrer à minha frente ou até mesmo o facto de ser odiado por todos. Isso seria só motivos para as pessoas terem pena de mim, nada mais... E não devemos culpar o nosso passado pelo que somos agora... Todos temos a força para mudar o nosso destino. 147 O dia em que acho que mudei realmente foi num dia em que eu deveria ter por volta dos meus 18 anos, não mais. Estava a sair da universidade, esperando pelo autocarro... Chovia, mas não muito... Lembro-me de olhar para as luzes de um autocarro que parava à minha beira... De ver aquela luz laranja a piscar incessantemente, mas ao mesmo tempo a ser calma... Lembro-me de estar a ouvir uma daquelas tristes músicas, mas que tanto dizem sobre nós quando somos uns deslocados deste mundo. Fora então que por um momento me virei e embati contra uma rapariga... Um pouco estranha, como eu... Ficamos a falar por um pouco... Nada de muito especial, mas ela não ligara ao facto de eu ser diferente, nem ao facto de falar de assuntos diferentes dos outros... Ela mesmo gostava de falar desses assuntos... Não devemos ter falado mais do que cinco minutos, mas chegara para entender que ela sabia bastantes coisas... Infelizmente, nunca mais a vi, mas por um momento senti-me diferente... No caminho para casa vi algo brilhante. No muro havia sido escrito Um governo do povo, pelo povo, para o povo, não deve desaparecer da terra3 Penso que foi sempre esta frase que me ficara gravada na memória... E a partir daí 3 government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth. – Frase de Abraham Lincoln, durante o discurso de Gettysburg. 148 comecei a preocupar-me a sério com todos os problemas políticos... Naquela altura ainda podíamos pensar de uma forma quase livre... Mas isso estava prestes a mudar... Aos poucos o governo ia criando um Projeto do qual ninguém tinha conhecimento... Um projeto ao qual deram o nome de Sophia... Aos poucos os meus amigos iam desaparecendo, por pensarem da mesma maneira que eu. Eram presos, torturados... Toda a réstia de liberdade que possuíamos ia sendo aniquilada, destruída por completo e não podíamos fazer nada. As nossas manifestações acabavam em mortes. Não faltou muito até o meu nome ser incluído na lista dos principais procurados pelos governo, um alvo a abater. Todavia, sobre o meu quase pleno desconhecimento, a minha avó estava sempre um passo à frente de todos eles e, antes que nos pudessem pegar, colocou-me a mim e a minha irmã nesta casa... Casa essa que fora construída por ela e pela sua amiga na altura em que ainda eram jovens... Tinham-na preenchido de todas as obras primas que haviam encontrado... Infelizmente, ela fora morta pelos guardas que entraram na nossa cara para nos virem buscar... Eu sabia que as buscas por nós não terminariam até eles nos terem capturado, mas não podia deixar que a mina irmã ficasse sozinha para todo o sempre, como tal decidi refugiar-me. 149 Fui assistindo pela televisão a todos os tristes acontecimentos, mas aos poucos toda a informação era apagada de toda a comunicação social de todos os MIDIA. Era como se nunca nenhum daqueles desastres tivesse acontecido. Apercebi-me então que tudo estava perdido. Todavia, a frase nunca me saíra da cabeça, e pensava em como a minha irmã merecia viver num mundo melhor. Ao longo dos anos fui pensando num plano para que pudéssemos voltar a ter a liberdade que nos era merecida. Sabia perfeitamente que a opressão do povo havia-o feito esquecer-se daquilo que antes tivera. Não conseguia saber se poderia simplesmente fazer uma manifestação e conseguia fazer com que ele ficasse do meu lado... Portanto, decidi que o melhor era chamá-lo para o meu lado de uma forma inteligente. Aos poucos fui construindo todo o meu plano, olhando para a televisão e vendo o rosto do homem que fizera tudo aquilo... O homem que, por muito que me custasse admiti-lo, era meu avô... Um homem que abandonara a filha e a mulher, para se entrelaçar na busca pelo poder... Esse homem tinha feito com que tudo aquilo acontecesse... E estava na altura de alguém o fazer pagar por tudo... E assim criei todo o meu plano, pensando na minha mãe, que merecia que todo o seu esforço não fosse em vão... 150 Pensando na minha avó que me deu a força, a coragem e o conhecimento para poder avançar de forma calma e certeira... Na minha irmã, que demonstrava que as limitações somos nós que as impomos na busca pela felicidade e não sei bem porquê, pensando naquela rapariga que naquela noite de chuva falou comigo e me fez perceber que o mundo é perfeito, se nós conseguimos trazer ao de cima o que de bom há nele. Gostava não ter sido tão vago com tudo isto que aqui disse... Mas simplesmente não sei o que deveria dizer mais que não tenha sido dito nas nossas conversas. No início não sei por que me ajudaste ou por que fui eu trazer-te para dentro deste mundo todo, talvez tenha sido o destino o responsável, assim como foi ele o responsável por ter saído de casa dois minutos antes de a polícia aparecer para me prender, o que teria feito com que toda esta história nunca tivesse acontecido. Talvez fosse o destino a querer que fosse feliz por mais uma vez... Caso pretendas deixei tudo o que era necessário para que possas fugir do país o mais depressa possível. Não quero que te prendas simplesmente por que eu te contei histórias, nem sempre elas acabam bem... Agora vou terminar o meu plano, espero que nos voltemos a ver... Caso contrário espero que nos encontremos um dia no céu, caso este exista... Já que o mais certo é que 151 contigo aconteça o mesmo que aconteceu com a outra rapariga, a qual o destino nunca mais me deixou ver... Carly acabara de ler a carta. Uma leve lágrima caíra pela sua face. - Então eras tu... – Sorrira e chorara... Misturara a nostalgia com a derrota. Tudo tinha um fim, um início e um meio... E naquela história ela fora isso tudo... O Presidente não podia tirar do seu olhar aquele sentimento de vitória. Não podia deixar de sentir todos os seus medos a esvanecerem pelos poros do seu corpo. Tinha finalmente conseguido capturar aquele maldito cão que lhe mordera os calcanhares. Era triste ter recebido a notícia de que o velho homem, o quase fundador de todo aquele império havia morrido, mas era preciso fazer-se sacrifícios por um bem maior. Além disso, ele já era velho, já pouca falta faria naquele conselho. Estava na altura de um novo império nascer, um império somente dele. Chegara perto daqueles negros portões que davam entrada para a mais temível de todas as construções daquele fatal império. A Câmara das Torturas, como assim tinha sido apelidada, e que bom nome lhe fora dado. Não podia ter ele ou os criadores daquele lugar pensado num nome melhor que dissesse tudo aquilo que aquele lugar significava. 152 Dois guardas guardavam o portão, segurando nas suas mãos as mais poderosas armas. Quem entrava naquele lugar como prisioneiro, não poderia a nenhum custo voltar a sair dele, por isso, naquele lugar só eram colocados os guardas maiores, mais fortes e sem consciência. Não poderia ser de outra forma, o que ali dentro acontecia não era para ser passado para o exterior. As paredes daquele lugar eram tão negras como as histórias que nele haviam sido criadas. Ainda se podiam ouvir as lamúrias, as súplicas, os choros daqueles que ali haviam entrado, mas que nunca tinham saído. O lugar fedia a sangue, despojos humanos, todos os cheiros horrendos pertenciam àquele lugar. Não poderiam os prisioneiros ter sequer um pouco de dignidade antes de morrerem... O seu nariz tinha de ser já acostumado ao cheiro dos seus corpos, que saíram dali decapitados, decompostos, e seriam enterrados, se o fossem enterrados, se não servissem de comida aos corvos que andavam esfomeados e rondavam aquele lugar, aquela negra floresta. Em poucos dias, qualquer corpo ficava irreconhecível, os ossos acabariam por ser desgastados pelo tempo, ou enterrados pelas longas tempestades que existiam naquele lugar. Era incrível como aquele lugar não deveria ficar a menos de trinta quilómetros da cidade principal e o seu clima lá era tão diferente. Havia quem dissesse que as tempestades eram causadas pelas lágrimas dos prisioneiros que ali haviam morrido e que molhavam aquele lugar com as suas lágrimas, numa tentativa de fazer com que todos os pecadores e os pecados se afogassem. 153 É por estupidezes como estas que somos nós quem mandamos... Pensara para si mesmo o Presidente enquanto se lembrava de todo este conto. Começava a ouvir pequenos sorrisos vindos do fundo daquele corredor mal iluminado. Todos os grandes daquele governo haviam sido convidados por ele a virem assistir àquele deleitoso momento. Ninguém ainda tinha começado a torturar o rapaz, ele não o permitira. Queria primeiro ver bem como ele era. O que ele era... E queria ser ele o primeiro a fazer aquele rapaz sofrer. Passara toda a noite a imaginar no que deveria fazer. O quanto o deveria fazer sofrer para que ele entendesse que quem mandava era ele e mais ninguém. Que mais ninguém tinha o direito de se poder erguer contra ele. Ele era o supremo ser, o Deus, e só a morte poderia retirá-lo daquele posto, mais ninguém. Imaginava o que deveria fazer então, quando ele morresse. Se deveria empalhar a cabeça dele e colocá-la à entrada da cidade, como os antigos faziam, para relembrar a quem quisesse voltar a fazer-lhe frente que outros tentaram e pereceram. Ideias não lhe faltavam, aquele rapaz iria desejar nunca ter entrado naquela guerra, iria desejar nunca ter pensado por ele mesmo... E o mais importante, não iria sair dali com vida. Vira os seus colegas todos a olharem para ele quando chegara perto dele. Todos tinham o mesmo sorriso vitorioso nas suas faces, o sorriso que indicava que eles haviam vencido. - Caros senhores Almiton, Morgan e Nobert, terei de finalmente apreçar-vos por aquilo que fizeram... – Sorrira com 154 um tom sarcástico para os três homens que se encontravam próximos da porta da cela daquele homem. Nenhum dos três disse nada. Limitaram-se somente a anuir com a cabeça e a manterem um sorriso vago. Almiton não sabia porquê mas sentia uma náusea sempre que sorria por ser felicitado por capturar aquele homem. - Ele não disse nada desde que o prendemos... – Anunciou Morgan que parecia ser o mais feliz por tudo aquilo que se passara – Mas estamos à sua espera para o começarmos a interrogar. O Presidente olhou de relance pelo enorme vidro duplo que permitia ver as costas do prisioneiro. - Quererei ser eu o primeiro a fazê-lo falar... – A altivez da vitória tingia-lhe a voz. Entrara na sala, acompanhado por mais dois guardas e pelos três responsáveis por toda a segurança daquele país. O rapaz permanecia com a cabeça para baixo. Um leve riso vinha dele. Era como se ele estivesse feliz por ali se encontrar. Tudo aquilo tornava o momento sinistro. - És tu então o responsável por tudo isto? – Perguntara o Presidente, depois de mandar um dos guardas levantar a cabeçada do rapaz para olhar fixamente para os seus olhos. - Esperemos que sim... – Rira-se – Caso contrário, oh rapaz! Estais bem tramados! – A sua alegria era contagiante e inexplicável. Como é que ele poderia estar tão contente por se encontrar ali, naquele lugar, no lugar onde a morte se sentava. - Então, és um rapazinho que gosta de fazer piadas! – O Presidente ordenara a Morgan que o esmurra-se e logo ele saudou as suas ordens. O rapaz caiu no chão a cuspir sangue. 155 - O meu nome tem um pouco a ver com isso! – Cuspiu sangue contra a parede, mas nada parecia retirar-lhe aquele velho sorriso. - Não deves ter noção daquilo que te iremos fazer, pedaço de esterco! – A voz de Morgan demonstrava que ele não suportava aquele riso que o rapaz fazia. - Oh... – Balbuciara ele, mantendo-se animado – Eu sei perfeitamente aquilo que me irão fazer... Como já fizeram a muitos outros... Simplesmente, nada daquilo que me podem fazer será pior do que aquilo que eu fiz a vocês... – Rira levemente, cuspindo um pouco de sangue. - Que queres dizer com isso? – Indagara Almiton que parecia estar abatido com toda aquela situação. - Ele é um louco! – Gritara Morgan – Nada mais. Nada do que ele nos possa dizer nos vais interessar... Devíamos já estar a desfazer toda a sua cabeça... Senhor presidente, às suas ordens... – Morgan esperava que o Presidente tomasse a decisão para que ele pudesse matar aquele homem. - Tem calma Morgan, primeiro gostaria de o ouvir falar... – Morgan largou os colarinhos dele. Ele recostara-se contra a parede fria - Então, por que dizes que nada do que façamos pode ser pior do que nos fizeste... Devo relembrar-te que te capturamos... Perdeste... Ele riu-se incessantemente. Tão alto que Morgan pontapeara-o para o calar. Ele cuspiu mais um pouco de sangue. Sentia uma enorme dor, mas ao mesmo tempo uma enorme alegria. Talvez tivesse ficado de facto doido. 156 - Vocês não entendem? – Mostrara o seus dentes ensanguentados – Não importa se me prendem ou matam... O meu plano já está concluído... Eu já pus todas as pessoas a pensarem por elas mesmas... Já introduzi as ideias às pessoas, elas agora só terão de as seguir... Mas não importa o quanto você mate... Não poderá matar todas as pessoas... Elas finalmente têm algo pelo que lutar... Finalmente sentiram o doce sabor da liberdade, tudo aquilo que ela lhes pode trazer e elas não vão abrir mão disso. – Mantivera o seu tom animado apesar das dores – Não importa nada do que faça... A única coisa que ainda mantém o povo longe de si, são estas três pessoas... O símbolo da Justiça... A Proteção do Povo, quando de facto são a proteção de um simples homem... Você! – Olhou com o seu olhar mortífero para o Presidente, que, sem saber bem como, sentiu medo – Quando algum deles decidir retirar as suas tropas da sua frente, ou quando entenderem que são eles grande parte do seu poder, que você é que deveria respeitá-los e não o contrário, que poderá fazer? – Continuou a rir-se – Quem lhe poderá prometer que eles serão para sempre fiéis? Quem lhe poderá prometer que não será um deles a enlouquecer e a apontar uma das suas armas na sua cabeça e disparar? Sem povo ou sem eles, é você a escumalha que anda neste mundo... Um pequeno pedaço da mais refinada merda, que não irá fazer mais nada senão implorar pela sua vida e esperar que alguém atenda a prece. Todos os homens permaneciam em silêncio e por um momento ele soubera que tinha feito a sua ideia entrar na sua mente. Somente o seu sorriso era audível naquele lugar. 157 - Cala-te, Cão! – Gritara Morgan, enquanto corria para ele e preparou toda a sua força para o atingir com o seu pé bem em cheio na garganta e matá-lo. A imagem da sua mãe veio-lhe à cabeça. A imagem daquele dia triste e melancólico, em que ela olhou com os belos olhos para ele e disse Não tenhas medo, a mamã ama-te! Veiolhe o sorriso da sua avó que o ensinou tudo aquilo que ele sabia. O da sua irmã que se encontrava agora de pé e pronta a correr com ele por todos os campos que a morte plantara e por fim, vira Carly, que lhe dizia para não ter medo e sabia que havia-lhe deixado mais do que o que lhe era permitido. Havia-lhe deixado todo um novo mundo. Sentiu a sua garganta a ser destruída, mas a dor não surgiu... Ele não sentiu medo... Não sentiu nada... Talvez fosse a misericórdia de algum Deus piedoso ou simplesmente o seu corpo que já se habituara à dor de uma vida inteira. Não importava... Apenas soube que morreu a lutar pelo que defendia, morreu a lutar por aqueles que amava... Morreu a lutar por milhões de pessoas que não conhecia, por quem nunca havia passado na rua, de quem nunca havia falado... Algumas delas provavelmente haviam sido arrogantes, maliciosas, incompreensíveis com ele, ou com aqueles que ele defendia, mas não importava... Não importava as ideias que ele tinha ou os outros tinham. Finalmente entendeu as palavras da mãe que lhe dissera: Filho, podemos não ter os mesmos Deuses, mas certamente temos os mesmos demónios. Morreu... Mas algo no ar, na natureza, no mundo, fez com que o corpo dele perecesse, mas ele não... O vento levou as 158 suas palavras para entrega-las a todas as pessoas... A lua tomou os seus olhos, para indicar a todos, que seriam guiados ao novo dia... 159 15 A notícia havia atingido todo o império como se de uma bomba se tivesse tratado. Todos sentiram a dor ao saberem da morte daquele que lhes demonstrara o caminho para a liberdade. Fez-se silêncio naquela cidade ruidosa, por um dia, só se pôde ouvir os poderosos a festejarem por terem derrubado aquele que ameaçara derrubá-los. O desânimo aumentara. Todos sentiam algo a crescer dentro deles, todos sentiram o mesmo quando ouviram aquele velho homem a falar, dizendo que havia morto aquele que eles tinham invocado como herói. E que demonstrara que nada podiam fazer contra eles, que era impossível lutarem contra tamanho poder. Naquele dia, mais de dez protestantes foram mortos, enquanto grafitavam nas paredes. Descansa em paz amigo, que em breve viveremos... Mas se morreram dez no primeiro dia, no segundo morreram mais quinze, enquanto honravam a memória dos que morreram em luta e enquanto relembravam ao seu povo outros que haviam perecido anteriormente. E se se contavam as do império, podiam-se também contar as que aconteciam fora dela. Por todo o mundo iam-se 160 multiplicando as manifestações contra todo o poder. Todos se haviam juntado num só; o vento havia feito o seu trabalho de forma correta e tinha levado a sua palavra bem para lá daquelas fronteiras. Todavia, os poderosos mantinham-se animados. Nenhum parecia temer o que lhes poderia acontecer. É só uma tentativa de demonstrarem o que querem, uma mera esperança, nada mais. Diziam eles nos seus típicos jantares. Ninguém acreditava que alguma vez, alguma daquelas pobre almas conseguisse levar a sua avante. Será carne para cães! Relembravam alguns. Mas a escuridão demonstrava uma realidade diferente. O murmúrio que se ouvia era leve, fraco, quase calado, mas existia. Ainda havia quem falasse com subtileza sobre o que se passava, outros falavam mais abruptamente, mas todos se preparavam para fazerem o que deveria ser feito. Para terminarem o legado que aquele estranho rapaz havia começado. Há quem diga que a escuridão costuma ser sinal de trevas. Há quem tenha medo dela, e fuja a sete pés, pois a escuridão é onde os demónios andam... Começava-se agora a entender-se que nem todas as histórias que nos são contadas são verdadeiras. Na escuridão não era onde os nossos demónios avançavam... Não, eles avançavam à luz do dia, bem à vista de todos. De cabeça erguida e sorriso na cara. Enquanto os anjos... Esses andavam de asas partidas, cara suja, braços gastos, cansados, com as lágrimas a retirarem-lhe o carvão da cara... Esses andavam na escuridão, com frio, calados a fazerem tudo aquilo que lhes era mandado. 161 Talvez fosse isso. Talvez o mundo fosse agora dos demónios e não dos anjos, enquanto nas histórias que nos contam no berço da nossa cama, nos dizem sempre que o bem vence, ao que parecia, na história da vida era tudo diferente. Eram os demónios os únicos que venciam, e que venciam sem sofrerem quaisquer derrotas para tal. Tudo talvez estivesse perdido, mas quiçá, não fosse possível ainda, numa réstia de uma última esperança que poderemos ter por tantos contos que nos fazem acreditar que algo de bom ainda pode surgir. Carly havia chorado mal recebera a notícia, naquela triste manhã quando acordara e ligara a televisão. Chorara, gritara, gemera... Mas no fim tivera de conter toda a dor. Chorar, gritar e gemer não eram o ritual para trazer ninguém de volta. Ficara noite adentro acordada a olhar para a carta que ele lhe escrevera. Naquela altura não conseguia entender tudo aquilo que sentia. Era como se sentisse tudo e ao mesmo tempo não sentisse nada. Como se se tivesse tornado vítrea. A televisão acordara-a. O Presidente fará hoje uma declaração durante o debate semanal do parlamento. Medidas de extrema segurança têm sido tomadas à porta do parlamento. A milícia armada, a polícia e os militares têm-se intensificado... Carly ouvira tudo aquilo. Sabia que só havia algo a fazer. Aquele teria de ser o dia em que tudo deveria terminar. 162 Chegara a noite. Era a altura em que o presidente iria fazer a sua declaração perante todo o povo. As pessoas tinhamse juntado em casas, em cafés, em bares, todos se preparavam para ouvir o que aquele homem teria a dizer para uma nação inteira. A cara carrancuda e amarga dele surgira em todos os televisores. Saudações a todo o povo, Como vosso presidente venho aqui hoje falar-vos. O nosso país foi abalado por um louco que demonstrou ideias irreais e mentiras para tocar numa nação ferida. Nada passou senão de um mero teatro de alguém que pretendia causar o caos e nada mais. O vosso governo sempre foi um governo que pensou em primeiro lugar no seu povo. Sempre preocupado com o bem comum e nada mais. Vários foram já os países que pereceram ao longo dos tempos, mas não o nosso, não, esta nação sobre o olhar de Deus prevalecerá sobre todos os demónios. Foi isso que vimos... O demónio que tentou destruir este império caiu... Deus assim pretendeu e sobre a espada, que Deus nos deu para nossa justiça, foi morto. Deus demonstrou claramente que pretende que este governo prevaleça sobre tudo e todos, como tal, nada mais poderemos fazer senão seguir-lhe a vontade. Muitos eram aqueles que escutavam. Poucos os que acreditavam. Alguns choravam, com medo do que estaria para vir, foi então que, quando muitos estavam prestes a desistir, 163 todos os ecrãs ficaram pretos e deles somente se ouviu uma voz destorcida. Caros amigos, Perante as palavras do nosso caro presidente, penso que todos concordamos que estará na altura de avançarmos pelas trevas e derrubarmos aqueles que ao longo dos tempos nos oprimiram. Por um momento, um homem tirou-nos das trevas e demonstrou-nos a luz em que devemos viver... Está na altura caros colegas... Carreguem as vossas armas, ergam os vossos estandartes e avancemos para esta luta final. Mascarados de heróis ou de vilões, ou sem qualquer máscara, apenas saiam à rua, hoje, agora, e avancem sem medo até ao lugar onde aqueles que nos deviam ouvir e proteger se encontram e juntos, começaremos um mundo novo. Vejamos pela primeira vez desde que somos vivos e sol a raiar e, quando isso acontecer que com ele raie um mundo novo. Carly escutara as palavras que vinham não se sabia de onde. A mensagem de esperança que todos esperavam ouvir. Ela encontrava-se nas ruas escuras onde as pessoas todas começavam a gritar e a correr, de punhos elevados. Aos poucos as ruas iam-se enchendo. O barulho zoava e o vento levava os gritos de ordem bem longe, para lá do espaço. Viam-se estrelas vermelhas, punhos cerrados, máscaras de Guy Fawkes, Jokers, coroas reais, circle-A... Entre tantos 164 outros símbolos e cores. Todos avançavam a uma só voz, numa só marcha... Ninguém se importava com quem eram ou o que eram... Naquela altura era tudo igual... Avançavam em direção à cidade que havia sido construída para abrigar os poderosos. - Eles vão entrar! – Gritara Morgan. - Que vais fazer? – Questionara Almiton que se encontrava ao seu lado, observando todos aqueles que iam avançando com sorrisos iluminados na face... - O que achas que eu vou fazer! – Ele estava completamente exaltado ao ver tudo aquilo que se passava – Vou mandá-los disparar! – As palavras saíram da sua boca com toda a certeza, sem medo, nada disso existia para ele. - Estás louco?! – Almiton acreditara por um momento que tudo aquilo iria fazer o colega mudar de ideias, mas estava enganado – Não podes simplesmente disparar sobre todo o povo! - Vais ver se não posso! – Ladrou ele – Preparem as vossas armas! – Deu a ordem pelo intercomunicador. Alguns militares levantarão as armas, mas poucos, todos os restantes mantiveram as suas armas apontadas para o chão. - Preparar armas! – Gritara de novo. Nenhuma arma fora levantada senão aquelas que já o haviam sido. Almiton rira-se. - Estás-te a rir de quê?! – Na cabeça surgira um veia enorme por causa da falta de respeito que os guardas tiveram por ele. - Não consegues entender... – Manteve o riso – Tu podias ser o chefe deles, mas eles pertencem ao povo, eles juraram 165 proteger aquelas pessoas, não este império, portanto nenhum te vai ouvir... No meio daquela multidão encontrar-se-ão avós, pais, irmãos dos que têm uma arma nas mãos, e isso é mais importante que um tipo que eles não conhecem de lado nenhum... Morgan estava cego de raiva, de tudo o que se passava. Não disse mais nada. Pegou na arma e seguiu em direção à multidão. Almiton pensou em pará-lo, mas sabia perfeitamente que alguém o pararia antes dele. - Baixa a arma filho! – Exclamou um oficial apontado a sua arma ao soldado que erguia a sua arma contra o povo – Não faças nada de estúpido. O rapaz da primeira fila fez o que ele lhe mandou e baixou a arma, enquanto via o povo a avançar para ele. Todos os que haviam erguido as armas contra o povo baixaram-nas também. - Cambada de incompetentes! – Gritara Morgan enquanto avançava por entre os soldados com a arma na mão – Eu mostro-vos como se faz! – Apontou a arma a alguém aleatoriamente do povo e disparara, matando um jovem que seguia na linha da frente. Ouviram-se gritos. Gemidos. Alguns pararam para prestar auxílio. Mas os restantes continuaram, sem medo. Avançando. Ouviu-se mais um tiro, mas desta vez fora Morgan quem caíra no chão, morto, por quem não se sabia, mas que importava, eles eram agora um só. 166 Todos pararam em frente aos soldados. - Avançaram connosco, ou contra nós? – A pergunta surgiu de uma pequena rapariguinha que não deveria ter mais de dez anos, mas que falava eloquentemente. O Oficial ficou por um momento a olhar para o rosto despido daquele pequeno ser e deu ordem para que todos avançassem juntamente com o povo. Estava na altura de fazer o que era certo. Almiton não podia fazer mais que sorrir ao ver tudo aquilo. O povo havia-se unido, aqueles que o prometeram protege-lo haviam-se juntado a ele, nada o poderia parar agora, o amanhã começaria com uma nova alvora e uma nova brisa cheirosa de primavera. O Presidente vira-se obrigado a fugir do parlamento, quando centenas de pessoas o invadiram. Todos os que lá se encontravam tentaram fugir. Alguns conseguiram, outros foram presos pelos militares muito antes de conseguirem fazer algo, mas ele não, ele havia fugido. Deus não iria deixar que ele fosse preso. Não, Deus tinha uma ideia melhor para ele. Deus queria que ele sobrevivesse, que conseguisse prosperar... Poderia demorar algum tempo, mas todos são corrompíveis e ele conseguiria ter de volta o seu império. Era só chegar perto de algum dos grandes, pedir ajuda aos governos de fora e em breve tudo voltaria a ser como dantes. Os interesses económicos são superiores a quaisquer outros. Ia avançando pela noite fria, caminhando o mais depressa possível, enquanto ouvia atrás de si os risos, as 167 palavras de ordem, a felicidade daqueles que haviam vencido a primeira ronda, mas teriam eles vencido a guerra? As pernas dele já eram velhas e gastas. Caíra no chão frio e coberto por uma fina camada de gelo. Tentou-se levantar, mas reparou que alguém se aproximara dele. Levantou os olhos para lhe ver a cara. Viu a cara de uma rapariga com os seus olhos azuis-esverdeados que brilhavam à luz da lua que se enchera naquele dia e brilhava mais que nunca. Ela apontava-lhe uma arma à cabeça e sorria loucamente. Por um momento a cara dela desaparecera e aparecera nela a maquilhagem e o sorriso louco do homem que iniciara tudo aquilo. E então ele lembrara-se, enquanto suspirava numa súplica que não lhe saía, daquelas palavras que ele lhe dissera: O que fará, quando um louco, sem nada a perder, chegar à sua beira, com uma arma na mão, apontá-la contra a sua cabeça e... disparar... As palavras surgiram como uma profecia. Caiu no chão. O sangue escorrera-lhe pela cabeça, mas o chão não alterara o seu tom negro, como o breu. Apenas um brilho novo ele ganhara, nada mais. Carly não sentira qualquer remorso naquilo que fizera. Era como se ela não sentisse mais nada, como se estivesse louca... Apenas conseguia rir-se de tudo aquilo... O riso que ele lhe dera... - Que foi que fizeste?! – Nobert surgira por trás dela com a arma em punho. 168 Carly voltou-se. Deixou cair a arma no chão. Não tivera medo do que lhe poderia acontecer, já havia feito o seu trabalho, agora talvez fosse altura de descansar. - O que deveria ser feito... – Retorquira ela. - Eu devia matar-te aqui e agora! – Gritou ele, enquanto via o corpo do presidente jazido no chão - Então, por que não o fazes? - Nem eu mesmo o sei... – Disse ele baixando a arma. Uma enorme explosão surgira por detrás dela. O parlamento havia todo sido incendiado, bem como alguns outros símbolos da opressão. O povo gritava de alegria. Dançavam como louco em volta das chamas que limpavam os pecados que haviam sido cometidos e iluminavam o céu escuro. - Por que fizeste tudo isto? – Perguntou ele deixando cair a arma. Não podia matá-la. Não, não o podia fazer. Ele sentia que o seu lugar era agora com o povo, não com aquele velho homem cujo sangue escorria agora pelo chão. Tudo o que ele queria era uma pequena palavra de conforto, para lhe limpar a alma. - ... That we here highly resolve that these dead shall not have died in vain—that this nation, under God, shall have a new birth of freedom—and that government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth.4 – As palavras dela ecoaram à medida que a multidão crescia nas ruas e não se ouvia mais senão o doce cantar da liberdade que todos esperavam. 4 que todos nós admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da terra. 169 Carly desaparecera nas sombras e Nobert ficara ali. Ajoelhado. Chorando. Enquanto ouvia todos os cânticos daqueles que, diferentes, se uniram por um bem comum. O Sol nascera, forte, radiante, naquela manhã de inverno. O cheiro do fumo continuava a pairar por toda a cidade. Podia-se ver o rasto da destruição, mas o mais importante era que todos festejavam ainda pelo que se havia passado. Todos olhavam de cabeça erguida para o céu e viam tudo aquilo que agora era deles. O gelo derretera das ruas, aos poucos... E no derreter suave da neve, Reparo na flor que sinaliza uma nova era Fazendo lembrar a quem deve, Que em breve, nascerá a primavera 170