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LOUCURA
SÉRGIO BRANCO
Prólogo
Eu vou contar-vos a história de um herói. Não um herói como
aqueles que veem todos os dias na televisão, nos livros, ou em
qualquer outro lugar...
Não será um herói que veste uma capa com um símbolo
somente dele...
Esta é a história de um herói que era demasiado louco
para o mundo... Mas, foi graças a essa loucura, que ele
conseguiu fazer com que...
O herói que me ensinou que, ser louco num mundo
fodido, é uma bênção...
Sofia era uma mulher como qualquer outra. Tinha o seu
emprego numa loja vulgar, sem grandes diferenças das outras.
Acordava todos os dias às sete da manhã para ir para o
emprego. Tomava banho, preparava-se, apanhava o autocarro,
vestia o uniforme, picava o ponto, e passava o dia inteiro a sorrir
para as pessoas...
No final do dia, chegava a casa... Despia-se, enchia um
copo com vinho, de uma garrafa das mais baratas que se poderia
comprar, bebia-o e lamentava-se por não ter um marido, por não
ter um namorado, por não ter dinheiro para comprar aquilo que
os outros tinham. Queixava-se da casa, queixava-se do emprego,
queixava-se de tudo aquilo que possuí-a...
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Desculpem...
Não, não é esta a história do nosso herói... Esta é a
história de uma mulher normal... Talvez a vossa história, mas se
não for, a vossa história não estará muito longe desta realidade.
Se Sofia neste preciso momento tivesse perdido um
pouco do tempo, que gastava na loja para se lamuriar com as
clientes mais conhecidas, e tivesse olhado pela janela, poderia
ter visto o herói de que vos falo...
Todas as pessoas pareciam reparar nele. Era impossível
quase não repararem numa figura como aquela. Ele vestia um
fato roxo, muito feio e, como tal, muito vistoso... Tinha a cara
maquilhada e caminhava como se fosse um pinguim, em passos
curtos e calmos, escondendo o mal que acabara de cometer.
Três mil passos... Pensava ele; Três mil passos, nem mais
nem menos, só três mil...
Na mão dele levava um telemóvel. Não a última
invenção tecnológica, mas também não um telemóvel muito
antigo. Era um telemóvel normal, como qualquer outro, nada
muito diferente daqueles que todos os dias temos nas mãos.
Três mil... Parou e carregou num botão do telemóvel.
Nada aconteceu.
Terei ligado bem os fios? Voltou a carregar no botão.
Nada aconteceu.
Última tentativa! Pensou ele e carregara pela última vez
no mesmo botão esperando que fosse daquela vez que tudo
corresse como ele havia planeado.
O som de uma explosão ecoou por toda aquela avenida
bem movimentada.
Ele saltou de alegria, com um riso que se poderia
considerar de uma felicidade imensa, quase demente.
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As pessoas gritaram em socorro e começaram a fugir de
medo. O medo de estarem a ser atacadas. Corriam como
qualquer animal corre, quando sente que a sua vida está em
perigo.
Nas notícias de hoje, uma história que está a chocar
todo o país. A Estátua do Imperador foi destruída.
Ainda não se sabe ao certo o que aconteceu, pensa-se
que poderá ter sido um atentado causado por terroristas.
A polícia já está a investigar, mas parece ainda não
haver suspeitos de quem poderá ter feito este ataque, nem se
sabe ainda se terá sido algum ataque terrorista.
O Presidente já fez uma declaração dizendo:
“Caros cidadãos, não se preocupem com a explosão que
aconteceu hoje, não há nada que devam temer.
Estão seguros.
Já foram disponibilizadas todas as forças policiais
possíveis para começarem a investigar o incidente, e a
segurança foi reforçada.
Não há motivos que nos levem a acreditar que terá sido
um ato terrorista; pensa-se que poderá ter sido somente o
rebentamento de uma conduta de gás, que passa mesmo por
debaixo da estátua.
Peço que todos se mantenham calmos, não haverá
motivos para preocupação...”
- Consegues acreditar nisto? – indagara um mulher baixa
que se encontrava a olhar para a televisão. Onde via a imagem
de um homem alto, de cabelos brancos, no seu rosto surgia uma
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queimadura, há muito disfarçada com o tempo, tinha um ar
imponente e discursava muito suavemente.
- Deve ter sido algum puto, daqueles que acha que é
capaz de mudar o mundo... – Riu-se a rapariga, muito mais nova
que ela, que se encontrava ao seu lado.
- Não sei se será somente isso Carly... – A mulher parecia
um pouco ansiosa – O mundo parece estar a querer mudar. Este
pode ter sido o início.
Carly riu-se.
- Tens de parar de ler esses teus livros antigos. – riu-se Um homem somente não pode mudar o mundo, disso podes ter
tu a certeza.
Uma luz vermelha acendeu-se naquela sala. De seguida
um sinal sonoro entoou por ela.
- Parece que o doente do quarto 34 está a precisar de nós.
- Provavelmente só quer mais comprimidos, ou olhar
para as nossas mamas! – Carly era enfermeira e trabalhava no
Hospital dos Anjos Loucos. Apesar do nome, aquele hospital era
tudo menos um manicómio. Era um hospital normal. O nome
que tinha derivava de uma lenda antiga que um anjo
enlouquecera e fora expulso do céu, e que depois fundara aquela
cidade. Histórias que as pessoas vão contando umas às outras.
- Estou cansada deste velho... – reclamara a outra – Mas
sou uma enfermeira. Tenho de ser boazinha. – Saiu da sala.
Carly ficara ali, a olhar para a televisão. A pensar que
todo aquele aparato tinha sido criado por algum lunático que
pensava ser capaz de mudar o mundo, mas que, como tantos
outros, nunca conseguiria.
Ela estava de facto certa sobre o facto de ele ser um
lunático... Mas estava bastante enganada quanto à outra parte.
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- Caros senhores espero que já tenham informações
quanto ao que se passou hoje, e que já tenham detido aquele que
fez este atentado. – O Presidente falara para as vinte pessoas que
faziam parte do conselho de estado daquele país, mas ao que
parecera nenhum se dignara a responder. Todos sabiam o
temperamento que aquele homem tinha, e nenhum tinha a
resposta que ele queria ouvir.
- Peço desculpa, Senhor Presidente. – Um homem na
casa dos quarenta anos, alto, musculado e com um ar robusto
tomara a palavra, mas em tom calmo e baixo, com medo do que
poderia vir a acontecer-lhe – Tentamos tudo o que pudemos, mas
ainda não foi possível identificar quem foi o autor do atentado.
- Está-me a dizer que os Serviços Secretos, que deveriam
ser a máxima na segurança neste país, e com os quais nós
gastamos tanto dinheiro para conseguirmos ter as melhores
tecnologias, não conseguem encontrar um simples homem. – o
tom dele era de sarcasmo e de irritação. Aquele homem sempre
odiara a incompetência, sobretudo a incompetência daqueles que
selecionara para o ajudarem a comandar todo aquele país. Mais
do que a incompetência deles, aquilo revelava que ele mesmo
era insciente por não conseguir encontrar pessoas à altura dos
seus cargos.
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- Peço desculpa... – O homem limitara-se a responder
desta maneira, tentando não acordar a fera adormecida que
aquele homem tinha sempre dentro dele.
- Desculpas não nos farão conseguir apanhar este
homem, caro Senhor Almiton. Pensei que já soubesse isso. –
sentenciara o Presidente, cortando a esperança que ainda residia
viva no interior do homem – E você, caro Morgan, o que é que a
polícia já conseguiu investigar...
As atenções vidraram-se para um homem baixo, com as
sobrancelhas quase coladas. Não tinha ar de atleta, era um pouco
gordo para se ser sincero. O seu olhar era vago, não
demonstrava ter grande confiança e poder-se-ia dizer, caso não
fosse o facto de não se poder olhar para o seu interior, que ele
tremia como uma árvore prestes a tombar.
- Senhor Presidente... – a voz tremia-lhe – Conseguimos
apurar que as pessoas viram um homem vestido com um fato
roxo e com a cara maquilhada a avançar pela rua, depois de ter
deixado algumas mochilas verdes perto da estátua...
- Como se fosse o Joker?! – interrompeu-o uma mulher,
com cerca de trinta anos, não demonstrava ser muito bonita,
tinha já a cara muito gasta. Se não se soubesse primariamente a
idade dela, achar-se-ia que ela seria muito mais velha.
- Há quem afirme que sim. – Retorquira Morgan.
- Quem? – indagara o presidente, após lançar um olhar
desaprovado à mulher por esta o ter interrompido.
- É um vilão da banda desenhada do Batman. – explicara
a mulher. O facto de o Presidente não saber aquele facto era algo
que não a admirava, afinal, ele nunca fora muito dado a cultura,
nem a mais nada senão a política.
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- Está-me então a dizer, caro Morgan, que um doido
qualquer, andou vestido de um vilão de uma série de crianças
qualquer e que ninguém se dignou a apanhá-lo?
- Tentamos tudo o que estava ao nosso alcance. Muitas
pessoas e alguns polícias acreditaram que fosse simplesmente
um dos muitos artistas de rua que por aí se encontram, por isso,
ninguém prestou muita atenção.
- Não haverá hipótese de se conseguir saber onde as
mochilas foram compradas, ou os explosivos? – indagara um
velho homem, o mais velho deles todos, e ao que parecia pelo
qual todos tinham muito respeito. Apesar de não ser uma das
personalidades mais poderosas daquele país era uma das mais
respeitada naquele conselho, com tal o Presidente não se dignou
a interrompê-lo.
- Os explosivos foram feitos em casa... E as mochilas
podem ser compradas em qualquer loja, como tal não poderemos
investigar nada disso. – replicara Morgan com toda a calma do
mundo. Uma gota de suor correra-lhe pela face, ele sabia bem
que aquela poderia ser a última vez que estaria sentado naquela
cadeira.
Todos ficaram em silêncio. O Presidente colocara os
cotovelos apoiados naquela mesa de madeira negra. Entrelaçara
os dedos, apoiara o seu queixo neles e expirara.
- Estão-me a dizer que alguém se vestiu de palhaço...
Colocou algumas mochilas cheias de explosivos, à volta daquele
que é o maior ícone da sociedade moderna e que diz às pessoas
que têm de se vergar perante nós; Seguiu pela rua, explodiu com
a Estátua do Imperador e a polícia não fez nada? – o tom apesar
de calmo colocara os corações de todos eles a bater a uma
velocidade tenebrosa – Expliquem-me por que é que eu não
deverei despedir metade das pessoas que estão nesta mesa?
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Ninguém respondera. Ele não queria nenhuma resposta,
eles sabiam bem isso. Aquela era uma pergunta retórica. Era
uma maneira de todos ficarem com medo dele, a arma favorita
daquele Presidente que, apesar de ter sido escolhido por um
processo democrático trouxera uma completa ditadura àquele
país, quando muitos países se prepararam para se associarem e
formaram novas Uniões.
- Meus caros senhores... Devo relembrar-vos como
conseguimos tornar-nos no império que somos hoje? – a
perguntara voltara a ser algo a que ele não pretendia ver
respondido – Depois de muitos anos, conseguimos finalmente
formar diversas uniões entre os diversos países de todo o
mundo, para que conseguíssemos ser hoje aquilo que ninguém
mais o é... E estamos cada vez mais perto de nos podermos aliar
aos Estados Germânicos e quiçá à Nova União Soviética... E
talvez, em breve, conquistemos a União do Ouro Negro, afinal, a
nossa guerra tem dado frutos... E conseguimos tudo isto porque,
por muito tempo, fomos criando ataques terroristas. Pestes...
Guerras... Crises económicas, o que fez com que o povo fosse
ficando com medo, e nos aceitasse cada vez melhor... Para
segurança deles... Devo relembrar-vos que, caso este bandido
não seja apanhado nas próximas horas e caso volte a fazer algum
ataque, as pessoas começarão a achar que poderão voltar a lutar
pela sua liberdade e, se isso acontecer, todo o nosso trabalho
será em vão. Se o Império da Última Estrela cair, seguir-se-á as
restantes uniões e em breve viveremos num mundo livre. Eu
pensei que quando vos contratei estaria a fazer boas escolhas,
mas parece que vocês começam a falhar... Aqui nesta mesa estão
as vinte pessoas com mais poder deste império... – ele só lhe
chamava império quando não falava para o povo, quando assim
o era usava simplesmente a palavra país. Apesar de as pessoas já
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há muito saberem que aquilo era um império, era uma maneira
de conseguirem entrar na mente delas e moldá-las. – Por isso,
acho que é do interesse de todas que este império se mantenha...
Devo relembrar que, qualquer um que perca o cargo, ou que eu
tenha de despedir, ou qualquer outro motivo que me faça
considerar, levará a que sejam mortos pelas nossas forças
especiais... – Todos engoliram a seco. Ambos sabiam desde que
tinham entrado naquela sala pela primeira vez que a única saída
seria a morte. Aqueles vinte homens sabiam os segredos mais
obscuros daquele país e do mundo todo, por isso, se algum fosse
expulso daquele conselho, seria logo morto. Sem qualquer
piedade. – Penso que todos terão entendido a minha mensagem.
Acho que será altura de repensarem bem naquilo que pretendem
fazer e acho que deverão encontrar uma forma de prender esse
lunático, pois, caso ele consiga fazer algum atentado a mais
algum ícone da nossa sociedade, as pessoas começarão a pensar
que podem mudar este mundo onde vivem.
O discurso terminara. Ninguém se dignara a falar. Tudo
aquilo tinha sido mais que entendido por todos. Ou conseguiam
prender aquele homem que havia destruído o maior símbolo de
poder daquele Império, ou seriam todos mortos.
Entreolharam-se. Cada um tinha um sentimento estranho
na sua barriga, apesar de não o quererem demonstrar. Que
sentimento era aquele nenhum sabia ao certo.
Agora seria a hora de eles voltarem a tomar as rédeas de
toda aquela situação e de conseguirem prender o homem que
causara todos aqueles problemas, afinal, não deveria ser difícil
com tudo aquilo que tinham, encontrar um simples homem.
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Havia-se passado três dias desd’a destruição da Estátua
do Imperador. Não se havia encontrado o suspeito principal.
Ninguém parecia saber quem aquele homem poderia ser, nem as
câmaras espalhadas pelas ruas pareciam ter apanhado o lugar
para onde ele havia ido. Ele tinha desaparecido por completo no
meio daquela confusão toda, provavelmente já sabia tudo aquilo
que lhe iria acontecer caso alguma vez fosse descoberto.
Pensava-se que ele estivesse com medo, o que seria algo
ótimo para aqueles que comandavam o país. Seria apenas um ato
isolado que em breve as pessoas se esqueceriam, nada de muito
preocupante, afinal, todos já se haviam habituado a lunáticos
com ideias extremistas.
Harlon encontrava-se sentado na sua secretaria. Ele era o
dono de todos os bancos daqueles Império e de mais de metade
do mundo. A sua família fora sempre uma das cinco famílias
mais ricas do mundo. O mais engraçado em tudo isso é que
ninguém parecia conhecer o sobrenome dele, para a maioria da
sociedade a família dele era uma como tantas outras, todavia, a
família dele comandava cerca de 25% de toda a economia
mundial. Só os bancos que ele geria eram os originadores de
17% dessa fortuna, tudo o resto vinha de pequenas empresas
espalhadas pelo mundo, algumas centrais energéticas, tratos com
os diversos governos e da venda de petróleo.
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Era um dos principais rostos que comandava a economia
mundial. Se ele quisesse que algum país entrasse em crise
eminente, ou se quisesse que algum território caísse aos seus
pés, bastava-lhe uma pequena chamada e tudo isso acontecia.
Ele tinha cerca de sessenta anos. Era calvo, com o corpo
deformado devido a todo o álcool que ingeria por dia, devido a
todo o tabaco que fumara ao longo da sua vida e, sobretudo, por
passar a maior parte do tempo sentado.
A única atividade que tinha era quando contratava
alguma rapariga que lhe agradava aos olhos para perder a
dignidade com ele. Apesar de ser casado, uma mulher que ele
arranjara por interesses partidários, a luxúria sempre fizera parte
dele. E não havia nada melhor do que sentir sempre o sabor da
carne fresca. Se tinha dinheiro, então que o gastasse à maneira
dele.
Apesar de ter passado pelo período de transação onde a
crise económica se instalara, onde a guerra nuclear começara,
onde metade dos países haviam sido ingeridos pelos maiores
mercados económicos mundiais, período esse que ficara
conhecido como O Grande Banquete, onde milhares de pessoas
morreram, especialmente aqueles que se opuseram com unhas e
dentes aos novos governos, ele não podia deixar de continuar a
sentir um leve arrepio na espinha quando se lembrava que
alguém havia destruído a Estátua do Imperador.
Uma estátua que ele mesmo havia ajudado a levantar.
Aquele fora um investimento de alguns milhões. Chamaram os
melhores escultores e artistas do mundo para que eles criassem
aquela que seria a base de todo o novo império que começava a
renascer.
O desenho fora simples, mas muito bem conseguido. A
imagem de um homem sobre meia esfera solar, que demonstrava
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claramente que eles se encontravam acima de todos. O homem
possuía na mão a balança da justiça, dentro de um dos pratos um
molho de moedas e no outro o povo. Os pratos encontravam-se
equilibrados, o que muitas pessoas acreditavam que simbolizaria
igualdade, algo que tinha sido sem dúvida o maior erro deles.
Por baixo da estátua a mensagem À saúde dos fortes e daqueles
que Deus protege...; que demonstrava claramente que aquele era
o símbolo dos grandes, não da minoria que era o povo.
Todavia, ninguém parecia ter entendido a real mensagem
que aquela estátua mandara, o que por um lado havia sido bom.
Todos pensavam que aquela estátua queria dizer que, sim eram
os poderosos aqueles que comandavam, mas eles tinham direito
à igualdade.
O facto de depois eles terem controlado os media para
dizerem exatamente isso, tinha feito com que ninguém se
opusesse àquele que era o novo símbolo do grande império que
se havia construído.
Pensar agora que essa grande estátua tinha sido destruída
por um lunático qualquer, deixava-o perturbado. Começara a
sentir o coração a bater cada vez com mais força, o corpo a ficar
cada vez mais quente, um leve sabor a cobre a vir-lhe à boca.
A mão que segurava o copo de Brandy tremia-lhe.
Aquilo não era raiva, nem medo.
Caíra para o chão. O seu corpo criara um som poderoso
ao embater, fazendo tremer o chão todo.
Ele estava a ter um ataque cardíaco.
- Podem-me dar novidades quanto ao que aconteceu ao
Sr. Harlon? – a voz do Presidente parecia mais irritada que
nunca.
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Naquela altura só se encontravam 19 pessoas sentadas
naquela mesa, o lugar de Harlon estava vazio.
- Parece que o homem tivera um ataque cardíaco.
Sobreviveu e foi mandado para o Hospital dos Anjos Loucos. –
retorquira um homem magro com uma cara mesquinha e que era
o responsável por proteger as figuras do império – A minha
equipa de proteção está no local para impedir que nenhum
fanático atente contra a vida dele.
- Espero que a sua equipa consiga protegê-lo, Nobert, já
chega de incompetências por uma semana. E é importante que
sejam os melhores médicos a tomarem conta de Harlon. Se ele
morrer poderá ser visto como uma manifestação do lunático. O
que poderá fazer as pessoas pensarem que poderão começar a
retaliar contra o seu governo.
- Não se preocupe senhor presidente. Tomamos todas as
medidas de segurança, ninguém que não seja trabalhador e esteja
devidamente credenciado, pode entrar naquele quarto onde o Sr.
Harlon descansa.
- Nós estamos também a proteger o lugar. – Aquela
parecera a altura para Almiton se demonstrar – Já enviamos
vários agentes para o local, para aumentarmos a segurança. Eles
vão lendo as fichas e as credenciais de todos aqueles que
trabalham no hospital, para ver se há alguém com quem nos
devamos preocupar.
A sala ficara mais uma vez em silêncio. Nunca ninguém
sabia se o facto de o Presidente não responder era algo bom ou
não. Nunca se poderia dizer ao certo o que os silêncios dele
poderiam significar.
- Espero que a comunicação social passe a mensagem de
que isto foi apenas um mero ataque cardíaco e nada mais, cara
Edlin. – Olhara para uma mulher com cerca de trinta anos, mas
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que aparentava ser mais velha - Que em breve o senhor Harlon
estará em casa. Temos de convencer as pessoas de que isto não
foi um atentado quase bem sucedido, mas sim um mero ataque
cardíaco e nada mais. Que em breve o senhor Harlon estará em
casa, junto da família, nada sobre este acontecimento deverá ser
retratado como um ato feito por aquele que muitos já apelidam
de herói do povo.
- Não se preocupe... Nós faremos aquilo que é suposto
fazermos. – Ela tentara esconder o tom amedrontado que tentava
sair da sua boca, não podia enfraquecer naquele momento.
- Devo relembrar-vos que se passaram três dias desd’o
incidente... As pessoas vão falando na rua sobre tudo aquilo que
aconteceu. Foram raras as que acreditaram que aquilo havia sido
uma mera explosão de gás... Portanto, é bom que o Sr. Harlon
saia com vida daquele hospital, por que, tendo sido um atentado
ou não, poderá ser um gatilho para as pessoas acreditarem, e não
há nada pior que a fé do povo.
As palavras tornaram o ambiente ainda mais sinistro.
Ninguém respondera ao Presidente que mantinha o seu olhar
forte e tenebroso. Ambos sabiam que na mente dele não estavam
a surgir pensamento construtivos.
E a razão era essa, um homem sem qualquer fé, é um
homem que vivia simplesmente para aquilo que os outros
acreditavam, mas um homem com fé, esse seria sempre o
homem que morreria para ver o seu sonho tornar-se numa
realidade.
Carly deitara-se no sofá que fazia parte da sala de
convívio da ala de hospital onde ela trabalhava. Estava
completamente exausta. Ainda para mais um dos homens mais
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poderosos do mundo encontrava-se naquela ala, pelo que ela
tivera de passar por uma enorme peça de segurança, montada em
todas as entradas. Até mesmo na da casa-de-banho.
O que lhe valia era que em cinco minutos o dia de
trabalho dela teria acabado (mas o final é sempre o início de uma
história ainda não contada) e ela poderia finalmente ir embora,
sair daquele lugar. Era sexta e ela não trabalharia no dia
seguinte, portanto, já tinha combinado com algumas amigas e
iriam sair.
Já se encontrava pronta para sair do hospital quando, ao
passar pelo corredor que separava aquela ala de todas as outras
se deparou com algo que era no mínimo estranho. Um
enfermeiro que ela não conhecia ia avançando calmamente.
Com um passo lento e curto, parecia quase um pinguim a
mover-se.
Quando passara por ela ela notara que sorrira, um sorriso
que lhe causou alguns arrepios, além disso fizera um movimento
estranho com a língua e por um momento parecera que ele
piscara-lhe o olho, acontecimentos estranhos para um dia
normal.
Ela não reconhecera aquele homem, mas o mais certo é
que fosse algum enfermeiro de outra ala, afinal, num hospital
enorme como aquele, era impossível ela conhecer todos os
trabalhadores dele.
No entanto, sentira que algo estranho iria acontecer, mas
não sabia o quê. Seria simplesmente algum sentimento daqueles
que devesse ignorar, aqueles sentimentos que nada significam...
São meras ocasiões que, vá-se lá saber porquê nós temos.
O homem seguira calmamente em direção à entrada do
quarto onde se encontrava Harlon.
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Fora barrado imediatamente por dois homens que
possuíam um ar imponente e de poucos amigos.
- O seu cartão! – Inquira um deles num tom muito limpo
e forte.
- Calma companheiros! – exclamara ele com um sorriso
na face, procurando no bolso da sua bata pelo cartão e por mais
alguma coisa – Só venho administrar o antibiótico dele! –
mostrou um pequeno frasco de vidro com um produto
transparente no seu interior.
Os dois homens pareceram não prestar muita atenção.
Limitaram-se a olhar para o cartão e passa-lo por uma máquina
que confirmou a veracidade dele.
- Pode entrar. – ladrou um deles.
- Vocês deveriam sorrir mais! – dissera num tom
animado, um tom de troça.
Os dois homens continuaram sem lhe prestar atenção.
Abriram-lhe a porta e depois fecharam-na logo a seguir.
- Este mundo está cada vez mais malcriado! – exclamara
ele ao sentir as portas a fecharem-se.
Seguira em direção à única cama daquele quarto. Onde
dormia um homem gordo e fraco. Ligado a diversas máquinas
que o ajudavam a respirar.
- Tão poderoso... E agora tão fraco... – comentara ele – O
que vale é que em breve tudo irá acabar...
Procurara no bolso por uma seringa que havia posto lá.
Estava na altura de acabar o trabalho que viera ali fazer antes
que alguém desse por algo. Introduzira a agulha na borracha que
selava o topo do frasco e colocara uma enchera a seringa. Um
bocadinho a mais nunca fez mal a ninguém!
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- Dorme bem, gordinho! – rira-se demoniacamente e
espetara a agulha no peito do braço, mesmo numa das veias
principais.
O homem continuava a dormir, até que, nem dois
segundos depois, acordara. Olhara atentamente para o homem
que se encontrava debruçado sobre ele com o mesmo sorriso que
mantivera desde que entrara naquele lugar.
Harlon começara a sentir um calor a invadir-lhe as veias.
O seu coração acelerara-se, mas as máquinas não emitiram
nenhum sinal, afinal, o outro homem havia-lhas desligado.
Harlon começara a sufocar e a ter convulsões.
- Tempo de me ir embora! – exclamara ele.
Um dos seguranças olhara pelo vidro da porta para o
interior do quarto. Foi quando viu o enfermeiro que havia
entrado prestes a sair pela janela e Harlon a contorcer-se todo na
cama.
Chamara o seu colega. Deram o alerta e entraram
imediatamente no quarto, de arma em punho. Prepararam-se
para disparar contra o homem, mas só lhe conseguiram acertar
de raspão no braço, o que fez com que ele quase caísse do quarto
andar.
Mesmo assim, ainda deslizou por toda a barra metálica, o
mais depressa que conseguia. O braço doí-lha e a bata branca
ficara manchada de um vermelho vívido. Apesar da pouca
profundidade do corte, escorria bastante sangue.
Sentiu homens a gritarem uns para os outros e a
começarem a avançar na sua direção. Tinha de conseguir sair
dali o mais depressa possível, mas como? Se calhar era algo que
deveria ter pensado antes de ali ter entrado. Era incrível como
tinha planeado um ataque cardíaco e uma morte perfeita, todavia
não tinha pensado em algo tão simples e importante: como fugir.
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Continuara a correr por toda a rua do hospital. Uma rua
ladeada por uma estrada de alcatrão para os veículos poderem
circular. Começava já a escurecer, eram cerca das sete da tarde.
Não havia grande movimento naquele momento, senão o
movimento que começara a ser causado pelos guardas a
procurarem por ele. Não seria muito difícil encontra-lo. Ele não
tinha nenhum meio de poder fugir de uma forma rápida, nem
haveria nenhum lugar onde se pudesse esconder por algum
tempo que fosse. Que iria ele fazer?
Um carro parara em frente dele.
- Entre! – anunciara uma voz feminina.
O homem não pensara duas vezes. Limitara-se a seguir o
conselho. Afinal, fosse quem fosse aquela mulher, ele não tinha
nada a perder. De qualquer das maneiras poderia estar morto.
O carro arrancara com toda a calma do mundo. Ninguém
suspeitaria dela. Todos os seguranças conheciam aquele carro,
por isso, nunca a mandariam parar, nunca seria revistada, pelo
menos, não enquanto não fossem dadas ordens para isso. Passara
pela cancela que ainda não se havia fechado.
- Quem és tu? – indagara Carly olhando para o homem
que havia salvo, nem sabia bem ela porquê, nem como.
- Apenas um homem... – retorquira ele. O olhar dele era
vago. Não havia agradecido ainda o facto de ela o ter salvo,
mesmo tendo ela posto a sua vida em perigo, isso não parecera
significar nada para aquele homem, aquele rapaz, afinal, ele
deveria ter cerca de 25 anos, a mesma idade que ela – E tu quem
és? – indagara ele num tom seco, como se fosse uma pergunta
normal.
- O meu nome é Carly. – retorquira ela, também como se
aquilo se tratasse de uma simples conversa de amigos. Era como
se nada tivesse acontecido naquele momento, como se se fossem
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duas pessoas que se estivessem a conhecer numa circunstância
normal, e não duas pessoas que acabavam de fugir da polícia
governamental mais poderosa do mundo – Eu devo estar louca!
– disse por fim, pensado naquilo que havia feito. Mas não podia
voltar atrás, não podia simplesmente voltar ao hospital e
entregá-lo aos guardas, seria dada como cúmplice. Não podia
deixá-lo no meio da rua, caso alguma câmara filmasse, ela seria
executada por ter ajudado aquele homem a fugir depois de ter
morto uma das maiores figuras de estado. Agora era muito tarde
para se poder arrepender. Além disso, o seu dom de enfermeira
obrigava-a a levar aquele homem até a um sítio seguro e a tratar
da ferida que ele tinha no braço. Talvez não fosse esse seu dom,
mas sim algo diferente, algo que ela não conseguia entender,
mas o quê? O que era aquele sentimento que ela tinha naquele
momento que a fizera pegar naquele rapaz e ajudá-lo? Que
estupidez tinha sido esta que ela havia cometido, afinal, qualquer
que fosse o desfecho daquela história, só por sorte é que ela não
passaria por cúmplice daquele crime. Só por sorte é que ela não
seria condenada à morte.
- Somos todos loucos! Alguns é que tentam escondê-lo!
– Declarara ele num tom sem grande emoção.
Carly só achava que poderia estar realmente a
enlouquecer. Só havia um sítio para onde ela poderia ir agora,
para sua casa. Esperava ela que ainda lá não estivesse ninguém à
sua espera, a segurar alguma arma na mão. Corriam à boca cheia
histórias do que acontecia a quem era inimigo daquele governo.
Desde privações de sono, a espancamentos excessivos, à tortura
de manterem os prisioneiros sentados numa cadeira sem costas,
até que a coluna do prisioneiro cedesse e partisse. Todas
histórias que não eram propriamente as mais propositadas para
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nos lembrarmos quando estamos a cometer um crime como
aquele.
A casa dela ficava numa parte recôndita da cidade, muito
longe de todos. Carly sempre gostara de estar sossegada no seu
canto, como tal, aproveitara a oportunidade para comprar a sua
casa, apesar de velha, naquele lado da cidade, longe dos olhares
atentos da polícia governamental, portanto, achava agora que
nunca ficara tão contente com uma decisão que tomara.
Ajudou o rapaz a sair do carro. O sangue continuava-lhe
a escorrer pelo braço. Apesar de a bala ter passado de raspão,
deveria ter acertado nalguma veia principal, daí aquele banho de
sangue.
A casa dela era humilde. Também não tinha um ordenado
que lhe permitisse ter muitos luxos. Não era que ela quisesse ter
uma imensidão de objetos valiosos, mas gostava de poder ter
algum dinheiro para se mimar a ela mesma. Poderia ser um
pensamento ganancioso da parte dela, quando sabia
perfeitamente que no restante país havia muitas pessoas a
passarem fome, mas tinha de perder algum tempo a pensar nela
mesma, caso contrário, não tinha ninguém que o fizesse.
Sentou o rapaz na poltrona que se encontrava mesmo à
entrada da porta, que dava logo entrada para a sala principal
daquela casa. Seguira em direção ao seu quarto onde tinha lá um
estojo de primeiros socorros, na realidade tinha um estojo em
todos os lugares da casa, menos na sala (vá-se lá saber o
porquê).
Cortara-lhe a camisola deixando o corpo dele seminu.
Nada que ela pensasse que a fizesse surpreender-se, mas
enganou-se. O corpo dele estava completamente marcado.
Cicatrizes antigas, mas que demonstravam claramente alguns
anos de maus tratos.
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Todavia, não poderia agora deixar que o seu pensamento
se extraviasse para outro lado. Tinha de tratar daquele rapaz o
mais depressa possível… A ferida continuava a sangrar… Mais
algum tempo e ele poderia ter algum ataque…
Felizmente, para ambos, ela era rápida na arte de coser as
feridas, pelo que, em pouco tempo toda aquela fonte havia sido
selada. Fora depois procurar no seu armário das bebidas algo
com um enorme teor de álcool, nada melhor para conseguir
desinfetar a ferida. Pegou numa garrafa de cachaça que
comprara há poucos dias para uma festa que pensava dar.
Derramou tudo sobre ferida dele. Ele não gemeu. Agora que ela
se lembrara de tudo aquilo, ele também não havia gemido
quando ela começou a costurá-lo. Era estanho ele não ter
emitido um único gemido, aquele ato causava uma enorme dor a
qualquer um. Afinal, não era muito normal alguém suportar a
dor de carne a ser picada por uma agulha, da linha a trespassar a
carne, ou do álcool a desinfetá-la.
- Quem és tu?! – Voltara a perguntar ela.
- Tens algum sumo de maçã?! – Retorquira ele voltando
a fazer um barulho estranho com a língua a passar pelos lábios.
Ela não podia acreditar na pergunta que ele lhe acabara
de fazer. Como era possível que ele naquele momento fizesse
aquela pergunta, uma pergunta sem qualquer preceito de
identidade daquela situação, completamente aleatória.
- O quê?!
- Eu gosto de sumo de maçã… - insistira, como se fosse
algo completamente natural, como se fosse um velho amigo dela
que fora convidado a jantar naquela casa. Que tinha a
autorização para fazer exigências.
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- Devo ter algum sumo de laranja… - retorquira ela.
Parecera que o olhar dele entristecera. Ela não sabia bem se
estava a lidar com um assassino em série, ou uma criança.
- Serve! – Ripostara ele.
Ela seguira em direção à cozinha, que ficava a poucos
passos da sala, abrira o frigorífico e enchera um copo com sumo
de laranja. Não sabia bem como é que poderia estar a fazer
aquilo… Aliás continuava sem saber o que estava a fazer…
Parecia que estava enfeitiçada com algo…
Ele der três goles seguidos e longos.
- Fresco! – Suspirara ele em tom de satisfação.
Ela continuava sem saber muito bem o que fazer quanto
a tudo aquilo. Não sabia se se deveria rir, afinal, ao que parecia
um maluco qualquer havia morto um dos mais poderosos
homens do mundo, se deveria fugir dali.
- Tu és doido?! – Gritara ela por fim. Não sabendo se
aquela deveria ser a atitude a tomar perante ele, mas a verdade é
que até agora, ele fora inofensivo para com ela.
Ele olhou um pouco para o teto, como se estivesse à
busca da resposta nas fendas que se abriam na parede cor de
creme.
- Sim! – Retorquira convicto – De facto...
A resposta fora simplesmente natural. Não houvera
traços de arrogância, gozo, ou irritação. Ele respondera à
pergunta, qual criança que diz a mais pura das verdades.
- Podes ligar a televisão? – pedira ele.
Carly ligara a televisão que se encontrava pendurada na
parede à frente deles, mas que, como era transparente,
dificultava a sua descoberta no meio de todos aqueles móveis e
quadros, só quando ela a ligara é que ele pode saber ao certo a
localização dela.
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Notícia de última hora:
Sir Harlon, dono do Banco Central Mundial,
morreu esta tarde vítima de uma ataque cardíaco.
Era tudo aquilo que se podia ler no rodapé da televisão
em letras bem destacadas.
- Tu... Mataste-o... – Suspirara ela.
- Sim... – Concordara – Era algo que tinha de ser feito. –
Ficara a olhar para a televisão como se esperasse que algo
importante fosse dito.
Ela ficara calada por mais alguns momentos. Não sabia o
que deveria dizer daquela situação. Não era fácil as palavras
saírem-lhe da boca naquela altura. Estava ao lado de um
assassino. Isso deveria assusta-la, deixá-la fora de si, ainda para
mais tendo ela sido cúmplice na evasão dele. Todavia, havia um
sentimento de paz e prosperidade dentro dela. Como se algo lhe
dissesse que ela havia agido da forma mais correta do mundo.
Que não cometera nenhum erro. Que fizer aquilo que era
suposto ser feito.
- A polícia deverá vir à nossa procura em breve! –
exclamara ele – Teremos de fugir o mais rápido possível.
Ela olhara atentamente para ele que mantinha o seu olhar
fixo na televisão. Olhando agora de relance e de perfil para ele,
ela podia ver que ele era um homem magro, normal, como
qualquer outro. O seu olhar era vazio, como se não tivesse
habilitado a pensar nem a viver... A sua boca fazia um
movimento estranho em intervalos de poucos minutos, a sua
língua passava pelos lábios e fazia um barulho estranho. Aquele
rapaz era muito diferente de qualquer outro que ela havia
conhecido. Tinha o ar de alguém com uma incapacidade mental,
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mas como é que um homem com incapacidade mental poderia
ter feito tudo aquilo. Seria que a loucura era a chave para se
poder mudar todo o mundo.
- Vais continuar a pensar sobre como eu sou louco ou
vamos fugir? – indagara ele, que mesmo sem olhar para ela
sabia quais eram os seus pensamentos. Eram os mesmos
pensamentos de qualquer pessoa que ele conhecera
anteriormente.
Ela fugira do mundo dos seus pensamentos por breves
momentos. Sabia bem que ele tinha razão. Não se poderia por
com dúvidas agora. Era tempo de agir. Era tempo de sair dali.
Tinha de conseguir arranjar tempo para poder fugir à polícia
governamental, além disso, se ficasse algum tempo com ele,
poderia ser que pudesse declarar que ele a raptara e que ela fora
obrigada a fazer tudo aquilo e a colaborar.
Voltaram ao carro. Ele parecia calmo. Nada o parecia
ficar fora de controlo, nem mesmo o facto de poder estar prestes
a ser preso. E só Deus saberia o que eles lhe poderiam fazer se
ele fosse preso. De uma coisa ela tinha a certeza, se ele fosse
preso, ou ela, a morte seria a última das suas preocupações.
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3
Nunca nenhum deles se lembrara de em tão pouco tempo
terem existido tantas reuniões de concelhia de estado. Muito pior
era o facto de o assunto que havia convocado todas aquelas
reuniões, permanecia o mesmo.
- Caros senhores, o Harlon foi morto hoje às cinco da
tarde, num quarto de hospital, que me garantiram estar
completamente seguro. – olhara para Almiton, para Morgan e
para Nobert; que engoliram a seco; - Posso saber o que correu
mal?
Nenhum deles parecia ter grande vontade de responder à
pergunta que havia sido feita pelo Presidente.
- Os Estados Germânicos começam já a troçar de nós…
Perguntado se o nosso império cairá por um simples homem…
Perguntaram-me se eu deveria confiar na competência das
pessoas que se sentam nesta mesa e, meus caros senhores, terei
de dizer, que começo a duvidar dessa vossa competência… - O
seu olhar continha um fogo intenso – Que deverei então eu
dizer? – O silêncio permanecera – Deverei eu desistir de todos
vós…Ou deverei continuar a confiar nas vossas habilidades,
podendo isso custar-me todo o império que erguemos?
O Presidente era uma pessoa fria e sem qualquer sentido
de humildade. O poder subira-lhe à cabeça de uma maneira
demasiado rápida. Ele dizia sempre frases como: “O império que
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eu construí”, ou “perder o meu império”, ele esquecera-se que o
papel que tivera na construção daquele império fora meramente
secundário. Ele não havia feito nada de muito especial senão
juntar um grupo de pessoas prontas a conquistarem aquele
império. Tudo o resto havia sido conseguido através dos outros
que manipularam os mais diversos órgãos do estado e, até
mesmo, o povo.
Todavia, apesar de tudo isso, ficara ele o Presidente de
todo aquele lugar, logo as ordens dele estavam acima de
qualquer outras, pelo que, por muito que eles quisessem, para
poderem deitá-lo abaixo tinham de destruir aquilo que lhes era
mais importante, aquele país.
Como nenhum pensava alguma vez perder aquele
império, o respeito por aquele homem reinava. A única pessoa
que conseguia manter-se acima dele, era o velho homem que se
encontrava sempre sentado à direita dele. Ninguém sabia ao
certo aquilo que aquele homem havia feito, mas que era de facto
a maior figura daquele império, isso ninguém duvidava.
- Ao menos espero que me deem alguma informação! –
Ladrara, fazendo a sua voz entoar por toda aquela sala oca.
- Ele fugiu com a ajuda de uma Enfermeira do Hospital.
– Retorquira Morgan – As câmaras de segurança revelaram eles
a fugirem de carro. – Limpara os lábios que lhe tremiam –
Fomos até casa dela, todavia não conseguimos encontra-la. No
chão vimos algumas compressas com sangue, e algum material
de costura… Devemos ter conseguido atingir o homem durante
a fuga…
- Sendo assim, acho que o Sistema de ADN já deve ter
dado alguma novidade quanto à identidade desse homem? – O
tom da voz dele era tão calmo que quase serviria para enganar as
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pessoas e levá-las a pensar que toda a irritação dele havia
passado.
- Infelizmente não foi encontrada nenhuma
correspondência… - Coubera a Nobert ter de dar esta amarga
resposta- Ele não se encontra no sistema…
A notícia caíra como uma bomba, que explodira
silenciosamente, mas que matara mais que qualquer outra.
- Pensei que todas as pessoas do Império eram obrigadas
a estarem registadas no sistema de ADN! – Relembrara o óbvio
uma mulher do fundo da sala.
- Sim… - Afirmara Nobert – Todavia, este não se
encontra registado…
- Poderá ser alguém que tenha vindo de um Estado de
fora?
- Não, qualquer pessoa que entre no nosso país é
obrigada a deixar uma amostra de ADN, juntamente com todos
os seus dados, para que a sua identificação seja mais fácil…
- Então como é possível que ele não esteja registado no
Sistema? – Indagara outro homem.
Nobert negara saber a razão com a cabeça.
- Só há uma maneira de a pessoa não estar registada no
sistema! – Declarara o homem velho que se encontrava à direta
do Presidente. Todos ficaram em silêncio tomando atenção
àquilo que ele iria dizer.
- Qual? – Indagara o Presidente.
O velho homem suspirara.
- Muito antes de este império ser erguido, já havia esse
sistema, que era obrigatório a todos, para prevenir o facto de
algum criminoso de outro lugar pudesse cometer crimes tão
facilmente. Mas, nessa mesma altura, o estado começava com
um projeto que envolvia muitas pessoas e, para salvaguardar
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essas pessoas, o seu nome e o seu ADN não constavam em
nenhuma lista ou sistema. – Terminara.
O seu tom de voz demonstrava que havia algo mais a ser
dito, mas parecia que não lhe era permitido que isso acontecesse,
o que era estranho, pois, supostamente, aquelas vinte pessoas
sabiam todos os males que aquele império era para todo o
mundo e para os seus cidadãos.
- Meus caros senhores, se o homem que procuramos não
possui registo no sistema de ADN, significa ser alguém que sabe
demasiado bem tudo o que se passa e o que se passou para se
erguer este império... - o tom de voz tomara o sentimento de
preocupação normal de qualquer pessoa que se apercebe que
algo de impiedoso está prestes a acontecer – Ele não será um
homem normal como qualquer outro... Não será um homem que
poderão chantagear da maneira que vos for pertinente... Ele não
tem nada a perder... De facto, a verdade, é que com isto só terá a
ganhar...
A sala mais um vez tomara o seu habitual silêncio. Um
silêncio invulgar, que se vulgarizara desde que aqueles ataques
se tinha iniciado. Quem era aquele jogador ainda era algo que
lhes era obscuro, mas tinham a certeza que ele estava muito
próximo de ganhar o jogo. 33
4
Carly não sabia onde se encontrava. Eles tinham fugido
num carro que aquele rapaz roubara, de uma forma tão rápida
que comprovava que ele já estaria habituado a toda aquela
zaragata.
Tinham fugido para um casa isolada. Num lugar coberto
por árvores. Não havia muita luz ao redor da casa, o que lhe
causara algum medo, mas o seu interior estava bem iluminado,
pelo que aquele medo de pessoa que está habituada a lugares
bem iluminados desaparecera.
- Peço desculpa pela casa. – dissera ele, enquanto
retirava a camisola ensanguentada e desaparecia por uma das
portas.
Carly olhou em volta. A casa era algo muito melhor do
que ela esperava. A sala-de-estar estava junta com a cozinha, o
que tornava aquele espaço amplo, mas, mesmo assim, o espaço
ainda era maior do que aquilo que seria de esperar.
Num dos lados da sala encontrava-se uma enorme
televisão, um modelo que parecia ser bastante recente e de um
fantástico design, como ela nunca antes havia visto. Ao seu lado
encontravam-se diversas caixas que deveriam ser, muito
possivelmente filmes. Mas ela nunca havia visto aquele tipo de
tecnologia antes. Numa altura em que tudo era em formato
digital, ela nunca tinha visto aquelas estranhas caixas.
34
No outro lado, encontrava-se uma enorme poltrona que
encarava de frente uma enorme estante repleta de livros.
Deveriam ser centenas, milhares talvez, todos postos por uma
ordem específica ao que parecia.
Chegou-se perto para poder admirar aquela coleção. Lera
os títulos de alguns livros, títulos que ela nunca ouvira falar.
Autores que nunca conhecera. Alguns dos livros nem sequer se
encontravam na língua nativa dela. Que estranho lugar era
aquele que possuía livros diferentes de qualquer outra biblioteca
onde ela havia estado.
- Vejo que os meus livros lhe chamaram a atenção... –
Ele mantinha a entoação estranha, mas falava de forma
eloquente.
- Nunca tinha visto nenhum destes livro... – retorquira
ela – Parecem ser muito antigos. – declara.
- Sim... – Aproximara-se – Os livros são de facto antigos,
e raros... São copias das maiores obras literárias de sempre. –
explicara.
- Mas se são tão boas obras, por que é que nunca ouvi
falar delas? – indagara com surpresa, enquanto segurava na mão
um cópia de um livro com o título: “Os Demónios”.
- Por que foram as obras escolhidas pelos nossos caros
governos para nunca serem postas nas prateleiras de nenhuma
biblioteca mundial, o seu registo fora apagado.
- Então como os conseguiste?
- Podemos dizer que tive uma infância avantajada em
termos de cultura... – Disse ele segurando-lhe no livro que por
pouco ela iria deixar cair. As suas mãos tocaram-se por um leve
momento e o seu olhar cruzara-se. O olhar vago dele parecia não
demonstrar nenhuma emoção, mas por estranho que parecesse
tinha um brilho estranho.
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- E tudo o resto que aqui possuis?
- Músicas e filmes que o governo proibiu que alguma vez
pudessem ser vistos ou ouvidos de novo... – Ele carregara num
botão do seu relógio e uma música estranha, que ela nunca
ouvira começara a soar. A Música era calma, como se fosse uma
balada. Uma balada simples, mas possuidora de uma beleza e de
uma letra incríveis...
- Que música é esta? – perguntara.
- Blowin’ in the wind. Um velho músico chamado Bob
Dylan, mas que já morrera há muito.
Yes and how many years can some people exist
Before they're allowed to be free?
Yes and how many times can a man turn his head
Pretend that he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind
Yeah and how many times must a man look up
Before he can see the sky?
Haviam-se calado por um tempo para ouvirem a música.
- A música é linda... – exclamara ela num tom suave –
Como é que o governo pode ter escondido isto de nós?
- O governo não quer que um povo educado... Quer que
um povo obediente. – dissera num tom grave – Por isso, foi
escondendo ao longo dos tempos tudo aquilo que de bom se
fizera, substituindo-o por algo que não ensinaria as pessoas
nada.
- Como conseguiste deitar mão a tamanha coleção?
- Os meus avós possuíam grande parte dela... –suspirara
levemente como se se relembrasse de algo – Depois, ao longo
dos tempos foi roubando tudo isto de lugares onde o governo os
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escondera. Alguns objetos, infelizmente, só consegui recuperar
pequenas partes, doutros, consegui recuperar apenas cópias
digitais... – entristecera-se.
- Já leste todos estes livros? Já ouviste todas estas
músicas? Já vistes todos estes filmes? – perguntara ela, surpresa,
afinal, deveriam estar ali horas de trabalho para se conseguir
aproveitar toda aquela coleção.
- Não... Nem em toda a minha vida conseguirei fazê-lo...
– retorquiu – Todavia, li os mais importantes, vi os melhores e
ouvi as que faziam o meu coração bater depressa... – explicara –
Mas isso não invalida que não deva guardar os outros, afinal,
sonho com o dia em que esta coleção poderá ser dada ao povo...
- E como pretendes que isso seja possível? – olhara bem
nos olhos dele.
- Talvez um dia a minha ideia prevaleça sobre a
corrupção e sobre o medo, e aí, sejamos livres de conseguir
atingir todo o conhecimento que nos é merecido.
Ela silenciara-se. As palavras dele entoaram na sua
mente como se tivesse acabado de receber uma das melhores
lições de vida de alguém bastante sábio. Não sabia aquilo que
deveria dizer ao certo. Mas haveria algo que ela pudesse dizer
naquela altura? Afinal, que poderia dizer ela naquele momento
que pudesse parecer mais sábio que tais palavras, há alturas em
que o silêncio não é algo constrangedor, é uma maneira de dizer
que por um momento, houve algo que nos conseguiu responder
a perguntas que tínhamos, mas que nunca fôramos capazes de
silenciar.
- Desejas ver um filme comigo? – perguntou ele com um
tom calmo, por um momento não lhe parecera que ele teria
aquele tom louco.
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- Que filme me recomendarias a ver? – perguntara,
desconhecendo totalmente que tesouro poderia ele ter escondido
naquela coleção.
- Tenho vários... Todos muito bons... Penso que há uns
poucos, pelos quais deveríamos começar...
- Porquê? – indagara ela.
- Porque a única maneira de entenderes tudo aquilo que
irei fazer é vendo-os. Eu sei que estás habituada a ter a mente
carregada daquilo que muitos outros estipularam como correto,
mas, mesmo no meio de tamanha ingenuidade mental, acho que
encontrarás espaço para estas pérolas que te ensinarão lições de
vida, como me ensinaram a mim.
Ela sentia que tinha sido insultada por um momento, mas
ao mesmo tempo que não fora de uma maneira propositada.
Sentara-se no sofá, ao lado dele. A televisão ligara-se. Ele não
demorara a escolher o filme que eles iriam assistir, era até como
se ele já o houvesse programado antes.
- Este não é o filme que mais amei, mas penso que será
um bom começo para ti.
- Como se chama? – perguntara com os seus olhos a
brilharem de curiosidade.
- La vita è bella. – Replicara – É um filme muito antigo,
sobre uma era da qual já deverás ter ouvido falar, apesar de o
governo há muito a ter tentado esconder.
- O que conta o filme?
- Contar qualquer detalhe do filme estragaria a obra.
Deixa que seja a tua mente a perceber os ensinamentos que nos
são dados.
O filme iniciara-se. Ela ficara atenta a todo o filme
durante todo o tempo. Não se havia distraído com nada. Ficara
colada em todos os pormenores. Era a melhor obra
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cinematográfica que alguma vez vira. Nunca nenhum filme que
estreara desde que ela nascera, nem nenhum filme que ela
pudesse encontrar nas lojas se chagava aos pés daquele filme.
Limpara as lágrimas que lhe haviam causado.
- Ele morreu... – gemera.
- Sim, de facto. – Concordara – Mas morreu por aqueles
que amava... Para os fazer feliz. Não será esse o melhor
contributo de um homem?
- Mas... – as palavras teimavam em não saírem.
Um leve beep interrompera o pensamento dela.
- Peço desculpa. – levantou-se e seguiu sem nenhuma
palavra em direção a um quarto, que desde que haviam chegado
estava bem iluminado.
Carly não sabia se o deveria seguir. Não sabia se isso
seria o melhor a fazer, mas mesmo assim, a curiosidade que ela
possuí-a naquele momento era superior a tudo o resto.
Dera com ele a ajudar um rapariga que se encontrava
num estado muito débil a deitar-se de novo na cama.
- Quem é? – perguntara a rapariga num tom fraco e
fatídico, como se já não tivesse muita vida.
- É uma nova amiga. – sorrira ele – Agora está na altura
de dormir, irmãzinha.
- Podes pôr a tocar alguma música, ajuda-me a acalmar a
dor. – pedira.
- Claro! – voltara a sorrir.
Carregara de novo naquele relógio de pulso que possuí-a.
Começara a tocar um estilo música desconhecida para Carly,
mas que seria jazz. Era uma música calmante e bela. A rapariga
sorrira e fechara os olhos.
O rapaz seguira de novo em direção à sala.
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- Que é que ela tem? – Carly tentara ser o mais agradável
possível.
- Ela tem uma doença rara... Da qual tu nunca deverás ter
ouvido falar... Nem na faculdade de medicina onde possas ter
estudado... – a sua voz tomara de novo um tom forte e arrogante,
mas que não parecia ter sido causado pela pergunta dela.
- Podes ao menos explicar-me melhor tudo o que se
passa?
Ele olhou seriamente para ela. Causando-lhe medo por
ter dito tais palavras. Causando-lhe o temor do que lhe poderia
acontecer. Mas, de repente, o seu olhar tornara-se vago de novo,
como se ele se tivesse apercebido do medo que lhe havia
causado.
- Peço desculpa, mas infelizmente o tempo escasseia-se.
Terei de guardar para outra hora tais testemunhos. Creio que
terás à tua disposição todo um vasto leque de filmes, livros e
músicas com as quais te poderás entreter durante a minha
ausência. Poder-te-ás servir à vontade de tudo o que quiseres.
Caso vejas alguma luz vermelha acesa é a minha irmã a
necessitar de algo, por favor, peço-te que vejas o que ela pode
precisar e que a ajudes. – pedira com toda a calma – Aqui estás
segura, por isso, aproveita bem tudo aquilo que terás à tua
disposição.
- Onde vais? – Perguntara ela enquanto o via a dirigir-se
até à porta.
- Aonde o dever me chama...
- Já viste a nova que inventaram, John? – Indagara um
homem forte, quase uma bola bastante redonda, que seguia ao
lado de um homem alto – Vão encerar todo o chão do edifício
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hoje. Durante toda a noite, vamos ter aqui máquinas a trabalhar.
Não vamos ter tempo se quer para dormimos um bocado.
- Eles costumam ter destas ideias! – Reclamara John – E
ainda por cima temos de ter muita atenção… Eles querem que
controlemos todas as pessoas que entram, e todas as pessoas que
saem…
- Eles têm andado com muito medo ultimamente. – O
tom abafado do homem, que tentava caminhar sobre as suas
pequenas pernas que pareciam não se conseguirem aguentar com
tamanho peso por cima delas.
- Não seria de esperar menos da parte deles. Ao que
parece há um maluco qualquer que anda com ideias
revolucionárias… E parece que não o conseguem apanhar…
O homem riu-se e por pouco parecia que ia ter um ataque
cardíaco.
- É o que nós estamos a precisar… - Replicara com o
resto do fôlego que lhe faltava – De alguém que mude tudo isto,
para não andarmos por aqui a ter de aturar com estas merdas! –
Reclamara.
- É só mais um louco que acredita ser um ser superior,
nada de mais… - Concluíra com toda a convicção, todavia com
uma réstia de contradição, uma esperança de que algo pudesse
mesmo se alterar.
Haviam chegado todos os funcionários a quem tinha sido
dado aquela tarefa superior.
Eram cerca da uma da manhã, o edifício principal da
rede televisiva estava praticamente deserta à exceção daqueles
dois homens que referimos acima.
O silêncio e a conversa de café fora substituída pelo
barulho das máquinas que trabalhavam exaustivamente, afinal,
era para isso que haviam sido construídas, para trabalharem sem
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questionar. Para serem ligados a um ficha, onde, por uma
quantidade certa de energia repetem e repetem o seu trabalho,
até ficarem obsoletas e serem deitadas a um lixo qualquer, nunca
se dando umas últimas palavras de apreço por todo o trabalho
realizado. É aí que apercebemos que tudo é um mero trabalho
escravo e que só somos necessários enquanto temos algo a
oferecer, tudo o resto são míseras considerações que a vida nos
vai dando.
John e o seu colega aproveitaram uma pequena pausa
para irem tomar aquilo que o corpo pede quando se vai
desgastando. A distração tomara conta deles por leves minutos,
não muitos, mas fora o suficiente para que o cartão de John, que
ele havia deixado em cima do balcão, desaparecesse.
Ninguém reparara em quem pegara no cartão, nem que
ele havia desaparecido. Poder-se-ia pensar que era simplesmente
um cartão, como tantos outros, mas aquele era o cartão que dava
acesso a uma parte importante do edifício, mas que poucas
pessoas tinham noção da sua existência.
A porta que ficava fechada a maior parte do tempo,
abrira-se. A sala estava vazia, não havia nada senão uma
pequena mesa no seu centro com um computador em cima dela.
Um computador portátil, que nunca mais àquela sala voltaria.
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5
Ele regressara a casa.
Encontrara Carly a dormir no seu sofá, com o livro "O
Rei das Moscas" pousado sobre o seu ventre. Ela já tinha lido
uma grande parte do livro, o que justificava que ela deveria ter
tentado ficar acordada até ele chegar. Mas a natureza é mais
forte que o nosso corpo e como tal ela deixara-se levar pelo
sono.
Não sabia bem o que deveria fazer naquela altura, mas
sabia muito bem que aquele não era o sofá mais confortável para
se passar uma noite. Pensou em pegar nela ao colo e levá-la para
a sua cama, ele não se importaria de dormir no sofá, afinal, dor
era aquilo que já não sentia, mas não sabia se teria autorização
para tocar no corpo dela. Ela poderia tomar aquilo como uma
ofensa, gritar, insultá-lo e ficar com medo do que ele lhe poderia
fazer.
Ele não queria que ela sentisse medo dela. Não, ela
não…
Fora com calma.
Colocara a sua mão direita sobre as costas dela e o
esquerdo sobre as suas pernas. Elevara-a com todo o cuidado
possível para que ela não acordasse. Ela abriu os olhos
levemente, mas voltou a fechá-los, como uma criança, abraçara-
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se a ele. Ele sentira o calor do corpo dela. Sentia o seu coração a
palpitar. Não sabia o que fazer naquela altura.
Engolira os seus instintos e levara-a até ao seu quarto.
Deitara-a. Cobrira-a com uma manta bem quente que
tinha sempre aos pés da cama. Ela reconfortara-se.
Ele ficara por breves momentos a admirá-la. Não sabia
bem o porquê de o fazer, não havia nenhum motivo para tal, mas
algo lhe chamava a atenção. Algo que ela tinha. Algo que lhe
pertencia, uma espécie de magia que desde a primeira vez que
ele a vira o deixara ficar...
Desistira de deixar entender o que poderia ter acontecido
naquele momento. O melhor era permanecer frio, mentalizar-se
naquilo que realmente era importante.
Olhara uma última vez para ela.
Voltara à sala e deitara-se no sofá. Estava cansado.
Todavia, pegou numa espécie de espelho, donde saiu uma
imagem mal ele tocou nele. Mexeu com os dedos na imagem
que fora revelando diversas músicas. Encontrara aquela que
pretendia.
Começara a tocar a “Creep” dos Radiohead. Uma música
pela qual ele sempre sentira grande apreço. Uma música que
revelara aquilo que ele sempre fora.
O edifício tomara finalmente o seu ritmo normal.
Centenas de pessoas iam tomando lugar, enchendo o
vazio de conversas e distúrbio.
Eram muitas as pessoas famosas que ali se encontravam,
ao lado dos zés-ninguém que os tornavam famosos, pessoas
essas que apenas viam os seus nomes colocados num rodapé
rápido a quem ninguém tomava conta do nome.
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- Este estúdio tem um cheiro esquisito…- Queixara-se
uma dessas pessoas que ninguém conhecia – Que raio…
- Deve ser da cera… - Replicara outro – Isto foi encerado
ontem, portanto…
- Um café! – Ladrara o chefe deles enquanto ia
cambaleando pelo corredor, dirigindo-se ao seu gabinete. Era
um homem forte, sem grandes maneiras, muito mal-humorado,
que sentia-se impotente por ter o cargo de subpresidente daquela
estação de televisão, a única a nível nacional, e por a sua chefe
ser uma bela mulher, que conseguira ganhar o seu lugar, sabia-se
lá bem como.
O homem entrara no seu escritório sem deixar qualquer
rasto de boa educação atrás dele. Sentara-se na sua cadeira que
lhe servia como uma poltrona, poltrona essa que em pouco
tempo se partiria se ele continuasse a engordar daquela maneira.
Abrira a sua gaveta, com grande custo, pois os seus
braços eram pequenos e a gordura que possuí-a neles impedia-o
quase de se movimentar. Tirara um dos seus importados charutos
que comprava por uma modéstia quantia que serviria para
alimentar quase metade das pessoas daquela cidade.
Colocara o charuto na sua papuda boca e acendera-o com
um fósforo.
Deitara o fósforo ainda a arder para o chão, uma mania
que ele tinha, para depois o pagar com o seu rechonchudo pé.
O fósforo tocou no chão e, antes que ele pudesse fazer
algo, tudo se incendiou, num fogo intenso que se propagara com
uma rapidez incessante, sem cansaço.
A agitação tomou forma do homem, que caiu da sua
poltrona. E não se conseguindo levantar, fora queimado como se
de um mero porco se tratasse.
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No exterior todo o fogo se propagara na mesma
intensidade, consumindo tudo. O alarme tocou, muitos correram
pelas suas vidas, mas o fogo parecia ser mais rápido que eles. Os
dos primeiros andares ainda conseguiram sair a tempo daquele
lugar, e por sorte, essas eram as pessoas humildes, os meros
trabalhadores que nada mais faziam se não sobreviver.
Os seus chefes, que se encontravam nos pisos superiores
não tiveram tanta sorte e todos os seus pecados foram tomados
pelo fogo, purificados, infelizmente, juntaram-se a eles alguns
humildes que o seu único pecado fora trabalhar para aqueles
monstros.
O fogo tomara partido das condutas de gás e todo o
edifício explodira, numa sinfonia de festa, sem receios do mal
que fizera, como a congratular-se do seu trabalho, como
dizendo: Olhem para mim! Olhem o que fiz! Olha como vos
salvei deste triste infortúnio.
As pessoas agitaram-se nas ruas para ouvirem a
orquestra que o fogo criara. Preocupadas com o final da música.
Juntaram-se as sinfonias das sirenes daqueles que em vão
tentariam socorrer aqueles homens, mulheres e animais que ali
estavam.
Carly acordara.
O seu coração palpitara com o medo de desconhecer o
lugar onde estava deitada. Apercebeu-se que seria a cama onde
dele. Viu que ainda estava com as roupas do dia anterior. Tinha
adormecido no sofá e ele teria-la levado para ali.
Calçou uns chinelos que se encontravam ao lado da sua
cama, que ele colocara para ela não sentir o chão frio.
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Seguira calmamente em direção à cozinha, sentia o
cheiro a doces, ouvia o barulho do óleo a borbulhar e uma leve
música que ela desconhecia mas que lhe acalmava a mente.
- Bom dia! – Exclamara ele alegremente – Espero que
tenhas dormido bem...
- Sim. – Retorquira, sorrindo por toda aquela boa
disposição matinal – Não me lembro de me teres posto naquela
cama, nem de chegares...
- Peço desculpa. Demorei mais tempo do que preveria...
Espero que não te tenhas importado por te ter levado ao colo...
mas não me parecia que fosse muito confortável para ti ficar a
dormir naquele sofá.
- De maneira nenhuma... – Ele colocara um prato com
panquecas, ovos e vários doces à sua frente, recheando ainda
mais aquela mesa.
- Espero que gostes! – Sorrira – Se me dás licença, terei
de levar o pequeno-almoço até à minha cara irmã...
Desaparecera no corredor.
Ela tomara um gole de sumo de laranja fresco e comera
um pouco da panqueca que ele colocara à sua frente. Fora sem
dúvida das melhores coisas que alguma vez tinha saboreado.
Ele demorara um pouco, o que lhe dera tempo para
terminar o seu pequeno-almoço com toda a calma do mundo.
Ela não sabia se deveria ir ter com ele, não sabia até que ponto
poderia chegar perto dele, afinal, era a irmã dele, e ele deveria
querer estar sossegado com ela.
Decidira ficar ali. Especada. Olhava para o nada e ao
mesmo tempo para o tudo, afinal, admirava agora a estante de
livros. Aquela estante enorme que deveria ter, como dito
anteriormente, milhões de páginas de papel que compunham as
melhores histórias alguma vez contadas.
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- Vejo que já terminaste o teu banquete... – rira-se com as
suas próprias palavras.
Ela olhara de novo atentamente para ele. A imagem dele
começava a parecer-lhe outra, como se fosse mais límpida que
antes, como se algo tivesse tornado o espelho que existia entre
ela e ele mais transparente, não translúcido o suficiente para ela
poder ver toda a imagem dele, mas já grande parte.
- Estava delicioso! – sorrira em agradecimento.
Ele respondera com o sorriso típico dele que revelava
pouca sanidade mental.
A televisão ligara-se como que de propósito, como se
tivesse sido cronometrada a tal, pois ligara-se mesmo na altura
em que começara o jornal que todas as manhãs era apresentado
para todo o país.
Têm sido momentos complicados, estamos a transmitir
no exterior, num estúdio antigo preparado à pressa, todo o
edifico continua a ser consumido pelo fogo, os bombeiros têm
tentado desde quase madrugada apagarem as chamas que
continuam a consumir tudo… Têm sido momentos de pânico,
ainda não se sabe o número de mortos, mas acredita-se que
todos os que trabalhavam nos últimos quatro pisos terão sido
mortos pelas chamas.
Ainda não se sabe como o incendio se iniciou, nem como
se tem alastrado tão depressa por todo o edifício...
Carly ficara em silêncio por breves momentos. A notícia
continuava, à sombra, a imagem de um edifício completo,
imponente, a ser destruído pelas chamas, que nem corpo têm.
Olhara para o rapaz que estava ao seu lado. A sua
expressão facial revelava que havia sido ele o culpado daquele
crime, mas que nenhum remorso possuí-a.
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- Foste tu? – Perguntara ainda na esperança de estar
enganada quanto aos pensamentos que possuí-a.
Ele não respondera.
Ela olhara para ele com um olhar vítreo, perdido,
culpando-o. Um olhar de repugnância e medo. Um olhar que ele
não conseguia entender, uma expressão facial que lhe causara
medo, que lhe causara um bater acelerado do seu coração, que
tornara aquele momento difícil, que fizera os seus pulmões
cessarem a sua vontade por ar.
- Tu mataste inúmeras pessoas! – Gritara ela num tom
assustado, crítico e violador – Eu... Eu não consigo acreditar...
como... Tu...
- De facto matei alguns inocentes... – declara ele – E
nada me deixou mais triste que fazê-lo... Infelizmente, terei de
ser sincero quanto às minhas emoções... Nada fora mais difícil
neste trabalho, que saber que havia morto algumas pessoas que
nada tinham a ver com esta guerra... – Explicara com toda a
calma aproximando-se dela – Todavia, em qualquer guerra é
necessário que morram inocentes para que as pessoas se
integrem nela...
- Não podes estar a falar a sério! – Exaltara-se – Matar
inocentes nunca pode ser uma boa causa...
Ele riu-se.
Parou.
Ela olhava para ele com um olhar vago, mas mortífero.
- Poderás pensar isso, mas acredita, que se alguma vez
conseguimos evoluir, foi graças à morte de milhões de
inocentes... Sim, a guerra é algo de facto desprezável, todavia,
os maiores períodos de evolução da nossa espécie foram em
períodos de guerra...
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- Não podes acreditar naquilo que dizes... Não podes! –
Gemera – És um louco! – sentara-se no chão a chorar.
- Ser louco num mundo fodido, é uma bênção! – Chegara
perto dela e colocara-lhe o braço por cima dos ombros – Eu sei
que pode parecer que o que fiz foi errado, mas é a única maneira
de conseguir fazer com que as coisas possam mudar, não é
simples conseguir realizar uma ideia, muitas vezes temos de ir
contra os nossos princípios, muitas vezes a nossa mente perde-se
enquanto criamos tudo aquilo que pretendemos... – Ela retirara o
braço dele de cima dos seus ombros quando voltou a si, ele não
a censurou – Consigo entender que acredites que aquilo que eu
fiz foi errado, mas era a única maneira... Tinha de destruir a
maior central de mentiras que temos... Os MIDIA tornaram-se
numa excelente forma de dominar as pessoas. Tudo o que tu vês
atrás do ecrã é caras bonitas e com vidas fantásticas... Pessoas
que te fazem sonhar e dizer ao mesmo tempo que nunca estarás
ao nível delas... Elas dizem-te aquilo que deves fazer, aquilo que
deves pensar, aquilo que tens por garantido e as tuas
obrigações... Nada mais... Enquanto tu pensas que eles te estão a
passar informação, eles estão de facto a dar-te a ideia que eles
querem, a opinião que deves ter sobre um determinado assunto...
A ideia é que as pessoas tenham opiniões diferentes, e ao mesmo
tempo, opiniões iguais... Por que assim causam a discussão
pública, em que todos usam aquilo que outros disseram, não
aquilo que eles pensam... – Respirara um pouco, ela não dissera
nada – Entendo se quiseres ir embora, eu mesmo te arranjarei os
documentos necessários para saíres do país sem qualquer
problema... Gostaria que ficasses para poderes assistir a tudo
aquilo que irá acontecer... Mas a decisão final, será tua...
Ela olhou seriamente nos olhos dele que se mantinham
vagos e sem qualquer toque de sentimento. Não lhe respondeu, a
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cabeça dela era incapaz de pensar. As perguntas invadiam-na.
Quem sou eu? Quem é ele? Por que estou no chão? Que poderei
fazer? Que devo fazer? Ele é um assassino, ou alguém com uma
causa?
Não tinha noção de nada.
Ele permanecia ali, especado, olhando para ela, como se
fosse simplesmente alguém que não tem qualquer preocupação,
como se se limitasse a esperar por uma decisão dela que não lhe
importaria muito.
Nobert e Almiton permaneciam a olhar de dentro do
carro para o exterior, onde as chamas ainda deflagravam, como
numa salvadora fogueira no tempo frio, onde os pobres se
colocavam em seu redor a sentirem o calor para não morrerem
com o seu sangue congelado.
- Achas que vai demorar muito até ele nos ligar?! –
Indagara Nobert sabendo perfeitamente que em breve o
presidente deles acabaria por ligar para a sua linha privada, a
linha que os mantinha sempre conectados uns com os outros. A
linha que custara muitos milhões de euros, um projeto
desconhecido por todos, para impedir que alguma vez pudesse
ser invadida.
- Deixa-o acabar a sua cagada matinal, e ele deverá ligarnos... – supusera Almiton – E desta vez, nem vai ser bonito!
- Quem será este homem que anda a fazer tudo isto?
- Não sei, mas tenho de admitir que tem tomates
suficientes para fazer o que quer que seja... – O tom de espanto
dele era evidente – Nunca ninguém seria capaz de fazer tudo isto
que ele vem feito... Ele não pode ter medo...
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- Achas que alguma vez o encontraremos? – Nobert sabia
bem que aquela pergunta não tinha resposta possível naquela
altura, e tudo apontava para uma resposta negativa.
- Para nossa salvação é bom que consigamos, e depressa!
Caso contrário, o nosso futuro não será o melhor... E ele não terá
dificuldades a arranjar alguém para nos substituir.
- Que quererá este tipo? Ele não age como os outros...
Ainda não fez nada... Ainda não revelou o seu plano... Ainda não
se gabou de andar a gozar com um dos maiores governos
mundiais... É completamente estranho... – Olhara seriamente
para o nada – É como se ele quisesse criar o medo, como se
quisesse que sejam as a aperceberem-se de que há alguém por
detrás de tudo isto... Não consigo entender o que irá na cabeça
dele...
- Nem todos querem fama, alguns simplesmente querem
mostrar o sue ponto de vista, e este tem conseguido aquilo que
quer... Nunca vi o nosso presidente tão preocupado com algo
como com este homem... Ele tem estado completamente perdido
em tudo aquilo que faz... Nunca vi o nosso presidente assim...
- Tens medo do que possa acontecer-lhe a ele caso o que
procuramos o encontre primeiro?
- Não... Tenho de medo de saber o que acontecerá ao
povo, quando apanharmos este homem... É que o Presidente não
vai querer que isto se volte a repetir... E ambos sabemos o que
aquele homem pode fazer por poder.
O silêncio restabelecera-se no carro. As palavras
entoavam, mas sem se fazerem ouvir.
O telemóvel começara a tocar. Já ambos sabiam o que
seria.
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6
Descoberto que a maneira de se incendiar aquele edifício
tinha sido através da mistura de explosivos no produto utilizado
para encerar o chão daquele edifício, na noite anterior aquele
trágico incidente, não tinha deixado nenhum dos 17, visto que o
incendio levara com ele a mulher que era a responsável por toda
a comunicação social daquele país; propriamente contente.
As buscas haviam-se iniciado.
Todos os trabalhadores daquela empresa tinham sido
passados a pente fino. Todas as informações haviam sido lidas.
Todos os ficheiros abertos. Fora feita uma escavação até ao
interior da terra para se saberem todos os segredos que eles
escondiam. Para se saber se algum tinha um familiar qualquer
que tivesse sido rebelde anteriormente, alguma réstia de sangue
comunista, ou anarquista. Alguém que houvesse causado
distúrbios, ou que fosse capaz de fazer aquilo.
Hackearam-se computadores, para se encontrarem
receitas culinárias, vídeos de gatos a andarem de um lado para o
outros, jogos de computador e alguma pornografia.
Mas nada de planos maquiavélicos de como o mundo
poderia ser dominado, nenhuma estratégia secreta para se deitar
abaixo o governo, nada daquilo que eles esperavam.
Fosse quem fosse o responsável por todo aquele ato, não
havia sido nenhum daqueles homens. A pergunta continuava no
54
ar. Afinal, não era fácil para alguém colocar explosivos líquidos
juntamente com o produto usado para se encerar o chão. Aquele
homem ainda fora mais inteligente do que eles alguma vez
pensaram.
Uma bomba maior ainda havia caído quando se
descobriu que o homem responsável por aquilo havia ainda
roubado um transmissor de emergência, o único que existia, e
que se sobrepunha a todos os sinais de transmissão de televisão,
rádio e internet.
Fora logo possível ver-se uma veia enorme a emergir da
cabeça do presidente que não podia acreditar em tudo o que
ouvia. De repente, um homem tornara-se mais inteligente que
ele. Um simples homem conseguira superar toda a segurança
que alguma vez existira naquele país, entrado num dos edifícios
mais importantes do mundo e roubado algo tão importante como
aquele pequeno objeto. Era impossível de se saber quem era, ao
que parecia, nem as câmaras conseguiram registar-lhe o rosto
para se porem cartazes a dizer-se: “Procura-se”.
Nada disso.
Era um fantasma.
Um homem que ia brincando com eles. Fazendo deles
pequenos bonecos, a quem podia cortar a cabeça e ninguém se
aperceberia.
Que aquele rapaz era inteligente, ninguém tinha dúvidas,
mas até que ponto ele o era, isso já era uma dúvida muito
superior. E era essa a dúvida que fazia com que o velho homem,
aquele que se sentava sempre ao lado do presidente, ficasse com
os nervos à flor da pele.
As preocupações dele eram mais fundadas que as de
qualquer outro, pois ele sabia bem que o facto de não haver
memória do ADN daquele homem que eles procuravam, era por
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que aquele homem era alguém que sabia demais sobre tudo
aquilo que se passara. Era alguém com um passado, uma
justificação, para fazer tudo aquilo. Alguém com inteligência
suficiente para conseguir deitar abaixo aquele império todo.
Poder-se-ia pensar que pelo facto de ser apenas um
homem, que seria fácil derrubá-lo, mas era necessário repensar
essa ideia. Aquele homem nunca seria um alvo fácil, como todos
os outros que eles haviam tido anteriormente. Aquele seria a
maior barreira que existiria entre o poder. Apanhá-lo seria
impossível, ele não seria estúpido ao ponto de ser apanhado com
facilidade... Nada do que ele fizesse seria ao acaso... Só faltava
saber era como alguém como ele poderia estar ali... A fazer
aquilo tudo... Como é que ele havia saído do... Ele nunca
recebera a notícia de que alguém fugira daquele lugar... Tudo
havia sido destruído. Não tinham havido sobreviventes...
Tentou acalmar-se, mas o fantasma do passado e o medo
do futuro não o permitiam.
Nunca tinha sentido aquilo. Nunca nada o pusera tão
assustado como o facto de aquele homem existir... Era como se
de um momento para o outro, a cadeira onde ele se sentava
tivesse perdido uma das suas quatro pernas e uma das outras três
estivesse cortada, ainda não caíra, mas em breve a segunda
perna podia-se partir e iria cair e aleijar-se.
Pegara no telefone que se encontrava à sua frente.
Marcara um número que só ele conhecia.
- Traz-me o documento 76, por favor...
Carly havia-se deitado na cama. Sentia a cabeça a latejar,
o medo, o ódio e o lamento a invadir-lhe os ramos cerebrais e a
tornarem-na fraca. Ela não sabia por que é que ainda continuava
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a ali, com ele, naquela casa. Deveria aceitar a proposta dele e
fugir.
Ele não parecia ser ofensivo, mas a verdade é que matara
imensas pessoas e isso para ela, era algo que não seria fácil de
suportar.
Ele não tinha falado para ela durante o últimos dias.
Limitara-se a fazer-lhe as refeições, a dar-lhe cobertores, a fazer
com que ela se sentisse o mais em casa possível, todavia não
chegava muito próximo dela, como que tentando dar-lhe espaço
para que ela pudesse pensar o melhor possível em tudo o que se
passara.
Ela aproveitara o tempo para ir lendo alguns livros, para
ir vendo alguns filmes. Era isso que de certa maneira a mantinha
ali. Aquela imensidão de vidas que ela nunca poderia viver.
Aquelas personagens todas, aquelas histórias, aquelas palavras.
Quando via um filme, ou lia um livro, tudo aquilo que
ele fizera de mal desaparecia da mente dela, todos os problemas
do mundo em que havia nascido corriam para um sítio bem
longe e ela entrava nas personagens. Via com os seus olhos os
caminhos que elas seguiam, sonhava com guerras, com dragões,
com criaturas encantadas. Sonhava com tempos antigos, onde
todos lutavam por um bem comum. Sonhava com um herói que
ia lutando por um bem comum,
mas ao mesmo tempo, um
bem dele.
- Não te preocupes... Vai tudo ficar bem em breve,
pequenina... – ouvira no quarto ao lado ele a falar com a sua
irmã. Era um ritual que ele fazia todos os dias. Sempre que
estava em casa, passava grande parte do tempo sentado na
cadeira ao lado da cama onde a sua irmã estava deitada. Falava
calmamente para ela. Carly normalmente nunca prestava muita
atenção, mas naquele dia uma estranha curiosidade atacou-a.
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Levantou-se e colocou-se alguns passos atrás dele a ouvir o que
ele dizia – Em breve teremos o nosso pequeno mundo, como
sempre te prometi... – Sorrira.
A rapariga olhara seriamente, o mesmo olhar sério, mas
vago que o irmão possuí-a, e gemera um pouco.
Carly sentiu um leve arrepio. Ele voltou-se.
- Desculpa estar a ouvir a vossa conversa...
- Não tem mal... Não estávamos a falar de nada
importante... – Levantara-se da cadeira e dera um leve beijo na
testa da irmã.
Seguira em direção à cozinha passando ao lado de Carly.
Carly seguira-o, olhando uma última vez para a irmã dele
que mantinha um leve sorriso na sua face gasta.
- Já tomaste alguma decisão? – Indagara ele, enquanto
vasculhava no frigorífico por algo para comer, mas sem
demonstrar estar preocupado com a resposta que poderia vir
dela.
Carly ficara calada. Não sabia ao certo o que responder.
Tinha na sua mente a ideia de fugir, mas ao mesmo tempo só lhe
apetecia ficar.
- Ainda não fui capaz de pensar em nada...
Ele olhara para ela calmamente, mas fixo, enquanto
trincava uma maçã.
- Ouh! – Exclamara – Pensei que já tivesses pensado em
algo... – Continuara a trincar a maçã - Já arranjei documentos
novos para ti, caso pretendas fugir do país... Por isso, quando
tiveres uma decisão, deixa-me sabê-la.
Acabara de comer a maçã e deixara o caroço em cima do
balcão, e seguira de novo em direção ao quarto.
Carly não podia acreditar que ele havia dado somente
meia volta e se ido embora. Isso só revelava que ele não se
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importava minimamente com ela, que não tinha qualquer
problema que ela se fosse embora ou não. Ela tinha sido apenas
uma mulher que o havia salvado e ao qual ele fizera o possível
para agradecer. Um objeto para ser utilizado e para agora ser
posto de parte. Nada diferente do que todas as restantes pessoas
que ela outrora conhecera não houvessem feito.
- Para! – Imperou ela.
Ele tomara a ordem. Parara e voltara-se para ela, muito
calmamente, como se fosse um bonequinho.
- Tu não podes estar a falar a sério...
- Desculpa... Perdi-me em algum aspeto e não entendo o
que falas... – O seu tom parecia ser de alguém pronto a enganar,
mas ao mesmo tempo sincero.
- Não podes ter feito tudo isto, por mim, para agora,
simplesmente me mandares embora... Sem me explicares tudo o
que se passa, e o porquê de fazeres tudo isto – Exaltava-se cada
vez mais – Sem me explicares como é que alguém,
aparentemente louco, consegue brincar desta maneira com todo
o nosso governo... Como é que conseguiu tudo isto e o porquê
desta causa...
Ele aproximou-se com toda a calma, mantendo o seu
passo de pinguim.
- Que queres que te revele? – o seu olhar intensificara-se.
- Tudo! – Implorou – Quero que me reveles tudo o que se
passou...
Ele riu-se. A risada entoou pela casa.
- Queres que te conte como é que fiquei assim... Doido...
– Os seus olhos esbugalharam-se – Queres que te conte que foi
por que o meu pai era um drogado, que um dia chegou a casa,
completamente de cabeça perdida, endoidecido pelas drogas,
que pegou na cabeça da minha mãe, colocou-a sobre a mesa e
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com um martelo a esmagou mesmo em frente a mim, enquanto
ela me prometia que tudo ia ficar bem? – A sua voz ganhara
raiva – Queres que te diga que as cicatrizes que tenho no corpo
foram feitas por ele, que ia rasgando-me a carne com uma faca
aquecida por ele... Queres que te revele que esta cicatriz que
tenho no peito – Descera um pouco a sua t-shirt e revelara um
enorme risco de pele escura – Foi feito na noite em que ele
chegou a casa, a tresandar a álcool e tentou violar a minha irmã?
E quanto eu o tentei impedir ele rasgou-me com uma faca... Que
a cicatriz que eu tenho na mão direita foi de quando eu lhe
peguei na faca, com toda a força que tinha e depois lha espetei
bem no seu coração, de maneira a que ele morresse lentamente e
pudesse-me olhar bem nos olhos enquanto respirava uma última
vez, só para eu poder dizer: “Ganhei!”... É isso que queres que
eu diga?
Ela conseguia entender agora a dor dele. Começou a
chorar. Sentira nas palavras dele todas as suas emoções. Como
se as palavras deles tivessem formado imagens nítidas de todos
os momentos que se passaram.
Ele mantinha o seu olhar sério, perdido, sofrido. Fazendo
de conta que nada lhe importava e ao mesmo tempo tudo o que
ele acreditava tinha sido destruído. Houve silêncio entre eles.
Houve silêncio em todo o bosque onde eles se encontravam.
Carly não disse nada, até à manhã seguinte. Durante a noite,
toda a sua mente fora corrompida pela imagem das cicatrizes
dele... Do seu desespero. Agora ela podia entender o porquê de
ele parecer tão vago, tão distante, tão louco.
Carly encontrava-se deitada na cama a ler um pouco
mais do livro, O Senhor das Moscas.
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Estava concentrada, para poder apreciar todo o pequeno
mundo que ali havia sido criado, quando, de súbitos, começara a
ouvir a doce explosão das pipocas. O cheiro do caramelo
começava a insurgir também nas suas narinas.
Deixou o livro no centro da cama, perdido, quando
ninguém lê, um livro não passa de um monte de folhas,
facilmente inflamável, onde, por melhor ou pior que seja, não
consegue ter valor nenhum.
Ao aproximar-se da cozinha o som e o cheiro
intensificaram-se.
Viu-o a cantarolar enquanto derramava as pequenas
pipocas numa taça e devorava algumas.
- Oh! Estás aí! – Sorrira ele, quando se voltara, com o
mesmo sorriso de sempre – Espero que aprecies pipocas
caramelizadas!
Ela ficou um pouco surpreendida por o ver a sorrir. Era
como se a discussão do dia anterior não tivesse acontecido. Era
como ele tivesse sempre um botão que o fazia voltar ao seu
velho estado habitual, apesar das memórias que todos os dias
tinha presente.
- Qual é o filme que vamos assistir? – Indagara ela.
- Chama-se: O mundo prestes a queimar! – Rira-se
loucamente – Penso que o irás apreciar.
Sentaram-se os dois no sofá. Carly não gostara do tom de
voz dele, mas também, ele sempre tivera aquele riso estranho.
Na mesa que existia entre o ecrã e o sofá, encontrava-se
um dispositivo estranho, que se encontrava ligado e que tinha a
frase: Pronto a transmitir; colocada no seu visor.
- Que é isto? – Perguntou ela com algum receio.
- É o que nos permitirá assistir ao nosso filme, minha
cara...
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Ele ligara o ecrã. Surgira nele a imagem do Presidente a
dar uma entrevista para a maior televisão daquele país.
- Caro senhor presidente, há quem diga que o que tem
acontecido ultimamente, tem sido obra de um homem, confirma
isso? – perguntara a jornalista em tom calmo.
- Isso são calúnias! – A voz dele era forte – Temos
sofrido apenas infortúnios. As pessoas tendem a dramatizar.
Carly vira o sorriso do rapaz que se encontrava ao seu
lado a tomar o contorno do rancor que sentia pela mentira
daquele homem.
- Bem, tempo de o espetáculo começar. – Carregara no
ecrã do aparelho que existia em cima da mesa. A mensagem
mudara para: A transmitir...
Num segundo, a imagem da televisão mudara de um
plano fechado da cara do Presidente, para um plano quase
fechado da cara do rapaz que se encontrava ao lado de Carly, só
que a cara dele não aparecia nua, estava maquilhada, de branco e
com os lábios vermelhos, prolongando-se como cortes.
- Bom-dia, meus caros deambulantes deste império...
Penso que não precisarei de muitas apresentações, devem apenas
saber que tenho sido eu o responsável por estes atentados que se
têm manifestado ao longo deste tempo. – O seu tom de voz era
bem colocado, as pessoas tomavam a sua atenção nos diversos
monitores e rádios – Queria pedir desculpa a todos aqueles que
feri nesta guerra e que nada tiveram... Se bem que me deixem
dizer, somos todos culpados. – a sombra invadiu a limpidez das
palavras – Aos longos dos tempos temos deixado todos estes
caros senhores dominarem-nos, pela melhor arma que eles
encontraram... A ganância... O Primeiro homem inteligente foi
aquele que se virou para outro e disse: Isto é meu... Desde então
temos vivido sobre a sombra de uma ganância excessiva, da qual
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muitos se aproveitaram para nos fazerem querer que só
poderíamos ter aquilo que eles pretendiam... Nada mais. Foramnos dizendo que nós éramos demasiado estúpidos para alguma
vez sermos capazes de sermos alguém... Tornaram-nos pequenos
pedacinhos de esterco ambulante, neste mundo moribundo.
Foram-nos dizendo que os sonhos deixariam de ser possíveis,
foram-nos dizendo que são eles que mandam, foram-nos
dizendo que foram eles os escolhidos para nos controlarem...
Todas as nossas decisões foram sempre tomadas por outros...
Até o vosso simples nome não foi uma escolha vossa, foi a
escolha dos vossos pais... E nós aceitamos... Como se a nossa
voz não pudesse ser levantada e ouvida, como se não tivéssemos
direito a exprimirmo-nos da maneira que nos é querida... E
talvez, eles tivessem razão, talvez sejamos demasiado estúpidos,
caso contrário eles nunca teriam chegado onde chegaram... Eles
conseguiram fazer com que acreditassem que a culpa de tudo
isto era vossa e deram-vos um pequeno mundo onde podiam
viver, onde os problemas podiam ser esquecidos, onde todos
seriam iguais, venderam-vos uma mentira... Mentira essa que
vos tornou tristes, inúteis, sem qualquer razão de viverem...
Tornou-vos apenas mais um numa imensidão de corpos que se
arrastam por entre as ruas... Fazendo-vos pensar que para serem
alguém precisariam de um bom emprego, uma boa casa, um
bom carro, uma boa conta bancária, que precisariam sempre de
algo bom... Quando na realidade isso é só a maneira de vos
poderem tirar uma das duas coisas que só podem fazer uma vez:
viver... Se acham que o dinheiro é importante, que farão aqueles
que possuem dinheiro, se não tiverem onde o usarem... Dinheiro
é um bocado de papel e ferro que vos dão para se enganarem...
Mas que fará um gigante quando algum anão pequeno, doido,
pegar numa arma e, sem nada a perder, apontá-la bem
63
diretamente à sua cabeça e disparar... Que dinheiro o poderá
salvar, então? Olhem para o passado... Grécia foi destruída, o
Egito foi destruído, Roma foi destruída, Espanha e Portugal
perderam os seus territórios, Napoleão foi derrotado, Inglaterra
caiu... Todos os grandes impérios pereceram.... Quanto mais
tempo acreditam que esta terra encantada à qual muitos
chamaram de Nárnia irá durar? Para sempre? Quantos já não
foram postos de lado por este império? Quantos não foram
tratados como animais... Houve um homem que disse que Antes
morrer de pé, que viver de joelhos... Mas por que não viver de
pé e morrermos de joelhos? Afinal, a segunda coisa que
podemos fazer apenas uma vez é a morte, mais vale que quando
gastemos essa nossa vez, seja depois de fazemos algo
importante. – parara um breve momento – Sozinhos não somos
mais que um simples ser que será consumido mais cedo ou mais
tarde pela terra, mas juntos... – riu-se – Juntos somos uma força
invencível, que ninguém poderá domar... Somos uma força
capaz de fazer tudo... Por isso, deixarei ao vosso critério, ao
vosso arbítrio, se pretendem lutar por uma liberdade que nunca
conheceram, ou se irão continuar a ser o mísero pedaço de
merda que foi colocado neste mundo para simplesmente
fertilizar a terra que outros irão pisar imponentemente. – Parara
de falar por leves segundos – Esse homem que se intitula
presidente, não passa de um velho ditador, que vos foi tirando
todos os confortos que a vida vos poderia ter dado... Como tal,
não espero que consiga fazer com que todos se juntem à minha
causa... Enquanto o governo que nos possui não ceder, um dos
membros dele será morto... Isto não é uma ameaça... Não, uma
ameaça pretender simplesmente causar medo... Isto é
simplesmente uma maneira de dizer que, ou perdem de uma
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maneira, ou perdem de outra... – A imagem ficara centralizada
no seu sorriso louco e aí parara.
Todos os que haviam assistido àquela demanda das
palavras de um homem que não demonstrava a sua cara, entoava
nos ouvidos de todos como se fosse uma música, ou como se
fossem bombas a explodirem num ritmo lento, mas criando
muitas mortes.
Uns criticavam, outros tomavam a sua atitude como
correta, venerando-o. Olhando para ele como um sinal de que os
tempos estavam prestes a mudar. Infelizmente, nem todos
tinham a coragem de falar sobre os seus verdadeiros
sentimentos, não era simples proferir as palavras que
pretendiam, sabiam bem que, caso dissessem algo que não
devessem, as consequências poderiam ser inigualáveis.
Mas aos poucos e em pouco tempo, as discussões pelos
cafés, pelas ruas e pelas casas iam surgindo, mas voltaremos a
esses meros assuntos daqui a pouco.
Carly permanecia atenta à imagem dele que parara na
sua televisão. Agora fora substituída por uma mensagem que
dizia: Transmissão Interrompida. Nos seus ouvidos continuava a
entoar a mensagem dele, cada palavra tinha sido zelosamente
guardada para mais tarde poder recordar tudo aquilo que ali fora
dito, talvez por que, assim, um dia, poderia usar aquele discurso
para entender melhor o porquê de nunca te saído daquela casa, o
porquê de permanecer ali, ao lado dele, daquele homem louco,
daquele homem que tantos problemas lhe trouxera, que tantas
dores lhe causara, mas que, agora, parecia ser um homem com
uma justiça ainda maior.
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- Tu cumprirás a tua palavra? – A questão era a única que
lhe ocorria, a única que a preocupava. Ela não queria que ele
matasse mais pessoas, não queria que ele continuasse a derramar
sangue de inocentes.
- Caso eles não aceitem, virei-me obrigado a fazê-lo... –
Retorquira com toda a serenidade possível, o habitual dele, sem
grandes traços de preocupação ou ressentimento, ou melhor,
nenhum traço. Era um tom limpo, calmo, e, de certa forma,
moral.
Ela ergueu-se. Tentando respirar calmamente, mas já a
sua respiração se descontrolada. Ela não podia acreditar que ele
voltaria a matar.
- Por que é que tu vais continuar a matar pessoas? – Uma
lágrima começara a correr dos seus belos olhos azuis, cor que
ele até então não havia reparado – Que ganharás com isso? Que
bem poderá haver em tais mortes?
Curiosamente, apesar de ser sempre tão calmo em
questões que poderiam ser tomadas como incorretas, sempre
essa calma desaparecia quando ele via Carly a chorar, ou a
criticá-lo. Era como se a opinião dela importasse, como se o que
ela dizia fosse importante para ele. Parecia que não suportava
que ela chorasse, que ela sofresse.
- Tomei a liberdade de procurar algo para te mostrar... –
Seguira em direção a uma estante e retirara de lá ao que parecia
enormes quadros de vidro que com cuidado pus em cima da
grande mesa de madeira, antiga, que se encontrava no centro da
sala.
- Que é isto? – Perguntara ela enquanto olhava para
aqueles pedaços de vidro que protegiam duas enormes folhas de
papel.
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- Isto minha cara, são alguns dos mais importantes
documentos de toda a história... Documentos que mudaram o
rumo de todo o mundo quando este se encontrava em momentos
de angustia... E todos eles revelam aquilo que eu te gostaria de
demonstrar... – Ela olhara atentamente para aqueles frágeis
pedaços de papel que se não tivessem aquele duro vidro a
protegê-los há muitos que se haviam destruído – Esta é a
décima-terceira emenda da Antiga Constituição dos Estados
Unidos. Foi aceite em 1854, muito antes de algum de nós nascer.
Foi proposta por um dos possíveis maiores homens de toda a
história mundial, Lincoln, mas penso que nunca ouviste falar
dele. Com este documento, ele viu-se à beira de poder perder o
seu poder e acabou por ser morto depois de a emenda ser
aceite... Para conseguir que tudo isto fosse possível, tiveram de
morrer centenas de milhares de soldados... – Ela sentira uma
emoção estranha ao tocar no vidro que transparecia aqueles
documentos, era como se todo o ardor, todas as mortes, todo o
suor que constituí-a aqueles documentos tivesse ficado preso
neles para sempre – Esta é uma das traduções dos Direitos
Humanos. Foi retificada a 10 de dezembro de 1948, num país
chamado França. Foi criada logo após um dos maiores
massacres da história da humanidade, a II Guerra Mundial...
Sabes o que foi a II Guerra Mundial? – O olhar dela
demonstrava que não – A II Guerra Mundial foi um dos mais
sangrentos momentos de toda a humanidade, todavia foi um
momento que fez a humanidade evoluir... Um homem que se
vira a ser os seus sonhos recusados, enlouqueceu, e decidiu
assassinar a sua raiva juntamente com milhões de homens,
mulheres e crianças de determinadas etnias... Ele podia ter sido
facilmente travado no início, enquanto a sua ideia ainda era uma
simples erva daninha que poderia ser facilmente arrancada, mas
67
como ninguém se importou, a ideia fora crescendo e crescendo...
Espalhando-se, e assim a humanidade sofreu com o sangue a ser
encrostado nas pedras da calçada... Todavia, se isso não tivesse
acontecido, esse documento que possuis na mão, nunca havia
sido criado...
- Não consigo entender onde pretendes chegar com tudo
isto... – Interrompeu-o, sem conseguir retirar os seus olhos
daqueles documentos, daqueles pedaços de papel que
continuavam a trazer-lhe uma energia estranha.
- O que eu te quero dizer é que... – Parara para engolir
em seco e depois continuou – A Humanidade precisa de sofrer
certas catástrofes para as pessoas entenderem que não são
nenhum Deus, são simplesmente seres... E que basta uma arma,
basta alguém ser doido o suficiente, para que eles percam tudo...
É aí que as pessoas se juntam e lutam. Eu sei que matei
inocentes, mas as pessoas agora apercebem-se que numa guerra
temos de fazer sacrifícios, mas se isso significar termos um
amanhã melhor, então temos de o fazer... As pessoas vão odiarme, mas um dia entenderão que tudo o que eu fiz foi numa
tentativa de as salvar, quiçá demorará muito tempo até que isso
aconteça, mas pelo menos entenderão que, não é preciso muito
para elas conseguirem derrubar um gigante... Basta serem loucas
o suficiente para não terem medo...
- Tu queres ser o herói desta história, é isso?
- Não! – Rira-se intensamente, fazendo-a logo
desacreditar-se de que ele procurava heroísmo – Eu, no final,
não quero ser o herói desta história, quero ser sinónimo de que
ainda há esperança... – Mantivera o seu leve sorriso que ganhara
ainda mais significado.
Ela olhara bem nos olhos dele que brilhavam, algo que
ela nunca vira em ninguém. Pela primeira vez vira uns olhos a
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terem um brilho, um brilho que demonstrava: Eu estou vivo, eu
estou a lutar, olhem para mim, façam a vossa história, juntem-se
à minha história, em breve toda a escuridão será levantada
pelos nosso olhos, em breve dançaremos como loucos, mas
felizes, em torno de um fogo ardente.
- E se tu estiveres a vender simplesmente um conto de
fadas? E se estiveres simplesmente a demonstrar às pessoas que
há dragões?
- Se me permites, há uma bela frase que outrora decorei
quando, ainda pequeno, comecei a ler contos de fadas... Os
contos de fadas não nos contam que há dragões, as pessoas já
sabem disso, os contos de fadas contam-nos que um dragão
pode ser morto.
Carly respirara fundo, tentando acalmar o seu coração
que palpitava loucamente dentro do seu corpo. Que ia
enlouquecendo, como se fosse explodir.
Ela não sabia bem o que aqueles documentos tinham, o
que aqueles documentos representavam, nem se as histórias dele
eram verdade. Ela apenas podia ter a certeza que havia algum
motivo que ainda a prendia àquele lugar, que ainda a fazia ficar
ali, a ouvi-lo, a questioná-lo... Podia ser simplesmente a mera
curiosidade de alguém que nunca tivera algo diferente, ou seria
algo mais?
69
7
Voltando de novo ao que anteriormente fora dito, mas
não concluído para não perdermos a coerência temporal desta
história; Começavam a rondar por todas as ruas, casas, bares e
todos os lugares oportunos as discussões sobre se aquele deveria
ser um exemplo a seguir, ou se não passava de um mero
terrorista que não tinha o mínimo sentido do que era lutar, que
apenas queria causar o caos e a destruição e as suas intenções
eram diferentes da que ele transmitira.
Apoiando-o ou não, a verdade era que todos falavam
dele, todos começavam a pensar, a criar as suas próprias ideias.
Poderia parecer que não, mas, de facto, pela primeira vez na
vida daquelas pessoas, elas tomavam uma decisão importante
por elas mesmas. Lutar ao lado dele, ou não.
Ninguém acusava ninguém de cobardia por querer
permanecer no seu confortável lar em vez de sair para a rua e
protestar. Ninguém acusava ninguém de loucura por se querer
chegar à frente e começar a lutar.
Muitos começavam a ser os confrontos entre povo,
polícia, tropas militares e políticos. Muitos zé-ninguéns haviam
sido presos, levados para longe, torturados, numa tentativa
contínua de se poder saber a verdadeira identidade do homem
que causara todos aqueles tumultos. Numa tentativa de fazer
70
com que todos dessem um passo atrás na ideia de lutarem contra
o órgão máximo daquele império.
A ideia parecia ser simples, igual a tantas outras
anteriores. Gerar o medo e fazer com que as pessoas fiquem
quietas, que deixem os outros continuarem a pensar por elas.
Sim, a ideia parecia simples, mas a realidade era
diferente do demonstrado teoricamente por analistas, psicólogos
e membros do governo. Por cada pessoa que o governo
capturava, ia aparecendo mais três para se juntarem à luta, nem
sempre eram três, claro, são apenas estimativas de números para
fazer entender que as pessoas se começavam a revoltar. Que
começavam a tentar mudar todo o mundo em que viviam, que
tentavam criar um novo mundo, onde não vivessem com medo,
onde a informação fosse livre, onde tudo aquilo que eles
pretendiam, fosse possível.
Tomados conhecimentos de que as ideias para a criação
de medo e a geração de abrandamentos nos protestos não
estavam a acontecer, logo se começaram de novo a fazer
reuniões para se discutirem culpas e o que poderiam fazer a
seguir.
- Penso que não terei de referir de novo quais são as
minhas mais sinceras opiniões quanto ao que se tem passado... –
O tom de rancor e raiva que o Presidente possuí-a voltava a
deixar todos em tumulto, sobretudo aqueles que eram os
principais responsáveis pelos serviços de proteção daquele país
– Caros Senhores Nobert, Almiton e Morgan, penso que quando
os nomeei para os cargos em que agora se encontram foi por
causa de, após muitos anos de serviço, vocês eram os mais
indicados para assegurarem a proteção dos membros deste
império e, acima de tudo, dos membros deste governo. Todavia,
nos últimos tempos, penso que deveria ter repensado a minha
71
decisão, afinal, apesar de toda a tecnologia e meios que têm
disponíveis, nenhum de vós conseguiu capturar o homem que
procuramos.
A mesa permanecia em silêncio. Ninguém se dignara a
falar. Os 15 membros daquela mesa que haviam sobrado depois
dos diversos atentados, contando que o massacra na televisão
tinha acertado num dia em que os três membros responsáveis
por controlar os MIDIAS daquele império haviam sido mortos.
- O que devemos fazer quanto às ameaças? – Indagara
um homem que se encontrava envolto quase na sua totalidade
pela sombra. As atenções só se haviam virado para ele, porque
ele arranhara a garganta antes de proferir qualquer palavra.
Por muito que nenhum admitisse, aquela era a pergunta
que catorze dos membros queriam fazer. Só que tinham
demasiado medo de o fazer, e o medo era motivado, a expressão
na face do Presidente dizia isso mesmo.
- Caro Senhor Ell. Penso que será mais do que evidente
que o governo nunca irá recuar perante quaisquer tipos de
ameaças, declarações essas que serão feitas mal todas as
ligações televisivas e de rádio estiverem estabelecidas, mas o
senhor deveria saber isso melhor que ninguém, é o responsável
pelo nosso sistema de ensino e nas escolas deve ser ensinado
que é o povo que deverá ter medo do governo, e não ao
contrário. Além disso, nas escolas deve ser ensinado e de forma
evidente, que nós somos de facto o órgão máximo estatal, que
ninguém se deve sobrepor a nós e que todos os que tentarem
fazer perecerão.
Nem o fogo que aquelas palavras tinham conseguiu
aquecer aquela fria sala, muito menos as almas congeladas
daqueles que seguiam as ordens daquele homem.
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Por muito que tentassem, todos haviam perecido, no
primeiro momento que ali haviam entrado, perante ele.
- Mas devemos perceber que órgão ele irá atacar a seguir.
Qual será o próximo ícone governamental que ele tentará
derrubar. – A voz do velho que se encontrava do lado direito do
Presidente podia ser fraca, mas ela melhor ouvida que a outra.
- Isso será um trabalho para as nossas forças especiais e
policiais. – concluiu a mulher que era responsável pelos assuntos
parlamentais e que ela uma das mais frias pessoas daquela sala.
As palavras dela haviam caído como uma pedra na
cabeça daqueles três homens que viam os seus problemas a
aumentarem a cada segundo que passava.
Almiton, Nobert e Morgan entreolharam-se, sabendo
perfeitamente que tinham de se unirem para conseguirem salvar
os seus empregos, as suas vidas. Não podiam voltar a falar no
que se tratava de apanhar aquele homem que lhes causava os
problemas. Aquele homem que se maquilhava para aparecer
perante todos os cidadãos daquele império. Que se maquilhava
como se fosse um palhaço, imitando, ao que sabiam, um vilão
antigo da Banda Desenhada, que eles nem sabiam o que isso era,
mas ao que lhe haviam explicado eram histórias contadas em
livros, feitas por quadradinhos que iam contendo desenhos.
Depois de saírem daquela reunião, com as suas cabeças
cheias de protestos e críticas. Nada como antes tinham vivido. O
problema era esse, nunca estiveram habituados a tamanho
problema.
Ambos os três fumavam o seu cigarro, numa tentativa de
se acalmarem dos problemas que possuíam em mãos.
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- Temos de conseguir arranjar uma forma de resolver
tudo isto! – Nobert tomara a decisão de ser o primeiro a falar. O
fumo ainda saíra pelo sua boca.
Os outros três mantinham o seu olhar fixo em objetos
inexistentes.
- O que haveremos de fazer para conseguir capturá-lo? –
A pergunta de Morgan era a mais cuidada e a mais certa de todas
– Não será possível estar em constante vigia dos principais
pilares deste império. E ele já provou ser muito inteligente...
- Por mais espero que ele seja nesta altura, temos de
conseguir ser mais espertos que ele. Não podemos deixar que ele
consiga simplesmente sair impune de tudo isto... São os nossos
cargos que estão em risco, caso ele consiga cumprir a sua
promessa...
- Caso ele consigo cumprir a sua promessa, Almiton, os
nossos cargos serão o menor dos nossos problemas. – Todos
voltaram ao seu estado de transe nos seus pensamentos mais
moribundos, que vagueavam, mas que voltavam a centrar-se no
mesmo assunto.
Aquele homem tinha conseguido o que nunca mais
nenhum alguma vez conseguira. Tinha criado um medo, uma
ideia, um plano, que seria capaz de derrotar todos os que outrora
haviam sido os gigantes daquele poderoso império. Se ele
conseguiria ou não, isso dependia do tempo que demorariam a
apanhá-lo e de qual era verdadeiramente o seu plano.
Continuavam então as buscas incessantes por aquele
homem que todos finalmente haviam visto, mas que ninguém
verdadeiramente conhecia. Ninguém sabia o seu passado, os
seus propósitos, os seus objetivos, os seus valores. Apenas
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sabiam que tentava destruir todo aquele país, não a terra ou as
pessoas, mas sim os ideais. Pretendia dar-lhes a liberdade que
elas nunca tiveram.
Os polícias e as outras forças que ninguém conhecia,
continuavam a investigar por toda a rede da Internet, por todas
as casas de pessoas que eram presas em protestos, por todas as
linhas telefónicas, o mínimo sinal de qual seria o próximo
ataque, de quem seria o homem responsável por aquilo tudo.
As investigações continuavam a cair num buraco
demasiado negro. Um buraco que ninguém conhecia, um buraco
que ia abrindo cada vez mais, que ia sendo cavado por aqueles
que o queriam fechar.
A revolta instalava-se cada vez mais nas ruas, as pessoas
procuravam por vingança, procuravam pelo seu novo líder,
procuravam por aquilo que seria melhor para elas. O que
continuava a suscitar a dúvida, do que seria realmente melhor
para elas.
Enquanto estas buscas aconteciam no exterior, Carly
procurava no interior da sua casa por mais livros e filmes que lhe
pudessem ensinar algo diferente.
Cada vez mais aprendia sobre assuntos que ela nunca
ouvira falar. Sobre histórias que nunca lhe haviam contado,
histórias essas que realmente haviam acontecido, mas que não
eram boas de serem contadas se queríamos manter o povo
calado.
Ela já perdia conta aos dias que estava ali fechada, ou
aos livros que havia lido, ou aos filmes que havia visto, com ele
ao seu lado. Mas pela primeira vez nenhum desse tempo fora
perdido.
75
Ele ia explicando-lhe aos poucos tudo aquilo que ela
deveria saber, para entender melhor os filmes. Até, pela primeira
vez vira uma algo brilhante, que nunca vira antes. Comédia.
Fora vendo vários episódios de séries antigas que haviam
sido banidas e terminadas muito tempo antes de ela nascer...
Havia uma que se chamava os Monty Python, homens que
diziam aquilo que pensavam, de forma inteligente, nem ela
conseguia perceber todas as suas piadas, faltavam-lhe imensas
referencias, mas não deixava de se rir à brava... Os humanos
foram depois substituídos pelos desenhos animados, uma família
de pessoas amarelas, que se intitulava Os Simpsons.
Pela primeira vez ela fizera algo, que não fazia desde de
que era criança, ela rira.
Por muito que ela adorasse a leitura, os filmes eram os
seus favoritos, pois um fantástica história conseguia ser contada
em tão pouco tempo. A verdade era que, todos os filmes que ela
havia visto, tinham sido os melhores de sempre, que conseguiam
capturar quase toda a intensidade da história, pois, nada melhor
que palavras para se conseguirem descrever os sentimentos mais
desejados do mundo.
Aos jantares iam discutindo as ideias que os filmes e os
livros transpunham. Iam dando a sua opinião sobre os mais
diversos assuntos que eles acreditavam, sobre política, economia
e sociedade. Sobre história, ideias e ideais.
Muitas vezes ela juntava-se à noite ao lado dele, a ler um
livro para a sua irmã. As palavras do livro emergiam no ritmo e
tom certo em toda a parte da história que ele contava, o que
tornava aquele momento inesquecível.
Toda aquela vida lhe começava a parecer muito melhor
do que ela alguma vez imaginava.
76
Estava frio, todavia a lareira aquecia-os. Eles estavam no
sofá a ver Fight Club.
- Foi muito bom o filme! – Disse Carly, mesmo sem ele
ter perguntado. Era uma mania que ela tinha, falar antes de as
pessoas lhe fazerem as perguntas, ela já sabia as básicas
perguntas que todos faziam, portanto, para quê perderem tempo
a fazê-las.
- Folgo em sabê-lo... – Manteve o seu tom de voz um
tom acima do normal, mas típico de alguém com o seu estilo.
Ela reconfortou-se no sofá, mas o seu corpo não
conseguia encontrar a posição certa para se manter. Ela sentia
uma vontade, um formigueiro que lhe aparecera há dias, mas
que ela ainda não fora capaz de satisfazer, pois ainda não tivera
coragem para dizer aquilo que pensava.
Todavia, aquele teria de ser o dia de ela fazer a pergunta
que há muito lhe ressaltava forte no seu peito. Tinha de
conseguir acalmar a sua curiosidade, por muito que soubesse
que isso lhe poderia trazer problemas, que ele poderia não gostar
da sua impertinência, mas a força de perguntar era muito maior
que a contenção dela.
- Posso perguntar-te algo? – O seu tom era calmo e
receoso, como seria de esperar.
- Penso que sim... – Retorquira calmamente.
- Há dias contaste-me a história da tua infância, as tristes
memórias que tinhas, mas se bem me lembro falaste de que
moraste com os teus avós, que te deram toda esta coleção, mas
nunca me contaste essa parte da história... – Ela não terminou a
pergunta, não era preciso, era evidente o que ela queria saber.
- Eu disse que morei com a minha avó, nunca referi o
meu avô. – Corrigira – Esse morrera muito cedo, mesmo antes
de eu nascer... Penso que poderei contar-te a história da minha
77
infância e adolescência, daquilo que me lembro, mas estarás tu
preparada para ouvi-la?
Ela não sabia se deveria responder da maneira que queria
àquela pergunta, mas não podia continuar com a sua
curiosidade. Anuiu.
Ele deu uma leve risada.
- Então... Prepara-te...
78
8
Não haverá melhor que contar esta pequena história
olhando para o interior da sua mente, onde as suas memórias
estão guardadas.
Ali estava ele, com cerca de dez anos, a olhar
atentamente para as suas mão ensanguentada, a faca com o
mesmo tom de sangue no chão. O corpo do homem que lhe dera
o material para nascer no chão, morto, com o olhar frio e fixo
nele, como se pela primeira vez tivesse orgulho nele e ao mesmo
tempo o culpasse do sucedido.
Ele tentava chorar, mas não conseguia. Ria-se ainda mais
a cada momento que passava. Como poderia ele ficar triste,
como poderia ele sentir-se culpado, ficar em depressão, chorar,
gritar ou enfraquecer-se. Ele tinha morto o dragão que há muitos
anos o atormentava. O dragão que nas histórias todos querem
ver morto, quando ele atormenta os pequenos seres que mal
força têm para pegar numa espada.
Sentiu a porta a ser arrombada. Os vizinhos pela primeira
vez tinham decidido fazer algo. Fazer algo para ajudar aquelas
pobres crianças, mas em vão, uma já havia sido corrompida,
para salvar a outra. Se o tivessem feito mais cedo talvez aquilo
nunca se tivesse sucedido.
Ele viu dois homens a apontarem-lhe lanternas à sua
cara. Mas a luz não o incomodava. Ele mantinha o seu sorriso, o
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seu doido sorriso que dizia: Eu fiz o que tinha de ser feito e não
me arrependo de nada.
Depois de uma noite passada numa instituição, na qual
não dormiu pois não tinha sono. A euforia daquele dia fez com
que ele se mantivesse sentado, com os joelhos encostados ao
peito, cima da cadeira.
O olhar do seu pai a esvanecer-se era o que o fazia sorrir,
aquele olhar que o libertara para sempre daquela dor que ele
tinha, daquele medo que o fazia chorar todas as noites, ele
poderia ser feliz, não haveria mais nenhum dragão que o
pudesse derrubar, e se aparecesse mais algum, ele já tinha a
capacidade de ultrapassá-lo.
No dia seguinte, a sua avó viera busca-lo à instituição.
Mantinha um sorriso esbatido, mas verdadeiro, por ver que o seu
neto se encontrava bem. Ela era a mãe, da mãe que lhe o tornara
numa boa pessoa, num assassino, sim, mas somente de dragões,
e quanto a assassinos de dragões, ninguém tem nada contra.
Todos os vizinhos haviam testemunhado que o rapaz
fizera o que fizera em desespero, muitas haviam sido as noites
em que o ouviram a gritar por ajuda, mas eram demasiados
fracos e medrosos para fazer fosse o que fosse.
Ficara marcado que ele teria de ser visto por uma
psicóloga durante toda a sua adolescência, não fosse ele acabar
por ser um assassino em série e estragar-se o heroísmo.
Ele chegara finalmente à casa da avó, pelo caminho
assistira às pessoas que levavam a sua vida mediana, sem se
preocuparem com, por exemplo, aquele sem abrigo que pede
uma esmola ou um bocado de pão à frente de uma loja de
roupa... E, ao que parecia, alguns diziam não terem o dinheiro
necessário para um pão, para lhe dar, todavia, lá entravam na
loja e saíam de lá com a uma camisa elegante e dispendiosa.
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Reparava naqueles seres que iam perdendo tempo numa
vida que não era vida. Que se preocupavam com os seus
trabalhos, com os seus assuntos mundanos, e que faziam deles
os assuntos mais preocupantes do mundo.
E ali ia ele. Uma criança que acabara de se corromper,
mas continuava a sorrir, estava feliz, sabia que iria para casa
com uma pessoa que o amava, que ia puder ficar ao lado da sua
irmã.
Ao entrar em casa, sentira o cheiro aos doces que ela
havia preparado. Dentro da casa encontrava-se uma velhinha,
quase da mesma idade da avó, velhinha essa que morreria dois
anos depois vítima de alguma daquelas doenças que por aí se
apanham, mas que nunca ninguém sabe bem pronunciar. Ele
gostava dessa velhinha, era amiga da sua avó e dele. Dera-lhe
um rebuçado quando chegara, para ele adocicar a boca, o seu
sorriso tornou-se ainda maior.
Foi tomar banho, vestira roupas novas, escovara, pela
primeira vez desde que a sua mãe morrera, os seus dentes,
estavam tão sujos que as suas gengivas sangraram bastante.
Depois fora para a cozinha, deliciar-se com um bom queque de
chocolate que a sua avó fazia.
Sentou-se no sofá juntamente com elas as duas, a ver o
novo filme do seu herói favorito, e único conhecido naquela
altura, Batman.
A sua avó reconfortou-o. Apertando contra o corpo dela,
numa tentativa de dizer que tudo ficaria bem, que ele estava
seguro, que nada de mal voltaria a acontecer-lhe.
O tempo fora passando, ele fora ficando rodeado de
livros, que começava a ler aos poucos, tinha aprendido a ler por
causa da sua mãe, ele nunca fora à escola, por isso, enquanto a
sua mãe vivera, ensinara-lhe um pouco de tudo. O pai fora o
81
responsável por ele nunca ter podido ter uma aprendizagem
normal.
Como os seus conhecimentos eram suficientes, os
psicólogos e todos os restantes, também por causa de o rapaz já
ter sofrido demasiado, decidiram que ele deveria começar a
frequentar logo a classe que a idade dele propunha, para se
integrar melhor.
O problema é que ele sempre fora um rapaz que nunca
gostara de se dar com ninguém, era demasiado adulto e louco,
para se inteirar com aquelas supérfluas crianças.
O seu hobby favorito era chegar a casa, e, juntamente
com a sua avó ler algum livro em voz alta para a sua irmã. Ou
então, pegarem na cadeira de rodas e levarem a irmã a passear
no parque, ou sair com a avó, ou com a sua amiga e irem até ao
cinema verem alguma obra de arte que estreara.
Nada era melhor que tudo isso. Nada era melhor que
passar tempo a aprender, a viver no mundo que os livros e os
filmes o faziam viver.
Todavia, por muito que ele não quisesse, mas a natureza
mandava-o, ele não fazia amigos, não brincava com os outros,
não convivia com ninguém.
Todos o achavam estranho, todos sabiam da história dele,
do facto de ele ter matado o seu pai, e de toda a sua trágica
infância, mas em vez de isso ser motivo de as pessoas se
aproximarem, ainda se afastavam mais, julgavam, maltratavam.
Muitas foram as vezes que ele chegara a casa com o
corpo marcado, pois os seus amigos, haviam feito tudo aquilo.
Mas se as crianças podiam ter uma desculpa, afinal, tudo
o que faziam era um retrato de outros, o mesmo não era possível
para os professores, que demonstravam claramente o desprezo
por aquele rapaz estranho.
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Apesar de estranho, distraído e impetuoso, ele era o
melhor aluno de toda a escola, de toda a localidade, de todo o
país. Não se sabia como, mas para ele, aprender era algo que ele
fazia com facilidade, com gosto.
O rei não lhe crescia na barriga, ele era bom, mas não
gostava de ter essa ideia, de se achar que poderia ser maior que
qualquer outro, não, era igual a tantos outros.
Mas, inteligência não traz felicidade. E quando se tinha
um passado como ele, ainda pior.
Ele tinha sentimentos, por muito que os escondesse, por
muito que tentasse fazer de conta que era um sociopata que
havia matado o pai, que vira a cabeça da mãe ser esmagada
sobre uma mesa quando ele ainda era pequeno... A verdade é que
ele tinha vontade de saber o que era ser uma criança, de saber o
que era estar integrado com os grupos de adolescentes, de
conviver, de estar com uma rapariga.
Gostava de saber o que era por um momento não ser a
aberração de que todos falavam. Que todos denegriam com
mensagens, com palavras, com pancada.
Mas isso nunca acontecera.
Era triste.
Sim.
Era triste.
Um ser bom como aquele.
Que andava calmamente pelos lugares.
Que apreciava a vida, e tudo o que ela lhe dava.
Não ter amigos.
Não ter namorada.
Não ter nada.
Somente livros.
Somente filmes.
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Somente conhecimentos teóricos.
Por isso, jurara que faria tudo para tentar mudar o mundo
por uma vez, para que a sua irmã pudesse viver num mundo
melhor, para que todos os seres que fossem como ele, pudessem
ser felizes. Uma tarefa difícil, mas não impossível.
Vira aos quinze anos a sua irmã a ficar para sempre
impedida de voltar a levantar-se.
De voltar a poder passear com ele no parque.
Podia ouvi-lo, entendê-lo. Mas não podia falar, nem
levantar-se daquela cama de novo. A doença ainda era
desconhecida, mas havia quem dissesse que era para ela nunca
ter de ver o mundo horrível em que vivia, aquelas balelas que
são inventadas para se justificarem as maiores atrocidades da
vida.
Pela primeira vez, ele chorara. Deitara as lágrimas que
contivera toda a sua vida cá para fora. Mas jurara que nunca
mais voltaria a chorar.
Mas isto, fora quando ele tivera quinze anos, muito longe
de toda a realidade que ainda estaria para vir...
- E assim, fui mantendo o meu sorriso louco, de pessoa
que foi enlouquecido pela vida, que perdera tudo...
Carly tentara suster as lágrimas depois de ter ouvido toda
aquela história, contada com aquela voz de quem não consegue
ter as suas ideias no devido lugar, aquela voz de quem sofreu, de
quem parece feliz, mas é um caco por dentro.
- Uma vez ajudei uma rapariga, por volta da minha
idade, que tinha o seu gato ferido. Tratei dele e ele curou-se. Por
pouco morreria. Ela gostava de mim, eu dela, demo-nos sempre
bem, até ela descobrir a verdade sobre mim. – Terminara ele – E
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aí apercebi-me, que somos heróis, até alguém nos tornar em
vilões, nem todos são capazes de aguentar com a verdade,
mesmo que isso os torne infelizes... – O seu sorriso
empalidecera.
Ela respirou fundo. Por pouco vertia a lágrima que se
voltara a esconder no interior da sua alma.
Olhou para ele de novo.
- Mas, se bem me apercebi essa foi só a tua história até
aos quinze anos, o que aconteceu depois? – Perguntara ela
curiosa.
- Isso, minha cara amiga, terás de esperar que eu te conte
outro dia, um bom leitor, sabe que nunca deve ler todo o livro de
uma só vez, ou não entenderá a mensagem real que ele
transmite.
O seu sorriso voltara a ser simples.
85
86
9
- Senhor, mandou-me chamar? – Almiton entrara no
gabinete daquele velho homem, com o qual nunca havia falado
realmente, nem nunca antes ele o havia chamado. Aquela era
uma novidade como ele nunca tivera antes.
- Sim, sente-se.
Almiton sentira um frio a percorrer-lhe a espinha, apesar
de a sala ser quente. Aquela sala era escura, sinistra. Ou pelo
menos era o que lhe parecia, pois ela tinha várias lâmpadas
cheias de força a fluírem pelo teto, mas parecia que não era
suficiente essa força para que a luz passasse pela escuridão que
aquele homem transmitia.
Sentara-se em frente ao homem.
O seu computador estava fechado e sobre o computador
encontrava-se um ficheiro.
- Caro Senhor Almiton, chamei-o aqui hoje porque
precisava de o alertar para algo muito importante, mas espero
que isto fique só entre nós... Se mais tarde pensar em falar disto
com os Senhores Nobert e Morgan, estarei de total acordo, mas
espero que mais ninguém saiba do que aqui será falado.
Almiton escutava com todo o cuidado as palavras do
velho homem que permanecia com o seu olhar vago fixo nele.
Almiton não respondera. Estava demasiado nervoso. Pelo que
foi preciso o velho homem voltar a repetir a pergunta, para que
ele respondesse que sim, que poderia contar com ele, que nada
do que ali fosse falado saíra daquele pequeno ciclo.
87
- Este é um assunto delicado... Como acredito, o senhor
tem a plena noção de todos os projetos que este governo criou
para poder chegar onde chegou? – A cara de Almiton confirmara
– Ao longo dos tempos, fomos falando entre diversos países, os
mais poderosos, para criarmos estratégias para podermos
dominar todos os países mais pequenos e todas as pessoas...
Tudo começou há cerca de vinte anos, em que começamos a
criar o stress nos mercados, a levar à falência vários bancos,
criamos moedas únicas para serem usadas em diferentes
economias, de modo a que só a maior economia pudesse
prosperar e todas as outras fossem derrubadas. Não foi simples
engendrar todos estes planos, afinal, muitos eram aqueles que
lutavam pelos seus direitos. Decidimos então dominar os
MIDIA, da melhor maneira possível, para que arranjassem
pessoas em que o povo pudesse confiar, pessoas que levariam o
povo a acreditar que a melhor solução, era aquela que eles não
pretendiam seguir. – Parara um bocado – Claro que isso não
chegava, continuavam a haver pessoas que continuavam a
pensar por elas mesmas, continuava a haver algo como que se
chamava cultura. Aproveitamos os MIDIA, aproveitamos as
escolas, as bibliotecas e tudo o resto e começamos a encher tudo
de uma imensa merda cultural, que as pessoas iam colocando
nas suas cabeças, de maneira a que fosse mais simples dominálos. A ideia parecia ser simples. Estávamos a conseguir dominar
bem as pessoas Começamos a criar doenças em laboratório,
fazíamos um surto delas para que depois as pessoas ficassem
amedrontadas, para que algumas morressem com a maior
facilidade possível, para que o medo as invadisse. Fizemos
vários ataques terroristas para que as pessoas continuassem a
acreditar que quanta mais liberdade tivessem, maior era o risco
de serem mortas. Foi uma ideia genial, mas continuava a haver
88
um problema. Ainda existiam pessoas que pensavam por elas
mesmas. – Levantou-se e ficou a olhar seriamente para a janela
que escurecera – Assim iniciamos um dos períodos mais negros
de toda a nossa história... – Mantivera-se calado por algum
tempo, como que tentando pensar na melhor maneira de falar de
todas as atrocidades – Percebemos que enquanto as pessoas
fosse educadas de forma a poderem pensar, enquanto houvessem
pessoas suficientemente inteligentes para poderem entender que
o que nós fazíamos era errado, existiriam revoluções e
manifestações antigovernamentais. Assim, entre todos os países
que eram os mais eficazes, criamos o projeto Sophia. O projeto
que pretendia prender todos os génios que estivessem ainda a
estudar ou não. Dar-lhes a hipótese de trabalharem para o
governo, viverem uma vida normal, sem poderem dizer algo
contra o governo, ou então morreriam. Poderia parecer que
aquela era uma decisão fácil, mas a verdade é que muitos sabiam
demasiado, muitos sabiam que acabariam por ter de matar
pessoas, compatriotas, então fizemos campos de concentração,
onde usávamos vários métodos de tortura para que eles
quebrassem e fossem contra tudo aquilo que acreditavam. No
início, muitos cederam, mas outros continuaram. E nós
continuamos a torturá-los, muitos começaram a morrer, por não
aguentarem tamanhas torturas. – Mantinha o seu olhar vago e
perdido – Muitos foram aqueles que morreram. Muitos foram
aqueles que ficaram completamente perdidos, que acabaram por
ter de ser internados em hospícios. Ao mesmo tempo
começávamos com o processo de incluir o ADN das pessoas
como componente de identificação. A grande base de dados, que
dizíamos que ajudaria a resolver crimes, entre outros motivos
que arranjamos, assim poderia ser mais simples identificar
pessoas que se opusessem ao governo. Mas, para que não
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houvesse problemas, pensamos que o melhor seria não incluir o
ADN daqueles que ainda não tinham sido corrompidos, para que
ninguém pudesse alguma vez dar pela falta deles em certos
registos, nunca se sabia que informação poderia um dia vazar. –
Ele relembrara-se daquele tempo que passara, daqueles negros
dias, onde sangue havia sido derramado, mas pelo bem daquelas
pessoas, daqueles que agora comandavam todo aquele enorme
mundo, antes que toda a humanidade caísse
Almiton permanecera a olhar seriamente para o homem
que parecia ter mais algo a dizer, mas era incapaz de o fazer.
Notava bem que aquela revelação que ele fizer, havia sido algo
que ele não poderia crer algum dia vir a revelar. Daquelas
verdades que escondemos calmamente no mais profundo abismo
que a nossa alma possui, para nunca ninguém ouvir falar de tais
atrocidades que cometemos durante a vida e, tanto guardamos,
tanto mantemos essas atrocidades para nós, que mais tarde, um
dia, contamos a algum ilustre desconhecido sobre a graça de nos
tentarmos salvar.
O homem respirara fundo. Voltara os seus olhos para
Almiton e com a sua boca já cansada de falar, disse:
- Nesse ficheiro que vê em cima do computador
encontram-se os dados necessário para aceder à base de dados
que contém todas as informações sobre esta experiência e
atrocidade que o governo foi cometendo. Espero que possa usar
essa informação da forma mais correta possível... Entendo que
poderá ser difícil para você engolir toda esta informação, mas
queria relembrá-lo que, caso esta informação saia destas quatro
paredes, ou seja comentada com alguém para além do Senhor
Morgan e do Senhor Nobert, eu negarei qualquer envolvimento.
Além disso, depois de aceder à base de dados, toda ela será
apagada. Estando todas as cópias desses ficheiros colocadas num
90
lugar seguro, onde somente eu poderei chegar, logo não haverá
forma de você comprovar que o que eu disse era verdadeiro ou
não.
O tom voltara a ser o habitual. Frio, sinistro. Com o
sentimento de dor, ódio e orgulho.
Almiton nunca pensaria em dizer algo contra aquele
homem. Nunca ousaria usar qualquer informação que tivesse
para ferir a imagem que aquele homem, desconhecido, possuí-a
em toda a sociedade. Estaria longe de fazer isso. Acabaria por
ser ele o único a sofrer com qualquer tipo de consequências e
claro, nunca seria aplaudido como um herói, mas sim,
chicoteado como um Cristo.
- Compreendo perfeitamente, Senhor! – Pegou no
ficheiro. Deu uma pequena vista de olhos, e tentou parecer o
mais descontraído que podia, apesar de não ser fácil. Até a sua
alma tremia por dentro e pedia para que ele se fosse embora
daquele lugar o mais depressa possível. Que ele simplesmente
desaparecesse. Que nunca mais ali pusesse os pés e que
encontrasse o homem que criara todos aqueles atritos no menor
tempo possível. Cada dia que passava era um dia em que ele ia
vendo mais nitidamente a sua forca. Pronta. Com um laço já
pronto onde ele colocaria o seu pescoço e depois seria içado,
enforcado e morreria, lentamente, esperando que alguém fosse
cortar a corda e o salvasse. Mas claro, que isso só aconteceria se
aquilo fosse um filme, um livro, uma história daquelas que se
contam para aí, onde tudo corre bem, onde tudo, simplesmente,
é feito de ursos pequeninos e bons, quando na realidade os ursos
são animais ferozes e prontos a chacinar os seus inimigos.
- Eu soube logo que o senhor compreenderia a gravidade
da situação. – Acabou por dizer o homem voltando a sentar-se –
Espero que tudo aquilo que está contido nessa base de dados
91
seja suficiente para poder apanhar o homem que fez tudo isto e
possa salvar o nosso império.
Almiton engolira em seco. Sorrira, anuíra e pensara: O
Seu império.
O ministério da educação era um lugar como tantos
outros, um edifício central, onde tinha a máxima: Re-educação.
A máxima havia sido escolhida no início da criação
daquele império. A ideia era simples. Definir a ideia de
educação, para prevenir que se criassem pessoas que soubessem
mais do que aquilo que deveriam saber. Para que ninguém
tivesse ideias diferentes daquelas que eram esperadas.
O edifício ficava quase no centro da cidade, na ala que
ficara conhecida como, A Ruela dos Poetas, uma rua onde
apenas as pessoas mais ricas estavam autorizadas a entrar, não se
poderia deixar que qualquer um pudesse aceder a grandes peças
de teatro.
A rua era guardada por vários militares. Era um lugar
onde só alguns estavam autorizados a morar, e diziam que era
importante manter a segurança naquele lugar, onde, depois de
passada essa ruela repleta dos melhores cinemas, bares e teatros,
começava a grande avenida dos maiores bancos e onde
moravam os grandes diretores.
Toda esta rua conduzia então ao centro e ao grande
edifício, protegido por mais de trinta militares, munidos com as
melhores armas e os melhores treinados. Nada poderia faltar à
volta daquele edifício, por isso, existiam lojas com os melhores
produtos, as melhores tecnologias, os melhores restaurantes.
Tudo isso porque aquele edifício era não mais, nem menos, que
o grande Palácio Imperial, como muitos chamavam, apesar de
92
esse não ser o seu nome real, mas também, ninguém sabia qual
era o nome original que lhe havia sido posto.
Mas, voltando à Ruela dos Poetas e ao edifício que havia
sido construído para ser o local onde o futuro da educação e
consequentemente da humanidade era decidido.
Eram imensas as pessoas que trabalhavam naquele lugar.
Procurando quais seriam as melhores matérias a serem
lecionadas, quais seriam as obras que deveriam ser proibidas de
se encontrarem expostas nas bibliotecas. O que não deveria ser
dito pelos professores nas aulas. Muitas pessoas passavam o dia
a ler todos os ficheiros que continham toda a vida de cada
professor para saberem se havia algo no seu passado que
pudesse ser um fundamento para se retirarem as suas licenças de
ensino.
Mas se antes de todos aqueles atentados tudo aquilo era
levado a um extremos, depois de os ataques acontecerem tudo
ficou muito, mas muito pior. Qualquer professor que fosse
apanhado nos manifestos perdia automaticamente a sua licença.
Qualquer aluno que pudesse representar uma ameaça era preso.
Qualquer livro que pudesse conter qualquer ideia de uma
revolução era banido.
Qualquer autor que tivesse na sua biografia alguma luta,
era retirado do programa, e deixado no esquecimento.
Gosh era o responsável por toda a educação daquele país.
Fora um dos melhores alunos de sempre. Muito dado à cultura e
a todas as ciências. Um aluno exemplar, como muitos
professores lhe haviam chamado. Tinha cerca de cinquenta anos
naquela altura, todavia mantinha-se bem conservado. Usava
óculos, era magro, alto e tinha o cabelo bem aprontado. Andava
sempre bem vestido, aquilo que se pode esperar de alguém que
93
acabara por estudar numa universidade privada, mas a melhor do
mundo.
A verdade era que Gosh nunca fora muito inteligente,
mas sempre fora muito metódico. Passava os dias a estudar e
conseguia decorar muito bem tudo aquilo que era preciso.
Todavia, a sua pouca inteligência, mas os seus métodos faziam
com que ele facilmente conseguisse dar a volta por cima, por
isso, era sempre o melhor. Além disso, nunca gostava de ficar
atrás de ninguém. Apesar de ter uma infância pouco rodeada de
amigos e uma juventude mal aproveitada, ele mal acabara o
curso conseguira-se integrar numa grande empresa, e aos
poucos, fora calcando aqueles que se encontravam acima dele e
tornara-se o dono daquela empresa. Num golpe que se poderia
considerar desertor de qualquer tipo de humanidade.
Mas, fora graças a isso, que fora logo convidado para
aquele cargo quando tudo começou a acontecer. Quando chegou
a hora de acabar com tudo aquilo que pudesse acabar com
pessoas como ele, ricos, poderosos, gigantes.
Ele tinha sido dos primeiros a sugerir que a escola fosse
o primeiro palco para se controlarem todas as mentes. Que as
grandes obras de arte deveriam ser abolidas. Para o ajudar,
sugeriu que o responsável pela cultura deveria ser o seu único
amigo, Hallen, um rapaz que mal entendia o que era cultura, mas
que tinha os mesmos princípios que ele, que gostava de se
manter sempre no topo, como tal, faria tudo para aquele império
nunca cair.
E assim, sempre conseguiram manter tudo nas rédeas,
tudo como era previsto, sem grandes problemas, simplesmente
quem tinha ideias que não eram consideradas como boas para o
império, ou eram presas, ou sofriam a remodelação mental
necessária.
94
Mas naquela altura tudo começava a mudar de novo. As
câmaras e os microfones colocados em todas as escolas
revelavam que todos os alunos começavam a falar de um tempo
novo que estaria para vir, de um salvador que em breve os
libertaria das opressões do governo. A criatividade começava a
sobressair de novo. Fazendo com que se começassem a fazer
obras que iam para lá dos limites impostos pelo governo.
O pior era que o governo não poderia fazer muito. Só
poderia retirar os principais de jogo, mas mesmo isso não servia.
Desde que aquela declaração havia acontecido na televisão,
tinham sido colocados mais de trezentos mil alunos em
psicólogos por comportamentos impróprios.
Gosh e Hallen tentavam chegar a alguma ideia que
pudesse por fim àquele novo ato de uma peça de teatro que
começara mal, mas que começava a tomar o texto correto para
ser considerada uma obra prima da arte e uma maneira de tornar
aquela catástrofe, num final feliz.
A ideia era criar alguma obra que revelasse que o poder
deve pertencer àqueles que realmente o têm, não a qualquer
mundano que conta os trocos para comprar pão, pois ele só
saberá comprar pão, não saberá dominar um país como aquele.
Mas, a ideia logo fora posta de parte. Demoraria tempo a
ter tudo isso pronto, demoraria tempo a poder-se criar algo como
isso, além disso, nunca se saberia ao certo aquilo que poderia ser
apreendido de um livro desse estilo.
Pegar em obras estranhas seria algo que não se poderia
fazer, afinal, quase todas essas obras falavam contra o poder,
tinham mensagens sublimares que levariam as pessoas a
pensarem ainda mais a mudarem tudo aquilo que era aquele
império.
95
As noites e os dias iam tornando-se iguais, enquanto eles
não conseguiam pensar em nada de novo.
Continuavam a tentar atenuar tudo com os velhos
métodos de sempre, mas não sabiam por quanto tempo isso iria
ser possível, tinham de pensar em algo depressa, tinham de fazer
algo que não demorasse muito tempo e que pudesse modelar as
mentes o mais depressa possível.
Enquanto no ministério tudo isto se passava, e o sono
desaparecia da mente daqueles dois homens, o vilão de toda esta
história permanecia em casa. Sabia que Carly se encontrava na
cozinha, tinha decidido fazer um antigo prato que a mãe lhe
ensinara, um prato que ela tinha saudades de provar.
Ele estava no seu quarto. Sentado num pequeno banco. À
sua frente encontrava-se uma bateria que ele tinha há algum
tempo. Peça essa que ele havia roubado de uma loja de música
antiga. Agora, até para se ter uma peça daquelas, era necessário
ter uma licença.
Ele olhava para o relógio, como se esperasse por uma
hora certa. O ponteiro dos segundos ia mantendo o seu ritmo
natural, o ritmo que sempre tivera e, num momento, começara a
leve batida de uma velha música que ele sempre adorara.
Ele começara a acompanhar a música com o ritmo da sua
bateria, estando atento para que todas as batidas fossem corretas.
Ao mesmo tempo que a música começara a tocar na casa
dele, também por toda a Ruela dos Poetas isso se sucedeu.
- Que raio se passa? – Reclamara Gosh, levantando-se da
sua mesa e olhando para a janela. Voltando depois a olhar de
novo para Hallen.
Hallen arguíra com os ombros.
96
- Load up on guns, bring your friends. It's fun to lose and
to pretend. She's over bored and self assured. Oh, no, I know a
dirty word1 – A voz de Kurt Cobain ia sendo perseguida pela voz
daquele doido que ia despejando a sua raiva e a sua ideia sobre
os metais e peles da bateria - Hello, hello, hello, how low. Hello,
hello, hello, how low. Hello, hello, hello, how low. Hello, hello,
hello... – Todas as pessoas ouviam a música que vinha de todas
as partes da rua e que sobressaía para o exterior. Todos tinham
os olhos postos naquela rua. A música intensificava-se perto do
ministério da educação. Ninguém sabia o que se passava.
Ninguém sabia o que dizer, o que fazer. Muitos nem haviam
ouvido sequer aquela música em toda a sua vida. Os militares
aproximavam-se do Ministério, corriam por toda a ruela, por
toda a cidade. As pessoas seguiam os seus passos para saberem o
que se passava. No interior do ministério apagavam-se todas as
luzes. Ele intensificava a sua batida, a música continuava a tocar
livremente, criando o apetite de saber o que se iria passar. A
batida da bateria tornara-se intensa e então viera a batida final. –
With the lights out it's less dangerous, Here we are now,
entertain us... I feel stupid, and contagious...2 – E toda a ruela
começou a explodir, ao ritmo da música. Todos ouviam. Todos
sentiam medo. Todos olhavam para aquilo como mais uma
manifestação feita por aquele que eles não conheciam, mas que
lhes dissera que poderiam continuar a lutar.
1 Smells
Like Teen Spirit, Nirvana; Nevermind, 1991.
2
Carrega as armas. Traz os teus amigos. É fácil perder e fazer de conta. Ela
está chateada e confiante. Oh não, eu sei um palavrão. Olá, olá, olá, quão
baixo... Com as luzes apagadas é menos perigoso. Aqui estamos, entretenhanos. Sinto-me estúpido e contagioso. (tradução literal)
97
As pessoas permaneciam a olhar para todo aquele
espetáculo de fogo de artifício, enquanto aqueles que se
encontravam dentro dos edifícios que explodiram e à sua volta
sentiam-se a serem consumidos pelo fogo, enquanto ouviam a
música que continuava a tocar como última prece.
Todo o edifício estava destruído. A frase Re-education,
por mera obra do destino, nada que a nossa personagem
principal houvesse antecipado, fora destruída somente quando
todos os olhos e câmaras estavam postas nela. Como que
dizendo que era altura de tudo aquilo ser apagado.
Muitos sorriam. Outros choravam. Alguns não sabiam o
que deveriam fazer.
Foi então que, no ecrã principal que estava naquela
avenida principal surgira de novo a cara daquele que lhes
trouxera a esperança.
- Bom-dia meus caros amigos... – O seu sorriso era ainda
maior que antes. Ao mesmo tempo todas as televisões voltavam
a demonstrar o mesmo – Espero que esta pequena obra prima
não vos tenha assustado. Mas era necessário deitar abaixo este
velho edifício de opressão que não tem feito mais senão retirarvos tudo aquilo que alguns deixaram. Se pensam que os vossos
filhos vão para a escola para aprender, estão enganados, a escola
diz aos vossos filhos que são incapazes de serem alguém na
vida. Quanto mais inteligente o vosso filho for, mais depressa a
escola o consegue excluir de qualquer maneira para prevenir que
ele alguma vez faça algo contra este governo. Está na altura de
agirmos. Espero que este dia fica marcado como o dia em que
passamos a ser de novos livres de conseguirmos a nossa própria
educação. A educação que todos merecemos. – Sorrira de novo –
É tempo de se encherem as estantes com livros que realmente
ensinam-nos algo e não livros que nos degeneram o nosso
98
cérebro e o tornam num órgão que nada mais serve senão para
repetir depois deles: Eu sou livre. Há alguns séculos a igreja
destruí-a todos os livros que eram considerados como
caluniadores contra a sua imagem, ou que iam contra tudo
aquilo que ela pregava. Mas faziam-no à frente das pessoas, para
elas saberem perfeitamente que deveriam ter medo deles. Hoje
faz-se o mesmo, mas em salas fechadas, onde ninguém o possa
ver, para que nunca ninguém acredite que aquele homem que
nos fala e diz ser o nosso líder, é na realidade o dono da quinta e
nós somos os porcos que ele alimenta com o que pretende. –
Rira-se das suas próprias palavras – Penso que volta a ser altura
de os livros, os filmes, os teatros, as músicas, que são o único
feitiço capaz de nos transformar em sábios, devem ser
libertados, para que possamos criticar e aprender a sermos
humanos e não meros porcos que, quando chega a nossa hora,
somos mandado para um matadouro para depois sermos servidos
à mesa daqueles que nos podem comprar. Pensem um pouco em
tudo aquilo que foi dito. Começará a chegar às vossas casas
pequenos livros que são obras dignas de serem lidas, muito ao
contrário de tudo o que hoje veem... Espero que gastem um
pouco das vossas medíocres vidas a lerem aquelas palavras que
realmente significam algo... Lembrem-se, deve ser o povo a Reeducar o seu governo, não o contrário. – A imagem dele
congelara. Todos se mantinham a olhar atentamente para a
imagem daquele homem com o olhar louco e um sorriso
vermelho pintado na cara.
Ouviu-se um bater de mãos, que aos poucos se fora
prolongando ao longo de toda a avenida. As pessoas aplaudiam
o que havia sido dito. Muitos começavam a gritar, a levantar os
seus punhos cerrados no ar. A revolução teria começado?
99
O Presidente atirara o seu copo de vinho contra a parede,
este escorreu como se fosse sangue. A raiva tomara-o. Sabia que
aquele homem havia trazido esperanças novas ao povo. Que
voltara a atacar um dos principais símbolos do país sem que
ninguém fosse capaz de o impedir, mais uma vez o governo
tornara-se fraco perante a vontade de um simples homem.
Ele pegara no telemóvel que tinha na mesa quadrada que
existia ao lado da sua poltrona.
- Quero que o sinal de emergência seja cortado. Já! –
Ladrara ele como nunca havia ladrado aos ouvidos de Morgan.
Este estremeceu. Ainda nem havia falado e já ele tinha
desligado. Morgan sabia que o fim estava próximo. Que aquilo
culminaria numa guerra sem precedentes e sem escrúpulos. Ele
mesmo estava na rua. Via o povo a andar de uma lado para o
outro. Crianças a sorrirem. Homens a gritarem livremente.
Mulheres a abraçarem as suas crianças e a brincarem com elas.
Morgan sabia que aquelas pessoas haviam provado algo
que não iriam voltar a abrir mão facilmente. A Liberdade. 100
10
Almiton continuava a ler aquelas folhas que havia
imprimido depois de aceder à base de dados.
Eram milhares de folhas que aos poucos iam revelando
as mais tristes histórias, alguma vez contadas, sobre aquele
império. Ele nunca conseguiria imaginar que alguma vez algo
tão desconcertante como aquilo pudesse ter acontecido. Eram
tamanhas as artimanhas que haviam sido criadas para torturar
aquelas pobres pessoas, simplesmente por que elas sabiam mais
do que o que deviam. Todas elas estavam agora a trabalhar em
alguns cargos pequenos, mas que eram os pilares daquela
sociedade. Outros estavam mortos. Os seus corpos haviam sido
queimados, como se fossem papéis que nunca devessem ser
lidos. Outros tinham conseguido fugir, mas nunca se soubera
para onde. No meio daqueles papéis estaria a foto, o rosto, o
nome, daquele que havia feito tudo aquilo.
O nome daquele homem que era o responsável por
aquele tremendo atentado contra o ministério da Educação e
toda a parte cultural unicamente destinada aos mais avantajados
economicamente. Os ricos tinham uma educação diferente dos
restantes outros.
A reunião que fora convocada para serem dadas as
últimas notícias e para serem encontrados culpados havia sido
como todas as outras que haviam existido desde que aquilo
começara, com a exceção de que desta vez havia menos duas
pessoas na mesa que na última reunião, aliás, havia menos três
101
pessoas, o velho homem não viera à reunião, sem nenhum
motivo aparente.
Almiton mal poderia ter esperado que a reunião
terminasse. Estava farto de estar naquele cubículo e queria
continuar a sua leitura por entre aqueles papéis que iam
contando a história mais sinistra daquele país. Era pena que
aquela história nunca viria a ser escrita em nenhum livro dos que
nos dão nas aulas.
Aqueles ficheiros iam revelando de forma detalhada tudo
aquilo que havia acontecido, milhões de histórias que cada um
dos prisioneiros havia vivido, bem como o porquê de ter sido
escolhido a ingressar nos campos de concentração.
Haviam diversos campos espalhados por todo o país.
Não havia nenhum que fugisse às regras, por isso, era muito
complicado encontrar um ponto de inicio, o melhor que ele
poderia fazer era começar por ler os relatórios que envolviam a
história de todo o projeto, escritos à mão por alguma pessoa que
pusera tudo numa forma informal e pelos diversos desgastes da
tinta e do papel, notava-se que aquele documento havia sido
escrito em alturas diferentes.
PROJETO SOPHIA
Hoje foi apresentado o Projeto Sophia. O objetivo do
projeto é remover qualquer tipo de obra de cultura que possa
fazer as pessoas pensarem por elas mesmas, ou duvidarem de
qualquer tipo de ação do governo.
102
A mesa ficou em silêncio pelo tempo que decorreu a
apresentação. Ninguém parecia saber que partido tomar. Era
como se ninguém soubesse se aquele seria a melhor atitude a
tomar. Por muito que as pessoas não liguem à cultura, era
muito complicado declarar a abolição da maior parte das
obras de arte hoje conhecidas. Para não se falar de que as
pessoas começariam a tomar isso como censura.
O Projeto Sophia ficara portanto suspenso até ordem
nova.
O Projeto Sophia voltara a ser discutido. Desta vez não
se decidiu começar por retirar todas as obras que pudessem
ser perigosas de uma única vez, mas sim aos poucos.
A ideia é simples. Vamos começar por todas as
editoras de livros, proibindo que elas possam fazer novas
edições de certas obras e a partir de agora todas as obras
serão visualizadas primeiro pelo governo que irá entender se
as obras recentes poderão ser ou não publicadas.
Para isso, todos os membros do governo e as famílias
que o dominam irão comprar todas as editoras, para que o
processo seja o mais simples e silencioso possível.
O Projeto Sophia tem corrido da melhor forma
possível. Ninguém aparenta suspeitar de nada. Os principais
livros que podem criar atividade contra o governo
103
desaparecerão das principais bancas. A ideia é começar a
alargar a ideia a bibliotecas e escolas.
Começa hoje também a seleção de filmes que serão
retirados de todas as redes e de todas as lojas.
Um ano passou desde que o Projeto Sophia foi
aprovado. A taxa de pessoas com pensamento livre parece ter
abrandado. Aos poucos menos e menos obras de culto têm
sido desenvolvidas, assim como a sua procura tem diminuído.
O Projeto segue agora com a ideia de convencer
autores, argumentistas, atores, realizadores e empresas das
mais importantes e conceituadas a trabalharem para apenas
um grupo privado de pessoas.
Todos os grandes contemporâneos do pensamento
foram corrompidos. Não fora fácil e o processo demorou
alguns meses, mas penso que conseguimos chegar a um
ponto crucial na nossas demanda para desencorajar as
pessoas a revoltarem-se.
O Projeto continua operacional até que todos os
principais assuntos do governo estejam tratados e não haja
mais nenhum aspeto com que nos preocuparmos.
Até à altura foram gastos cerca de 3 biliões, mas nada
de muito preocupante pelo que entendemos.
Cada vez mais Baleias se têm juntado a nós e
investido dinheiro. Em breve teremos o projeto terminado.
104
Hoje, durante a reunião surgiu um problema exposto
pelo ministro da educação, de que um aluno havia feito um
manifesto onde expunhas as ideias sombrias que o governo
estava a criar e o futuro que o povo teria nesta nova era
capitalista.
A mesa parecia ficar aterrorizada com a capacidade
que o rapaz tivera. Era aluno de uma universidade
conceituada, mas ninguém parecia acreditar que alguém com
o seu passado pudesse ter desenvolvido tal teoria.
Decidiu-se que ele deveria ser preso e interrogado,
para se saberem de onde surgiam as suas ideias.
Ao fim de algumas horas de interrogatório e tortura o
rapaz acabara por ceder, afirmando que as ideias haviam
surgido durante a conversa dele com diversos dos seus
amigos.
Ao que parecia vários alunos têm-se juntado a ler
diversas obras de arte e a verem filmes de culto. E reparam
que de um momento para o outro várias das principais obras
de arte tinham desaparecido e que os vários governos se
começavam a monopolizar, usando diversos esquemas
económicos.
Ele morrera mesmo antes de dizer o nome daquele
que havia apresentado a ideia que vinha exposta no
manifesto.
105
O Projeto Sophia irá ser alargado a todas as
Universidades e Escolas, com o intuito de todos os alunos que
sejam considerados inteligente e desertores serão aprisionados
e interrogados.
O nome código da operação ficara conhecido como
operação Atena.
Devido à inúmera quantidade de pessoas que foram
colhidas durante a operação Atena, ficou decidido que seria
necessário serem criados campos de concentração com escolas
especiais e outros métodos numa tentativa de conseguir tornar
estas pessoas fulcrais para o desenvolvimento do país, em
apoiantes do estado.
Os que recusarem serão mortos.
Começa a ser cada vez mais complicado manter o
Projeto Sophia secreto. Há pessoas que começam a notar e
em breve corremos o risco de que todo ele seja exposto.
Têm sido criados planos de recurso que nos permitam
controlar toda a atividade que possa sugerir que as pessoas se
pretendem revoltar.
Todos os que foram colocados no grupo de
pensadores têm sido investigados e intimidados para que
trabalhem sobre as ordens do governo de modo a que
nenhum informação ou ideia possa vazar.
106
Tem sido complicado convencer alguns, pelo que já
foi necessário usar a força.
Alguns acabaram mortos no confronto.
O Governo viu obrigado a incluir os serviços secretos,
para impedir que mais informação possa vazar e para que
todos aqueles que julgamos necessário que desapareçam, o
façam sem levantar suspeita.
Os corpos têm sido incinerados.
Está a ser preparada a nova lei que obriga a que o
ADN de todos seja registado para que seja mais fácil
identificar no futuro aqueles que se erguerem contra o nosso
império.
Os que foram capturados no Projeto Sophia e que se
encontram ainda dentro dos campos NÃO CONSTARÃO
NO REGISTO DE ADN para impedir que alguém note a
falta deles.
Foi dado início à construção de uma parte da cidade,
vigiada, onde todos os grandes edifícios constarão nela, para
impedir que qualquer ideia, ou qualquer mente brilhante, se
cruze com qualquer pessoa do povo.
Toda essa parte da cidade será rodeada por militares,
e dentro dela constarão todas as sedes de empresas e bancos,
escolas para os mais ricos e centros científicos e políticos,
teatros, cinemas, bibliotecas e escolas livres.
Para que ninguém suspeite muito. Edifícios como
cinemas, teatros e bibliotecas também serão construídos fora
107
desta parte da cidade, contudo neles não constarão as obras
que não tenham sido aprovadas pelo governo.
As escolas da parte negra da cidade, assim
denominada à área reservada ao povo, seguirão um novo
programa, para não incentivar qualquer novo ser a seguir a ir
contra o ser governo.
EM BREVE TUDO ISTO TERÁ TERMINADO.
A construção da outra parte da cidade está
praticamente concluída e já começam a ser alojados os
nossos, a cidade parece estar operacional e segura, perfeita
para que possamos manter este governo estável e sem
qualquer pretexto para revoltas.
Os campos de concentração continuam operacionais...
Ainda há demasiados que não cederam às suas convicções.
Têm sido dias difíceis os últimos...
Não tem aparentado que todos tenham aceite da
melhor maneira a ideia de que o PROJETO SOPHIA tem
de conseguir ter resultados o mais depressa possível, mas é
possível que dentro em breve alguma informação seja exposta.
Todos os envolvidos que não tenham nenhuma relação
principal com o governo serão igualmente mortos, juntamente
com aqueles que se recusarem a ceder.
108
O processo de fecho de vários dos campos de
concentração foi iniciado à meia-noite do dia de hoje.
Não têm havido para já nenhum problema. Aqueles
que se revelaram serem potenciais seres necessários à
manutenção deste império. Todos os restantes foram mortos e
os seus corpos incinerados.
Ficaram apenas SEIS dos cerca de 100 campos de
concentração ainda OPERACIONAIS.
Esperemos que consigamos corromper todos os génios
que ainda forem possíveis.
Têm surgido alguns problemas num determinado
campo de concentração.
Pensa-se que as alguns deles se começam a comportar
como loucos, com alucinações e outros problemas mentais.
Não se sabe ao certo o que se passara, mas ao que foi
evidenciado, a água possuí-a uma substância estranha que fez
com que eles ficassem assim.
Não se sabe ainda como tal se sucedeu... Ainda se
procura por saber se será possível salvar alguns dos que lá se
encontram.
Após a cidade já construída
e tudo avançar
corretamente. Decidiu-se que estava na altura de destruir tudo
aquilo que ficou para trás. Em consequência, o campo, onde
109
o problema com a água aconteceu, será destruído e todos as
pessoas que se encontravam no seu interior serão mortas.
Todos os campos serão repensados e serão construídas
escolas para o povo.
A ideia é apagar da memória que estes edifícios
existiram e mudar por completo tudo o que havia à sua volta,
para que nunca ninguém, nem mesmo aqueles que foram
vítimas do massacre, possam, de alguma maneira, denunciar
tudo aquilo que se passou nestes últimos anos.
Iniciou-se por último a OPERAÇÃO NERO. Todos
os documentos relativos ao projeto. Todos os operacionais
que são dispensáveis, assim mesmo como alguns prisioneiros
que não se juntaram às ideias governamentais serão
totalmente incinerados.
Foi uma acesa discussão aquela que aconteceu
enquanto se pensava sobre qual seria a melhor ideia para se
terminar com este projeto, mas não há melhor ideia que
deixar o fogo queimar todos os pecados que ali foram
cometidos.
A cidade construída ficará no maior estado de
segurança e em alerta para evitar que qualquer informação
vaze e para evitar que qualquer pessoa do povo possa entrar
no seu interior e descobrir os tesouros que aqui se
encontram.
110
O Hospital principal CONTINUARÁ NO
EXTERIOR da parte rica da cidade, para que não seja
necessário que ninguém entre no interior da cidade por
qualquer motivo.
Continuamos com o projeto Sophia operacional, mas
apenas no escuro, para o caso de ser necessário limar algumas
arestas. Ninguém parece ter a certeza de se toda a guerra
contra a cultura já terminou, como tal, acharam melhor que o
Projeto ainda de MANTIVESSE NO AR.
Continua-se ainda a ponderar o que fazer com os
novos casos que venham a surgir num futuro próximo.
Ninguém parece ter a noção do que se passara
durante todos estes anos. As escutas e os nossos bufos
revelam que ninguém tem criticado a construção da nova
cidade. Há algum barulho de fundo, mas nada de muito
preocupante.
Ao que se sabe, as críticas diminuíram a pique desde
que este projeto se iniciara.
Continua a haver a pergunta sobre o que se deverá
fazer quando algo vier ao de cima. Temos de ter um plano de
evacuação para que não corramos nenhum risco de alguma
vez perdermos tudo aquilo que construímos.
Temos a plena noção dos pecados que cometemos, e
que Deus nos perdoe, mas não podíamos deixar que estes
ignorantes, pobre e excrementosos seres o futuro de toda a
humanidade.
111
Aguardamos para saber os resultados finais de todo o
projeto, mas podemos concluir que TUDO FOI DE
ACORDO COM O PRETENDIDO.
Almiton acabara de ler todo aquele relatório e sentira
vómitos a emergirem pelo seu corpo.
Ao lado do relatório encontravam-se diversas fotos de
corpos incinerados e dos vários lugares onde os campos se
encontravam, entre muitos outros registos de tudo aquilo que se
havia passado.
Almiton coçara os olhos. Estava cansado e sentia-se
culpado de tudo aquilo que acabara de ler de alguma forma.
Apesar de nunca ter vivido fora daquela zona rica da
cidade, nunca ouvira aquelas histórias, aquilo deveria ter ficado
de bem guardado no fundo de algum cofre. Cofre esse que talvez
tivesse sido bom nunca ter sido aberto.
Reconfortara-se na sua cadeira.
Abrira a gaveta do topo da sua secretaria.
Retirara a garrafa de gin que lá se encontrava. Naquele
momento precisava de um copo de algo bastante forte para
acalmar os nervos. Para que a sua alma limpasse os pecados que
cometera... Não conseguia entender ao certo aquilo que sentia
naquele momento. Aquela repulsão que tinha.
Tentara por um momento fechar os olhos mas a imagem
do massacre voltavam. Ele sabia que tinha de fazer algo... Por
um lado tinha pela primeira a sensação de que deveria dizer a
verdade, mas por outro, sabia que se o fizesse toda a sua
fantástica vida que tinha, tendo em conta que viver no meio do
povo era viver de forma miserável, terminaria.
112
Perderia todas as suas regalias. Teria de viver
constantemente com o medo de poder ser acusado de algo que o
fizesse desaparecer, como muito se via nos últimos tempos, para
não falar, que isso seria mesmo o que iria suceder, afinal, ele já
sabia demais.
Não, não podia deixar que toda a sua vida fosse destruída
por causa de algo que se passara no passado. Tinha de destruir
por completo aquele ser que pretendia derrubar aquele enorme
império.
Sim, isso poderia significar que os restantes iriam
continuar a sofrer, mas que importava, o importante era que ele
estivesse e vivesse bem. Era muito simples fechar os olhos e
fazer de conta que nada se passava. Sim, isso era o mais fácil.
Manter tudo como estava. Não andar aí em revoluções que não
serviriam de nada.
Carly não soubera até ao dia seguinte aquilo que ele
havia feito. Até ligar a televisão e ouvir a notícia de que grande
parte da zona rica da cidade havia sido destruída, enquanto uma
estranha música tocava. E saber que a pessoa que se encontrava
na mesma casa com ela havia feito de novo declarações sobre o
que se passava e o que iria fazer.
Ela não sabia ao certo como se sentia naquele momento.
Mas tinha a certeza que não estava triste com tudo o que se
passara. Não criticava a atitude dele. Até, de alguma maneira,
ficara feliz por saber que, aquela área de opressão havia sido
destruída.
Todavia não conseguia garantir que assim era. Não
conseguia garantir que aquilo que realmente sentia era ou não
gosto pelas atitudes que ele começava a tomar.
113
- Vejo que já sabes da minha atuação... – Ele surgira da
parte de trás do sofá. O seu mesmo ar de sempre. Um ar
descontrolado, simples e totalmente inerte de qualquer
compaixão ou sentimento.
Carly ficara por um momento calada, pensando nas
palavras que deveria dizer. Pensando em tudo aquilo que se
pensara. Perguntando-se a si mesma o que ela achava sobre tudo
aquilo. Sobre tudo o que se passara.
Por fim, depois de algum tempo, onde nem ele disse
nada, acabou por suspirar fundo e dizer tudo aquilo que deveria
dizer.
- Sim... Não sei ao certo se estou a favor da tua atitude,
mas também não poderei dizer que sou contra... A verdade é que
já não tenho a certeza daquilo que penso. Não sei ao certo se
estou a ficar mais fria, ou se simplesmente começo a perceber
realmente o que é correto...
- Entendo perfeitamente esse sentimento. É normal que
surja nesta altura. Mas quero que saibas que, caso necessites de
algo, que o que te disse sobre poderes ir embora, continua a ser
verdade. Não te impedirei de saíres por aquela porta...
Ela pegara nas mãos dele que pela primeira vez tremiam.
- Penso que irei ficar... – Olhou-o bem nos olhos que
permaneciam vagos – Achas que serás capaz de mudar o
mundo?
Ele riu-se de novo. O riso de quem não podia acreditar
naquela pergunta que ela lhe fizera. Todavia não era um riso
trocista, era sim um riso de quem pretendia libertar os seus
nervos.
- Não há nenhuma ideia política, livro ou qualquer
manifestação que possa mudar o mundo por completo...
Todavia, não significa que devemos deixar de tentar...
114
As palavras deles caíram com uma força imensa na sua
alma. Sentira algo a emergir pelo seu mundo, pelo seu corpo,
pelos seus olhos. Algo naquelas palavras fizeram-na repensar em
tudo o que havia feito ao longo da sua vida, ao longo de todo o
tempo que tivera sem viver.
Permaneceu em silêncio. Ainda não tinha a certeza de
tudo aquilo que se passara. Algo começava a nascer dentro dela,
como uma flor que nasce quando os sol de primavera começa a
abri no céu. Se calhar era isso, aquilo era o sol que ela nunca
vira.
115
116
11
Era difícil saber o que se passava na mente dele. Pelo
menos saber o porquê de ele se encontrar a sorrir, quando estava
ali, na cozinha, sozinho, sem ninguém à volta.
Talvez fosse a música que se encontrava a tocar
levemente nas colunas.
I don't care if Monday's blue
Tuesday's grey and Wednesday too
Thursday I don't care about you
It's Friday I'm in love..
Levou dois dedos ao frasco de gelado e lambeu os dedos
deliciando-se com o sabor a chocolate, aumentando o seu
sorriso, como se fosse uma criança que fica contente com
pequenas coisas.
Carly que observava ao longe aquele momento rira-se
fortemente, o que fez com que ele reparasse nela.
Ele mantivera o seu olhar vago e anormal.
- Que se passa? – Indagara ele sem conseguir entender o
porquê de ela se estar a rir.
- Fizeste-me relembrar de quando era mais pequena e
fazia exatamente isso que tu estavas a fazer.
117
- Queres um pouco? – Colocara o frasco de gelado mais
próximo dela e olhara intensamente para os seus olhos azuisesverdeados.
Era informal ela fazer algo como aquilo. Nunca se
lembrara desde de crescer de alguma vez fazer algo como
aquilo. De estar com alguém tão informalmente. Mas de certa
maneira era divertido estar daquela maneira.
Ele poderia não ser a pessoa com quem ela alguma vez
imaginasse estar, mas tinha de admitir que começavam a ser os
melhores momentos que alguma vez havia vivido, apesar de
tudo o que se passava à sua volta, ele era sem dúvida algo
diferente.
Levou também dois dedos ao frasco, amarrados a eles
veio uma enorme quantidade de gelado de chocolate que ela
também levara à boca e deliciara-se com o doce sabor que lhe
surgira nas sua língua.
Um sabor que a levara de novo aos momentos em que
era criança, em que tudo era diferente. Lembrara-se da sua mãe,
que sempre a ensinara da melhor maneira. De se encontrar
muitas vezes às cavalitas do seu pai, que parecia um enorme
cavalo, daqueles que transportam com coragem as frágeis
princesas a mando do seu príncipe.
Só que desta vez, não era o doce sorriso da sua mãe que
ela tinha à sua frente. Nem o olhar forte do seu pai. Era sim,
aquele olhar subtil, vago, feliz daquele rapaz e o seu sorriso
doido. Mas isso já não era algo mau, era sim algo que a fazia
sorrir por alguns momentos, sem ela saber bem como.
Dressed up to the eyes
It's a wonderful surprise
To see your shoes and your spirits rise
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Throwing out your frown
And just smiling at the sound
And as sleek as a shriek
Spinning round and round
Always take a big bite
It's such a gorgeous sight
To see you eat in the middle of the night
You can never get enough
Enough of this stuff
It's Friday I'm in love...
A música era animada. Aquele momento tornava ainda
tudo mais alegre. Esquecera-se tudo o que se passava à volta.
Todos os males que haviam acontecido, a vida é um infinidade
de acontecimentos negativos que todos temos de viver, para
entendermos aquilo que realmente de bom nos acontece.
Sentaram-se os dois de novo em torno do sofá, desta vez
escolheram um filme qualquer. Sem se preocuparem com as
mensagens, com a arte, com nada daqueles pequenos atributos
que são meramente classificativos. Aproveitaram aquilo que
naquele momento realmente importava, a companhia de um e de
outro.
A noite já ia longa, mas o sono não parecia querer tomálos. Iam comendo aqueles pequenos doces que ele havia
preparado, para aproveitarem mais um bocado dos pequenos
pedaços da vida.
O filme decorrera. Carly acabara por ceder ao sono, que
a impedira de ficar mais tempo a aproveitar todo aquele
momento.
119
A cabeça dela caíra no ombro dele e lá fizera almofada,
para que aquela pequena criança inofensiva, pudesse descansar
calmamente.
Ele sentia o coração a palpitar muito depressa. Nunca
havia sentido aquilo, ele nunca havia sentido nada na realidade.
Nada daquilo que as pessoas falavam... Nenhum daqueles
sentimentos descritos em livros, filmes ou em palavras... Nada...
Fora sempre frio, insensível... louco.
Aquela era a primeira vez que o coração batia daquela
maneira. De uma maneira estranha, incoerente, tão louca quanto
o que ele era naquela altura. O porquê? Ele não sabia... Apenas
era alguma loucura. Algo o enlouquecia e fazia com que ele
começasse a palpitar em suplicas incessantes e incoerentes por
algo que estava próximo dele. Algo que ele podia sentir, ouvir,
cheirar, imaginar... Não era algo... Era alguém... Eram aqueles
olhos azuis, aquela pele suave, aquele sorriso infantil e belo...
Aqueles cabelos ondulados de forma calma... Era... Era... Era
tudo, o nada, o talvez, o amanhã, o hoje, o ontem, a dor, a
alegria, a insanidade, a plenitude...
Por um momento ele olhou para ela que permanecia
inquebrável no seu sono, assim como o seu sorriso se mantinha
calmo, belo, insano. Aquele sorriso que dizia que tudo estava
bem, que tudo ia acabar de forma correta, que nada mais existe
em nós que não a felicidade que nos é dada por aqueles que
aparecem quando perdemos o controlo da nossa mente e dos
nossos preconceitos. Estava tudo bem, o tempo avançava no seu
normal ritmo, o corações é que não... Sentia... Sentia... Nem ele
sabia o que sentia ao olhar para aquela terna face daquele
pequeno ser que lhe aparecera do nada... Obra do destino, de
Deus, dos homens, dos incoerentes seres que inventam algo que
não existe... Respirara fundo, tentando conter... Bem, nem ele
120
poderia saber o que estava a tentar conter... Apenas sabia que era
algo que lhe emergia pelo corpo, pelo sangue, pela sua mente...
Por um momento sentiu tudo aquilo que nunca havia sentido...
Por um momento sentiu tudo aquilo que deveria sentir... Que
pelo menos uma vez na vida qualquer ser humano, por mais
negro, podre ou amargo que seja deve sentir...
Por um momento soube o porquê de querer continuar
com o seu plano... Não havia nada melhor que lhe poderia
oferecer...
Estava tudo escuro, excepto aquela pequena mesa de
madeira gasta, dura, fria, com um tom cinzento, fraco,
esbatido... Sobre ela pousava a cabeça de sua mãe... As
lágrimas escorriam pelos seus olhos como se rezasse uma
última prece, como se pretendesse que aquelas lágrimas
pudessem limpar aquele lugar de todos os pecado.
Sobre a sua cabeça encontrava-se uma mão que parecia
ter garras no seu final... Como se das de um demónio se
tratassem.
Ele permanecia ali. Sentado no chão. Com medo...
Olhando para os doces olhos daquele ser que lhe havia dado a
vida... Aquele ser que ele chamara de mãe... Que lhe dava beijos
sempre que ele chegava a casa... Que pegava nele ao colo... Que
o emaranhava nos seus braços e prometia que tudo iria ficar
bem... Que lhe dizia para ele lutar contra os demónios, contra
os monstros que se encontravam de baixo da sua cama... Aquela
pessoa que sempre que ele lhe perguntava como é que as
pessoas um dia se podiam unir, se eles têm deuses tão diferente;
lhe respondia: Podemos ter deuses diferentes, filho, mas todos
temos os mesmos demónios.
121
Ela olhara para o seu pequeno ser uma última vez.
Apesar do medo, de saber o que lhe iria acontecer... Sorriu.
Como se todos os seus medos, todos os seus receios tivessem
desaparecido por ela se aperceber do que havia gerado... Por
saber que aquele pequeno, grande homem, era fruto dela e
somente dela.
- Não te preocupes, filho... Lembra-te que a mamã te
ama...
Chorara uma última vez.
Algo saíra da escuridão. Algo negro. Um martelo que
embatera na cabeça dela e esmagara-a.
Houve um último grito e...
Ele acordara sobressaltado.
Desta vez o coração batia de novo de forma
descontrolada, mas ele sabia bem porquê.
- Que se passa? – Indagara a Carly que surgia vinda do
quarto. Acabara de acordar.
- Nada de especial... Apenas um pequeno pesadelo... – Já
não se conseguia lembrar do tempo que passara, desde que
alguém lhe fizera aquela pergunta pela última vez.
Carly sorrira levemente uma última vez e começara a
preparar o pequeno-almoço. Decidira que seria a vez dela de
fazer algumas receitas que a sua mãe lhe ensinara.
Ela começara a procurar pelos ingredientes necessários.
Nada de muito especial. Apenas aqueles básicos. Não iria fazer
nada de muito diferente daquilo que era normal, mas pela
primeira vez, pensava que seria uma boa ideia dar a ele algo
feito por ela.
Naquele dia um ambiente estranho pairara naquela casa.
Não havia nenhum motivo para que tal acontece. Não havia
122
nenhuma razão aparente. Apenas, talvez, fosse o simples senhor
que se encontra lá em cima a mandar, que pretendia dar a
entender que algo iria acontecer, numa tentativa de demonstrar
que ainda não se esqueceu de nós, que apenas anda um pouco
adormecido; um pouco, não muito, dizia ele; só me descuidei
um pouco destes seres que criei, não foi muito, acreditem em
mim;... Ou talvez fosse a natureza humana. Sim, a parte
biológica que nada tem a ver com as crenças... Algum gene que
temos que nos dá a conhecer que algo estranho se irá passar
mesmo antes de tamanho ato acontecer.
Estavam de novo os dois sentados no sofá. Tudo parecia
ter acalmado. Era como se ele esperasse que algo acontecesse
antes de avançar para o seu próximo passo. Ela podia ver nos
olhos dele que ele queria avançar, mas ainda esperava que... Que
algo acontecesse... Mas o quê? Que poderia ele estar à espera?
Estava tudo a correr como ele pretendia...
As pessoas começavam a ficar cada vez mais do lado
dele. A avançarem calmamente na escuridão, esperando que o
seu líder os guiasse para a luz e eles podem-se erguer-se com
toda a convicção e coragem. Para poderem gritar as palavras de
ordem que lhes saem silenciosas a cada suspiro.
Nos cafés começava-se a falar. Depois de as portas
fecharem. Os que queriam debater. Ficavam sentados. Enquanto
os outros fugiam. Para não serem apanhados. Falava-se sobre o
que deveria ser mudado. Sobre o que o governo fazia. Sobre o
que estava mal. Todos concordavam com as ideias daquele
homem que aparecera. Aos poucos. Muito pouco. Iam
aparecendo mais e mais pessoas, que se juntavam à causa.
Nas ruas começavam a aparecer as primeiras flores que
transpunham o cheiro da revolução. A lua começava a tomar o
123
tom de guia. De ser que pretendia guiar aqueles corpos
moribundos por entre as trevas.
Os polícias aumentavam também por todos os becos. Por
todos os lados. O governo começava a ficar irritado. Com medo.
Podia-se sentir o cheiro do fantasma de uma revolução iminente,
e, rapaz, como eles odeiam esse cheiro!
Todavia, as pessoas começavam a sentir maior força.
Maior segurança. Mais coragem. Começavam a sentir que em
breve a gaiola onde tinham sido enjauladas e que conseguiriam
voar livremente, mas com calma. Pois as suas asas tinham sido
atrofiadas de tanto tempo que se passara desde que haviam sido
colocados naquele pequeno lugar, onde nem, simplesmente, o
simples gesto de as abanarem podiam. Só faltava algum ser
incompleto de amor ou amizade lhes tivesse arrancado aqueles
pequenos órgãos para que então nunca mais eles pudessem
erguer-se nos céus.
Carly pensava sempre em tudo isto e continuava a
questionar-se sobre o porquê de tudo o que acontecia. O porquê
de ele ter parado. Mas não conseguia encontrar nada que o
justificasse. Aliás, ficava ainda com mais dúvidas a cada
momento que ia passando. Talvez ele decidisse simplesmente
parar por algum tempo. Ficar ali, sentado a aproveitar por mais
alguns momentos a doce vida que tinha.
Mas como a curiosidade é sempre maior que qualquer
outro sentimento que possuímos, ela não conseguiu aguentar-se
por muito tempo, pelo que, por muito que não quisesse, se viu
obrigada a perguntar.
- Posso saber quais são os teus planos?
Ele ouvira a pergunta, mas não lhe respondera. Talvez
nem ele soubesse o seu plano para já. Ou talvez até o soubesse,
mas não quisesse revelá-lo.
124
Ela esperou um pouco. Pensando que ele lhe responderia
à pergunta que ela fizera. Mas parecia que nenhuma resposta
surgiria da boca dele. Ia para refazer a pergunta quando ele
decidiu falar.
- Não sei o que poderei dizer-te sobre o que irei fazer.
Simplesmente ainda não pensei naquilo que devo fazer... Não sei
ao certo o que deve acontecer daqui para a frente...
- Pensei que tivesses um plano... – Ela desde do início de
tudo aquilo achara sempre que ele tinha a certeza daquilo que
fizera.
- Não... Tudo o que venho feito é por mero acaso... Não
tenho planeado nada mais do que aquilo que deve ser planeado...
Ela surpreendeu-se com as palavras e com a calma dele.
Tudo aquilo que havia feito, dizia ele, tinha sido simplesmente
mero acaso que por ventura correra bem.
- Como é que isso pode ser possível? – Perguntara ela –
Como esperas deitar abaixo todo o governo, se não tens nenhum
plano...
Mais uma vez ele rira-se. Mas desta vez ela não
conseguia entender o porquê de ele o fazer.
- A ideia nunca foi derrubar o governo... – Revelara – A
ideia sempre fora dar a entender às pessoas que elas devem lutar
por aquilo que acreditam... Seria um tolo em acreditar que
somente eu poderia derrubar este símbolo de opressão, para que
tal aconteça é preciso que as pessoas se unam... Um homem só
não pode fazer a diferença, se não houver alguém a segui-lo.
- Mas pensava que pretendias destruir todo este
governo...
- Não... Eu pretendo é conseguir destruir todo este
regime que vivemos em todo o mundo... O único problema que
temos não é simplesmente o nosso governo... É o restante
125
mundo... Nós somos apenas uma, se o nosso governo perecer,
outro igual tomará o seu lugar... A ideia é acabar com todo o
regime político existente... Com a ideia fundamente em que se
baseia... Qualquer edifício que tenha uma parede destruída pode
ser reparado, mas caso se destrua uma das principais vigas, ele
cairá e ter-se-á de o reconstruir todo de novo. A ideia sempre foi
essa...
Carly pela primeira vez entendia o que ele pretendia
fazer realmente. Ele não estava só há espera que todo aquele
país o visse como um sinal de esperança, ele estava à espera que
todo o mundo seguisse as suas ideias. Destruir tudo e começar
do zero. Uma nova ideia, uma nova humanidade, um novo
mundo.
- Mas isso significa que tu... Muito provavelmente,
serás... – Susteve a palavra por alguns segundos – morto...
Ele manteve-se a olhar vagamente para a televisão.
- Sim, muito provavelmente...
Mantivera-se calmo mesmo pós dizer isto. Como se
nenhuma diferença lhe fizesse o facto de poder nunca ver a sua
obra concluída.
- O governo deve-te ter feito algo realmente mau...
- O governo nunca fez nada contra mim... Acredita em
mim... Nunca fui torturado, preso, ou censurado pelo governo...
- Então, por que fazes tu tudo isto... Por que estás a
caminha em direção à morte se não é por vingança.
Ele ficou em silêncio. Ela também. As palavras ainda
ecoavam leves pela sala. Numa tentativa de serem ouvidas por
ninguém.
- Por que devemos seguir os nossos ideais... Porque
quero que a minha irmã tenha um mundo onde possa viver um
pouco mais feliz... Porque quero que o povo, por um momento,
126
possa sentir tudo aquilo que eu tive ao longo da minha vida –
Olhou fixo para os olhos dela que sentiam a emoção a passar-lhe
pelo ar – Porque quero que eles sejam livres.
- Tu estás-te a arriscar por todos eles por causa de
simplesmente quereres que todos tenham a liberdade que tu
sempre tiveste? Não tens mais nenhum motivo... Apenas fazes
isto, por que te deu na cabeça fazê-lo? – Ela estava exaltada com
tudo aquilo que ele lhe acabara de dizer. Ela não sabia bem
porquê é que sentira aquela exaltação toda, ele continuava a
lutar por uma causa justa, apesar de não ter motivos para tal.
- Sim... – Retorquira simplesmente ele, mantendo a sua
calma, o seu leve sorriso e o mesmo olhar de sempre – Um líder,
um herói, um humano, não luta por algo por que simplesmente
tem o sentimento de vingança... Um verdadeiro herói luta por
algo e por alguém, apesar de nunca ter tido qualquer motivo para
tal.
Carly não sabia bem o que dizer naquela altura. A sua
cabeça estava incapaz de pensar fosse no que fosse. Estava
completamente desesperada, mas não conseguia entender o
porquê de o seu corpo criar aquele sentimento... O porquê de
tanto medo por saber que ele poderia morrer... Estava confusa...
Perdida... Queria chorar, mas não podia. Não podia chorar ali, à
frente dele.
Engoliu em seco e tentou esquecer por um momento,
tudo o que se passara.
Almiton chamara Nobert e Morgan a virem ter com ele.
Um encontro casual disse ele, para não causar interesses
exagerados, nem para ter de dar explicações.
127
Almiton encontrava-se sentado naquela mesa e
restaurante. Estava numa área privada, onde ninguém para além
dele e dos seus colegas podia entrar.
Aquele era o restaurante mais caro da cidade, mas era
também o sítio mais seguro para se marcar uma reunião
daquelas. Naquele espaço não havia escutas, nem ninguém que
pudesse ir a correr contar a quem quer que fosse o que ali se
passara.
Morgan chegara alguns minutos depois e seguiu-se
Nobert por fim. Ambos perguntaram o que era aquela capa que
ele tinha em cima da mesa, mas Almiton respondera que no final
do jantar eles saberiam.
Algumas garrafas de vinho já se encontravam vazias em
cima da mesa. Fora a única forma de Almiton se acalmar por um
pouco. Já não conseguia aguentar mais toda aquela pressão, todo
aquele conhecimento que havia adquirido.
A conversa fora animada. Até àquele momento ainda
nenhum decidira falar de nenhum assunto envolvendo a ordem
do dia. Tinha aproveitado aquele pouco tempo para falarem de
todo o resto. Mas, o assunto teria de surgir mais cedo ou mais
tarde, por muito que eles tentassem encobri-lo.
- Já ouviram o que aconteceu hoje nos Estados
Germânicos? – Perguntara Nobert que imaginava ser o único até
então a saber da notícia.
A cara que ambos fizeram demonstrava que não.
Nobert pegou num cigarro e colocou-o na boca.
- Um idiota qualquer... – Disse acendendo o cigarro,
fazendo com que o barulho das pedras a embater silenciassem
um pouco as suas palavras – Rebentou com o parlamento da
zona oceânica deles... Com todos os membros responsáveis por
essa zona no seu interior... Bum! – Gritou ele batendo com as
128
mãos na mesa - Nenhum sobreviveu... – Os outros dois pareciam
surpresos com a história que ele contava – Ninguém sabe como
foi possível alguém fazer tal coisa... O mais estranho é que no
lugar onde tudo aconteceu foi deixada uma máscara de Fawkes...
Todos acham que o que se tem passado aqui tem sido
transmitido para os restantes países... Os restantes governos
começam a ficar com medo do que se pode vir a passar nos
próximos tempos.
- Este filho da puta veio-nos lixar todo o esquema! –
Morgan costumava ser muito direto nas suas palavras – Isto vai
acabar por sobrar para nós... Não tarda nada teremos também os
presidentes dos outros países a virem ter connosco e a lixaremnos a cabeça para que encontremos este homem o mais depressa
possível... – O desdém aumentara no tom dele - As pessoas
começam a ficar com menos medo de nós... Começam a falar
livremente daquilo que pensam... Começam a questionar...
Ainda ontem um policia disparou contra um rapaz de dezasseis
anos que grafitara numa parede a imagem de um tal de Che
Guevara... Um comunista! – Rira-se fortemente – Vejam-me
só... Estes gajos já começam a venerar comunistas...
Manteve o seu riso que fora acompanhado por Nobert,
mas não por Almiton que permanecia pensativo.
- As pessoas começam a tomar o sue próprio partido...
Não demorará muito até começarem uma revolução... – Dissera
Almiton mantendo-se pensativo.
- E estás preocupado com o que pode acontecer, caso
matemos o gajo que começou tudo isto? – Perguntara Nobert.
- Não... O meu medo não é se matarmos o gajo que
começou tudo isto... É o que acontecerá se ele matar o
presidente e depois nós o matarmos a ele... O povo deixará de
ter líderes... Quem é que eles irão seguir? Que irão eles fazer?
129
Que faremos nós? - Houve um leve silêncio por alguns
momentos – Nós não poderemos andar por aí a matar qualquer
um... – Eles olhavam atentamente para Almiton – As pessoas
começam a pensar por elas mesmas... Em breve farão algo... E
nós não podemos impedir... Mesmo que o apanhemos... A
verdade é que ele simplesmente já pôs as pessoas a pensarem...
Não há nada que possamos fazer quanto a isso... – Suspirou – O
que eu tenho aqui – Pôs a mão sobre a capa – são documentos
que me foram dados pelo homem responsável pela criação deste
império... Aqui dentro está talvez a história mais negra contada
desda segunda guerra mundial... – Entregou-lhes o documento
para eles poderem dar um vista de olhos – Eu sei que nós
devemos proteger o nosso governo... Afinal, é ele que nos paga
os nossos ordenados, que nos dá as nossas brilhantes casa,
roupas, carros e tudo o resto... Mas nós nascemos para proteger
o povo, não o governo... Se calhar está na altura de voltarmos ao
nosso trabalho...
- Estás a dizer que vais tomar o partido do homem? –
Nobert tinha um ar de espanto.
- Não... Apenas estou a pedir que pensem naquilo que
devemos fazer... Não sabemos o que poderá acontecer nos
próximos dias...
Almiton levantara-se e dirigira-se silenciosamente à casa
de banho.
Eles os dois ficaram ali na mesa, a tentarem digerir a
amarga sobremesa que ele lhes havia dado.
130
13
Ele estava ao lado da cama da sua irmã. Olhava para os
olhos dela que começavam a perder o brilho. Havia chegado a
hora, sabia-o.
Os batimentos dela começavam a ficar cada vez mais
brandos. Em breve o seu coração pararia. A doença havia-se
alastrado depressa demais nos últimos dias. Ela já havia durado
demasiado tempo. Muito mais do que aquilo que ele esperaria.
Talvez ele devesse ter começado aquela revolução mais
cedo. Para que a sua irmã tivesse a hipótese de viver num
mundo livre. Afinal, era por isso que ele lutara também, ou seria
por algo mais.
Ela começou a engasgar-se e a gemer.
- Pronto... Pronto... – Reconfortou ele, colocando uma
mão sobre a sua testa e beijando-a – O mano está aqui para ti...
Ela continuara a engasgar-se. Olhara fixamente para ele
como que se despedisse e lhe agradecesse por tudo o que ele
havia feito por ela. Ele tentara conter as suas lágrimas. Sorrira
para ela, numa tentativa de demonstrar que todos os momentos
que tivera com ela foram isso, uma felicidade imensa.
Todos os momentos vieram ao de cima. Apesar da
infância dolorosa que ambos haviam vivido. Apesar da dor, da
fome, da morte... Do sofrimento... Do choro... Tudo aquilo que,
por algum motivo, tiveram de viver, como se fossem culpados
de algum crime horrendo, quando na realidade eram apenas
crianças; Os únicos momentos que haviam surgido foram
131
aqueles em que eles tinham sido felizes. Como naquele dia em
que a mãe pegara nos dois e os levara até ao parque que havia
perto de casa. Onde a sentou ao colo dele e os fez quase tocar o
céu enquanto toda a terra se desmoronara. Por um momento
foram pássaros que tocaram a imensidão da felicidade. Talvez
por serem pequenos e a imaginação facilitar a criação de algo
inexistente, ou talvez, porque, por um momento, souberam o que
era a felicidade, ao fim de tantos momentos de sofrimento. Por
um momento o sol fora o pai deles. A mãe era o guia que os
conduzia para lá do que o desespero criara. O baloiço
eventualmente parara. Tornando a coloca-los de novo no solo
feito de pequenos cadáveres de sofrimento. Mas, os seus pés
eram agora um amuleto de boa sorte onde por onde passavam
traziam luz. Para mais a sua mãe segurava a mão de ambos e
eles podiam vê-la a sorrir. Era incrível como o dia mais feliz
deles fora também o mais triste. Como fora o último em que eles
puderam ver aquele sorriso.
Mas as memórias continuavam a surgir. Desta vez da
altura da sua avó, em que eles podiam brincar um com o outro,
apesar das limitações da sua irmã, eles podiam... Eles podiam
ser aquilo que nunca foram... Podiam esquecer-se do que eram e
serem simplesmente aquilo que queriam. Podiam esquecer que
ela não podia andar e podiam correr. Eram livres. Eram...
Eram... Nem eles sabiam o que eram, era impossível encontrar
uma palavra para descrever com exatidão aquilo que haviam
sido...
Sentira a irmã a expirar pela última vez. O seu sorriso
mantivera-se. O seu olhar continuava brilhante, dizendo-lhe que
tudo estava bem. Que todo o sofrimento terminara.
Agradecendo-lhe por ter cuidado dela. Por a ter feito ser alguém,
quando para os restantes ela era nada. Por protege-la. Por a não
132
deixar sofrer. Por ser aquilo que não era sua obrigação. Por se ter
sacrificado. E deixava a última mensagem: Agora é a tua altura
de descansar.
A mão dela deslizara pela sua cara uma última vez, um
último esforço e no fim...
Entrelaçara-a nos seus braço. Tentou conter o grito que
queria sair, mas não conseguia. As lágrimas, todavia, decidiram
molhar as roupas da irmã, à medida que iam caindo sobre a sua
camisa de dormir.
Carly havia acordado há pouco tempo. Ainda não
conseguira entender aquilo que se passara, apenas tinha ouvido
alguém suspirar abruptamente, como se tentasse suster o choro.
Estava a olhar para ele que se encontrava de costas
voltadas para Carly, segurando a sua irmã ainda entre os seus
braços. Carly continuara a tentar entender o que se passara. Fora
só passados alguns segundos que finalmente conseguira entender
tudo.
- Ela está... – Balbuciara ela chegando perto.
- Morta. – Terminara ele a frase, com um tom de dor,
sofrimento e ao mesmo tempo de alegria por saber que a sua
irmã não sofreria mais naquele triste mundo.
Carly chegara mais perto. Não sabia muito bem para quê,
mas assim o seu corpo lhe mandara. Tocou no ombro dele.
Ele largou a sua irmã com calma, voltou-se para Carly e
abraçou-lhe a cintura, pois estava à mesma altura dela visto estar
sentado, começando a chorar sobre o peito dela.
Carly segurou forte a cabeça dela contra o seu peito.
Numa tentativa de lhe afagar a dor, tentando fazê-lo sentir um
pouco de calor naquele frio ambiente que ali se havia criado.
A Morte é um ser que chega sem avisar. Sem dar às
pessoas a entender a sua presença... É calma, subtil. Esconde-se
133
sobre o seu manto e nem respira para não nos fazer aperceber da
sua presença. É silenciosa, fria e cruel, mas é também a mais
magnifica entidade que poderemos ter ao longo de toda a nossa
vida, pois é o que nos faz ter medo de nunca fazermos nada de
diferente, de nunca deixarmos qualquer marca no mundo. É o
que nos faz agir, pois temos medo que o dia em que ela nos
venha visitar, seja antecessor do dia em que, supostamente,
seriamos felizes. É triste pensar que esta criatura pode chegar no
dia anterior a conhecermos a pessoa que nos deveria fazer sentir
vivos, ou ao dia em que ouviríamos milhares de pessoas gritar o
nosso nome por termos feito algo extraordinário. A Morte é a
criatura mais detestada por todos, apesar de ser a vida sempre
apelidada de puta. A realidade é que ninguém quer viver, mas
ainda pior é morrermos, porque morrer significa que não
teremos mais tempo para nos lamuriarmos sobre tudo aquilo que
nunca fizemos para mudarmos a nossa inutilidade. A Morte é
odiada por ser o único ser que tem a coragem para nos dizer: Se
nunca fizeste nada até agora, não será agora que isso irá
mudar...
Como este trágico acontecimento havia acontecido de
manhã, durante a tarde fora aproveitado o sol que decidira
brilhar para se pôr em descanso o corpo daquela rapariga, que
apesar dos seus problemas, era bela. Por cima do seu corpo fora
colocado uma imensidão de flores, para se juntarem às que
floresciam aos poucos. Para relembrar que na morte podemos
ver a ressurreição.
Só houvera ele e Carly naquela cerimónia, mas o que
importava não era a quantidade de pessoas, ou a quantidade de
flores ou rosas derramadas, isso nada nos diz sobre a nossa vida.
O importante é sim, quantas pessoas se recordarão de nós no
final de toda a nossa história.
134
Ele voltara para o interior da velha casa de madeira. Era
a primeira vez que Carly tomara a noção da imensidão de
floresta e campo que existia no interior daquela casa, que ficava
quase numa colina. Lá em baixo podia-se ver a frágil cidade que
se erguia. Podia-se ver a separação das duas partes.
Eram tão diferentes aqueles três lugares. Um oposto do
oposto. Nada era igual. Num lado a parte pobre da cidade, a
parte do povo, e quem falava na cidade falava naquele império
todo; as pessoas sobreviviam a cada dia, tentando ser felizes,
quando no seu interior não havia nada. Não havia nenhum
ensinamento senão o triste ensinamento que o ninguém lhes deu.
Do outro lado a parte rica, onde todos os gigantes se deliciavam
com tudo o que podiam... Além de abastados em dinheiro,
alimentos, também eram abastados em conhecimento e cultura.
E ela estava ali. Naquele pequeno território, onde não havia
muros, não havia paredes, não havia tristeza... Havia liberdade,
ar puro, pássaros que cantavam e encantavam, onde o sol
embatia e aquecia... Onde havia cultura e todos os doces que a
vida podia dar... Apesar de saber que a irmã dele morrera, ela
não se conseguia sentir triste... Apenas podia pensar na sorte que
ela tivera por, para sempre, fazer parte daquela paisagem...
Por um momento chorou... Mas não uma lágrima de
tristeza, foi uma lágrima de felicidade que o vento levou e
espalhou por toda a natureza para que também ela fizesse parte
de toda a natureza.
Entrara de novo na casa. Viu que ele se encontrava
sentado à frente do computador. Mantinha o mesmo ar. Depois
de chorar no peito dela, nunca mais havia chorado.
Ela não sabia o que lhe deveria dizer. Não tinha a noção
daquilo que lhe passava pela cabeça. Apenas conseguia entender
que o olhar dele ficara mais intenso e certo. Era como se ele
135
tivesse finalmente se decidido sobre o que iria fazer a seguir...
Ela só não sabia ainda o que era.
- Como estás? – Perguntou com calma, para não causar
distúrbios.
- Como poderia estar numa altura como esta. –
Retorquira – Não poderei dizer que estou feliz, mas seria
invejoso se continuasse a pedir que ela ficasse aqui, naquele
sofrimento...
- Ela não parecia estar em sofrimento... – Carly sempre
achara aquela rapariga muito feliz apesar das suas limitações.
- Sim... Eu sei que não... Mas assim sei que ela
finalmente poderá correr por entre a natureza, como ela sempre
desejou e nada me pode deixar mais feliz que isso. – Sorrira
vagamente para ela.
- O que pensas fazer agora?
Ele demorara um pouco a responder.
- Penso que terminarei de vez o meu plano. – A sua voz
era forte e calma. Ele estava decidido a terminar com tudo.
- Depois da tua irmã morrer, tu continuas com a ideia de
terminares tudo! – Gritara – Como é que isso é possível! – Carly
sentira-se exaltada, não podia acreditar que ele naquele
momento só se conseguia lembrar de terminar o que havia
começado – Por que é que tu vais continuar a fazer tudo isso? A
tua irmã já morreu... Para quem darás esse mundo novo que
estás a tentar criar...
- Para ti. – Carly silenciara-se e acalmara-se – Para este
rapaz que fora morto por pintar a imagem de Che Guevara numa
parede depois de o avô lhe ter falado nele... Por esta mulher que
foi morta por ter gritado que queria ser livre... Por tudo isto...
Carly tinha tantas palavras que queria dizer mas não lhe
saíam. Apenas ficavam presas na sua garganta.
136
- Tu dizes que não queres ser o herói desta história, mas
no fundo estás a comportar-te como qualquer outro herói que
espera sempre que tudo lhe corra bem... – Acabara por dizer,
abalada – Mas se queres tanto ser o herói, diz-me, por que raio
te vestes tu como um vilão? – Carly tinha tomado conhecimento
que a máscara que ele usava era igual à de um vilão de bandadesenhada, que também era louco.
Ele levantara-se calmamente e chegara perto dela.
Olhou-a bem nos seus olhos azuis de céu.
- Todo o herói é no início visto como um vilão, até que
alguém o veja como o contrário...
A respiração dos dois susteu-se por um breve bocado.
Talvez por mero acaso, ou por algum outro motivo desconhecido
pelos dois, começara a tocar a música True Love Waits.
- Sabes... – Ele não sabia bem o que estava prestes a
dizer, mas não conseguia impedir a sua boca de falar – Eu nunca
consegui sentir esse tal sentimento a que muitos chamam:
amor... – Os seus olhos não se conseguiam separar.
- A maioria das pessoas que usa essa palavra, não
conhece qualquer significado para ela... Usam-na somente por
que se torna bonito usá-la... A realidade é que nunca será
possível descrever esse sentimento em livros, filmes ou qualquer
outra manifestação... – Chegou-se perto dele – Só há uma
maneira de sentir... – O olhar dele mantinha-se vago e perdido, o
dela mantinha o brilho de uma criança. Os seus lábios tocaramse por breves momentos, numa empatia sincronizada que apenas
se consegue uma vez em toda a nossa vida. Por um momento
não houve histórias, não houve filmes, não houve palavras, não
houve sofrimento. Houve somente aquilo que se poderia
delimitar como sendo o que nos move no dia a dia. O que nos
fará sempre erguer-nos e lutar.
137
Os lábios dos dois separaram-se, com custo, num
movimento duro. Ele pela primeira vez deixara o seu sorriso
perdido, sorrira verdadeiramente... Os seus olhos brilharam...
- Se eu tivesse sentido isto antes talvez... – Fechara os
olhos e respirara fundo, com medo e vergonha das palavras que
iria dizer. Ela chorava – Mas agora é demasiado tarde.
Pegara no saco que estava perto deles e saíra porta fora.
Ela chorara. As lágrimas vertiam e deslizavam por toda a
sua bela face. Por um momento, o sol escurecera.
- É o que eu te digo Nobert... Se continuarmos com isto
em breve teremos comunistas para aí a dominarmo-nos...
Vagabundos de novo na rua a pedirem e a infestarem tudo com
pragas... – Morgan e Nobert haviam discutido durante a tarde
aquilo que achavam do que Almiton lhes revelara – Não
podemos deixar que hajam de novo esses gangues para aí a
matarem-se uns aos outros por causa de putas e droga... Temos
de manter este governo de pé... Se não voltamos à merda que
éramos anteriormente.
O seu desdém era eminente. Morgan era das pessoas que
mais apoiava as atitudes do presidente por mais cruéis que elas
fossem
- Que queres fazer, então? – Indagara Nobert – Não
podemos simplesmente andar por aí a matar todos aqueles que
vão contra nós... Daqui a pouco não teremos povo... Além disso,
quantos mais matarmos, mais os outros se revoltarão... Não
demorará muito até que alguém consiga armas e coragem
suficiente para nos matarem a todos...
- Isso nunca vai acontecer... Aqueles cães são todos
cagados... Nenhum se atreverá a levantar uma arma que seja
138
contra os militares ou polícia... Eles vão simplesmente correr de
medo mal vejam que os seus amigos andam a morrer... Já o
fizemos antes, agora não será diferente...
- Na altura em que fizemos isso, eles não tinham um líder
para lhes dar a conhecer tudo aquilo que eles deveriam fazer... –
O tom de Nobert era de quem acreditava que a certo ponto o
povo iria conseguir sobrepor-se a eles – Vivemos numa altura
diferente, Morgan... Em breve eles revoltar-se-ão e nós teremos
de decidir, se levantaremos as nossas armas pelo povo... Ou se
levantaremos as nossas armas por um simples homem...
Morgan não respondera. Ficara pensativo, ou
simplesmente divagara a sua mente para outro lugar para não ter
de lidar com a triste verdade.
A noite é a única altura em que nos podemos demonstrar
como somos. Na escuridão, onde a luz da lua é a única que pode
revelar algo, podemos finalmente retirar as nossas mascaras e
avançar calmamente, na penumbra...
Talvez pelo facto de a escuridão ser a água que limpa a
maquilhagem que nos mascara, inventem sempre as histórias
que os demónios e as bruxas surgem nesta altura, para nos
impedirem de retirarmos as máscaras que vestimos à luz do dia,
para que ela se entranhe na nossa face e nunca dela se possa
descolar, para não terem de lidar com verdades incómodas para
uma sociedade facilitada.
O velho homem acordara do seu sono quando sentiu um
barulho estranho.
A escuridão do quarto impediu que ele conseguisse ver
algo, demorou alguns segundos a aperceber-se do vulto que se
encontrava sentado ao lado da sua cama.
139
Voltou-se rapidamente, tentando pegar na arma que
sempre tinha debaixo da sua almofado.
- Não vale a pena se esforçar! – Dissera o vulto – Todos
os alarmes e todas as armas foram retiradas. Eu não sou assim
tão estúpido...
O velho homem voltara a voltar-se para ele. A luz da lua
revelara-lhe a face louca, com o olhar a condizer, daquele vilão
de banda-desenhada que começara todo aquele problema.
Ele sobressaltou-se. Fez força com os pés para poder dar
alguns passos para trás, mas em vão, embatera contra a parede e
tudo o que fizera fora somente sentar-se.
- Vieste matar-te? – Perguntara com o seu tom rouco,
devido à sua velhice.
Ele olhara pela janela para a lua.
- Provavelmente... – Respondera calmamente e com ar
vago, dando ao seu tom a sua característica definidora.
- Posso ao menos saber o porquê de teres feito isto tudo?
– Rira – Qual foi a atrocidade que este governo cometeu contigo
para que tenhas feito tudo isto... – Ele esperava ouvir a resposta
que tinha imaginado na sua mente.
- Nenhuma... – Retorquira. Ele admirou-se – Ao
contrário do que possa pensar, o governo não fez nada.. Isto não
é uma vingança...
- Então, por que estás tu a fazer tudo isto?
- Há algumas pessoas que simplesmente gostam de
mudar o mundo, sem nenhum motivo, apenas não gostam do que
veem... Penso que nem eu mesmo sei o porquê de ter feito tudo
isto... Mas quando se cria uma ideia na nossa mente e ela fica
entranhada na nela... Oh meu Deus, não há nada nem ninguém
que a consiga tirar e ela só consegue ficar saciada quando
140
conseguimos concluir essa ideia. – O seu tom era certo, calmo e
falava eloquentemente.
- Estás a fazer então isto tudo, simplesmente por que te
apetece? – O homem estava à beira de ter um ataque cardíaco,
ele estava à espera que o motivo que aquele rapaz tivera para
fazer tudo aquilo fosse devido a algo que lhe tivesse sido
causado pelo governo, todavia essa não era a verdade.
- Sim... Podemos dizer que é simplesmente porque me
apeteceu fazer algo diferente daquilo que se vê todos os dias... E
claro, não devemos esquecer que estou a fazer aquilo que o
governo fez ao seu povo... Guerras... Caos... Crise... Mortes...
Censura... Que é que vocês esperavam? Que simplesmente todo
o povo ficasse quieto para sempre? Achavam que poderiam sair
imunes de tudo aquilo que fizeram... Que iriam ser uma doença
que se alastraria sem uma cura... Já deveriam saber desd’o início
que tudo tem um fim...
- Nós sabíamos desde que construímos todo este império
que mais cedo ou mais tarde haveria alguém que nos tentaria
derrubar... – Por um momento ele decidira falar como se fossem
iguais.
- Por isso criaram o Projeto Sophia... Certo? – A questão
era retórica.
- Sim...
- Mas esqueceram-se que é impossível encarcerarem
todos os génios num só lugar e aniquila-los... A natureza
encarrega-se de arranjar maneiras diferentes de sobreviver...
Como tal, o que vocês fizeram foi apenas atrasar um pouco o
inevitável...
- Nunca acreditamos que só uma pessoa pudesse
derrubar tudo o que construímos... – Interrompera-o.
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- Mas não vou somente eu a derrubar-vos. Será o povo
todo...
- Sim, mas somente porque lhes deste a ideia... Caso
nunca houvesses falado antes, eles continuariam com as suas
calmas vidas...
- Apareceria outro...
- A hipótese seria uma num bilião... Não é fácil alguém
conseguir mover uma legião de pessoas de livre vontade... As
pessoas não fazem nada, a menos que lhes seja dado algo em
troca... Elas não seguem livremente as ideias de uma simples
pessoa... Não são capazes disso... Por isso foi sempre tão fácil
dominá-los... Mas tu... Tu não... Tu conseguiste fazer algo
diferente... Sabes, o que nós fizemos foi manter o mesmo regime
político desde do início da humanidade, moldamos apenas
algumas arestas, mas o resto manteve-se. A ideia foi sempre
essa... – Descansara a voz por alguns momentos – A ideia da
humanidade é simplesmente termos a nossa vida organizada, a
dos outros não importa minimamente... Ninguém quer saber se
há um sem abrigo nas ruas... Ninguém quer saber se há crianças
a passar fome... Desde que eles tenham comida na mesa e roupa
lavada é o que importa... As pessoas só se preocupam uma com
as outras se houver algo em troca... É tão fácil enganar a
humanidade que até mete dó... Basta-lhes dar a entender que se
seguirem as nossas ordens tudo vai correr bem... Eles aceitam...
Quando ficam chateados, arranja-se um novo doce e assim
sucessivamente... As pessoas precisam de alguém que mande
nelas para lhes dizer se estão a fazer o que é correto ou não...
Elas não querem saber do resto... Custa-lhes demasiado pensar
por elas mesmas... – Rira-se, mas começava a sentir-se fraco – O
que tu fizeste... Isso foi sem dúvida algo invejável... Conseguiste
142
fazer com que as pessoas te seguissem, sem lhes prometeres
nada em troca.
Ele mantivera-se calado por mais um bocado, olhando
para a lua de novo e pensando em algo importante.
- Talvez lhes tenha oferecido algo muito mais importante
do que vocês alguma vez fizeram, mas que somente agora
entenderam o verdadeiro significado... – Suspirara.
O homem começara a gemer.
- Então, envenenaste-me, certo?
- Isso é apenas uma droga para que não sinta nenhuma
dor naquilo que irei fazer a seguir... – Disse demonstrando uma
faca – Daqui a pouco deve fazer efeito...
- Para quê tanto trabalho? Vais acabar sozinho, ou
preso... Sem nenhum seguidor... Para quê teres feito tudo isto?! –
O tom de voz demonstrava dor, rancor e medo.
- Os homens têm de fazer aquilo que lhes é destinado...
Certo, avô? – Sorrira para o homem que sentira o seu coração a
parar ao ouvir aquelas palavras. Uma lágrima correra-lhe pela
sua cara, enquanto todo o seu corpo paralisava e ele espetava a
faca bem fundo no seu peito – Às vezes o maior perigo que
temos, vem do mesmo sangue que o que corre nas nossas veias...
– Sussurrou-lhe ao ouvido enquanto ele suspirava uma última
vez e a sua mão se sujava de sangue.
O velho homem entendera então tudo o que se passara.
Percebera o porquê de aquele rapaz ter feito tudo aquilo. Ele era
seu neto. O neto que ele abandonara, da filha que ele abandonara
e que morrera à mercê de um demónio, quando havia sido criada
pelo diabo. Abandonara a sua mulher por esta não seguir os seus
ideais. Tudo pelo sonho do poder, de escrever o seu nome na
história e se libertar da morte... Ironia... Fora isso que o fizera
conhecer a morte... O seu neto... O seu sangue... Era ele o ser
143
que vestia preto e sem piedade, ou por pena, retirava a vida
dele... Viu que o seu neto não demonstrava nenhum
ressentimento da atitude que tomara, ao contrário dele, que pela
primeira vez entendera, que o poder não era tudo... Mas sim, o
nada.
Almiton avançava calmamente por aquela noite
tenebrosa. O céu começava a fazer sons de que iria em breve
começar uma tempestade, dando um aviso para que todos se
resguardassem.
Ele pensara que seria melhor ir avisar o velho homem do
que se iria passar, de como nenhum dos três havia chegado a um
acordo. Ele não sabia bem por que raio acordara àquela hora
para ir falar com ele. Ainda para mais ele já deveria estar a
dormir. Mais valia dar meia volta e ir embora.
Não, tinha de continuar, quanto mais cedo falasse com
ele melhor. Ainda para mais tinha um milhão de perguntas às
quais não surgia resposta.
Ainda vais acabar por ser preso por o acordares a esta
hora! Rira-se interiormente.
Chegara perto da porta daquela enorme casa quando...
O rapaz seguia calmamente, com o saco na mão, a faca
ensanguentada a deslizar de dedo para dedo, o sorriso na cara a
esbater-se a cada passo, ia cantarolando uma velha música que
se lembrava de ouvir sempre que o seu pai ligava o seu velho
rádio. Mas, nem sempre todas as histórias tomam o lado dos
heróis e este momento foi um desses momentos em que os
heróis são capturados por aqueles que nada de importante fizera
ao longo da história.
- Merda... – Gemeu ele enquanto via Almiton a apontarlhe uma arma. Deixara cair a faca e levantara as mãos, mantendo
144
o seu sorriso torcista – Devia-me ter vindo vestido de coelho... –
Ironizara ele sabendo perfeitamente que o jogo havia terminado.
145
14
Carly sentia-se sozinha.
Tinha passado grande parte da tarde a chorar depois de
ele ter saído e acabara por adormecer no sofá. Num minuto
aquela casa ficara completamente vazia, sem qualquer sinal de
vida. Sem histórias ou personagens encantadas. Só tinha ficado
ela.
Não sentia que ele havia regressado, o que era estranho.
Ligara a televisão na tentativa de ver se havia alguma notícia
sobre o que ele poderia ter feito.
Nada.
Levantara-se.
Talvez ele tivesse somente saído para ir dar uma volta e
ainda não tivesse volta, ou talvez, simplesmente, o plano dele
demorasse mais que os anteriores.
Decidira preparar algo para comer. Estava esfomeada.
Vasculhou no frigorifico e nos armários, mas nada lhe parecia
ser suficientemente bom para lhe saciar a sua fome. Além disso
tinha uma sensação estranha na sua barriga, mas não conseguia
saber o quê.
Percorreu a casa. Ficou a olhar para ela. Para aquele
conjunto de livros, filmes e discos. Tudo aquilo lhe parecia agora
uma interminável criação de histórias que nada significavam.
146
Seguiu em direção ao quarto dele, mas que agora lhe
pertencia, pois ficara lá desde que chegara àquela casa. Foi então
que vira. Em cima da cama estava um amontoado de folhas, uma
arma e uma carta que se segurava num biblô que ele pusera por
trás. No topo do envelope estava escrito: Carly,
Ela sentira-se apreensiva, mas a curiosidade de saber o
que tudo aquilo era, era superior a ela mesma. Quando deu de
conta já tinha aberto no envelope e havia-se sentado na cama a
ler o conteúdo daquelas palavras.
Carly,
Peço desculpa por ter escrito tudo isto e não to
ter contado diretamente, mas penso que é a melhor maneira
de poder dizer tudo aquilo que é necessário.
Esta será provavelmente a única história de vida que
merecerá ser contada num livro, não queria estar a parecer
altivo ao escolher estas palavras, mas espero que possas fazer
com que esta história chegue a todos os restantes, para que
eles entendam o porquê de ter feito tudo isto e para que
sigam os seus ideais.
Penso que o que me moldou nunca foi o facto de ter
morto o meu pai, nem a minha infância que me transtornou,
nem ter visto a minha mãe a morrer à minha frente ou até
mesmo o facto de ser odiado por todos. Isso seria só motivos
para as pessoas terem pena de mim, nada mais... E não
devemos culpar o nosso passado pelo que somos agora...
Todos temos a força para mudar o nosso destino.
147
O dia em que acho que mudei realmente foi num dia
em que eu deveria ter por volta dos meus 18 anos, não mais.
Estava a sair da universidade, esperando pelo autocarro...
Chovia, mas não muito... Lembro-me de olhar para as luzes
de um autocarro que parava à minha beira... De ver aquela
luz laranja a piscar incessantemente, mas ao mesmo tempo a
ser calma...
Lembro-me de estar a ouvir uma daquelas tristes
músicas, mas que tanto dizem sobre nós quando somos uns
deslocados deste mundo. Fora então que por um momento
me virei e embati contra uma rapariga... Um pouco estranha,
como eu... Ficamos a falar por um pouco... Nada de muito
especial, mas ela não ligara ao facto de eu ser diferente, nem
ao facto de falar de assuntos diferentes dos outros... Ela
mesmo gostava de falar desses assuntos... Não devemos ter
falado mais do que cinco minutos, mas chegara para entender
que ela sabia bastantes coisas... Infelizmente, nunca mais a vi,
mas por um momento senti-me diferente...
No caminho para casa vi algo brilhante. No muro
havia sido escrito Um governo do povo, pelo povo, para o
povo, não deve desaparecer da terra3 Penso que foi sempre
esta frase que me ficara gravada na memória... E a partir daí
3 government
of the people, by the people, for the people, shall not
perish from the earth. – Frase de Abraham Lincoln, durante o discurso
de Gettysburg.
148
comecei a preocupar-me a sério com todos os problemas
políticos...
Naquela altura ainda podíamos pensar de uma forma
quase livre... Mas isso estava prestes a mudar... Aos poucos o
governo ia criando um Projeto do qual ninguém tinha
conhecimento... Um projeto ao qual deram o nome de
Sophia...
Aos poucos os meus amigos iam desaparecendo, por
pensarem da mesma maneira que eu. Eram presos,
torturados... Toda a réstia de liberdade que possuíamos ia
sendo aniquilada, destruída por completo e não podíamos
fazer nada. As nossas manifestações acabavam em mortes.
Não faltou muito até o meu nome ser incluído na lista
dos principais procurados pelos governo, um alvo a abater.
Todavia, sobre o meu quase pleno desconhecimento, a minha
avó estava sempre um passo à frente de todos eles e, antes
que nos pudessem pegar, colocou-me a mim e a minha irmã
nesta casa... Casa essa que fora construída por ela e pela sua
amiga na altura em que ainda eram jovens... Tinham-na
preenchido de todas as obras primas que haviam
encontrado... Infelizmente, ela fora morta pelos guardas que
entraram na nossa cara para nos virem buscar...
Eu sabia que as buscas por nós não terminariam até
eles nos terem capturado, mas não podia deixar que a mina
irmã ficasse sozinha para todo o sempre, como tal decidi
refugiar-me.
149
Fui assistindo pela televisão a todos os tristes
acontecimentos, mas aos poucos toda a informação era
apagada de toda a comunicação social de todos os MIDIA.
Era como se nunca nenhum daqueles desastres tivesse
acontecido.
Apercebi-me então que tudo estava perdido.
Todavia, a frase nunca me saíra da cabeça, e pensava
em como a minha irmã merecia viver num mundo melhor.
Ao longo dos anos fui pensando num plano para que
pudéssemos voltar a ter a liberdade que nos era merecida.
Sabia perfeitamente que a opressão do povo havia-o feito
esquecer-se daquilo que antes tivera. Não conseguia saber se
poderia simplesmente fazer uma manifestação e conseguia
fazer com que ele ficasse do meu lado... Portanto, decidi que
o melhor era chamá-lo para o meu lado de uma forma
inteligente.
Aos poucos fui construindo todo o meu plano,
olhando para a televisão e vendo o rosto do homem que
fizera tudo aquilo... O homem que, por muito que me
custasse admiti-lo, era meu avô...
Um homem que abandonara a filha e a mulher, para
se entrelaçar na busca pelo poder... Esse homem tinha feito
com que tudo aquilo acontecesse... E estava na altura de
alguém o fazer pagar por tudo...
E assim criei todo o meu plano, pensando na minha
mãe, que merecia que todo o seu esforço não fosse em vão...
150
Pensando na minha avó que me deu a força, a coragem e o
conhecimento para poder avançar de forma calma e certeira...
Na minha irmã, que demonstrava que as limitações somos
nós que as impomos na busca pela felicidade e não sei bem
porquê, pensando naquela rapariga que naquela noite de
chuva falou comigo e me fez perceber que o mundo é
perfeito, se nós conseguimos trazer ao de cima o que de bom
há nele.
Gostava não ter sido tão vago com tudo isto que aqui
disse... Mas simplesmente não sei o que deveria dizer mais
que não tenha sido dito nas nossas conversas.
No início não sei por que me ajudaste ou por que fui
eu trazer-te para dentro deste mundo todo, talvez tenha sido o
destino o responsável, assim como foi ele o responsável por
ter saído de casa dois minutos antes de a polícia aparecer
para me prender, o que teria feito com que toda esta história
nunca tivesse acontecido. Talvez fosse o destino a querer que
fosse feliz por mais uma vez...
Caso pretendas deixei tudo o que era necessário para
que possas fugir do país o mais depressa possível. Não quero
que te prendas simplesmente por que eu te contei histórias,
nem sempre elas acabam bem...
Agora vou terminar o meu plano, espero que nos
voltemos a ver... Caso contrário espero que nos encontremos
um dia no céu, caso este exista... Já que o mais certo é que
151
contigo aconteça o mesmo que aconteceu com a outra
rapariga, a qual o destino nunca mais me deixou ver...
Carly acabara de ler a carta. Uma leve lágrima caíra pela
sua face.
- Então eras tu... – Sorrira e chorara... Misturara a
nostalgia com a derrota. Tudo tinha um fim, um início e um
meio... E naquela história ela fora isso tudo...
O Presidente não podia tirar do seu olhar aquele
sentimento de vitória. Não podia deixar de sentir todos os seus
medos a esvanecerem pelos poros do seu corpo. Tinha
finalmente conseguido capturar aquele maldito cão que lhe
mordera os calcanhares.
Era triste ter recebido a notícia de que o velho homem, o
quase fundador de todo aquele império havia morrido, mas era
preciso fazer-se sacrifícios por um bem maior.
Além disso, ele já era velho, já pouca falta faria naquele
conselho. Estava na altura de um novo império nascer, um
império somente dele.
Chegara perto daqueles negros portões que davam
entrada para a mais temível de todas as construções daquele fatal
império. A Câmara das Torturas, como assim tinha sido
apelidada, e que bom nome lhe fora dado. Não podia ter ele ou
os criadores daquele lugar pensado num nome melhor que
dissesse tudo aquilo que aquele lugar significava.
152
Dois guardas guardavam o portão, segurando nas suas
mãos as mais poderosas armas. Quem entrava naquele lugar
como prisioneiro, não poderia a nenhum custo voltar a sair dele,
por isso, naquele lugar só eram colocados os guardas maiores,
mais fortes e sem consciência. Não poderia ser de outra forma, o
que ali dentro acontecia não era para ser passado para o exterior.
As paredes daquele lugar eram tão negras como as
histórias que nele haviam sido criadas. Ainda se podiam ouvir as
lamúrias, as súplicas, os choros daqueles que ali haviam entrado,
mas que nunca tinham saído.
O lugar fedia a sangue, despojos humanos, todos os
cheiros horrendos pertenciam àquele lugar. Não poderiam os
prisioneiros ter sequer um pouco de dignidade antes de
morrerem... O seu nariz tinha de ser já acostumado ao cheiro dos
seus corpos, que saíram dali decapitados, decompostos, e seriam
enterrados, se o fossem enterrados, se não servissem de comida
aos corvos que andavam esfomeados e rondavam aquele lugar,
aquela negra floresta. Em poucos dias, qualquer corpo ficava
irreconhecível, os ossos acabariam por ser desgastados pelo
tempo, ou enterrados pelas longas tempestades que existiam
naquele lugar. Era incrível como aquele lugar não deveria ficar a
menos de trinta quilómetros da cidade principal e o seu clima lá
era tão diferente.
Havia quem dissesse que as tempestades eram causadas
pelas lágrimas dos prisioneiros que ali haviam morrido e que
molhavam aquele lugar com as suas lágrimas, numa tentativa de
fazer com que todos os pecadores e os pecados se afogassem.
153
É por estupidezes como estas que somos nós quem
mandamos... Pensara para si mesmo o Presidente enquanto se
lembrava de todo este conto.
Começava a ouvir pequenos sorrisos vindos do fundo
daquele corredor mal iluminado. Todos os grandes daquele
governo haviam sido convidados por ele a virem assistir àquele
deleitoso momento. Ninguém ainda tinha começado a torturar o
rapaz, ele não o permitira. Queria primeiro ver bem como ele
era. O que ele era... E queria ser ele o primeiro a fazer aquele
rapaz sofrer.
Passara toda a noite a imaginar no que deveria fazer. O
quanto o deveria fazer sofrer para que ele entendesse que quem
mandava era ele e mais ninguém. Que mais ninguém tinha o
direito de se poder erguer contra ele. Ele era o supremo ser, o
Deus, e só a morte poderia retirá-lo daquele posto, mais
ninguém.
Imaginava o que deveria fazer então, quando ele
morresse. Se deveria empalhar a cabeça dele e colocá-la à
entrada da cidade, como os antigos faziam, para relembrar a
quem quisesse voltar a fazer-lhe frente que outros tentaram e
pereceram.
Ideias não lhe faltavam, aquele rapaz iria desejar nunca
ter entrado naquela guerra, iria desejar nunca ter pensado por ele
mesmo... E o mais importante, não iria sair dali com vida.
Vira os seus colegas todos a olharem para ele quando
chegara perto dele. Todos tinham o mesmo sorriso vitorioso nas
suas faces, o sorriso que indicava que eles haviam vencido.
- Caros senhores Almiton, Morgan e Nobert, terei de
finalmente apreçar-vos por aquilo que fizeram... – Sorrira com
154
um tom sarcástico para os três homens que se encontravam
próximos da porta da cela daquele homem.
Nenhum dos três disse nada. Limitaram-se somente a
anuir com a cabeça e a manterem um sorriso vago. Almiton não
sabia porquê mas sentia uma náusea sempre que sorria por ser
felicitado por capturar aquele homem.
- Ele não disse nada desde que o prendemos... –
Anunciou Morgan que parecia ser o mais feliz por tudo aquilo
que se passara – Mas estamos à sua espera para o começarmos a
interrogar.
O Presidente olhou de relance pelo enorme vidro duplo
que permitia ver as costas do prisioneiro.
- Quererei ser eu o primeiro a fazê-lo falar... – A altivez
da vitória tingia-lhe a voz.
Entrara na sala, acompanhado por mais dois guardas e
pelos três responsáveis por toda a segurança daquele país.
O rapaz permanecia com a cabeça para baixo. Um leve
riso vinha dele. Era como se ele estivesse feliz por ali se
encontrar. Tudo aquilo tornava o momento sinistro.
- És tu então o responsável por tudo isto? – Perguntara o
Presidente, depois de mandar um dos guardas levantar a
cabeçada do rapaz para olhar fixamente para os seus olhos.
- Esperemos que sim... – Rira-se – Caso contrário, oh
rapaz! Estais bem tramados! – A sua alegria era contagiante e
inexplicável. Como é que ele poderia estar tão contente por se
encontrar ali, naquele lugar, no lugar onde a morte se sentava.
- Então, és um rapazinho que gosta de fazer piadas! – O
Presidente ordenara a Morgan que o esmurra-se e logo ele
saudou as suas ordens. O rapaz caiu no chão a cuspir sangue.
155
- O meu nome tem um pouco a ver com isso! – Cuspiu
sangue contra a parede, mas nada parecia retirar-lhe aquele
velho sorriso.
- Não deves ter noção daquilo que te iremos fazer,
pedaço de esterco! – A voz de Morgan demonstrava que ele não
suportava aquele riso que o rapaz fazia.
- Oh... – Balbuciara ele, mantendo-se animado – Eu sei
perfeitamente aquilo que me irão fazer... Como já fizeram a
muitos outros... Simplesmente, nada daquilo que me podem
fazer será pior do que aquilo que eu fiz a vocês... – Rira
levemente, cuspindo um pouco de sangue.
- Que queres dizer com isso? – Indagara Almiton que
parecia estar abatido com toda aquela situação.
- Ele é um louco! – Gritara Morgan – Nada mais. Nada
do que ele nos possa dizer nos vais interessar... Devíamos já
estar a desfazer toda a sua cabeça... Senhor presidente, às suas
ordens... – Morgan esperava que o Presidente tomasse a decisão
para que ele pudesse matar aquele homem.
- Tem calma Morgan, primeiro gostaria de o ouvir falar...
– Morgan largou os colarinhos dele. Ele recostara-se contra a
parede fria - Então, por que dizes que nada do que façamos pode
ser pior do que nos fizeste... Devo relembrar-te que te
capturamos... Perdeste...
Ele riu-se incessantemente. Tão alto que Morgan
pontapeara-o para o calar.
Ele cuspiu mais um pouco de sangue. Sentia uma enorme
dor, mas ao mesmo tempo uma enorme alegria. Talvez tivesse
ficado de facto doido.
156
- Vocês não entendem? – Mostrara o seus dentes
ensanguentados – Não importa se me prendem ou matam... O
meu plano já está concluído... Eu já pus todas as pessoas a
pensarem por elas mesmas... Já introduzi as ideias às pessoas,
elas agora só terão de as seguir... Mas não importa o quanto você
mate... Não poderá matar todas as pessoas... Elas finalmente têm
algo pelo que lutar... Finalmente sentiram o doce sabor da
liberdade, tudo aquilo que ela lhes pode trazer e elas não vão
abrir mão disso. – Mantivera o seu tom animado apesar das
dores – Não importa nada do que faça... A única coisa que ainda
mantém o povo longe de si, são estas três pessoas... O símbolo
da Justiça... A Proteção do Povo, quando de facto são a proteção
de um simples homem... Você! – Olhou com o seu olhar
mortífero para o Presidente, que, sem saber bem como, sentiu
medo – Quando algum deles decidir retirar as suas tropas da sua
frente, ou quando entenderem que são eles grande parte do seu
poder, que você é que deveria respeitá-los e não o contrário, que
poderá fazer? – Continuou a rir-se – Quem lhe poderá prometer
que eles serão para sempre fiéis? Quem lhe poderá prometer que
não será um deles a enlouquecer e a apontar uma das suas armas
na sua cabeça e disparar? Sem povo ou sem eles, é você a
escumalha que anda neste mundo... Um pequeno pedaço da mais
refinada merda, que não irá fazer mais nada senão implorar pela
sua vida e esperar que alguém atenda a prece.
Todos os homens permaneciam em silêncio e por um
momento ele soubera que tinha feito a sua ideia entrar na sua
mente. Somente o seu sorriso era audível naquele lugar.
157
- Cala-te, Cão! – Gritara Morgan, enquanto corria para
ele e preparou toda a sua força para o atingir com o seu pé bem
em cheio na garganta e matá-lo.
A imagem da sua mãe veio-lhe à cabeça. A imagem
daquele dia triste e melancólico, em que ela olhou com os belos
olhos para ele e disse Não tenhas medo, a mamã ama-te! Veiolhe o sorriso da sua avó que o ensinou tudo aquilo que ele sabia.
O da sua irmã que se encontrava agora de pé e pronta a correr
com ele por todos os campos que a morte plantara e por fim, vira
Carly, que lhe dizia para não ter medo e sabia que havia-lhe
deixado mais do que o que lhe era permitido. Havia-lhe deixado
todo um novo mundo.
Sentiu a sua garganta a ser destruída, mas a dor não
surgiu... Ele não sentiu medo... Não sentiu nada... Talvez fosse a
misericórdia de algum Deus piedoso ou simplesmente o seu
corpo que já se habituara à dor de uma vida inteira.
Não importava... Apenas soube que morreu a lutar pelo
que defendia, morreu a lutar por aqueles que amava... Morreu a
lutar por milhões de pessoas que não conhecia, por quem nunca
havia passado na rua, de quem nunca havia falado... Algumas
delas provavelmente haviam sido arrogantes, maliciosas,
incompreensíveis com ele, ou com aqueles que ele defendia,
mas não importava... Não importava as ideias que ele tinha ou os
outros tinham.
Finalmente entendeu as palavras da mãe que lhe dissera:
Filho, podemos não ter os mesmos Deuses, mas certamente
temos os mesmos demónios.
Morreu... Mas algo no ar, na natureza, no mundo, fez
com que o corpo dele perecesse, mas ele não... O vento levou as
158
suas palavras para entrega-las a todas as pessoas... A lua tomou
os seus olhos, para indicar a todos, que seriam guiados ao novo
dia...
159
15
A notícia havia atingido todo o império como se de uma
bomba se tivesse tratado. Todos sentiram a dor ao saberem da
morte daquele que lhes demonstrara o caminho para a liberdade.
Fez-se silêncio naquela cidade ruidosa, por um dia, só se pôde
ouvir os poderosos a festejarem por terem derrubado aquele que
ameaçara derrubá-los.
O desânimo aumentara. Todos sentiam algo a crescer
dentro deles, todos sentiram o mesmo quando ouviram aquele
velho homem a falar, dizendo que havia morto aquele que eles
tinham invocado como herói. E que demonstrara que nada
podiam fazer contra eles, que era impossível lutarem contra
tamanho poder.
Naquele dia, mais de dez protestantes foram mortos,
enquanto grafitavam nas paredes. Descansa em paz amigo, que
em breve viveremos...
Mas se morreram dez no primeiro dia, no segundo
morreram mais quinze, enquanto honravam a memória dos que
morreram em luta e enquanto relembravam ao seu povo outros
que haviam perecido anteriormente.
E se se contavam as do império, podiam-se também
contar as que aconteciam fora dela. Por todo o mundo iam-se
160
multiplicando as manifestações contra todo o poder. Todos se
haviam juntado num só; o vento havia feito o seu trabalho de
forma correta e tinha levado a sua palavra bem para lá daquelas
fronteiras.
Todavia, os poderosos mantinham-se animados. Nenhum
parecia temer o que lhes poderia acontecer.
É só uma tentativa de demonstrarem o que querem, uma
mera esperança, nada mais. Diziam eles nos seus típicos
jantares. Ninguém acreditava que alguma vez, alguma daquelas
pobre almas conseguisse levar a sua avante.
Será carne para cães! Relembravam alguns.
Mas a escuridão demonstrava uma realidade diferente.
O murmúrio que se ouvia era leve, fraco, quase calado,
mas existia. Ainda havia quem falasse com subtileza sobre o que
se passava, outros falavam mais abruptamente, mas todos se
preparavam para fazerem o que deveria ser feito. Para
terminarem o legado que aquele estranho rapaz havia começado.
Há quem diga que a escuridão costuma ser sinal de
trevas. Há quem tenha medo dela, e fuja a sete pés, pois a
escuridão é onde os demónios andam... Começava-se agora a
entender-se que nem todas as histórias que nos são contadas são
verdadeiras. Na escuridão não era onde os nossos demónios
avançavam... Não, eles avançavam à luz do dia, bem à vista de
todos. De cabeça erguida e sorriso na cara. Enquanto os anjos...
Esses andavam de asas partidas, cara suja, braços gastos,
cansados, com as lágrimas a retirarem-lhe o carvão da cara...
Esses andavam na escuridão, com frio, calados a fazerem tudo
aquilo que lhes era mandado.
161
Talvez fosse isso. Talvez o mundo fosse agora dos
demónios e não dos anjos, enquanto nas histórias que nos
contam no berço da nossa cama, nos dizem sempre que o bem
vence, ao que parecia, na história da vida era tudo diferente.
Eram os demónios os únicos que venciam, e que venciam sem
sofrerem quaisquer derrotas para tal. Tudo talvez estivesse
perdido, mas quiçá, não fosse possível ainda, numa réstia de
uma última esperança que poderemos ter por tantos contos que
nos fazem acreditar que algo de bom ainda pode surgir.
Carly havia chorado mal recebera a notícia, naquela
triste manhã quando acordara e ligara a televisão.
Chorara, gritara, gemera... Mas no fim tivera de conter
toda a dor. Chorar, gritar e gemer não eram o ritual para trazer
ninguém de volta.
Ficara noite adentro acordada a olhar para a carta que ele
lhe escrevera. Naquela altura não conseguia entender tudo
aquilo que sentia. Era como se sentisse tudo e ao mesmo tempo
não sentisse nada. Como se se tivesse tornado vítrea.
A televisão acordara-a.
O Presidente fará hoje uma declaração durante o debate
semanal do parlamento.
Medidas de extrema segurança têm sido tomadas à porta
do parlamento. A milícia armada, a polícia e os militares têm-se
intensificado...
Carly ouvira tudo aquilo. Sabia que só havia algo a fazer.
Aquele teria de ser o dia em que tudo deveria terminar.
162
Chegara a noite. Era a altura em que o presidente iria
fazer a sua declaração perante todo o povo. As pessoas tinhamse juntado em casas, em cafés, em bares, todos se preparavam
para ouvir o que aquele homem teria a dizer para uma nação
inteira.
A cara carrancuda e amarga dele surgira em todos os
televisores.
Saudações a todo o povo,
Como vosso presidente venho aqui hoje falar-vos. O
nosso país foi abalado por um louco que demonstrou ideias
irreais e mentiras para tocar numa nação ferida.
Nada passou senão de um mero teatro de alguém que
pretendia causar o caos e nada mais. O vosso governo sempre
foi um governo que pensou em primeiro lugar no seu povo.
Sempre preocupado com o bem comum e nada mais.
Vários foram já os países que pereceram ao longo dos
tempos, mas não o nosso, não, esta nação sobre o olhar de Deus
prevalecerá sobre todos os demónios. Foi isso que vimos... O
demónio que tentou destruir este império caiu... Deus assim
pretendeu e sobre a espada, que Deus nos deu para nossa
justiça, foi morto.
Deus demonstrou claramente que pretende que este
governo prevaleça sobre tudo e todos, como tal, nada mais
poderemos fazer senão seguir-lhe a vontade.
Muitos eram aqueles que escutavam. Poucos os que
acreditavam. Alguns choravam, com medo do que estaria para
vir, foi então que, quando muitos estavam prestes a desistir,
163
todos os ecrãs ficaram pretos e deles somente se ouviu uma voz
destorcida.
Caros amigos,
Perante as palavras do nosso caro presidente, penso que
todos concordamos que estará na altura de avançarmos pelas
trevas e derrubarmos aqueles que ao longo dos tempos nos
oprimiram.
Por um momento, um homem tirou-nos das trevas e
demonstrou-nos a luz em que devemos viver... Está na altura
caros colegas... Carreguem as vossas armas, ergam os vossos
estandartes e avancemos para esta luta final.
Mascarados de heróis ou de vilões, ou sem qualquer
máscara, apenas saiam à rua, hoje, agora, e avancem sem medo
até ao lugar onde aqueles que nos deviam ouvir e proteger se
encontram e juntos, começaremos um mundo novo.
Vejamos pela primeira vez desde que somos vivos e sol a
raiar e, quando isso acontecer que com ele raie um mundo
novo.
Carly escutara as palavras que vinham não se sabia de
onde. A mensagem de esperança que todos esperavam ouvir.
Ela encontrava-se nas ruas escuras onde as pessoas todas
começavam a gritar e a correr, de punhos elevados. Aos poucos
as ruas iam-se enchendo. O barulho zoava e o vento levava os
gritos de ordem bem longe, para lá do espaço.
Viam-se estrelas vermelhas, punhos cerrados, máscaras
de Guy Fawkes, Jokers, coroas reais, circle-A... Entre tantos
164
outros símbolos e cores. Todos avançavam a uma só voz, numa
só marcha... Ninguém se importava com quem eram ou o que
eram... Naquela altura era tudo igual... Avançavam em direção à
cidade que havia sido construída para abrigar os poderosos.
- Eles vão entrar! – Gritara Morgan.
- Que vais fazer? – Questionara Almiton que se
encontrava ao seu lado, observando todos aqueles que iam
avançando com sorrisos iluminados na face...
- O que achas que eu vou fazer! – Ele estava
completamente exaltado ao ver tudo aquilo que se passava – Vou
mandá-los disparar! – As palavras saíram da sua boca com toda
a certeza, sem medo, nada disso existia para ele.
- Estás louco?! – Almiton acreditara por um momento
que tudo aquilo iria fazer o colega mudar de ideias, mas estava
enganado – Não podes simplesmente disparar sobre todo o
povo!
- Vais ver se não posso! – Ladrou ele – Preparem as
vossas armas! – Deu a ordem pelo intercomunicador.
Alguns militares levantarão as armas, mas poucos, todos
os restantes mantiveram as suas armas apontadas para o chão.
- Preparar armas! – Gritara de novo.
Nenhuma arma fora levantada senão aquelas que já o
haviam sido.
Almiton rira-se.
- Estás-te a rir de quê?! – Na cabeça surgira um veia
enorme por causa da falta de respeito que os guardas tiveram por
ele.
- Não consegues entender... – Manteve o riso – Tu podias
ser o chefe deles, mas eles pertencem ao povo, eles juraram
165
proteger aquelas pessoas, não este império, portanto nenhum te
vai ouvir... No meio daquela multidão encontrar-se-ão avós,
pais, irmãos dos que têm uma arma nas mãos, e isso é mais
importante que um tipo que eles não conhecem de lado
nenhum...
Morgan estava cego de raiva, de tudo o que se passava.
Não disse mais nada. Pegou na arma e seguiu em direção à
multidão.
Almiton pensou em pará-lo, mas sabia perfeitamente que
alguém o pararia antes dele.
- Baixa a arma filho! – Exclamou um oficial apontado a
sua arma ao soldado que erguia a sua arma contra o povo – Não
faças nada de estúpido.
O rapaz da primeira fila fez o que ele lhe mandou e
baixou a arma, enquanto via o povo a avançar para ele. Todos os
que haviam erguido as armas contra o povo baixaram-nas
também.
- Cambada de incompetentes! – Gritara Morgan
enquanto avançava por entre os soldados com a arma na mão –
Eu mostro-vos como se faz! – Apontou a arma a alguém
aleatoriamente do povo e disparara, matando um jovem que
seguia na linha da frente.
Ouviram-se gritos. Gemidos. Alguns pararam para
prestar auxílio. Mas os restantes continuaram, sem medo.
Avançando.
Ouviu-se mais um tiro, mas desta vez fora Morgan quem
caíra no chão, morto, por quem não se sabia, mas que importava,
eles eram agora um só.
166
Todos pararam em frente aos soldados.
- Avançaram connosco, ou contra nós? – A pergunta
surgiu de uma pequena rapariguinha que não deveria ter mais de
dez anos, mas que falava eloquentemente.
O Oficial ficou por um momento a olhar para o rosto
despido daquele pequeno ser e deu ordem para que todos
avançassem juntamente com o povo. Estava na altura de fazer o
que era certo.
Almiton não podia fazer mais que sorrir ao ver tudo
aquilo. O povo havia-se unido, aqueles que o prometeram
protege-lo haviam-se juntado a ele, nada o poderia parar agora, o
amanhã começaria com uma nova alvora e uma nova brisa
cheirosa de primavera.
O Presidente vira-se obrigado a fugir do parlamento,
quando centenas de pessoas o invadiram. Todos os que lá se
encontravam tentaram fugir. Alguns conseguiram, outros foram
presos pelos militares muito antes de conseguirem fazer algo,
mas ele não, ele havia fugido.
Deus não iria deixar que ele fosse preso. Não, Deus tinha
uma ideia melhor para ele. Deus queria que ele sobrevivesse,
que conseguisse prosperar... Poderia demorar algum tempo, mas
todos são corrompíveis e ele conseguiria ter de volta o seu
império. Era só chegar perto de algum dos grandes, pedir ajuda
aos governos de fora e em breve tudo voltaria a ser como dantes.
Os interesses económicos são superiores a quaisquer outros.
Ia avançando pela noite fria, caminhando o mais
depressa possível, enquanto ouvia atrás de si os risos, as
167
palavras de ordem, a felicidade daqueles que haviam vencido a
primeira ronda, mas teriam eles vencido a guerra?
As pernas dele já eram velhas e gastas. Caíra no chão
frio e coberto por uma fina camada de gelo.
Tentou-se levantar, mas reparou que alguém se
aproximara dele. Levantou os olhos para lhe ver a cara. Viu a
cara de uma rapariga com os seus olhos azuis-esverdeados que
brilhavam à luz da lua que se enchera naquele dia e brilhava
mais que nunca.
Ela apontava-lhe uma arma à cabeça e sorria loucamente.
Por um momento a cara dela desaparecera e aparecera nela a
maquilhagem e o sorriso louco do homem que iniciara tudo
aquilo. E então ele lembrara-se, enquanto suspirava numa
súplica que não lhe saía, daquelas palavras que ele lhe dissera:
O que fará, quando um louco, sem nada a perder, chegar
à sua beira, com uma arma na mão, apontá-la contra a sua
cabeça e... disparar...
As palavras surgiram como uma profecia.
Caiu no chão. O sangue escorrera-lhe pela cabeça, mas o
chão não alterara o seu tom negro, como o breu. Apenas um
brilho novo ele ganhara, nada mais.
Carly não sentira qualquer remorso naquilo que fizera.
Era como se ela não sentisse mais nada, como se estivesse
louca... Apenas conseguia rir-se de tudo aquilo... O riso que ele
lhe dera...
- Que foi que fizeste?! – Nobert surgira por trás dela com
a arma em punho.
168
Carly voltou-se. Deixou cair a arma no chão. Não tivera
medo do que lhe poderia acontecer, já havia feito o seu trabalho,
agora talvez fosse altura de descansar.
- O que deveria ser feito... – Retorquira ela.
- Eu devia matar-te aqui e agora! – Gritou ele, enquanto
via o corpo do presidente jazido no chão
- Então, por que não o fazes?
- Nem eu mesmo o sei... – Disse ele baixando a arma.
Uma enorme explosão surgira por detrás dela. O
parlamento havia todo sido incendiado, bem como alguns outros
símbolos da opressão. O povo gritava de alegria. Dançavam
como louco em volta das chamas que limpavam os pecados que
haviam sido cometidos e iluminavam o céu escuro.
- Por que fizeste tudo isto? – Perguntou ele deixando cair
a arma. Não podia matá-la. Não, não o podia fazer. Ele sentia
que o seu lugar era agora com o povo, não com aquele velho
homem cujo sangue escorria agora pelo chão. Tudo o que ele
queria era uma pequena palavra de conforto, para lhe limpar a
alma.
- ... That we here highly resolve that these dead shall not
have died in vain—that this nation, under God, shall have a new
birth of freedom—and that government of the people, by the
people, for the people, shall not perish from the earth.4 – As
palavras dela ecoaram à medida que a multidão crescia nas ruas
e não se ouvia mais senão o doce cantar da liberdade que todos
esperavam.
4 que todos nós admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da terra.
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Carly desaparecera nas sombras e Nobert ficara ali.
Ajoelhado. Chorando. Enquanto ouvia todos os cânticos
daqueles que, diferentes, se uniram por um bem comum.
O Sol nascera, forte, radiante, naquela manhã de inverno.
O cheiro do fumo continuava a pairar por toda a cidade.
Podia-se ver o rasto da destruição, mas o mais importante era
que todos festejavam ainda pelo que se havia passado. Todos
olhavam de cabeça erguida para o céu e viam tudo aquilo que
agora era deles.
O gelo derretera das ruas, aos poucos...
E no derreter suave da neve,
Reparo na flor que sinaliza uma nova era
Fazendo lembrar a quem deve,
Que em breve, nascerá a primavera
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