A PASSAGEM DO ZUMBI RELIGIOSO PARA O TECNOLÓGICO
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A PASSAGEM DO ZUMBI RELIGIOSO PARA O TECNOLÓGICO
A PASSAGEM DO ZUMBI RELIGIOSO PARA O TECNOLÓGICO NOS FILMES ESTADUNIDENSES DE HORROR Murilo Toffanelli DHI/LERR/ PIC-UEM Solange Ramos de Andrade (Orientadora) DHI/PPH/LERR-UEM Universidade Estadual de Maringá Resumo: Desde a primeira aparição do zumbi no cinema estadunidense em White Zombie (1932) até o lançamento de A noite dos mortos vivos (1968) houve muitas mudanças nas características do monstro. A que será analisada nesse texto consiste na perda do caráter religioso do zumbi, que deixa de ser um morto que voltou a vida para servir o feiticeiro vodou que o havia ressuscitado, e depois dos anos de 1940 passa a ter forte ligação com a questão tecnológica. Para a análise dessa mudança será empregada a ideia de Edgar Morin, de que o cinema além de refletir a realidade, a comunica com o sonho do homem (MORIN, 1997); e também o método de crítica externa e interna proposto por Marc Ferro (1976), no qual a crítica externa atenta aos dados contidos na produção do filme, e a crítica interna trata das informações contidas no próprio filme. Assim, o filme poderá ser entendido como um sonho que traz as inquietações de uma época, e que para que haja o entendimento dessas inquietações se faz necessário o estudo das diferentes condições socioculturais das diferentes épocas em que esses filmes de zumbi, desde o “religioso” até o “tecnológico”, foram produzidos. Palavras-chaves: cinema de horror; zumbi religioso; zumbi tecnológico. Introdução O zumbi é uma figura recorrente no cinema de horror estadunidense. Suas características foram mudando desde sua primeira aparição em 1932 no filme White Zombie, no decorrer de todo o século XX, e ainda continuam a mudar no século XXI. Porém, sua essência permanece, o zumbi sempre será um morto caminhando sobre 2343 a terra, junto com os vivos. E o objetivo deste texto é analisar, em especial, a perda do caráter religioso do zumbi e sua então “laicização” em um recorte temporal que vai desde o lançamento de White Zombie (1932) até o de A noite dos mortos vivos (1968), que revolucionou a história do cinema de horror. Na reflexão sobre essa mudança de características, de seu aspecto religioso para o laico e tecnológico, entenderemos o zumbi como um reflexo do contexto histórico da época de produção desses filmes, que entre a década de 1930 até ao final da de 1960 mudou muito. Para a percepção dessas mudanças através dos filmes se faz conveniente a metodologia proposta por Marc Ferro, de análise interna e externa no filme. De forma que sejam estudados o enredo, personagens, cenários e temática, nessa análise interna; e direção, produção, orçamento e as condições políticas e socioculturais da época e do país em que foi lançado o filme, na análise externa (FERRO, 1975). E ainda, o filme será compreendido como um reflexo da realidade que se comunica com o sonho do homem, o que tornará possível a observação das inquietações do homem desses contextos históricos, já que assim como nos sonhos, os filmes trazem por meio de símbolos as angústias e os desejos de uma época. Segundo Edgar Morin, isso acontece através da participação afetiva, na qual o espectador se projeta e identifica em todos os elementos do filme. Por conta de seu estado de passividade física quanto os acontecimentos assistidos, o espectador acaba interiorizando tais acontecimentos. (MORIN, 1997). Dessa forma, é por meio dessa participação afetiva que ocorre a transformação nas características dos zumbis e dos cenários dos filmes no decorrer do tempo, pois o diretor do filme é um homem do mesmo contexto histórico que o do espectador, e da mesma forma que o espectador “sonha” enquanto assiste o filme, o diretor sonha para cria-lo. E para a percepção dessas transformações foram elencados quatro filmes centrados na temática zumbi: White Zombie (1932); Plano 9 do espaço sideral (1958); Mortos que matam (1964); A noite dos mortos vivos (1968). O critério dessa escolha consistiu na ideia de que esses filmes foram os mais representativos e dotados de características de seus distintos contextos históricos, e partiu da leitura de uma discussão também a respeito da presença do zumbi no cinema, contida na obra 68: História e Cinema (GUADAGNIN; ALMEIDA, 2008, p. 220 – 221). 2344 Os filmes e seus contextos históricos Nessa parte do texto serão apresentados os filmes, seus contextos históricos e em seguida os possíveis reflexos dos contextos nos filmes, determinantes para a transformação das características dos zumbis. O primeiro filme a ser trabalhado será White Zombie (1932), dirigido por Victor Halperin e produzido por seu irmão Edward Halperin, que inaugura a temática do zumbi no cinema1. Resumidamente, o enredo do filme consiste na aventura do casal de noivos estadunidenses Neil (John Harron) e Madeleine (Madge Bellamy) no Haiti. Pretendiam se casar na mansão do banqueiro Charles Beaumont (Robert Frazer), que os havia convidado. Mas na verdade Beaumont era apaixonado por Madeleine e para consegui-la acaba recorrendo ao feiticeiro vodou Legendre (Bella Lugosi). Esse feiticeiro transformava seus inimigos em zumbis para que servissem de mão de obra em seu engenho de açúcar, e para dar conta ao pedido de Beaumont transforma Madeleine em zumbi e a entrega (WHITE ZOMBIE, 1932). No decorrer do filme Beaumont se arrepende de seu pedido e também começa a ser transformado em zumbi por Legendre. Neil, amargurado com a perda de sua noiva no dia de seu casamento, acaba descobrindo que Madeleine podia estar sob o controle de Legendre. Junta força com o missionário Dr. Bruner (Joseph Cawthorn) e se aventuram em busca do feiticeiro. Encontram sua fazenda e seu engenho e confrontam sua legião de zumbis. Dr. Bruner havia descoberto, após uma conversa com outro feiticeiro, que o controle dos zumbis estava diretamente ligado à consciência de Legendre (WHITE ZOMBIE, 1932). Por fim, Beaumont prestes a se transformar em zumbi de forma definitiva, consegue empurrar Legendre de um desfiladeiro, também saltando em seguida. Com a morte do feiticeiro, Madeleine volta a si e une-se novamente com seu noivo, sob a proteção do missionário (WHITE ZOMBIE, 1932). Levando em consideração o contexto histórico de 1932, um evento bastante relevante para a reflexão do filme é a ocupação estadunidense do Haiti (1915-1934). Segundo Vanessa Braga Matijascic, essa ocupação se deu principalmente por força 1 No cinema expressionista alemão, Gabinete do Dr. Caligari (1920) já traz uma personagem de aspecto cadavérico que age inconscientemente a mando de um mestre. Mas nesse caso trata-se de um hipnotizado, não de um zumbi conforme a mitologia do vodou haitiano. 2345 do expansionismo estadunidense, que também consistiu em uma estratégia para evitar ocupação de qualquer potência europeia da região que pudesse restringir seu livre acesso ao Canal do Panamá. Essa medida acabou sendo justificada como intervenção humanitária para solidificação da estabilidade política haitiana (MATIJASCIC, 2010, p.7). Assim, foi mandado um grande número de fuzileiros-navais estadunidenses para o Haiti e os Estados Unidos passou a possuir poder de veto sobre todas as decisões do governo haitiano (MATIJASCIC, 2010, p.7-8). Várias irregularidades foram registradas nesse período. Em 1920, James Weldon Johnson, representante da NAACP2 mandado ao Haiti, registrou casos de trabalho escravo na construção de estradas a mando dos fuzileiros-navais (JOHNSON, 1920, p.13-14). Além disso, a ocupação estadunidense, segundo os autores haitianos Patrick Bellegarde-Smith e Claudine Michel, enfrentou uma intensa resistência do vodou haitiano, que era um fenômeno político-religioso com claro potencial revolucionário (BELLEGARDE-SMITH; MICHEL, 2011, p.26). Através do estudo do filme e do contexto é possível o estabelecimento de relações que ligam elementos de um com o outro, especialmente na imagem do zumbi. Relações que desembocam em críticas sociais mais pontuais podem ser pensadas, como por exemplo, a transformação de haitianos em zumbis pelo feiticeiro Legendre com os casos de escravidão denunciados por Johnson. Depois de transformados em zumbis, serviam como mão-de-obra no engenho de açúcar do feiticeiro. Nessa relação, os zumbis podem ser pensados como os haitianos escravizados e Legendre como representação dos fuzileiros que os escravizavam. Porém, a relação que mostra ser mais abrangente e produtiva é a da influência da ocupação estadunidense do Haiti como um todo, nas características do zumbi. Em White Zombie a explicação da origem dos zumbis remete a questão religiosa, o que exige uma atenção especial ao vodou, extremamente influente no Haiti. Narrativas sobre mortos-vivos estão presente em inúmeras mitologias, das mais variadas culturas, cada uma com sua particularidade (FILHO; SUPPIA, 2011). Mas é na mitologia vodou-haitiana que é apresentado: 2 Sigla original do inglês para “Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor”, uma instituição estadunidense que luta pelos direitos civis das minorias, especialmente dos negros. 2346 [...] um cadáver animado mediante espíritos escravos, utilizado pelo bokor (o sacerdote) para o seu benefício pessoal; ou então uma pessoa viva, em transe hipnótico pela ação de poções e unguentos de origem animal ou vegetal. [...] Caracterizado pelos seguintes signos: “caminha dando guinadas, realiza ações físicas de forma mecânica, tem o olhar congelado e desfocado, e fala com voz nasal” (FILHO; SUPPIA apud SARACINO, 2011, p.276). Assim, em 1932, dois anos antes do fim da ocupação do Haiti, uma produção estadunidense traz um zumbi exatamente semelhante ao descrito pela mitologia vodou-haitiana, tendo em vista que nada impedia os realizadores do filme recorrerem a qualquer outra mitologia. É dessa forma que um contexto histórico reflete em um filme. E da forma que esses contextos mudam, as discussões e as preocupações passam a ser outras, o zumbi também muda. E isso será observado na análise dos próximos filmes. Plano 9 do Espaço Sideral (1958), dirigido por Ed Wood, começa com a narração de uma história em que pilotos da aeronáutica haviam avistado discovoadores rondando um cemitério da Califórnia. No decorrer da história descobre-se que uma dupla de alienígenas está levando um plano que consiste em ressuscitar os mortos para formarem um exército destinado a conquistar as capitais do planeta Terra. No decorrer do filme os alienígenas conseguem ressuscitar apenas três mortos por meio de um eletrodo de longa distância que interage com a glândula pineal e pituitária dos mortos (PLANO 9 [...], 1958). O motivo da tentativa de execução do Plano 93 remete a preocupação alienígena com a tendência destrutiva dos humanos, notada pela invenção de máquinas de guerra e principalmente das bombas atômicas. Segundo os diálogos do filme, esse plano consistia em uma medida preventiva para que os humanos, ao avançarem em sua tecnologia bélica, não começassem a trabalhar com energia solar, o que poderia resultar na destruição do universo (PLANO 9 [...], 1958). No desfecho do filme, militares acabam invadindo a base dos alienígenas que havia sido instalada no cemitério e explodindo-a, depois de terem destruído todos os três zumbis (PLANO 9 [...], 1958). 3 “Plano 9” é o nome do tal plano de ressurreição dos mortos levado pelos alienígenas. 2347 Na análise de Plano 9 do espaço sideral (1958), é extremamente importante observar que o filme foi rodado em plena Guerra Fria4. O recorte temporal que vai de 1953 a 1969, que engloba o filme em questão e também os próximos a serem analisados, segundo a periodização da Guerra Fria pensada por Fred Halliday, foi nomeado como período de antagonismo oscilatório. Essa fase da Guerra Fria foi caracterizada por ressentimentos e tentativas de aproximação entre os EUA e URSS (MUNHOZ apud HALLIDAY, 2004, p. 268). Foi marcada pela intensificação da corrida armamentista, espacial e tecnológica, e por eventos como a crise dos mísseis de 1962 e Guerra do Vietnã (1965-1975). Segundo Fernando Vizcarra, as discussões dessa época, como a bipolarização ideológica e política entre EUA e URSS; a ameaça nuclear; degradação do meio ambiente; consequências negativas e a desilusão com a tecnologia; tiveram extrema influência na produção dos filmes (VIZCARRA, 2003). Um exemplo para essa afirmação encontra-se no filme em questão. Apesar de ser considerado até hoje como o “pior filme de todos os tempos”, por conta de seus efeitos especiais nem um pouco sofisticados, fruto de um baixo orçamento5, Plano 9 do espaço sideral abrange a maioria das discussões da época relacionadas à Guerra Fria. No filme há a presença de alienígenas preocupados com o rumo tomado pela tecnologia terráquea, que além de estar destruindo o próprio planeta Terra, pode atingir proporções e colocar em risco o próprio Universo. Tudo isso, mais uma vez, pode ser interpretado como um reflexo da época na produção do filme. Se feita a comparação do zumbi de Plano 9[...] com o de White Zombie, observa-se que o morto-vivo que caminha entre os vivos não é mais obra dos feitiços de um sacerdote vodou, mas é ressuscitado pela tecnologia extraterrestre. Assim, pode-se pensar que a principal discussão da época não é mais religiosa e mística, mas sim tecnológica. Em Mortos que matam (1964), é a vez do medo das epidemias. Dirigido por Ubaldo Ragona, foi baseado no livro Eu sou a lenda (1954) de Richard Matheson, que também foi um dos roteiristas do filme. Tem em seu elenco o lendário ator do cinema de horror em preto-e-branco, Vincent Price, interpretando o cientista Morgan. 4 termo que qualifica os conflitos envolvendo a União Soviética e os Estados Unidos após a conclusão da Segunda Guerra Mundial (MUNHOZ, 2004, p.264) 5 A estimativa do orçamento, segundo o site IMDB, é de 60 mil dólares. 2348 Robert Morgan vive em um mundo apocalíptico tomado por vampiros-zumbis, como aparentemente, o único sobrevivente humano, que tem sua vida resumida na caça dessas criaturas (MORTOS QUE MATAM, 1964). O trabalho de Morgan, antes da epidemia que transformou as pessoas em vampiros, consistia em encontrar uma cura para tal. Segundo a história do filme, a epidemia, causada por um vírus indestrutível, começou na Europa e se alastrou por todo o mundo, despovoando todas as cidades (MORTOS QUE MATAM, 1964). No decorrer do filme, através das lembranças de Morgan, é passado todo seu drama. Além de a cidade ter sido despovoada aos poucos, também perdeu sua esposa e filha. Porém, Morgan, em uma de suas caçadas, encontra Ruth Collins (Franca Bettoia), outra sobrevivente. Depois de dar abrigo a ela, descobre que ela está infectada, mas que toma vacinas de sangue desfibrinado, capaz de conter o vírus (MORTOS QUE MATAM, 1964). Morgan, que era imune ao vírus, por ter sido mordido por um morcego tempos atrás, experimenta fazer uma transfusão de seu próprio sangue para Ruth. Com isso os anticorpos de seu sangue passam a agir no organismo de Ruth e ela é curada. Mas pouco antes da descoberta da cura, Ruth lhe conta que fazia parte de uma equipe de sobreviventes, e que estes estavam vindo para matá-lo, porque muitos dos “vampiros-zumbis” que ele havia caçado, na verdade eram outros sobreviventes. A equipe chega, caça e mata Morgan, Porém a cura havia sido descoberta e havia ficado sob a proteção de Ruth (MORTOS QUE MATAM, 1964). Um evento bastante interessante para se pensar juntamente com o enredo do filme, ocorrido dois anos antes de seu lançamento, foi a instalação de mísseis soviéticos em Cuba, capazes de atingir todo o território estadunidense. Depois de essas instalações terem sido descobertas pelos estadunidenses, ficou claro que se não houvesse a retirada desses mísseis, uma guerra nuclear seria iminente (ÁVILA, 2012). Eric Hobsbawm definiu essa crise dos mísseis cubanos como um exercício de força inteiramente supérfluo, que, por alguns dias deixou o mundo à beira de uma guerra desnecessária (HOBSBAWM, 1995, p.227). Apesar dessa guerra nuclear não ter se sucedido, todo o mundo ficou a beira da destruição até que tais mísseis fossem desativados, pois cada um dos 42 mísseis continham ogivas nucleares dez vezes mais poderosas que a bomba atômica lançada sob Hiroshima e Nagasaki (ÁVILA, 2012). Esse trauma intensificou o medo 2349 da destruição mútua inevitável (MAD)6, e começou a aparecer nos filmes, como é o caso de Mortos que matam, que apesar de não haver no enredo a questão da ameaça nuclear, apresenta um mundo totalmente despovoado por uma epidemia, com ares de apocalipse. Além do mundo apocalíptico, reflexo de um contexto MAD, um objeto importante a se analisar no filme, é a forma que os vampiros-zumbis são representados. Fora o detalhe de que esses mortos-vivos falam e sugam sangue, suas características são as mesmas do zumbi de George Romero, que aparecerão em A noite dos mortos vivos. Agem em bandos, caminham lentamente e cambaleando, e apresentam um forte aspecto cadavérico. Diferentemente de White Zombie e Plano 9 do espaço sideral, os mortos não voltam a vida por intermédio de um feiticeiro vodou, nem pela tecnologia extraterreste, mas por conta de um vírus, ou seja, algo muito mais realista. Já A noite dos mortos vivos (1968), dirigido por George Romero, foi o filme que eternizou a imagem do zumbi, inspirando outros filmes, games e séries até os dias de hoje. No filme, sem nenhuma explicação definitiva, os mortos começam a levantar de seus túmulos e a perambularem pelas redondezas dos cemitérios, representando um grande perigo aos humanos (A NOITE [...], 1968). Todo o enredo do filme se desenvolve afastado da cidade. Começa em um cemitério, onde Barbara (Judith O’Dea) acompanhada de seu irmão Johny (Russell W. Streiner), que é atacado por um zumbi, logo após o avistá-lo. Durante sua fuga, Barbara encontra-se com Ben (Duane Jones) e juntos fogem para uma cabana, juntando-se com outros sobreviventes. Nessa cabana, existe uma terrível pressão psicológica sob todo o grupo. As disputas por liderança são frequentes e o número de zumbis que vão se aglomerando em volta da cabana só tende a aumentar (A NOITE [...], 1968). O rádio existente na cabana se mostra como uma importante personagem. É através dele que os sobreviventes obtêm, durante todo o filme, notícias sobre esses mortos que estão levantando de seus túmulos. Há apenas uma hipótese sobre a causa desse fenômeno: um satélite carregado de altos índices de radiação, que estava em uma missão espacial em Vênus, é abatido pela NASA. Sem explicações, a radiação do satélite parece ativar áreas dos cérebros dos mortos que foram 6 Sigla em inglês para mutually assured destruction. 2350 enterrados recentemente, permitindo que levantem de seus túmulos e passem a buscar instintivamente por carne humana (A NOITE [...], 1968). No desfecho, depois da tentativa de uma fuga ser frustrada, os zumbis conseguem invadir a cabana e devorar os sobreviventes, exceto Ben. Ao amanhecer, passa a guarda nacional na cabana, avista Ben, confundem-no com um zumbi e o matam (A NOITE [...], 1968). Para a análise desse filme, é importante lembrar que em 1968, o mundo ainda estava em contexto MAD, a Guerra do Vietnã (1965-1975) estava longe de chegar ao fim; os movimentos feministas e dos negros eram intensos; e toda essa agitação iria estourar na França, em Maio desse mesmo ano. E é em meio a toda essa agitação que George Romero traz um filme com um negro e uma mulher de protagonistas e com mortos, que, sem explicação exata, levantam de seu túmulo, unicamente, em busca de carne humana (GUADAGNIN; ALMEIDA, 2008, p. 217232). Assim como em Mortos que matam, A noite dos mortos vivos transmite um forte ar apocalíptico, com paisagens desertas, e quando não, com zumbis perambulando por todos os lados. E ainda, a vaga explicação que é dada a origem dos zumbis, é embasada na queda do satélite com alto índice radioativo que estava em missão no planeta Vênus. Com isso, observa-se que o medo atômico e a discussão tecnológica ainda estão presentes no imaginário da época. Na época de seu lançamento, foram pensadas várias possibilidades de críticas contida no filme, como a volta dos mortos sendo uma alusão à volta dos soldados mortos no Vietnã; o clima de extrema tensão e de desentendimento dentro da cabana à decadência do núcleo e dos valores familiares; o protagonista negro como uma alegoria a luta contra a segregação racial. Porém o próprio George Romero, ao saber dessas discussões, assume que essas críticas não foram intencionais, e que não tira suas legitimidades (FERRERO; ROAS, 2011). Também existem elementos revolucionários para o cinema de horror em A noite dos mortos vivos. Além do tabu da decomposição, que já havia sido quebrado nas produções de horror europeias da Hammer films7, também é trabalhado o tabu do canibalismo. As cenas em que os zumbis devoram os vivos, roendo seus ossos e comendo suas vísceras, além de quebrar o tabu do canibalismo, traz a estética 7 Produtora independente britânica de filmes, especialmente, de horror. 2351 splatter/gore8 que viria a se tornar um subgênero dos filmes de horror, que permanece até os dias de hoje, juntamente com o arquétipo de zumbi, que acabou sendo formado após o lançamento desse filme (FILHO; SUPPIA, 2011). Por fim, voltando às mudanças nas características dos zumbis, de um filme para o outro, A noite dos mortos vivos juntamente com Mortos que matam, cuidaram para que o zumbi fosse totalmente desvinculado do sagrado e que se tornasse um zumbi laico, com anseios e instintos próprios (FILHO; SUPPIA, 2011). E, assim, George Romero pode ser visto como um feiticeiro que conseguiu animar seus zumbis através de todas as inquietações que viriam a estourar em Maio de 1968, um mês após o fim das filmagens de seu filme. Conclusão Retomando a ideia de Morin, de que o cinema é o sonho do homem que comunica com a realidade, é importante entender os diretores dos filmes também como sonhadores, não apenas os espectadores. Da mesma forma que o espectador projeta e identifica suas inquietações ao assistir um filme, o diretor faz o mesmo exercício para construir um filme. Os zumbis, os cenários, o enredo e todos os elementos dos filmes, consistem na simbolização de suas inquietações, originadas segundo sua percepção de seu contexto histórico. Assim como o homem não tem total controle de seus sonhos, o diretor não tem de seus filmes. Muitas das reflexões tidas por espectadores e críticos a respeito de um determinado filme podem não corresponder às intenções do diretor. Mas essa não correspondência nem sempre é capaz de tirar a legitimidade de tais reflexões. Um claro exemplo disso pode ser observado em A noite dos mortos vivos. O fato de um ator negro ter sido o protagonista do filme fez muita gente pensar que, com isso, Romero buscava trazer uma metáfora política e social referente à força dos movimentos negros da época. Mas o próprio Romero revelou que só havia escolhido Duane Jones para o papel por ele ter se mostrado o melhor ator (FERRERO; ROAS, 2011). 8 Cenas de violência extrema e explícita, caracterizada pelo grande apelo à exposição de sangue e entranhas 2352 É essa falta de controle que um diretor tem sobre seu filme que permite que ele seja algo atemporal. Nada impede, por exemplo, que através de todos esses filmes trabalhados neste texto, sejam feitas relações de seus diferentes zumbis com o homem e o contexto histórico do século XXI. Referências ÁVILA, C.F.D. Ensaio geral do fim: A crise dos mísseis soviéticos em Cuba foi o momento mais perigoso da Guerra Fria. (Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/ensaio-geral-do-fim. 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