CHANTAL RAYES Os amigos de Daniel Keith Ludwig, bilionário
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CHANTAL RAYES Os amigos de Daniel Keith Ludwig, bilionário
POR UM REAL A MAIS CHANTAL RAYES Os amigos de Daniel Keith Ludwig, bilionário americano, disseram que ele seria louco de se aventurar na Amazônia. Ele apostou com os amigos, e perdeu. O Brasil o humilhou. Jari foi seu único fracasso. J amais um homem havia se lançado até então em um empreendimento de tamanha envergadura. Mas a incrível epopeia brasileira do bilionário americano Daniel K. Ludwig teria um rápido fim na margem esquerda do Rio Amazonas. Em 1982, Daniel K. Ludwig deixou o Brasil se desfazendo de Jari, o gigantesco complexo agroindustrial construído por ele em plena Amazônia a partir de 1967. Os nacionalistas, tanto de direita como de esquerda, estavam em festa. O “imperialismo americano” perdera. Mas se Daniel K. Ludwig partiu; o ainda hoje chamado “projeto Jari” sobreviveu. Certamente, o silêncio recaiu sobre um dos empreendimentos mais denegridos da história recente da Amazônia, mas Jari e seu demiurgo ainda mexem com os sentimentos. Ludwig, vítima do Brasil ou predador? Jari, aposta louca de um visionário ou delírio colonialista? Em 1967, Daniel K. Ludwig, ainda que pouco conhecido do grande público, era um dos homens mais ricos da América. Recluso, “até misantropo”, diz Lucio Flavio Pinto, um dos raros jornalistas brasileiros a tê-lo conhecido, o timoneiro à frente da National Bulk Carriers – empresa de transporte marítimo e a fina flor de seu império – fugia das coisas mundanas, guardava com ciúmes o segredo sobre sua vida e seus negócios. Ele foi uma das raras personalidades, entre as setenta e duas mil que aparecem na quadragésima edição da Who’s Who in America, a ter se negado a fornecer até mesmo os detalhes mais insossos de sua biografia. Sua fortuna continua difícil de ser avaliada. Uns falam em quinhentos milhões de dólares, outros, de 3,5 ou até cinco bilhões, o que o colocaria automaticamente entre os mais ricos de sua época. Este self-made man, nascido em 1987 em Michigan, enriqueceu durante a Segunda Guerra Mundial. Frente à forte demanda de navios, ele teve uma ideia de gênio: em vez de montar as peças dos navios, ele decidiu soldá-las, reduzindo substancialmente os prazos de entrega. Mais tarde, ele seria o pioneiro do supertanque, o petroleiro gigante. Ludwig possuía também minas de carvão na Austrália, canteiros navais no Japão, criações na Venezuela, hotéis no Caribe, bens imobiliários na Flórida... Com setenta anos, ele poderia ter se aposentado. O que pode fazer um homem no esplendor de seu sucesso e já com uma idade avançada se lançar em plena selva? Esta pergunta intrigou os brasileiros e alimentou os mais bizarros rumores. A Amazônia – que se estende por sete países, entre os quais o Brasil, que detém 70% de sua superfície – inspira um poderoso nacionalismo, e o gringo, “o estrangeiro” que lá se aventura, uma grande desconfiança. Melhor dizendo: americana. Nos anos sessenta, as suspeitas são alimentadas por um estudo publicado na época pelo Instituo Hudson, uma arma intelectual americana, que previa a construção de grandes lagos na Amazônia para explorar melhor suas riquezas. O regime decide então intervir invocando o slogan “Integrar para não entregar”, “integrar” a floresta ao restante do Brasil para não cedê-la aos apetites estrangeiros, e decide colonizar seu deserto verde abrindo passagem para os deserdados do nordeste, assolados pela seca. É a época da construção da transamazônica, a estrada que rasgará a Amazônia, vai expor a uma destruição desenfreada e terminará por transformá-la em um vale-tudo. Pedaços de terra são distribuídos aos colonos (“a terra sem homens para os homens sem terra”, proclamava a propaganda oficial), isenções fiscais são oferecidas às empresas para a abertura de minas e pastos, ou ainda para o corte da madeira. Mas desenvolver uma região tão grande quanto a Europa Ocidental não é uma tarefa fácil, e Brasília decide recorrer ao capital estrangeiro, uma questão sempre delicada no Brasil. Os emissários são enviados à Europa e aos Estados Unidos, as multinacionais desembarcam na Amazônia. Até o boom da borracha (entre 1850 e Daniel K. Ludwig faz parte, portanto, 1910), a atividade econômica na região dos homens que responderam ao se resumia à caça e à colheita de produ- chamado do Estado brasileiro, o mestos da floresta. Tudo muda sob a ditadura mo que acabará, segundo seus partimilitar, entre 1964 e 1985. Os generais dários, a empurrá-lo para a saída. que tomam o poder temem o vazio. Euclides Reckziegel trabalhou para Imensa (pouco mais de cinco milhões ele. Na época, um jovem engenheide quilômetros quadrados somente na ro florestal recém-chegado do sul do parte brasileira, que Brasil, ele se lemperfazem 59% do bra de ter apertado Os generais que território nacional), a mão do patrão mas pouco povoada uma ou duas vezes, assumiram o poder e quase desprovida “um homem simde qualquer presen- tinham medo do vazio ples, que não tinha ça governamental, a jato privado” e viajafloresta, com seus abundantes recursos va em classe econômica. naturais, é vista como um ponto vulnerá- Várias vezes por anos, o patrão fazia vel a uma suposta ameaça internacional. a viagem de Monte Dourado, o centro NOVELA – OUTONO 2011 ^ Todas as ilustrações deste artigo são de Anne-Lise Boutin. urbano que ele havia construído pedaço por pedaço na floresta e onde sua empresa, a Jari Florestal e Agropecuária, montou seu quartel general. Euclides Reckziegel o defende ardentemente. A indignação trespassa sua voz: “seus amigos do clube de PAUSA SOBRE... golfe que ele frequentava em CHANTAL REYES Nova York lhe repetiam que ele Desde 2002 Chantal Reyes D seria louco de se aventurar na é correspondente do Jornal Libération e de mais dois outros Amazônia. Ele fez uma aposta jornais europeus no Brasil, Le com eles. Ele perdeu. O Brasil o Soir, de Bruxelas e Le Temps, de Genebra. Sua base fica humilhou. Jari foi seu único fraem São Paulo. Anteriormente casso”. trabalhou como correspondente no Líbano. No entanto, tudo havia começado bem. Em 1967, Ludwig prevê uma futura falta de celulose (utilizada na fabricação de papel) e de produtos alimentícios. Ele coloca na cabeça que vai dominar o mercado mundial, nada mais. No Brasil a terra é tão fértil que dá duas colheitas por ano. Mas as ditaduras não apetecem os fluxos de capital. O magnata americano vê nisso, ao contrário, uma garantia de “estabilidade”. Daniel K. Ludwig adquire, por três milhões de dólares, a empresa Jari Indústria e Comércio, dedi1 Jari, toda a verdade cada então ao comércio de madeira sobre o projeto de Ludwig, Marco Zero, e castanha do Pará. Entre os ativos 1986. da empresa, uma terra do tamanho de meia Bélgica: 1,6 milhão de hectares perdidos na floresta. Dizem que na virada do século XX, estas terras haviam sido tomadas do domínio público por um coronel de brutalidade lendária, José Júlio de Andrade. Elas se situam ao longo do rio Jari (na fronteira dos estados do Pará e do Amapá), uma localização estratégica para os desejos de Ludwig: como afluente do rio amazonas, este rio facilitava a exportação para a Europa e Estados Unidos. Ali, no meio do nada, Daniel k. Ludwig abre perto de cinco mil quilômetros de estradas, setenta quilômetros de ferrovias, um porto e um aeroporto. Ele funda assim Monte Dourado, onde vivem seus oito mil empregados e seus familiares. Com suas casas térreas de madeira, o local tem ares de subúrbio americano. Dotado de uma infraestrutura completa, é uma perfeita cidade. 242 243 POR UM REAL A MAIS Água corrente, redes de esgoto e eletricidade, coleta de lixo, escolas, hospital: Ludwig não economiza nos gastos. Ele age como o poder público, contratando até agentes de transito privados! O complexo agroindustrial de Jari compreende plantações de gmelina arborea – uma das espécies a partir das quais a celulose é obtida – arrozais ultramodernos conectados a uma usina de embalagem de arroz, manadas de búfalos e uma mina de caulim descoberta no local. Monte Dourado é concluído em 1979, com a espetacular fábrica flutuante de massa para papel, vinda diretamente do Japão por mar, em uma travessia que teria durado oitenta e quatro dias. A plataforma (que contava ainda com uma usina elétrica) chega a Jari em 28 de abril, sob o olhar incrédulo e maravilhado dos habitantes. “Em Brasília, Daniel K. Ludwig dispunha de um lobby influente que lhe havia garantido mais privilégios que qualquer outra empresa, brasileira ou não, conta o jornalista amazônico Lucio Flavio Pinto, autor de uma obra de referência sobre Jari1. Ele era amigo íntimo do homem forte do regime, o general Golbery do Couto e Silva. Ludwig havia se ligado também aos serviços do ex-capitão Heitor de Aquino Ferreira, o discreto, porém poderoso secretário da presidência da República, transformado em seguida em gerente do projeto Jari. O Estado brasileiro havia aceitado ser o fiador seus empréstimos e até mesmo – contrariamente às leis protecionistas – isentá-lo das taxas sobre a importação de sua usina, enquanto a indústria brasileira poderia fornecer equipamentos equivalentes. Para justificar este tratamento favorável, o governo havia invocado o interesse nacional: Jari deveria gerar divisas. Isso não aconteceu. As decepções não tardaram a chegar. Aos setenta anos, Daniel K. Ludwig tinha pressa. “Ele não queria morrer antes de ver seu projeto se concretizar”, relembra Euclides Reckziegel. Mas “em sua ânsia, ele multiplicou os erros, detalha Lucio Flavio Pinto. Ainda mais por que ele decidia tudo sozinho”. A floresta virgem é tombada – com escavadeiras, ainda por cima – o que empobrece o solo. A gmelina arbórea, espécie asiática de crescimento rápido e alto rendimento de celulose não se adapta bem ao solo amazônico. A árvore não demora a ser substituída pelo eucalipto e pelos pinhos, que tiram toda a vantagem competitiva de Jari. A cultura do arroz – “com fertilizantes químicos em vez do aproveitamento da riqueza das planícies aluviais do rio amazonas”, critica ainda o jornalista – é um fracasso total. Nas portas do complexo, a catástrofe social ameaça: os imigrantes sem recursos, atraídos pela promessa de um Eldorado, não param de chegar e se amontoam em condições deploráveis na favela do Beiradão. Em 1979, é a agonia. “A segunda crise do petróleo fez explodir o preço do bruto e as taxas de juros, prossegue Lucio Flavio Pinto. Ludwig havia cometido dois erros: ele havia contraído dívidas pesadas para levantar Jari e havia também baseado seu projeto em uma tecnologia muito dependente do petróleo”. Enquanto isso, não só por que o governo parecia dividido pela questão, o vento começava a virar em Brasília, onde o apoio ao homem de negócios americano se tonara insustentável. Quando o regime implanta uma política de “abertura” em prelúdio a um retorno gradual à democracia, NOVELA – OUTONO 2011 as pessoas começam a falar. Para a oposição de esquerda, Jari é o alvo ideal. Ela enxerga no projeto o símbolo da abertura da Amazônia ao capital estrangeiro, “uma ameaça à soberania nacional”. A oposição atinge o governo por meio de Jari. Ele não concedeu privilégios a uma empresa que monopoliza grandes áreas em um país onde – ainda hoje – a reforma agrária não foi feita? Quem desmatou nada mais que cento e vinte mil hectares? Quem utilizou intermediários obscuros, eles mesmos acusados de empregar ilegalmente e explorar vergonhosamente a mão de obra sazonal (cinco mil homens empregados nas tarefas de preparação da terra)? Pior, Ludwig confessava 244 245 POR UM REAL A MAIS claramente não ter nada a ver com o Beiradão. No entanto, de 10% a 15% de seus empregados ali se encontravam por causa da falta de acomodações suficientes em Monte Dourado. O blackout midiática não ajuda em nada. Daniel Ludwig não gostava da imprensa. Jari recusa a se comunicar, dando liberdade aos rumores mais insanos. Esta campanha “difamatória”, exalta-se Euclides Reckziegel, de tom xenofóbico, é orquestrada pela esquerda, mas também pela corrente ultranacionalista do exército assombrada pela “internacionalização” da Amazônia. Ludwig apareceria então como um traficante de ouro de madeiras nobres, um “pirata”. E Jari, onde numerosos cargos são ocupados por americanos, seria um “cisto cultural”, um “enclave imperialista” que abrigaria até um campo de treinamento de soldados americanos! Resumindo, uma ameaça à segurança nacional. Os serviços secretos infiltram um agente que se faz passar por engenheiro agrônomo. Os oficiais do exercitam multiplicam as incursões. Eles não achariam nada, apenas uma bandeira brasileira hasteada no aeroporto de Monte Dourado, o que lhes confortaria em suas suspeitas... Em 1980 a sorte de Daniel K. Ludwig estava selada. O Estado cria o Gebam (Grupo executivo para o baixo Amazonas) para afirmar oficialmente sua presença na região (na verdade, para pressionar Jari). Sua primeira medida, aliás, não tem outra função que a de questionar a validade do título das terras da empresa. O chefe do Gebam, o contra-almirante Roberto Gama e Silva, é um radical do exército. Gama e Silva não esconde isso de ninguém: ele não quer empresas estrangeiras nesta região “estratégica” situada perto de fronteiras internacionais (com o Suriname e a Guiana Francesa). O contra-almirante está certo de sua motivação: a região, repete incessantemente, é ameaçada há muito tempo. Ela teria sido até cogitada para a implantação do estado de Israel... Outrora bastante acolhedora, Brasília adota a postura de não atender às demandas de seu antigo protegido. Não à construção de uma central hidroelétrica, embora necessária para reduzir a fatura energética de Jari. Não à importação sem impostos de uma segunda usina de celulose – para dobrar a produção e tentar assim rentabilizar o negócio. Não à exploração de uma mina de bauxita na região. O governo se recusa igualmente a assumir os custos com infraestrutura em Jari, dos quais Ludwig não consegue mais dar conta. “‘Mas você não disse que faria tudo sozinho?’ lhe responderam” conta Euclides Reckziegel. Eis o Brasil preso na armadilha de suas próprias contradições. Pois, além de sua nacionalidade, é porque ele havia feito tudo sozinho durante treze anos que Ludwig não inspirava confiança. “As empresas estrangeiras inquietavam menos que as pessoas físicas, explica Lucio Flavio Pinto. Ludwig era uma pessoa física e, além de tudo, instalado na foz do Amazonas... as autoridades brasileiras tinham dificuldade em acreditar que um único homem, por mais rico que fosse, pudesse levantar um projeto de tamanha amplitude. Eles viam a mão de Washington, e até mesmo da CIA por trás de Ludwig, tantos contatos ele tinha no mundo da política. Após a derrota do Japão, o general MacArthur lhe havia cedido canteiros navais no país”. Um observador que exigiu anonimato transmite outra explicação: “A Amazônia é pobre, ressalta. Assim, quando uma grande empresa lá se instala, os poderes locais tentam criar dificuldades para obrigá-la a pagar. Ludwig recusou a se submeter à corrupção, isso contribuiu para sua diabolização”. Em 1982, Daniel K. Ludwig jogou a tolha. Nesta etapa, ele já havia enterrado setecentos e cinquenta milhões de dólares na Amazônia, sendo 60% de seu próprio bolso. “Ele não queria mais investir em fundos perdidos, conta Euclides Reckziegel. O governo lhe havia atado as mãos não aprovando os projetos que poderiam tornar Jari viável”. Lucio Flavio Pinto se recusa em vê-lo no papel de vítima. “Ludwig era um homem astuto, ressalta o jornalista. Depois da segunda crise do petróleo ele viu que sua dívida se tornara impagável. Ele procurou lavar as mãos reclamando novos privilégios que sabia Mas você que não seriam aceitos”. disse que Com sua partida, o Brasil, que havia sido fiador de sozinho? seus empréstimos, teve que assumir por aproximadamente 300 milhões de dólares de dívida. “Mesmo seu próprio país não teria consentido”, acrescenta Pinto. Em troca, Ludwig partiu sem ganhar um centavo. Ele morreu em 1992, deixando o resto de sua fortuna ao instituto de luta contra o câncer que leva seu nome, em Zurique. Daniel K. Ludwig não foi o primeiro americano a se aventurar na Amazônia. No começo dos anos trinta, Henry Ford abriu, naquilo que ficaria conhecido como Fordlândia, no Pará, plantações de seringueiras para garantir seu abastecimento de borracha. O caso também acabou em fracasso. “Jari, como a Fordlândia, resultaram de uma falta de conhecimento da Amazônia, retoma Lucio Flavio Pinto. Havia ali uma visão colonialista segundo a qual com capital e tecnologia era possível domar a floresta”. Brasília não queria mais uma Fordlândia, abandonada após a partida de seu fundador e retomada pela floresta. “Isso levaria a pensar que a política de desenvolvimento da Amazônia era um fracasso”. Argumenta o ministro do plano na época, Antonio Delfim Netto. Além disso, o que fazer daqueles que dependiam, diretamente ou não, das atividades de Jari? Não optando pela nacionalização, temendo o clientelismo e a corrupção, o governo obrigou um NOVELA – OUTONO 2011 grupo de patrões brasileiros a retomar Jari, em nome do “interesse nacional”. Sem resultado. A administração brasileira não conseguiu reerguer o negócio. não faria tudo Em 2000, Sergio Amoroso, chefe do grupo Orsa, compra o projeto de Daniel K. Ludwig (“a melhor infraestrutura de toda a Amazônia”, justificaria então) por um real simbólico. Em troca, assume uma dívida que crescera no entretempo e atingia quatrocentos e quinze milhões de dólares. O sucessor de Ludwig ambicionava reescrever a história de Jari. Sergio Amoroso afirma já ter investido duzentos e cinquenta milhões de dólares nesta tentativa de ressurreição e conta dobrar o investimento para se tornar competitivo. Porque, apesar a indulgência de seus credores – essencialmente bancos públicos – que consentiram aliviar a dívida quase pela metade, a empreendimento ainda não é rentável. Mas o industrial paulista não tem pressa: “na Amazônia, o capital precisa ser paciente”. A falta de infraestrutura encarece custos de produção. A mítica Na Amazônia, o os usina de massa para papel ainda capital precisa ser está lá, sustentada por suas quapaciente renta mil estacas de madeira, mas ela envelheceu. A fatura de energia (novamente ela) é muito pesada. Trinta anos após Daniel K. Ludwig, o estado acaba de dar seu aval, em junho de 2011, para a construção da central hidroelétrica... Por outro lado, por razões “ideológicas”, acusa Amoroso, a propriedade da terra ainda não Duzentos e vinte mil euros. está totalmente regularizada. “É como se não pudesse haver propriedades tão grandes”. Sem dúvida uma alusão à esquerda que hoje governa o Brasil. Sergio Amoroso se toma por um industrial esclarecido. Ele apresenta Jari como “o maior laboratório ambiental e social do mundo”. “No tempo de Ludwig, havia a cultura do desmatamento, explica. Hoje, tentamos realizar negócios preservando a floresta e nos preocupando com o destino das comunidades locais”. 2 246 247 POR UM REAL A MAIS O grupo Orsa pratica a silvicultura sobre a metade dos 1,1 milhões de hectares de floresta virgem preservados pelo pioneiro americano e planta o eucalipto (para produção de celulose) em uma parte dos cento e vinte mil hectares que ele havia desmatado. O empreendimento obteve o certificado de desenvolvimento durável do Forest Stewardship council, prezado por seus principais mercados de exportação, a Europa e os Estados Unidos. “O mundo deve nos ajudar a preservar a Amazônia pagando um preço justo pelos produtos ecologicamente corretos provenientes da floresta, prega Amoroso. Caso contrário, desaparecerá”. A Orsa, por sua vez, tenta contribuir ajudando as populações rurais que vivem na floresta do Jari a aumentarem sua renda, para dissuadi-las de cortar as árvores. A empresa ensina a estas famílias, que vivem da colheita de produtos florestais ou de culturas de alimentos, a aumentarem sua produtividade e compra sua produção principalmente para seu restaurante, que serve seis mil refeições por dia a seus três mil e quinhentos empregados. O programa teria multiplicado por dez a renda mensal dos beneficiários. O objetivo é estendê-lo ao conjunto de 15 mil trabalhadores rurais da região. A Orsa encontra mais dificuldades em Laranjal do Jari, o antigo Beiradão. Se Laranjal tornou-se um município completo, ele continua sendo um polo de pobreza e prostituição infantil. “Nós tentamos uma parceria social com a prefeitura, mas ela não fez a sua parte do trabalho, suspira Amoroso. Investimos quinhentos mil reais2 para nada”. O empresário lamenta que os poderes públicos da região, assim como a população local vejam nele apenas uma “caixa registradora”. “Ludwig criou esta cultura de injetar muito dinheiro, diz Amoroso. Então as pessoas pensam que nós devemos garantir tudo: saúde, saneamento básico, educação... isso é tarefa do Estado, um Estado infelizmente muito ausente. Nenhuma empresa pode resolver sozinha os problemas sociais”. Para Roberto Smeraldi, diretor da an- disseminar o progresso, constata: “os tena brasileira da ONG Os amigos da militares só desenvolveram enclaves, terra, o balanço social da Orsa é “um sobretudo ligados aos interesses esdos melhores exemplos que temos na trangeiros aos quais diziam se opor. O Amazônia, sobretudo no que tange polo de Carajás é dedicado ao minério a realidade da região”, de ferro, o de Barcarena, marcada pelo desmataao alumínio, mas é fora mento que já consumiu Brasil que estes proA Amazônia é o do mais de 15% da parte dutos de base são transbrasileira da floresta. lugar para onde o formados e que se cria a “A Amazônia é o lugar Brasil envia seus mais-valia”. Em volta despara onde o Brasil mantes enclaves que formam pobres da seus pobres, retoma. os territórios das empreEles permanecem posas, é só desolação. “Sebres porque nunca há jam privados ou públicos, uma política de desenvolvimento re- os grandes projetos que se estabelegional” para atender as necessidades cem na Amazônia produzem impactos de uma população de vinte e quatro consideráveis que não são levados em milhões de habitantes e especialmen- consideração”, Continua Roberto Smete dos aproximadamente oito milhões raldi: o afluxo de imigrantes pobres a que vivem na floresta. O especialista regiões desprovidas de serviços púdefende um modelo em que a pes- blicos, favelização, disputas por terriquisa esteja a serviço da uma explo- tórios, acerto de contas... Como Jari ração sustentável da biodiversidade na sua época, com o Beiradão. Como local, a mais rica do mundo, em vez Jirau hoje, a barragem que a GDFda extração e das culturas predadoras -Suez constrói no estado de Rondônia. de matérias-primas (madeira, soja, E como será amanhã sem dúvida em bauxita...) em curso atualmente. Con- Belo Monte, outra barragem polêmica sagrado pela ditadura, o modelo atual – um projeto herdado dos militares – destruiu ecossistemas, violou os direi- que o governo de Dilma Rousseff, do tos ancestrais dos índios, deslocou mi- partido dos trabalhadores, apressa-se lhares de ribeirinhos... Sem conseguir a construir sobre o rio Xingu. 1978 – 1912 1927 – 1944 George Earl Church Projeto iniciado em 1878, concluído em 1912. OS GRANDES CEMITÉRIOS A VIA DA BORRACHA 1967 – Henry Ford Projeto iniciado em 1927, abandonado em 1944. 1970 – Daniel K. Ludwig Projeto iniciado em 1967, ainda em atividade. Exército brasileiro Projeto iniciado em 1970 pelo regime militar, atualmente abandonado. INDUSTRIAIS FORDLÂNDIA O PROJETO JARI A TRANSAMAZÔNICA Estrada de ferro na Amazônia. Produção de borracha. Produção de celulose e arroz. Estrada que atravessa o Brasil de leste a oeste. A Europa e os Estados Unidos continuam fazendo sua revolução industrial. Eles precisam de borracha. Uma das maiores regiões produtoras se encontra do outro lado do mundo, no fundo do Brasil, perto da fronteira boliviana. Para levar o produto até uma via navegável, é preciso atravessar 400 quilômetros de floresta amazônica. Um ex-coronel americano se lança na empreitada. O projeto é interrompido ao fim de 18 meses e já carrega profundas marcas de fracasso: 500 mortos para 7 quilômetros de estrada de ferro, 1 navio perdido, e operários desaparecidos. No entanto, a construção é retomada em 1907. A organização paramilitar não impede que a morte apareça em uma região em que a natureza e os índios se mostram particularmente nãohospitaleiros. Mas a estrada de ferro é concluída, apesar de tudo, em 1912. Tarde demais. No meio tempo, um cientista britânico conseguira enviar clandestinamente cerca de 70.000 sementes de seringueira ao Kew Gardens de Londres. Os brotos são reproduzidos e, depois de alguns esforços, as árvores se adaptaram ao clima asiático. A corrida da borracha sul-americana desmorona. A estrada de ferro nunca utilizada. A borracha asiática (malaia) está monopolizada. Os britânicos fixam os preços. Henry Ford, exaltado, lembrase que a seringueira é proveniente da floresta amazônica. Ele compra um imenso terreno de mais de 10.000km2 e instala o sonho americano sobre um solo pobre: casas, igrejas, golfe, lanchonetes de hambúrgueres, tudo, sem álcool e sem tabaco. Algumas revoltas surgirão desse paternalismo civilizador: “nós queremos carne seca e viradinho!” gritam os operários. A alguns quilômetros, a “ilha da inocência” fora da proibição fordiana, acolhe os insatisfeitos. O regime alimentar muda, mas a produção de borracha permanece fraca. As seringueiras, plantadas muito próximas umas das outras são vítimas de uma doença, a dothidela ulei. Em 1945, Ford abandona sua cidade no momento em que os Estados Unidos resolvem relançar a borracha brasileira – com os japoneses controlando o mercado asiático. Autodidata tão discreto quanto megalomaníaco, Daniel K. Ludwig prevê nos anos cinquenta que faltarão papel e alimento no mundo. Incentivado por militares brasileiros, ele compra às margens do rio Jari um território do tamanho de meia Bélgica. O empresário traz do Japão uma central termoelétrica e uma usina flutuante de massa para papel. Constrói 5.000 quilômetros de estradas, 70 quilômetros de estradas de ferro, um porto e um aeroporto; derruba as árvores, planta arroz, inaugura uma serraria, criações de boi; constrói estradas e caminhos de ferro. O projeto é um fracasso. Ludwig é expulso por uma campanha nacionalista e capitula, mas Jari tornara-se muito grande para ser abandonada. Após ser vendido para um consórcio brasileiro, o grupo Orsa compra Jari por um real simbólico. Segundo o Jornalista Ricardo Uztarroz, “Jari parece confirmar a lei segundo a qual a Amazônia é exuberante, contanto que o homem não se intrometa”. Dominar a Amazônia é um velho sonho dos militares brasileiros. Fronteira da América do Sul, é preciso conquistar e domar essa “terra sem homens para os homens sem terra”. Mas na época, faltam recursos. A maioria dos 5.700 quilômetros não é asfaltada. Na estação das chuvas, de outubro a março, passa-se uma semana sem que se veja um veículo. Algumas crateras podem engolir um caminhão. Perto de Itaituba, em pleno coração da Amazônia, o que sobra da estrada está reduzido a 2 metros de largura. Não entanto, a floresta não a retomou. De vez em quando algumas de suas partes são reformadas e nos trechos transitáveis o homem se instala e a floresta recua. Sem dúvidas ainda serão precisas algumas décadas antes que a transamazônica mereça seu nome. No momento, ela pertence aos aventureiros. “A vida de um homem colocada em dormentes”, segunda a lenda, nenhum trem chegou a circular na estrada de ferro. 4 cerca de 20 bilhões de dólares. 750 toneladas de borracha por 10 anos de esforços. um terreno comprado por 3 milhões de dólares e vendido por um real simbólico. 4 milhões de dólares investidos por um projeto abandonado. CUSTO CUSTO CUSTO CUSTO MEGALOMANIA MEGALOMANIA MEGALOMANIA MEGALOMANIA IMPACTO AMBIENTAL IMPACTO AMBIENTAL IMPACTO AMBIENTAL IMPACTO AMBIENTAL “Nós vamos mostrar um pouco do que é a floresta virgem, os rios gigantes, o mato, a selva, o sol, os trópicos, o homem branco que desembarca nisso tudo, doma a região e a transforma em sua nova pátria.” Blaise Cendrars, Trop c’est Trop