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............................ © Copyright 2012, Flávio Marcus da Silva. Flávio Marcus da Silva Capa: Kythão 1ª edição 1ª impressão Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma -, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização de Flávio Marcus da Silva. O MISTÉRIO DA CAIXA-PRETA E OUTRAS HISTÓRIAS Virtualbooks 2 ............................ ............................ O soar da Trombeta / 128 ÍNDICE Quatro / 132 Felizes acima do peso / 05 Iogurte com aveia / 136 Olho gordo / 09 No clube de escritores / 140 Amar Deus / 14 No avesso de mim / 144 Realidade gritante / 19 Subindo na vida / 146 Muito esquisito / 22 Bicho feroz / 149 Pôr do sol no campo / 27 Antes do fim / 153 A pescaria / 31 Felicidade / 36 Descendo do salto / 41 Soberba / 46 Pombos / 50 Flores brancas na noite escura da alma / 54 Labaredas na Escuridão / 60 Na voz de Amália / 66 Partir / 72 Café com ingleses / 77 O mistério da caixa-preta / 84 O sol então brilhou mais forte / 96 Outro caminho / 101 Não foi preciso matar ninguém / 105 Para ter certeza / 111 Das profundezas / 118 Comadre seca / 124 3 4 ............................ Felizes acima do peso Na festinha de aniversário da filha de um conhecido advogado na cidade, o jovem professor e sua esposa dividem a mesa com um casal de amigos. Eles não têm filhos, mas vieram assim mesmo, por vir. Para cumprir o social. ............................ charme a mais, tornando-o até mais bonito e sexy. Mas sua mulher não concorda com isso de jeito nenhum. Quer vê-lo magro, sem barriga, sem bunda, sem coxa, sem aquele harmonioso preenchimento de gordura que disfarça os ossos salientes do rosto, tornando sua face mais redonda – e mais atraente, na opinião das colegas. Quer vê-lo na balança digital do quarto todos os dias, anotando o peso, calculando o índice de massa corporal e as calorias ingeridas. O prato com coxinhas, empadas e canapés acaba de chegar. As crianças brincam no parquinho longe dos pais, que nas dezenas de mesas espalhadas pelo enorme salão colorido conversam ao som de Xuxa e Balão Mágico. O professor olha para a sua linda e jovem esposa – os cabelos negros, lisos e brilhantes, a pele clara, de uma palidez de conto de fadas – e sente no peito uma dor difícil de explicar, porque não dói: algo como uma nuvem densa e fria, quase gelada, preenchendo os espaços entre o coração e os pulmões, indo até a garganta e voltando, indo e voltando, lentamente. A caminhada é um ritual diário sagrado na vida do casal. Pelo menos para a mulher. Porque para ele é uma tortura das mais difíceis de suportar. Ele simplesmente odeia cada segundo passado na avenida, onde caminham todos os dias, faça chuva, faça sol, morra parente – morra quem quer que seja –, acabe o mundo: eles estão lá, no mesmo ritmo, a passos largos, rápidos, em silêncio. Um silêncio pesado e triste que ele preenche conversando baixinho consigo mesmo, preparando aulas, imaginando-se longe dali, em qualquer outro lugar, comendo um pastel, um crepe ou uma torta de limão. Mas, como eu disse, o pratinho com coxinhas, empadas e canapés acaba de chegar. É a angústia. A esposa não conversa. Observa os amigos do marido com desprezo. Não sabe o que está fazendo ali, nem por que está casada com um professor pobre e acima do peso. Justo ela, que é tão magra, linda e saudável, e ainda por cima de estirpe nobre, pois seu pai, embora falido, é tataraneto do Marquês de Itamaracá. Na opinião de algumas colegas de trabalho do jovem professor, aquela barriga levemente inflada esticando a camisa de malha tamanho M, que a esposa insiste em fazê-lo vestir (quando está claro para todos que a G é a única possibilidade), é um 5 Com um olhar fulminante, a esposa faz o marido se lembrar do pacto selado entre eles há duas semanas: nada de gordura, nada de fritura e nada de açúcar. Discretamente ela lhe faz um sinal com a mão, mostrando-lhe a bolsa de couro que ela traz no colo, onde duas barras de cereal se encontram sequinhas, durinhas, com seu gostinho inconfundível de capim seco. Como é sábado, os nomes dos sabores podem variar: trufa e torta de morango (mas no fundo é tudo a mesma coisa). 6 ............................ O combinado era que, quando a fome apertasse, ele pegaria discretamente uma das barras e se dirigiria ao banheiro para comê-la. Simples e prático. Mas nesse momento a nuvem densa e fria que cresce em seu peito fica mais pesada e escura (de um cinza quase preto), cheia de ódio e desilusão. E nela surgem raios e relâmpagos, que aos poucos vão quebrando a crosta que serve de fachada para esse casamento infeliz, sacudindo a alma faminta de vida desse jovem quase gordo. E ele toma uma decisão. Olha desafiador para a esposa (que o encara com determinação e frieza) e lentamente pega uma coxinha. Não é daquelas coxinhas vagabundas, frias e emborrachadas, que viram uma pasta sem gosto antes mesmo de se misturarem à saliva. Não. É coxinha frita na hora, firme, sequinha por fora, com recheio abundante de frango e catupiry. Ele dá a primeira mordida. Sente seus dentes quebrarem a fina capa crocante e penetrarem lentamente a maciez tenra da deliciosa massa recheada. E nesse momento de sublime deleite, um pouco de catupiry escorre pelo seu queixo. Ele sorri e passa o dedo no creme, que leva à boca com sofreguidão, sorvendo tudo com um estalar de língua molhada que faz a esposa tremer de indignação e ódio no mais íntimo do seu ser. Os olhos da mulher estão em chamas. Mas ele continua. Um canapé inteiro desaparece na sua boca de uma só vez. E outro. E mais outro. Mais uma coxinha. Uma empada. Um copo de coca-cola bem gelada (da legítima, com açúcar). E outro. E 7 ............................ mais outro. E mais uma coxinha. E depois dos parabéns, uma mão cheia de doces, sob o olhar atônito da esposa (que não acredita no que vê). Do bolo ele come dois pedaços, saboreando-os com uma alegria de dar gosto. O olhar resoluto e frio da esposa diz tudo. Ela se levanta e, sem se despedir de ninguém, desaparece da festa. Ao chegar em casa, o professor descobre que a mulher foi embora levando todas as suas roupas e objetos pessoais. Dois dias depois ele recebe a visita de um advogado, que lhe explica todos os detalhes do divórcio. Ele aceita tudo sem reclamar. Finalmente está livre. O divórcio deixa-o mais pobre e um pouco mais gordo, mas muito mais feliz. Três semanas depois ele começa a namorar a nova professora de História do colégio, uma mulata linda de morrer, cheia de carne para pegar e de amor para dar. Comem de tudo, reservando as guloseimas mais calóricas para os finais de semana, e exercitam-se na cama quase todas as noites, o que ajuda a manter o excesso de peso num nível aceitável. Ele adora suas ancas largas, sua bunda redonda e volumosa e até suas celulites. Formam um casal perfeito... Acima do peso... Mas felizes... Muito felizes. 8 ............................ ............................ E quando elas descobriram o Facebook? Olho gordo Ah, o Facebook... Elas eram amigas, mas morriam de inveja uma da outra. Uma inveja febril, dolorosa e intensa, mas que elas sabiam disfarçar muito bem. (É que a maioria das pessoas não consegue perceber o mal no brilho do olhar). Como era bom se exibir, colecionar amigos, gente curtindo, comentando, e a outra assistindo a tudo, morta de inveja. Eram jovens, lindas e de um nível social elevadíssimo, muito acima do que os economistas costumam chamar de Classe A: um mundo à parte, cercado por muralhas, grades, guaritas e seguranças armados 24 horas. Na opinião dos psicólogos, quem utiliza esse recurso visando a criar uma imagem positiva de si para o mundo, embora diga que o que sente é simplesmente prazer em compartilhar com os amigos os momentos bons da vida, no fundo o que lhe move o espírito é um desejo ardente de causar inveja no outro, de se destacar, de aparecer. Tinham quase a mesma idade. Eram casadas com dois irmãos gêmeos, jovens como elas, herdeiros do mesmo império: um enorme conglomerado de indústrias espalhadas pelo mundo todo. Era dinheiro que não acabava mais. Elas eram desse tipo, mas jogavam num nível muito mais alto que o dos simples mortais. E a inveja... Uma inveja que ardia por dentro, apesar dos sorrisos encantadores, que vinham sempre acompanhados de elogios, abraços e beijinhos: “Você está linda”, “Que cabelo!”, “Onde você comprou o vestido?”. Mas por dentro era pura brasa ardente: fogo azul, frio, queimando, espetando, como farpas incandescentes. Elas procuravam sempre dar destaque aos detalhes que realçavam e valorizavam uma em detrimento da outra: um vestido, uma viagem, um cabelo, uma festa, uma façanha, e faziam questão de exibi-los com acinte, sobretudo onde a outra se encontrava, ou pelo menos fazer a informação chegar a ela da forma mais ostentosa possível. 9 Enquanto nas zonas baixas da arraia-miúda pululavam viagens a Castelhanos, Rio das Ostras, Cabo Frio e Caldas Novas, na camada onde as duas navegavam, as fotos revelavam nada menos que restaurantes sofisticados em Paris, Praga, Genebra e Nova York; cruzeiros de luxo no Mar Mediterrâneo e no Caribe; cassinos em Las Vegas e Monte Carlo. E elas postavam as fotos como jogavam cartas numa partida de poker: “Cubra essa agora, vagabunda”. “Agora eu quero ver”. E as cartas eram lançadas na mesa: viagens, festas, jóias e também amigos importantes curtindo suas futilidades de luxo, como governadores, ministros, grandes empresários e artistas de renome: um puxa-saquismo de alto nível, requintado, sem erros de português. Bastava uma delas postar “Dudu me deu hoje um relógio cravejado de diamantes” para que um bando imenso de puxa-sacos curtisse a foto, alguns chegando até a comentá-la! 10 ............................ O interessante é que as duas curtiam as postagens uma da outra. Algumas vezes elas hesitavam, indecisas, os olhos faiscando de ódio, mas curtiam assim mesmo, para mostrar amizade. E quando já tinham uma carta guardada na manga, comentavam felizes as vantagens que a outra contava, mas sabendo que em breve o jogo viraria. Até que um dia uma delas postou: “Estou grávida”. Para a outra, que nunca tinha pensado em ter filhos, foi quase o fim do mundo. O marido foi convencido naquela noite mesmo a engravidá-la, porque se para a outra estar grávida era uma vantagem, ela também tinha que engravidar, mesmo que no fundo não desejasse isso. Muito mais fácil seria destacar as inúmeras desvantagens de ter filhos, dizer a verdade: “Eu e meu marido não queremos ter filhos por isso e aquilo”. Mas não. Ela optou por engravidar também, com medo das pessoas acharem que ela afirmava não querer ter filhos porque não podia ter, por ser estéril. Nunca, jamais ela poderia ser estéril! Mas era. Eles tentaram, tentaram, tentaram e nada. Consultaram um especialista renomado nos Estados Unidos e receberam o diagnóstico com lágrimas nos olhos: ambos eram estéreis. O marido não tinha nenhum espermatozóide aproveitável, e ela tinha o útero completamente atrofiado e seco. Enquanto isso a outra postava as fotos de sua bela gravidez planejada, desejada, esperada. Cada etapa vivida com uma alegria inexprimível, o marido feliz, junto dela, o quartinho do bebê sendo montado aos poucos, com tudo do bom e do melhor, e a barriga crescendo, o corpo se transformando... E 11 ............................ para ela nada mais importava, nem as fotos que a amiga colocava diariamente em seu álbum mostrando cenas dela e do marido escalando montanhas, saltando de paraquedas, exibindo corpos perfeitos – coisas que uma mulher grávida não poderia fazer, mas que, para ela, com um filho crescendo na barriga, plena de uma felicidade que só uma mãe pode sentir, não tinham a menor importância. E aquela indiferença da futura mãe fazia com que a inveja doentia da outra ganhasse proporções terríveis. Brasas em chamas. Labaredas que ardiam e cresciam, tomando conta dela toda, saindo pelos olhos em faíscas que brilhavam com intensidade (mas que pouquíssimas pessoas conseguiam perceber). No sétimo mês de gravidez as duas se encontraram numa festinha boba, na casa de um amigo. Estava lá um rapaz que não era conhecido de nenhum dos convidados, um professor particular de matemática que havia conseguido um verdadeiro milagre na escola com o filho do dono da casa. Ele estava sentado sozinho no sofá, bebendo uma taça de vinho tinto, a cabeça vazia de pensamentos, completamente em paz consigo mesmo. Mas assim que a mulher grávida entrou no apartamento, ele sentiu uma forte energia negativa concentrando-se aos poucos no bebê que a jovem carregava orgulhosa e feliz na barriga. Ele sentia essas coisas desde pequeno. E quando as sentia, rezava. Rezava até passar. Tinha muita fé em Santa Teresa de Ávila. Mas aquilo... Aquilo era demais... Ele então procurou a fonte da energia e levou um susto ao perceber um brilho estranho e forte nos olhos da mulher que, 12 ............................ dentre todas as pessoas que estavam na festa, parecia ser a mais feliz com a chegada da futura mamãe. Ela sorria e dizia “Que linda!”, “Que barriga linda!”, mas seus olhos estavam em chamas e cresciam, cresciam... Ninguém via isso, só ele. E a felicidade da jovem mãe só fazia aumentar a força do mal que aos poucos envolvia a sua barriga. Durante toda a festa, os olhos vivos de carne e sangue da invejosa poucas vezes se dirigiram à amiga. Mas seus olhos do espírito, gordos, em chamas, que só o jovem professor conseguia ver, atravessavam móveis e paredes e não se desgrudavam da bela barriga cheia de vida nova se fazendo, surgindo, crescendo. Até que a mulher grávida não aguentou e caiu no chão, com fortes dores, gritando. Todos foram até ela para socorrê-la, inclusive a amiga, que demonstrava preocupação e queria ajudar – Tragam isso, tragam aquilo, vai ficar tudo bem, querida. Mas isso na máscara visível, na encenação, porque o professor estava de olho nela e viu. Viu seus olhos crescerem quase do tamanho do próprio rosto, e aquela energia escura (ele viu!), tão densa que ele quase podia tocá-la e enrolá-la no braço, como um tecido grosso, molhado e frio. Então ele disse, com as mãos na barriga da mulher caída: “Todos vocês, rezem comigo”. E de seus lábios saiu uma bela oração de Santa Teresa de Ávila. Rezou com muita fé, e foi seguido por todos, até pela invejosa, que aos poucos foi perdendo a força, seus olhos se encolhendo, voltando para as órbitas, e a dor na barriga da jovem grávida foi passando, passando, até desaparecer. ............................ Amar Deus Lucas é casado com Sofia, uma jovem alegre e calma, de uma beleza simples, quase feia. (Mas como brilham seus olhos de amor e generosidade! Como é iluminada!). Lucas é professor de Literatura e escreve uma tese sobre Clarice Lispector. É jovem também, mas tem se descuidado um pouco de seu aspecto ultimamente, o que o faz parecer mais velho e também mais feio do que realmente é. Mas é um bom rapaz, humilde, quase sem ambições, o que faz dele um alvo privilegiado para as cobranças dos parentes, sempre prontos a chamá-lo de preguiçoso quando percebem que ainda não trocou de carro, não viajou para este ou aquele balneário da moda ou não comprou uma televisão nova (daquelas que todo o mundo tem, menos ele). É que Lucas só trabalha em um colégio, no turno da manhã, e não dá muitas aulas, porque quer se dedicar mais à sua tese e ao trabalho voluntário que realiza no Hospital do Câncer, contando histórias para as crianças. Lucas é apaixonado pela obra de Clarice Lispector, e escreve uma tese sobre ela por puro prazer, sem nenhuma ambição intelectual ou vontade de ingressar como professor em uma universidade. Na verdade, Lucas quer ser escritor de ficção. Quer escrever contos e romances de aventura. Já tem algumas histórias concluídas, mas elas ficam guardadas, em segredo. Só duas pessoas sabem desse seu desejo: sua esposa Sofia (que o alimenta com carinho, para que um dia floresça na forma de 13 14 ............................ um belo livro publicado) e um jovem chamado Oscar, filho de um grande amigo seu, um poeta, já falecido. ............................ Lucas sabe que se não interromper a leitura agora não chegará a tempo de assistir à apresentação do filho. Oscar é cego desde os cinco anos. Hoje, aos dezoito, sentado sozinho na varanda da sua casa, aguarda a chegada de Lucas, que lê para ele todos os sábados. Oscar estremece a cada frase lida pelo amigo, tocado pela força e beleza do texto, que ele sente vibrar fundo em sua alma. Chora por dentro, segurando junto ao peito o último livro de poemas do pai, entregue hoje cedo pela editora. Oscar conhece Braille, que aprendeu ainda criança, e está sempre ouvindo algum CD com romances e contos gravados, mas gosta muito das leituras de Lucas, que além de ter uma presença reconfortante, dá vida aos textos de uma maneira extraordinária. (É que Lucas lê com amor, sem querer nada em troca). Oscar está sozinho com Lucas. Enquanto lê, Lucas segura a mão gelada e trêmula do amigo, esforçando-se para não perder a concentração. A mãe de Oscar disse que chegaria por volta de cinco e quinze, mas até agora nada. Oscar é um rapaz solitário e triste. Faz tratamento para depressão. E segundo o psiquiatra que o trata, as leituras de Lucas, todos os sábados, fazem muito bem a ele. Gabriel é filho de Lucas e Sofia. Tem seis anos, é esperto, inteligente, e hoje está muito feliz porque vai se apresentar no sarau da escola, onde fará uma homenagem ao pai. Lucas explicou a ele que não poderia assistir ao início do sarau, pois estaria na casa de Oscar, mas que chegaria a tempo para ver a sua apresentação, às dezoito horas. Lucas está agora na casa de Oscar, sentado numa confortável poltrona de couro, lendo para ele “A paixão segundo G.H.”, de Clarice. Faltam quinze minutos para as dezoito horas. 15 Lucas vai à cozinha e tenta ligar para a esposa, sem sucesso. Com certeza o celular dela está desligado, pois o sarau já começou. Volta para a sala e recomeça a leitura, ouvindo dentro de si um apelo mudo para que ele não vá embora, para que não deixe ali, no silêncio de uma leitura interrompida – de um livro mágico e perturbador que não permite interrupções –, um jovem cego, sozinho, mergulhado na escuridão da própria dor. E continua... Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos. 16 ............................ E continua... Chega em casa às oito da noite, levando um exemplar do último livro de poemas de Amadeu Rodrigues, seu falecido amigo: uma bela edição em capa dura, presente de Oscar. Amadeu... O velho e querido Amadeu... Poeta solitário, homem simples, que poucos viam e quase ninguém conhecia. Lucas pensa no amigo com afeto, buscando na memória uma imagem que o traga de volta, mas tudo que lhe vem é uma alegria doce que se abre toda num sorriso. De repente, Gabriel vem correndo do quarto, com os olhos brilhando de alegria, e lhe dá um abraço apertado. Sofia aparece logo em seguida e faz um sinal com o dedo, pedindo silêncio ao marido. ............................ palco, o seu rosto. O SEU rosto, Lucas! Ele até sorriu e acenou para o homem... Um desconhecido! Na hora eu achei estranho, pensei que fosse para mim, mas vi que o homem acenou de volta, sorrindo... O que foi? Lucas pega o livro de poemas que está sobre a mesa. Abre-o na página onde há uma foto do autor e pergunta: É ele? Olhe bem... Sim, diz Sofia espantada.Você o conhece? Lucas sente um arrepio lhe percorrendo o corpo e seus olhos se enchem de lágrimas – lágrimas de alegria e gratidão. Este é o Amadeu, Sofia... O velho e querido Amadeu... Gabriel volta para o quarto e Sofia explica: Ele viu você ao meu lado hoje no sarau, durante toda a apresentação, e depois, no portão, não te encontrando, perguntou onde você estava. Eu ia dizer que você não tinha ido ao sarau, quando o homem que estava ao meu lado no auditório, sentado onde você certamente estaria, apareceu do nada e disse para o Gabriel, cheio de ternura, que você tinha ido ajudar um amigo e que nos encontraria em casa. O homem me olhou sorrindo, e aquele sorriso me calou... Sofia se aproxima do marido, maravilhada, e continua: Dá para acreditar, Lucas? O Gabriel viu no rosto daquele homem simpático, sentado ao meu lado, a poucos metros do 17 18 ............................ Realidade gritante Sozinho em casa o mês inteiro lendo, escrevendo e vendo filmes de terror. A família de férias no litoral. Nenhum telefonema. Ninguém chamando no interfone. Solidão perfeita. Era o que ele queria. Saía só para comprar comida e alugar filmes. À tarde, por volta de cinco horas, fazia um café bem forte. E assava pão de queijo. Que ele recheava com queijo Gorgonzola e presunto de Parma. A televisão ficava ligada o tempo todo. O som também. Só música clássica e jazz. À noite ele preparava um talharim ‘al dente’. Cada dia com um molho diferente, mas sempre com muito azeite. E bebia vinho tinto. Vinho bom. Comprava garrafas pequenas, porque não suportava vinho na geladeira. Só na sexta-feira ele abria uma grande. E tinha que ser uma obra de arte. Categoria três dígitos. Ou seja: jamais custar menos de cem reais. Comia sobremesa todos os dias. Torta holandesa. Manjar. Pavê de chocolate. Tinha trinta e cinco anos. Saúde perfeita. Bonito. Muito dinheiro. Era empresário, mas quem tocava o negócio era seu irmão mais velho, liberando-o para fazer o que ele realmente gostava: escrever. Ele escrevia muito bem. Seus contos eram primorosos. A crítica e o público gostavam. Um mês inteiro... Que maravilha! Sem filhos. Sem esposa. Podendo ouvir o seu jazz e comer o que quisesse. Sua mulher detestava jazz e enchia o seu saco por causa da comida: “Sua barriga está crescendo. Não está na hora de maneirar um pouco, querido?”. Mas ele nem ligava. Comia escondido. Fazia o que queria. 19 ............................ Um mês sozinho... Puro prazer. Ninguém para amolá-lo. Andava pela casa de cueca, pelado, do jeito que lhe desse na telha. Revia seus filmes preferidos: “A Morte do Demônio”, “A Hora do Espanto”, “Cemitério Maldito”, “O Massacre da Serra Elétrica”. Lia muito também: Tolstoi, Poe, Agatha Christie, Stephen King. Ia dormir às cinco da manhã. E quando acordava, por volta de duas da tarde, a empregada já tinha arrumado tudo e deixado o almoço prontinho para ele no forno. O cardápio variava. Salmão grelhado ao molho branco. Lulas. Camarão. Lagosta. Filé ao molho madeira. Moqueca de peixe. Foi aí que ele acordou. O despertador buzinava e piscava insistentemente. Seis da manhã. Acordou assustado. Olhou para o lado e viu a esposa dormindo. Uma mulher enorme e feia. Na verdade ela não era feia. Era descuidada. Desleixada. Por isso ficava feia. O homem esfregou os olhos remelentos e viu de novo. Colocou as mãos pesadas na frente do rosto. “Este sou eu”, disse para crer. A realidade pulsante. Pum, pum, pum... Paredes descascando. Goteira na sala. Privada entupida. Mulher feia. Dor nas juntas. Ele não tinha trinta e cinco anos, mas cinquenta. Tinha que trabalhar para sustentar a família. Era assistente de não sei o quê numa empresa onde quase ninguém sabia o seu nome. Se fosse demitido, ninguém nem ia notar. Mas tinha que estar lá em menos de uma hora. Por isso o despertador. Seis da manhã. Buzinando, buzinando... E ele foi se lembrando de tudo. Era diabético. Não podia beber vinho francês nem comer queijo Gorgonzola. Tinha que estar sempre fazendo dieta. Mesmo assim era gordo. E feio. Não era só desleixo. Era feio mesmo. Tinha três filhos adolescentes que só sabiam cobrar e reclamar. Sobretudo reclamar: “Aqui em 20 ............................ casa não tem nada”, “Que pobreza”. E ele não estava de férias. Nem de folga. Era segunda-feira. Mês de março. Chovia muito lá fora. Os motoristas de ônibus estavam em greve. Ele não tinha carro. O despertador continuava buzinando. E o homem sentado na cama. A barriga enorme. O reumatismo latejando nos joelhos. A mulher roncava. De repente ela se virou na cama e peidou. Um peido alto e fedido. A mulher do sonho era mais nova. Mais bonita. Ele também era mais bonito. Tinha saúde. Dinheiro. Podia comer e beber o que quisesse. Mas a realidade gritava “Acorda, desgraçado”. O despertador pi, pi, pi, pi, pi... Ele gostava de ler e escrever. Mas não podia. Tinha que trabalhar, trabalhar. Um trabalho detestável. Humilhante. Para pagar as contas. O aluguel. As roupas de marca dos filhos. As baladas. As festas de aparência. “E a aposentadoria que não chega, meu Deus!”, suspirou aflito. A mulher peidou de novo e gritou “Desliga essa merda!”. Ele se levantou “ai, ai, ai”. Foi ao banheiro, lavou o rosto, olhou-se no espelho... E chorou. 21 ............................ Muito esquisito A vizinhança não gostava dele. Achava-o muito esquisito. Era um jovem calado, magro, de olhar mortiço e pele clara. Andava pelas ruas do bairro quase sempre de mãos dadas com a filha de seis anos, uma cópia em miniatura do pai, de quem herdara, além dos traços tristes e o olhar perdido, a timidez e o medo das pessoas. A esposa era uma professora primária, e ele, um escritor. Mas ninguém conhecia seus livros – o que não era de se estranhar naquela cidade, onde ler, para a maioria dos habitantes, era considerado uma perda de tempo. Porém, mesmo se houvesse ali uma cultura literária mais refinada, que não se limitasse apenas à leitura esporádica de alguns livros de auto-ajuda, ninguém seria capaz de descobrir as obras daquele misterioso escritor. Alguns vizinhos chegaram até a vasculhar a sua caixa de correio, descobriram seu nome completo e pesquisaram na internet, mas não encontraram nada sobre a sua ocupação. O que ninguém desconfiava era que aquele jovem excêntrico havia se tornado, nos últimos anos, um famoso escritor de livros de terror, que ele publicava em vários países do mundo com o pseudônimo de Daniel Zafón. Escrevia originalmente em inglês, mas havia traduções de seus trabalhos em quase todas as línguas, inclusive em português. Ganhava muito dinheiro, mas vivia modestamente, numa pequena casa alugada, em um bairro tranquilo de classe média. Tinha um carro popular bem conservado, que só saía da garagem nos finais de semana, quando ia com a mulher e a filha passear pelos pequenos vilarejos das redondezas, para pescar, acampar e curtir a natureza. Doava grande parte da sua renda para instituições de caridade, que cuidavam de crianças e idosos, mas investia 22 ............................ também em livros (a maioria de terror) e na educação da filha, que se quisesse, quando completasse 18 anos, poderia estudar em qualquer universidade do mundo. Na casa ao lado vivia um casal de aposentados e seu filho solteiro. O rapaz tinha a mesma idade do escritor, 32 anos, mas não podia ser mais diferente. A começar pelo tamanho. Enquanto o escritor era magro, pequeno e de aspecto doentio, o vizinho era um armário de músculos, mantidos firmes e fortes com várias horas de academia por semana e, para minimizar os esforços e o tempo nos aparelhos, com algumas injeções de hormônio bovino, aplicadas regularmente por um amigo veterinário. Trabalhava como entregador de móveis numa loja e vendia cigarros de maconha de vez em quando; ganhava uma miséria, mas tinha um carro importado e um guarda-roupa entupido de marcas famosas e caras. Seu dinheiro era todo queimado em malhação, injeções, roupas, tênis, parcelas do carro financiado, mulheres e, é claro, nas latinhas de cerveja dos finais de semana. O resto da despesa era pago pelos pais, que o tratavam como uma criancinha mimada, aceitando seus caprichos e violências como algo normal: “Coisa de homem”, costumava dizer a mãe, sempre que recebia um soco ou um pontapé do filhinho querido. Todas as tardes, quando chegava do trabalho, o Bad Boy colocava uma camiseta que valorizasse bem seus músculos tatuados, uma bermuda e um tênis, e ia passear na avenida com Stálin, seu cão Pit Bull, o terror da vizinhança. O animal era quase uma miniatura do dono, cheio de músculos, com dentes enormes, e andava pelos passeios sem focinheira, latindo para todo o mundo. Quando o escritor e sua filha voltavam da escola, quase sempre se encontravam com o cão e seu dono a caminho do desfile 23 ............................ exibicionista na avenida. Pai e filha mudavam de passeio, mas mesmo assim o animal latia ferozmente para eles, enquanto o dono, embora segurasse firme a guia, fazia movimentos com o braço como se ameaçasse soltar o animal, para amedrontar os dois. A menina tremia de medo, mas o pai não dizia nada. Segurava-a firme em seus braços e seguia seu caminho, sem olhar para trás. Numa sexta-feira à tarde, a cena se repetiu. Só que no momento em que o rapaz sorria e ameaçava soltar o cão no escritor e sua filha, uma dor muito forte no seu braço fez com que ele largasse a guia. Sentindo-se livre, Stálin avançou sobre a menina, sedento de sangue. Tudo aconteceu em apenas alguns segundos, mas vou descrever a cena em câmera lenta, de forma que o leitor possa visualizar os detalhes. Como eu dizia, Stálin avançou sobre a pobre criança com a rapidez de um touro que, enlouquecido, salta de seu cubículo em direção ao matador no meio da arena. Seu alvo era o frágil pescoço da menina, que ele queria morder com toda a sua força e estraçalhá-lo, até transformá-lo numa pasta de carne, pele e cartilagem moídas. Enquanto corria, contraindo seus músculos num tiro de alta potência, Stálin mantinha seus olhos focados naquele pescoço que, por instinto, ele sabia ser o ponto vital da sua presa. A menina fechou os olhos, aterrorizada. Felizmente, ela não sentiu nenhuma dor. E quando abriu os olhos novamente, num movimento involuntário das pálpebras, tudo já tinha acabado. 24 ............................ Dois corpos jaziam sobre o passeio: o do cão e o do dono do cão. ............................ Mas a vizinhança continuou não gostando dele. Realmente, ele era muito esquisito. Como eu disse, tudo aconteceu em questão de segundos. O cão enraivecido saltou como um touro sobre a menina, mas antes de conseguir fechar sua poderosa mandíbula em torno do seu alvo, duas mãos a seguraram no ar com a rapidez de um relâmpago e ergueram o animal, que se debatia ferozmente, sem conseguir se soltar. As mãos daquele pai franzino abriram a mandíbula de Stálin até seus ossos e cartilagens se quebrarem, transformando a cabeça do animal num arremedo de planta carnívora gigante, com suas pétalas cor de sangue escancaradas, esperando a chegada de um besouro ou de um pássaro. Um som borbulhante, como um gargarejo, saía do buraco onde antes estava a boca do animal, cujos membros continuavam se debatendo violentamente no ar. Foi quando o escritor começou a morder a barriga de Stálin, puxando para fora, com os dentes, fígado, rins, estômago, tripas e outras vísceras. Em seguida, quase ao mesmo tempo, abriu o peito do animal e arrancou com as mãos coração e pulmões, puxando também traquéia, esôfago, língua e outras partes difíceis de identificar. Os restos mortais de Stálin, espalhados pelo passeio, foram então pisoteados pelo escritor que, sujo de sangue dos pés à cabeça, mais parecia um personagem possuído pelo demônio em uma de suas histórias macabras. Logo à frente, o dono do cão morria de enfarte assistindo à cena. A menina nada sofreu. O escritor também nada sofreu. 25 26 ............................ ............................ maturação das plantas, os horários, as misturas corretas das folhas e a temperatura. Pôr do sol no campo Desde que perdeu sua fortuna e teve que vender quase todos os seus bens para pagar os credores, o velho fazendeiro ceifava e punha para secar ele mesmo as gramíneas que cresciam ao redor de sua casa, conduzindo-as, depois de secas, em uma velha carroça até o curral, onde alimentava com o feno as dez vacas leiteiras que possuía, seu único sustento naqueles tempos de crise. E tudo isso estava pronto naquele domingo – o veneno guardado na gaveta, à espera –, quando o filho chegou, reconciliador, disposto a fazer as pazes com o pai depois de quinze anos, e trazendo, para a alegria da casa, uma esposa bondosa e uma criança cheia de amor para dar. Viúvo e solitário, vivendo a trinta quilômetros do arraial mais próximo, sem nada para ocupar o tempo livre – a não ser os poucos livros que encomendava a um mascate que passava por ali de mês em mês, com quem às vezes trocava um dedo de prosa sobre a política na Corte –, o velho fazendeiro, ao abrir a janela do seu quarto em uma bela manhã de domingo, no início do outono de 1828, sentiu seu coração encher-se de alegria quando viu chegar seu filho Miguel, em uma carroça puxada por dois cavalos estropiados, trazendo com ele sua jovem esposa Amália e seu filhinho Amadeu, nascido naqueles dias. E lá estava ele, juntando o feno com um garfo ao pôr do sol, enquanto o filho cuidava das vacas, a nora preparava uma sopa e o neto brincava com pedrinhas e gravetos embaixo de uma frondosa árvore de sombra acolhedora. Cinco anos depois, no final de uma tarde fria de maio, enquanto colocava o feno numa velha carroça de madeira, o fazendeiro lembrava-se da chegada do filho como uma benção de Deus, um milagre que o salvara da morte, expulsando-a de sua casa no momento em que ela já se erguia, com a foice em punho, para abatê-lo. Ele tinha tudo preparado numa das gavetas da cozinha: uma porção de ervas venenosas, que cresciam no seu jardim, mas que, para que fossem mortais, tinham que ser preparadas de uma maneira especial, respeitando-se a época da colheita, a 27 Foi o que lhe devolvera a vida. De repente, um vento forte começou a soprar, vindo de várias direções, levantando e espalhando o feno que se encontrava na carroça. Essa imagem das plantas secas voando para todos os lados fezlhe pensar na sua vida, que, ele sentia, aproximava-se do fim, às vésperas de completar 75 anos: Penso que a maior parte do que eu plantei, eu colhi... Veja isto, velho... Neste feno há gramíneas e leguminosas de diversas qualidades e tamanhos que, quando não são ingeridas pelas vacas, são absorvidas pelo solo como adubo, que vai alimentar outras vidas, nesta e em outras gerações. Ora, não é assim a própria vida? Como eu disse, muito do que eu plantei, eu já colhi. A solidão amarga e triste que eu vivi durante anos só pode ter sido fruto 28 ............................ do meu egoísmo e da maldade que eu pratiquei na juventude e nos anos de abastança, guiado pelo meu desejo de poder e riqueza... ............................ acreditava, sua família viveria feliz e em paz por muitos e muitos anos. Ao outro que me desprezava, eu dei o meu desprezo, plantando assim o desprezo na minha vida... A humilhação que eu sofri, eu paguei com a humilhação que eu fiz o outro sofrer, plantando assim a humilhação na minha vida... Vinganças, traições... Julguei e espalhei boatos sobre pessoas que eu nem conhecia, só para prejudicá-las... E se eu estendi a mão a alguém, foi por puro interesse... Maldade, perversidade, cinismo, maledicência... Tudo isso eu plantei... Mas será que eu já colhi todo o mal que eu fiz? Não. Eu não colhi tudo... Veja estas folhas e talos que voam ao vento, velho imbecil... Veja os frutos da sua colheita... Eles vão alimentar outras vidas, que continuarão depois que os vermes já tiverem comido toda a sua carne. Meu filho... Meu neto... O que eles colherão do que eu plantei?... Que seja só o bem, meu Deus, só o bem... E o vento soprava forte, enquanto o sol se punha no horizonte, numa confusão de azuis, roxos, alaranjados e rosas; e o feno dourado continuava seu vôo, chegando até onde o pequeno Amadeu brincava, embaixo da árvore. Ele construía uma cabana para as suas pedrinhas, que representavam ele, a mãe, o pai e o avô. E ao perceber o feno que se juntava ao pé da árvore, quando o vento já se acalmava, ele teve a ideia de usálo como parede e teto para a sua construção, onde, ele 29 30 ............................ A pescaria No sonho ele caminhava por uma trilha estreita no meio do mato, sentindo um cheiro forte e agradável de esterco de vaca. Seu avô seguia na frente, com três varas de bambu e uma latinha de iscas, cantando uma velha canção caipira dos seus tempos de caixeiro. Os dois iam pescar bagre no córrego, numa parte funda que quase ninguém conhecia. “O poço é bom, mas tem que ser de noite”, o avô dizia. Ele acordou do sonho em plena madrugada sentindo uma paz tão grande que seus olhos se encheram de lágrimas. Foi como se todos os instantes de alegria e prazer que ele vivera até então, nos seus trinta e cinco anos, se concentrassem ali, naquele acordar, ouvindo a voz distante do avô, seus passos rápidos sobre as folhas secas, o tilintar das chaves do carro no seu bolso folgado, respirando um cheiro gostoso de mato verde e esterco misturado ao ar frio da noite. Há muito tempo ele não ouvia a voz do seu falecido avô: uma voz distante, mas cheia de vida, que em ondas suaves atravessava décadas no espaço da memória até chegar aos seus ouvidos (não do corpo, mas da alma). E os cheiros... Como era bom sentir os cheiros do passado! A mulher e o filho continuavam dormindo. Ela, na cama de casal, ao seu lado, e o garoto numa velha cama de solteiro, próximo à janela. Desde que o médico anunciara que não havia mais o que fazer, que era só uma questão de tempo, o filho de dez anos começou a sonhar todas as noites com a morte do pai e a acordar assustado, aos prantos. (Via o pai esquelético 31 ............................ desaparecendo na impessoalidade branca e luminosa de um quarto de hospital, preso a tubos e fios, sofrendo). Só quando ia para o quarto dos pais ele se acalmava e conseguia dormir. Por isso a cama extra junto à janela. Mas isso não acontecia mais. Naquela noite o filho tinha se deitado na cama de solteiro, ao lado do pai, para assistir a uma entrevista com um escritor famoso, e adormecera. Ele não tinha mais pesadelos. Em várias conversas com o pai e a mãe ele foi aos poucos entendendo que perder alguém que se ama faz parte da vida, e que no fundo não é uma perda, pois o espírito não morre, só o corpo. “E eu não vou sofrer”, afirmava o pai confiante. Ao se levantar, com a mente ainda inebriada pelos sons e cheiros do passado, o pai olhou para a esposa e o filho dormindo e agradeceu a Deus por estar com eles naquele instante de paz e felicidade: o filho abraçado ao travesseiro, sereno, e a mulher de barriga para cima, respirando suavemente a brisa fria que entrava pela janela. A casa na verdade era um sítio, cercado por muros de pedra, tudo muito simples e prático, com um quintal enorme cheio de árvores, flores, frutas, hortaliças e ervas, que a família cuidava com amor e de onde tirava uma parte do seu sustento. Ao se levantar, sentiu o cheiro doce e exuberante da dama da noite, que lhe lembrava a casa da avó nos tempos de infância, quando a família se reunia para cantar e dançar ao som das cordas e vozes dos tios músicos. Ajoelhou-se sobre a cama do filho, com cuidado para não acordá-lo, e olhou pensativo para o quintal mergulhado no silêncio escuro da madrugada. Era assim, no meio da noite, que 32 ............................ ele sentia a natureza em seu estado mais puro: descansando para morrer e nascer de novo, morrer e renascer... (às vezes um inseto, um morcego ou uma coruja perturbavam o seu sono de mãe cansada, mas sem despertá-la, sem se destacarem dela própria, do seu silêncio grosso, cheio de vida e morte). ............................ Fechou os olhos, respirou fundo por alguns minutos e se levantou num salto, sentindo-se melhor, mais forte. Correu pelo quintal, e o cheiro de esterco era como se estivesse ali. E a voz do avô era como estar de volta àquela pescaria, jogando o anzol no poço fundo daquele córrego, sentindo a fisgada do bagre e o avô sussurrando “cuidado com o ferrão”. Foi para a cozinha e fez um café, que sorveu lentamente, enquanto caminhava descalço pelo quintal, sob a luz fraca de um poste, observando os insetos, as flores, as folhas, as cascas das árvores, a terra fria e seca. Mas naquela hora, no quintal, junto a uma laranjeira carregada de frutas, o que o avô lhe dizia era “venha comigo”, “venha comigo”, como se estivesse ali, sua voz suave e vibrante ao mesmo tempo. Sentou-se no chão e pegou com as mãos um pouco de terra, que levou aos lábios, para sentir sua textura, seu cheiro. O sol nascia entre as árvores e ele continuava de pé, parado, recebendo a luz morna da manhã que aos poucos ia clareando tudo ao seu redor: o verde das folhas, os vários tons de marrom da terra, o vermelho, o amarelo, o branco e o roxo das flores... O café o despertara, ele estava lúcido, com os sentidos aguçados, mas aquilo tudo lhe parecia um sonho. O cheiro de esterco e a voz do avô lhe chegavam novamente do passado, mas com uma presença que ele nunca havia sentido: como se pudesse tocá-los. Levantou-se devagar, tonto, e abraçou uma árvore à sua frente, um enorme pé de pequi cheio de flores. Colou o ouvido no seu tronco áspero e teve a sensação de ouvir o movimento de alguma coisa lá dentro, um fluxo – de quê? –, como um riacho, uma nascente, algo profundo, como um gemido contínuo numa caverna escura e fria. Deixou-se cair no chão, ao lado da árvore, e ao se esticar, sentiu a terra em movimento, como se ela viva quisesse abraçá-lo, absorvê-lo. O cheiro do café... “Eu quero mais café”, ele dizia, mas não conseguia alcançar a caneca. 33 Foi quando ele viu a esposa e o filho sentados no chão, junto ao pé de pequi. Sentindo-se bem disposto, caminhou na direção deles, mas logo parou, entendendo tudo. “Esta etapa já acabou”, pensou feliz. E ao se voltar para a laranjeira viu o avô, com sua boca desdentada aberta num sorriso cheio de amor e compreensão. Deitado entre a esposa e o filho havia um corpo sem vida, que ele não precisou ver para ter a certeza de que era o seu. Sob o olhar alegre e sereno do avô, ele acompanhou tudo sem se aproximar muito: viu como o filho chorava e sorria ao mesmo tempo, acariciando o rosto e os cabelos do pai; como a esposa beijou seus lábios secos e sem vida, derramando sobre eles lágrimas de dor e saudade; como juntos o levaram para a banheira e lhe deram um banho perfumado com as essências 34 ............................ das flores que ele mais gostava, ao som de um dos concertos de Brandenburgo, de Bach... ............................ “Eles ficarão bem”, disse-lhe o avô, estendendo-lhe a mão pequena e branca, cheia de sardas. Ela se chama Das Dores. Ele sorriu. E de repente tinha dez anos e procurava minhocas com uma enxada num barro preto, e puxava as traíras e mandis com a respiração presa de emoção, sentindo seu peso na vara, seu balançar brilhante e molhado sobre a lagoa escura, e olhava para o avô, que sorria, sorria sem dentes, e sem dentes continuava sorrindo ali, ao seu lado, depois de tantos anos... “Vamos pescar?”. O avô perguntou. Felicidade Na verdade Das Dores é como as pessoas a chamam, não sei se é nome, sobrenome ou apelido. Está agora debruçada na pia enxaguando os pratos e talheres do almoço. É noite. Hoje é sexta-feira. Jorge vai chegar daqui a pouco e ela está muito feliz. “Ah Deus, então é isso...”. Das Dores está feliz todos os dias, eu não consigo entender por quê. E partiram. Dedico este conto à memória do meu avô, Vicente Batista da Silva, o “Vicente Fabiano” (1922-1995). Sua casa é pequena e simples. Não tem máquina de lavar, mas o Jorge disse que vai comprar uma das grandes para ela, assim que ele terminar de pagar a televisão. Ela disse a ele não precisa, Jorge, aqui é pouca roupa, eu dou conta, mas o Jorge insistiu e ela disse tudo bem, então. E sorriu. Das Dores sorri muito. Lava os pratos e talheres sorrindo. A água sai pouca da torneira, porque eles moram no alto de um morro e a pressão é fraca, não tem jeito. 35 36 ............................ Das Dores é jovem, não tem nem trinta anos, mas parece que tem mais. Peitos caídos, cabelo ensebado, pele encardida, está um pouco acima do peso, mas quando ela se olha no espelho do guarda-roupa, acha-se bonita. Jorge gosta. Até elogia. ............................ Daqui a pouco o Jorge chega e os dois vão tomar banho. Toda sexta-feira ela prepara um jantar especial para ela e o Jorge. Ele traz um vinho tinto suave, docinho, do jeito que ela gosta. Semana passada ele comprou duas taças no supermercado e fez uma surpresa para ela: encheu-as de vinho e foi até o quarto, enquanto ela se penteava, levando também, além do vinho, um prato com petiscos (salsicha, queijo e azeitona). Ela disse que loucura, Jorge, você gastou dinheiro com esses copos chiques, não precisava, mas o Jorge nem ligou. Foi logo beijando a sua boca, e os dois se jogaram na cama. É que o Jorge trabalha no serviço de limpeza urbana, recolhendo os lixos das casas. Toda sexta-feira eles fazem amor. É muito bom, ela gosta do Jorge, ele é carinhoso e fala que ela é bonita. Nunca foram a um motel, mas o Jorge disse que um dia vai levá-la, e ela fica imaginando como deve ser. Ela está agora preparando a lasanha para o jantar. É o prato que o Jorge mais gosta, e ela também. Hoje ela decidiu colocar um pouco mais de presunto na lasanha (na verdade, não é presunto, mas algo parecido, mais barato. Só que, para ela, é tudo a mesma coisa, então ela prefere chamar de presunto, que é uma palavra mais bonita. Presuuunnnto, ela gosta de dizer baixinho, sorrindo, quando volta para casa com as compras). O molho está ótimo, ela pensa, enquanto prepara a lasanha ouvindo “A Hora do Brasil”. Ela ensaboa o Jorge toda sexta-feira, para tirar o cheiro que fica grudado na pele dele. Jorge também é jovem, tem trinta e um anos, mas gosta de se cuidar, por isso parece ser mais novo do que Das Dores, que é um pouco desleixada. Ele é musculoso de tanto levantar sacos de lixo e correr atrás do caminhão da limpeza pela cidade, mas seu cheiro não é bom, por isso ela faz questão de ensaboá-lo na sexta-feira e de passar bastante loção no seu corpo, porque é o dia deles jantarem juntos e fazerem amor. Ela prefere “fazer amor”, não gosta das palavras que o Jorge usa quando estão na cama, vou te comer, vamos trepar, coisas assim, de animal. Das Dores não entende nada do que ela ouve na “Hora do Brasil”. Não sabe dos gastos milionários do Governo com estádios de futebol, enquanto os professores estão em greve. Das Dores nem pensa no seu trabalho, que recomeça segundafeira, pregando solas de sapatos, milhares de solas, nada além de solas, solas, solas e mais solas, o dia inteiro, até o crepúsculo. Ela gosta da palavra crepúsculo. 37 38 ............................ Ela leu isso em algum lugar e sua amiga Josefa lhe explicou o que era: Pôr-do-sol. Ficou boba. Depois disso, ao sair da fábrica de sapatos, ela trocou seu trajeto só para passar por uma rua que lhe permitia ver o pôrdo-sol. E ela parava e admirava... ............................ Jorge tem até uma caixa de papelão onde guarda os livros que ele encontra no lixo, a maioria com um título que Das Dores acha muito estranho: Tex. O cheiro dos livros é que não é bom, mas Das Dores nem liga, porque ela adora ver o Jorge feliz, e quando ele pega um desses livrinhos para ler, ele parece muito feliz. Jorge chega com o vinho. E a surpresa da noite é que o vinho não é de uva, mas de pêssego, fruta que Das Dores nunca experimentou. Ela gosta das cores do crepúsculo. Das Dores sorri e abraça Jorge com carinho. O cheiro dele não está nada bom. Ela está agora olhando pela janela. Noite estrelada, muito calor. Tomam banho, fazem amor e Das Dores, com uma taça de vinho de pêssego na mão, coloca a lasanha para assar. Escuta alguns tiros lá embaixo, mas nem liga. (Na verdade não é bem um vinho, mas para Das Dores isso não importa). Não pensa em nada, vive o instante. Das Dores estudou na escola pública do bairro, aprendeu a ler, mas não entende quase nada do que lê, somente avisos bem simples como Cuidado: chão molhado, Caixa fechado, Seja bem-vindo à Casa do Senhor, etc. Uma vez tentou ler o resumo de uma novela, mas só entendeu algumas palavras isoladas, que ela guardou na memória: luxo, praia, motel, patife, vagabunda, aborto, drogas. Jorge liga o rádio e fica olhando as luzes do morro pela janela. Jorge estudou mais tempo que Das Dores, em uma escola pública melhor. Jorge até pega livro na Biblioteca. Das Dores fica impressionada com a inteligência do Jorge. Ele é esperto, sabe das coisas. Você também, Jorge. 39 Outro tiro. Ele se assusta, vira para Das Dores e os dois começam a rir. Você está tão bonita hoje, Das Dores, ele diz. Acho que já entendi por que Das Dores está feliz todos os dias. 40 ............................ ............................ produzidas, não fazendo qualquer diferença neste processo a nacionalidade das iguarias presentes nos intestinos. Descendo do salto A bela professora universitária entrou na sala de aula como se estivesse na passarela de um desfile de modas em Paris ou Milão. Era sexta-feira à noite e, embora já estivesse com o atestado médico em mãos, assinado por uma prima ginecologista, ela resolvera, de última hora, abandonar o marido e os amigos no refinado restaurante francês Le Bistrot e ir direto para a universidade. Fez isso pelos alunos, que queriam muito a sua presença durante a realização da atividade que ela havia preparado para aquela noite, e que seria aplicada por uma estagiária. Quando ela entrou na sala, irradiando beleza e simpatia, havia em seus intestinos meia garrafa de um vinho francês da Borgogne, já completamente absorvido pelo maravilhoso Cassoulet que ela havia comido antes de sair. (E ao distribuir os exercícios aos alunos, ela fez questão de referir-se a esse jantar requintado, que prosseguia sem a sua presença encantadora no restaurante mais caro da cidade). Enquanto ela desfilava pelos corredores da sala, fazendo soar no piso de madeira o leve toc toc dos seus belos saltos importados, uma enorme quantidade de bactérias atacava os carboidratos da mistura de iguarias francesas que se movimentava no interior de suas tripas. Desse processo de fermentação é perfeitamente natural que surjam gases, como o metano, o sulfeto de hidrogênio ou o dióxido de carbono. Se os componentes da mistura vêm da França, da Alemanha ou do quintal de um pequeno roceiro do interior de Minas Gerais não interessa às bactérias que produzem tais gases. E quanto mais enxofre tiver na mistura, mais fedidas serão as ventosidades 41 Enquanto a professora dizia algumas frases decoradas em francês para impressionar os alunos, tentando imitar os sons ouvidos no filme Piaf ou em Coco avant Chanel, uma pequena bolha de gás, contendo uma quantidade considerável de sulfeto de hidrogênio (rico em enxofre), aumentava de tamanho entre as paredes do seu intestino grosso. Ela circulava em torno de um bolo fecal de aspecto uniforme e cor marrom parda (devido ao ganso presente no Cassoulet) que se movimentava lentamente em direção ao ânus da mulher. A bolha aumentava de tamanho a cada minuto, e às vezes a professora sentia o seu movimento, que se não fosse o constante toc toc de seus saltos sobre o piso da sala, poderia ser ouvido até pelo aluno que estivesse mais próximo. E, aos poucos, outras bolhas vinham se aproximando da bolha maior, pois no tempo em que esteve no restaurante, antes de servirem a refeição, a professora conversou muito enquanto bebia, a maior parte do tempo criticando colegas de trabalho que ela considerava inferiores, e enquanto ria e falava, uma enorme quantidade de ar entrava pela sua boca. O ar não absorvido pelo organismo ou eliminado pelos arrotos discretíssimos que ela soltava se misturou ao Cassoulet e ao vinho tinto, e acompanhou a mistura em direção aos intestinos. Enquanto isso, alguns ácaros iniciavam uma pequena reação alérgica nas mucosas nasais da mulher. Um leve corrimento teve início, o que fez com que ela tirasse do bolso um lenço bordado a mão por artesãos indianos, comprado na última viagem que ela havia feito com o marido à Ásia. Levou o lenço ao nariz e, discretamente, limpou um excesso de mucosidade 42 ............................ nasal que se acumulava na narina esquerda e que estava prestes a pingar. Uma leve irritação nos olhos e uma coceira em ambas as narinas começavam a incomodá-la. Mesmo assim, a professora continuava o seu desfile pelos corredores da sala, respondendo às questões feitas pelos alunos como se ela fosse a maior autoridade em Psicologia Social do Brasil. De repente, uma bolha de ar que se movimentava no seu intestino grosso se juntou a uma pequena bolha de dióxido de carbono e sulfeto de hidrogênio, produzida por um grupo de bactérias famintas, o que fez surgir uma bolha muito maior. Essa bolha forçou a parede do intestino, que pressionava de um lado, enquanto o bolo fecal pressionava do outro, o que fez com que ela se deslocasse rapidamente em direção à outra bolha, a mais fedida de todas, que já se aproximava do ânus da professora. Ao se encontrarem, as duas bolhas formaram uma bolha só, de proporções devastadoras. ............................ Imediatamente a mulher parou. Qualquer movimento podia ser fatal. Um novo espirro seria a tragédia completa. E ali ela ficou, entre duas fileiras de alunos, quase no meio da sala, à espera de um milagre, de uma intervenção divina que fizesse desaparecer todo aquele gás acumulado bem na saída, que ela trancava com todas as forças que sua bem trabalhada musculatura glútea e anal permitia. Enquanto isso, os ácaros não davam trégua e provocavam mais coceira no nariz da desesperada professora, que já não falava mais, apenas aguardava, em pânico, o que o destino lhe reservava. Foi quando veio o espirro, o mais forte de todos, que vibrou a abertura anal com a rapidez de um raio: um único segundo, o tempo de uma pequena piscadela do esfíncter, mas que foi suficiente para que uma parte dos gases acumulados sob pressão escapasse com um enorme estrondo, tão alto, que a tentativa da professora de abafá-lo com o som do espirro foi em vão. Um espirro. Tragédia. Em pânico, a professora respirou fundo o ar ao seu redor, com medo de que alguma coisa tivesse escapado. Nada. Nenhum cheiro desagradável. Ela tinha que sair dali o mais rápido possível. Outro espirro, e mais um, e mais outro. A bolha estava quase lá, a mulher podia sentir, e enquanto caminhava lentamente em direção à porta, percebeu uma pressão nas paredes do seu ânus – como um inchaço interno – que só podia significar uma coisa: uma enorme quantidade de gases já tinha chegado ali e estava pronta para explodir. 43 Todos os alunos escutaram o som e perceberam de imediato de onde ele tinha vindo e do que se tratava. E os que estavam mais próximos da professora sentiram um cheiro tão fedido, que alguns fizeram vômito, e outros chegaram a vomitar no chão, próximo aos pés da desesperada mulher, que não sabia onde enfiar a cara. E antes que ela raciocinasse sobre o que fazer numa situação dessas, um novo espirro, e um novo estrondo, ainda mais alto e fedido que o primeiro. O cheiro estava por toda a sala. Alguns alunos pediram licença e se retiraram. Outros foram para a janela. E a professora ficou 44 ............................ lá, parada que nem uma estátua, com o pensamento em branco, sentindo o cheiro dos gases produzidos pelas bactérias dos seus intestinos: um cheiro de corpo, de carne, de vida e morte: um cheiro de existir, de ser e estar no mundo, vivendo, comendo e morrendo, como eu, como você... Como qualquer um. ............................ Soberba Sem mais nem menos, numa fria noite de inverno, cabeças começaram a explodir. Não, não era tiro de espingarda cartucheira, nem de revólver com munição dum dum. A coisa vinha de dentro do corpo, não sei explicar. A pessoa podia estar comendo, conversando, dormindo, que o negócio vinha de repente: PLOFT! – um som abafado, meio oco, que se abria num PLAFT rápido, molhado: como toalha encharcada lançada com força na parede. O interessante é que era só a cabeça. Em ambientes fechados, a cena era mais ou menos assim: PLOFT! PLAFT! E o corpo estrebuchava no chão, esguichando sangue pelo buraco do pescoço, enquanto as partes moles da cabeça (sangue, miolos) escorriam pelas paredes, e as mais pesadas (ossos, pele, cartilagens) se espalhavam pelo chão. Eu mesmo vi dez cabeças explodirem. A primeira foi a de um sujeito nervoso que esbravejava a plenos pulmões numa reunião de condomínio, achando-se o dono do mundo. Eu até pensei na hora que um dos moradores, que era policial, tinha dado um tiro nele, de tanta raiva, mas não: como eu disse, a coisa vinha de dentro. O sujeito gritava: “Eu sou isso e aquilo, sou amigo de fulano e beltrano, tenho muita influência, vocês vão ver do que eu sou capaz” e PLOFT! PLAFT! Outra vez foi com uma amiga de mamãe, D. Jandira (a empáfia em pessoa). Ela tomava café lá em casa e falava do filho dela, o 45 46 ............................ Pedrinho ou Carlinhos, não sei, que segundo ela era um gênio, doutor em não sei o quê, tinha dois apartamentos de luxo na capital, um carro importado, falava inglês fluente, ia apresentar a pesquisa dele na Alemanha, na França e na Inglaterra, uma tese brilhante, muito respeitada nos meios acadêmicos e blá, blá, blá. E de repente PLOFT! PLAFT! Mamãe levou um baita susto com a explosão. Arregalou os olhos, toda respingada de sangue, e começou a passar mal. Tossia e cuspia pedacinhos de ossos e miolos, que escorriam pelo seu rosto, enquanto eu tentava socorrê-la. Algumas profissões eram mais atingidas que outras. Médicos e advogados, por exemplo, entraram em extinção. Sobraram poucos na cidade. (Uma prima minha, muito querida, que é médica, graças a Deus se salvou). Tive notícia de que, durante uma cirurgia, três cabeças de médicos explodiram juntas em cima do paciente, e que uma estudante de Medicina, que assistia ao procedimento, correu e se trancou no banheiro desesperada, para cinco minutos depois sua cabeça também explodir. Vereadores e funcionários do alto escalão da Prefeitura também foram muito mais atingidos do que o normal. Numa sessão da Câmara para discutir a má gestão dos recursos públicos na Saúde, o cinegrafista da TV local filmou nada menos que quinze cabeças explodindo, uma atrás da outra. Isso porque, além dos vereadores, havia muitos médicos e advogados presentes, e também um juiz, que foi o primeiro da fila. (Foi um choque na cidade a morte desse magistrado, o velório ficou lotado, mas alguma coisa vinha me dizendo que aquela cabeça não ia se salvar de jeito nenhum). E segundo o meu primo Cleber, que estava na Câmara, a coisa aconteceu no exato momento em que o juiz apontou o dedo para um pobre 47 ............................ coitado na platéia e perguntou: “Você sabe com quem está falando?”. Há cinco meses nenhuma cabeça explode na cidade. As pessoas estão mais quietas e introspectivas. Lêem mais. Estão se preocupando menos com o status social, com as aparências. Até o famoso jornal de futilidades A City, que era a vitrine da alta sociedade local, quebrou, porque ninguém mais queria pagar para ter suas festas de aniversário, casamento, bodas de prata e de ouro publicadas ali. Na minha família só cinco cabeças explodiram até agora: três homens e duas mulheres – “os mais cheios de si”, disse mamãe um dia, referindo-se a eles. Quanto a mim, confesso que ainda estou com medo. Fico a maior parte do tempo sozinho em casa, lendo, escrevendo, tomando café e ouvindo música. Ontem foi meu aniversário de 36 anos. Mamãe me deu de presente um livro de poemas da Florbela Espanca. Mamãe gosta muito de ler. Ela diz que ler torna a gente mais humilde e tolerante. Acho que ela tem razão. 48 ............................ Ao nos despedirmos, ela me abraçou e disse, sussurrando: “Leia o poema da página 36”. Em casa eu o li, e até grifei o final, que me tocou muito: ............................ Pombos Numa ensolarada tarde de sábado, quando voltavam de um passeio pelo bairro, o jovem professor e sua esposa viram dois pombos cinzentos se esfregando no telhado de sua nova residência, bem em cima da garagem. (Naquele dia, o jovem casal não percebeu a dimensão hitchcockiana do problema que em breve eles teriam que enfrentar). Sonho que sou Alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a terra anda curvada! E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho... Dois pombinhos de namorico no telhado de uma casa. Que problema há nisso? E não sou nada!... Concordo que pode até ser agradável receber de vez em quando a visita de uma dessas aves em casa, ou talvez até tê-la como hóspede definitivo em algum canto do telhado, onde ela pode fazer seu ninho e viver em paz com seus filhotes. (Algumas são até muito bonitas, com suas plumagens em tons brilhantes de cinza, preto e verde). Se fosse só isso – e para corrigir o exagero que eu cometi acima ao empregar a palavra “agradável” – eu diria que seria até suportável. Mas quando o substantivo é “pombo’, não há na sintaxe do discurso que lhe serve nenhum espaço para o advérbio “poucos”. Não existe UM pombo em nenhum telhado do mundo. Se há pombos no seu ou em qualquer outro telhado, eles são muitos, dezenas, centenas, e se reproduzem como ratos, e comem e cagam e fedem como ratos. Parece que isso nem sequer passou pela cabeça dos dois novos moradores do bairro, pois ao entrarem pelo portão e notarem os dois pombinhos num dos cantos do telhado, eles apenas sorriram um para o outro e entraram na casa, como se flutuassem no ar. E quem tivesse testemunhado de perto aqueles sorrisos e soubesse ler o que se escondia por trás 49 50 ............................ deles, certamente entenderia o motivo da pouca importância que os recém-chegados deram à presença ameaçadora de um casal de pombos em seu telhado – uma imagem que, para ambos, naquele momento, significou o prenúncio do que eles próprios planejavam fazer na cama logo em seguida: dois pombinhos recém-casados, sem filhos e com menos de trinta anos, quando chegam em casa e têm como recepção dois outros pombinhos em plena Lua de Mel só podem pensar mesmo em se empoleirarem na cama e mandarem ver. Por isso não posso afirmar que o motivo deles não terem estranhado aquela presença alada no telhado, nem tampouco olhado um para o outro com aquele olhar característico de “problema à vista”, fosse a ignorância pura e simples. O mais provável é que, naquele momento, ambos tenham sido desviados da razão pelos hormônios do desejo, que, no início de qualquer casamento convencional, permitem até associações de imagens românticas – óbvias demais, temos que concordar –, como aquelas: um casal de pombos namorando no telhado // um ninho de amor à espera de dois jovens apaixonados, encantados com o início do casamento. Na tarde seguinte, porém, a associação de imagens foi outra. (Se é que podemos chamá-la de associação de imagens. Talvez melhor seria a percepção de uma semelhança macabra, que significava, naquele momento, um aviso). Mas, como eu ia dizendo, na tarde seguinte, o olhar do jovem professor foi outro – talvez por não estar numa veia romântica em pleno domingo, com três pacotes de provas para corrigir –, quando viu, ao entrar, sete pombos se acariciando ao redor da caixa d’água. 51 ............................ Aqui cabe um parêntese para explicar que a caixa d’água em questão foi projetada por uma renomada arquiteta para ser um elemento de harmonia no conjunto da fachada da casa: uma combinação de curvas e retas que, no entanto, logo perdeu a simetria planejada para se tornar um mostruário de outras peças decorativas (estas inoportunas e invasoras), cujas características principais, como sabemos, são três: voarem, defecarem e federem. Naquele momento, ao ver sete ratos alados se esfregando ao redor da caixa d’água, o professor resgatou da sua memória cinematográfica a velha cena do filme “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock, em que Tippi Hedren observa, aterrorizada, um bando de corvos empoleirados no parquinho de uma velha escola americana. Nenhuma outra cena seria mais apropriada. O prognóstico foi perfeito: a caixa d’água do professor se tornou, com o passar dos dias, o ponto de encontro de uma infinidade de pombos, de várias cores e tamanhos, que ali ficavam horas e horas, emporcalhando tudo ao redor. Saíam apenas para seus vôos regulares sobre o bairro ou para alguns passeios estratégicos pelo telhado da casa, onde verificavam os melhores lugares para os seus ninhos. E como é espantosa a capacidade reprodutiva desses bichinhos! Não preciso nem dizer que as laterais e cantos do telhado do professor se transformaram num verdadeiro pombal. Nesta altura do texto é importante explicar que o jovem professor não sabia fazer nada que, fora dos planos afetivo e sexual, um marido de verdade deveria saber, pelo menos na opinião do senso comum: consertar pia, desentupir privada, 52 ............................ fazer o carro pegar no tranco, trocar lâmpadas fluorescentes (daquelas compridas) e, é claro, subir no telhado para exterminar pombos – com toda a crueldade de macho que o ato exigia, já que não bastava acabar com os pais, era preciso também aniquilar os filhos. ............................ Flores brancas na noite escura da alma Ele tinha quinze anos. Era magrelo, feio e triste. E é mais do que sabido que quando esses pseudo-maridos precisam pagar outro homem para fazer o serviço, eles adiam a decisão o máximo possível, talvez por vergonha ou por avareza (ou as duas coisas juntas), e o problema cresce – no caso dos pombos, de forma assustadoramente rápida. Mas sejamos justos: o professor tentou pelo menos acabar com as orgias na caixa d’água, jogando traques e naftalina no telhado, o que no final das contas não adiantou grande coisa. Espingarda de chumbinho? Proibido. Veneno? Proibido. O que resta, então, ao pobre professor? Conviver com os pombos? Enlouquecer? Se ele conseguisse ao menos não ter que se lembrar do filme do Hitchcock toda vez que entrasse pelo portão da garagem, já estaria satisfeito. Mas eles estão sempre lá, principalmente à tarde, arrulhando, cagando, copulando, fedendo, enfim, vivendo suas vidas, mais ou menos como qualquer outro ser vivo... Como qualquer um de nós... Ou quase. No começo era só o desprezo dos colegas e professores. Ninguém sabia seu nome nem conversava com ele. Suas notas eram medíocres, passáveis, indicando inaptidão e falta de talento, o que o colocava, dentro da classificação estabelecida informalmente pelos diretores e supervisores, no “ponto morto”, naquela posição que, embora não representasse um risco sério para a imagem da escola, não contribuía em nada para o seu engrandecimento institucional, sempre atrelado ao ranking dos colégios e aos primeiros lugares nos vestibulares das grandes universidades de elite. Ele simplesmente não existia. Pelo menos até o dia em que, tremendo e suando frio, dirigiuse à mesa da professora, mudo, mas implorando ajuda com o olhar aflito e desesperado, os dedos inquietos abrindo e fechando os botões da camisa. E a mulher, concentrada em alguns trabalhos que corrigia, fingia não tê-lo percebido, como se ele fosse uma peça decorativa surgida do nada, quase invisível. Enquanto isso, os outros alunos mantinham-se em silêncio, alguns estudando, outros enviando mensagens pelo celular, desenhando, escrevendo... Até que, não suportando mais a angustiante espera, ele estourou. Um uivo de agonia saiu do fundo da sua alma, 53 54 ............................ arrancando de seus pulmões e garganta toda a força necessária para devastar a indiferença dos colegas e da professora – e junto com esse grito de horror, um caldo escuro de diarréia explodiu no seu traseiro, marcando com uma enorme mancha marrom e fétida o tecido claro de sua calça desbotada. A professora se levantou num salto e agarrou seu braço com força, puxando-o para fora da sala. No corredor, uma funcionária da escola repreendeu-o por não ter ido ao banheiro a tempo, levando-o em seguida para se lavar. A partir desse dia a indiferença e o desprezo dos colegas se converteram em crueldade. Ele se transformou no alvo principal de todas as chacotas e piadinhas de corredores, e mesmo na sala, durante as aulas, comentários maldosos eram lançados aqui e ali, levantando risos abafados e silêncios constrangedores, sempre sob o olhar tranquilo e distante do professor. Ele continuou não participando dos trabalhos em grupo e não encontrando nenhuma alma para conversar com ele no recreio, mas não era mais um Zé Ninguém, pois os outros o notavam, olhavam para ele e riam, o que, no entanto, doía mais, tornando-o cada vez mais amargo e triste. Festinhas eram organizadas, passeios a fazendas e sítios aconteciam todos os meses e ele nunca era convidado. Seus únicos amigos eram os livros, que ele começou a ler também na escola, durante o recreio, embaixo de um enorme caramanchão, bem afastado do burburinho incessante dos outros adolescentes, que brincavam e conversavam em suas rodinhas. 55 ............................ Mas mesmo em seu refúgio de solidão, às vezes lhe chegavam bilhetinhos ofensivos e zombeteiros, quase sempre trazidos por um garoto vesgo e narigudo, com um leve retardo mental, mas que havia sido aceito pelos outros como uma espécie de mascote, sempre pronto a cumprir as ordens dos líderes do bando ou das menininhas ricas, acostumadas em casa e na escola com toda a sorte de paparicos e servilismos. Um dia, o menino vesgo foi ao caramanchão levando uma pequena caixa de isopor fechada. Disse que era um presente dele, um pedido de desculpas por todos os bilhetinhos que ele havia trazido. Deixou-a ali, em suas mãos, e saiu correndo pelo pátio. Sua primeira reação foi desprezar a caixa, deixá-la ali mesmo no caramanchão, fechada, e ir embora. Mas depois de alguns minutos de reflexão, resolveu abri-la. Não se surpreendeu com o que viu. Mas diante daquilo – daquela massa repugnante que parecia lhe dizer, em seu silêncio asqueroso: “Você é a escória da escória, o estorvo do estorvo” – ele sentiu como se uma noite escura tomasse conta da sua alma naquele exato momento: uma sensação penosa: uma dor profunda revirando as densas sombras do seu ser, que depois se acalmava, para logo em seguida começar de novo – como uma dor de parto, mas na alma, no âmago de si, do seu espírito pisado, massacrado, cuspido. Deixou ali a caixa cheia de fezes humanas, de diferentes cores e consistências, e dirigiu-se à saída do colégio, disposto a voltar só dois dias depois, para a realização do seu único e último ato. Passou a tarde e a noite sem dormir, sem comer, e o dia seguinte todo se preparando, se organizando, pensando em todos os detalhes do seu plano. Só interrompia o trabalho para 56 ............................ reler Walt Whitman, Tolstoi, Edgar Allan Poe, Willian Burroughs e Allen Ginsberg, e para recitar em voz alta trechos de seus poemas preferidos, sobretudo os de Ginsberg em seus momentos mais sombrios: “A ti, Céu depois da morte, Único abençoado no Vazio, nem luz nem escuridão, Eternidade Sem Dias...”. E continuava arquitetando tudo, escritos e rabiscos jorrando de suas mãos para o papel em jatos contínuos: orgasmos múltiplos de sangue sem interrupção. Quando entrou na escola vestindo um pesado casaco de lã em pleno verão ninguém achou estranho. Na verdade, ninguém notou nada. Ele sabia que seria assim, por isso não se preocupou. Entrou no banheiro e se trancou num dos boxes sanitários, para aguardar o início das aulas. Oração da Manhã. Avisos.Vozes e passos em tropel pelos corredores. Silêncio. Era o momento de agir. Atravessou o corredor em direção à sua sala com a mão direita enfiada dentro do casaco. A aula tinha começado havia poucos minutos. O professor de História continuava seu discurso pomposo sobre a economia capitalista, citando, como exemplos, pais de alunos ricos da classe, grandes empresários da cidade que, juntamente com juizes e políticos, eram ali reverenciados através de seus filhos (adolescentes arrogantes e estúpidos, mas dignos de elogios e paparicos simplesmente por serem filhos de quem eram). Entrou sem pedir licença e se colocou diante da turma, ao lado do professor, que emudeceu de susto ao vê-lo se aproximar vestido daquele jeito, com o ar cansado e sombrio, olhos avermelhados, o cabelo despenteado, ensebado. Parecia um 57 ............................ louco. Mas ninguém se moveu. Ficaram ali estatelados, atônitos, estarrecidos, os olhos esbugalhados de espanto e medo. Professor e alunos continuaram mudos e estáticos enquanto ele tirava de dentro do casaco um enorme maço de folhas, distribuindo-as, uma a uma, a todos os presentes. Eram centenas de poemas que ele escrevera nos dois dias anteriores, sobre amor, amizade, compaixão, generosidade e humildade; citações bíblicas que mostravam a simplicidade dos ensinamentos de Cristo: o amor ao próximo, o perdão, o desapego às coisas materiais; textos que ele mesmo escrevera sobre a sua própria dor, mas que terminavam sempre com mensagens de esperança e paz. Ao entregar seus escritos, andando pelas filas de carteiras como se dançasse ao som de uma melodia celestial, ele dava um beijo na testa de cada um de seus colegas, inclusive daqueles que haviam contribuído com a sua cota de matéria fecal para o presente na caixa de isopor. Dali ele saiu para as outras salas, onde também espalhou seus textos. Pregou-os em todos os murais; lançou-os nos banheiros, na secretaria, na lanchonete, nas quadras, na sala de vídeo, nos laboratórios, deixando, ao final do percurso, depois de tudo distribuído, um manuscrito de trinta páginas, de sua autoria, embaixo do caramanchão. O velho e solitário caramanchão... Um lugar de paz e tranquilidade que o acolhera durante todo o tempo em que ali viveu sua solidão junto aos livros, e que naquele dia florescia com uma exuberância jamais vista: cobria-se de flores brancas e ternas que, brilhando ao sol, pareciam querer ilustrar o título da primeira e última obra daquele jovem e triste poeta: 58 ............................ Flores brancas na noite escura da alma ............................ Labaredas na Escuridão A casa ficava numa rua estreita e escura do centro histórico da cidade. Ali, num passado distante, àquela hora da noite, bêbados e mendigos dividiam as calçadas com prostitutas desesperadas, que ofereciam seus corpos a qualquer um que passasse, muitas vezes em troca de um pão bolorento ou de um prato de sopa. Naquela noite, porém, ao caminhar pelo passeio à procura do endereço que eu trazia rabiscado num pedaço de papel, só vi sacos de lixo rasgados por cães famintos, garrafas quebradas e um gambá morto em avançado estado de putrefação. O resto era silêncio e sombras. Na mochila eu levava um caderno de anotações, uma garrafa de água e três folhas soltas de um livro há muito desaparecido. A casa tinha dois andares e parecia abandonada: vidraças quebradas, pichações, pintura descascada e mofo nas paredes davam a impressão de que ali eu só encontraria ratos, baratas e morcegos. Mas o professor Fábio tinha me garantido que o ex-vereador Alípio e seu filho ainda viviam na casa, e que o livro que eu procurava, se existisse, provavelmente estaria na biblioteca. Na entrada, acima da enorme porta de madeira maciça, esculpido em pedra sabão e já quase completamente tomado pelo mofo, o ano 1813. Bati três vezes. Pela fresta vi que uma luz mortiça, quase imperceptível, iluminou o interior. Logo em seguida, um grito raivoso ecoou como um trovão pela casa até os meus ouvidos: “Quem está aí?”. A voz não parecia ser a de alguém com mais de noventa anos, por isso deduzi que fosse 59 60 ............................ do filho. Respondi: “Sou amigo do professor Fábio”. Silêncio. O homem devia estar decidindo o que fazer – ou simplesmente amaldiçoando a vida por ter lhe trazido uma visita indesejada àquela hora, obrigando-o a interromper sua insônia em meio aos livros, enquanto o pai talvez dormisse o sono artificial dos doentes terminais, dopado com morfina e tranquilizantes. A porta se abriu pela metade e o homem que me encarou com um olhar suspeito, pouco convidativo, não devia ter mais que 50 anos. Era alto, magro, grisalho, com o cabelo cortado bem curto. Vestia uma camisa branca de algodão e uma calça social bastante surrada. “O que você quer?”, ele perguntou. Sem dizer uma palavra, abri minha mochila e tirei uma folha do livro que eu procurava. Ele a pegou, olhou-a atentamente e sorriu. “Você só tem isto?”. Tirei as outras duas folhas da mochila e respondi, mostrando-as: “Só isto”. Ele não quis pegá-las. Abriu a porta e me convidou para entrar. O interior da casa não tinha nada a ver com o exterior. O que do lado de fora parecia desleixo e abandono, no interior se transformava em aconchego, limpeza e simplicidade. Ele me indicou um sofá na sala e foi à cozinha preparar um café. O que eu sabia sobre o ex-vereador Alípio era só o que minha mãe tinha me contado uma vez aos sussurros, na mesa de jantar, enquanto baixávamos uma garrafa de vinho tinto e meu pai roncava alto no quarto com a televisão ligada. Ela me dissera que no início da década de 1960 ele era um vereador combativo, articulado em seus discursos, e que fora muito perseguido por apoiar o presidente João Goulart na 61 ............................ cidade, onde a maioria das pessoas era radicalmente contra a reforma agrária, por razões óbvias. Defendida pelo presidente Goulart em seus discursos inflamados na capital do país, a reforma da estrutura fundiária nacional era também um tema recorrente nos pronunciamentos do vereador Alípio durante as sessões da câmara municipal. Por isso – e também por ser contrário à perpetuação de duas importantes famílias no poder local, com toda a sua corja de parasitas sugando o dinheiro público sem trabalhar – ele foi violentamente perseguido: recebia ameaças de morte todos os dias; pedras eram arremessadas nas vidraças da sua casa, onde também muros e paredes eram pichados com palavrões e boatos envolvendo sua esposa e seu filho: diziam que ele espancava o menino e a mulher sem piedade e que praticava rituais de magia negra; todos os sábados, o vigário local organizava passeatas anticomunistas pelas ruas da cidade, durante as quais a população gritava, com os punhos erguidos: “Fora Alípio comunista!”, “Fora Alípio comunista!”. Os meios de comunicação locais, que pertenciam às duas famílias que se revezavam no poder, não deixavam passar um mínimo deslize do vereador, que era apresentado ao público como um político despreparado, incompetente e louco. O golpe militar de 1964 encerrou sua carreira definitivamente. Alípio se recolheu, com a esposa e o filho, à velha casa da família, construída no início do século XIX, passando a viver unicamente da sua aposentadoria e do que a mulher ganhava como costureira. 62 ............................ Nem para ir ao enterro da esposa, alguns anos depois, ele saiu de casa. Vivia recluso, juntamente com o filho, em meio a livros e jornais que ele recebia do mundo inteiro. “Meu pai era muito amigo do autor deste livro”, disse o filho do ex-vereador ao me entregar uma xícara de café bem forte e se sentar no sofá à minha frente. “Na verdade, quem o escreveu não foi o amigo do meu pai, que, como você deve saber, era um advogado muito respeitado na cidade. Foi um jovem estudante de jornalismo, muito talentoso, que foi contratado por ele para escrever o livro”. Até ali, nada de novo para mim. Eu sabia também que o contrato firmado entre os dois obrigava o jovem escritor fantasma a distribuir um exemplar do livro a todas as pessoas que fossem ao velório do advogado e a queimar os exemplares restantes. Foi exatamente isso que ele fez. O livro causou uma onda de choque muito grande. No próprio velório, vários exemplares foram rasgados na frente da viúva e de suas três filhas, inclusive o que tinha sido entregue ao meu pai, que chegou a gritar um palavrão antes de abandonar o salão. Quem me contou isso foi minha mãe. Ela estava lá e viu como as pessoas reagiam à leitura do texto: algumas choravam pelos cantos, outras gritavam insultos, com os olhos em chamas, apontando para o caixão. O próprio padre, ao ler algumas passagens do livro, deixou-o cair aos pés do enorme crucifixo que dominava uma parte da cena e saiu do velório em silêncio, sem nem encomendar o corpo. Minha mãe só observava, e ao ser arrastada pelo meu pai em direção ao estacionamento, trazia dentro da bolsa o seu exemplar, com a intenção de lê-lo mais tarde. ............................ “Você sabe me dizer por que ninguém hoje reconhece ter um exemplar ou uma cópia do livro, ou ousa falar sobre o que ele continha?”, perguntei ao homem à minha frente. Ele sorriu e se esquivou da pergunta dizendo: “Pelo visto você já conhece muita coisa sobre a história desse livro e está curioso quanto ao seu conteúdo, não é?”. Eu fiz um sinal afirmativo com a cabeça. Ele me entregou a folha que eu tinha lhe mostrado na entrada e perguntou: “A pessoa de que trata esse fragmento é o seu pai?”. Mais uma vez fiz que sim com a cabeça. Minha mãe leu o livro no mesmo dia do enterro, trancada no banheiro. Chorou muito e, depois, tomada de uma emoção confusa, que ia do ódio à compaixão, arrancou as três únicas folhas que se referiam ao meu pai e à família dele, dobrou-as cuidadosamente e guardou-as na biblioteca, dentro de um livro que ficava numa prateleira bem alta, de difícil acesso: O emblema vermelho da coragem, de Stephen Crane. Em seguida ela foi ao quintal e queimou o livro do advogado na churrasqueira. Meu pai a olhava do andar de cima, com o rosto pálido e cansado, como se dez anos tivessem se passado naquele único dia. Seus olhares se cruzaram e ele se afastou em silêncio: um silêncio que dura até hoje. Tudo isso ela me contou depois, numa outra rodada de vinho pela madrugada, após eu ter lhe mostrado as três folhas que eu tinha encontrado dentro da obra de Crane. “Meu pai também esteve no velório, como você já deve saber”, disse o filho do ex-vereador, saboreando seu café. Eu sabia. Naquele dia, o ex-vereador Alípio abandonou sua clausura e foi se despedir do velho amigo. Ao chegar, recebeu das mãos do 63 64 ............................ jovem escritor um exemplar do misterioso livro de memórias, que ele folheou com prazer. Algumas pessoas já tinham lido um ou outro trecho e se retirado; outros continuavam ali, parados, tomados pelo espanto, segurando seus exemplares abertos em alguma página específica. Ninguém nem percebeu que a chegada do ex-vereador era por si só um fato inusitado, surreal, depois de tantos anos que ele tinha permanecido fechado em sua casa, quase sem nenhum contato com o mundo exterior, a não ser através de livros e jornais. Cansada do tédio de uma relação que já tinha ido longe demais, a jovem Melissa terminou com ele no dia 29 de dezembro, já com as malas prontas para um fim semana na praia com as amigas. Era para ter sido antes, mas ela não conseguia falar, com medo de prejudicar o tratamento que ele seguia contra a depressão. Mas a indiferença durou só até ele começar a gargalhar, com seu livro aberto junto ao peito, atraindo para si todos os olhares: assustados, ferozes, indignados. Seu riso estrondoso era uma afronta não só à viúva e suas filhas, mas aos presentes em geral, feridos e humilhados pelas palavras impressas naquele livrinho que, até hoje, muitos anos depois, nesta sala sombria onde escrevo este relato, me dá calafrios na espinha. Um ano havia se passado desde que ele tentara se matar cortando os pulsos na banheira, numa manhã chuvosa de segunda-feira. Foi encontrado pela faxineira, inconsciente, mergulhado na água já completamente tomada pelo vermelho vivo que brotava de seus pulsos abertos. Foi levado às pressas pelo caseiro ao hospital, onde se recuperou, preso a tubos e aparelhos, após uma longa transfusão de sangue. Estou olhando para ele agora... Melissa tinha medo de que o término do namoro fosse mergulhá-lo de novo numa espiral de melancolia profunda que o levasse mais tarde a uma nova tentativa de suicídio, talvez bem sucedida. Preferiu ir adiando a conversa até não ter mais jeito. Labaredas na Escuridão. ............................ Na voz de Amália Foi então que, com a consciência pesada pelas inúmeras traições e pressionada pelas amigas, ela decidiu terminar o namoro de uma vez por todas numa quinta-feira à tarde, quatro dias depois do Natal, enquanto tomavam café numa lanchonete do centro histórico da cidade. Ele era funcionário de uma siderúrgica, onde trabalhava no setor contábil, e morava sozinho numa bela casa de madeira e vidro, no alto de um morro, cercada por uma floresta exuberante e assustadora. A casa era herança dos pais, 65 66 ............................ falecidos em um acidente de avião quando voltavam de Portugal, onde tinham ido visitar alguns parentes. Era jovem, com dupla cidadania, mas nunca tinha saído daquela cidade, embora conhecesse muito sobre o mundo e o ser humano através dos livros, que lia com voracidade e prazer. Era dono de uma biblioteca que, além de relíquias religiosas e místicas, que iam do espiritismo ao candomblé, possuía uma enorme variedade de clássicos, entre contos, romances e tratados filosóficos, em várias línguas (que ele dominava fluentemente, graças a uma educação de alto nível, recebida em um colégio de padres franceses). Na primeira vez que visitou a casa de vidro, numa bela noite enluarada, a jovem Melissa, que nunca tinha lido um livro na vida, ficou espantada com a cultura do namorado e pressentiu, com tristeza, que aquela relação dificilmente daria certo. Melissa era uma mulher linda. Tinha a pele clara e os olhos de um azul brilhante e intenso, como duas grandes safiras. Trabalhava como vendedora em uma boutique. Só gostava de música sertaneja e tinha como bagagem de leitura apenas o que seus amigos escreviam no Orkut e no Facebook. Ele não tinha amigos. Era de pouca conversa, não gostava de sair, e sempre que um colega de espírito mais generoso se aproximava dele, era como se um campo de forças os separasse. O namoro com a bela vendedora exigia dele um esforço quase sobre-humano, pois ele tinha que sair de casa, ir a barzinhos, ouvir música sertaneja e, o pior, aguentar os amigos dela em intermináveis churrascos regados a cerveja nos finais de semana. Ele simplesmente não tinha assunto nessas festas, pois não entendia nada de futebol e carros, e detestava ficar na beira da piscina bebendo e comendo, enquanto o álcool ia subindo às cabeças daqueles jovens, tornando-os 67 ............................ ainda mais insuportáveis: eles gritavam, dançavam e posavam para fotos com as latinhas de cerveja nas mãos, levantando-as em direção ao céu, às gargalhadas. O que ele sentia não era preconceito, pois admirava a alegria e a espontaneidade daquelas pessoas, às vezes até com um pouco de inveja. No fundo, o que ele experimentava era uma sensação de inadequação, um estranhamento que beirava a angústia e, às vezes, o desespero. Foi em meio a uma crise assim, numa segunda-feira chuvosa, depois de um longo churrasco no domingo (e com meia garrafa de vinho tinto na corrente sanguínea), que ele tentou se matar, após ligar para a namorada dizendo que a amava e que não queria perdê-la de jeito nenhum. Ela gostava dele, do seu jeito doce e olhar perdido, mas se incomodava de vê-lo fazer tanta coisa só para agradá-la, pois sabia que ele detestava sair, ouvir música sertaneja e estar com os amigos dela. O tempo que ele tinha para ler e assistir a filmes de arte, saboreando bons vinhos europeus, ele passava com ela, fazendo o que mais odiava – exceto sexo, que ambos adoravam, mas que nos últimos tempos vinha perdendo a energia dos primeiros meses. Ela, por sua vez, não abria mão do que gostava. Detestava vinho, queijo gorgonzola, filmes franceses, música clássica e não tinha nada para conversar sobre livros, pois na vida só tinha lido um, e, mesmo assim, sem concluí-lo: “A Ilha Perdida”, de Maria José Dupré. Não dava para continuar. O rompimento foi frio e rápido, ela nem quis terminar o suco. Uma praia ensolarada, homens sarados e muita cerveja a esperavam. Ele ficou ali, quieto, saboreando um café com conhaque e pensando na vida que lhe escapava, no tempo que não voltava mais. Trabalhava oito horas por dia numa empresa 68 ............................ e numa função que não tinham nada a ver com ele, e, nos últimos dois anos, tinha amado uma mulher que o fazia deixar de lado o que ele mais gostava: livros, filmes e, o mais importante: o sonho de ser escritor. Levantou-se da mesa com a certeza de que a morte não era a melhor saída, que a vida podia ser diferente, bastava ele querer. A caminho de casa, ligou o rádio numa estação qualquer, enquanto observava pelo pára-brisa do carro uma tempestade que se formava sobre a cidade. A música, um fado muito bonito na voz de Amália Rodrigues, fez com que ele pensasse no país de seus avós, na cidade onde nascera sua mãe e para onde seu pai se exilara na juventude para fugir da família e dos falsos amigos que o sufocavam no Brasil. Lisboa. Sempre quis conhecer a velha Lisboa, suas ruas e colinas cheias de história e encanto, seus fados, seus cheiros, suas texturas e cores... ............................ parte do dia para ler e a outra para procurar emprego em algum jornal como cronista, revisor ou tradutor. Alguns meses depois, suas histórias de terror começaram a ser publicadas em revistas e jornais de Lisboa, Porto e Coimbra, mas ele recebia muito pouco por elas. Foi quando um conhecido da pensão, que havia sido livreiro em Paris por mais de trinta anos, deu-lhe os endereços de algumas editoras e revistas em Londres, que eram especializadas em histórias de terror e que, segundo ele, pagariam muito mais pelos seus contos. “Seus textos são muito bons, não devem ficar restritos aos jornais portugueses”. O jovem escritor achou a ideia interessante e começou a escrever em inglês, língua que dominava desde a infância. (Aos nove anos, quase sem consultar o dicionário, leu todos os contos do monumental Grimms’ Fairy Tales, de onde talvez tenha surgido a sua paixão por bruxas e monstros). Por que não? Suas histórias foram muito bem aceitas pelo público inglês, e como eram escritas numa língua universal, correram o mundo com uma velocidade espantosa, causando enorme sensação entre o público e a crítica especializada. Naquele mesmo dia colocou a casa à venda, pediu demissão do emprego e comprou uma passagem só de ida para Portugal. Levou consigo apenas algumas roupas, três manuscritos esquecidos no fundo de uma gaveta, contendo vinte pequenos contos de terror (que ele escreveu quando tinha 18 anos), e o desejo ardente de fazer a vida valer a pena. Um ano depois de chegar a Lisboa, uma coletânea de seus contos já tinha sido publicada por uma importante editora inglesa, que vendia milhões de cópias do livro nos quatro cantos do mundo, e sua primeira novela de terror já estava no prelo, sendo aguardada com ansiedade por um público ávido por tramas inteligentes, mistério e muito sangue. Em Lisboa, alugou um quarto numa pensão barata, próximo à estação de metrô Saldanha, na Avenida Almirante Reis. Comprou um notebook e se pôs a escrever, reservando uma Porém, ele continuou no anonimato, vivendo na mesma pensão da Avenida Almirante Reis, tomando o café da manhã na mesma pastelaria da esquina – onde pedia sempre uma tosta mista com café Sical –, almoçando no restaurante da 69 70 ............................ Biblioteca Nacional e jantando um sanduíche de fiambre na Casa das Sandes. Publicava seus textos sob o pseudônimo de Daniel Zafón, e fazia questão de não aparecer (ele até recusou uma entrevista no programa da Oprah Winfrey, que tinha lido um comentário elogioso sobre sua coletânea de contos, feito por ninguém menos que Stephen King, o mestre do macabro). ............................ Partir O jovem Pierre acordou às três da madrugada, todo molhado de suor, apesar do frio intenso que invadia o seu quarto pelas frestas da janela, em rajadas de vento e neve. Num sábado de primavera, passeando pelas livrarias do Chiado, ele conheceu a mulher que em menos de seis meses se tornaria sua esposa, e com quem voltaria para o Brasil. Ela era angolana e trabalhava como bancária. Não gostava muito de livros nem de filmes, nem trocava uma cerveja por um vinho, mas era generosa, e soube naquele momento que ali estava o homem da sua vida. Enrolou-se num pesado casaco de lã e foi alimentar o fogo na lareira. Foi assim que se conheceram, num café da Rua Garret, próximo à Praça Luiz de Camões, em Lisboa, onde conversaram por mais de duas horas, ouvindo, ao fundo, os mais belos fados portugueses, na inesquecível voz de Amália. Esfregou vagarosamente as mãos sobre o fogo que ardia e estalava num dos cantos do quarto, pensando nas expressões de espanto, desespero, ódio, medo e também de indiferença e resignação que tantas vezes ele vira nos rostos dos condenados minutos antes da lâmina da guilhotina cortar fora as suas cabeças. Algumas rodopiavam no ar antes de cair na cesta de vime que ficava no chão, próximo ao patíbulo. Outras, maiores, mais redondas e gordas, caíam como jacas maduras ou pesados queijos Roquefort, sem muita acrobacia, produzindo, ao atingir o fundo da cesta, um baque só um pouco mais audível que o de uma cabeça menor. Outras, porém, devido ao formato do crânio e da face, ou talvez em decorrência de uma contração muscular mais forte no pescoço do condenado, além de rodopiarem várias vezes no ar, saltavam dos troncos com tanta força, que caíam fora da cesta até dois ou três metros adiante, para delírio da multidão que se aglomerava ao redor da guilhotina. 71 Às quatro horas ele daria início à limpeza do cadafalso, pois antes mesmo do nascer do sol haveria uma nova execução, seguida de outras trinta, naquele dia sombrio de inverno do ano de 1793, em Paris. 72 ............................ O que pensavam os infelizes naquela hora? O que passava pelas suas cabeças nos segundos que antecediam a decapitação? O que eles sentiam no momento em que a lâmina ceifava a carne e os ossos dos seus pescoços? E no instante seguinte, quando a cabeça, já separada do tronco, caía ao chão? ............................ tomando muito cuidado para conservar intactos os seus dedos que, mesmo enluvados, tremiam de frio. Depois começou a esfregar o chão do estrado, cujas manchas resistiam mais à escova e ao sabão. Mas foi interrompido pela chegada de um amigo, que subiu a escada sorrindo, meio cambaleante, como se acabasse de sair de uma festa. “Tenho que ir”, disse para si mesmo o jovem Pierre, enquanto comia um pedaço de queijo e se dirigia à saída, espantando com o pé esquerdo uma enorme ratazana que seguia lentamente pelo corredor. “Olá, Pierre”, disse o amigo. Lá fora o frio era cortante, mas Pierre estava bem agasalhado; e também aquele não era o seu primeiro inverno como trabalhador pobre nas madrugadas escuras e geladas de Paris. “Pierre, meu caro, não tenho muito tempo para você hoje. Aliás, em breve não terei tempo para mais nada. Só vim para te esclarecer uma dúvida que, na última vez que nos encontramos, neste mesmo cadafalso, você começou a me explicar, mas não terminou, porque fomos interrompidos pela chegada da carroça, lembra?”. Quando ele chegou à praça onde se erguia o cadafalso, o vento soprava preguiçosamente alguns pequenos flocos de neve, castigando-lhe a face desprotegida, que ardia e queimava de frio. Havia neve depositada no chão de terra batida, mas não em quantidade suficiente para esconder as marcas de sangue deixadas por algumas cabeças que, como balas de canhão, tinham sido lançadas ao solo no dia anterior. A lâmina encontrava-se também com manchas e respingos escuros de sangue coagulado e congelado, assim como a parte do estrado que ficava próxima ao local de decapitação. Seu trabalho era limpar tudo aquilo até a chegada da carroça que traria o primeiro condenado do dia, juntamente com uma multidão de curiosos, que se deliciava com cada espetáculo do Terror. “Henri!”, respondeu Pierre, levantando-se lentamente e afastando com o pé o balde e a escova para o amigo passar. “Claro que me lembro!”, disse Pierre empolgado, com os olhos pregados no rosto pálido do amigo, que perguntou: “E então?”. Em resposta, Pierre reformulou a sua dúvida: “Naquele dia, o que eu queria saber era se a cabeça, separada do tronco, logo após o encontro da lâmina com o pescoço, tem consciência de que ela se encontra decapitada”. Henri passou a mão direita em seu pescoço nu, seguindo com os dedos o contorno de uma linha avermelhada e grossa que o rodeava como um cordão apertado, e respondeu: Começou a limpeza pela lâmina, que ele esfregou com força até que todos os resíduos de sangue desaparecessem, 73 74 ............................ “Como eu mantive os olhos abertos, pude ver uma parte do estrado e também a cesta de vime, que ficava ali embaixo. Ouvi as pessoas gritando e também o assobio da lâmina que descia veloz. Naquele momento, a única imagem que me veio à mente foi a do meu filho de dois anos correndo e brincando no pátio da nossa casa, feliz, enquanto eu lia um livro de M. de Voltaire. Mas quando a lâmina separou minha cabeça do tronco, no exato momento do corte, tanto a imagem reconfortante da memória quanto a da terrível realidade desapareceram, para no mesmo instante darem lugar a um turbilhão de imagens confusas, mas que eu pude identificar como sendo o céu, o sol, as pessoas, os prédios, o chão, tudo em movimento, girando, girando velozmente, até eu ver, numa espécie de fixidez instável – como se eu estivesse bêbado –, os pés de uma enorme multidão”. ............................ Vou me entregar, Pierre... vou partir, como muitos outros partiram... Partir...”. Silêncio. Os dois amigos se olharam, preparando-se para um abraço fraterno, quando, de repente: “A carroça”, disse Pierre, levantando os olhos em direção à avenida. No segundo seguinte, voltando-se novamente para o amigo: “Henri...”. Mas ele já tinha partido. “Mas e depois?”, perguntou Pierre, os olhos brilhando de curiosidade. “Depois, no instante seguinte, eu vi uma luz, uma luz azulada que brilhava intensamente à minha frente, e eu estava de pé, com a cabeça de volta ao tronco, sem dor, sem medo, sentindo uma espécie de chamado, um chamado silencioso, vindo da luz. Mas eu não queria entrar. Eu lutei, desvencilhei-me daquele campo de forças com determinação... Gritei que não, que não... E aqui estou eu: um morto que vaga pela cidade, e que é visto por alguns, como você, que possuem um dom especial que eu ainda não sei explicar...”. Henri fez uma breve pausa, enquanto olhava o vazio, e continuou: “Mas como eu disse, não dá mais para ficar. Vou me entregar. Eles já me procuram, me cercam, tentam uma aproximação... 75 76 ............................ Café com ingleses Meu nome é Lucas, tenho 28 anos e sou escritor. Vivo de criar e solucionar enigmas, que são publicados em revistas e sites especializados no mundo inteiro. Trabalho em casa ou em qualquer outro lugar, desde que haja por perto uma boa máquina de café expresso, como a que eu tenho na minha cozinha: uma obra-prima italiana que, se honrada com os grãos que ela merece, faz um café maravilhoso, com espuma espessa e aroma intenso – um aroma que entra pelo nariz e atinge a alma em menos de dois segundos. E a alma em júbilo agradece, pressentindo, através de suas conexões mágicas com os sentidos do corpo, o equilíbrio perfeito entre o ácido e o amargo, entre a vontade de alçar vôo até as portas do Céu e a de ficar naquele corpo que, embora em putrefação, desfruta todos os dias aquele líquido misterioso e demoníaco. Não tenho emprego com carteira assinada e, como eu disse, não preciso bater ponto em lugar nenhum, louvado seja! Trabalhei uma vez numa empresa que me prendia num cubículo de dois metros quadrados por mais de dez horas por dia e me fazia digitar milhares de cartas e ofícios desanimadores, que os chefes só assinavam e mandavam despachar sem nem olhar para mim. E eu pensava: “Será que o meu futuro é um dia me sentar numa destas cadeiras de couro, dar ordens, fiscalizar, assinar papéis e ganhar dinheiro para pagar o apartamento de luxo, o carro importado, as plásticas da esposa, as férias no resort e os colégios e faculdades caríssimos dos filhos?”. Um dia eu tive a certeza: não era aquilo que eu queria para mim. Por isso, depois de dois anos sendo explorado e 77 ............................ humilhado por aqueles magnatas do carreirismo, que só pensavam em competitividade e estratégias disto e daquilo, resolvi pedir demissão e viajar pelo interior, para pensar um pouco sobre o que fazer da vida. Eu era fascinado por histórias de detetive. Quando entrei no ônibus para Diamantina, numa fria manhã de julho, na mochila eu levava oito livros dos grandes mestres do romance de enigma, todos em inglês, língua que eu dominava desde pequeno (porque meus pais, embora pobres, sempre se preocuparam com a minha educação). E assim que eu arrumei o meu primeiro emprego, matriculei-me também em um bom curso de francês, o que me deu acesso a um outro universo cultural, sobretudo no campo da literatura e do cinema. E sozinho em casa, com a ajuda de apostilas e dicionários, aprendi também o espanhol, porque eu queria ler Marsé, Rulfo e Vázquez Montalbán no original. (E como é bom ler os grandes mestres no original!). No dia seguinte, sentado na mesa de um restaurante com vista para o belo centro histórico de Diamantina, escrevi, em inglês, o meu primeiro conto que seria publicado e me renderia algum dinheiro. Nada espetacular: somente alguns dólares, que me permitiram comprar os últimos lançamentos internacionais e me inscrever num clube inglês para escritores iniciantes. Quando eu trabalhava na firma de advogados, trancafiado lá dentro como numa jaula, minha criatividade recebia poucos estímulos. O que eu escrevia todos os dias, nas intermináveis horas de expediente, era uma simples reprodução de modelos padronizados, restando pouco tempo para o que eu realmente gostava: ler, criar e escrever histórias de mistério. À noite, quando eu chegava em casa, ia direto para o computador, onde quase sempre encontrava um conto pela metade, e 78 ............................ escrevia até de madrugada. Outras noites eu me dedicava à leitura ou ao estudo do inglês, francês ou espanhol, sem saber aonde aquilo me levaria. Uma vez cheguei até a pensar que escrever contos de mistério e estudar línguas estrangeiras era uma grande bobagem. Acabei me matriculando numa faculdade de Direito, onde estudei por quase um ano, à noite, ficando esse tempo todo sem fazer o que realmente me elevava o espírito. Perdi a capacidade de inventar e criar, tornando-me um robô, pois nessa faculdade o ensino era péssimo, exigindo dos alunos tão somente a simples reprodução mecânica de informações: um desperdício da inteligência humana. Desisti da faculdade no dia em que fui punido por interpretar um dispositivo legal de forma contrária à interpretação do professor. Aquilo para mim foi demais. Na noite seguinte eu já estava de novo às voltas com meus livros, lendo e escrevendo. Mas voltemos a Diamantina. Ali estava eu, sem trabalho, só com o dinheiro do meu acerto e das poucas economias que eu havia feito durante três ou quatro anos de sofrimento. Naquela mesa afastada do restaurante, de frente para uma janela de vidro que se abria para um belo conjunto de sobrados do século XVIII, escrevi um conto assustador, sobre um livro misterioso que levava à morte a maioria dos seus leitores. No dia seguinte, enviei o conto a um famoso site inglês, o mystery.com, que o aceitou sem nenhuma ressalva. Recebi a notícia em casa, por e-mail, algumas semanas depois, no sábado à noite. Minha alegria foi tanta que resolvi abrir um vinho tinto francês – que me havia custado uma pequena fortuna –, guardado a sete chaves para o dia da minha aposentadoria. Não resisti. Liguei a tv no programa Bouillon de Culture, tirei a roupa e passei duas horas no sofá, feliz da vida, 79 ............................ assistindo a uma entrevista com a escritora Amélie Nothomb, enquanto baixava o vinho e comia queijo prato com azeite de oliva. Naquela mesma semana recebi um e-mail de um agente recrutador do mystery.com, um inglês que morava no Brasil, me convidando para visitá-lo no seu apartamento. Fui sem pensar duas vezes. Cheguei e encontrei a porta aberta, com um bilhete me autorizando a entrar. Entrei e chamei. Nenhuma resposta. O apartamento parecia ser enorme. Era mobiliado e decorado como se fosse uma mansão inglesa do século XIX, no melhor estilo vitoriano: móveis pesados, de jacarandá ou mogno, com detalhes de madrepérola; paredes cobertas por quadros retratando belas paisagens do campo inglês; numerosos candelabros, luminárias e enfeites que lembravam o Oriente na época do Império; e num canto da sala, sobre um móvel que devia ter mais de trezentos anos, várias peças do que me pareceu ser a legítima cerâmica chinesa da Dinastia Song. Porém, não tive tempo de testar meus conhecimentos de História da Arte. Ouvi um grito assustador vindo do interior do apartamento e corri para ver o que tinha acontecido. Ao empurrar a porta do primeiro quarto, de onde eu supus ter vindo o grito, deparei-me com uma cena horripilante: um jovem loiro deitado na cama, tremendo, com as mãos no pescoço, na altura da garganta, de onde saía, num jorro contínuo, uma quantidade absurda de sangue. Ele me olhava e gorgolejava, como se dissesse “Cuidado”. Foi quando me virei e vi uma velha de camisola, segurando uma faca de açougueiro, vindo em minha direção. Gritei desesperado e corri em direção à janela, esquecendo-me de que estávamos no décimo andar. Foi aí que ouvi as gargalhadas. O rapaz loiro estava de pé na 80 ............................ cama e a velha tinha se transformado num outro rapaz, talvez um pouco mais velho que o primeiro, e ambos riam, quase sem fôlego. Não gostei da brincadeira, mas relevei. O rapaz loiro se chamava Nicolas, e o outro, seu namorado, era Alec, dois ingleses endinheirados que trabalhavam para o site mystery.com no Brasil. Recebi deles um convite para integrar a equipe brasileira de escritores de mistério do mystery.com (que, além de site, era também editora e promovia uma série de festivais e eventos relacionados à literatura de enigma no mundo todo, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, onde as pessoas lêem muito mais do que na América Latina). “Seu conto ‘Labaredas na Escuridão’ foi muito bem recebido pelos fãs”, disse-me Nicolas, “e por isso o site quer fazer um teste com você”. ............................ o primeiro gole, perguntei: “O que é isso?”. Os dois amigos sorriram um para o outro, e Alec respondeu: “Um café expresso, o que mais poderia ser?”. E eu olhava para o café, para aquela espuma dourada que se prendia na borda interna da xícara, consciente da pergunta idiota que eu acabara de fazer, mas ao mesmo tempo enfeitiçado pela novidade daquele sabor e daquele aroma, que me evocavam recordações de vidas passadas, além de me aguçarem a lucidez e a criatividade de uma forma inteiramente nova e inesperada. Nicolas interrompeu meus pensamentos dizendo que talvez o que eu queria saber era que tipo de café expresso era aquele. Eu balancei a cabeça em sinal de afirmação e lentamente sorvi mais um pouco da bebida, maravilhado com as sensações que ela me provocava. A resposta não podia ser mais clara: “Esse café é feito com os melhores grãos que existem no mundo, numa máquina que, na minha opinião, também é a melhor do mundo”, disse Nicolas. Mas voltemos ao teste. Estávamos sentados num dos enormes sofás da sala de estar, cercados por obras de arte que deviam valer uma fortuna. Alec tinha ido preparar um café e se demorava na cozinha. Nicolas me perguntava sobre a minha vida. Quis saber se eu fazia outra coisa além de escrever. Eu disse que tinha pedido demissão de um emprego que me mantinha em baixíssimo nível de ideias e que agora eu queria me dedicar em tempo integral à literatura. Nicolas gostou muito do que ouviu e me disse que, se eu passasse no teste, eles me pagariam quatro mil dólares por mês para eu escrever um conto por semana. Terminado o café, Nicolas me explicou que, para ingressar na equipe de escritores do mystery.com, eu teria que transformar aquele meu conto “Labaredas na Escuridão” em um romance de 200 páginas, escrito em inglês, em um prazo de quatro meses. Eu poderia ficar no apartamento da frente, que também era deles, “e”, acrescentou Nicolas sorrindo, “você terá direito a quantos cafés quiser, pois o apartamento destinado a você está equipado com a mesma máquina que acaba de fazer esta maravilha aqui”. “E qual é o teste?”, perguntei animado. Fiquei sem palavras. Quando Nicolas ia começar a me responder, Alec entrou na sala trazendo uma bandeja com três xícaras de café. Ao beber Os dois jovens me encaravam com olhos cheios de mistério. 81 82 ............................ “O que me diz?”, perguntou Nicolas. ............................ O mistério da caixa-preta Fui conduzido por um jovem militar fardado até uma sala onde duas cadeiras e uma mesa constituíam todo o mobiliário, e fui apresentado a um outro militar, mais velho, talvez com pouco mais de quarenta anos (embora seu olhar cansado e seus cabelos grisalhos lhe dessem um ar triste de sexagenário enfastiado com a vida). Quando entrei na sala, o militar de meia-idade se encontrava sentado numa das cadeiras, com as mãos em cima da mesa, folheando alguns papéis. Ao me ver, fez um gesto quase imperceptível com a cabeça, indicando-me a outra cadeira. O militar mais jovem fez uma continência e foi embora, fechando a porta atrás de si. Senti que algo muito sério e misterioso pairava no ar, pois ao me sentar, o militar me fez ler e assinar um termo de sigilo e confidencialidade, deixando claro para mim que o vazamento de informações sobre aquele caso complicaria muito a minha vida. Não questionei nada, pois naquele momento a curiosidade já tomava conta do meu espírito, fustigando-o, empurrando-o na direção do medo, como sempre acontecia quando eu me encontrava prestes a aceitar uma nova missão. Sou conhecido no mundo inteiro por lidar com o sobrenatural. Escrevi mais de vinte livros, nos quais analiso casos de arrepiar os cabelos. Porém, nos meus trinta anos de carreira, lidando com fenômenos paranormais de vários tipos, aquele foi o primeiro termo de sigilo que eu fui obrigado a assinar, o que me surpreendeu, apesar de toda a minha experiência no ramo, fazendo meu coração disparar de ansiedade. 83 84 ............................ O caso era completamente novo para mim: Um avião bimotor com dez passageiros e três tripulantes a bordo perdeu contato com os controladores de vôo e desapareceu do radar às 23:53, no dia sete de junho. Até um minuto antes, o contato com a torre de controle tinha sido normal, sem nenhum sinal de alarme ou de tensão entre os pilotos. Mas, de repente, tudo se apagou. Era uma noite escura, com céu nublado, mas sem risco de tempestade; nada indicava uma pane nos instrumentos, e o contato com outros aviões naquela região mantinha-se normalmente, sem problemas. Até aí tudo indicava um grave acidente, cuja causa certamente seria explicada quando a caixa-preta fosse encontrada em meio aos destroços. Só que não havia destroços. O avião foi encontrado, mas intacto, como se tivesse realizado um pouso suave na pista de um aeroporto qualquer. Todos os equipamentos funcionavam perfeitamente, sem nenhum problema. O que, no entanto, deixou os militares perplexos foi o fato da aeronave ter sido encontrada no alto de uma montanha, em uma área de topografia acidentada, cercada por enormes rochas pontiagudas e árvores, não havendo a menor possibilidade de ter ocorrido ali um pouso normal de avião. “Eu estava lá e vi tudo com meus próprios olhos”, disse o homem à minha frente, tentando disfarçar o espanto. (Ele fazia parte da equipe de busca que encontrou o avião, no dia seguinte ao desaparecimento). “Eu estava lá, tirei fotos, mas até agora não consigo acreditar...”. 85 ............................ A curiosidade me sufocava, meu corpo todo tremia, mas ao mesmo tempo eu sentia pena daquele homem desamparado, que me encarava com lágrimas nos olhos, incapaz de disfarçar a emoção que aquela narrativa lhe provocava. “Veja as fotos”, disse ele, estendendo para mim uma pasta de cor parda, que ele tirou de uma pequena gaveta na mesa. A primeira foto era do avião visto à distância, cercado de rochas e árvores, em meio às montanhas. As árvores ao seu redor, por todos os lados, estavam intactas, com seus galhos frondosos, cheios de folhas: só isso já provava a impossibilidade de um pouso naquela área. Mas tudo, TUDO naquela foto gritava: IMPOSSÍVEL: as pedras, os morros... Nenhuma marca no chão, nenhum destroço; o trem de pouso baixado, limpo, impecável, como se tivesse sido acionado para uma aterrissagem normal. Outras fotos mostravam detalhes do avião: nada, absolutamente NADA que indicasse um pouso forçado – na verdade, nada que indicasse um pouso. Como teria aquele avião chegado ali? Essa era a primeira pergunta sem resposta, o primeiro enigma daquele caso intrigante e assustador. Mas o pior ainda estava por vir, o fato mais espantoso e inexplicável de todos, algo que eu nunca tinha visto em toda a minha vida: As fotos seguintes mostravam o interior do avião. Na primeira, em um plano afastado, todos os passageiros apareciam sentados em suas poltronas, como se prosseguissem viagem. Mas um detalhe importante saltava aos olhos do observador 86 ............................ atento: mesmo à distância, era possível perceber em seus rostos (em todos eles) um sorriso enigmático. ............................ eu faria tudo para solucionar aquele mistério, por sua família desaparecida, por ele, por mim... “Estão todos mortos”, disse o militar, mergulhando o rosto na mesa, entre os braços cruzados. Consegui ouvi-lo dizer, balbuciante: “Os laudos das autópsias não revelam nada, absolutamente nada... Nenhuma causa...”. Terminada essa troca de silêncios, ele se levantou da cadeira e abriu a porta da sala, chamando uma mulher que se encontrava parada no corredor: “Major, por favor, traga a caixa-preta”. Olhei as outras fotos: cada rosto individualmente, em close: cada sorriso, cada olhar... Todos mortos? Não dava para acreditar... Mas, no entanto, era verdade. Dava para ver que os sorrisos e os olhares, que me pareciam ser de prazer, de encantamento, de entrega a um destino almejado por todos, desenhavam-se em corpos já sem vida, tomados por aquilo que a interrupção definitiva da existência terrena lhes imprime: rigidez, palidez... Mas os sorrisos eram vivos: eles transmitiam uma mensagem que, para mim, naquele momento de emoção intensa, ainda era confusa, mas que me levava a pensar em tudo, menos na morte. Nada ali transmitia medo, agonia, dor, aflição, sofrimento, mas justamente o contrário: naqueles sorrisos eu via alegria, esperança, satisfação, regozijo, prazer. A caixa-preta... O que teria registrado a caixa-preta daquele vôo para a morte? “Você se acha suficientemente espantado e perplexo?”, perguntou-me ele, enquanto se acomodava de novo na cadeira. Não respondi. A porta se abriu e uma pasta escura e volumosa foi posta sobre a mesa por uma militar séria e compenetrada. “Obrigado”, disse o homem, enquanto a mulher se retirava, fechando a porta. O que era aquilo, meu Deus? O homem levantou o rosto, olhou para mim como se o mundo desabasse ao seu redor e isso lhe fosse indiferente, apontou para duas fotos, uma ao lado da outra, e disse: “Minha esposa e meu filho”. “Então”, continuou ele. “Você se acha suficientemente surpreso e intrigado com o que eu lhe contei e mostrei até agora?”. Eu não conseguia responder. Um silêncio profundo tomou conta da sala naquele momento. Nossos olhares se pregaram um no outro: o dele implorando uma explicação que o salvasse de si mesmo, resgatando-o do abismo da dor, do sofrimento; e o meu dizendo que sim, que 87 Ele sorriu e disse, sem disfarçar a dor que dilacerava seu peito: “Só que o mais espantoso e assustador vem agora... Está aqui...”. 88 ............................ E ele bateu a mão direita três vezes sobre a pasta: Sem esperar minha resposta, ele tirou de dentro da pasta um gravador, colocou-o bem perto de mim, apertou um botão vermelho e se retirou da sala. ............................ Um homem me persegue, eu o vejo se aproximar, caminhando lentamente pela rua imunda: um homem que fará de tudo para me destruir. Eu corro, desesperado, mas ele está no meu encalço. Veste-se com os paramentos, adornos e insígnias de um oficial bem colocado na hierarquia administrativa da época (mas que época? Onde?). Entro na multidão de gente suja, que fala uma língua que eu não conheço (Polonês? Alemão?), e, de repente, ele está bem na minha frente, olhando para mim: esse olhar... O olhar do lobo que encontra a sua presa... Vejo-o aqui, refletido no vidro desta cabine, neste avião: esse olhar que me chega do passado, abrindo com seu ódio as névoas do tempo. VOZ DO PILOTO: Não o vejo mais. Vou registrar tudo. Estou agora deitado na grama de um jardim, próximo a um riacho. Sou um velho e não consigo falar. Da minha boca escorre uma baba branca, que uma mão feminina limpa com um lenço bordado, de fino tecido. Não vejo o rosto da moça, mas sinto a sua presença reconfortante, o seu toque delicado, e ouço a sua voz dizendo “Obrigada por tudo... Obrigada”. Sou um idoso que se aproxima da morte; mas não sou aquele rapaz pobre, de olhar cansado, cinquenta anos mais velho. Sou outra pessoa, em outro lugar, em outra época – uma época anterior à que viveu o rapaz. Percebo isso pela minha roupa, pela minha peruca e pelo som de uma música que me chega de algum lugar atrás de mim (uma música composta naqueles dias, sendo tocada ali pela primeira vez). Sou um velho que viveu uma juventude completamente diferente da que teve aquele jovem (que também sou eu), embora com a mesma carga de sofrimento e dor, talvez ainda mais pesada (eu sinto isso). “Na caixa-preta”. Nossos olhares se cruzaram de novo e ele me perguntou: “Está preparado?”. Vejo à minha frente, pelo vidro da cabine (onde deveria estar simplesmente a noite escura que nos cerca), um rapaz de olhar cansado, mas ao mesmo tempo iluminado, cheio de vida. Sou eu – tenho certeza que esse rapaz sou eu –, mas ele não tem o meu rosto, o meu cabelo, o meu corpo; talvez o brilho do seu olhar se pareça um pouco com o meu...– não sei se o brilho, mas certamente alguma coisa no olhar (ou por trás do olhar...). Veste-se como um mendigo e está caminhando pelas ruas de uma cidade suja e fedorenta: eu sinto o cheiro da cidade: um cheiro de podridão, de fezes e vômito; vejo a sujeira acumulada na rua sendo pisada por pessoas e cavalos, que correm de um lado para outro, sem parar. Olho para um prédio em construção que, com certeza, não é da nossa época, nem desse país. Eu olho? Sou eu? Sou agora uma mulher que, afobada, puxa a sua filha pelas ruas de uma cidade que não me é estranha. Ouço falarem a minha língua, sinto cheiros familiares: amendoim torrado, O que eu faço ali, meu Deus? 89 90 ............................ pipoca, canela, pequi. Entro numa casa pobre e subo as escadas até um quarto onde um grupo de pessoas se reúne em torno de um moribundo: meu pai. Não o reconheço em meio aos lençóis imundos, respingados de sangue, mas esse homem é meu pai, o pai daquela mulher que sou eu. Uma senhora gorda de meia-idade me abraça, aos prantos, enquanto minha filha se dirige à cama, chorando, e cai sobre o corpo quase sem vida do avô. Meu pai, meu pai... Esse homem não é meu pai (não o pai deste piloto que vos fala). Meu pai morreu jovem, eu me lembro dele, do seu rosto, do seu sorriso... A menina, minha filha (mas eu não tenho filha!), abraçada ao avô, levanta-se e olha para as pessoas ao seu redor: eu vejo as suas mãos trêmulas, sinto a sua dor, e lá no fundo, bem no fundo da sua alma, sinto uma presença maligna, um resto de maldade... Ela precisa de mim, que sou sua mãe; da mesma forma que aquela jovem do passado precisou do velho que, no final da vida, recebeu de suas mãos agradecidas os últimos gestos de reconforto, as últimas carícias. A senhora gorda me olha e me beija a face. Segura firme as minhas mãos. Não a conheço, mas sinto que ela está aqui também, neste avião... Suas mãos são fortes, seu amor é imenso: eu posso contar com ela, e minha filha também... De repente sinto um calafrio e lá está ele: o lobo. Ele está próximo à cama, sério, com o semblante triste; mas de toda a desgraça que caiu sobre a minha família, eu posso dizer: foi ele o causador; e sinto, naquele momento, que ainda vou sofrer muito em suas mãos. Não é mais aquele oficial da magistratura ou do exército daquela cidade imunda; é um jovem de no máximo vinte anos, mas que traz na alma uma maldade de séculos (e eu vejo isso em seu olhar: o mesmo olhar que me encarou com ódio naquela cidade perdida no tempo e no espaço, em meio à multidão). Ele está aqui por algum motivo: aqui, neste quadro de tristeza, de dor e luto: neste quarto 91 ............................ sombrio e triste que é o do meu pai moribundo; mas também aqui, neste avião: ele está aqui, entre nós, talvez tendo as mesmas visões fantasmagóricas e inexplicáveis... E a minha filha? Eu olho para ela, vestida como uma criança pobre dos anos 1910 ou 1920 (não sei bem), sem reconhecê-la, mas sabendo que é minha filha. Aproximo-me dela, trago-a para junto de mim, e a encaro nos olhos... E vendo agora a cena (enquanto avançamos rumo ao desconhecido, sem nenhum contato com o mundo exterior, sem nenhuma chance de socorro), sinto a presença dela, dessa mesma menina, ao meu lado, deitada na grama junto ao riacho, limpando a minha baba de velho, há trezentos anos... O que eu fiz por essa criança? E de repente me vejo de novo naquela cidade suja (agora longe do meu perseguidor), entrando em um barraco de madeira cercado de lama, com ratos correndo para todos os lados. Ali dentro está minha mãe doente e faminta. Dou-lhe um pedaço de pão e leio para ela algumas passagens da Bíblia, o que lhe alivia um pouco o sofrimento e o cansaço causados pela tuberculose. Seu corpo treme a cada palavra minha... Mas não é que elas estão ali também? A minha filha com seu pranto no quarto do avô moribundo e a jovem ao lado do velho na grama ouvindo música... A mãe daquele jovem mendigo que sou eu é a filha daquela mãe desesperada que sou eu e uma amiga, sobrinha ou mesmo filha daquele velho inválido que sou eu também! São a mesma pessoa... Não... O mesmo espírito! O mesmo espírito... LONGO SILÊNCIO 92 ............................ Outras cenas... Outros homens, outras pessoas (jovens e velhos, mulheres e crianças) que são eu. Vi tudo... Outros amigos, em vários lugares, em várias épocas, que se repetem, para me fortalecer, para me ajudar: a senhora gorda aparece três vezes (e ela está aqui conosco nesta viagem – eu sei que está –, não como uma velha gorda, mas como um senhor calvo, de óculos grossos – eu o vi na entrada do avião e sei que é ela, eu sei...); o lobo faminto (cheio de ódio e maldade) aparece em todas as cenas para me destruir, mas acaba me fortalecendo cada vez mais (no riacho ele é um pescador que olha para trás, erguendo um peixe, e me encara, sentindo prazer por me ver decrépito e inútil): e ele também está aqui, neste avião, eu sei: já não carrega mais todo aquele ódio de séculos: já sofreu o bastante para se corrigir, para se purificar: seus filhos e netos já sofreram muito por ele... Todos estão aqui, com outros rostos (eu me lembro deles na entrada: são eles...). Olhe para mim, Joel, deixe-me ver seus olhos... É você... Não há dúvida. No seu último suspiro, o pai daquela mulher que sou eu abriu os olhos, e você está lá, Joel... Vejo seu olhar naquele olhar, um brilho apagado e triste, mas é você... E agora te vejo também em outros rostos... Em outras épocas e lugares... Você entendeu? Nossa missão acabou... Sinta a recompensa, Joel... Você está sentindo? Ele está lá atrás, junto com os outros. Nós conseguimos... SILÊNCIO Eu vi, Joel, eu vi o que ele fez. Foi terrível! Nós o ajudamos, meu amigo... Ele foi salvo e segue agora conosco para uma 93 ............................ outra missão, livre dos sofrimentos que o atormentaram e torturaram por séculos. Ele não vai cedo demais (não existe cedo demais). Ele é jovem (o seu corpo é jovem), mas seu espírito está pronto para uma outra vida... Eu o batizei, Joel. Seu pai é meu amigo, um militar digno e honesto, mas triste, muito triste. Eu o batizei nesta vida e o acompanhei até aqui, trazendo junto com ele a sua mãe, uma jovem bondosa e cheia de amor, que nos ajudou várias vezes no passado (neste e em outros.). E como eu sofri, Joel... Como eu cresci e me aperfeiçoei nessa grande jornada! Como nos aperfeiçoamos! Desse garoto eu fui pai, mãe, amigo, filho, por várias vezes, e agora sou seu padrinho em Cristo, nosso Pai, que nos conduz de volta, juntos, à sua casa, pois Ele precisa de nós, neste momento: de nós treze – juntos – para uma nova missão. E tem que ser agora. Por isso estamos aqui... Sinta a recompensa, Joel... Não é maravilhoso? Você sente também... Todos lá atrás estão sentindo a mesma alegria, a mesma sensação de dever cumprido, o mesmo regozijo, o mesmo encantamento... Mas por que temos consciência disso? Por que essa verdade nos foi revelada? Será que vamos nos esquecer de tudo quando o avião cair? SILÊNCIO Esta música... Você está ouvindo, Joel? É a mesma música que eu ouvi deitado na grama, no jardim, às margens daquele riacho, enquanto recebia os cuidados daquele espírito perturbado que nos fez chegar aonde chegamos (a este avião, a esta paz, a esta alegria), e que agora está ali atrás, entre os passageiros, salvo, ao lado da mãe... 94 ............................ ............................ O sol então brilhou mais forte Esta música, Joel... Só pode ser obra divina... O pai não perdia a filha de vista. Só pode vir dos Céus... Ela tinha seis anos, cabelos lisos e loiros, pele clara, brilhante, e um olhar vivo de menina saudável, feliz. Vestia o uniforme da escola (saia azul e camisa branca), e estava de tênis, porque era dia de Educação Física. O PILOTO ASSOBIA UMA MÚSICA POR ALGUNS MINUTOS FIM DA GRAVAÇÃO Ela adorava a escola, mas naquele dia não foi à aula. Fazia frio onde ela estava: um lugar bonito e calmo, com árvores frondosas, grandes, as folhas balançando ao vento, e flores, muitas flores: brancas, rosas, vermelhas e roxas, espalhadas para todo lado. Mas nem tudo era beleza ali. Próximo a uma capelinha amarela, na sombra de duas enormes castanheiras, um grupo de pessoas chorava ao redor de um buraco no chão – um buraco grande e fundo. A menina deu uma olhada, curiosa, e saiu correndo. A mãe e o pai estavam lá, em pé, olhando para dentro do buraco. A mãe chorava desconsolada. O pai parecia triste, mas não chorava. Ele tinha 35 anos. Era alto, magro, o olhar sereno, calmo. Estava ao lado da mãe, mas não perdia a menina de vista. 95 96 ............................ Quando ela se afastava, ele a chamava: “Vem cá, menina”. Ela ia, bem devagar, e no seu ouvido ele dizia: “Fica por perto, viu?”. ............................ “Você melhorou, Tereza”, a menina disse, e Tereza pulava, cheia de vida. “Venha, vamos contar ao papai”. E ela ficava por ali mesmo, lendo as frases talhadas nas pedras lisas e brilhantes, enormes leitos de pedra, cheios de cruzes e imagens. Saudade, saudade... Por que aparece tanto a palavra saudade? Ela queria saber, mas não perguntou ao pai, que cochichava no ouvido da mãe, abraçando-a com carinho. Mas o pai levantou o dedo, sério, e disse: “Agora não, filha, agora não. E leve a Tereza para lá”. “Tá bom, papai. Vem, Tereza, vem”. Ao chegarem de carro, minutos antes, ela tinha perguntado: “Que lugar bonito é esse, papai?”, e ele respondera: “Depois eu te explico, meu bem. Agora não posso”. E elas foram, felizes, olhando tudo. Tinham encontrado a mãe chorando, sentada em um banco de madeira, ao lado de uma velhinha pequena que, ao ver o pai, abraçou-o com carinho, e depois olhou para a menina, sorrindo. “Olha aqui, Tereza, tem seu nome aqui nesta pedra... Ah, mas é com ‘s’: Teresa de Jesus, 1934-1999...”. Mais tarde, junto ao grupo que chorava sob as castanheiras, a menina viu de novo a velhinha, o rosto meigo, os cabelos brancos presos num coque alto de bruxa boa, acariciando com mãos enrugadas e tortas a cabeça da jovem mãe, que soluçava, cheia de pranto. Curiosa, ela lia os nomes, as frases... De repente, no céu frio, de nuvens cinzas e carregadas, o sol começou a brilhar, e a menina sentiu uma alegria tão grande que teve vontade de dançar, correr, pular, brincar... Então ela correu, pulou, dançou, brincou, e Tereza com ela, latindo, correndo, o rabo abanando de alegria boa, plena. Lá longe, no buraco, ela viu as pessoas se dispersarem. Foi quando a menina ouviu o latido de Tereza, sua cadela viralata. “Vem cá, Tereza, vem cá”, ela gritou, e a cadela veio, abanando o rabo, feliz. O pai e a velhinha vieram em sua direção, chamando-a. “E a mamãe?”, ela perguntou quando os dois chegaram. Silêncio. “Como você conseguiu sair do carro?”, ela perguntou, e a cachorrinha pulava e lambia seus olhos, mãos e lábios. 97 Ah! 98 ............................ Um espanto a arrepiou toda. ............................ Um caminhão desgovernado, carregado de carvão... Não esperou a resposta. Não precisou. “Mamãe ficará bem?”, ela perguntou. Ela sentiu, lá no fundo, que a mãe não ia. “Vá com a vovó”, disse-lhe o pai, sorrindo. O pai sorriu. “Sim, meu amor, mamãe ficará bem. Estarei com ela um pouco, até ela se fortalecer, superar a perda, entender... Depois nos encontraremos”. “Posso levar a Tereza?”. “Papai...”. “Claro que sim, querida”. “Sim, querida”. Ela então abraçou a avó, que ela nem conhecia. Mas não teve medo. Sentiu-se quente, acolhida, protegida. “Eu te amo”. “Eu também te amo, minha vida”. E chamou Tereza, que veio correndo, os olhos sorrindo, pronta para partir. E se abraçaram. O pai lhe deu um beijo e disse: “Mamãe precisa de mim”. O sol então brilhou mais forte, e ela se lembrou do pai chamando-a, logo depois do almoço, ela de uniforme, chorando, com Tereza nos braços, e ele dizendo: “Ela está velhinha, doente, não vai viver muito, querida... Mas vamos tentar ajudá-la”. Eles então entraram no carro e partiram. Passariam primeiro no veterinário. Depois ela ficaria na escola. Mas isso não aconteceu. O acidente... Ela se lembrou do acidente... Foi tudo tão rápido... 99 100 ............................ ............................ na escuridão, de tremer as paredes de toda a vizinhança. Um estrondo assustador. Outro caminho Voltando para casa à noite, depois de uma longa jornada de trabalho, o jovem professor acelerou o carro na avenida deserta, e, observando os postes que passavam como relâmpagos à sua direita, pensou: “É só eu virar o volante um pouquinho assim e pronto, acabou”. Mas ele não ouviu nenhum estrondo. Mas ele não queria isso. Ele amava a vida. Só não suportava mais ser professor, sofrer (ah como sofria!) nas duas escolas públicas onde lecionava, recebendo, por quarenta e oito aulas semanais, um salário miserável, daqueles de obrigar a esposa a comprar roupa para os filhos no bazar da igreja, a bater ponto todos os dias na fila do pão com manteiga do restaurante da criança, e a implorar a ajuda dos pais dela para pagar o aluguel do apartamento mês sim mês não. Nenhum barulho de ferros e vidros, só a música... Era vergonhoso, humilhante, mas isso não lhe tirava a vontade de viver, de participar da vida dos filhos, de vê-los crescer. Foi só de brincadeira, para despertar a imaginação, que naquela noite ele pensou em como seria a sua morte se, em alta velocidade e sem cinto de segurança, ele virasse o volante bruscamente, bem em cima de um poste. No rádio tocava um concerto de Bach. Um dos que ele mais gostava. Flautas, violinos, oboés e violoncelos que, enfeitiçados, produziam um som celestial, mágico, fora do tempo e do espaço: uma música que crescia e brilhava – enquanto, na sua imaginação, em plena avenida deserta e fria, o carro se chocava, em câmera lenta, com um enorme poste de concreto. Um choque daqueles de mergulhar o bairro inteiro 101 Só ouvia a música... E o carro abraçando o poste, lentamente, quadro a quadro... E no filme, seu corpo sendo jogado para frente, sua cabeça indo de encontro ao poste, e um ferro afiado como navalha rasgando seu ventre com a rapidez e a precisão de um açougueiro experiente separando os quartos de um porco gordo e rosado, tudo ao mesmo tempo: a cabeça se abrindo numa explosão lenta, como o desabrochar de uma rosa vermelha: o crânio se quebrando, sua massa cinzenta e branca espalhando-se pelo muro; um dos olhos pulando para fora, ploc, bem devagar; os dentes lançados para todos os lados, em meio a ossos quebrados e sangue, muito sangue: como naquelas cenas de espirro em câmera lenta, só que tudo muito vermelho e grosso, de uma grossura espessa, viva. E os violinos vibravam seus tons suaves e luminosos, unindo num todo harmônico e fecundo a música, o sangue, os ossos, os dentes, a vida e a morte. E de repente o filme voltou para o início, para o momento exato da batida, a câmera se acomodando agora junto aos membros inferiores, esquecidos na quietude morna do buraco escuro que se abria logo abaixo do volante. Como num passe de mágica, uma luz branca iluminou a escuridão daquele espaço e uma lenta sucessão de imagens começou, como num trilho: as pernas sendo atravessadas pelas lâminas rasgadas da lataria do carro, 102 ............................ enquanto iam de encontro ao painel e se quebravam em vários pedaços (ossos partidos perfurando a carne e o tecido grosso da calça de linho barato com suas lascas pontiagudas). Um médico forense certamente atestaria: “Inverossímil” – “As pernas não se quebrariam assim, o olho não saltaria para fora”, diria ele – mas foi essa a cena que o jovem professor imaginou naquele momento. E foi assim, de repente, pensando na sua morte em câmera lenta ao som de Bach, que ele amou a vida como nunca tinha amado. Como seria fácil acabar com tudo, meu corpo convertido num monte de carne, vísceras, ossos e sangue. Depois, sacos plásticos para reunir os pedaços espalhados por toda parte, rodo para puxar o sangue, detergente e esfregão para lavar o muro, empregados da limpeza, da central elétrica e da funerária realizando mais um trabalho cansativo e fora de hora... ............................ estressado, corrigindo provas, elaborando exercícios, preenchendo diários... Para quê? Para quê, meu Deus? Não. Isso não é vida. Não estudei para isso. Meu tempo é precioso. Cada instante que eu perco nas salas de aula é um instante a menos de alegria na minha vida. Vida que pode terminar a qualquer momento, no primeiro poste que aparecer, na primeira esquina. Ele então virou o carro e pegou um outro caminho, mais longo e estreito, com mais subidas e descidas, mas diferente, interessante, cheio de casarões antigos, lojas e restaurantes que ele nunca tinha visto. E nesse outro caminho, um novo futuro se esboçou... Um novo trabalho, uma nova rotina... Livros, filmes, atividades com a família nos finais de semana... Uma nova vida... E o cheiro de flores e velas acesas, orações, lágrimas... E a última pá de terra... Ele então parou o carro, respirou fundo, encostou a cabeça no volante e chorou. Chorou copiosamente. E enquanto chorava reviveu momentos de alegria e prazer junto da família, feliz, conversando, brincando, comendo; ou sozinho, lendo, pensando, curtindo a natureza, vivendo o instante... Momentos raros, raríssimos, vividos nos intervalos cada vez menores entre o trabalho e a vida. Não se lembrava mais de quando tivera um sábado livre para a família, para o descanso... Sempre 103 104 ............................ Não foi preciso matar ninguém ............................ Sandra, que deu a ele a chance de se isolar do mundo por dois anos só para escrever, o dia inteiro, com quatro refeições, exercícios físicos moderados e bons livros para ler à noite. Gerusa vive de escrever. Começou há pouco mais de cinco anos e já publicou vinte romances de sucesso, todos narrando as aventuras e desventuras sexuais de uma jovem beldade do interior na capital. Pornografia pura. Tosca, mas muito popular. Na verdade o nome dele é Wander, mas todo o mundo o chama pelo pseudônimo de Gerusa (que aparece sempre grande, em letras vermelhas e brilhantes, nas capas de seus livros). Eu mesmo, que o conheço desde moleque, não consigo mais chamá-lo de Wander. ‘O Wander é escritor’, ‘o Wander gosta de ler’, ‘o Wander...’. Não, não consigo. É Gerusa e pronto, não tem jeito. Mas ele não é gay não. Teve muitas mulheres na vida, todas loucas por ele. Uma até tentou matá-lo. Paixão doentia. Um tiro só. Pegou de raspão. Ele é muito boa pinta, simpático e cheio de gogó. Mas não é só isso não. Dizem que ele tem um olhar “penetrante”, um sorriso “encantador”, que “enfeitiça” e “enlouquece” as mulheres, mas isso eu não sei. O que eu sei é que ele sempre gostou de ler, e que nas suas cantadas ele usa citações tiradas de romances cor-de-rosa vagabundos ou de revistinhas de sacanagem. Mas hoje ele está firme com Sandra, uma negra cheia de vida, bonitona, daquelas que andam orgulhosas pela rua com o nariz empinado, colocando a maioria das mulheres no chinelo. E se Gerusa conseguiu escrever seus primeiros romances de sucesso e sair da miséria para o estrelato foi por causa de 105 Antes disso ele até tinha tentado escrever, mas a pressão para que trabalhasse (no sentido de ganhar dinheiro) era insuportável. Até a mãe dele o chamava de vagabundo. O pai dizia que ia limpar a bunda com as porcarias que ele escrevia. E uma vez a avó de oitenta e dois anos, com Alzheimer em estado avançado, ao vê-lo se aproximar da sua cama para lhe pedir a benção, deu-lhe uma bofetada na cara e disse “Vá trabalhar vagabundo!”. Depois disso as cobranças aumentaram ainda mais. “É tudo em cima da coitada da Sandra”, “Ela lava, passa, faz comida e ainda trabalha fora pra sustentar aquele marmanjo”, “Ele faz o quê, afinal?”. Mas Sandra o amava e não cobrava nada dele. Ela lia seus contos e até dava algumas ideias interessantes, apimentando as cenas de sexo com um toque especial, só dela. Ela acreditava nele. “Um dia você vai ser famoso, Wander, e a gente vai sair dessa miséria”, ela dizia. “Mas como, Sandrinha? se com o peso dessa miséria nas costas eu nem consigo escrever direito!”. Ele se desesperava. Até que um dia Sandra teve uma ideia. Conversou com um primo dela, o Orlando, um jovem advogado inescrupuloso, e com a ajuda dele arquitetou uma trama diabólica. 106 ............................ Gerusa ouviu a explicação dos dois com muita atenção, concordou com tudo, e já na semana seguinte entrou em ação. Era domingo. Fazia muito calor. Sandra tinha combinado de tomar conta da avó de Gerusa, para que a família fosse passar o dia numa cachoeira da região. E lá estava Sandra no fogão, preparando um mingau de aveia para a vovó, quando Gerusa entrou no apartamento com uma pistola automática na mão, gritando “Vou te matar, sua desgraçada”, e a vovó, assustada, ouvindo os gritos do neto, gritou mais alto ainda: “Vagabundo, vagabundo!”. Um vizinho ouviu tudo e ligou para a polícia, que chegou em menos de quinze minutos. Estava armado o circo. Redes de TV foram informadas e começaram a anunciar: “Homem de trinta anos invade a casa dos pais e faz esposa e avó de reféns”. (A arma ele tinha conseguido com bandidos no morro. Mercadoria boa. Uso exclusivo das Forças Armadas). Ele não podia demorar ali dentro, nem ficar na janela dando sopa para os atiradores de elite. O que ele tinha que fazer era só chamar a atenção da polícia e se entregar. As instruções de Orlando e Sandra eram claras nesse sentido. 107 ............................ Orlando seria seu advogado. A perspectiva dele era muito boa: “Não tem como dar errado, Wander. Por esses crimes eu consigo para você uns quatro anos na penitenciária local (que, como você sabe, é quase um hotel três estrelas, principalmente para escritores pé rapados que querem se isolar do mundo como você). Mas como você vai se comportar direitinho, não vai pegar mais que dois anos, com certeza. Dois anos eu te garanto. Vou dar um jeito para você não trabalhar lá dentro, ficando com o tempo todo livre para ler e escrever. Ah! E vou te emprestar meu notebook”. Perfeito. Ele então se entregou, foi julgado, condenado e levado para a penitenciária. Café da manhã, almoço, lanche e jantar, tudo de primeira qualidade, com nutricionista e tudo. Enfermeira, psicóloga e assistente social à disposição. E se precisasse de atendimento médico na cidade, passava na frente de todos que estivessem na fila (questão de segurança). E o melhor: uma cela só para ele. Não precisava trabalhar, e ainda tinha autorização para utilizar o notebook e receber de fora livros variados (diferentes dos que eram disponibilizados pela biblioteca do presídio), trazidos por Sandra de quinze em quinze dias: contos de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, romances policiais de P. D. James, Dorothy L. Sayers e Agatha Christie, e, é claro, o que havia de mais obsceno em literatura pornográfica no mundo (para inspirá-lo em sua faina rumo ao sucesso). Gerusa escrevia o dia inteiro, todos os dias, quase sem parar, produzindo intensamente. Seu primeiro romance ficou pronto em sete meses: “O diário secreto”. 108 ............................ Sandra visitou várias editoras oferecendo o manuscrito, até que, finalmente, uma delas resolveu publicá-lo. As vendas foram fabulosas. No segundo mês após a publicação, o livro já estava sendo traduzido para o inglês, francês e espanhol. ............................ E lá estava ela, de óculos escuros, encostada num carrão importado, toda sorridente. Ao vê-la, Gerusa caminhou feliz em sua direção, já pensando na vida que levariam a partir daquele dia: viagens, festas, carros, homenagens... E logo vieram os dois livros seguintes, que ficaram na lista de best-sellers por vários meses, chegando até a ultrapassar Paulo Coelho. Pois é... Gerusa não acreditava no que via! Foi tudo tão rápido! Nos primeiros meses de prisão ela chegou até a pensar em um plano para voltar depois, caso não conseguisse se tornar um escritor famoso. “Talvez eu precise de mais tempo”, pensou, “e para isso o crime tem que ser mais grave, alguma coisa que me garanta pelo menos cinco anos aqui... Cinco anos... Mas é claro! Se eu matar um pobre coitado, um Zé ninguém, talvez o Orlando me consiga uma condenação de no máximo dez ou quinze anos (que, com as leis deste país, viram cinco na maior facilidade). Cinco anos... Em cinco anos eu escrevo vinte romances!”. Mas não foi preciso matar ninguém. Em dois anos e três romances, Gerusa tinha se tornado um escritor de grande sucesso. Cumprida a pena, na saída do presídio, os fãs se aglomeravam do lado de fora gritando GE-RU-SA, GE-RU-SA. Até a vovó estava lá, na cadeira de rodas, rindo, a boca toda ferida de estomatite, babando horrores. Algumas mulheres exibiam os seios para ele, tremiam suas línguas sebosas e ofereciam-lhe os traseiros roliços; mas seus olhos só procuravam uma pessoa: Sandra. 109 110 ............................ ............................ Para ter certeza De certa forma... Ele sozinho embaixo de uma enorme mangueira: olhos fechados, braços abertos, o rosto virado para cima, enquanto a chuva caía em gotas grossas e geladas sobre seu corpo. Ele fantasiava. Vivia a cena de um conto que ele lia enquanto aplicava uma prova na turma de História. E quando acordou do transe, notou que estava de pé no meio da sala, segurando o livro aberto na frente dos olhos, cheio de susto. Alguns alunos disfarçavam o riso, olhando-o meio de lado; outros esperavam de pé junto à lousa: queriam entregar a prova e assinar a lista de presença, que ele segurava com a outra mão, o braço ainda estendido. Ele tinha vivido a cena tão intensamente, que mesmo ao perceber que estava no meio da sala, cercado de alunos, continuou sentindo a água escorrendo pelo corpo, os cabelos molhados, o vento frio e úmido no rosto. Mas logo passou, e ele se dirigiu à mesa, cabisbaixo. Ele era assim: quando lia livros de autores tomados de paixão, escritos com sangue e verdade, ele vivia a trama como se estivesse lá; e se não havia trama propriamente dita (como nos livros de Clarice Lispector), ele sentia as dores, alegrias e inquietações dos personagens como se o espírito do escritor se apoderasse dele todo, dominando-o e libertando-o do seu mundo real para jogá-lo numa teia de memórias e sensações que não eram dele. Feitiçaria? Ele era assim... Até que uma noite ele sentiu algo se movendo no seu ouvido esquerdo: uma coisa mole e viscosa, muito pequena, que ele tocou com a ponta do dedo mindinho antes dela desaparecer dentro da sua cabeça. Depois disso, o ato de ler transformou-se para ele numa ação mecânica. Os livros perderam a magia. Ele não conseguia mais se transportar no tempo e no espaço, sentir o que os personagens sentiam e viver as histórias como antes ele vivia. “O que está acontecendo comigo?”, ele se perguntava, desesperado, vasculhando as estantes à procura de seus livros preferidos. Finalmente sentou-se na escrivaninha e fez um teste que lhe pareceu definitivo. Abriu o livro “Laços de Família”, de Clarice Lispector, e releu o conto que mais o tocava: uma história que, a cada releitura, transportava-o para o interior de um bonde no Rio de Janeiro, no final dos anos 50, sem ele nunca ter andado de bonde nem estado no Rio de Janeiro. Não sentiu nada. Era como ler um manual de Contabilidade ou de Direito Tributário: um texto seco e duro, sem vida, sem alma. Clarice sem alma? 111 112 ............................ Ele tinha perdido a imaginação... Tinha perdido a capacidade de representar imagens... De criar... De sentir... “Meu Deus... Tornei-me um técnico!”, gritou, olhando para as estantes repletas de livros. Tentou outros testes, procurando manter a calma. Mas quando releu “A alma do vinho”, de Baudelaire, e não sentiu nada, desesperou-se. Na verdade, aquilo não era desespero. Não era tristeza. Não era angústia. Era o quê? E todos na cidade foram ficando assim: frios e sem imaginação, incapazes de criar, de sonhar. Suas aulas de História se tornaram objetivas e enfadonhas, só fatos e datas, datas e fatos. Mas era isso que os alunos queriam. Era o que eles podiam suportar, incapazes de analisar e recriar o passado. Todos os olhos se tornaram opacos e vazios naquela cidade, como nos retratos de Modigliani. E todas as pessoas que passavam por lá eram contaminadas pelo que ficou conhecido como “a praga dos olhos”, mas que parecia mais uma coisa de espírito, embora nenhum padre, macumbeiro ou médium tivesse conseguido descobrir do que se tratava. 113 ............................ Até que um jovem neurologista da capital resolveu levar a sério os relatos de alguns doentes sobre algo se movendo em seus ouvidos pouco antes dos primeiros sintomas aparecerem. Começou examinando-os em seu consultório, onde, com a ajuda de uma psicóloga, realizou uma série de testes. Depois de dois meses, conseguiu convencer outros médicos de que a contaminação só acontecia naquela cidade. Por quê? Não sabia explicar. Concluiu que aquilo não era transmissível de pessoa para pessoa, mas originado de uma fonte oculta em algum lugar na cidade, e que, misteriosamente, só afetava quem morava ou passava por lá. Foi quando o nosso professor de História tornou-se cobaia da equipe formada pelo jovem neurologista da capital, num dos centros de pesquisa em neurocirurgia mais respeitados do mundo. A escolha dele como cobaia se deveu ao fato de que, em raros momentos, quando tomava café, ele conseguia escrever versos. E muito bonitos! Uma noite ele escreveu um poema inteiro, embora, no dia seguinte, mal soletrasse o próprio nome. Alguma coisa diferente acontecia com ele. Um mecanismo de defesa, ativado pela cafeína, parecia reagir de alguma forma ao torpor do seu espírito, permitindo-o, por alguns minutos, fantasiar e criar. E assim foi... Até que, durante uma cirurgia para estudar um inchaço numa parte do seu cérebro, um neurocirurgião viu, numa fração de segundo, um movimento estranho, de uma sutileza quase 114 ............................ imperceptível, numa área bem específica da superfície de sua massa encefálica. ............................ Inúmeras análises foram feitas: nos Estados Unidos, na Europa, no Japão... Com uma experiência de mais de trinta anos e uma imaginação acima da média, esse médico disse, com segurança (e para espanto de todos os presentes): Conclusão: aquilo não era deste mundo. “Isso aqui não faz parte do cérebro dele”. “Seres de outro planeta estão preparando uma invasão. Fazem testes. Descobriram um canal de comunicação entre o cérebro e o espírito, e nele estão instalando suas sanguessugas alienígenas, programadas para destruir a capacidade do homem de criar, transformando-o num robô, numa máquina estúpida, fácil de ser dominada. Estão preparando tudo. É só uma questão de tempo”. Todos arregalaram os olhos. “Vejam”. Mas ninguém via nada. O jovem neurologista trouxe uma lupa, olhou bem de perto, com muita atenção, e disse: “Você tem razão, mas como...?”. E o pânico se instalou: Mas para o nosso pacato professor isso não importava. Ele não ligava para essas teorias malucas. Para ele, o que importava era ter certeza de que a sua imaginação tinha voltado. “Algo vivo, vindo de fora (um parasita ou sei lá o quê), entrou de alguma forma na caixa craniana e se instalou aqui. Está bem aqui. Mas se parece tanto com o cérebro que... Deve ser por isso que nenhum exame foi capaz de detectá-lo até agora...”. Então ele fez um café – que saboreou no quintal, olhando a lua cheia – e dirigiu-se à biblioteca, caminhando lentamente. “Mas isso existe?”, um outro médico perguntou. Reuniu alguns livros sobre a mesa, respirou fundo e começou a ler: Adélia Prado, Baudelaire, Drummond, Pessoa, Goethe, Jack Kerouac, Rubem Fonseca... “Está aqui, não está?”. E ele lia... E começaram a retirar o misterioso organismo, com muito cuidado. Era pequeno, mole, achatado e estava grudado na massa encefálica por meio de pequenas ventosas, como uma sanguessuga. Foi difícil, mas conseguiram extraí-lo. E enquanto lia sentia tudo que era possível sentir... Imaginava. Criava. 115 116 ............................ E criando escrevia, cheio de dor e paixão, o mistério de si: longas páginas de luz e sombra... ............................ Das profundezas Um mistério barroco. Vou lhe contar uma história das mais assustadoras: Mas faltava uma escritora... Uma vez, um jovem milionário estava à procura de uma experiência nova que lhe preenchesse o oco do espírito. O espanto que ele havia sentido quando vira da janela de um ônibus espacial a Terra azul cercada de luzes e trevas no silêncio do universo sem fim já não era mais que uma lembrança fugaz, uma imagem distante, só resgatada das sombras da memória quando seus olhos percorriam o álbum 514 do seu perfil no Facebook (o que ele já nem fazia mais, entediado com esse registro antigo de uma experiência velha e insossa). Deslumbrado e feliz, foi buscá-la na estante... Clarice... Deixou-a por último... Para ter certeza. Não, aquilo já era passado. Ele precisava de algo novo, diferente de tudo que já experimentara: um susto que lhe permitisse tocar no mistério da vida: algo que lhe desse medo de verdade, que fosse realmente terrível... Um risco certo. De quê? De morrer, é claro. O que mais lhe faltava experimentar? A perspectiva difusa da morte ele tivera diversas vezes nos saltos e escaladas que realizou nos quatro cantos do mundo, nas ferozes corridas de carro e de moto que competiu em vários países da Europa e da América, nos mergulhos com tubarões brancos nas águas frias do sul da África... 117 118 ............................ Não era disso que ele precisava naquele momento para sair da letargia que o tédio lhe provocava, para se arrancar da lama movediça do enfado que o cercava de vazio. O risco de morte, para ele, tinha que ser certo. A sua entrada no tenebroso mistério da vida tinha que ser uma possibilidade precisa, rigorosa, determinada pela sorte. Como num jogo de dados. ............................ toda vez que realizava uma nova proeza, comprava um novo brinquedo ou fazia uma nova viagem fantástica, gastando os bilhões herdados de seu pai. Mas a morte rápida e vulgar de uma Roleta Russa estava definitivamente descartada de seus planos. A morte não podia ser instantânea. Ela tinha que ser rápida o bastante para que o sofrimento físico não se prolongasse e neutralizasse a dor (ou júbilo) do espírito que se apaga ou parte rumo ao desconhecido; mas tinha que ser lenta o suficiente para que esse mesmo espírito pudesse se ver e se sentir na morte do corpo, consciente da transformação em curso, da inevitabilidade do processo. Nada de se prostrar num leito, como o Ivan Ilitch de Tolstoi, e aguardar um futuro certo, mas impreciso. Nada de filosofar sobre a vida e a morte enquanto o corpo é lentamente consumido por um tumor que se espalha no sangue, como o professor João Maria, do livro de Gustavo Corção. Mas, também, nada que fosse tão banal e instantâneo como queimar o cérebro com um balaço na têmpora ou no céu da boca. Um de seus inúmeros contatos internacionais lhe trouxe a resposta em menos de cinco minutos. Mas ele não queria morrer. O que o fascinava mesmo era a perspectiva de um perigo real de morte: uma ameaça que fosse rigorosamente prevista e calculada. A iguaria era chamada em algumas regiões da Ásia de Balut. Imagino-a como a última refeição servida às almas danadas no seu longo percurso rumo ao inferno: ovos de pato incubados até que os fetos estejam quase formados, com penas, bicos, olhos e ossos, mortos em água fervente pouco antes de serem comidos. Nas Filipinas e no Camboja o Balut é vendido nas ruas, em bancas de ambulantes. Normalmente os fregueses fazem uma abertura na casca do ovo para beber o caldo, que é temperado com um pouco de sal e pimenta, para em seguida abri-lo por inteiro e se deliciarem com o feto, mastigando-o Mas se ele morresse, que fosse uma morte branca e suave, sem grandes tormentos, que lhe revelasse o mistério lentamente, como se no frio de uma noite de outono lhe fossem abertas as cortinas de um palco e se lhe revelasse o indefinível e inominável novo, aquilo que o afastaria definitivamente do tédio mortal que lhe entorpecia a alma 119 Mas onde conseguir essa sensação de perigo ou essa morte ideal? E em menos de uma hora o nosso jovem e enfastiado milionário encontrava-se tranquilamente acomodado em seu jato particular, tomando um Château Latif Rothschild 1787, em direção a Paris. Nas dez horas que ele levou para cruzar o Atlântico, uma amiga francesa se encarregou de lhe conseguir uma vaga num autêntico festim diabólico, pagando adiantado ao chef responsável pelo serviço quase um milhão de dólares, para que, juntamente com mais quatro milionários entediados, ele corresse o risco de ser contemplado em um sorteio com uma morte na medida certa, meticulosamente preparada por mãos de mestre. 120 ............................ lentamente, com suaves movimentos da língua, para melhor sentirem a textura, a maciez da carne e o estalejar dos ossinhos se quebrando nos dentes. Só que, para o festim do qual participou o nosso jovem milionário, o chef francês injetou em um dos cinco ovos Balut servidos como prato principal uma substância venenosa preparada por ele mesmo, seguindo à risca as instruções de uma das maiores autoridades em venenos do mundo: um composto de ervas, raízes e peçonhas que, na dosagem certa, leva à morte em menos de dez minutos, com pouco sofrimento ao corpo físico, permitindo assim ao espírito captar cada instante do desabrochar dessa flor misteriosa que trazemos plantada em nós desde a primeira encarnação. O ritual deveria ser seguido rigorosamente. O suco do embrião, que certamente conteria uma dose fatal de veneno, não deveria ser bebido no início. Primeiro come-se a cabeça, depois o pescoço, o peito e, por último, o abdômen, onde estaria concentrada a dose mortal. Só depois de ingeridas as vísceras do feto é que os primeiros sinais da morte seriam sentidos (uma dormência nos lábios e na língua), e só nesse momento é que deveria ser bebido o caldo reservado no fundo do ovo. Seguiria-se uma sensação de leveza, como se o corpo flutuasse no ar, acompanhada de visões fantasmagóricas, relatadas com detalhes por várias pessoas que se submeteram à experiência. A morte viria em cerca de dez minutos, com a pessoa consciente e lúcida até o último segundo. Foi exatamente isso que aconteceu naquela noite, em um luxuoso apartamento localizado na Avenue Montaigne, em Paris, ao som da Lacrimosa de Mozart. 121 ............................ Os cinco milionários (três homens e duas mulheres) receberam cada um o seu ovo das mãos de um rapaz alto e magro que, logo em seguida, retirou-se, dizendo: “Vous connaissez les règles”. Só que, minutos depois (cada um dos participantes mastigando já os últimos resquícios do seu Balut), o vazio sombrio que castigava por dentro a alma do nosso jovem milionário fez com que ele saltasse desesperadamente sobre a filha de um magnata americano, para lhe tomar o caldo do embrião, quando ela já o levava à boca, depois de todos terem percebido claramente que ELA tinha sido a sorteada. Foi impedido por um senhor de feições caninas que se sentava à sua direita, resignado, e que, logo em seguida, impediu-o também de se lançar sobre o vômito escuro despejado na mesa pela jovem, com o objetivo de extrair dali algum resíduo fatal de veneno que curasse para sempre a dor de sua existência. [Silêncio] Entendeu a história? Olhe para mim. Não chore. Abra seu coração para Deus, pois Deus tudo preenche. Este vazio não existe em Deus... Sua vida sem limites criou para ti este tormento. Falta humildade, perdão, compaixão, amor e bondade em sua vida... Falta Deus... Falta TUDO... Dê-me sua mão. Abra seu coração e repita comigo: 122 ............................ Das profundezas a ti clamo, ó Senhor. / Senhor, escuta a minha voz; sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas. / Se tu, Senhor, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá? / Mas contigo está o perdão, para que sejas temido. / Aguardo ao Senhor; a minha alma o aguarda, e espero na sua palavra. / A minha alma anseia pelo Senhor, mais do que os guardas pela manhã, sim, mais do que os guardas pela manhã. / Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia, e nele há abundante redenção. / E ele remirá Israel de todas as suas iniquidades. [Salmo 130] ............................ Comadre seca De três em três meses, os três irmãos gêmeos se reuniam na casa de um sobrinho, filho de um irmão mais velho deles, já falecido. Apolinário, Aparício e Aprígio tinham 85 anos. O sobrinho, Leandro, era um analista de sistemas de 33 anos, que morava sozinho e passava o dia inteiro no computador atualizando blogs e inventando games. No dia marcado para receber os tios, o rapaz preparava o enorme tabuleiro na mesa de jantar, colocando as peças exatamente nos mesmos lugares que tinham ficado três meses antes, após a última partida. O jogo, inventado pelo sobrinho, chamava-se “Comadre seca”, e era, para os três velhos jogadores, o maior prazer de suas vidas. Numa ponta do tabuleiro ficavam três peças representando cada um dos três jogadores. De cada peça partia um caminho quadriculado e retilíneo, com dezenas de casas, que ia até a outra ponta do tabuleiro. Ali, três outras peças eram posicionadas, cada uma em um caminho, na mesma linha da peça que ficava do outro lado. Elas representavam três “comadres secas”: três velhas enrugadas, vestidas de preto e segurando na mão direita uma enorme foice, pontuda e afiada. Na verdade, as peças que andavam eram as comadres, e naquele dia, a comadre que estava à frente era a do Apolinário, seguida pela do Aprígio e, por último, pela do Aparício. A comadre que chegasse primeiro à peça representando o seu jogador dava a vitória a ele. Como as comadres se movimentavam? 123 124 ............................ De três em três meses, na hora marcada para a partida, cada jogador levava à casa do sobrinho uma pasta contendo vários exames. Vou citar apenas alguns: Hemograma, Uréia, Creatinina, TSH, Glicemia, Colesterol, Triglicérides, Densitometria óssea, Teste Ergométrico, Ecocardiodoppler, Exame de Próstata, Ultrassom de abdômen, Medição Ambulatorial da Pressão Arterial, Urina, Fezes e muitos outros. De posse de todos os resultados, o sobrinho ia para o computador e cadastrava as centenas de números e dados qualitativos em um sistema desenvolvido por ele, onde cada jogador tinha a sua tela, com vários campos de preenchimento. Depois de processar os dados de cada irmão, o sistema estabelecia um número para cada um, que indicava quantas casas as comadres secas deveriam andar. Na última partida, devido a um resultado bastante satisfatório na glicemia do Apolinário (sua glicose foi de 150 para 250), e também ao fato de terem sido detectados traços de sangue em suas fezes, sua comadre avançou três casas, enquanto a do Aprígio avançou duas e a do Aparício só uma. Aparício ficou muito chateado, pois ele tinha abandonado de vez a caminhada havia quatro meses, na esperança de que o seu colesterol atingisse níveis mais altos, o que não aconteceu. Já o Aprígio havia contado com o aumento do prolapso em uma das valvas do seu coração, anomalia que tinha um peso muito grande na contagem dos pontos, o que também não aconteceu, embora a sua urina estivesse numa situação bem favorável, com uma coloração turva e cheiro muito forte, o que acabou colocando a sua comadre em segundo lugar. Nos três meses que Apolinário ficou na dianteira, os outros irmãos tiveram que satisfazer uma série de caprichos seus, conforme determinavam as regras do jogo: levar café na cama para ele todas as manhãs, ler para ele à noite (a sua visão não 125 ............................ estava muito boa), esfregá-lo na banheira todas as tardes, preparar sua comida seguindo um rigoroso cardápio, e muitos outros. Aprígio, que havia ficado em segundo lugar, pôde escolher quais caprichos atender, ficando o resto para o Aparício. Para o que estava na dianteira, era uma maravilha. Mas mesmo para os outros dois irmãos, esse período de desvantagem temporária era divertido, pois eles sempre tinham novas estratégias para colocar em prática visando a melhorar seus resultados na próxima partida: fumar mais, exercitar menos, aumentar a dose diária de cachaça (ou trocar a cachaça de melhor qualidade por uma mais vagabunda), aumentar o consumo de doces e gorduras, escolhendo sempre os produtos mais calóricos, etc. Naquele dia, os dados foram preenchidos num clima de muito suspense, pois um irmão não mostrava nem comentava seus exames com os outros, e a palidez, os olhos fundos e o leve tremor observado nas mãos do Aprígio pareciam indicar que o primeiro lugar seria dele. Mas não foi o que aconteceu. A comadre seca de Apolinário avançou mais três casas e as dos outros dois somente uma. A glicose continuou pesando no destino do velho Apolinário, embora já não houvesse nenhum traço de sangue nas suas fezes. Mas surgiu uma novidade: o aumento da sua creatinina indicava algum problema grave nos rins. Apolinário sabia que este seria o seu trunfo, por isso entrou na casa do sobrinho com um ar superior e arrogante, como se cantasse vitória antes da hora. E não deu outra: mais uma vez seus caprichos teriam que ser atendidos pelos irmãos. Naquela mesma noite, porém, Aparício teve um enfarte fulminante e morreu no banheiro, enquanto preparava um banho especial com sais aromáticos para o Apolinário. Dois 126 ............................ dias depois, Aprígio perdeu o equilíbrio no quintal, enquanto estendia as cuecas de Apolinário no varal, e bateu a cabeça numa pedra, vindo a falecer alguns minutos depois. Apolinário foi morar com o sobrinho, que cuidou muito bem dele por três anos. Se o velho morreu? Não. Quem morreu foi o sobrinho, aos 37 anos, atropelado na calçada por um motorista bêbado, deixando todos os seus bens para o tio, que viveu até os 98 anos, lúcido e feliz. No dia da partida, a comadre entrou silenciosa e sorrateira no quarto de Apolinário. Quando o velho sentiu sua presença, lembrou-se de um belo poema de Mário Quintana e disse, sorrindo: “Ê comadre... a senhora sempre chega pontualmente na hora mais incerta... Mas que importa, afinal? Entre... Estou pronto”. E partiu. P. S.: “Comadre seca” era como o grande cineasta italiano Pier Paolo Pasonili (1922-1975) chamava a morte. ............................ O soar da Trombeta A sessão da Câmara que votaria o aumento salarial dos deputados já estava quase lotada. Enfiados em seus ternos caros e engomados, os representantes do povo desfilavam pelos corredores do Congresso acompanhados de seus assessores, que também esperavam ansiosos o resultado da votação, já que receberiam, com o aumento de seus chefes, um rechonchudo quinhão. Ao final da sessão, marcada por aplausos efusivos e nenhuma voz discordante, uma turba de deputados saiu, sorridente, pela porta principal, em direção ao estacionamento. Porém, algo muito estranho os impediu de ultrapassar o final da rampa: uma força magnética poderosa, ou algo parecido, que não os deixava prosseguir seu caminho de volta à abastança, agora ainda mais farta com o novo aumento salarial. Os outros deputados e assessores se juntaram aos primeiros e forçaram a passagem, mas nada que fizessem conseguia romper aquela barreira invisível que parecia se erguer sobre todo o prédio, formando uma imensa redoma. Tentaram outros lugares, outros pontos de fuga, mas nada. Estavam presos. Do lado de fora, o povo se aglomerava para tentar entender o que estava acontecendo com aqueles homens engravatados e mulheres elegantes parados no final da rampa de acesso ao estacionamento. Uma senhora idosa se aproximou de um deputado e perguntou: “Por que o senhor não sai?”. Ele não respondeu. Tentou mais uma vez dar um passo, mas não conseguiu. “Não posso”, disse ele por fim, desesperado, 127 128 ............................ olhando nos olhos da velha. “Eles não podem sair”, gritou a velha para a multidão, que crescia cada vez mais em torno da redoma invisível. A noite chegou e os deputados continuavam lá, presos. Redes de TV e rádio se instalaram ao redor do Congresso, registrando tudo. Sindicatos e movimentos sociais de todo o país organizaram caravanas de partidários e simpatizantes para irem à capital testemunhar de perto aquele fato inusitado e surreal: no dia da aprovação do substancioso aumento salarial concedido pelos deputados a eles mesmos, uma força sobrenatural os impedia de sair do local da votação. “O que você acha que vai acontecer com eles?”, perguntavam os repórteres às pessoas do lado de fora. “Eu acho que isto é um castigo de Deus, e que eles vão ficar lá dentro até apodrecerem”, respondiam alguns mais revoltados, que aos poucos foram se juntando em torno de um líder barbudo, de aspecto desleixado. Três semanas se passaram. Os deputados já não se encontravam mais de terno e gravata. Andavam pelo Congresso sem camisa, alguns só de cueca, calcinha e sutiã, descalços e famintos, pois o ar condicionado tinha pifado e a comida acabado. Por mais que eles tentassem desligar ou destruir as câmeras de segurança do interior do prédio, nada as impedia de continuarem registrando todos os seus movimentos, que, por um desses milagres da tecnologia, puderam ser acompanhados em todo o país, em rede nacional. Milhões de pessoas puderam ver, por exemplo, dois deputados disputando um pacote de bolachas importadas, sob o olhar atento de um assessor, que vasculhava o chão à procura de migalhas; uma deputada gorda agredindo a tapas um colega, 129 ............................ acusando-o de ter invadido seu gabinete à procura de chocolates e outras guloseimas; a morte de um deputado idoso, que implorava a alguém do lado de fora o seu remédio do coração que, mesmo comprado na farmácia mais próxima, não passava pelo campo de forças invisível. Nada passava pela barreira. Parentes e amigos dos parlamentares tentaram entregar-lhes comida, bebida e água, mas a redoma jogava tudo para fora novamente, com uma força descomunal. Seis meses se passaram. Quinze deputados tinham morrido, dez deles devorados por outros parlamentares, que não aguentaram a fome atroz que os rasgava por dentro, causando dores lancinantes em seus estômagos vazios. Estavam sujos e fediam, pois não tinham água há vários dias. Alguns enlouqueceram: pediram perdão a Deus pelos seus pecados, prometendo que nunca mais roubariam o povo; olhavam para as câmeras de segurança e, aos prantos, imploravam misericórdia, reconhecendo que aquele salário era uma afronta à pobreza da população, uma indecência, uma injustiça sem tamanho. Do lado de fora, o líder barbudo gritava insultos e era acompanhado por uma multidão de seguidores, que mais parecia um exército infernal pronto para o ataque. No meio do povo, um jovem negro recitava, aos gritos, trechos de antigos e quase esquecidos poemas de Vinicius de Moraes: “Senhor! Tudo é blasfêmia e tudo é lodo. / Vós não vedes, Senhor, não vedes, todo / Esse povo a sofrer? / Deixai por um momento a Igreja Santa / A iniqüidade do pecado é tanta / Que Roma vai morrer!”. A multidão se inflamava e erguia foices, facas, machados, pás e picaretas, dando mostras de querer 130 ............................ atravessar a redoma e acabar com aquilo de uma vez por todas. “Escutai, Senhor Deus, a imensa grita / Da humanidade sofredora e aflita / Que morre no pavor! / - Dai-lhe a morte no campo de batalha / Dai-lhe sangue vermelho por mortalha / Dai-lhe a guerra, Senhor!”. Mas a redoma não se abriu. Não houve carnificina. O fim chegou lentamente para os deputados. Só quatro parlamentares sobreviveram. E por isso o povo passou a acreditar que eles eram os únicos que realmente tinham a “ficha limpa”. Os quatro se uniram e organizaram um movimento político no país contra a corrupção, a favor da justiça, da dignidade e da igualdade que, pela primeira vez na história, foi um sucesso e mudou radicalmente a política nacional. Foi aí que eu acordei. ............................ Quatro A jovem dona de casa acorda todos os dias às seis da manhã, abre a janela do quarto e respira fundo quatro vezes o vento fresco que, àquela hora, mesmo no inverno, sopra silencioso e calmo sobre as casas do bairro, trazendo consigo o cheiro agradável do cerrado selvagem que cerca toda a região. Da janela, ela vai direto ao banheiro, contando suas passadas de forma a alcançar a bancada de granito exatamente no quarto passo. Vencida essa etapa, ela começa a escovar os dentes, contando os movimentos da escova de cima pra baixo, de baixo pra cima, para os lados, pra trás e pra frente, bem devagar, terminando a escovação somente quando conclui quatro séries de quarenta e quatro movimentos cada uma (nem mais, nem menos). Depois, quatro bochechos com água; quatro movimentos com a mão direita em quatro partes do rosto, limpando a pele com um chumaço de algodão embebido em um produto importado, caríssimo; quatro séries de quarenta e quatro exercícios para os músculos da face, para prevenir rugas precoces; quatro séries de quatorze contrações musculares na bunda, para mantê-la durinha e atraente; quatro escovadas no cabelo (em quatro lugares diferentes do couro cabeludo); quatro sorrisos encantadores olhando para o espelho, para aumentar a autoestima; quatro movimentos cuidadosos com o papel higiênico (dobrado quatro vezes) no cu, para limpá-lo, depois das necessidades feitas... Quatro isso, quatro aquilo... E ela está agora na cozinha, preparando o seu café, enquanto o marido se arruma para o trabalho. 131 132 ............................ Como está sempre de dieta, ela só usa adoçante: quatro gotas para o café e quatro para a coalhada. Na xícara, quatro giros da colher para um lado e quatro para o outro. Quatro minitorradas, quatro pequenos pedaços de melão, e está terminado o desjejum. Em seguida, ela abre a geladeira e confere se todos os alimentos estão organizados em grupos de quatro. Na parte dos ovos, é preciso sempre deixar um espaço vazio entre cada quarteto: não pode ser diferente (se sobrar ou faltar ovos, ela resolve o problema eliminando os que precisam ser eliminados). Se há só três maçãs, ela coloca uma pêra junto, para formar um grupo de quatro. Se um produto fica isolado e não há como agrupá-lo (por exemplo: um iogurte pode entrar no grupo da coalhada, mas não no da cenoura), ela o joga no lixo. O lixo representa para ela o espaço da desordem, da incoerência, do desvario. As emanações que dali saem têm para ela um significado aterrador: representam o desarranjo da vida: a indisciplina e o desalinho da sociedade, em completa desarmonia com as forças que ordenam os quatro elementos da natureza: terra, fogo, ar e água. Para ela, o lixo é o que sobra do seu trabalho de limpeza e organização: é o que escapa à simetria de sua existência metódica e regular, devendo ser eliminado todos os dias às quatro da madrugada. Ela se levanta às 3:50, posiciona-se em frente ao saco cheio de detritos e diz, baixinho, a palavra FORA quatro vezes. Depois, carrega o saco até a rua, contando os passos em séries de quatro (com uma pausa de quatro segundos entre elas), e deixa-o no passeio. Porém, antes de voltar a dormir, ela lava as mãos com sabão, esfregando-as quarenta e quatro vezes, para se purificar. 133 ............................ O marido finge que respeita as regras da mulher, para não enfurecê-la e tornar impossível o convívio entre eles. Mas como ele trabalha o dia inteiro (e quando chega em casa à noite fica até tarde no escritório adiantando o serviço para o dia seguinte ou assistindo a vídeos pornográficos), os poucos momentos de contato com a mulher (quando ele tem que se mostrar obediente às suas diretivas) não o incomodam. De quinze em quinze dias, quando se entregam a um rápido intercurso sexual, ele até se diverte com o padrão que ela se obriga a seguir: para cada quatro gemidos, um gritinho (“ai”, “ui”), devendo o número total de gritos ser sempre múltiplo de quatro. Para ele, a única regra é respeitar o padrão de séries rápidas de quatro estocadas, com intervalos de quatro segundos entre elas. Mas quando ele está só, em casa ou no trabalho, as normas impostas pela mulher são terminantemente desobedecidas. Uma noite ela o espia pela janela do escritório e descobre que, enquanto assiste a vídeos pornográficos na frente do computador, ele se masturba com dois dedos, e não com quatro, como ela o ensinou. E não é só isso. Atenta a todos os movimentos do marido (que ela passa a observar escondida), descobre inúmeras outras faltas imperdoáveis, no banheiro, na cozinha, na saída para o trabalho... Decide, então, realizar um ritual de limpeza dos mais importantes: No dia do seu aniversário de quatro anos de casamento (numa providencial quarta-feira, dia de Mercúrio), ela termina sua relação com o marido definitivamente dando-lhe quatro tiros 134 ............................ no peito, exatamente às quatro da madrugada. Leva o corpo até o banheiro, onde, com um cutelo, pica-o em 44 pedaços; divide tudo em quatro sacos de lixo, que ela deixa serenamente no passeio, com a agradável sensação de missão cumprida. Fecha os olhos e levanta os braços quatro vezes, dando boas vindas ao sol que se ergue por trás dos jatobás, pequis e ipês, trazendo, com seu brilho e calor, a esperança de uma nova vida. ............................ Iogurte com aveia O velho escritor sentou-se na privada e suspirou profundamente, antecipando já as enormes dificuldades que enfrentaria. Normalmente o mais difícil era vencer os dez primeiros centímetros. (Não, ele nunca tinha medido. Era só uma conjectura, baseada na sensação que a coisa lhe provocava: algo como um torpedo gigante rasgando-o ao meio len-ta-men-te). As artérias pulsavam, sua cabeça parecia que ia explodir e sua visão era ofuscada pelo pipocar de infinitas estrelas. Já nem sentia mais prazer, como antes, quando se refugiava ali com seus livros preferidos e se deixava levar pela magia da leitura até não sentir mais as pernas. Ali ninguém o incomodava. “Onde ele está?” “Está no banheiro”. “Ah...”. E ele podia ler em paz, o tempo que fosse, porque estar no banheiro o desobrigava de qualquer coisa. Porque não se pode interromper a defecação de ninguém, por mais lenta que seja. Isso não se faz, é desumano. E ele lia capítulos inteiros de Dostoievski e Tolstoi, contos de Rubem Fonseca e Edgar Allan Poe, enquanto seu intestino era desocupado com ternura e suavidade, sem dor, muito pelo contrário: com uma sensação maravilhosa de liberdade, de prazer: um esvaziamento do ser que ultrapassava em muito os limites do fisiológico, desembaraçando-se também o espírito de suas escórias. Era como se ali, naquela privada, a vida passasse a ter sentido: como se finalmente a Natureza lhe gritasse: “Existir é isso! Devolve-me hoje o que não te serve mais, mas não se esqueça: estou te aguardando...”. 135 136 ............................ Mas já não era mais assim há muito tempo. E a coisa vinha piorando a cada semana. Naquele dia ele nem abriu o livro (uma bela edição francesa de “O Conde de Monte-Cristo”), que ficou no chão, enquanto ele gemia de dor. A visita ao proctologista tinha sido adiada pela terceira vez, na esperança de que a fibra solúvel e o iogurte com aveia que a esposa lhe preparava finalmente fariam efeito. Mas nada. Parecia não ter fibra nem iogurte no mundo que fizesse aquilo ceder mais facilmente. E naquele dia a sua pressão devia estar muito alta. Sentia uma dor de cabeça horrível que, mesmo quando ele parava para respirar, continuava, como se milhares de agulhas lhe espetassem o crânio por dentro, procurando uma saída. Até que tudo se apagou. A esposa encontrou-o caído, de joelhos, com a cabeça no chão e as nádegas viradas para cima, preso entre o armário e a privada. Com a morte, a musculatura anal se contraiu e cortou a ponta daquilo que ele tentava expulsar do corpo a duras penas: uma massa escura e endurecida que, após o corte, rolou pela coxa direita e estacionou na borda da privada. “Deu tudo certo”, pensou a viúva. Como ele ultimamente vinha deixando a porta do banheiro destrancada, com medo de passar mal, a mulher (que era enfermeira) pôde entrar, constatar a morte e ligar imediatamente para a funerária, esperando agilizar as coisas para que, no dia seguinte, ao final da tarde, o enterro 137 ............................ acontecesse e ela pudesse dar início à tomada de posse da herança milionária do escritor, resultado de quarenta bestsellers traduzidos em quase todas as línguas do mundo. E enquanto discava o número da funerária, ela já se imaginava em Miami fazendo compras, livre da sovinice do marido que, em vida, regrava seus hábitos extravagantes com pulso firme, sem a menor piedade. E o melhor era que tudo tinha se resolvido sem que ninguém desconfiasse de nada, a começar pelo próprio marido, que tomava todos os dias, misturado ao iogurte com aveia que ela lhe preparava, um pó extraído da casca de uma árvore da Amazônia que transformava qualquer tipo de matéria fecal (por mais rala que fosse) em um verdadeiro bloco de concreto. E ele nem sonhava que ela substituía seus comprimidos para pressão por placebos, feitos de farinha e água; nem que uma grave degeneração dos vasos sanguíneos do seu cérebro ameaçava-o de morte iminente, pois ela, aproveitando-se da necessidade que ele tinha de se isolar para terminar o seu último livro e do seu quase completo desconhecimento da terminologia médica, disse-lhe calmamente, quando ele lhe mostrou o resultado do exame: “Acho que não tem nada de errado aqui, meu amor. Não se preocupe, depois você procura o Dr. Gustavo”. E ele se tranquilizou, pois, afinal, sua esposa era enfermeira, devia saber o que estava dizendo. A equação da morte estava montada: (idade avançada + sedentarismo + obesidade + pressão alta descontrolada + vasos sanguíneos gravemente esclerosados) x força descomunal para expulsar as fezes durante a defecação = derrame cerebral. Ela ainda teve a sorte dele terminar seu último romance um dia antes: um calhamaço de mais de mil páginas, repleto de 138 ............................ aventura e suspense, que a editora aguardava ansiosamente, e que, com a morte do autor, certamente valeria uma fortuna fabulosa. A jovem viúva ficou milionária, casou-se de novo, teve dois filhos e viveu até os setenta anos, cercada de muito carinho e afeto. ............................ No clube de escritores Este conto será curto porque ele não tem quase nada para contar. Só uma frase já o preenche todo. Frase gorda e triste: “No último mês do seu seguro-desemprego, o jovem escritor tenta desesperadamente terminar a novela, e a angústia lhe cobre o espírito com seu manto gelado”. FIM Só isso. Fim? Meu personagem é o jovem escritor desempregado. Acho que não. Como ele, sinto-me angustiado. Para mim, a história dessa assassina, que escapou da justiça dos homens (como tantos outros bandidos por aí, muitas vezes amparados pela própria lei) não termina assim. Mas ele... Ele só tem que terminar a novela. Agora eu... Penso que a justiça de Deus é bem diferente da nossa, e que, para todos nós (nesta ou em outras vidas), continua valendo o que diz a Bíblia: "O que o homem semear, isso mesmo colherá". (Gálatas 6:7). E mais: “Tenhamos sempre em mente que todos os delitos que cometemos não desaparecerão no silêncio do túmulo, porque a vida prossegue, além da morte, desdobrando causas e consequências”. (Chico Xavier, no livro “Leis de Amor”, pelo espírito Emmanuel). Eu... No clube de escritores ninguém pode ficar de braços cruzados. Mas se a palavra não vem. Se o silêncio pesa. Se a dor é tanta que os dedos tremem e não conseguem segurar o lápis ou encontrar as letras no teclado... Hoje meus dedos estão firmes, mas aqui dentro está tudo oco, vazio: nenhuma frase, nada. Só dor. Mas doer também é escrever. 139 140 ............................ Da dor a palavra. E de tudo que me dói lá no fundo – de todas as dores que eu sinto, a que me deixa mais feliz é a da vontade de escrever sem saber por quê. ............................ Terminamos o café e abrimos as geladeiras. São duas e vinte da madrugada. Ele pega um pedaço de goiabada, uma fatia grande (com um pouco de mofo na ponta), que ele coloca na boca de uma vez só. E eu? O que eu vou comer? E eu escrevo. A geladeira aberta e eu olhando. Se bem ou mal, não me importa. E o jovem escritor continua parado na frente do computador, pensando... No quê? Minha mulher e meus filhos dormem. Largados, soltos, felizes na sua inconsciência. O jovem escritor desempregado não tem mulher nem filhos. Não sei. Ele se levanta e eu também. Vamos tomar café. Café forte, com pouco açúcar. Talvez alguma coisa surja daí: uma luz, um caminho, uma encruzilhada, um pântano, uma floresta escura boa para se perder... (porque “perder-se também é caminho”, dizia Clarice). Ainda bem, porque o seguro-desemprego mal dá para ele comer. Ele precisa terminar a novela, publicá-la, ganhar dinheiro. Mas isso vai ser difícil. Muito difícil. Uma boa xícara de café faz milagres. Não gosto desta cidade. A água ferve. Pó preto, grosso, aroma de deserto. Quente. É gente demais querendo chegar a algum lugar sempre, subindo e brilhando, subindo, correndo contra o tempo, brigando, fingindo, humilhando, dando ordens, se equivocando, se perdendo, se achando... O café está bom. O jovem escritor acende um cigarro. Eu não, porque não fumo. Aqui são duas da madrugada. No apartamento do jovem escritor também. Nenhum carro nas avenidas. Das pequenas janelas das cozinhas (da minha e da dele), a cidade se estende enorme e apagada. A mesma cidade. Feia, escura, triste, seus mecanismos desligados – mas não todos. 141 Mas as cidades não são todas assim? As pessoas não são assim? Milhões de palavras escritas para nada: livros, teses, artigos... Ordens, gestos e gritos inúteis. 142 ............................ Milhões de projetos, pautas, reuniões, atas... ............................ No avesso de mim Para quê? Escrever este conto para quê? Que importância tem esse jovem escritor desempregado? Que ele coma a sua goiabada mofada e vá dormir. Ou morra. No clube de escritores a ordem do dia é: um, dois, um, dois, feijão com arroz. E eu pensando nela: Hoje estou pelo avesso e não é feio. A solidão está na carne aberta viva e não é feia. A indiferença em mim pelo que é de aparência e artifício está no meu avesso em grito mudo e não é feia. Tudo que é parte do que em mim sou eu pelo avesso não é feio. Nem belo. -É Sou eu pelo avesso o avesso de mim, que sou mais eu ainda do que o não avesso de mim. Sou eu na mais pura verdade de mim – na mais pura solidão escura e vibrante e alegre de mim. Clarice... Pensando nela e sendo. Meu coração dói de ser eu pelo avesso e vivo e sofro. Sozinho eu sofro e alegre vivo o ser que pelo avesso me sou e me faz de mim algo que dentro de mim sou eu. No meu silêncio sendo. Sou eu pelo avesso quando digo Sim ao que vem do mais fundo do avesso em mim: um grito uma dor no escuro uma luz: Liberdade – 143 144 ............................ O não-medo da morte O não-medo da vida ............................ Subindo na vida No quarto escuro do meu avesso de mim não há planos nem projetos, nem vitórias nem derrotas não há nada que não sou eu – no escuro iluminado e puro de mim Pulando os degraus de dois em dois, o jovem Teo subia quente o morro da Penha, onde morava com a mãe e três irmãos pequenos. Pai ele não tinha. Nem sabia o nome. De vez em quando aparecia um pretendente, um fodido na vida que se instalava no barraco com sua tralha, mas só ficava uma ou duas semanas – tempo mais do que suficiente para ver o tamanho da encrenca em que se metera e sair, esmurrando portas e mandando mãe e filhos para as putas que os pariram, para nunca mais voltar. Sou pura aceitação de mim no avesso - Sou E só Teo bufava de alegria e cansaço. Parecia um touro satisfeito. Queria chegar logo em casa para contar o dinheiro. Seiscentas pratas limpinhas. Ralou muito para conseguir juntar. Lavou carro, engraxou sapato, vendeu picolé, e todo domingo ia para a feira ajudar na barraca de acarajé da negra Eulália, uma baiana que de baiana não tinha nada, nem a roupa, comprada de segunda mão no bazar das putas, no alto do morro. Teo entrou correndo em casa. A mãe surrava um dos moleques, que gritava sem parar, com a bunda já cheia de vergões vermelhos da vara de marmelo arrancada às pressas no quintal do vizinho (se é que podemos chamar de quintal dois metros quadrados de terra encharcada de esgoto fedendo a merda). Teo nem ligou. Entrou no quartinho que dividia com os irmãos, e de dentro de um buraco que ele mesmo havia cavado no chão de terra batida, atrás do guarda-roupa, tirou um saco plástico todo amarrotado. Seu dinheiro estava lá, dobradinho. Cinco notas de cem; às quais, satisfeito, ele acrescentou outra novinha. Quem trocava para ele era o dono de uma padaria no 145 146 ............................ centro. Moedas e notas miúdas por uma nota de cem. Levou quase dois anos para conseguir as seis. Teria conseguido em um ano se não tivesse que ajudar nas despesas de casa. Mas... ............................ Voltou para o barraco, sentindo-se um rei, o dono do pedaço. Na subida reparou os olhares de respeito e admiração quando cruzava com amigos e conhecidos. Estava muito feliz. Mas ali estavam elas. E ele sentia o seu cheiro, tocava-as levemente com os lábios, acariciava-as, os olhos brilhando de contentamento. Ele era importante. Ele era alguém... E com a mesma alegria com que subira minutos antes, ele desceu, correndo, pulando de dois em dois, de três em três, os degraus imundos e escalavrados do morro da Penha. Nem sentia que estava no morro. Parecia nas nuvens. E em menos de meia hora já estava na loja experimentando o tênis. Era o seu sonho aquele tênis. Todos os dias ele passava ali para se certificar de que o preço continuava 599 reais. Respirava aliviado quando via que sim, pois tivera que adiar a compra duas vezes em um ano por causa dos aumentos. Quando o Ronaldinho começou a aparecer na televisão usando-o, o preço pulou de 470 para 550 reais em um dia. Foi um choque para Teo. “Mas é o Ronaldinho”, pensara ele na época, triste pelos meses a mais de ralação que aquilo significaria, mas ao mesmo tempo feliz pelo fato de alguém tão importante para o Brasil colocar nos pés (e que pés!) o objeto de seus sonhos. Ficou quarenta minutos se olhando no espelho da loja, maravilhado. (É que no barraco não tinha espelho de corpo inteiro e ele queria aproveitar). Enquanto isso o dono da loja mantinha o dedo encostado no botão do alarme, pronto para apertá-lo a qualquer momento, se precisasse. Mas não foi preciso. Teo pagou pelo par de tênis (em dinheiro e à vista) e foi embora, feliz da vida. 147 148 ............................ Bicho feroz O jovem Ramon caminhava sozinho no meio do mato há pelo menos uma hora. Ele tinha acordado cedo naquela manhã para subir a escadaria do Cristo, um exercício que normalmente aliviava sua melancolia crônica, ajudando-o a suportar melhor o dia. E lá no alto, olhando a neblina cinza que cobria quase toda a cidade, ele resolvera embrenhar-se pelas matas da Serra de Santa Cruz. Não quis voltar pelo mesmo caminho porque estava muito angustiado. O coração gelava, batendo forte e apertado no peito. Por isso não quis ver a escada deserta de novo, os mesmos degraus de cimento escuro, que o levariam ao mesmo ponto de partida (a cruz de madeira podre), e depois à mesma rua, à mesma casa, ao mesmo quarto, à mesma solidão vazia de uma vida que, para ele, não tinha o menor sentido. Depois de uma hora no meio do mato, sem medo, o pensamento ausente como um céu branco infindável, ele começou a se sentir parte da natureza: um bicho, uma árvore, uma pedra, um cupim. Isso lhe deu ânimo para continuar. Enquanto caminhava, enchia os pulmões com o ar frio da manhã, o coração batendo forte, o corpo ardendo dos espinhos e capins que lhe rasgavam a pele e a carne, o sangue escorrendo quente pelas pernas e braços. De repente, numa pequena clareira, ele parou e viu um urubu. O bicho o encarava com olhar firme do alto de um enorme pé de jatobá. Ramon não tirava os olhos da ave, que esticou o pescoço pelado para frente, o bico fechado, as garras trancadas com força no galho da árvore, esperando. 149 ............................ Os olhos do bicho brilhavam e pareciam dizer alguma coisa. Chamavam. Sim. Alguma coisa dentro de Ramon sentia um chamado. E ao mesmo tempo, o que sentia o chamado dentro dele parecia se converter em fogo. Algo rosnando. Um uivo. Um bicho... Um bicho que ouvia e entendia o chamado de outro bicho. Ramon então fugiu desesperado, com medo de viver aquilo, de ser o que dentro dele ardia em chamas. Corria aflito, abrindo caminho por entre os arbustos, enquanto a mancha escura do urubu se movia lentamente acima da neblina espessa, acompanhando sua presa pela mata. Um chamado... De repente, Ramon parou de correr, encostou-se numa árvore e esperou. O urubu pousou perto dele, em cima de um enorme cupim, e o encarou com olhos de fogo. Dentro de Ramon um vulcão extinto acordava. Bicho feroz. Loucura selvagem. Soltar esse bicho seria correr o risco de um morticínio em larga escala, tamanha era a selvageria e a vontade de matar, de estraçalhar. Mas a descoberta desse bicho (e sabê-lo vivo), mesmo enjaulado, dava ao rapaz um prazer indescritível. Uma sensação de plenitude... Uma vontade de viver que ele jamais tinha sentido. A partir desse dia, nas reuniões e eventos sociais que ele normalmente participava por obrigação, para “ganhar a vida” (como se diz), por trás da cordialidade sombria que era a sua marca registrada, rosnava o animal selvagem – questionador, 150 ............................ sarcástico, insolente, irônico, petulante, desafiador das regras – , e era isso que lhe dava forças para continuar vivendo e sendo Ramon, o respeitável. O bicho dentro da jaula via tudo através da máscara da boa educação, do olhar mortiço e sonso do homem civilizado (esse homem incapaz de gritar para fora, de matar e trucidar). Mas por dentro... Por dentro garras e dentes afiados brilhavam e tremiam ávidos de sangue. E cada vez com mais frequencia, um uivo aterrador quebrava o silêncio daquele poço sem fundo que era a alma de Ramon... Um uivo de selvageria, desespero e nojo... Nojo do artificialismo da sociedade, do seu jogo de interesses, da hipocrisia, da arrogância estúpida e vazia, da bajulação, da subserviência, da pobreza de espírito da maioria das pessoas que cercavam o jovem Ramon em seu mundo ordeiro e civilizado. Ele próprio, Ramon, muitas vezes foi mordido por querer ser como os outros... Por querer jogar e vencer os joguinhos efêmeros dos outros. E mesmo assim ele continuava... Sangrando por dentro. ............................ Textos incômodos e perturbadores... Mas isso não passava de uma válvula de escape. Para não explodir. Não era nada perto do que o animal queria. Nada. O alimento certo na hora certa... A hora certa é um mistério. Mas o alimento é simples: Bons vinhos, bons livros, bons filmes e boa música. Ramon não estava mais sozinho. Mas era só de vez em quando que esse uivo escapava das trevas interiores de Ramon para o mundo real e civilizado. Dentro de Ramon ele vibrava forte. Mas do lado de fora, no contato com a sociedade, a crosta artificial da boa educação impedia que ele explodisse em ódio real e sanguinário. Normalmente era assim. Excepcionalmente, porém, mesmo enjaulado, quando recebia o alimento certo na hora certa, o bicho soltava um uivo tão forte que a crosta não resistia. Uma brecha se abria. E Ramon escrevia... 151 152 ............................ Antes do fim Setenta anos de idade sozinho em casa num dia frio e escuro sentado na privada ele começou a puxar os pêlos do peito e do saco a puxar e arrancar os pêlos com raiva uma raiva que explodiu de repente, assim, sem mais enquanto o cheiro das fezes se espalhava pelo ar, de dentro para fora um cheiro de repolho podre, de carne podre e os pêlos caíam na água, no chão, na borda da privada e ele continuava puxando e arrancando com ferocidade – arrancando – ............................ – chinelos baratos, um deles rachado na frente, sujo e uma das unhas encravada, trincada, de um marrom pardo escuro que doía todos os dias dentro do seu sapato caro de ir ao centro de ir cobrar as dívidas de ir maquinar e fofocar como ninguém e matraquear: ‘Como sou bom, como sou honrado, como sou competente veja como tenho razão eu só quero o bem, só quero o que é certo: isso é certo, aquilo é errado e olha o meu filho, que beleza ele fala inglês e é o melhor executivo da empresa foi o melhor aluno da universidade’ – Até que um pequeno vaso de sangue arrebentou próximo à virilha – um vasinho de nada, roxo que parecia estar preso ao pêlo que ele arrancou do saco murcho e comprido – uma artéria pequena, mas que sangrou e o sangue começou a escorrer, a pingar a pingar sem parar na água marrom que ficou mais escura na parte onde pingava mais escura de um vermelho vivo de sangue ruim de sangue azedo – o melhor – pingando – E saía de peito erguido pelas ruas com sua honra e respeitabilidade de chefe de família bem casado e feliz – tudo certo, do jeito que tinha que ser: ‘Lá em casa é assim, comigo é desse jeito’ E enquanto pingava ele puxava com mais fúria os pêlos e olhava as unhas dos pés nos chinelos pretos, que ele só usava em casa 153 E o sangue escorrendo pelo saco murcho, comprido e velho – os pêlos no chão, na água pêlos pretos e brancos – quase todos brancos contrastando com o cabelo pintado que o fazia sorrir de orgulho e estufar o peito na frente do espelho antes de se enfiar no terno e sair para cobrar e fofocar matraquear e maquinar 154 ............................ – uma felicidade embrulhada em papel de seda e fitas de ouro o dia seguindo o seu curso, tudo planejado desde o início E enquanto o sangue pingava sem parar ele pensava no jogo que terminava: rei, peão, rainha, cavalo, torre e bispo deitados na mesma caixa na mesma caixa de madeira escura E a tampa, ah a tampa... O fim do jogo se aproximava e só naquele momento, sentado na privada arrancando os pêlos do peito e do saco ele se deu conta disso Continuar para quê? Onde estava o garotinho que brincava no quintal de casa cheio de alegria e prazer vivendo o instante? Estava no topo, no ápice, aposentado – mas na ativa, maquinando, maquinando rico muito rico filhos brilhantes um casamento respeitável respeitabilíssimo com uma fachada construída em pedra maciça impenetrável por onde não passava nem a luz do sol numa manhã quente de verão: e a vida era como se o sol não brilhasse mas respeitável e próspera de dar inveja – era isso que importava 155 ............................ Mas o jogo terminava e ele sentia o seu fim foi um choque um tremor súbito que o fez soltar o último tufo de pentelhos no chão e esfregar a mão trêmula no peito quase despelado e no saco quase nu – triste (uma tristeza pesada e fria) e ao erguê-la viu o sangue ah aquele sangue vermelho e quente, escuro sangue dele E de repente uma ânsia de beber o próprio sangue lhe tomou o corpo e o espírito uma fissura, uma fome de seu próprio corpo, de sua fonte de vida uma vontade incontrolável de buscar nela vestígios do seu eu perdido de arrancar as cascas, as máscaras de enfiar as unhas no peito e vasculhar por dentro até encontrar... o quê? onde estava? onde estava? E sem pensar foi bebendo o sangue lambendo a mão empapada de vermelho molhado e quente que voltava ao saco para buscar mais e mais sangue dele, ácido, com gosto de ferro, de cinza pardo ferroso – e mais e mais e mais e mais E o saco não parava de pingar e ele bebendo, de olhos fechados sentindo, sentindo 156 ............................ e de repente o cheiro podre desapareceu e a criança voltou gritando ‘Nada importa, nada disso importa’ e do fundo de seu túmulo Fernando Pessoa gritou ‘Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Sem ti correrá tudo sem ti’ E ele também gritou caiu de joelhos e começou a arrancar os cabelos da cabeça, dos cílios, das sobrancelhas e sentiu sua doença de pele descamando atrás das orelhas e arrancou as cascas as placas de casca branca e seca e na cabeça descobriu uma ferida que também descamava e que ele coçou coçou até sangrar E o saco pingando no chão formando uma poça escura no piso branco do banheiro e sua boca vermelha vermelha do seu próprio sangue da sua própria vida quente que pulsava fundo bem fundo sem ele saber perdida por trás das crostas secas das máscaras duras e frias da respeitabilidade de tudo que tem que ser, de tudo que é certo E ele gritou de novo, de joelhos a boca cuspindo sangue num vômito de libertação e esfregou no corpo o seu próprio vômito, o seu próprio sangue e gritou 157 ............................ ‘Meus filhos, meus filhos, venham até mim venham aqui e me escutem não sou o que vocês pensam roubei, humilhei, menti, oh como menti: muitas dessas pessoas que vocês desprezam só porque eu as culpei de terem me atacado a mim, o inocente, o bom – essas pessoas não são culpadas nem inocentes o que vocês sabem é o que eu disse, o que tem que ser o que deve ser dito para sustentar a imagem pura e boa do pai do senhor do respeitável do marido fiel e honrado do profissional brilhante pai dos filhos brilhantes’ E a poça de sangue crescia logo abaixo do seu saco e ele de joelhos gritando ‘Perdão, perdão’ as mãos levantadas em súplica e uma nova ânsia de vômito lhe tomava o estômago em espasmos de dor os músculos se contraindo, apertando, apertando – espasmos que expeliram uma água rala, vermelha e fétida de um fedor ardente e seco E de repente ele se jogou no chão, deitado, com as mãos no rosto banhado em sangue, fezes e vômito imaginando-se na frente do espelho, todo importante e não havia nada ali era um espelho vazio nada ele não estava ali E a poça aumentou ainda mais e ele desmaiou 158 ............................ desmaiou de exaustão e dor, quase sem fôlego de tanto gritar quase sem vida mas limpo, purificado... foi salvo pelo vizinho, que o levou a um hospital onde os filhos e a esposa o encontraram vivo mas diferente: um outro homem... preparado para partir As peças já estavam na caixa... ‘O jogo acabou’ *** 159