WAGNER
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WAGNER WAGNER Álbum de família/1984 Mario Henrique Simonsen TRISTAO E ISOLDA TRISTÃO E ISOLDA – DA LENDA MEDIEVAL AO DRAMA WAGNERIANO A lenda medieval de Tristão e Isolda, parte do ciclo da Távola Redonda, é um romance de peripécias, segundo os costumes da época. Para cobrar tributos à Cornualha, o rei da Irlanda para lá envia o cavaleiro Moroldo, seu campeão e noivo de sua filha, a princesa Isolda dos Cabelos Louros. Seguindo as regras da época, para isso é obrigado a enfrentar em duelo o cavaleiro Tristão, Campeão da Cornualha e sobrinho do rei Marke. Tristão mata Moroldo, e como desforra envia sua cabeça decepada para Isolda. 5 TRISTAO E ISOLDA Mas, na luta, Tristão fica gravemente ferido, e só quem conhece as artes médicas para curá-lo é a própria Isolda. Assim, o cavaleiro viaja solitário para a Irlanda, disfarçado como Tantris, e consegue ser curado pela princesa e regressar à Cornualha. Mais adiante, um tratado de paz é celebrado entre a Irlanda e a Cornualha. Para sedimentá-lo, Tristão articula o casamento de Isolda com o rei Marke, voltando à Irlanda, agora para buscar a princesa. Na viagem de regresso, Isolda, cheia de ódio e inconformada com o seu destino, ordena à sua aia Brangânia que sirva num cálice a poção da morte, para que ela a partilhe com Tristão. Só que Brangânia, no desespero, troca a poção pelo filtro do amor. Tristão e Isolda bebem o filtro e se apaixonam instantaneamente, tornando-se amantes antes de chegar à Cornualha. Na corte de Marke, Brangânia e Kurwenal, o escudeiro de Tristão, fazem o possível para ocultar o amor dos príncipes. Brangânia, inclusive, sacrifica a sua virgindade substituindo Isolda na noite de núpcias. Mas o cavaleiro Melot, falso amigo de Tristão e secretamente apaixonado por Isolda, prepara uma armadilha para 6 TRISTAO E ISOLDA apanhar em flagrante os amantes: uma pretensa caçada, da qual o rei voltará inesperadamente. Surpreendidos em flagrante, os amantes não têm como se desculpar. Tristão é gravemente ferido em duelo por Melot, sendo recolhido à beira da morte por Kurwenal, que consegue levá-lo para Kareol, sua terra natal. E Marke se vinga de Isolda, entregando-a ao apetite sexual dos leprosos. Em Kareol, Tristão continua gravemente enfermo. No meio tempo chega a ter relações amorosas com outra Isolda, a das Mãos Alvas, mas nunca se esquece da Isolda dos Cabelos Louros. Kurwenal consegue, finalmente, sequestrar a ex-princesa da Irlanda, mas Tristão morre em razão do ferimento antes que Isolda chegue. Esta morre de desgosto pouco tempo depois. Os amantes são enterrados em túmulos vizinhos. Ao saber disso, o rei, enfurecido, ordena que se afastem as sepulturas. Mas, ao lado de cada uma, nasce uma árvore. Com o passar do tempo, seus ramos se entrelaçam. Wagner transforma o romance medieval num drama de profunda densidade psicológica, em que muito pouco se passa em termos de ação, e no qual o que real7 TRISTAO E ISOLDA mente importa são os estados de espírito. Para isso, elimina muita das peripécias da lenda medieval, suprime personagens acessórios como a Isolda das Mãos Alvas, e inicia a ópera na viagem da Irlanda para a Cornualha, quando Tristão leva Isolda para se casar com o rei Marke. Os antecedentes, como a cobrança dos tributos por Moroldo e a sua morte pela espada de Tristão, a cura do falso Tantris e o casamento de Isolda e Marke, são narrados no primeiro ato, em pequena parte por Kurwenal, e na maior parte pela própria Isolda. Mas a diferença central é que, no texto wagneriano, Tristão e Isolda já estão apaixonados antes de sorverem o filtro do amor. Apenas nenhum acredita ser correspondido pelo outro, e por isso cada qual oculta a sua paixão, Tristão melhor do que Isolda. De resto, o casamento de Isolda com o rei Marke torna a confissão desse amor incompatível com a honra de Tristão, que não admite trair seu tio. A razão pela qual Isolda ordena Brangânia que sirva a poção da morte para ser partilhada entre ela e Tristão é bastante lógica. Tornar-se rainha da Cornualha e ter sempre perto, na corte, o homem que ama, sobrinho 8 TRISTAO E ISOLDA do seu marido, é a perspectiva de uma tortura insuportável. Por outro lado, ela quer se vingar de Tristão, que, além de desprezá-la, a ofereceu em casamento ao velho tio. Tristão aceita sorver o veneno no momento em que, apesar de toda a dissimulação de Isolda, percebe os seus verdadeiros sentimentos, compreendendo que caiu num dilema sem saída: ou trai Isolda, ou trai o rei Marke, restando apenas a liberação pela morte. O efeito do filtro do amor é apenas fazer com que os dois apaixonados extravasem a sua paixão, já que ambos estão convencidos de que vão morrer envenenados e a essa altura não precisam esconder mais nada. Só Brangânia, que não entende as confissões de Isolda no primeiro ato, realmente acredita que a causa da paixão é a poção que ela serviu em substituição ao filtro da morte. Presumivelmente consegue convencer o rei Marke dessa mesma química entre o segundo e o terceiro ato da ópera. No segundo ato, os amantes continuam vivos, mas enredados naquilo que sabem ser um amor impossível. O extraordinário dueto é o confronto entre a intolerância do Dia e as sublimes delícias da Noite. O Dia, 9 TRISTAO E ISOLDA no caso, simboliza o mundo real, em que não há espaço para o amor entre Tristão e Isolda. A Noite, um mundo imaginário, ao qual só se pode chegar pela morte. Ou seja, o dueto do segundo ato simplesmente renova o pacto de morte do primeiro. Uma vez surpreendidos por Marke e Melot, é a vez de Tristão buscar a morte. É ele quem desafia Melot em duelo, deixando propositalmente cair a espada no momento do combate. E só a interferência do rei impede que Melot o trucide. Wagner também transforma inteiramente a personalidade do rei Marke em relação à lenda medieval, e esse é um ponto-chave na ópera. Pelo que insinua o rei, o seu casamento com Isolda não se consumou fisicamente, com o que Wagner dispensa duas peripécias de mau gosto da lenda medieval, o sacrifício da virgindade de Brangânia fazendo-se passar por Isolda na noite de núpcias, e a entrega de Isolda à sanha dos leprosos. Não há em Marke nenhum desejo de vingança, e a prova é que ele próprio evita que Melot liquide Tristão após feri-lo. Apenas se sente profundamente triste e humilhado diante da traição do sobrinho. Mais ainda, convencido por Brangânia de que tudo fora obra do 10 TRISTAO E ISOLDA filtro do amor, viaja a Kareol no terceiro ato, escoltado por Melot, para unir em casamento os dois amantes – tarde demais, pois chega após a morte de Tristão, e no limiar do Liebestod (morte por amor). Segundo as indicações da partitura (raramente observadas nas representações modernas), a ópera se encerra com o rei abençoando os cadáveres. Em que momento Isolda se apaixona por Tristão, torna-se bastante claro na narrativa da terceira cena do primeiro ato. A princesa conta a Brangânia que, ao começar o tratamento do falso Tantris, descobrira uma falha em sua espada, na qual se encaixava exatamente a farpa por ela encontrada na cabeça de Moroldo. Assim descobriu que o ferido era Tristão e, num ímpeto de vingança, levantou a espada disposta a matá-lo. Só que, nesse momento, pousou-lhe nos olhos o olhar de Tristão. A angústia desse olhar fez com que a espada lhe caísse das mãos. E, assim, tratou de curar o cavaleiro para que ele e seu olhar fossem embora, deixando-a em paz. E Tristão regressou à Cornualha, não sem antes lhe jurar eterna gratidão e fidelidade. Embora Isolda não confesse explicitamente sua paixão, qualquer psi11 TRISTAO E ISOLDA cólogo um pouco mais arguto do que Brangânia entenderia tudo o que se passava no coração da princesa. Antes da narrativa, no início da segunda cena no primeiro ato, Isolda fala consigo mesma, olhando fixamente para Tristão: Mir erkoren, Eleito para mim, mir verloren, Perdido para mim, hehr und heil, esplêndido e forte, kühn und feig! ousado e covarde! Todgeweihtes Haupt! Fronte votada à morte! Todgeweihtes Herz! Coração votado à morte! E depois da narrativa da terceira cena, enquanto Brangânia tenta consolá-la, Isolda responde: Ungeminnt Sem ser amada den hehrsten Mann sempre perto de mim stets mir nah zu sehen! o herói mais sublime! Wie könnt‘ ich die Como poderia suportar Qual bestehen? a tortura? 12 TRISTAO E ISOLDA Ou seja, como suportar a vida na corte da Cornualha, casada com Marke e sempre perto de Tristão? Em que momento Tristão se apaixona por Isolda é questão menos fácil de identificar. Possivelmente o olhar do falso Tantris já era uma manifestação de paixão, mas nesse caso cabe perguntar por que Tristão articula o casamento de Isolda com Marke. Uma segunda possibilidade é que essa paixão só seja percebida na viagem do primeiro ato. O dueto da quinta cena do primeiro ato, embora constitua uma tentativa de dissimulação por parte de Isolda, ajuda a esclarecer a questão. Antes de beber o filtro, Isolda em nenhum momento insinua que está apaixonada por Tristão. Em síntese, Isolda conta que, em silêncio, jurara vingar a morte de Moroldo e, pois nenhum cavaleiro poderia bater Tristão em duelo, ela própria decidiu assumir a tarefa. Poderia tê-lo feito quando descobriu que o falso Tantris era Tristão. Mas não quis se vingar de um doente. Tristão lhe oferece a espada para que ela se vingue de Moroldo, mas Isolda se recusa a enviar ao rei Marke o cadáver do seu campeão. No lugar disso, propõe que 13 TRISTAO E ISOLDA ambos tomem a taça de reconciliação. Só que Tristão percebe que Isolda está dissimulando, respondendo sombriamente: Des Schweigens Herrin A senhora do silêncio heisst mich schweigen: manda que eu me cale: fass’ich, was sie entendo o que ela verschwiegescondeu verschweig’ich, e escondo o que ela was sie nicht fasst não entende O “entendo o que ela escondeu” poderia, à primeira vista, significar que Tristão sabe que a taça de reconciliação é a poção da morte, mas essa é uma interpretação inconvincente, pois a taça não poderia ser outra coisa e Isolda não tenta dissimular. A versão mais natural para a charada wagneriana é que Tristão percebeu que Isolda estava apaixonada por ele. E esconde o que ela não entende, ou seja, que também está apaixonado pela princesa. O fato de, no primeiro ato da ópera, a paixão de Tristão se revelar muito mais discretamente do que 14 TRISTAO E ISOLDA a de Isolda explica-se por uma razão simples: Tristão deve lealdade ao rei Marke, Isolda não. O próprio casamento, que não se consuma fisicamente, não muda essa assimetria de deveres, que transforma Tristão no personagem mais complexo da tragédia. Esses pontos são confirmados na terceira cena do segundo ato, quando os amantes são pegos em flagrante por Marke, Melot e seu séquito. Tristão, desde o início da cena, decide-se a buscar a morte na espada de Melot, como insinua a frase inicial de Tristão: Der öde Tag O dia tenebroso zum letzenmal pela última vez No seu longo monólogo, Marke apenas lastima a deslealdade de Tristão. Velho, viúvo, sem filhos, Marke pretendera deixar o trono para Tristão. Resistiu como pôde às pressões da corte que queria que ele se casasse outra vez para que a Cornualha tivesse uma rainha, até que Tristão se juntou a essas pressões ameaçando abandonar o país, e propondo-se a articular um novo casamento para ele. 15 TRISTAO E ISOLDA De Isolda, Marke nada cobra. Uma mulher maravilhosa, que lhe daria paz à alma, Der mein Wille Da qual a minha vontade nie zu nahen wagte, nunca ousou aproximar-se, der mein Wunsch à qual o meu desejo Ehrfurchtscheu entsagte timidamente renunciou Marke quer apenas entender o mistério da traição de Tristão. O cavaleiro não tem resposta, e convida Isolda para segui-lo para uma terra distante onde nunca brilha a luz do sol, o que evidentemente significa a morte. Isolda concorda em mais uma vez acompanhar Tristão, e, diante dos protestos de Melot, Tristão o desafia em duelo deixando-se ferir propositalmente. Como Isolda cumpre sua parte no pacto de morte, é questão mais complicada. No texto wagneriano, a princesa chega a Kareol no terceiro ato apenas a tempo de ver Tristão morrer nos seus braços, após longa e angustiada espera. Isolda desmaia junto ao corpo de Tristão e, no meio tempo, ocorrem várias peripécias: chega a Kareol um segundo navio, com Marke, Melot 16 TRISTAO E ISOLDA e Brangânia. Kurwenal organiza uma barricada contra os supostos inimigos e, num gesto de suprema vingança, consegue liquidar Melot, mas pouco depois é ferido mortalmente, indo expirar ao lado de Tristão. Marke e Brangânia contemplam desolados os cadáveres, até que percebem que Isolda está viva. Só que a princesa já migrou para o reino da noite e morre no êxtase do Liebes- tod. A solução não é inteiramente convincente, abrindo espaço para a imaginação dos diretores de cena. OS ‘LEITMOTIVS’ DE TRISTÃO E ISOLDA Parte I Para compreender Tristão e Isolda é preciso conhecer a trama de leitmotivs sobre a qual se desenvolve o drama musical. O conceito de leitmotiv é simples, uma frase melódica que se repete e se transforma ao longo da ópera, evocando certa personagem, certo acontecimento ou determinado estado de espírito. O problema prático é que Wagner não se deu ao trabalho de explicitar – e muito menos de apelidar – esses leit17 TRISTAO E ISOLDA motivs. Surgem dois problemas práticos de classificação: a) um tema que se repita uma única vez na ópera deve ou não ser considerado um leitmotiv? É o exemplo da frase introdutória do segundo ato, após a explosão do tema do Dia e que se reproduz antes da entrada de Tristão; b) uma transposição modal de um motivo (de maior para menor, por exemplo) deve-se considerar um outro motivo? Em Tristão e Isolda esse segundo problema não chega a causar muita preocupação, mas na Tetralogia, o conhecido tema de Erda nada mais é do que a transposição do tema do Reno para modo menor. Por economia, resumiremos a estrutura de motivos ao mínimo possível, ou seja, identificando os que apenas diferem por transformações e os que não se repetem mais de uma vez na ópera. Estabelecendo esse critério, no prelúdio do primeiro ato se distinguem seis leitmotivs. Os dois primeiros (1 e 2) vêm frequentemente associados, podendo-se denominar Paixão e Desejo. O tema de quatro notas das cordas é o da Paixão; a figura cromática ascendente, composta pelas quatro notas seguintes tocadas pelos sopros de madeira, é o 18 TRISTAO E ISOLDA tema do Desejo. Os dois temas descrevem o estado de espírito que leva ao drama de Tristão e Isolda. Eles são propositalmente interrogativos a ponto de explicar por que Freud pôs a ópera nas raízes da psicanálise. E percorrem toda a ópera, na maior parte das vezes em associação, mas com alguns momentos de independência, sobretudo no caso do Desejo. O terceiro tema, o do Olhar, talvez seja o mais importante da ópera. O tema agora se refere a um episódio concreto, contado por Isolda na narrativa do primeiro ato: Tristão, após matar Moroldo em duelo, voltara à Irlanda para se curar da ferida com a medicina da princesa irlandesa, disfarçado como Tantris. Isolda tratou de curá-lo, quando descobriu que se tratava do assassino do ex-noivo. Nesse momento, levantou a espada para se vingar e matá-lo. Só que, aí, o olhar de Tristão a atingiu nos olhos, fazendo-a deixar a espada cair. Ou seja, foi nesse momento que Isolda se apaixonou por Tristão. Os dois temas seguintes, o do Filtro do Amor (nº 4) e o do Filtro da Morte (nº 5), também surgem associados no prelúdio. 19 TRISTAO E ISOLDA A linha melódica cromática descrevendo o Filtro do Amor, as três notas ameaçadoras dos metais graves do Filtro da Morte. Esses dois temas, associados ou não, aparecem frequentemente no primeiro e no terceiro ato. O último tema do prelúdio é o da Liberação pela Morte (nº 6). No prelúdio, ele desempenha extraordinário papel no seu desenvolvimento sinfônico. Na ópera, reaparece três vezes: a primeira, não muito convincente (embora musicalmente admirável), na terceira cena do primeiro ato, no diálogo Isolda-Brangânia. Depois, com extraordinária intensidade, sublinhando o dueto de amor do final do primeiro ato. Por último, na morte de Tristão. Parte II Como em todas as óperas de Wagner a partir de Ouro do Reno, a partitura de Tristão e Isolda se constrói a partir de uma trama de leitmotivs, cada qual expressando uma ideia, um sentimento ou um personagem. Wagner não se deu ao trabalho de explicitar esses 20 TRISTAO E ISOLDA motivos, de modo que sua listagem e sua denominação ficam a critério de cada leitor da partitura. Indicaremos a seguir os principais temas limitando-nos aos recorrentes, isto é, aos que se repetem por mais de uma cena da ópera. Os primeiros compassos do prelúdio trazem a combinação enigmática Paixão-Desejo (1/2). As notas lá-fá-mi-ré sustenido-ré natural, tocadas pelas cordas, formam o tema da Paixão; a figura cromática dos sopros, representada pela linha sol sustenido-si, é o motivo do Desejo. Os dois temas aparecem associados várias vezes na ópera, e o do Desejo, isoladamente, muitas vezes mais. No décimo oitavo compasso surge um terceiro tema, também importantíssimo, o do Olhar, e que percorre quase toda a ópera (3). O motivo evoca o olhar do falso Tantris que apaixonou Isolda. Poucos compassos depois surgem mais outros temas, o do Filtro do Amor (4) e o do Filtro da Morte (5). Este último, composto por apenas três notas amea çadoras, é tocado pelos instrumentos mais graves da 21 TRISTAO E ISOLDA orquestra, sejam cordas, sejam sopros de metal. Ambos os temas voltam à tona várias vezes durante a ópera. No sexagésimo quinto compasso do prelúdio, surge um sexto tema, o da Liberação pela Morte (6). Esse tema apaixonado volta poucas vezes na ópera, mas em momentos críticos: a) na terceira cena do primeiro ato, quando Brangânia lembra a Isolda os filtros mágicos preparados por sua mãe; b) no dueto de amor do final do primeiro ato; c) na morte de Tristão, na segunda cena do terceiro ato. Logo após se abrirem as cortinas, a canção do marinheiro introduz um novo tema, o do Mar (7), de importância tópica no primeiro ato. O diálogo de Isolda com Brangânia na primeira cena do primeiro ato se desenvolve a partir desse motivo e de outros temas não recorrentes na ópera. No início da segunda cena, logo após a repetição da Canção do Marinheiro, brota dos lábios de Isolda o tema da Morte – Fronte votada à morte, coração votado à morte (8): tema da maior importância psicológica e musical em toda a ópera. 22 TRISTAO E ISOLDA Brangânia caminha para transmitir a Tristão o recado de Isolda guiada pelo motivo do Mar, tocado pelas trompas. Após algumas evoluções do motivo do Desejo (2), na resposta de Kurwenal surgem dois novos temas, o da Cornualha (9) e o de Tristão herói (10). É sob o eco do tema de Tristão herói que se inicia a terceira cena do primeiro ato, um longo diálogo entre Isolda e Brangânia. A narrativa de Isolda começa com uma figura cromática descendente, Tristão ferido. O motivo se repete até o momento em que Isolda lembra como deixou cair a espada que iria matar o falso Tantris, surgindo aí o tema do Olhar (3). Os três temas, o de Tristão ferido, o de Tristão herói e o do Olhar, mais alguns motivos não recorrentes, compõem o tecido musical da narrativa de Isolda. Brangânia tenta consolá-la em belíssimas páginas musicais, mas não chegam a introduzir nenhum tema recorrente. Na confissão de Isolda, o Ungeminnt, os motivos do Desejo (2) e o do Olhar (3) se entrelaçam com especial impacto dramático. Na parte final da terceira cena, misturam-se os temas do Desejo (2), da Morte (8), da Liberação pela Morte (6), dos Filtros do Amor e da 23 TRISTAO E ISOLDA Morte (4) e (5), até que o Coro dos Marinheiros (12) introduz um novo leitmotiv, de importância até o final do primeiro ato. Kurwenal entra na quarta cena, para anunciar às damas que se preparem para a chegada do navio à Cornualha, com uma extraordinária combinação dos temas do Mar (7) e do Coro dos Marinheiros (12). Na extraordinária resposta de Isolda dominam dois temas, ainda que transformados, o da Morte (8) e o do Filtro da Morte (5). A entrada de Tristão na quinta cena do primeiro ato é anunciada por um novo tema, o da Honra de Tristão (13). Nele o tecido musical mistura esse tema com o Filtro da Morte. Na parte do dueto em que Isolda trata de dissimular seus sentimentos, esses temas se entrelaçam com o da Morte (8) e com duas intervenções da Canção dos Marinheiros. No momento em que ambos sorvem o suposto Filtro da Morte, a orquestra projeta o binômio Paixão-Desejo (1/2). Repete-se aí o início do prelúdio até o momento em que os amantes se entrelaçam sob o motivo do Olhar (3). O breve dueto de amor 24 TRISTAO E ISOLDA evoca o tema da Liberação pela Morte (6) e do Filtro do Amor (4). O ato termina com a chegada do navio à Cornualha, descrita pelo entrelaçamento dos motivos do Mar e da Canção dos Marinheiros. O segundo ato começa com o motivo do Dia (14). Esse motivo, que descreve o mundo do Dia, incompatível com o amor Tristão-Isolda, transforma-se mais adiante numa versão adoçada pela queda da linha melódica de uma quarta em vez de uma quinta: O Dia (II). O prelúdio do segundo ato, além do tema do Dia, introduz dois outros. Primeiro, o da Ansiedade (16), segundo, o do Êxtase (17). Este último, posteriormente, transforma-se na seguinte versão, importantíssima no dueto de amor e no Liebestod, o do Êxtase (18.) Isolda e Brangânia entram sob o som das trompas de caça (a caçada preparada por Melot, para o regresso imprevisto de Marke) e dialogam conduzidas pelos temas da Ansiedade (16) e do Êxtase (17). Na parte final do dueto, que se inicia com Dein Werk de Isolda, Wagner desenvolve extraordinárias evoluções cromá25 TRISTAO E ISOLDA ticas do motivo do Desejo (2). Surge então um novo tema, Frau Minne (19). No final da primeira cena do segundo ato, voltam os temas do Êxtase e da Ansiedade, no auge da excitação. E, quando Isolda acende a tocha para chamar Tristão, os metais sopram em fortíssimo o tema da Morte. A segunda cena do segundo ato, o grande dueto de amor da ópera, inicia-se pela repetição da seção inicial do prelúdio, mais um novo tema não recorrente sobre a ansiedade dos amantes. Logo após o primeiro abraço, a orquestra toca o tema do Êxtase (17) com toda a força, seguindo-se um pouco depois de Frau Minne (19). Segue-se a seção do dueto devotada ao Dia. Os principais temas são o do Dia, inicialmente na versão (14), depois na versão (15), bem mais doce aos ouvidos: o de Tristão herói (10); o do Desejo (2); o do Êxtase (17); o de Frau Minne (19); o da Ansiedade (16). No final da seção, surge o motivo do Êxtase na versão (18), e se antecipam dois temas da segunda seção do dueto, o da Noite (20) e o da Rejeição ao Dia (21). E que dominam a primeira parte da seção do dueto que consagra a revolução harmônica de Tristão e Isolda. 26 TRISTAO E ISOLDA Depois da fantástica aventura cromática que é a vigília de Brangânia, surge um novo tema, o da Felicidade (22). O dueto prossegue combinando os temas da Felicidade, da Rejeição ao Dia, da Morte, até que se inicia a última seção, anunciada pela Canção da Morte (23). Que domina o final do dueto, e que inicia o Liebestod. Após a advertência de Brangânia, voltam os temas da Felicidade (22), da Rejeição ao Dia (21), até a explosão final em O ew’ge Nacht (Ó noite eterna), em que se misturam os motivos da Rejeição ao Dia, da Canção da Morte, do Êxtase, e mais uma figura cromática de transição, que apelidaremos tema do Sonho (24). O dueto é interrompido subitamente pelo flagrante preparado por Melot, ecoando os temas da Canção da Morte, do Sonho, e, finalmente, do Dia. A lamentação de Marke introduz pelo menos um novo leitmotiv, A tristeza de Marke (25). A resposta (ou, mais precisamente, a não resposta) de Tristão ao seu tio e protetor é sublinhada pelo binômio Paixão-Desejo que inicia o prelúdio do primeiro ato (1/2). Logo a seguir, Tristão se dirige a Isolda 27 TRISTAO E ISOLDA com o motivo da Rejeição ao Dia (21), convidando-a para o País da Noite, descrito por um novo leitmotiv (26). E que se combina com os temas da Felicidade (22) e da Rejeição à Noite (21). A réplica de Isolda é uma transformação cromática do convite de Tristão baseada nesses mesmos três motivos. Tristão a beija na testa sob os motivos do Êxtase (18) e do Sonho (24). No desafio final a Melot, ouvem-se uma transformação para menor do tema de Tristão herói (10) e o motivo do Desejo (2), este último quando Tristão sublinha que Melot também se apaixonou por Isolda. O prelúdio do terceiro ato se baseia em dois temas, o da Desolação (27) e o da Esperança (28): o primeiro, na realidade, é uma transformação do motivo do Desejo (27). Ao prelúdio segue-se a Velha Melodia (29) tocada pelo pastor no corne inglês. O breve dueto entre o pastor e Kurwenal combina esses três motivos, a Desolação, a Esperança e a Velha Melodia. Tristão desperta sob o som desse último tema 28 TRISTAO E ISOLDA e, ao perguntar onde se encontra, ouve de Kurwenal um novo motivo, Kareol (30). A narrativa de Kurwenal, entremeada por breves perguntas de Tristão, desenvolve esse novo tema, associando-o episodicamente com o da Cornualha (9) e Tristão herói (10). Segue-se o primeiro monólogo de Tristão em que se misturam os temas do País da Noite (26), da Noite (20), do Dia (14/15), da Felicidade (22), da Desolação (27), do Desejo (2), da Rejeição ao Dia (21), da Morte (8), da Ansiedade (16), do Êxtase (18). A resposta de Kurwenal traz de volta o motivo Tristão ferido (11). O segundo monólogo de Tristão, Isolde kommt!, inicia-se com um novo leitmotiv (31), o de Kurwenal. Descritivo da lealdade do escudeiro, e que logo se entrelaça com o motivo da Esperança (28), a esperança da chegada de Isolda. Após o final delirante do segundo monólogo, Tristão cai em depressão quando, sob o som da Velha Melodia (29), Kurwenal anuncia que não há nenhum navio à vista. Começa aí o longo e dificílimo terceiro monólogo, inicialmente ancorado na Velha Melodia. Seguem-se te29 TRISTAO E ISOLDA mas do Dia (14/15), do Tristão ferido (11), do Desejo (2), da Desolação (27), do Filtro do Amor (4). A intervenção desesperada de Kurwenal se baseia numa transposição para menor do tema do Filtro do Amor (4). O tema do Desejo (2) serve de transição para o quarto monólogo de Tristão, o admirável Und drauf Isolde, baseado nos motivos do Filtro do Amor (4) e da Felicidade (22), mais uma transformação do motivo da Paixão (1) que leva ao climático Ach, Isolde, Isolde! sublinhado pelo tema do Desejo (2). Um novo tema, o do Reencontro (32), inicia o agitadíssimo dueto final entre Tristão e Kurwenal. O dueto combina esse tema com a canção alegre do pastor. Kurwenal sai de cena para buscar Isolda, e Tristão canta o seu quinto e último monólogo, combinando os temas do reencontro com o da Liberação pela Morte (6), mais vários motivos não recorrentes. A chegada de Isolda é prenunciada pelo tema da Ansiedade (16), e anunciada pelo da Morte (8). Seguem-se temas da Paixão-Desejo (1/2), e Tristão morre nos braços de Isolda sob o tema do Olhar (3). No monólogo de Isolda ressurgem os motivos da 30 TRISTAO E ISOLDA Esperança, da Rejeição da Noite, da Canção da Morte, do Sonho, do Êxtase e finalmente um tema desesperado, o da Aniquilação (33). Na cena subsequente, a da chegada do segundo navio e da barricada de Kurwenal, o tema predominante é o escudeiro (31), que explode em alegria no momento da morte de Melot. Seguem-se a transposição para menor do Filtro do Amor e, na entrada de Marke, o da Aniquilação. O lamento final de Marke se baseia nos temas da Tristeza (25), da Aniquilação (33) e do Filtro do Amor (4), enquanto os comentários de Brangânia são sublinhados pela Canção da Morte (23). Segue-se a Morte de Isolda, o Liebestod que resolve dramática e musicalmente a ópera, concluindo o final interrompido do dueto do segundo ato. O maravilhoso tecido musical combina os temas da Canção da Morte (23), do Sonho (24) e do Êxtase (18). O que faltava ao dueto se soluciona no extraordinário In des Welt-Atems: o clímax do Êxtase, e que vai se arrefecendo até a ópera terminar numa última transformação do tema do Desejo. 31 TRISTAO E ISOLDA DE RAMEAU À REVOLUÇÃO HARMÔNICA DE TRISTÃO E ISOLDA Os fundamentos acústicos da harmonia diatônica foram apresentados em 1722 por Jean-Philippe Rameau no seu famoso Traité de l’harmonie, um livro clássico de teoria musical. O ponto básico é a observação de que uma nota musical nada mais é do que um acorde, composto da nota básica e seus harmônicos, isto é, das notas com frequências de vibração múltiplas da nota básica. Assim, a nota dó-2, de fato, corresponde ao acorde dó 2 – dó 3 – sol 3 – dó 4 – mi 4 – sol 4 – dó 5 etc. Só que as notas superiores soam cada vez mais longínquas. Essa relação entre a nota básica e seus harmônicos ajuda a compreender a escala diatônica dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó, apesar das suas conhecidas assimetrias: a distância entre o mi e o fá e o si e o dó é aproximadamente metade da distância entre as outras notas. Na realidade, em termos de simplicidade de frequências, o si bemol seria uma opção mais natural do que o si natural, já que a frequência do primeiro é 9/5, a do segun32 TRISTAO E ISOLDA do 15/8 do dó inicial da escala: a escolha do si natural se deve a uma conveniência harmônica, aproximar o dó por um semitom. Explica também a diferença entre acordes consonantes e dissonantes. Nos primeiros, há muitas coincidências de harmônicos, o que os deixa agradáveis aos ouvidos, tornando-se apenas um pouco mais complexos do que uma nota isolada. É o caso do acorde perfeito em Dó maior, dó-mi-sol. Nos segundos, os harmônicos das diferentes notas custam a se juntar, gerando uma lembrança de ruído. É o caso do acorde mi-fá, ou do famoso trítono dó-mi-sol sustenido. Um verdadeiro ruído é bem mais agressivo aos ouvidos do que esses acordes: trata-se de uma completa confusão de harmônicos ou, mais precisamente, um movimento molecular incapaz de ser descrito por uma série de Fourier, mas esse é um pormenor que só interessa ao leitor versado em matemática e física. Na verdade, dispensar as dissonâncias seria condenar a música à extrema monotonia. Elas serviam para criar tensões, e o que o tratado de Rameau ensina é como resolvê-las. Na linha melódica, as assimetrias da escala diatônica exigem uma definição de tonalidade, 33 TRISTAO E ISOLDA ou seja, da nota que serve de ponto de partida à escala. Com a invenção do cravo bem temperado, que dividiu a oitava em doze semitons igualmente espaçados (uma pequena concessão à desafinação, mas que viabilizou os instrumentos de teclado), há doze possibilidades à opção do compositor. Firmar a tonalidade, na estética diatônica, era garantir ao ouvinte uma âncora de estabilidade aural. Chama-se escala cromática a que divide a oitava em doze semitons. Já na primeira metade do século XVIII, sobretudo na segunda, os compositores observaram dois pontos. Primeiro, em peças longas, excesso de estabilidade aural significaria monotonia. Era preciso, assim, mudar volta e meia de tonalidade, ainda que no final se voltasse à base. Com isso, surgiram as primeiras técnicas de modulação, já conhecidas por Rameau. A mais simples era explorar o círculo de quintas: passar de Dó maior para Sol maior, transformando a dominante (sol) em nova tônica na linha melódica, e pivoteando adequadamente a linha harmônica. Tratava-se simplesmente de substituir o dó pelo seu harmônico mais próximo na oitava, o sol. A segunda é que, tanto na linha melódica 34 TRISTAO E ISOLDA quanto na harmonia, a disciplina diatônica era uma camisa de força da qual os compositores precisavam se libertar. Afinal, se o piano tem notas pretas, por que proibir o seu emprego numa peça em Dó maior (ou lá menor)? Rameau jamais pensou em proibir terminantemente esse uso das notas pretas, e o seu emprego nas composições em Dó maior (assim como o de certas notas brancas em outras tonalidades) foi francamente admitido sob a denominação “ornamentos cromáticos”. Só que, no momento em que esses ornamentos foram aceitos, o conceito de tonalidade se transformou numa estátua de pés de barro. Com efeito, numa escala musical em que as notas se espaçam por intervalos iguais, a ideia de tonalidade perde qualquer sentido. A essa altura, o que passou a ser música diatônica e o que se transformou em música cromática é uma questão de convenção, dependendo da frequência dos ornamentos cromáticos. Em Haydn, esses ornamentos são exceção, e é natural considerá-lo um discípulo fiel da estética diatônica. Já Mozart é um caso mais complicado. A maioria das suas composições segue 35 TRISTAO E ISOLDA a disciplina diatônica, mas em algumas obras, como nas sinfonias 38 e 40 e na abertura de Don Giovanni, há incursões cromáticas extremamente ousadas, talvez mais do que as de Beethoven, exceto nos últimos quartetos de cordas. Wagner certamente conhecia todas as possibilidades do cromatismo antes de compor Tristão e Isolda, e as utilizou na medida de suas necessidades de expressão musical no Ouro do Reno e na Valquíria. Só que o cromatismo era um meio a ser usado quando preciso, e não um fim. O prelúdio de Ouro do Reno, por exemplo, é um modelo de disciplina diatônica, assentado por 138 compassos num pedal de mi bemol, e construído a partir da série de harmônicos desse pedal, uma descrição musical admirável da Natureza em sua forma primitiva. Já em Tristão e Isolda, a viagem dos amantes para o reino da noite pedia outra forma de expressão. Era preciso transmitir ao ouvinte a sensação de levitação, o que exigia desamarrar as âncoras tonais em certos momentos da ópera. O problema é que, enquanto só existe uma gramática diatônica, há uma infinidade possível de gramáticas 36 TRISTAO E ISOLDA para o cromatismo. Wagner não pretendeu construir uma teoria a esse respeito, ligando as relações harmônicas no cromatismo com os princípios de acústica, à moda de Rameau. Mas o seu gênio descobriu como transmitir o êxtase dos amantes na entrada para o reino da noite. Algumas regras se insinuavam de imediato. Primeiro, certas linhas melódicas deveriam ficar fora de qualquer escala diatônica. É o que acontece logo no início do prelúdio da ópera com os temas gêmeos PaixãoDesejo. Exemplo 1 O tema Desejo, uma figura cromática ascendente por semitons, funciona como espécie de ponto de interrogação no início do prelúdio, e percorre toda a ópera, até resolver-se no acorde final da morte de Isolda. De fato, com linhas melódicas diatônicas, as possibilidades de enriquecimento harmônico se resumiriam a mudanças mais ou menos abruptas de tonalidade, a técnica usada por Verdi em Otello. Só que a sensação aural seria a de deslocamentos bruscos 37 TRISTAO E ISOLDA das âncoras tonais, exprimindo tensão ou angústia. A sensação que Wagner queria transmitir, a de êxtase, deveria libertar essas âncoras, e não deslocá-las de um ponto para outro. Uma segunda regra, mas a ser administrada com muito juízo estético, era a dispensabilidade das modulações. Estas, afinal, haviam sido inventadas pela gramática diatônica para preparar os ouvidos para as mudanças de tonalidade. Na escala de doze notas não havia tonalidade, e, portanto, qualquer razão para modular. O exemplo clássico na ópera é o tema da Morte, cantado por Isolda no início da segunda cena do primeiro ato no verso Todgeweihtes Haupt. Exemplo 2 A genialidade de Wagner foi perceber que, para criar a sensação de levitação, essas mudanças de tonalidade sem aviso prévio deviam se basear em intervalos curtos, um semitom, no caso na palavra Haupt. Se a mudança fosse de uma quinta ou de uma sexta, a sensação seria a de um golpe, e não de liberação gravitacional. De fato, é através das progressões por semitons 38 TRISTAO E ISOLDA que Wagner concretiza a revolução harmônica de Tristão e Isolda, cujo ponto culminante é o início da seção da noite no dueto do segundo ato O sink hernieder, Nacht der Liebe. Um problema mais complexo era como tratar das dissonâncias, fantasticamente agradáveis aos ouvidos em Tristão e Isolda. Mais uma vez funcionou o gênio de Wagner. Primeiro, as dissonâncias não necessariamente ferem os ouvidos, mesmo na estética diatônica. Elas simplesmente pedem uma resolução posterior, e a arte do compositor consistiu em postergar a solução pelo emprego da melodia contínua. O entrelaçamento de leitmotivs, diga-se de passagem, cria uma estrutura polifônica em que as dissonâncias não ferem os ouvidos. É claro, por outro lado, que as dissonâncias se tornam muito mais presumíveis numa gramática cromática do que numa diatônica. E soam conforme as combinações de timbres dos instrumentos. Em apenas um momento da ópera os ouvintes se sentem agredidos: no final abrupto do dueto do segundo ato, quando a esperada resolução musical é interrompida pelo flagrante preparado por Melot para os 39 TRISTAO E ISOLDA amantes, e quando a música deixa seus voos cromáticos para voltar às bases diatônicas do mundo do dia. Só que essa frustração faz parte do plano genial de Wagner para o final da ópera: resolver musicalmente o dueto do segundo ato no In des Welt-Atems da morte de Isolda, um dos mais extraordinários efeitos dramáticos em toda a história do teatro lírico. É muito importante sublinhar que a revolução harmônica de Tristão e Isolda não é a consequência de uma teoria, mas da busca do meio de expressão adequado para a perfeita fusão da palavra à música, dentro do conceito Gesamtkunstwerk. Tanto que, nas obras posteriores, o mestre usou o cromatismo nas medidas das suas necessidades de expressão musical. Em Mestres Cantores, há evidentes incursões cromáticas, mas as âncoras diatônicas quase sempre estão presentes. A novidade, exigida pela comédia, são fantásticas inovações não em matéria de harmonia, mas de contraponto. Em Parsifal, Wagner usa duas linguagens, uma basicamente diatônica no primeiro e no terceiro ato, outra altamente cromática, no reino mágico de Klingsor. O contraste é o mesmo de Tristão, 40 TRISTAO E ISOLDA diatônico no mundo do dia, cromático no da noite. A revolução harmônica de Tristão e Isolda desafiou os músicos pós-wagnerianos a construir uma gramática do cromatismo semelhante à que Rameau havia consolidado para a escala diatônica. Debussy encontrou seus próprios caminhos, inclusive com a escala de seis notas, produzindo muita música de extraordinária qualidade, mas com a liberdade de expressão tolhida pela gramática que inventou. Schönberg resolveu inventar a música serial como escapatória ao caos da tonalidade: a ordem seria determinada por uma série, ou seja, por uma permutação dos doze semitons da oitava musical. Tratava-se de um exercício de matemática, e que se transformou na base de toda a música dodecafônica. O que faltou foi correlacionar esse exercício com os princípios de acústica conhecidos desde Pitágoras. O método foi inverso ao adotado por Wagner. Este buscou a melhor expressão musical para os seus dramas líricos independentemente das regras gramaticais aceitas pela ortodoxia. Os serialistas da Segunda Escola de Viena (Schönberg, Webern e Berg) trataram de matemática elementar, subordinando a sua capacidade 41 TRISTAO E ISOLDA de expressão a essa teoria. Não surpreende, assim, que a música dodecafônica nada lembre o cromatismo de Tristão e Isolda ou do segundo ato de Parsifal. OS PROBLEMAS DE UMA ENCENAÇÃO DE TRISTÃO E ISOLDA Tristão e Isolda, pela maravilha musical que é, firmou-se no repertório de todas as grandes casas de espetáculos operísticos. O problema é que se trata de uma ópera que impõe demandas extraordinárias para uma apresentação de primeira categoria. Primeiro, é preciso que o espetáculo seja comandado musicalmente por um grande regente e uma excelente orquestra. Isso, no entanto, não chega a ser o maior obstáculo para uma grande performance da ópera, pois a partitura de Tristão já está suficientemente dissecada para que um grande número de orquestras e maestros se encontrem preparados para enfrentar as suas dificuldades. O maior desafio é encontrar um tenor heroico e um soprano dramático para assumirem os dois prin42 TRISTAO E ISOLDA cipais papéis da ópera. Wagner parecia desconhecer os limites de resistência da voz humana, e exige quase o impossível do tenor no segundo ato, e, sobretudo, no terceiro, e do soprano nos dois primeiros atos. Fora a tensão emocional do Liebestod no terceiro. Duplas extraordinárias, como Kirsten Flagstad e Lauritz Melchior, na década de 1930 e no início da de 1940, Astrid Varnay e Set Svanholm pouco antes de 1950, Birgit Nilsson e Wolfgang Windgassen na década de 1960, Helga Dernesch e Jon Vickers nos festivais de Salzburgo da Páscoa em 1972 e 1973, contam-se a dedo. Isto posto, o espectador geralmente é obrigado a se contentar com um espetáculo de bom nível, mas algumas deficiências. Como os tenores heroicos são espécimes mais raros que os sopranos dramáticos, o mais difícil é encontrar um intérprete que preencha todos os requisitos do Tristão. Isso acontece até nas gravações completas da ópera, que podem ser espaçadas por vários dias nos estúdios. Assim, na gravação histórica de 1953 com Flagstad no papel de Isolda sob a batuta de Wilhelm Furtwängler, Ludwig Suthaus é um Tristão de voz heroica e dramaticamente convincente, mas de 43 TRISTAO E ISOLDA timbre desagradavelmente áspero. Em 1960, a Decca confiou sua gravação completa de Tristão à regência de Georg Solti (muito pouco inspirada, diga-se de passagem), escolhendo uma Isolda extraordinária, Birgit Nilsson. Fritz Uhl é um Tristão de timbre vocal agradável, mas que é virtualmente massacrado por Nilsson. Na gravação da década de 1980 regida por Carlos Kleiber, René Kollo é um Tristão de belo timbre vocal, mas de volume bem aquém das exigências do papel. Sua única vantagem é contracenar com uma Isolda ainda mais frágil, Margaret Price. Peter Hoffmann, na edição regida por Bernstein, sai-se um pouco melhor, mas está a léguas de distância de Windgassen e Vickers, o primeiro na gravação ao vivo em 1966 de Bayreuth com Karl Böhm e Birgit Nilsson, o segundo na de 1972 com Herbert von Karajan e Helga Dernesch. Se as dificuldades de se encontrar um excelente Tristão se estendem aos estúdios de gravação, imagi ne-se num espetáculo ao vivo. As lendas remontam à estreia da ópera em Munique: Ludwig Schnorr von Carolsfeld, o primeiro Tristão, morreu três semanas após a estreia, em 1865, ao que dizem as más línguas 44 TRISTAO E ISOLDA porque o papel exauriu seus músculos cardíacos. Isso para não falar num episódio grotesco ocorrido no Metropolitan de Nova York em 1960: não havendo nenhum tenor wagneriano que aguentasse contracenar a ópera com o canhão vocal de Birgit Nilsson, o diretor Rudolf Bing saiu-se com uma solução exótica: três tenores para enfrentar o Tristão, um para cada ato. As demandas vocais para os três outros papéis importantes da ópera são bem mais limitadas. O papel de Brangânia está longe de ser extenuante, mas o meiosoprano precisa ser capaz de sustentar os diálogos com Isolda no primeiro ato e na primeira cena do segundo, o que exige boa potência vocal. Kurwenal precisa transmitir a lealdade e a rudeza do escudeiro de Tristão, e Marke deve expressar nobreza de sentimentos e cansaço da vida. Balancear as cincos vozes, as de Tristão e Isolda, mais as dos três principais coprimários, é um problema difícil até mesmo nos estúdios de gravação. Tome-se a gravação histórica regida por Furtwängler, com Flag stad e Suthaus nos papéis principais. O então jovem Dietrich Fischer-Dieskau interpreta Kurwenal com 45 TRISTAO E ISOLDA extraordinária sensibilidade e beleza vocal. Só que as suas inflexões são as de um cavaleiro e não as de um rude escudeiro. Mais ainda, pela juventude vocal, parece filho de Tristão e Isolda, já que Flagstad e Suthaus se encontravam no final de suas carreiras. Na estupenda gravação ao vivo de Bayreuth em 1966, quem desequilibra o balanço é o baixo finlandês Martti Talvela, na época com 32 anos de idade. O timbre é extraordinário, a linha de canto impecável, mas a potência vocal é de tal magnitude que lembra o Marke da lenda medieval e não da versão wagneriana. Em conjunto, a gravação mais bem balanceada parece ser a de Karajan, com Helga Dernesch (Isolda), Jon Vickers (Tristão), Christa Ludwig (Brangânia), Walter Berry (Kurwenal) e Karl Ridderbusch (Marke). Uma solução prática para aliviar as dificuldades dos cantores é introduzir cortes na partitura em espetáculos ao vivo. Para os puristas, trata-se de uma heresia, mas o próprio Wagner reconheceu que numa ópera com quatro horas de duração, fora os dois intervalos, alguns cortes seriam admissíveis. O problema é o que cortar, sem mutilar a continuidade musical e dramáti46 TRISTAO E ISOLDA ca da obra. No primeiro ato não há o que cortar. No segundo é possível omitir quase dez minutos na primeira parte do dueto, a seção do Dia, o que se faz frequentemente (inclusive nas apresentações de Karajan em 1972 e em 1973 no Festival da Páscoa em Salzburgo): perde-se um pedaço de boa música e sacrifica-se parte da arquitetura do dueto, mas poupam-se os dois protagonistas que têm inúmeras dificuldades a enfrentar mais adiante. Partes das lamentações de Marke também podem ser cortadas desde que se mantenham intactos o início de Mir dies? e de Dies wundervolle Weib, mas aí a pergunta é: para que o corte? Afinal, enquanto Marke canta, Tristão e Isolda descansam. No terceiro ato, em que Tristão tem nada menos do que cinco monólogos a enfrentar, além de dois duetos com Kurwenal, dois cortes podem ser feitos sem prejuízos nem para a continuidade dramática nem para a musical. O primeiro suprime a parte central do primeiro monólogo, de Isolde noch im Reich der Sonne! a Ach, Isolde, süsse Holde. O segundo elimina a parte inicial do terceiro monólogo, transferindo o seu início para o terceiro Die alte Weise. Poupam-se, com isso, cerca 47 TRISTAO E ISOLDA de sete minutos de solo do tenor, o que não é pouco. Só que, para o tenor, o segundo corte é uma armadilha: exprime alguns minutos de canto a meia voz, para fazê-lo emendar o dificílimo segundo monólogo com a duríssima parte do final do terceiro. Melhor do que os cortes seja talvez prolongar os intervalos de modo a dar uma pausa para os cantores. Essa é uma solução de Bayreuth, em que cada intervalo dura uma hora. Só que essa fórmula estende o espetáculo por seis horas, que em Bayreuth começa às quatro da tarde e acaba às dez da noite. Num festival, no qual o público se dedica em tempo integral a assistir a óperas wagnerianas, a solução faz sentido. Mas em cidades onde os espectadores têm que cumprir outras obrigações, é preciso adotar alguma outra solução que não lhes tome tanto tempo. Equacionados os problemas musicais, vem o da encenação propriamente dita. Como apresentar as personagens, vesti-las e determinar os seus movimentos em cena? Uma solução é seguir à risca as instruções extremamente pormenorizadas da partitura wagneriana no que respeita os cenários e a movimentação dos atores. 48 TRISTAO E ISOLDA Essa era a maneira tradicional de se apresentar Tristão e Isolda até a década de 1950. Até que Wieland Wagner, neto do compositor, abriu espaço para a imaginação dos diretores de cena nos Festivais de Bayreuth por ele dirigidos. Implicitamente, Wieland Wagner admitiu que seu avô reconheceria que as suas indicações cênicas não eram condizentes com o gosto artístico do século XX. Tristão e Isolda é um drama de estados de espírito. Para que lotar o palco com figurantes e coristas no final do primeiro ato, para que Tristão e Isolda precisam ser apanhados em flagrante no segundo ato não apenas por Marke e Melot e por um séquito de cortesãs? Mais do que tudo, como conciliar o final musical sublime da ópera com quatro cadáveres no palco, Melot, Tristão, Kurwenal e Isolda, sendo abençoados pelo rei Marke? Wieland Wagner reconheceu um aspecto fundamental trazido pelo progresso tecnológico: as técnicas modernas de iluminação, que eram desconhecidas no século passado, fornecem uma linguagem complementar à música e que não pode ser ignorada no presente século. Assim, numa produção moderna, à direção musical 49 TRISTAO E ISOLDA e à direção de cena é preciso acoplar uma terceira: a direção de iluminação. Como Wagner jamais cogitou de uma partitura de iluminação, o campo fica aberto aos produtores da ópera. O que se exige apenas é consistência com a estrutura psicológica do drama wagneriano. Só que isso pode ser conseguido por uma infinidade de soluções diferentes. A principal vantagem dos jogos de iluminação é que eles economizam a movimentação dos atores. Não é o caso de postá-los em posição de sentido, mas também não é preciso que eles se desloquem incessantemente de um lado para outro para animar a cena. Num drama de estados de espírito, como o de Tristão e Isolda, os atores devem gesticular o mínimo possível. Em particular, seria ridículo se o tenor ou o soprano levantassem os braços para emitir um agudo, como em algumas representações bisonhas de óperas italianas. Por certo, alguns movimentos ríspidos são necessários: quando Tristão sorve o suposto filtro da morte é preciso que Isolda lhe arranque a taça das mãos, pois a intenção do Cavaleiro é tomá-lo sozinho. Do 50 TRISTAO E ISOLDA mesmo modo, no final do segundo ato é indispensável que Tristão avance para Melot com a guarda aberta, deixando cair a espada para ser ferido mortalmente. Não é preciso que o rei se precipite sobre Melot para impedir que ele trucide Tristão. Para cumprir as instruções de Wagner, basta um discreto gesto de mão, ou mesmo um olhar. Ou, segundo alguns produtores, até essas instruções podem ser esquecidas. Afinal, Melot, que também é um cavaleiro, certamente percebe que Tristão não se bateu em duelo: tentou suicidar-se. Um momento crítico da ópera é a transformação dos dois amantes logo após tomarem o suposto filtro da morte. Wagner fornece uma série de instruções pormenorizadas sobre como os dois atores devem representar, mas é muito difícil torná-las dramaticamente convincentes. Os jogos de iluminação fornecem a melhor resposta ao problema, envolvendo os personagens numa neblina que expresse a sua confusão de sentimentos, até que eles se abracem. A seção da Noite do dueto do segundo ato também abre inúmeras possibilidades para a partitura de iluminação. Uma das soluções mais imaginativas foi 51 TRISTAO E ISOLDA encontrada por August Everding na sua produção da ópera para o Metropolitan de Nova York: um elevador invisível desloca os amantes como se eles estivessem em levitação, e os ilumina com combinações de luzes perfeitamente afins com o cromatismo da música. A morte de Isolda é o grande desafio para os produtores da ópera, já que a solução da partitura wagneriana, o Liebestod em meio a Brangânia, o rei Marke, e os cadáveres de Tristão, Kurwenal e Melot, é visivelmente insatisfatória. A solução natural é apresentar a morte de Isolda como uma transfiguração, concentrando todos os focos de luz na cantora, e deixando as demais personagens na escuridão, se é que elas ainda estão no palco. Até que ponto as indicações cênicas de Wagner podem ser desrespeitadas é uma boa questão. A resposta parece ser positiva à medida que as inovações sejam condizentes com a estrutura psicológica e musical do drama. Com efeito, é quase certo que, se Wagner conhecesse a tecnologia do século XX, seguramente teria composto uma partitura de iluminação para Tristão e Isolda. 52 TRISTAO E ISOLDA A questão é até que ponto avançar, e aí o problema fica ao julgamento estético de cada espectador. Uma produção controversa, mas de extraordinário impacto dramático, é a de Jean-Pierre Ponnelle para o Festival de Bayreuth no início da década de 1980. O ponto de partida de produção é que, do ponto de vista dramático, a ópera se encerra no final do segundo ato, com o suicídio de Tristão. O terceiro ato é musicalmente extraordinário, resolvendo o dueto do segundo no In des Welt-Atems, mas dramaticamente supérfluo e inconvincente no final. Ponnelle ousa mudar o enredo do final da ópera. Kurwenal, quando percebe que Isolda não irá chegar antes da morte de Tristão, faz sinais para que o pastor toque a melodia alegre que anuncia a chegada do navio. E a chegada de Isolda, do segundo navio, a morte de Melot e Kurwenal, e finalmente o Liebestod, são apenas o delírio final de Tristão. No acorde final, todos os demais personagens somem do palco, e Tristão cai morto nos braços de Kurwenal e do pastor. Até que ponto Wagner concordaria com essa transformação do enredo da ópera? A resposta é impossí53 TRISTAO E ISOLDA vel de se obter. Dramaticamente, o final de Ponnelle é muito mais realista do que o de Wagner, e não é incompatível com a estrutura musical do Liebestod, já que Tristão morre em êxtase. Resta saber se Wagner queria tanto realismo. Esse é um mistério que o compositor levou para o túmulo. * 54 Original de Mario Henrique Simonsen sobre “Tristão e Isolda” Mario Henrique Simonsen’s original on “Tristan und Isolde” ISBN 978-85-98831-18-3 9 788 598 831183
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