Baixar
Transcrição
Baixar
Revista Científica ISSN 2179 6513 Ano 4 Nº 8 A AMAZÔNIC Faculdades Integradas do Tapajós Revista Científica ISSN 2179 6513 Ano 4 Nº 8 A AMAZÔNIC Faculdades Integradas do Tapajós Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Biblioteca Ubaldo Corrêa – Santarém/Pa PERSPECTIVA AMAZÔNICA-Revista de Publicação Acadêmica da FIT. Santarém Pará: FIT,v.8, n.4, 2014. 149p. Semestral ISSN 2179-6513 1. Estudos multidisciplinares. 2. Amazônia. 3. Faculdades Integradas do TapajósFIT. CDD 050 Selma Mª de Souza Duarte - Bibliotecária - CRB2- 1096 “Contribuir para o entendimento aprofundado das questões amazônicas nos diversos campos do conhecimento mediante a divulgação de produção científica local que possa subsidiar as atividades acadêmicas e práticas tendo em vista o estudo da Amazônia para o progresso da humanidade e o aumento da qualidade de vida da população Amazônica”. Escopo e Foco A revista Perspectiva Amazônica publica trabalhos teóricos e teórico-empíricos nas seguintes modalidades: artigo original, artigo de revisão, resenha, relato de caso e ensaio, em qualquer área do conhecimento e preferencialmente que tenham relação com a região Amazônica. Público alvo O público-alvo é constituído principalmente de profissionais e estudantes da academia amazônica e brasileira, e, paralelamente, de todas as pessoas interessadas nas questões da Amazônia nos diversos campos do conhecimento. Requisitos Os artigos originais, artigos de revisão, resenhas, relatos de caso e ensaios submetidos à apreciação da revista “Perspectiva Amazônica” devem ser inéditos, nacional e internacionalmente, não estando sob consideração para publicação em nenhum outro veículo de divulgação. Trabalhos publicados ou em consideração para publicação em anais de congressos podem ser considerados pelo Conselho Editorial e pelos Avaliadores, desde que estejam em forma final de artigo. Os artigos e documentos podem ser redigidos em língua portuguesa, inglesa ou espanhola. Para serem publicados, os trabalhos deverão adequar-se às normas para publicação da revista e serem aprovados pelos Avaliadores. PERSPECTIVA AMAZÔNICA Missão Conselho Mantenedor Paulo Roberto Carvalho Batista Presidente Antônio de Carvalho Vaz Pereira Vice-Presidente Ana Paula Salomão Mufarrej Edson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco Etiane Maria Borges Arruda Marlene Coeli Vianna Direção Geral da FIT Helvio Moreira Arruda Direção Financeira William José Pereira Coelho Direção do Centro de Estudos Sociais Aplicados Ana Campos da Silva Calderaro Direção do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde José Almir Moraes da Rocha Editor Responsável (Coordenação de TCC e Pesquisa) Gabriel Geller Conselho Editorial Ana Campos da Silva Calderaro Gabriel Geller Helvio Moreira Arruda José Almir Moraes da Rocha Concepção e Coordenação Gráfica Thais Helena Medeiros Publicittá Agência de Comunicação da FIT Capa Lígia Augusta Aluna Curso de Publicidade e Propaganda da FIT Foto da capa Reprodução fotográfica livre, do desenho de Margaret Mee -Cattleya violacea, retratada em 1981, Rio Cuini, Amazonas. A botanical artist britânica pintou a imensa e vulnerável floresta tropical Amazônia ao navegar pela calha do Rio Amazonas (1956-1988). Extraída do livro Flowers of the Amazon Forests: The Botanical Art of Margaret. Garden Art Press in association with The Royal Botanic Gardens, Kew. Printed in China for the Antique Collectors’ Club Ltd., Woodbridge, Suffolk, 2011. Diagramação Juliana Azevedo Thais Helena Medeiros Impressão: Gráfica Global Na trajetória de crescimento da Revista, merece destaque a publicação neste semestre do trabalho “Relato de experiência sobre a construção de um periódico científico de (boa) qualidade no interior da Amazônia: Revista Perspectiva Amazônica”, que foi apresentado na Feira de Trabalhos Acadêmicos e Científicos da FIT 2014, no qual foram relatados os principais desafios desde o início deste periódico, que já tem quatro anos de existência e, com esta edição, 80 artigos publicados. A novidade neste semestre é que teremos a nova versão do site da Revista, que será lançado neste mês de agosto, incluindo agora a versão em “pdf” de cada edição e de cada artigo isoladamente. Assim, os autores poderão vincular os links para downloads dos seus artigos na plataforma lattes, os artigos poderão ser compartilhados com maior facilidade e terão maior chance de constar em resultados nos sites de buscas. Além disso, haverá distribuição eletrônica da revista por listas de e-mails. Certamente estas medidas servirão para dar maior divulgação aos bons trabalhos aqui publicados, o que contribuirá com nosso crescimento nos rankings de qualidade. Gabriel Geller Editor Geral Revista Perspectiva Amazônica EDITORIAL Esta oitava edição da Revista Perspectiva Amazônica traz diversos artigos na área de ciências humanas e sociais aplicadas, analisando de forma aprofundada questões do Direito, da Antropologia, Filosofia, Sociologia, Metodologia da Pesquisa e Economia, além de um artigo na área de Tecnologia e Sustentabilidade. £ Ana Karine Albuquerque de Alves Brito, UFOPA, Mestre; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; £ Edivaldo da Silva Bernardo, FIT, Doutor, 80000002. Linguística, Letras e Artes; £ Francisco Edson Sousa de Oliveira, FIT, Doutor, 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; 70000000. Ciências Humanas; 80000002. Linguística, Letras e Artes; 90000005. Multidisciplinar (Sociais e Humanidades); £ Gabriel Geller, FIT, Mestre, 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; 90000005. Multidisciplinar; £ Hipócrates Menezes Chalkidis, FIT, Mestre, 20000006. Ciências Biológicas; 40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências); £ Ivair da Silva Costa, FIT, Doutor; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; 70000000. Ciências Humanas; £ José Almir Moraes da Rocha, FIT/UEPA/UFOPA, Doutor, 20000006. Ciências Biológicas; 40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências); £ José de Lima Pereira, FIT, Mestre; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; £ Lidiane Nascimento Leão, UFOPA, Mestre, 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; 70000000. Ciências Humanas; 90000005. Multidisciplinar (Sociais e Humanidades); £ Maria Irene Escher Boger, FIT, Doutora, 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; 70000000. Ciências Humanas; 80000002. Linguística, Letras e Artes; 90000005. Multidisciplinar (Sociais e Humanidades); £ Marla T. Barbosa Geller, CEULS/ULBRA , Mestre; 10000003. Ciências Exatas e da Terra (Computação); 30000009. Engenharias; £ Martinho Leite, FIT, Mestre; 10000003. Ciências Exatas e da Terra (Computação); 30000009. Engenharia; £ Maura Cristiane e Silva Figueira, FIT, Mestre; 40400000. Enfermagem; £ Raimunda Nonata Monteiro, UFOPA, Doutor; 50000004. Ciências Agrárias; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; £ Roberto César Lavor dos Santos, FIT, Mestre; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; £ Robinson Severo, UFOPA, Doutor; 50000004. Ciências Agrárias; £ Rodrigo Tenório Padilha, FIT, Mestre; 50500007. Medicina Veterinária; £ Rosane Tolentino Gusmão Maia, FIT, Mestre; 10000003. Ciências Exatas e da Terra (Computação); 90000005. Multidisciplinar; £ Rubens de Oliveira Martins, Ministério da Ciência e Tecnologia, Doutor; 7000000. Ciências Humanas; £ Síria Lissandra de Barcelos Ribeiro, FIT, Doutora, 20000006. Ciências Biológicas; 40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências); £ Thais Helena Medeiros, FIT, Mestre; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas; 70000000. Ciências Humanas; 80000002. Linguística, Letras e Artes; 90000005. Multidisciplinar (Sociais e Humanidades). AVALIADORES £ Alexandre Rodrigo Batista de Oliveira, FIT/UEPA, Mestre, 20000006. Ciências Biológicas; 40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências); Multiculturalismo na Amazônia Francisco Edson Sousa de Oliveira Possíveis Caminhos para Serem Trilhados na Construção e Desenvolvimento de um Estudo de Caso 10 19 Petrônio Lauro Teixeira Potiguar Júnior Responsabilidade Civil do Juiz por Atos Culposos no Exercício da Atividade Judicial 30 Peter Xavier Hager Estudos sobre os Impactos das Enchentes na Economia do Município de Santarém, Estado do Pará, em 2014 44 José de Lima Pereira Matrimônios, Celibatos, Estratégias e Mercados: Anotações sobre a Etnologia de Pierre Bourdieu no Béarn Nirson Medeiros da Silva Neto A História da Evolução da Escrita no Mundo Ocidental Edivaldo da Silva Bernardo Myrlena Bastos Queiroz Resistência Cultural e Modo de Vida são Elementos Sígnicos Desvelados pela Análise Semiótica dos Vídeos Premiados no I Festival de Vídeo FIT 61 81 96 Thais Helena Medeiros Valdenildo dos Santos Percepção Ambiental dos Barraqueiros da Praia do Maracanã em Santarém - PA 110 Bruno Ivair Ferreira Silva Áurea Siqueira de Castro Azevedo Anselmo Júnior Corrêa Araújo Princípios Éticos e Ausência de Sentido na Contemporaneidade Ivair da Silva Costa 123 ciências tecnológicas TI Verde: Conceitos e Práticas Visando a Integração do Desenvolvimento com a Preservação do Meio Ambiente Rosane Tolentino Maia Normas para Publicação 135 147 SUMÁRIO ciências humanas e sociais aplicadas Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 Multiculturalismo na Amazônia Francisco Edson Sousa de Oliveira* RESUMO Reflexões conceituais pairam sobre a construção da espacialidade Amazônica, principalmente, quando é preciso definir marcadores de fronteiras físicas ou ainda no momento de definir uma identidade na paisagem urbana para as cidades encravadas no meio da floresta ou ao longo das margens dos rios. O referido artigo pretende mostrar os elementos estruturais que se repetem em outras espacialidades, portanto, com o caráter universal, mas que ao final definem estruturas regionais com todo o arcabouço de traços e manifestações artísticas e culturais identificados no homem nativo. Sabe-se que na Amazônia, o Multiculturalismo patenteia e molda as transformações vivenciadas nas últimas décadas, estabeleceram uma diversidade de formas espaciais e de conteúdos que evidenciam a complexidade nas relações responsáveis pela nova dinâmica regional. Esse estudo apresenta definições bibliográficas com a finalidade de delinear alguns elementos narrativos que declinam essa realidade na Amazônia. Palavras-chave: Amazônia - multiculturalismo - paisagem ABSTRACT Conceptual reflections hover over the construction of the Amazon, especially when it is necessary to configure physical borders or markers at the moment to define an identity in streetscape for ingrown cities in the woods or along the banks of the rivers. This article intends to show the structural elements that are repeated in other spaces, therefore, with the universal character, but that at the end define regional structures with the whole framework of traits and artistic and cultural manifestations identified in the native man. It is known that in the Amazon, the Multiculturalism patents and molds the transformations experienced over the last few decades, establishing a diversity of spatial forms and content that demonstrate the complexity of relations responsible for the new regional dynamics. This study presents bibliographic settings with the purpose to outline some narrative elements that decline this reality in the Amazon. Keywords: Amazon - multiculturalismo - landscape *Possui graduação em Letras pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarém (1994), Mestrado em Gestão do Desenvolvimento e Cooperação Internacion pela Universidade Moderna (1999) e Doutorado em Literatura Geral e Comparada – Universite de Limoges (2006). Atualmente professor – Faculdades Integradas do Tapajós. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Administração Escolar, Escola Rural e Comunidades. 10 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 Introdução O multiculturalismo (termo que descreve a existência de muitas culturas numa região) na Amazônia sempre foi ponto de discussão regional e universal, nessa espacialidade os ambientes tomam contornos quase que em forma de caricaturas ou arranjos para justificar o edenismo (visão do paraíso- jardim do Edem) medieval condutores de lendas, crenças e formas agigantadas da natureza. Essa investigação bibliográfica, objetiva mostrar uma complexidade de formas que definem, mas não convergem para um modelo agregador de elementos culturais milenarmente encravados no rio e na floresta. Inicialmente faz-se um abordagem de traços modernos que influenciaram decisivamente na cultura e no modelo de desenvolvimento promovendo um alinhavamento de tipos totalmente descaracterizados, culminando com um antropofagismo (ato de comer uma parte ou várias partes de um ser humano) nos personagens milenares e lendários da Amazônia. Posteriormente, menciona-se as ações de grandes projetos na Amazônia, que confrontam objetivos capitalistas de características universais observadas numa perspectiva multiculturalista com o desenvolvimento regional praticamente desprovido desses objetivos. Percebe-se ai uma baixa incorporação de benefícios aos interesses e até uma espécie de desconstrução no panorama da floresta, assim como também a descaracterização da paisagem urbana de cidades da Amazônia. O questionamento da ideia de modernidade e a voga de uma noção – ainda que duvidosa – de pós-modernidade terminam trazendo consigo a crise das ideias, dos parâmetros e das crenças básicas, dos absolutos religiosos ou filosóficos, éticos ou estéticos, que moveram a humanidade por todos os séculos. É o momento fronteiriço a que refere uma época, uma cultura e uma história que chegam ao fim, enquanto, se inicia outra e, aí, pensar a literatura do novo milênio é ainda, e cada vez mais, pensar a questão da identidade. Complexidades e Formas Se a identidade de uma nação se relaciona a uma série de elementos que vão da língua à tradição passando pelos mitos, folclore, sistema de governo, sistema econômico, crença, arte, literatura, passado e presente, mesmo não sendo, portanto, um fenômeno estanque e isolado, há de perguntar diante da grande movimentação histórico-cultural do final do século, em qualquer recanto do mundo, a já cantada pela Legião Urbana: “Que país é este?” até para que possamos responder quem somos nós, apesar de, e com os outros. Na Amazônia, essa identidade apresenta-se obscurecida, desde a construção das cidades até a formação de um tipo humano aproximado da vida existente na floresta. O que existe de fato é uma transitoriedade mergulhando a mágica dos rios de água doce e a escuridão das florestas. Verifica-se um discurso frenético que não aprofunda, vivido nas aventuras de garimpos, e nas cidades-empresas. As transformações vivenciadas pela Amazônia nas últimas décadas estabeleceram uma diversidade de formas espaciais e de conteúdos que evidenciam a complexidade das relações responsáveis pela nova dinâmica regional, revelando o espaço como uma acumulação de tempos e técnicas diferentes. Perpassa nessa dinâmica uma estreita relação que se estabelece entre o geral e o particular e que é 11 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 marcada por alguns atributos específicos do momento atual, identificado como período técnico-científico informacional. Não é preciso muito para saber que aqui, lugar do mundo, já não é o mesmo, pelo menos o mesmo de antes. Há a queda de barreiras econômicas ao leste Europeu, e a televisão não cansa de mundializar as imagens da modernização, do progresso e da cultura que chegou àqueles lugares, implantando novos hábitos, os produzidos pelo capitalismo ocidental. A China aceita beber Coca-Cola. O Muro de Berlim cai, reunificando as duas Alemanhas, sem qualquer planejamento prévio. A Glasnost cumpre seu papel. A União Soviética desfaz-se desfazendo, quase por completo, do imaginário mundial o perigo de um tal botão vermelho. Os Estados Unidos tornam-se a única grande potência. Configura-se uma nova ordem mundial reforçada pela vitória americana na Guerra do Golfo. Decreta-se o fim das utopias, associa-se a elas o fenômeno da pós-modernidade – nem mau nem bom, apenas ambos. Extingue-se o grande último império ocidental: o português, e as ex-colônias africanas deixam de lado o inimigo comum, o colonizador, e descobrem em si inimigos de meta comum, na luta pelo poder, antes a oceano de distância, e devoram-se. Angola, por exemplo, estar em Guerra há quarenta anos. Moçambique mal sobrevive aos tribalismos. O Timor Leste, abandonado pelo mundo, enfim, liberta-se. E, sob a égide da prosperidade e felicidade geral, a mundialização do capitalismo vai acentuando as desigualdades, vendendo uma imagem palidamente semelhante, um custo alto para uma planetarização de destino! Talvez por isso, os estudos literários dos últimos tempos tenham se fixado tanto no olhar – o do estrangeiro, o do outro, o do viajante, o do mesmo, até os inquietos... – talvez na busca do conceito camoniano do velho e puro espelho da alma. Há qualquer coisa mais humanamente essencial num processo identitário? A verdade é que não somos mais, nós, os do mundo, mais os mesmos, não. E, nisso tudo, entrou em desuso: o velho refrão: “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”, já não nos servem; não somos nem como nossos pais, que também já não são mais os mesmos. Reorganização Espacial Amazônica Não cabe aqui ignorar a dinâmica do mundo e colocar a Amazônia fora dele, pretende-se uma análise que toma o ponto de partida a dinâmica imposta á Amazônia nas últimas décadas, busca-se compreender a reorganização espacial urbana da região, na qual as solidariedades organizacionais substituem ou se superpõem ás solidariedades orgânicas de outrora. Estamos, agora, diante do futuro, até porque o futuro morre quando chega diante do agora. E, no agora, se redefinem as fronteiras geográficas - antes sinais de imutabilidade e força! -, as fronteiras históricas, políticas, ideológicas e, evidentemente, culturais. O conceito de nação universal, exportado pela Europa, como espaço limitado por fronteiras naturais e tudo o que havia dentro desse espaço: uma língua, uma crença, um sistema político e econômico, um certo sentido nacional, 12 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 entra em crise no século vinte. Com os nacionalismos, desaparece o conceito universal de nação. Surgem os grandes blocos supranacionais, como o Mercosul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai acordam sobre uma futura conformação hemisférica, a ALCA - Aliança do Livre Comércio das Américas. Entretanto, o MERCOSUL, muito mais voltado para interesses econômicos-comerciais do que qualquer outro, muito mais uma União Aduaneira”, tem ainda um longo caminho de amadurecimento em direção a um verdadeiro mercado comum. Não esquecer que só tem dez anos. Ou a União Europeia, que começou a se organizar na década de cinquenta, ponto de referência da atualidade portuguesa,- e tomo Portugal porque é, hoje, a literatura europeia de ponta, e Saramago o grande nome que descobre, com Eduardo Lourenço, em a Europa desencantada, que, com o sem Portugal, seria a mesma. Portugal é que não teria trocado o seu eterno sonho de V império pelo Eldorado tão próximo e perderia – de novo – o passo da história. Deve-se considerar que a hierarquia existe tanto em espaços urbanos “espontâneos” como em espaços planejados. No entanto, há a diferença da imposição, refletida na forma e nas relações sociais, da cultura e dos valores. [...] limitam-se ao enquadrinhamento do espaço. Ignorando o que passa na sua própria cabeça e nos seus conceitos operacionais, desconhecendo em essência o que passa (e o que não passa) no seu campo cego, ocorre aos tecnocratas organizar minuciosamente o espaço repressivo. Na Amazônia, além desse aspecto, relacionado especialmente ao processo de produção do espaço desses núcleos urbanos, há de se considerar também a relação entre grandes projetos e o desenvolvimento regional e local, que nos remete, de imediato, à baixa incorporação regional dos benefícios, que acabam por repercutir seja no redesenho do poder local, seja no redesenho da própria configuração territorial, trazendo à tona conflitos de naturezas diversas. Percebe-se, assim, um aparente contra senso residente na ideia de identificar as identidades de regiões periféricas como a Amazônia, pois o “perfeito” funcionamento das funções relacionais e sua interdependência precisam de transparência, dispensando artifícios ou subterfúgios. ... “A forma não só é expressão de um conteúdo, refletindo-o e aderindo-se a ele. Ela também sintetiza conteúdos em movimentos, reunidos, reinterpretados”. Nesse sentido é que consideramos ser de fundamental importância a análise desses novos arranjos espaciais urbanos, atentando para os seguintes elementos: a) a concepção urbanística das cidades Amazônicas e seus contrapontos com o pode-se chamar de práticas espaciais; b) a relação entre esses núcleos e o entorno imediato; c) os desafios de gestão e de desenvolvimento local colocado com base no contexto regional recente. Na primeira situação, poderíamos colocar como hipótese de discussão o distanciamento que marca o discurso dos planos que concebem essas novas franjas urbanas avançadas e a especialidade colocada em prática no decorrer do processo de produção social do espaço urbano. Na segunda situação, cumpre-nos instigar um esforço de compreensão no qual as cidades companhias sejam vistas em suas totalidades, ou seja, em hipótese alguma desvinculadas dos seus entornos, marcadamente segregados, mas que 13 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 reproduz a diferenciação espacial da lógica de urbanização que está colocada para a realidade brasileira e Amazônica, em específico. Por outro lado, de acordo com Ruggiero Romano, o próprio conceito de nação rompe com seus limites rígidos para fixar-se nos fundamentos de identidade. Assim, é nas idiossincrasias que se passam a distinguir as fronteiras, e elas estão na cultura, donde se reforça a ideia de que a nação não é uma entidade plenamente formada, mas sujeita a mecanismos de inclusão e exclusão, o que confere ainda, maior relevância à questão da identidade nacional, sobretudo quando se fortalece a globalização e a hegemonia norte-americana, o novo imperialismo, em outras palavras. Esclareça-se que o velho imperialismo – da antiguidade e do século dezenove – está voltado para a expansão territorial, o novo tem a característica de expansão e domínio pelo capital. Interessante notar que o imperialismo velho, trazia consigo uma função de base filosófica detectada por Edward Said em Cultura e Imperialismo: a nobre função de levar a civilização a povos bárbaros ou primitivos. Pois o caso americano, na globalização e no multiculturalismo, também se assenta sobre funções nobres: justiça, liberdade e prática do bem. E quando se examina com muita precisão o assunto reconhece-se a superioridade tecnológica e cultural americana, descobre a superioridade espiritual, presente numa constituição de vocação imperialista que lhe confere, diante da desordem mundial, um papel regulador em nome da Democracia. Difícil concordar que o sonho americano não seja paradigma para todas as sociedades democráticas e tecnicamente avançadas, ou mesmo de um utopismo voltado para uma sociedade equânime e fraternal! E, entre o que se vende e o que se compra, cá ficamos nós às voltas com a nossa identidade. Não se trata, evidentemente, de fazer uma revolução contra a globalização. Ela é indiscutivelmente irreversível e, sobretudo, seria complicado abrir mão da NET e das engraçadas séries americanas, principalmente agora que a eficiente Mary Tyler Moore à casa dos setenta, esticou até a alma e vive condenada a um eterno sorriso. Loucura seria abrir mão da Internet e deixar de lado as facilidades e maravilhas de uma vida virtual. Tampouco ninguém é louco o suficiente para fazer uma revolução contra satélites e o século vinte e um. Ingenuidade não atentar para a fobia – às vezes quieta e observadora – como forma de resistência. Em algum lugar de nós, os do mundo, que lá não somos os mesmos, ela está presente. Ainda que entre a cultura que olha e a que é olhada se produza um espelhamento, ainda que a binaridade inferior/superior se exponha, ainda assim, o processo todo não é tão pacífico quanto se imagina. O outro ainda permanece como contrário. O outro ainda é o outro, não importa o discurso geral de prosperidade que traga consigo. “É como no conto “Xanda” de Orlanda Amarilis”, que retrata a terra miserável que é Cabo Verde – uma das terras mais miseráveis do planeta, em que a personagem afirma: Nós não precisamos de nenhuma moda de estrangeiro linasocente. Já sei, vais dizer-me nossos patrícios mandam dinheiro de estrangeiros. Já sei tudo isso. Mas dinheiro de estrangeiro é como coisas e modas de estrangeiro é outra, bô ouvi? Leia-se em modas, cultura. E essa é a palavra fundamental da resistência da identidade dos países receptáculos – aqueles que não trazem as três condições 14 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 necessárias para participar ativamente do processo de globalização: não tem volume para comércio exterior, não têm atrativo para a entrada de capital estrangeiro e estão distantes do avanço tecnológico. Entenda-se, aqui, que o próprio Brasil é receptáculo, tanto mais quanto alinhado a um projeto neoliberal. Mas não há mais como separar, embora a tendência seja a de considerar a globalização como um processo exclusivamente econômico, dessa mesma globalização a ideia de planetarização ou mundialização da cultura e o multiculturalismo terminam sendo fenômenos simultâneos e complementares. Da mesma forma, não há como fugir do imperialismo norte-americano que, nos últimos cinquenta anos, impôs sua presença e a essência da sua cultura a todos os países através do way of life e fez da indústria cinematográfica sua grande difusora. Observa Edward Said que o imperialismo, o velho, também está intimamente ligado ao período em que vivemos, porque terminou consolidando, embora a proposta contrária, uma mescla de culturas e identidades numa esfera global. Nesse sentido, está na base do multiculturalismo que marca o nosso tempo. E é o mesmo Said quem alerta para o fato de que a consciência do poder de narrar é outro fato importante no imperialismo. O poder de narrar ou de impedir que se formem e surjam novas narrativas é fundamental na relação império versus culturas. As narrativas de emancipação terminam tornando-se elementos de forte mobilização de povos – veja-se as literaturas angolanas e moçambicanas principalmente do pré-independência – e em forte forma de resistência. Até porque a literatura é fonte de cultura, e cultura é fonte de identidade. Diante do multiculturalismo e do novo imperialismo, o fenômeno se repete, a literatura tomada como uma expressão simbólica, produto da cultura e da história, mas também interveniente na história e na cultura – o conceito é de Pageaux representa foco de resistência, e as experiências das ex-colônias na África, portuguesa no contexto europeu, e latino-americana bem o atestam. Identidade e Tradição A busca da identidade nesse fim/início de século, passa necessariamente pela recuperação de certos valores autóctones de raízes específicas, seja para resgatar a tradição, como o fazem os escritores das literaturas luso-africanas, por exemplo – e Mia Couto em Moçambique, Pepetela em Angola Orlanda Amarilis em Cabo Verde. Na América Latina é a vez das mulheres dialogarem com a história, com a pobreza e a luta pela sobrevivência nas terras dos caudilhos e das ditaduras militares e das convulsões sociais, revelando a sua história, buscando situar-se em seus países numa busca maior de justiça social. É uma voz que vem da margem dos processos todos e que se propõe a uma releitura, seja da revolução sandinista com Gioconda Belli; seja da revolução mexicana com Ageles Mastretta. Ao estudar as obras das últimas e mais da porto-riquenha Rosário Ferré, Márcia Lopes Duarte mostra como elas subvertem a história oficial dos seus países e, por consequência, do continente. E aí, como observa Duarte, na esteira de Zuenir Ventura, o discurso feminista muda o rumo da sua prosa. Não mais a igualdade – prazer/ trabalho/ poder – dos anos 15 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N°8 p.10-18 setenta, quando as mulheres queimaram os soutiens – ou na época era corpinho? – em praça pública, mas a busca da identidade na diferença, o direito à diversidade. Discurso esse que se aplica a todas as minorias. Na verdade, esse diálogo com a história, esse confronto de duas verdades, a verdade histórica e a verdade da ficção, em que a segunda presentifica e critica a primeira, no resgate da identidade, é a grande marca da literatura de final/ início de século. Acredita-se que o que subjaz a esta inquietação é a consciência da nossa incapacidade final para reconstituir o passado. E que, por isso, não podendo reconstituí-lo, somos tentados – sou-o eu, pelo menos – corrigi-lo. Quando digo corrigir, corrigir a história, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. Certamente se argumentará que se trata de um esforço gratuito, pouco menos que inútil, uma vez que aquilo que hoje somos não é do que poderia ter sido que resultou, mas do que efetivamente foi. Simplesmente, se a leitura histórica, feita por via do romance, chegar a ser uma leitura crítica, não do historiador, mas da história, então essa nova operação introduzirá, digamos, uma instabilidade, uma vibração, precisamente causada pela perturbação do que poderia ter sido, quiçá tão útil a um entendimento do nosso presente como a demonstração efetiva, provocada e comprovada do que realmente aconteceu. Analisando Márcio Souza que inicia um romance da literatura crítica da Amazônia, narrando aquilo que serve de fundo para extensão de sua obra poética: Quase tudo neste livro bem podia ter acontecido como vai descrito. No que se refere à construção da ferrovia há muito de verdadeiro. Quanto a política das altas esferas, também. E aquilo que o leitor julgar familiar, não estará enganado, o capitalismo não tem vergonha de se repetir. E porque é assim, esse mesmo diálogo é ainda a grande tendência – uma tendência cada vez mais acentuada pela globalização e pelo multiculturalismo – da literatura do novo século. Saber de seu espaço é saber-se quem, e saber-se quem é o grande desafio do homem do primeiro ao vigésimo - primeiro milênio e de tantos outros quantos vierem. É da natureza do bicho-homem marcar território, como forma também de justificar sua existência. E aí, quando a tecnologia rompe e esvazia as fronteiras, econômicas e culturais, em nome desse saber encontra resistência, aponta-se como maior foco de resistência da identidade de uma nação os seus índios, ou seja, os seus seres primeiros, os mais puros e os mais verdadeiros. Pois esses índios, aparentemente adormecidos, são a própria alma das nações e seus povos e, como tal, a garantia da permanência da sua identidade num processo de planetarização de larga escala. Como alma, vivem dentro de nós, em algum lugar, neste mundo novo de início de século, senão, como explicar a indignação quando numa dessas séries americanas, a protagonista avisa: I'm going to Brazil! E, então, para simpática aos brasileiros – desta grande nação continental - emenda simpaticamente: Hasta la vista baby! ? Pois esses índios, aparentemente adormecidos, têm seu lugar assegurado 18 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 na literatura, por isso as narrativas, como as poesias, não são inocentes e continuarão não sendo, não importa sua vertente ou seu meio. Na Amazônia, o índio é sempre transportado para um contexto polêmico nas narrativas, sejam aquelas que o enaltecem ou aquelas que o mutilam, ele sempre aparece como um elemento de comportamento desconhecido frente às realidades, a sua convivência nessa espacialidade possibilita à história mostrar alguns pontos curiosos sobre a sua existencial idade. O índio Caripuna, personagem de Márcio Souza apresenta-se como um colaborador aos interesses estrangeiros e quando é chamado a fazer parte do elenco de protagonistas do cenário da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, atua como colaborador de uma ideia dominante, que prescreve o dócil e o “selvagem” do índio. A resistência do índio aparenta um certo tom de ironia: Os pequenos camponeses que ficaram sem terra. Querem fazer barulho. Há um fanático incitando uma rebelião. Os índios querem se rebelar! Não os índios, eles não existem, mas os camponeses. Daremos um jeito. E a Madeira-Mamoré? Segue dentro do previsto. Lá não há camponeses, só índios. Em entrevista Caetano Veloso, ao reavaliar o Tropicalismo, reconhece nele um grande “escândalo antinacionalista”, com “ostensivo desprezo pela ideia de busca de raízes da autenticidade nacional.” diz ele: É como se a gente dissesse: Eu considero que, com o desespero da busca da identidade, a vontade louca de imitar os americanos, a falta de segurança, a incapacidade de organizar uma sociedade respeitável, com tudo isso acho que já tenho identidade suficiente. Já estou falando diretamente para o mundo, como se dizia no Recife numa famosa emissão radiofônica: “Pernambuco falando para o mundo". E Caetano considera que talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade do que o cinema – quando fala do cinema se refere à terra sem transe, que marca uma espécie de obsessão com a identidade nacional – e a literatura. E vai adiante: O fato de um país deste tamanho falar português e ter Um autor como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil Um grande segredo que nós guardamos e queremos Revelar. É uma experiência única! Evidentemente que a escolha de Caetano Veloso não é casual. Machado de Assis e Guimarães Rosa, cada um a seu modo, seja pelo desvendamento do panorama social de uma época, o 2ª reinado e os primeiros anos da República, com grande ceticismo em face da realidade nacional, como em Machado, seja pela feição notadamente regionalista, como em Guimarães, buscam fixar um tipo brasileiro numa expressão universal que certifica os elementos na sua identidade, apontando para uma realidade pelo menos coerente com o valor das raízes. E diz Caetano: Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça (...) Qualquer mente inteligente concluirá que o país que tem um acúmulo considerável de peculiaridades – desvantajosas em princípios, mas não malditas em si mesmas – nos leva a desconfiar, com toda a razão, de que tudo significa uma bênção.(...) É uma experiência única. 16 De fato, quem dá conta desta experiência única é a literatura, é o fato de ser a literatura um velho espelho crítico sempre renascido. É onde a realidade pode ser revista naquilo o que ela tem de mais significativo. É danação e é salvação, porque seu silêncio é o silêncio feito de liberdade. É aventura total, dramática, exaustiva, profunda, arriscada, detonadora de percepções, compreensões e visões inesgotáveis. E, sobretudo, uma resistente, tal qual o livro. Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.10-18 Conclusão Os conceitos de espaços estão rompidos, pelo menos teoricamente, com seus limites rígidos para fixar-se em outras definições de propriedades. O Multiculturalismo espacializou a identidade e definiu outras formas para os elementos que constroem a paisagem urbana das cidades Amazônicas. Assim, é nas idiossincrasias que se passam a distinguir as fronteiras, e elas estão internalizadas nos traços culturais, porém, os efeitos encontram-se bastante obscurecidos por uma nuvem de americanismo que não tem vergonha de se repetir em todos os espaços planetários. Então, posto este contexto multicultural do novo Imperialismo, o fenômeno se repete, a literatura tomada como uma expressão simbólica, produto da cultura e da história, mas que também faz inferência em ambas, aborda uma profunda reflexão nos agentes fomentadores do desenvolvimento regional, inclusive, conclama para um diálogo do presente com a história sobre o estabelecimento conceptivo do discurso universal engendrado no regionalismo da espacialidade urbana da Amazônia. Sabe-se que tudo pode ser global, mas o outro é o outro, mas importa o discurso geral de prosperidade, e o direito de ser lembrado na diversidade com muito bem revela Caetano Veloso: O fato de um país deste tamanho falar português e ter um autor como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil Um grande segredo que nós guardamos e queremos Revelar. É uma experiência única! E reveladora na busca necessária da identidade. Referências VELOSO, Caetano. Continente Multicultural. Pernambuco: Governo do Estado, nº 01. CORDEIRO, Saint e et al. Cidade e Empresa na Amazônia. Belém: Editora Paka –Tatu, 2002. LOURENÇO, Eduardo. A Europa desencantada: Para uma mitologia europeia. Lisboa: Visão, 1991. SARAMAGO, José. História e Literatura. Lisboa: Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1990. SOUZA, Marcio. MAD Maria. São Paulo: Civilização brasileira S.A. 1980. BLANCARTE, R.(org.) Cultura e Identidade Nacional. México: Fundo de cultura econômica, 1994. 17 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N°8 p.19-29 Possíveis Caminhos para Serem Trilhados na Construção e Desenvolvimento de um Estudo de Caso Petrônio Lauro Teixeira Potiguar Júnior* RESUMO É mister esclarecer que as reflexões que serão desenvolvidas neste trabalho, não são um fim em si mesmo e que críticas virão para somar ao que aqui será explanado já que a temática tratada , apresenta controvérsias e opiniões diversas, mas que com certeza, serão recebidas com aplausos e considerações para somar ao que aqui será oferecido ao leitor. Por isso, este texto traz reflexões introdutórias sobre a concepção, desenvolvimento e finalização de uma modalidade de pesquisa, elegendo como foco central, o estudo de caso e os possíveis caminhos que devem ser trilhados para sua construção e finalização. Destacar-se-á também o debate envolvendo a complexidade da relação homem-sociedade na pesquisa e entre pesquisador e objeto pesquisado nos pormenores a ser considerado no momento desse tipo de prática investigativa. No debate aqui proposto, se dará importância aos processos cognitivos como o olhar, o ouvir e o escrever no início, meio e fim da pesquisa e, em especial, quando se tratar de um estudo de caso e , fundamentalmente como o chegar de uma pesquisa deve ser um processo de coroação com a intervenção, caso exista, materializado pela devolução dos resultados da pesquisa aos atores e o local investigado. Palavras-chave: pesquisa - cultura - estudo de caso ABSTRACT Preliminarily, it is necessary to clarify that the reflections developed in this work are not an end in itself and that criticism is important to sum up to what is here explained, given that the this topic generates controversy and diverse opinions that are welcomed to enrich this work. Therefore this text brings introductory reflections about the conception, development and conclusion of a specific genre of research, choosing as a central theme the case study and the possible ways to be followed to its building and conclusion. The debate involving the complexity of the relation between men and society in research and between researcher and the object being researched is highlighted, as it has to be taken into consideration in this sort of research practice. In the debate here proposed high importance is given to the cognitive processes as to look, to listen and to write in the beginning, development and end of the research and, especially, when it is a case study, and fundamentally how the end of a research shall be a process crowned with the intervention materialized by the presentation of the results to the researched actors and places. Keywords: research - culture - case study *Antropólogo e Mestre pela /UFPA. 19 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N°8 p.19-29 Introdução Procurar entender modalidades de pesquisa é uma das tarefas nada fácil de fazer, no entanto, as tentativas explicativas, desde que bem argumentadas, são válidas por alimentar debates de cunho acadêmico, forçando pensar e resignificar conceitos e categorias e até mesmo, expor formas diferenciadas de reflexão sobre determinado tema, em especial, no que se refere a modalidades de pesquisa, como o estudo de caso. Diante disso, este texto há tempos já estava escrito , mas se revela agora com algumas adaptações pelo incentivo de minha ex-orientadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), professora Delma Pessanha, que o avaliou de forma positiva. Assim, partindo deste contexto, entendemos que ele não deveria ser esquecido nas gavetas acadêmicas diante da necessidade dessa discussão na atualidade, em especial, no meio acadêmico entre alunos de graduação e pós graduação. Posto isso, pretendemos apontar diretrizes para a realização de um estudo de caso, a forma de como ele poderá ser desenvolvido que será revelado em quatro caminhos que procuraremos esclarecer de forma objetiva e sucinta, cuja base teórica estará calcada em autores e áreas diversas, dando sentido multidisciplinar do debate e que pousará no colo dos leitores para avaliações diversas que com certeza serão válidas. Vamos aos caminhos para a realização do estudo de caso! Primeiro Caminho: Entender a Relação Homem-Sociedade na Pesquisa de um Estudo de Caso Compreender o estudo de caso requer que retomemos alguns pormenores no que diz respeito a esse tipo de pesquisa, em particular, por considerar que ele se caracteriza pela escolha de um determinado fenômeno que ocorre com pessoas e grupos de forma contextualizada em um determinado tempo e espaço. Apesar de sua conceituação polissêmica, Ventura (2007) categoriza bem o seu significado: Conforme os objetivos da investigação, o estudo de caso pode ser classificado de intrínseco ou particular, quando procura compreender melhor um caso particular em si, em seus aspectos intrínsecos; instrumental, ao contrário, quando se examina um caso para se compreender melhor outra questão, algo mais amplo, orientar estudos ou ser instrumento para pesquisas posteriores, e coletivo, quando estende o estudo a outros casos instrumentais conexos com o objetivo de ampliar a compreensão ou a teorização sobre um conjunto ainda maior de casos. Os pesquisadores devem buscar, a partir dessa categorização, tanto o que é comum quanto o que é particular em cada caso e o resultado final provavelmente mostrará alguma coisa original em decorrência de um ou mais dos seguintes aspectos: a natureza e o histórico do caso; o contexto em que se insere; outros casos pelos quais é reconhecido e os informantes pelos quais pode ser conhecido (p. 384). Na mesma linha de raciocínio Tarcísio Filho e Airton Filho (2010), também conceituam o estudo de caso, como: Em especial, o Estudo de Caso, por si só, caracteriza-se por ser um tipo de pesquisa que apresenta como objeto uma unidade que se possa analisar de forma mais profunda. Visa, assim, ao exame detalhado de um ambiente, ou de um local, ou, ou de uma situação qualquer, ou, ainda, de um determinado objeto, ou, simplesmente de um sujeito ou de uma situação. Pode, então, ser conceituado como um modo de coletar informação específica e detalhada, frequentemente de natureza pessoal, envolvendo o pesquisador, sobre o comportamento de um indivíduo ou grupo de indivíduos em uma determinada situação e durante um período dado de tempo (p. 3). 20 Revista Perspectiva Amazônica Ano Ano43N° N°86 p.19-29 p.XXX Nota-se assim que tanto Ventura (2007) como Tarcísio Filho e Airton Filho (2010), dentre variadas tentativas de autores, conceituam estudo de caso e seguem o mesmo raciocínio sobre tal conceituação de alguns intelectuais que há anos trabalham com esta modalidade de pesquisa como Ludke & André (1986); Gil:(2002) ; André (2003) e Chizzotti (2008); Severino (2002) dentre outros, e que vem se coadunar com o que aqui será exposto como estudo de caso e as diretrizes para sua construção e desenvolvimento. Posto a conceituação do estudo de caso, o primeiro ponto a ser considerado neste tipo de estudo diz respeito a relação homem-sociedade. Este é um contexto que pede compreensão da construção e (re) construção do mundo material e imaterial do 1 indivíduo em seu meio vivido . Neste sentido, Berger (1985) nos leva a compreender à relação conflituosa do “eu” com o “outro” e sua jornada como “ser” social, numa construção marcada pela interiorização, exteriorização e objetivação dos fatos vividos por ele, registrando seu poder inato e racional de transformar e ser transformado, 2 historicamente, através de suas ações e do exercício de pensar seu próprio pensamento . Para reforçar sua ideia, Berger (1985) ressalta que na chegada do homem à sociedade, esta última já esta objetivada, cabendo ao primeiro, se posicionar por intermédio da produção de símbolos e significados, dando sentido ao seu existencialismo em um claro empreendimento coletivo, já que sozinho o homem não produz cultura. É a partir da produção cultural que esse homem visibiliza sua (re) significação no espaço e no tempo, enquanto um ser histórico que vive o presente, olhando para o passado, na busca constante de perspectivas futuras, construindo e (des) construindo valores em uma mutação social constante (MYNAYO,1999; LARAIA, 2001; VENTURA , 2007). Tais reflexões nos fazem perceber que viver em sociedade, é participar de um contínuo processo de troca operada pela cultura, legitimada por fatores institucionais, inerentes a qualquer indivíduo que se defronta com a coercitividade política, econômica, social e cultural objetivadas no meio social, cabendo ao homem a construção de sua biografia na sociedade, fatores estes a serem fundamentalmente considerados na eleição de um problema que será investigado por intermédio de um estudo de caso (BERGER, 1985; LARAIA, 2001). Assim, objetivação do indivíduo em sociedade, produto da exteriorização do que foi interiorizado no consciente individualizado, por si só, é resultante da (re)significação iniciada 3 que é transformada pela ação social individual bem aos moldes weberiano . Esses fatores garantem a transmissão a outras gerações sobre os modos de vida, mas que sempre estarão em um processo dialético do mundo objetivado, absorvido e transformado individualmente. Devemos registrar que o pensamento aqui, evidencia a participação do indivíduo de forma efetiva na sociedade, demarcando sua identidade enquanto “eu” no mundo e que suas ações, são dirigidas aos “outros” como um mecanismo de ação social coletiva, numa demonstração de que o homem e a sociedade são interdependentes e que se encontra presente na relação entre o pesquisador e o pesquisado no início e final de um contexto investigativo. Por outro lado, Cuche (1999) reforça ideia anterior de forma clara já que, segundo suas reflexões, para entendermos o homem em seu espaço, o único meio seria a compreensão do que vem a ser cultura que, apesar de seu sentido complexo, 1 Quando nos reportamos as questões imateriais, o olhar do leitor deverá ser direcionado para o contexto cultural que permeia a vivência do individuo em seu processo social a exemplo de representações sócias , crenças, valores, saberes tradicionais etc. 2 O conceito “conflito” a qual nos referimos, diz respeito a “Teoria do Conflito”, de Simmel, afirmando que o conflito é a essência da existência humana, pois dele poderá surgir uma proposição alternativa na dialética discursiva não precisando, necessariamente, ser um contexto negativo na existência do indivíduo em sociedade. 3 Aqui referimo-nos a abordagem sociológica de Max Weber, quando do uso do compreensivíssimo elege a ação social do indivíduo como foco central de suas observações e que por si só, é cabível na proposta de debate aqui desenvolvida. 21 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.19-29 aponta para características pessoais e coletivas de símbolos e significados produzidos por ele. Isto é reafirmada por Laraia (2001) quando debate o conceito de cultura e que é de fundamental importância ser entendido no desenvolvimento de qualquer pesquisa. Outro ponto a ser considerado, está ainda no entendimento existencial do indivíduo em sociedade, mas lançando um olhar atento para as diferenças e diversidades que o cerca, rompendo com o paradigma de entender o indivíduo apenas pelo prisma natural positivista. Agora ele é percebido baseado em seu papel social materializado pelas ações e, necessariamente, deve-se ter atenção privilegiada no início, meio e fim da prática da pesquisa seja ela em que área for, nas ciências exatas, ciências biológicas e ciências humanas, cuja participação de atores sociais seja evidenciada. Para dar sentido ao que foi mencionado acima, Da Matta (1981) analisa a concepção e desenvolvimento da ciência e seus diversos objetos e objetivos. Ele analisa a vivência acadêmico-histórico entre ciências exatas e humanas, em particular o da antropologia, privilegiando o caráter investigativo tornando visível à importância dos símbolos e significados dos indivíduos discutidos até o momento. Ele nos incentiva à compressão do que se entende hoje por pesquisa qualitativa, que leva em conta, a construção cultural que advém da percepção metodológica “de quem” e “do que” se deseja investigar. Para este autor, jamais se pode “isolar causa e motivações exclusivas”, a exemplo das pesquisas em suas diversas áreas. Ou seja, devemos dar ênfase a valoração individual construída pela relação dialética do homem em sociedade, esclarecida de forma enfática por Berger (1985), Da Matta (1981) Lévis-Strauss (2001) sem excluir as diretrizes de análises destes fenômenos sociais, a exemplo da estatística e suas interpretações contextualizadas, já que os números por si só “falam”. Ao que é postulado pelos autores mencionados, Cuche (1999) torna mais enfática tais reflexões, quando ressalta que a “cultura” é “independente das análises acadêmicas, mas é um produto do próprio homem” e que seu conceito é uma necessidade semântica e de sistematização para possíveis explicações ao desempenho do homem em sociedade, em suas teias de significados e conflitos internos e externos que, por excelência, também são construções na dinâmica da história e da pesquisa. Esta percepção esclarece que o conceito de cultura e suas variáveis (contracultura, aculturação, cultura popular etc.) devem ser percebidos como fruto da própria existência humana, no momento da pesquisa, provocando mudanças em seu entendimento, atendendo interesses no campo político, econômico social e cultural e que por si só, afeta o campo da investigação científica, em particular em um estudo de caso. Tais reflexões são fundamentais para percebermos o mundo dos atores sociais investigados, devendo ser considerados na construção dos problemas e questões de determinadas pesquisas, desde o projeto às análises de dados, já que a vivência das pessoas – investigador e investigado - estão marcadas pelos imponderáveis da vida social cuja relação com “outro” deve ter como parâmetro o respeito no processo de investigação até as intervenções pretendidas resultantes de qualquer estudo. Assim, Man (1973) quando trata do objeto de estudo, em especial nas ciências humanas, valoriza a necessidade de se ter clareza que a interação e inter-relações sociais deverão ser as âncoras de análises desta ciência em que a cultura, o patrimônio material e imaterial, os símbolos e significados que permeiam os atores sociais, compreendendo a sua complexidade analítica na pesquisa seja ela de que área for. 22 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.19-29 p.XXX Ano Revela-se então que na investigação da vida social, não devemos esquecer também da sutileza de se trabalhar com categorias (família, idade, velhice etc) para poderemos entender as representações sociais específicas que acompanham o processo existencialista do “objeto” de estudo4, conforme nos chama atenção Lenoir (1998) quando faz reflexões relativas a objeto sociológico e problema social5 na pesquisa que envolve, inclusive, a institucionalização e legitimação temporal e espacial do patrimônio material e imaterial que circunda o objeto de estudo que deve ser entendido como tal, na investigação nas diversas áreas e tipos de pesquisa, a exemplo do estudo de caso6. Segundo Caminho: Compreender a Cultura no Início, Meio e Fim do Estudo de Caso Ao falarmos em patrimônio cultural, será necessário compreendermos suas dimensões, constituições e o respeito pela transmissão deste importante aspecto da vida social, devendo ser visualizado na pesquisa, em particular quando se tratar de um estudo de caso. Consideramos aqui as análises de Lévi-Strauss (2001) acerca do patrimônio imaterial, apresentando a temática da preservação e transmissão deste patrimônio às gerações futuras. Devemos ter clareza que, nesse palco da vida real, a dicotomia relacionada aos termos patrimônio material e imaterial, fazem parte da cultura individual e de um grupo social a ser investigado. Compreendendo a cultura como significados atribuídos pelos homens ao mundo como um empreendimento dotado de valores e saberes, constituídos nas relações do seu “eu” com o “outro”, eles se materializam pelo patrimônio construído materialmente como obra de arte e monumentos. Por outro lado a oralidade, memória, saberes populares e outros processos cognitivos que são passados de geração em geração, nos alerta para adotarmos uma importante categoria de análise a ser respeitada no momento da pesquisa, ora expressada por Lévi-Strauss (2001), o “patrimônio imaterial”7. Deste modo, a desigualdade analítica relacionada ao tratamento do escrito sobre o oral, da arte erudita sobre a arte popular e do histórico sobre o cotidiano, demarcou a dicotomia e hierarquia de valores diante do patrimônio imaterial e material, que apareceram como áreas separadas. No entanto, na última década, iniciou-se a preocupação em analisá-los não como áreas diferenciadas, mas como um “conjunto único e coerente de manifestações múltiplas, complexas e profundamente interdependentes dos inúmeros componentes da cultura de um grupo social” (LÉVISTRAUSS, 200, p.24) e que é fundamental ser compreendido no contexto investigativo. Foram necessárias a compreensão e reformulação na perspectiva de um novo olhar ao componente patrimônio cultural, ou seja, voltar à análise para: 4 Chama-se atenção que “objeto” esta aspeado , considerando que as pessoas, em particular aquelas que são atenção central da pesquisa , não são passivas, mas sim se constrói e (re) constrói, dependendo de sua postura nos caminhos e (des) caminhos da pesquisa. 5 Quando determinado fato social é percebido pelo indivíduo, seja ele pesquisador ou não, sem uma investigação sistematizada, este é denominado de problema social, mas quando sofre intervenções analíticas onde métodos e técnicas são aplicados para seu entendimento, este é denominado de problema sociológico. 6 É o tipo de pesquisa que versa sobre um determinado indivíduo, família, grupo ou comunidade que seja representativo de seu universo, para examinar aspectos variados da sua vida. 7 Durante muito tempo convencionou-se a ideia de que patrimônio cultural estava relacionado à visão monumentalista. No entanto, com base nas discussões concebidas nas convenções da Unesco nos anos 50 e fim dos anos 70 do século passado, demonstrando a necessidade “à conservação e proteção do patrimônio universal de livros, obras de arte e outros monumentos de interesse histórico e científico” (LÉVISTRAUSS,2001:23), deixando em segundo plano os estudos a cerca da vida cotidiana das culturas populares, o patrimônio imaterial. os conjuntos culturais complexos e multidimensionais que traduzem no espaço as organizações sociais, os modos de vida, as crenças, os saberes e as representações das diferentes culturas passadas e presentes no mundo (LÉVISTAUSS, 2001, p.24). É necessário ocorrer maior intensificação com preocupações referentes à compreensão e valorização de aspectos da construção cultural de grupos sociais, reconhecendo sua importância como seres que constroem a história de sua localidade através das experiências vividas, recriando aspectos que garantam sua sobrevivência individual ou mesmo coletiva. 23 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.19-29 p.XXX Ano Isso revela, e nos remete, ao modo de como vem sendo discutido, hoje em dia, a pesquisa qualitativa, que não separa os dados quantitativos das percepções cognitivas dos atores sociais como aqui é ressaltado. Isto inaugura, há décadas, uma nova postura de se pensar a pesquisa que comunga essas duas ações da e na pesquisa, inclusive no estudo de caso. Sendo assim, relacionar diversas categorias sócio-econômicas envolvendo os atores sociais, seja em que lugar ele estiver, a exemplo dos remanescentes de quilombos, pescadores, extrativistas dentre outros, cada um com seu modo específico de apropriação, designa diferenciações, facilitando assim, o estudo das trajetórias particularizadas que pressupõe universos sociais também distintos. Ou seja, não se deve valorizar os domínios instrumentais, econômicos etc. em detrimento das constituições culturais das localidades ou dos grupos sociais. Tal postura, evidencia sua importância como resultado das trajetórias diferenciadas, de cada grupo ou indivíduo, com seus interesses, querendo ser reconhecido dentro do seu âmbito, sócio-cultural. Ou seja, na pesquisa, é necessário o reconhecimento, a dimensão do patrimônio imaterial pela extrema importância nos processos de intervenção política elaboradas por instituições, dando aporte para maior sensibilidade no sentido de perceber as condições e situações diversas vivenciadas por vários atores sociais, estabelecendo o processo da conquista, do respeito e da troca de saberes entre pesquisadores e pesquisados, fato este relevante no estudo de caso, pois irá colocar à prova a antipatia ou simpatia entre pesquisador e pesquisa, fator este imprescindível para o sucesso ou fracasso de um estudo de caso. Sendo assim, o papel do pesquisador vai além das simplificações restritas das análises, devido a importância e expectativas criadas nos sujeitos pesquisados, referente a possíveis intervenções após os estudos. Deste modo, um fator importante na pesquisa é a relação da teoria e prática, onde suas sistematizações e contribuições no campo científico, deverão está somadas ao retorno de seus resultados à sociedade estudada, fazendo com que ao apresentar a teoria e prática analisadas, está-se abrindo para uma relativização dos parâmetros epistemológicos. Isto faz nascer um plano de debate inovador, ou seja, uma relação dialógica entre o pesquisador e o sujeito pesquisado, contribuindo para uma reflexão crítica e sensível dos resultados e produtos alcançados com a pesquisa, seja ele em que área da ciência for, já que toda a pesquisa na essência, nasce e se desenvolve em um contexto social específico. Portanto, o objeto de estudo não é opaco e mudo, como nos diz DaMatta (1981), ele também tem suas interpretações e seu ponto de vista, evidenciando assim uma diferença fundamental relacionado a ciências exatas e naturais, já que a natureza não “fala” direto com o pesquisador, ao passo que “cada sociedade é um espelho onde a nossa própria existência se reflete”, tornando esses fatores fundamentais para a construção do objeto em ciências sociais, reflexão esta também compartilhada por Man (1973), quando faz sua análise relativo ao objeto de estudo da sociologia e sua inter-relação no meio social. Notamos então que os instrumentos do cientista social decorrem da qualidade na abstração; no exercício de construção da teoria; na observação e na constante análise, já que a preocupação com a temporalidade nas relações humanas deve ser um exercício constante. 24 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.19-29 p.XXX Ano Aqui os processos sempre inacabados, ou seja, nada é determinante, pois a relação homem-sociedade, conforme Berger (1985), é fundamental e necessária para lançarmos um olhar diferenciado e particularizado, a fim de perceber que o homem sofre mudanças, já que é produto e produtor do meio existencial, sendo o estudo de caso uma das estratégias utilizadas para investigação e percepção focada de qualquer problemática no contexto da pesquisa e que será ponto de pauta no próximo item. Terceiro Caminho: Adotar Meios Cognitivos em um Estudo de Caso Considerando as questões até aqui discutidas, mesmo que de forma introdutória, notamos que elas são fatores importantes a serem considerados quando nos reportamos a um tipo de investigação na vida acadêmica, o estudo de caso. Deve-se esclarecer que aqui será considerado estudo de caso, as investigações efetivadas com fatores contextualizados no tempo e no espaço, onde pensa-se em um contato direto do pesquisador e o pesquisado. Ou seja, o estudo de caso é caracterizado pelo fato de ser uma investigação focada e um fenômeno com dimensões locais e específicas, mas com as mesmas dificuldades e complexidades de qualquer fenômeno social que tem efeitos do que ocorre no global. Isto centraliza o pesquisador no sentido de dar uma diretriz consistente na pesquisa de campo independente das técnicas que irá utilizar (roteiro de entrevistas, imagens, documentação, etc.), para que o mesmo não caia no senso comum e passe a não considerar o fenômeno na sua plenitude. Neste sentido, os elementos cognitivos como um olhar atento, um ouvir aguçado e um escrever claro, debatidos por Cardoso (2000), ajudam a fortalecer a análise do objeto estudado, compreendendo suas alternâncias e dificuldades para melhor analisar a pesquisa no estudo de caso e, fundamentalmente, entender ou “outro” na investigação realizada. O olhar atento, desprovido das pré-noções e de outros elementos que podem interferir na cognição do indivíduo, é uma questão a ser enfrentada e administrada pelo pesquisador, pois nem tudo que nossos olhos vêem correspondem o que realmente é de fato (BECKER,1994; OLIVEIRA, 2000 ). Por outro lado, ouvir aguçado e treinado, deve levar em consideração os elementos percebidos no olhar. Todavia, esse ouvir deve ser atento, paciente e exige dedicação do pesquisador, que poderá ajudar a compreensão mais apurada do fenômeno social, sem que hajam contradições nas informações coletadas, em particular nos estudos de caso. Já o escrever é a sistematização dos outros processos cognitivos - ver e ouvir – e é onde o pesquisador vai travar- no bom sentido - as batalhas no campo teóricointelectual com outros autores que também debatem as questões relacionadas ao seu objeto de pesquisa, materializado pela relação dialógica entre a teoria e a prática , que é um processo existencial-interdependente no contexto pesquisado e, em particular, no estudo de caso, cujo o olhar , o ouvir e o escrever são basilares8. É através desses instrumentos cognitivos que a investigação em um estudo de caso pode ser entendida minimamente, pois tais práticas são importantes para compreensão dos fenômenos sociais que, a cada dia, se tornam mais complexos e de difícil compreensão em virtude da dinâmica social, 8 Geralmente o escrever finaliza os métodos cognitivos descritos por Oliveira (2000), sendo de extrema importância, pois é a materialização de todo processo metodológico de pesquisa, que demanda um relativo tempo e dedicação especial por quem a realizou. 25 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.19-29 p.XXX Ano com velocidade da circulação de informações e a delimitação de espaços desterritorializados no processo global, cujas reflexões aqui colocadas são fundamentais para se chegar a termo de determinada pesquisa em qualquer área, em especial no trato de um estudo de caso. Outra perspectiva a ser considerada no estudo de caso, são as interferências, externas-internas no processo de pesquisa e, crucialmente, na hora de se produzir questões de interesse coletivo. Todavia, o trabalho do pesquisador pode ser encaminhado sem sustos e atropelos, se o mesmo definir com clareza e critérios, o seu objeto de investigação. O trabalho de observação social, análise dos fenômenos sociais e suas interrelações cotidianas, por mais simples que possa parecer, não são tarefas para observadores desatentos. Para Cardoso (2000), trabalhar os sentidos cognitivos do ser humano – ver, ouvir e escrever - é importante nesse processo, porém realizá-los corretamente é uma tarefa que exige uma sensibilidade especial do pesquisador quando envolvido em um estudo de caso específico. Quarto Caminho: O Compromisso do Pesquisador com o Local e Atores Investigados em um Estudo de Caso Assim, para o desenvolvimento investigativo de qualquer problema, o pesquisador possui uma tarefa das mais dignas nesse processo de construção de problemáticas sociais de toda ordem: o compromisso prático e ético com o “outro”. O importante nessa construção, é mostrar para à sociedade que uma pesquisa não se encerra nela mesma; ou seja, devemos mostrar também que esta não é única e exclusivamente para satisfazer vaidades pessoais, mas sim que o que esta sendo pesquisado é de suma importância para a sociedade. Outro ponto importante é trabalhar questões de relevante interesse, isto é, análises de interesse de grupos representativos na sociedade. Não é uma tarefa simples, pois o trabalho do pesquisador vai de encontro ao mundo pré-concebido que geralmente determina o que deve ser trabalhado, conforme discute Berger (1985). Assim, a tarefa de (des)construção da realidade pré-concebida exige um exercício intelectual diferenciado que, dependendo das próprias características desse objeto de análise, dos atores envolvidos; da localização e acesso dessa realidade investigada. Dentro da perspectiva aqui discutida, juntamente com outras informações e diversos métodos de investigação, a tarefa de (des)construção da realidade social poderá ser encaminhada em uma direção que não venha a gerar equívocos nem precipitações, sob a ótica analítica. Um ponto importante refere-se às imposições que, geralmente os atores envolvidos na pesquisa acabam sendo sujeitos, pelas mais diversas interferências que, dentro de um processo social, são inevitáveis, em especial quando se investiga casos particularizados. As interferências geralmente acabam de uma forma direta e até mesmo indireta, determinando os procedimentos a serem adotados pelo pesquisador, implicando em consequências negativas na qualidade do trabalho, pois direciona os objetivos para aspectos que nem sempre são do agrado e interesse de quem vai realizar a tarefa, o pesquisador. 26 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.19-29 p.XXX Ano Isso acaba comprometendo o resultado de um determinado estudo e o pesquisador paga um preço injusto por trabalhos e resultados que, muitas vezes, não eram de seu interesse, mas que por essas interferências acabam dando um outro sentido para a pesquisa e, fundamentalmente, não atendem a demanda dos grupos investigados. Dentro dessa sensibilidade do pesquisador, não pode ser deixar de compreender a objetivação da sociedade, haja vista que ele vai analisar um mundo pré-concebido isto é, que já existia antes de fazer suas inferências. Esse mundo, que o faz defrontar com uma realidade, às vezes, foge do seu próprio controle, influenciando-o, no momento da execução do seu olhar dependendo do contexto que envolve o grupo social envolvido na pesquisa. Nessa perspectiva, o elemento desse mundo pré-concebido ou objetivado, tem um poder determinante de influenciar positivamente ou negativamente os conceitos no contexto analítico do pesquisador que estão relacionados com seu objeto de investigação no momento da escrita. Outro elemento fundamental nessa análise, refere-se ao aspecto temporal e inacabado do objeto a ser investigado, já que, qualquer objeto de estudo nas ciências sociais deve ser considerado sempre em processo contínuo de construção, mesmo que seja um estudo de caso específico. Ou seja, os fenômenos sociais apresentam complexidade maior, de difícil interpretação que o torna imprevisível para análises superficiais. Para amenizar as questões mencionadas anteriormente, a interdisciplinaridade está na agenda do dia e onde questões instrumentais e sociais são claramente imbricadas e por si só, influenciam no processo da pesquisa seja ela de que área for, dependendo do foco nela contido e do modo como se observar a realidade investigada. Ou seja, a complexidade dos fenômenos sociais extrapola os limites espaço temporais, pois o mesmo não ocorre da mesma forma no lugar, instante e tempo, que podem ser reproduzidos com as mesmas características, em regiões geográficas diferentes e ao mesmo tempo. Por tudo isso, o fenômeno social nas ciências humanas é singular e único e que deve interagir com as demais áreas do conhecimento (DA MATTA, 1985) dando suporte para o entendimento que o retorno é basilar para quem pretende desenvolver qualquer pesquisa, inserindo neste contexto o estudo de caso. Portanto, a objetivação da sociedade sobre o mundo pré-concebido e a complexidade do fenômeno social no espaço e no tempo formam outros elementos também importantes dentro da análise do objeto no estudo de caso, onde o olhar , o ouvir e o escrever são cognições que devem estar imbricadas no início, meio e fim deste tipo de estudo, em particular no claro entendimento do por quê? Para que? E que resultados estes tipos de estudo trarão para os atores envolvidos no mesmo e para a localidade investigada? Para não Concluir Apesar de uma discussão ainda introdutória, este fórum de debate atravessa o tempo e o espaço e é fundamental entendermos isso, independente de qual campo científico pertençamos e que, “eu” o “ser”, tanto do pesquisador quanto do objeto 27 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.19-290 p.XXX Ano pesquisado, são fatores presentes na investigação que, em muitos casos, nos põe diante dos imponderáveis da vida e nos deixa em um constrangimento que transborda nosso controle enquanto ator social. Este fator poderá ser evitado com uma boa base teórica, fundamental para evitarmos cair em armadilhas na empreitada investigativa. Devemos ter clareza que a alteridade e, principalmente, o protagonismo dos atores sociais investigados devem ser fator imprescindível a ser considerado no princípio, meio e fim de um processo investigativo em um estudo de caso, principalmente se há pretensão de uma intervenção prática ou, pelo menos uma proposição, em que conceitos como cultura, patrimônio material e imaterial, problemas e fenômenos sociais devem ser levados em conta, evitando desregular o cotidiano vivido dos atores sociais onde a postura ética será condição primeira somada a relação de parceria no processo de construção do conhecimento. A clareza de que o objeto de estudo nas ciências sociais, exatas e naturais, em sua maioria, vivem o presente, olhando para o passado na busca de perspectiva futura, deve ser um processo perseguido pelo pesquisador a fim de apontar possibilidades de melhoria na qualidade de vida dos atores sociais investigados, cuja observação no estudo de caso devem ser parâmetros metodológico e técnicos para empreitada analítica. Além das questões acima, os passos cognitivos, o olhar , o ouvir e o escrever , devem estar sincronizados já que do uso destes sentidos, se materializam nas análises resultantes das observações e dos dados coletados e que por si só serão basilares para as intervenções e proposições futuras no tempo e espaço vivido. Os métodos e técnicas acima citados, permitiram uma reflexão mais direcionada, impossibilitando a pulverização de ideias e, principalmente, uma possível intervenção equivocada no futuro, o que acarretará uma desvalorização da investigação acadêmica, comprometendo, deste modo, as gerações futuras no que diz respeito ao desejo e prática do contexto investigativo tendo como âncora fundamental a pesquisa qualitativa que se pauta justamente nas premissas básicas até aqui discutidas, pautada em particularmente, no estudo de caso. Referências ANDRÉ, M.E.D.A. Etnografia da prática escolar. 9. ed. Campinas: Papirus, 2003. BERGER, Peter. L. O Dossel Sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo, Editora Paulus, 1995 (15-41) CUCHE, Denys Gênese social da palavra e da ideia de cultura. Bauru. EDUSC.1999 LEVIS STRAUSS, Laurent. Patrimônio material e diversidade cultural: o novo decreto para a proteção dos bens imateriais. Revista tempo brasileiro, 147 Rio de Janeiro. 2001. DA MATTA, Roberto A antropologia no quadro da ciências . In: Relativizando. Uma introdução a Antropologia Social. Petrópolis. Editora Vozes, 1981. 28 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.19-29 p.XXX Ano BECKER, Howard S. A história de vida e o mosaico científico. In: Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1994 (101-115). BECKER, Howard S. Observação social e estudo de caso e o mosaico científico. In: Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1994 (117-133). CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. 2 edição. Ed. Vozes: Petrópolis/Rj, 2008. GIL, Antônio Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. LARAIA, ROQUE DE BARROS. Cultura. Um conceito antropológico. Jorge zahar editora. 14 edição. Rio de Janeiro , 2001 LENOIR, Remi O Objeto sociológico e problema social. In: CHAMPAGNE , Patrick et.al Iniciação Prática sociológica. Petrópois Vozes, 1988 (59-106) LÜDKE, M.; ANDRÉ, M.E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MAN, Peter. Método científico em sociologia. Métodos de investigação sociológica. Rio de Janeiro. Zahar editora. 1973 (21-39) MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10 edição. Petrópolis , RJ. Vozes. 1999. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de . O trabalho do antropólogo: o olhar , o ouvir e o escrever In:; O Trabalho do Antropólogo, Brasília. Paralelo 15. São Paulo: Editora UNESP, 1998 (p.17-36 e 5372) SEVERINO, Antônio João. Metodologia do trabalho Científico. 22 edição. Editora Cortez. 2002 TARCISIO FILHO, José & NEUBAUER FILHO, Airton. O estudo de caso dirigido como metodologia de pesquisa para a educação à distância (EAD). São Paulo. 2010 VENTURA, Magda Maria. O estudo de caso como modalidade de pesquisa.In: Revista SOCERG. Setembro Outubro de 2007. 29 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.30-43 Responsabilidade Civil do Juiz por Atos Culposos no Exercício da Atividade Judicial Peter Xavier Hager * RESUMO Este artigo apresenta como objetivo principal encontrar fundamentos fáticos e jurídicos para se determinar a responsabilidade civil do juiz no exercício da função jurisdicional em razão dos danos causados por erros judiciários ou mesmo pela demora na resolução da lide. Compreendendo uma análise histórica da problemática, a partir da completa irresponsabilidade do Estado até a sua atual responsabilidade objetiva por atos jurisdicionais. Realizando uma análise da soberania do Poder Judiciário, da coisa julgada, da falibilidade humana, da independência do juiz e da ausência de normas específicas como prováveis obstáculos encontrados para a formação de uma jurisprudência a respeito da responsabilização do Estado e do magistrado em nosso sistema judiciário. Abordando, de forma mais específica, a responsabilidade civil do magistrado na modalidade culposa, e como consequência a responsabilização do próprio Estado, e possíveis formas alternativas de solucionar este problema encontrado na função típica do Poder Judiciário. Fazendo a utilização de pesquisa bibliográfica, descritiva e histórica, e de material doutrinário, legal, prático e jurisdicional. Palavras-chave: responsabilidade civil - responsabilidade estatal - responsabilidade do juiz ABSTRACT This article presents as main goal to find factual and legal grounds to determine the civil liability of the judge in the exercise of the judicial function because of damage caused by miscarriages of Justice or even for the delay in the resolution of the dispute. Understanding a historical analysis of the problem, from the complete irresponsibility of the State until its current strict liability for judicial acts. Conducting an analysis of the sovereignty of the Judiciary, of res judicata, of human fallibility, the independence of the judge and the absence of specific standards as proba ble obstacles to the formation of a jurisprudence regarding the accountability of the State and the magistrate in our judicial system. Addressing, in a more specific, the civil liability of the magistrate in wrongful mode, and as a result the State's own accountability, and possible ways to solve this problem found in the typical function of the judiciary. Making use of doctrinal material, legal, judicial and practical. Keywords: civil liability - State responsibility - responsibility of the judge *Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA); Especialista em Direito Processual Civil e Trabalhista pelas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT); Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires (UBA); professor de Direito Processual Civil nas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT). E-mail: [email protected] / [email protected] 30 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.30-43 Introdução O trabalho foi desenvolvido e estimulado pela carência de pesquisas e de demandas judiciais que pleiteassem a responsabilidade do magistrado no exercício de suas funções típicas. Sendo indiscutível a importância do debate sobre o tema da responsabilidade pessoal do juiz, pois é crescente o número de juízes que compõe o Poder Judiciário Brasileiro, e consequentemente, são inúmeras as hipóteses de erros judiciais em suas decisões ou omissões. Tentar-se-á, igualmente, sem pretensão de exaurir discussões ainda vigentes, fazer um esboço histórico pelo qual se delineou a questão da responsabilidade civil dos magistrados no Brasil, explicando o que motivou determinado posicionamento doutrinário ou jurisprudencial em cada momento em que surgiam as inovações legislativas. Antes, entretanto, de se ponderar sobre a questão da responsabilidade do magistrado, necessária se faz a averiguação de alguns pontos e opiniões acerca da responsabilização do Estado sobre os atos jurisdicionais. A partir dessa superação, pretende-se, pois, demonstrar que a irresponsabilidade civil do juiz diante de toda e qualquer conduta culposa decorrente do cargo - exceto na limitada hipótese de persistência de omissão - viola o art. 37, § 6º da Carta Suprema, que prevê a responsabilidade do agente estatal em caso de dolo e de culpa estrita, dispositivo que seria inaplicável ao juiz apenas diante da interpretação da lei e dos fatos. Conseguir disponibilizar informações suficientes sobre as principais questões acerca da função jurisdicional que se mostrem essenciais á definição do sistema possivelmente mais adequado de responsabilidade civil a ser aplicado a seus profissionais. Desta forma, desmistificando a irresponsabilidade civil do magistrado por atos culposos, e tentando atenuar, ou ao menos relativizar, uma velha barreira que diz que a responsabilidade civil por atos do poder judiciário seria o último reduto da irresponsabilidade civil do Estado. Por intermédio dessa sistemática, procurar-se-á disponibilizar uma dissertação a mais pragmática possível e com a utilização de pesquisas bibliográfica, descritiva e histórica, retratando a evolução do pensamento jurisprudencial e algumas necessárias discussões acadêmicas, porém, sem se descuidar do necessário aprofundamento nos momentos em que o texto o exigir. Da Irresponsabilidade a Responsabilidade Objetiva do Estado por Atos Jurisdicionais Atualmente, pelo fato de ser evidente a falibilidade do Estado, não podemos mais aceitar a irresponsabilidade civil do Estado como a doutrina e a jurisprudência anterior pregava, e que vigorou durante muito tempo. Era denominada de teoria regalista, feudal ou da irresponsabilidade, onde seu fundamento era o fim básico do Estado, em que um funcionário causando danos a terceiros, fazia-o sob sua própria responsabilidade, e não responsabilizando o ente do qual era preposto. Assim, Os lesados não tinham o direito de interpor ação contra o Poder Público e, num primeiro momento, nem mesmo contra o causador do dano. 31 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano Posteriormente, passaram a dispor da possibilidade de acionar apenas o próprio funcionário causador do dano para reclamar a respectiva reparação, mas jamais contra o Estado, cuja ação quase sempre restava frustrada frente à insolvência do funcionário, que não possuía patrimônio particular suficiente para reparar o dano (NANNI, 1999, p. 98). Constata-se então que, nas constituições brasileiras de 1824 e a de 1891, os agentes do Estado eram direta e unicamente responsabilizados pelos prejuízos provocados por casos de omissão ou abuso no desempenho de suas funções. O Estado nenhuma responsabilidade assumia perante terceiros prejudicados por atos de seus servidores, pois a responsabilidade pecuniária era considerada um obstáculo perigoso á execução de seus serviços. Dessa forma, a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 em seu art. 179, assim declara e inscreve: “[...] XXIX - os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício das suas funções e por não fazerem efetivamente responsáveis aos infratores”. Assim como na Constituição Federal de 1891: Art. 82. Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. Parágrafo único. O funcionário público obrigar-se-á por compromisso formal, no ato da posse, ao desempenho dos seus deveres. É importante expor que, em seguida passou-se a responsabilizar o Estado, com fulcro na teoria civilista subjetiva, segundo os ditames do direito civil, relativo aos atos dos prepostos e mandatários, baseada na culpa. Do art. 15 do então Código Civil, derivou o entendimento de que a teoria da culpa foi implantada como fundamento da responsabilidade civil do Estado ligada, portanto ao caráter subjetivo. Nas Constituições Federais de 1934 e de 1937, passou ser adotada a responsabilidade solidária. O interessado podia mover a ação em desfavor do Estado, do agente público ou de ambos, ou então requerer o cumprimento de sentença contra ambos ou apenas um deles, segundo o seu critério de conveniência e oportunidade. Desta forma a Constituição Federal de 1934 tratava: Art. 171. Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos. § 1º Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte. § 2º Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário público. E de maneira semelhante, a Constituição Federal de 1937 em seu Art. 158, assim declara e inscreve: “Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos”. A partir da promulgação da Constituição de 1946, ocorreu a grande alteração para a responsabilidade objetiva do Estado, introduzida normativamente da seguinte forma: Art. 194. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade causem a terceiros. Parágrafo único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes. 32 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano Sendo assim a responsabilidade estatal passou a ser objetiva, cujas disposições constitucionais foram praticamente reproduzidas na Carta de 1967 (art. 105) e na emenda n. 1 de 1969 (art. 107), ao passo que os funcionários causadores do dano respondiam regressivamente quando tivessem agido com culpa. Finalmente, a Constituição Federal de 1988 assim tratou a matéria: Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecera aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: [...] § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Portanto, adotou a teoria da responsabilidade objetiva e determinando de forma expressa a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público, estendendo-a ás de direito privado, prestadoras de serviços públicos. Colocando também os agentes causadores do dano como responsáveis, quando agirem com culpa ou dolo, vislumbrando-se que o Poder Público responde objetivamente (não se perquire o elemento subjetivo da conduta do agente como pressuposto da responsabilidade estatal; responde o Estado independentemente de terem agido com dolo ou culpa, isto é, objetivamente), deste perante o terceiro lesado, ao passo que os agentes somente podem ser responsabilizados com fulcro na responsabilidade subjetiva, sendo necessária a apuração da conduta do agente e sempre levando em consideração a sua intenção. Entretanto, mesmo sendo determinada a responsabilidade objetiva desde a Constituição de 1946, sustentava-se a irresponsabilidade do Estado pelos atos e omissões dos juízes, sob a fundamentação de que esta adviria da independência da magistratura, da soberania do Estado, e de outros argumentos. O próprio Supremo Tribunal Federal propagou durante muito tempo que o Estado não era civilmente responsável pelos atos do Poder Judiciário, com exceção dos poucos casos previstos em lei, sob o fundamento de que não existe disposição legal específica para tanto (NANNI, 1999). Segue uma das ementas neste sentido: C O N S T I T U C I O N A L - A D M I N I S T R AT I V O - C I V I L – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: ATOS DOS JUÍZES - CF, ART. 37, § 6º. I – A responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. II - Decreto judicial de prisão preventiva não se confunde com o erro judiciário, CF, art. 5º, LXXV, mesmo que o réu, ao final da ação penal, venha a ser absolvido. III - Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido (STF, RE 429518 AgRg/SC, 2ª T., Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 1 28.10.2004). Além disso, apesar de ser incontestável e incontroverso que a Constituição Federal de 1988 reconhece que o Estado é civilmente responsável pelos atos jurisdicionais que causem danos aos particulares, e que a referida Carta Magna não trouxe qualquer limitação no art. 37 no que tange aos atos jurisdicionais, existem ainda argumentos da irresponsabilidade (VENOZA, 2012). O primeiro destes argumentos a favor da irresponsabilidade era a soberania do Poder Judiciário, porém soberano não são os Poderes do Estado, e sim a unidade da República, separada em três poderes por construção política, pragmática, de racionalização das funções e de controle recíproco, de onde se conclui a impropriedade do argumento. 33 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano Apesar do argumento da segurança jurídica, adquirida com a estabilidade da sentença, que impediria a reclamação contra o Estado em uma ação indenizatória por iniciar um novo litígio sobre o caso com decisão já transitada em julgado, esta referida coisa julgada não seria justificativa para impedir ou dificultar a responsabilidade do Estado, já que a responsabilidade não se origina obrigatoriamente em decisões definitivas e imutáveis, pois outras existem, ainda no curso do processo, que podem ocasionar lesão aos sujeitos da relação processual. A falibilidade humana poderia justificar o cometimento de erros pelos magistrados em suas funções típicas, entretanto isso acaba por reconhecer a possibilidade de erros, e consequentemente a responsabilização Estatal, que não pode se furtar a reparação. O risco assumido pelos jurisdicionados, decorrente do funcionamento do aparelho judiciário, também é levantado por alguns, como fundamento da irresponsabilidade, porém as atribuições do Poder Judiciário só pelo mesmo podem ser executadas, consequentemente deve ser responsabilizado pelos danos causados. A independência da magistratura, critério de não submeter os juízes a pressões que possam paralisar a autonomia funcional tornando-os receosos de tomar decisões pelas futuras consequências, também não pode ser considerada um obstáculo a responsabilidade estatal, pois a responsabilidade do juiz advém de previsão legal, e a independência estaria garantida, pois num primeiro momento, a responsabilização seria do Estado e não de seus magistrados. Desta forma, Desenvolveu-se uma doutrina de suporte ao sistema de responsabilidade civil instituído, principalmente, a partir de 1988, por meio de conceituadas opiniões, como as de que só se justificaria uma jurisdição em que o controle do Poder Judiciário pela sociedade e pelos próprios juízes é um requisito da democracia e, além disso, será a garantia de eliminação das ações e omissões, que ocultadas ou protegidas pelo pretexto da preservação da independência, impedem o Judiciário de ser um verdadeiro Poder democrático (DALLARI, 1996, p. 75). Por derradeiro, alguns juristas comentam que a falta de texto legal expresso seria justificativa para não responsabilizar o Estado por atos típicos de seus agentes, o Supremo Tribunal Federal confirmou várias vezes que o Estado não pode ser civilmente responsável pelos atos do Poder Judiciário, salvo quando tiver previsão em legislação formal, pois a aplicação da justiça é fundamento da soberania e essencial a ordem pública e manutenção estrutural do Estado. Entretanto, a própria Constituição Federal traz em seu artigo 37, § 6º, a possibilidade de aplicação geral da responsabilização por qualquer ato ou omissão praticados por qualquer um dos Poderes do Estado e em todas as esferas, sendo por isso sem importância a previsão legal. Além disso, é principio universal de Direito que todo prejuízo, praticado injustamente, deve ser reparado. Desta forma, os argumentos pela irresponsabilidade anteriormente relatados, não possuem respaldo jurídico, consequentemente tratando da relação entre Estado de Direito e responsabilidade, podemos sintetizar: Por tudo isso não cremos que se possa, no moderno Estado de Direito, colocar qualquer dúvida sobre a existência do princípio da responsabilidade do Estado nos casos em que falte texto expresso de lei dispondo sobre a matéria. Igualmente, parece-nos sem fomento jurídico satisfatório buscar apoio em regras do direito privado para sustentar-lhe a espinha dorsal do Estado de Direito (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 478). 34 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano Não se estabelece distinções entre conduta dolosa ou culposa, porque ambas, independentemente da atuação jurisdicional podem ocorrer na esfera civil ou penal, desde que tenham causado dano, originam o dever de indenizar, visto que o art. 5º da Constituição Federal estabelece que “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário”, não fazendo distinção em razão da esfera de atuação do magistrado. Segundo Canotilho (1998), o Estado poderia especificamente ser responsabilizado por atitudes ilícitas dos magistrados, mesmo em situações que não se enquadrem nas de responsabilidade penal ou disciplinar dos mesmos. Assim, No entanto, podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes e outros magistrados quando: (1) houver grave violação da lei resultante de <<negligencia grosseira>>; (2) afirmação de factos cuja inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos, cuja existência resulta indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei; (5) denegação da justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres funcionais (CANOTILHO, 1998, p. 463). Nossos tribunais também reconhecem a responsabilidade civil do Estado pelos atos jurisdicionais: R E S P O N S A B I L I D A D E C I V I L D O E S TA D O - AT U A Ç Ã O D E MAGISTRADO - REPARAÇÃO DE DANOS - INDENIZAÇÃO - 1. A ausência de prequestionamento dos arts. 49, inciso I, da Lei Orgânica da Magistratura e 131 do Código de Processo Civil atrai o óbice das Súmulas 282 e 356/STF. 2. Como o valor da indenização por dano moral é de difícil aferição, o quantum declinado pelo autor na inicial, a título de dano moral, é sempre feito por estimativa, sem que isso desfigure a certeza do pedido. 3. Afastada a indenização por danos materiais, mas concluindo-se pela existência do dano moral, pode o Tribunal fixá-la por estimativa, independentemente do pedido formulado pelo autor, podendo vir a ser fixada em quantum inferior ao requerido, inclusive, sem que isso represente sucumbência parcial. Precedentes. 4. É possível majorar ou reduzir o valor fixado como indenização, em sede de recurso especial, quando entender irrisório ou exagerado, por se tratar de discussão acerca de matéria de direito, e não de reexame do conjunto fático-probatório. Precedentes. 5. Estando a indenização fixada em valor excessivo, deve ser reduzida para o valor certo de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), importância que está em harmonia com o entendimento pacífico desta Corte. 6. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido (STJ, REsp 299.833/RJ (2001/0004193- 0) - 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, DJU 15.12.2006). O Estado como sujeito de direitos que presta a função jurisdicional, tem o dever de reparar os danos causados aos jurisdicionados decorrentes de suas atividades, e esses danos podem se originar de atos ilícitos, comissivos ou omissivos, infringindo o dever de legalidade, bem como se originar de atos lícitos, quando o ato praticado comissivo ou omissivo, causaram prejuízo ao jurisdicionado, e como exemplo típico dessa responsabilidade estatal tem a ocorrência de uma denegação de um pedido de medida liminar em mandado de segurança e o consequente perecimento do direito do impetrante (NANNI, 1999). Assim, El compromiso de “afianzar la justicia” estabelecido em el Preámbulo y el precepto general del derecho alterum nom laedere no admiten excepciones. De allí se sigue que la garantía de independência o imparcialidad no puede constituir um obstáculo AL deber de resarcir a cargo del Estado-juez. La admisión de dicha responsabilidad, aun cuando sea restrictiva y este sujeta – em algunos casos – a ciertos requesitos, ES la saludable tendencia que exhiben diversos fallos em materia de reparación estatal (GUERSI, 2003, p. 68). Desta maneira, é indubitável que o Estado tem o dever de ressarcir os danos provocados por seus representantes e mandatários, pois do contrário seria estimular o erro e a impunidade. 35 Revista Perspectiva Amazônica Responsabilidade Civil do Magistrado no Exercício da Função Jurisdicional Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano O objeto principal deste artigo, a responsabilidade pessoal do juiz, é um assunto pouco analisado em todos os ramos do Direito. Pois é tarefa extremamente difícil responsabilizá-lo, isso porque tentar aplicar sanções e penalidades a tal representante judicial é quase uma afronta ao conceito de justiça tendo em vista que os juízes são considerados, por muitos, como seres superiores que suportam o “peso da justiça” e detêm o poder de decidir questões de extrema importância, além de não falharem em seu ofício, exceto alguns erros de ordem material, que podem ser facilmente corrigidos. Os magistrados, no entanto, não são isentos de responsabilidades por suas irregularidades comportamentais, sendo estranha ao direito, não encontra suporte jurídico, pois a imunidade representaria a própria inversão dos ditames por ele indicados, sob pena de se instaurar uma impunidade. Coerente seria a conciliação da necessidade de exigir a responsabilidade civil dos juízes pelos erros que cometa, com a independência e a autoridade que precisam para exercer suas funções, impedindo vinganças pessoais e manobras vexatórias das pessoas que foram julgadas, ou não deixar os juízes permanentemente expostos ao simples descontentamento da parte vencida, e o foro terminaria por se transformar numa multiplicação exacerbada de ações contra eles. O equívoco é que se tem usado a independência do juiz como escudo para defender a sua irresponsabilidade, principalmente por atos culposos. Trata-se, pois, de uma evasiva, um pretexto para agasalhar o último reduto da irresponsabilidade civil, típico de regimes tiranos e absolutamente incompatíveis com Estados democráticos de direito. Com a possibilidade de responsabilização direta do magistrado ocorre inegavelmente uma pressão psicológica eficaz, pois atinge pessoalmente o magistrado em seu patrimônio, diferente do que ocorre, por exemplo, no sistema de duplo grau de jurisdição e no recursal em que a decisão do juiz é controlada, sem qualquer consequência para o magistrado, salvo as raríssimas hipóteses em que a reforma ou a anulação de uma decisão produza efeitos na esfera disciplinar (FILHO, 1996). Outro aspecto diz respeito sobre em quem incidiria a responsabilização, pois se a ação ou omissão é proveniente de um magistrado de primeiro grau, a questão é incontroversa, mas se for cometido em um julgamento colegiado, surge à controvérsia se existiria a possibilidade de responsabilização. Não podemos generalizar o ato doloso, estendendo-o a todos os membros do colegiado, pois neste caso, quando não for possível individualizar o agente que agiu contra a lei, não se poderá responsabilizar qualquer magistrado de forma individualizada, mas somente o Estado, quando cabível (NANNI, 1999). O principal fundamento legal de responsabilização pessoal do juiz é o Código de Processo Civil, como se observa abaixo: Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte. Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no n. II Sá depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não lhe atender ao pedido dentro de 10 (dez) dias. 36 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano Assim, o art. 133 do CPC, responsabiliza o juiz quando atuar com dolo ou fraude e, de oficio ou a requerimento da parte. Passa o magistrado a ter o dever de reparar o prejuízo ocasionado ao jurisdicionado, mediante apuração em perdas e danos, que engloba tanto os danos emergentes, como os lucros cessantes, e categoricamente, o dano moral. Sempre que possível, deve-se procurar uma readmissão de forma específica e abrangente, ou seja, reconstituindo a situação anteriormente existente, como se o dano nunca tivesse advindo. E este dano pode ser sofrido não só pela parte, mas também por outros sujeitos do processo, como o advogado, procurador, membro do Ministério Público, defensores públicos e pessoas jurídicas de direito público. As primeiras condutas, dolosa ou fraudulenta, podem ser ocasionadas tanto de uma atitude comissiva quanto omissiva, em qualquer tipo de processo ou procedimento, em qualquer fase, e não somente na sentença. O dolo, esta relacionado à violação de um dever de ofício (não necessariamente um proveito pessoal a ser auferido pelo juiz), enquanto a fraude se relaciona a malicia do juiz, com intuito de fraudar a lei ou as partes (envolve uma ligação do juiz com uma das partes ou com terceiro estranho ao processo), mediante engano. Como exemplo, temos quando, por animosidade à parte autora, o juiz denega um pedido liminar, originando prejuízos; ou quando, por omissão, que não se declara impedido em virtude de presunção absoluta de parcialidade (NANNI, 1999). As hipóteses do inciso II, do art. 133, prevê a responsabilização do juiz quando recusa, omiti ou retarda, sem justo motivo, providencia que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte. Esta hipótese será abordada no tópico seguinte de maneira específica. Existe ainda, especificamente, o artigo 49 da LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) praticamente repete o artigo 133 do Código de Processo Civil, apenas substituindo a palavra “juiz” por “magistrado”, consequentemente as considerações feitas são aplicáveis aos dois dispositivos. Porém, a importância específica do dispositivo da LOMAN, está apenas na ampliação da aplicação, da referida responsabilidade, a todos os ramos do direito, como o criminal, militar, eleitoral, e não apenas aos magistrados contidos no regime do Código de Processo Civil. Em todos estes dispositivos legais a referida responsabilidade pessoal do magistrado é flagrantemente diferente da responsabilidade dos demais agentes públicos, pois possui disciplina especial. Ponto importante a ser abordado dentro da responsabilidade civil do juiz, seria determinar a legitimação passiva da ação de reparação de danos. Essa ação não tem o objetivo de intrometer-se na outra ação que originou a conduta faltosa do juiz, que continua inalterável, ainda que passada em julgado, serve a ação contra o juiz apenas para apurar sua atitude contrária ao direito dentro de um processo específico, e não como um substituto recursal para se obter uma reforma do julgado. Desta maneira, o lesado é que deve escolher pela interposição da ação contra o magistrado, com base nos casos previstos em lei, ou somente contra o Estado, que fora das previsões legais não pode acionar regressivamente o juiz, ou ainda contra ambos. Entretanto, se impetrada com base na responsabilidade objetiva do Estado, apenas este pode se enquadrar no lado passivo, não sendo permitida a inclusão do agente no litígio; e quando a pretensão indenizatória é realizada com base em ato doloso ou culposo do agente público, nas hipóteses previstas em lei para responsabilização do magistrado, não há na legislação nenhum obstáculo a cumulação subjetiva da ação, podendo até mesmo o funcionário faltoso ser processado de forma isolada. 37 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano A respeito do tema, podemos expor acertadamente, o seguinte: A pesar de reconocerse en nuestro país - a diferencia de lo que ocurre en otras naciones, com el Brasil - la existencia de una opción para el particular damnificado entre inicial la acción por responsabilidad civil del magistrado o funcionario o por responsabilidad del Estado basada en la culpa o dolo del magistrado o funcionario, la doctrina se ha manifestado en general reacia a la acumulación de ambas acciones. (TAWIL, 1993, p. 188). Infelizmente a regra ainda é que o particular que sofreu o dano provocado pelo juiz deverá impetrar a ação de indenização em face do Estado, e não contra o magistrado. Esse entendimento foi estipulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 327.904, da rel. do Min. Carlos Britto, julgado em 15.08.2006 (Primeira Turma, unânime), bem como no RE 344.133/PE, da rel. do Min. Marco Aurélio, apreciado em 09.09.2008 (Primeira Turma, unânime), arestos em que o Pretório Excelso determinou que a pessoa que suporte o dano não pode ajuizar ação, diretamente, contra o agente público. Responsabilidade Civil do Juiz por Atos Culposos Provavelmente, o ponto mais importante deste artigo seria a difícil caracterização da responsabilidade pessoal do juiz mediante culpa, prevista, num primeiro momento, no inciso II, do art. 133, do Código de Processo Civil, e que abrange a maior parte dos casos de atos ilícitos praticados pelos magistrados. A culpa, na hipótese em análise, decorre da falta de descumprimento do dever legal do juiz (deveres processuais) de determinar as providências referidas no respectivo inciso e de cumpri-los nos prazos legais (art. 35, II, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional - LOMAN, e art. 189, do Código de Processo Civil - CPC). Contudo, a intenção do art. 133 do CPC e do art. 49 da LOMAN não é limitar a responsabilidade civil do juiz, por atos jurisdicionais, às hipóteses de dolo e omissão precedida de interpelação, e sim apenas determinar que, nessas situações, existe a responsabilidade civil direta e pessoal do juiz. E este é o único entendimento compatível com o art. 37, § 6º, do Texto Constitucional, que não exclui os atos culposos em geral, tal como fazem os dispositivos legais em tela. Existe, também, a possibilidade da ocorrência da mora, característica do direito das obrigações, e que se desponta não só por meio da demora, mas também quando a obrigação não for cumprida no tempo, lugar e forma convencionados. Os jurisdicionados possuem o direito, como um credor, de receber a prestação jurisdicional nos prazos fixados em lei, caso contrário será configurado a mora do juiz. Contudo, para que a mesma seja constituída, o dispositivo legal exige prévia interpelação, ou seja, depois que a parte por intermédio do escrivão requerer ao juiz que determine a providência em dez dias, pode então o juiz sanar a obrigação, isto é, purgar a mora. Desta forma, tipificada a hipótese como mora, estamos diante da culpa do juiz, pois esta é incipiente na mora do devedor, como seu requisito subjetivo. Quando a mora do juiz advir de recusa, ou seja, não ocorrendo qualquer manifestação, deve a parte requerer ao mesmo que determine a providência. Se este realizá-la, o problema estará solucionado; se continuar sem se manifestar, estaremos perante uma omissão; e se recusar de forma direta e expressa, terá ainda que se ter ponderação para afirmação de que o juiz responde pelos prejuízos, pois a recusa pode 38 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano advir da livre análise cabível ao magistrado, de que o pedido, por exemplo, não está fundamentado em lei (a ação do magistrado pode basear-se na interpretação que o mesmo atribui à lei em que a parte se fundamenta para pedir a providência). Sendo assim, a recusa, mesmo expressa, não dará lugar a qualquer reparação porque está dentro da liberdade de julgar que possui o juiz, podendo o mesmo avaliar os fatos, as provas e o direito. Ainda, segundo o mesmo jurista, a omissão como fundamento da mora do juiz, significa postergar, deixar de fazer, ou seja, é a inércia do juiz frente ao ato que deveria praticar de ofício ou a requerimento da parte; a ausência no prazo determinado na lei, por si só, já indica a omissão, possibilitando a parte que faça a interpelação do juiz, para uma possível responsabilidade do magistrado; e a última das atitudes do juiz é retardar, demorar, adiar, ou seja, quando a providência for tomada fora do prazo previsto em lei, desta forma tardiamente, onde também bastará o não atendimento no prazo e o pedido de que a providência seja tomada no prazo de dez dias (NANNI, 1999). Como se trata da configuração de culpa, essa aceita causas excludentes de responsabilidade, ou seja, o caso fortuito, a força maior e, especificamente no dispositivo legal em análise (inciso II do art. 133, do CPC), o justo motivo (a prestação se torna incapacitada, não por motivo do devedor, mas por cominação de acontecimento alheio ao seu poder, extingue-se a obrigação, sem que se torne o credor merecedor de ressarcimento). Enfatizando-se que o justo motivo normalmente é o amontoamento de serviços (excesso de processos pendentes de julgamento) no Poder Judiciário e o número insuficiente de julgadores, impossibilitando o juiz de cumprir os prazos processuais. Outro justo motivo seria o fato da própria parte não tomar determinada providência para que o processo tivesse andamento (o que poderia configurar abandono da causa e a consequente extinção do processo sem resolução do mérito), ou seja, neste caso nada pode ser imputado ao magistrado. Apesar desses fatores (justo motivo) serem possíveis, não basta, para inibir a responsabilização, a simples arguição dos mesmos, há absoluta necessidade de sua comprovação, sendo assim, cabe ao julgador da ação de ressarcimento de danos, verificar se o justo motivo foi determinante para que aquela providência reclamada não tenha sido tomada no prazo legal. E sempre devemos levar em consideração que mesmo reconhecido o justo motivo para inibir a imputabilidade frente ao juiz, este não será argumento para livrar a responsabilidade do Estado, que é objetiva e assim não admite dispensa (NANNI, 1999). Nas situações de denegação de justiça por parte do juiz, seja quando o juiz nega a aplicação do direito, ou quando descuida propositalmente o desenvolvimento de um processo, ou ainda, quando recusa, omite ou se atrasa no cumprimento de ato de ofício, transcorrido o prazo legal, temos de relatar que, se a demora ocorre por conta exclusiva da negligência do juiz, a responsabilidade é deste, e passível de sanções pecuniárias, administrativas e penais, sem prejuízo do disposto no art. 133, II, e parágrafo único, do Código de Processo Civil. Mas se a procrastinação se dá por culpa do juiz e da falta do serviço, como comumente ocorre, responde o Estado, com ação regressiva em desfavor do magistrado 39 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano descuidado. Entretanto, com relação ao magistrado, é admitida a exclusão de sua responsabilidade (quando existir justo motivo), enquanto que com relação ao Estado a morosidade não admite a escusa, pois determinado o dano e a ausência de decisão num prazo razoável, decorre o dever estatal de repará-lo. Outro ponto a ser examinado é a responsabilidade do juiz pelo descumprimento de seus deveres legais previstos nos ordenamentos jurídicos (Constituição Federal, Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Código de Processo Civil, Lei de Organização Judiciária, Resoluções do Conselho Nacional de Justiça), ou seja, cominações de comportamento que se não cumpridas caracterizam ato ilícito e, se causar danos a outrem deve ser indenizado. Este assunto é pouco abordado por estudiosos e juristas, pois sempre atenta-se para os deveres do juiz como um dever interno relacionado unicamente ao Poder Judiciário (comumente fala-se em sanção disciplinar), porém, a observância desses deveres pelo magistrado estende-se em relação a todos os jurisdicionados e sujeitos processuais, como as partes, os advogados, os membros do Ministério Público, as testemunhas, etc. (NANNI, 1999). A responsabilização pelo descumprimento de seus deveres refere-se à responsabilidade subjetiva, com a necessidade de demonstração de que o magistrado agiu com dolo ou culpa. A configuração do dolo seria a vontade de violar um dever, conscientemente o juiz obrou contra o direito, infringindo um dever jurídico. Entretanto para o enquadramento quando na modalidade culposa, seria a inobservância do comportamento que deveria ser seguido nas relações da vida em sociedade, ou seja, segundo parâmetros sociais ou profissionais de conduta. Para apurar a infringência dos deveres do juiz na modalidade culposa, temos que adotar um juízo crítico de graduação de culpa, definindo-se quando seria possível, com maior ou menor intensidade, a configuração de sua responsabilidade. Desta maneira teríamos a culpa leve como violação de uma diligência ordinária, e a culpa grave como violação de uma diligência mínima (ou seja, a não observação de regras básicas de uma dada atividade profissional; uma ignorância inescusável ou uma falta de diligência que ultrapassa totalmente o limite normal, distinguindo-se do dolo pela falta de intenção). Porém, a culpa do juiz, dada a especialidade de sua função que apresenta dificuldade singular, somente geraria responsabilidade no caso de culpa grave, e, além disso, é impossível determinar previamente quando ocorrerá este grau de culpa (esta verificação dependerá de cada caso em concreto submetido ao julgador, devendo ser provada e quantificada para dar condições a eventual reparação de dano causado). Igualmente corrobora com esse entendimento, a importante e necessária análise de Canotilho (1998), que pondera sobre a responsabilidade dos magistrados em vários países, e concorda com a obrigação de indenização na ocorrência de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade, e nas hipóteses de erro judiciário, onde o Estado-juiz pode e deve ser responsabilizado em outras hipóteses de culpa grave (conduta gravemente negligente), quando resultassem prejuízos consideráveis aos particulares. Entretanto, o mesmo doutrinador, adverte sobre a necessidade de cautela (onde devem ser afastados de plano os casos de responsabilização por atos de interpretação das normas jurídicas, e na valoração dos fatos e das provas), caso 40 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano contrário, existiria a possibilidade de paralização do funcionamento da justiça ou de atingir consideravelmente a independência dos magistrados. Dentro desses casos, temos primeiro o dever do juiz que é cumprir a lei. Desta forma, uma decisão que claramente contraria a lei configuraria uma grave violação de seu dever, realizada sem um mínimo de diligência que deve ser exigida do juiz (profissional preparado, letrado, concursado, etc.), não se admitindo tal comportamento, provocando a obrigação de ressarcir possíveis prejuízos provocados em razão da decisão, configuraria a culpa grave. Seriam os mais graves e inescusáveis erros de direito, como a aplicação de normas claramente declarada inconstitucional ou revogada, e até mesmo, casos de interpretação jurídica incontrovertidamente sem fundamento. Como exemplo, poderíamos citar o caso de um magistrado aplicar os dispositivos da Lei n. 6.649/79, que cuidava das locações de imóveis urbanos, a um contrato de locação de hoje, que é regido pela Lei 8.245/91. Um fato a ser analisado é a existência de erro grosseiro quando o magistrado se utiliza de uma interpretação de lei revogada ou ab-rogada por um Tribunal Superior, mas que outro Tribunal aplique. De fato, os magistrados têm de ser livres na interpretação da lei, porém isso não significa que podem atuar arbitrariamente, pois assim seriam verdadeiros opressores e não agiriam em favor da sociedade, que é seu dever, dever do Estado-Juiz (LASPRO, 2000). Outra hipótese de responsabilidade do juiz em razão do descumprimento de seus deveres, importante de ser comentada, é o dever do magistrado de tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, previsto no inciso IV, do art. 35, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, conduta conhecida hodiernamente por “juizite”. Não podendo assim fazer menção pessoal, seja quanto a suas qualidades, defeitos, ações, etc., ou, ofensa moral, podendo ser configurado não só o dano material, mas também dano moral. Mesmo que a legislação não aborde o assunto com maior propriedade, definitivamente percebemos que a doutrina majoritária, e parte da jurisprudência, entendem que, ao menos, nos casos de culpa grave há a responsabilização do magistrado. E tem entendido o Supremo Tribunal Federal em matéria trabalhista a equiparação da culpa grave ao dolo, proferindo a súmula 229 e julgados nesse sentido, conforme jurisprudência verbis: RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. CULPA GRAVE EQUIPARAÇÃO AO DOLO. SÚMULA 229--STF. TENDO-SE COMO HAVENDO OCORRIDO CULPA GRAVE DO EMPREGADOR NO ACIDENTE DO TRABALHO, DE QUE RESULTA MORTE, E TENDO SIDO O EVENTO POSTERIOR A LEI N.5316/67, APLICA-SE A JURISPRUDÊNCIA CONSUBSTANCIADA NA SÚMULA 229-STF, SEM EXAME ANTE A LEI N. 6367/76, AINDA NÃO VIGORANTE A ÉPOCA. (STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 107774 SP. Relator (a): ALDIR PASSARINHO. Julgamento: 30/05/1986. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJ 27-06-1986 PP-11620 EMENT VOL-01425-03 PP00545). Sendo assim, por analogia ao que entende o Supremo Tribunal Federal em matéria trabalhista, e utilizando esta decisão em matéria de responsabilidade civil pessoal do juiz, já que o respectivo Tribunal entende ser a culpa grave análoga ao dolo, este é condição para a responsabilização do magistrado. Desta forma, estaria também, de outro modo, individualizada a responsabilidade do magistrado quanto a atos negligenciados, imprudentes e de imperícia em situações de culpa extremada. 41 Revista Perspectiva Amazônica Considerações Finais O Estado inicialmente era tido como irresponsável por atos ou omissões de seus agentes e representantes, incluindo os membros do Poder Judiciário. Com o decorrer do tempo, este entendimento foi suplantado, passando-se por várias teorias até chegar-se à teoria do risco, a qual serviu de base para a responsabilidade objetiva. No Brasil, hodiernamente, os textos constitucionais adotam a teoria da responsabilidade objetiva do Estado desde a Constituição Federal de 1946, com previsão na atual Constituição no art. 37, § 6º. Fundamentalmente a liberdade de julgar deve continuar inabalável, porém, um ato praticado mediante culpa, contrário à lei, infringindo o dever jurídico do magistrado, indubitavelmente ocasiona a sua responsabilidade pessoal, e não apenas a do Estado, não tendo nenhum respaldo a alegação da coisa julgada, da falibilidade humana, da independência do juiz e da ausência de normas específicas como obstáculos encontrados para a esta referida responsabilização e a consequente criação de uma fundamentação jurisprudencial nesse sentido. Sendo acertado, com base nos fatos e argumentos levantados, defender a responsabilização do magistrado também nas hipóteses culposas, que não se limitam às elencadas no inciso II, do art. 133, do Código de Processo Civil, onde a realização meramente culposa do juiz ocorre quando este viola o seu dever de profissional de diligência. Desta forma, segundo Nanni (1999), é insuficiente até mesmo o duplo enquadramento da responsabilidade civil do juiz apenas nas hipóteses dos artigos 133 do Código de Processo Civil e 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, corroborando injustificadamente com a irresponsabilidade, pois a aplicação prática desses dispositivos não se mostra factível, vez que, enquanto são poucas as hipóteses de dolo do magistrado, muitas são as situações em que a conduta negligente ou imprudente do magistrado termina por causar dano injusto aos jurisdicionados. Sendo assim, provada a negligência ou imprudência do juiz, e independentemente de prévia interpelação, a vítima deve demandar o Estado ou diretamente o próprio magistrado, ou mesmo ambos. São as hipóteses de culpa que formam a maior motivação para se aprofundar a análise, critica e consequentemente o desenvolvimento da responsabilização pessoal do referido profissional. Constantemente percebemos o aprimoramento do instituto da responsabilidade civil, em relação à responsabilização do Estado por erro judicial por meio de lei, teoria e julgados já proferidos nesse sentido, e também quanto à responsabilização do magistrado (seja qual for a atitude errada, para reparar o dano causado, e se colocar um limite nos comportamentos do mesmo enquanto ser humano e passível de erros) consoante a lei em casos de culpa grave ou dolo, sempre analisando novos entendimentos que surgem no sentido de expandir esse rol de responsabilização, visando equiparar a profissão às demais profissões, do ponto de vista de democracia e igualdade social. Excelente conclusão é tomada por Zaffaroni (1992), quando defende que a ciência jurídica latino-americana deveria aprofundar a análise da estrutura institucional do Poder Judiciário, e esse Poder deveria ser menos ausente nos estudos e pesquisas realizados nas universidades, ampliando assim a investigação sociológica dos magistrados e suas funções sob a perspectiva politica. Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano 42 Revista Perspectiva Amazônica Ano43N° N°86 p.30-43 p.XXX Ano O Poder Judiciário precisa de uma nova estruturação e ampliação, melhoras que permitam a agilidade da prestação jurisdicional (ao menos o cumprimento dos prazos previstos em lei), principalmente em uma sociedade que recorre cada vez mais às portas desse Poder. Além disso, o aprimoramento doutrinário e jurisprudencial constante dos nossos magistrados é um ponto essencial para um melhor exercício de suas funções. Deste modo, não permitindo que se conspurque esta vital atividade, e ao mesmo tempo preservando-a como requisito obrigatório para almejarmos uma vida mais digna e justa. Observa-se, entretanto, que é necessário resguardar também o próprio julgador, que necessita de independência e autonomia para realizar seu ofício, desta forma a jurisprudência deve levar em conta as causas excludentes de responsabilidade como o caso fortuito, a força maior e o justo motivo, além das possíveis condutas de má-fé dos possíveis lesados que busquem acionar o juiz somente com a intenção de prejudicá-lo, ou quando absolutamente infundadas, aplicando nestes casos, as penas processuais cabíveis. Finalmente, é fundamental a busca pelo balanceamento entre independência e responsabilidade, para conseguirmos punir os magistrados imprudentes. Sendo importante que os jurisdicionados, percam o receio no insucesso da demanda e busquem a responsabilização dos faltosos (mesmo nos casos de conduta culposa), criando limites no atuar do juiz, pois também é ser humano passível de falhas, e estas obrigatoriamente devem ser reparadas. Desta forma, exigindo a compensação pelos prejuízos cunhados, e consequentemente, a própria evolução, engrandecimento e aprimoramento da função judicial. Referências BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. Ed. Malheiros: 2013. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 1998. DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996. FILHO, José Carlos A. Almeida. A Responsabilidade Civil do Juiz. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996. GUERSI, Carlos A., Responsabilidad de los jueces y juzgamiento de funcionarios. Bs. As., Astrea, 2003. LASPRO, Oroeste Nestor de Sousa. A responsabilidade civil do Juiz. Revista dos Tribunais: 2000. NANNI, Giovanni Ettore. A responsabilidade civil do Juiz. 1. ed. São Paulo: Max Limonad, 1999. TAWIL, Guido S. La Responsabilidad Del Estado y de los magistrados y funcionários judiciales por El mal funcionamiento de La administración de justicia, Bs. As., Depalma, 1993. VENOZA, Silvio Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Dimensión Política de um Poder Judicial Democrático. In: Seminario Sobre Reforma Judicial en el Ecuador, ciudad de Guayaquil. 1992. 43 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Estudos sobre os Impactos das Enchentes na Economia do Município de Santarém, Estado do Pará, em 2014 José de Lima Pereira * RESUMO Este estudo tem como objetivo avaliar os impactos das enchentes na economia do município de Santarém, no Estado do Pará, em 2014, bem como mensurar os prejuízos causados pelas constantes inundações a toda sociedade, incluindo-se os setores produtivos (empresários e profissionais liberais) e os consumidores, aqui representados por um universo de 125,3 mil domicílios. O estudo tem como base a “Teoria do Desenvolvimento Econômico”, que dispõe sobre a oferta e a demanda por produtos e serviços em época de enchentes no município. A metodologia escolhida foi a pesquisa de dados primários e secundários, a partir do método Heurístico com amostra de 174 agentes econômicos que foram entrevistados no período de 05 a 25/04/2014, com nível de confiança de 97,31%. O instrumento utilizado foi o questionário estruturado com sete perguntas objetivas e um grupo de questões que teve como alvo definir o perfil dos entrevistados por setor da economia, segmento, classe econômica e renda e/ou receita mensal. O estudo foi desenvolvido com o uso de planilhas, gráficos, imagens das atuais enchentes e a análise de dados, a partir de uma série de dados e apresenta como resultado, um prejuízo econômico para a população de R$ 308,7 milhões em 2014. Palavras-chave: enchente - impactos - economia - município ABSTRACT This study aims to evaluate the impact of the floods on the economy Santarem, Pará State, in 2014, as well as measure the damage caused by the constant flooding the entire society, including the productive sectors (businessmen and professionals) and consumers, here represented by a population of 125.3 thousand households. The study is based on the “Theory of Economic Development”, which deals with the supply and demand for products and services in times of flooding in the city. The methodology chosen was the research of primary and secondary data from the heuristic method with a sample of 174 economic agents who were interviewed between 04/05-25/2014, with a confidence level of 97.31%. The instrument used was a structured questionnaire with seven objective questions and a group of questions that targeted define the profile of respondents by sector of the economy, industry, economic class, and monthly income. The study was conducted with the use of spreadsheets, graphs , images and analysis of the current flood of data from a dataset and has as a result, an economic harm to the population of US$ 129.7 million in 2014 . Keywords: flood impacts - economics - city *Mestre em Economia (UNAMA) e aluno especial do doutorado em Desenvolvimento Regional (NAEA/UFPA); Conselheiro do Conselho Federal de Economia (COFECON); Pesquisador de desenvolvimento econômico regional; professor de pós graduação de Instituições de Ensino Superior (IES) como UEPA, UFMT, ULBRA e UNAMA; Secretário Executivo e Pesquisador do CEAMA; Diretor do Instituto de Gestão e Tecnologia (IGT); Perito Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Comarca de Santarém. Email: [email protected]. 44 Revista Perspectiva Amazônica Introdução As enchentes com inundações em áreas urbanas são uma constante em muitas cidades brasileiras e as causas são variadas como assoreamento do leito dos rios, impermeabilização das áreas de infiltração na bacia de drenagem ou mesmo os fatores climáticos. Os governos por sua vez procuram combater os efeitos de uma cheia nos rios, construindo represas, diques, ou mesmo desviando o curso natural dos rios e mesmo com todo esse esforço, as inundações continuam acontecendo, causando prejuízos de vários tipos com impactos significativos na economia. Segundo Dourojeanni (2014) as enchentes com inundações sem precedentes nas bacias do rio Amazonas e Tapajós podem ter sido influenciadas pela mudança climática e os seus efeitos podem ou não ter sido agravados pelas grandes centrais hidroelétricas. Ainda segundo ao autor, o que vem ocorrendo todo ano na Amazônia são enchentes e estiagens cada vez mais fortes em consequência do crescente desmatamento nos Andes ocidentais, ou seja, na Bolívia, Peru, Equador e Colômbia e, claro, no próprio Brasil. Em Santarém como nas demais cidades da Amazônia, no decorrer dos anos, a gestão pública não tem incentivado a prevenção destes problemas, já que à medida que ocorre a inundação o município declara estado de calamidade pública e recebe recursos a fundo perdido que não há a necessidade de realizar concorrência pública para gastar. Para se resolver o problema da zona urbana da cidade, se faz necessário implementar medidas não-estruturais que demandam da interferência em interesses de proprietários de áreas mais baixas e de risco, que politicamente é complicado a nível local e regional. Enquanto isso não acontece, percebe-se que os impactos sobre a população e a economia dos municípios da região no decorrer dos anos, vem sendo causados, geralmente, pelas ocupações inadequadas dos espaços urbanos, o que contemplaria imediatas mudanças nos Planos Diretores das cidades com restrições a loteamentos com áreas de riscos de inundações, restrições à invasões de áreas ribeirinhas, que pertencem ao poder público, pela população de baixa renda, além das ocupações de áreas de alto risco, que sofrem com mais frequências, com prejuízos significativos e que, por cadeia, acabam afetando toda a economia local. Além dos prejuízos econômicos ao município, que neste estudo se chegou a R$ 308,7 milhões em: perdas de postos de trabalho, perdas de estoques de mercadorias das empresas, redução drásticas no nível de vendas, elevação do índice de inadimplência, dificuldades de abastecimentos além de outros, outros prejuízos sociais mais significativos também foram contabilizados, dentre os quais: perdas materiais e humanas, interrupção das atividades econômicas nas áreas inundadas, contaminação por doenças de veiculação hídrica (leptospirose, cólera, diarreias e outras) e a contaminação da água pela inundação de depósitos de material tóxico na agricultura, estações de tratamentos de água, além de tantos outros. Foi em busca de se conhecer, de forma científica, toda a problemática das Ano 4 N° 8 p.44-60 45 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 inundações em Santarém que as entidades: ACES, CDL e SINDILOJAS se uniram para mensurar os reais impactos das enchentes na economia do município e assim poder dividir com a população e o poder público municipal, as consequências, seus efeitos e o tamanho do prejuízo à toda população. O Estudo foi realizado na zona urbana do município de Santarém com entrevistas diretas com 174 agentes econômicos (empresário, profissionais liberais e consumidores) no período de 05 a 25/04/2014. O nível de confiança da pesquisa chegou a 97,31% e o método utilizado foi o Heurístico. Contextualização Problemática As constantes elevações das águas dos rios Tapajós e Amazonas tornou-se motivo de preocupação para centenas de famílias que residem em comunidades localizadas nas zonas de várzea, nas áreas mais baixas do zona urbana de Santarém causando impactos significativos na economia do município. Se por um lado os ribeirinhos temem ser afetados pela enchente da mesma forma como aconteceu no ano de 2009 quando foi registrada a maior cheia da região, onde muitas propriedades foram alagadas, afetando diretamente a agricultura e a pecuária, por outro, empresários do setor produtivo já começam a contabilizar prejuízos com perda de estoque de mercadorias, perda de negócios e a consequente redução nas vendas, elevação das taxas de inadimplência, gastos com mudanças de endereços ou com investimentos em obras emergentes contra cheias, dificuldades de abastecimento, demissão de pessoal e a elevação dos preços provocando maior taxa de inflação. Com a proposta de buscar solução para amenizar o problema das enchentes e seus impactos causados na economia do município, as entidades: ACES – Associação Comercial e Empresarial de Santarém, CDL – Câmara de Diretores Lojistas de Santarém e SINDILOJAS – Sindicato do Comércio Lojista de Santarém, entidades importantes que representam o setor produtivo da economia de Santarém e região, se uniram em busca de entender as reais consequências das enchentes na vida de empresários, profissionais liberais e consumidores do município, através de um estudo que apresentasse toda problemática e seus impactos e também servisse de base para uma tomada de decisão e implementação de políticas públicas. Para que se possa conhecer um pouco mais das três entidades que representam as classes de empresários do município e região, abaixo uma síntese descritiva da ACES, CDL e SINDILOJAS: ACES – ASSOCIAÇÃO COMERCIAL E EMPRESARIAL DE SANTARÉM, entidade com 69 anos de atividades ligadas no apoio e ao desenvolvimento do setor produtivo de Santarém e da região Oeste do Pará, que conta com mais de 500 associados e que representa 59,3% do Produto Interno Bruto Municipal e 18,6% do PIB regional, e que tem como foco dar encaminhamento às medidas para fortalecer e ampliar a economia, contribuindo para o ambiente de negócios e atraindo novos investimentos para os municípios; (i) CDL – CÂMARA DE DIRIGENTES LOJISTAS, entidade associativa de lojistas de Santarém que tem como objetivo defender e prover serviços os seus representantes como o serviço de proteção ao crédito além de outros. A CDL Santarém está ligada à Federação Nacional dos Dirigentes Lojistas e hoje 46 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 representa mais de 30% do PIB Municipal e é também responsável pela maior parte da geração de emprego e renda do segmento comercial do município e; SINDILOJAS – SINDICATO DO COMÉRCIO LOJISTA DE SANTARÉM, entidade de 24 anos que tem a missão de fortalecer a categoria lojista do município, contribuindo para o desenvolvimento e a consolidação do comércio local com trabalhos voltados para a modernização do setor e que hoje representa mais de 27% do PIB Municipal, além de ser o principal fomentador de emprego e de renda do município. Ainda prospectando sobre as enchentes de 2014, a Coordenadoria Municipal de Defesa Civil (COMDEC) vem informando do beneficiamento de madeira em tora doada pelo Instituo Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) ao município de Santarém para atender as comunidades ribeirinhas com alagamento de suas casas em decorrência das enchentes para que as famílias possam levantar os assoalhos das casas atingidas pelas águas. Por outro lado, no início desta semana, a Agência Nacional de Águas (ANA) revelou que o nível do rio Tapajós em Santarém atingiu medidas próximas as das enchentes de 2009 e a tendência é que as águas continuem subindo (Figura 1). Imagem das cheias na Av. Tapajós em Imagem das cheias em Alter do Chão em Santarém. Santarém. Maromba utilizada pra salvar o gado das Agricultura invadida pelas águas nas enchentes. enchentes. Águas invadindo o centro comercial de Ponte improvisada de madeira nas atuais Santarém. cheias. Imagem das cheias no Rio Ituqui em Cheias na Av. Tapajós Santarém. Fonte: CEAMA (2014) Figura 1 –Conjunto de imagens das cheias em Santarém 47 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Diante do atual cenário e atentando para o fato de não se ter solucionado de forma permanente o problema que persiste há muito tempo, e levando-se em conta a situação de penúria por que passa a sociedade santarena em decorrência das enchentes, as perguntas que se fazem são as seguintes: Que prejuízos já estão sendo contabilizados na economia do município de Santarém? Quem são os mais afetados pelas enchentes em Santarém? Qual o tamanho dos prejuízos causados às empresas, profissionais liberais e aos domicílios (consumidores) na economia do município? Metodologia Para responder a estas perguntas, foi necessário utilizar-se de uma seleção de procedimentos metodológicos, dentre os quais: Local da pesquisa A pesquisa foi desenvolvida entre empresas e consumidores em domicílios na zona urbana de Santarém, município que possui área 17.901,51 km², com população de 288.462 hab. (IBGE, 2014), Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 3,219 bilhões em 2013 (CEAMA, 2014, apud SEPOF/PA 2014). SANTARÉM Área: 17.901,51 km² (já excluindo Mojuí dos Campos); População: 288.462 habitantes; Demografia: 70,3% na zona urbana e 29,7% na zona rural; PIB: R$ 3,219 bilhões (p.m.); PIB Per capita: R$ 11.159,18; Renda per capita: R$ 6.161,91 Setor Primário (agricultura, pecuária e extrativismo): 35,01%; Setor Secundário (indústria de transformação): 14,85%; Setor Terciário (comércio e serviço): 50,14%. Localização: Oeste do Estado do Pará; Situação: cidade polo que centraliza a economia de 26 outros municípios totalizando 1,4 milhão de habitantes; Domicílios: 125.250 unidades, 4.656 obras em andamento; 16 instituições de ensino superior com 33.312 alunos matriculados em 69 cursos sequenciais, graduação e pós-graduação; 76.830 alunos nos ensino médio (normal e técnico); 11.918 micros e pequenas empresas; 1.073 médias e 119 grandes empresas; 2.589 profissionais liberais; 643 órgãos públicos (incluindo as escolas Fonte: CEAMA (2014) municipais). Figura 2 –Dados macroeconômicos e de localização de Santarém 48 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Hoje o município conta com 16 instituições de ensino superior que juntas somam 33.312 alunos matriculados em 69 cursos (INEP, 2014) e mais 76,8 mil alunos nos ensinos técnico, médio e fundamental (INEP, SEDUC/PA e SEMED, 2014). Tem 125.250 domicílios (CEAMA, 2014), 4.656 obras em andamento (CREA, 2014), frota de 74.419 veículos, 31.358 motocicletas, 1.584 máquinas e implementos agrícolas, 11.311 embarcações registradas no Ministério da Marinha (MM) e 26.995 não registradas entre grandes e pequenas. A cidade é considerada o polo da economia regional do Oeste do Estado do Pará. É o segundo município mais importante do Pará e o principal centro socioeconômico do oeste do Estado. Pertence à mesorregião do Baixo Amazonas e à microrregião homônima. Situa-se na confluência dos rios Amazonas e Tapajós. Está localizado à meia distância entre as principais capitais da Amazônia (Belém e Manaus), distando aproximadamente 800 quilômetros em linha reta. Poeticamente é conhecida como “Pérola do Tapajós”. Foi fundada em 22 de julho de 1661, sendo então a segunda cidade mais antiga do norte do país (atrás apenas de Belém). Em 1758 foi elevada à categoria de vila e quase um século depois em consequência de seu notável desenvolvimento foi elevada à categoria de cidade em 1948. Está incluída no plano das cidades históricas do Brasil. Universo de amostra O universo da pesquisa compreende a totalidade de micro, pequenas empresas, os micros empreendedores individuais (11.918), as médias empresas (1.073), as grandes empresas (119), os profissionais liberais (2.589) e os domicílios (125.250) – Tabela 1. Item 1 2 3 4 5 Descrição Micro e pequenas empresas Médias empresas Grandes empresas Profissionais liberais Domicílios TOTAL Universo 11.918 1.073 119 2.589 125.250 140.949 Web (%) 8,46 0,76 0,08 1,84 88,86 100,00 Amostra 90 8 4 11 61 174 % 51,72 4,60 2,30 6,32 35,06 100,00 Fonte: CEAMA (2014) Tabela 1 –Universo de amostra da pesquisa A amostra foi definida levando-se em conta o universo da população por segmento econômico, com índice de 97,31% de confiabilidade, distribuídos em: 90 micros e pequenas empresas (51,72%); 8 médias empresas (4,60%); 4 grandes empresas (2,30%); 11 profissionais liberais (6,32%) e 61 domicílios representados por pessoas físicas (35,06%), totalizando 174 entrevistados. A Equação 1 definiu o número de entrevistados de cada segmento com margem de erro de 2,69%: 2 é ù N .P.Q. Za / 2 ) n=ê 2ú 2 ë (N - 1)e + P.Q.(Za / 2 ) û (1) 49 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Onde: n = tamanho da amostra; N = tamanho da população; P = proporção de casos de interesses observados na população; Q = 1 – P. Quando P é desconhecido, utilizando a proporção de 50% (P = 0,5); Zα/2 = nível de confiança; ɛ = margem de erro (2,69%). Período de realização da pesquisa A pesquisa foi realizada no período de 05 a 25/04/2014, na zona urbana do município, por cinco pesquisadores, com a coordenação do Pesquisador e Economista José de Lima Pereira. Instrumento O instrumento de coleta de dados na realização da pesquisa de campo foi o “Questionário”, estruturado com 07 perguntas objetivas, com hipóteses prováveis aos anseios dos agentes econômicos do município (segmentos produtivos dos três setores da economia compreendendo os consumidores), com informações importantes que viessem oferecer as respostas necessárias ao estudo (Figura 3). ITENS 01 02 03 04 05 06 07 TEMAS CENTRAIS DO QUESTIONÁRIO Setor, segmento, classe, renda e/ou receita mensal dos agentes econômicos; Ocorrência de prejuízos causados por enchentes em Santarém; As cheias e os impactos destas na economia do município em 2014; Os reais impactos das cheias para a economia do município em 2014; As perspectivas de prejuízos causados pelas cheias em 2014; A importância do estudo; Observações importantes. Figura 3 –Assuntos componentes da estrutura do questionário Métodos Para o estudo que teve como foco “Os impactos das cheias na economia do município de Santarém em 2014”, levou-se em conta os aspectos históricos e a correlação destes com os dados estatísticos, de forma primária e secundária, a partir do número de entrevistados, permitindo-se assim o entendimento do fenômeno das cheias e seus impactos em Santarém, projetando assim perspectivas para uma solução definitiva para as áreas baixas na sede do município e as expectativas para um novo cenário na economia com a retomada de seu crescimento econômico. 50 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Histórico Método que consistiu investigar os fatos e acontecimentos ocorridos pelos impactos das cheias na economia do município, verificando-se possíveis projeções de sua influência no cenário local e regional. O referido método ofereceu ainda a possibilidade de análise da organização da sociedade e das instituições permitindo-se entender a dinâmica histórica de sua evolução, transformação e supressão das atividades econômicas de extrema importância ao desenvolvimento da sociedade que em determinada época do ano, muda o trânsito e as rotinas de milhares de consumidores e das empresas de uma forma em geral; atormenta a vida de empresários com a elevação do índice de inadimplência, maiores investimentos em infraestrutura interna, queda nas vendas, desligamento involuntário de pessoal além de outros tormentos. Estatístico Método que se aplicou ao estudo a partir dos fenômenos aleatórios, especialmente nos conjuntos de procedimentos apoiados em teorias de amostragem e, como tal, indispensáveis no desenho do cenário na época de enchentes, dando-se aspectos relevantes da realidade local e regional, objeto pretendido para medir o grau de correlação entre dois ou mais fenômenos: o atual momento por que passam consumidores e ofertantes de bens e serviços, a partir de dados primários, com amostragem de 174 entrevistados ligados aos segmentos produtivos, profissionais liberais e à sociedade em geral, projetando-se um erro padrão de 2,69%. Análise de dados Para análise dos resultados, foram utilizados mapas geográficos, tabelas e gráficos estatísticos com dados comparados, que foram fundamentais na observação dos dados, demonstrando-se com clareza as respostas decorrentes da insatisfação dos empresários e consumidores de Santarém e região em época de grandes cheias. Mensuração dos prejuízos Para medir os custos com investimentos em infraestrutura interna, perda no volume de negócios, de estoques, inadimplência e os reais prejuízos decorrentes das constantes cheias no município e região, utilizou-se a Equação 2, que teve como suporte básico os dados absolutos dos agentes econômicos em número de frequências e os valores médios (média geométrica) de seus respectivos prejuízos de cada agente, sendo: δ = ? (F . β) (2) Onde: δ = Prejuízo com enchentes (em R$); F = Frequência do prejuízo por segmento econômico; β = Média geométrica dos prejuízos dos agentes econômicos. 51 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Resultados Os resultados do estudo estão analisados com base nos dados da pesquisa de campo no período de 05 a 25/04/2014, tendo como parâmetro a distribuição da amostra por setor, por segmento, por classificação de atividade e por receita e/ou renda mensal. As análises foram definidas em dados quantitativos e qualitativos, tendo como foco o valor médio dos prejuízos em decorrência das enchentes; os quantitativos das frequências; os investimentos em infraestrutura interna e/ou prejuízos financeiros inerentes aos impactos das enchentes na economia do município e o grau de importância do estudo. Distribuição da Amostra Entre os 174 entrevistados na pesquisa, 58% pertencem ao setor terciário da economia, empresas ligadas ao segmento comercial, de serviço e domicílios; 28% referem-se às atividades do setor primário (agricultura, pecuária e extrativismo) e 14% são ligadas ao setor secundário (indústria de transformação), Figura 4. Fonte: CEAMA (2014) Figura 4 –Distribuição da amostra por setor da economia Entre os entrevistados, 23% são do segmento de empresas comerciais e de serviços, incluindo os bancos; 35% formados pela mostra de domicílios; 11% de empresas e/ou pessoas ligadas à pecuária; 15% à agricultura; 2% de empresas ligadas ao extrativismo (pedra, seixo, fibras etc.) e 14% às indústrias de transformação (Figura 5). Fonte: CEAMA (2014) Figura 5 –Distribuição da amostra por segmento da economia 52 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Levando-se em conta a classe econômica, 35% dos entrevistados foram de domicílios; 52% de micro e pequenas empresas do mais diversos segmentos da economia local; 5% referente à mostra de médias empresas; 6% de profissionais liberais e de grandes empresas e 2% de órgãos públicos (Figura 6). Fonte: CEAMA (2014) Figura 6 –Distribuição da amostra por classe da economia Frequência de Prejuízos Econômicos com as Enchentes Entre os entrevistados e levando-se em conta a margem de erro de 2,69% sobre os resultados, 91% afirmaram que tiveram prejuízos com as enchentes nos últimos anos; 7% da amostra se manifestaram não terem tido prejuízos e 2% dos entrevistados foram indiferentes ou não quiseram responder (Figura 7). Fonte: CEAMA (2014) Figura 7 –Prejuízos com as enchentes nos últimos anos Impactos das Enchentes na Economia Segundo os entrevistados, 90% disseram que as cheias de 2014 já estão causando impactos na economia do município, com prejuízos significativos; 8% disseram que ainda não tiveram qualquer tipo de prejuízo e 2% foram indiferentes ou não quiseram responder (Figura 8). 53 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Fonte: CEAMA (2014) Figura 8 –Prejuízos com os impactos das enchentes em 2014 Entre os agentes econômicos entrevistados que admitiram prejuízos com as enchentes, 14,29% disseram ter a redução das vendas (e/ou compras) como um dos principais problemas causados com as cheias em 2014; 13,84% apontaram a inadimplência de seus clientes e, por conseguinte, junto aos seus fornecedores; 11,27% apontaram perda de negócios; mais de 9% apontaram perda parcial e/ou total de bens móveis, dificuldades de abastecimento e ociosidade de pessoal; mais de 6% apontaram gastos com proteção de enchentes, perda de estoque de mercadorias e perda parcial e/ou total de bens imóveis (Figura 9). Figura 9 –Principais prejuízos com os impactos das enchentes em 2014 (em %) A Tabela 2 demonstra a distribuição das frequências em sete intervalos de valores que vai de: até R$ 5 mil, até R$ 10 mil, até R$ 20 mil, até R$ 30 mil, até R$ 40 mil, até R$ 50 mil e acima de R$ 50 mil. Entre a amostra de agentes econômicos entrevistados que admitiram prejuízos com as enchentes em 2014, do total de 896 frequências, 330 foram tabuladas com prejuízos diversos (itens 1 ao 13) de até R$ 5 mil; 238 com prejuízos até R$ 10 mil; 188 com prejuízos de até R$ 20 mil; 109 com prejuízos de até R$ 30 54 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 mil; 88 com prejuízos de até R$ 40 mil; 83 com prejuízos de até R$ 50 mil e 15 com prejuízos acima de R$ 50 mil. Fonte: CEAMA (2014) Tabela 2 –Planilha de distribuição de frequência por intervalo de valores: amostra de 174 entrevistados Pelos dados relativos à amostra, verificou-se que os impactos econômicos no município de Santarém, somente com 174 entrevistados, os prejuízos já chegam a R$ 12,2 mil nos itens analisados, que na repartição das faixas de valores estão assim distribuídos: R$ 1,5 milhão entre os entrevistados com gastos até a média geométrica de R$ 4,458 mil; R$ 2 milhões com gastos de até R$ 8,6 mil; R$ 2,9 milhões com gatos de até R$ 17,2 mil; R$ 2 milhões com gastos até 24,6 mil; R$ 1,6 milhão com gastos de até 33,6 mil; 1,5 milhão com gastos de até 43,3 mil e R$ 1 milhão com gastos até 63,2 mil de média geométrica (Tabela 3). Fonte: CEAMA (2014) Tabela 3 –Planilha de distribuição de valores por intervalor de gastos: amostra de 174 entrevistados Tomando por base o universo da população e a quantidade de empresas do município em relação à metodologia adotada para o estudo (agentes econômicos), do total de 22.581 frequências, 8,2 mil foram tabuladas com prejuízos diversos (itens 1 ao 13) na média geométrica de até R$ 4,458 mil; 5,8 mil com prejuízos acumulados até R$ 8,589 mil; 4,2 mil com prejuízos de até R$ 17,259 mil; 2 mil com prejuízos de até R$ 24,589 mil; 832 com prejuízos de até R$ 43,274 mil e; 384 com prejuízos de até R$ 63,258 mil (Tabela 4). 55 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Fonte: CEAMA (2014) Tabela 4 –Planilha de distribuição de frequência por intervalo de valores: universo Dos Impactos Econômicos Totais Considerando o universo de 11,9 mil micro e pequenas empresas; 1,073 mil médias empresas; 119 grandes empresas; 2,589 mil profissionais liberais e 125,2 mil domicílios no município de Santarém, a partir da amostra de 174 agentes econômicos entrevistados com margem de erro de 2,69%, chegou-se ao resultado final dos impactos das cheias na economia do município em 2014 (Tabela 5). Fonte: CEAMA (2014) Tabela 5 –Planilha de distribuição de valores por intervalo de gastos: universo Pelos resultados das Tabelas 4 e 5, que representam o universo de agentes econômicos do município, 8,2 mil frequências foram tabuladas com prejuízos acumulados de até R$ 4,458 mil, totalizando um impacto de R$ 36,5 milhões na economia; 5,8 mil foram tabuladas com impactos de até R$ 8,589 mil, totalizando R$ 49,9 milhões de prejuízos com a atual cheia; 4,2 mil frequências toram tabuladas com gastos de até R$ 17,259 mil, totalizando R$ 72,9 milhões; 2 mil frequências com gastos de até R$ 24,589 mil, totalizaram R$ 48,8 milhões; 1,2 mil frequências foram tabuladas com gastos de até R$ 33,589 mil, totalizando R$ 40,8 milhões; 832 frequências foram tabuladas com gastos de até R$ 43,274 mil, totalizando R$ 36 milhões e 384 frequências foram tabuladas com gastos de até R$ 63,258 mil, totalizando R$ 24,3 milhões. Do universo de 140,9 mil agentes econômicos entre empresas, profissionais liberais e domicílios (Tabela 1), com diversas faixas de gastos com as atuais enchentes, os impactos econômicos no município de Santarém em 2014 atingiram R$ 308,7 milhões. Na distribuição por classe entre os agentes econômicos, R$ 19,5 milhões foram os impactos na economia do município por profissionais liberais; R$ 159,7 milhões foram os impactos entre as micro e pequenas empresas; R$ 14,2 milhões por médias 56 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 empresas; R$ 7,1 milhões por grandes empresas e R$ 108,2 milhões foram os impactos já absorvidos na economia pelos domicílios (Tabela 6). Fonte: CEAMA (2014) Tabela 6 –Planilha de distribuição de valores por classe de gastos: universo Entre os segmentos econômicos, do total de R$ 308,7 milhões de impactos na economia do município, R$ 33,7 milhões foram absorvidos pela pecuária, incluindo a morte de animais, passagem de gado antecipada, despesas com pastagem, construção de marombas1, fretes além de outros custos; R$ 46,1 milhões são os impactos na agricultura especificamente com perda de parte ou a totalidade das safras, despesas com proteção à enchentes além de outras; R$ 5,3 milhões no segmento de extrativismo, que envolve a produção de argila para cerâmica, seixo e outros produtos ligados ao setor. Na soma do setor primário os impactos das enchentes na economia do município chegou a R$ 85,1 milhões (Tabela 7). 1 Maromba é um jirau alto, feito de tábuas ou troncos, onde se põe o gado durante as grandes enchentes na região amazônica. Serve também para pôr a salvo plantas, animais domésticos e objetos de utilidade do ribeirinho (Dicionário Informal, 2014). Fonte: CEAMA Tabela 7 –Planilha de distribuição de valores por segmento econômico No segmento industrial que representa o setor secundário da economia, os impactos das enchentes atingiram o valor de R$ 44,3 milhões, principalmente nas atividades ligadas à aquisição de matérias primas, insumos e principalmente no processamento, na logística e na venda. No setor terciário da economia do município, o segmento comercial somou impactos de R$ 34,8 milhões; o setor de serviços, R$ 36,2 milhões, principalmente com a queda nas vendas, inadimplência, dificuldades de abastecimento, perda de estoques e nos gastos com a proteção à enchentes. No segmento de domicílios, que envolve um universo de 125,2 mil, os 57 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 impactos das enchentes que envolve a inadimplência, ociosidade, redução de receitas, gastos com proteção à enchentes além de outros, os prejuízos já atingem R$ 108,2 milhões, impactando fortemente a economia do município. Importância da Pesquisa Quanto à importância da pesquisa como forma legítima de se contribuir para a mitigação e/ou a solução dos problemas relacionados às constantes enchentes, 12% dos entrevistados avaliaram a pesquisa como MUITO IMPORTANTE; 85% entenderam a pesquisa como IMPORTANTE e 3%, acharam o estudo SEM IMPORTÂNCIA ou não quiseram responder (Figura 10). Fonte: CEAMA Figura 10 –A importância da pesquisa em 2014 Impactos das Enchentes x PIB e Orçamento Municipal Tomando-se como base o valor do Produto Interno Bruto (PIB) do município que equivale a R$ 3,219 bilhões (CEAMA, 2014 apud SEPOF/PA, 2014 e IBGE, 2014), o Orçamento Municipal de 2014 com relação aos impactos das cheias, verificou-se que com relação ao PIB, os impactos representam 9,59% e com relação ao Orçamento Municipal, os mesmo impactos representam 48,48% (Figura 11). Descrição PIB Municipal Orçamento Municipal Valores 3.219.841,59 636.700,00 Impacto 308.663,22 308.663,22 % 9,59 48,48 Fonte: CEAMA, 2014 apud SEPOF/PA, 2014 e IBGE, 2014 Figura 11 –Quadro comparativo dos impactos das enchente na economia com relação ao PIB e Orçamento Municipal (Em R$ 1.000,00) Considerações Finais Finalizando este estudo que teve como foco avaliar os impactos das enchentes na economia do município de Santarém em 2014, bem como descrever as consequências dos prejuízos causados à população pelas constantes inundações nas 58 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 áreas mais baixas das zonas urbana e rural, a partir de pesquisa de campo junto às empresas do segmento produtivo, profissionais liberais e os domicílios, chegou-se a um resultado que remete ao nível de preocupação com o cenário. Neste período de cheias (2014), segundo da dados da pesquisa, levando-se em conta a metodologia escolhida, se apurou um prejuízo econômico de R$ 308,7 milhões em: redução nas vendas (R$ 43,6 milhões), inadimplência (33,9 milhões), perda de negócios (R$ 44 milhões), perda parcial ou total de bens móveis (R$ 30,7 milhões), dificuldades de abastecimento (R$ 29,3 milhões), ociosidade de pessoal (R$ 28,2 milhões), gastos com proteção d enchentes (R$ 20 milhões), perdas de estoques de mercadorias (R$ 19,3 milhões), perda parcial ou total de imóveis (R$ 18,6 milhões), gastos com mudança de endereço (R$ 14,5 milhões), perdas de postos de trabalho (R$ 12 milhões), elevação dos custos com transportes (R$ 7,6 milhões) e outros (R$ 6,9 milhões). Tomando como base os segmentos econômicos, no setor primário, a pecuária já acumula prejuízos de R$ 33,7 milhões; a agricultura, R$ 46,1 milhões e o extrativismo, R$ 5,3 milhões. No setor secundário, a indústria já acumula prejuízos de R$ 44,3 milhões e no setor terciário, o comércio acumula prejuízos de R$ 34,8 milhões, o setor de serviços, R$ 36,2 milhões e os domicílios aparecem com o maior prejuízo, com R$ 108,2 milhões. Em outra ótica, todos os modelos econômicos, estatísticos e matemáticos foram devidamente testados, não deixando dúvidas sobre os valores aqui apresentados. O estudo finaliza concluindo tratar-se de uma pesquisa importante (97%) e que os atuais prejuízos econômicos (R$ 308,7 milhões) representam 9,59% sobre o valor do Produto Interno Bruto Municipal (R$ 3,219 bilhões) e 48,48% sobre o valor do Orçamento Municipal de 2014 (R$ 636,7 milhões). Por fim, considera-se que, a partir da situação problemática estabelecida, suas justificativas e principalmente a seleção dos procedimentos metodológicos, o estudo atingiu os objetivos previamente definidos, sem qualquer contratempo ou imprevistos que viessem colocar em xeque os resultados aqui efetivamente avaliados. Referências ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICA. Normatização de trabalhos científicos. São Paulo: ABNT, 2014. ALMEIDA, Henrique Silveira. Controle de qualidade com e sem estatística. São Paulo: Atlas, 2013. BECKER, B. K. Modelos e Cenários para a Amazônia: o Papel da Ciência. Revisão das Políticas de Ocupação da Amazônia: é possível identificar modelos para projetar cenários? In: Parcerias Estratégicas, nº 12, Setembro, p.135-159, 2010. Disponível em: http://ftp.mct.gov.br/CEE/revista/Parcerias12/10bertha.pdf. [Acessado em 28/04/2014]. CAVALCANTE M. M. A. Transformações territoriais no rio Amazonas. Manaus, UFAM, 2012. CENTRO AVANÇADO DE ESTUDOS AMAZÔNICOS. Banco de dados da economia de Santarém. Santarém: CEAMA, 2014. CRESPO, Antonio Arnot. 59 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.44-60 Estatística fácil. São Paulo: Saraiva, 2013. DOUROJEANNI, Marc. Teimosia antiga e as enchentes na Amazônia. Lima (Peru): BID, 2014. EGLER, C. A. G., Crise e questão regional no Brasil. 230f. Tese (doutorado), UNICAMP, São Paulo, 2013. GUJARATI, Damodar N. Econometria básica. São Paulo: Makron Books, 2012. GUERRA, A. J. T.; CUNHA, S. B. Impactos ambientais urbanos no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. KOHLHEPP, G. Conflitos de interesse no ordenamento territorial da Amazônia brasileira. Revista Estudos Avançados, vol.16, nº.45, p.37-61, ISSN 0103-4014, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v16n45/v16n45a04.pdf [Acessado em 30/04/2014]. MARGULIS, S. (Org.) Meio ambiente: aspectos técnicos e econômicos. Rio de Janeiro: IPEA; Brasília: IPEA/PNUD, 2013PEREIRA, José de L. Dados quantitativos da economia de Santarém. Santarém: CEAMA, 2013. PEREIRA, José de L. Estrutura de mercado e formação de preços em ambiente de concorrência (material didático). Santarém: FIT/CEAMA, 2011. PIRES, Rogério. A Amazônia pede socorro. São Paulo: Greenpeace, 2014. RICHARDSON, H. Economia regional: teoria da localização, estrutura urbana e crescimento regional. Rio de janeiro: Zahar, 2011. RICHARDSON, H. Economia urbana. Rio de janeiro: Interciência, 2013. SIMÕES, Rodrigo. Métodos de análise regional e urbana: diagnóstico aplicado ao planejamento. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2014. SOUZA, Carlos Augusto da Silva. Urbanização na Amazônia. Belém: UNAMA, 2012. 60 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 Matrimônios, Celibatos, Estratégias e Mercados: Anotações Sobre a Etnologia de Pierre Bourdieu no Béarn Nirson Medeiros da Silva Neto * RESUMO A partir de uma releitura dos trabalhos etnológicos de Pierre Bourdieu sobre a sociedade camponesa do Béarn, o artigo apresenta um esforço compreensivo de algumas das contribuições oferecidas pelo eminente sociólogo francês à antropologia, sobretudo aos estudos do parentesco, que são de sobeja importância para aqueles que desejam iniciar-se neste campo científico. Após uma breve reflexão geral sobre a teoria da prática de Bourdieu, realiza-se uma análise descritiva das obras bourdieusianas acerca do Béarn, que oferecem significativos contributos à etnologia dominante em meados do século XX, especialmente ao estruturalismo antropológico, a saber: 1) a etnografia de um universo camponês e familiar ao pesquisador, assim como a tentativa de romper com as explicações mecânicas, formalistas e abstratas; 2) a construção da noção de estratégias matrimoniais, que traz para a etnologia e aos estudos do parentesco a possibilidade de superação do modelo de regras caro ao estruturalismo, buscando entender as regularidades das ações, fundadas no habitus e em um senso prático; e 3) a introdução da noção de mercado de bens simbólicos, que percebe os espaços sociais, inclusive aqueles onde se realizam as alianças matrimoniais, como universos relativamente autônomos e que, no entanto, sofrem determinações mais ou menos dissimuladas de outros campos – como, por exemplo, o econômico – e das intencionalidades dos sujeitos. Palavras-chave: Pierre Bordieu - campesinato - parentesco ABSTRACT A partir de una lectura del trabajo etnológico de Pierre Bourdieu sobre la sociedad campesina de Béarn, el artículo presenta un esfuerzo de comprensión de algunas de las aportaciones realizadas por el eminente sociólogo francés a la antropología, especialmente a los estudios de parentesco, que son de importancia para los que quiere poner en marcha en este campo científico. Después de una breve reflexión general sobre la teoría de la práctica de Bourdieu, llevó a cabo un análisis descriptivo de las obras sobre el Béarn, que ofrecen importantes contribuciones a la etnología dominante en la segunda mitad del siglo XX, especialmente el estructuralismo antropológico, a saber: 1) la etnografía de un universo campesino y familiar a lo investigador, así como el intento de romper las explicaciones mecánicas, formalistas y abstractas; 2) la construcción de la noción de estrategias matrimoniales, lo que trae a la antropología y a los estudios de parentesco la posibilidad de superar el modelo de reglas que caracteriza el estructuralismo, que buscan comprender las regularidades de las acciones, fundada en habitus y en un sentido práctico; y 3) la introducción de la noción de mercado de los bienes simbólicos, que explica los espacios sociales como universos relativamente autónomos y que, sin embargo, sufren influenza más o menos encubierta de otros campos – como, por ejemplo, lo económico – y de las intenciones de los sujetos. Keywords: Pierre Bourdieu - campesinado - parentesco *Doutor em Ciências Sociais, área de Antropologia, e mestre em Direito/ Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Especialista em Metodologia da Educação Superior pela Faculdade de Tecnologia da Amazônia (FAZ); Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). 61 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 Introdução Pierre Bourdieu nasceu na cidade de Denguin, região do Béarn, em França, filho de Albert Bourdieu, carteiro e funcionário dos correios, procedente de uma família de parceiros rurais, e Noémi Duhau, pertencente a uma família camponesa prestigiosa, cujo pai era dono de uma serraria e de uma transportadora de madeira. Sua origem social camponesa, somada à experiência enquanto militar na guerra de resistência à colonização da Argélia contra a França e à passagem por instituições educacionais como a Escola Normal Superior, influenciaram profundamente suas disposições intelectuais (BOURDIEU, 2005a), contribuindo para uma trajetória singular enquanto sociólogo que dispensa maiores apresentações, dado que é já vastamente conhecida dentro e fora do campo científico. O que, no entanto, poucos leitores de suas obras costumam recordar é que a sociologia deste notável intelectual francês apresenta, em sua primeira fase, um período marcadamente etnológico e que imiscui-se em um tema muito caro à antropologia: o do parentesco – valendo lembrar, a propósito, que o autor jamais concebeu uma separação rígida entre sociologia e etnologia. É neste período que se encontra o trabalho Celibato e condição camponesa, publicado originalmente na revista Études rurales, primeiro de três artigos que versaram, respectivamente, sobre o enigma social do celibato dos primogênitos decorrente da degeneração das tradições camponesas, as estratégias matrimoniais bearnesas e os efeitos da dominação econômica e da urbanização no mercado de bens simbólicos da região do Béarn, inclusive no mercado matrimonial. É sobre estes três trabalhos, bastante diferenciados e que, todavia, apresentam a similaridade de abordarem a temática do parentesco na sociedade bearnesa, que tratarei nas linhas abaixo, buscando identificar as singulares contribuições oferecidas pelo autor à antropologia e ao estudo do parentesco, que são de sobeja importância para aqueles que desejam iniciar-se neste campo científico. Antes, porém, de tratar da etnologia de Bourdieu no Béarn e de avaliar seus principais contributos, é imperioso fazer algumas anotações introdutórias. A migração de Bourdieu para a sociologia, mediatizada por uma passagem de sucesso – embora hoje um tanto olvidada – pelo campo antropológico, iniciou-se com o período em que o autor esteve a serviço do Estado francês na Argélia. Havia concluído a formação em filosofia e ministrava aulas no liceu de Moulins quando, aos 25 anos, foi convocado a prestar serviço militar, sendo designado para exercer suas atribuições burocráticas na colônia francesa que à época encontrava-se em guerra contra a nação colonizadora. Assim, as primeiras experiências de Bourdieu no campo das ciências sociais – aliás, de forma análoga a outros tantos etnólogos – deram-se justamente neste momento, em uma circunstância de guerra colonial, em que o jovem intelectual ocupava uma posição subalterna e desconfortável entre funcionários militares de uma nação a impor um processo de colonização (BOURDIEU, 2005a). O inaugural trabalho etnológico sobre a Argélia veio à tona em 1958, intitulado Sociologia da Argélia, sendo sucedido por Trabalho e trabalhadores na Argélia (1963),Os 62 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 desenraizados (1964), Esboço de uma teoria da prática (1972) e Senso Prático (1980) – para citar só os mais importantes e consagrados –, os dois últimos elaborações teóricas e posteriores inspiradas na experiência argelina. Durante este período antropológico, Bourdieu realizou, paralelamente aos estudos acerca da Argélia, pesquisas etnológicas em sua região natal, o Béarn, escrevendo o já mencionado artigo sobre celibato e condição campesina, datado de 1962, seguido de As estratégias matrimoniais no sistema das estratégias de reprodução (1972) e Reprodução proibida (1989), retomados mais tarde na obra O baile dos celibatários, publicada postumamente em 2002. Com estes trabalhos Bourdieu assume o desafio de fazer etnologia de um universo social familiar, em um momento em que o “olhar distanciado” era quase um dogma antropológico, e de uma sociedade rural européia, um espaço social raramente investigado pela antropologia da época que privilegiava sociedades distantes e exóticas (BOURDIEU, 2004a). Nestes artigos, o sociólogo francês, partindo do desafio de superar o modo de pesquisa estruturalista, oferece importantes contribuições para a superação da perspectiva etnológica consagrada por Claude Lévi-Strauss, principal referência da antropologia de então. Nas próximas páginas, revisitarei estas obras, fazendo uma breve análise com o fito de identificar justamente o modus operandi do pesquisador e as interpretações deste que o levaram a transpor os limites do estruturalismo lévistraussiano, ainda que, certamente, partindo, em alguma medida, da própria matriz teórica do baluarte da antropologia estrutural. Priorizarei os contributos bourdieusianos que considero os principais, em se considerando a etnologia dominante em meados do século XX, especialmente a de Lévi-Strauss: 1) a etnografia de um universo camponês e familiar ao pesquisador, assim como a tentativa de romper com as explicações mecânicas, formalistas e abstratas que caracterizavam os trabalhos lévi-straussianos; 2) a construção da noção de estratégias matrimoniais, que traz para a etnologia e aos estudos do parentesco a possibilidade de superação do modelo de regras caro ao estruturalismo, buscando entender as regularidades das ações, fundadas no habitus e em um senso prático; e 3) a introdução da noção de mercado de bens simbólicos, que percebe os espaços sociais, inclusive aqueles onde se realizam as alianças matrimoniais, como universos relativamente autônomos e que, no entanto, sofrem determinações mais ou menos dissimuladas de outros campos – como, por exemplo, o econômico – e das intencionalidades dos sujeitos. Nos tópicos que seguem discorrerei detidamente sobre cada uma destas contribuições de Bourdieu à etnologia e aos estudos do parentesco, iniciando, porém, com uma breve reflexão geral sobre a teoria da prática bourdieusiana. A Teoria da Prática ou Praxiologia A etnologia de Bourdieu não se torna compreensível sem o entendimento prévio do que o autor chamara de praxiologia ou teoria da prática. Esta teoria pretende superar os limites da antropologia dominante em meados do século XX, notadamente da 63 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 antropologia estruturalista cunhada por Lévi-Strauss. De acordo com Bourdieu (2003), a antropologia estrutural, cuja versão mais forte é a lévi-straussiana, visa construir as relações objetivas que estruturam as práticas e suas representações ao preço de uma ruptura com o conhecimento primeiro e, portanto, com os pressupostos tacitamente assumidos que conferem ao mundo social o caráter de evidência e naturalidade. A praxiologia, por sua vez, procedendo à construção das relações objetivas (estruturas) à semelhança do estruturalismo, dá um passo além em face deste, buscando reconstituir as relações entre as estruturas e as disposições (habitus) nas quais aquelas são atualizadas e tendem a ser reproduzidas, através do processo de interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade. Assim, não somente se toma as práticas como fatos acabados, determinados por uma estrutura abstrata – isto é, um modelo elaborado teoricamente pelo pesquisador para explicar a realidade –, mas busca-se o princípio gerador concreto e real da ação dos sujeitos. Para Bourdieu (2004b) este princípio gerador das ações consiste no que ele chamou de senso prático, uma espécie de “sentido do jogo”, um domínio prático da lógica ou da necessidade imanente de um jogo, que se adquire pela experiência de jogar e que funciona sob os “véus” da consciência e do discurso. A praxiologia, portanto, não visa reintroduzir na pesquisa sociológica o sujeito e seus projetos e cálculos conscientes/racionais, mas sim o agente socializado e suas estratégias mais ou menos “automáticas” fundadas em um senso prático aprendido socialmente. Assim, o sociólogo francês rompe com a ideia de ação sem agente, inconsciente, que o estruturalismo supõe. De acordo com o autor, as estratégias dos agentes não são nem produtos de um programa inconsciente (estrutura), como pensara Lévi-Strauss, nem produtos de um cálculo consciente/racional. Ao contrário, são produtos do senso prático de um jogo social particular, historicamente definido e que se adquire desde a infância, participando dos espaços sociais (BOURDIEU, 2004b). Em outras palavras, o que Bourdieu (2008) deseja afirmar é que as ações dos agentes não derivam simplesmente de códigos inconscientes de conduta previamente estabelecidos, mas sim resultam do habitus, ou seja, das disposições adquiridas no processo de socialização que se manifestam como esquemas de pensamento, ação, percepção e apreciação socialmente compartilhados. O agente, assim, é uma espécie de “jogador” que conhece não somente as regras (oficiais, codificadas, “jurídicas”) do jogo, mas também as regularidades (o que se produz com certa frequência estatisticamente mensurável), e age motivado por avaliações, conforme o estado das regras e regularidades do jogo, de quais as melhores “jogadas” a serem postas em prática (BOURDIEU, 2003; 2004b). O agente socializado, então, age não somente orientado por regras, e sim igualmente por interesses, conquanto procure manter as aparências de que está agindo em obediência tão-somente às regras estruturadas. Na realidade, lembra Bourdieu (2004b), embora possua uma certa liberdade de ação, o agente precisa atuar de conformidade tanto às regras quanto às regularidades do “jogo social”, por isso que o sentido de suas ações, quando em descompasso com a estrutura, acaba sendo 64 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 retraduzido (transfigurado, refratado) a fim de se ajustar à lógica do universo social onde as práticas são efetivadas (BOURDIEU, 2004c). Os comportamentos mais subjetivos dos agentes possuem limitações objetivas, e o limite das ações decorre justamente do habitus, que dá ensejo à compreensão do sentido do jogo ou senso prático incorporado pelo indivíduo, mantendo o agente a um só tempo livre e coagido em sua ação, pois o jogo social possui exigências objetivas, coativas – algo, decerto, já vislumbrado por Émile Durkheim (1999) quando tratara da coercitividade dos fatos sociais –, no entanto permite uma infinidade de atos estratégicos possíveis. Mesmo quando inexiste um código que prescreve regras explícitas ou subjacentes, conscientes ou inconscientes, as coações e exigências do jogo se impõem àqueles que detêm o sentido do jogo, o senso de necessidade imanente do jogo, ainda que busquem, com certa liberdade, os melhores meios para realizar seus interesses (BOURDIEU, 2004b). No jogo social de que fala Bourdieu (2004b), um conjunto de pessoas participa de uma atividade que, sem ser necessariamente produto da obediência apenas a regras, obedece a certas regularidades. O jogo é o lugar de uma necessidade e de uma lógica imanentes. Nele não se faz qualquer coisa impunemente, por isso é preciso se conhecer o sentido do jogo. Assim, no jogo social as condutas são regradas, sendo, por isso, naturalmente acertada a intuição de Lévi-Strauss de que os sujeitos movem-se obedecendo a regras; porém, isto não significa dizer que as ações decorram somente de regras, pois, mais do que isso, estão sujeitas à observância de regularidades. Em outras palavras, a regularidade, que é apreendida estatisticamente, está relacionada ao sentido do jogo a que o agente se submete espontaneamente quando se reconhece na prática “jogando o jogo”. Isto não tem necessariamente a ver com a obediência a uma regra (costumes, ditados, provérbios, códigos, ou quaisquer outros fatos normativos). A regra, diferentemente da regularidade, é formal, considera a forma das operações sem se vincular à matéria, às especificidades das ações, tendendo a indicar fórmulas “universais” aplicáveis às particularidades das práticas dos agentes (BOURDIEU, 2004b). Para Bourdieu (2004b), se somente levarmos em conta as regras, como o faz a perspectiva lévi-straussiana, tem-se uma ideia muito inexata da rotina ordinária das práticas sociais, inclusive das manipulações a que são objeto as próprias regras. Evidentemente, o “bom jogador” considera, nas suas escolhas, o conjunto das propriedades pertinentes tendo em vista a estrutura a ser reproduzida, ou seja, as regras. Todavia, a fim de maximizar a probabilidade de alcançar seus interesses, age estrategicamente, levando em conta também a regularidade das práticas sociais e o conjunto das estratégias adotadas pelo grupo ao qual pertence e no qual atua. Desta forma, as estratégias dos agentes são a resultante de relações de força no interior dos grupos de que são componentes, e estas relações só podem ser entendidas recorrendo-se à história destes grupos, particularmente das estratégias utilizadas anterior e regularmente no interior deles. As práticas, assim, (cor)respondem ao conjunto de necessidades inerentes a uma posição na estrutura social e ao estado do jogo social (BOURDIEU, 2004b). Em outras palavras, as ações dos agentes fazem parte de um 65 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 mercado de bens simbólicos, um espaço relativamente autônomo em relação às pressões externas, que detém propriedades específicas e funciona no sentido de reproduzir suas especificidades, estando, contudo, submetido a relações de força com outros universos sociais, dos quais assimila, no mais das vezes dissimuladamente, propriedades e as incorpora, de maneira transfigurada, sob a aparência de que não subvertem sua ordem interna. Bourdieu (2004b) demonstra então, com a teoria da prática, que os grupos sociais existem ao mesmo tempo na realidade objetiva das regularidades e das coações instituídas (regras), nas representações e em todas as estratégias de regateio, negociação, blefe, golpe, etc., destinadas a modificar as representações. Ou seja, são a um só tempo estruturas estruturadas, no melhor sentido estruturalista de universos sujeitos a relações objetivas, e estruturas estruturantes, enquanto espaços que – mesmo que tendam à reprodução das estruturas dadas – admitem ações estratégicas dentro dos limites das regras e regularidades que compõem um mercado de bens simbólicos (BOURDIEU, 2005b). E é a partir desta reflexão teórica mais geral que Bourdieu vai estudar o tema do parentesco no Béarn, fazendo-o em três momentos distintos. No primeiro, ainda não tão distante da perspectiva estruturalista, buscando compreender a lógica dos matrimônios e do celibato na sociedade bearnesa, assim como objetivando entender os fatores que levaram o sistema social camponês à anomia, convertendo os primogênitos (destinados socialmente ao casamento, segundo as regras camponesas) em celibatários. No segundo momento, Bourdieu introduz a noção de estratégia, já confrontando diretamente o modelo de regras lévi-straussiano. E, por último, no terceiro, demonstra como o parentesco no Béarn está relacionado a um mercado de bens simbólicos relativamente dependente da economia tradicional camponesa, sendo posto em risco justamente quando a economia de mercado e seu sistema simbólico são introduzidos na sociedade bearnesa. Passarei a tratar, doravante, do que considero mais significativo nestes três artigos para os estudos do parentesco. A Lógica das Relações Matrimoniais na Sociedade Bearnesa O primeiro artigo que Bourdieu escreveu sobre parentesco na sociedade bearnesa foi intitulado Celibato e condição camponesa. O autor, neste trabalho, já manifesta um claro desejo de atuar contra a fascinação que as elaborações de LéviStrauss, sobretudo na França, exerciam sobre as pesquisas etnológicas. Um dos passos mais significativos dados aqui pelo sociólogo francês no sentido de uma mudança de ponto de vista – do observador distanciado para o que exercita a reflexividade – foi o de pesquisar uma sociedade camponesa europeia, algo raro para a antropologia dominante à época, especialmente porque se tratava de um universo social absolutamente familiar ao pesquisador, que havia nascido e crescido no seio do sistema simbólico que visava, enquanto etnólogo, compreender. Além disso, o uso de recursos como a fotografia, o mapa e a estatística foram inovações à antropologia praticada até então que Bourdieu (2004a) atribui a esta obra. Todavia, quanto aos 66 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 resultados da interpretação bourdieusiana do parentesco no Béarn, o golpe mais significativo na perspectiva lévi-straussiana sobre as alianças matrimoniais, como bem lembra Klaas Woortmann (2004), consistiu na descoberta de que o celibatário não era uma espécie de marginal, alguém posto fora da estrutura social, como pensara Lévi-Strauss. Ao contrário, Bourdieu demonstra, através de uma curta mas bela etnografia, que o celibatário era uma peça fundamental para a reprodução social bearnesa;aliás, em certos casos, constituía condicio sine qua non da preservação do patrimônio da “casa” camponesa e, por seguimento, do sistema simbólico campesino. Apesar disso, o então jovem sociólogo francês, em Celibato e condição camponesa, ainda não supera totalmente o modelo de regras lévi-straussiana, deixando para artigos posteriores a elaboração de sua noção de estratégia. Senão vejamos. Segundo a etnografia de Bourdieu, no Béarn as alianças matrimoniais obedeciam a um imperativo fundamental: a salvaguarda do patrimônio da maysou, que é análoga à “casa” analisada por Lévi-Strauss, tratando-se, pois, de uma unidade de parentesco, uma linhagem, mais do que uma família ou grupo doméstico (WOORTMANN, 2004). Por esta razão, não admitia-se qualquer espaço para o indivíduo e suas ações sentimentais ou afetivas, como diria Max Weber (1999), visto que a “casa” era um todo que englobava seus membros individuais. Assim, o verdadeiro sujeito das alianças matrimoniais, neste caso, era então a maysou, como assevera Bourdieu (2004a, p. 21): “La familia era la que casaba y uno se casaba con una familia”. A maysou, explica Woortmann (2004), corresponde à casa (no sentido de edificação) e à terra, incluindo aí também o nome e a tradição da linhagem, e, de acordo com as representações nativas, a “casa” deveria sempre permanecer na linhagem, perpetuando seu nome, por isso que o casamento apresentava-se como a ocasião por excelência em que as preocupações com a perpetuação da maysou pululavam intensamente. Por tal motivo, o matrimônio era regido por regras muito estritas e rigorosas, dado que poderia comprometer o futuro da exploração familiar, sendo momento de uma transação econômica da máxima importância que haveria de contribuir para reafirmar a hierarquia social e a posição da família dentro da sociedade camponesa. Logo, sua primeira função consistia em assegurar a continuidade da linhagem sem comprometer a integridade do patrimônio familiar (BOURDIEU, 2004a). A linhagem, no universo simbólico bearnês, consistia, per se e antes de tudo, em uma série de direitos sobre o patrimônio. O portador destes direitos, o herdeiro, preferencialmente seria o primeiro filho varão. Somente em casos excepcionais o direito à primogenitura transferir-se-ia a outro filho homem ou à primeira filha mulher, isto é, quando o primogênito optasse por deixar a maysou, indo viver na cidade, ou quando se tivesse na “casa” apenas filhas mulheres. Em se tratando de uma sociedade camponesa, é perfeitamente compreensível a concessão do privilégio aos filhos homens, não só por se assegurar a continuação do nome, mas sobretudo por considerar-se que um homem está mais capacitado para dirigir as atividades agrícolas, que competiam à mão de obra masculina na região do Béarn. A despeito disso, a continuidade da linhagem e do patrimônio da “casa” poderia ser garantida tanto por um homem quanto por uma mulher, pois o matrimônio de um segundo filho com uma herdeira cumpria perfeitamente esta 67 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 função, de forma similar ao casamento de um primogênito com uma segunda filha. Estes eram, com efeito, os dois principais arranjos matrimoniais que contribuíam para a reprodução do sistema simbólico bearnês (BOURDIEU, 2004a). Por força do imperativo descrito no parágrafo anterior, era necessário que o herdeiro fosse capaz de exercer seu direito e garantir sua transmissão. No caso do primogênito não ter filhos ou falecer sem descendência, pedia-se a um segundo filho maior de idade, que ainda encontrava-se solteiro, que casasse para assegurar a continuidade da estirpe. É por esta razão que não eram infrequentes os casos que a viúva do primogênito casava-se com o segundo filho. De qualquer sorte, o título de herdeiro ou cabeça de família (capmaysoué) recaia automaticamente sobre o filho varão (ou mulher, em casos excepcionais) mais velho. Esta regra, no entanto, poderia ser flexibilizada em prol dos interesses da “casa” quando o filho maior não se demonstrasse digno de sua posição ou quando existisse uma vantagem real que um dos outros filhos se tornasse herdeiro. O capmaysoué possuía uma autoridade moral considerável aceitada de modo quase absoluto por todo o grupo, por isso não detinha muito poder de escolha senão o de acatar sua designação como aquele que seria responsável para garantir a continuidade da maysou, dotando-a da melhor direção possível. É ele a encarnação da “casa”, seu chefe, o depositário do nome da família e dos interesses do grupo, assim como de sua posição e imagem perante a sociedade bearnesa (BOURDIEU, 2004a). Tratava-se, pois, no dizer de Woortmann (2004), do guardião da maysou, um sujeito histórico/prático a quem competia assegurar a permanência da “casa” e a perpetuação de seu patrimônio. Os filhos segundos, homens ou mulheres, tinham igualmente direitos sobre o patrimônio, porém estes direitos não passavam de virtualidades, só se tornando reais quando contraíam casamento. O adot (ou, em português, dote) designava em bearnês a parte da herança que correspondia a cada filho, a dotação que disporia para a consecução de um matrimonio, quase sempre em dinheiro, mas excepcionalmente em terras. O quantum do dote era determinado pelo valor do patrimônio e pelo número de filhos. Ainda assim, o capmaysoué possuía o poder de incrementar ou reduzir a parte de herança do primogênito ou dos filhos segundos, devendo-se considerar também que a parcela patrimonial pertencente aos filhos solteiros nunca deixava de ser apenas virtual, permanecendo integrada ao patrimônio da “casa” até seu matrimônio ou até a morte dos pais. Por força disso, Bourdieu conclui que devese evitar a tentação, a que Lévi-Strauss incorre, de se construir modelos rígidos nos quais se ajustam todas as ações. No caso do cabeça de família bearnês, há sempre uma margem considerável de arbítrio em suas decisões, não obedecendo a um modelo de regras fixo, abstrato e formal, inclusive observável em outras sociedades, senão ao princípio fundamental que o impulsiona a salvaguardar o nome, o status social e o patrimônio da família (BOURDIEU, 2004a). Bourdieu adverte, porém, que a ideia de repartição do patrimônio da maysou pode induzir a erros na interpretação do sistema cultural bearnês. Na realidade, a repartição efetiva era tomada como uma calamidade que somente ocorria, em última 68 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 instância, por ocasião de desavenças familiares ou pela introdução de novos valores. De fato, a função de todo o sistema consistia em reservar a totalidade do patrimônio para o primogênito, as partes ou dotes dos filhos segundos constituindo apenas compensações concedidas pela renúncia aos direitos sobre a terra. A sucessão do patrimônio da “casa” baseava-se na primazia do interesse do grupo, ao que os indivíduos tinham que submeter seus interesses pessoais, ou contentando-se com o adot, ou emigrando da mayson E ainda quanto aos fatores econômicos, o número de mulheres casáveis na família era particularmente relevante, pois estas constituíam, para os bearnêses, uma ameaça de desonra, haja vista que haviam de ser dotadas, além de que, por viverem uma existência doméstica, não ganhavam seu sustento, não trabalhavam na exploração agrícola como os homens e iam-se quando casadas. (BOURDIEU, 2004a). O sistema matrimonial do Béarn também operava obedecendo a outros dois princípios fundamentais, segundo Bourdieu: 1) a oposição entre o primogênito e os segundos filhos; e 2) a oposição entre casamento de baixo para cima e casamento de cima para baixo. A primeira oposição já foi suficientemente discutida nas linhas anteriores. A segunda, da qual ainda pouco se falou, constituía o ponto de encontro onde se cruzavam a lógica do sistema econômico, que tendia a classificar as “casas” em grandes e pequenas, conforme o tamanho das terras, e a lógica das relações entre os sexos, a qual conferia supremacia aos homens, particularmente na gestão dos assuntos familiares. Os matrimônios no Béarn pesquisado por Bourdieu estavam relacionados, de um lado, ao lugar ocupado por cada um dos contraentes na linha sucessória de sua respectiva família e ao tamanho desta, e, de outro, à posição relativa de ambas as famílias na hierarquia social, em função do valor e da dimensão de suas terras. Seguindo este princípio, os matrimônios tendiam a ser celebrados entre famílias que se equiparavam do ponto de vista econômico. Entretanto, não era apenas o fator econômico (dimensão das terras) que tomava-se em conta para determinar a posição social de uma família; considerava-se igualmente o manifesto das virtudes que legitimamente espera-se dos camponeses poderosos, a dignidade no comportamento, o sentido de honra, a generosidade, a hospitalidade, etc. Contudo, quando se tratava de casamento, a situação econômica se impunha como fator predominante, dada a necessidade de perpetuação do patrimônio da maysou (BOURDIEU, 2004a). Os fatores econômicos possuíam particular relevância no matrimônio do primogênito. Com este casamento, o capmaysoué haveria de conseguir angariar um dote suficiente para poder pagar o adot dos demais filhos e filhas (ou irmãos e irmãs) menores sem ter que recorrer à repartição ou amputação das terras da família. Tratava-se de uma necessidade que atingia a todas as “casas” independentemente de sua posição social e econômica, porque o dote dos segundos filhos crescia proporcionalmente com o valor do patrimônio e também porque a riqueza dos camponeses do Béarn não era traduzida em dinheiro efetivo, demasiado escasso, mas sim em terras. Assim, a escolha do esposo (ou esposa) do herdeiro (ou herdeira) tinha uma importância capital, visto que contribuía diretamente para determinar o quantum do dote que poderiam levar consigo os segundos filhos, o tipo de matrimônio que poderiam contrair, a facilidade ou dificuldade de fazê-lo 69 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 e o número de filhas/irmãs e filhos/irmãos casáveis.E ainda quanto aos fatores econômicos, o número de mulheres casáveis na família era particularmente relevante, pois estas constituíam, para os bearnêses, uma ameaça de desonra, haja vista que haviam de ser dotadas, além de que, por viverem uma existência doméstica, não ganhavam seu sustento, não trabalhavam na exploração agrícola como os homens e iam-se quando casadas. (BOURDIEU, 2004a). Uma outra regra que integrava a lógica matrimonial bearnesa e que possuía um pertinente impacto para a vida econômica camponesa era a do tournedot, o direito de devolução do dote, no caso de extinção do matrimônio sem deixar descendência. Isto poderia acontecer quando o primogênito falecia sem deixar filhos, pois sua esposa tanto tinha o direito de permanecer na “casa” e conservar a propriedade do dote no seio desta, quanto de reclamar a propriedade do dote para si e deixar a maysou. Se a esposa falecia sem filhos, também haveria de devolver o dote que recebera. O tournedot representava, como se pode deduzir, uma grave ameaça para as famílias camponesas, notadamente para aquelas que haviam celebrado casamento de baixo para cima e receberam um dote muito elevado. Esta era uma das razões que levavam os camponeses a evitar casamentos entre famílias com condição econômica muito desigual. Por isso, um enorme conjunto de regras consuetudinárias tendiam a garantir a inalienabilidade, imprescindibilidade e intocabilidade do adot. Estas regras, por exemplo, autorizavam o pai a exigir uma garantia para salvaguardar o dote e exigiam condições para que o dote se mantivesse seguro e conservasse seu valor. A devolução do dote, que dificilmente não era ao menos parcialmente dilapidado com o passar do tempo, poderia constituir um sério fator de perda do patrimônio da família (BOURDIEU, 2004a). O dote, de acordo com Bourdieu, possuía uma tripla função entre os camponeses do Béarn: 1) era confiado à custodia da família do herdeiro ou da herdeira, que encarregava-se de sua gestão, e tinha que integrar-se ao patrimônio da família fruto do matrimônio, só retornando à “casa” donde partira nos raríssimos casos de separação ou em razão do falecimento de um dos cônjuges, e isto apenas em inexistindo descendência, pois quando haviam filhos o dote era por eles herdado; 2) o valor do dote determinava os direitos de seu portador no novo domicílio, pois, quanto mais elevado, mais assegurava poderes na “casa” onde residiriam os nubentes, o que levava os camponeses a evitar o aceite de dotes muito elevados, a fim dos varões não se tornarem “criados” de suas esposas, dada a condição social superior desta; 3) last but not least, o dote possuía uma função econômica de sobeja relevância, pois não raro era um fator decisivo na salvaguarda do patrimônio da maysou, garantindo que os filhos/irmãos segundos pudessem casar-se sem a necessidade de fragmentar as terras da família. Destas três funções decorre a exigência de que o primogênito, herdeiro e guardião da maysou, não deveria casar demasiado acima, por temor de um dia precisar devolver o dote ou de perder a autoridade em seu lar, nem casar demasiado abaixo, por medo de desonrar-se com uma união desacertada, impossibilitando o casamento de seus irmãos e irmãs (BOURDIEU, 2004a). 70 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 De acordo com as práticas matrimoniais à época correntes no Béarn, o casamento entre herdeiros quedava fora de qualquer cogitação – a um turno, porque implicava o desaparecimento do nome de uma das famílias e de uma linhagem, e, a outro, por razões econômicas –, assim como o matrimônio entre filhos segundos. Portanto, a regra entre os camponeses bearnêses consistia no casamento entre um herdeiro e uma filha segunda ou entre uma herdeira e um filho segundo, os não herdeiros(as) carregando consigo sempre o dote a fim de possibilitarem o matrimônio com uma(um) herdeira(o). Estes dois arranjos matrimoniais cumpriam os imperativos fundamentais do sistema bearnês, tanto econômicos quanto culturais, as “casas” camponesas conservando a integridade de seu patrimônio e perpetuando seus nomes. O primeiro, todavia, cumpria os imperativos melhor do que o segundo, visto que no matrimônio do filho segundo com a herdeira ocorria uma ruptura, no âmbito dos interesses econômicos, entre o filho e sua família de procedência, pois, mediante uma compensação, o nubente renunciava a todos seus direitos sobre o patrimônio, e era a família da herdeira que se enriquecia com a transação, recebendo o adot e uma nova mão de obra. Vale ressaltar, a propósito disso, que se o dote do filho segundo era elevado e se ele conseguia se impor por seu trabalho e sua personalidade, acabava honrado e tratado como verdadeiro amo; caso contrário, teria que sacrificar seu dote, seu trabalho e, às vezes, o nome de sua família em beneficio da nova maysou, submetendo-se à autoridade de seus sogros. Por isso que aos filhos segundos de famílias pobres não restava outro destino social senão ir-se para a cidade atrás de emprego ou o fatídico celibato (BOURDIEU, 2004a). Bourdieu adverte novamente que este sistema não funciona de maneira mecânica, como levaria a pensar a perspectiva adotada por Lévi-Strauss. Existe sempre uma certa margem com a qual se pode jogar, em que os afetos e os interesses pessoais acabam imiscuindo-se. Os indivíduos, naturalmente, se movem dentro dos limites das regras postas pela lógica do sistema, de tal modo que se pode construir um modelo ideal das ações possíveis – e nisto a orientação lévi-straussiana está absolutamente correta –, todavia este modelo representa não o que deve ser, nem mesmo o que ocorre de fato, mas apenas o que se tenderia a fazer nos casos típico-ideais, como diria Weber (1999), em que estivesse excluída qualquer intervenção de princípios alheios à lógica do sistema, tais como os afetos e os sentimentos (BOURDIEU, 2004a). Acontece, porém, que na prática as ações dos sujeitos nunca correspondem perfeitamente ao modelo construído pelo pesquisador, haja vista que são sempre contaminadas por pressões externas ao sistema, ainda que isto se dê de forma dissimulada. Entre as pressões externas ao sistema matrimonial do Béarn, isoladamente considerado, estavam os fatores econômicos. As hierarquias sociais que a consciência comum bearnesa distinguia, e que tanto determinavam as possibilidades de matrimônio, não eram totalmente dependentes nem totalmente independentes de suas bases econômicas. É por este motivo que nomeava-se de uniões desacertadas aquelas que não tomavam em consideração os interesses econômicos; é por isso também que as famílias de pouco renome podiam fazer grandes sacrifícios para casar a um de seus filhos com a integrante de uma maysou relevante. Contudo, o primogênito de uma 71 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 família relevante podia rechaçar um partido mais vantajoso do ponto de vista econômico para casar-se com alguém que ocupava sua mesma posição social. Isto ocorria porque a oposição entre “casas” relevantes e humildes se situava no âmbito da ordem social e, por seguimento, era relativamente independente das bases econômicas. Havia na sociedade bearnesa, destarte, uma oposição entre desigualdade de posição e desigualdade de fortuna. A primeira impossibilitava, de direito, determinados casamentos considerados desacertados, em nome de razões socioeconômicas. A segunda se manifestava em cada matrimônio particular, fazendo com que matrimônios acertados socialmente não se consumassem por impedimentos econômicos, de fato, dado o risco de dilapidação do patrimônio da maysou. Assim, assevera Bourdieu mais uma vez criticando teses de Lévi-Strauss, os casamentos nunca podem ser resumidos apenas à lógica das alianças, nem tampouco somente à lógica (econômica) dos negócios (BOURDIEU, 2004a). As Estratégias Matrimoniais Camponesas No artigo de 1962, como é de ver-se no tópico anterior, Bourdieu certamente intui e esboça algumas de suas principais contribuições à etnologia e aos estudos do parentesco, de certa forma ultrapassando fronteiras estabelecidas pela antropologia estrutural. Todavia, ainda parte, em alguma medida, da matriz levi-straussiana para construir algumas de suas elaborações, utilizando parcialmente o modelo de regras caro aos estruturalistas, mesmo que procure ir para além dele, vislumbrando a impossibilidade de explicações estritamente mecânicas, formalistas e abstratas, tais como as que se preocupam demasiadamente com a construção do mapa formal das genealogias a fim de compreender as regras ou representações que determinam, inconscientemente, as ações. Em As estratégias matrimoniais no sistema das estratégias de reprodução, Bourdieu já visualiza, de forma agora melhor elaborada, que as práticas camponesas que intentam garantir a reprodução das linhagens e do patrimônio das “casas” apresentam certas regularidades que não permitem que sejam consideradas apenas como produtos da obediência a regras. O autor, então, passa a perceber como necessária a ruptura com o juridicismo da tradição etnológica que tende a tratar as práticas como mera execução de uma ordem, de um plano ou de um modelo de regras inconsciente (BOURDIEU, 2004a). Logo, a perspectiva teórica que fez do intelectual 72 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 francês conhecido no campo científico e para além dos muros da academia apresentase, então, mais claramente definida no tocante ao estudo do parentesco no Béarn. O artigo de 1972 identifica o sistema das disposições inculcadas pelas condições materiais e pela educação familiar, isto é, o habitus, como o princípio gerador e unificador das práticas, fruto das estruturas que estas práticas tendem a reproduzir, de tal modo que os agentes só podem reproduzir – ou melhor, reinventar consciente ou inconscientemente – as estratégias já comprovadas que, porque têm regido as práticas desde sempre ou desde há muito, parecem inscritas na natureza das coisas. Para Bourdieu, portanto, somente o habitus, enquanto manifestação de esquemas que orientam todas as opções – sem, no entanto, conseguir sua explicação completa e sistemática –, pode contribuir para a compreensão das ações dos campesinos bearnêses, ainda que ao custo de uma ruptura com o modelo de regras que, aliás, só existe enquanto tal nas teorias dos etnólogos. Assim, as alianças matrimoniais no Béarn devem ser compreendidas como resultado de estratégias, mais do que de regras, orientadas à perpetuação da maysou e do patrimônio que havia de continuar sendo integralmente transmitido de geração para geração (BOURDIEU, 2004a). Por seguimento, o matrimônio bearnês não era fruto da observância de regras ideais, senão produto de estratégias que, lançando mão dos princípios profundamente interiorizados de uma tradição particular, reproduziam, mais inconsciente do que conscientemente, esta ou aquela das soluções típicas que garantiam a especificidade da tradição camponesa. O matrimônio sempre colocava ao capmaysoué um sério problema econômico e social que poderia alcançar o patrimônio e o nome da família e que só seria satisfatoriamente resolvido em se recorrendo a todas as possibilidades oferecidas pelas tradições sucessórias e matrimoniais do Béarn. Evidentemente que o cabeça de família podia valer-se das regras formais que o estruturalismo acredita poder reconstruir, mas, na prática, o comum era que as soluções ideais-típicas oferecidas pelo mapa das genealogias fossem submetidas a todas as manipulações necessárias para justificar, ex ante ou ex post, as alianças mais conformadas aos interesses da linhagem, quer dizer, à salvaguarda ou, até mesmo, ao incremento de seu capital material e simbólico. Desta forma, para Bourdieu o que importa, no caso do Béarn, são menos as regras do que os caminhos efetivamente percorridos pelos sujeitos reais das relações de parentesco. Logo, o que torna o parentesco concreto e efetivo não são as genealogias construídas pelos etnólogos, mas sim os caminhos cultivados pelos sujeitos socializados (BOURDIEU, 2004a). Por isso, a perspectiva bourdieusiana propõe-se a centrar sua atenção no que Woortmann (2004) chamara de parentesco prático, isto é, nos caminhos cultivados. As estratégias matrimoniais bearnesas, de acordo com Bourdieu, sempre se propunham a realizar um “bom casamento” e não apenas um simples casamento, ou seja, visavam otimizar os benefícios e minimizar os custos econômicos e simbólicos do matrimônio enquanto uma transação de tipo muito peculiar. Estas estratégias eram regidas, em cada caso, pelo valor do patrimônio material e simbólico que podia ser investido e revertido com a transação, de conformidade com o sistema de interesses próprios dos diferentes sujeitos envolvidos, considerando-se o capital material e simbólico de sua família, o número de filhos homens e mulheres, se o nubente é varão ou varoa, primogênito o filho segundo. 73 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 O casamento no Béarn, conforme a interpretação de Bourdieu, por conseguinte, era um fato econômico e político, visando não apenas a preservação da “casa”, mas também da honra da família e sua posição na hierarquia social. Era parte de um jogo social, análogo ao jogo de cartas. Cada casamento consistia, pois, em um lance, o resultado de estratégias que dependiam dos matrimônios anteriores, e implicavam invariavelmente um risco representado, entre outros fatores, pelo dote, posto que, como já visto, havia sempre a possibilidade deste ser devolvido (BOURDIEU, 2004a; WOORTMANN, 2004). As trocas matrimoniais, então, faziam-se dentro de um jogo, que admitia riscos, e o sucesso neste jogo dependia da habilidade dos jogadores. Quem jogava, todavia, não eram os indivíduos considerados nos seus interesses, sentimentos e afetos, e sim a maysou, objetivando manter a integridade de seu patrimônio e seu nome. Contudo, a “casa” bearnesa era encarnada por um sujeito mais concreto, o capmaysoué, guardião e herdeiro não só de sua materialidade, como também da honra da linhagem. Este herdeiro precisava dominar o senso prático, o sentido dos variados jogos que articulavam e contrapunham as diversas “casas”, incluindo o jogo muito peculiar dos casamentos. O sucesso no jogo dependia, além da maestria do capmaysoué, do número relativo de filhos e filhas existentes na casa a cada geração. A paridade na quantidade de filhos e filhas, ou o maior número de varões, significava sempre anunciação de melhores probabilidades de sucesso. A existência de um quantitativo de filhas maior do que o de filhos, a seu turno, constituía prenúncio de dificuldades a serem enfrentadas no jogo dos matrimônios. E isto porque, dentre outras razões já expostas associadas à valoração negativa das filhas mulheres no sistema simbólico bearnês, era o dote recebido pelo casamento do filho primogênito, o herdeiro – o do varão sempre maior do que o da varoa – que assegurava casar e dotar os filhos segundos, fossem homens ou mulheres. O cabeça da “casa” necessitava conhecer, pois, o sentido do jogo para realizar boas alianças, casando o herdeiro com uma mulher de outra “casa” preferencialmente superior, mas não demasiadamente acima, que garantisse, pelo pagamento do adot, o casamento das filhas e filhos segundos, evitando as alianças desacertadas que resultassem em desonra ou dilapidação do patrimônio da maysou (BOURDIEU, 2004a; WOORTMANN, 2004). De forma geral, além do imperativo fundamental de salvaguardar a maysou, o jogo social impunha ao capmaysoué a observância de dois princípios básicos em suas estratégias. O primeiro consistia na primazia dos homens sobre as mulheres, o que levava ao fato de que a condição de herdeira só pudesse recair sobre uma varoa na absoluta ausência de filhos varões, já que as filhas, independentemente de sua ordem de nascimento, estavam sempre condenadas a serem filhas segundas. Com efeito, o direito a ser um cabeça de família só podia caber a um homem, ao maior dos agnatos ou, em sua ausência, ao marido da herdeira – uma espécie de herdeiro através da mulher –, que convertia-se em representante da linhagem de sua esposa e tinha que sacrificar em alguns casos até seu nome de família, para tanto. O segundo princípio 74 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 básico constituía na primazia do primogênito sobre os filhos segundos. Este princípio estava intimamente relacionado ao fato de o patrimônio ser o verdadeiro objeto das decisões econômicas e políticas da família. Ele afirmava a indivisibilidade do poder sobre a terra, outorgado ao primogênito, o que decorria, na realidade, da indivisibilidade da própria terra e determinava ao primogênito que se convertesse em seu defensor e guardião. Assim, o princípio implicava que a terra pertencia ao primogênito e este à terra (BOURDIEU, 2004a). No jogo das trocas matrimonias do Béarn, portanto, o primogênito era uma peça particularmente importante. Constituía aquele que permanecia na “casa”, convertendo-se em guardião da maysou; era, ainda, o herdeiro e futuro transmissor do patrimônio. Tratava-se, contudo, mais de uma construção social do que de uma posição natural, pois em dadas circunstâncias outro filho mais jovem podia ser transformado em herdeiro. Na realidade, o pai “fazia” o herdeiro ou primogênito, segundo sua vontade, a conveniência ou as contingências do jogo social e econômico, manipulando as regras oficiais, inclusive as jurídicas, os usos e os costumes do sistema a fim de maximizar as chances de perpetuação da maysou. Por outro lado, o filho segundo, não raramente celibatário – principalmente quando de uma família pobre –, embora não ocupasse um papel central, comumente exercia uma função importante na reprodução social no Béarn. Construído pelo habitus, era resignado porque designado pelas regras e regularidades do sistema, tendo internalizado as disposições naturalizadas que o colocavam na condição de pessoa detentora de uma espécie de “menoridade adulta”. O celibatário não representava apenas mão de obra, ainda que representasse isto também; era necessário para garantir a continuidade das alianças matrimonias, na hipótese de falecimento do herdeiro, que conduziria ao fim dos laços estabelecidos pelo casamento, com o perigo sempre presente de ocorrência do tournedot caso o primogênito não deixasse descendência, o que poderia restar evitado com o matrimônio da viúva com o filho solteiro (BOURDIEU, 2004a; WOORTMANN, 2004). Bourdieu vai, assim, além da noção abstrata de aliança matrimonial sem sujeitos concretos lévi-straussiana, focalizando cada casamento no contexto das particulares histórias matrimoniais das “casas” camponesas. De acordo com o autor, os casamentos no Béarn, diferentemente do que pensaria um estruturalista, eram construções de um sujeito ativo, o capmaysoué, visando evitar as más alianças e obter um dote máximo com o matrimônio do primogênito, assim como gastar o mínimo possível com o dote dos filhos e filhas segundos, o que poderia inclusive redundar no celibato destes filhos – mais comum e desejado para os varões do que para as varoas, pois aqueles constituíam mão-de-obra extremamente necessário em um mundo social onde o dinheiro era escasso, enquanto as mulheres não se dedicavam ao trabalho agrícola, senão ao doméstico, sendo economicamente onerosas para a maysou. Este jogo, pautado em um senso prático, não alcançava, porém, a ordem do discurso: davase conforme o habitus, excluindo o conflito entre dever e sentimento e fazendo com que os indivíduos só percebessem no cônjuge qualidades que, na verdade, travestiam os 75 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 reais critérios adotados: a busca pela reprodução do patrimônio, da honra e do nome da linhagem. Isto não significa que não existissem discordâncias, mas estas funcionavam na dissimulação e transfiguração do destino construído social e culturalmente como se fosse uma livre escolha. Por isso, Bourdieu afirma que o etnólogo não deve tomar como verdade sagrada o discurso público, oficial, simplesmente construindo relações lógicas que se opõem às relações práticas. Mas sim compreender o senso prático e as estratégias dele decorrentes, que produzem no discurso uma transfiguração dos interesses reais. Assim, é preciso ir-se para além do discurso público dos nativos, relacionando, no entanto, as práticas e os discursos a princípios culturais centrais, que lhes organizam Celibato, Dominação Econômica e o Mercado Matrimonial Bearnês Tudo sobre o que se dissertou até então toca mais diretamente ao estado do sistema simbólico bearnês anterior ao período que Bourdieu realizara sua pesquisa, em meados do século XX.Entretanto, um dos fatores primaciais que levaram o sociólogo francês a interessar-se por voltar, enquanto etnólogo a sua região natal, fora as modificações profundas que o mercado matrimonial do Béarn vinha sofrendo em função do processo de urbanização e, concomitantemente, da introdução da economia de mercado e de seu sistema de valores. Já no artigo Celibato e condição camponesa Bourdieu se perguntara o que levou o sistema matrimonial campesino à anomia, fazendo-o operar de sorte a converter em celibatários aqueles agentes designados pelas regras sociais ao casamento preferencial, isto é, os primogênitos. No artigo de 1989, Reprodução proibida, o autor oferece outra significativa contribuição à antropologia e aos estudos do parentesco dedicando-se a buscar uma forma de compreender o fenômeno social dos primogênitos celibatários da sociedade bearnesa. Bourdieu explica tal fato demonstrando a ocorrência do que chamou de unificação do mercado de bens simbólicos, ou seja, da miscigenação do sistema simbólico dos camponeses do Béarn com o sistema de valores que, dentre outros motivos, acompanhou o processo de urbanização e de incorporação, no modo de vida campesino, dos princípios que fazem operar a economia de mercado, bastante distintos dos que acompanhavam a economia de subsistência tradicional camponesa. Para finalizar o presente trabalho, discorrerei brevemente sobre este terceiro momento das reflexões bourdiesianas acerca dos campesinos bearnêses. A anomia – para usar o termo de Durkheim (1999) de que Bourdieu valeu-se no artigo de 1962 – do sistema matrimonial do Béarn ocorrera, segundo o sociólogo francês, em razão de um conjunto de processos, tanto econômicos quanto simbólicos, que contribuíram para a abertura objetiva e subjetiva do mundo camponês, fenômeno este que veio a neutralizar progressivamente a eficácia dos fatores que tendiam a garantir a autonomia relativa do universo bearnês e possibilitavam a resistência ao sistema de valores dominantes no meio urbano. Tais fatores, por exemplo, estavam relacionados à parca dependência dos camponeses em relação à economia de mercado, sobretudo no que respeita ao consumo, ao isolamento geográfico, à 76 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 precariedade dos meios de transporte, às dificuldades de deslocamento, ao confinamento em um universo social de base local, para não citar outros. Referido confinamento objetivo e subjetivo propiciava uma espécie de particularismo cultural baseado na resistência ao modo de vida urbano, notadamente em matéria de língua (os camponeses, tradicionalmente, comunicavam-se entre si em bearnês e não em francês), religião e política. A unificação do mercado de bens simbólicos resultou, por um lado, em uma força de atração exercida pelas realidades urbanas dominantes e por seu sistema cultural e, por outro, em uma força de inércia que diferentes agentes incorriam em razão de seus habitus, quer dizer, de seus esquemas tradicionais de percepção, valoração, ação e apreciação (BOURDIEU, 2004a). Os camponeses do Béarn viviam em um microcosmos social relativamente fechado que cerrava-se ao macrocosmo da sociedade moderna capitalista do entorno. Este relativo isolamento dotava os camponeses de hierarquias sociais próprias, havendo seus dominantes e seus dominados, assim como seus conflitos de “classes”, que apresentavam uma certa independência das relações que se davam no espaço externo. A unificação do mercado de bens simbólicos apresentou como primeiro efeito o desaparecimento dos valores campesinos capazes de colocar-se frente aos valores urbanos e mercadológicos dominantes. Assim, para referir apenas alguns exemplos de impactos do novo estado de coisas material e simbólico, a exploração agrícola passou a depender cada vez mais do mercado de bens industriais (maquinarias e etc.), de empréstimos que comprometiam o equilíbrio financeiro da empresa agrícola e as induzia à adesão a certos tipos de produtos e mercados, da evolução geral dos índices de preços de que os camponeses não tinham qualquer controle, da intervenção econômica dos poderes públicos em um universo social, algo naturalizado, que partilhava de uma ilusão de autonomia em relação às intervenções do Estado. A subordinação crescente da economia camponesa à lógica da economia de mercado, que provocou profundas transformações materiais no mundo rural bearnês, como é de ver-se, foi acompanhada, como que por uma relação de causalidade circular, de mudanças profundas no sistema simbólico que determinaram a degeneração da autonomia campesina e, com isso, a debilitação de sua capacidade de resistência à urbanidade (BOURDIEU 2004a). Na medida em que o mundo finito e fechado dos bearnêses objetivamente se abre, os véus subjetivos – isto é, de cada indivíduo –, que tornavam impensável a miscigenação entre o espaço rural e o urbano, começam a também ser retirados. Todavia, as vantagens associadas à vida urbana só existem e atuam sobre os camponeses quando se tornam percebidas e valoradas, e isto somente ocorre se são apreendidas em função de categorias de percepção e de valoração (habitus) que fazem aquelas vantagens deixarem de passar inadvertidamente, ignoradas, convertendo-se em não apenas visíveis, mas também desejáveis. A força de atração do modo de vida urbano, pensa Bourdieu, só pode exercer-se em mentes previamente treinadas a notar seus atrativos. Ou seja, é a conversão coletiva da visão de mundo, em muito cara ao processo de escolarização, que confere o reconhecimento hegemonicamente outorgado aos valores da urbanidade. Evidentemente, a conversão coletiva aos novos valores é também o produto histórico de inumeráveis conversões individuais. E os agentes que, no Béarn, 77 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 opuseram menos resistências às forças de atração externas, que perceberam antes e melhor as vantagens associadas à cultura urbana, foram aqueles destinados socialmente a sentirem um menor apego objetivo e subjetivo pela terra e pela maysou, quer dizer, as mulheres, os filhos segundos e os camponeses pobres (BOURDIEU 2004a). A revolução econômica e simbólica no meio rural foi muito particularmente sentida no mercado matrimonial, onde a transformação do sistema de valores tornou-se, de acordo com Bourdieu, especialmente dramática. Os herdeiros das famílias relevantes, designados culturalmente a serem mais apegados às tradições – aliás, a serem seus guardiões –, restaram condenados ao celibato, enquanto vítimas conjeturais das circunstâncias históricas que transformaram o mercado matrimonial camponês outrora rigorosamente protegido por imposições e controles manifestos nas representações e práticas tradicionais.Ao empreender uma desvalorização brutal do modo de produção material e de reprodução social camponês, ou seja, de tudo aquilo que as famílias campesinas podiam oferecer – incluindo sua linguagem, seus modos, seus comportamentos e até sua corporeidade –, a unificação do mercado de bens simbólicos neutralizou os mecanismos sociais que garantiam aos camponeses, sobretudo aos primogênitos, o monopólio de fato do mercado matrimonial, um mercado então restrito que proporcionava-lhes todas as mulheres necessárias para a reprodução social do grupo. Ao empreender uma desvalorização brutal do modo de produção material e de reprodução social camponês, ou seja, de tudo aquilo que as famílias campesinas podiam oferecer – incluindo sua linguagem, seus modos, seus comportamentos e até sua corporeidade –, a unificação do mercado de bens simbólicos neutralizou os mecanismos sociais que garantiam aos camponeses, sobretudo aos primogênitos, o monopólio de fato do mercado matrimonial, um mercado então restrito que proporcionava-lhes todas as mulheres necessárias para a reprodução social do grupo. O mercado matrimonial de antes não obedecia a leis mecânicas – como um estruturalista poderia pensar –, mas possuía mecanismos suficientes para estar protegido das “anarquias”, sendo por isso que a iniciativa do matrimônio não pertencia aos indivíduos, senão a suas famílias, em nome dos interesses das “casas”, o que resguardava o mercado das fantasias ou azares dos sentimentos. O habitus também contribuía para a salvaguarda do mercado matrimonial, visto que a própria educação familiar já predispunha aos jovens a submeterem-se às cominações parentais e a perceber os pretendentes e o casamento segundo as categorias de percepção (as “lentes”) da cultura camponesa (BOURDIEU 2004a). De acordo com a interpretação de Bourdieu, o controle do grupo sobre os intercâmbios matrimoniais se afirmava na restrição do mercado de casamentos, que era então medido em distância geográfica e, o mais significativo, em distância social. Mesmo que, neste aspecto, o mundo campesino não possuísse autonomia absoluta, os cabeças de família conseguiam conservar o controle da reprodução do grupo, assegurando que a quase totalidade dos intercâmbios matrimoniais ocorressem no seio de um mercado extremamente reduzido e homogêneo em termos de condições materiais de existência e de habitus, o que garantia a perpetuação dos valores fundamentais do grupo. Todavia, este mundo hermeticamente fechado, com a unificação do mercado de bens simbólicos, foi paulatinamente se abrindo. E com a 78 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 abertura do mercado matrimonial e a difusão de novos valores, notadamente urbanos, os jovens citadinos, com sua desenvoltura e sua hexis corporal (incluindo o físico, elementos posturais e o vestuário) levavam grande vantagem sobre os camponeses, inaugurando uma concorrência absolutamente desigual. Além disso, o jovem citadino era capaz de circular em diferentes mercados matrimoniais, enquanto que os campesinos bearnêses estavam confinados a um meio rural limitadíssimo e submetidos agora a competências, dentro de seu próprio campo de ação, de que seus concorrentes estavam simbolicamente melhor apetrechados (BOURDIEU 2004a). Foi este contexto que tornou o sistema anômico, notadamente porque os camponeses, em especial os primogênitos de famílias relevantes, continuaram aplicando os princípios antigos às situações sociais novas. As respostas de seu habitus, não coincidindo mais com o mundo exterior, passaram a contrapor-se a este mundo, invertendo seus efeitos e fazendo-os atuar contra o próprio sistema cultural bearnês. Isto ocorrera porque a crise no universo dos valores não engendrou automaticamente a tomada de consciência das transformações. Ademais, a anomia se explica porque as alianças matrimoniais começaram a operar no Béarn com princípios contraditórios, os camponeses desejando resistir à nova ordem, mas se convertendo, ao mesmo tempo, em cúmplices do processo de degeneração dos valores e do estilo de vida tradicional. Tal paradoxo manifestava-se quando, por exemplo, os camponeses desejavam que seus filhos casassem com camponesas, embora pretendessem que suas filhas esposassem citadinos. Assim, o grupo não almejava para suas filhas o que almejava para seus filhos ou, em outros termos, não queria seus filhos para suas filhas, mesmo que quisesse suas filhas para seus filhos. Esta contradição ocasionava naturalmente o celibato dos herdeiros, o êxodo rural e o abandono dos valores tradicionais, fatos tidos pelos campesinos como calamidades sociais, fazendo dos bearnêses cúmplices de sua própria degenerescência, isto é, colocando-os em uma situação patente de violência simbólica (BOURDIEU 2004a). Considerações Finais A análise dos três artigos bourdieusianos sobre o parentesco na sociedade bearnesa, que por agora findo, conduz-nos à conclusão de que os principais contributos que Bourdieu oferece nestes textos à etnologia praticada em meados do século XX poderiam ser assim resumidas: 1) a prática da etnografia em uma sociedade camponesa europeia e familiar ao pesquisador, buscando fugir do mecanicismo e formalismo das explicações estruturalistas, sobretudo as lévistraussianas; 2) a descoberta de que o celibatário, diferentemente de um sujeito que se encontra em uma posição anômala dentro da sociedade – como os etnólogos costumavam vê-los antes dos trabalhos bourdieusianos –, pode, em alguns grupos, exercer uma função relevante para a reprodução social; 3) a percepção das regularidades e das estratégias dos agentes socializados, especialmente a partir das noções teóricas operativas de habitus e senso prático, em oposição ao modelo de 79 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.61-80 regras e das construções de mapas formais de genealogias, ao estilo de Lévi-Strauss; e 4) a visualização das estratégias matrimoniais como sendo partes constituintes de um mercado de bens simbólicos sempre tendente à autonomização, embora sujeito às pressões externas, ainda que de forma dissimulada, tais como as econômicas e as derivadas dos afetos e sentimentos subjetivos. Estas três contribuições aos estudos antropológicos do parentesco foram publicizadas em momentos muito distintos da obra bourdieusiana, que vão do jovem pesquisador recém ingresso nas ciências sociais através da etnologia, até o intelectual maduro do final da década de 1980. Todavia, mesmo que em Celibato e condição camponesa possamos ver um Bourdieu ainda não tão distante da matriz estruturalista – a buscar, de certa forma, desvelar a lógica do parentesco bearnês – e em Reprodução proibida um Bourdieu absolutamente seguro de como ir além do estruturalismo – verificando as interfaces entre o mercado matrimonial e a economia de mercado –, penso não equivocar-me ao afirmar que os artigos apresentam uma coerência entre si enquanto esforços, em graus diferentes de êxito, de superação da práxis etnológica de Lévi-Strauss. De qualquer forma, lidos em conjunto, como na obra O baile dos celibatários, oferecem elementos significativos para se pensar, parafraseando o próprio Bourdieu, o ofício de antropólogo, no caminho do que o autor chamou de uma antropologia reflexiva. Referências BOURDIEU, Pierre. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Trad. Reynaldo Bairão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. ALMEIDA, Henrique Silveira. Controle de qualidade com e sem estatística. São Paulo: Atlas, 2013. _________. Esboço de auto-análise. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo: Companhia das Letras, 2005a. _________. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005b. _________. El baile de los solteros. Trad. Thomas Kauf. Barcelona: Anagrama, 2004a. _________. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. _________. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denice Bárbara Catani. São Paulo: UNESP, 2004c. _________. A sociologia de Pierre Bourdieu. Trad. Paula Montero e Alícia Auzmendi. São Paulo: Olho D'Água, 2003. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Pulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. WEBER, Max. . Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 4. ed. Brasília, DF: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. v. 1. WOORTMANN, Klass. A etnologia (quase) esquecida de Bourdieu, ou o que fazer com heresias. Disponível em: http://www.unb.br/ics/dan/Serie317empdf.pdf. Acesso: mai./2009. 80 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.81-96 A História da Evolução da Escrita no Mundo Ocidental Edivaldo da Silva Bernardo * Myrlena Bastos Queiroz ** RESUMO O presente trabalho tem por objetivo refletir a respeito da história da evolução da escrita no mundo ocidental considerando as implicações a respeito de sua origem, as formas de escrita de acordo com a cultura e o aparecimento da escrita na América do Sul. No texto, são ressaltadas as concepções teóricas de alguns estudiosos da área da linguística, antropologia, arqueologia e filologia voltadas para o campo de estudo da escrita, e que a definem como uma linguagem que tem função política, econômica e social, como fonte de poder ou compartilhamento do conhecimento e do saber entre os povos. Palavras-chave: origem da escrita - formas de escritas - escrita na América do Sul ABSTRACT This paper proposes a reflection about the history of the evolution of writing in the Western world considering the implications regarding its origin, forms of writing according to the culture and the emergence of writing in South America. The text highlights theoretical conceptions of some scholars in the field of linguistics, anthropology, archeology and philology related to the field of study of writing, who define it as a language that has political, economic and social role as a source of power or knowledge sharing and of knowledge itself among the people. Keywords: origin of writing - forms of writing - writing in South America * Doutor em História e Literatura pela Universidade de Leon/ Espanha; professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Email: [email protected] ** Especialista em Língua, Cultura e Sociedade pela UFOPA e em Linguagem na Educação Infantil e nas Séries Iniciais pela UFPA. E-mail: [email protected] 81 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.81-96 Introdução A escrita é uma das mais antigas tecnologias inventada pelo homem, vista como um instrumento de ascensão social. Como uma linguagem, ela é indispensável ao homem pelo valor cultural, político, econômico, religioso, literário e social. Neste sentido este trabalho propõe uma reflexão da escrita como fonte de poder no ensino, numa abordagem sociointeracionista, considerando a natureza, função e uso da escrita como práticas sociais indispensáveis ao ser humano. A linguagem escrita é imprescindível ao ser humano. Pesquisas realizadas no campo de estudo da escrita, afirmam que, por ser uma linguagem, há diferentes concepções que vão da mais técnica a mais humanista. Na perspectiva humanista existe uma visão mítica e evolucionista. Quanto a ser mais técnica, a escrita tornou-se um objeto de pesquisa envolvendo todas as diferentes áreas do conhecimento. Assim, este artigo intitulado “A escrita como fonte de poder no ensino” apresenta uma discussão da escrita sob o ponto social, político, econômico e linguístico. Neste sentido, “A história da evolução da escrita no mundo ocidental” apresenta as implicações a respeito da origem da escrita, as formas de escrita de acordo com a cultura e o aparecimento da mesma na América do Sul, no intuito de mostrar o poder da escrita no mundo ocidental, como fator de desenvolvimento comercial, cultural, político e econômico, assim como possibilitou a comunicação entre os povos. A História da Evolução da Escrita no Mundo Ocidental 1 As Implicações a Respeito da Origem da Escrita Para se compreender a história da evolução da escrita no mundo ocidental é preciso entender as implicações sobre sua origem. A escrita para alguns estudiosos como Mandel (2011) vem ser a expressão do pensamento. Neste sentido, embora tenha sido um instrumento de poder entre os homens, à medida que se espalhou entre os povos tornou-se uma forma ideal de compartilhar o conhecimento. Para outros estudiosos, como Tfouni (2010, p.12), ”a escrita é um produto cultural por excelência”, quando se entende cultura como “materialismo histórico”, com poder de decisão, historicidade, de construção e transformação da natureza. Vista desta forma a escrita exerce uma influência, uma evolução, mas ao mesmo tempo permite uma aproximação entre os povos. Quanto à sua natureza, as pesquisas realizadas na área da história da antropologia, sociologia, psicologia e linguística entre outras, mostram que no campo de estudo da escrita há uma perspectiva mais técnica e outra mais humanista, e mais orientada pela história da cultura. Na perspectiva de ser mais técnica, Gnerre (1991) afirma que a escrita tornouse um objeto de pesquisa nos últimos tempos, com o aumento de programas de alfabetização e educação, devido a pressões políticas e econômicas, e a padronização da escrita de muitas línguas sem tradição escrita, passando então a ser objeto de reflexão de fundamentação histórica e ideológica na sociedade. Quanto ser mais humanista, o campo de estudo da escrita se desenvolveu a 82 Revista Perspectiva Amazônica partir de um ponto de vista mítico. Neste caso, Gnerre (1991, p. 42) afirma que Ano 4 N° 8 p.81-96 [...] a partir de uma visão evolucionista e mítica da escrita. Evolucionista, porque opera a partir do pressuposto da existência de uma série linear de estágios da história da escrita, que, iniciando com os símbolos “pictográficos” e “ideográficos”, alcançando o nível mais alto de abstrações com a escrita alfabética; mítica porque assume que a escrita, e em especial a escrita alfabética, que representa um marco substancial numa perspectiva cultural e cognitiva. Assim, percebemos que na sua origem a escrita sofreu uma evolução desde os símbolos até chegar à forma que o alfabeto é hoje, o que explica também o aparecimento do “Homom-sapien” relacionado com o aparecimento da linguagem oral e escrita feita por alguns pesquisadores de concepção evolucionista (GNERRE,1991). Assim, as marcas gráficas deixadas pelo homem primitivo em objetos, cavernas e rochas, não deixam dúvida que havia uma necessidade do homem de se comunicar, registrar os acontecimentos ou até mesmo de expressar suas ideias. Neste sentido, afirma Mandel (2011, p.17) que o homem primitivo rodeado por um meio ambiente ainda não dominado tinha tendência em dar um sentido místico às ações mais comuns e estabelecia uma relação oculta entre os mais diversos acontecimentos. Nos sinais mnemônicos mágicos, assim como nas marcas de propriedade. Assim, as marcas feitas pelo homem primitivo permitiu uma forma independente e autônoma da escrita em que a história passa a considerar como marco fundamental na divisão entre a história e pré-história.Entretanto, para muitos pesquisadores não se pode afirmar que as marcas gráficas deixadas pelo homem primitivo se constituem um sistema. O assunto de conceituar ou não um sistema em que envolve a escrita é tão complexo que Gnerre (1991) explica que, no século XVI, os europeus, ao estudar os hieróglifos Nahuati e Maia, tiveram dúvidas se deviam ou não adotá-los como sistema, devido aos costumes e hábitos desses povos serem diferentes dos deles. Neste sentido, somente no século XVII, com o conhecimento da escrita e da cultura chinesa, permitiu-se conceituar povos com “ausência de escrita/escrita nãoalfabética/escrita alfabética” (GNERRE,1991, p. 36). Considerando que a escrita não seguiu de uma linha de evolução cronológica específica de nenhum sistema, Cagliari (1995) afirma que, não existe uma data que defina sua origem. Historicamente, o que marcou o surgimento da escrita foi o sistema de contagem, feito pelos homens primitivos por meios de marcas feitas de cajados ou ossos usados para contar animais, numa época em que estes já possuíam rebanhos e domesticavam animais. Esses registros com o tempo evoluíram e foram usados no comércio, nas trocas e vendas de produto, o que fez com que surgissem os números, os símbolos para os produtos, e nomes para os proprietários. Segundo Cagliari (1995), as marcas gráficas deixadas pelo homem primitivo são conhecidas como os códigos escritos mais antigos deixados pelo homem e estão divididas em três fases distintas: a pictográfica, ideográfica e alfabética. A fase pictográfica caracteriza-se por desenhos associados à imagem que quer se representar. As evidências desta escrita encontram-se em inscrições antigas como os que existem nos cantos de Ojibwa na América do Norte, representando um 83 Revista Perspectiva Amazônica catecismo Asteca (CAGLIARI, 1995). No que se refere à fase ideográfica, esta se caracteriza pela escrita através de desenhos especiais que representavam não somente a imagens, mas a ideia que se queria representar. Conhecidos como ideogramas Cagliari (1995, p.108) explica que Ano 4 N° 8 p.81-96 esses desenhos foram ao longo da sua evolução perdendo alguns dos seus traços representativos das figuras retratadas e tornaram-se uma simples convenção de escrita. As letras do nosso vieram desse tipo de evolução. Por exemplo, o aera a representação da cabeça de um boi na escrita egípcia [...] o dera a figura de uma porta [...]o X representava o peixe [...] Desta fase merecem destaque e escrita egípcia ou hieroglífica, a mesopotâmia (suméria), as escritas da região do mar Egeu (por exemplo, a cretense), a chinesa de onde se originou a escrita japonesa e a dos Maias na América Central (CAGLIARI, 1995). Os estudos de Cagliari (1998) afirmam que sistemas de escritas dos sumérios, dos egípcios, dos chineses e dos Maias foram criados de forma autônoma e independente, sem o conhecimento prévio de outros povos. O autor afirma, ainda, que todos os demais sistemas de escrita foram criados a partir de contato de pessoas com algum outro sistema de escrita. Quanto à escrita alfabética, ela é fruto da evolução dos ideogramas, caracterizase pelo uso das letras e assumem a função de um sistema de escrita de representação fonográfica. Pode ser considerada uma das maiores invenções humanas, e foi por meio do alfabeto que nasceu e se fundamentou a nossa cultura e nossas sociedades modernas. Conforme Cagliari (1995) entre os sistemas alfabéticos mais importantes destaca-se o semítico, o indiano e o grego-latino. Deste último nasceu nosso alfabeto. Conforme Cagliari (1995) os gregos adaptaram o sistema de escrita dos fenícios, juntando as vogais e as consoantes criando o sistema de escrita alfabético. Do grego veio o alfabeto latino, de onde se originou o nosso alfabeto e o cirílico (grego) e também o russo. A forma como vemos hoje o alfabeto é uma forma modificada, pois houve muitas transformações nos silabários, os sinais específicos de representação das sílabas. Como, por exemplo, quando Cagliari (1995, p. 117) afirma que,“O sistema de escrita do português, como já vimos, usa vários tipos de alfabeto; apesar disso não é totalmente alfabético, usando, além das letras, outros caracteres de natureza ideográfica, como os sinais de pontuação e os números”. Assim, as letras do sistema de escrita em português têm um uso alfabético, ou seja, cada letra corresponde a um segmento fonético, mas podem também perder a relação um a um entre símbolo e som. Na Mesopotâmia também coube aos Sumérios, há 3.300 anos antes de Cristo a forma mais antiga considerada independente e autônoma da escrita. Estes desenvolveram um tipo de escrita denominada cuneiforme, feita com objetos em forma de cunha em tabletes de argilas, que evoluiu e outros povos passaram a adotar como aconteceu com os babilônicos, hititas e árabes ao criarem cerca de 350 caracteres, assim como, também os persas que foram os primeiros a construir um grande império, que mais tarde foi conquistado por Alexandre o Grande. Entretanto, os fenícios criaram um sistema de escrita a partir de outro povo. O sistema de escrita alfabético adotado pelos fenícios possui muitos sinais da escrita 84 Revista Perspectiva Amazônica egípcia, formando assim um número reduzido de caracteres com sons consonantais permitindo escrever palavras apenas com consoantes, que depois influenciou a escrita árabe e o hebraico até hoje. Na Idade Antiga os fenícios utilizaram a escrita em suas transações comerciais e foram considerados como um dos grandes precursores da escrita, pela forma como mantinham contato com outros povos (CAGLIARI, 1995). No Egito, a escrita surgiu também de forma autônoma e independente, por volta 3.000 antes de Cristo. Eles foram os precursores de três formas de escrita: a hieroglífica, a hierática e a demótica. Conforme Vainfas (2010), a princípio a escrita hieroglífica exerceu um caráter religioso, com inscrições em monumentos e templos, considerada a escrita sagrada. Conforme Vainfas (2010), os hieroglíficos deram origem à forma hierática, Ano 4 N° 8 p.81-96 uma escrita cursiva muito usada em textos literários, jurídicos e administrativos que eram grafadas no papiro, um tipo de suporte feito com papel feito com as fibras de uma planta aquática. Por último, a forma hierática também evoluiu para a forma demótica que passou a ser usada na administração, criando assim uma camada burocrática denominada escriba. Muitos historiadores afirmam que a escrita egípcia era de alta complexidade, a qual possuía uma combinação de pictogramas e ideogramas, ou seja, desenhos que representavam objetos concretos e ideias abstratas. Afirma Vainfas (2010) que a escrita egípcia somente foi decifrada em 1822, quando o linguista francês Jean François Champollion se dedicou aos estudos das inscrições da Pedra de Roseta, surgindo assim a Egiptologia uma nova ciência. Afirma Cagliari (1998)que de forma autônoma e independente por volta de 1500 a.C a China, por ser considerada um povo civilizado e poderoso, criou um sistema ideográfico que revolucionou os estudos sobre a escrita alfabética e não alfabética. Os Maias também tiveram um sistema de escrita independente, num espaço de tempo em que a ciência ainda não determinou. Afirma o autor que todos os demais sistemas de escrita foram criados a partir de contatos que pessoas tiveram com outros povos. Introduzida na Grécia e na Jônia no século VIII a.C a escrita alfabética originou-se de uma evolução do sistema ideográfico. O processo foi lento, mas deixou mudanças culturais bem significativas em relação à escrita daquela sociedade, que antes era de tradição oral, segundo explica Tfouni (2010). Desta forma, a difusão da escrita alfabética no ocidente levou séculos para se firmar. Devido ao aparecimento lógico-empírico e filosófico, da formalização das disciplinas de história e lógica decorrente da própria democracia, permitiu que a Grécia passasse por um radical processo de transformações culturais e político-sociais. Neste sentido,Tfouni (2010) explica que só foi possível reconhecer a sociedade grega como letrada no século V e VI a.C, consolidando-se, assim, a escrita fonética. Explica Mandel (2011)que com os romanos, assim como com os gregos, foi diferente, eles adaptaram sua escrita às suas particularidades linguísticas e culturais. Nesse sentido a escrita romana foi criada para o latim da Roma antiga, o que permitiu a origem de inúmeras transcrições ortográficas contemporâneas, entre elas, a do 85 Revista Perspectiva Amazônica português brasileiro. Essas transcrições têm em comum um conjunto de grafemas fonológicos, a que chamamos de alfabeto romano latino ou ocidental, conforme Gramática descritiva-grafologia de Radames (2013). A forma autônoma e independente da escrita não aconteceu da mesma forma nas sociedades. No entanto, alguns questionamentos são feitos por alguns estudiosos a respeito de como a escrita foi utilizada, comprovando a forma como cada sociedade a adotou. Neste sentido,Tfouni (2010, p. 15) questiona que Ano 4 N° 8 p.81-96 se a escrita, está associada, desde sua origem [...] ao jogo de dominação/ poder, participação/ exclusão/ que caracteriza ideologicamente as relações sociais. Ela pode também ser associada ao desenvolvimento social, cognitivo e cultural dos povos, assim como a mudanças profundas nos seus hábitos comunicativos. Numa visão mais humanista, Valverde (1997 apud TFOUNI, 2010) afirma que o uso da escrita pelos sumérios, foi fundamental para o seu desenvolvimento comercial e cultural e se expandiu aos povos vizinhos como a Índia e a China. Isto é confirmado quando Tfouni (2010) explica que as argilas utilizadas dentro dos templos dos sumérios são exemplos de registros das relações de trocas e empréstimos de mercadorias, que historicamente coincidem com as grandes inovações como a roda e com a organização da agricultura e da engenharia hidráulica, provando o intercâmbio cultural e comercial do sistema de escrita adotado por eles. Contrapondo-se em parte o que pensa Tfouni (2010), afirma Cagliari (1998) que os sistemas de escrita, até então estabelecidos na história dos povos, nunca foram privilégio de ninguém, pois a ideia de que na Antiguidade somente sacerdotes, reis ou pessoa de grande poder dominassem a escrita e a usassem como segredo de Estado é falsa. Cagliari (1998, p.13) e ainda explica que essa é uma idéia errada e estranha, que não faz sentido algum, bastando lembrar como argumento que a escrita é um fato social, é uma convenção que não consegue sobreviver à custa de um punhado de pessoas. Os fatos históricos também mostram o contrário. Quando um faraó enche todas as paredes e até colunas com escritas exibe isso publicamente, não pensa, certamente, que essa seja a melhor maneira de guardar um segredo de Estado. Na concepção de Cagliari (1998) o povo podia ler o que estava escrito, como um interlocutor, como exemplo, temos o Código de Hamurabi, criado pelos babilônicos, que foi publicado em praça pública como um código de leis, para que o povo soubesse sob quais leis viviam e como deveriam agir na sociedade. Assim, o autor reafirma sua posição quando diz que, os que acreditam que a escrita era só privilégio das pessoas poderosas é pelo fato de ter chegado ao nosso conhecimento as grandes obras da Antiguidade. Pelo evolucionismo, conforme Gnerre (1991), a escrita se desenvolve por estágios, iniciando primeiramente com os símbolos “pictográficos” e “ideográficos”até alcançar o nível mais alto de abstração que é a escrita alfabética. Enquanto, mítica, os estágios da escrita, principalmente a alfabética, representam um avanço fundamental na perspectiva cultural e cognitiva. Aderindo a concepção de Gnerre (1991) afirma Tfouni (2010, p.13) que historicamente a escrita data a cerca de 5.000 anos antes de Cristo. O processo de difusão e adoção dos sistemas pelas sociedades antigas, no entanto, foi lento e sujeito, é obvio, a fatores político-econômicos. O mesmo se pode dizer sobre os tipos de códigos escritos criados pelo homem: pictográficos, ideográficos ou fonéticos, todos eles, quer simbolizem diretamente os referentes concretos, quer “representem' o pensamento (ou “idéias”), ou ainda os sons da fala, não são 86 Revista Perspectiva Amazônica produtos neutros, são antes resultado das relações de poder e dominação que existem em toda sociedade. Ano 4 N° 8 p.81-96 Assim, compreendemos que os códigos e as marcas gráficas feitos em diferentes suportes, pelo homem primitivo mostram que o homem fez uso da linguagem escrita como um meio de sobrevivência, para comunicar e expressar suas ideias ou pensamentos.Os sistemas de escrita criados pela sociedade antiga determinaram o poder e a influência social, política e econômica destes povos, a ponto de evoluírem e chegarem até nós tal como conhecemos o nosso sistema de escrita. Portanto, as marcas gráficas e os símbolos deixados pelas civilizações antigas são fundamentais para compreendermos que a evolução da escrita que surgindo ou não de forma independente e autônoma tornou-se um sistema altamente convencionado pelas sociedades antigas que a adotaram, tornando-se uma das grandes e mais antigas invenções já criadas pelo homem, que permite a memorização, a comunicação, o conhecimento e o saber entre os povos. 2 As Formas de Escritas de Acordo Com a Cultura Para se discutir as formas de escritas, de acordo com a cultura é fundamental termos como referência a diferença de tempo entre a escrita não convencionada e a convencionada, assim como as funções que coube a escrita desde a Antiguidade até os nossos dias, pois é nas formas diante do desenvolvimento cultural do mundo ocidental que percebemos sua evolução a ponto de compreendermos sua influência em determinadas sociedades. Estudiosos como Graff (1995) citado por ANDRADE (2005) aderindo à concepção de Eric Havelock, afirma que, houve um atraso quanto a origem da escrita na humanidade, devido a um fator biológico-histórico, em que se pode observar que há uma diferença acerca de um milhão de anos para o aparecimento do homo-sapiens, enquanto que a escrita teria surgido a 5.000 anos depois. AfirmaTfouni (2010) que no ocidente a escrita apareceu por volta de 600 a.C, chegando até nós um pouco mais de 2.500 anos. Isto nos mostra que houve um espaço enorme entre a escrita não convencional, usada pelo homem primitivo, e a escrita convencionada, sistematizada, determinada pela sociedade, tal como se apresenta o nosso sistema alfabético atual. Segundo Fromkin&Rodman (1993) quando o homem começou a indagar sobre sua própria natureza percebeu que existia um elo entre a escrita e a linguagem, assim os antropólogos acreditam que o homem existe há pelo menos um milhão de anos e talvez cinco ou seis milhões de anos. Entretanto, os primeiros registros escritos que foram decifrados datam apenas seis mil anos, são os escritos deixados pelos sumérios, que datam quatro mil anos antes de Cristo, pelo que se observa que estes registros não esclarecem a origem da linguagem. Afirma Fromkim&Rodman (1993) que os primeiros estudos sobre a origem da linguagem desenvolveram uma teoria de origem divina ou de desenvolvimento da espécie ou ainda como uma invenção humana. No entanto, não há uma reposta 87 Revista Perspectiva Amazônica definitiva cujas especulações sobre a linguagem concluíram que a escrita é a única evidência que temos de língua antiga, é que historicamente a fala precede a escrita por enorme período de tempo. Pois os estudos sobre a linguagem afirmam que, de fato as comunidades que existem atualmente possuem uma língua sem um sistema de escrita. Gnerre (1991, p.8) faz algumas considerações de natureza política, histórica e antropológica a respeito da relação linguagem, escrita e poder. Afirma que Ano 4 N° 8 p.81-96 a associação entre uma determinada variedade linguística e a escrita é resultado histórico indireto de oposições entre grupos sociais que eram ou são “usuários” (não necessariamente falantes nativos) das diferentes variedades e ainda confirma que os estudos linguísticos já provam que “escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar”. Assim a escrita associada à variedade “culta” foi durante a Idade Média uma exigência de ordem política e cultural das nações europeia. Desta forma, como sistema Mandel afirma que (2011. p. 23)“[...] todas as escritas refletem a imagens dos homens e das sociedades que as destilaram, tanto em suas verdades quanto em seus sonhos”. Segundo o autor, a maioria das sociedades desde a mais remota Antiguidade atribui às formas da escrita três grandes funções desigualmente repartidas, mas que se complementam, como a expressão do poder político, poder espiritual e a de poder individual. Na civilização egípcia apresentam-se as três funções da escrita. A primeira encontrada sob a forma hieroglífica lapidar e monumental com alta expressão de poder político-religioso. A segunda está na forma literária hierática como expressão do poder espiritual e administrativo. A última é a forma demótica corrente sob a expressão de poder individual. Entende-se que estas três funções servem para demonstrar a influência que a escrita egípcia exerceu em outras culturas. Afirma Mandel (2011), que na Mesopotâmia as funções da escrita não ocorreram da mesma forma que no Egito. Os acadianos, sucessores dos sumérios, substituíram a escrita pictográfica (relativamente decifrável) pela escrita cuneiforme, que era complexa, pelo que foi usada durante um regime de poder totalitário por funcionários do governo sob a forma impessoal e abstrata, como a que se observa nas gravuras monumentais e lapidares, em textos literários, administrativos e comerciais cravada em argilas frescas. Em relação à troca de escrita pelos acadianos, explica Mandel (2011. p.27) que transformar a escrita pictográfica relativamente legível em uma escrita complexa e ilegível (exigindo dos escribas vários anos de aprendizagem) pode apenas ser explicada pela vontade política dos acadianos em recuperar a escrita em proveito dos escribas ou dos funcionários a serviço do poder local. Quantos aos fenícios semitas, explica Mandel (2011), que prevaleceu a escrita acrofônica, uma forma de escrita linear, um sistema emprestado dos egípcios para qualquer uso tanto fosse comercial como administrativo e eram feitas nos mais diversos suportes. Entre os gregos, estes adequaram a escrita acrofônica, herdada dos fenícios e a adaptaram a sua própria língua, adquirindo uma forma geométrica, abstrata e de uso lapidar. Como mostra Mandel (2011, p.47) “[...] foi o alfabeto fenício que os gregos, etruscos e romanos adaptaram a escrita às suas particularidades lingüísticas e culturais”. Cagliari (2010) confere aos gregos a invenção do alfabeto, pois estes adaptaram o sistema de escrita dos fenícios que utilizaram vários sinais da escrita egípcia. Conforme Mandel (2011, p.7), o “nosso alfabeto é filho do hieróglifo” e 88 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.81-96 adotaram um sistema que junta as vogais às consoantes apresentando o inventário menor de símbolos, permitindo assim a maior possibilidade combinatória de caracteres na escrita já criado pelo homem. Depois foi adaptada, modificada pelos romanos constituindo-se no sistema alfabético greco-latino de onde se origina o nosso alfabeto. A escrita na Grécia antiga era vista como a “linguagem dos deuses”, Mandel (2011, p.75) uma escrita sagrada, reservada a elite de intelectuais. Os escribas escreviam textos referentes aos deuses, aos ritos, textos jurídicos, atos oficiais, administrativos e comerciais em uma escrita manuscrita relativamente rara feita em papiros, transformados em livros, considerados textos únicos, pois não podiam ser copiados (MANDEL, 2011). Na sociedade romana, a escrita se adequou à nova estrutura social, aderiu um critério de uso da escrita parecido com a dos egípcios dividindo-a em três categorias, comparável a dos gregos. Segundo Mandel (2011, p.29) ”[...] o poder político se expressando pela escrita monumental, a escrita livresca refinada reservada ao literário e ao administrativo, por último, a escrita no cotidiano”. O que prova uma das inúmeras razões das modificações dos caracteres gráficos ocorridas aos longos dos séculos. Aos romanos foi notável à função que a escrita assumiu. Conforme Mandel (2011, p.55), “engrandeceram a escrita herdada dos gregos e a tornaram mais legível pela separação das palavras ritmando os textos, dentro de uma dinâmica considerada histórica”.. Desta forma, Roma, além de impor deliberadamente a todos os países conquistados o latim e sua escrita, fez surgir, também, as línguas romanas em substituição as línguas locais, pois queria torná-la legível a todo custo, espalhando por todo império em monumentos, como o “arco do triunfo”, com inscrições de honra a Roma, na forma de escrita lapidar, homenageando os bons funcionários do governo com a finalidade de marcar seu domínio pela língua e pela escrita aos povos conquistados. Afirma Mandel (2011. p. 73) que A vontade de enfraquecer as culturas particulares neutralizando-as não é uma invenção nova. Ao longo da história, toda vez que um poder vitorioso, político ou religioso queria alienar um povo vencido começava por privá-lo de sua língua e de sua escrita, impondo-lhe a dos vencedores com seus conceitos próprios. Para o autor os conquistadores não estavam errados em querer impor sua língua, pois a primeira reivindicação de um povo que quer recobrar a sua liberdade é o uso de sua língua e de sua escrita. Estes são os primeiros indícios de sua liberdade. Foi assim que aconteceu com o império de Carlos Magno, que na tentativa de unificar o pensamento do ocidente Cristão impôs a todo império o latim e a “minúscula carolíngea” (MANDEL, 2011. p.8). Esta imposição dividiu a Europa em duas correntes do pensamento: ao Norte o pensamento escolástico, representada por uma escrita de estilo gótico, vertical, pesada, e ao Sul do pensamento humanístico com uma escrita redonda, leve a qual herdou nossa sociedade (MANDEL 2011). Uma das invenções que favoreceu estas correntes do pensamento foi o aparecimento do papel, a criação do livro e a da imprensa, pois antes os livros eram escritos a mão, depois surgiu à técnica de impressão. Os livros impressos a princípio não mudaram as formas escriturais em uso, mas causaram uma revolução, pelo que 89 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.81-96 questionava o poder do clero e a da impressão dos textos bíblicos (MANDEL. 2011) A invenção do sistema alfabético pelos povos do Meio-Oriente surgiu à cerca de 1.200 anos antes de J.C. Foi uma etapa decisiva na história da humanidade. Ao decompor a linguagem falada num determinado número de símbolos fônicos (ou letras) o alfabeto permitiu que se registrassem com uma mesma escrita todas as línguas daquela região criando vínculos muito fortes de comunicação entre os povos (MANDEL, 2006). O alfabeto pode ser considerado segundo Mandel (2011, p.3) “o primeiro ato de humanismo mediterrâneo”, é a origem e fundamento de nossa cultura e das nossas sociedades modernas. Para Mandel (2011) a escrita é o espelho dos homens e das sociedades pelo que se observa que desde tempos mais remotos, diversos sistemas de registro do pensamento, abstratos antecederam ao que chamamos de escrita. Afirma Mandel (2006, p.1) que Na gestualidade de sua escrita pessoal, o scriptor, através de um total investimento corporal e espiritual, deixa a marca da sua personalidade e da sua inserção em uma cultura. Em outro nível o da comunicação social, numa escrita mais elaborada, lapidar ou livresca destinadas a um público mais amplo, e na medida em que uma sociedade nela se reconhece e a adota, a escrita se torna escrita daquela sociedade e reflete a imagem de uma certa identidade cultural. Portanto, as funções que a sociedade atribuíram à escrita desde a antiguidade é um caminho longo e complexo. A princípio pode ser vista como um instrumento de poder do governo, mas ao se espalhar entre os povos torna-se a pedra fundamental da partilha do conhecimento e do saber. Seja por motivo social, político, religioso ou econômico fez e faz parte de todas as culturas de todos os povos. 3 O Aparecimento da Escrita na América do Sul Para falar do aparecimento da escrita na América do Sul se faz necessário compreender como ocorreu a ocupação na América. Os estudos arqueológicos e filológicos sobre a escrita na América ainda são recentes. Assim, algumas concepções prevalecem e outras servem como ponto de reflexão entre pesquisadores de todas as áreas, entre elas a linguística com seus estudos voltados para a linguagem. Os estudos em relação à ocupação da América conceberam duas teses. A primeira é a de que o “gênero humano” teria se desenvolvido na própria América, teoria denominada “autóctone”. Esta teoria que ainda não foi comprovada cientificamente, mas que se destaca pelo fato de existirem pesquisas que mostram indícios de várias comunidades indígenas com línguas que ainda não foram decifradas. Assim como mostra Vainfas (2010, p.18) que ainda no século XIX realizaran-se as primeiras pesquisas arqueológicas no Brasil, chefiadas por Peter Lund. Mais tarde foram descobertos vestígios de um grupo de seres humanos que ficou conhecido como Homem da Lagoa Santa. Em 1995, localizou-se um crânio. Para grande surpresa, as pesquisas demonstraram que era, até então, o fóssil mais antigo da América, com idade entre 11 mil e13 mil anos. Além disso, os estudos indicaram tratar-se de uma mulher, a quem os arqueólogos denominaram Luzia. A segunda teoria é a do “alóctone” que defende a ideia de que a América teria sido povoada por povos milenares a partir de migrações. Esta tese é a mais aceita, e 90 Revista Perspectiva Amazônica advém de uma concepção colonialista com fundamentos bíblicos (VAINFAS, 2010). Para Vainfas (2010) a ocupação na América possui explicações fundamentadas na bíblia e ocorreu que no século XV, no período em que os europeus chegaram neste território, afirmando que a origem dos povos americanos seria descendente das tribos perdidas de Israel. Esta teoria perdurou até o século XVI, quando os jesuítas começaram a questionar e defender a ideia de que o continente americano teria sido povoado pelos asiáticos. Depois esta teoria foi desenvolvida durante o século XIX, pelo etnólogo norte-americano D.G Brington, afirmando que o povoamento da América ocorreu há 40 mil anos pelo estreito de Bering. Embora as pesquisas mais recentes provem a existência de fluxos migratórios no continente americano pelo estreito de Bering entre 15.000 a 10.000 a.C no início do século XX a teoria do Paul Rivet, fundador do Museu do Homem em Paris, sugeriu haver outros focos de povoamento entre 6.000 e 3.000 a.C, vindo da “Ásia, da Austrália, do arquipélago do Pacífico, as ilhas polinésias e melanésias” (VAINFAS, 2010, p.19). Segundo Vainfas (2010) as hipóteses de Paul Rivet permitiu um campo amplo para o estudo da escrita. Neste sentido, os estudos de Rivet foram aperfeiçoados no século XX, e explicam o fato de haver na América mais de 2.600 línguas em poucas dezenas de milênios e até as pesquisas atuais comprovam que houve focos de povoamento entre 3.000 e 2.500 a.C, vindos das ilhas do Pacífico. Ano 4 N° 8 p.81-96 O povoamento da América foi, então, fruto dos habitantes que viveram no período da Pedra Lascada como mostram as escavações realizadas no México e Estados Unidos nas quais foram encontradas pontas de sílex, um tipo de lança usada por caçadores e coletores e que datam há cerca de 15.000 anos. Foram encontradas também no México e na região andina da América do Sul, diferentes técnicas de agricultura e de caça o que mostra que estes povos não possuíam o mesmo padrão de conhecimento técnico e cultura material em relação à forma de sobrevivência (VAINFAS, 2010). No sentido de compreender como surgiu a escrita na América, as pesquisas arqueológicas são fundamentais para a história, pois ajudam a desvendar hábitos, costumes, modos de vida, a cultura dos primeiros grupos humanos da América, assim como sua linguagem. A exemplo temos “A caverna das mãos”, imagem encontrada no extremo sul da atual Argentina, considerada como um dos principais exemplos de registro rupestre já encontrado no continente americano. Estima-se que tenha sido feita “entre 9.500 e 13.000 anos atrás por ancestrais dos índios Tehuelche, da Patagônia” (VAINFAS, 2010, p. 21). Existe uma polêmica quanto à interpretação desta imagem da caverna das mãos. Para alguns historiadores, a pintura é a produção de um ritual de sacrifício de um jovem membro do grupo e outros afirmam serem as mãos do próprio autor. Independente das duas versões, temos um registro escrito através de pinturas, o que demonstra ser uma escrita ainda não convencionada, mas feita de forma autônoma (VAINFAS, 2010). Como exemplo de uma escrita de forma autônoma, temos os astecas, povos seminômades, que no século VIII se deslocaram do noroeste do México até o 91 Revista Perspectiva Amazônica território do lago Texcoco no vale do México, onde construíram um grande império. Sua cultura e saber tiveram influência nos mais diversos campos. Criaram um calendário que organizava a contagem do tempo e possuíam um sistema de escrita diferente, onde cunhavam um sistema pictórico que combinava uso de objetos e figuras e outros hieróglifos sistematizados por símbolos e sons (SOUSA, 2013). Observa-se, que a escrita dos astecas estava extremamente ligada à cultura, pois em seu sistema de escrita utilizavam ideogramas e pictogramas, ou seja, pinturas que exprimiam ou simbolizavam ideias. Por exemplo, “a morte para os astecas, era representada como um cadáver preparado para um funeral, no caso a cremação” (VAINFAS, 2010. p. 222) Não obstante, a escrita dos povos Maias é considerada por muitos especialistas, entre todos os sistemas de escrita da Mesoamérica, como uma das mais desenvolvidas. Seu sistema de escrita possuía um intercâmbio cultural com o povo Olmeca, povo que tinha ocupado anteriormente a região mexicana ente 1.500 a 400 a.C. Quanto ao sistema de escrita dos povos Maias não era alfabético, mas continha um extenso número de caracteres que representavam sons ou símbolos (HISTÓRIA DO MUNDO, 2013). Os pesquisadores até o momento, ainda não decifraram todos os códigos usados na escrita Maia. Somente partes dos códigos foram traduzidos com auxílio de computadores. Esta dificuldade ocorre porque os povos Maias usavam um mesmo caractere para representar dois ou mais símbolos e sons, e ao mesmo tempo um mesmo conceito poderia ser representado por caracteres diferentes (HISTÓRIA DO MUNDO, 2013). Contudo, afirmam os pesquisadores que a escrita para os Maias servia como forma de comunicação e de religiosidade. Acreditavam que a escrita era um presente dos deuses e que deveria ser destinada a uma parcela privilegiada da população. O que explica a forma soberana que a escrita adquiriu nesta sociedade. Os estudos também mostram que eles usavam diferentes tipos de materiais como pedra, madeira, papel e cerâmica para registrar informações (HISTÓRIA DO MUNDO, 2013). Os Maias também fabricavam livros e códices confeccionados a partir de fibra vegetal, resina e cal. De uma forma geral, os documentos Maias contemplavam os registros de fatos cotidiano do povo. Uma das funções assumidas pela escrita deste povo era o registro do tempo para organizar o período de celebração religiosa. Por meio da escrita, eles buscavam registrar outros conhecimentos e rituais religiosos que foram destruídos em grande parte, quando foram dominados pelos colonizadores espanhóis (HISTÓRIA DO MUNDO, 2013) Quantos aos Incas, no século XII, estes povos ocuparam um lugar localizado onde hoje é o Peru. São considerados pelos historiadores como os povos sedentários que mais se destacaram nesta região. A história afirma que, mesmo sem conhecer a escrita, os Incas construíram um grande império, e junto com outros povos subjugados construíram um Estado altamente avançado. Explica Gray (2013) que a cultura inca era muito rica. Eles até criaram uma técnica de agricultura em formas de terraços, acompanhado de um sistema de irrigação. Segundo Gray (2013) apesar da falta de uma língua escrita, os Incas usavam um Ano 4 N° 8 p.81-96 92 Revista Perspectiva Amazônica conjunto de nós em uma corda, cada nó representava um número. Assim esses nós usados pelos incas, também indicavam os registros das quantidades dos conteúdos nos armazéns, aplicavam também nos resultados de censos e quantidade pagantes de impostos. Neste sentido, conforme Cagliari (1998), se o aparecimento da escrita, como afirmam alguns pesquisadores, é originário de um sistema de contagem, com esse tipo de escrita adotado pelos Incas, eles podem ser considerados como um povo que não têm conhecimento da escrita alfabética, mas possui uma forma independente de escrita (GNERRE, 1991). O aparecimento da escrita na América do Sul, corresponde a um período que é denominado pré-colombiana em que se destacaram civilizações bem avançadas como os Incas. Muitos estudiosos consideram que em outras regiões da América do Sul, como o Brasil e boa parte de outros povos como os Ameríndios, não possuíam o mesmo nível de complexidade social em relação o uso da escrita. Neste sentido, a classificação mais adequada é de Pré-história, até a descoberta dessas sociedades pelos europeus. Assim, a teoria de que América foi o último lugar do planeta a ser habitado por grupos humanos, com exceção da Antártida é questionado por muitos pesquisadores que estudam antigas civilizações, os quais admitem a possibilidade de o continente americano ter sido visitado, também, por povos do Oriente Médio. No caso do Brasil, por exemplo, os estudos científicos provam que foi visitado pelos sumérios e fenícios, através de descobertas como a de um vaso conhecido como “Fuerte Magna” descoberto na Bolívia e que contém inscrições em sumérios feitas em escrita cuneiforme, também conhecida com “a pedra de Rosetta das Américas”, além desta a descoberta de um monólito de Pokotia, nome que significa “oráculo” são provas suficientes de que a escrita na América tem uma relação com a escrita de outros povos (SCHOEREDER, 2012, p.1). No entanto, Schoereder (2012) afirma que, apesar de o que está escrito no vaso e no monólito datarem há cerca de 3.500 mil anos a.C ou até mais, ainda não é prova suficiente para afirmar que teríamos encontrado uma escrita que surgiu da relação com outros povos, e admite a possibilidade deste povo ter desenvolvido seu próprio sistema de escrita, apesar de tal afirmativa ser mal vista pelos arqueólogos mais ortodoxos. A estes estudos Schoereder (2012, p.1) comenta que, Ano 4 N° 8 p.81-96 Schwenhagen, também austríaco, é o autor do livro Antiga História do Brasil: 1100 a.C. a 1500 d.C., hoje dificilmente encontrado. Ele concentrou suas atenções no norte e nordeste brasileiro, entendendo que Sete Cidades não é apenas uma formação natural, mas foi ocupada por civilizações em épocas recuadas. Ele afirmou ter encontrado inúmeros sinais da passagem dos fenícios pelo Brasil, especialmente na correlação entre o idioma fenício e resquícios dessa linguagem que poderiam ser percebidos nos idiomas nativos. Outros fatos ainda instigam os cientistas que admitem a possibilidade de haver na América uma escrita autônoma e independente, pois como afirma Schoereder (2012, p.1) quando Já em 1641, Maurício de Nassau pedia que o cientista Elias Ackerman estudasse os sinais encontrados na Pedra do Ingá, na Paraíba, em 1598. Mais pesquisas foram feitas em 1874, pelo historiador Francisco Adolpho Vernhagen e, mais recentemente, o professor José Anthero Pereira Jr. Ninguém conseguiu chegar a um resultado definitivo sobre o que as inscrições significam ou qual sua origem, mas diz-se que existe uma representação da constelação de Órion. 93 Revista Perspectiva Amazônica Assim, no Brasil, os estudos sobre o aparecimento da escrita ainda são recentes, os que existem estão relacionados a colonização do território brasileiro. São estudos que afirmam que os primeiros registros escritos que chegaram até nós foram através dos colonizadores com a descoberta do Brasil. Atualmente os estudos destes inscritos foram questionados pela sociedade, a ponto de afirmar que o termo de Préhistória Brasileira parte de uma referência europeia, que desconsidera que há milhares de anos houvesse indígenas ocupando o território Brasileiro (JUNIOR, 2013). O termo mais adequado para o aparecimento da escrita denomina-se História Pré-Cabralina no Brasil, se atentarmos para o fato de que devemos respeitar as civilizações indígenas e suas culturas, pois habitaram no território brasileiro antes da chegada dos europeus. No entanto, afirmar que o Brasil e outros povos que constituem a América não conheciam a escrita é complexo, pois os estudos atuais mostram que as marcas gráficas e símbolos criados pelo homem primitivo, que os pesquisadores denominam de Protoescrita é uma forma de escrita que não possui significado linguístico, considerado um estágio anterior ao sistema de escrita. Entretanto, os antropólogos afirmam que todos os sistemas de escrita estudados até então provam que foram criados a partir do contato direto de um povo com outros sistemas de escrita como afirma Cagliari (1998). Segundo Junior (2013), o primeiro pesquisador a se interessar pelo passado brasileiro foi o Dinamarquês Peter Wilhelm Lund, que se instalou na Lagoa Santa em Minas Gerais e realizou vários trabalhos de escavações entre 1834 e 1880, entre os quais já encontrou muitos vestígios da vida Pré-Cabralina. Neste sentido Vainfa (2010, p.18) também confirma que “no século XIX realizaram-se as primeiras pesquisas arqueológicas no Brasil”, chefiadas por Lund e assim foram descobertos vestígios de um grupo de seres humanos, que ficou conhecido como “Homem da Lagoa Santa”. A partir destas escavações foram feitas outras e no que se refere à ocupação do território Brasileiro há o reconhecimento do surgimento de grupos humanos há 60 mil anos. Porém, alguns estudiosos discordam desta teoria e continuam com a ideia tradicional de que a ocupação da América veio da África e se espalhou pelo mundo chegando à América pelo estreito de Bering. As pesquisas atuais descartam a teoria pelo fato de que o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil está em lagoa Santa, em Minas Gerais e data apenas 12 mil anos, conhecida como a famosa Luzia. Considerada, também, com o fóssil mais antigo do continente Americano e precursor de novas teorias (JUNIOR, 2013). Ano 4 N° 8 p.81-96 Outras pesquisas confirmam que existiram outras ocupações humanas em diferentes áreas do território nacional no período de 4 mil anos até a chegada de Cabral, por encontrarmos uma agricultura muito difundida e o uso de cerâmica, que também já tinha sido usada na Amazônia. Por isso é que os arqueólogos dividem a ocupação na Amazônia em três períodos: o pré-cerâmico entre 12 mil a 3 mil anos atrás, um período cerâmico entre 3 mil anos a.C, e um período cacicados completos entre mil antes de Cristo e a chegada dos portugueses (JUNIOR, 2013). Considerando que a linguística cumpre um papel importante ao estudar a 94 Revista Perspectiva Amazônica escrita e que estudiosos como Cagliari (1998) e Gnerre (1991) descobriram a existência de comunidades sem escrita como os incas ou que a escrita não era totalmente alfabética é que Souza (2006, p.1) explica que Ano 4 N° 8 p.81-96 alguns estudiosos definem a escrita como parte do comportamento comunicativo humano de transmitir e trocar informações; ou seja, a escrita pode ser vista como uma forma de interação pela qual uma ação das mãos (com ou sem um instrumento) deixa traços numa superfície qualquer; nesse sentido, a escrita pode ser concebida como uma forma não apenas alfabética para representar idéias, valores ou eventos. Entendido assim, a escrita sempre esteve presente nas culturas indígenas no Brasil na forma de grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e tatuagens. Por outro lado, a escrita propriamente alfabética, registrando no papel a fala e o som, foi introduzida no Brasil pela colonização européia, e desde o século XVI está presente de formas variadas nas comunidades indígenas; porém, foi apenas nas duas últimas décadas que surgiu o que pode ser chamado de fenômeno da escrita indígena no sentido do aparecimento de um conjunto de textos alfabéticos escritos por autores indígenas. Diante das pesquisas científicas realizadas por pesquisadores de diversas áreas, entre elas a arqueologia, filologia e a linguística, percebemos a relação intrínseca entre a origem dos povos da América, com indícios de escritas usadas por estes povos, num período que corresponde ao que a história denomina de Pré-história. Compreendemos que, por muitas vezes, a escrita tinha um valor de registro de memória, de comunicação, religioso ou até mesmo de divisão de classes como ocorreu entre os povos maias e astecas. Por outras, percebe-se que em outras comunidades há um desconhecimento de um sistema de escrita alfabético. Conforme os estudiosos, estes povos apresentam uma forma independente de registrar informações, de contagem e de comunicação. Por meios de marcas deixadas, em pinturas ou símbolos, representando sons ou não, deixaram para nós um legado escrito de grande valor cultural, pois muitos escritos foram decifrados, outros ainda se encontram em estudo. Mostrando a humanidade a influência, o poder que a escrita Considerações Finais O trabalho realizado proporcionou uma análise sobre a escrita como fonte de poder no ensino. Para melhor compreensão do tema, a priori estabeleceu-se uma reflexão das implicações sobre a origem da escrita, considerando as primeiras manifestações gráficas do homem primitivo querendo contar, medir, comunicar, registrar, entre outros. Neste sentido, na medida em que cada povo a usava para dominar, conquistar e principalmente para comunicar, aos poucos por uma razão política, econômica e social passou a ser sistematizada, ou seja, convencionada. Com a evolução da escrita no mundo ocidental, surgiram vários alfabetos e pelo seu caráter elitista e dominador era imposto a cada povo dominado, após uma guerra. Mais notável, ainda, foi a expansão de um modelo único de alfabeto fônico que fez a escrita decompor em sílabas as palavras e o império Romano o expandiu aos povos conquistados e isto resultou nas formas gráficas dos escritos de documentos jurídicos que registravam acordos de paz ou guerras, dentre outros. Portanto, a escrita naturalmente vai se tornando uma grande fonte de poder entre as nações. 95 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.81-96 Referências ANDRADE Filho, Ruy de Oliveira (org.) Relações de poder, educação e culturana Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Solis, 2005, p. 47-55. Dra. em Semiótica e Lingüística Geral, professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFCH ANTUNE. Celso. Trabalhando habilidades: Construindo idéias. São Paulo: Scipione, 2001. AZEREDO, Dulcinea. A importância da escrita na sociedade contemporânea. Disponível em: <http://www.jacareacademico.com/art7/Dulcinea_importancia_escrita.pdf>. Acesso em 19 Dez. 2012. BATALHA, Elisa. O abecê da escrita. Disponível em: <http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=911HYPERLIN K> Acesso em 21 Mai. 2013. BORGES, Cristiane Nunes. Escrita Acadêmica: um fazer nas práticas linguísticas universitárias. Anais do SILEL. Volume 2. Número 2. Uberlândia. E D U F I . 2011. Disponível em: <http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel2011/816.pdf>."http://www.il eel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel201 1/816.pdf%20%3e%20Acesso%20em:% 20%20" Acesso em 17 Ago. 2013. BRASIL. Constiuíção (1996) LDB: Leis de Diretrizes e Bases da educação nacional Legislação. Lei n 9.394. de 20 de dezembro de 1996. Centro de informação e Educação, Coordenação de Biblioteca. 5ª Edição. Câmara dos Deputados. Edições CamaraBrasilia, 2010 (Centro de documentações e informações-CEDI. Coordenações EdiçõesCamara-Coedi.Anexo II. http://www.toledo.pr.gov.br/escola/normabelotto/doc/ldb.pdf BRASIL, C.C. História da Alfabetização de Adultos: de 1960 até os dias de hoje.Dinponível em: <http//www.vcb. br/sites/100/103/tcc/12005/Cristiane Costa Brasil. Pdf>. Acesso em: 31 Ago. 2013. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização & Linguística. 8ª.ed. São Paulo: Scipione, 1995.(Série Pensamento e Ação no Magistério). ______. Alfabetizando sem o Bá-Bé-Bi-Bó-Bu. São Paulo: Scipione, 1998. (Série Pensamento e Ação no Magistério). 96 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Resistência Cultural e Modo de Vida São Elementos Sígnicos Desvelados Pela Aanálise Semiótica Dos Vídeos Premiados no I Festival de Vídeo FIT Thais Helena Medeiros * Valdenildo dos Santos ** RESUMO Neste trabalho, tecemos argumentações teóricas sobre a fotografia, enquanto um sistema de significação que provoca a ação do/no outro, e seu desdobramento na contemporaneidade que são os vídeos produzidos para o espalhamento nas plataformas do ecossistema digital. Nesse viés, tem na semiótica pierciana, principalmente via Lucia Santaella, o fundamento de interpretação do diálogo com o domínio empírico que conforma o conjunto de vídeos premiados no I Festival de Vídeo FIT, realizado pelas Faculdades Integradas do Tapajós. Antecede breve argumentação sobre a realidade social e cultural de onde emergem as produções audiovisuais. Palavras-chave: vídeos - plataformas digitais - Semiótica Pierciana ABSTRACT In this work, we weave theoretical arguments about photography as a system of signification that causes action of others/ on the other, and its deployment in contemporary times that are the videos produced for the scattering in the digital ecosystem platforms. This bias has on pierciana semiotics, mainly via Lucia Santaella, the basis of interpretation of the dialogue with the empirical domain that conforms the set of award-winning videos in FIT I Video Festival, held by the Faculdades Integradas do Tapajós. Foregoing brief discussion on the social and cultural reality from which these media productions emerge. Keywords: videos - digital platforms - Piercian Semiotics * Professora, MSc. Thais Helena Medeiros é professora de semiótica da comunicação e coordenadora do Curso de Jornalismo das Faculdades Integradas do Tapajós (FIT)/ Santarém/ PA. ** Professor adjunto II, Curso de Letras, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS)/ Três Lagoas/MS; líder do Grupo de Ensino e Aprendizado de Línguas e Leituras Semióticas (GEALLES). 97 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Introdução: O Vídeo nas Práticas Pedagógicas e as Plataformas Digitais A análise semiótica do conjunto de vídeos premiados no I Festival de Vídeo 1 FIT , Faculdades Integradas do Tapajós (FIT), evento realizado em Santarém, no Pará, emerge nas experiências da disciplina semiótica, que, por solicitar os 1 Mais informações e acesso aos vídeos premiados ver em Detalhes em facebook.com/festivaldevide www.facebook.com/festivaldevi ofit deofit 1 fundamentos das teorias precursoras por parte dos professores, da parte dos estudantes, por sua vez, pede a experimentação. Assim, sua prática nos estudos de comunicação, aliada a proliferação da imagem e da linguagem híbrida dos vídeos no ecossistema digital apoia os processos de (re)significação e a recuperar a crítica ao deslindar e decifrar os sentidos que operam na compreensão do mundo a nossa volta, qualificando os estudantes na sequência da vida profissional. A transmutação e geração de ideias contextualizadas na fotografia e nos vídeos para o compartilhamento, via multiplataformas no ecossistema digital, é característica original da realidade contemporânea. Atrelado a esse gênero de comunicação tão presente no exercício profissional de jornalistas, publicitários e internautas, conformamse os aparatos tecnológicos. Os mesmos que democratizam a informação via penetração intensiva do consumo de aparelhos celulares e seus dispositivos de acesso à mobilidade: internet e suas mídias sociais, cloud e analytics. Instrumentos e ferramentas que, com o apoio dos conteúdos humanizados, tornam-se veículos de transformação, de revolução, de explicação de matérias complexas, de diluição de problemas contraditórios e desenvolvimento socioambiental, político, cultural e econômico. Nesse fluxo plural de interações, os instrumentos e seus resultados transformados em sujeitos motivam e incitam a experimentação (artística e estética) dos(as) estudantes e consumidores; provocam o fomento de práticas pedagógicas inovadoras entre os professores e promovem a integração entre a academia e mercado. Mas, o que está por traz desses assuntos materializados em pequenos vídeos, autorais, biográficos ou micronarrativas do cotidiano que falam a noção da localidade num mundo tão global? Perseguindo essa questão é que confrontamos, na primeira parte deste trabalho, as leituras da cultura com as noções dos instrumentos ou objetos conectados às subjetividades, na formação de associações e redes de socialidades. Na sequência, propomos uma análise semiótica e inspirada em Santaella (2010), visto seu domínio empírico ter emergido dos exercícios colocados em prática na sala de aula do quarto semestre dos cursos de jornalismo & publicidade e propaganda, como atividade prática e instrumental pedagógico da disciplina Semiótica da Comunicação, cadeira que é ministrada pela professora Thais Helena Medeiros, na FIT. Nesse escopo, traçamos reflexões sobre os sentidos da imagem respaldada em teóricos que estudaram a fotografia como sujeitos emissores de significações, que antecederam e cunharam o que é, hoje, o vídeo com seus movimentos, sons e efeitos, tanto da área semiótica quanto do âmbito das humanas. Seguindo nessa organização, estabeleço algumas considerações finais extraídas a partir da terceiridade pierciana. 98 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 O Olhar Adentro da Realidade Social Não é subitamente que a humanidade depara-se com uma realidade convulsiva. O processo se iniciou com a supremacia do capitalismo no mundo, deflagrando um mundo global: na economia e nas formas e modos de vida. Esse momento recebe muitas nomenclaturas, conceitos e paradigmas vindos de vozes das mais diversas áreas de produção do conhecimento, principalmente a sociologia e a antropologia. Em comum, os estudiosos sentem que o mal estar pode ser tudo menos novo (LIPOVETSKY, 2011). Mesmo porque, este último emerge das estruturas do velho (WILLIAMS, 2011). É Lipovetsky (2011) quem adverte que, após a modernidade ter impregnado o mundo com suas marcas indeléveis de capitalismo, a constituição de cultura altera-se por completo. Diz ele que “a era hipermoderna transformou profundamente o relevo, o sentido, a superfície social e econômica da cultura” (2011, P. 7). Sim, porque para falar de semiótica, é necessário dizer de onde falamos (SANTAELLA, 2005, 2010; Santaella & Nöth, 2004), sob quais os sistemas simbólicos nos amparamos para validar nossas análises (GEERTZ, 1997). Na busca de nossas localidades divisamos um “mundo sem fronteiras dos capitais e das multinacionais, do ciberespaço e do consumismo” (LIPOVETSKY, 2011, p.9). Acrescenta ainda o autor que: (...) A cultura se impõe como um mundo econômico de pleno direito. Culturamundo significa o fim da heterogeneidade tradicional da esfera cultural e a universalização da cultura mercantil, apoderando-se das esferas da vida social, dos modos de existência, da quase totalidade das atividades humanas. Com a cultura-mundo dissemina-se em todo o globo a cultura da tecnociência, do mercado, do indivíduo, das mídias, do consumo; e, com ela, uma infinidade de novos problemas que põem em jogo questões não só globais (ecologia, imigração, crise econômica, miséria do terceiro Mundo, terrorismo...) mas também existenciais (identidade, crenças, crise dos sentidos, distúrbios da personalidade...). A cultura globalitária não é apenas um fato; é, ao mesmo tempo, um questionamento tão intenso quanto inquieto de si mesma. Mundo que se torna cultura, cultura que se torna mundo: uma cultura-mundo. (2011, P. 9). É fato que a cultura-mundo de Lipovetsky (2011) anda a intercambiar modos de viver e de consumir o mundo, aqui na Amazônia de Santarém, justo ao nosso lado. Os teóricos da cultura bem apontam sua dinamicidade e, por que não, seu hibridismo num mundo transcultural (GARCIA CANCLINI, 2006; HANNERS, 1997). A despeito das categorias de classificação do mundo, digamos que também é fato que existam barreiras, traços de um modo de vida que se distinguem desse mundo global, que resistem e persistem na interação. Traços que singularizam e que permanecem na interação global, mesmo que a despeito das relações conflituosas que se acoplam nessa interação (APUDURRAI, 2008). Tais elementos de um modo de vida singular habitam no mesmo lugar que emergem as magias da tecnologia social e instrumental das novas mídias “móveis digitais e das conexões sem fio, originando novos fenômenos comunicacionais”. A profusão dos “dispositivos móveis transforma radicalmente o processo de comunicação local e global, altera a produção e distribuição de conteúdos em um ambiente de convergência, multiplicidade de suportes e da expansão da mobilidade” (SILVA, 2009, p.70). A mobilidade aqui é entendida “como uma conexão entre seu 99 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Mas, essa mobilidade, diz ele na mesma seção, é transferida para outras “vertentes como transporte, migração e estudos do turismo para a mobilidade física; e internet, mídia e telefone móvel para a mobilidade informacional”. Quando os cursos de jornalismo & publicidade e propaganda propoem um festival de vídeos tipo filmetes de curta duração –um formato de interação com múltiplas linguagens, conhecimentos e práticas–, buscou-se o novo nessa realidade de informação móvel, fundindo espaço e tempo (SILVA, 2009), e confluindo um circuito de fenômenos conectados” (SAMAIN, 2012, p.14). Nesse sentido, “a técnica não é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica” (Deleuze, 2013). E os dados estatísticos asseguram a tendência. Segundo o documento divulgado pela Revista de Jornalismo ESPM (ESPM/ COLUMBIA JOURNALISM REVIEW, 2013, p.11), o Brasil possui um índice de 36,6 aparelhos móveis para cada cem habitante e a “ocupa a 44 posição entre os 194 países, acima da média mundial de 22,1”. O município de Santarém é parte dessa realidade. De acordo com Moran (2011) e da pesquisa no âmbito do mestrado que realizei em localidades no Rio Arapiuns (MEDEIROS, 2013), os celulares estão presentes, também, em localidades no interior dos rios Tapajós e Arapiuns, abrindo o leque disponível das mídias comunicacionais junto com o rádio e a televisão e vislumbrando a inclusão digital e a utilização de softwares livres (SILVEIRA E CASSIANO, 2003). Hoje em dia, com a entrada de um canal de televisão aberta digital, os próprios telefones celulares também acessam essas mídias. Nesse sentido, esses objetos (aparato tecnológico: celulares, câmeras, as multiplataformas ou redes sociais como o Facebook, Twitter, Youtube, blogs com suas infinidades de SMS, fotos, vídeos) podem mesmo conformar uma associação com os humanos (LEMOS, 2011). Além de mediadores, ferramentas ou gêneros “podem exercer um ou outro papel a depender das associações criadas”, mas antes são geradores de ação, ou como prefere Lemos (2011, p.14), são actantes. Conforme conceitua a semiótica greimasiana, “actante pode ser concebido como aquele que realiza ou que sofre o ato, independentemente de qualquer outra determinação” (GREIMAS e COURTÉS, 1983, p.12). Retornamos em Lemos ao explicar essa relação: O sujeito não se mistura ao objeto, e para ser sujeito, deve mesmo ser o mais “independente possível” dos objetos, deve se livrar das amarras para achar seu “núcleo” velado no interior. Esse é o ponto crucial do equivoco: a dicotomia que separa sujeito e objeto (como se isso fosse possível). No entanto, se retirarmos os objetos, não encontraremos mais sujeitos (LEMOS, 2011, p.15). Nesse sentido, mesmo pautando a crítica na produção e consumo, há que se considerar a relevância desses objetos como ferramentas transformadoras da realidade econômica, sociobiodiversa e cultural, conforme os acontecidos na Primavera Árabe (LEMOS, 2011) como o mais recente levante do povo ucraniano. Da parte deste último, iluminaram a praça convertida em campo das manifestações com seus celulares em detrimentos de velas! Se é possível a pronunciação das localidades culturais como indicativos de aportes econômicos em modelos de desenvolvimento diferenciado, esses objetos agem como mediadores e tradutores de outros sujeitos? 100 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Uma Análise Semiótica Pelo Viés Pierciano: Referenciais e Significações Diante dessa realidade social, introduzimos a análise semiótica dos vídeos premiados no I Festival de Vídeo FIT ancorada em Santaella (2010) quando desvenda que o vídeo situa-se no paradigma fotográfico, “suas imagens são fruto do registro das coisas, eventos ou situações de fato existentes. (...) Aquilo que está nele retratado existe na realidade” (p.112). Ao unir “inextrincavelmente” a fala e a imagem, o pequeno vídeo de caráter local revelando grandes realidades “insere-se na tradição dos sistemas de signos que nascem da mistura entre linguagem verbal e imagem, caracterizando-se, portanto, como uma linguagem híbrida, tanto quanto são híbridos o cinema e a televisão” (p.113). Os teóricos que estudam a imagem, convergem que é a fotografia o ponto de partida para as reflexões em torno das inovações tecnológicas de disseminação de conteúdo em quaisquer plataformas de interação comunicacional no mundo contemporâneo. Conforme Barthes (1984, p.13), desde o princípio a fotografia é inclassificável se quisermos produzir seu corpus. Encontra-se no limiar do empírico e expressa o exterior ao objeto, “sem relação com sua essência, que só pode ser (caso exista) o Novo de que ela foi o advento, pois essas classificações poderiam muito bem aplicar-se a outras formas, antigas, de representação (BARTHES, 1984, p.13). Na sequência, o autor lança que é próprio da imagem “o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. É o que vemos ali, “o Particular absoluto”. As traduções e interpretações das fotografia encantam, nos fazem viajar por dimensões, possibilitam vermos por dentro e de dentro de um tempo singular, também expõem os discursos dominantes, assim como coloca o aparato instrumentalrealizador-objeto em relação com a técnica e estética. Samain (2012), por exemplo, compreende a imagem como sujeitos, diz ele (p.24) que “é cigana e misteriosa. De antemão, ela nos inquieta, sobretudo, se ela é uma imagem forte, isto é, uma imagem que, mais do que tentar impor um pensamento que 'forma, formata, põe em forma' (o que se denomina de 'ideologia'), nos coloca em relação com ela. Uma imagem forte é uma 'forma que pensa e nos ajuda a pensar'”. É sujeito que manipula por sedução, em primeira instância e, questionando sobre “se a imagem é uma forma que pensa, o autor argumenta que ”por pertencerem a um sistema, participam não apenas de um tempo e de um contexto singulares, mas sobremaneira de um circuito de pensamento” (SAMAIN, 2012, p.32). Mas, também as imagens produzem sujeitos conectados, “sujeitos pensantes que não pensam por palavras. Emitem significações, são significações silenciosas”, (COLI apud SAMAIN, 2012, p. 41). Interligando os vídeos nessas reflexões sobre as imagens, reintroduzo Santaella (2010), ao esclarecer que os mesmos carecem de um tratamento semiótico, uma vez que é na semiótica que podemos encontrar meios para a leitura, não só dos diferenciados tipos de signos, mas também dos modos como eles podem amalgamar na formação de linguagens fronteiriças que se originam da junção entre vários sistemas de signos (p.113). 101 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Assim, o olhar na natureza triádica de Charles Pierce, desponta-se num percurso analítico e metodológico relativos às naturezas das mensagens. Como é sabedor, o signo de um filme é “qualquer coisa de qualquer espécie que representa uma outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real ou potencial, efeito este que é chamado de interpretante do signo” (p.114). Já Deleuze (2013) apresenta o vídeo pelo cinema explicando que A narração no cinema é como o imaginário: é uma consequência muito indireta, que decorre do movimento e do tempo, não o inverso. O cinema sempre contará o que os movimentos e o tempo da imagem lhe fazem contar. Se o movimento recebe sua regra de um esquema sensório-motor, isto é, apresenta um personagem que reage a uma situação, então haverá história. Se, ao contrário, o esquema sensório-motor desmorona, em favor de movimentos não orientados, desconexos, serão outras formas, devires mais que histórias (:80). A análise inicia-se pela face da referência, ou o quali-signo/ primeiridade pierciana, representando suas qualidades internas. É mesmo Barthes (1984, p.15) que diz que “a fotografia sempre traz consigo o referente, ambos atingidos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento: estão colados um ao outro, membro por membro”. E completa que A Fotografia pertence a essa classe de objetos folhados cujas duas folhas não podem ser separadas sem destruí-los: a vidraça e a paisagem, e por que não: o Bem e o Mal, o desejo e seu objeto: dualidades que podemos conceber, mas não perceber (eu ainda não sabia que, dessa teimosia do Referente em estar sempre presente, iria surgir a esses que eu buscava) (BARTHES, 1984, p.15-16). Por esse escopo, o conjunto dos 06 melhores vídeos do I Festival de Vídeo FIT revela um localismo em sua maioria. O documentário jornalístico não profissional, “A 2 Margem” , reflete o urbano Bairro Uruará/ Porto dos Milagres e as consequências das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) infringidas aos seus moradores. O vídeo documentário categoria jornalístico profissional, “Gambá de Pinhel”3, mostra a mistura das Festividades do Gambá com a de São Benedito, suas danças, ladainhas e demais elementos ritualísticos. Cerimônias praticadas na localidade de Pinhel, lugar onde se confluem as culturas nativas ao lado do aldeamento colonial, situada na margem esquerda do Rio Tapajós, na área da Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns. O primeiro acontece em Santarém e o segundo no município de Aveiro. O vídeo, categoria livre ficção/experimental, “Quem Decide é o Bar”4, de Jaraguá do Sul/ Santa Catarina, retrata uma localidade interiorana, onde um bar, construído de tábuas e na beira de uma estrada 5 interiorana de chão batido, é decidido no jogo da bocha . Esses três filmetes tinham como regulamento serem produzidos com até dez minutos de duração. O premiado com o videoclipe "Cultura Raiz, Semente Digital"6, e que é o oficial do MC/Toaster Alienação Afrofuturista, trabalho que é resultado da parceria feita entre o cantor brasileiro e os franceses do Fresh Poulp Souk System. Foi gravado na Pandora House, em Curitiba, e é resultado de trabalho realizado pelos alunos do curso de Cinema do Centro Europeu. A música é uma somatória da parceria entre um cantor brasileiro e os franceses do Fresh Poulp Souk System. Foi inscrito pelo egresso do curso de Publicidade e Propaganda da FIT, Cássio Santana e que um é dos assistentes de direção do vídeo. Traz uma narrativa de imaginários de lugares outros, enunciados na letra da música tipo reggae e nos movimentos e tempos da imagem, pela diversidade de sotaques e línguas. Como é característico do gênero, empregam uma linguagem onde sobressaem os efeitos de ilhas de edição, ao ritmo alongado do reggae. 2 Disponível em youtube.com/watch?v=xMw5PI HighQ 3 Disponível em youtube.com/watch?v=bhfiBRe 7_LQ 4 Quem Decide é o Bar não está disponível na web a pedido de seus produtores. 5 Sobre bocha, ver em pt.wikipedia.org/wiki/Bocha 6 Disponível em youtube.com/watch?v=1kZOT BCTlEM 102 Revista Perspectiva Amazônica O vídeo escolhido pelo Júri Popular foi o clip “Brand New Day”7, remaker da música de mesmo nome e interpretado originalmente pela americana Lorena Simpson, acompanhada de um grupo de dança. A gravação teve como palco um dos galpões abandonados (por isso, empoeirado) e gasto pelo tempo da antiga indústria Tecejuta, às margens do Rio Amazonas, em Santarém. Na versão inscrita no I Festival de Vídeo FIT, a música é interpretada por um casal de jovens dançarinos, do grupo Classe A. Principia com frames fotográficos em imagem macro de onde a câmera posicionada no chão capta imagens de quatro objetos em primeiro plano. Uma pena que flutua e aproxima seu cabo rente ao traço da linha de uma marca em linguagem verbal e geométrica onde se lê Classe Rick Versage & Racy Ottomi. Esse texto, apareceu-nos em desconexão com o vídeo em si, porém o movimento segue rumo a uma outra fotografia. Agora, um tênis surrado, uma expressão de irreverência juvenil conecta-se ao tênis usado pelo casal. Na sequência, entra rolando em outra imagem fotográfica, um fardo de fibra. Então, o movimento em tomada macro aproxima o papel timbrado da Tecejuta de onde a linguagem verbal expressa um formulário de recebimento de mercadoria. Após esse prólogo de imagens em movimento, o som fica frenético e a câmera abre para a performance do casal de bailarino. Percebe-se, pelos signos apresentados nas fotos a convergência do velho com o novo. O passado ressignificado no presente e não menos em decadência que o primeiro. Os dois videoclipes evidenciam a interação de línguas e linguagens de edição. Entretanto, "Cultura Raiz, Semente Digital" é um clipe oficial distinguindo de “Brand New Day” que é remaker. Mas, a confluência dessas vozes e linguagens está impresso, também, no vídeo documentário “Gambá de Pinhel”, de onde as ladainhas cantadas são em latim. A categoria livre clip se encaixa no que Deleuze (2013) descreveu como formas possíveis de trabalhar o vídeo, devires de linguagens diferenciadas. Traz consigo representações do mundo das produções estéticas e de efeitos tecnológicos e que abraçam públicos jovens bem definidos. O VT “Trânsito”8 é resultado de exercícios práticos de sala de aula, inscrito na categoria publicitária não profissional. No alinhamento com o regulamento do evento, o aspecto primordial da classificação não profissional era possibilitar as experimentações das disciplinas práticas dos cursos de jornalismo & publicidade e propaganda da FIT. Exibe uma reprodução, a partir do olhar interpretativo dos estudantes, ao rever o comercial do Banco Bamerindus, de 1976. As categorias não profissionais, caso deste VT inscrito pelo estudante de publicidade e propaganda Ricardo Augusto Fernandes Da Costa, incorporam o objetivo maior do evento, que é estimular os professores e estudantes a gerarem conteúdos a partir do modos de viver e ver o mundo do cotidiano local, pela produção de vídeos conformando recursos pedagógicos das diversas áreas do conhecimento. Os quali-signos desses vídeos estão referenciados pela aparência a primeira vista, os sentidos dos signos. Pierce (2005, p.24) nos convoca a pensar o que existe “no instante presente” como “se estivesse completamente separado do passado e no futuro”. À essa condição do signo denominou Primeiridade, Oriência ou Originalidade: “seria algo que é sem referência a qualquer outra coisa dentro dele, ou fora dele, independentemente de toda força e de toda razão” (PIERCE, 2005, p.24). Ano 4 N° 8 p.97-109 7 Disponível em youtube.com/watch?v=95Dt5Ar gacw 8 Disponível em youtube.com/watch?v=GqAVw ciQEcE 103 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 E, nesse sentido, os vídeos “A Margem” e “Gambá de Pinhel” utilizam câmeras abertas e sem entrevistas. O segundo produto captura as imagens sem rebuscamentos de edição e efeitos. Já o primeiro, se utiliza de recursos nos frames fotográficos, pelo formato e pelo tratamento e captura da imagem. Em ambos, a câmera está parada ou com “sucessão imagética e sonora” (SOUSA, 2011, p.92). O primeiro abre com a marca da produção, tendo em segundo plano o som ambiente de crianças brincando. As produções de subjetividades (GUATTARI, 1986), ações e modo de vida que dão sentido ao mundo dos moradores do Bairro Uruará, beira rio da várzea do Rio Amazonas, são características marcantes das periferias das cidades amazônicas e paisagem de fundo das crianças que brincam dentro da água que também inunda suas casas. O mesmo é um retrato dos traços penetrantes da vida dos moradores durante as obras do PAC, com suas transformações e hábitos fronteiriços entre urbanicidade e ruralidade. O objeto audiovisual expõe a existência dos moradores à beira rio, onde as biografias são reveladas em micronarrativas e, no caso de “Quem decide é o Bar”, pela sua inspiração de caráter mítico ficcional. A imagem de abertura do segundo vídeo apresenta um dos personagens da dança tocando um tambor, o gambá –de origem Bantu, mas semelhante ao tambor de 9 crioula do Maranhão , de onde seu tocador, o gambareiro, senta-se em cima dele para 9 Colaboração do especialista em História da África e Diáspora Africana no Brasil, percussionista e pesquisador de etnomusicologia, fro-brasileira, Antonio Obafemi Garrido extrair o som. “Gambá de Pinhel” exibe a tradição das festas de santo –com suas folias, mastros e ladainhas, rei congo e esmolação– caracterizada pela expressão narrativa e imagética de seus próprios personagens, neste caso o Santo Benedito. Interessante apresentar a percepção do naturalista inglês Henry Bates às vistas da festa do sairé, nas imediações de Parintins, ao navegar pelo Rio Amazonas, em meado do século XIX. A mesma corrobora com a festa da comunidade de Pinhel que é representada no vídeo, situada na ilharga do Rio Tapajós, inclusive no alinhamento dos instrumentos musicais. Os negros, devotos de um santo que tinha a sua cor –Santo Benedito– fizeram sua festa a noite toda cantando e dançando ao compasso de um tambor comprido chamado “gambá” e do caraxará. O tambor era feito com um pedaço de pau oco, fechado numa das extremidades por um couro esticado; era colocado horizontalmente no chão, e o tocador montava nele, percutindo-o com os nós dos dedos (1979, p.124). O vídeo representa um pouco da visão do naturalista, exibindo como a cantiga e a dança têm referências na multiplicidade dos arranjos étnicos, confluindo a cultura africana, indígena e europeia colonial, além da interferência do mundo que está presentificado na realidade social contemporânea naquela localidade. É cantada pelo gambareiro em uma unidade de diferentes versos, característica musical daquele ritual. Na repetição dos versos, duas ou mais vezes, segue o convite para a participação do coro que estribilha. Reproduzimos um desses versos abaixo: Cantador Seu Felício chegou Seu Felício chegou Coro Mata a galinha, depena orubú Depena orubú, depena orubú Cantador Seu Felício chegou 104 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Coro Mata a galinha, depena orubú Depena orubú, depena orubú Cantador Depena orubú, depena orubú Coro Mata a galinha, depena orubú. O enquadramento, a decupagem e montagem seguem tratamentos menos complexos que os utilizados para capturar a imagem em Quem Decide é o Bar, que conta com uma direção de fotografia que sensibiliza o espectador. As tomadas de câmera movimentam-se no cotidiano, na vida ou na festa e dança, oferecendo o caráter real para os espectadores. “Quem decide é o Bar” ainda insere o mitológico na história. Os três vídeos preferem as gravações diurnas, salvando “Gambá de Pinhel” que tem uma fotografia noturna da lua com cenas na aurora. “A Margem” utiliza cortes bruscos; imagens sobrepostas umas nas outras, com frames imagéticos quebrando a linearidade do documentário. As imagens buscam o encantamento e a celebração da vida, enfatizando os closes ao deixarem-se sobressair personagens centrais. Os cortes são naturais ao longo dos filmes, sem grandes elaborações tecnológicas. Nesse sentido, Deleuze (2013, p.79) acrescenta que no cinema “a técnica não é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica”. Pensamos, mesmo, que essa descrição assemelha-se ao retrato do cotidiano daquelas localidades expostos nos filmetes. O que diferem, nesse sentido, dos dois videoclipes que brincam com os jogos de cortes e montagem, de profundidade e planos. O VT (a regra era não ultrapassar 2 minutos) utilizou a câmera parada e focada diretamente na atriz que dita um texto sobre o trânsito: um casal com problemas de relacionamento e que está refletido no cotidiano ao correr demais com o carro. Diz Santaella, que “esse aspecto puramente qualitativo de um signo e, no nosso caso dos vídeos, é sempre apreendido pelo espectador”, tal como o estamos realizando agora (2010, p.118). As cenas das pessoas em plano aberto são predominantes em relação às cenas de paisagem, onde a câmera segue seus personagens principais. Excetuando “Gambá de Pinhel” que possui um narrador, os dois filmes de Santarém abrem os microfones para o som ambiente, o cotidiano da vida sem um script antes definido como é em “Quem Decide é o Bar”, e por certos aspectos também os vídeoclipes. Esses aspectos é que dão a conotação qualitativa dos signos, assim como a multiplicidade de linguagens imagéticas. Santaella ressalva que um signo, “um existente só o pode ser através de suas qualidades. Por isso mesmo, existentes dão corpo a quali-signos. Onde houver um existente, haverá um qualisigno” (p.120), como servem para representarem seus referentes. À relação do signo com seu modo existencial Santaella (2010) ensina que cada vídeo é “um existente com características próprias”. E vai mais longe ao inserir que “as características próprias de cada um se constituem nas qualidades específicas e peculiares de imagem e de fala que estão nele corporificadas” (p.120). É isso que faz com que cada vídeo tenha suas especificidades próprias, “cada vídeo é único e assim deve ser explorado” (p.121). Isolados, cada um deles é um sin-signo, o que Pierce sugeriu como a secundidade. 9 Colaboração do especialista em História da África e Diáspora Africana no Brasil, percussionista e pesquisador de etnomusicologia, fro-brasileira, Antonio Obafemi Garrido 105 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Os dois videoclipes distanciam em suas linguagens e expressões discursivas e não verbais. O “Cultura Raiz Semente Digital”, protagonizado pelo artista, denuncia o cotidiano pela música colocando o anti-racismo ao lado da transmissão da cultura afro pelo estilo da música raggae. Ao escreverem o texto musicalizado na convergência acústico-digital de “(...) em que o bem que vence o mal, minha cultura é a raiz, minha semente é a digital, Afro Futurista é de on the floor, fazendo minha arte com muito amor”, expõe a evidência da transmissão do saber fazer, dos saberes que nada mais são que as técnicas que a globalidade está possibilitada pela música. Ao mesmo tempo que a imagem mostra um afrodescendente, com cabelos rastafári, ensinando a arte de mixar para um garoto, intercalam frames fotográficos sobrepostos do intérprete e de uma pista de dança, mesclados com tomadas em câmera lenta do frenesi no embalo da música. Após gravar num pendriver com aparência muito usada e reciclada como produto da experiência, demonstrando uma forma tecnológica despreocupada com o cenário artificial, um outro frame expõe, em macro, a mão que entrega o objeto fechando-o naquela pequena mão. Outros movimentos, na repetição do refrão irão contar o menino colocando o objeto num som e dançando com outros garotos em um campo murado, tipo futebol, no alto do morro. A dança é caracterizada por movimentos de rua e do rap enfatizando a tradição cultural afrodescendente de bairros periféricos nas grandes cidades brasileiras. A mistura das línguas expressadas na letra da música aponta para a noção do mundo interconectando culturas (HANNERZ, 1997), no caso, Brasil-França. O vídeo “Brand New Day” ensina que viver é uma arte metamorfoseando e transmutando o já existente, o novo que é também cópia e ao se tornar como tal exibe a arte da dança. Os vídeos clipes estão mais para os públicos jovens; sendo que os demais podem transitar entre consumidores de áreas como a cultura e o turismo, reforçando o caráter da manutenção dos elementos culturais e públicos. Até aqui, observamos o quanto a significação determina os elementos do signo, desvelando seus objetos. Sendo assim, Santaella (2010) reforça que o paradigma fotográfico permite que os vídeos expressem o aspecto indicial com mais protuberância do que o icônico. Acentua que “os vídeos, tanto como as fotografias, de fato, indicam, apontam para os objetos e situações fora deles que estão neles retratados. Assim sendo, os vídeos dirigem a retina mental do espectador para as paisagens, cenas e situações que eles registraram” (p.125). Apesar de coexistirem, o interpretante atento o perceberá via as qualidades do referente e o modo como é capturado pelas imagens de cada vídeo. As imagens e as fotografias são, portanto, retratos da realidade e, por isso, se conectam fisicamente com suas qualidades, demonstrando a relação icônica representada pela secundidade. Considerações Finais Como Santaella (2010) nos encaminha, o interpretante final “se refere ao resultado interpretativo ao qual todo intérprete está destinado a chegar se a investigação sobre o signo for levada suficientemente longe” (p.134). A autora completa com o que Pierce (2005, p.40) explora ao preconizar que “o corpo de um 106 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 símbolo transforma-se lentamente, mas seu significado cresce inevitavelmente, incorpora novos elementos e livra-se de elementos velhos”. Da mesma forma, que entendemos as considerações finais num artigo científico têm o caráter interpretativo do autor ao atribuir o fechamento conclusivo do objeto. Os vídeos documentários, reportagem, ficção, clipe e VT publicitário representam ideias exploradas da realidade por seus produtores. Mais que isso, representam simbolicamente e materializam os desejos e vontades nas múltiplas expressões culturais. Imagens que abrigam devires múltiplos e tornam público o inusitado, realidades sociais em evidentes transformações, agindo como objetos mágicos desses jovens produtores. Identificamos que o evento em análise tem o caráter de experimentação pedagógica e de processos participativos, o que foram entendidos ao lado dos fundamentos freireanos (1996). O ensino de graduação, no formato tradicional presencial e teórico, é afetado diretamente pela ineficiente relação com a trajetória educacional dos estudantes. A práxis ensina que o tempo da ciência não é o da prática, preconizado por Bourdieu (2013). Adianta o autor que “a prática científica está tão destemporalizada que tende a excluir até mesmo a ideia do que ela exclui: uma vez que ela não é possível senão em uma relação com o tempo que se opõe ao da prática, ela tende a ignorar o tempo, e, dessa maneira, a destemporalizar a prática” (BOURDIEU, 2009, p.135). Assim é que o festival de vídeos vem temporalizar a prática social de estudantes e professores, mercado e sociedade. Com ênfase nas narrativas locais, micro histórias e biografias, os vídeos locais premiados retrataram a cultura local e o modo de vida dos habitantes, tornando tênue a linha fronteiriça do espaço e tempo via ecossistema digital, ao premiar vídeos do sul e sudeste brasileiro. O conjunto de vídeo vencedores demonstra a emersão das questões correlatas de mistura ou hibridismo, caráter da realidade social contemporânea. Coloca em pauta o referencial simbólico da religião católica, com as afronicidades lado a lado das indianidades dos ameríndios, distinção das formações sociais na região do Baixo Amazonas. O ressurgimento de categorias sociais nas localidades pode estar referenciado aos processos de ambientalização na Amazônia, bem como dos movimentos sociais intensificados a partir da década de 90, com o advento da Rio 92, e pelas regulamentações governamentais de segurança do patrimônio social e cultural no país (ALMEIDA, 2008; LEITE, 2004). Por outro lado, os vídeos exibiram a produção de subjetividade juvenil, exemplificado no premiado da categoria Júri Popular; e reforça a proposta de que o público jovem é o primeiro a ser considerado nas edições vindouras. Mas, as ressignificações culturais não estão isoladas. Junto que essa questão sobressaiu, também, as subjetivações denunciadoras da inoperância do poder público que chega pifiamente aos habitantes de áreas periféricas, subtraindo-os dos direitos a que são detentores às facilidades aos serviços. Por essas significações, apresentando múltiplas subjetividades, é notável que os vídeos locais expressam os dilemas sociais da contemporaneidade, e como tais, podem atuar na promoção da transformação da vida cotidiana, como bem demonstrado em casos na rede de espalhamento mundial. 107 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Compreendemos que vivenciam rumor de uma sociedade em latência, que se fragmenta e pulsa, criando laços em redes, formando as socialidades (MAFFESOLI, 1995). Essa mesma, é escrita com s minúsculo na compreensão de Lemos (2011), remetendo-se a Bruno Latour, e desvelando a emergência das temáticas locais tipo narrativas digitais “que buscam explorar ao máximo o uso de novas tecnologias para contar histórias e transformar o mundo a volta” (CARVALHO, 2014, p.18-22). Desta maneira, este trabalho procurou mostrar a relevância das localidades, realidades menos densas, porém com densidade na produção de sentidos, significações, subjetividades. Referências ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2.ª ed, Manaus: PGSCA–UFAM, 2008a. Disponível em www.novacartografiasocial.com/arquivos/publicacoes/livro_terrasOcupadas.pdf. Acesso em 26 de abr. 2011. APPADURAI, Arjun A vida social das coisas: a mercadoria sob uma perspectiva cultural. Tradução Agatha Bacelar. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. Disponível em h t t p : / / w w w. 4 s h a r e d . c o m / o ff i c e / D p 4 O E a w e / A P PA D U R A I _ A r j u n _ _A_Vida_Socia.html. Acesso em 16 de Jun. 2012. BARTHES, Roland. A Câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BATES, H. W. (1820-1892). Um naturalista no rio Amazonas. Tradução Regina Régis Junqueira, apresentação Mário Guimarães Ferri.Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1979. BOURDIEU, Pierre O senso prático. Tradução Maria Ferreira; revisão de tradução Odaci Luiz Coradini. 3a ed. Petrópilis, RJ: Vozes, 2013. CABRAL, Magali. Terceiro ato. In: PÁGINA22, n° 73, Abril. FGV GVces: São Paulo, 2013. DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 3ª Ed., 2013. ESPM/ COLUMBIA JOURNALISM REVIEW. Revista de Jornalismo ESPM. ISSN 2238-2305, Ano 2, N 7, Outubro/ Novembro/Dezembro, São Paulo, 2013. FREIRE, Paulo (1996). Pedagogia da autonomia. 31ª. Ed. São Paulo: Terra e Paz. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. Tradução da introdução Gênese Andrade. 4ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006. GEERTZ, Cliffor O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução Vera Mello Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 1997. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. 108 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1986. HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, hídridos: palavras-chave da antropologia transnacional. MANA Volume 3. N°1, 1997. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010493131997000100001. Acesso em 3 Jul. 2012. LEITE LOPES, José Sergio et al. A ambientalização dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumara, Nucleo de Antropologia da Política / UFRJ, 2004. LEMOS, André. Things (and peaple) are the tools of revolution!. In: Politics, abril. Instituto Nupef: Rio de Janeiro, 2011.LIPOVETSKY, Gilles. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. MAFFESOLI,. A contemplação do mundo. Porto Alegre/ RS: Artes e Ofícios Ed., 1995. MORAN, Elizabeth. O uso da Internet e Celular na Região do Tapajós no Estado do Pará: Ferramentas para a Visibilidade e Inclusão Social? Brazil Amazon Resource Manegment and Human Ecology:2011.Disponívelem https://www.academia.edu/5099304/Uso_da_Internet_e_Celular_na_Regiao_Tapajos_no_Esta do_do_Para_Ferramentas_para_Visibilidade_e_Inclusao_Social . Acesso em 12 Fev. 2014. PIERCE, Charles Sandres Semiótica. Tradução José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005. SANTAELLA, Lucia (2005). O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense (Coleção Primeiros Passos). _____ (2010). Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning. SANTAELLA, Lucia & NÖTH, Winfried (2004). Comunicação e Semiótica. São Paulo: Hacker Editores. SAMAIN, Etienne (Org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012. SILVEIRA, Sérgio Amadeu; CASSIANO, João. Software livre e Inclusão digital. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003. SILVA, Fernando Firmino da. Tecnologias móveis como plataformas de produção no jornalismo. In: LEMOS, André; JOSGRILBERG, Fábio (Orgs.).Comunicação e Mobilidade: aspectos socioculturais das tecnologias móveis de comunicação no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2009. SOUSA, Gustavo. Distanciamento e aproximação entre estética e política no cinema de periferia. In: Revista Contraponto, v.27, n.2, ed. agosto ano 2013. Niterói: Contraponto, 2013. WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 109 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 Percepção Ambiental dos Barraqueiros da Praia do Maracanã em Santarém-PA Bruno Ivair Ferreira Silva * Áurea Siqueira de Castro Azevêdo ** Anselmo Júnior Corrêa Araújo*** RESUMO O objetivo do estudo foi conhecer a percepção dos barraqueiros que atuam na praia do Maracanã acerca de seus problemas ambientais. Desta forma, foram realizadas pesquisas bibliográfica, documental e de campo. A partir dos dados coletados por meio da aplicação de 11 questionários aos barraqueiros, constatou-se que 73% dos informantes percebem ambientalmente a praia poluída e a ação que mais desenvolvem, a fim de evitar tal problema, é a limpeza do local e a coleta de lixo. No entendimento de 82% dos barraqueiros a problemática ambiental da praia pode afetar negativamente a sua vida de alguma forma, especialmente ao desenvolvimento de seu trabalho. Além disso, 64% acreditam que o maior responsável por resolver os problemas da praia é o poder público, embora a totalidade dos entrevistados se reconheça como agente contribuinte para a melhoria da qualidade ambiental do local. Com isso, conclui-se que os barraqueiros percebem as dificuldades apresentadas na seara ambiental da praia, mas é necessário maior envolvimento dos mesmos na construção de um espaço ambientalmente sustentável. Palavras-chave: percepção - poluição - problemática ambiental ABSTRACT The objective was to study the perception of stallholders who work at the Maracanã beach about its environmental problems. Thus, bibliographical, documentary and field surveys were conducted. From the data collected through the application of questionnaires to 11 stallholders, it was found that 73% of respondents perceive that the beach is environmentally polluted and the most developed action in order to avoid this problem is the cleaning of the place and the garbage collection. In the opinion of 82% of stallholders environmental problems of thee beach can negatively affect their life in some way, especially the development of their work. Moreover, 64% believe that the most responsible entity for solving the problems of the beach is the government, although all the respondents recognize themselves as contributing agents to improve the environmental quality of the site. Thus, it is concluded that the stallholders realize the difficulties presented in the environmental situation of the beach, but need greater involvement in building an environmentally sustainable space. Keywords: perception - pollution - environmental problem * Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT). Especialista em Educação e Gestão Ambiental. Turismóloga; acadêmica de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). *** Acadêmico de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). ** 110 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 Introdução É histórico o fato de que o homem sempre dependeu dos recursos da natureza para suprir suas necessidades mais básicas, sendo que, em geral, eram utilizadas técnicas rústicas no manejo do ambiente. Porém, conforme Romeiro (2003), o passo colossal da capacidade humana em intervir no meio ambiente se deu com a Revolução Industrial, haja vista que a tecnologia impôs uma nova maneira de produção a partir do uso dos recursos da natureza. A consequência do desenvolvimento industrial e tecnológico sobre o meio ambiente vem sendo, assim, a sua progressiva degradação, a qual se intensifica mediante a constância do comportamento insensato humano. Em paralelo aos agravos ambientais surge também a preocupação com a preservação e conservação ambiental, as quais vêm ganhando espaço dentro dos debates mundiais. O desafio emergente, então, é a busca por novos métodos e formas de lidar com o meio ambiente, a fim de que os impactos ambientais possam ser reduzidos. Dentro deste contexto, não apenas se inserem a adoção de tecnologias ecologicamente corretas, o manejo sustentável dos recursos naturais, a elaboração de leis mais protetivas ao meio ambiente, punições por infração ambiental, dentre outros, como atuais exigências para a solução dos problemas ambientais. Faz-se necessário, primeiramente, o entendimento por parte dos indivíduos de que suas ações afetam o meio ambiente e que a mudança de suas atitudes é crucial para o alcance da sustentabilidade ambiental. Neste sentido, a percepção ambiental é fundamental para compreender como os indivíduos visualizam o meio ambiente e a forma como se relacionam com ele. A percepção ambiental, de acordo com Bassani (2001), pode ser entendida como a experiência sensorial direta do ambiente em um dado momento pelos indivíduos, em um processo que implica estruturação e interpretação da estimulação ambiental. Assim, cada indivíduo visualiza o meio ambiente de forma diferente e com ele mantém relações também diferenciadas, dado o caráter particular de suas percepções e experiências no meio. Desta forma, objetivar a conservação ambiental de qualquer localidade também requer o entendimento de como a sociedade a concebe e interage com ela. A praia do Maracanã está situada em um bairro de mesmo nome no município de Santarém-PA, distando aproximadamente 10 km do centro da cidade. É uma das praias mais próximas do centro urbano, oferecendo barracas de vendas para receber os visitantes. Contudo, são visíveis vários problemas de diversas ordens no local, que vão desde as precárias condições de acesso até a falta de segurança no lugar, o que poderia comprometer a imagem da popular praia. Problemas na seara ambiental também são frequentes na praia, como a disposição inadequada de resíduos sólidos e a poluição sonora, o que afeta de maneira geral, visitantes, moradores do bairro e a comunidade em geral. Logo, pela necessidade da conservação ambiental e da mudança de comportamento do indivíduo em relação ao meio ambiente, torna-se importante, então, dar maior ênfase aos problemas ambientais. É neste cenário que se inserem importantes atores sociais que oferecem serviços de suporte durante o passeio dos visitantes: os barraqueiros. Como agentes que convivem quase que diariamente na praia do Maracanã por razões laborais e, por conseguinte, conhecem e convivem com os problemas do lugar, é imprescindível o entendimento por parte dos 111 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 barraqueiros de que não cabe somente ao poder público, residentes do bairro e visitantes o papel de zelar pela praia. Mais que isso, é necessário o reconhecimento de que também fazem parte do problema e, principalmente, são peças fundamentais na busca de soluções. No entanto, foi preciso compreender, primeiramente, como os barraqueiros visualizam ambientalmente a praia do Maracanã, visto que, através do conhecimento da percepção ambiental de um grupo de indivíduos, torna-se possível entender o seu posicionamento frente aos problemas ambientais e a partir disso, sugerir ações mais precisas que tendam a modificar ou estimular o comportamento. Isto posto justificou a realização desta pesquisa, haja vista que os barraqueiros devem assumir um papel importante no estímulo às ações de proteção à praia do Maracanã, mas o entendimento deste papel depende da percepção ambiental que os mesmos possuem em relação aos problemas ambientais da praia. Sendo assim, a presente pesquisa objetivou conhecer qual a percepção dos barraqueiros que atuam na praia do Maracanã acerca dos problemas ambientais da mesma. Como objetivos específicos, buscou-se avaliar se os barraqueiros reconhecem a problemática ambiental da referida praia, verificar quais as ações tomadas frente a esta problemática e identificar se os barraqueiros têm a sensibilidade de que são agentes contribuintes para a proteção ambiental do local. Fundamentação Teórica Segundo Coimbra (2004), as relações do ser humano com o mundo natural são determinadas pelas mais diversas concepções que, em geral, focalizam o homem como elemento externo e superior ao meio ambiente. Considerando os recursos da natureza como infindáveis, desde há muito tempo o homem sempre se apoderou dos mesmos sem a preocupação de sua utilização sustentável, o que denota a visão de que o meio ambiente existe apenas para suprir as suas necessidades. Como resultado, temse o desenvolvimento de vários problemas que convergem para a intensificação da crise ambiental. Assim, de acordo com Silva e Leite (2008), ao longo de sua evolução histórica, o ser humano tem perdido afeto pelos sistemas naturais e sociais, relegando o fato de que também faz parte destes sistemas. De acordo com Marin (2008) apud Rauber (2011), o termo percepção é derivado do latim perception, sendo definido na maioria dos dicionários da língua portuguesa como: ato ou efeito de perceber; combinação dos sentidos no reconhecimento de um objeto; recepção de um estímulo; faculdade de conhecer independentemente dos sentidos; sensação; ideia; imagem. Neste sentido, percepção vem a ser o ato de perceber uma realidade de forma profunda, interiorizando e compreendendo aquilo que ela representa, ou seja, a percepção antecede a atribuição de significado. Palma (2005) complementa afirmando que a percepção apresenta sempre um objeto externo, que é a qualidade dos objetos percebidos tanto pelas sensações que ele é capaz de trazer, como aquilo que as representações coletivas impõem. À luz deste juízo, Coimbra (2004, p. 539) assegura que “a percepção é o primeiro passo no processo de conhecimento”. Com isso, se a percepção é infiel, o 112 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 conhecimento não atingirá seu objetivo, em razão do entendimento seguir uma direção equivocada. Isto também se adequa a percepção do meio ambiente, haja vista que a percepção errônea da realidade proporciona e incentiva o uso irresponsável dos recursos ambientais o que, por conseguinte, ajuda a sustentar a crise ambiental. A percepção ambiental tem se destacado como processo que integra a Psicologia com a Sociologia e a Ecologia, ajudando no entendimento dos anseios, satisfações e desprazeres da sociedade concernentes ao meio e aos elementos pautados na qualidade de vida e ao bem estar social (ARAÚJO, ARAÚJO e ARAÚJO, 2010). Neste sentido, Silva e Leite (2008) ponderam que a percepção ambiental envolve a forma de olhar o ambiente, consistindo na maneira de como o ser humano compreende as leis que o regem. Tal olhar, assim, é decorrente de uma imagem resultante de conhecimentos, experiências, crenças, emoções, cultura e ações. A percepção ambiental, então, é fruto da sensibilização humana tomando por base o ambiente em que está inserido e as relações com ele mantidas. Para Coimbra (2004) a percepção do meio ambiente é, de uma só vez, processo e resultado: como processo, ela é o ponto de partida para o conhecimento ambiental e como resultado, pode significar também todo o conhecimento adquirido a respeito do meio ambiente. Como fator existente em todas as ações do ser humano, a percepção é capaz, então, de influenciar o seu modo de se relacionar com o meio ambiente. Nesse sentido, as reações e as respostas cada indivíduo sobre o meio em que vive são diferentes umas das outras, visto que são diferenciados os processos de concepção do meio e das experiências nele vivenciadas. E, diante do cenário atual em que despontam as ações insustentáveis contra o meio ambiente, é importante compreender a maneira como os indivíduos visualizam e lidam com ele, a fim de se obter dados importantes que embasarão a formatação de propostas que estimulem o individuo a uma atitude mais positiva em relação ao meio. Assim, de acordo com Bassani (2001) o contexto dos problemas ambientais envolve o estudo das relações do homem com o ambiente que o circunda, sendo que as soluções a serem adotadas dependem do prévio conhecimento da forma como o individuo lida com o meio ambiente. Neste caminho, Maeczwshi (2006) apud Bay e Silva (2011) assevera que a abordagem da percepção ambiental de uma comunidade converte-se em um primordial instrumento para alcançar a compreensão sobre os comportamentos e atitudes dela recorrentes, visando à estruturação de ações que possibilitem a sensibilização e o desenvolvimento de condutas éticas e responsáveis frente o ambiente. Com isso, considerando que não basta apenas conhecer um determinado olhar sobre o ambiente e a relação do indivíduo com o mesmo sem que haja mudança de mentalidade e condutas, a percepção ambiental deve estar atrelada a outra ferramenta essencial: a educação ambiental. Neste rumo, Rauber (2011) avalia que a educação ambiental objetiva contribuir com as questões ligadas ao meio ambiente, permitindo uma relação mais harmônica do homem com o meio. Mais que isso, busca também a valorização do homem, reavivando a consciência de sua importância social e ambiental. Isso porque o homem é parte integrante do meio e, por assim ser, tem responsabilidades para com este, devendo executar suas atividades de forma que não conduzam à degradação dos recursos naturais. 113 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 Ademais, segundo a autora supracitada, tendo a educação ambiental o conhecimento dos valores e atitudes que os indivíduos têm acerca do meio ambiente, é possível a elaboração de ações que venham a atingir determinado grupo, com vistas a provocar modificações em sua mentalidade e suas ações de forma que, de fato, venham a contribuir para a sustentabilidade socioambiental. Com isso concorda Palma (2005), alegando que a percepção ambiental, como uma ferramenta de educação ambiental, poderá servir de instrumento em busca da conservação dos recursos naturais, uma vez que ela aproxima do homem da natureza, suscitando neste a vontade de zelo e respeito para com o meio ambiente. Desta forma, conseguindo-se alcançar a mudança do olhar humano sobre os recursos e suscitar a necessidade de proteção do meio, é possível lograr os objetivos da conservação ambiental. Metodologia No que concerne aos objetivos, o presente estudo situa-se na categoria exploratória, pois, de acordo com Silveira e Córdova (2009), este tipo de pesquisa objetiva proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses. Em função da abordagem, a pesquisa possuiu caráter qualitativo, pois, segundo Dencker (2002), procurou-se o aprofundamento da compreensão de um fenômeno, incluindo a interpretação do significado dado pelos participantes da pesquisa. Também possuiu caráter quantitativo, uma que vez que se permitiu mensurar opiniões e quantificar valores sobre o tema em questão através de uma amostra dos barraqueiros associados. Quanto aos procedimentos, foi realizada uma investigação acerca do tema proposto através de uma pesquisa bibliográfica e pesquisa documental, sendo finalmente realizada uma pesquisa de campo na praia do Maracanã, localizada na cidade de Santarém, junto os barraqueiros da praia. De acordo com a Associação dos Barraqueiros da Praia do Maracanã, existem atualmente 23 barraqueiros associados. Contudo, em virtude de alguns não estarem presentes durante a coleta de dados, a pesquisa foi realizada com 48% dos barraqueiros, perfazendo um total de 11 participantes. Para tanto, fora elaborado um questionário que se constituiu no instrumento de coleta de dados da pesquisa. Resultados e Discussões Dos entrevistados, a maioria pertence ao sexo feminino (64%), a faixa etária que mais prevaleceu foi a correspondente de 33 a 39 anos (55%) e a escolaridade predominante foi o ensino fundamental incompleto (45%). Ademais, obteve-se que maioria tem mais de 10 anos de atuação na praia (73%). Os informantes da pesquisa foram indagados acerca do que vem a ser a praia do Maracanã para os mesmos. Assim, a representação da praia pelos barraqueiros como um local de trabalho é visível, visto que este é o lugar em que suas atividades laborais são desenvolvidas. Considerando a praia fundamental para o seu sustento, depreende- 114 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 se que este foi o motivo da significação pela maioria dos barraqueiros, correspondendo a 37% dos informantes. Porém, além de trabalharem na praia, alguns também vivem em pequenas casas construídas ao lado de sua barraca, demonstrando que, para 27% dos participantes, a praia representa sua vida. Ademais, a praia do Maracanã também é vista como um lugar que apresenta belezas naturais por 27% dos barraqueiros, registrando-se também o lazer que elas proporcionam para 18% (Gráfico 1). Gráfico 1 –Representação da praia para os barraqueiros Desta forma, concordando com o pensamento de Mansano, Sarrão e Sarrão (2011), a percepção pode levar à compreensão de que as paisagens são cheias de significados e interesses e que, segundo Tuan (1980) apud Mansano, Sarrão e Sarrão (2011), a percepção, os valores e as atitudes são intrínsecos de cada indivíduo. Com isso, cada pessoa atribui a lugares, valores distintos, sejam eles ecológicos, econômicos ou estéticos. Como o significado, os valores e a importância de um lugar, objeto ou realidade estão relacionados com a forma que cada indivíduo percebe o ambiente a sua volta, existirão, então, diversas interpretações, estando estas baseadas em suas experiências, vivências, cultura, julgamentos, expectativas, etc. Em relação ao meio ambiente natural, especificamente, os barraqueiros foram questionados sobre como visualizam a praia do Maracanã. Na visão de 73% dos informantes a referida praia é poluída, porém, outra opinião sinalizou a praia como rica em beleza natural, perfazendo um total de 27% de participantes (Gráfico 2). Gráfico 2 –Visualização ambiental da praia pelos barraqueiros 115 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 As respostas dadas pelos participantes da pesquisa estão em conformidade com o pensamento de Mansano et al. (2005, p.3), uma vez que, na percepção ambiental, podem haver elementos agradáveis ou desagradáveis inseridos em um ambiente, ou seja, “na relação do ser humano com a paisagem, podem ser desenvolvidos sentimentos topofílicos ou topofóbicos em relação ao espaço percebido”. Para Coimbra (2004), tal percepção é denominada sensorial, haja vista que detecta sinais específicos da qualidade ambiental, seja ela positiva ou negativa, podendo-se também aferir os sintomas e incômodos da poluição ou da degradação ambiental que influenciam diretamente na qualidade de vida e na saúde humana. Assim, a praia do Maracanã representa vários aspectos importantes de alguma maneira para os barraqueiros, porém a maioria destes visualiza a praia além de seus atributos naturais, reconhecendo, assim, a problemática ambiental da mesma. Questionados se os problemas ambientais existentes na praia do Maracanã podem afetar negativamente os barraqueiros de alguma forma, 82% dos informantes acreditam que sim e 18% disseram que não (Gráfico 3). Dos que responderam positivamente, 55,56% afirmaram que o problema ambiental acarreta a diminuição no número de clientes que visitam a praia o que, consequentemente, afeta seu trabalho, 22,22% afirmaram que a saúde familiar pode ser afetada e 22,22% dos informantes disseram que afeta o seu sossego, referindo-se à poluição sonora. Gráfico 3 –Opinião dos barraqueiros sobre possibilidade de consequências negativas Bay e Silva (2011) registram que, apesar da sociedade perceber os problemas ambientais, a maioria dos indivíduos ainda não são conhecedores das consequências desses problemas. Contudo, a maioria dos informantes foi capaz de perceber de que forma a problemática ambiental afeta a sua vida, obtendo-se a maioria das respostas relacionadas ao campo econômico, uma vez que os barraqueiros visualizam a praia como fonte de emprego e renda. Porém, ainda sim, é necessário que os barraqueiros sejam estimulados a enxergarem a praia não somente como um ganho econômico, mas como um lugar que deve ser conservado para o alcance do equilíbrio ambiental e qualidade de vida para toda a coletividade. Os barraqueiros que participaram da pesquisa também foram indagados sobre 116 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 quem seria o maior responsável em resolver os problemas ambientais referentes à praia do Maracanã. Para 64% dos informantes o responsável é o poder público, enquanto que 18% atribuíram a responsabilidade aos barraqueiros e 18% a todos (Gráfico 4). Gráfico 4 –Opinião dos barraqueiros sobre o responsável em solucionar problemas ambientais O poder público, de fato, assume relevante papel na solução dos problemas ambientais, especialmente para induzir a participação da sociedade nos processos educacionais que objetivem a conservação dos recursos naturais. Porém, o poder público não é o único que tem responsabilidade para com o meio ambiente, haja vista que toda a sociedade também tem o encargo de assumir uma função mais propositiva em prol do meio ambiente. Assim, “a postura de dependência e de desresponsabilização da população decorre principalmente da desinformação, da falta de consciência ambiental e de um déficit de práticas comunitárias baseadas na participação e no envolvimento dos cidadãos” (JACOBI, 2003, p. 192). Os participantes da pesquisa também foram questionados quanto às ações que tomam frente aos problemas ambientais da praia do Maracanã. Assim, 82% os informantes afirmaram que realizam atividades de limpeza e coleta de lixo, 9% realizam reclamações aos órgãos ambientais e 9% não responderam (Gráfico 5). Gráfico 5 –Atividades realizadas pelos barraqueiros 117 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 Piva-Silva, Lui e Molina (2008) asseveram que os comportamentos e atitudes dos indivíduos em relação ao ambiente estão fortemente relacionados com as diversas percepções que têm do mesmo. Neste sentido, considerando que a maioria dos barraqueiros percebe poluída a praia do Maracanã, o comportamento adotado frente ao problema apontado é a realização de limpeza e coleta de lixo. Isso porque tais ações estão ligadas “à visão construída sobre a realidade em que se vive, já que toda ação é resultado de uma certa compreensão, da interpretação de algo que configure sentido” (LUIZZI, 2005, p.399). Os participantes também foram indagados se se reconhecem como agentes contribuintes para a melhoria da qualidade ambiental da praia do Maracanã, sendo que a totalidade (100%) respondeu positivamente. Desta forma, segundo Quadros (2007, p.11), os problemas ambientais assumem um papel de relevância social em proporções cada vez mais nocivas à qualidade de vida da sociedade e, “reconhecer-se como parte fundamental desta história é um todo complexo e necessário à construção da cidadania e cultura, que é a identidade de um povo e da relação deste com a natureza”, para que os indivíduos, então, possam atuar de maneira participativa e comprometida no amparo ao ambiente natural. Questionados se têm a intenção de participar de projetos voltados à prática da conservação ambiental na praia a maioria respondeu positivamente, perfazendo 91% do total de informantes (Gráfico 6). Porém, houve um decréscimo nesta porcentagem quando foram indagados se, de fato, já haviam participado de alguma atividade que objetivasse as questões ambientais na praia. Assim, 55% dos participantes afirmaram ter participado de atividades de limpeza e coleta de lixo, enquanto que 45% disseram que ainda não participaram (Gráfico 7). Gráfico 6 –Intenção de participar de atividades ambientais Gráfico 7- Participação dos barraqueiros em atividades ambientais na praia 118 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 O envolvimento dos barraqueiros em atividades de conservação ambiental da praia do Maracanã é importante e urgentemente necessário, visto que a tendência é a degradação ambiental do lugar. Porém, a fim de que estejam aptos a trabalhar na construção coletiva de ações estratégicas para a melhoria ambiental, faz-se necessário que os atores sociais “sejam capazes de perceber claramente os problemas existentes em determinada realidade, elucidar as causas e determinar os meios de resolvê-los” (CASTRO e CANHEDO JR., 2005, p. 407). Por isso, tão importante quanto incentivar os barraqueiros a participar de ações de cunho ambiental, é estimulá-los a perceber o ambiente que o circunda, a fim de que se alcancem os objetivos das ações adotadas. Além disso, “é preciso deixar claro que participar não significa apenas o quanto se toma parte, mas como se toma parte em uma intervenção consciente, crítica e reflexiva baseada nas decisões de cada um” (CASTRO e CANHEDO JR., 2005, p. 403) sobre as situações que dizem respeito a toda coletividade. Considerações Finais Os barraqueiros da praia do Maracanã percebem que a mesma, embora dotada de belezas naturais, apresenta-se com disposição demasiada de lixo, perfazendo uma imagem poluída, sendo este o aspecto mais lembrado pelos mesmos quando suscitados a pensar na praia no tocante ao meio ambiente natural. Reconhecendo a poluição pela disposição inadequada de resíduos sólidos como a problemática ambiental da praia, a maioria das ações adotadas pelos barraqueiros é a realização de limpeza e coleta de lixo. Contudo, ao que parece, tal ação ainda parece ser pouco diante de todo o contexto, posto que a visualizam como intensamente poluída. E, para resolver o problema, apontam o poder público como principal responsável por sua solução, embora se reconheçam como agentes contribuintes para a melhoria da qualidade ambiental da praia. Ademais, percebeu-se que a praia do Maracanã é importante para os barraqueiros especialmente por razões de trabalho. Assim sendo, como seu trabalho está relacionado com o meio ambiente, os barraqueiros reconhecem que, a falta de qualidade ambiental afeta negativamente o seu sustento. Com isso, é necessário que compreendam que a melhoria da qualidade ambiental e o desenvolvimento de relações de respeito com a natureza é importante também para toda a coletividade, não devendo, pois, as ações voltadas pelos barraqueiros estarem voltadas especificamente aos seus objetivos individuais e econômicos. Revista Perspectiva Amazônica Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.97-109 Ano 4 N° 8 p.97-109 118 118 Referências ARAÚJO, Jussiara de Lima; ARAÚJO, Afrânio César de; ARAÚJO, Ariosto Céleo de. Percepção ambiental dos residentes do bairro Presidente Médici em Campina Grande, PB, no tocante à arborização local. REVSBAU, Piracicaba – SP, v.5, n.2, p.1-17, 2010. Disponível em: <www.revsbau.esalq.usp.br/artigos_ cientificos/artigo117-publicacao.pdf>. Acesso em 1 Nov. 2013. 119 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 BASSANI, Marlise A. Fatores psicológicos da percepção da qualidade ambiental. In: MAIA, Nilson Borlina; MARTOS, Henry Lesjak; BARRELLA, Walter (Org.). Indicadores ambientais: conceitos e aplicações. São Paulo: EDUC, 2011. BAY, A. M. C; SILVA, V. P. Percepção ambiental de moradores do bairro de Liberdade de Parnamirim/RN sobre esgotamento sanitário. Holos, Natal- RN, v.3, p. 97-112, jun. 2011. Disponível em: <http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/download/381/454>. Acesso em 1 Nov. 2013. CASTRO, Mary Lobas; CANHEDO JR., SIDNEI GARCIA. Educação ambiental como instrumento de participação. In: PHILIPPI JR., Arlindo; PELICIONI, Maria Cecília Focesi (Ed.). Educação ambiental e sustentabilidade. Barueri, SP: Manole, 2005- (Coleção Ambiental). COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Linguagem e percepção ambiental. In: PHILIPPI JR., Arlindo; ROMÉRO, Marcelo de Andrade; BRUNA, Gilda Collet (Ed.). Curso de Gestão Ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004 - (Coleção Ambiental). DENCKER, Ada de Freitas Maneti. Métodos e técnicas de pesquisa em turismo. 6. ed. São Paulo: Futura, 2002. JACOBI, Pedro. Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. Cadernos de Pesquisa, n. 118, p. 189-205, março/2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n118/16834. pdf>. Acesso em 1 Nov. 2013. LUIZZI, Daniel. Educação Ambiental: pedagogia, politica e sociedade. In: PHILIPPI JR., Arlindo; PELICIONI, Maria Cecília Focesi (Ed.). Educação ambiental e sustentabilidade. Barueri, SP: Manole, 2005(Coleção Ambiental). MANSANO, Cleres do Nascimento; OBARA, Ana Tiyomi; KIOURANIS, Neide Michellan; PEZZATO, João Pedro. A escola e o bairro: percepção ambiental e representação da paisagem por alunos de uma 7ª série do ensino fundamental. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 2005. Bauru- SP. Anais...Bauru: UNESP, 2005. Disponível em: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/teses_ge ografia2008/artigocleresnascimentomansanoetall.pdf. Acesso em 2 Nov. 2013. MANSANO, Cleres do Nascimento; SARRÃO, Adriana; SARRÃO, Claudia. Percepção da paisagem de alguns frequentadores do Parque do Ingá na cidade de Maringá-PR. In: I SIMPÓSIO DE ESTUDOS URBANOS: desenvolvimento regional e dinâmica ambiental. 2011, Campo Mourão- PR. Anais... Campo MourãoPR: GEURF/UFPR, 2011. Disponível em: http://www.mauroparolin.pro.br/seurb/Trabalhos/EIXO_3_QUESTAO_AMBIEN TAL_URBANA_26%20ARTIGOS/MANSANO_PERCEPCAO_DA_PAISAG EM_DE_ALGUNS_FREQUENTADORES_DO_PARQUE_DO_INGA_NA_C IDADE_DE_MARINGA_PR.pdf>. Acesso em 9 Nov. 2013. PALMA, Ivone Rodrigues. Análise da percepção ambiental como instrumento ao planejamento da educação ambiental. 2005. 83 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia) - Programa de Pós Graduação em Engenharia de Minas, Metalúrgica e de Materiais- PPGEM, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: <www. lume.ufrgs.br/handle/10183/7708>. Acesso em 2 Nov. 2013. 120 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 PIVA- SILVA, Mariana; LUI, Gabriel Henrique; MOLINA, Silvia Maria Guerra. Água, solo e elemento arbóreo segundo a percepção ambiental de moradores de bairros rurais do município de Joanópolis/SP. IN: IV ENAPPAS, 2008. Brasília. Anais...Brasília: ANPPAS, 2008. Disponível em: h t t p : / / w w w. a n p p a s . o rg . b r / e n c o n t r o 4 / c d / A R Q U I V O S / G T 3 - 3 0 6 - 3 9 0 20080511000017.pdf. Acesso em 09 Nov. 2013. QUADROS, Alessandra de. Educação ambiental: iniciativas populares e cidadania. 2007. 46 f. Monografia (Especialização em Educação Ambiental) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria- RS. Disponível em: <http://jararaca.ufsm.br/websites/unidadede apoio/download/alessandra.pdf>. Acesso em 09 Nov. 2013. RAUBER, Sinovia Cecília. Percepção ambiental de um grupo de moradores do entorno de reservas florestais urbanas em Sinop – MT. 2011. 131 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) - Programa de PósGraduação em Ciências Ambientais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cárceres. D i s p o n í v e l e m : < h t t p : / / w w w. u n e m a t . b r / p r p p g / p p g c a /docs2011/dissertacao_sinovia_cecilia_rauber.pdf>. Acesso em 1 Nov. 2013. ROMEIRO, Ademar Ribeiro. Economia ou Economia Política da Sustentabilidade. In: MAY, Péter H.; LUSTOSA, Maria Cecília; VINHA, Valeria da (Org.). Economia do meio ambiente. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. SILVA, M. M. P. da; LEITE, V. D. Estratégias para Realização de Educação Ambiental em Escolas do Ensino Fundamental. Rev. eletrônica Mestrado em Educação Ambiental, v. 20, jan./jun. 2008. JSILVEIRA, Denise Tolfo; CÓRDOVA, Fernanda Peixoto. A pesquisa cientifica. In: GERHARD, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (Org.). Métodos de Pesquisa. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2009. 121 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 Princípios Éticos e Ausência de Sentido na Contemporaneidade Ivair da Silva Costa* RESUMO O texto procura discutir a ética enquanto o saber humano que tem como objetivo enunciar princípios ou normas universais orientativos da vida. Nos estágios mais recentes da história da humanidade o homem, em sua plena consciência, percebeu a existência de leis universais, consideradas também como direitos comuns a todos os povos. Da mesma maneira a racionalidade humana procurou identificar entre esses vários valores, aqueles que melhor pudessem ser introduzidos nas relações sociais. Assim, de modo gradual e permanente foi se configurando um conjunto coerente do saber ético e se diversificando nas funções de criticar as diversas morais e costumes particulares de um povo, explicar o que é moral, fundamentar a ação humana e indicar os princípios éticos para a boa convivência humana. Nesse sentido, o texto se empenha em discutir a realidade contemporânea e seus desafios éticos que interferem nos relacionamentos interpessoais e aponta o princípio da vida humana, da subjetividade e o religioso como inerentes às ações humanas a serem articulados em vista da promoção da liberdade individual e da dignidade de todos os povos. Palavras-chave: princípio ético - tecnologia - intersubjetividade ABSTRACT The text discusses ethics as human knowledge which aims to enunciate principles or universal norms to guide life. In the most recent stage of human history, men - in his full consciousness realized the existence of universal laws, also regarded as common rights to all the people. Likewise, human rationality sought to identify between these values, those that could best be introduced to social relations. Thus, gradually and permanently a coherent set of ethical knowledge has been configured, which adopted among its functions to criticize some people's particular moral and customs, to explain what is moral, to support human action and to state the ethical principles for good human relations. In this sense, the text strives to discuss the contemporary reality and its ethical challenges that interfere in interpersonal relationships and points the principle of human life, subjectivism and religion as inherent in human actions that are to be articulated aiming to promote individual freedom and dignity for all people. Keywords: ethical principle - technology - intersubjectivity *Professor das disciplinas de Filosofia e Ética nas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT). 122 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 Introdução Ao tratar do tema “princípios éticos” entende-se ser o princípio uma referência de ordem e de valor que direciona a convivência entre as pessoas e a construção de laços duradouros de harmonia com os demais seres vivos que povoam a terra. Compreendem-se, assim, como normas de comportamento humano e não apenas ideias de vida ou premissas doutrinárias (COMPARATO, 2008, p. 494). Desse modo fala-se do princípio responsabilidade, princípio amor, princípio vida, principio cuidado e tantos outros aplicáveis às diferentes realidades humanas. O princípio do cuidado se aplica, de modo especial, às pessoas ao tratar sobre relações humanas e sociais minimamente justas que permitam uma convivência sem demasiados conflitos e dilacerações, mas também é dirigido à criação, enquanto esforço de salvaguardar a terra com seus ecossistemas formadores do todo e os demais elementos básicos que sustentam a vida. Nas páginas seguintes a abordagem esclarecerá o sentido da ética enquanto enunciadora de princípios, ao mesmo tempo em que serão explicitadas três condições da humanidade provocadas pelas transformações sociais e encerrará a discussão com a apresentação também de três princípios que o saber ético considera propícios e indispensáveis para responder a alguns conflitos vividos pela sociedade contemporânea. Ética como Enunciadora de Princípios Para o entendimento do sentido de princípio faz-se necessário considerar a ética não como um conjunto de códigos morais ou de regras próprias de um grupo social a serem seguidas pelos seus membros, mas uma “metamoral” que, segundo Adela Cortina e Emílio Martínez (CORTINA & MARTÍNEZ, 2005, p.3) não se identifica com nenhum código moral, embora não se posicione de forma neutra diante dos diferentes códigos. Assumindo uma postura altamente crítica ela esclarece o que é a moral, determina seu fundamento e aplica aos diferentes âmbitos da vida social os resultados obtidos nas duas funções citadas acima. Dessa forma, é um conhecimento cujo conteúdo se situa além da moral, vale dizer, uma teoria racionalizada sobre o bem e o mal, sobre os valores e os juízos morais. Rebuscando na história semântica do termo vê-se que o português ético deriva do grego ethos (costumes) e moral vem do latim mores (hábitos). Os termos em análise se direcionam para conteúdos “vizinhos”, como a ideia de costumes, de hábitos, de modos de agir e de ser, o que significa o caráter formado por elementos herdados dos genes dos pais e por conteúdos apreendidos na família, na comunidade religiosa e no convívio social. Mas os termos também se distanciam de modo radical apesar de sua proximidade. A distinção acontece quando se compreende a ética mais teórica que a moral e que se esmera em refletir sobre a ação humana e seus fundamentos, para ser capaz de identificar, em cada situação, o que é essencial para a tomada de decisões, 123 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 em uma atitude crítica e iluminadora de sentidos (MATTAR, 2010, p. 238). De fato, a ética questiona os juízos de bem e de mal que são reunidos pela moral com o propósito de “enunciar” princípios e fundamentos últimos. Segundo Jaqueline Russ, pelo esforço e vontade de retornar à fonte, a disciplina ética distingue-se da moral e tem em relação a essa primazia, por se esforçar em “desconstruir as regras” de conduta que forma a moral, os juízos de bem e de mal que se reúnem no seio da moral (RUSS, 1999, p. 7-8).. Atualmente o termo abrange toda a multiplicidade de aspectos da humanidade o que faz com que na literatura facilmente apareçam expressões como ética dos negócios, ética ambiental, ética na mídia, ética na política aproximando-se mais de uma ética prática ou bem pouco teórica. Fala-se até mesmo em uma ética para a sustentabilidade que implica lançar um olhar crítico retrospectivo para a gênese da moral e do conhecimento que orientaram os princípios éticos na modernidade (LEFF, 2012, p. 457). No entanto, apesar dessas aproximações que a ética assume para dentro da especificidade do tema se pronunciar, não se pode esquecer o primeiro e fundamental sentido da ética, a de ser uma metamoral e doutrina fundadora e enunciadora dos princípios ou como criadora de deveres de conduta (COMPARATO, 2008, p. 505). Transformações Socioculturais Contemporâneas Para uma melhor compreensão desse sentido original da ética como enunciadora de princípios é preciso fazer referência, na discussão, de três elementos relacionados ao bem e ao mal, alimentados pelas teorias modernas e contemporâneas que produziram transformações substanciais entre as pessoas e seus relacionamentos. Os elementos são: a falência do sentido da vida (niilismo); o individualismo e as novas tecnologias. Veja a seguir em que consiste cada um desses temas. 1 A Falência do Sentido da Vida (Niilismo) A falência do sentido da vida (niilismo) se caracteriza por um intenso “vazio ético” e perda de valores das pessoas, estruturando-se em um grande paradoxo da ética que precisa ser enfrentado. Ao procurar resposta para a compreensão deste fenômeno, Jaqueline Russ concluiu que a sociedade, apesar da reivindicação do debate ético em quase todos os aspectos da vida do homem, ou considerar “os anos da moral”, tempo ávido de teorização da ética, vive-se o signo de uma ética frequentemente problemática. Para ela, “a crise dos fundamentos que caracteriza todo nosso universo contemporâneo, crise visível na ciência, na filosofia ou mesmo no direito, afeta também o universo ético” (RUSS, 1999, p. 10). Malena Contrera discute esta crise do sentido a partir da proposição do desencantamento do mundo feita por Max Weber. Para esta autora, trata-se de uma condição pós-moderna herdada da visão mecanicista do mundo adotado a partir do século XVII, quando a “codificação racionalizadora” (supremacia da razão) submeteu todas as experiências religiosas, matando o sentido e deslocando a 124 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 centralidade do sagrado (CONTRERA, 2010, p. 37). G. Durand de forma exemplar aponta para isso como a acentuação da crise do pensamento simbólico, e conclui: “o cartesianismo assegura o triunfo do signo sobre o símbolo” (G. DURAND, in CONTRERA, 2010, p. 38). A compreensão das causas desse fenômeno faz ver que o homem afasta-se de uma cognição direcionada pela participação/comunhão para uma racionalização do mundo, que “coloca o homem no topo e gera uma visão antropocêntrica narcisista que vê o mundo de forma objetal e desprovida de vida, de alma” (CONTRERA, 2010, p. 41). Vilém Flusser retrata o processo tradicional abraçado pelo ocidente como o fator preponderante para o triunfo do capitalismo e o esvaziamento do sentido. Afirma: “O pensamento filosófico ocidental está viciado por um ódio fundamental à natureza” (V. FLUSSER in CONTRERA, 2010, p. 45). Flusser sugere que a história ocidental profanou a natureza, humilhou-a e a ela se opôs. O homem moderno, dono de si mesmo, como o senhor do universo, considerou-se seguro na ilusão de controle das coisas. As coisas tecnológicas (o mundo tornado objeto) foram humilhadas e transformadas em produtos de consumo. A natureza, transformada em “sistemas de coisas” torna-se manipulável (V. FLUSSER, in CONTRERA, 2010, p. 45). Para Malena, isso demonstra a crise do sentido; no entanto, neste caso, esvazia-se não pela falta, ausência, mas pelo excesso, pela saturação de coisas e objetos provenientes da tecnologia. “Neste sentido, sermos conduzidos pelo objeto é, para nós, inescapável, é fatal” (CONTRERA, 2010, p. 48-49). Malena revisita o mito de Prometeu e o analisa obtendo a conclusão de que, agora, com o poder máximo do prometeu desacorrentado (técnica), ladeado pela máxima capacidade racional, a pessoa perde o sentido e o significado de sua existência caindo no vazio e acelerando o processo de banalização da vida e da pessoa humana (CONTRERA, 2010, p. 85). Em que consiste mesmo o vazio ético? Para o filósofo alemão Hans Jonas a falência do sentido da vida significa a ausência de todo fundamento desembocando em uma atitude niilista, de esvaziamento da pessoa, de perda dos referenciais que sustentam a boa conduta pessoal e direcionam as relações sociais. (JONAS, 1995, p. 58-59) Admite ainda o filósofo tratar-se do triunfo do individualismo, da confiança exacerbada nas novas tecnologias, aumentando brutalmente os poderes dos homens, tornando-os sujeitos e objetos de suas próprias ações. Para Morin, a própria pretensão do homem e seu desejo de tudo conquistar e tudo dominar é quem provoca o vazio ético que leva ao esquecimento do outro. Afirma o autor: Depois de ter dominado a matéria e começado a dominar a vida, a ciência quer dominar o seu criador, o ser humano, e com isso gera problemas antropológicos novos e fundamentais, os quais são, ao mesmo tempo, gigantescos problemas éticos (MORIN, 2007, p.76). Com o esvaziamento do sentido da vida e com a ausência de princípios sustentadores da conduta vemos as pessoas também vazias do horizonte simbólico e 125 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 dos valores espirituais orientativos da vida. Desse modo, abre espaço no convívio humano a gigantesca produção de bens materiais e simbólicos modernos chamados de parafernálias que oferecem respostas imediatas, facilitando a vida, criando nas pessoas “poder desproporcional à sua naturalidade humana”, gerando desequilíbrio psicossocial, levando-a a interesses distantes da ética (JONAS, 1995, p. 59). Tal realidade se inscreve no ethos humano contemporâneo caracterizado pela busca da satisfação das “necessidades e das pequenas alegrias cotidianas associadas, geralmente, ao consumo como oferta de felicidade plena”. Este fenômeno contemporâneo fere os princípios básicos de uma convivência responsável entre os próprios seres humanos, a natureza e os demais seres vivos. O vácuo deixado pela perda dos valores tradicionais passa, portanto, a ser preenchido pelo espírito de consumo, como representação das subjetividades em busca do aconchego e do lenitivo dos bens acumulados como garantia de felicidade. Muitas são as tentativas de preenchimento do vazio ético, o que tem provocado reflexões e atitudes de vanguarda na intenção de criar uma cultura da preservação, um código de conduta que resguarde a vida humana e uma ética verdadeiramente comprometida com a defesa da vida e do meio ambiente (LEFF, 2012, p. 95). Velhas perguntas aparecem hoje atualizadas e ressoam mais forte em nossos ouvidos: o que é o homem? Agora acrescentada por outra: para que o homem? 2 Individualismo Individualismo é a atitude que privilegia o indivíduo em relação à coletividade. Sem uma orientação globalizante que integre as pessoas e produza sentimentos de parentesco ou que pertença a uma comunidade, cessam também as atitudes de reciprocidade, companheirismo, busca do outro, do encontro. O indivíduo torna-se valor supremo encerrado em si mesmo. Na realidade contemporânea marcada profundamente pela globalização, se torna cada vez mais forte a indiferença dos indivíduos que se sentem estranhos as disciplinas, às regras, aos constrangimentos diversos, as uniformizações. Para Russ, esse individualismo deixa explícita as delícias do narcisismo e a explosão hedonista permissiva, em que as pessoas descontraídas se voltam para as escolhas privadas, narcisistas. (Descontração: distração despercebida da realidade; insensibilidade diante dos fatos da vida). A sociedade contemporânea [...] impulsiona as chamadas desordens do caráter, criando ideias narcisistas de sucesso profissional e social baseado na visibilidade, no ímpeto, na manipulação das relações interpessoais, no desencorajamento de ligações pessoais mais profundas, numa aprovação pessoal pela via da auto-estima e do sucesso, agora baseada na fama, na acumulação e na ausência de convicções, princípios e valores (RUSS, 1999, p. 11) Frente a essas questões, a ética contemporânea se depara com o grande desafio de fazer redescobrir, na era das pessoas “vazias”, uma macro ética válida para a humanidade que seja regida pela comunicação, pela responsabilidade, pela valorização do outro, cuja intenção seja a de fundar as formas culturais contemporâneas, garantindo nas relações interpessoais uma feição mais humanizada 126 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 e humanizadora. Arendt, em “a condição humana”, propõe que a época moderna reduziu a vida social à necessidade laboral, restringindo a vida ativa à produção e ao trabalho. Com isso tornou o homem um animal laborans, diferente do homo faber, pois aquele passa a ser submetido pela necessidade, tornando-se um ser solitário e perdendo a sua qualidade especificamente humana (ARENDT, 1991, p. 31) Esta crítica de Arendt faz ver que o lugar de construção da intersubjetividade é a história de cada um e é somente pela construção de mundos humanos capazes de garantir o reconhecimento universal; somente com a construção de espaço de liberdade possível, se faz uma síntese entre a exigência ética básica e as situações históricas específicas. 3 Supremacia da Razão e Novas Tecnologias As novas tecnologias afloraram na história da humanidade quando a racionalidade humana e a ciência, o pensar e o agir, construíram através da eficiência um mundo transparente e racional, plenamente ordenado e controlado pelo poder da razão, ampliando a visão objetivante e fracionadora da realidade (LEFF, 2012, p. 457)1 Assim, por meio da capacidade criadora e pelo desenvolvimento do pensamento, buscou-se um tipo de existência modelada por princípios de normatividade moral e domínio sobre o mundo por intermédio da técnica (PIKAZA, 1999, p. 128) Denominado de ciência natural este saber humano “neutralizou” qualquer agir humano que fosse encaminhado para os temas do valor, do princípio, em primeiro lugar para com a natureza, que perdeu seu encantamento e depois também para o homem, desprovido da condição de “anjo” ou protetor da criação. Sobre o acelerado processo de transformações promovidas pelo saber racional e a técnica, Hans Jonas levanta a questão do medo e do pavor, que estão substituindo a virtude e a sabedoria. Preferimos nos cercar de arames farpados e cercas elétricas do que discutir e promover formas de combate à violência. Afirma o autor: Neste vazio (que ao mesmo tempo é o vazio do atual relativismo dos valores) é de onde se situa esta investigação. Quem poderá servir-nos de guia? O próprio perigo que prevemos! É em seus clarões precedentes do futuro, e da demonstração antecipada de sua escala planetária e de seu labirinto humano, onde primeiramente poderão descobrir-se os princípios éticos que se derivarão os novos deveres do novo poder (JONAS, 1995, p. 65). Jonas faz uma severa crítica à vontade de poder do homem e ao avanço desenfreado do desenvolvimento e da técnica, reconhecida como “ambição de progresso”, entendida como o aumento das condições de dominação do homem sobre a natureza. Nesse sentido, as ações e objetivos humanos são deformados pela ideia de domínio como meta de todas as pretensões humanas. Segundo Oliveira e Borges, o homem técnico (homo faber), é o homem que faz. Radicado na consciência (alma, razão) soberana e suprema, domina, subjuga, submete, sufoca, atrai para prevalecer, vencer, predominar. Por isso, O domínio torna-se predomínio e subjugação, próxima mesmo da vingança do 127 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 homem contra a natureza, visto que determinada interpretação moral da vida a tem afirmado como negação, castigo e culpa, em oposição à pureza da consciência. Uma técnica, portanto, que esquece e nega seus princípios e se estabelece num entusiasmo cego com o próprio desenrolar pretensamente evolutivo (OLIVEIRA & BORGES, 2008, p. 50-51). Vive-se uma situação de angústia e o sentimento de autodestruição está levando a humanidade a se conscientizar do seu papel predatório e destruidor das relações humanas. Não é de muito longe e nem precisa ser rebuscado no passado histórico a compreensão que com o avanço da tecnologia e das novas formas de poder dominante, foi posto em jogo a concepção de pessoa humana. Com a fragmentação do conceito e com a relativização das relações interpessoais, a razão teve dificuldade em qualificar a pessoa em sua existência integral, determinando-a livre de qualquer reducionismo que a faz perder sua verdadeira identidade transcendental. A técnica com seus avanços difundiram-se para todas as direções imprimindo um sentimento de domínio e de controle do mundo. Alguns indivíduos e grupos econômicos fundamentados teoricamente na racionalidade tecnológica desenvolvem suas atividades econômicas somente para satisfazer suas necessidades imediatas ofuscando a busca pela satisfação real e vital, que nem sempre é atendida. Princípios para um Relacionamento Ético na Contemporaneidade Após o debate sobre a realidade contemporânea envolvente, marcada profundamente pelo descaso e diminuição das relações interpessoais, em detrimento da subjetividade do ser humano, chegamos à última etapa do caminho que é a apresentação de três princípios éticos que se caracterizam como o ponto de encontro para onde a reflexão ética caminha em sua preocupação propositiva de fundamentar a ação humana de respeito e valorização de sua dignidade ética. Considerados como aqueles que abarcam outros de não menos valor o princípio vida e pessoa, o da religiosidade e o princípio da intersubjetividade se renovam e se adaptam em cada época ao novo contexto real, transformando-se em fonte de bases adequadas e apropriadas para todos os tempos e lugares. O princípio da vida e pessoa inicia e fundamenta o caminhar ético; o princípio da intersubjetividade envolve a pessoa em sua relação com os outros e com o meio natural, vindo responder tanto aos anseios contemporâneos da interligação de todo ser vivo, quanto ao desejo de valorização da vida em todos os momentos de sua existência. O princípio religioso se liga estreitamente à ética, por integrar em seu seio o princípio divino que fornece temas centrais de reflexão às metamorais. Recorrendo aos três princípios, a ética busca em suas origens e em seu caminhar histórico porto seguro que mantém a memória e a tradição que funda o presente e o futuro da humanidade. 128 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 1 Princípio Vida e Pessoa O ocidente desenvolveu um longo processo histórico para determinar uma definição que englobasse o sentido de pessoa humana. Para Fábio Comparato, isso se deu em parte pela forte carga do dualismo grego que penetrou no pensamento ocidental e, por outro lado, pelo fato de em muitas sociedades primitivas não existir uma palavra que exprima o conceito de ser humano; os integrantes do grupo são chamados de “homens” e os estranhos do grupo são designados por uma denominação que exprime que aqueles indivíduos são de uma espécie diferente (COMPARATO, 2008, p, 453). Segundo Comparato, quando a ONU, em seu artigo VI da Declaração Universal dos direitos humanos, proclamou que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (artigo 1), e que “todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”, ela na verdade confirmou o longo processo que o pensamento realizou para alcançar essa definição global e determinou a sua forma de encará-la, ou seja, só se pode compreender a pessoa na totalidade integradora do conjunto dos elementos que a compõe. Isso significa que o homem deve ser olhado holisticamente (holos - em sua totalidade). Isto é, não basta somente decompor as partes do todo e analisá-las em separado, é preciso ver a sua totalidade em sua complexidade e entender seu relacionamento com o mundo exterior. Para fundamentar vida e pessoa como princípio não são suficientes destacar o elemento comum a unir os seres humanos e que os torna excelentes (a areté), que os distingue dos demais seres vivos, como afirmaram os gregos no mundo antigo; nem tampouco insistir na visão cristã do imago dei (imagem de Deus) ou da proposta coerente de Boécio que na Idade Média deu à noção de pessoa um sentido novo, entendida pessoa (persona) não como exterioridade, como a máscara do teatro, mas a própria substância do homem, visão esta que Tomás de Aquino a retomou e declarou o homem como um composto de substância espiritual e corporal. Além disso, não são suficientes ainda declarar a dignidade da pessoa pelo fato de ser um ser considerado em si mesmo como um fim em si e nunca como um meio como ensinou I. Kant. Como muito claramente explica Manfredo de Oliveira, “o homem, como ser incondicionado, é uma exceção na realidade” (OLIVEIRA, 1989, p.23). A partir de I. Kant, sem dúvida, compreendeu-se que somente o homem não existe em função de outro. Com essa concepção do filósofo alemão do século XVIII, muitas práticas que feriam a integridade da pessoa foram condenadas, como considerála uma coisa, ser passível de escravidão, o engano por outrem com falsas promessas e os atentados cometidos contra os bens alheios (COMPARATO, 2008, p. 459). Assim sendo, Comparato defende que o elemento nuclear para refletir sobre a pessoa recai na noção de consciência, pelo qual a pessoa permanece re-situada e se situa infinitamente na relação espaço-tempo. Diz ele: No homem, ao contrário [dos animais], espaço e tempo acham-se essencialmente correlacionados [...] Além disso, o ser humano é incapaz de conceber uma limitação ou finitude, quer do espaço, quer 129 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 do tempo (COMPARATO, 2008, p. 460). Com essas considerações aposta-se na dignidade da pessoa humana como supremo modelo ético tanto na dimensão transcendental quanto na individualidade pessoal de cada ser humano, com todas as suas limitações e deficiências. Dessa forma, a dignidade humana está ligada à sua condição de animal racional nos seus aspectos especulativo, técnico, artístico e ético, e à consciência, individual e coletiva, dessa sua singularidade no mundo (COMPARATO, 2008, p. 482). 2 Princípio Intersubjetividade Este princípio aplicado à ética leva a crer que é preciso o ser humano, na sua ânsia de realização enquanto pessoa, configurar projetos que o envolvam no todo e assumir, na história, uma opção fundamental que o oriente no processo de articulação de suas ações, criando condições necessárias para a efetivação de um mundo onde possa viver humanamente e praticar sua alteridade (OLIVEIRA, 1989, p.175). O espaço para tal efetivação é o da intersubjetividade onde devem ser postos em relevância a suprema revelação do absoluto (Deus) no universo e o caráter autotélico do ser humano. Isto significa dizer que, se o processo de conquista do ser humano é uma busca de autonomia, esta autonomia é mediada pelo reconhecimento de todos os seres humanos, isto é, ela passa, concretamente, pela gênese de processos intersubjetivos (OLIVEIRA, 1989, p. 26), onde a instrumentalização e a opressão sejam substituídas pela gênese de uma intersubjetividade enquanto liberdade solidária. Afirma o autor: Tal ideia leva qualquer homem a considerar seus semelhantes em igualdade de dignidade e daí provém a exigência do respeito mútuo, ou do reconhecimento mútuo da autofinalidade do ser pessoal, norma suprema das relações intersubjetivas (OLIVEIRA, 1989, p. 26). Neste campo, a ética surge como o saber que objetiva a “humanização do ser humano”, enquanto proporciona a abertura de espaços de conquista, de articulação e de direcionamento em vista da configuração de um mundo humano, pelo fato de ser dotado da consciência da lei moral e da liberdade, que o torna naturalmente bom, ou seja, “enquanto ser racional, o homem é destinado a se cultivar, civilizar e moralizar numa sociedade com outros homens”, conclui Oliveira. Apesar de muita teorização sobre o tema ao longo da história, foi a reflexão ética do século XX que contribuiu para o “despertamento ético” da sociedade planetária. A 2 partir da crescente preocupação com as relações interpessoais, o filósofo Martin Buber destacou a pessoa enquanto sujeito e condenou veementemente a objetificação ou instrumentalização do semelhante. Para Ricardo Gouvêa, Martin Buber, juntamente com Jacques Derrida e Emanuel Levinas, fundamentaram a ética na “tolerância e na recepção do diferente, o que resulta em pluralidade intelectual e cultural bem como em variedade de costumes e práticas sociais” (GOUVÊA, 2002, p. 23). Com isso, já não é possível mais a convivência com situações antes toleradas ou até mesmo aceitas em algumas culturas, como a desigualdade entre os sexos, abuso de menores, descaso para com deficientes físicos, ridicularização de minorias, 130 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 destruição do meio ambiente. Oliveira afirma ainda a necessidade da construção da intersubjetividade real como exigência ética suprema. O ser humano experimenta-se como obra a ser realizada. E de forma disciplinada e com empenho constrói sua humanidade, planejando seu próprio comportamento (OLIVEIRA, 1989, p. 26). Desse modo, ele se põe como um todo em jogo. Sua missão é criar as condições necessárias para sua efetivação. O mundo intersubjetivo é o espaço de sua efetivação possível: “sua necessidade básica é criar um mundo onde possa viver humanamente”. A intersubjetividade é o encontro de duas subjetividades, ou seja, a subjetividade de uma pessoa humana em relação a outra, e deste em relação à natureza, de onde se conclui que a reciprocidade da relação entre ambos constitui a especificidade da estrutura da intersubjetividade. Berger e Luckmann, com muita propriedade, sustentam que as interações sociais na vida cotidiana tem seu ponto de partida no face a face com o outro. Quando há uma relação contínua com o outro e a história é partilhada pelos dois, há, como resultado, um intercâmbio contínuo entre minha expressividade e a do outro. Afirmam os autores: Nenhuma outra forma de relacionamento social pode reproduzir a plenitude de sintoma da subjetividade presente na interação face a face. Somente aqui a subjetividade do outro é expressivamente “próxima”. Todas as outras formas de relacionamento com o outro são, em graus variáveis, “remotas” (BERGER & LUCKMANN, 2002, p. 47). A ética surge como o processo que tem como objetivo superar o mal existente na vida histórica e conquistar a humanidade do ser humano: ela abre espaço de conquista, aponta as condições de possibilidade da humanização do ser humano entre si e nas relações com a natureza. 3 Princípio Religioso O princípio religioso se serve do quadro tradicional no que se refere à distinção entre o bem e o mal. Embora não fundando uma ética propriamente falando, uma metamoral ordenada pela razão, ele é introduzido nas teorias clássicas enquanto informa e integra no seio de uma ética o princípio divino de ligação e religação entre as pessoas e o sagrado. As ligações entre ética e religião servem, desse modo, para construção de passarelas ou pontes, mediações, uma espécie de direcionamento de conceitos éticos e religiosos para oferecer uma visão de mundo que implique em cidadania e responsabilidade social (HACK & ARAÚJO GOMES, 2002, p.56). Mesmo com o risco de ruptura definitiva entre ética e religião motivada por pensadores a partir de Kant, a dimensão religiosa e transcendental da vida continua sendo para muitas pessoas o destino insubstituível. É nas raízes mais profundas do coração humano que se encontram o ponto de partida e as raízes da reflexão ética. No período moderno um filósofo já defendia a tese da urgência do homem em atentar-se para a religião. Segundo o filósofo Pascal “o coração tem razões que a razão desconhece”. Com o coração o homem conhece os primeiros princípios que, atesta o filósofo cartesiano, trata-se de uma faculdade que conhece as verdades principais que fundamentam o raciocínio. Portanto, conhecer com o coeur é buscar o conhecimento religioso não somente com a simples razão, mas com aquilo que lhe fornece o 131 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 fundamento e a justifica (MARÍAS J., 2004, p.248). Ao tratar da relação ética e religião, não se supõe um estado de subordinação da ética a uma doutrina religiosa. Há separação entre a moralidade buscada pelo homem, sendo o bem o maior grau na escala e a homenagem endereçada a Deus, ao absoluto. Assim, de modo geral, a religião apresenta respostas para algumas questões que o ser humano não pode responder em nenhum outro campo do saber. Da mesma forma, ela está em condições de dar exemplos de moralidade. O pensamento contemporâneo expõe esses temas clássicos, ao redescobrir no princípio religioso uma fonte viva, sem nunca confundir com um fundamento. Desse modo, E. Levinas na sua reflexão sobre a tradição talmúdica e a Bíblia apresenta a religião como uma fonte de inspiração ética, mas seu ponto de vista permanece estritamente fenomenológico. Isso porque, acredita ele, “a palavra de Deus se inscreve na face de meu próximo, posto que Deus, literalmente, fala no homem”. Para o autor, o fundamento recai não sobre a religião, mas sobre a experiência da alteridade, sobre o que ele denomina de “fenomenologia da face” que, tendo a transcendência e o infinito nela inscritos, ultrapassa todo poder humano por sua elevação e altura (LEVINAS, 2008). Compreende-se o pensamento levinasiano ao considerar que sua principal preocupação não residia nas citações bíblicas, mas na experiência do face a face. Primando pela filosofia a sua ética repousa sobre a alteridade e não sobre a ética do sagrado. No entanto, ao traçar sua reflexão a partir dos textos bíblicos ele confirmou uma tendência de todo o pensamento ocidental, que é a de destacar a mensagem bíblica, tanto a do Antigo Testamento quanto a do Novo, como a acentuação da santidade pessoal sobre a sacralidade ritual e que a inversão da hierarquia tradicional de valores proposta por Jesus nos evangelhos “representa uma das maiores revoluções éticas que a humanidade jamais conheceu” (COMPARATO, 2008, p. 451). Considerações Finais Que proveito tirar dessas reflexões? Que passos podem ser dados a partir da interpelação para a construção de novas relações humanas? Como enfrentar o mal que se multiplica ao nosso redor, relevando nossas incapacidades e impotência de enfrentá-lo? Para isso, não há receitas, porém, alguns indicativos podem nos guiar nessa desafiante tarefa. Desta reflexão resulta a necessidade de defender o interesse pelo patrimônio natural comum da vida e da humanidade, hoje vastamente ameaçado. Leva-nos também à adoção de alguns consensos mínimos, como a sensibilidade cuidadosa pela vida que precisa impregnar o ethos humano até constituirse como cultura ética da sociedade e, assim, ter força e combater o vazio ético. Além disso, precisamos reencontrar-nos pela natureza desenvolvendo um sentimento autêntico de pertença amorosa a terra. Rever nossas atitudes de cuidado, responsabilidade social, que supera qualquer tipo de exclusão. É necessária ainda uma reeducação ecológica, que aprenda a viver de modo sustentável, satisfazendo nossas necessidades humanas, sem sacrificar a natureza. 132 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.110-121 131 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 Uma nova compreensão do ser humano também se faz urgente atualmente. Ver o mundo como criação de Deus. Enfim, uma ética ecocêntrica que seja capaz de criar novas formas de comportamento nas relações entre pessoas e a natureza: passar do situar-se sobre as coisas e as outras pessoas, dentro de uma lógica de posse, de domínio, de violência e de crescimento ilimitado, para a lógica do respeito e da comunhão, ou seja, para situar-se e relacionar-se com as coisas e as pessoas, promovendo a vida. Referência Bibliográfica ARENDT, H. A condição humana. 5 ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1991. BERGER, P. L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. 21 ed. Petrópolis: Vozes, 2002. COMPARATO, F. K. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CORTINA, A. MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Editora Loyola, 2005. CONTRERA, M. S. Mediosfera: meios, imaginário e desencantamento do mundo. São Paulo: Annablume, 2010. DURAND, G. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1995. FLUSSER, V. Da religiosidade – a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002.G OUVÊA, R. Q. Ética e cidadania. A busca humana por valores solidários. In: VV. AA. Um olhar sobre ética e cidadania. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2002. p. 9-29. HACK, O. H., ARAÚJO GOMES, A. M. de. Reflexões sobre educação, ética e cidadania a partir do pensamento reformado. In: VV. AA. Um olhar sobre ética e cidadania. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2002. p. 52-57. JONAS, H. El princípio responsabilidad. Barcelona: Hélder, 1995. LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. 9. 133 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.122-134 ed., Rio de Janeiro:Ed. Vozes, 2012. LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 2008. MARÍAS, J. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. MATTAR, J. Introdução à filosofia. São Paulo: Pearson, Prentice Hall, 2010. MORIN, E. O Método 6: ética. 3 ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. OLIVEIRA, G; BORGES, W. Ética de Gaia. Ensaios de ética socioambiental. São Paulo: Paulus, 2008. OLIVEIRA, M. A. de. A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 1989. PIKAZA, X. . El fenómeno religioso. Curso fundamental de religión. Madrid: Editorial Trotta, 1999. RUSS, J. . Pensamento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999. 134 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 Ti Verde: Conceitos e Práticas Visando a Integração do Desenvolvimento com a Preservação do Meio Ambiente Rosane Tolentino Maia* RESUMO Este trabalho tem o objetivo de descrever as ações que vêm sendo implementadas pelas empresas no contexto da TI Verde, visando tornar o uso da computação mais sustentável e menos prejudicial, reduzindo o desperdício. No Brasil, cerca de um milhão de computadores são jogados no lixo anualmente. Além disso, de 10% a 20% de celulares entram em inatividade no mesmo período. A TI Verde surge com o objetivo de aplicar conceitos e técnicas que buscam reduzir o desperdício e aumentar a eficiência dos processos relacionados à operação das tecnologias. Talvez ainda seja cedo para afirmar que as empresas já tenham efetivamente um plano de governança em TI Verde, mas os investimentos continuam a ser feitos nessa área e os avanços já podem ser evidenciados. Palavras-chave: tecnologia - lixo eletrônico - sustentabilidade ABSTRACT This work intends to describe the actions that have been implemented by private companies in the context of green IT, aiming to make the use of computing more sustainable and less prejudicial, reducing waste. In Brazil, around one million computers turn into waste each year. Additionally, 10% to 20% of mobile phones are made useless in the same period. The Green IT comes with the objective to apply concepts and techniques that intend to reduce the waste and increase the efficiency of processes associated with technology operation. Maybe it is still early to say that companies effectively have already a plan for Green IT governance, but the investments are being made in this area and some progress is already evident. Keywords: ethical principle - technology - intersubjectivity *Mestranda em Recursos Naturais da Amazônia pela Universidade do Oeste do Pará-UFOPA. 135 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 Introdução A Revolução Industrial na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII, deu início à produção de energia em grande escala, impulsionando o desenvolvimento tecnológico. Os avanços tecnológicos possibilitaram a produção em massa e o acesso dos indivíduos a bens de consumo. A revolução tecnológica dos últimos anos, não deu início apenas a mais um ciclo, mas a uma nova era, chamada digital. Vive-se hoje, por conta disso, uma razão de máxima mudança, com uma avalanche de informações e inovações surgindo em curtos espaços de tempo, gerando a necessidade de uma readaptação continuada a essa nova sociedade. Desde muito cedo se percebeu que as novas tecnologias iriam provocar grandes alterações socioeconômicas [...] (RIBEIRO, 2009). Em pouco tempo, o domínio da tecnologia deixou de ser apenas um “diferencial” e passou a ser uma “exigência” nas relações sociais dentro de uma nova sociedade: a “sociedade da informação”. Fonte : IT Data. 2010 Figura 1 –Equipamentos vendidos no Brasil (em milhões de unidades) A indústria de eletroeletrônicos no Brasil cresceu muito nos últimos anos, aumentando o seu investimento em tecnologia, colocando no mercado um grande número de produtos. No século XX, surge o conceito da "obsolescência planejada" que segundo Churchill e Peper (2000, p. 42), significa que a empresa construiu os produtos para que não durassem, pelo menos não tanto quanto os compradores gostariam de usá-los. Schewe e Smith (1982) acrescentam que essa estratégia é usada pelos empresários para forçar um produto em sua linha a tornar-se desatualizado e, depois, aumentar o mercado de reposição, em que incentiva o consumo constante das inovações tecnológicas que surgem a cada instante. [...] associado ao crescimento no consumo de equipamentos eletroeletrônicos encontram-se problemas relacionados à gestão dos resíduos gerados por estes dispositivos (resíduos de equipamentos eletroeletrônicos – REE), principalmente aqueles voltados ao manejo e controle do volume de aparatos e componentes eletrônicos obsoletos. Tecnologias e produtos inovadores foram lançados no mercado em curto espaço de tempo eliminando fronteiras nacionais e aumentando o fluxo de produção e comércio entre os países. O potencial de geração dos resíduos de equipamentos eletrônicos estimado entre os anos de 2002 a 2016 foi em média de 493.400 toneladas anuais, representando uma média per capita de 2,6 Kg/ano (SILVA, 2010). 136 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 A questão tecnológica, então, passa a atuar como um fator preponderante na questão ambiental, pois o aumento do consumo promove o descarte em grande escala. Sem um planejamento de produção sustentável, o setor industrial torna-se o maior consumidor de recursos naturais e o principal emissor de poluentes para o meio ambiente. Aumento do preço de energia. Aquecimento global. Equipamentos antigos empilhados em depósitos e aterros sanitários. A conjunção desses fatores tem aumentado as discussões relativas às questões ambientais e, inclusive, o papel que a área de TI representa para o tema. Questões ambientais, e o papel da tecnologia nelas, estão recebendo mais atenção do que nunca ( WALSH, 2009). A TI Verde ou Computação Verde é um tema que vem ganhando cada vez mais prioridade entre as preocupações de governos e lideranças das grandes empresas do mundo todo. Aspectos ambientais e, obviamente, econômicos estão levando as corporações a pensar (e agir) de forma mais eficiente e sustentável com relação à utilização de seus recursos de TI (CPQD, 2012). Apesar das discussões recentes sobre o assunto abordarem de forma predominante o consumo eficiente de energia, a análise sobre o tema pode ser ampliada [...] a gestão de recursos e o impacto nas cadeias produtivas, bem como o ciclo que vai da extração de matéria-prima para a produção de um equipamento, até a destinação ambientalmente adequada destes materiais, ao final de sua vida útil, considerando também a responsabilidade do usuário no momento da escolha, aquisição e descarte adequado de produtos, também fazem parte das diretrizes da TI Verde (ITAUTEC, 2012). O objetivo do presente trabalho é descrever as ações que vêm sendo implementadas pelas empresas no contexto da TI Verde, visando tornar o uso da computação mais sustentável e menos prejudicial, reduzindo o desperdício e aumentando a eficiência dos processos relacionados à operação das tecnologias de informação. O desenvolvimento deste se deu através de uma pesquisa de cunho descritivoanalítico. Os dados obtidos de fontes bibliográficas foram analisados sob um enfoque interpretativo, com abordagem qualitativa. Justifica-se a escolha dos métodos, pois as informações foram avaliadas na tentativa de se obter a compreensão da lógica que permeia a prática em que se dá a Tecnologia e Meio Ambiente A tecnologia representa um meio gerador de mudanças e não se pode discutir a sua importância para o desenvolvimento do mundo contemporâneo. Os problemas têm início, quando o desenvolvimento desenfreado e sem planejamento impacta negativamente o contexto em que está inserido. O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) formado por milhares de cientistas do mundo, inclusive do Brasil, afirma que as consequências advindas do desenvolvimento estão interferindo principalmente no funcionamento do sistema climático no planeta. O gráfico 1 mostra a porcentagem que cada tipo de equipamento representa na composição do lixo eletrônico mundial. 137 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 Grafico 1 –Composição do lixo eletrônico mundial. Fonte: Global Resource Information Database e Programa das Naçõees Unidas para o Meio Ambiente (Unep). Descarte de Lixo Eletrônico: Um Problema Ainda Sem Solução Milhares de aparelhos são descartados diariamente, e com a rapidez da tecnologia, cada vez mais o consumidor quer substituir seus aparelhos por outros mais modernos, mesmo que os antigos ainda estejam funcionando. O lixo eletrônico causa um grave problema para o meio ambiente, pois consome uma enorme quantidade de recursos naturais em sua produção. Um único laptop, exige 50 mil litros d'água em seu processo de fabricação. Além disso, a vida útil desses equipamentos é muito curta, a de um computador gira em torno de três anos e a de um celular, cerca de dois anos, isso ilustra a dimensão da quantidade de lixo que o descarte de eletrônicos significa (INSTITUTO GEA, 2012). De acordo com relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), divulgado em 2010, o Brasil ocupa a liderança entre as nações emergentes na geração de lixo eletrônico per capita, isto é, por habitante, a cada ano. O relatório aponta que o lixo eletrônico descartado por pessoa, no Brasil, equivale a meio quilo (0,5 quilo) por ano. Em contrapartida, na China, que tem uma população muito maior, a taxa de lixo eletrônico por pessoa é 0,23 quilo e, na Índia, ainda mais baixa (0,1 quilo), segundo dados da Rede Brasil (2012). Somente os brasileiros descartam cerca de 500 mil toneladas de sucata eletrônica todo ano. De acordo com o Greenpeace, os eletrônicos rejeitados em todo o mundo somam mais de 50 milhões de toneladas de lixo anuais. No Brasil, cerca de um milhão de computadores são jogados no lixo anualmente. Além disso, de 10% a 20% de celulares entram em inatividade no mesmo período. Estes materiais já representam 5% dos detritos produzidos pela população mundial. A estimativa do PNUMA é de que, até 2030, o Brasil produzirá 680 mil toneladas/ano de resíduos eletrônicos, e cada brasileiro será responsável pela geração de 3,4 quilos de lixo digital. Outro dado preocupante é que, até 2020, o volume de resíduos procedentes de computadores crescerá 400% em países como a Índia e a África do Sul (ECO-ELETRO, 2012). 138 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 A organização não governamental Greenpeace estima de 20 a 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico são geradas no mundo a cada ano. Ainda de acordo com a ONG, o chamado e-waste responde hoje por 5% de todo o lixo sólido do mundo, quantia similar à das embalagens plásticas. Com a diferença de que, quando descartados de maneira inadequada, os eletrônicos podem ser mais nocivos (CARPANEZ, 2010). A venda de eletrônicos vai disparar nos próximos dez anos, e, com isso, aumentar também a produção lixo eletrônico. Na China e na África do Sul, a produção de e-waste deve crescer até 400% até 2020. Na Índia a situação é pior: haverá um aumento de 500% em relação ao que era produzido em 2007. O número de celulares descartados também 18 vezes maior (DIAS, 2010). Principais Diretrizes da TI Verde Segundo Soares (2005), a TI Verde é um conjunto de práticas que torna o uso da computação mais sustentável e menos prejudicial. As práticas da TI Verde buscam reduzir o desperdício e aumentar a eficiência dos processos relacionados à operação das tecnologias de informação. Pode-se dizer, que esta nova tecnologia da informação, servirá de suporte financeiro para muitas empresas que aderirem a este sistema, evitando o desperdício de consumo de energia, à reciclagem e descarte devido de resíduos eletroeletrônicos. Essas ações significam proteger o ambiente e simultaneamente reduzir custos, pois trará grandes benefícios para um novo cenário financeiro tanto para as empresas como para a sociedade, com uma nova consciência empresarial e principalmente ambiental (FERREIRA E KIRINUS, 2010). TI Verde é uma ciência da sustentabilidade, ou seja, a sustentabilidade aplicada em tecnologia da informação, a utilização das tecnologias verdes na informação. Segundo Sousa (2011), a aplicação de TI verde, no primeiro momento não envolve apenas custos, envolve atitude, propagação de conhecimento, monitoramento, reeducação ambiental dos colaboradores, reeducação de ações do cotidiano, reciclagem ecologicamente correta, fornecedores ecologicamente corretos. Para o Brasil, detentor de ricas e estratégicas reservas naturais, a perspectiva do desenvolvimento sustentável constitui uma referência básica a ser incorporada em seu projeto de sociedade da informação. Sob a ótica da sustentabilidade ecológica, coloca-se a importância do domínio das tecnologias relevantes para melhor conhecer, diagnosticar e monitorar as condições ambientais, sobretudo em função da extensão do território nacional, diversidade de ecossistemas e complexidade dos problemas pertinentes. Com apoio das tecnologias da informação e comunicação, é possível criar sistemas e serviços avançados de informação e de prevenção de riscos sobre o meio ambiente, como alerta e suporte às políticas públicas, estratégias empresariais e ações sociais (TIGRE, 2003). Normas e Regulamentações de Incentivo a TI Verde Governos de diversos países têm instituído normas e regulamentações para 139 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 encorajar a chamada TI Verde ou Computação Verde. Empresas de TI contribuem com práticas de sustentabilidade em seus processos de trabalho que vão além do retorno financeiro e consciência ambiental. Assim como para outras áreas, existem normas e certificações que regem o processo de trabalho da TI, tanto para a fabricação, quanto para o uso de equipamentos eletrônicos. Na União Europeia, as diretivas do RoHS (Restriction of Certain Hazardous Substances) e WEEE (Waste Electrical na Electronic Equipment) responsabilizam os fabricantes de equipamentos eletrônicos pela receptação e reciclagem dos produtos. Aqui no Brasil, a certificação ISO 14001 aplicável às empresas de tecnologia, detalha requisitos para empresas identificarem, controlarem e monitorarem seus aspectos ambientais por meio de um sistema de Gestão Ambiental. Nos contratos de 1 Cláusula Verde Envolvendo o compromisso entre as partes de ampliar uma política que prestigie a sustentabilidade e o respeito ao meio-ambiente no que se refere a fornecedores e colaboradores; 2 Cláusula de Redundância Responsável e lixo eletrônico, prevendo a exclusão de versões de backups antigos e adoção de critérios na redundância de dados; 3 A Cláusula de Resolução Motivada em caso da não habilitação técnica de quaisquer das partes nas normas de TI Verde, em especial a não certificação e auditoria contínua ISO 14001 ou demais normas, e a não adoção de um plano de TI Verde; 4 A Cláusula de PPW Performance per Watt em que o princípio é consumir apenas o necessário e aumentar o desempenho por watt; 5 Cláusula LEED Leadership in Energy an Environmental Design ou de construção verde, com o objetivo de certificar edifícios e ambientes de TI verdes, arquitetados segundo normas nacionais e internacionais de construção responsável. (CPQD, 2012). 6 Ações em TI Verde Desenvolvidas Por Empresas Aplicar conceitos e técnicas de TI Verde, consiste em maneiras aplicáveis tanto a grandes empresas como a pequenas empresas, ou mesmo para aplicação doméstica. As práticas da TI Verde são divididas basicamente em três níveis: TI Verde de Incrementação Tática, TI Verde Estratégico e TI Verde a Fundo. 140 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 Fonte: Construção da autora Figura 2 –Práticas de TI Verde nas empresas Entre as principais práticas da TI Verde, destacam-se: 1 Economia de Papel Priorizar o formato eletrônico para os arquivos, impressão no verso e anverso das folhas; 2 Redução no Consumo de Energia Manutenção periódica, compartilhamento de equipamentos, análise de custobenefício, aquisição de hábitos sustentáveis, como desligar os computadores da tomada ao final de seu uso; 3 Descarte de Equipamentos Reaproveitamento, doação e descarte correto. Algumas empresas já começam a ver na aplicação dos conceitos da TI Verde, uma nova forma de gestão sustentável. A empresa ITAUTEC investiu 350 mil reais na construção de uma área destinada à reciclagem de equipamentos eletroeletrônicos ao final de sua vida útil. Neste espaço, os equipamentos são recebidos, desmontados, descaracterizados, pesados e depois têm suas partes segregadas por tipo de material. O procedimento é válido para PCs, notebooks ou equipamentos de automação. Após a separação, estes resíduos são encaminhados aos cuidados de recicladores homologados para o processamento ou destinação final. Estes parceiros da Itautec permitem que essas matérias-primas sejam reinseridas na cadeia produtiva, evitando desperdícios, o acúmulo de dejetos e a contaminação ambiental pelo descarte incorreto. Em 2010, o programa atingiu o volume recorde de 3.842 toneladas de resíduos reciclados, o equivalente a cerca de 140 mil desktops. Do montante, 53,8 toneladas de placas eletrônicas foram encaminhadas à reciclagem fora do país, que ainda não possui tecnologia disponível para o processo. Os demais materiais foram 100% reciclados por empresas brasileiras. O domínio deste processo vem se tornando cada vez mais importante para as operações da Itautec, porque grandes clientes, entre corporações e organizações da área de governo, já estão incorporando a preocupação com o ciclo de vida de produtos em seus processos de compra e descarte, bem como a observância à presença ou não de materiais tóxicos nos equipamentos, que facilitará seu manejo ao fim de sua vida útil. (ITAUTEC, 2012). 141 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 A Sun Microsystems anuncia a conclusão de seu novo data center, em Broomfield, Colorado, nos Estados Unidos. O projeto é a maior consolidação de hardware da história da companhia e permitirá uma economia de até 11 mil toneladas métricas de CO² por ano. As instalações de Broomfield incorporam os mais recentes sistemas de eficiência energética, incluindo design e tecnologias inovadores de alimentação de energia e de resfriamento. De acordo com Dave Douglas, vice-presidente sênior de cloud computing e de sustentabilidade, os primeiros 20% de redução no consumo de eletricidade foram alcançados em 2002. Com o data center de Broomfield, a companhia espera atingir a meta de outros 20% na redução do consumo energético (FERRARI, 2009). A Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), uma das maiores geradoras e distribuidoras de energia elétrica do país, tornou-se a primeira companhia brasileira a alcançar o topo do índice da bolsa em seu setor, que reúne 11 prestadoras de serviços públicos, como energia elétrica e saneamento. Uma das dezenas de iniciativas da companhia na área ambiental é a distribuição de placas de energia solar. Em 2006, a empresa instalou 1.280 placas que convertem energia solar em eletricidade na zona rural de Minas Gerais e, dessa forma, conseguiu levar energia elétrica para os vilarejos mais distantes sem custo para o consumidor. Na esteira da política de racionalização de energia de toda a empresa, a área de TI substituiu a iluminação de mercúrio por lâmpadas de sódio, que é mais eficiente. A empresa não tem a medição da economia alcançada no data center, mas na iluminação pública, 58 mil pontos substituídos por sódio contabilizaram a economia de 18 mil MW/h em um ano (YURI, 2008). A empresa japonesa PANASONIC afirma ter desenvolvido um sistema que, com a luz solar, transforma CO2 em combustível. O CO2, também conhecido como dióxido de carbono, é um poluente e um dos principais responsáveis pelo chamado efeito estufa. De acordo com a empresa, o seu sistema possui 0,2% de eficiência em condições de laboratório. Segundo a Panasonic, o índice é semelhante ao de vegetais reais e superior a quaisquer experimentos anteriores realizados na área. A companhia ainda afirma que o sistema utiliza semicondutores de nitrido para excitar os elétrons do dióxido de carbono (CO2) até eles se transformarem em ácido fórmico, utilizado em corantes e perfumes. A invenção já está patenteada, mas não há previsões de lançamento. No entanto, a Panasonic afirma que pretende implantar a tecnologia em incineradoras e fábricas, responsáveis por altas emissões de CO2 (OLHAR DIGITAL, 2012). Os conceitos de sustentabilidade viraram uma bandeira para a área de TI da ALCOA, que representa hoje uma das maiores produtoras de alumínio do mundo. Um dos mais recentes exemplos dessa postura proativa da área foi a criação de um projeto social para capacitação de jovens na cidade de Poços de Caldas (MG), onde situa-se a primeira fábrica da Alcoa no país e o centro de serviços da companhia, o qual concentra as operações de TI. Nessa iniciativa de ajudar jovens carentes, além da capacitação, o projeto prevê também que a empresa absorva os melhores alunos que passarem pelos cursos. A Alcoa também implementou um projeto no qual 5% de todos os profissionais que atuam no seu centro de serviços são deficientes. O Banco Real com o seu o projeto batizado de Blade PC, de substituição de computadores, gerou uma economia de 62% de consumo de energia elétrica e de 75% de ar condicionado. 142 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 A UNILEVER também investe em sustentabilidade e com o seu programa de consolidação do parque de impressoras reduziu o número de equipamentos em 60%. Para evitar que equipamentos eletrônicos em desuso sejam jogados no lixo comum, e com isso poluir o meio ambiente, a Positivo Informática criou o Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) de reciclagem. Desde 1997 a Positivo Informática estuda a coleta, armazenamento e destinação de seus resíduos sólidos para reduzir ao mínimo sua geração, resultando no Programa de Gerenciamento de Resíduos Sólidos e na Avaliação do Ciclo de Vida do Produto (ACV). Essa preocupação marcou a postura da Empresa, que foi além da preocupação em otimizar a produção, para assumir o conceito de TI Verde. Em 2003, a Câmara dos Deputados criou o Comitê de Gestão Socioambiental (EcoCâmara) para conduzir projetos segmentados em onze áreas temáticas. O EcoCâmara se subdivide em onze áreas temáticas: Área Verde e Proteção à Fauna , Coleta Seletiva e Responsabilidade Social, Gestão de Resíduos Perigosos, Comunicação Institucional, Educação Ambiental, Arquitetura e Construção Sustentável, TI Verde , Novas Tecnologias Hídricas e Energéticas e Licitação Sustentável e Legislação Aplicada .Os projetos são desenvolvidos em parceria com os diversos setores, em consonância com as diretrizes e os princípios propostos pelo programa Agenda Ambiental na Administração Pública (A3P) , elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). O GREENPEACE emite a cada ano uma lista, classificando o nível de sustentabilidade das empresas fabricantes de eletrônicos (Quadro 1). Quadro 1 –Nível de sustentabilidade das empresas fabricantes de eletrônicos Fonte: Greenpeace (2012). 143 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 No Brasil, já existem iniciativas de TI Verde comprovadas por uma pesquisa realizada pela International Business Machines (IBM). O estudo revela que a maioria das médias empresas brasileiras está tomando iniciativas para reduzir o impacto ambiental resultante do uso de tecnologia. Os dados revelam que mais de 70% dessas companhias realizam ou planejam ter projetos de sustentabilidade ambiental (COMPUTER WORLD, 2009). Considerações Finais O objetivo deste trabalho foi o de descrever as principais ações que vem sendo implementadas pelas empresas relacionadas à Tecnologia da Informação Verde. Conceitualmente, concluímos que a TI Verde visa o cumprimento de um ciclo sustentável que vai da escolha dos fornecedores para produzir equipamentos com o menor uso possível dos recursos naturais, passando pelo gerenciamento do descarte, até o recebimento desses mesmos equipamentos para destinação correta. Talvez ainda seja cedo para se dizer que as empresas já tenham efetivamente um plano de governança em TI verde, mas os investimentos continuam a ser feitos nessa área e os avanços já podem ser evidenciados. Referências CARPANEZ, Juliana. Saiba o que fazer na hora de descartar o seu lixo eletrônico usado. Disponível em: http:// www.universitário.com. Acesso em 13 Ago. 2012. CHURCHILL, G. Jr. & PEPER, P. J. Marketing: criando valor para os clientes. São Paulo: Saraiva, 2000. SOUSA, Cleyton dos Santos. TI verde: entender para aplicar.Disponívelem: http://www.tiespecialistas.com.br/2011/04/ti-verde-entender-para-aplicar/. Acesso em 11 Ago. 2012. COMPUTERWORLD. Disponível em < http://pcworld.uol.com.br/noticias/2009/. Acesso em 12 de Ago. 2012. CPQD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento) TI Verde: sustentabilidade e eficiência. Disponível em: http://www.cpqd.com.br/. Acesso em 12 Ago. 2012. DIAS,Tatiana de Mello. A explosão do lixo eletrônico. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/aexplosao-do-lixo-eletronico/. Acesso em 12 Ago. 2012. ECOELETRO. Projeto de Reciclagem de Eletrônicos. O problema do lixo eletrônico no mundo. Disponível em: http://www.institutogea.org.br/ecoeletro/index.php/2011/03/15/oproblema-do-lixo-eletronico-no-mundo.html Acesso em 13 Ago. 2012. 144 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 FERRARI, Bruno. O data center verde da Sun. INFO Online 10 de fevereiro de 2009. FERREIRA, Adriana Peres2; KIRINUS, Josiane Boeira A implantação de uma política de ti verde em uma empresa de sistemas elétricos. Disponível em: http://www.unifra.br/eventos/sepe2011/Trabalhos/sociais_Aplicadas/Completo/217 9.pdf. Acesso em 10 Ago. 2012. FRANCO, Mauro. Tecnologia da Informação com Sustentabilidade: um desafio do novo século. Disponível em: http://www.ici.curitiba.org.br/. Acesso em 11 de Ago. 2012. GREENPEACE Guide to Greener Electronics. Disponível em: http://www.greenpeace.org/international/campaigns/toxics/electronics/how-thecompaniesline-up. Acesso em 15 de Ago. 2012. INSTITUTO GEA. Disponível em: http://www.institutogea.org.br. Acesso em 15 de Ago. 2012. ITAUTEC. TI Verde. Disponível em: http://www.itautec.com.br/pt-br/sustentabilidade/ti-verde. Acesso em 10 de Ago. 2012. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento : pesquisa qualitativa em saúde. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1999. 269 p. OLHAR DIGITAL. Panasonic desenvolve sistema artificial de fotossíntese para reduzir poluição. Disponível em: http://olhardigital.uol.com.br/produtos/digital_news/noticias/panasonic-desenvolvesistema-artificial-de-fotossintese-para-reduzir-poluicao PINTO, Thays Mayara da Costa; SAVOINE, Marcia Maria. Estudo sobre TI verde e sua aplicabilidade em Araguaína. Revista Científica do ITPAC. REDE BRASIL ATUAL. Descarte correto de lixo eletrônico ainda é problema para o Brasil. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/ambiente/2012/04/descarte-correto-de-lixoeletronico-ainda-e-problema-para-o-brasil.Acesso em: 11 ago 2012. RIBEIRO, Nuno. O início da Era Digital. Disponível em: http://cibertransistor.com/2009/06/26/oinicio-da-era-digital. SANTOS, Cleyton dos. TI verde: entender para aplicar. Disponível em: http://www.tiespecialistas.com.br/2011/04/ti-verde-entender-para-aplicar/ SCHEWE, C. D. & SMITH, R. M. Disponível em: http://www.itautec.com.br/pt-br/sustentabilidade/ti-verde. Acesso em 10 Ago. 2012. SILVA, Fabrícia M.S. et al. 145 Revista Perspectiva Amazônica Ano 4 N° 8 p.135-146 Implementação de sistema de logística reversa de refrigeradores no Brasil. 3º Simposio Iberoamericano de Ingeniería de Resíduos. 2º Seminário da Região Nordeste sobre Resíduos Sólidos. Recife (P E), 2010. Disponível em: http://www.redisa.uji.es Acesso em 12 Ago. 2012. SOARES, Edileuza. R e d u z a C u s t o s c o m a T I Ve r d e . D i s p o n í v e l e m : http://wnews.uol.com.br/site/noticias/. Acesso em: 16 ago 2012. TIGRE, Darley. Sociologia: sociedade da informação e da tecnologia. Disponível em: http://www.ebah.com.br/ Acesso em: 13 ago 2012. VIRTUOSO, José Carlos. Desenvolvimento, Gestão Ambiental e Sustentabilidade: Compreendendo o Novo Paradigma, julho/2004, Revista Espaço Acadêmico Nº 38. WALSH, Katherine. O ABC da TI Verde. Disponível em: http://cio.uol.com.br/gestao/2009/01/07/o-abcda-ti-verde/. Acesso em: 11 ago 2012. YURI, Flávia. Quatro exemplos reais de TI verde em grandes empresas. Disponível em: http://www.Computerworld.uol.com.br. Acesso em: 14 de ago 2012. 146 1. A revista “Perspectiva Amazônica” publicará artigos originais, artigos de revisão, resenhas, relatos de caso e ensaios, desenvolvidos por pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa, que tenham caráter científico, sejam inéditos e versem sobre qualquer área do conhecimento e preferencialmente que possuam alguma relação com a realidade Amazônica. Artigo científico “é parte de uma publicação com autoria declarada, que apresenta e discute ideias, métodos, técnicas, processos e resultados nas diversas áreas do conhecimento” (ABNT. NBR 6022, 2003, p. 2). Os artigos originais apresentam temas ou abordagens inéditas, ao passo que os artigos de revisão analisam e discutem trabalhos já publicados sobre um determinado tema. Resenhas são revisões críticas de livros e de publicações científicas ou de interesse científico, nacionais ou estrangeiros. Uma resenha deve resumir, analisar, comparar e opinar sobre a obra em questão, constituindo portanto contribuição teórica ou científica ao campo. Relatos de caso são relatos de experiências vivenciadas adaptadas ao uso didático. Os relatos devem analisar a situação em exame e propor questões para reflexão, contextualizando o caso dentro da área do conhecimento e suas implicações nesta área. Ensaios são opiniões aprofundadas obtidas através da análise de um assunto. São exposições objetivas, lógicas, críticas e originais sobre determinado tema, pelo qual o autor pode transmitir informações e ideias. 2. Os trabalhos serão submetidos ao Conselho Editorial da revista que os encaminhará a dois Avaliadores conforme área de conhecimento e disponibilidade, para que emitam o parecer favorável ou desfavorável à publicação do artigo. O(s) avaliador(es), ao apreciar(em) o trabalho, não terá(ão) conhecimento de sua autoria. 3. O encaminhamento do manuscrito deverá ser acompanhado de carta assinada por todos os autores, reafirmando que o material não foi publicado e nem está sendo submetido a outro periódico. 4. Ao enviar o trabalho para análise o(s) autor(es) concorda(m) com todos os termos das normas de publicação e abre(m) mão de qualquer ação com relação a estes. As Faculdades Integradas do Tapajós, o Conselho Editorial e os Avaliadores da Revista “PERSPECTIVA AMAZÔNICA” não se responsabilizam, nem de forma individual nem de forma solidária, pelas opiniões, idéias e conceitos emitidos nos textos, que são de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es). 5. As pesquisas que envolvam seres humanos ou animais devem apresentar na metodologia que os experimentos foram realizados em conformidade com a legislação vigente sobre o assunto adotada no país, de preferência com prévia aprovação do Comitê de Ética correspondente. 6. Os Avaliadores podem aceitar ou não os trabalhos submetidos e, eventualmente, sugerir modificações ao(s) autor(es), a fim de adequar os textos à publicação. Nesse sentido, só serão publicados os trabalhos que recebam parecer favorável, e que tenham sido ajustados conforme indicação dos avaliadores. 7. Os trabalhos não aceitos para publicação ficarão à disposição do autor até três meses após a comunicação do resultado. 8. Os autores terão direito a dois exemplares da revista na qual seu trabalho foi publicado. 9. Os trabalhos serão aceitos em fluxo contínuo e caso aprovados publicados conforme a edição semestral. NORMAS PARA PUBLICAÇÃO GERAIS 147 Na primeira página do arquivo deverá constar: a) título e subtítulo (se houver); b) autoria: nome completo do(s) autor(es) na forma direta, acompanhados de um breve currículo que o(s) qualifique na área do artigo; c) órgão financiador (se houver); d) resumo e abstract (máximo de 200 palavras); e) palavras-chave (no mínimo três); 2. O corpo do texto dos artigos originais deve apresentar, sempre que possível, a seguinte estrutura: a) introdução; b) fundamentação teórica; c) metodologia ou material e métodos; d) resultados; e) discussão; f) conclusões; h) referências. 3. Nos artigos de revisão, resenhas, relatos de caso e ensaios não será exigida a estrutura comum aos artigos originais. 4. As referências devem ser apresentadas conforme norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), em ordem alfabética, com entrada pelo último sobrenome do (s) autor (es). Quando houver mais de um trabalho do mesmo autor citado, deve-se seguir a ordem cronológica das publicações. 5. As figuras e tabelas devem ser sempre em preto e branco, apresentadas em folha separada do texto e com numeração específica para cada categoria, acompanhadas das legendas, créditos e fonte. As tabelas e figuras devem ser executadas no mesmo programa usado na elaboração do texto. 6. As características técnicas dos trabalhos devem ser as seguintes: a. Editor de texto: Word 97 ou superior b. Fonte: Times New Roman, 12 c. Espaçamento: 1,5 linhas d. Papel: A4 e. Alinhamento: Justificado f. Margens: Superior: 3cm, Inferior: 3cm, Esquerda: 2cm, Direita: 2cm g. Extensão: De 08 a 20 páginas, incluindo a primeira página (título, autor, abstract, conforme item 1.) 7. Os trabalhos deverão ser entregues com cópia digital (em cd ou e-mail) e duas cópias impressas, enviados para: Revista “PERSPECTIVA AMAZÔNICA” Faculdades Integradas do Tapajós Coordenação de Pesquisa e TCC Rua Rosa Vermelha, 335 – Aeroporto Velho 68010-200 Santarém – Pará – Brasil e-mail: [email protected] NORMAS PARA PUBLICAÇÃO ESPECÍFICAS 148