Sem título - Faculdade Santa Marcelina
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 38 / 2º Semestre 2013 Nacionalidade e não-nacionalidade: história e direito internacional dos apátridas Isabella Nisimoto A Segunda Guerra Mundial (SGM) caracterizou de maneira substantiva aquilo que foi conceituado e ficou conhecido como guerra total, e assim, muito além de uma sangrenta disputa armada sem precedentes, diferenciou-se também por ter sido um conflito de ideias que se chocaram violentamente. A partir da década de 1930, surgiram regimes totalitários expansionistas e militares, entre eles a Alemanha nazista de Adolf Hitler, que visava ampliar cada vez mais o seu território e criar um império cujos limites fronteiriços iriam até o leste europeu. Paralelamente ao nazismo alemão, surgira na Itália o fascismo de Benito Mussolini. Nessa confusão de práticas políticas e ideologias que se conflitaram e se associaram, somou-se também a nascente ideologia socialista soviética, e o liberalismo capitalista, representados na Europa pela França e Inglaterra. Nesse contexto, como aponta Pedro Tota (2006), “a Segunda Guerra, por sua mobilização e por sua crueldade, foi única na história da humanidade. Mas foi também uma guerra que proporcionou a união de antigos inimigos figadais. A grande aliança formada pela União Soviética, de regime socialista, com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, estados capitalistas, liberais e anticomunistas, só foi possível porque a Alemanha não era tão - somente um opositor que encarnasse conflitos de interesses econômicos, mas um Estado cuja política e ambições eram determinadas por sua ideologia” (2006: p. 356-367). Desse modo, o Holocausto como “solução final” encontrada pela política nazista, juntamente com as grandes destruições proporcionadas por essa disputa de ideais, que se materializou na guerra, trouxe ao cenário dos grandes conflitos uma nova condição extremada: o deslocamento massivo de pessoas que buscavam fugir das atrocidades cometidas durante os 6 anos de batalhas que compuseram a 2GM. Nesse período e no pós-guerra, portanto, ocorreram os primeiros grandes deslocamentos populacionais forçados, que resultaram no surgimento de uma categoria nova nas relações internacionais: a apatridia. Segundo Hobsbawn (1995), em Era dos Extremos, cerca de 60 milhões de pessoas encontravam-se deslocadas na Europa do pósguerra, das quais aproximadamente 13 milhões eram alemães expulsos da União Soviética, Polônia, Checoslováquia e alguns outros países do leste europeu. Além de cerca de 11,3 milhões de trabalhadores forçados e deslocados pelos Aliados22. “Após a guerra, centenas de milhares de sobreviventes 22 USHMM. United States Holocaust Memorial Museum. Disponível em <http://www.ushmm.org/ wlc/ ptbr/article.php?ModuleId=10005139>. Acesso 20 fev. 2013. 29 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 38 / 2º Semestre 2013 encontraram abrigo na Alemanha desnazificada, na Áustria, e na Itália, em campos administrados pelos Aliados. Nos Estados Unidos, as restrições à imigração ainda eram vigentes, embora a Diretiva Truman, de 1945, mandasse que fosse dada prioridade aos deslocados de guerra dentro do sistema, o que permitiu que 16.000 sobreviventes judeus entrassem nos Estados Unidos”23. Após a ocorrência desmedida dos casos de apatridia que decorreram, sobretudo, da 2GM, a comunidade internacional se viu obrigada a não apenas relembrar os Direitos Humanos, mas também de reiterar a nacionalidade como um direito de todos, fazendo com que expatriação arbitrária ou involuntária se tornasse um ato ilegal internacionalmente. Então, após a Segunda Guerra Mundial, e, principalmente, a partir da metade do século XX, os tratados e convenções sobre os apátridas passaram a ser desenvolvidos no intuito de conter o avanço desse problema decorrente das guerras e outras violências. O deslocamento populacional forçado se tornou um fator preocupante para as potências Aliadas e para o direito internacional que se delineava naquele momento e, por isso, dentre as primeiras iniciativas, em 1947, foi criada a Organização Internacional para Refugiados (OIR), uma 23 USHMM. United States Holocaust Memorial Museum. Disponível em <http://www.ushmm.org/ wlc/ ptbr/article.php?ModuleId=10005139>. Acesso 20 fev. 2013. agência especializada e não permanente, pois acreditavam que se iriam cessar os fluxos em no máximo três anos. Porém, a OIR não conseguiu uma resolução para o problema até o seu término, e foi então que, em dezembro de 1949, a mais importante iniciativa para a contenção de apátridas foi criada, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). No final de 1950, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) percebeu a necessidade de criação de um organismo especializado nos refugiados, e então criou o ACNUR. Juntamente a ele, a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos refugiados, são os principais objetos de proteção internacional dos refugiados. Ao longo desses anos, o trabalho do ACNUR consiste em conceder proteção internacional aos refugiados e ajudar na solução dos problemas, divididos em três grupos: repatriamento voluntário; integração local no país de asilo e; reinstalação, a partir do país de asilo, para um país terceiro. Cabe também ao ACNUR a tarefa de prestar assistência aos Estados na proteção dos apátridas. Recomenda-se aos Estados que recorram a Convenção adotada em 1961, como primeiro passo para solucionar a questão. “O ACNUR auxilia os Estados a implementar a Convenção de 1954, oferecendo assistência técnica relevante em matéria de legislação e suporte operacional para promover a implementação de medidas 30 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 38 / 2º Semestre 2013 que garantam Convenção”24. os direitos previstos na Seu Comitê Executivo e a Assembleia Geral das Nações Unidas tornaram possível que o ACNUR beneficiasse outros grupos de pessoas, além dos refugiados, entre eles estão: os apátridas, as pessoas cuja nacionalidade é controversa, e as pessoas deslocadas dentro do seu próprio país (os deslocados internos). Também auxiliam na amenização dos fluxos de deslocamento forçado e a criar condições para proteção dos Direitos Humanos e proporcionar a solução de forma pacífica das questões. Procuram comover e mostrar às autoridades dos países o quão importante é criar uma política pública interna para tentar oferecer melhores condições aos apátridas. De acordo com a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, “[...] o termo "apátrida" designará toda pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, conforme a sua legislação” (Artigo 1°), portanto não possuem nacionalidade e cidadania. Desta forma, a relação entre o Estado e o sujeito é inexistente, ocasionando inúmeros problemas jurídicos para ambos. “A apatridia, que foi reconhecida pela primeira vez como um problema mundial na primeira metade do século XX, pode ocorrer como resultado de disputas entre Estados sobre a identidade jurídica dos indivíduos, da sucessão de Estados, da marginalização prolongada de grupos específicos dentro da sociedade, ou ao privar grupos ou indivíduos da sua nacionalidade. A apatridia está normalmente associada a períodos de mudanças profundas nas relações 25 internacionais” . A designação desse conceito é normalmente feita de forma negativa, pois são denominados como os que não têm pátria, ou sem nacionalidade reconhecida por nenhum governo. Para Pierre Mayer e Vincent Heuzé (2001), apatridia é a posição de uma pessoa, que nenhum país o considera como advindo. “Ser apátrida significa não ter proteção legal ou direito de participar nos processos políticos, acesso inadequado a cuidados de saúde e educação, poucas perspectivas de emprego e pobreza, pouca oportunidade de propriedade, restrições de viagem, exclusão 25 24 ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Protegendo o Direito dos Apátridas. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/fileadmin/ scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/portugu esPublicacoes/2011/Protegendo_os_Direitos_dos_Apa tridas>. Acesso em 15 dez. 1012. ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Nacionalidade e Apatridia: Manual para Parlamentares. Disponível em: <http://www.acnur.org /t3/ileadmin/scripts/http://www.acnur.org/t3/ileadmin/ scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/portugu es/Publicacoes/2011/Nacionalidade_e_Apatridia_-_Ma nual_para_parlamentares>. Acesso 14 de nov. 2011. p. 6. 31 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 38 / 2º Semestre 2013 social, vulnerabilidade ao tráfico, assédio e violência”26. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) estima que o número de indivíduos sem nacionalidade chega atualmente a 12 milhões, isso significa que grande parte dessas pessoas não tem participação na sociedade e não conseguem ter acesso a serviços básicos como educação, saúde, propriedade e até mesmo de ter um nome reconhecido oficialmente. Os apátridas estão espalhados por todo o mundo, mas se concentram principalmente no Sudeste Asiático, na Ásia Central, na Europa Oriental e no Oriente Médio. Muitos podem ser os motivos de uma pessoa se tornar apátrida, como por exemplo, as diferenças entre leis de países, a renúncia de nacionalidade, a sucessão política de um Estado, a discriminação por sexo, etnia e religião, o tráfico de seres humanos, e a expulsão de território. “Na maioria das situações, as pessoas tornam-se apátridas não em resultado de um equivoco histórico, mas porque os Estados não aprenderam a conviver com, nem a tolerar as suas minorias. O respeito pelo conjunto total dos direitos humanos – incluindo o direito à nacionalidade – é essencial para que uma sociedade possa viver em paz consigo mesma e em harmonia com os seus vizinhos”27. Não são considerados apátridas grupos isolados, que dizem pertencer a uma nação distinta ao Estado que os controla. Como exemplo, pode-se citar os curdos turcos, que não são apátridas, pois desejam se desvincular da Turquia, e não querem ser considerados turcos, mas possuem essa designação por estarem vinculados ao Estado turco. De acordo com a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, a apatridia também não é aplicável nas seguintes situações: pessoas que atualmente recebem algum tipo de proteção ou assistência da ONU ou do ACNUR, e enquanto continuarem a receber esse apoio; as que tenham seus direitos reconhecidos pelo Estado em que está fixada e garantidos direitos e obrigações inerentes de quem possui uma nacionalidade; as que cometeram crime contra a paz, crime de guerra ou contra a Humanidade; crimes graves de natureza não política; e que praticam ações que vão contra os princípios da ONU. A apatridia é dividida em dois tipos: o “de jure” e o “de fato”. As pessoas que se enquadram no primeiro caso não são reconhecidas como cidadãs por nenhuma nação. Já no segundo, há uma nacionalidade reconhecida em lei, mas estão fora de seu país de origem e não podem ou não querem a 26 SOUTHWICK, Katherine, LYNCH, M. Nationality Rights For All: A Progress Report and Global Survey on Statelessness. Washington DC, p. i, março 2009. 27 SRM 1995 – Em busca de Soluções, ACNUR, Genebra, 1995, p. 197-8. 32 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 38 / 2º Semestre 2013 proteção dele. Também pode ocorrer pela negação ou suspensão dos direitos de lei. Os que são classificados como de fato não estão inclusos na Convenção dos apátridas de 1954, pois nessa declaração pressupõe-se que as pessoas que não possuem nacionalidade são refugiadas, ou seja, reconhece como motivo de saída do país apenas as perseguições. Desse modo, irão receber apoio internacional na Convenção de 1951, sendo abrigadas por novos dispositivos. “Os apátridas de fato são pessoas fora de seu país de nacionalidade que devido a motivos válidos não podem ou não estão dispostas a pedir proteção a este país. A proteção, neste sentido, se refere ao direito de proteção diplomática e consular e assistência geral, inclusive com relação ao retorno para o Estado de nacionalidade”28. O problema da apatridia afeta de certa maneira todos os países, pois depende deles e de suas legislações cuidarem dessas pessoas, e em geral cada Estado tem uma maneira diferente de tratar o assunto. Existe também certa relação entre os apátridas e refugiados, mas nem todas as pessoas apátridas são consideradas refugiadas. A Declaração de Direitos Humanos, de 1948, é um símbolo de grande importância 28 ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. O Conceito de Apatridia segundo o Direito Internacional. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/fileadmin/ Documen tos/portugues/BDL/O_Conceito_de_Pessoa_Apatrida_ segundo_o_Direito_Internacional.pdf?view=1>. Acesso em 12 nov. 2012. quando se fala de direito a nacionalidade. No entanto, em relação aos apátridas, a questão principal é que ela não propõe obrigações aos países membros das Nações Unidas (ONU), como a de manter um apátrida em seu território e vincula-lo ao seu país. Os Estados são, então, soberanos na determinação de aquisição e perda de cidadania, mas essas devem estar de acordo com os outros princípios do direito internacional. Nesse sentido, existe um número relevante de dispositivos amplos internacionais e regionais que afirmam o direito de possuir uma nacionalidade. No artigo 15 da Declaração Universal de Direitos Humanos diz que "todo homem tem direito a uma nacionalidade", e complementa, no parágrafo seguinte, que "ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade". Desse modo, a situação precária em que se encontravam os indivíduos que não possuíam vínculo com um Estado, incentivou a criação de um regime internacional mais aperfeiçoado, gerando o reconhecendo dos direitos do individuo em âmbito internacional. Para regulamentar e minimizar os problemas gerados pela apatridia, as Nações Unidas se viram obrigadas a criar uma Convenção para proteger essas pessoas. A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 195429 foi consagrada para solucioná-los no 29 Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas. Disponível em: <http://www.adus.org.br/convencao-sobre-oestatuto-dos-apatrida s/>. Acesso em 20 jan. 2013. 33 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 38 / 2º Semestre 2013 âmbito internacional, tendo sido firmada em 18 de setembro de 1954, na cidade de Nova York, e com o consentimento de todos os membros das Nações Unidas. Essa Convenção foi o primeiro instrumento de direito internacional a regularizar a condição das pessoas sem pátria. O Estatuto afirma que essas pessoas devem ter acesso aos direitos e liberdades fundamentais, sem discriminação. Isso inclui livre acesso a tribunais, educação primária e assistência pública idêntica aos nacionais do mesmo país, direito à propriedade, acesso a empregos, habitação. De acordo com a Convenção, os apátridas não têm apenas direitos, mas também possuem deveres, entre eles a obrigatoriedade de obedecer às leis e regulamentos do país em que se localiza. Quando a Convenção foi adotada, a prioridade eram os chamados “marítimos apátridas” (art. 11), os quais durante a Segunda Guerra Mundial viviam a bordo de embarcações com bandeiras de países contratantes. Em 2011, um país de grande significância ratificou a Convenção, a Croácia, e essa adesão foi incentivada pelo ACNUR, devido a presença de 1700 cidadãos ex-iugoslavos que são ou correm o risco de se tornarem apátridas. Além da Croácia, a Nigéria e as Filipinas também aderiram recentemente ao tratado. Esse documento também garante que as pessoas apátridas que estejam de forma legal instalada em um país não sejam expulsas, a não ser por razões de ordem pública ou segurança internacional. E é obrigação dos Estados que o ratificam criar condições de adaptação para os apátridas e auxiliá-los durante o processo de integração. Além disso, foi reconhecido que os casos de apatridia são crescentes, e, portanto, estabeleceu-se que a convenção deve atuar como garantia das condições de direitos mínimos até a solução de cada caso. Reafirma também a definição de apátrida reconhecida internacionalmente. Em 1961 foi consagrada a segunda convenção para a garantia de proteção aos apátridas e para o controle de novos casos de apatridia30. Essa nova Convenção tornou-se o único instrumento de alcance internacional que estabelece proteções detalhadas, definitivas e claras para garantir uma solução para os casos de apatridia. Quando os Estados se submetem a essa Convenção, a expectativa é de que se previnam e resolvam problemas relacionados à nacionalidade, e, de certa maneira, de que incitem outros países a usarem dos meios corretos para reduzir e prevenir novos casos. A adesão cada vez mais abrangente dos Estados garantiria uma maior estabilidade e uma comunicação uniforme entre eles. Além das salvaguardas estabelecidas pela Convenção, foi determinado que cada Estado deve formular suas legislações próprias sobre a 30 Convenção para Redução dos Casos de Apatridia de 1961. Direitos Humanos. Disponível em: <http://direitos humanos.gddc.pt/3_14/IIIPAG3 _14_3.htm>. Acesso em 12 fev. 2013. 34 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 13 - Nº 38 / 2º Semestre 2013 nacionalidade, mas também devem estar de acordo com outros parâmetros internacionais. Além disso, apresenta mecanismos para prevenir e reduzir os casos de apatridia, dessa forma o Estado tem o dever de garantir a nacionalidade para pessoas apátridas – se a mesma nasce nesse país –, protegê-las contra a perda ou privação da nacionalidade – se a pessoa irá se tornar apátrida como resultado –, garantir os direitos em caso de transferência de território, e assegurar o devido processo e garantias processuais em relação a decisões de cidadania, incluindo aviso prévio adequado e direito a um recurso independente. Isabella Nisimoto é estudante de graduação em Relações Internacionais na Faculdade Santa Marcelina. 35