A PARCERIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
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A PARCERIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
A PARCERIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: PROBLEMAS E CONTRADIÇÕES Georgia Sobreira dos Santos Cêa,1 Rosane Toebe Zen 2 Introdução O capitalismo, na sua configuração recente, tem sofrido consideráveis alterações concernentes às relações de trabalho. O tema tem sido motivo de intensos debates e ações sociais, envolvendo ambas as partes interessadas. Para os empregadores, a flexibilização das relações de trabalho é apresentada como condição para a competitividade empresarial; para os trabalhadores, a escassez e as exigências do mercado de trabalho agravam a fragilidade política das diferentes categorias profissionais, ante as negociações e proposições patronais. Para ilustrar esse contexto, pode-se citar o conteúdo das teses que embasaram os debates e discussões realizadas por juízes do trabalho, durante o XIV Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (CONAMAT), ocorrido em Manaus, entre os dias 29 de abril e 2 de maio deste ano, e que teve como tema central “O homem, o trabalho e o meio: uma visão jurídica e sociológica”3. O marco do encerramento do evento foi a aprovação da “Carta de Manaus”, composta por 12 itens4. O segundo deles é taxativo em afirmar que os juízes do trabalho, representados no referido evento, “Rejeitam todas e quaisquer reformas tendentes à desregulamentação e à precarização das relações de trabalho”. 1 Professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação (GP-TESE), cadastrado no CNPq; Rua Pio XII, 1789, apt. 8, bloco A, Centro, Cascavel – PR; [email protected]. 2 Mestranda em do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE; membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação (GP-TESE), cadastrado no CNPq; Rua Anita Garibaldi, 19, Boa Esperança, Toledo – PR; [email protected]. 3 As dezenas de teses apresentadas foram distribuídas por comissões, organizadas em cinco temas: Comissão 1: As novas tecnologias e as relações de trabalho; Comissão 2: O meio ambiente de trabalho e a dignidade da pessoa humana; Comissão 3: O trabalho juridicamente tutelado como elemento de inclusão social ; Comissão 4: A tutela jurisdicional como fator de promoção dos direitos fundamentais; Comissão 5: A modernização do processo e a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Informações e teses disponíveis em: < http://www.conamat.com.br/tra_teses_acolhidas.aspx#comissao4>. 4 A íntegra da Carta está disponível em: <http://www.anamatra.org.br/noticias/noticias/ler_noticias.cfm?cod_conteudo=18228&descricao=Noticia s>. Considerando que a Justiça do Trabalho é instância do Estado brasileiro5 e, como tal, integra um dos poderes da República, pode-se ter noção do nível e grau de gravidade da situação dos trabalhadores brasileiros diante das relações de trabalho em curso, marcadamente restritivas de direitos e reticentes quanto à garantia de segurança do/no trabalho. Numa das teses apresentadas no evento, Rodrigues (2008, p. 2) salienta que a lacuna legislativa no que tange às relações de trabalho no Brasil “[...] tornou-se cada vez mais grave pelo assombroso crescimento do processo de terceirização, a todo momento fomentando lides a serem submetidas ao judiciário”. Uma das principais justificativas da classe empresarial para a defesa e expansão vertiginosa do processo de terceirização é a crise que marca o trabalho formal na configuração atual do capitalismo. Justifica-se que a terceirização e, portanto, as parcerias, são inevitáveis para o refreamento da crise do emprego, daí a conseqüente crítica às diferentes formas jurídicas que visam resguardar os direitos do trabalho, direitos esses recentes e frágeis na realidade brasileira e que passam a ser duramente atacados pelos grupos empresariais. Pires (2008, p. 2), contra-argumentando o posicionamento empresarial, afirma que [...] é uma falácia dizer que existe uma relação de causalidade entre os sistemas de garantia de emprego e o desemprego. Aliás, podemos pensar que é a falta de garantia no emprego que aumenta o desemprego. Já a contratação informal é mecanismo adotado por empresas sem responsabilidade social e, quanto a elas, à fiscalização ministerial e à Justiça do Trabalho caberá coibir a prática, adotando o prestigiado princípio da primazia da realidade. 5 Este trabalho orienta-se pela noção de Estado ampliado ou noção geral de Estado, conforme definida por Antonio Gramsci (1991), e pela identificação do Estado moderno como a estrutura de comando ou controle político do capital, com base em Mészáros (2002). O primeiro autor propõe uma compreensão dialética do Estado capitalista, que rompe com a identificação imediata entre governo e Estado e com a cisão absoluta entre sociedade civil e Estado, além de explicitar a condição do poder político como terreno e objeto da luta de classes. O segundo autor desenvolve uma interpretação do Estado moderno como estrutura política, que deve diminuir, na medida do necessário, os desequilíbrios e as distorções das dimensões constitutivas do sistema do capital. Não obstante as diferenças entre os autores quanto à questão do Estado, ambos sustentam-se na máxima marxiana – aprofundando-a e atualizando-a – que afirma que “A burguesia [...] é obrigada a organizar-se nacionalmente, e não mais localmente, a dar uma forma geral a seu interesse médio [...]. o Estado [moderno] é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época [..] todas as instituições são mediadas pelo Estado e adquirem através dele uma forma política” (MARX, ENGELS, 1996, p. 97-98). 2 A falta de responsabilidade social das empresas, conforme salienta Pires (2008), aliada ao caráter gerencial assumido pelo Estado nacional, tem efeitos sociais de alto impacto para os trabalhadores. Por um lado, constata-se a crescente diminuição da força de trabalho caracterizada pelo tempo integral, segurança no emprego, perspectivas de promoção, tutela contratual, entre outras; ao mesmo tempo, verifica-se o aumento da composição e presença da força de trabalho atípico, caracterizado pela falta, ausência ou fragilidade da tutela contratual, resultando, entre outros, no declínio da remuneração e na desqualificação e precarização do trabalho (VASAPOLLO, 2005). Essas diferentes formas de contratação vêm sendo orientadas pela idéia das parcerias entre vendedores e compradores da força de trabalho, baseada na crença da possibilidade de atenuação e mesmo diluição da contradição fundante entre capital e trabalho. A ilustração apresentada anteriormente intenta demonstrar o grau de complexidade que cerca o tema das parcerias nas relações de trabalho, o qual constitui o objeto deste artigo. Para desenvolvê-lo, num primeiro momento discute-se o caráter ideológico das parcerias entre trabalhadores e capitalistas, a partir da identificação dos mecanismos através dos quais as parcerias têm assumido significativo papel na produção, em diversos setores. Num segundo momento, o artigo apresenta reflexões sobre as implicações práticas da lógica da parceria, tomando como referência uma experiência concreta (o setor da avicultura). Objetivos A problematização e a elucidação de contradições inerentes à ideologia e às práticas de parceria nas relações de trabalho constituem os objetivos centrais deste artigo. O tratamento teórico desses elementos justifica-se, fundamentalmente, pela necessidade de compreensão das mudanças em curso nas relações de trabalho e pela necessidade de explicitação do aprimoramento das formas de exploração da força de trabalho, que muitas vezes ganham a aparência de maior poder de participação e de barganha dos trabalhadores, quando, em essência, promovem o contrário, aprofundando sua subordinação aos ditames dos interesses empresariais. Metodologia 3 Para a elaboração do artigo, utilizou-se a orientação teórico-metodológica pautada na abordagem dialética, tomando como principal referencial a categoria da contradição. Os instrumentos metodológicos que serviram de base para as análises são a pesquisa bibliográfica e a análise de dados empíricos preliminares acerca da prática de parcerias entre empresas e trabalhadores. Resultados: No Brasil, principalmente a partir da década de 1990, a desregulamentação do mercado de trabalho – juntamente com a redefinição liberalizante do controle do Estado sobre a atividade econômica e com a rearticulação do país no contexto das relações mercantis em âmbito mundial (marcada pela abertura econômica)6 – passou a compor um conjunto de diretrizes políticas que repercutiram, fortemente, nas relações de trabalho. Em estudo recente sobre os planos nacionais de desenvolvimento editados a partir dos anos 1990 (os chamados planos plurianuais)7, Zen (2007) constata que o conjunto de diretrizes apresentado acima está presente nos instrumentos de planejamento governamental, ganhando diferentes argumentos e estando relacionados a políticas específicas, mantendo, entretanto, o mesmo sentido político-econômico. A autora afirma que [...] está previsto que o Estado buscará a iniciativa privada para realizar os investimentos em infra-estrutura (o que gera maior endividamento e, conseqüente, redução da disponibilidade de recursos públicos para investimento na área social). O tema da abertura do comércio [...] trata do fortalecimento de setores com potencial de inserção internacional. A desregulamentação do mercado de trabalho se faz presente no que se refere à modernização das relações trabalhistas; estas significam, em síntese, a redução dos poucos direitos trabalhistas conquistados pelos trabalhadores até então (ZEN, 2007, p. 92). As orientações e ações práticas encampadas pelo Estado brasileiro nas últimas 6 Segundo Boito (1999), esse conjunto, interpenetrado e articulado, constitui a base da chamada política neoliberal. 7 No estudo, buscou-se a compreensão dos sentidos atribuídos à formação profissional nos Planos plurianuais elaborados a partir dos anos 1990: Brasil em Ação (1996/1999), Avança Brasil (2000/2003) e Brasil de Todos (2004/2007). Na parte inicial do trabalho, são identificadas as idéias centrais que unificam os três planos analisados. 4 décadas são parte do caráter assumido pelas relações sociais de produção que se tornam predominantes nas últimas décadas no país. Analisando os fundamentos das relações sociais de produção no capitalismo, Marx e Engels (1996) fazem referência ao conjunto de elementos que envolvem a materialidade e a subjetividade da vida dos homens e que define os diferentes espaços sociais a serem ocupados e as práticas sociais a serem concretizadas, visando à realização da produção; tais relações são a expressão histórica da unidade orgânica entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as formas assumidas socialmente pelas relações de propriedade (expressão jurídica dessas relações) e as ações e idéias esperadas dos agentes econômicos envolvidos na produção. É a partir desses referenciais que o tema da parceria nas relações de trabalho é tratado neste artigo. Tal postura teórica pode ser justificada pela própria compreensão divulgada pelo meio empresarial do que significam as parcerias. Isatto e Formoso (1999), num estudo sobre as parcerias entre empresas e fornecedores sob a lógica da qualidade total, afirmam que Enquanto a busca por maior poder de barganha é legítima em qualquer situação, haja visto o que ocorre nas estruturas de keiretsu [modelo empresarial caracterizado por uma cadeia hierárquica e de subordinação entre empresas, visando um intento econômico] no Japão, a efetiva implantação de parcerias corresponde a uma forma distinta de exercício de tal poder. Tal habilidade – exercer o poder sem sacrificar a longo prazo a sobrevivência do parceiro e lhe garantir possibilidades de crescimento – parece, portanto, ser o elementochave no sucesso de tais relações, carecendo ainda de pesquisas mais aprofundadas. Vê-se, a partir deste exemplo, que a visão empresarial relaciona diretamente a prática da parceria às relações de poder entre as partes envolvidas e crê na possibilidade de que a dominação de uma delas sobre a outra possa se dar sem a falência da última. Naturaliza-se, portanto, a dominação de um dos parceiros e a ocorrência de “sacrifício” da sobrevivência da parte subjugada. A análise dos autores, cristalina e direta, permite indicar que essa lógica rege, de maneira geral, as diferentes formas que a parceria assume no atual contexto. Em geral, a parceria serve de principal ferramenta de gestão do processo de terceirização de serviços, atividades e de mão-de-obra. Esse processo é marcado pela realização de contratos entre diferentes partes visando a realização de um fim, envolvendo distintos 5 agentes sociais, dependendo do tipo de atividade desenvolvida por distintas esferas: no âmbito das relações políticas entre Estado e sociedade civil, nas transações empresariais dos diferentes setores da economia, e mesmo no interior de diferentes processos de trabalho, tendo como partes envolvidas os empregadores e os trabalhadores. Esta última forma é a abordada neste artigo. O processo de terceirização e sua principal ferramenta de gestão – a parceria – são significativas expressões da desregulamentação das relações de trabalho, nas quais são aceleradas e aprimoradas as estratégias de flexibilização das relações sociais de produção, envolvendo as formas de organização e realização do trabalho, as ações e expectativas dos agentes econômicos envolvidos na produção (proprietários de meios de produção e proprietários da força de trabalho) e o caráter assumido pelas formas de produção e distribuição da riqueza socialmente produzida. Nesse entorno, são também flexibilizadas as forças produtivas do trabalho, expressas no próprio design e funcionamento das máquinas e equipamentos. São comuns os apelos empresariais e midiáticos para o aprofundamento da flexibilização das relações de trabalho, sob o argumento de que a mesma age como estratégia de enfrentamento ao problema do desemprego. Entretanto, compreendida no contexto das relações sociais de produção, pode-se afirmar, com base em Vasapollo (2005, p. 28), que a flexibilização, “[...] definitivamente, não é solução pra aumentar os índices de ocupação. Ao contrário, é uma imposição à força de trabalho para que sejam aceitos salários reais mais baixos e em piores condições”. Os contratos de trabalho atípicos são os principais meios para o estabelecimento de parcerias entre empregadores e trabalhadores. Estas acabam funcionando como instrumentos de precarização do trabalho, uma vez que, segundo Vasapollo (2005, p. 60), diante das regras de eficiência das empresas, “[...] o trabalhador é abandonado frente a um empresário com o qual ele tem de negociar seu salário e o tempo que ele vai dedicar ao trabalho”. Nesse contexto de precarização das relações de trabalho, ganha amplitude o controle do capital sobre o processo de trabalho, uma das tendências imanentes do capitalismo (BRIGHTON, 1991). Nesse sentido, as recentes inovações tecnológicas e organizacionais aplicadas ao mundo do trabalho recolocam a discussão sobre as possibilidades de participação dos trabalhadores nos processos de tomada de decisões 6 na empresa capitalista moderna. Na contemporaneidade, manifesta-se a contradição entre a necessidade de maior engajamento e participação dos trabalhadores na dinâmica das empresas, ante o caráter flexibilizado das relações e processos de trabalho, e a necessidade, inerente ao exercício do controle no processo de trabalho capitalista, de circunscrever e subordinar a ação e as intencionalidades dos trabalhadores aos desígnios das formas de produção e reprodução do capital que se tornam predominantes. Harvey (1999, p. 119), analisando as transformações recentes do trabalho no capitalismo, afirma o seguinte: A socialização do trabalhador nas condições de produção capitalista envolve o controle social bem amplo de suas capacidades físicas e mentais. A educação, o treinamento, a persuasão, a mobilização de certos sentimentos sociais (a ética do trabalho, a lealdade aos companheiros, o orgulho local ou nacional) e propensões psicológicas (a busca da identidade através do trabalho, a iniciativa individual ou a solidariedade social) desempenham um papel e estão claramente presentes na formação de ideologias dominantes cultivadas pelos meios de comunicação de massas, pelas instituições religiosas e educacionais, pelos vários setores do aparelho do Estado, e afirmadas pela simples articulação de sua experiência por parte dos que fazem o trabalho. Diferentes são as formas de caracterizar e nomear essa recente feição do controle do capital sobre o trabalho: “envolvimento cooptado” do trabalhador (ANTUNES, 1995, p. 35), “captura da subjetividade operária pela lógica do capital” (ALVES, 2000), necessidade da aceitação, da colaboração e da adesão à filosofia da empresa por parte dos trabalhadores (GOUNET, 2002, p. 46-47). Como elemento comum a essas diferentes análises encontra-se a explicitação da estratégia ideológica capitalista de fazer parecer que as contradições entre capital e trabalho se diluíram e que os interesses das classes antagônicas são os mesmos. Ao desvelarem o aprofundamento do controle do capital sobre o trabalho, sob novas feições, os autores citados contribuem para a compreensão da contraditoriedade entre a necessidade de “adesão” dos trabalhadores – que funciona mais como coação – e o esforço para que tal participação ativa no processo de trabalho seja orientada pelas necessidades de produção e reprodução do capital. Assim, as parcerias atuam como fiéis instrumentos do exercício de poder realizado pela classe capitalista sobre os trabalhadores. 7 A PARCERIA NA AVICULTURA A experiência concreta que aqui serve de reflexão sobre o tema da parceria é a que se estabelece entre os avicultores (pequenos proprietários rurais) e as agroindústrias. São várias as razões que podem ser mencionadas para justificar a pertinência do estudo da parceria na avicultura: a importância econômica do setor, onde o Brasil ocupa, desde 2004, a liderança mundial na exportação do produto (frango de corte); o fato desse tipo de parceria constituir um elo entre as esferas rural e urbana de produção; e o caráter pioneiro que a parceria no setor avícola assume, de forma predominante e massiva, envolvendo avicultores e agroindústrias, conforme apontam diversas pesquisas sobre o tema (BILK, 2003; CANAVER et. al., 1998; COSTA, 1993; RIZZI, 2005). Mas a questão fundamental que justifica a abordagem dessa forma específica de parceria é o fato da subordinação envolver sujeitos sociais aparentemente controladores, ambos, de suas propriedades. A maior indústria brasileira de produção de frango de corte surgiu no oeste catarinense e hoje tem unidades nas principais regiões agrícolas do país. Foi pioneira no sistema de parceria entre indústria e produtor rural, modelo criado em 1951, a princípio denominado de integração vertical, que mais tarde passou a ser chamado de “Fomento Agropecuário”. A produção consiste no fornecimento, por parte da agroindústria, dos pintinhos, da ração e da assistência técnica. Aos avicultores deve caber a responsabilidade pela construção, em suas propriedades, dos aviários e da compra dos equipamentos, e desempenham a atividade de engorda dos animais, que são entregues à empresa no ponto de abate (COSTA, 2005). Esta forma de produção manteve-se incipiente, rarefeita e marcada por experiências isoladas de frigoríficos até os anos 1970. Daí em diante, o processo de modernização da agricultura se intensifica, abarcando mudanças que se fizeram sentir desde a base técnica da produção até a implantação de indústrias processadoras de matérias-primas de origem agrícola, encurtando o ciclo de produção (KAGEYAMA et. al., 1990, apud. RIZZI, 1998). Estas alterações tornaram a produção em pequena escala – ou seja, aquela produção própria da pequena agricultura – praticamente inviável, deixando aos pequenos proprietários duas possibilidades: venda da propriedade – configurando o movimento de concentração fundiária e o êxodo rural – ou a adaptação 8 da propriedade a segmentos em que a mão-de-obra familiar era bem-vinda, tornando-se “parceiros” de agroindústrias (BILK, 2003). Portanto, o movimento de intensificação e ampliação da industrialização que ocorreu a partir dos anos 1970 em todos os setores produtivos (automobilístico, têxtil, bens duráveis, por exemplo) atingiu também, neste mesmo período, a agricultura. Este contexto tornou-se extremamente fértil para a avicultura agroindustrial. A avicultura se modernizou impulsionada pelo apoio financeiro governamental, através de políticas de crédito subsidiado, tanto para a instalação de frigoríficos e comercialização, bem como para a instalação de aviários e equipamentos aos fornecedores de matéria-prima (o avicultor). De acordo com Sorj (1986), citado por Bilk (2003, p. 23), […] as políticas de modernização subsidiadas pelo Estado e o crescimento da agroindústria como determinantes básicos de mudança nas estruturas sociais agrárias […] promoveram a capitalização dos processos de trabalho rurais e a mercantilização crescente da agricultura de pequena escala, acelerando a taxa de proletarização rural [e gerando] uma rearticulação fundamental à reprodução de capitais industriais. O Estado passa a ser encarado como agente de uma nova estratégia deliberada e coerente no sentido de transformar a base produtiva da agricultura via sua integração ao complexo agroindustrial. Neste sentido, além de Bilk (2003), também outros pesquisadores (COSTA, 1993; GRIGOROVSKI et al, 2001; RIZZI, 1998) indicam que o Estado cumpriu e vem cumprindo papel fundamental para o desenvolvimento da avicultura. Na década de 1990, o setor avícola ganha importância no cenário econômico nacional, incentivado pelas alterações conjunturais de cunho neoliberal, nas quais os incentivosfinanceiros, a abertura comercial (exportação dos produtos), a reestruturação produtiva8 financiada pelo Estado e a possibilidade de ampliação de ganhos pela extração da mais-valia, tanto na sua forma relativa (incremento tecnológico), como na sua forma absoluta (desregulamentação do mercado de trabalho), compõem os principais elementos deste crescimento: 8 Diferentes estudos (COSTA, 2005; CANAVER et. al., 1998; FIGUEIREDO et. al., 2006; MENEGHELLO et. al., 1999) apontam a abertura comercial e a reestruturação produtiva como elementos que deram propulsão à avicultura nacional. Estes estudos compreendem a reestruturação produtiva como o fator que possibilitou o aumento da produção do setor, e a abertura comercial como o elemento que possibilitou a participação do produto nacional no mercado externo, sem manifestar preocupação com as conseqüências destas transformações para os trabalhadores do setor. 9 [na década de 1990] O BNDES desembolsou R$ 940 milhões para o setor, ou seja, 29% do valor destinado à cadeia de carnes. Os financiamentos para a criação de aves representaram 42% desse valor, com os 58% restantes sendo destinados às atividades de abate. A dinâmica da avicultura no período esteve diretamente relacionada ao aumento do consumo de frango verificado imediatamente após a implantação do Plano Real. No ano seguinte (1995), o consumo per capita cresceu 22%, passando de 19,2 kg/hab/ano para 23,4 kg/hab/ano. Os financiamentos do BNDES acompanharam essa tendência: o valor desembolsado, que até o final de 1994 foi de R$ 163 milhões, cresceu exponencialmente, totalizando R$ 777 milhões na segunda metade da década, ou seja, cinco vezes o verificado pré-Plano Real. Os financiamentos foram utilizados para a implantação e a ampliação da capacidade de granjas e complexos avícolas voltados para a produção de animais para abate. Foram apoiados também investimentos para alojamento de matrizes para a produção de ovos para gerar pintos de um dia e investimentos em tecnologia, que visaram ao melhoramento genético das aves com o propósito de aumentar a produtividade do setor e contribuir para a diminuição do risco de doenças nos criatórios. A construção de abatedouros e incubadoras e a aquisição de plantéis de matrizes adultas foram os itens mais freqüentemente financiados. (GRIGOROVSKI et al, 2001, p. 169). No entanto, os mecanismos financeiros e legais por meio dos quais o Estado incentivou o desenvolvimento da avicultura não foram os mesmos para pequenos produtores rurais e agroindústrias. O Estado atuou como mediador entre os interesses do capital agroindustrial e os da pequena agricultura, num processo em que “[...] grandes latifúndios se transformaram em modernas empresas capitalistas, diferenciando-se cada vez mais dos latifundiários tradicionais, assentados na exploração da renda do pequeno produtor” (SORJ, 1986, apud. BILK, 2003). A mediação consiste, nesse caso, no fortalecimento da intrínseca relação entre os dois elos do processo produtivo – rural e urbano –, na qual a agroindústria subjuga e explora o trabalho dos avicultores. As políticas de crédito se assentaram em termos diferentes: as agroindústrias tiveram acesso a linhas específicas e facilitadas de recursos públicos, tomados seja pela própria receita do Estado, seja por empréstimos a organismos internacionais, enquanto os agricultores tiveram que recorrer a empréstimos comerciais para financiar os equipamentos com os quais passaram a produzir (BILK, 2003; COSTA, 1993). A UBA (Associação Brasileira de Avicultura), em relatório anual referente ao período 2006/2007, comemora os números do setor: 10 Em 2007, o mercado interno portou-se com demanda bastante equilibrada com a produção, apresentando consumo médio de 580 mil toneladas/mês e alcançando demanda anual de 6,960 milhões de toneladas, com ganhos de 5% sobre o ano anterior, mantendo o consumo per capita acima de 37,8 kg por habitante/ano. […] Na área externa, […] as exportações brasileiras recuperaram as perdas e ampliaram suas vendas, atingindo um crescimento, em volumes, da ordem de 21%. Foi importante também a recuperação de preços, que alcançou aumento de 28% sobre a média obtida em 2006 (UBA, 2007, p. 36). Este ganho, no entanto, não é revertido aos avicultores. Segundo as pesquisas de Bilk (2003) e Costa (1993), os avicultores são submetidos ao intenso aumento da produção sem que isso represente, na mesma proporção, aumento de renda. De acordo com estes estudos, a remuneração dos avicultores representa para a agroindústria, em média, a fatia de 5 a 10% do custo de produção. A diferença entre o mínimo (em torno de 5%) e o máximo (10%) indica grande diferença remunerativa entre os avicultores, evidenciando que alguns são mais bem remunerados que os demais. Este desequilíbrio serve para justificar o desempenho individual de cada produtor, sob o ideário de que todos têm condições de obter a mesma renda, no entanto, alguns se sobrepõem, e estes são considerados produtores “padrão”. Ainda de acordo com Bilk (2003), agroindústrias que há 20 anos atrás exigiam dos avicultores o alojamento mínimo de 2.000 cabeças de frango por lote, aumentaram esse limite mínimo para 18.000 cabeças/lote. O volume de produção por lote constitui somente uma das muitas exigências que as agroindústrias fazem aos avicultores, o que incluiu também o constante incremento tecnológico. De tempos em tempos os aviários recebem novos equipamentos, e estes investimentos impactam na renda dos avicultores, que investem com recursos próprios, ou por meio de empréstimos contraídos em instituições financeiras. O não cumprimento das exigências produtivas e tecnológicas coloca os avicultores sob o risco de exclusão do processo produtivo. Segundo Costa (1993), as empresas mantêm cadastrados agricultores interessados à espera para tornar-se parceiros. Assim, as empresas podem escolher, entre eles, os que apresentam melhores condições de trabalho e investimento. Esta situação de competitividade e receio de exclusão aproxima os avicultores da realidade perversa que já se tornou corriqueira entre os trabalhadores urbanos. Ainda de acordo com Costa (1993, p.169), a imposição e ampliação das exigências por parte das agroindústrias se amparam nas dificuldades de organização dos 11 avicultores. Entre elas estão [...] suas formas de representação política frágeis, a “pelegagem” dos sindicatos, o individualismo, as distâncias que separam as famílias. Por isso, o trabalho dos técnicos [que prestam assistência aos avicultores] de mostrar que a integração é a saída e a empresa é correta, justa, paga em dia, é fundamental para a manutenção do sistema de integração à Empresa. Os elementos brevemente apresentados nos permitem indicar que, assentado na aparente igualdade entre trabalhadores e capitalistas, a parceria tem se revelado uma relação cada vez mais depreciativa para o primeiro e vantajosa para o segundo, situação que se amplia e ganha configurações novas, nas diferentes esferas produtivas, urbanas ou rurais. O mesmo vale para as parcerias entre proprietários que, aparentemente iguais juridicamente, reproduzem a subordinação e o subjugo já anunciados. Reflexões finais: De forma indicativa, o estudo aqui exposto permite afirmar que as parcerias entre capital e trabalho atuam como estratégias ideológicas e operativas para a ampliação das formas de exploração da força de trabalho – que se fortalecem pelo aumento do exército de reserva e pela fragilidade das organizações de classe – e que ganham a aparência de diminuição de conflitos entre as classes fundamentais do capitalismo. A elucidação das contradições reveladoras da essência das práticas de parcerias permite indicar que, ao contrário da aproximação entre interesses do capital e do trabalho, o que vem se manifestando é um agravamento da subordinação material e subjetiva dos trabalhadores aos interesses do capital, dificultando e precarizando, ainda mais, sua condição de existência. Referências ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2000. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo: Cortez/ Ed. Unicamp, 1995. BILK, Max. Elos da “Integração” Avícola: Estudo de caso nos municípios de Angelina e Anitápolis/SC. Dissertação apresentada ao Departamento de Geociências do 12 Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, abr. 2003. BOITO Jr., Armando. A política neoliberal no Brasil. In: Política Neoliberal e Sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã, 1999. 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