Quando Não Fallo, Adoeço - NAPACAN

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Quando Não Fallo, Adoeço - NAPACAN
QUANDO NÃO FALLO, ADOEÇO
Todos os direitos reservados: 1998 by Graça Marques ISBN 95-85738-26-5_ Lei 5.988
QUANDO NÃO FALLO, ADOEÇO
As diferentes formas de linguagens exercitadas com métodos desperta
infinitos recursos psíquicos no Homen. “O corpo biológico do sujeito é
marcado pela história amorosa de seus pais. Da qual derivam tanto as
aptidões do sujeito para entrar na ordem erótica quanto suas fragilidades
fundamentais, ...onde os sintomas denunciam a necessidade do corpo
acompanhar a fôrma da mente “ (Christophe Dejours _ pesquisas
psicanalíticas sobre o corpo)
Dia 20 de dezembro de 1996 na Stazione Centrale de Santa Maria Novella em Firenze
norte da Itália, é um dia frio. Os casacos das mulheres indicam uma temperatura em torno
de 5 graus negativos. Ella Ibiapina Castello toma um cappuccino com sua filha Christal
enquanto espera a chegada do trem que vem de Milano trazendo seu marido que
acompanhará Christal a Venezia para participar da Esposizione internazionale d’arte
moderna, e por duas semanas Ella ficará em Firenze assistindo a várias apresentações
de óperas no Teatro Comunale. Logo após o natal Ella retornará ao Brasil para o
lançamento de seu primeiro livro que sentiu-se pronta para escrevê-lo apenas após os 40
anos _ está com 41 anos, grávida de 3 meses do seu terceiro filho no terceiro casamento.
Christal está com 23 anos, é uma artista plástica talentosa e uma empresária bem
sucedida, Luzia tem 17 anos e mora com seu pai.
O painel eletrônico das chegadas dos trens informa que dentro de 40 minutos o trem
Intercity proveniente de Milano, chegará.
Ella olhando para o infinito volta no tempo revivendo sua trajetória de vida. Tudo parece
tão distante e tão vivo ao mesmo tempo, que volta à sua mente cada detalhe como num
filme colorido inesquecível....
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QUANDO NÃO FALLO, ADOEÇO
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PRIMEIRA PARTE
CONTANDO SUA HISTÓRIA
PINTANDO SEU MOSAICO
Ella conta sua história de vida da única forma possível para sua estrutura
psíquica, a partir da ellaboração de seus recursos cognitivos e emocionais
simples, profundos, surrealistas. Despreza a rigidez racional para ganhar liberdade
em sua narrativa, mergulhando sem medo em seu inconsciente.
“Cada Homem em sua complexidade psíquica é uma
OBRA ÚNICA, toda
análise, UMA ODISSÉIA. O ser humano não pára de surpreender”. ( Em
Defesa de Uma Certa Anormalidade _ McDougall, Joyce ).
_” Escapei de uma estrêla, numa linda madrugada de outono e caí sobre pedras às
margens do rio Madeira em um dia qualquer. Uma sereia surgiu das águas para me
receber. Zirah, era esse o seu nome. Zirah levou-me envolta em um manto azul até uma
vila de nativos da região, entregando-me a uma mulher de nome Sofia recomendando que
ela me criasse inspirada nas leis do Universo. Antes de partir, Zirah deu-me uma pedra de
cor azul intenso, dizendo ser uma réplica em miniatura de minha estrêla-guia e mãe
estraterrestre Papisa. Seria Papisa que iluminaria cada passo que eu desse na vida, cada
desejo por mim eleito, cada sonho por mim sonhado. A pedra, símbolo de Papisa, era
uma pequenina gota de cristal, e para que não se perdesse, Zirah incrustrou-a entre
minhas sobrancelhas, de modo que nunca fosse vista por olhares impuros. Zirah partiu
prometendo que estaria presente em minha vida em todos os momentos em que eu
meditasse”.
De repente, as águas do rio começaram a se agitar e um vento forte soprava de maneira
estraordinária! Houve uma bellíssima explosão seguida de uma chuva de fagulhas
coloridas, que naturalmente, assustou e chamou à atenção dos habitantes do lugar. E de
fato, todos foram acordados pelo som da explosão, e ainda sonolentos, correram às
margens do rio para apreciar o estranho fenômeno.
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__ “E lá estava eu sentada num jirau de madeira, enrolada no manto azul e Sofia
acariciava-me maternalmente”.
Sofia dizia: _”ella é minha filha que nasceu de uma estrêla”.
__ “Ella, é o seu nome”.
Uma voz do infinito consagrava meu nascimento:
“Polígono estelar, flamante astéria de abstrata essência nebulosa e fria que
pré-existente, fluídica e sidéria,
Sol das origens, no princípio havia.
Sou bem quem guarda, força ignota e etérea, que as magnas forças absolutas criam nas formas
transitórias da matéria,
O espírito perpétuo da energia.
Congraço em mim o espaço e o tempo,
Reúno as causas primas do Universo e as últimas
razões que o além nos trás.
Guardião da luz oculta, Trino e Uno,
Que eternidades não trarei comigo?
De que infinitos não serei capaz?”
Este era o seu jeito de fallar sobre seu nascimento. Ella fallava num tom de magia para
enriquecer uma história que foi escrita em branco e prêto contendo a assinatura de um pai
e de uma mãe simplesmente humanos para a tendência romanesca e poética de Ella.
Com certeza era o único jeito que ella encontrava para suavizar a enorme dor que a
miséria presente em sua vida denunciava e a estigmatizava. Esta marca ella não
conseguia esconder nem della mesma, tendo que colorir tudo que fallava. Por outro lado,
não deixava de ser uma marca de qualidade a sua capacidade de fallar _ sem mentir,
sobre a mesma história revestindo-lhe apenas com uma cor especial. Dando vida às
potencialidades que, em sendo suas, ella tão bem as conhecia _ ou intuia... Ella pôde
sofisticar _ aliás seu dom especial, qualidade rara que poucos possuem.
Ella nasceu de uma família pobre, habitante às margens do rio Madeira. O pai - de nome
Hugo, era uma escultura de porcelana, descendente de índios peruanos. A mãe, quase
uma nativa, somava traços de antepassados ingleses e índios Karitianas.
Quando Ella nasceu, Sofia tinha 27 anos e Hugo, 30 anos. Elle nasceu dia 05 de
dezembro de 1925, a mãe, em 10 de outubro de 1928.
A família de Ella, era irremediávelmente desestruturada e faminta de afeto. Entre tiosprimos-pais-filhos-avó, somava umas dezesseis pessoas, que, disputavam um bolinho de
chuva com café, às cinco horas da tarde, todos os dias. À noite, a cena se repetia; desta
vez, todos lambiam o fundo do prato da sopa feita com carne de búfalo ou de anta mamíferos nativos da região. Era uma prática cultural dos homens dessa região caçar e
pescar para garantir as refeições da família. Nesta família, alguns caçavam, outros
construiam casas, outros bebiam e o pai viajava.
Ella, vivia uma eterna espera às noites e madrugadas, vestindo seu mais bonito vestido
com os cabelos presos num laço de fita de cetim, que sua avó lhe fizera, e que cuidava
para que nunca se desfizesse. Assim, impecável e seduzida , ella esperava debruçada na
janela de sua casa, pelo seu príncipe encantado até adormecer de cansaço. Despertada
pela bruma fria da madrugada que molhava seu rosto e desmanchava seus cabelos,
olhava para o vazio desolada e sòzinha. O objeto de sua espera nunca chegava como ella
desejava...
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No dia de seu aniversário de cinco anos, Ella vestiu sua melhor roupa, arrumou seus
cabelos com o mais bonito laço de cetim e esperou por seu pai _ seu oceano _, vital
como o ar que ella respirava. E alí, da mesma janela, olhava para o fim da rua com uma
ansiedade doída alucinando a imagem do pai, até o olhar ficar embaçado. Depois de
longas oito horas de espera, o pai aparece na esquina trôpego e balançando nas mãos
uns pacotes - que na sua fantasia de criança, deveria ser o seu presente de aniversário.
Decepcionada e humilhada, reconhece nos pacotes, compras de mercearia para o almoço
do dia seguinte. O seu viajante pai, nem sabia que era o dia do seu aniversário. Estranha
a espera della até aquella hora por elle, e nem percebe a roupa de festa que ella vestia
para ser vista por elle. Ganhou um tapinha no traseiro e uma ordem para correr para sua
cama e dormir. Ella sai de perto delle porque não dava para respirar. O cheiro de álcool
no hálito do pai a deixava tonta.
Foi deitar chorando baixinho para não incomodar e nem ser vista estampando o
sentimento de decepção no olhar. Chorou até molhar todo o seu vestido de princesa,
esperneando de raiva e dor. Não gritou (os pedidos parados na garganta), não deixou
escapar nem um gemido... ninguém poderia saber que ella estava ferida porque seu pai
esquecera o dia do seu aniversário - apenas ella saberia e jamais esqueceria este dia.
Assim como, lembraria Ad infinitum, que neste dia jurou nunca mais precisar de alguém!
Contaria apenas consigo mesma.
Ella era uma criança exótica para aquelle lugarejo onde nascera. Trazia no rosto uma
expressão indecifrável que inquietava. Seu olhar refletia um azul que não era de seus
olhos negros e grandes, que enxergava além do físico. Sua pele branca como a neve,
macia que sugeria a textura de uma sêda pura. Seus longos cabelos eram negros como a
noite, sua velha e fiel companheira de longas e infindáveis esperas.
Seria à noite que ella escreveria suas histórias, cantaria suas canções fallando de
saudade.
Foi a partir deste momento, que ella passou a viver num mundo só seu. Seu e de seus
personagens plastificados ou emanações de vida que ganharam forma para virem em seu
socorro. Conversava horas e horas com seres que só ella via. Suas casas de boneca
eram verdadeiros santuários embrionários, e suas bonecas eram fadas bondosas que lhe
contavam segredos inquietadores.
Foi dos cinco até os nove anos,que Ella viveu em um mundo solitário cheio de anjos e
demônios, causando-lhe muita confusão e gerando mêdos gigantescos em sua
cabecinha, sem poder dividir com ninguém. Ninguém a entenderia...Ella era tida com
estranha... alienígena.
Havia motivo suficiente para ella ser vista assim. Quando anunciava a morte de alguém, a
profecia realizava-se .
Tudo isso era muito confuso e assustador para Ella, no entanto, conseguia realizar
manobras inconscientes, que a direcionava às portas de entrada e saídas de suas prisões
psíquicas. Como resultado deste estado de stress, ella dormia pouco, despertando
habitualmente às cinco horas da manhã para sentar-se a beira de um poço d’água, onde
via nas águas desenhos que se formavam anunciando situações que no futuro seriam
concretizadas. Ella acreditava que decidia sobre as formas das imagens que surgiam nas
águas, e passou a ver a possibilidade de mudar o rumo de sua vida. Então ella passou a
fazer desenhos nas águas, daquillo que pretendia vivenciar no futuro.
Ella fêz muitos desenhos e fallou por muitos dias, com uma voz que lhe dizia como seria
sua vida no futuro. A voz familiar que fallava com ella, era de Zirah _ sua mãe das águas.
Assim como Zirah prometera, quando ella meditasse, havia de estar presente na vida da
filha orientando-a. E assim estava sendo.
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Ella olhou para o céu que amanhecia, e viu uma única estrêla a brilhar, como se brilhasse
só pra ella. Havia de ser só pra ella, pois era sua mãe estraterrestre-estrêla-guia, Papisa.
Estava lá como prometera, iluminando seus passos...seus sonhos, segurando seu
coração nos momentos de solidão. Clareando os olhos de Ella para realizar seu futuro
com lucidez,...com solidez.
Era um ato de amor de uma mãe cuidando da filha querida que crescia de teimosa
que era, às duras penas, contando apenas com a força da natureza,... tendo que
aprender logo cedo a tirar leite de pedras. Para ella, a melhor saída era sonhar,... logo
começou a ver.
Assim, Ella movia as peças do seu futuro, que só ella via na palma da sua mão. Colhia
folhas e flores do mato para guardar entre as páginas dos seus livros de histórias,
fallando, que do momento em que ellas secassem, estariam cristalizados seus desejos,
seus sonhos,... coaguladas suas imagens desenhadas nas águas do poço do fundo de
seu quintal.
Ella desejou muito poder contar sua história _ a sua própria criação existencial _, para
muitas pessoas quando crescesse, e este desejo ella depositou em uma flôr de maracujá.
É uma flôr de cor violeta e branca - lembra uma orquídea fechada. Esta flôr, ella guardará
para sempre entre as páginas do seu velho livro de histórias.
Seu pai um dia foi embora sem dizer um adeus, e com elle, a dura constatação de que
Ella nunca tivera o pai que fantasiava ter tivera sido apenas um desejo. Uma
idealização... Este que partira, era de porcelana e bebia muita tequilla para vencer o
mêdo de fallar e do contato com pessoas. Embriagava-se para não ver e deixava Ella
esperando por elle, nas solitárias e infinitas madrugadas.
O pai que ella esperava debruçada na janela, não era o mesmo pai que trazia
alimentos da mercearia quando voltava tarde pra casa, mas que chegava sem alma.
Não podia ser aquelle flagelo humano cambaleante e vomitando, que tantas vezes
dormiu no chão do banheiro absolutamente sem forças para levantar-se e banhar-se.
O pai, que ella idealizava não era aquelle homem solitário a beira da covardia que se
escondia dentro de um terno de linho branco impecável, viajando nos trens fora do
horário, por trilhos comprometidos. Um homem, que a cada estação, despedia-se de um
grande amor e deixava esperanças no ar. E que, suas chegadas, eram regadas com uma
garrafa de tequilla e narrações de suas histórias_estórias fantásticas. Existia apenas nas
histórias através das quais, pretendia dar vida ao seu próprio personagem fantasmático.
Contudo, elle possuia o Dom da palavra. O bar era seu anfiteatro caricato, onde realizava
seus mais elaborados discursos. Toda sua libido, estava direcionada para a função
intelectual. Lia muito e escrevia rascunhos de um possível livro que tentava escrever,
onde contaria sua história. Mas elle não era organizado o suficiente para trabalhar em
cima dos seus sonhos. Acomodava-se em uma mesa do bar e se permitia ser levado pela
correnteza do rio.
O olhar do pai, era a metáfora da perda de um grandioso amor que partiu sem dizer
adeus, e que deixou o outro em transe, com o olhar perdido no infinito. Era a mais
perfeita expressão de melancolia que alguém já vira. Elle estava sempre fugindo da
possibilidade de encontrar-se com um olhar, que procurasse no seu, respostas que
pudesse explicar o porquê do mêdo da vida, estampado em cada gesto seu.
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Ella procurava o olhar do pai, mas sempre esteve escondido atrás de um livro. A
imagem do pai mais presente na memória de Ella, era elle sentado em uma cadeira de
balanço, vestindo um pijama listrado de azul e bege, com seus pés brancos descalços lendo um livro. Nesta lembrança não existe um olhar. Mas existia a luta de Ella fazendo
cena, sentada horas aos seus pés, procurando ser notada pelo pai. Investida frustrante,
ella morreria de solidão se continuasse contando com a presença delle, para sentir-se
olhada e amada.
Seu pai em resumo, era o paradigma do abandono. Era o intelectual com o olhar perdido
no vazio permanentemente em síndrome de reflexão existencial. Bebia, pensava, lia e
isolava-se em seu mundo virtual. Esgotava o estoque de guardanapos dos bares
escrevendo páginas do seu livro onde contava passagens de sua vida miserável de afeto.
Em um dia especial no bar, dá um discurso sobre a vida de Bertold Brecht, dramaturgo,
artista e filósofo político que muito discursou sobre comportamento ético do Homem. Elle
cita um trecho do texto a “Opera dos Mendigos” de Jonh Gay adaptada por Brecht:
“...do princípio ao fim da peça os senhores irão constatar uma tal simplicidade de
costumes nas altas como nas baixas classes da sociedade, que fica difícil decidir se os
fidalgos estão imitando os assaltantes de estradas ou se os assaltantes de estradas estão
imitando os fidalgos. Se a peça tivesse terminado como eu pretendia no início, teria uma
moral admirável: teria demonstrado que as pessoas que vivem nas mais baixas condições
possuem, até certo ponto, os mesmos vícios que os ricos... mas que por causa deles, são
punidos”.
Neste dia em especial, o seu ídolo coçava-lhe o cérebro e elle cita mais um trecho dos
escritos de Brecht. Evidentemente que estava citando as palavras de uma obra, onde
estavam contidos questionamentos existenciais, com os quais identificava-se.
“Não se deixe seduzir....
Não existe caminho de volta
O dia já se aproxima
E já se sente o frio da noite
A manhã não virá nunca mais
Não se deixe enganar!
A vida é pouca coisa
É preciso bebê-la em grandes goles!
Vocês não terão bebido o bastante
Quando chegar a hora de deixa-la
Não se deixem envolver!
Vocês não terão tempo o bastante!
Deixem apodrecer os cadáveres
A vida leva-os sempre
E não se vive senão uma vez
Não se deixem arrastar
Aos trabalhos e às galeras
De que, então, você tem mêdo?
Como todos os animais, vocês morrerão
E depois da morte não há mais nada”.
( Hauspostille - Breviário Doméstico, Brecht,B.)
Ao ler este poema “Contra a Sedução”, elle dizia do quanto estava desistindo
de viver. De como tornara-se impossível acreditar nos sonhos para ganhar
forças, e decidir
vencer os obstáculos surgidos ao longo de seu caminho.
Neste gesto, estava implícito sua própria revolta por não ter se levado a sério
o suficiente, para dar vida às suas valiosas inspirações.
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Por não ter escrito suas próprias histórias, emprestava a criação do outro
buscando nomear sentimentos e sensações há anos pesando no seu peito.
Parecia ser muito sofrido todo este processo vivido por elle _ tendo tanto para
gritar e não sabendo por onde começar. Todos os seus conflitos subjacentes
estavam sendo afogados no trabalho e em uma garrafa de tequilla. Logo, não
sobrava libido para coagular suas virtudes. Seu livro _ sua obra prima _ ficaria
constelado em sua mente para outra vida, ou sua filha _Ella_, herdeira do seu
sistema de memória e de suas potencialidades adormecidas, escreveria a
quatro mãos.
Na sua maneira de existir, havia uma dinâmica na relação com os objetos
afetivos, que denunciava, o quanto elle _pai_ estava depositando suas
expectativas inconscientes temidas e desejadas, nas mãos da filha e com isto,
marcando o lugar que ella ocuparia na família. Elle não sabia efetivamente
como realizar esta partilha de bens psíquicos, mas já estava feito o inventário.
Assinou o seu nome e carimbou com a as linhas da sua mão para não
haver dúvidas. Nesta forma de transitar sua vida nas entrelinhas e em seu
discurso ellaborado, havia um pedido especial à filha: “Não me traia, não me
decepcione. Não quebre nunca o espelho no qual você se constituiu...em
nome do seu pai!”
Elle _ o pai _, partiu numa noite úmida e silenciosa. Levou consigo algumas
roupas, seus livros, sua história rascunhada nos guardanapos de papel, um
quadro de São Jorge, seus remédios homeopáticos,... garrafas de tequilla,...o
sorriso de Ella. Deixou algumas coisas pra trás: _cartas escritas sem
destinatário, poemas inacabados, seu pijama listrado de azul e bege, sua
cadeira de balanço, uma toalha de banho com o cheiro do seu corpo,...seu
lugar vazio à mesa de refeições, um silêncio ensurdecedor,... sua falta, um
vazio.
Ella chorou baixinho debruçada em sua janela olhando aquelle homem sair da
sua vida sem dizer porquê, ou se voltava um dia. Chorou de dor e de raiva.
Desolada, deixou escapar uma súplica: _” Pai, não me deixa agora... diz que
volta logo...não se vá para sempre... não saberei viver sem você”!
Elle se foi sem ouvir uma palavra de Ella. Ficou a revolta, ficou o mêdo della de
não saber onde pisar. Assim como ficou a certeza irremediável de que o pai
que ella quis ver naquelle homem, fora pura criação sua. Era um quadro
pintado com as cores de sua preferência, fruto de suas idealizações.
De tudo, restou apenas o mêdo de vir a precisar de alguém e não poder mais
correr riscos. Ficou a promessa de que jamais precisaria de alguém!
Ella sentada sob um cajueiro às seis e meia da manhã, pensativa, espera sua
mãe sair para o trabalho. A mãe _ Sofia_ saindo, informa que se ella não
correr até a cozinha, não vai comer pão. “ Porquê não vai sobrar “ _ informa.
Ella conta que teve um sonho e agora, enquanto esperava, teve umas visões:
“Quando eu tiver 15 anos (daqui há 6 anos), nossa vida irá mudar totalmente.
Eu vou vestir uma saia justa bem curta e muitas roupas caras. Vou estudar em
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São Paulo, trabalhar numa loja chique de roupas femininas e vou passar nesta
rua num automóvel preto com motorista... vou ser artista de teatro, escrever
poemas e vamos morar numa casa grande _ só nossa. Vamos ter muita
comida à mesa e doce de tamarindo na sobremesa”.
A mãe sempre atrazada, mal ouve as promessas de Ella. _”Vá correndo comer
alguma coisa antes que comam tudo menina,.. e páre de sonhar. Hoje você
tem prova na escola e deve estudar, não vá passar a manhã lendo poemas ou
relendo as cartas de seu pai _ elle já morreu pra nós e você teime em não
querer interrá-lo. Já para dentro, vá tomar seu café com pão”.
Sua mãe não sabia que o quê Ella fallava, aconteceria. Não era sonho. Não,
não era. Só ella sabia disso.
Ella sempre tinha um lugar eleito para passar maior parte do seu dia,
pensando, escrevendo, fallando com sua sua mãe das águas, _ Zirah _,
pintando seu futuro. Ou era sob seu cajueiro, ou trepada nos galhos altos da
ingazeira, ou nos rios, quando o dia ainda não havia nascido, ou, antes da
noite chegar. Nestes momentos, ella olhava para o céu e via sua estrêla
Papisa iluminando suas noites e seus dias.
Ella, sempre solitária, sentava-se para meditar e esquecia do mundo. Seus
familiares procuravam-na e gritavam
seu
nome, sem respostas _ ella
escondia-se em seu mundo íntimo.
Muitas noites, dormiu na casa de bonecas construída nos fundos do quintal,
pelo seu tio Cruca. Depois de contar histórias para suas bonecas e reler todas
as cartas do pai, cansada, adormecia abraçada ao seu cão Rex _ uma das
heranças deixadas por sua voinha ao morrer. As outras heranças, foram um
título de cozinheira e várias queimaduras nas mãos, quando subia num
banquinho para cozinhar arroz e mingau de tapioca em um fogão de barro. A
lenha que ardia no fogão, eram trazidas do fundo do quintal por ella. Todas as
manhãs um tio cortava as toras pequenas e empilhava-as. Ella trazia a lenha e
fazia fogo queimando folhas secas de bananeira molhadas em querozene.
Ninguém nunca a ensinou estas tarefas, simplesmente ella aprendia fazendo.
As
marcas das queimaduras, ella as tem até hoje. O Rex morreu anos
depois.
Numa noite enquanto dormia abraçada ao Rex, despertou assustada pelos
chamados de seu tio preto velho, dizendo que estava ferido no peito e nas
pernas. Ella viu seu corpo negro ensanguentado e desapareceu sua imagem.
Pela manhã, ella é acordada pelos gritos de pessoas que traziam o tio todo
furado de faca e os pés mordidos. Elle dormira bêbado no banco da praça
principal onde havia uma imensa fonte d’água. Foi atacado por um inimigo e
mordido por jacarés porque aventurou-se num mergulho na fonte, acreditando
que pelo fato de ser negro, não seria visto pelos jacarés que viviam nas águas
da fonte. É louco pensar um bando de jacarés em uma fonte numa praça da
cidade, mas naquella cidade, tudo era possível... O tio preto velho, era um dos
muitos alcóolatras da família. Era o mais violento, mais voraz, mais
vagabundo,... mentiroso, engraçado e sonhador. Ella lembra delle sempre,
tentando chegar em casa aos tombos, lutando para manter uma melancia nas
mãos que teimava em cair a cada dez metros que andava. Com muita
dificuldade, conseguia passar pelo portão, chegando à cozinha com uma quase
inteira melancia e uma garrafa de aguardente. Aí elle sentava contava os
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causos do dia, e sempre era estória para mais de metro. Ella era a platéia
constante... ella e o cão Rex.
Este tio preto de Ella, sempre trazia-lhe melancia ou tapioca do mercado. O tio
Cruca, construíra a sua casa de bonecas e levou-a para nadar pela primeira
vez numa piscina,... chamava-a carinhosamente de Tetê, a menina mais
bonita e inteligente que elle amava. Era muito bom ouvir palavras tão
carinhosas.
Ella queria acreditar nelle, mas era muito arriscado...poderia acostumar-se. E
se elle partisse, como faria para sobreviver sem esse colo?
Então, ella não se envolvia. Apenas via o tempo passar esperando o dia de
mudar sua vida. E para não adoecer, tinha que fallar, uma vez que tinha mêdo
de sentir e se entregar.Assim, ella passava seus dias ouvindo e contando
histórias. Até o cão Rex ouvia suas histórias.
Em sua cidade, comentavam que ella era esquisita...meio louca. _”Conta
histórias de outras vidas noutros planetas, diz de uma mãe que é estrêla _
Papisa _ e de uma outra mãe das águas _ Zirah _,.. anuncia premonições que
assusta a alguns, e fica olhando para o céu noites sem fim de cima de um
galho de uma ingazeira. Mas é apenas uma menina de nove anos. Talvez fosse
o caso da família levar ao médico...” Preocupavam-se os moradores da cidade.
A mãe, consultou vários médicos sem sucesso. Diagnosticavam verminose.
Deram-lhe vários remédios para vermes. Causava-lhe vômito e febre, mas
nada mudava. Ella isolava-se cada vez mais em seu mundo íntimo.
Um dia, relendo as cartas sem destinatário de seu pai, ella decide que foram
escritas para ella. E os poemas, deveriam ser páginas soltas de um livro que
elle não conseguiu escrever. Tio Cruca estava fazendo-lhe companhia em sua
casa de bonecas e gostava de ver a criatividade da sobrinha. Ella prepara-lhe
um chá de pétalas de rosas que é servido em uma caneca de esmalte branco,
que ella diz ser de porcelana pintada à mão _ era mais um sonho seu. A xícara
de porcelana, ella também teria um dia. _”Tio Cruca, eu sei o jeito que eu
quero minha vida..., eu vejo as pessoas, cenas, como serei no futuro. Você
também vê? Eu penso que todos são como eu...” O tio sorri carinhosamente e
beija-lhe o rosto. Pede para ella ler algum poema para elle. Ella feliz, diz que
vai ler um poema do seu pai _ uma das páginas do seu livro.
Sermito
Mito, como ser
se minto para meu travesseiro
escondo um lado meu
e não lavo a tinta da cara do meu último show
engano os crédulos e carentes de um modelo
e passo algo que não é meu
Ser como mito,
para tanto, criei e projeto uma força
que vem
não sei de onde,
mas que conheço como se fosse minha
Mito, como ser?
é algo que não se explica,
como eu,
mas que não sabe nada de mim
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Só, que lida tão bem
com essa força desconhecida
por pura intuição,
que acaba dando certo
Escondendo um lado e mostrando sermito,
digo apenas para meu travesseiro
o quanto sou verdadeiro
E a tinta
eu não lavo, para não destruir
o Mito
que penso Ser!
“Esta página, elle escreveu tentando dizer o quanto não sabia de si de verdade
tio. Elle procurava uma imagem na qual se encaixar, sem sucesso, e acabava
por ser uma boa fonte de inspiração para si mesmo. Gosto muito de tudo que
meu pai escreveu, mas esta página é especial para mim”. _ comenta Ella. Tio
Cruca fica emocionado e confuso, mas arrisca perguntar se este pai, ainda
vive. Ella diz que o homem pode ter morrido, mas o pai della está vivo neste
poema.
“Sabe porque elle escrevia tio Cruca? _ pergunta ella _ para não enlouquecer.
Quando a gente não demonstra o que sente, fallando, cantando, escrevendo,...
sonhando, se adoece _ ensina Ella. Por isso eu não adoeço, sempre fallo... as
pessoas não entendem meu jeito de ser, por isso pensam que sou esquisita,
mas não sou _ garante”.
O tio saiu dalí pensando como era possível um ser daquela idade, entender o
mundo com tamanha profundidade. Como era possível entender uma história
tão triste e ter que vivê-la em branco e preto, como acontecia na cabecinha de
Ella... Se o tio já lhe queria bem enorme, depois desse dia, passou a ser
especialíssima. Tio Cruca viu de perto o brilho azul profundo do olhar della.
Enquanto ella lia o poema, emanava uma luz azul do seu olhar. Uma lágrima
escapou de seu olho molhando seu sorriso de anjo.
Ella mostra uma caixa de madeira com seu nome gravado a fogo, onde
guardava dezenas de gotas minúsculas de cristal de várias cores e diz: _”Das
muitas lágrimas que choro, umas tomam essa forma e colorido. Eu conto nas
minhas histórias, que choro colorido... que minhas lágrimas são de precioso
cristal”.
O tio tinha que sair esta noite para caçar. Ella pede a elle que tenha cuidado,
antes de atirar no animal, procurasse olhar nos olhos delle, pedindo perdão por
ter que matá-lo. _”O animal pode ser o seu alimento, mas merece ser
informado disso para que possa perdoa-lo. Se esse cuidado não fosse tomado
pelo caçador, elle adoeceria e logo morreria. O mêdo, a dor, a raiva do animal
ferido, atingiriam a alma do caçador e sobrecarregaria elle com pesadas
emoções, resultando em dívidas kármicas. E isto era assim porque o animal é
um ser em evolução e compartilha uma alma coletiva. Elle também, é um ser
sensciente como nós _ possui uma mente mesmo não tendo alcançado a
libertação _ e que defende seu território, não como uma posse, mas como um
santuário. Todos os animais, são guardiões das qualidades do espaço terrestre.
Você entende isso tio? Melhor seria não precisar matá-los, mas para alimentar
os filhos, parece justo. Vá, e faça a única coisa que você sabe fazer bem”.
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Ella acende a vela e olha para o céu já estrelado, a noite chegou. Papisa brilha
para ella. Sorrí feliz sabendo que não está sòzinha. Pensa no cozido de peixe
com pirão de farinha que será servido no jantar por sua tia Dodó. O cheiro
gostoso chega até ella. Conta os minutos no seu velho relógio e vê que dá para
continuar lendo por mais uns minutos. _” O reino animal orienta-se pelas
estrêlas do firmamento. O ser humano tem um cosmos interior. Nelle, essas
forças foram interiorizadas. Os órgãos internos no ser humano, são o que para
os animais, é o firmamento. Os animais abrem-se para o céu do zoodíaco _
nós, seres humanos, temos isso impresso na alma. O sol externo que se torna
matéria pela ação da fotossíntese, metamorfoseia-se em encarnação, isto é, a
formação da carne a partir do Sol interior _ o Espírito. O Eu humano é
representante do Sol”. _ ... eu tenho o sol em áries, pensa Ella.
Lembra-se que amanhã, antes do sol nascer, sairá com tia Dodó para lavar
roupas nas Pedrinhas. Pedrinhas, é uma região de igarapés cercada por rochas
e muitas pedras formando o solo. Ellas vão cedo e só retornam no fim do dia,
sempre queimadas pelo sol e famintas.
Mais uns minutos antes do jantar e lê um poema do pai, que foi escrito em
forma de oração.
Quando o silêncio se instala dentro de mim, posso ouvir a voz do poderoso Ser que
me abate se resisto às forças de sua imensurável sabedoria, e que me condena à
eterna escravidão de meus mitos. Fujo em busca de outras verdades, que creio,
possam ser respostas para a negligência com que trato minhas obrigações dentro
do processo de iniciação, que, inerentes primordialmente a mim, cobram-me uma
grandeza, que puerilmente atribuo ao sobrenatural.Mas fugindo destas verdades,
invariavelmente fujo de mim e perco-me num emaranhado processo de
conhecimentos, que remetem-me ao nada. Frente ao caos que me envolve, sem
direção, reconheço a Luz, minha herança divina, na postura da criança que sendo
pura, crer e constrói sua vida apoiada naquillo que vê!
Durante o jantar, Ella comenta que da última vez em que esteve nas pedrinhas
ajudando a tia Dodó, ouviu ou choro meio gemido em tom de pedido de ajuda,
vindo de uma rocha vermelha grande. “Era um choro humano, me fazendo
procurar por alguma pessoa que estivesse alí sofrendo - não achei. Só havia eu
e a rocha naquele momento. Eu aproximei-me cuidadosamente para ouvir
melhor, mas não conseguí _ houve um silêncio intrigante. Eu creio que alí deve
haver alguma forma de vida, e pode bem ser, uma vida pedindo socorro.
Amanhã eu vou ficar bem perto della para tentar descobrir o que se passa”.
Todos ouviram em silêncio a história de Ella sem saber o que dizer. Era forte e
surrealista para acreditar...
Saindo da cozinha em direção ao seu quarto, ella ouve as vozes discutindo
ansiosamente a patologia della. Os mais velhos, insistiam que Ella precisava de
um tratamento mental com urgência. Alguém disse que ella precisava muito
mais de um pai.
Ella deitou-se para dormir vestindo uma camisola listrada de azul e bege.
Acendeu uma vela para enxergar uma oração que escrevera não sabe quando
ou como, e que desde então, era sua oração rezada antes de adormecer.
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Minha Oração
Meu Deus, meu Pai, minha Luz, permita que eu viva sempre com saúde.
Permita que eu possa realizar meus sonhos e encontre razão para viver,
mesmo nas coisas mais simples do mundo. Conceda-me a força dos
guerreiros para superar as dificuldades da vida. Não permita que a vaidade,
o orgulho e o mêdo se apoderem de mim. Dai-me o Dom de perdoar e
sentir compaixão por aquelles que me magoarem. Faça nascer em meu
coração, a generosidade e o amor para que eu possa viver num mundo
melhor. Ilumina meus passos para que eu possa alcançar o caminho da
maestria. Permita que eu possa desfrutar da herança Divina que Tu me
destes na qualidade de filha Tua. No entanto, se eu nascí desta vez para
sofrer pelas minhas faltas - ou de meus ancestrais - abençoa-me com uma
infinita dose de serenidade para que eu possa crescer diante dessas
experiências dolorosas. Segura as minhas mãos e não me deixa sòzinha
nunca meu Pai. Amém!
Antes de adormecer falla baixinho: _”Não deixa meu pai morrer sem me ver
pela última vez... eu queria tanto elle aqui comigo agora...”
Estava um dia muito quente _ por volta de uns 38 graus. Muitos nadavam na
piscina de pedras natural onde a profundidade das águas dava uns três
metros. A parte mais funda, devia ser de uns cinco metros, medindo oito de
largura por dez de comprimento. Era muito agradável saltar do alto da pedra
mergulhando de cabeça até o fundo. As águas eram cristalinas, deixando ver o
fundo forrado por milhares de de pedrinhas coloridas. Os peixinhos nadavam
junto com Ella, completando a paisagem natural. O prazer era único, ao sentir
aquella água gelada em contato com seu corpo nú. Gostava de ficar nadando,
sentia-se protegida.
Estava na hora de ajudar a tia. Estendia roupas na grama para quarar e ficava
vigiando para que as vacas não as comessem. Depois de uma hora, as roupas
eram recolhidas para serem enxaguadas. Ficavam limpíssimas, e ella torrando
sob o sol. Mergulhava mais um pouco esperando enxaguar as roupas para
serem estendidas.
Pronto, agora era hora de visitar sua rocha vermelha. Chega bem perto de
mansinho passando a mão na rocha como se fosse possível acariciá-la. Sente
um vento frio envolvendo seu corpo ao mesmo tempo em que ouve um
gemido. Emociona-se e pergunta se pode fazer algo por ella: _”Se eu puder
fazer alguma coisa para entender o que se passa e assim ajudar, me falle, que
eu faço”. Nada, nem uma resposta, só o gemido baixinho e dolorido como se
fosse um ser vivo sofrendo. Ella senta-se ao lado da rocha e ouve seu lamento
até o sol se por. Já é quase noite e lembra que tem que ajudar a tia levando as
roupas para casa. Antes de sair falla para a rocha que voltará outro dia para
tentar entender o mistério. Sai correndo ao encontro da tia, que ao longe já
arruma as trouxas de roupas nos cestos. Ella escuta uma voz chamando seu
nome. Pára de correr e assustada pensa antes de olhar pra trás... _”Será que
foi a rocha ou foi minha tia?” Fica com medo de perguntar _ confirmaria ou
destruiria o encanto. “É melhor deixar assim por enquanto”. _ Decide.
Chegam em casa famintas e cansadas da caminhada de mais de 2 kilômetros.
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As roupas serão estendidas para terminar de secar e o jantar será café com
leite e bolinho de tapioca.
Sofia _ a mãe de Ella _ esta noite, está de folga do hospital e vai à novena de
Sta Tereza. Avisa a Ella que deverá acompanhá-la, pede que se arrume. Ella
veste um vestido de fustão amarelo, prende os cabelos numa trança longa
amarrada num laço de cetim bege, e acompanha a mãe sem vontade alguma.
A novena é na catedral de São Mateus. Lugar lindo, mas não diz nada a ella. O
padre que reza a novena é um velhinho quase santo _ muitos juram que já
virão-no levitando enquanto reza missa. Padre Chiquinho é um ser especial.
Muito magro, cabelos brancos de olhar doce, e é leve... _”Eu já vi elle
levitando quando fazia a consagração da hóstia na missa de domingo, mas não
dá para fallar sobre isso com quase ninguém”. Sendo assim, ella sentava-se na
primeira fila só para ficar olhando o padre, que sempre no final da missa vinha
abençoa-la. Ella sentia-se especial por ser tocada pelo padre santo. Sua mãe
insistia para que o padre a exorcizasse. Elle dizia que Ella era de Deus, e suas
visões, deveriam ser fenômenos da idade,... _”Ou obra do Espírito Santo,
fique em paz. Não há nada de errado com a menina”. Ella voltava para casa
aliviada e a mãe, confusa.
Tomavam um copo de água e comiam uma banana para enganar a fome, e
abandonavam seus corpos cansados na cama para mais uma noite de sono.
Ella reza sua oração, agradece ao Padre Chiquinho pelas suas palavras
abençoadas. Apaga a vela e adormece.
Quarta-feira era um dia especial para Ella na escola. Era o dia da aula de
teatro e redação onde usava os poemas do pai para criar algo seu. A
professora pedia aos alunos que escrevessem e dramatizassem seus textos
para uma platéia de colegas e alguns professores estagiários.
Ella faz uma produção improvisada usando papel crepom para vestir um manto
azul. Pinta seu rosto com tinta dourada, usa um batom vermelho e amarra
seus cabelos num laço de cetim branco, e sente-se num imenso teatro. Inspira
o personagem e apresenta um texto reescrito...
Algo Azul
Bebeu um sonho e saiu pela rua como se nua estivesse, mas vestida de
Graça. Dobrou três esquinas, correu pela praça, alcançando num passo
seu próprio destino. Tomada de espanto procurou por um bar onde comeu
algo azul que não sei explicar. E transformou-se em estrêla a brilhar como
o sol. Uma centelha de luz lhe escapou do sorriso, e saiu a voar pelo espaço
infinito com suas asas douradas de papel laminado. E por tê-la encontrado
após exaustiva procura, transformei-me em espelho e brocado, refletindo a
belleza que alí residia. Tão pura!
Chegando em casa, ella conta do seu sucesso hoje na aula de dramatização.
Falla eufórica que escreveu um texto que todos acharam demais e aplaudiram
muito... fallou, fêz caras e bocas, se emocionou orgulhosa de si e desistiu.
Fallava pro vazio como de costume, naquelle grupo só o tio Cruca e o cão Rex
alcançavam sua linguagem.
Pediu algo para comer. Só havia doce de banana com mandioca e suco de
graviola. Engoliu os alimentos em silêncio e logo recolheu-se à sua casa de
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bonecas para meditar e ler suas histórias.
A noite chegava, e com ella, a solidão e seus mistérios.
Esta acolhida da família era nada para ella. Ella desejava ter um público de no
mínimo mil pessoas de pé aplaudindo-a. Ah, como ella sonhava com uma
atenção deste tamanho! E ella sabia que um dia teria, sua intuição dizia que
sim. Ella não precisaria, nem depositaria nas mãos de ninguém, a possibilidade
della vir a ser reconhecida e desejada. Não necessàriamente dependeria de
alguém para ser feliz, mas despertaria nas pessoas, sensibilidade para atribuirlhe qualidade raras. Ella faria este fenômeno acontecer a partir de um processo
de complementariedade. O público precisa de um ídolo e o ídolo atende às
expectativas de seu público.
Ella conhecia intuitivamente _ bem _ os mecanismos dos jogos afetivos nas
relações objetais, assim como: _”Eu te vejo se você me olha; e sou olhada
com os olhos que espero ser vista; sei que sou seu objeto de desejo...” Ella
seria o objeto de desejo de alguém especial, ou morreria com ella mesma em
seus próprios braços.
Ella estava magoada _ esperava mais da família. Mas que família? Aquella com
a qual morava? Não, não era uma família; não a sua família. Foi dormir
pensando: _”Se esta família não espera nada de mim, não valoriza meus
produtos, é porque não me deu nada”.
Chorou de raiva até ficar exausta... até doer o peito para respirar. As lágrimas
rolavam pelo seu rosto molhando seu peito. Uma lágrima coagula na forma de
um cristal violeta e pára em sua mão. Esta lágrima cristalina, ella guardaria em
sua caixa de madeira onde guardava outras iguais _ seus ícones.
Passada a manhã longa, chega a tarde que leva Ella até as pedrinhas para
fallar com sua rocha vermelha que chorava. Sentou-se frente a ella e ficou
esperando que fosse percebida sua presença alí. Conversou baixinho, contou
sua história, seus sonhos e dizia ter certeza de que esta rocha havia de ter
algo a ver com a sua história pessoal. A rocha como que confirmando as
palavras de Ella, começa a chorar. Emocionada, Ella torce para que ella falle
algo agora. De repente a tarde vai escurecendo e vai se formando em volta da
rocha uma aura dourada com raios azuis intensos. A aura envolve Ella que
sente uma leveza sutil. Agora tem olhos para enxergar na forma da rocha, a
silhueta de uma mulher sentada tendo sua cabeça apoiada nos joelhos, e os
braços abraçando as pernas flexionadas. Sim, era uma forma humana e
parecia ter vida _ uma mulher que falla com Ella: _”Eu estive aqui por
quase dez anos e ninguém antes havia percebido minha presença, nem
escutado meu pedido de ajuda. Você foi a única que teve sensibilidade para
pensar na possibilidade de haver vida em uma rocha, assim, você mereceu
enxergar a forma e Luz de minh’alma. Por sua coragem e fé vou te abençoar
com as forças da natureza para que nada, nem ninguém possa te vencer na
vida. Haja o que houver, custe o que custar, você alcançará suas metas e
construirá sua vida com as formas mais harmônicas e seguras para te acolher
e proteger, do jeito que você espera e merece. As suas lágrimas que se
transformam em cristal, são seus símbolos de conquistas magnânimas, que no
futuro, serão verdades. Você ganhará muitos presentes Divinos, nunca nada
lhe faltará. Os Deuses, conspirarão a seu favor _ reze e cante, a vida sorrirá
para você. Antes que se vá, receba minha bênção em forma de oração que lhe
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dedico para que se perpetue este momento único”.
Ella sente suas mãos sendo tocadas e transborba de alegria.
Oração de um Guerreiro
Mesmo que eu não saiba como
vou saber viver onde todos morreram
mesmo que não tenha meus pés, vou caminhar
sem asas, poderei voar
e nem um raio poderá me alcançar
ainda que tentem me acorrentar,
vou me desdobrar!
de olhos fechados, poderei ver
sentir olhares
saltar embaraços
escalar alturas
escrever minha história.
E quando a noite chegar,
um raio de Luz me guiará...
mesmo que todas as portas se fechem
haverá sempre uma aberta a me esperar
uma mão forte para me acolher
para me apoiar.
Na hora do desafio, vou enfrentar
dizer o que espero,
o que quero e tenho pra dá...
no que acredito
e sei que vim para ficar.
Sou guerreira, vim para ganhar...
traço caminhos
risco destinos
dobro esquinas
passo da hora... perco os sapatos...
e mesmo que o tempo páre
vou ter pressa de chegar
se todas as esperanças acabarem
ainda assim vou acreditar
desabe o mundo, vou me reciclar
gire a roleta
jogo todas as fichas num número só
vim para ganhar!
Mesmo que seja tudo difícil
vou apostar
ver de perto, acontecer
mesmo que doa
tem que dá certo
não posso perder!
Ainda que não acreditem
vou mostrar
sou de rocha
não me dobro, não me escondo
já aprendí, já não sinto
mesmo que a festa acabe
vou dançar como se fosse a primeira vez
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cantar com o choro na garganta
sorrir com os olhos molhados
aplaudir com as mãos calejadas
e abraçar teu corpo cansado.
Se a forças faltarem, ainda vou me levantar
seguir o meu caminho
sem mêdo de errar
e sem olhar pra trás
dobro a esquina do tempo para recomeçar!
Ella olhou para o céu, as estrêlas estavam lá brilhando como se fizessem festa
para festejar. Seus olhos estavam cansados e seu corpo meio adormecido.
Parecia que estivera em transe. O tempo havia passado e ella nem se dera
conta.
Voltava para casa pensando se alguém havia percebido sua ausência. Já era
noite e quando saiu à tarde, disse que iria fazer um passeio até o rio.
Estavam jantando. Ella sentou-se silenciosamente para tomar sua sopa de fubá
com saltenhas. Sentiu algo em sua mão, ao abri-la viu uma gota de cristal
dourado muito brilhante. Era uma lágrima da rocha colhida durante o encontro
desta tarde. _”Será que sonhei?...” Foi correndo guardar o cristal em sua caixa
de relíquias e voltou para tomar sua sopa. Estava deliciosa e a saltenha
tostadíssima.
_”Tudo bem, eu vou dormir e tudo passa, a vida passa, a saudade passa,.. a
falta passa...”
Quatro anos se passaram. Ella agora morava em uma casa só com a mãe e um
irmão mais novo _ Mário. Era uma casa triste e sombria. Faltava algo que ella
não sabia ao certo o que era. Faltava o tio Cruca, o cão Rex, sua casa de
bonecas e a tia Dodó. Sentia falta de sua amiga e confidente ingazeira e das
cenas ridículas que o tio preto fazia quando bebia. Faltava algo mais que ella
não sabia bem o quê.
A falta era uma constante na vida de Ella, e perder objetos de desejo, era sina.
Sua rotina de vida mudou. Agora ella cuidava da casa para a mãe poder
trabalhar. À tarde ia para o colégio, à noite lia, escrevia, pintava e fallava com
seus amigos virtuais misteriosos. A casa era isolada de vizinhos e à noite era
assustadora. Era difícil para Ella dormir sòzinha em seu quarto à luz de vela.
Rezava seu mala, cantava mantras, lia a Bíblia, meditava, mas os pesados
passos no chão de madeira insistiam em torturá-la a noite toda. Muitas noitas
passava esperando o dia amanhecer, sem dormir um minuto. Dia seguinte
perguntava a mãe se ella ouvira algo durante a noite, quase sempre ouvindo
como resposta, frases insinuantes sobre sua patologia mental. Ella já estava
cansada de ser desacreditada e sempre responsabilizada pela doença da
família. Recusava-se agora a carregar sòzinha o estigma de um sistema afetivo
deprimido e roto. Decide que a partir dalí viveria para devolver a quem de
direito, cada estranhesa depositada nella.
Estudava agora em um colégio de freiras italianas, graças a uma bolsa que a
sua mãe conseguira junto a um político.
Esforçava-se para ser uma aluna brilhante e se mostrar digna da bolsa ganha.
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Sempre se saía bem em literatura, religião e comportamento. Lutava pelo dez
todo bimestre e o conquistava em várias matérias. Como numa olimpíada, era
um desafio para Ella chegar a ser reconhecida e respeitada dentro de um
sistema novo, onde o status social e econômico indicava quem deveria ser
eleita como boa aluna. Ella sabia que era uma das poucas que deveria dar o
sangue para ser notada _ decide que haveria de ser.
A irmã Ricollicce era severa e por isso odiada pelas muitas alunas. Controlava
quanto tempo as alunas dedicavam aos estudos na biblioteca do colégio. Todas
odiavam ter que ficar estudando nas horas livres na biblioteca, com exceção de
Ella e mais meia dúzia de jovens. Ella passava maior parte de seu tempo _
incluzive nos intervalos e recreio _ lendo compulsivamente. Após meses de
exaustivos estudos na solitária biblioteca, irmã Ricollicce encontra com Ella nos
corredores e informa: _”Santa Ella, agora que você vai ser canonizada por ler
além da sua cota de livros, vou indicá-la para o curso de teatro do colégio no
período da manhã duas vezes por semana. Você já pode começar amanhã,
procure pela irmã Tereza”.
Ella explodiu de alegria e saiu correndo para contar às colegas de classe. Que
ingenuidade... conseguiu despertar a inveja e despeita da meninas. Acabou por
virar alvo de fofocas e recolheu-se ao isolamento, uma prática comum em sua
vida.
O curso de teatro _ que preparava as alunas para a montagem de uma peça
no fim do ano _ era privilégio das meninas do segundo grau. Raríssimas alunas
_ apenas as que conseguiam as melhores notas nas disciplinas básicas _ eram
escolhidas para o curso. Ella sentiu-se especial ainda que perdendo as amigas,
não importava. Importava que ella desejava ser reconhecida e para que isso
acontecesse, pagaria um preço _ poderia ser a solidão...
No final da tarde voltou para casa pulando num pé só mal cabendo em si de
alegria. Falla para mãe da sua conquista, esta nem ouviu, mas o bairro ficou
sabendo em dois dias. Aquelles que gostavam de Ella ficaram orgulhosos por
ella, os outros,... bem, ella começava a entender que não dava para agradar a
todos, e algum prêço havia de pagar por ousar sair do lugar comum _ da
massa. Mesmo assim ella iria em frente _ custasse o que custasse!
Conseguia bom desempenho nas aulas de teatro sem correr o risco de
comprometer suas médias nas disciplinas básicas. Ou seja, ella desdobrava-se
para manter a postura de aluna dedicada e boa atriz potencialmente. Recebeu
a validação da irmã Tereza, responsável pelo curso de teatro e foi indicada
para encenar a peça que seria apresentada na primavera _ dalí há três meses.
Ella continuava tendo uma vida de faltas, tendo mesmo que passar fome
muitas vezes. De manhã, sua mãe antes de sair para o hospital deixava um
bule de café com leite e um pão com manteiga. No almoço engolia o tradicional
feijão com arroz e quando tinha, uma carne de sol com mandioca; e no jantar,
a velha sopa de legumes, a reprise do café com leite matinal, ou água com
açúcar. Sendo que, os alimentos eram racionados _ uma porção única para
cada um. Mas o que era mais triste para Ella, era o fato de nunca ter
companhia às refeições _ sempre só. Da antiga casa onde morava com os tios,
tinha saudades da mesa cheia de gente disputando o último pedaço de carne
na panela _ era pobre, mas era afeto para ella. Havia gente à sua volta.
Nesta casa onde vivia agora com a mãe e um irmão de nove anos, existia uma
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solidão tão pesada, que em muitos momentos acreditou ter sido abandonada
por Deus. Era algo parecido com a morte. Sentia um silêncio fúnebre e tudo
parecia transcorrer em câmara lenta. A casa grande escura, com o assoalho
velho rangendo a noite toda e as portas se abrindo sòzinhas, cheirava a
túmulo.
Era muito difícil para ella enfrentar o dia-a-dia, não tendo absolutamente com
quem contar. Seus poucos momentos de prazer eram vividos em companhia
das freiras, os livros e o teatro do colégio. Amiga, ella acreditava que tinha
uma agora _ Billa. Com essa amiga nova, experimentava a aventura de
frequentar um baile aos sábados no Banclub _ clube da nata da sociedade de
sua província.
Ella não ficava muito a vontade para ir aos bailes sempre que era convidada, e
muitas vezes disse não, porque não tinha roupas adequadas. Sentia-se
constrangida frente aos jovens e inferior comparada às meninas que vestiamse bem. Ella tinha como guarda roupa um vestido de fustão azul de florais,
uma saia bege plissada, algumas camisetas brancas, duas calças jeans, uma
bota de couro, um sapato preto, um tênis batido, e dois chinelos de couro,
ganhos de uma prima de São Paulo. Durante a semana, usava o uniforme do
colégio ou jeans. Ganhava uns corte de tecido de amigos da mãe ou madrinhas
e inventava uns modelos costurando na velha máquina de costura que voínha
deixara para ella _ sua avó materna.
Não tinha muito talento para costurar, mas criava seus trajes de gata
borralheira, candidata à cinderella. Muitas horas passava sonhando com o dia
em que seria uma cinderella, vestiria lindos vestidos e seria pedida em
casamento por um príncipe de verdade.
Ella era uma adolescente de 13 anos que prometia ser muito bonita. Sua pele
branca de porcelana com textura de sêda, deu lugar a uma pele morena
queimada de sol. Seus cabelos longos eram lisos e pretos e seus olhos negros,
brilhavam num tom azul intenso. Chamava a atenção das pessoas sobre si pelo
seu tipo exótico meio índia, meio alienígena. Era magra, alta e pernas longas e
bem desenhadas. Sempre andava à pé por longas distâncias, nadava nos rios e
igarapés, e cavalgava várias vezes por semana. Possuía um bello corpo atlético
e saudável, como produto de uma prática de vida natural.
Os seus encontros com as águas das cachoeiras, dos rios e igarapés, eram
mágicos. Ella encontrava na relação com as águas um estado de espírito que
despertava nella uma sensibilidade excepcional, e trazia-lhe um sentimento de
aconchego prazeiroso, que compensava a vida amarga que vivia. Com as
rochas ainda fallava e nas águas, desenhava seu futuro. Muitas manhãs, ella
encontrava com o sol nascendo para aquecer as águas do rio para ella nadar.
Ella nadava enquanto o sol a namorava e a belleza das matas compunha um
cenário bellíssimo e misterioso para assistí-la, para presentea-la com uma rara
cumplicidade na doçura e na inocência por excelência. Uma chuva forte de
inverno cai para brindar à paisagem do santuário de Ella.
Chuva farta e macia
molha a tarde, molha o dia
faz meu coração pulsar
como poesia nos lábios de alguém enamorado
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molha meus sonhos, lava meus olhos...
sinto um gosto bom de caramelo
quando lembro de você
a tarde toda molhada
me trás uma noite perfumada
perfeita para um encontro a dois
a noite me envolve devagarinho
aumentando minha inocente vontade
de provar de seu beijo doce
de ser tocada com ternura
embalo esta vontade nos meus braços
alimento com meu leite
fico doce como o mel
úmida como a manhã de primavera
entrego este desejo para os céus
sabendo que pode ser
quando sou digna, o que mereço vem a mim
deixa a noite passar!
Ella diz para si que empresta de seu pai este Dom de escrever seus sonhos,
seus sentimentos, e as histórias envolvidas em mistérios, que a natureza lhe
presenteia nos seus momentos de meditação.
Com o passar do tempo ella, folheia menos frequentemente os escritos de seu
pai. Cada vez que guarda mais uma gota de cristal de suas lágrimas, pensa no
quanto deverá fallar para não adoecer, e começa a enxergar os signos dos
discursos de seu pai, comparando com os seus rascunhos de adolescente,
assusta-se com a possibilidade de vir a superá-lo. _” Eu tenho tanta coisa para
contar _ mas não tenho com quem fallar. Divido minhas experiências com os
elementos da natureza _ meus anjos, fadas e Mestres. Ouso pensar numa
linguagem do meu pai quando fallo do Mestre, porque se elle tinha o seu, eu
tenho o meu, sim, eu tenho. Do contrário não teria sobrevivido com sanidade,
vivendo como vivo”.
A existência e intimidade com seres sábios já não era questionada por ella. No
entanto, a consciência de percebê-los na qualidade de seus Mestres, ainda
causava-lhe estranheza diante da confusão, quando experimentava negar para
si, que era filha do pai. E mesmo quando esta negação lhe envolvia, estava
inconscientemente procurando a inscrição do nome do pai em sua história,
mais do que negando sua existência, para reconhecer um Mestre em sua vida.
Diante da verdade do contexto de sua vida, ella tinha que prosseguir fallando
as suas próprias fallas _ reprodução do pai _ ou emprestando o virtual das
fallas escritas dos rascunhos do livro do pai . O melhor do seu pai havia de ter
ficado para ella desenvolver.
Que tempo é este que passa
e me faz esperar por mim em algum lugar
por onde nunca passei?
quem passou por mim e se perdeu
pelos cantos do mundo
onde nunca passei?
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como ando sem mim procurando por algo
que nunca tive?
temo que o tempo passe
e nem percebam que estou aqui
onde deixei algo de mim
que reflete aqui
sem nunca mostrar onde estive por mim?
como se deixam levar
sem nem ao menos ouvir fallar de mim?
quem se passou por mim
sem dizer que sou
sem ser assim?
foi um tempo onde tudo passou ao longe de mim...
por me parecer com nada de mim
foi que me dei conta
sobre tudo que esperei de mim
sem me lembrar que fiz mesmo assim
esse tempo me fêz passar por cima de mim?
O passeio habitual de Ella quando não estava nadando nos rios e cachoeiras,
era visitar a capella de Santo Antonio construída há 100 anos às margens da
cachoeira de Teotônio. Lá ella passava horas meditando em silêncio e
conversando com seu Mestre. A capela era isolada de vizinhanças há pelo
menos cinco kilômetros de distância. O vizinho mais próximo era um nativo
que vivia da colheita de tucumã, fruto muito saboroso da família das
palmáceas.
A localização da capela era privilegiada _ de uma belleza rara. Havia muitas
árvores ao fundo, pequenas rochas distraidamente espalhadas pelo terreno,
plantadas num solo de terra vermelha pedregosa. Na frente da capela corria
magestosamente o rio Madeira _ neste trecho _ acidentado pelas bellas rochas
que formavam a cachoeira. O céu era extraordianariamente azul. O perfume
que exalava, era uma espécie de mistura de orquídeas com flores do campo. O
silêncio, impecável, sendo quebrado apenas pelo som dos cantos dos pássaros
e o barulho das águas cristalinas que corriam rio abaixo.
Sentada sobre uma rocha, olhando o rio depois de ter passado horas
meditando na capela assistindo um final de tarde que brindava a paisagem
com um pôr-de-sol dourado intenso, foi que Ella sentiu uma mão tocando
suavemente seu ombro direito. Ella sentiu um calor agradável envolvendo todo
seu corpo _ sabendo que estava alí há dias_ esperando por este momento
mágico. Silenciosamente pediu que esta presença Divina fallasse algo que ella
pudesse entender. Naquelle instante sentiu uma mão macia fechando seus
olhos e tocando delicadamente sua testa, massageando sua pele entre as
sobrancelhas onde tinha incrustrada a pedra azul de Papisa. Tudo transformouse em azul envolvente, produzindo um agradável torpor em todo seu corpo.
De repente, ella conseguia vê um corpo de Luz translúcida que tomava a forma
de um homem. Esse homem de pé a sua frente fallava enquanto seu olhar se
definia. Tinhas uns olhos profundamente azuis e doces como se fossem mel.
Brilhavam como dois pontos de Luz cósmica, tocando-a na alma e abençoava-a
com sua magnificência.
Elle identifica-se como sendo seu Mestre Midrah. Diz que tem estado há muito
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tempo alí às margens de Teotônio aguardando um momento para comunicarse com ella _ sua discípula. Mas o momento perfeito para se dá este encontro,
era agora. Noutros dias, Ella estivera muito envolvida com seus anjos e
estrêlas, conspirando para alterar algumas passagens dolorosas de sua vida.
Só agora, ella estava receptiva para este encontro especial. Ella reconhece
esta verdade, e reconhece a genialidade de seu Mestre. Elle a leva até a
margem do rio para lavar-lhe os pés e as mãos. Era uma consagração do
encontro do mestre com sua discípula, onde pouco era fallado e muito
ensinado _ tudo era apreendido através de sutilezas _ o resumo da Luz num
gesto de amor.
Ella tem a sensação de que está há horas alí com Midrah na margem do rio .
Sentada com seus pés mergulhados nas águas, vê uma cena onde ella
caminha por uma rua toda calçada, com árvores, casas de tijolos e automóveis
passando sem parar. É um dia cinzento, frio e uma chuva fininha cai
lentamente. Ella caminha apressadamente carregando em suas mãos alguns
livros. Está vestindo jeans, um casaco de lã e calça botas de couro. Entra em
uma igreja antiga, faz uma oração e volta para rua por onde caminha até um
café com umas mesas na calçada, protegidas por ávores centenárias onde um
jovem moreno usando um rabo de cavalo amarrado com uma tira de couro,
toma um café. Elle falla: _”Meu nome é Muriel..”.
Outras cenas _ como num filme _ são mostradas e dentre ellas, uma da
avenida principal de sua cidade onde há um café tradicional. Ella está voltando
do seu colégio à tarde caminhando pela calçada do café, quando é chamada
por um homem velho de barba branca, cabelos brancos, vestindo roupas
brancas. Ella pára e dá atenção ao homem velho...
Midrah pega nas mãos de Ella e a trás de volta para a rocha onde estava
sentada. Quando ella abre os olhos já é noite, e o caminho de volta para casa
é longo.
Pensativa durante a caminhada de volta, falla para si: _”Seria tão melhor viver
apenas este lado da sua vida, tão rico em experiências mágicas”. Lembra-se
que ao chegar em casa, encontrará café com leite e pão sobre a mesa para seu
jantar, ninguém com quem conversar,...silenciosamente engoliria o pão por
puro reflexo_ não sentiria gosto algum. Não tendo para onde ir, enfrentaria a
solidão de sua casa velha e assustadora, recolhendo-se ao seu quarto onde
estudaria à luz de vela após as 22 horas, quando a energia elétrica da cidade
era desligada.
Mais um dia chega ao fim. São os sonhos brigando com a realidade sofrida de
sua vida.
Mas era proibido desistir e ella sabia disso. Até quando tinha que fazer força
para continuar respirando, ella teimava em continuar viva. Ella havia jurado
pra si há muitos anos atrás, que custasse o que custasse, viveria para resgatar
sua dignidade.
Assim como de tantas outras vezes, ella escreveu mais uma página de seu
livro _ da história de sua vida _ nas águas do rio Madeira. Desenhar cenas de
sua vida nas águas, representava uma consagração e como tal, marcada na
Luz para acontecer.
A noite avança no tempo enquanto ella estuda há horas, só distraíndo a
atenção, quando ouve ao longe um automóvel ou cavalo passar na rua de terra
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pedregosa de sua casa. Tudo parecia tão lento e silencioso, que ella acreditava
estar vivendo num lugar fora do mundo. Olhava pela janela, lá fora havia uma
escuridão densa e ameaçadora brigando com o brilho das estrêllas no céu.
Tudo transpirava mistérios, lendas, ritual de vida e morte _ por excelência
excitante, mas assustador.
Ella sentia-se impulsionda a enfrentar o que chamava de o resumo da vida
num gesto noturno _ a noite _ impregnada de significados vellados,
inquietando-a permanentemente. Ella se sentia no dever de saber decifrar os
símbolos do clima que permeava a noite. A sua função, seus fenômenos e seu
próprio fascínio por elles.
Tudo lhe parecia tão familiar, que conviver com a belleza do dia e com a
sedução da noite, lhe era inerente. Fazia parte da sua forma de existir _
resignificar o que é viver.
Fascinada com a noite-quase-madrugada, Ella abre seu baú de relíquias
procurando uma página do livro do pai. Lê para seu coração doído enquanto
toca uma lágrima de cristal branco, colhida durante sua meditação na
cachoeira de Teotônio ontem à tarde. Emprestando as palavras do pai, fallava
procurando entender coisas que foram ditas nas entrelinhas. Procurava...,
refletia, aos poucos achava significado... fallava para mantê-lo vivo em seus
discursos, na tentativa de apropriar-se daquella história que agora era também
sua.
Vida e morte
Do útero, origem da vida eu saí
e retorno quando a noite me assusta
procurando assim
a proteção invunerável
da sagrada caverna primal
e por ser um perdedor como sou
finjo não ver o eterno feminino que me acusa
que me acorda
que me encobre
ou revela de mim
uma face difícil de lidar
levando-me a perecer rìgidamente
sem ver
que esta viagem de volta reduz-me a nada
abrindo uma cortina à minha frente
com destino ao túmulo
doravante útero
que me leva à morte em vida!”
_” Quando a dor me faz esperar uma vida para viver um dia, faz-me sentir o
quanto sou pequena diante da grandeza e perfeição do universo que determina
todas as posições a serem ocupadas por mim, durante o meu processo de
crescimento. E se este sentimento perdurar, corro o risco de ser vencida pelos
desafios presentes em minha caminhada, e atribuo ao outro, as causas do
meu fracasso.” _ falla Ella para sua imagem no espelho. _”Ou estarei sendo
complexa?”
Por que não? Afinal, não é segredo que a luta de Ella para viver com
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dignidade, é a maior bandeira levantada por ella nesta vida. E resgatar a
imagem do pai num tom de poesia, tem como objetivo, lavar suas feridas _
elevar sua alma. Por consequência, se vendo através da história do pai, não só
luta para ser reconhecida como filha, como também aponta para suas faltas,
seus vazios, podendo encontrar outra saída para a sua existência, caso se
reconheça no direito de superá-lo. Sendo melhor que o pai em algum lugar,
não deixa de ser um sinal de que se deu uma revisão nesta nova edição de
uma obra inacabada. Isto é nobre.
Ella folheia outros poemas do pai.
Vítima
Viver é sentir quase sempre, que falta algo em minha vida, e que, por deixar-me
assim vazio, penso que sou fruto de um sonho.
Sonho dormindo, sonho acordado e fantasio como serão minhas próximas noites
de Natal. Crescí de teimoso que sou, pois ainda espero Papai Noel com meus
chinelos na janela. Mas elle não vem, assim como nunca veio, e por isso, me
tornei vítima da espera.
Da espera infinita por um estado de graça, que traria respostas para minhas
perguntas e verdades para meus sonhos - que sonha com o direito de sentir
como uma criança toda a emoção que viver me causa.
Viver sentindo o que falta e o que preenche, é tão confuso, que não sei se sou
vítima ou algoz. Onde foi que eu errei? Ou erraram por mim? ...são sonhos,
delírios..., fantasias...
E o meu mundo dourado, fruto das minhas fantasias, onde tantos fantasmas criei
e que me confunde quando olho no espelho, - serei fruto de minha
imaginação?
Não, é o sonho do sonho.
E vejo pela janela, lá no alto, a minha estrêla cadente que cai só para atender
meus pedidos - que são muitos.
E ainda assim, faço-me vítima da vida tornando-me lento e arredio, fingindo não
sentir algo maior que alguém me despertou. Mas eu sinto.
Sinto muito, sinto tanto... quando me pegam desnudo frente a emoção pueril
ameaçadora, que é ser notado pelo que sou.
E sinto mais. Sinto que esta minha fantasia me assusta e me faz vítima maior da
minha própria invalidez quando enxergo o imenso vazio que preenche minha
vida!
Olha pela janela. A madrugada se alongava tão escura que cegava, e Ella
ainda refletia. Ella, seu espelho, seus manuscritos paternos e seu Mestre.
Nos seus reflexos, nas suas buscas, ella se aprofundava acreditando ser capaz
de ter sob controle os movimentos que determinavam as direções que sua vida
seguiria.
Toda sua vida, havia sido e seria norteada pelas imagens refletidas dentro e
fora de si, fruto da ação do Poder Cósmico, a Sabedoria do Universo que rege
a vida do Homem. Essencialmente, por esta razão, ella vivia meditando _
refletindo. Para lapidar sua linguagem sutil e assim realizar uma prática de
comunicação com o Divino.
Seu dia seria curto para cumprir todas as tarefas atribuídas a ella. Limpar a
casa, cozinhar algo para comer, passar na venda para comprar um pouco de
cereais. Deveria passar nos correios para mandar umas cartas, voltar correndo
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(literalmente) para banhar-se, comer e estar pontualmente às 13 horas no
colégio.
Atravessa o portão uns segundos antes de tocar o último sinal para a reunir as
alunas no pátio em direção às suas salas. Ella alcança aliviada seu lugar na fila
e respira para fazer sua oração do dia, quando é chamada até a frente pela
irmã superiora para receber uma repreensão pelo fato de está sem combinação
_ logo indecente _e deixar aparecer o sutian. Este deixar aparecer, era bem
rígido, porque a blusa do uniforme era de tricoline branco mas não
transperente. Mas as freiras enxergavam o sutian e consideravam um ato
despudorado para a casa de Deus.
Volta Ella correndo para trás debaixo de um sol de 36 graus para vestir uma
combinação, exausta o bastante para perder o fôlego e pensar em desistir.
Mas isto era proibido para ella _ havia de conseguir vestir a combinação e
chegar a tempo para pegar a primeira aula no início.
Pensava enquanto corria para casa, que não havia esquecido de vestir a
combinação. Ella quis comemorar o seu primeiro sutian, exibindo-o para as
amigas, pois em casa tinha que vestí-lo escondido da mãe por vergonha. Ella
ganhou o sutian de presente da madrinha. Ficou muito feliz, mas a mãe
conseguiu deixa-la culpada com suas observações puritanas: _ “Você ainda é
muito menina para tirar a combinação e vestir um sutian _ é vulgar”.
Depois dessa reprovação, restava a Ella jogar o sutian pela janela quando
fosse sair, dar uma volta pelos fundos, para poder vestir o seu símbolo de
vulgaridade se a santa mãe estivesse em casa.
Com tantos impedimentos maternos para não apropriar-se de seu símbolo de
feminilidade, Ella atrapalhava-se com sua própria belleza. Chegava a pensar
que deveria ser um defeito ser mulher e um pecado ser bonita.
Ella sentia-se culpada quando referiam-se a sua belleza. Escondia suas bem
esculpidas pernas sob calças jeans ou saias longas. Sua pele agora queimada
de sol, era vista por ella como uma cicatriz. Seus negros olhos com brilho
azulado, há tempos vinham escondidos sob uma cerrada franja, e seus longos
cabelos sempre desalinhados, só eram arrumados num rabo com uma fita de
cetim preto quando ia ao colégio. Fazia parte do uniforme impecável do colégio
italiano.
Fim-de-tarde, toca o sinal avisando que as aulas acabaram e todas saiam do
colégio de volta para suas casas. Ella corre para a rua e respira. Senta-se num
degrau da escadaria e pensa o quanto foi difícil o dia hoje. Está cansada, não
vai dá para tomar seu banho de cachoeira.
Resolve que vai dar uma volta na praça principal da cidade e tomar um tacacá.
A tarde está fresquinha e convida para um passeio social. Há algum tempo ella
não vinha passear na cidade onde as pessoas estavam. Foi com sua mãe que
veio a última vez à catedral de São Mateus para uma missa _ há um mês _ e
desde então não passava pela praça.
Descendo a avenida principal, sempre passa pela calçada de um café, antes de
entrar em sua rua que fica há 300 metros dalí. Hoje fazendo o caminho de
sempre, só que com destino à praça, é chamada por um homem velho de
barba e cabelos brancos, vestindo roupas brancas. Certifica-se de que é com
ella mesma que elle está fallando e aproxima-se.
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Amadeu era o seu nome. Elle falla que vem observando-a há dias quando
passa de volta do colégio. Pergunta seu nome, idade, onde estuda, se tem pai
e mãe e onde mora _ faz um inquérido sem constrangimentos. Diz que sempre
toma um café nesta cafeteria às tardes quando está de passagem pela cidade.
Elle é comerciante _ informa. Compra e vende roupas femininas, trafica
predras preciosas e tem um pequeno hotel em Costa Marques _ cidade
próxima, onde a atração dos turistas é caçar ovos de tartarugas nas praias.
Ella senta-se e toma um café enquanto ouve o Amadeu explicar seu interesse
por ella. _”Eu fiquei hipnotizado quando ví você passar a primeira vez. Olhando
você passar ao longe tomada por uma enorme indiferença, despertava em mim
um sentimento de abandono, como se você tivesse que saber que eu estava
sentado aqui nesta cadeira, só para lhe ver passar”.
Pede mais um café para Ella e continua: _“Eu sinto uma emoção indescitível
fallando com você. Sinto como se estivesse reencontrando uma pessoa muito
querida que perdí há muito tempo. Você é um ser especial, eu vejo, assim
como vejo uma Luz azul envolvendo seu corpo. Tem os olhos negros mas
brilham do azul que nasce no cristal azul intenso incrustrado entre suas
sobrancelhas”. Amadeu não parava de fallar embora Ella já estivesse à
vontade. Era como se sempre estivera alí.
Ella também sentia que sabia quem era Amadeu _ pensava em silêncio. Era o
princípio inteligente do Cosmos em ação, definindo mais uma imagem em sua
vida. Os Deuses estavam conspirando pela sua vida _ ella entendia.
Enquanto tomavam o terceiro café com creme, Amadeu pergunta onde fica sua
casa. Elle gostaria de conversar com a mãe della. Ella o ensina como chegar à
sua casa e combina para o dia seguinte a conversa com sua mãe. Diz que uma
boa hora para se dá esse encontro, será às 18 horas, após o descanso da mãe
do plantão da noite no hospital. Seria confirmado ou não o encontro
dependendo da disponibilidade da mãe para receber um estranho em casa.
Despede-se de Amadeu, agradece pelos cafés. Ainda há tempo para tomar o
seu tacacá e fazer um passeio na praça _ pensa.
Encontra na praça também tomando uma cuia de tacacá, sua amiga Billa.
Estudavam na mesma classe desde o início do ano e compartilhavam bons
momentos no colégio e dançando no Banclub aos sábados à noite. Sentia-se
bem sabendo ter uma amiga.
Tacacá é uma sopa deliciosa de origem indígena. É feita a partir da mandioca
branca de onde se extrai o tucupí _ igrediente básico _, uma goma também de
mandioca, folha de jambú, camarão seco e pimenta. Os índios asseguram que
esta sopa é afrodisíaca. É um prato saboroso servido bem quente.
Ella senta-se num banco da praça com Billa e toma seu tacacá em silêncio.
Pensa no acontecido há minutos atrás na cafeteria. Revive a conversa que teve
com Amadeu e fica excitada. Sentia que algo muito especial estava para
acontecer com ella. Muitas imagens passam pela sua mente. Lembra-se de
quando esteve visitando sua tia Dodó e tio Cruca há dois meses atrás. Sentada
em uma poltrona da sala, conta a tia que está apaixonada por um amigo da
família. Amora, um amigo do tio Cruca, sempre estava por perto, mas
ignorava a existência de Ella. Elle, mais velho 15 anos, tinha outros interesses
na vida para notar uma menina de 14 anos.
Ella tem estado sonhando com Amora há uns meses _ confessa à tia. Só que
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elle a vê como uma menina sobrinha de seu amigo, mesmo enxergando a
sensualidade e belleza exótica della, não dá para passar por cima de certas
considerações. Ella sabe disso, vê o olhar delle cheio de desejos vellados e
aprendeu a ler os jogos de sedução.
Ella não sabia dá nome ao que sentia em especial por elle, mas sentia algo
forte como o que sentiu quando despediu-se do Marcos, seu primeiro amor, há
três anos atrás. Só entendeu o que sentia por elle, na hora de guardar os
remos usados pelos dois durante seus passeios de canoa pelos rios. Os remos
ella guarda entre seus objetos valiosos, a lembrança do sentimento está
impressa nas letras de seus poemas.
Para Ella era confuso sentir qualquer coisa que não desse para nomear. Tiravalhe do centro. Algo da ordem do afetivo e sexual, era sempre ameaçador e
desconfortável, porque neste processo sempre existe o outro. E quando esse
outro é alguém que certamente um dia irá partir, deixa-a vulnerável.
Confidencia a tia que gostaria _ apesar do risco _ muito que o Amora
percebesse sua existência, embora não acreditasse que fosse possível do jeito
que ella idealizava.
Falla para a tia num tom narcísico que vai estudar em São Paulo em breve, e
que ao voltar, verá o Amora com outros olhos. _”Vou estar mais velha e mais
bonita... elle vai me notar... vai ser assim: _” No dia em que eu chegar de
viagem, vou estar sentada aqui nesta sala com você quando elle entrar por
esta porta e sentar ao meu lado dizendo como eu estou linda e mais mulher.
Eu vou ouvir envaidecida, mas não mais seduzida. Elle já não será mais meu
príncipe, apenas um homem como muitos. O encanto terá acabado”.
Ella volta dos devaneios sentindo um misto de alegria e pesar. Billa pergunta
se está tudo bem com a amiga que parecia ausente por um tempo. _”Sim,
estive lembrando de uma situação esquisita... mas está tudo bem. Acho que
seria bom se fizéssemos um passeio pela praça, vamos?”
Ellas encontram várias pessoas conhecidas fazendo a mesma coisa _
socializando. A cidade já começa a acender suas luzes porque a noite chegou e
indica que é hora de voltar para casa.
Enquanto toma um banho gelado _ não havia água quente _ medita sobre
seus desejos e planos para o futuro. Tudo lhe parecia tão próximo de
acontecer, que lembrar disso fazia Ella estremecer. Sentia o quanto estava
perto o dia em que sua vida tomaria um outro rumo alinhado com enorme
sorte.
Ajoelha-se encostada na tina de madeira onde depositava água para seus
banhos e olha distraìdamente para a água. Canta um mantra e repensa os
acontecimentos dos últimos dias. _”O que será só meu e o que estou
emprestando do outro, ou ainda, onde me vejo melhor e pior nas pessoas que
me cercam?”. Fica assim, como em transe por uns 40 minutos. As imagens
que se formam na água mostram sua casa de infância, seu pai chegando
alcoolizado, um automómel preto passando com ella na rua onde morou até os
dez anos, um mar verde banhando uma praia de areia branca.
Após um renovador banho de ervas, retoma sua existência humana,
lembrando que deve sair do banheiro, pois já é tarde da noite. A força ainda
não havia sido desligada, então dava para passar pelo seu canteiro de flores e
colher uma dama-da-noite, onde depositaria seu eleito desejo do momento.
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Quando essa flôr secasse, este desejo estaria pronto para ser realizado.
Recolhe-se ao seu quarto procurando um livro onde pudesse guardar a flôr.
Acha no seu baú de memórias um livro do pai _ O Despertar dos Mágicos.
Guarda a dama-da-noite entre as páginas do livro, aperta-o contra o peito,
entrega ao Poder Cósmico que rege a vida do Homem e ao Midrah, seu Mestre.
Folheando o livro, encontra uma das cartas sem destinatário de seu pai. Hoje
ella entende que estas cartas não foram endereçadas a alguém, pelo simples
fato de que foram escritas por elle, para elle mesmo. Ou seja, escrevia suas
mensagens, procurando entender suas faltas na tentativa de encontrar
significados para sua existência sem sentido. Era o modo possível delle marcar
à tinta o caminho que trilhou na vida.
O vento forte lá fora agitava as ávores anunciando um temporal, e fazia bater
mais forte o coração de Ella, segurando nas mãos as velhas palavras do pai. As
lágrimas escorrem de seus olhos ao ler uma das cartas. Uma lágrima cai
manchando de azul uma página das cartas. Coagula-se, rolando vai parar nos
pés della.
Não passo dessa vida
Como eu sinto ser esta vida confusa girando ao meu redor mil saídas para um só
oceano, eu não sei dizer. Só sei que exausto estou de tentar escapar dos lugares
comuns, das pessoas vazias de tudo e de todos. Tão cansado me acho, que
sinto girar o meu centro levando-me à tão profundas náuseas, que sinto como se
a morte fosse o próximo porto.
Teimo de criança que sou, a crer no amanhã azul e finjo que o agora não é - está
sendo um sonho, e ao despertar, será como se eu não percebesse nada.
Contudo, sinto a carícia do tempo que passa deixando pra trás as marcas de
quando elle parou nos meu olhos cheios d’água.
Mas onde fica a verdade sobre tudo que discurso, se posso ter escapado de uma
nebulosa e de uma ilusão não passo? Se tudo de tão claro fica confuso e não
creio na Luz que insiste no quanto eu posso crescer? Não posso! Não passo de
uma ilusão!
Meu Deus, quanta escuridão habita meus questionamentos, e cada vez mais,
afasto-me do centro sem pedir perdão de mim mesmo por tirar-me o direito de
ser feliz. Por que?
Porque não passo dessa vida sem desvendar o intricado mistério que leva o ser
humano a perecer do velho mal da solidão. Não posso... com este monstro fatal
penso que não sei lidar. Penso.
Penso que posso perceber ser um coração apaixonado, o mais poderoso remédio
contra este velho mal.
Passo momentos mal. Muito mal.
Mas não passo dessa vida vivendo por tão pouco. Não posso!
Ella guarda com carinho a lágrima de cristal azul na caixa de madeira onde
tem gravado a fogo o nome Ella na tampa, e onde guarda suas relíquias.
Dobra a carta do pai, enquanto pensa no tamanho da dor delle, sentida nos
momentos em que colocava em palavras os seus sentimentos._”Certamente,
quando conseguia nomear o que sentia, entendia que não dava para fingir que
não sabia do que se tratava _ tratava-se da sua vida e tinha que segurar com
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tequilla ou sem”.
Ellaborando as diferenças e semelhanças entre ella e seu pai, procura um
poema seu para ler antes de apagar a vela e dormir.
Eu quero
Eu quero uma flôr, um amor,...
partir, sonhar, dormir e voltar
quero verdes mares
uma canção de ninar
viver, sentir, te abraçar
quero sorrir
chorar e poder fallar
um sol só pra mim
uma estrêla a me olhar
e brilhar, brilhar, brilhar...
quero sentir todos os prazeres
viver, crescer e saber escolher
entrar na tua vida
sabendo onde pisar
te esperar numa esquina da vida
conhecer teus medos
tuas virtudes
te ver ascender
te ver me notando
quero teu aperto de mão
teu melhor sorriso
dividir meu espaço contigo
te ter meu amigo
meu amado, meu amante
ter o futuro nas mãos
ter alternativas
inverter destinos
tocar teu coração
quero sobretudo uma louca paixão
fechar os olhos
perder a razão!
A chuva cai impiedosamente noite a dentro embalando o sono de Ella. Antes
de adormecer pensa: _”Certamente boa parte do mundo já disse tudo isso que
digo agora, mas não do jeito que eu digo”. Sonharia boa parte dessas
vivências.
O dia amanheceu com um brilho especial. As plantas exalavam um perfume
raro selvagem. As águas se agitavam como se estivessem numa dança
amorosa e os pássaros brindavam este momento festivo com um cantar
matinal, anunciando o começo de um dia que chegava lentamente impregnado
de promessas ansiadas por Ella e velladas por Midrah _ seu Mestre.
Ella olha pela janela encontrando com o olhar do sol que nasce trazendo vida à
terra úmida fértil para germinar o que for plantado. Do telhado encharcado da
chuva da noite, ainda cai distraìdamente uma gota d’água que Ella colhe em
sua mão. Sente-se atraída pelo cheiro da terra molhada, tira os chinelos e pisa
devagarinho no chão sentindo seus pés entregarem-se a acolhida amorosa da
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terra, que profetiza o nascimento de um novo fruto em sua vida.
Era bem assim. O dia conspirava mudanças, havia um clima de mistério no ar.
O canteiro de flores estava especialmente viçoso. A natureza fallava com Ella.
Senta-se para tomar seu café _ o mesmo pão, o mesmo café-com-leite hoje,
tem outro sabor, ella não engole mais por reflexo.
Limpa a casa, troca as roupas de cama, abre todas as janelas da casa escura
para deixar a luz entrar. Improvisa um vaso feito de um garrafão cortado e faz
um arranjo de flores para enfeitar a sala. Prepara o fogão à lenha para
cozinhar um feijão com carne de sol para o almoço.
Sua mãe chega do plantão da noite no hospital, demonstrando cansaço. Tudo
indica que irá dormir um pouco. Ella oferece-lhe um café e pede para fallar
sobre um assunto sério. _”Sério a esta hora Ella? Você não está fantasiando de
novo? Falla bem depressa para eu ter tempo de dormir e logo mais sair atrás
de um amigo para pedir dinheiro emprestado para segurar as despesas até o
fim do mês. Isto sim é sério...” Falla Sofia impaciente por ter que ouvir os
sonhos de Ella.
Ella conta do acontecido no café da cidade ontem à tarde. Conta excitada de
como ficou impressionada e encantada com o Amadeu _ seu novo amigo.
Explica logo à mãe, porque sabe que elle é seu amigo da Luz e lhe diz o quanto
está ansiosa para saber o que elle tem para fallar com ella e a mãe. Pergunta
se a mãe poderia receber o Amadeu em casa hoje às 18 horas para uma
conversa rápida. Era preciso saber agora se seria possível, para passar no café
antes de ir para o colégio e combinar com elle a hora. _”O que este seu amigo
pode querer fallar comigo menina? Ah, não sei se não é mais uma das suas
visões heim? _”Elle quer conhecer a minha mãe, saber como é você, como
moramos, do que vivemos, enfim. Saber quem é minha família. Só vamos ficar
sabendo mesmo recebendo-o”. Pontua Ella.
Depois de enorme pressão, ella consegue que a mãe concorde em conhecer
esse misterioso-imaginário amigo de Ella, no fim da tarde recebendo-o para
um café.
Ella não cabe em si de alegria. Corre para terminar suas tarefas domésticas. As
horas no relógio voam e mal dá tempo della tomar um banho antes de almoçar
e sair correndo para passar no café antes de ir para o colégio. Estava o
Amadeu sentado tomando um suco de açaí e sorrí quando vê Ella chegando.
Pede um suco para ella e ouve a notícia de que Sofia irá recebê-lo às 18 horas,
hoje.
_”Muito bom Ella, eu tenho muito o que fallar com sua mãe e tenho certeza de
que você irá gostar do que vou dizer à ella. Como é o nome de sua mãe? _
pergunta Amadeu. _”Zirah,.. desculpe, Sofia é minha mãe biológica, Zirah é
minha mãe das águas e Papisa é minha mãe extraterrestre”. _”Não se
preocupe, eu sei de onde você vem. Conheço você há muito tempo e sei que
você sente que sou familiar”.
Ella sabia do que o Amadeu fallava.
Tudo combinado para o encontro de hoje, Ella sai correndo para o colégio.
Além de ter que entregar trabalhos de pesquisa sobre religião e história geral,
também teria que provar o figurino da personagem que interpretaria na peça
de teatro que o colégio apresentaria em outubro _ dentro de 2 meses.
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Tudo parecia girar numa velocidade estonteante à sua volta. Isto era excitante
para Ella porque este ano, vinha sendo vivido cada dia como se fosse o último
na vida della. Sentia-se correndo ao encontro da materialização de seus
sonhos constelados em seu inconsciente.
Dentro desse cenário de agitação, era impossível ella deter-se além do
necessário em cada ação. Mesmo envolvida com suas atividades escolares e
teatrais, este dia, ficava difícil não experimentar uma certa ansiedade, apesar
de ser um ser sereno.
O dia termina. O sino do colégio anuncia a hora da saída causando enorme
euforia em Ella. Passa correndo pelo pátio em direção ao portão, tropeçando
em Billa, que combina com outras amigas uma festa para sábado no Banclub.
Ella aceita e diz que combina horário depois. Tinha que correr ao encontro de
sua boa sorte.
Caminha em direção ao café onde Amadeu a espera. No caminho pensa no seu
pai... Lembra dos momentos de infindáveis esperas em sua infância quando
todo seu desejo era investido no pai _ naquelle pai idealizado. Também lembra
de como foi inútil esperar_ elle nunca chegava...De como era doído querê-lo
sem nunca ter merecido um olhar delle. Lembra do quanto era difícil conviver
com tamanha falta, tendo que sòzinha, lamber suas próprias feridas. E mais
cruel ainda, perceber a triste realidade _ sem possibilidade de escolha _ de
que não poderia mais correr o risco de precisar de alguém.
Contudo, não dava para desistir jamais. Reafirma seu pacto consigo mesma,
enxuga uma lágrima incontrolável e vira a página. Logo alí na frente, estaria
uma porta aberta para seu futuro, uma nova página do seu livro inscrita por
mãos de Luz.
Ella sente-se como uma princesa indo ao baile no palácio real onde o rei
escolherá dentre dezenas de outras tantas jovens, aquella que será a esposa
do príncipe, a eleita. Ella precisa ser especial para fazer sentido a sua
existência. Será escolhida, como num baile do palácio do rei _ está inscrito.
Pelo menos na história della, escrita por ella. O papel de princesa está
reservado para ella.
Acorda de suas reflexões, sente os pés no chão, alcançando num passo a
calçada da cafeteria. Lá estava Amadeu vestindo um terno branco, competindo
com o branco de seus cabelos e barba.
Ella beija-lhe o rosto e convida-o a segui-la. _”É uma boa caminhada até em
casa, vamos? _ “Sim, mas vamos no meu carro, você precisa correr menos
menina”. Ella entra no Impala azul-ferrete de Amadeu e deslizam suavemente
pela rua pedregosa que leva até à casa della. O carro passando pelas casas do
bairro, vai chamando a atenção dos moradores que não estavam habituados a
verem um carro tão grande como aquelle. Ella em silêncio pensa no quanto
sente-se protegida sendo conduzida por Amadeu e mal cabe em si de
curiosidade para saber qual será a conversa que vai rolar com a mãe della.
Ella indica por onde elle deve seguir. Amadeu estaciona o carro na frente da
casa, olha em volta. É um bairro realmente muito pobre. A maioria das casas
são construídas de taipa e as de madeira, sustentam-se sobre palafitas porque
são invadidas pelas águas dos rios e igarapés. A casa de Ella, é um casarão
velho de madeira sem pintura. As portas e janelas estão quase caindo _ um
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vento forte é suficiente para abrí-las. Quando chove, as goteiras trazem água
suficiente para dentro de casa, para abastecer uma tina para dois banhos.
Olhar para a casa, causa tristeza. Ella é cinzenta e transpira sentimento de
abandono.
Ella entra chamando pela mãe. Amadeu olha uma sala grande cujo assoalho
range a cada passo, e onde uma velha mesa de madeira rústica, três bancos e
um cadeirão, ameaçando desabar na próxima sentada, esperam por visitantes
há anos. O Amadeu era a primeira visita nesse tempo todo, por isso o vaso de
garrafão estava sobre a mesa com flores colhidas do canteiro de Ella.
Amadeu escolhe sentar-se num banquinho _ era mais seguro.
Sofia, mãe de Ella entra na sala e cumprimenta o amigo da filha. _”Prazer, eu
sou Sofia. Esperava curiosa por sua visita, pois quero muito saber a razão do
seu interesse pela vida de minha filha. Como o senhor mesmo pode ver,
somos pobres e comuns. Logo, não entendo porque o senhor possa interessarse pela nossa vida”.
_”Eu já sabia Sofia da condição de vida de vocês. Convém pontuar para você,
que nada sobre a vida de Ella eu desconheço. Não fique impressionada com
minhas palavras, mas saiba que reencontrei um ser muito especial para mim,
na condição de sua filha. Por esta razão, eu quis logo conhecê-la,
principalmente porque sei o quanto ella pode está precisando de mim agora, e
sobretudo sei que posso ajudá-la. E sei como você, enquanto mãe, está
intrigada com a intimidade com que fallo de Ella e suas possíveis necessidades
vitais. Ocorre que meu tempo é curto e por isso preciso ser objetivo e
eficiente”. Sofia interrompe: _”Eu estou fazendo um esforço enorme para
receber tudo isso com naturalidade, mas meus princípios religiosos são meu
termômetro, e este indica-me que o senhor pode esperar algo de nós que não
temos disponível. Eu sou mesmo muito desconfiada e só assim conseguí
chegar viva até aqui _ pobre, mas cheguei sem constrangimentos. Trabalho 60
horas por semana no hospital e muitas vezes faço hora extra para completar o
orçamento do mês, e nunca nada caiu do céu. Tudo sempre foi conquistado
com luta”. Amadeu diz que entende o que Sofia está querendo dizer, sabe
precisamente como tem sido a vida dellas há quatorze anos.
Ella interrompe para dizer que vai fazer um café e fritar uns bolinhos de
chuva. Vai em direção a cozinha pensando como servirá esse café. Ella não
tem xícaras de louça, são canequinhas de esmalte branco, sua louça, e estão
gastas de tanto uso. Também não tem bandeja e nem toalhas para forrar a
mesa... não importa, ella servirá assim mesmo um café saboroso.
Amadeu conversa ainda com Sofia: _”Quando você decidiu ter esta filha neste
seu segundo casamento, você já tinha 27 anos e o pai de Ella _ Hugo _ mais
velho, com 30 anos. Eu sei porque vocês se encontraram, assim como sei
porque se separaram. Hugo é um alcóolatra, boêmio. Um artista, filósofo,
altruísta, mas um fracassado. Não amadureceu o suficiente emocionalmente
para desempenhar o papel de pai. Fugiu para se esconder atrás de uma
garrafa de tequilla deixando vocês com fome de afeto e de pão. Estou dizendo
tudo isso, para que você entenda que, efetivamente, eu sei muito de vocês,
assim como sei que Ella sonha com uma vida melhor e longe daqui. Ella tem
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construído muitos castellos nos capítulos de sua história, e sabe que pode
realizar o que sonhar porque é inspirada pela Luz, por seus anjos e mestre.
Sabe que seus sonhos são revellações. Ella sabe...”
_”Mas quem é o senhor afinal?” _ interrompe Sofia. _”Como pode saber de
tantas intimidades sobre nossas vidas dessa forma invasiva? De onde veio e
porque agora? Estou muito assustada com todas essas revellações e com a sua
familiaridade ao comentar detalhes íntimos de minha vida e de Hugo, que
chego a pensar se foi elle que contou-lhe o que me diz agora com o fim de nos
enlouquecer. Apesar, que, elle não sabe sobre os sonhos da filha, muito menos
sobre seu assim nomeado Mestre. Ella me falla de seu Mestre, dos seus
encontros quando medita nas cachoeiras, das suas intuições, mas não alcanço
o significado de nada disso. Como é que o senhor pode saber tão bem sobre
esse lado místico della?”
Amadeu tranquiliza Sofia dizendo que não conhece Hugo concretamente, mas,
o conhece profudamente. _”Também não sou um fantasma como posso lhe
parecer, sou um simples mortal, que vive por uma causa nobre nesta vida:
pelo resgate da dignidade de Ella. Vivo sob a influência do Poder Cósmico, a
sabedoria em ação que rege a vida do Homem, respeitando as leis do
Universo, logo torno-me digno de reencontrar seres com os quais perdí contato
há muitas vidas passadas. Ella é igual a mim, e veio nesta vida, após 40 anos
em trânsito, para participar do processo de resignificação dos valores dos
Homens. Posso no entanto, entender o quanto você pode estar chocada com
tudo que lhe digo. Não esperava que fosse diferente”.
Sofia estava sobremaneira confusa com os relatos de Amadeu e em especial
intrigada à cerca da natureza do sobrenatural que alí se expressava nas
palavras de um homem misterioso.
Olha atentamente para Amadeu querendo enxergar além dos gestos. Alí estava
o protótipo da serenidade por excelência ensimesmado, um ser carismático.
Faltava-lhe recursos mentais suficiente para ler esse homem moreno de olhos
negros, cabelos e barba branca, magestosamente sentado à sua frente, que
brilhava como se tivesse Luz própria. Insistia a olhar com toda atenção,
querendo convencer-se de que estava vendo réstias de luz do sol entrando por
entre as brechas da madeira da parede da sala, e não um ser reluzente como
era Amadeu. Tinha que ser reflexos do sol, senão quem estaria precisando de
um psiquiatra agora seria ella, e não só a filha. _ Pensava entre perplexa e
encantada ao mesmo tempo.
Amadeu expunha-se sem reservas quando discursava sobre tudo que sabia,
imprescindivelmente alienígena, zeloso com sua imagem polìticamente
adequada. E por precisar nivelar-se à condição humana, emprestava uma
forma física masculina, procurando justificar sua existência cultural sustentada
na imagem clichê. Mas era inevitável, sua linguagem confundia os rígidos.
Ella arrumou os bolinhos de chuva em uma cuia _ presente de um índio _
pintada à mão, forrou um paneiro de palha com um lenço de cetim lilás,
arrumou a cuia com o bule de barro para o café, as canecas e uma tigela de
barro com chá de flores dentro do paneiro e serviu um romântico chá-cafécom-bolinhos da tarde para seu amigo Amadeu e a mãe.
Ella serve Amadeu e à mãe enquanto ouve elogios pela belleza do lanche
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arranjado alí naquella bandeja improvisada em um paneiro de palha. Assim
como, o sabor do café, os bolinhos e o chá de flores, estavam deliciosos.
Enquanto comem, Amadeu pergunta à Ella como passa os seus dias fora do
horário do colégio. _”Eu nado nos rios, banho-me nas cachoeiras, medito,
escrevo minha história e cuido da casa”. E o que mais você gosta de fazer _
pergunta Amadeu. _”Da minha relação com as águas e minhas práticas
meditativas. Assim como, não abro mão das minhas horas silenciosas quando
leio e escrevo meus poemas. Passo noites e noites refletindo sobre minha vida,
escolhendo os caminhos por onde vou passar, marcando à tinta a trilha que
me levará ao encontro comigo mesma. Me olho no espelho, desenho minha
imagem idealizada, vejo na palma de minha mão as linhas do meu destino...
procuro no meu olhar, respostas para minhas perguntas”.
O sabor exótico do chá faz Amadeu sentir as palavras de Ella como se fossem
carícias em seu corpo. Sente enorme vontade de conhecer as formas de
linguagens que ella escolheu para comunicar-se com o mundo. Pede para ver
algo que ella tenha escrito.
_”Ainda não escreví muito, mas fallo muito com meu espelho, meus anjos e
Mestre,... fallo para não adoecer. Estas fallas estão sendo gravadas, para no
futuro, inscrevê-las formatadas em meu livro da vida. Hoje ainda empresto
palavras dos rascunhos de meu pai para somar às minhas, que ainda aspiram
especialidade, na tentativa de realizar uma reedição de nossas histórias numa
única. Escrevendo, encontrei uma forma prazeirosa de fallar de minhas feridas,
minhas faltas, dando voltas em meu psiquismo para não adoecer. Assim,
exercito a capacidade de encontrar significados sobre os acontecimentos que
fundamentam minha vida. E nessa prática de ler, escrever e refletir, procuro
justificar minha existência”.
_”Sei que sou irreverente em todas as minhas atitudes, fallando em particular,
dos meus afetos, sugerindo um colorido mítico quando tranporto minha
história à um lugar idealizado. Mas só posso fallar de mim se for ellaborando,
sinto-me leve e desenvolvo a sutileza transformando um grito de dor em um
sopro de vida”.
-”Eu gosto muito de um poema que escreví inspirada na postura corajosa do
Eduardo, quando correu atrás de mim até a porta do colégio uma noite em que
fui à capela rezar, para me fazer uma declaração de amor. Elle disse assim: _
“Ella, eu não sei como fazer para parar de pensar em você, desde a noite em
que dançamos no clube,... já ensaiei várias frases feitas para te dizer, mas só
consigo fallar que você é meu sol, meu feitiço, meu mel...” Este poema tem
gosto de amoras negras”.
Quero ser uma criança e ter uma esperança
ganhar uma herança e ter uma longa trança
quero cantar e buscar um caminho que vai dar no sol
lutar por um estado d’alma que me leve a mais vida
despertar meu gigante adormecido
soltar meus gritos
ser eu mesma, e dançar com você na palma da minha mão
por entre linhas da minha vida
quero poder voar perto do céu
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como uma águia
ser dona do espaço e ter a sabedoria dos pássaros
poder viver sem medos e morrer dormindo
sofrer tudo numa queda
levantar limpa
saber dividir meu pão
quero ser inocente até diante do inexorável
perder o sono pensando em você
te encontrar sem me perder
poder ser livre para fallar minhas verdades
encontrar sentido para amar de corpo e alma
ter permissão para chorar
quando a saudade ocupar o seu lugar
quero dizer que te amo nas páginas do meu livro
mesmo que eu viva só pra isso
fallar dos meus sentimentos a partir de mim
investindo em mim
ter palavras para dizer de como a vida mexe comigo
tendo olhos para ler o mundo dentro e fora de mim.
Ella fica pensativa e serve-se de chá. Diz ao Amadeu que revive todas as cenas
_ fonte de suas inspirações _ que dão vida ao que escreve, e nesse momento
sentia-se conectada com os seres da natureza que acrescenta-lhe sensibilidade
para reconhecer toda emoção de ser uma fonte de Luz. _”Eu sou assim. Digo o
que penso e sinto escrevendo ou fallando capítulos da minha história. Creio
que fallo por milhares de seres que não puderam dar significados às suas
sensações e sentimentos, e fallando, dou vida aos personagens congelados
dentro e fora de mim que justificam minhas trocas afetivas”.
Amadeu bebe cada palavra della porque gosta incondicionalmente de tudo que
ella falla. Sofia observando cada reação de Amadeu, esperando que elle diga
algo aborda-o objetivamente. _”Já é tarde, estou cansada e curiosa, quero que
o senhor diga a razão de sua visita e explique o seu interesse estranho por
Ella. É possível?” _”Sim, claro que é e vou fazê-lo agora _ falla Amadeu _ Ella
está esperando há anos por uma oportunidade para ir estudar em São Paulo,
certo?” Ella responde afirmativamente. _”Então, esta é a razão principal de
minha visita. Sei que você tem uma irmã que mora em S.P. há muitos anos e
com quem você perdeu contato há 20 anos. Também tem dois primos que são
donos de confecções de roupas femininas. Logo, eu já fiz contato com elles
avisando que mandaria Ella estudar lá por um tempo. Já tomei providências no
sentido de comprar os bilhetes aéreos para vocês, assim como, um orçamento
sobre valores para comprar roupas para todos, em especial para Ella que
passará no mínimo 1 ano lá e que enfrentará um inverno rigoroso. O valor em
dinheiro que vou destinar à essa viagem della, será o suficiente para você e
seu filho passarem 60 dias tranquilos e para ella por 1 ano”.
“Como o senhor acha que pode decidir sobre nossas vidas sem perguntar se
queremos mesmo qualquer coisa que pretenda nos oferecer, por razões
misteriosas que eu ainda não compreendí? _falla Sofia descontrolada com a
ousadia do amigo estranho de Ella. _É uma invasão de sua parte entrar em
nossas vidas crendo que pode nos comprar com seu dinheiro... quem lhe disse
que eu quero visitar uma irmã que se foi há 20 anos e que nunca escreveu-me
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uma carta para não correr o risco de ser importunada por uma irmã pobre?
Isso é muita loucura para eu raciocinar. E como é que posso sentir-me segura
de que minha irmã nos receberá com prazer,.. e esses primos que nem
conheço..ah, não sei. Essa história está mal contada... não posso decidir nada
agora. Quero receber uma carta
delles dizendo algo para que eu acredite
que isso tudo não passa de loucura de um velho presunçoso que minha filha
chama de amigo. E mais, por que Ella ficará 1 ano lá?”
Ella interrompe a catarse da mãe. _”Eu esperava por isso há muitos anos mãe.
Você lembra quando eu tinha 9 anos um dia de manhã, eu fallei que iria
estudar em São Paulo, vestir um mini saia e desfilar num carro preto pela
nossa rua? Então mãe, não era sonho de criança, eu intuia. Pronto, agora é a
hora de realizar esse sonho... eu só esperava que uma pessoa chegasse para
fazer desse sonho verdade. Só não sabia o nome delle, no entanto, o som do
nome eu ouvia algo como ama-meu-deus-dama-adeus, que juntando as peças
dá Amadeus, embora elle se nomeie Amadeu apenas. Zirah, me disse que eu
iria viajar antes dos 15 anos, assim como Papisa, prometeu-me sempre essa
viagem _ ella está sempre de plantão iluminando meus passos. Amadeu não
estaria presente hoje em minha vida se não fosse da Luz porque sou
protegida, e depois, sei que só elle pode fazer algo por mim agora. E eu
preciso viver logo esse sonho, tenho um prazo a cumprir, não impeça minha
jornada... eu não sou daqui”.
Sofia chora perplexa com todos esses acontecimentos, sentindo-se como se
caísse abismo abaixo, reconhecendo-se impotente diante do inexorável fato de
que sua filha não era um ser comum, pelo contrário, apresentava-se agora
como uma mulher madura que sabia o que queria. Lidava mal com as
estranhesas habituais da filha, mas agora, simplesmente não conhecia aquelle
ser, e para agravar o quadro, o homem Amadeu, tratava o evento sobrenatural
com uma intimidade que chocava. Causava-lhe dor ter que reconhecer que Ella
não era humana quando tratava com absoluta onipotência os aspectos dos
movimentos que determinavam as direções que sua vida seguiria. Parecia-lhe,
que Ella detinha em suas mãos o controle sobre seu destino e que apertava
com inteligência suprema os botões certos na hora certa. Isso era demasiado
assustador.
Apesar de toda catarse de Sofia, estava selado o compromisso de Ella com
Amadeu. Ella viajaria antes de terminar o ano. Sabia que seria muito
importante para sua vida, que seria uma experiência valiosa para seu
crescimento emocional, intelectual e espiritual. Depois dessa viagem, ella não
seria mais a mesma, nem sua vida seria. Tudo começava a mudar agora
Amadeu entrega um cristal rosa à Ella _ uma lágrima. Despede-se de Sofia
fallando que chegará uma carta de sua irmã antes do que ella espera trazendo
palavras amáveis.
_”Fique tranquila Sofia, eu sei o que estou fazendo e só estou aqui para ajudar
Ella a realizar o seu primeiro grande sonho. Preparem-se para a viagem em
dezembro e pensem em documentação para realizar a transferência della de
colégio. Deixem o resto comigo, creia, eu sou do bem”. _ Insiste Amadeu em
tranquilizar Sofia.
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Já é noite. A cidadezinha de Ella de 90 mil habitantes acende suas luzes para
comemorar a materialização do grande sonho de sua filha especial. O céu, em
sua magestade, enfeita-se com bilhões de estrêlas brilhando para brindar à
conquista della. Ella olha pela sua janela e encontra o olhar de Papisa
acenando sua Luz num gesto de bênção à sua filha.
Ella debruça-se na janela e chora em silêncio desejando muito que alí
houvesse alguém para poder compartilhar sua enorme alegria. Os mistérios da
noite se apossam de sua alma levando-a às lágrimas, que são, enquanto
símbolos da concretização de suas imagens mentais, sobretudo, uma
reverência ao poder que manifesta-se em sua vida.
Com sua cabeça deitada sobre as mãos, passa horas vendo sua história em
flashback como se fosse um filme, passando pelos seus olhos. Revive as
manhãs em que sentada à beira do seu poço d’água no fundo do seu quintal,
desenhava imagens sobre sua vida, arquitetando acontecimentos para seu
futuro. O futuro era agora. Tudo acontecia da forma que visualizara. _ Ella
enxergava os detalhes com a precisão de um oráculo.
Uma chuva caía devagarinho molhando a noite e regando os pensamentos
della. Fecha os olhos e pede mentalmente que Midrah segure suas mãos nesse
momento importante de sua vida onde tudo era tão fascinante e ao mesmo
tempo assustador. Intimidada diante da magnificência do Universo
presenteando-a com a realização de seus sonhos, Ella reverencia seu Mestre,
seu pai, suas mães, anjos e fadas, que sempre estiveram presentes em sua
vida conspirando à seu favor. Ajoelha-se e diz uma oração.
Meu Deus, meu Pai, minha Luz
minha vida está em tuas mãos!
Abençoa-me e concede-me tua benevolência
Acolha-me em teu reino santo
Envolve-me com teu manto
Segura na minha mão
e guia-me pelos caminhos da verdade
Alimenta meu coração sedento de amor
Permita que eu possua o Dom de perdoar
Põe Luz nos meus olhos
para que não me percas de ti
Dá-me saúde para enfrentar minhas jornadas
Afasta o mêdo de meu coração
Planta a serenidade em minh’alma!
Ella sente uma mão forte e carinhosa tocando suas mãos. Abre os olhos e vê
Midrah de pé à sua frente vestindo um manto marfim, com os pés descalços,
envolto na Luz, olhando-a com um olhar azul brilhante como a Luz de sua
aura. Elle abençôa Ella e dá-lhe de beber da água que trás num cálice de
cristal.
Ella vê surgir à sua frente um imenso rio colorido por embarcações movidas à
vela, transportando pessoas que carregavam nas mãos cestas de flores e
frutos. Um som de violinos envolvia aquellas pessoas _ e mais que o vento _
conduzia as embarcações, fazendo-as deslizar harmonicamente sobre as águas
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do rio. A cena que Ella assistia, era um culto aos Deuses das águas em Madras
na Índia, e o rio era o Krishna. Os homens e mulheres vestiam-se com mantos
coloridos longos e as mulheres traziam um véu envolvendo o rosto e cabeça.
Alguns homens tocavam tambores.
De repente Ella é conduzida pelas mãos de alguém ao interior de um santuário
_ aposento circular dotado de teto abobadado. Pessoas estão fazendo
prostrações, como numa prática meditativa. Uma mulher vestindo um manto
amarelo, exibe uma gota _ um cristal _ azul brilhante entre dois grandes olhos
da cor de mel, e canta mantras. Olha no fundo dos olhos de Ella e diz: _” Meu
nome é Kalinka”.
Midrah reafirma sua presença nas meditações de Ella, passa as mãos sobre
seus olhos e desaparece na Luz que o trouxe.
Ella é acordada por Sofia às 5 horas da manhã para ir pegar pão e leite na
padaria. Ella está deitada no chão sobre um lençol branco vestindo seu pijama
bege com listras azuis, sentindo um agradável torpor em todo corpo. Sofia vê
uma taça de cristal sobre a mezinha de cabeceira e fica curiosa para saber
como aquillo viera parar alí. _”É um cálice mãe,... ganhei de meu Mestre” _
falla Ella sonolenta. Levanta-se num pulo vestindo uma roupa para ir correndo
à padaria. Pára olhando para o cálice e revive o acontecido a noite passada.
Pega seu símbolo sagrado com as duas mãos e o acaricia junto ao peito.
Guarda-o com o cristal rosa que ganhou de Amadeu em sua caixinha de
relíquias. Sai correndo para atender o pedido da mãe que já está atrazada para
trabalhar.
Sòzinha agora, ella toma seu café e pensa em sua voinha e em suas palavras
diárias como uma oração ditas à Ella, ainda vivas em sua mente: _”Ella, você é
uma pessoa muito especial. Nasceu entre nós para nos ensinar o que é a vida
com sentido profundo. Eu sei que você conseguirá alcançar todos os seus
sonhos se exercitar seu Dom de crer que o impossível é possível. Você partirá
para longe e edificará o nome da sua família _ seu pai saberá de suas
realizaçoes e exultará. Você é um ponto de Luz brilhando entre nós,
iluminando nossas vidas e de seus antepassados. Nunca desanime diante da
dor, não desacredite diante das dificuldades, são desafios pelos quais escolheu
passar. Você transcenderá... falle a língua dos sábios _ A VERDADE!”.
Ponto de Luz
Eu sou a soma dos meus desejos
Sou a verdade dos meus sonhos e a cristalização de minhas inspirações
Sou como sou, mais confiante na vida
cultuo a verdade, o equilíbrio e respeito cada átomo que me envolve
Valorizo o ar que respiro
conspiro à favor da fonte da vida bebendo da sagrada água e dobro-me frente a
perfeição da natureza
Deslumbro-me a cada nascer do sol como se fosse a primeira vez
Me encanta o canto dos pássaros
Fascina-me a ousadia da lua brilhando no céu quando já é quase dia
E que sempre brilha mais se estou apaixonada
Fico feito uma criança a contar as estrêlas no céu nas noites de
primavera,levando-me às lágrimas cada estrêla cadente
porque sei - mais um pedido meu será atendido
Eu creio!
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Meu corpo se arrepia ao banhar-se no mar e ganha transperência
Causando maior sutileza no sorriso generosamente plantado em meus lábios
Se ainda douro-me ao sol, insinua-se a malícia pelos meus poros
E fico assim com os olhos em festa
Acorda em mim uma inesgotável feminilidade e uma forte vontade de correr
riscos
De andar na linha
estar presente
vestir uma pele de seda e fallar a língua dos sábios
A verdade
De comungar com a natureza, com seus ícones
Porque sei, porque piso com respeito cada pedra que surge em meu caminho e
não me alimento do passado
Os mistérios da noite me despertam para o pecado
minha maior virtude
Deixando-me disponível para viver qualquer emoção que valha a pena
Porque sou mulher e sou assim
Renasço a cada dia e reformulo meu script frente a constatação de que sou um
ponto de Luz no Universo
Em Evolução!
Desperta de suas reflexões para arrumar a casa e deixar alguma comida
pronta para o almoço, logo depois pegará uma carona com o entregador de
leite da fazenda que há em Teotônio, às 10 horas e retornará ao meio-dia para
casa. Faz as contas mentalmente do tempo de que dispõe e certifica-se que
chegando em casa às 12:30h dá para tomar um banho e chegar em tempo no
colégio.
Chega em Teotônio indo direto para a capela. Senta pequenina no banco de
madeira olhando para St° Antonio querendo dizer alguma coisa, mas as
palavras não saem. Nem os pensamentos existem mais, apenas o vazio e o
silêncio místico da capela construída há cem anos pelos ingleses, que ainda se
conservava intacta. Ella fica contemplativa olhando a aura do Santo _ é
dourada e expande-se envolvendo todo o ambiente interno da capela. Sente
uma presença atrás della que vem chegando delicadamente. Olhando
reconhece Kalinka, a mesma mulher que viu no santuário, vestindo uma manto
amarelo que trás uma gota de Luz azul brilhante entre os olhos. Kalinka sentase ao seu lado e falla que esteve ontem com Midrah durante a meditação de
Ella. _”Não se assuste, eu vim hoje aqui para confirmar-lhe que você sabe
quem sou eu. Sou uma encarnação sua há 1200 atrás na Índia, e que por isso
você desenhou tantas vezes o meu rosto e assinou Kalinka. E esta marca que
você trás hoje entre os olhos, é um sinal dos filhos da mesma casta, mesma
dinastia. Você não está sòzinha e nunca esteve _ falla Kalinka com Ella. Mas o
motivo real de minha presença agora em sua capella é o de fazer uma
reaproximação de um ser muito significativo em sua vida, que viveu com você
há 1200 anos atrás também na Índia. Elle era um sacerdote egípsio que
suicidou-se tomando veneno ao perder seu grande amor.
Este grande amor fui eu, que é você hoje e portanto está escrito nas estrêlas
parte de sua história que não dá para não reviver, há que se dá um resgate
desse amor, mesmo que leve 25 anos para acontecer nessa encarnação. Maher
_ é o seu nome no passado, hoje tem 12 anos e nasceu há alguns metros de
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você aqui nessa aldeia. Aos 22 anos elle encontrará com você, no entanto, não
será reconhecido. Partirá para longe por longos 16 anos, retornando ao Brasil
para encontrá-la num momento especial na vida de ambos”. _ Parte Kalinka na
Luz que a trouxe despedindo-se num abraço aveludado.
Surge de um ponto de Luz de repente um menino de pele clara com um olhar
profundamente brilhante e expressivo, tão doce quanto o olhar de Midrah, seu
Mestre. Trás no rosto um sorriso cálido e tímido, mexendo com o coração de
Ella. Tem nas mãos um cálice cheio de vinho tinto, dá de beber a Ella dizendo
que não o tome gelado, mas que o tome sempre. E diz: _”Este é feito da uva
da melhor qualidade, o alimento das Deusas. Sendo você minha Deusa,
tratarei um dia para que nunca te faltes uvas maduras, como meu amor por ti.
Para que tu me reconheças mais rápido, chamo-me August”.
Ella bebe até a última gota do vinho e sente um prazer único, algo como se
estivesse sendo possuída por uma paixão voluptuosa. Toca as mãos de August
e as encontra úmidas e trêmulas. Elle passa a mão em seu rosto e falla:
_”Como viverei sem o teu calor e tua Luz por tanto tempo? Preciso de tua
ternura como o ar que respiro, de tua existência para sentir-me amado. É no
teu olhar que enxergo todos os meus sonhos, tu me olhas com o olhar que há
dentro do meu _ com os mesmos sonhos. Minha vida está em tuas mãos, me
vejo através de ti, tu mergulhas em mim. Quero ser vital para ti, quero teu
sorriso iluminando meus passos, tua voz ditando palavras sábias para eu
encontrar significados para minha existência”.
August despede-se de Ella pedindo que guarde consigo este cálice, símbolo
desse momento que se repetirá em 26 anos, quando um novo símbolo
consagrará o seu retorno.
Ella caminha em direção às pedras da cahoeira, despe-se e banha-se nas
águas geladas, alcançando com largas braçadas o rio que corre sòzinho sem
pressa. Sente-se eletrizada, cheia de energia e nesses momentos, só com as
águas ella podia trocar, assim como toda alquimia de sua vida, se dava no
encontro com as águas daquelle rio.
Nadando nas águas geladas sente seu corpo cheio de calor quando lembra do
encontro místico que viveu na capela com Kalinka e Maher (August),
pensativa
lhe ocorre: _”Será que alguém acreditará nas minhas histórias quando um dia
eu contá-la? Não importa, assim mesmo vou contá-la ou não quebrarei meus
tabus, e por outro, quando não fallo, adoeço. Para além de querer, devo
fallar, afinal, a história não é só minha... também compartilho de um
inconsciente coletivo. E estas palavras serão minhas ou empresto de alguém?
Sempre emprestamos do Universo, embora reconheça onde me encontro no
discurso, Midrah me lembra que sou sábia essencialmente”.
Retorna de suas reflexões, veste-se ràpidamente para pegar sua carona de
volta para casa. Passa pela capela para ver se deixou algo pra trás. Encontra o
cálice sujo de vinho tinto, enrola-o no lenço que prendia seus cabelos e sai
correndo para a estrada pensando no quanto é difícil viver alienìgenamente
tendo que enfrentar desafios mágicos que por um fio, não entorta sua cabeça.
Pensa em como seria se fosse um ser comum...
Uma composição nasce em sua mente enquanto volta para casa pensando em
August. Terá tempo de passar para o papel antes que esqueça, rascunha no
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papel de pão. Escrever sobre o que está sentindo, não só é um recurso usado
para fallar uma linguagem emocional, mas para além disso é uma prática que
perpetua suas experiências. E este reencontro com August, jamais será
esquecido! _”Impossível apagar teu sorriso de criança dos meus olhos. Ainda
quando os fecho, vejo você olhando para mim como se eu fosse tua Deusa”.
_Falla baixinho para não assustar o leiteiro que já olha torto para ella.
Aquelle
Aquelle que noutros dias eu só via nas minhas poesias
agora sei que já existia, que um dia viria
eu presentia, eu queria
mas eu temia, porque não sabia
se merecia...
aquelle com quem tanto sonhara
se aproximava e eu não acreditava
não notava sua presença
nos acontecimentos da minha vida
nas mudanças dos dias, na minha força que crescia
eu não percebia meu sorriso no olhar
na coragem de mudar
de saber esperar
aprender, acreditar
eu não via nas entrelinhas
a mensagem que resumia minhas dúvidas
na própria poesia.
Entra em casa correndo para tomar um banho, comer algo, arrumar seu
material escolar e sair voando para o colégio.
Ella está em estado de graça. Passa todo o tempo divagando e pouco presta
atenção nos assuntos das aulas. Está contando os minutos que a separam do
dia em que embarcará para sua primeira grande viagem. As provas finais do
colégio já foram marcadas _ faltam 3 meses para dezembro chegar, dois para
as provas e 20 dias para sua estréia no teatro.
No fim do dia corre para a praça para tomar um tacacá, encontrando o Amora.
Elle aproxima-se para dizer a ella o quanto irradia alegria. _”Aconteceu algo de
especial com você hoje?” _”Sim _ responde Ella _ estou crescendo e
alcançando meus sonhos. Os Deuses estão conspirando a meu favor Amora.
Agora, mais do que nunca, creio que posso redirecionar as linhas da minha
vida tornando-a um milagre. Sobretudo, sei que posso edificar meus castellos,
plantar minhas árvores, gerar um filho e escrever meu livro”.
Amora olha intrigado para ella com medo de reconhecer naquelle discurso,
uma mulher madura e consciente do papel que representa para o mundo onde
vive, ou lamentàvelmente, ter que enxergar nella apenas uma jovem
sonhadora e criativa. _”Ou ainda, pensá-la como uma criança perturbada que
vive na solidão criando estórias fantásticas para chamar a atenção do mundo
para si. A falta do pai, deve ter-lhe produzido um distúrbio psicopatológico,
uma estranheza qualquer. Ella não é normal”. Pensa Amora e diagnostica com
a competência de um paramédico leitor assíduo do dicionário de psiquiatria.
Ella toma seu tacacá e pensa se este homem a enxerga realmente. Lembra de
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August e sente um frio na medula. Fecha os olhos e vê seu olhar negro
profundo, seu sorriso de criança...”Isto me faz bem, alimenta minh’alma” _
pensa.
Aquelle olhar do Amora procurando algo de errado nella a magoava, melhor
não ver. Até porque, ella ouvia os pensamentos delle inferindo-lhe uma
patologia mental. Ella lia os pensamentos das pessoas, na medida em que os
mesmos fossem comprometidos por julgamentos preconceituosos que
imprimisse estigmas, ameaçando a individualidade e liberdade de expressão
della.
Joga cuia vazia onde tomou seu tacacá na bacia d’água e sai rápido dalí. O ar
está ficando pesado, ella tem que fazer força para respirar. Amora pergunta
onde ella vai correndo assim. _”Quero fallar com seu tio Cruca...” _”Vá
procurá-lo em casa delle, eu vou à igreja rezar para afastar um demônio de
perto de mim. Eu sou humana às vezes, embora não pareça”. _ Grita Ella e
vai.
Elle fica sem ação se perguntando quem será o demônio (?).
A igreja está vazia. Padre Chiquinho está rezando a novena para poucos. Ella
senta bem na frente para olhar o padre santo de perto. Reza suas orações e
medita. No final pede a bênção do padre e ouve delle mais uma vez, que ella é
da Luz, apenas precisa aprender a viver polìticamente correto no mundo dos
impuros para não incorrer no erro de ameaçá-los com sua postura de
inabalável diante dos atropelos da vida, por ser confiante no Poder Divino que,
quando se espera nelle, tudo se pode. _”Não revele ao mundo que você tem
intimidade com as Leis do Universo, e menos ainda, deixe que percebam que
tem sob controle os movimentos que determinam as direções que sua vida
seguirá. Você será mal interpretada pelos rígidos...permita que o Poder
Cósmico _ regente da vida do Homem, inspire-lhe palavras apropriadas ao
fallar”. _ Aconselha padre Chiquinho.
Em casa, após seu banho noturno, faz um chá de rosas para tomar antes de
dormir. No quarto sobre seu manto onde prostra-se para meditar, está o cálice
sujo de vinho que recebeu de Maher (August). Sente uma onda elétrica
conectando sua mente com algo muito sério, mas que lhe faz bem. Respira
fundo, guarda o cálice junto com o outro que ganhou de Midrah em seu baú de
memórias.
Bebe o seu chá ouvindo uma sinfonia dos grilos e sapos habitantes das águas
paradas que circulam sua casa. Vai ficando cheia de sono enquanto canta
mantras. Concluídas as voltas compromissadas em seu mala, enrosca-se no
seu manto e adormece, tendo o sono vellado pelas estrêlas que iluminam a
noite, sua fiel companheira.
Outro dia nasce em sua vida, e tudo começa como sempre: _ vai pegar o pão
e leite, toma café com a mãe, arruma a casa, estuda, faz o almoço, isola-se
em seu santuário o tempo que é possível, nada e vai ao colégio.
Os anos passam e a vida de Ella vai abrindo caminho no tempo, conseguindo
derrubar os tabus e questionar o absolutismo. Nada é impossível quando o
homem vive em harmonia com as Leis do Universo _ uma das máximas na
existência della _ assim sendo, ella colhia e saboreava os frutos maduros.
Entendia que não era através de leis e tradições instituídas polìticamente, que
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se adquiriria o verdadeiro conhecimento, mas, essencialmente isso se dava
através do despertar do Poder Divino que existe potencialmente em nosso
cérebro, realizando permanentemente milhares de conecções com um centro
inteligente do Cosmos, gerando comunicações excepcionais com o sistema
inconsciente coletivo. Este princípio _ ensaio de um pensar transpessoal _
fundamenta-se na Lei Universal que demonstra haver uma sutil vigília
constante do arquétipo do pai amoroso, durante toda a caminhada do filho
para acender a Luz quando houver trevas, sem no entanto, negar-lhe o direito
inerente de exercer o livre arbítrio se não quiser enxergar o óbvio. O homem
tem o direito de construir sua vida edificada com a sabedoria Cósmica _ na Luz
_, assim como pode escolher viver apenas no desejo, tropeçando nos
escombros de sua falência narcisista apostando na sua onipotência, como
sendo arma suficiente para enfrentar a missão mais perigosa e delicada
destinada ao Homem, que é viver. Enrijecendo se se deixa aprisionar em suas
próprias armadilhas emocionais, perece frente aos impedimentos psíquicos
inconscientes, não sabendo como dar voltas no sistema, metralha o Homem a
si mesmo, elegendo Deus como o culpado quando precisa depositar na conta
de alguém seu fracasso, produção e resultado de suas crenças tortas.
Sobretudo, se elle se nomeia poderoso para julgar Deus certo ou errado a
partir de uma medida medíocre e insana, fica cego e não vê a distância
enorme que o separa da verdade _Luz _, colocando-se mais próximo de seu
abismo pessoal. Este mergulho em seu limbo existencial, o remete à inevitável
peregrinação por entre entulhos dogmáticos submetendo-se à infalibilidade da
ignorância maquiada de mestra _ as trevas _ o que denuncia a existência
subjacente, de uma fallácia que está a serviço do culto à impossibilidade. Por
consequência, condena-se o Homem ao fracasso e à dor, resistindo ao gozo,
fatalizando que nasceu para sofrer, sem alguma possibilidade de questionar a
sua postura emocional e espritual dentro das relações intrapsíquicas e objetais,
num contexto reflexivo, condição sine quã non para rever-se.
Essas
insistências fatalistas, acabam por dar certo, porque o inconsciente é mágico.
Elle faz acontecer aquellas expectativas temidas e as desejadas também. Este
processo existêncial, fundamenta as origens das chamadas punições divinas,
responsáveis pelas agruras que submete ao Homem à condição de infelicidade.
_”O poder Cósmico que rege a vida do Homem _ pensa Ella. O Homem pelo
Homem: Uma obra prima de Deus em processo de evolução”. É assim que ella
define o Homem.
O dias na vida de Ella passam meteòricamente o que facilita seu processo de
espera pelo beijo do príncipe encantado, que a transportará à um mundo novo
tão sonhado por ella.
Ella sentia-se meio cinderela, meio bela adormecida vivendo um conto de
fadas escrito por ella mesma, sendo ella própria sua fonte de inspiração. Seria
eleita a menina dos olhos de um ser especial e seria investida de um poder de
se tornar vital para a existência do outro. Custasse o que custasse, ella seria
desejada, notada, valorizada, idealizada, e viveria para cumprir a melhor parte
de sua profecia autorealizadora. Haveria de ser assim, ella não tinha o direito
de perder mais nada para além do que já perdera, por pelo menos 30 anos.
Tivera sido extremamente sofrido realizar o luto pela perda do pai, mesmo
muitos anos depois de sua partida. Sonambulizante, penou em melancolia por
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muitos anos impedida de investir afetivamente noutros objetos de amor. Até
que, autorizou-se a prescindir do mito do pai, recolhendo-se para lamber suas
feridas narcísicas, conquistando o direito de enxergar a falta como renúncia à
um projeto fallido irremediàvelmente, para só então, poder investir noutros.
Tornava-se imprescindível acreditar que seria assim, que seus sonhos não
morreriam, que ella encontraria as portas de saída. Que não seria enterrada
com seus mortos _ não em vida!
Precisava garantir-se de que não se esqueceria afogada numa banheira, que
ao se socorrer quando o barco virasse, estaria se dando uma oportunidade de
conquistar sua liberdade psíquica. Que poderia viver uma vida com lucidez,
vivendo por uma causa nobre, não por uma lenda.
Esta certeza de ser uma missionária à seu próprio serviço, simplificava
sobremaneira sua existência, de modos que, seria à ella mesma que prestaria
contas dos suas ações. Sendo ella mesma sua liberdade, sua prisão,... e
deveria à ella mesma, seus sucessos e seus fracassos, se ellaborasse suas
vivências familiares e prostrasse-se diante do Divino.
Ella passa na cafeteria à tarde para encontrar Amadeu e contar-lhe que estréia
no teatro do colégio dalí há 3 dias, para um público esperado de
aproximadamente 200 pessoas ... _”Será num sábado à noite às 20 horas,
venha me assistir”. _convida Ella.
A história que é contada nesta peça, é baseada num fato real, capítulo da
história de uma mulher, determinada pela escrita desde pequena, que através
dessa prática, explora um Dom para fallar dos seus sentimentos sem ser
policiada. Só assim conquista um espaço no mundo onde a única coisa que
podia realizar em liberdade, era ler, escrever, tendo como meta desenvolver
outras formas de linguagem, explorando outros infinitos símbolos.
Tereza, a personagem da história, é acometida de aguda crise existencial, que
a paraliza diante de um pedido de uma editora para ella escrever um romance
temperado com misticismo e ralidade. Ella, Tereza, é jornalista, mulher
madura, divorciada, de bem com a vida. Já andou por boa parte do mundo
desde seu nascimento graças ao seu pai diplomata e uma mãe escritora
consagrada, que sempre viajou por conta de seu trabalho. Hoje, Tereza com
42 anos, duvida que seja talentosa o suficiente para escrever um romance,
ainda mais após ter lido todas as obras da mãe. _”Será que mamãe aprovaria
meu jeito de ler o mundo? Será que terei o direito de pisar nos mesmos
lugares onde ella pisou? Não! Não serei capaz de corresponder ao esperado
pela editora e o público me classificará de medíocre... a editora deve está
fazendo este pedido a mim pelo meu sobrenome, não porque eu seja de fato
uma boa escritora. Não entendo..” _Desabafa com um amigo literato.
Chora, debate-se e corre em busca de socorro com seu analista para trabalhar
o medo que sente de estar competindo com a imagem da mãe idealizada e
perpetuada como soberana. Revirando seus sintomas, clareia em sua
consciência, a marca comprometida da imagem de um pai brilhante e ausente,
que a deixou seduzida numa estação esperando por um trem que nunca virá.
Após deprimir como um recurso possível para sair da culpa e entrar na raiva,
arrisca enfrentar seu gigante adormecido e toma coragem para rever seus
manuscritos esquecidos no fundo de uma estante desde sua adolescência, para
ensaiar uns rascunhos sobre a arte de fallar sobre o que é viver, explorando
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infinitas formas de linguagens. Começando assim, a acostumar-se com a idéia
de que tem muito para contar, deve fazê-lo e decide que pode escrever um
romance. _”Escrever é um exercício mental que proporciona-me a
oportunidade de explorar uma existência em seu sentido mais amplo, o que
me permite chegar perto de desvendar meus próprios mistérios. Ao dar vida a
uma personagem, empresto minhas experiências a sua dinâmica, e assim,
parte de mim vive no romance, de uma forma ellaborada”. Assim Tereza define
o ato de escrever como sendo uma prática biológica e emocional.
Tereza começa escrever uma história, onde a cada passagem, sente as dores
de um parto dando vida e movimento a um personagem, que antes do fim,
reconhece ser ella mesma. A história se dá no passado, mas ella vivencia cada
passo no presente consciente que está fallando della. O enredo faz todo
sentido com sua realidade de vida, onde a prática de ler e escrever sempre foi
uma necessidade orgâncica e mental. O título de seu livro é Quando não fallo,
adoeço...
_”A peça leva o mesmo nome do romance e eu interpretarei a personagem
Tereza. Isto é maravilhoso, me dá um frio no estômago, mas estou pronta
para viver a aventura de fallar uma linguagem sofisticada que me deixa inteira
mobilizada emocionalmente. É curioso como muito do que ella diz, parece com
o que eu digo. Esta oração é o resumo de uma existência num gesto amoroso”.
_”Leia Amadeu, e me diga se não tenho razão quando digo que ella é
profunda”. _pede Ella.
Minha oração
É pra mim que eu vivo
é por mim que eu cresço
só por mim sou capaz de mudar, de acertar
de cancelar falsas promessas.
Minha meta sou eu
só eu sei onde meu horizonte vai dá
onde meu barco vai ancorar
só eu vejo minha hora chegar.
Quando decido aonde ir
com quem ir
sei que sei bem se posso chegar
se pode dar em nada
como posso ser melhor ou pior
pois meu referencial sou eu!
Meu juiz são meus sentimentos
se consigo sentir
estou certa
se não, a senteça reta
me condena às profundezas de minha escuridão
que pode durar um dia ou uma encarnação!
É pra mim que presto contas
sendo eu mesma minha liberdade
minha prisão...
Só eu posso me socorrer se o barco virar
conto apenas comigo
e colho de mim meus próprios frutos.
É de mim que espero as maiores atitudes
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e as melhores soluções
também cultivo em mim
minha maior virtude, o perdão
e guardo pra mim.
É comigo que fallo a língua dos anjos
é pra mim que componho meu melhor discurso
e me reservo o direito de escolher
a música que vou dançar.
O melhor de mim, guardo pra mim
e devo à mim, meus melhores momentos...
É por mim que os sinos dobram
meu ponto de equilíbrio, sou eu
nasce em mim todos os caminhos que andei!
Resgasto em mim toda sabedoria do Universo
tornando-me uma obra prima de Deus
despertando em mim o brilho do renascimento
que renova minha missão.
E sobretudo, sei que sou minha cruz
minha libertação
e como a própria natureza:
vulnerável e imbatível
virutosa e pecadora
mel e fél
Luz e sombra
Mas eterna como uma oração!
_”Diga-me se não é linda essa oração Amadeu? Quer saber mesmo? Eu vou
me sentir especial interpretando a personagem Tereza. Até porque, me
identifico com sua postura , seu caráter, seu jeito de ler o mundo. Quero ser
uma mulher inteira, que se questiona, cresce e escreve um livro,...como ella.
Bem, espero você na primeira fila do teatro para me ver está bem? Agora vou
correndo para casa estudar para as provas que se aproximam. Beijos...”. Pega
seus textos e sai voando em direção à sua casa.
A noite chega mansinha vibrando delicadeza para acolher Ella num abraço de
veludo como o colo da mãe. Ella sente a presença de um colo amoroso e se
entrega aos prazeres de um banho de ervas gelado sem pressa.
Reflete horas olhando-se na água da tina, sobre as escolhas feitas para sua
vida, sobre o lugar que o amor de um homem ocuparia em seu universo de
expectativas. Vê várias imagens surgirem e apagarem-se sem sentir nada
além de curiosidade. _”O que representam essas caras masculinas olhando pra
mim? _pergunta-se. Por que não sinto nada ao vê-las, se estou agora
questionando o lugar que o amor ocupará em minha vida? Será que tenho
medo de pensar na possibilidade de envolver-me com alguém?” Perdida entre
tantas imagens, vê surgir a imagem idolatrada de Hugo _ seu pai _ pele da côr
da neve, olhos e cabelos negros, dentes brancos e perfeitos como se fossem
esculpidos. Olha pra ella com um olhar carregado de pedidos implícitos, onde
procura reafirmar uma promessa sedutora: _”Serei eternamente seu pai”. Ella
fica seduzida pela imagem carregada de mensagens afetivas escravizantes, e
mais uma vez vive a esperança de que seu pai voltará um dia para ocupar o
lugar ainda vazio desde sua partida. Aflita para não deixar escapar a
lembrança do pai, congela a imagem num espelho d’água e escreve com sua
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mão uma reverência: _”Bendita seja tua imagem meu ídolo!”. Assim, tenta
gravar em seu mundo de representações, o modelo de pai que deseja ter.
Volta de sua meditação, enrola-se na toalha, passa pelo quintal, procurando na
escuridão da noite, lugares seguros para pisar. A chuva rápida que caiu
enquanto banhava-se, deixou o chão escorregadio. Colhe do seu canteiro de
flores umas folhas de hortelã para fazer um chá com amoras antes de dormir.
Veste seu pijama de listras azul e bege, aconchega-se no seu manto tomando
seu chá enquanto falla com seu Mestre. Canta seu mantra e adormece olhando
a bendita imagem do pai.
Ella madruga para chegar antes do tio Cruca sair de sua casa, para pegar um
cavalo emprestado para ir a Teotônio. Faz um lindo dia ensolarado, com um
tom de amarelo dourado que brilha como ouro. Os raios do sol brincam de
enfeitar o olhar enigmático de Ella, deixando-o azul dourado, e tinge sua pele
morena tornando-a macia como seda, exalando um cheiro que sugeria um
encontro amoroso e dava para sentir o gosto de jabuticabas maduras em seu
hálito.
Banha-se na cachoeira, mergulha nas águas do rio sentindo o poder que esse
momento sagrado lhe despertava. Sentia-se viva, cálida, livre e confiante em
si como Fernão Capelo Gaivota. Senta-se numa rocha para olhar os peixes
nadarem. Pensa no quanto é significativo esse seu encontro habitual com a
natureza, e sente uma melancolia quando lembra que estará longe desse lugar
em breve. Assusta-a saber que renunciará a alguns prazeres vitais para sua
vida em troca de conquistas privilegiadas por um modelo de vida desejado por
Ella, onde disciplina, dedicação e excelência, serão regras essenciais para
tornar possível a realização de seus sonhos. Pagará um prêço alto para andar
pelos caminhos desenhados desde a infância, carregados de promessas onde
as mudanças resultarão em crescimento com dignidade e arrojo. Por tudo isso,
escolhe renunciar à segurança da intimidade do convívio com a natureza, para
jogar todas as fichas numa busca de um mundo diferente, que há tempos é
seu virtualmente. Não seria difícil familiarizar-se com o novo, bastaria tempo e
investimento afetivo.
_”Há que se ter coragem para fazer escolhas e estas, implicam
inevitàvelmente, em vivenciar o luto pela morte de um projeto para se poder
investir noutro. Braveza de renunciar ao útero _ lugar seguro e sagrado _
como condição sine quã non para poder crescer privilegiada por conquistas
verdadeiras e valiosas”. Pensa Ella enquanto veste-se para ir meditar na
capela.
Senta-se no primeiro banco da capella, bem perto de Santo Antonio para olhar
no fundo do olho delle. Vem-lhe uma vontade enorme de cantar seu mantra
OM MANE PADME HUM. Fecha os olhos e sente o silêncio envolvendo-a
enquanto canta 108 vezes o mantra que no mínimo, desperta a compaixão no
coração de quem o canta com respeito.
A prática meditativa com mantras, transforma a energia do futuro em presente positiva. O
som do mantra desoprime o coração e ilumina o cérebro. Na meditação, nossas dificuldades
particulares cedem lugar a um sentido de confiança e prazer. Surge uma nova mente,
portanto uma sensação de calma e leveza, que ecoa por todas as nossas atividades, como
um riso. O mantra é uma pedra mágica que transforma e desperta o ser humano. O poder do
mantra (proteção da mente), deriva do fato de que a combinação dos sons e seus
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significados no original, contêm uma força divina desenvolvida e conhecida pelos seres
iluminados que estruturaram as sílabas no passado.
Durante sua meditação, vem à sua mente a imagem de August sorrindo como
uma criança e olhando com um olhar misto de esquilo e coruja. A vivacidade
do esquilo e a sabedoria da coruja _ “meu animal guardião segundo os
ensinamentos do meu Xamã”. August veste uma camiseta branca, uma calça
jeans, e trás nas mãos muitas decepções produtos de um coração que bate
cansado, produzindo uma poeira que encobria seus sentimentos mais nobres.
Ella sussurra uma canção que está nascendo desse encontro della como o sol
interior e August:
Onde encontro uma Luz assim meio amarela querendo brilhar, onde?
Já passei sob o arco-íris e quis muito ter um só raio daquelles para me enfeitar
pra você
Quero teu olhar me dizendo que sou aquella Deusa dos teus sonhos de menino
Se você olhar pra mim, vai ver uma Luz amarela-dourada aqui no meu olhar de
menina que se faz mulher por você
Que será melhor, no dia em que alcançar um raio de Luz do arco-íris
Sendo meu este raio de Luz dourada, meu ser se enche de vida, de côr e faz
viver tudo que toca
Deixa eu te tocar, posso te fazer viver
Iluminar teus olhos encontrando com os meus, tornando possível uma promessa
de amor
E aí, o coração pode descansar
Deixa eu tentar, deixa...
Deixa o tempo passar
Deixa correr toda água do rio de volta pro mar
Deixa eu te amar
E a poeira que encobre o brilho do arco íris no teu olhar, será lavada com a água
desse oceano de amor
Quando você me olhar!
Chega em casa em cima da hora de ir para o colégio, mas acha tempo para
poder escrever a canção que fez para August hoje na capela.
Pega seus livros, os textos da peça que está estudando para sua estréia
sábado, uma cajarana para o lanche e dispara em direção ao colégio.
Após as aulas, desce para o teatro onde terá algumas horas de ensaio final
antes da estréia.
Dentre as fallas de Tereza, personagem que dá vida a esta obra dramatúrgica,
Ella sente uma estranheza ao interpretar as cenas que passam-se no lugar
mais crítico da história, revellando um estado depressivo della, a beira de
um colapso emocional, durante sua trajetória ao escrever o seu primeiro livro.
_”Esse livro é o resultado de uma crise feita de insônias, após pensar muito
como faria para esvaziar-me emocionalmente contando minha história. Eu quis
rever minhas crenças e minha postura filosófica frente ao mundo, procurando
resignificar meu script de vida. Tenho mêdo de dizer coisas simples, como as
que estou sentindo agora _ preciso viver um grande amor antes de morrer!
Não sei se considero o amor ultrapassado ou se sou egoísta e por isso não vejo
o outro. Sobretudo, sei que não quero ser identificada através das palavras
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que articulei para fallar de um personagem que pretendia ser imaginário, por
achar perigoso me mostrar da forma que sou: _Docemente romântica”.
Com o coração partido interpreta o texto como se fosse della:
Eu não posso esperar o amanhã chegar, meu tempo é curto e parece que
não passa
O caminho que percorrí já virou rocha e ainda não cheguei onde queria
Meu passo é largo, mas os pés pesam e o vento me empurra pra trás
Meu coração ficou lá no futuro e meus olhos fixam-se na eternidade
Vendo cada pequeno detalhe da vida que passa, penso que nascí para ser
melhor
Mas o mundo me entorta e minh’alma pede clemência
Renascer é viável
Pode ser
Quero minha vida que ficou em algum lugar!
Uma carta da tia de São Paulo chega e Ella lê com alegria. A tia diz que está
esperando-as para passarem o Natal juntas. Informa que recebeu um cartão
de Amadeu explicando as razões porque Ella estava indo estudar por um ano
lá, fazer um curso técnico e voltar para casa. Para Sofia, umas palavras
amáveis assim como: _”Vou gostar muito de reencontrar você após 20 anos de
silêncio. Venha sem receio, estamos esperando para recebê-las. Eu, meu
marido Paulo e minha filha Julia”.
Sofia fica aliviada e começa a encarar o passeio como uma atividade normal,
apesar do fato de lhe parecer ainda muito estranho o jeito como esse Amadeu
apareceu oferencendo um presente desse tamanho para Ella. Mas assim
mesmo, já começa pensar em como arrumará uma licença do Hospital para
ausentar-se por 2 ou 3 meses. _”Vou formalizar um pedido de licença à minha
diretora logo no começo da semana”. Decide-se Sofia.
_”E as roupas Ella, o Amadeu fallou com você alguma coisa? Já escolheu as
peças que vai levar na viagem? Eu não quero nada mesmo, até porque não
quero ser cobrada mais tarde. E quanto a sua manutenção enquanto estiver lá,
elle já formalizou como fará? Vai mandar para a conta do tio Paulo um valor
por mês? Você leva algum dinheiro com você,...?” Sofia está ansiosa e
preocupa-se com detalhes.
_”Segunda-feita, elle vem trazer as malas com roupas e sapatos. O dinheiro
para a viagem também entrega-me já e os bilhetes elle leva consigo quando
for nos levar no aeroporto. E há cada 2 meses, mandará um valor para a conta
do tio Paulo para meus gastos com o básico. Em seguida mandará uma carta
com o recibo do depósito bancário para eu ter controle sobre os valores
destinados à mim. Uma parte do dinheiro, será para tia Beth cobrir seu
orçamento com alimentação mensal. Parece que elles não são ricos e vivem
bem apertados. Tranquilize-se, dará tudo certo mãe”. Encerra Ella.
Mãe e filha sentam-se para um lanche da tarde _ como nunca acontecera. Ella
frita umas bananas da terra e cobre-as com canela e açúcar; um suco de
graviola, um delicioso café passado na hora, está pronto o lanche.
Sofia falla de sua alegria por poder participar do sonho da filha e confessa
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reconhecer que esse é um presente de Deus pra ella. Mesmo assim, sentirei
sua falta; os seus barulhos tarde da noite fallando mantras e cantando suas
canções místicas; o cheiro dos seus chás misteriosos; e toda sua
movimentação pela casa como uma coruja, silenciosa e presente. _”Mário, seu
irmão, me ajudará a esperar por sua volta”.
_”Eu sei o quanto, mãe, setirão minha falta. Eu preencho um espaço vazio na
vida de vocês, até com minhas práticas estranhas. Mas eu volto logo mesmo
que seja por pouco tempo, porque meu lugar não é aqui. Você não ficará
sòzinha. Existe o Mário, a igreja, seu trabalho, suas amigas,... logo você se
acostuma. A casa ficará vazia, eu sei, e minha comida especial, ninguém sabe
fazer, e nem minhas cantigas alguém cantará. Assim, meu perfume ficará
impregnado no ambiente e minhas ervas continuarão crescendo no canteiro se
você regá-las. É um jeito de manter-me viva aqui, se você quiser”.
_”Não estou pensando exatamente nesses aspéctos apenas, mas sobretudo,
estou confusa com a rapidez com que tudo começou a mudar em nossas vidas.
Ainda estou meio em transe. Quanto a minha rotina de trabalho, já pensei em
pedir transferência para um posto de saúde para trabalhar das sete às
dezesseis horas. Acho que consigo, não será nada complicado. Estou querendo
te dizer mesmo é que sinto muito por não ter podido te dar uma atenção ideal
nesses anos todos. Você cresceu e eu não acompanhei as mudanças
acontecendo em você. Sinto efetivamente, que estou perdendo você agora
para o mundo, mas entendo, que os filhos são criados para o mundo mesmo. E
a máxima de minha vida é e sempre será: _ “Compreenda o que está vivendo
e cresça, se faz sentido, cresça e corra atrás. Guarde bem isso Ella. Muitas
vezes, pode ter parecido que eu era indiferente a você, não, eu estava olhando
você experimentar, tentar, errar, até aprender. Também é verdade que pouco
tempo tive para experimentar um modelo de criação outro, mas este que
adotei por força das circunstâncias, considero válido e eficaz. Veja só: você
cresceu e é saudável. O Mário, está bem e vai se saindo bem na escola;
embora, o meu jeito de demonstrar o quanto quero bem aos meus filhos, seja
dando-lhes de comer, vestir e educação. Procurei ensinar sobre a vida,
impondo a minha máxima sobre a compreensão da existência essencial
forçando-os a crescer com responsabilidade. Julgo que seja o certo; sem se
saber o que se está vivendo, não se pode crescer. Os cuidados excessivos Ella,
aprisiona, escraviza, não deixa o outro pensar e criar seu destino. Eu sempre
quis você grande e livre, por isso cuidei de você do meu jeito aparentemente
frio. E sempre rezei e rezarei pela sua boa sorte”.
_”Eu sei mãe _ acaricia a mão de Sofia _, você me deu o que tinha para dar. A
sua parte, foi feita, o que faltou, não foi por culpa sua. Sinto muito a falta de
meu pai, e isso você não pode sanar (chora). Talvez eu viva eternamente
sentindo essa falta, ou procurarei preencher esse enorme vazio com
realizações e criatividade. Alguma coisa boa, há de resultar dessa falta, porque
não viverei por tão pouco, uma vez que, minha visão do mundo é o resultado
dessa falta... Até acho bom que você não tenha me dado mais do que me deu,
porque não suportaria as suas cobranças. Não me sinto presa em seu abraço
maternal ou sufocada, então, posso ter perspectivas. Posso respirar e andar
com meus próprios pés, decidindo onde quero pisar, escolhendo eu mesma
meu caminho a seguir...Eu sei que você é minha mãe, jamais esquecerei
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disso”.
Vai fallando com Sofia enquanto limpa a mesa do lanche e lava as
louças no girau, com o olhar perdido no infinito.
Já é noite, Ella procura no céu sua mãe Papisa querendo certificar-se de que
não está sòzinha mesmo. Seu brilho protetor acaricia-lhe o coração. Ella
pensa: _”Será que em São Paulo tem um céu como este daqui para eu
encontrar Papisa?” Guarda as louças e vai para o seu quarto arrumar as roupas
e livros em desordem por conta dos dias corridos que vem enfrentando
ultimamente. Enrola-se numa toalha macia e prepara um banho com ervas
aromáticas. A mãe saiu para a novena e seu irmão foi dormir na casa dos tios.
Ella tem todo o tempo do mundo para esquecer-se da hora mergulhando em
sua tina com água perfumada com ervas energizantes. Durante sua meditação,
revê a cena da conversa que teve com a mãe, e compreende que nas palavras
de Sofia, estava implícito um pedido de perdão e o mêdo de não ser
reconhecida como mãe. Vê a cena da abertura do espetáculo no teatro do
colégio, está lotado. Amadeu está sentado na segunda fila,...vê vários rostos
familiares, e na última fila, vê um rosto inconfundível. Olhos negros sedutores,
ensaiando um sorriso de dentes brancos perfeitos, vestindo um terno de linho
branco impecável. Ella fica cega, tenta concentrar-se no texto da primeira cena
de Tereza _ personagem da peça. _”Quando eu souber o que quero para
minha vida, provável, eu saiba sobre o que escrever no romance que me foi
encomendado...Mas posso saber sobre o que quero com hora marcada? Meu
Deus, a editora deu-me um prazo de 3 meses para entregar o livro
escrito...Será que antes disso encontrarei respostas para minhas perguntas? _
Que vida é essa minha,... para onde vou e por quê com quem?” Os olhos de
Ella encontram-se com os de Amora que passeia distraído pela cidade num fim
de tarde. É um olhar triste e frágil, dizem nada a ella. Por fim, Ella vê seu
próprio corpo nú dentro d’água como se estivesse adormecido. Seus olhos
estão fechados, sua cabeça apoiada na borda da tina de madeira, e folhinhas
de ervas boiando sobre a água, enfeitando seu corpo imerso. Desperta da
viagem mental, tendo o pescoço dolorido por ter permanecido horas meditando
na mesma posição. Enxuga-se e atravessa o quintal escuro para entrar em
casa. Todos já foram dormir, ella fará o mesmo para estar descansada e com o
olhar iluminado para sua estréia no dia seguinte.
Agitada e emocionada, Ella veste-se no camarim e repassa o texto, para entrar
em cena dentro de 40 minutos.
A maquiagem, os cabelos, as roupas, tudo em ordem. Mas seu emocional
caótico frente à expectativa de ver seu pai olhando prá ella no palco... _“O
que o terá trazido aqui hoje após 8 anos de total ausência? Será que
represento algo para elle, ou estará apenas sendo amável vindo prestigiar-me
caso não houvesse público para assistir-me? Dava a impressão de ser aquelle
pai que cumpre uma função social de apoiar a filha nas festinhas de escola,
fazendo-a acreditar que o pai é presente. Respira fundo e segura o coração
para resistir a tentação de atirar-se nos braços delle implorando para que não
parta outra vez.
Assim é. Ella entra em cena com o teatro lotado. Vê Amadeu na segunda fileira
e seu pai na última procurando o olhar da filha. Ella fica cega e incorpora o
personagem, dando um espetáculo de qualidade, como uma veterana.
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É aplaudida de pé e chora muito quando as cortinas fecham-se. Mas chora por
ter conseguido realizar uma tarefa importante, para a qual talvez não tivese
preparada.
Amadeu, Amora, Billa e Eduardo vão ao camarim levar-lhe flores e abraçá-la.
_“Você é impossível menina,... deu um banho de talento. Queremos ver você
mais vezes no palco!”
Ella escapa dos amigos e sai correndo para o palco procurando pelo pai. Olha
entre todas as pessoas que vão saindo, chega até o terraço na rua, e nada.
Elle sumiu como surgiu.
Sente-se traída e desconsiderada, frustada, fica sem o abraço que desejava
receber. Ella chega a pensar se não viveu uma alucinação. “Eu o ví mesmo, ou
quis muito vê-lo e criei uma forma pensamento?” Volta para encontrar os
amigos no camarim que esperam-na para um jantar.
Durante o jantar os amigos fallam da peça e seu desempenho. Ella está longe
e Amadeu percebe sua infelicidade. Falla baixinho em seu ouvido: “Elle não
tinha nada para te dizer, por isso saiu à francesa. Só quis vê-la e ser visto.
Páre de sofrer e comemore o seu sucesso”.
_“Quantos espetáculos você fará?” Perguntam os amigos. _”Todos os finais de
semana até Dezembro, antes do início dos exames de recuperação. Eu não vou
ficar de exame, tenho boas notas, daí vou ficar por conta do teatro e os
preparativos para a viagem.”
_”Obrigada por tudo meu querido Amadeu, nunca esquecerei você”. Ella beija
o rosto do amigo e diz boa noite à todos. Vai caminhando até sua casa para
respirar o ar puro da noite. Já em sua cama, pensativa se dá conta de tudo
que aconteceu e sente um frio na medula quando enxerga a importância de ter
conseguido realizar um sonho importante para sua vida e quase perde a
oportunidade de maravilhar-se por isso, por insistir em reviver um hábito de
sofrer repetidas vezes por não ser valorizada por seu pai. Por não ter recebido
um abraço delle, e que mesmo nunca tendo sido abraçada, deixou de crescer
por isso. Chora sem saber ao certo porque, e adormece cansada de tudo. Seu
sono é vellado por Midrah que esteve todo o tempo ao seu lado segurando seu
coração para assegurar-lhe de era muito capaz para realizar sua tarefa com
êxito.
Os dias que separam Ella do dia de sua viagem , passaram e agora, há 15 dias
do embarque, as providências finais estão sendo tomadas por Amadeu para
que tudo corra bem.
No colégio, as freiras realizam uma homenagem a ella, por seu exemplar
desempenho nas disciplinas do curso e no teatro. Irmã Ricolicce entrega-lhe
uma carta em nome das irmãs que foram professoras della, elogiando-a e
avaliando-a como ótima aluna, principalmente em religião e bom
comportamento. Recebe das colegas de classe uma foto emoldurada da turma
assinada por todas.
Ella está emocionada e grata. Mas havia de ser assim mesmo, pois ella fêz o
possível para superar-se a si mesma, alcançando apenas mais essa conquista
que a motivaria para muitas outras maiores.
Em casa guarda a foto, a carta e as flores em um saco plástico transparente.
Seu uniforme velho, os sapatos de borracha, as meias rasgadas; também
guarda junto com os livros e cadernos, em uma caixa de papelão e lacra com
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fita adesiva. Guarda a caixa sobre um armário velho, com seu nome escrito em
tinta preta e data: _”05 de dezembro de 1969 _ dia do aniversário do seu
pai”. Dia em que ella encerrava uma fase de sua vida, dando início a outra
bem diferente de tudo que havia vivido até então.
Ella jamais esqueceria dos dias e noites em que esteve sonhando com a
concretização de seus sonhos impossíveis. Nunca esqueceria de como lutou
para ser ouvida por todos quando dizia que estava alí só de passagem; que
seu futuro aconteceria em algum lugar bem longe dalí, e que nunca mais
passaria fome. Que teria perspectivas, mesmo que doesse o peito para
respirar, custasse o que custasse, haveria de cumprir suas próprias profecias
edificando um mundo melhor onde viveria com dignidade.
Abre seu baú de relíquias, toca com carinho seus manuscritos e livros velhos,
que fizeram parte do cenário de sua vida até esta data. Tudo continha um
valor imensurável, desde seu laço de cetim guardado cuidadosamente entre as
páginas de um livro de contos de fadas, que vão fazendo-a reviver as
lembranças das noites de esperas infindáveis. Toca suas lágrimas de cristal
coloridas, bem guardadas em uma caixinha de madeira com forro de veludo,
tendo na tampa, o seu nome escrito a fogo. Falla com as lágrimas e escuta
palavras indeléveis. Suas flores ressecadas entre as páginas de seus livros,
representam sonhos constelados _ seus símbolos _ que indicavam os passos
que Ella daria na vida. Todas estavam alí guardadas, incluzive a flôr de
maracujá _ branca e violeta _ que marcava o desejo della escrever o seu
livro. Suas bonecas e os muitos vestidos criados e costurados na máquina
velha que voinha deixou de herança; um desenho do tio Cruca que dizia:
_”Tetê, só eu posso te chamar assim, porque você é meu bebê que nasceu
com asas como os anjos que podem voar”. Isto escrito dentro de um balão
amarelo com o desenho de um anjo azul. As taças de cristal, presentes de
Midrah e August; as carta de seu pai sem destinatário, os rascunhos de um
livro, os poemas, misturados com os seus próprios, tão profundos quanto os
do pai. Páginas de um livro que não foi editado; tudo arrumado em caixas
seladas.
As cartas do pai e todos os rascunhos, Ella levaria consigo para insistir na
recriação literária com as marcas paterna. Separa um dos muitos para
reescrever antes de adormecer. Um, onde haja sentimentos que traduzam o
estado de fragilidade que se encontra, quase pedindo uma mão para segurá-la
na hora de pegar a estrada.
Passei da hora dormindo, sonhei acordada
sonhei que deixava algo valioso para trás
que lutava para não me afogar em minhas próprias lágrimas
gritava mais alto que podia e a voz não saía
fico sufocada, ilhada pelo meu próprio drama
acordo do pesadelo com o peito ferido
com os olhos famintos por tua imagem
penso numa saída...
ouço as batidas do meu coração
como numa sinfonia
tua voz aparece aqui sussurrando
uma canção suave para acalmar minha dor
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a melodia vai pisando macio
mexendo com meus sentimentos
me fazendo ver o melhor de você
despertando um novo desejo - de viver
de viver novas e profundas emoções...
sinto que você pode sentir o fio de sêda
que me envolve...
que me envolve passando por entre tuas mãos
você pega delicadamente
e sente a fragilidade em que me encontro
de peito aberto sem defesas...
diz pra eu confiar
que o fio não vai se quebrar
não vai me ferir
pede pra eu segurar
pega na minha mão pra eu acreditar
passa nos meus olhos a sêda macia
enxuga minhas lágrimas
e canta uma canção para me tocar
tudo isso me embala e me encanta
quando um fino fio de sêda
que leva a minha vida a passar
pelos mesmos lugares onde tantas vezes se rompeu
este mesmo fio agora toma outra forma e textura
revela sua fibra... desdobra-se para me segurar
para me iluminar
mostrando lugares seguros
um novo olhar... o meu olhar no teu
com um fio de Luz para me acordar docemente.
Quantos pedidos de socorro vellados passam pela mente della... _”No meu
olhar, respostas para minhas perguntas”. Recorrente, elocubra o velho enigma
que conduz os passos della. _”Terei que morrer interpretando tudo o que sinto
e vejo?”. Se pergunta antes de fechar os olhos e adormecer exausta sobre as
caixas e papéis que tomam todo o chão do quarto.
Os dias que se seguem, são preenchidos com arrumação de malas, visitas à
alguns amigos, banhos nas cahoeiras e meditação na capela. Esses banhos e
meditação, eram hábitos sagrados, dos quais só abriria mão diante da
impossibilidade de fazê-los. Era nessas práticas que encontrava forças para
prosseguir perseguindo seus ideais com a certeza de que os alcançaria. Haja
visto, ter conseguido realizar o sonho de viajar, aparentemente impossível,
diante da dura realidade de sua existência. Eram os sonhos brigando com a
realidade sofrida de sua vida de privações. Era a expressão do resultado de um
desejo nutrido com fé e audácia, depositado nas mãos do Poder Cósmico que
rege a vida do Homem...
Era a confirmação da presença de Zirah, Papisa, Midrah, anjos e mentores, na
vida della, iluminando cada passo seu durante sua jornada. Era sua própria
maestria virtual, insistindo numa proposta de crescimento privilegiado por
mudanças apoiadas em estados de consciência raros que a mobilizava a
encontrar significados para sua existência. Assim havia de ser, ella vencia os
impedimentos da vida e abria no peito, seu caminho na agressiva selva social e
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devia ser por um compromisso Divino. De onde deduzia, que todos os Homens
nascem por uma causa nobre e devem lutar por ella. _”Se não conseguem
onde está a falha? Por que se entregam tão fácil ao fatalismo fazendo-se
sujeito de uma cultura dogmática? Talvez, do lugar de sua onipotênciaimpotência, o Homem estivesse atendendo às profecias autocumpridoras
comprometidas para justificar uma saga familiar, tornando suas ações
sintomáticas. Assim como possíveis desempenhos ousados, são lidos como
sintomas. Então, tudo poderia ser interpretado como sintoma...”.
Entretanto, sintoma ou linguagem saudável, ella havia escrito na palma de sua
mão, os caminhos que andaria; tendo os passos marcados à tinta e desenhado
nas águas seus desejos nobres. Nos seus encontros com as águas, a magia da
natureza presenteava-a com a força dos predestinados por Deus com poder
para transcender aos grilhões psíquicos que impede ao Homem de apropriar-se
da Luz. A sua postura de guerreira inquietaria ao outro criando possibilidades
de auto-questionamento e consequentemente a sua expansão mental, estado
imprescindível para crescer.
Ella dá conta de seus compromissos envolvidos com sua viagem e reserva as
tardes para seus banhos meditativos. Quando ia fim de tarde, retornava
caminhando à noite, contando as estrêlas no céu e fallando com as forças da
noite. Se ia pela manhã, pegava um cavalo do tio Cruca para andar mais
rápido. Agora de férias do colégio, sobrava tempo para passar da hora fazendo
o que mais gostava. As festas no Banclub, ficariam para sua volta, apesar dos
convites dos amigos.
Sua libido estava sendo investida totalmente em seu novo projeto.
Caminha de manhã pelas ruas da cidade como que despedindo-se daquelle
lugar com enorme prazer. Olhando cada esquina por onde tantas vezes
passou, sentia-se uma nativa abandonando sua tribo, mas não a esqueceria.
Tinha a impressão de que aquellas ruas com sua velhas casas caiadas de azul
e branco, chorariam sua falta. Ella com saudades presentidas, abraçava as
árvores da rua onde nasceu, prometendo que voltaria mesmo que fosse para
revê-las.
Vai até às pedrinhas onde banhava-se nas piscinas de pedras naturais,
enquanto Dodó lavava roupas. Mata a saudade banhando-se mais uma vez,
como se fosse a última. Visita sua rocha vermelha encantada que chora. Ella
senta-se e falla baixinho as palavras ditas por uma voz que vivia dentro da
rocha, ditas a ella há 4 anos atrás. _”Por sua coragem e fé, vou te abençoar
com as forças da natureza para que nada, nem ninguém, possa te vencer na
vida. Haja o que houver, custe o que custar,... as suas lágrimas de cristal, são
símbolos de aprendizagem que te guiarão pelo caminho do crescimento,
edificando sua vida apoiada em sólida sabedoria, sua herança espiritual”.
Em sua última visita à capela, seu banho no rio, encontra um pôr-do-sol côr de
ouro velho tão lindo, que a deixa em estado de graça. Ella sente que toda essa
belleza era uma homenagem prestada pela natureza a ella. Senta-se sobre
uma rocha para olhar com respeito sua magestade o sol. Fecha os olhos para
ver melhor; respira fundo sentindo os raios de Luz penetrando seu coração,
envolvendo-a até transformar-se na aura que protege seus corpos. Acende um
sol em seu peito, fazendo uma ponte com o sol lá fora, brilhando dourado,
proporcionando uma leveza nella que chegava a flutuar como se fosse um
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sopro de vida em comunhão com sua alma. Ella chora de prazer sentindo-se o
anjo azul voando no balão amarelo, desenhado pelo tio Cruca.
Midrah, surge envolto na Luz para compartilhar com Ella esse momento
mágico. Toma-a pelas mãos levando-a até às margens do rio. Banha-lhe o
rosto, lava-lhe os pés. Segura com suas mãos, as mãos de Ella e olha em seus
olhos negros com seu profundo e doce olhar azul. Sem uma palavra, Midrah
beija-lhe as mãos e desaparece na Luz que o trouxe. Tudo foi dito _ella
entendia sua linguagem vellada. Elle estaria sempre ao seu lado, mesmo
quando não fosse visto.
Ella abre os olhos para ver que o sol já se foi faz tempo. A noite envolve as
árvores tornando-as brilhantes sob a luz das estrêlas. As águas do rio refletem
uma luz prateada que empresta da lua básica, para uma noite de juras
eternas. Na capela, o silêncio é absoluto. Apenas uma luz de velas clareava a
imagem do Santo, tudo o mais na
penumbra. Os reflexos da luz da lua
entravam delicadamente marcando o chão da capela como se fosse um abraço
apaixonado. Apenas Ella sentada no banco de madeira, sentindo-se uma
mistura de deusa do Olimpo e índia da mata, ouvindo o silêncio que
generosamente escutava os pensamentos della.
Era o resumo da Divindade num gesto intuitivo. Ella presentia os movimentos
do Universo com uma familiaridade que só os sábios possuiam, sendo ella um
virtualmente, realizava uma conexão flúida.
Queria muito poder ficar alí a noite toda, mas era prudente voltar para casa.
Caminharia em passos largos por uns 5 km, penetrando as camadas da névoa
noturna, que enfeitava a estrada como num ato de amor. Ella sente-se
flutuando, como se não pisasse no chão. Está fora de si, mas está dentro, é
tudo e nada _ está Zen.
“Tranquilo, deixe que alguém o adore, Como aquilo de onde veio,
Como aquilo no qual se dissolverá, Como aquilo no qual respira”
(Capra, Fritjof).
Ella respira fundo como quem queria reter consigo aquelles últimos momentos
experienciados no lugar onde viveu seus mais plenos momentos de rara
belleza. Olha mais uma vez para a capela, a árvore frondosa que lhe dava
sombra nos dias ensolarados, e a rocha onde se sentava para contemplar seu
santuário _ a cachoeira e o rio, seu berço de ouro.
Impossível esquecer tudo que vivera nesse lugar, havia incorporado cada
elemento vivo alí presente.
“O ver (enxergar) desempenha o papel mais importante na
epistemologia buddhista por constituir a base do conhecer. O
conhecer é impossivel sem o ver; todo conhecimento possui sua
origem na visão. O conhecer e o ver encontram-se, pois geralmente
unidos nos ensinamentos de Buddha. A filosofia buddhista, portanto,
aponta para a visão da realidade como ela é. O ver é a experiência
da iluminação. No Taoismo (o caminho), essa noção de observação
acha-se incorporada ao nome dos templos taoistas, Kuan, palavra
que originalmente significa olhar” (Capra, Fritjof)
“O conhecimento absoluto é, pois, uma experiência da realidade
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inteiramente não intelectual, uma experiência nascida de um estado
de consciência não usual que pode ser denominado de meditação ou
estado místico. A existência desse estado não tem sido
testemunhada apenas por numerosos místicos orientais e ocidentais,
aparece igualmente na pesquisa psicológica”. Nas palavras de William
James: -”Nossa consciência normal do estado de vigília racional,
como a denominamos - constitui apenas um tipo especial de
consciência, ao passo que, ao seu redor, e dela afastada por uma
película extremamente tênue, encontram-se formas potenciais de
consciência inteiramente diversas”.(Capra,Fritjof)
“Conhecimento racional e as atividades racionais constituem, por
certo, a parcela mais significativa da pesquisa científica; contudo, não
a esgotam. A parte racional da pesquisa seria inútil se não fosse
complementada pela intuição que fornece aos cientistas novos
insights e os torna criativos. Esses insights tendem a surgir
repentinamente e, de forma característica, em momentos de
relaxamento, no banho, durante um passeio pelo bosque ou
na praia, etc. _ e não quando o pesquisador está sentado à mesa de
trabalho, lidando com equações”.(Capra,Fritjof)
“O fato de o Zen afirmar que a iluminação se manifesta nas
ocupações cotidianas tem exercido enorme influência em todos os
aspectos do modo tradicional japonês de viver. Esses aspectos
incluem não apenas as artes da pintura, do desenho, caminhadas,
etc., e as várias atividades artesanais, mas também as atividades
cerimoniais, como servir o chá e o arranjo de flores, e as artes
marciais de manejar o arco e a flecha, judô, e a esgrima. Cada uma
dessas atividades é conhecida no Oriente como um do, ou seja, um
tao ou caminho para a iluminação”.(Capra,Fritjof)
“Além da linguagem - a contradição que se mostra tão enigmática em
face do pensamento usual provém do fato de termos de utilizar a
linguagem para comunicar nossas experiências íntimas, as
quais,
em
sua
própria
natureza,
transcendem
a
linguística”.(Suzuki,D.T.)
“O problema da linguagem com que se depara o místico oriental é
precisamente o mesmo que se antepõe ao físico moderno. Nas duas
citações apresentadas por Suzuki - falando sobre o Buddhismo, e
Werner sobre a Física atômica, - não obstante, as duas citações são
idênticas. Tanto o físico quanto o místico desejam comunicar seu
conhecimento e, quando o fazem com o auxílio de palavras, suas
afirmações são paradoxais e cheias de contradições lógicas. Esses
paradoxos são característicos de todo misticismo, de Heráclito a Dom
Juan e, desde o início de nosso século, também da
física”.(Capra,Fritjof)
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“Qualquer caminho é apenas um caminho e não constitui insulto
algum _ para si mesmo ou para os outros _ abandoná-lo quando
assim ordena o seu coração. (...) Olhe cada caminho com cuidado e
atenção. Tente-o tantas vezes quantas julgar necessárias... Então,
faça a si mesmo e apenas a si mesmo uma pergunta: possui esse
caminho um coração? Em caso afirmativo, o caminho é bom. Caso
contrário, esse caminho não possui importância alguma”. (Castañeda,
C. - Os ensinamentos de Dom Juan)
Aqui eu salto para o os dois últimos capítulos do livro.
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DEPRIMIDA MERGULHA EM SEU ABISMO DE DOR
RECOLHE-SE PARA LAMBER SUAS FERIDAS
Dezembro de 1983, Ella está finalizando a reforma da sua casa que ainda tinha a
cara de Edward que ella quis conservar por todos estes 3 anos. Era uma maneira
de sentir a presença delle nestes anos de solidão.
Luzia está com 4 anos e falla no pai como se elle estivesse vivo. Todos os
desenhos que faz na escola tem a presença do pai. A orientadora pedagógica da
escola encaminha-a para uma ludoterapia.
Ella encontra ajuda em análise e nas horas de meditação, mas a DOR da falta é
dilacerante. Não é fácil fazer o luto por tantas perdas com apenas 28 anos de
idade.
Concluiu sua formação em Psicanálise e intensifica suas horas de supervisão a
partir de estudos de casos e alguns atendimentos clínicos. Planeja construir seu
consultório anexo a casa que servirá de residência ao toxicodependente que já fêz
sua desintoxicação orgânica na clínica. Este é seu mais recente projeto de
trabalho no qual pretende investir seu desejo de compreender e ajudar o
dependente de drogas. Este projeto não é do tamanho da comunidade que
plantou em Porto Velho juntamente com David e Arõana com a ajuda do
governador há 14 anos atrás, é um pequeno projeto por ora.
Sublima parte de sua dor trabalhando e estudando muito.
Viaja com frequência para a fazenda que Edward deu de presente à filha. Os
cavalos são sua paixão. Pela manhã monta o Príncipe, o cavalo preferido de
Edward. Sobe as montanhas e só desce quando o sol de põe.
Chora longe do olhar da família para não demonstrar fragilidade e expulsa a dor
do seu coração escrevendo.
DOR
Estou seca por dentro e por fora
não tenho mais nada para sentir
pedaço de gente
sombra de mim
restos do passado
montes de ilusões
Vivo de uma réstia de Luz
das horas que passaram
dos dias que morreram
das palavras bonitas
da boca macia que me beijou a alma
Estou vazia e sem rumo
sem vontade de ser
de tentar mais uma vez...
Acabou e nem ví
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se existe algo mais além daqui
Minh’alma vagante procura seu abraço
e volta ao meu corpo seco e sem vida!
Só a dor existe
a dura tristeza
crua verdade disso que vivo
sombras de dia e noites mortas
Nó na garganta
um peito doído
olhos vermelhos
escondidos nos travesseiros
chamo pelo seu nome
O medo afasta os poucos minutos de paz
fujo pra rua
ella está deserta
não dá mais para continuar...
Vou me anestesiar
gritar não sei pra quem
que ainda estou aqui
morta mais estou...
Absolutamente só
só meu quarto me sabe
meu espelho me vê
Não sei ainda viver sem você!
As reformas das suas casas são concluídas, sua clínica está pronta, suas
supervisões direcionam-na para cursos de psicossomática e formação em
psicoterapia familiar. Estuda nutrição e terapia biomolecular. Lê compulsivamente
todas as obras que tratam da existência do ser humano e suas vicissitudes.
Encontra tempo para acompanhar as filhas às suas atividades e faz aula de dança
moderna.
A música e a dança são instrumentos poderosos para trazer-lhe a alegria de viver
e a força de desejar novamente.
Todo o ano de 1984 foi vivido intensamente dentro do processo de auto-reforma
pessoal, investindo no resgate de seu equilíbrio espiritual e emocional.
Ella aprendeu que se perde e se ganha infinitas vezes na vida podendo fazer uso
destas transições para auto-lapidar-se e tornar-se forte com inteligência. Sem
perder de vista a consciência de que somos humanos e sujeitos dos processos
bioquímicos, psíquicos, espirituais internos pessoais e externos coletivos,
conscientes e inconscientes.
Dá para viver sem ansiedades quando se compreende a vida que se vive.
No ano de 1985 Ella viaja para Milano na Itália onde estaria atualizando-se
profissionalmente tanto na área de família quanto da toxicodependência. Estuda
em Milano, Firenze e Venezia por 9 meses e passeia por 30 dias pela Europa.
Sente-se realizada por ter conseguido viver mais um sonho seu _ o de estudar
fora do Brasil _, tão desejado e desenhado quanto tantos outros que já realizou e
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muitos que ainda realizará.
Ella orgulha-se de sua coragem de insistir na mudança e em possibilidades de
viver com plenitude após tantas perdas e imensas dores. Compara-se a um cavalo
puro sangue árabe, a uma rocha, a um rio que corre sem pressa determinado.
Arõana dizia que ella era sua maga, para Muriel, um oceano, para Edward a
mulher da vida delle, e agora? Seria o quê para quem? Pensa no que gostaria de
transformar-se a partir dos 30 anos.
“Numa mulher de 30 anos que escreve sua própria história com vontade de
acertar. Uma mulher que possa permitir-se amar e ser amada sem medo de
perder. Uma mulher mãe de duas filhas, uma com 6 e outra com 12 anos. Uma
mulher que vinha reeditando a imagem e o nome do pai por longos e árduos 25
anos”. Ella pensa e escreve seus pensamentos enquanto bebe um vinho branco à
bordo do vôo que a trazia de volta ao Brasil.
Após o jantar sintoniza um canal de filmes, calça suas meias de algodão e apaga
a luz para desfrutar o prazer de estar em sua companhia sem perceber o olhar
curioso do companheiro ao lado que ensaia há horas fazer-lhe uma pergunta.
“Você nunca olha para os lados? Não me interprete mal, mas já olhei tanto para
você que estou com os olhos embaçados,... ví tantas coisas em você que achei
melhor fallar antes de entrar em estado de alucinação,... eu olho e me parece
estranho alguém que não olha nunca, ou melhor, que estar olhando pra dentro, é
isso mesmo?” Ella nota então a presença de um homem que se não fallasse, ella
não perceberia sua presença há um palmo della.
“É isso mesmo, eu estou olhando pra dentro, estou comigo, não podia vê-lo. Eu
sou Ella Ibiapina e estou voltando ao Brasil após quase um ano estudando na
Itália e sou apenas eu mesma, mas você pode ver o que quiser em mim a viagem
é sua,... quem é você?” “Eu sou Humberto, moro em São Paulo, sou músico.
Toco piano e canto. Estive gravando um disco em Londres e agora volto ao Brasil
para fazer seu lançamento em vários shows e programas de TV. Nascí no interior
de Pernambuco do encontro do meu pai francês com minha mãe pernambucana
há 40 anos atrás. Posso passar o vôo todo contando minha história pra você, mas
prefiro contá-la em capítulos lentamente. Depois eu digo o que ví em você, quer
me conhecer? Isto não é uma cantada”.
“Ah, não sei Humberto... quem sabe, eu possa conhecer alguém da forma como
eu entendo conhecer. Todas as pessoas que eu quis conhecer, partiram antes
disso acontecer. Não creio que você seja uma exceção, mas posso tentar. Vamos
fallando...” Ella pede licença para ir ao banheiro. Humberto pede um vinho francês
para brindar o encontro.
Bebem e conversam animadamente. Elle é muito divertido e consegue quebrar o
gelo cantando algumas músicas do seu novo disco. Diz que não sabia que
encontraria a musa que o inspirara a fazer suas músicas, antes existente apenas
em seu inconsciente. Sabia que era uma mulher nobre e simples, forte e doce com
um toque selvagem místico, assim como ella.
Ella ouve o som de sinos de cristal tocando uma melodia romântica no fundo do
seu coração.
A visão das mãos longas e delicadas e braços morenos peludos de Humberto
mexe com ella. Não sabe o que sente ao certo, mas sabe que é algo como desejo.
Após longos cinco anos sem amar ninguém, parecia natural sentir atração por
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alguém tão inteiro e sensível. Homem do tipo macho anti-herói, moreno, grande,
cabelos dourados e olhos verdes, mais parecia um extraterrestre que um
pernambucano. Fallava manso e firme deixando claro que sabia o seu valor.
O avião pousa em São Paulo às 7:00h. Ella aceita o convite de Humberto para
jantar dalí há dez dias e despedem-se.
Ella organiza sua semana de modos que dê para desfrutar da companhia de todos
que morrem de saudades della. As filhas enroscam-se em seu colo dia e noite. Os
cães quase fallam de alegria lambendo vorazmente suas pernas. A casa está
iluminada, o jardim florido, suas ervas verdes e vivas, seu lago dança transparente
para demonstrar alegria pela volta de Ella. Muriel vem visitá-la. Está bonito e
moreno, seu velho índio. No seu olhar está escrito que a ama muito como se o
tempo não tivesse passado.
Os empregados e amigos organizam um natal para 100 pessoas alegrarem a noite
que para Ella, é a mais romântica e iluminada de todas do ano. Toda sua vida
adorou a noite de natal embora boa parte desta vida tenha passado sozinha
comendo uma rabanada e meditando em seu santuário. Mas o natal era esperado
ansiosamente por ella todos os anos. Mesmo tendo vivido a maior dor da sua vida
_ a morte do pai _ em um natal, ainda assim, a noite de natal era uma festa para
Ella.
Aos poucos vai matando a saudade da casa, das filhas, de sua vida no Brasil.
Pára pouco em casa, faz muitas compras, sempre com Christal e Luzia
enroscadas nella.
É bom para Ella estar ligada às pessoas, às filhas, à família, dá-lhe sentido para
viver. Saber-se integrante de um grupo constituído por ella, que a amava
verdadeiramente, tornava-a coluna mestra emocional e espiritual deste grupo.
“Sinto-me segura vivendo nesta casa com minhas filhas, meus bichos, meu lago,
minhas plantas,... sabendo que tenho referências existenciais e que posso ir para
o lugar mais distante do mundo sem me perder, pois já tenho para onde voltar”.
Pensativa, Ella perde-se em devaneios revivendo momentos importantes de sua
vida.
Os dias passam voando e chega a hora de encontrar com Humberto para o jantar
que haviam marcado quando despediram-se no aeroporto há 10 dias atrás.
Encontram-se em uma cantina italiana. Humberto entrega-lhe uma orquídea e diz
que é uma jóia ao natural, como Ella.
Elle conta sua história em capítulos e finalmente falla o que viu em Ella quando a
viu naquelle avião. “Eu ví uma menina solitária, frágil e forte com a mesma
intensidade; doce, agressiva e terna que desdobra-se para segurar com graça e
serenidade, os altos e baixos emocionais de sua vida _ uma rainha. Minha rainha!
Você é nobre Ella, você é feita de um metal especial. Soberana, sempre
governando seu território, reconstruíndo o seu castello incansavelmente sem
nunca perder a fé inteligente que a mantém de pé. É isto, você é minha rainha.
Tudo bem, você disse que a viagem era minha,... mas é mais que isso. Eu creio
em reencontros. Enfim, você há de dizer agora que já ouviu tudo isso outras vezes
e que não entende porque eu sem conhecê-la, quero viver com você toda minha
vida...” Ella bebe uma taça de vinho sem respirar deixando surgir em sua
expressão facial um desconforto. Humberto não entende e antes que pergunte o
que há, ella falla. “Mesmo sendo sua a viagem, eu gosto de saber que sou sua
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rainha, mas o último homem que disse-me que queria viver toda sua vida comigo,
morreu deixando-me perdida _ meu marido Edward. Ficamos casados 3 anos. Eu
tenho medo quando ouço esta frase, posso reviver uma dor da qual já fiz luto. Eu
quero ir com calma, vamos coversar, rir, dançar, cantar e contar estórias e
histórias por muito tempo sem compromisso. Deixa eu me sentir à vontade e ter a
certeza de que não estou apostando minhas fichas no nada...” “Ella, você está
dizendo que quer ter certeza de que eu sou a pessoa que você sempre esperou
encontrar, eu sei que posso ser, mas mesmo que não seja da forma como você
concebe o seu ideal, terei sido uma parte importante em sua trajetória existencial,
por isso, não fuja disso!” Beija-lhe as mãos e pede que confie nelle. “Eu sou igual
a você Ella. Eu viví a mesma vida que você viveu e sentí todas as dores que você
sentiu. Sonho como você, escrevo, desenho, medito, canto e talvez já tenha
perdido tantos objetos amados como você perdeu. Chorei incontáveis noites em
meu canto escondido, onde só as estrellas podiam ver-me. Através da minha
música, venho contando ao mundo minha existência e assim sublimo minhas
dores. Acredito no amor, no despertar de nossa maestria, na metamorfose do ser
humano que comunga com os princípios inteligentes do Cosmos e sobretudo,
creio no reencontro de almas que se amam. Você é a alma que estive procurando
por muitos anos, seu olhar azul me diz isso. Eu disse que iria contando minha
história em capítulos não foi? Então, ouça uma parte na forma de poema e de
música,... eu fallo de várias formas. Eu canto para não adoecer!”
Meu olhar na televisão
tudo passando tão lento, tão lento...
vejo as mesmas cenas de sempre, tudo se repete
assim como você que passa como mais uma imagem
que me escapa por entre as mãos
deixando suas marcas no chão
atira um olhar em minha direção
eu aposto neste olhar, eu aposto...
eu fico olhando
ensaio gestos, mas fico mudo
eu fico vendo todos os gestos iguais aos meus
me ligo nos sinais (...)
corro ao seu encontro para vê-la de perto
me aproximo sem tocar
você me toca com um sorriso
seus olhos me dizem do que eu preciso
elles lêem nos meus os seus desejos
fazemos uma aliança silenciosa
sentimos algo que não tem nome ainda
mergulhamos num silêncio revelador
acreditamos em algo maior
confusos fallamos sem parar
e em cada ponto, sentimos que chegamos
mais perto de algo encantador
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fico inquieto desejando e temendo reconhecer
que este filme, eu quis escrever
e mesmo assim, morro de medo
chegando perto de você
de ver quem assinou
muitas frases escritas por mim...
eu vejo
eu reconheço
você passou pelos mesmos lugares que passei
os sinais estão presentes em seu olhar
no seu sorriso eu vejo...
me mostra no seu sorriso, as marcas do meu
que deixei no último papel que desempenhei
que despedacei!
“Quando eu escreví este poema, estava procurando resgatar você sem saber
ainda quem era você, mas já te amava muito!” Humberto abraça apertado o corpo
de Ella que pulsa de desejo.
“Ainda tenho que mentir pra mim
dizendo que você existe
que é real
e que ainda pulsa dentro de mim
nem sei por que
como foi que eu perdí
uma parte do que você disse
eu fico em silêncio ouvindo
todos os sons parecidos com a sua voz
sentindo o cheiro da sua presença...
Então, os sinos dobram
e a vida me cobra enxergar a realidade
você se foi de um jeito que eu não queria
que eu não pude entender
partiu sem olhar para trás
partiu meu destino ao meio
quebrou a trama que nos unia
deixou um vazio dentro de mim
confuso agora vejo tantos caminhos
mas, sozinho, exito dar mais um passo
mais um passo por cima de uma história que escreví
sem planejar o fim
quero viver outra história
que me permita dormir em paz
quero acordar para um novo dia
nascer para um novo amanhã
azul como o seu olhar
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quero olhar azul para o espaço infinito
olhar para a mesa e ver dois lugares
ocupados por mim e por você
saber que somos dois
que podemos partilhar um pedaço de pão
um pedaço de chão
um pedaço da minha vida
dormir e acordar segurando sua mão
não precisar mais mentir
não precisar mais fugir!
Passam a noite cantando e contando histórias; beijando, olhando, tocando,
sentindo intensamente o prazer de estar um com o outro.
Ella olha a noite toda para Humberto e não consegue defini-lo. Era um misto de
macho anti-herói, cavaleiro da távola redonda, místico, poeta sonhador. Era
adorável.
Ella volta pra casa fallando sozinha, brigando consigo mesma. “Eu estou
fantasiando mais uma vez,... não, estou sonhando. Ou estarei ficando louca? Não
pode ser tudo isso, elle, é apenas mais um homem que passará pela minha vida
como muitos passaram. Meu Deus, onde estou agora? Passei algum ponto
dormindo? Peguei o trem errado? Acho melhor reescrever este capítulo... ou não?
Ah, estou cansada e não sei mais o que pensar. Melhor dormir uns dias para
digerir essa confusão. Mais do que estou com medo? Humberto é apenas um
homem encantador que sabe usar as palavras e eu uma mulher que questiona
tudo antes de sentir. Que seja, vou deixar correr como um rio que corre sem
pressa. Preciso ser normal e parar de adivinhar tudo, isso só me tem feito sofrer. É
isso, vou me permitir algumas surpresas”.
Guarda o carro na garagem, sobe para seu quarto, enche a banheira com água
morna e sais para um banho renovador.
Sente-se melhor depois do banho. Reza seu mantra.
Deita-se em sua cama perfumada e dorme como uma criança.
Ella quer fazer seu caminho com o coração, mas nesta altura da sua vida, sentese cansada e já não experimenta mais a mesma ousadia de bater de frente com
as fatalidades e os obstáculos da forma que sempre fez. Sente-se privilegiada por
ter conquistado tantas medalhas de ouro e prata na olimpíada de sua vida, mas se
questiona até que ponto vale mesmo a pena derramar tanto sangue para escapar
dos terremotos e soterramentos infidáveis que ocorreram e ocorrem e sua vida
com tanta frequência e sem intervalos para respirar.
Tudo bem que hoje Ella encontra-se em um ponto de sua vida interessante do
ponto de vista da valorização da mulher que conquistou seu lugar no universo
profissional e social, e também enquanto mãe e parceira dos homens com quem
casou-se e a quem amou. Mas tudo isso foi tão suado que cansou.
Ella, está entrando em depressão numa hora em que mais precisa ter saúde e
vitalidade para dar conta de todos os compromissos assumidos em sua vida. Está
trabalhando em seu consultório, dá consultoria psicológica para programas de
televisão, escreve para várias revistas, dá aulas em duas escolas, supervisiona
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vários alunos que fazem formação em psicanálise, faz aula de canto, dança,... tem
duas filhas que ama muito, sua casa, e agora um namorado que a solicita uma vez
por semana para um jantar, uma festa... E, retomou a escrita de seu livro que
havia iniciado há 5 anos atrás.
Parece que chegou em um ponto da vida de Ella, onde os compromissos tomaram
um vulto muito grande e o prazer de viver com simplicidade não existe mais.
Ella encerra o ano de 1985 apesar das festas maravilhosas de natal e reveillon,
chorando e desanimada.
Humberto faz o possível para promover alegria e prazer para sua rainha mas se
frustra. Ella foge das pessoas e mergulha no trabalho de uma forma compulsiva.
“No meu olhar leio as respostas para minhas perguntas... mas que perguntas? E
onde anda o brilho do meu olhar? Será que vou beber água para atravessar este
oceano depois de ter vencido tantas batalhas? Ai Midrah, segura minhas mãos,
estou com medo e sinto-me sozinha como nunca!” Falla Ella para seu espelho
depois de ter passado horas meditando em sua capella.
Bem neste momento em que se sente só e frágil, Humberto vai viajar por 3 meses
para fazer shows em várias cidades da América do Sul. Ella não pode
acompanhá-lo por conta de suas atividades profissionais. No aeroporto ao
despedir-se delle, chora e confessa que está com medo de ficar sozinha.
Humberto fica preocupado. Durante toda a viagem telefona todos os dias para
fallar com ella, para dizer que a ama muito.
Elle retorna à São Paulo, faz planos para casar com Ella, conta sua história, canta
dança, mas sua rainha está deprimida. E assim, outras viagens acontecem por
longos meses e ella desmorona lentamente.
Quando falla com Humberto ao telefone diz sentir-se ridícula por estar insegura
durante sua ausência e que não pode crer que é amada por elle da forma como
consebe o amor.
Ella está entrando em pânico porque está revivendo inconscientemente a mesma
qualidade de relação com Humberto, que viveu com o pai. Assim como Humberto,
o pai viajava sempre e ella nunca sabia quando o veria outra vez. E um dia elle foi
e não voltou mais. Ella sentia o mesmo medo de perder outra vez uma pessoa
querida sem ter tempo de pedir que não se vá sem dizer adeus.
Seu namoro com Humberto acordava seus mais temidos fantasmas da infância e
adolescência.
Estava sendo difícil apesar de toda sua vivência e experiência no que dizia
respeito a compreensão da psique do ser humano.
Para justificar sua insegurança emocional, sua mãe fica gravemente doente e
hospitalizada às pressas vítima de uma alergia causada por uma medicação à
base de sulfa. Ella é chamada pelo médico que cuidava da mãe após uma
semana que esta estava doente. Pede ajuda aos amigos para ajudá-la
substituindo-a nos lugares onde trabalha, pede a opinião de velhos professores de
medicina sobre o caso da mãe. Aparentemente, não havia motivo para grandes
preocupação, deveria ser apenas uma alergia.
Espera mais uma semana para viajar desejando encontrar com Humberto antes
de tomar uma decisão precipitada _ trazer ou não a mãe para São Paulo.
Dois dias antes de pegar um vôo para Porto Velho, recebe um telefonema de
familiares informando que a mãe havia sido transferida de hospital e agora estava
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em estado grave. Liga para o diretor do hospital e pede que providenciem a
tranferência da mãe para São Paulo imediatamente uma vez que lá não sabiam
como controlar um quadro de alergia à sulfa _ aparentemente um procedimento
simples e corriqueiro. O Dr. diretor do hospital diz que lamenta muito, mas não
dará tempo de transferí-la para lugar algum. “Sua mãe está em estado de semicoma e uma viagem neste estado, seria fatal. Venha para cá logo, ella quando
falla, pede sua presença insistentemente. Venha por favor”.
Dia 30 de julho de 1986 embarca no vôo noturno.
Seu coração vai se partindo há cada minuto que a aproxima do encontro com a
mãe doente. Vai sabendo que este será o último encontro... vai sentindo-se mais
só que nunca. Vai pensando que já não suporta mais sofrer, não aguenta mais
perder... Mas precisa estar tranquila para passar segurança aos familiares que
nesta altura, já estão desmoronados. Ella havia de segurar mais um barco
afundando numa hora em que se sentia frágil e sozinha. Vai pensando durante o
vôo, que a vida tem sido dura por demais com ella e mais uma vez estava
testando sua capacidade para enfrentar o caos com serenidade. “Mas se eu gritar
bem alto que não aguento mais e que preciso de ajuda, será que alguém
acreditará? Não serei julgada como uma incompetente que não está preparada
para lidar com minhas perdas? Ah, meu Deus, me segura no colo! Como é difícil
desempenhar o papel da super mulher ... “
Ella só precisava ter coragem de se permitir dizer NÃO POSSO. Mas não sabia
como fazer isso.
Pede que lhe sirvam um vinho e enquanto conta os minutos para chegar ao seu
destino escreve sua última homenagem à mãe.
MÃE
doce palavra que dá significado a minha vida
que alimenta minh’alma
que embala meus sonhos
que alicerça meus castellos...
nome mágico que eu não sobe pronunciar
meu modelo de mulher
minha âncora familiar
sentirei eternamente a tua presença em minha vida
perpetuarei teus valores,
tuas crenças através de minha existência...
Tua coragem de lutar pela vida
com dignidade, estão impressas em minhas mãos
que constroem obras sólidas e valiosas
para minha vida e de minhas filhas
tua história eu darei continuidade
e realizarei os meus e os teus sonhos
que deixastes de herança para mim
tu sabes que eu posso
sou uma mulher forte que crer no impossível
porque crescí assistindo
tu tirares leite de pedra para nos alimentar
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ainda sinto tuas mãos calejadas cuidando das minha brotoejas
e ouço tua voz cantando sempre a mesma canção:
“...aos pés da santa cruz, você se ajoelhou, e em nome de Jesus um
grande amor você jurou, jurou mas não cumpriu, fingiu e me enganou,
pra mim você mentiu, pra Deus, você pecou,...”
Minha mãe, minha vida
tu fostes o espelho através do qual eu me constiuí
sou tua filha
tua imagem e semelhança!
O avião pousa no aeroporto de Porto Velho às 03:00h da manhã. Ella pega um
táxi e viaja mais algumas horas até o hotel onde ficará hospedada. Chega ao
hotel, toma um banho, pede um café. Fuma um cigarro enquanto pensa como será
encontrar uma mãe quase morta em um leito de hospital. Mil pensamentos pasam
pela sua mente e muitas culpas também. Sente raiva por estar alí tendo que viver
esta situação e sentindo-se impotente diante da morte de alguém que para Ella
tivera sido até então apenas uma mãe distante. É duro ter de reconhecer que
pouco sentiu a importância da mãe, pelo contrário, sentiu-se meio mãe da mãe a
vida toda.
Perdida em seus devaneios vai arrumando sua valise de mão com roupas e
presentes que trouxe para os parentes e a mãe.
Antes de sair do hotel, faz uma ligação para São Paulo informando que chegou
bem, pede que avisem ao Humberto o telefone do hotel onde ella está hospedada.
No hospital é esperada pelo médico diretor, amigos e o irmão Mário.
Antes de ver a mãe pede para ver os relatórios médicos e as prescrições desde o
dia em foi hospitalizada no primeiro hospital. Os amigos ficam perplexos com a
suposta frieza de Ella e o médico atende ao seu pedido.
Ella senta-se no consultório e lê atenciosamente o prontuário da mãe e encontra a
falha médica e a constatação da ignorância do profissional que cometeu um erro
grave na medicação da paciente e nem percebeu, pois os papéis estavam alí para
provar a falha _ a incompetência profissional e humana.
Quando a mãe desenvolveu um infecção no aparelho respiratório, medicaram-na
com sulfa. Ella reagiu com um quadro alérgico em 24 horas. Entraram com
corticóides, o quadro cedeu. Surgiu um quadro de broncopeneumonia, medicaram
_ pasmem_ com sulfa!! Em 5 dias, Sofia estava com um edema de glote
persistente que justificava um procedimento específico pontual. O quadro evoluiu
para comprometimentos respiratórios graves e o inevitável choque anafilático não
foi diagnosticado em tempo, produzindo a falência parcial do cérebro por falta de
oxigenação. Os médicos nem viram a burrice que fizeram e tentaram justificar a
gravidade do caso com diagnósticos absurdos e irreais.
Mas era tarde. A mãe estava morrendo. Apesar da vontade de gritar e meter a
mão na cara do médico, largou os papéis sobre a mesa e foi ver a mãe.
Sofia estava deformada, inchada e prostrada sobre o leito. Quase não respirava
mais e só mexia as mãos tentando comunicar-se com os presentes alí no quarto.
Ella fallou bem perto de seu rosto: “Mãe, sou eu, estou aqui com você. Demorei
mais cheguei... cheguei para te dizer que te amo”. Sofia abriu rapidamente os
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olhos e balbuciou: “...filha, minha filha,... estou cansada...” Ella segurou forte a
mão della e disse que tudo estaria bem, que tudo passaria. “A dor passa mãe, o
medo passa, o sofrimento passa,... você já pode partir. Chega de sofrer mãe. Já
passou da hora... você sofre há 57 anos... eu queria muito retirar a dor do teu
corpo e respirar por você, mas vou rezar para aliviar tua dor”.
Pede às visitas e ao médico que saiam do quarto.
Senta-se em uma cadeira ao lado da cama e conta suas histórias e canta velhas
canções para a mãe. Troca a roupa da mãe molhada de suor, limpa sua cama, dálhe água em gotas tentando desesperadamente dá algum conforto a ella.
Passa horas conversando com a mãe sabendo que ella não respondia mas sabia
que a filha estava alí. Ella sabia que a mãe sabia de sua presença apesar de ter
entrado em coma profunda um minuto depois de ver a filha ao seu lado pela última
vez.
A noite passa e Ella continua ouvindo a respiração lenta e pesada da mãe,
contando as horas para vê-la partir. Quando amanhece o dia pede que chamem
um padre para dá-lhe a extrema-unção (unção com o óleo dos enfermos). Sofia
era católica apostólica romana praticante. Ella sabia que a mãe gostaria de
receber um sacramento antes de morrer.
Na noite do dia 01 de agosto às 21:00h a mãe morre silenciosamente.
Ella estava fumando um cigarro na varanda do hospital enquanto esperava que
todos voltassem. Estava sozinha com a mãe. Apaga o cigarro e entra no quarto
para arrumar o soro que escapava da veia, quando ouve a última respiração da
mãe e vê seu corpo relaxando, entregando-se ao nada. Ella perplexa consigo
mesma vai arrancando os tubos, soro, esparadrapos, sondas que prendiam o
corpo da mãe, com uma naturalidade assustadora.
Chama o enfermeiro e pede que limpe a cama e o corpo da mãe. Elle olha curioso
para Ella e obedece.
Ella senta-se na cama e apoia o corpo da mãe em seu colo. Canta uma canção
que ouviu a mãe cantar a vida toda e diz baixinho em seu ouvido que é para
alegrar a sua alma. “Vai em paz mãe, vai na Luz e continua me abençoando de
onde você estiver. Eu vou ficar por aqui prosseguindo com a minha jornada
contando com tua misericórdia e perdão pelas minhas falhas. Só sinto não ter te
mostrado o meu primeiro livro que vou editar em breve... uma parte delle eu
dedico a você viu? Ah, mãe, como estou confusa e sozinha neste momento!”
Passados quase 20 minutos fallando só com a mãe, chegam os parentes e o
médico. É uma cena emocionante para quem vê. Ella sentada na cama
acariciando o corpo da mãe e cantando com o rosto colado no rosto da mãe.
O médico pede que providencie a papelada para o óbito e pede que Ella saia do
quarto um pouco para tomar um suco.
Os parentes amigos choram. O Mário enlouquece gritando para a mãe voltar. Mas
era pura culpa por ter matado emocionalmente aos poucos a mãe.
Sofia quis morrer. Ella estava cansada de lutar com os distúrbios de
comportamento do filho que se drogava há 6 anos.
Providenciam os serviços funerários imediatamente. Ella arruma o corpo da mãe
vestindo-lhe o melhor vestido.
Procura os colares, brincos e todas as bíblias para guardar de lembrança.
Permanece no velório e até a hora do enterro sente um vazio imenso. Pára de
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pensar. Apenas olha o rosto da mãe que após algumas horas volta ao normal
mostrando uma expressão de profunda serenidade.
Ella estava em paz, a mãe estava em paz. O luto, ella faria depois disso.
Durante toda a noite e até a hora do enterro, choveu muito. A água lavou parte da
dor.
MORTE
Uma noite morna e sombria
eu escutava teus últimos suspiros de vida
tua respiração ofegante doía em meu coração
Esperei em silêncio
com o medo pulsando em meu peito
pela tua inadiável partida
fumava um cigarro na varanda
fingindo que tudo era esperado
que nada me assustava
fazia de conta que estava pronta
fria como um túmulo
ensaiava uma indiferença pela tua morte
Num segundo eterno, parei de repirar
quando escutei teu último suspiro
Corrí ao teu leito e vi teu corpo inerte
você havia partido...
peguei tua mão e beijei desejando beijar teu coração!
Ah, como eu quis que você me visse pela última vez...
todo silêncio do mundo caiu sobre mim
segurei uma lágrima
agi com naturalidade
pedindo ao enfermeiro que preparasse teu corpo
Te envolví num lençol miserável
abracei teu corpo nú
vestí tua última roupa
arrumei teus cabelos
pintei teus lábios
beijei teu rosto pela última vez
e disse adeus silenciosamente...
Não esqueça de mim nunca mãe
preciso da tua admiração
para eu continuar crescendo!
Te encontro na eternidade!
Não seria fácil, mas teria que voltar à sua vida em São Paulo.
O seu vôo chega no aeroporto de Guarulhos às 7:00h. Ella entra de novo em seu
ritmo antes mesmo de chegar em casa. Humberto espera por ella ansioso. Conta
como tudo andou durante sua ausência.
Ella falla que vai repensar seus hábitos, seu trabalho, seus desejos. “Estou tão
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cansada Humberto, que sinto como se fosse desmoronar a qualquer instante.
Estou com 31 anos e sinto como se já tivesse vivido 41 e precisasse de umas
férias de 1 ano longe de tudo que fosse obrigações. Estou mais sozinha do nunca,
desanimada e deprimida. Não sei se quero casar outra vez e se o marido é você
mesmo. Pensei muito durante estes dias...”
Humberto ouviu em silêncio o desabafo de Ella e resolve dizer que também não
tem certeza de nada, mas que gostaria de poder estar ao lado della. “Eu não
posso lhe oferecer a presença física que você exige de mim, mas sou presente em
espírito permanentemente. Não sou um bom modelo de marido, mas sou um
homem que a ama muito. Será que você não está esperando muito de um
homem? Será que existe este homem que você procura nas suas relações
amorosas? Eu sou humano e bem sensível para perceber que suas expectativas
são muito altas, seria impossível para um homem agradar você inteiramente. Veja,
eu sei como você deve estar sofrendo com a morte da sua mãe e com todas as
mortes que passaram por você, mas eu estou vivo e quero ser visto como tal. Se
eu não puder ficar ao seu lado como seu marido e companheiro, não quero ser
seu amante nos intervalos das suas atividades. Vou deixá-la em casa para pensar,
dormir e escolher. Quando tiver feito sua escolha, telefone-me que eu virei
correndo”. Humberto despede-se de Ella.
Ella dorme o fim-de-semana inteiro. A única coisa que tem vontade de fazer é
chorar e dormir.
Quando começa a semana, procura seu médico para ser examinada. Está com
stress e em estado avançado de depressão. O médico receita-lhe vitaminas e um
antidepressivo recomendando que descanse uns dias no campo.
Decide passar uns dias na fazenda com as filhas. Faz as malas, dá uns
telefonemas avisando que ficará fora por uma semana. Compra umas revistas e
jornais para atualizar-se enquanto fica na fazenda.
À noite descansa frente à lareira e folheia as revistas com o pensamento longe.
Uma matéria sobre Humberto chamá-lhe a atenção. “O músico e compositor
Humberto Castello esteve desfilando com sua antiga namorada nas noites de
Miami. Tudo indica que reataram o namoro e circula um boato de que pensam em
casamento principalmente porque a namorada está esperando um filho seu”.
Ella fica em estado de choque, não acredita no que lê. “O quê? Isto é uma piada
ou um equívoco, ou não conheço Humberto como pensei que conhecia? Não, eu
estou sonhando, preciso acordar!” Confere o mês da edição da revista. É deste
mês e do ano de 1986 mesmo.
Telefona para a casa de Humberto e deixa recado para que elle ligue para a
fazenda assim que retornar, mesmo que seja de madrugada.
Passa a noite fallando sozinha e andando inquieta. Não dorme um minuto e bebe
duas garrafas de vinho sem perceber.
O dia amanhece e nada de Humberto. Ella toma um banho, alimenta-se e sai para
caminhar. Pensa, pensa e revolta-se sem conseguir organizar suas idéias. Tem
consciência de estar perdendo o controle sobre si, mas a emoção é mais forte que
a razão.
Volta da caminhada esperando encontrar um recado de Humberto, nada.
Monta o príncipe disparando numa cavalgada suicida. Já é noite quando retorna
para casa.
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Senta-se ao lado do telefone com uma garrafa de vinho. Pede à empregada que
sirva-lhe uma salada e uns pães. Já está na segunda garrafa de vinho por volta da
meia-noite quando toca o telefone. É Humberto desculpando-se pela demora em
atender seu chamado. “Minha rainha está descansando? Eu estive dentro de um
estúdio gravando e só voltei para casa agora, desculpe meu amor. Estou com
saudades...” Ella interrompe o discurso delle aos berros. “Você pediu que eu
tomasse uma decisão sobre o casamento não foi? Será que sou eu mesma quem
terá que decidir alguma coisa? Você leu a revista deste mês que falla de você em
Miami? Não, então leia! Leia e aja como homem Humberto... diga que não sabe o
que quer e que não sou eu quem idealiza um homem para tornar impossível nossa
relação. Diga honestamente. Olha, eu tenho muita dor para sentir e alguns lutos
para fazer, não me acrescente mais dores e decepções. Você me fêz tomar uma
decisão inevitável, a de escolher ficar só... é menos humilhante. Sim, porque, não
vejo como seria possível casar com você se você vai ser pai e não esconde do
mundo quem é a mulher dos seus desejos...” Humberto tenta fallar que está
havendo algum mal entendido por parte da imprensa, mas Ella não quer ouví-lo.
Não quer ouvir mentiras. “Não me procure mais Humberto, adeus!”
Ella está vivendo o momento mais difícil de sua vida. Nem a fome em sua infância
foi tão difiícil de superar como está sendo a decisão de ficar sozinha de tudo, sem
pai, sem mãe, sem um companheiro.
Os céus indicavam que era o momento de perder, de renunciar, de desapegar-se
para conquistar o direito de possuir... em algum momento (?!)
Rompe com muitos compromissos, com os deveres que pesavam na forma de
cruz em suas costas, e com o homem que prometia ser o seu sol, a luz da sua
vida. Não dava para dizer que era confortável, mas era imprescindível.
A dor em sua alma chegou avassaladora e implacável. Estava deprimida, sabia
disso mas não tinha forças para pedir socorro.
Comprou um Jeep preto, trocou de roupas e saiu pelas noites sem destino. Vestiase como homem para ser confundida na multidão, para poder entrar e sair de
qualquer bar sem ser importunada pelas cantadas patéticas de final de noite.
Encontrou novos amigos que sabiam beber e entendiam de bebidas. Para estes
novos amigos fallava quase nada sobre sua vida e não os levava em casa, não
em sua casa verdadeira _ seu lar. Havia comprado um refúgio na cobertura de um
prédio na Paulista e lá passava muitas noites lendo, vendo televisão, escrevendo,
bebendo e recebendo os novos amigos. Os vagabundos solitários da noite. Era
assim que Ella os chamava carinhosamente.
Muitas noites adormeceu chorando sem saber porque chorava. Tudo em sua vida
doía e o vazio crescia descontroladamente.
Não suportava ficar muito tempo no mesmo lugar, estava com as turbinas ligadas
na máxima potência para a loucura e transgressões e sem uma pilha para sentir
algum prazer em estar viva.
Ella estava bebendo cerca de duas garrafas de vinho por dia. Seu cérebro não
funcionava mais sem o etanol.
Fazia um ano que havia conhecido Humberto _ dezembro de 1985 _ e para não
reviver os mesmos sentimentos vividos nos natais de sua vida, compra uma
passagem para Santiago do Chile indo até Cuzco no Perú, onde passaria o natal e
fim-de-ano. Viaja de mochila decidida a acampar.
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Durante as subidas das montanhas para acampar, olha para seus pés e não se
reconhece. Ella havia partido para muito longe e talvez não voltasse mais. Hoje
era uma mulher sem alma, sem brilho nos olhos, vestindo roupas masculinas
escuras, calçando botas de couro rústico pesadas, trazendo nas mãos O VAZIO.
Na mente, um turbilhão de idéias que não se complementavam e sempre as
mesmas perguntas: “Existe uma razão para tudo isso que enfrento? Tem que
haver ou vou enlouquecer... Será que estou só e ninguém me vê? Deus morreu?
Por que corrí tanto para morrer de solidão?”
No alto da montanha arma sua barraca silenciosamente como num ritual de
meditação. Acende uma fogueira, pega um sanduiche, uma garrafa de vinho e
senta de frente para o sol poente. Bebe o vinho e contempla a belleza do alto sem
pensar no amanhã. Fica divagando horas sem chegar a lugar nenhum até tarde da
noite. Parece que alí era um pedaço do mundo onde Ella podia estar sem haver
necessidade de possuir uma identidade, simplesmente era filha do planeta.
Encerrava sua noite bebendo sua segunda garrafa de vinho, anestesiada.
Na noite de natal nada lembra o natal, apenas sua enorme tristeza. Comia umas
frutas secas e bebia um vinho contando as estrellas no céu. Manolo, um mexicano
que também acampava na mesma montanha aproxima-se para dizer feliz natal.
Ella convida-o a sentar-se e comer frutas. Elle diz que está alí pelos mesmos
motivos que trouxeram-na: “O querer estar absolutamente só. Mas não se iluda,
tudo está dentro de você. As pessoas que você acredita ter perdido e aquellas das
quais quer fugir, todas estão em sua mente. Para qualquer lugar que você for,
você estará levando sua história consigo”. Ella olha para elle sem uma palavra
para dizer, apenas sorrí. Elle dá-lhe de presente um pequeno cristal de quartzo
azul dizendo: “Não esqueça de sua origem. Chore toda sua dor e volte para você.
O mundo precisa de você sóbria e sábia... esta pedra é a mesma que você trás
impressa entre os olhos, lembra-se? Não morra de pena de você mesma, seria
uma pena... Eu vou descer a montanha dentro de dois dias, se quiser venha
comigo”.
Ella desce a montanha no dia 31 de dezembro de 1986. Não quis seguir Manolo,
prefere caminhar sozinha. Acampa a beira de um lago e alí passa meditando até o
fim do dia 1° do ano novo de 1987.
Vai acampando de lago em lago até a segunda semana de janeiro quando sentese entediada e retorna ao Brasil.
Refugia-se em sua cobertura sem vontade de ver ninguém. Vai até sua casa
durante a madrugada pegar os rascunhos de seu livro, seus poemas e pinturas
inacabadas.
Durante infindáveis noites tenta desesperadamente escrever ou pintar e não
consegue. Desiste. Procura nas revistas da moda os lugares da moda
frequentados pelos artistas. Passa a frequentar alguns destes lugares na
esperança de rever Humberto. Encontra um amigo comum que lhe conta que
Humberto casou-se há dois dias atrás. Ella não disfarça seu estado de choque.
Volta para casa sentindo-se do tamanho de uma formiga.
Passa o resto da noite ouvindo os discos delle, chorando e bebendo seu vinho
predileto. Veste um pijama listrado de azul e bege, sente um frio na alma vendo
seu corpo caído no tapete da sala, parte em busca da morte.
O telefone toca, Ella acorda às 11horas da manhã e se assusta por estar viva. É
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Manolo telefonando para dizer-lhe que está de passagem por São Paulo e quer
vê-la. Ella ainda meio dormindo pergunta o que elle quer com ella. “Você resolveu
que vai me acordar quando eu quiser morrer? Quem mandou você cuidar de mim?
Olha, não vai dá sabia? Eu fugí de tudo e de todos, só tenho amigos vagabundos
desprendidos que não se importam se eu quero viver ou morrer desde que eu faça
o que quero, e está muito bom sabia? Não preciso de um anjo-da-guarda... De
que planeta você veio? Ah, deixa pra lá, onde você está? Venha até aqui, vou ficar
em casa”.
Ella recebe Manolo ainda vestida de pijama, despenteada, tomando um café
numa caneca. Acende um cigarro e convida-o a sentar-se no meio da bagunça.
Mostra as fotos de Humberto pra elle e põe o seu disco mais recente para tocar.
“Ella, se você quer tanto este homem por que não luta por elle? Não vai ser bom
para você continuar se torturando assim. Páre agora, você parece um mendigo
toda suja e mal vestida cheirando a álcool e cigarros. Sua casa parece uma
maloca, tudo jogado e cheirando mal... não sei onde você quer chegar, mas acho
que já foi longe demais. Vamos caminhar por aí e depois comer algo nutritivo está
bem?”
Ella ouve seu amigo. Toma um banho, veste uma roupa limpa, põe um perfume e
sai para caminhar pelo bairro. Almoçam num restaurante japonês, visitam algumas
livrarias e vão ao cinema. Há muitos anos que Ella não ia a um cinema.
O filme conta a história de uma mulher que vive em busca do amor verdadeiro e
após experimentar várias relações, todas fracassadas, sente-se punida pela vida e
tomada de verdadeira insanidade, resolve autodestruir-se drogando-se e bebendo,
virando às noites pela rua só voltando para casa quando tinha que trocar de
roupas. Achando que ainda era pouca a violência na qual transformara sua vida,
ingressa em um grupo terrorista chileno. Só se dando conta do passo suicida que
deu quando tenta fugir e é torturada e mantida em cárcere a pão e água durante
anos.
Durante o tempo em que é mantida prisioneira do grupo terrorista revê sua vida,
seus amores, suas perdas, conquistas, erros e acertos, e escreve. O último prazer
que lhe restara, ella sabia, estava morta.
Ando pelas ruas exibindo minha cara pintada
com as marcas da tua passagem pela minha vida
mexeu no meu lugar mais sensível e saiu batendo a porta
saiu sem dizer onde em mim você se viu pior
Passou por cima da minha dor
deixou tantas mágoas
deixou marcas que nem o tempo apagará
meus olhos lacrimejam sangue
Penso se não te idealizei apenas...
Ontem sonhei com você
sonhei mais uma vez
vivo sonhando, fico esperando, fico rezando
penso em você se afastando
saindo do meu filme
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Insisto em te eleger meu objeto de prazer
saio na noite de olhos abertos procurando você
você não está lá, só minha sombra
Vivo mil tentações
danço todas as músicas
bebo do mais puro veneno, a sedução
me arrebento de emoção
mergulho na canção
me entrego de coração para todas as paixões
me violento
me machuco
passo por cima de mim, violo meus dogmas
quebro tabus
rasgo minhas roupas
vou até os infernos
sinto volúpias
fico cega, fico suja, louca de prazer
me jogo aos teus pés
você não me vê
choro de ódio
fantasio tua morte
cheia de chagas
bate a vergonha, a culpa
corro pra casa pra me limpar
a água não limpa a humilhação
Dói tudo em mim
um aperto na garganta estrangula um grito
choro desesperada
luto para te esquecer
Não quero morrer sozinha
toca uma música para eu viver
Tua sombra, minha luz
Tua vida , minha cruz
minha cegueira por você, por querer
quero te ter
Estou perdida te esperando
minha taça está vazia
quero beber do teu sangue
minha boca está seca
quero teu beijo
teu abraço sufocante
Quero teu olhar me dizendo só o que posso ver
quero te ver com os olhos que queres ser visto
Teus caminhos, meus labirintos
te espero em cada esquina
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te desejo em cada abraço
quero teu toque, teu rock
meu abismo, minha estrada de volta pra mim
Tua voz, tuas palavras mansas mentirosas
como eu pude ser tão cega?
Tuas brincadeiras partiram meu coração
morrí naquella mesa de bar
Tantas palavras nas mesas de bar
frases confusas definem promessas de amor
mas de amor nada foi dito, tudo me parece tão frágil
suas mãos tremem e sinto a distância dos mundos que nos separam
fico sem ação, bate uma tristeza familiar
tudo passa como se fosse num filme
parece que tudo foi dito antes da hora
você me encosta na parede, na mesma parede
onde fui fuzilada porque acreditei em você
morrí por você
torno a sentir a mesma tristeza
quando você friamente pergunta se sei quem é você
é assustador, mas sei
você é o homem que sempre quis pra mim
e eu sou apenas um sorriso iluminado pra você
um olhar terno que te aquece
ainda tenho o mesmo olhar que te olhou sorrindo à morte
Você não sabe, mas sente-se em dívida comigo
sente as mesmas correntes presas aos nossos pés
assim como um imenso abismo que nos separa
Agora quero contar os dias te esperando
fazer um bolo de chocolate
me enroscar nos teus braços
fazer amor no tapete da sala
Nesta busca sofrida pelos signos da minha vida
busco valores, palavras, sentido nas pessoas
e tropeço em meu próprio ego
rejeito, critico, abandono e descarto como lixos afetivos
sem certeza de nada
fica tudo abstrato
filmo o mundo com uma câmera subjetiva
Eu dormia e não via que a vida passava silenciosamente para não me
acordar
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eu dormia para me esconder dos desafios
fugia com medo de não ter onde me agarrar
se a vida entrasse para me acordar
queria viver depois de crescer
eu só via uma estrada
você morreu antes de eu chegar
Quero ser livre
sair pelo mundo em busca de um amor maior
quero poder achar um caminho para meus passos lentos pisarem
quero ser um espaço em busca do infinito
sair do ninho
cair no mundo sem destino
voltar às minhas origens
quero tomar champanhe numa taça de rosas vermelhas
andar nua pelas praias desertas
dançar uma valsa de Viena
segurando em suas mãos
Como uma rosa, me guardo despedaçada entre páginas de livros da
vida
sirvo apenas para marcar passagens inesquecíveis das estórias
quase seca e esfarelada, lembro emocionada das vezes em que fui
beijada
afagada por mãos macias e ardentes
outras vezes por mãos ásperas, geladas e apressadas
fui beijada e mordida por bocas famintas cheias de desejo
hoje sinto-me tocada por mãos nostálgicas e indecisas
que me esmagam perdidas em recordações
sou apenas restos de vida
as luzes apagaram-se, a festa acabou
procuro uma saída ou morro por entre páginas do livro da minha vida
Teu olhar no meu olhar, procurava palavras que dissessem do que não
sabíamos dizer...
aquelle encontro quase acidente, parecia planejado
fingimos que tudo alí era novo
teimei em te ver como nunca vira antes
mas era mentira, eu sabia, te reconhecí
o mesmo sentimento ameaçador que precede uma partida sem dizer
adeus
sem dizer quando volta e se volta
mesmo assim eu te queria naquelle momento
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te queria como se meu ser te esperasse há 920 anos
tu te aproximastes maliciosamente como se estivesse num jogo de
xadrez
eu perdí a linha, fiquei em transe
era o mesmo filme de sempre
tua voz macia escolhendo palavras chaves me dizia tantas coisas
eu estava embriagada e perdida no tempo esquecendo meu texto
tua presença me amolecia, me hipnotizava
eu só olhava e sentia um torpor em minha alma
depois tuas mãos nas minhas mãos disparou meu coração
tu tocavas suavemente como quem toca uma linda canção de amor ao
piano
o calor e a leveza dellas misturado com doçura quase derreteu minha
pele
era uma mergulho no meu próprio abismo
um misto de medo, curiosidade, prazer,... eu quis correr o risco
eu te queria para sempre dentro de mim
eu quis o teu desejo, te olhei com os olhos que querias ser visto
tu te vistes em mim, mergulhastes em ti
Foi no teu olhar que eu ví todos os meus sonhos
tu me olhavas com o olhar que havia dentro de mim
tudo foi dito assim, apenas olhando, tocando...
sonhei com os olhos abertos
fui envolvida por uma bruma violeta úmida
meus olhos se molharam nos teus, sentí meu corpo em transe
eu gemia de dor, tudo em mim pulsava
o suor escorria se misturando com a festa que nossos corpos faziam
tuas mãos tímidas e macias passeavam pelo meu corpo ao som de um
rock
tudo se misturava, a música, a cerveja, teu cheiro e tua voz
sobrenatural
Meu coração ingênuo dizia que te queria a qualquer preço
teus negros olhos próximos aos meus me enlouqueciam
já não dava mais para pensar
nossos corpos num abraço eterno funde nossas almas
teu rosto áspero roçando o meu, tua boca macia procurando a minha
teu hálito de bicho no cio, eu nunca esquecerei
teu abraço ainda está no meu corpo
teu cheiro ficou impregnado em minha pele
teus dedos tímidos penetrando minha pele, sentí tua vida entrando em
mim
teu coração disparado ainda sinto no meu
me beijou como se quisesse me ter para sempre
apertou meus lábios contra os teus como se temesse perdê-los
me dizia com teu beijo como queria ser beijado pela mulher amada
me pedindo que bebesse da tua saliva pois a minha já estava no teu
sangue
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tudo em mim explodia como se fosse magia
fiquei em êxtase, me perdí, perdí os sentidos
tudo girava a minha volta
se eu morresse alí já teria valido a pena as voltas que o mundo deu em
mim
me afoguei no teu romance de príncipe das madrugadas geladas
respirei o ar que exalavas, me iluminei com a luz dos teus olhos
me perdí nas trevas das tuas dilatadas pupilas negras
De repente o encanto acabou
tua boca não procura mais a minha, tuas mãos me soltaram
eu caí em queda livre sentindo todas as dores que encontrei em ti
desparecestes nas trevas que te trouxeram
Hoje saí pelas noites procurando por ti
em cada esquina alucino tua presença
só a noite fria e escura me abraça como a morte
agarro-me às lembranças que são minhas fantasias
choro baixinho para não te acordar
para não te incomodar na tua viagem sem volta
para não te revellar a verdade sobre tua vida
Meus olhos estão nublados de dor
tu só existes em meus sonhos
posso te achar e te perder quantas vezes eu sonhar
o teu beijo é meu, teu cheiro está em mim
tu e eu somos UM
viverás para sempre em mim
para além da eternidade!
Assim como Ariana, a protagonista do filme, Ella sentia-se quase morta. Este filme
que assistia com Manolo, era um sinal de alerta que mostrava até onde ella
poderia chegar se não lutasse para continuar viva com saúde. Ariana era a
configuração da sua sombra do ponto de vista psíquico e era aterrador se ver
através da personagem de uma história que poderia ser vivida não só por Ella,
mas por milhares de mulheres neste planeta.
Corre para fora do cinema para respirar e ver a luz. Ella precisa reconhecer-se
livre e compromissada com tarefas importantes que davam um sentido à sua vida,
sem tomar a forma de cruz como se fossem impostas. Não.
Ella não poderia ser viciada em sofrimento e menos ainda sentir raiva dos homens
como Ariana que levantou a bandeira de mulher desprendida, sem afeto, sem
significado, que deu um tiro no peito quando não conseguiu mais escapar do
cárcere dos terroristas. Para além de autopunição, este cárcere na vida de Ariana,
era a perpetuação do seu medo de ser livre.
Ella convida o amigo Manolo para viajar pelas praias brasileiras bebendo muita
água de côco.
Ás volta pelas estradas durante meses, Ella vai retomando seus sonhos ainda
sem saber com segurança o quanto está salva ou escrava das suas conquistas
predestinadas.
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Ainda sente a perda de Humberto quase três anos depois de conhecê-lo.
Olhar perdido na noite
dores doídas no peito
vontade imensa de te ver
esperando sem saber
sem saber nem se você quer me vê
esperando que a porta se abra
olhando aflita com as mãos prontas para te tocar
ensaiando cada frase para te dizer
respirando fundo para aguentar a espera
pensando no sentido das tuas fallas
no sentido dos teus pedidos
no sentido das tuas promessas
pensando no jeito como pegastes minha mão
sentindo outra vez aquella emoção
contemplando as estrellas no céu
construindo castellos com as nuvens que passam
escrevendo estórias para te ter mais perto de mim
te incluindo no meu filme
na noite fria e silenciosa
ouço seus passos voltando pra mim
a porta abre, eu alucino te ver
sinto o teu perfume no ar
ouço tua voz me chamando
cantando aquella canção que eu gosto
contando as mesmas mentiras de sempre
pedindo para eu ficar em casa
me olhando com um olhar encantador
me abraçando até sufocar
me arrastando pro bar
me pedindo para eu correr atrás de você
me deixando sozinha para escolher
Ella entende que entrou em pânico quando percebeu que deveria assumir seu
papel de mulher com direito a desfrutar do seu feminino em seu sentido mais
amplo e mais profundo quando sua mãe morreu.
Hoje ella ainda está assustada e sentindo-se perdida no meio de sua própria
história, mas já ensaia os primeiros passos para retomar sua vida, sua casa, sua
familia.
Ainda fica maior parte do tempo no apartamento e dentro do Jeep preto mas já
voltou a meditar todos os dias e bebe mais água do que vinho.
Sua mãe foi enterrada e o luto está sendo vivido agora, no momento em que sente
ter uma mãe psíquica muito forte.
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O RESUMO DA VIDA NO DESPERTAR DA DIVINDADE ENCHE OS
OLHOS DE LUZ E O CORAÇÃO DE SABEDORIA
Ella está meditando em seu santuário fazendo um jejum há três dias a base de
frutas e chás florais.
Está de volta para casa após anos viajando pelos céus e infernos de sua
existência. Sabe que venceu muitas batalhas armada de fé e sabedoria porque
sua história está sendo escrita pela força selvagem feminina que emana de seu
espírito, do seu Divino, do seu inconsciente, da sua mãe, do seu pai,... do Sol que
ilumina sua vida.
Ella acordou em tempo de reformular seu enredo sem rasurá-lo podendo colocar
algumas vírgulas para resignificá-lo e até valorizar sua peregrinação pelas trevas
como sendo uma caminhada necessária para seu amadurecimento emocional e
espiritual, uma vez que encontrou a saída com sanidade física e mental.
Suas filhas cresceram e podem compreender as razões dos mergulhos
emocionais da mãe. Ellas sabem que têm uma mãe alienígena que ainda está
aprendendo a viver dentro de um sistema social e religioso frágil e paradoxal, o
que torna bem difícil sua caminhada sobre patins em terreno pedregosos e
esburacados.
Christal tem 22 anos, Luzia 16 e Ella está com 40 anos. Muriel, pai de Christal
ainda faz parte da família e cuidou das filhas enquanto Ella saiu para procurar sua
Luz, sua verdade, seu lado feminino, seu Sol _ seu lado masculino.
E por fallar em Sol, enquanto Ella arruma sua Oficina de Meditação que
inaugurará dia em 10 de outubro de 95, atende uma chamada telefônica que sua
secretária diz ser de alguém que pediu para não ser identificado.
“Ella, posso cantar uma canção que fiz para você? Não bata o telefone antes de
eu contar o resto da minha história está bem? Eu lí uma matéria sua sobre
reencarnação vista através da ótica da psicanálise, você é corajosa hein! Como
vai?” Humberto está tentando refazer contato com ella após 9 anos de silêncio.
Ella sente como se já esperasse por isso e responde naturalmente. “Venha cantar
a canção em casa hoje, vou servir-lhe um bolo de chocolate com cappuccino. Às
18horas está bem para você?”
Humberto chega pontualmente às 18h trazendo de presente rosas amarelas e um
anel de ouro e brilhantes.
Ella aceita o pedido de casamento.
À bordo do vôo que a leva a Itália, Ella revive mentalmente momentos raros de
sua vida e anota cuidadosamente seus compromissos em sua agenda sempre
cheia.
“As vezes me assusto quando penso como tudo sempre aconteceu de uma forma
muitas vezes tão incompreensível e até um tanto mágica... não, eu quis que fosse
assim e desenvolví recursos para dar saltos tão altos sem retroceder um passo. É,
eu vivo a vida que escolhí viver. Papisa disse-me que estaria presente em minha
vida iluminando meus passos, sempre que eu meditasse... Manolo veio para
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lembrar-me disso no momento eu que estava acreditando que todos haviam
esquecido de mim, que estava sozinha e Deus havia morrido. Não, eu estava
sendo carregada no colo por ELLE “.
SOU MULHER POR VOCAÇÃO
TENHO O PEITO CHEIO DE LEITE
UM CORAÇÃO ARDENTE
CHEIO DE AMOR
OLHANDO PARA O FUTURO
PLANTO A VERDADE AOS MEUS PÉS
LAVO MINH’ALMA COM LÁGRIMAS DE CRISTAL
VEJO A VIDA COM OLHOS DE GUERREIRA
REALIZO MEUS SONHOS COM A SABEDORIA DE UM MESTRE ZEN
O IMPOSSÍVEL É POSSÍVEL
QUANDO SE TEM A MENTE ILUMINADA !
Ella saboreia um vinho enquanto divaga entre sua infância e sua maturidade.
Perdido no meio dos seus pensamentos, apararece August quando voltou ao
Brasil para procurá-la. Elle estava com 36 anos e visivelmente perdido procurando
por uma Deusa que elle não percebera, estava embrionária dentro delle. Ella
desculpou-se e saiu correndo com medo de cair noutra armadilha afetiva por pura
carência. August levará um tempo para entender o desencontro.
O mundo é uma escola perfeita para quem está pronto para aprender.
A voz no alto falante anunciando que o trem de Milano está chegando, trás Ella de
volta para o presente.
Humberto, seu marido está chegando neste trem em Firenze onde faz um frio de 5
graus negativos, mas o vinho garante uma parte do aquecimento de seus corpos.
“Há dentro da psique uma função que cria arte e poesia e que brota quando
o ser humano espontânea ou propositadamente OUSA se aproximar do
núcleo instintivo da psique. Este local na psique, onde se reúnem os
SONHOS, AS HISTÓRIAS, A POESIA E A ARTE, constitui o misterioso
habitat da natureza selvagem e instintiva”. (Mulheres que correm com os
lobos _ Clarissa Pinkola Estés)
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Bibliografia:
“Além do Cérebro_ Nascimento, Morte e Transcendência em Psicoterapia” _ Stanilav Grof_ McGraw-Hill
“Em Defesa de Uma Certa Anormalidade_teoria e clínica psicanalítica” _ Joyce McDougall _ Artes Médicas
“Psicologia e Religião Oriental” _ Carl Gustav Jung _ Vozes
“O Sítio da Mente” _ Henrique Schützer Del Nero _ Collegium Cognitivo
“O Seminário _ as Psicoses” _ Jacques Lacan _ Jorge Zahar Editor
“O Resumo das Obras Completas de Freud” _ Livraria Atheneu
“Mulheres Que Correm Com os Lobos” _ Clarissa Pinkola Estés _ Rocco
“O Falo de Deus” _ Howard Eilberg Schwartz _ Imago
“O Tao da Física” _ Fritjof Capra _ Cultrix
“O Essencial do TAO” _ Thomas Cleary _ Best Seller
“O TAO e a Realização Pessoal” _ John Heider _ Cultrix
“O Poder do Silêncio” _ Carlos Castaneda _ Record
“Gestos de Equilíbrio” _ Tarthang Tulku _ Pensamento
“Reflexões sobre a Mente _ O Encontro da Psicologia Ocidental com o Buddhismo Tibetano” _ Tarthang Tulku _
Pensamento
“A Chave do Reino Interior” _ Robert A. Johson _ Mercuryo
“A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen” _ Eugen Herrigel _ Pensamento
“O Despertar dos Mágicos” _ Louis Pauwels e Jacques Bergier _ Difusão Editorial
“Um Caminho com o Coração” _ Jack Kornfield _ Cultrix
“O Espírito do Zen” _ Alan W. Watts _ Cultrix
“O Conhecimento da Liberdade” _ Tarthang Tulku _ Dharma
“Os Símbolos da Ciência Sagrada” _ René Guénon _ Pensamento
“O Corpo Mental” _ Arthur E. Powell _ Pensamento
“O Mundo de Sofia” _ Jostein Gaarder _ Cia das Letras
“Amor, Medicina e Milagres” Bernie S. Siegel, M.D. _ Best Seller
“Memórias Sonhos Reflexões” _ Carl Gustav Jung _ Aniela Jaffé _ Nova Fronteira
“O Homem e seus Símbolos” _ Carl Gustav Jung _ Nova Fronteira
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