DA HEURÍSTICA DO INVENTÁRIO DAS ESCOLAS À
Transcrição
DA HEURÍSTICA DO INVENTÁRIO DAS ESCOLAS À
427 DA HEURÍSTICA DO INVENTÁRIO DAS ESCOLAS À HERMENÊUTICA DA PRODUÇÃO HISTÓRICA Margarida Maria Louro Felgueiras Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação RESUMO O estudo da empiricidade no campo educativo tem sido algumas vezes entendida como a observação, descrição dos gestos, dos modelos de relação, dos próprios discursos dos práticos da educação. Ora esta visão corre o risco de ignorar a materialidade que suporta, organiza e também determina o conjunto de atitudes e relações que se estabelecem no quotidiano da organização escola. Daí preferir falar de cultura material escolar, para dar conta do espaço, do mobiliário, dos materiais de ensino e aprendizagem, entre outros, que ajudam a qualificar o espaço escola e as práticas que nele tomam lugar. Não esquecendo que o significado dos artefactos e a sua influência na estruturação do quotidiano escolar, sendo um dos objectivos procurados no estudo da cultura material, só se encontram através do uso que os actores educativos deles fazem. A materialidade da cultura escolar importa pois, em última análise, para a compreensão mais profunda das práticas dos sujeitos, e não em sua substituição. Daí que o recurso aos depoimentos e narrativas de alunos e professores seja um meio de tornar inteligíveis esses artefactos e dar voz a grupos que a História esqueceu. Não existindo uma definição clara sobre o que uma escola deve guardar do seu presentepassado, muito do que podemos hoje encontrar como fontes para a história da educação é, na sua grande parte, resultado do acaso. E talvez por isso mesmo, estes vestígios da educação do passado adquiram o poder de nos surpreender, quando empreendemos o seu estudo. Na verdade traduzem um processo social de esquecimento, correlato da pouca importância que em Portugal se tem atribuído à educação. O inventário dos espólios, a constituição de colecções, a descrição museográfica dos objectos são momentos do processo heurístico de constituição de fontes, que aparece muitas vezes como trabalho preliminar no estudo da herança educativa. Como trabalho empírico é conduzido por objectivos previamente definidos e surge prisioneiro de teorizações e conhecimentos estabelecidos. Pretende sobretudo contribuir para alargar o campo concreto de inquérito, constituir novos sub-objectos de pesquisa, fundamentar respostas a interrogações formuladas no quadro de um conhecimento induzido a partir de discursos do poder. Trabalhando há já alguns anos no inventário dos espólios das escolas de primeiro ciclo do Norte de Portugal, inicialmente com vista à criação de um museu, que não se concretizou, mantemos hoje o objectivo mais prosaico do seu estudo e de sensibilizar a comunidade científica e os professores para a sua conservação. Na realidade o inventário das escolas suscita interrogações novas, questiona certezas, possibilita uma hermenêutica mais geral sobre o processo de escolarização, a possibilidade e o significado de práticas educativas inovadoras. Pretendemos neste trabalho apresentar algumas questões suscitadas a partir da prática de inventário, e de como elas problematizam afirmações correntes e se constituem como novos projectos de pesquisa. Permitir-nos-emos ainda pensar as funções de um discurso museológico sobre a educação hoje, numa ‘sociedade de espectáculo’, tendo em conta as propostas que desde o século XIX se realizaram sobre museus escolares e pedagógicos. Utilizaremos, simultaneamente, um conjunto de fontes, pouco invocadas mas importantes para a história da educação e para a descrição museológica. Fontes que se encontram em empresas, arquivos e bibliotecas, que atravessaram fronteiras, como os catálogos de fábricas e de casas comerciais sobre mobiliário e materiais pedagógicos, que patenteiam o mundo das relações profissionais e da circulação de bens e de ideias. Permitem-nos tecer, através de apropriações locais, uma rede de relações, de geometria variável, traduzidas no uso de materiais vários e na constituição de discursos educativos. 428 INTRODUÇÃO O estudo da empiricidade no campo educativo tem sido algumas vezes entendida como a observação, descrição dos gestos, dos modelos de relação, dos próprios discursos dos práticos da educação. Ora esta visão corre o risco de ignorar a materialidade que suporta, organiza e também determina o conjunto de atitudes e relações que se estabelecem no quotidiano da organização escola. Daí preferir falar de cultura material escolar1, para dar conta do espaço, do mobiliário, dos materiais de ensino e aprendizagem, entre outros, que ajudam a qualificar o espaço escola e as práticas que nele tomam lugar. Não esquecendo que o significado dos artefactos e a sua influência na estruturação do quotidiano escolar, sendo um dos objectivos procurados no estudo da cultura material, só se encontram através do uso que os actores educativos deles fazem. A materialidade da cultura escolar importa pois, em última análise, para a compreensão mais profunda das práticas dos sujeitos, e não em sua substituição. Daí que o recurso aos depoimentos e narrativas de alunos e professores seja um meio de tornar inteligíveis esses artefactos e dar voz a grupos que a História esqueceu. Não existindo uma definição clara sobre o que uma escola deve guardar do seu presentepassado, muito do que podemos hoje encontrar como fontes para a história da educação é, na sua grande parte, resultado do acaso. E talvez por isso mesmo, estes vestígios da educação do passado adquiram o poder de nos surpreender, quando empreendemos o seu estudo. Na verdade traduzem um processo social de esquecimento, correlato da pouca importância que em Portugal se tem atribuído à educação. Integrada numa mesa coordenada, com colegas que no Brasil trabalham e partilham das mesmas preocupações, propomo-nos como objectivos desta comunicação: a) reflectir sobre o trabalho empírico que desenvolvemos, com vista à elaboração da escrita historiográfica e do discurso museológico; b) identificar questões que se levantam quando procedemos à identificação e descrição dos objectos, que constituem os vestígios da cultura material escolar. Partiremos do trabalho de inventário, que é comum às práticas de pesquisas de todos os elementos desta mesa, com vista à constituição de colecções históricas de materiais escolares, de organização de exposições e de propostas de núcleos museológicos, para nos desafiarmos a explicitar e reflectir sobre a nossa actividade enquanto historiadoras, num momento em que algumas barreiras disciplinares se esbatem mas se conservam projectos hegemónicos dentro do espaço científico. DA HEURÍSTICA DO INVENTÁRIO O inventário dos espólios, a constituição de colecções, a descrição museográfica dos objectos são momentos do processo heurístico de constituição de fontes, que aparece muitas vezes como trabalho preliminar no estudo da herança educativa. Como trabalho empírico é conduzido por objectivos previamente definidos e surge orientado por teorizações e conhecimentos estabelecidos. Esse facto permite direccionar esforços para se constituir o corpus documental necessário a qualquer investigação, afastando tudo o que não constitua informação relevante para os objectivos traçados. Por vezes, se considerados sob outros pontos de vista, esses materiais que deixamos de lado, manifestam ser de interesse para a investigação. Contudo, o tempo limitado, a necessidade de selecção, a profusão de elementos sobre determinados aspectos do funcionamento das escolas, mas muitas vezes truncados, descartam preocupações com a estruturação, para futuro, dos materiais encontrados e utilizados pelos investigadores. Os horários limitados dos Arquivos, o tempo que demora o tratamento técnico de espólios para serem postos a consulta, a falta de orientações políticas de conservação documental bem compreendidas por todos os níveis das 1 Cf. FELGUEIRAS, .Margarida Louro “ Materialidade da cultura escolar. A importância da museologia na conservação/comunicação da herança educativa” in Pró-Posições. Dossier Cultura Escolar e Cultura Material Escolar: entre Arquivos e Museus, vol. 16, nº.1 (46), Campinas, UNICAMP, 2005. 429 instituições, leva a que o detectar de fontes seja uma preocupação de todos os historiadores mas não a descrição sistemática e inventariação delas. Geralmente procura-se as fontes mas acabamos por abandoná-las ao seu destino. De quando em onde surgem projectos, que procuram salvaguardar algum desse património estudado. Mas uma parte significativa vai desaparecendo sob os nossos olhos. O trabalho de inventariação, que temos vindo a realizar em diferentes lugares, pretende sobretudo contribuir para alargar o campo concreto de inquérito, constituir novos sub-objectos de pesquisa, fundamentar respostas a interrogações formuladas no quadro de um conhecimento induzido a partir de discursos do poder. Neste sentido, inventariar não é descobrir o raro, o exótico, o único ou o protótipo. Inventariar é localizar, desocultar, assinalar as repetições, as ausências, o que é de um determinado local e aquilo que lá está, vindo de proveniência diversa, não conhecida ou não esperada. Assinalar o comum, em cada local, em cada época; referenciar o que nos parece estranho, de origem não conhecida. Em síntese, abertos tanto ao mais comum como ao mais inesperado e procurando integrar tudo num sistema de interpretação/explicação. É com esta perspectiva que temos trabalhado no inventário das escolas de 1.º Ciclo do Ensino Básico e nos temos debatido com os problemas clássicos de perceber a proveniência de alguns dos livros e objectos encontrados. São livros de matrícula ou de registo de frequência de alunos de outras escolas, que aparecem em escola diferente, talvez ocasionado por obras recentes nos edifícios, de junção ou divisão das escolas pelo elevado número de alunos, da mudança de edifício ou de designação da escola. Por vezes são livros de anos mais avançados que se encontram guardados nas escolas e eram propriedade de professores reformados, ou de escolas nocturnas, ou técnicas que tiveram extensão nocturna em edifico do 1.º Ciclo. Para conhecer estes meandros é indispensável recorrer às memórias de docentes e de antigos alunos, que ajudam a conhecer o processo de constituição e desenvolvimento da escola assim como a interpretar os materiais, na sua relação com o uso que deles era feito. Mas as memórias orais parecem cada vez mais limitadas temporalmente nas nossas sociedades de escrita. Na realidade, deparamo-nos com livros e objectos dos quais não tínhamos conhecimento, que nos surpreendem. Os próprios edifícios informam e requerem interpretação. E essa não é tarefa imediata. Se alguns nos comunicam pelo contacto visual “um valor de época”2, muitas vezes o contexto está já tão alterado que se torna difícil identificá-lo. Inventariar estabelece uma certa divisão na investigação histórica, ao inaugurar um momento heurístico, prática antiga entre os historiadores, e dilata tantas vezes o trabalho interpretativo para um segundo momento, que exige, por vezes, nova recolha de dados e um aprofundamento de erudição histórica, que permita fazer a interpretação. Contudo, esta actividade de inventariar não pode ser confundida com a atitude do antiquário, como a formulou Nietzsche3, ainda que possa recuperar dela o carácter afectivo, posto na recuperação dos objectos históricos. Não se pretende com o inventário apresentar uma visão particular do passado nem ressuscitá-lo. Trata-se de um trabalho de registo meticuloso para permitir uma análise cuidada de detalhes, que permitirão construir uma visão de conjunto e formular novas questões ou novas interpretações. E nessa visão mais global, mais geral e mais afastada, há sempre a considerar a hipótese de que alguns aspectos faltam ou podem faltar na narrativa que se escreve. A representação do passado, que a actividade de inventariar contém, encenada visualmente ou pela escrita, como um cenário mais ou menos povoado, advém do sentimento de perda, de deterioração que a passagem do tempo opera. O trazer a materialidade do passado educacional à consciência do presente, torna-a 2 Expressão de Alois Riegl, The modern cult of monuments: its characters and its origin, Viena, 1903, que significa os signos visíveis do desgaste do tempo e de decadência, propriedade perceptível dos edifícios ou objectos, que não necessita de ser mediada pelo conhecimento. Apud BANN, Stephen, As invenções da História. Ensaios sobre a representação do passado (trad.), São Paulo, UNESP. 1994, pp. 156 -157. Cf. CHOAY, Françoise, A alegoria do Património, (trad.) São Paulo, Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001, pp. 167-173. 3 Nas categorias de Nietzsche, a atitude de antiquário era definida pelo “prestar atenção a tudo o que era pequeno, limitado e obsoleto, com um cheiro a mofo”. The use and abuse of History, apud BANN, Stephen, As invenções da História: ensaios sobre a representação do passado, São Paulo, Editora da Univ. Estadual Paulista, 1994, pp. 157-162. 430 testemunho experiencial de um campo vasto, que merece ser imaginado e reconstituído, e que tem sido esquecido e depreciado. … À HERMENÊUTICA DA PRODUÇÃO HISTÓRICA “A história de “visualizar o passado” no nosso tempo não é, portanto, simplesmente o registo de um investimento pessoal em objectos e no seu “valor de época”; é também o registo de uma tendência crescente para acumular e ordenar tais objectos em instalações permanentes, em outras palavras, para montar museus”.4 A afirmação de Stephen Bann de algum modo define o trabalho dos elementos que compõem esta mesa coordenada. Implicadas no estudo da escola e do processo de escolarização, uma das nossas afinidades é a preocupação com a salvaguarda das fontes com que trabalhamos e com a necessidade de lhes restituir uma vida de ícones, que permita às nossas sociedades uma experiência de contacto e simultaneamente de distanciação temporal do passado. O passado distante aparece como uma projecção imaginada mas alimentada por um conjunto de pequenos detalhes, que nos permitem constituir ambientes, atmosferas, visões de conjunto. Participamos dessa epopeia que é trazer o passado ao presente, de forma cuidada, encenada, estetizada, aspecto que não teve muitas vezes para os contemporâneos. O museu estabelece uma mediação visual do passado, que cria um efeito envolvente, procurando sobretudo cercar o visitante de fragmentos, que vão do uso quotidiano à obra prototípica, compondo no seu conjunto, um ambiente sensível ao visitante. Cada elemento adquire sentido como ícone de uma época, de uma experiência histórica concreta e não tanto em si mesmo. A experiênciação de um tal contacto visual cria um sentido de globalidade, que transcende a soma das partes. Segundo Stephen Bann5 tal representação visual só tem paralelo na visão panorâmica, de um espaço pleno. É também aqui que o museu se aproxima do espectáculo, da encenação e da tendência actual para se tornar parte da indústria cultural. Poderão os museus resistir a essa pressão e que consequências isso acarretará para as suas funções, são perguntas a que ultrapassam o âmbito desta comunicação. É a partir destas representações sensíveis, que é possível criar empatia e simultaneamente distanciamento no grande público, mas também questionamento e inteligibilidade e apresentação de pontos de vista diferenciados do processo histórico. A narrativa histórica reforça o poder argumentativo quando apoiada em provas materiais, em inferências a partir de vestígios. Não que o texto narrativo historiográfico tenha a pretensão de ser transparente, mas porque nos seus enunciados é intrínseca uma permanente referência positiva ao mundo. É assente nesse princípio de realidade que se constrói a inteligibilidade dos processos históricos, longos e estruturais, nos quais se inscrevem as conjunturas existenciais dos actores. Trabalhando há já alguns anos no inventário dos espólios das escolas de primeiro ciclo do Norte de Portugal, inicialmente com vista à criação de um museu na cidade do Porto, que não se concretizou, posteriormente com projectos para a salvaguarda dos espólios dos concelhos de Gondomar e Loures, mantemos hoje o objectivo mais prosaico do seu estudo e de sensibilizar a comunidade científica e os professores para a sua conservação. O projecto inicial de musealização não se concretizou por desconhecimento, falta de “amor vetustae”6, que animava os antiquários do passado, assim como de perspectivas de futuro, que impregna o tempo presente. Na realidade, o inventário das escolas que temos realizado suscita interrogações novas, questiona certezas, promove uma hermenêutica mais geral sobre o processo de escolarização, a possibilidade e o significado de práticas educativas inovadoras. Seleccionámos para apresentar apenas três questões suscitadas a partir da prática de inventário, para exemplificar como elas problematizam afirmações correntes e se constituem como novos projectos de pesquisa. 4 BANN, Stephen, op. cit., pp. 166-167. Ibidem, p. 173. 6 Expressão latina que Stephen Bann utiliza para designar o amor ao antigo. Op. cit., passim. 5 431 • Os edifícios escolares e as questões que suscitam Ao inventariarmos as escolas de 1.ª Ciclo, um dos aspectos registados é o próprio edifício escolar. Olhado durante muito tempo como uma arquitectura menor, como insignificante pareciam ser os seus utilizadores e as práticas que nesses espaços se realizavam, tardaram a entrar no discurso historiográfico. Tendo existido do ponto de vista do Estado propostas centralizadas e padronizadas de construções escolares, quando se iniciaram os estudos sobre os edifícios procurouse sobretudo conhecer, caracterizar e classificar as escolas segundo as tipologias definidas. As escolas que nelas não se encaixassem pareciam ser residuais. As fontes utilizadas foram as existentes na extinta Direcção Geral das Construções Escolares e que constituíam um conjunto notável do Arquivo do Ministério das Obras Públicas. Permitiram datar a construção dos edifícios, identificar os autores dos projectos, as limitações a que estiveram sujeitos e o que, segundo diferentes épocas, foi considerado importante para a educação. Talvez por em Portugal não abundarem estudos sobre os espaços escolares, esta abordagem não foi questionada. Porém, o contacto que estabelecemos com as escolas ao fazermos o inventário revelou-nos uma realidade diferente. Encontrámos no registo anual dos bens escolares, quando este era exigido pela tutela, a descrição do edifício. Num número significativo de casos as escolas eram definidas como “sem tipo”. Este atributo encontra-se referido a construções com origens e datadas de épocas muito diferentes. Algumas vezes relatos orais, outras os próprios elementos presentes no edifício (placas de inauguração, bustos, azulejos comemorativos, aspecto geral do edifício, retratos, pequenas relíquias guardadas de mobiliário ou materiais didácticos, fotografias, até espécies vegetais) testemunham uma origem diferente, se não diferente concepção de educação, expressas nesses edifícios. Ao aprofundarmos um pouco mais o conhecimento da origem destas construções com recurso a monografias locais, imprensa local e pedagógica, documentos oficiais, verificamos que na maioria dos casos correspondem a escolas que não foram construídas pelo Estado. A verificação desta intuição inicial levanta-nos novas questões. Quem teve a iniciativa da construção? A que necessidade, social ou outra procurava responder? O que movia os promotores destas escolas? Como se integraram estas iniciativas com as do Estado: eram complementares ou alternativas? Representavam estes edifícios concepções de educação diferentes entre si e em relação às tipologias oficiais? Como se articula a existência destas escolas com a naturalização da ideia de que a rede escolar foi obra, quase que exclusiva, do Estado? O enunciado destas questões revelanos um novo campo de pesquisa. Questionam as afirmações comuns e obriga-nos a desviar o nosso olhar para o significado da escolarização e das forças interessadas em promovê-la em Portugal. Exigem uma busca de inteligibilidade do processo de escolarização e da manutenção do analfabetismo, exterior ao discurso oficial (seja ele do poder seja daqueles a quem ele dá voz para se legitimar). Coloca-nos perante as contradições de um processo complexo, onde se jogam necessidades de eficácia económica, de imagem política e cultural como país, de promoção social de determinados grupos, de intenções generosas ligadas a ideais de emancipação ou de concepções religiosas sobre a salvação da alma. É nessa trama que se tecem os avanços e atrasos da escolarização e onde o Estado, pressionado por forças contraditórias, vai acabar por assumir um papel determinante, quer como apoiante ou promotor quer como travão da educação escolar. O Estado perde a aura do promotor incondicional da educação dos cidadãos e aparece mais como um administrador de interesses económicos e sociais em conflito, orientando, retraindo ou expandindo algumas vertentes da educação, de acordo com concepções e estratégias políticas dos interesses dominantes. • O material didáctico e sua interpretação Chamada com urgência a visitar uma das escolas tidas por mais antiga na cidade, na freguesia de São Nicolau, cujo edifício ia sofrer uma intervenção de restauro e que continha materiais escolares antigos que era urgente seleccionar, deparámo-nos com a existência de duas máquinas de costura, um ferro de engomar, um quadro parietal de pontos de costura e crochet. No espaço já meio vazio encontravam-se duas secretárias antigas de diverso tipo, livros, cadernos, catecismos, uma balança decimal. Quem nos abrira a porta informara que as máquinas tinham 432 saído de uma arrecadação. Deviam ser muito antigas e não deviam ser da escola, pois na escola não tinham sentido. Que faria aquele material ali? Dos objectos postos a descoberto pela eminência das obras não havia memória. Mesmo pessoas com alguma idade mostravam-se intrigadas com aquele conjunto inesperado. Mas ferros de engomar e quadros com pontos de costura e crochet já nos tinham aparecido em outras escolas. Ali parecia completar-se um certo puzzle. O ensino desenvolvera-se no passado separado por sexos: escolas femininas e masculinas, como era o caso. Ainda que sempre tivessem existido escolas mistas em maior ou menor grau. Do ensino feminino temos relatos e disposições legais que recomendam ou estabelecem um currículo, que contemplava as prendas femininas. Das décadas de 50 e 60 do século XX retemos memórias dos bordados e dos lavores. Mas daí a integrarmos nas nossas representações de educação de 1º Ciclo a máquina de costura como um material didáctico era um desafio. Não a encontráramos descrita nem nos textos legais nem na historiografia. Ali, porém, estavam as máquinas, tornadas inúteis, escondidas numa arrecadação de vão de escada, juntamente com o ferro de engomar e o quadro para ensinar os pontos. A didáctica tinha feito o seu caminho, mesmo na educação estritamente feminina, de carácter artesanal. A publicidade parecia estar a emergir, pois o quadro tinha a indicação de uma marca de linhas. A educação básica de 1º ciclo no século XIX e até metade do XX, tinha por função preparar as meninas das camadas mais desfavorecidas para as tarefas domésticas, entre as quais figurava como importante o arranjo das roupas. Além disso, numa cidade como o Porto, funcionaria como preparação de mão-de-obra para o trabalho fabril. Sem este contacto visual com as máquinas de costura na escola, dificilmente encontraríamos alguém a postular que o ensino feminino passara por uma fase de instrumentação mecânica, com a utilização, na escola, de máquinas de costura. No imaginário ficariam os pequenos trabalhos de agulha, os bordados, os alinhavos, as bainhas, o casear para os botões, numa tradição ancestral ligada á economia familiar. Essa economia doméstica tem sido desenhada muitas vezes como ligada a princípios mais estéticos do que de funcionalidade e de ligação ao trabalho. Não sabemos se o uso da máquina de costura foi muito divulgado na escola primária. Tudo leva a crer que não, pois era um material caro. Desconhecemos quem ofereceu ou como foram adquiridas as máquinas inventariadas. Dado situar-se a escola numa zona antiga e pobre da cidade, densamente povoada, pode-se pensar se não terá sido dotada com estes apetrechos, como uma forma de atrair as meninas das classes pobres à escola, para aprenderem entre outras coisas uma iniciação a um ofício, com aplicação na indústria. Fica-nos ainda a dificuldade em datar a inclusão destes materiais nas actividades de ensino aprendizagem de uma escola feminina, que teve a sua origem no século XIX. Dificuldade extensível a outras tipologias de materiais, como mobiliário escolar, materiais didácticos, nomeadamente para o ensino das ciências em geral, da matemática, cartilhas, etc, para podermos ter uma visão panorâmica quer da educação feminina, quer da organização do quotidiano numa escola da cidade do Porto, em diferentes épocas. O que requer proceder ao estudo e datação destes elementos para proceder à sua integração no puzzle da educação simultaneamente local, nacional ou mais geral, na relação com outras concepções e práticas existentes em vários países, tidos por mais evoluídos ou com os quais mantínhamos contactos. • Divulgação de métodos de ensino e sua apropriação A prática de inventário revelou-nos, ainda que de forma parca, materiais produzidos por professores no âmbito da sua actividade pedagógica e alguns manuais para formação em áreas determinadas: higiene escolar, ginástica, história da pedagogia e desenho. Quer uns quer outros remetem para a formação inicial que esses professores/as tiveram e o papel que ela teve na divulgação de pedagogias e métodos de ensino. Reenviam também para a apropriação que delas fizeram os professores e professoras nas suas práticas docentes e de outros meios de auto formação, que possivelmente desenvolveram. Encontrámos cadernos de planificação de aulas feitas por professoras, no início da Republica (1910-1914), que nos revelam conhecimento da pedagogia de Maria Montessori e de Decroly, a um nível insuspeito. Além de revelarem um carinho todo especial pelo trabalho que realizavam e manifesto na planificação cuidadosa, na organização do caderno, na demonstração dos pequenos trabalhos a efectuar na aula, fica-nos a dúvida se não seriam cadernos realizados durante o estágio pedagógico, pelos alunos-mestres, em escolas anexas 433 às Escolas Normais. Não encontrámos ainda elementos que nos pudessem esclarecer sobre a proveniência de tais trabalhos, encontrados fora do contexto da escola, ou por nós percepcionados como descontextualizados. Contudo, sugerem-nos um campo de novas questões sobre a realidade das práticas de ensino aprendizagem, o conhecimento e domínio de métodos ligados ao campo da Escola Nova. Como foram disseminados estes saberes pedagógicos, que fontes de informação dispunham as/os professoras/es para os adquirir e expandir? Que receptividade teriam junto da classe docente e das famílias dos alunos? Porque não se terão alargado de forma significativa à maioria dos professores? Encontrámos ainda materiais de ensino produzidos pelos próprios docentes: mapas geográficos e históricos, material montessori e decrolyneano para o ensino da matemática, por exemplo. Além deste facto remeter para a escassez de meios das escolas, reflecte também a forma como os professores encaravam o seu trabalho. Parece poder-se afirmar que entre os atributos da função docente, desde cedo esteve esta capacidade em produzir material didáctico, especialmente adaptado aos objectivos de ensino assim como à concepção de aluno e de aprendizagem. Em estas três situações e para muitos dos aspectos acima referidos existem inúmeros pontos de sombra, que impedem a inteligibilidade procurada. O que fomenta a procura de novos elementos para uma melhor percepção do panorama educativo, cientes que todos eles fazem parte do ambiente que é preciso aperceber. Decidimos então utilizar, simultaneamente, um conjunto de fontes, pouco invocadas mas importantes para a história da educação e para a descrição museológica. Fontes que se encontram em empresas, arquivos e bibliotecas, que atravessaram fronteiras, como os catálogos de fábricas e de casas comerciais sobre mobiliário e materiais pedagógicos, que patenteiam o mundo das relações profissionais e da circulação de bens e de ideias. Permitem-nos tecer, através de apropriações locais, uma rede de relações, de geometria variável, traduzidas no uso de materiais vários e na constituição de discursos educativos. Neste sentido deslocámos a atenção para objectos tão insignificantes quanto se vão tornando raros: os catálogos das livrarias, das casas editoras e das fábricas de mobiliário. Sabendo nós que no final do século XIX e durante o XX os professores e professoras do ensino primário procuraram complementar os seus magros salários exercendo um segundo trabalho e que nas cidades, essa ocupação era muitas vezes em livrarias, papelarias, jornais e mesmo como consultores de fábricas de mobiliário, procurámos alguns desses catálogos. Eles revelam-se de interesse para tecer as redes de circulação de material escolar diverso. O que ajuda à datação e identificação da proveniência de alguns dos objectos inventariados. No caso de catálogos estrangeiros fornecem-nos as fontes de produção de material mais sofisticado, como mapas, museus pedagógicos, máquinas, material de demonstração científica e permitem rastrear a circulação dos objectos e as formas de apropriação. Mas os catálogos de pequenas papelarias ou de editoras, muitas delas já desaparecidas, dão-nos a conhecer também a difusão de ideias através da tradução de livros de autores de referência, assim como dados sobre as colecções disponíveis no mercado. Se o Catálogo da Livraria Chardron7, de 1930, apresenta sobretudo os livros escolares e a colecção escolar Lello, livros de comércio, romances poesia, obras de historia, literatura e obras religiosas, já o catálogo da Livraria Civilização8, 1934, apresenta a colecção de livros didácticos, livros científicos e uma colecção pedagógica, para além da biblioteca de educação feminina, literatura infantil e uma colecção de globos. Por sua vez, o catálogo da Papelaria Fernandes de 1949/50, publicita os impressos e livros de expediente, necessários ao funcionamento das escolas, livros de peças para teatro infantil, mobiliário e material escolar como carteiras, caixas métricas, ardósias, material de desenho, etc. Detendo-nos na Colecção Pedagógica, do Catálogo da Livraria Civilização já referido, deparamo-nos com autores brasileiros, importados, e outras obras estrangeiras vertidas em português. Do Brasil surge Afrânio Peixoto, Noções de História da Educação e Anísio Teixeira, Educação progressiva. Entre as traduções aparecem Edouard Claparède, A Educação Funcional, traduzida e anotada; John Dewey, Como pensamos; Dr. O. Decroly e A. Hamäid, O cálculo e sistema-métrico nas primeiras classes da escola decroliana – com 16 gravura; Hyppolite Ducos, Qual a razão da escola única? Na colecção dos Livros Didácticos, do mesmo catálogo, destaca-se 7 8 Catálogo Livraria Chardron, Porto, 1930 Catálogo da Livraria Civilização, Porto, 1934. 434 Álvaro Viana de Lemos, Trabalho Manual Escolar; e Manuel José António, Guia prático de Trabalhos Manuais Educativos. Podemos considerar que estes livros não seriam baratos para a época, com preços entre os 12$00 e 16$00. Apenas dois apresentam como preço 7$50. Será de supor que a sua circulação não fosse muita entre os professores. No entanto os livros existiam traduzidos, eram do conhecimento dos professores. O que pode justificar um contacto directo com o pensamento de alguns dos autores mais importantes da Escola Nova. Contudo, estas traduções são muito posteriores aos cadernos de professora, que encontrámos e que estavam organizados segundo as orientações da Escola Nova. Não fizemos pesquisa suficiente para saber se não existiriam outras traduções dos mesmos ou de outros autores de relevo na Pedagogia anteriores a estas. Contudo, as referências encontradas fazem supor uma divulgação das teorias em períodos anteriores e talvez por contacto directo com obras não traduzidas e/ou divulgadas nas Escolas Normais ou em associações de professores. Pensamos estar apenas no início de um processo de pesquisa, que exige um trabalho colectivo, de equipa, e em que os projectos conjuntos, entre Portugal e o Brasil se podem mostrar frutuosos. Numa ‘sociedade de espectáculo’9, da “reprodutibilidade técnica”10 e da comunicação, que é a nossa, em que a cultura se torna uma mercadoria espectacularizada, difundida segundo os padrões do entretenimento e do turismo, como pensar um discurso museológico sobre a educação, assente na investigação e que promova a emoção e o sentido integrado de época, sem cair na justaposição de peças, que não chegam a compor uma visão panorâmica. Ou se chega, acaba por ser tão entrecortada, que distorce o sentido do conjunto. Tendo em conta as propostas que desde o século XIX se realizaram sobre museus escolares e pedagógicos, que lugar para os projectos museológicos do século XXI, na era do espaço virtual? Para terminar, permito-me recordar que não teremos projecção virtual do passado se não perseverarmos na recolha, estudo e conservação dos vestígios do passado. E que uma compreensão mais profunda da Educação e da História não se fará sem eles, pelo compromisso de inteligibilidade, a partir do real concreto, que o discurso histórico tem. FONTES E BIBLIOGRAFIA Fotografias e dados diversos sobre duas centenas de edifícios escolares do 1º Ciclo do Ensino Básico, do Norte de Portugal. Catálogo Livraria Chardron, Porto, 1930 Catálogo da Livraria Civilização, Porto, 1934. Livraria Escolar “Progredior”, Catálogo de Obras Escolares, Literárias e papelaria, Porto, 1933. Extracto do Catálogo Geral. Livraria Avis, Papelaria, Porto, Editorial Domingos Barreira, 19541955. Catálogo. Ensino Primário e Secundário, Teatro Infantil, Material Escolar e Expediente, Lisboa, Papelaria Fernandes Livraria, 1956/1957. BANN, Stephen, As invenções da História. Ensaios sobre a representação do passado (trad.), São Paulo, UNESP. 1994. BENJAMIN, Walter, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, in Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D’Água, 1992. BERKHOFER, Jr., Robert F. , “A point of view on viewpoints in Historical Practice”, in ANKERSMIT, Frank; KELLNER, Hans; A new Philosophy of history, Londres, Reaktion Books, 1995, pp. 174-191. 9 DEBORD, Guy, Commentaires sur la société du spectacle, Paris, Gallimard, 1992. BENJAMIN, Walter, , Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D’Água, 1992, pp71113. Cf. também CHOAY, Françoise, “O património histórico na era da indústria cultural”, in A alegoria do património , op. cit., pp. 205-218. 10 435 CHOAY, Françoise, A alegoria do património (trad.) São Paulo, Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001. DEBORD, Guy, Commentaires sur la société du spectacle, Paris, Gallimard, 1992. FELGUEIRAS, .Margarida Louro “ Materialidade da cultura escolar. A importância da museologia na conservação/comunicação da herança educativa” in Pró-Posições. Dossier Cultura Escolar e Cultura Material Escolar: entre Arquivos e Museus, vol. 16, nº.1 (46), Campinas, UNICAMP, 2005.