vol. 13 - Ministério Público do Estado de Minas Gerais
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vol. 13 - Ministério Público do Estado de Minas Gerais
CIRCULAÇÃO NACIONAL www.mp.mg.gov.br/dejure 13 Jul/Dez 2009 CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL Av. Álvares Cabral, 1740, 1º andar Santo Agostinho, Belo Horizonte - MG cep. 30.170-916 www.mp.mg.gov.br/dejure [email protected] Address: Av. Álvares Cabral, 1740, 1º andar Santo Agostinho, Belo Horizonte - MG cep. 30.170-916, Brazil www.mp.mg.gov.br/dejure [email protected] (Contact: Alessandra de Souza Santos, Ms.) De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais / Ministério Público do Estado de Minas Gerais. n. 13 (jul./dez. 2009). Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2009. v. Semestral. ISSN: 1809-8487 Continuação de: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. O novo título mantém a seqüência numérica do título anterior. 1. Direito – Periódicos. I. Minas Gerais. Ministério Público. CDU. 34 CDD. 342 Descritores / Main entry words: Direito, Ministério Público, Direito Coletivo, Direitos Fundamentais, Neoconstitucionalismo, Multidisciplinariedade, Transdisciplinariedade / Law, Public Prosecution Service, Collective Rights, Fundamental Rights, Neoconstitutionalism, Multidisciplinarity, Transdisciplinarity. PEDE-SE PERMUTA WE ASK FOR EXCHANGE ON DEMANDE L’ÉCHANGE MANN BITTET UM AUSTAUSCH SI RIQUIERE LO SCAMBIO PIDEJE CANJE Foto da capa: Escultura barroca em pedra-sabão representando a Justiça, cuja autoria é atribuída ao português Antônio José da Silva Guimarães e datada como anterior a 1840. Faz parte da obra que representa as quatro virtudes cardeais – Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza – que se encontram na antiga Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência de Ouro Preto. Linha Teórica: A Revista De Jure foi sistematizada dentro de uma nova filosofia pluralista transe multidisciplinar, permitindo o acesso à informação em diversas áreas do Direito e de outras ciências. A revista destina-se aos operadores de Direito e sua linha teórica segue, principalmente, o pós-positivismo jurídico no que é denominado neoconstitucionalismo, valorizando a Constituição Federal de 1988 como centro de irradiação do sistema e como fonte fundamental do próprio Direito nacional. O neoconstitucionalismo é a denominação atribuída a uma nova forma de estudar, interpretar e aplicar a Constituição de modo emancipado e desmistificado. A finalidade é superar as barreiras impostas ao Estado Constitucional Democrático de Direito pelo positivismo meramente legalista, gerador de bloqueios ilegítimos ao projeto constitucional de transformação, com justiça, da realidade social. A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores. Cover Photos and Design: Baroque sculpture in steatite (soapstone) representing Justice – author supposed to be the Portuguese Antônio José da Silva Guimarães; probably made before 1840. It is part of the work that represents the four Virtues: Prudence, Justice, Temperance and Strenght – located at the old Chamber and Prison in Vila Rica (current Ouro Preto – Minas Gerais), current name of the building is Museum of Inconfidência of Ouro Preto. Theoretical Profile: The Journal De Jure was systematized according to a new philosophy pluralist, trans- and multidisciplinar, allowing the access to information in many areas of Law and of other Sciences. It is intended for law enforcement agents and its theoretical grounds mainly follow the legal post-positivism doctrine, with a special emphasis on the neoconstitutionalist approach. Neoconstitutionalism is a new theory to study, interpret and enforce the Constitution, aiming at overcoming barriers imposed to the lawful democratic states by the legal positivism, which blocks the constitutional project of transformation of the social reality. The responsibility for the content of the articles is solely of their respective authors. De Jure - Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA Procurador de Justiça Alceu José Torres Marques DIRETOR DO CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL Promotor de Justiça Gregório Assagra de Almeida ASSESSOR DO CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL Promotor de Justiça Emerson Felipe Dias Nogueira SUPERINTENDENTE DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO Fernando Soares Miranda DIRETORA DE PRODUÇÃO EDITORIAL Alessandra de Souza Santos EDITOR RESPONSÁVEL Promotor de Justiça Gregório Assagra de Almeida CONSELHO EDITORIAL - CONSELHEIROS Promotor de Justiça Adilson de Oliveira Nascimento Promotor de Justiça Carlos Alberto da Silveira Isoldi Filho Promotor de Justiça Cleverson Raymundo Sbarzi Guedes Promotor de Justiça Gregório Assagra de Almeida Procurador de Justiça João Cancio de Mello Junior Promotor de Justiça Lélio Braga Calhau Promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo Promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda Promotor de Justiça Renato Franco de Almeida CONSELHEIROS CONVIDADOS Prof. Antônio Gidi (Houston University, USA) Prof. Eduardo Ferrer Mac-Gregor (Universidad Nacional Autônoma de México, México) Prof. Eduardo Martinez Alvarez (Universidad Del Museo Social Argentino, Argentina) Prof. Juan Carlos Ferré Olivé (Universidad de Huelva, Espanha) Prof. Mário Frota (Associação Portuguesa de Direito do Consumo, Portugal) Prof. Michael Seigel (University of Florida, USA) Ministro Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (Mininstro do STJ) Prof. Aziz Tuffi Saliba (Fundação Universidade de Itaúna) Prof. Humberto Theodoro Júnior (UFMG) Prof. Juarez Estevam Xavier Tavares (Sub-Procurador-Geral da República, UERJ) Prof. Luciano José Alvarenga (Fundação Comunitária e Cultural de João Monlevade - FUNCEC) Prof. Luiz Flávio Gomes (Coordenador Rede LFG – São Paulo) Prof. Luiz Manoel Gomes Júnior (Fund. Uni. de Itaúna, Consultor da ONU, Consultor do Ministério de Justiça) Profª. Maria Garcia (PUC/SP) Profª. Maria Tereza Aina Sadek (USP) Prof. Mário Lúcio Quintão Soares (PUC/MG) Profª. Miracy Barbosa de Sousa Gustin (UFMG) Prof. Nelson Nery Junior (PUC/SP) Prof. Nilo Batista (UERJ) Prof. Ricardo Carneiro (Fundação João Pinheiro) Profª. Rosânia Rodrigues de Sousa (Fundação João Pinheiro) Prof. Rosemiro Pereira Leal (PUC/MG) Promotor de Justiça Robson Renault Godinho (Estado do Rio de Janeiro) Promotor de Justiça Emerson Garcia (Estado do Rio de Janeiro) EDITORAÇÃO Alessandra de Souza Santos Fernando Soares Miranda João Paulo de Carvalho Gavidia Luciana Perpétua Corrêa Luciano José Alvarenga Paôla Bruna de Oliveira Samuel Alvarenga Gonçalves REVISÃO Alessandra de Souza Santos Dalvanôra Noronha Silva Daniela Paula Alves Pena Beatriz Garcia Pinto Coelho (estágio supervisionado) Gabriela Nunes Gomes (estágio supervisionado) CAPA Alex Lanza (Foto da Estátua da Justiça) João Paulo de Carvalho Gavidia (Arte) PROJETO GRÁFICO / DIAGRAMAÇÃO João Paulo de Carvalho Gavidia TRADUÇÃO Alessandra de Souza Santos De Jure - Journal of the Public Prosecution Office of the State of Minas Gerais ATTORNEY-GENERAL Minas Gerais State Prosecutor Alceu José Torres Marques DIRECTOR OF THE CENTER OF PROFESSIONAL DEVELOPMENT Minas Gerais State Prosecutor Gregório Assagra de Almeida ASSISTANT OF THE CENTER OF PROFESSIONAL DEVELOPMENT Minas Gerais State Prosecutor Emerson Felipe Dias Nogueira SUPERINTENDENT OF PROFESSIONAL DEVELOPMENT Fernando Soares Miranda DIRECTOR OF EDITORIAL PRODUCTION Alessandra de Souza Santos CHIEF EDITOR Minas Gerais State Prosecutor Gregório Assagra de Almeida EDITORIAL BOARD - MEMBERS OF THE EDITORIAL BOARD Minas Gerais State Prosecutor Adilson de Oliveira Nascimento Minas Gerais State Prosecutor Carlos Alberto da Silveira Isoldi Filho Minas Gerais State Prosecutor Cleverson Raymundo Sbarzi Guedes Minas Gerais State Prosecutor Gregório Assagra de Almeida Minas Gerais State Prosecutor João Cancio de Mello Junior Minas Gerais State Prosecutor Lélio Braga Calhau Minas Gerais State Prosecutor Marcelo Cunha de Araújo Minas Gerais State Prosecutor Marcos Paulo de Souza Miranda Minas Gerais State Prosecutor Renato Franco de Almeida MEMBERS OF THE EDITORIAL BOARD –COLLABORATION AND REVIEW Prof. Antônio Gidi (Houston University, USA) Prof. Eduardo Ferrer Mac-Gregor (Universidad Nacional Autônoma de México, Mexico) Prof. Eduardo Martinez Alvarez (Universidad Del Museo Social Argentino, Argentina) Prof. Juan Carlos Ferré Olivé (Universidad de Huelva, Spain) Prof. Mário Frota (Portuguese Association of Consummer Law, Portugal) Prof. Michael Seigel (University of Florida, USA) Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (Minister of Brazilian Superior Court) Prof. Aziz Tuffi Saliba (Fundação Universidade de Itaúna, Brazil) Prof. Humberto Theodoro Júnior (UFMG, Brazil) Prof. Juarez Estevam Xavier Tavares (Vice Attorney-General, UERJ, Brazil) Prof. Luciano José Alvarenga (Fundação Comunitária e Cultural de João Monlevade - FUNCEC, Brazil) Prof. Luiz Flávio Gomes (Coordinator of the LFG Co. – São Paulo, Brazil) Prof. Luiz Manoel Gomes Júnior (Fund. Uni. de Itaúna, ONU Advisor, Brazilian Minister of Justice Advisor - Brazil) Prof. Maria Garcia (PUC/SP - Brazil) Prof. Maria Tereza Aina Sadek (USP – Brazil) Prof. Mário Lúcio Quintão Soares (PUC/MG - Brazil) Prof. Miracy Barbosa de Sousa Gustin (UFMG - Brazil) Prof. Nelson Nery Junior (PUC/SP - Brazil) Prof. Nilo Batista (UERJ - Brazil) Prof. Ricardo Carneiro (Fundação João Pinheiro, Brazil) Profª. Rosânia Rodrigues de Sousa (Fundação João Pinheiro, Brazil) Prof. Rosemiro Pereira Leal (PUC/MG - Brazil) Rio de Janeiro State Prosecutor Emerson Garcia Rio de Janeiro State Prosecutor Robson Renault Godinho EDITING Alessandra de Souza Santos Fernando Soares Miranda João Paulo de Carvalho Gavidia Luciana Perpétua Corrêa Luciano José Alvarenga Paôla Bruna de Oliveira Samuel Alvarenga Gonçalves PROOF READING Alessandra de Souza Santos Dalvanôra Noronha Silva Daniela Paula Alves Pena Beatriz Garcia Pinto Coelho (intern) Gabriela Nunes Gomes (intern) COVER Alex Lanza (Photo of the Statue of Justice) João Paulo de Carvalho Gavidia (Design) GRAPHIC PROJECT AND DESIGN João Paulo de Carvalho Gavidia TRANSLATION Alessandra de Souza Santos Prefácio C hegamos ao número 13 da nossa Revista De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, compartilhando os frutos do nosso sucesso com nossos caríssimos colaboradores e leitores! A Revista De Jure apresenta nova forma de submissão de artigos. A partir de agora, essa etapa tornar-se-á eletrônica e será feita por intermédio do sítio www.mp.mg.gov.br/dejure. Os autores deverão inscrever-se em formulário próprio constante do sítio, enviando o arquivo por upload. O novo sítio exclusivo da revista traz também todas as edições produzidas, inclusive os números já esgotados, que foram digitalizados, as normas de submissão e informações gerais acerca da revista. ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais, com o fito de oxigenar a discussão e a produção intelectual da Instituição mineira! Nesta edição, dentre outras preciosas colaborações, a Revista De Jure aborda a diversidade cultural derivada de processos de imigração e suas conseqüências do ponto de vista do sistema penal europeu, sob a ótica do renomado Prof. Juan Carlos Ferré Olivé, da Espanha; aborda ainda em sua seção de Doutrina Internacional o crime organizado do ponto de vista da Criminologia, em um estudo local sobre a máfia russa, de autoria do ilustre Prof. Miguel Ángel Núñez Paz, da Espanha. A Profª. Maria Coeli Simões Pires nos brinda com um estudo sobre a proteção ao patrimônio cultural, abordando aspectos conceituais e a valorização da participação da sociedade nas políticas públicas. Na seção “Palestra”, a Promotora de Justiça Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick brilhantemente discorre sobre o tema "Improbidade Administrativa e Lesão ao Patrimônio Cultural". "O Conselho Editorial conta com diversos e notáveis juristas convidados, provenientes de instituições exógenas ao Ministério Público." Além disso, buscando sempre aprimorar a qualidade de nossas publicações, o Conselho Editorial priorizará a publicação de artigos inéditos, para cumprirmos o propósito vanguardista e inovador da De Jure. Outra novidade que, certamente, abrilhantará ainda mais nosso Conselho Editorial é a recente inclusão dos renomados juristas e acadêmicos: Prof. Eduardo Martinez Alvarez (Universidad Del Museo Social Argentino, Argentina) e Prof. Luiz Manoel Gomes Júnior (Fundação Universidade de Itaúna, Consultor do Ministério da Justiça e da ONU). O Conselho Editorial conta com diversos e notáveis juristas convidados, provenientes de instituições exógenas O êxito de nossas edições se deve à participação não somente dos membros e servidores do Ministério Público mas também de operadores do Direito externos à Instituição, que contribuem sobremaneira para um verdadeiro debate acadêmico das mais variadas questões. Gregório Assagra de Almeida Diretor do CEAF Colaboradores desta edição ADIRSON ANTÔNIO GLÓRIO DE RAMOS Major da Polícia Militar de Minas Gerais; Pósgraduado em Direito Público - FADIVALE; Pósgraduado em segurança pública - Fundação João Pinheiro; Mestre em Direito Empresarial - Universidade de Itaúna/MG; Professor da UNIPACTO - Téofilo Otoni - MG ADRIANO NAKASHIMA Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais ALMIR ALVES MOREIRA Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais ÂNGELO ANSANELLI JÚNIOR Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN Ministro do Superior Tribunal de Justiça CHARLEY TEIXEIRA CHAVES Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC MINAS; Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC MINAS; Cursou e Cursa disciplina isolada de Doutorado em Direito Processual pela PUC MINAS; Ex-Assessor de Juiz do Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais (TJMG) e Advogado. Coordenador de Pesquisa da FASPI. Professor do curso de PósGraduação Lato Sensu em Direito Civil e Processo Civil da FIC. Autor de artigos publicados em obras coletivas, revistas e periódicos especializados em Direito. Sua experiência docente inclui a atuação em diversas instituições, por exemplo, PUC MINAS, Faculdade Novos Horizontes e FASPI. http://lattes.cnpq.br/9540786558735514 ELAINE MARTINS PARISE Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade FABIANA REZENDE CARVALHO Advogada Pós-graduada em Direito Processual Pós-graduanda em Direito Constitucional FÁDUA MARIA DRUMOND CHEQUER MAGNO Mestranda em Direito pela Universidade de Itaúna; Pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-MG Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Itaúna – campus Almenara; Professora da UNIPAC – campus Almenara; Servidora do TJMG na comarca de Almenara GUSTAVO LOPES PIRES DE SOUZA Formado em Direito pela PUC/MG; Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Unipac; Membro dos Institutos Mineiro e Brasileiro de Direito Desportivo; Agraciado com a medalha “Dom Serafim Fernandes de Araújo” pela eficiência na atuação jurídica; Jurista, Articulista, Advogado licenciado em razão de função pública no TJMG; Professor de matérias jurídicas no Megaconcursos, Faminas e Analdo Jansen; Autor do Livro: “Estatuto do Torcedor: A Evolução dos Direitos do Consumidor do Esporte”. Alfstudio: Belo Horizonte: 2009, 96 p. ISBN. 978-8562749-02-5 HELI DE SOUZA MAIA Mestrando JARBAS SOARES JÚNIOR Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais Ex-Procurador-Geral de Justiça JORGE PATRÍCIO DE MEDEIROS ALMEIDA FILHO Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais JUAN CARLOS FERRÉ OLIVÉ Catedrático de Derecho Penal Universidad de Huelva, Espanha JULIANA BORGES REZENDE Advogada Bacharel em Direito - Faculdade Milton Campos LEANDRO HENRIQUE SIMÕES GOULART Bacharel em Direito – PUC/MG Pós-graduado em Direito Processual – PUC/MG Professor do Unicentro Newton Paiva LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Pós-Graduado em Direito Civil pela PUC/MG; Mestre em Direito Privado pela PUC/MG; Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM); Professor de Direito Processual Penal do curso Praetorium BH/SAT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) LEONARDO SICA Advogado; Doutor e Mestre em Direito Penal pela USP; Diretor da Associação dos Advogados de São Paulo; Coordenador da revista Ultima Ratio; Professor convidado da Especialização em Direito Penal Econômico da FGV/SP (GVlaw); Autor dos livros Justiça Restaurativa e Mediação Penal (Lumen Juris) e Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão (Revista dos Tribunais) LUCIANA KÉLLEN SANTOS PEREIRA GUEDES Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Pós-graduada em Ciências Penais pela PUC/MG MAÍRA CARVALHO LUZ Advogada Integrante da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares – RENAP MARCOS PEREIRA ANJO COUTINHO Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais MARIA ANGÉLICA SAID Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade MARIA DAS GRAÇAS TORRES DA PAZ Doutora em Psicologia - Universidade de São Paulo Pós-Doutora - Universidade Complutense de Madri Universidade de Brasília/PSTO (professora colaboradora) ICC Sul – Campus Darcy Ribeiro - Brasília, DF Cep: 70910-900 - [email protected] tel: (61) 33072625, ramal 201 MARIA ELMIRA EVANGELINA DO AMARAL DICK Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais; Promotora de Justiça da 17º Promotoria de Justiça Especializada na Defesa do Patrimônio Público de Belo Horizonte/MG; Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/ SP; Coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos- CAOPPDI; Coordenadora Auxiliar da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais; Co-autora da Cartilha sobre "Crimes de Lavagem de Dinheiro - Noções Básicas quanto à aplicação da Lei nº 9613/98". Belo Horizonte: CEAF/ MPMG, 2006; Coordenadora do Boletim Informativo Eletrônico Mensal- CAOPPDI/MPMG; Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2004; MARIA IRANEIDE OLINDA SANTORO FACCHINI Procuradora Regional da República do Estado de São Paulo MATHEUS ADOLFO GOMES QUIRINO Bacharel em Direito - Universidade Federal de Minas Gerais; Pós-graduado em Direito Processual - PUC/MG; Mestre em Direito de Empresa pela Universidade de Itaúna; Ex-Procurador do Município de Itabira; Advogado MIGUEL ÁNGEL NÚÑEZ PAZ Universidad de Huelva, Espanha NORMÉLIA MIRANDA Oficial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais; Graduada em Gestão Pública pelo Centro Universitário Belo Horizonte – Uni-BH E-mail: [email protected] PLÍNIO LACERDA MARTINS Professor de Direito do Consumidor Mestre em Direito pela UGF Promotor de Justiça POLIANA CÍNTIA COSTA GUIMARAES Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Pós-Graduada em Direito Processual RENATO FRANCO DE ALMEIDA Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais; Graduação em Direito - Faculdade de Direito Cândido Mendes; Especialista em Direito Faculdade de Direito Vale do Rio Doce; Mestre em Direito e Instituições Políticas - Fundação Mineira de Educação e Cultura; Membro do Conselho Editorial do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional ROSÂNIA RODRIGUES DE SOUSA Pesquisadora plena - Fundação João Pinheiro (MG); Professora da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro (MG); Mestre em Psicologia - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Doutoranda em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações – Universidade de Brasília (UnB) [email protected] SILVIA FONSECA SILVA Advogada Pós-graduanda em Processo Civil Universidade Anhanguera-Uniderp Apresentação "A liberdade sem o essenciais. Nesse contexto, a “De aprendizado está Jure” é uma importante ferramenta sempre em perigo. O de divulgação da produção técnicoaprendizado sem a liberdade é sempre científica não somente em nível em vão”. Sabiamente, John Fitzgerald institucional mas também como Kennedy proferiu essa célebre instrumento fomentador de debates frase em um de seus discursos. A necessários para a compreensão sociedade brasileira tem passado por dessas transformações sociais. Seu inúmeras transformações desde a caráter pluralista, sua estruturação Constituição de 1988, a acadêmica, amplitude chamada “Constituição temática e vocação “... a 'De Jure' é interdisciplinar credenciam cidadã”. Essa nova uma importante a “De Jure” a esse realidade reflete uma busca constante papel. ferramenta de pela liberdade e solidificação dos direitos Segundo Henry David divulgação da fundamentais, como se ensaísta, poeta produção técnico- Thoreau, pode depreender, por e naturalista americano, exemplo, do art. 3º da CF, “livros são os carreadores científica não que estabelece, entre da civilização. Sem somente em nível os livros, a História é outras diretrizes, os objetivos fundamentais institucional ...” silenciosa, a Literatura da República Federativa é muda, a Ciência é do Brasil, a construção alijada, o pensamento e de uma sociedade justa, livre e a reflexão ficam inertes”. solidária, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Convido todos a colaborarem com O Ministério Público está inserido nossas publicações, pois “a leitura nesse contexto de transformação faz do homem um ser completo; a social e seus novos desafios impõem conversa faz dele um ser preparado, e a escrita o torna preciso (Francis mudanças fundamentais no seu perfil Bacon). institucional. Para atingirmos esse novo paradigma institucional, a formação continuada dos membros do Ministério Público e a dispersão desse conhecimento são Um forte abraço a todos! Alceu José Torres Marques Procurador-Geral de Justiça SUMÁRIO 1 ASSUNTOS GERAIS Doutrina Internacional • 25 Doutrina Nacional • 63 Palestra • 124 Diálogo Multidisciplinar • 139 Diversidad cultural y sistema penal 25 Perspectiva criminológica de la criminalidad organizada: una visión local de la mafia rusa 41 Juan Carlos Ferré Olivé Miguel Ángel Núñez Paz Aspectos processuais dos crimes de lavagem de dinheiro 63 Angelo Ansanelli Júnior Classificação dos direitos: da summa divisio clássica à summa divisio constitucionalizada 83 Heli de Souza Maia Concurso de pessoas no infanticídio: por uma melhor compreensão a partir do conceito finalista de ação de Hans Welzel 102 Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho Improbidade administrativa e lesão ao patrimônio cultural 124 Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick Valores organizacionais e configurações de poder: as organizações policiais mineiras em foco 139 Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz • De Jure - Revista Jurídica MPMG 2 DIREITO PENAL Artigo • 161 Jurisprudência • 186 Comentário à Jurisprudência • 189 A responsabilidade penal da pessoa jurídica: a pessoa jurídica pode delinqüir? 161 Adirson Antônio Glório de Ramos Jurisprudência - Informativo 412 do Superior Tribunal de Justiça. Crime. Prefeito. Princípio. Insignificância. Não aplicabilidade. 186 Prisão preventiva para garantia da ordem econômica 189 Leonardo Sica 3 DIREITO PROCESSUAL PENAL Artigo • 201 Jurisprudência • 214 Comentário à Jurisprudência • 216 Transação penal e suspensão condicional do processo ex officio: impossibilidade Técnica • 227 201 Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes Jurisprudência - Informativo 402 do STJ, Competência. Contravenção. Lei Maria da Penha. Não aplica a lei 9099/95. 214 Breves anotações sobre a atuação do judiciário e do Ministério Público na repressão ao tráfico de drogas 216 José Fernando Marreiros Sarabando Proposta de arquivamento José Fernando Marreiros Sarabando Revista Jurídica MPMG - De Jure • 227 4 DIREITO CIVIL Artigo • 235 Jurisprudência • 259 Comentário à Jurisprudência • 261 235 A guarda compartilhada e a Lei nº 11.698/08 Leonardo Barreto Moreira Alves Jurisprudência - Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça. Possibilidade de penhorar bem de família para sanar dívida alimentícia. 259 A responsabilidade civil à luz do estatuto do torcedor: clube punido por dano a torcedor durante comemoração de gol 261 Gustavo Lopes Pires de Souza 5 DIREITO PROCESSUAL CIVIL Artigo • 275 Jurisprudência • 292 Comentário à Jurisprudência • 295 Uma análise acerca da constitucionalidade do art. 285-A do CPC em face dos princípios do devido processo legal e do contraditório Técnica • 301 275 Fádua Maria Drumond Chequer Magno Jurisprudência - Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça. Ministério Público. Requisição. Informação diretamente. Banco. Relação de consumo. 292 Intervenção do Ministério Público nas ações expropriatórias 295 Silvia Fonseca Silva Responsabilidade civil do estado: ilegitimidade passiva do Ministério Público estadual 301 Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin • De Jure - Revista Jurídica MPMG 6 DIREITO COLETIVO Artigo • 311 Jurisprudência • 333 Comentário à Jurisprudência • 335 A proteção do consumidor nos contratos de telefonia móvel e fixa e sua interpretação jurisprudencial 311 Plínio Lacerda Martins Jurisprudência - Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça – Ação Civil Pública. Prefeito. DL. N. 201/1967. Lei N. 8.429/1992. Ex- Prefeito. Foro de prerrogativa de 333 função. Ausência de notificação e demonstração do prejuízo. Direito à educação. A concretização de um direito fundamental em matéria de política pública, pela via da ACP 335 Fabiana Rezende Carvalho 7 DIREITO PROCESSUAL COLETIVO Artigo • 349 Jurisprudência • 368 Comentário à Jurisprudência • 371 Ação popular ambiental e efetividade: análise dos principais aspectos processuais Técnica • 381 349 Poliana Cíntia Costa Guimaraes Jurisprudência - Informativo 411 do Superior Tribunal da Justiça. ACP. Improbidade. Somatório. Penas. Princípio da razoabilidade. 368 Averbação de reserva legal como condição para retificação de registro imobiliário 371 Matheus Adolfo Gomes Quirino • Leandro Henrique Simões Goulart Atendimento prioritário a idoso Almir Alves Moreira Revista Jurídica MPMG - De Jure • 381 8 DIREITO PÚBLICO CONSTITUCIONAL Artigo • 399 Jurisprudência • 421 Comentário à Jurisprudência • 422 Princípios institutivos e informativos dos recursos Técnica • 432 399 Charley Teixeira Chaves Jurisprudência - Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça. EDCL. Súmula Vinculante. Eficácia. Impossibilidade de embargos de declaração adaptar a decisão judicial à tese jurídica posteriormente consolidada nos tribunais. 421 Análise crítica à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que considera inconstitucional a vedação da liberdade provisória prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006 422 Adriano Nakashima 432 Ação direta de inconstitucionalidade Elaine Martins Parise • Renato Franco de Almeida • Maria Angélica Said 9 DIREITO PÚBLICO INSTITUCIONAL Artigo • 463 Jurisprudência • 469 Comentário à Jurisprudência • 471 Técnica • 474 A competência no art. 2º da lei de ação pública – competência territorial absoluta ou competência territorial funcional? 463 Jurisprudência - Informativo 549 do Supremo Tribunal Federal. Promotor: Exercício de Atividade Político-Partidária. Possibilidade de Reeleição após a EC 45/2004. Discussão sobre a existência de direito adquirido. Necessidade do cumprimento das condições de elegibilidade em cada eleição. 469 Desconsideração da personalidade jurídica e direito de família 471 Maíra Carvalho Luz Juliana Borges Rezende Ação direta de inconstitucionalidade: Emenda nº 16 da LOM 474 Jarbas Soares Júnior • De Jure - Revista Jurídica MPMG 10 DIREITO PÚBLICO ADMINISTRATIVO Artigo • 489 Jurisprudência • 512 Comentário à Jurisprudência • 514 A atuação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais no combate aos crimes praticados por agentes políticos municipais Técnica • 524 489 Normélia Miranda Jurisprudência - Informativo 401 do Superior Tribunal de Justiça – Mudou o entendimento anterior sobre a natureza jurídica do direito a ser nomeado. Antes era expectativa de direito. Atualmente o STJ entende que se trata de direito subjetivo se passar nos limites das vagas. 512 Improbidade e o elemento subjetivo do agente público 514 Maria Iraneide Olinda Santoro Facchini Termo de ajustamento de conduta: inquérito civil nº 006/2008 524 Marcos Pereira Anjo Coutinho 11 NORMAS DE PUBLICAÇÃO PARA OS AUTORES • WRITERS’ GUIDELINES Português 537 English 541 Revista Jurídica MPMG - De Jure • 1 Doutrina Internacional • 25 Doutrina Nacional • 63 Palestra • 124 Diálogo Multidisciplinar • 139 Assuntos Gerais 1 Doutrina Internacional DIVERSIDAD CULTURAL Y SISTEMA PENAL JUAN CARLOS FERRÉ OLIVÉ Catedrático de Derecho Penal Universidad de Huelva ABSTRACT: The cultural diversity originated in migratory process has great significance in the conformation of the european penal systems. The punishment worsen when the crime is commited by ethnic, racial or religious reasons. And some foreign customs, like the polygamy, are not acepted, maintaining their criminal character. Another assumption of multiculturalism makes reference to the Criminal Law applicable to the indigenous peoples in Latin America. The usual indigenous Criminal Law must be respected, but demanding the total observance of the fundamental Rights. KEY WORDS: Cultural diversity; European penal systems; Ethnic, racial or religious reasons. RESUMEN: La diversidad cultural originada en procesos migratorios tiene gran importancia en la conformación de los sistemas penales europeos. Las penas se agravan cuando el delito se comete por motivos étnicos, raciales o religiosos. Y algunas costumbres foráneas, como la poligamia, no son aceptadas, manteniendo su carácter delictivo. Otro supuesto de multiculturalidad hace referencia al Derecho penal aplicable a los pueblos indígenas en América Latina. Debe respetarse el Derecho penal consuetudinario indígena pero exigiendo la plena observancia de los Derechos fundamentales. PALABRAS CLAVE: Diversidad cultural; Sistemas penales europeos; Motivos étnicos, raciales o religiosos. 1. Aproximación Uno de los fenómenos más complejos de nuestro tiempo - desde un punto de vista jurídico y social – se encuentra en el modelo de convivencia multicultural que están adoptando los seres humanos, producto de los procesos migratorios. Se puede Juan Carlos Ferré Olivé • 25 hablar incluso del surgimiento de una nueva “civilización nómada”, en la que ya no se trasladan sujetos individualizadamente sino familias y hasta pueblos casi completos, lo que tiende a conformar modernas sociedades multiétnicas, multiculturales y multirreligiosas1. Esta perspectiva plural es muy enriquecedora para la evolución social pero puede resultar al mismo tiempo problemática, en cuanto fuente potencial de conflictos de integración de los que se derivan consecuencias que conciernen al mundo jurídico en general y al sistema penal en particular. En síntesis, los procesos migratorios están incidiendo en cierta medida en el Derecho penal europeo. Sin embargo, no podemos olvidar que en otras partes del mundo también existen conflictos penales cuyo origen es la multiculturalidad, pero a diferencia de la situación europea afectan a poblaciones poco propicias a la movilidad, que han padecido un importante proceso histórico de colonización. Este es el caso del Derecho penal aplicable a los pueblos indígenas de América Latina. Podemos afirmar que a comienzos el siglo XXI prácticamente todos los Estados del mundo son multiculturales. El problema se localiza en las formas de interrelación entre estos modos de vida tan diversos, es decir, la tendencia a enfrentamientos y desencuentros que puede llevar a situaciones de conflicto. El punto de partida es el de la desigualdad entre culturas, que en ocasiones conduce al etnocentrismo, es decir, como lo define el Diccionario de la Real Academia de la Lengua, “una tendencia emocional que hace de la cultura propia el criterio exclusivo para interpretar los comportamientos de otros grupos, razas o sociedades”. Por este motivo y como principio aplicable a todas estas situaciones se hace necesario subrayar que ninguna cultura es portadora de verdades absolutas2. 2. La multiculturalidad en Europa El fenómeno contemporáneo de la multiculturalidad en Europa se relaciona directamente con la fortaleza económica que se ha ido alcanzando a partir de 1945, después de la Segunda Guerra Mundial, y fundamentalmente desde la creación de la Comunidad Económica Europea, tras la firma del Tratado de Roma el 25 de marzo de 1957. De aquella incipiente organización económica formada por seis países se ha pasado a la actual Unión Europea integrada por 27 Estados, con 23 idiomas oficiales, y aproximadamente 500 millones de habitantes, muchos de ellos extracomunitarios. Es evidente que una Europa económicamente poderosa e inmersa en el proceso globalizador necesita la fuerza de trabajadores de todo el mundo, familias completas que ven en estos procesos migratorios una esperanza para mejorar su calidad de vida. En este contexto es ilusorio pensar en una “cultura única” europea. En definitiva, hoy en Europa conviven muchas etnias, religiones y civilizaciones, cuyo principal punto de encuentro debe ser el reconocimiento del ser humano en su dignidad, con independencia de su pertenencia étnico- religiosa3. 1 Sobre el impacto del pluralismo étnico y religioso motivado por la inmigración en los ordenamientos jurídicos contemporáneos, y la reaparición de las culturas nómadas, cfr. Dalla Torre, G. Pluralismo religioso, multietnicidad y bioderecho, en Medicina y Etica 2007/3, p.181 y sig. 2 Cfr. Bernardi, A. El Derecho penal ante la globalización y multiculturalismo, Revista Derecho y Proceso penal nº 8, 2002, p. 26. 3 Cfr. Dalla Torre, G. Pluralismo religioso, op. cit. p.186 y sig. 26 • Doutrina Internacional Podemos afirmar que en principio todo aquel que se traslada debe adaptarse al país de acogida, incluso renunciando parcialmente a sus hábitos y tradiciones. Pero la integración no supone que deban asumirse todos los valores dominantes en el lugar de destino. Se pretende la convivencia pacífica entre todos los grupos sociales y culturales, sin olvidar que la migración humana es tan necesaria para los que ofrecen como para los que reciben el trabajo. Esto supone que todos los grupos implicados deben conciliar sus diferencias guiados por el diálogo y el principio de tolerancia. Corresponde a cada Estado planificar la integración, salvaguardando los distintos espacios culturales y sin olvidar en ningún momento que existe un auténtico Derecho a la diversidad. Como presupuesto básico debemos recordar que todos aquellos que pertenecen a una minoría étnica, religiosa o lingüística son titulares del conjunto de Derechos consagrados en la Declaración Universal de Derechos Humanos de Naciones Unidas y demás instrumentos jurídicos internacionalmente vinculantes4. Sin embargo, necesariamente deben existir limitaciones o restricciones a ciertas manifestaciones culturales, pues algunas costumbres aceptadas en los países de origen pueden ser totalmente incompatibles con el marco jurídico del país de acogida. Piénsese en ciertas prácticas que son punibles para la cultura europea, como por ejemplo la mutilación genital femenina que es habitual en distintos países africanos, o la propensión a la poligamia, que es plenamente legal en algunas naciones asiáticas. Como sostiene Bernardi, si bien en Europa las minorías poseen el reconocimiento general de su derecho a la diversidad, este derecho puede ser fuente de conflictos, por lo que existen límites que resultan de la propia Convención Europea de Derechos Humanos y de los textos Constitucionales de los distintos Estados5. En consecuencia, algunas libertades fundamentales pueden verse reducidas en base a criterios de oportunidad, tratándose de medidas que resultan necesarias para salvaguardar intereses generales en una sociedad democrática. Una vez trazado este marco global, analizaremos algunos problemas penales que plantea la multiculturalidad en Europa. Por una parte, la diversidad debe encontrarse penalmente protegida de eventuales excesos y ataques. Uno de los motivos de mayor preocupación es el de la violencia racista, que ha ido potenciando la aparición en los distintos Estados de normas penales antidiscriminatorias. Así, por ejemplo, el Código Penal español considera como circunstancia agravante genérica obrar con finalidades excluyentes, es decir, “cometer el delito por motivos racistas, antisemitas u otra clase de discriminación referente a la ideología, religión o creencias de la víctima, la etnia, raza o nación a la que pertenezca, su sexo u orientación sexual, o Así, el Pacto Internacional de Derechos económicos, sociales y culturales de la ONU de 1966, el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos de la ONU de 1966, la Convención Europea de Derechos Humanos de 4 de noviembre de 1950 y sus Protocolos adicionales. 5 Cfr. Bernardi, op. cit. P. 29 y sig. 4 Juan Carlos Ferré Olivé • 27 la enfermedad o minusvalía que padezca” (art. 22.4)6. Se trata de una regulación que pretende impedir actos hostiles originados en motivos raciales, étnicos o religiosos, aunque debe considerarse como un mero complemento de otras políticas de Estado que tiendan a facilitar la integración de las minorías y a evitar, a través de distintos medios preventivos, la aparición de brotes de violencia. Por otra parte, la ancestral costumbre que existe en algunos países africanos de practicar la mutilación genital femenina pretende encontrar amparo en motivos sociológicos, sexuales o religiosos. UNICEF cifra en más de 100 millones las mujeres actualmente vivas pertenecientes a 28 países que padecen la mutilación del clítoris, lo que les genera problemas de salud irreversibles7. Evidentemente se trata de una conducta punible, al menos en los Códigos penales europeos, a través de distintas modalidades de lesiones corporales o como ha estructurado el Código penal español, a través de la tipificación de una figura específica:”El que causara a otro una mutilación genital en cualquiera de sus manifestaciones será castigado con la pena de prisión de seis a doce años.. ”(art. 149.2)8. Sin embargo, se ha constatado una práctica frecuente que consiste en enviar a las menores a los países de origen, presuntamente para visitar a su familia, pero con la auténtica finalidad de practicar allí la mutilación genital. Al ser en ese país una práctica permitida, la conducta de los progenitores o tutores deviene impune. Para intentar impedir estos comportamientos se han articulado importantes cambios legislativos. Así, en España se ha llevado a cabo una modificación del Principio de Justicia Universal. En la actualidad, la Ley Orgánica del Poder Judicial establece en su art. 23.4, letra h, la competencia de los Tribunales españoles para juzgar los delitos relativos a la mutilación genital femenina, siempre que los responsables se encuentren en España. En consecuencia, la responsabilidad penal podrá recaer en los tutores, padres o responsables que envíen dolosamente a las menores a sus países de origen consintiendo la práctica de mutilaciones genitales. La realidad cultural de los Estados en los que se admite la bigamia o poligamia no provoca tantos problemas en Europa, dado que los sucesivos matrimonios no suelen llevarse a cabo ante las autoridades europeas sino en los países de origen. A diferencia de lo que ocurre en los casos de mutilación genital femenina, para los supuestos de poligamia no suele preverse la aplicación extraterritorial de las normas penales europeas y por lo tanto, al ser conductas legales en los países de origen no podrá existir actuación penal alguna, con independencia de las consecuencias jurídico- civiles de esos enlaces. En todo caso, si el segundo enlace se lleva a cabo en un país europeo sin disolver el matrimonio anterior existirá responsabilidad Cfr. más ampliamente, Laurenzo Copello, La discriminación en el Código Penal de 1995, Estudios Penales y Criminológicos XIX, Santiago de Compostela, p. 279 y sig., Borja Jiménez, Violencia y criminalidad racista en Europa occidental: la Respuesta del Derecho Penal, Granada, 1999, passim, Dopico Gómez Aller, Delitos cometidos por motivos discriminatorios: una aproximación desde los criterios de legitimación de la pena, Revista General de Derecho Penal nº 4, 2005, p.1 y sig. 7 Cfr. los datos de UNICEF en www.unicef.org/spanish/protection/index_genitalmutilation.html. 8 En cuanto a los aspectos doctrinales de la persecución penal en España, puede verse Ropero Carrasco, La mutilación genital femenina, La Ley, 1-12, 2001. 6 28 • Doutrina Internacional penal, ya que los Códigos penales europeos sancionan contraer un matrimonio ulterior conociendo que subsiste legalmente el anterior. En algunos supuestos podrán presentarse situaciones de error sobre la vigencia del matrimonio anterior, o incluso sobre el marco normativo que establece la prohibición, lo que puede tener consecuencias jurídicas importantes en materia de error9. Queda por último formular una breve referencia a una tesis en relativo auge en Europa, que a mi entender guarda relación con la multiculturalidad. Me refiero a la pretensión de crear un nuevo espacio punitivo conocido como “Derecho penal del enemigo”. Debe atribuirse a Günther Jakobs el haber acuñado esta terminología –con toda la carga ideológica que entraña- sentando las bases científicas para defender y expandir este modelo10. Jakobs divide a los individuos que participan en la sociedad en dos grupos: por un lado, los que colaboran con el funcionamiento del orden jurídico, a quienes llama ciudadanos. Por otro lado, un grupo de sujetos que habría degenerado, respecto a quienes no existen expectativas de cumplimiento de sus deberes hacia la sociedad. Estos sujetos no colaboran con el orden jurídico por diversos motivos (puede pensarse, por ejemplo, en delincuentes terroristas, delincuentes profesionales o multirreincidentes). Todos ellos se han convertido en enemigos de la sociedad, en “No Personas”, porque ponen en peligro la vigencia del ordenamiento jurídico. Se propone para estos sujetos un tratamiento jurídico distinto, en términos generales mucho más duro, sometiéndolos a una pérdida sustancial de garantías penales y procesales. Según este planteamiento, sus conductas deben “combatirse” con medidas especialmente asegurativas. Pero en esta lista de enemigos o inadaptados pueden tener fácil cabida todos aquellos que pertenecen a otra etnia, lengua, raza o religión. Considero que en última instancia el Derecho penal del enemigo está basado en el etnocentrismo y en una pretendida superioridad europea. Debemos afirmar con rotundidad que el Derecho penal de enemigos es inadmisible en un Estado de Derecho. El que se describe como Derecho penal del ciudadano, con todo su marco garantista, es el único Derecho penal posible. Por supuesto que planteamientos que pretenden distinguir ciudadanos y enemigos pueden encontrar apoyo en grupos reducidos de científicos y legisladores. Pero no encuentro argumentos de peso que permitan contrastar las palabras de Muñoz Conde: “Desde luego, en un Estado de Derecho democrático y respetuoso de la dignidad del ser humano, ni el enemigo, ni nadie puede ser nunca definido como no persona”11. 3. La multiculturalidad en América Latina La colonialización de América Latina a partir de 1492 supuso para los originales pobladores un cambio absoluto en todos los órdenes de la vida. Se modificaron 9 Cfr. Mir Puig, Matrimonios ilegales en el Código Penal, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 1974, III p. 433 y sig. , en particular p. 457 y sig. 10 Cfr. Jakobs y Cancio Meliá, Derecho penal del enemigo, 2ª. ed. Madrid, 2006, passim. 11 Cfr. Muñoz Conde, Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo, 4ª. ed. Valencia, 2003, pp. 124. Juan Carlos Ferré Olivé • 29 completamente las relaciones sociales, económicas, educativas y religiosas, que fueron reemplazadas por una nueva cultura. A partir de entonces, el marco de protección de los Derechos humanos de las comunidades indígenas ha estado siempre bajo mínimos, y en algunos casos ha sido completamente violentado. En la actualidad los indígenas son titulares sin duda alguna de todos los derechos que se recogen en la Declaración Universal de Derechos humanos de Naciones Unidas, en la Declaración Americana de Derechos y Deberes del hombre de la Organización de Estados Americano (ambas de 1948) y en los instrumentos jurídicos internacionales vinculantes suscritos en esta materia12. Pero este conjunto de disposiciones no puede garantizan por el momento el goce pleno y efectivo de los Derechos humanos de los pueblos indígenas. Ello se agrava en la medida en que ninguna de las mencionadas normas ha contemplado reglas específicas para solventar la peculiar situación en la que se encuentran estas comunidades. Como nos recuerda Stavenhagen, en muchos países los indígenas son discriminados por motivos étnicos, raciales y de género, no cuentan con un aceptable acceso a la Administración de Justicia ni tienen participación política significativa. Además, se les suele negar la identidad cultural y su civilización es frecuentemente menospreciada13. Evidentemente son necesarios cambios importantes para lograr un completo reconocimiento de los derechos fundamentales de los indígenas. En este sentido, una vez admitidos sus derechos individuales más elementales, hay que destacar que también poseen derechos colectivos como miembros de una comunidad de orígenes ancestrales, que resultan imprescindibles para su supervivencia. Así, cuentan con el derecho a la integridad cultural y a la identidad colectiva, a poseer su propia lengua y religión, y en definitiva el derecho a ser diferentes. La coexistencia de distintos sistemas sociales, siendo uno de ellos mayoritario o hegemónico, refuerza la necesidad de que el sistema menos favorecido – en este caso el de las comunidades indígenas – plantee el reconocimiento de la diversidad. Dado que el Estado no garantiza plenamente sus derechos, es lógico que estas comunidades reivindiquen la validez de sus propias normas y procedimientos, muchas de ellas antiquísimas. Pero el camino de la afirmación de un genuino Derecho indígena en materia penal es de por sí bastante complejo. Para empezar, debemos recordar como tuvo lugar la histórica pérdida del ius puniendi. En los siglos que siguieron al descubrimiento no puede hablarse de una influencia del Derecho penal europeo, sino de una auténtica imposición del las normas penales españolas y portuguesas en los nuevos territorios conquistados14. En consecuencia, el ius puniendi que originariamente tenían las comunidades indígenas Así, fundamentalmente el Pacto Internacional de Derechos económicos, sociales y culturales de la ONU de 1966, el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos de la ONU de 1966, la Convención Americana sobre Derechos humanos o “Pacto de San José de Costa Rica” de 1969 y La Convención contra la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes de la ONU de 1984. 13 Cfr. Stavenhagen, Los derechos de los pueblos indígenas: esperanzas, logros y reclamos, en AAVV, Pueblos indígenas y Derechos Humanos, Bilbao, 2006, p. 24. 14 Cfr. Hurtado Pozo, El indígena ante el Derecho penal: el caso peruano, en AAVV, La ciencia penal en el umbral del Siglo XXI, México, 2001, p. 32. 12 30 • Doutrina Internacional fue expropiado por los colonizadores. El Derecho de estos últimos desplazó a las normas de convivencia consuetudinarias por las que se regían las comunidades indígenas hasta entonces. En la España del momento se cuestionaba si los indios eran hombres libres o esclavos, lo que originó un gran debate teológico y jurídico en la Universidad de Salamanca. Los indígenas contaron con la extraordinaria defensa del padre Bartolomé de las Casas y en la discusión académica cobró gran relevancia Francisco de Vitoria inspirador de una importante escuela de Derecho Internacional, conocida como Escuela de Salamanca. Se llegó a la conclusión de que los indios no eran esclavos ni seres inferiores: eran iguales a cualquier otro ser humano y podían ser dueños de tierras y bienes. Sin embargo, la aplicación política posterior de estas ideas se concretó en la consideración de que eran ciudadanos libres pero no del todo, pues tenían una capacidad disminuida o limitada. Por ello, debían estar sometidos a tutela (libertad tutelada) y trabajar en las llamadas “encomiendas”, que estando ideadas para velar por su bienestar y formación, se convirtieron de hecho en una sucesión de trabajos forzados. Este sistema beneficiaba económicamente a la Corona, que necesitaba grandes sumas de dinero para poder sufragar sus guerras en Europa. En este marco es evidente la pérdida de autogobierno que padecieron estas sociedades y consecuentemente la imposibilidad de contar con un sistema punitivo propio. Pasados algunos siglos se produce la emancipación de las metrópolis, es decir, los procesos de independencia que desmembraron las posesiones de España y Portugal en múltiples Estados. Las nuevas autoridades recuperaron el ius puniendi, retomando la plena libertad para dictar leyes penales. Sin embargo la independencia en América Latina no supuso devolver a las comunidades indígenas sus derechos, pues solamente provocó una emancipación al servicio de las elites políticas y económicas. La nueva clase gobernante que asumió el poder era la representante de la burguesía local, de los hijos de inmigrantes que habían hecho fortuna –criollosy de algunos europeos disidentes, que no pensaban de manera distinta que sus antecesores respecto a los indígenas. En definitiva, los nuevos dirigentes añoraban Europa y eso se vió reflejado en sus leyes. Por ese motivo siguieron manteniéndose ligados intelectualmente a la península ibérica y al resto de Europa. La prueba más evidente es que casi todos los Códigos penales del siglo XIX en América Latina se inspiraron en las leyes españolas e italianas del momento, con pocas y puntuales excepciones. Los gobernantes habían cambiado y compartían con los indígenas la misma nacionalidad pero no los mismos derechos. En esta etapa no puede hablarse de imposición sino de influencia normativa europea, aunque para muchos pueblos indígenas el cambio político seguramente pasó bastante desapercibido. A lo largo de la historia se debe destacar el desprecio hacia el indígena en América Latina por parte de sus propios gobernantes, que en general los trataron como niños, más concretamente como seres jurídicamente incapaces, incluso sometiéndolos en ocasiones a la jurisdicción penal de menores. A principios del siglo XX encontramos asombrosas pruebas de la terrible marginalidad en la que se hallaban aún los indígenas. El Código Penal peruano de 1924 dividía a los seres humanos en tres Juan Carlos Ferré Olivé • 31 categorías: sujetos civilizados, indígenas semicivilizados y salvajes15. Sin pretender agotar los ejemplos, baste decir que existieron precedentes parecidos en Colombia, Bolivia, Paraguay, etc. La situación comienza a cambiar con las Convenciones Internacionales suscritas en defensa los Derechos humanos a partir de la Segunda Guerra Mundial, pero lo hace de una manera más efectiva paradójicamente a partir de una norma de naturaleza laboral, el Convenio nº 169 sobre pueblos indígenas y tribales de la Organización Internacional del Trabajo (1989). Este Convenio tiene en cuenta la especial vulnerabilidad laboral de los indígenas, procurando facilitar su integración en el ámbito del trabajo, mejorar sus condiciones de vida y los niveles de salud y educación16. Sin embargo, su texto no se limita a atender los aspectos estrictamente laborales, sino que asume otros temas de naturaleza penal17. Lo más destacado de cara a los mecanismos de justicia indígena es que otorga derecho a resolver sus conflictos aplicando sus propias normas, con sus procedimientos y ante sus tribunales, “siempre que no sean incompatibles con los derechos fundamentales definidos por el sistema jurídico nacional ni con los derechos humanos internacionalmente reconocidos”. De esta forma el texto de la OIT se ha convertido en el principal instrumento jurídico internacional con carácter vinculante en esta materia, aunque por el momento sólo ha sido ratificado por una veintena de Estados. El problema es bastante complejo pues no existe un único pueblo indígena sino que en toda América hay miles de comunidades, contando cada una de ellas con sus propias costumbres y peculiaridades. No se puede caer en el error de pretender dar el mismo tratamiento legal a toda la población indígena18. Ello supone que existen comunidades que han abandonado la costumbre de aplicar penas, confiando al sistema formalizado la resolución de sus conflictos. En estos casos no se podrá hacer revivir un derecho Cfr. Hurtado Pozo, El indígena.. op. cit. p. 36 y sig. Sobre la génesis y contenido del Convenio, Cfr. GÓMEZ, El convenio 169 de la Organización Internacional del Trabajo, en AAVV, Pueblos Indígenas y Derechos Humanos, Bilbao, 2006. 17 Dice el Convenio OIT 169: Art. 8.1. Al aplicar la legislación nacional a los pueblos interesados deberán tomarse debidamente en consideración sus costumbres o su derecho consuetudinario. 2. Dichos pueblos deberán tener el derecho de conservar sus costumbres e instituciones propias, siempre que éstas no sean incompatibles con los derechos fundamentales definidos por el sistema jurídico nacional ni con los derechos humanos internacionalmente reconocidos. Siempre que sea necesario, deberán establecerse procedimientos para solucionar los conflictos que puedan surgir en la aplicación de este principio. 3. La aplicación de los párrafos 1 y 2 de este artículo no deberá impedir a los miembros de dichos pueblos ejercer los derechos reconocidos a todos los ciudadanos del país y asumir las obligaciones correspondientes. Art. 9.1. En la medida en que ello sea compatible con el sistema jurídico nacional y con los derechos humanos internacionalmente reconocidos, deberán respetarse los métodos a los que los pueblos interesados recurren tradicionalmente para la represión de los delitos cometidos por sus miembros. 2. Las autoridades y los tribunales llamados a pronunciarse sobre cuestiones penales deberán tener en cuenta las costumbres de dichos pueblos en la materia. Artículo 10.1 Cuando se impongan sanciones penales previstas por la legislación general a miembros de dichos pueblos deberán tenerse en cuenta sus características económicas, sociales y culturales. 2. Deberá darse preferencia a tipos de sanción distintos al encarcelamiento. 18 Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas dentro del derecho consuetudinario q’eqchi, en Revista Pena y Estado nº 4, 1999, p. 17. 15 16 32 • Doutrina Internacional consuetudinario ya desaparecido. Por el contrario, existen pueblos que mantienen plenamente vigente un sistema sancionatorio basado en costumbres ancestrales. Evidentemente será distinta la situación en los países que son signatarios del Convenio 169 de la OIT respecto a los que no lo han suscrito o ratificado. En relación a los países signatarios del Convenio, es necesario saber cuándo la actividad punitiva ejercitada por las autoridades indígenas es conforme a la Constitución y las leyes. La aplicación del Convenio exige que el derecho positivo establezca los parámetros de compatibilidad con el sistema jurídico formalizado: la validez de los procedimientos y el reconocimiento de las sentencias que evite el doble juzgamiento. En otras palabras, las normas del Estado deben permitir expresamente a las comunidades indígenas o campesinas el ejercicio de este ius puniendi19. Esto es lo que ha ocurrido con los países andinos, concretamente Colombia, Perú, Bolivia, Ecuador y Venezuela, que se declaran Estados multiétnicos y en consecuencia han consagrado en sus respectivas constituciones un sistema jurídico dualista en el que, junto al marco normativo estatal formalizado, convive el reconocimiento pleno del derecho consuetudinario indígena. Por ello puede apreciarse que coexisten dos sistemas jurídicopenales20, aunque el problema sea, lógicamente, compatibilizarlos21. Para poder hacerlo se debe contar con normas de desarrollo. Así, por ejemplo, en el caso colombiano se recurre a la Ley Estatutaria de la Administración de Justicia, que coloca dentro de la estructura judicial una Jurisdicción de las comunidades indígenas, estableciendo en su artículo 12: [...]“Las autoridades de los territorios indígenas previstos en la Ley ejercen sus funciones jurisdiccionales únicamente dentro del ámbito de su territorio y conforme a sus propias normas y procedimientos los cuales no podrán ser contrarios a la Constitución y las leyes”. Sin embargo, hay que tener presente lo que ha puesto de manifiesto la Corte Constitucional colombiana, entendiendo que la responsabilidad de las autoridades indígenas que ejercen funciones jurisdiccionales es igual a la de un funcionario o empleado judicial, por lo que además de estar sometidos a la Constitución y a las leyes “adquieren por igual la responsabilidad de respetar, garantizar y velar por la salvaguarda de los derechos de las personas que intervienen en el proceso, sin importar el sexo, la raza, el origen la lengua y la religión”22. En 19 Cfr. Ramírez, Diversidad cultural y sistema penal: necesidad de un abordaje interdisciplinario, en Revista Pena y Estado nº 4-1999, p. 71. 20 Cfr. Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento constitucional del derecho indígena y la jurisdicción especial en los países andinos (Colombia, Perú, Bolivia, Ecuador), en Revista Pena y Estado nº 4, 1999, p. 129. 21 Dispone la Constitución política de la República de Colombia de 1991 en su artículo 246 “Las autoridades de los pueblos indígenas podrán ejercer funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial, de conformidad con sus propias normas y procedimientos, siempre que no sean contrarios a la Constitución y leyes de la República. La ley establecerá las formas de coordinación de esta jurisdicción especial con el sistema judicial nacional”. En sentido similar o con ligeras variaciones, cfr. el art. 171.III de la Constitución del Estado boliviano de 1994, el art. 191 de la Constitución Política del Estado de Ecuador de 1998, el artículo 149 de la Constitución del Perú de 1993 y el artículo 260 de la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela de 1999. Pese a las previsiones del art. 63 de la Constitución de Paraguay de 1992, no parece existir en la práctica un sistema dualista. Cfr. Vera Viveros, Revista Pena y Estado nº 4, 1999, p. 258 y sig. 22 Cfr. Sentencia C 037-96 de la Corte Constitucional de Colombia. Debemos destacar que la Corte Cons- Juan Carlos Ferré Olivé • 33 cualquier caso son las propias comunidades las que deciden qué representantes concretos ejercen tareas jurisdiccionales. En síntesis, el sistema que avala la Resolución 169 de la OIT es el de la coexistencia de dos mecanismos punitivos: el formalizado, aplicable en la mayor parte del territorio del Estado y creado por el Parlamento, y el comunitario que requiere normas de compatibilidad y permite en determinados territorios la aplicación de un Derecho penal indígena consuetudinario. Desde esta perspectiva se toma como fuente la costumbre, pero no cualquier costumbre, sino aquella conforme a la Constitución y a las leyes. Esto tendrá muchas consecuencias a la hora de dotar de garantías al sistema punitivo. Afirmar que la costumbre es fuente del Derecho penal para los pueblos indígenas de América Latina exige preguntarnos por qué dicha costumbre es unánimemente rechazada como fuente en los sistemas punitivos del resto del mundo. En este sentido, hay que tener en cuenta que en la actualidad ni siquiera el derecho anglosajón se rige por la costumbre en materia penal23. El argumento para excluir la costumbre y la analogía siempre ha venido dado por los abusos y arbitrariedades que pueden producirse, en cualquier tiempo y lugar, cuando se impone una pena. Tal vez las comunidades indígenas reivindiquen el reconocimiento pleno de un ius puniendi consuetudinario, asentado en la tradición y la historia, con el objetivo político de lograr un mayor autogobierno o incluso pensando en sus integrantes a título individual, para poder resocializarlos dentro de la comunidad. Pero es evidente que los miembros de estas comunidades individualmente considerados no pueden convertirse en instrumentos para ejercitar reivindicaciones políticas o asentar la cultura, es decir, tienen pleno derecho a gozar de un completo marco garantista. ¿Por qué se rechaza que una secta religiosa, un grupo neonazi, una organización sindical o un club de pensionistas cuenten con un sistema penal consuetudinario que resuelva sus problemas cotidianos? En realidad, las comunidades indígenas no se parecen en lo más mínimo a todos los colectivos enunciados. No constituyen un grupo socialmente diferenciado sino auténticas naciones, que poseen raíces étnicas y culturales históricamente consolidadas24. La admisión del Derecho penal consuetudinario sólo se justifica porque las comunidades indígenas carecen de un cuerpo normativo formalizado que regule su sistema punitivo, y el sistema formalizado titucional de Colombia se ha convertido a través de una riquísima jurisprudencia en el tribunal que más ha contribuido hasta el presente en la conciliación de un sistema penal consuetudinario indígena con otro formalizado, respetando los Derechos fundamentales. 23 En el sistema norteamericano e incluso actualmente en el británico la materia penal no se rige por el common law, sino que prevalece casi unánimemente el derecho legislado o statutory law. Dichas normas están sistematizadas y por lo tanto son objeto de la interpretación jurídica. En todo el mundo anglosajón puede afirmarse la vigencia de los principios fundamentales en materia penal, como legalidad, irretroactividad, etc. Cfr. Hendler, Derecho penal y procesal penal de los Estados Unidos, Buenos Aires, 1996, passim. 24 Cfr. Binder, Proceso penal y diversidad cultural: el caso de las comunidades indígenas, en Justicia Penal y Sociedad nº 3-4, Guatemala, 1993, p. 24. 34 • Doutrina Internacional por el Estado, estructurado en torno a la Ley penal, en muchos casos resuelve inapropiadamente sus conflictos. En síntesis, el sistema penal basado en la costumbre se acepta en beneficio de los propios miembros de las comunidades indígenas, para no perjudicar una posición ya de por sí muy desfavorable. Sin embargo existe una limitación territorial, pues no es aceptable la pretensión de imponer el Derecho penal consuetudinario indígena fuera de su jurisdicción, como por ejemplo cuando a través de migraciones internas un nutrido número de miembros de la comunidad se asienta en el extrarradio de las grandes ciudades25. En este caso la reinserción social debe tener como referencia la gran ciudad y no los territorios indígenas. La existencia de una Administración de justicia indígena supone una auténtica demostración del respeto a la diversidad cultural y el pluralismo político. Simplemente surgen dudas acerca de la creación por los propios jueces indígenas de los delitos y las penas, porque este singular avance en el plano de la diversificación no puede realizarse a costa del sacrificio de las garantías individuales de los miembros de la comunidad. Puede haber justicia indígena en materia penal siempre que no implique la imposición de penas inhumanas o degradantes, o se violenten los principios constitucionales fundamentales como el de legalidad y culpabilidad que se han ido consolidando a nivel mundial desde la Revolución Francesa de 1789. La costumbre da lugar a un conjunto de reglas procedimentales, delitos y penas que combinadamente pueden aproximarse a un sistema coherente y lógico26. Pero para que este sistema posea legitimidad debe ser respetuoso con los Derechos humanos27. Tanto la Convención 169 de la OIT como las normas estatales e internacionales exigen el respeto a los principios que emanan de la Constitución y las leyes, lo que se concreta esencialmente en la vigencia de los Derechos fundamentales. Desde esta perspectiva podemos afirmar que una vez admitido el Derecho consuetudinario como fuente del sistema punitivo no puede exigirse un marco de garantías idéntico al que debe imperar en el Derecho penal formalizado. Sin embargo, ello no puede suponer la desaparición completa de los principios fundamentales en materia penal, al menos los principios de legalidad, de culpabilidad (responsabilidad subjetiva y personalidad de las penas) y humanidad de las penas. Por ello nos resultan algo chocantes las opiniones que sostienen que en el Derecho penal indígena los principios de legalidad y culpabilidad “o no existen, o adquieren otra dimensión”28 . Respecto al principio de legalidad, el punto de partida es la inexistencia de una ley escrita, por lo que en ocasiones podremos estar ante una norma incierta. Se trata de un derecho oral, lo que se ve de manera positiva por algunos investigadores, ya que Nos describe esta situación Villavicencio, destacando que en el Perú se han registrado estos mecanismos extrajudiciales de resolución de conflictos al margen del Poder judicial. Cfr. Mecanismos alternativos de solución de conflictos, en Revista Pena y Estado, nº 4, 1999, p. 116. Está a favor de la aplicación de la ley penal indígena fuera de sus territorios Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento, op. cit. p.135. 26 Cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos sancionadores originarios de Latinoamérica, en AAVV, Pueblos indígenas y Derechos Humanos, Bilbao, 2006, p. 664. 27 Cfr. Binder, Proceso penal.. op. cit. p. 26. 28 En este sentido, cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos.. op. cit. p. 672. 25 Juan Carlos Ferré Olivé • 35 esta característica le otorgaría dinamicidad y una especial flexibilidad29. Esta puede ser una razón muy apropiada a la hora de normativizar acerca de bienes o herencias, o para servir como instrumento integrador de la comunidad. Sin embargo, en materia penal la costumbre reduce considerablemente la vigencia del principio de legalidad pues obstaculiza la observancia de una ley cierta. Respecto al principio de culpabilidad, éste exige la constatación de responsabilidad subjetiva y la personalidad de las penas. Respecto a la responsabilidad subjetiva este principio resulta claramente afectado. Como nos relata Ardito, puede ser considerado delito el simple hecho de haber pisado un lugar sagrado, con independencia del conocimiento o intención. Y puede llegar a sancionarse por igual el homicidio doloso o el imprudente: solo importa el resultado producido30. En cuanto al principio de personalidad de las penas, éstas se extienden en ocasiones a terceras personas, normalmente la familia directa o los parientes del autor de los hechos. Por ejemplo, la comunidad de indios aguarunas en el Perú permite que cualquier pariente del fallecido pueda dar muerte a otro pariente del homicida, consiguiendo así recuperar el equilibrio en la sociedad31. El principio de humanidad de las penas está consagrado en todas las Declaraciones Internacionales de Derechos humanos, y cuestiona muchas de las sanciones que aplican las comunidades indígenas basándose en la costumbre. El sistema indígena de penas es tan heterogéneo como el número de comunidades que las aplican. Esto supone que muchas sanciones guardarán gran similitud con las penas del sistema formalizado (amonestación, multas, pérdidas patrimoniales en general, pérdida de un cargo comunal, trabajos comunales, expulsión del territorio, etc.). Otras penas serían impensables para las culturas europeas, como por ejemplo sancionar un homicidio poniendo a cargo del autor la sustitución de las responsabilidades del fallecido, hasta que sus hijos alcancen la mayoría de edad32. En favor del sistema penal comunitario se puede apuntar que las sanciones se ejecutan en el seno de la propia comunidad, favoreciendo que el sujeto no se desocialice, lo que sin duda ocurre cuando debe cumplir su pena en una prisión estatal33. Sin embargo, muchas de estas penas poseen un carácter cruel o vejatorio. Fundamentalmente se trata de la pena de muerte o sanciones corporales, que no pueden ser admitidas bajo ningún punto de vista. Por ejemplo, aceptar que es conforme a Derecho que una comunidad indígena aplique la Ley de Lynch34, mate a una persona a pedradas después de haber sido Cfr. Ramírez, Diversidad cultural... op. cit. p. 71. Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas, op. Cit. p. 21. 31 Cfr. Villavicencio, Mecanismos alternativos, op. cit. p. 114. 32 Cfr. Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento.. op. cit. p. 134. 33 Cfr. Ramírez, Diversidad cultural, p. 74. 34 En Guatemala existen varios ejemplos recientes de linchamientos, que gozan de bastante respaldo entre las comunidades indígenas. Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas, op. cit. p. 24. Considera sin embargo que estos delitos poco tienen que ver con el Derecho penal indígena, sino con la ineficacia del sistema judicial que genera impunidad Sieder, Derecho consuetudinario y poder local en Guatemala, en Revista Pena y 29 30 36 • Doutrina Internacional sentenciada en proceso informal por 218 comuneros35 o, sin llegar a matar, se golpee o azote públicamente al condenado nos retrotrae varios siglos de cara al respeto de los Derechos fundamentales. Como manifiesta Ardito “Esta identificación de justicia con castigo, y de castigo con violencia física ha penetrado el tejido social, al punto que, para muchas personas, los delincuentes deben morir, independientemente de la gravedad del crimen que cometen”36. Al margen de la muerte, tampoco pueden tolerarse las penas corporales. El cepo nocturno no sólo priva de la libertad, sino que también humilla y degrada al ser humano. El baño de agua fría seguido de ortigamiento genera picores, eczemas y una irritación generalizada37. En el Perú se relata la actuación de las rondas campesinas, una especie de patrullas indígenas que para salvaguardar los intereses comunales toman la justicia por su cuenta. Aunque parece que ya están más controladas, relata Villavicencio cómo son sus sanciones. “Inicialmente, los castigos físicos comprendían los denominados “pencazos” (azotes) hasta la muerte del sujeto. También se aplica el “baño” (sujeto obligado a sumergirse en un río o pozo en la noche o madrugada), la ronda obligatoria (en rondas vecinales) y el trabajo comunal (en caminos, posta médica, etc.)38. Las penas corporales no sólo son pura retribución, sino también una forma de tortura, y por lo tanto resultan inadmisibles en cualquier tipo de sociedad y en todos sus términos prohibidas por la Comunidad Internacional39. Debemos reiterar que el cuerpo humano es intangible. Y si condenamos enérgicamente las prácticas milenarias en África, basadas en la costumbre, según las cuales se produce la mutilación genital femenina por motivos rituales o religiosos, también debemos cuestionar que las comunidades indígenas de América se extralimiten con sanciones de extrema crueldad, aunque respondan a las costumbres de culturas ancestrales. Estas sanciones no persiguen otra cosa que la pura retribución, por lo que no pueden cumplir finalidades preventivas de ninguna naturaleza. No considero que esta finalidad resocializadora pueda extraerse del ilustrativo ejemplo que brinda Emiliano Borja: “La misma pena de latigazos, que desde la perspectiva occidental nos parece bárbara y cruel, cuando se aplica, cada golpe viene acompañado de un consejo, para que se entienda que la sanción no es sólo castigo sino que también está orientada a mejorar a las personas que han delinquido”40. Estado, nº 4, 1999. Tal vez la responsabilidad sea compartida y fruto del fracaso de los dos sistemas. 35 Es el llamado caso Huancay de 1974 en el Perú, relatado por Villavicencio, Mecanismos alternativos, op. cit. p. 111. 36 Cfr. Ardito, Cambios y perspectivas, op. cit. p. 24. 37 Cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos.. op. cit. p. 679. 38 Cfr. Villavicencio, Mecanismos alternativos, op. cit. p. 113. 39 Sólo a título de ejemplo diremos que la legislación española prohíbe la extradición de los delincuentes “Cuando el Estado requirente no diera la garantía de que la persona reclamada de extradición no será ejecutada o que no será sometida a penas que atenten a su integridad corporal o a tratos inhumanos o degradantes” (art. 6º Ley 4/1985 de 21 de marzo, de extradición pasiva). Esto supone que en cada proceso de extradición de un presunto delincuente miembro de una comunidad indígena el Estado solicitante deberá garantizar que no será juzgado por estas comunidades, ante la posible aplicación de penas corporales por parte de la justicia indígena. 40 Cfr. Borja Jiménez, Sobre los ordenamientos.. op. cit. p. 680. Juan Carlos Ferré Olivé • 37 Por otra parte, debe existir el derecho a optar por la aplicación de la ley penal comunitaria o la del sistema penal formalizado. Un miembro de la comunidad que habite en su territorio pero no participe de todos sus valores, aunque si de otros constitucionalmente válidos (creencias, vestimenta, religión, sexualidad, alimentación y todo el espacio de libertad imaginable) podría recibir una sanción penal comunitaria que violaría sus derechos fundamentales. Pensemos en la natural rebeldía de los jóvenes, que quieren cambios en su vida, sin asumir las costumbres sociales o religiosas de los mayores. Entiendo que no puede defenderse a ultranza la obligatoriedad de la jurisdicción indígena, argumentando que no hacerlo supone “un debilitamiento de la estructura comunal y la distorsión del reconocimiento constitucional”41, o en general que es requerida para reforzar la identidad indígena. La obligatoriedad basada en estas premisas supone instrumentalizar al individuo a favor de los intereses de la comunidad, lo que es incompatible con las bases de un Estado social de Derecho. Considero que también tienen posibilidad de optar las personas no indígenas que cometen delitos dentro del territorio de las comunidades42. El establecimiento de frenos al poder punitivo del Estado, la lucha del ciudadano contra la opresión que se viene librando desde los tiempos de Beccaria parecen desaparecer cuando se trata de restringir el poder punitivo de la comunidad indígena. ¿Es que la justicia indígena es tan infalible que no necesita poner límites a la arbitrariedad, tan propia de buena parte de los seres humanos? ¿Por qué son imprescindibles los límites para el legislador y el juez oficiales, pero parecen desaparecer para las autoridades indígenas? Entiendo que ante la imposibilidad de constatar la vigencia plena de los principios de legalidad, culpabilidad y humanidad de las penas debe concluirse que el derecho penal consuetudinario indígena, reconocido y necesario pero limitadamente garantista, debe circunscribir su aplicación a faltas o delitos leves que no pongan en peligro de manera irremediable las garantías y derechos fundamentales de los propios indígenas. Ello es así porque todas las disposiciones jurídicas aplicables (Convenio 169 de la OIT, textos constitucionales y leyes) exigen un límite material al sistema penal indígena: no debe contradecir el catálogo de Derechos fundamentales y Derechos humanos que están consagrados en los Convenios internacionales, la Constitución y las Leyes. Entendemos que los principios de legalidad, culpabilidad y humanidad de las penas se fundamentan en este marco garantista básico y su eventual vulneración condiciona las competencias penales de las comunidades indígenas43. Un argumento añadido aporta el ya Así, Ramírez,. Diversidad cultural... op. cit. p. 73. Considera que el Derecho consuetudinario indígena debe aplicarse obligatoriamente a los no indígenas que delincan en sus territorios, para reforzar el Derecho indígena Yrigoyen Fajardo, Reconocimiento.. op. cit. p. 134, argumentando que en muchas ocasiones estos delitos quedan impunes. Este razonamiento supone, como ya hemos manifestado, una instrumentalización del ser humano poco compatible con el Estado de Derecho. 43 Por el contrario, considera Yrigoyen Fajardo que ninguna constitución establece límites como los aquí enunciados y por lo tanto la competencia penal indígena debe referirse a todas las materias susceptibles de juzgamiento, incluyendo delitos graves. Cfr. Reconocimiento.. op. cit. p. 133 41 42 38 • Doutrina Internacional mentado principio de humanidad de las penas. Si son intolerables todas las sanciones corporales, las comunidades deberán eliminarlas completamente y recurrir a otro tipo de penas: pecuniarias, privativas de derechos, expulsión, trabajo comunitario, etc. Ante el temor a una disminución de garantías debe asegurarse un permanente control de constitucionalidad, el derecho a obtener un juicio justo y a una defensa con asistencia letrada. Todas las situaciones tratadas hasta aquí toman como punto de partida la vigencia del Convenio 169 de la OIT y la pertinente normativa estatal que de validez al Derecho penal indígena consuetudinario. Pero, ¿qué ocurre cuando no se ha realizado una transferencia formal del ius puniendi a favor de las comunidades indígenas? 44 Entendemos, como venimos manifestando a lo largo de esta exposición, que la coexistencia de dos sistemas sancionatorios es beneficioso para las comunidades y sus miembros individualmente considerados. De esta forma muchos conflictos encontrarán una solución más justa. Sin embargo, es necesaria una regulación legal proveniente del Estado que regule los parámetros de compatibilidad. Si esta regulación no existe, la costumbre no puede convertirse en fuente del sistema penal. En consecuencia, si fácticamente se establecieran penas no autorizadas los responsables deberían sufrir las sanciones penales que correspondan a la entidad de derechos violentados (detenciones ilegales, torturas, delitos patrimoniales, etc.). En este caso la única exoneración de responsabilidad podría venir dada por la apreciación de un error de prohibición culturalmente condicionado. No podemos olvidar que existe un sistema punitivo basado en el Derecho Penal formalizado, que también tiene como misión proteger y ,en su caso, sancionar a personas pertenecientes a las etnias y comunidades indígenas. Este Derecho penal será de aplicación parcial en los Estados que se han decantado por el dualismo (coexistencia de un sistema penal formalizado y otro consuetudinario indígena), ya que regirá fuera de los territorios indígenas, respecto a los no indígenas que cometan delitos en dichos territorios y a las infracciones de mayor gravedad, que no podrán ser enjuiciadas por los sistemas penales consuetudinarios hasta que garanticen el pleno respeto a los Derechos fundamentales. En los Estados monistas, que no han suscrito el Convenio 169 de la OIT ni han regulado internamente un Derecho penal consuetudinario indígena solo estará vigente el Derecho penal formalizado. En todos estos supuestos debemos destacar en primer lugar que el Estado debe tutelar, a través del Derecho penal, los bienes jurídicos que afecten particularmente a los indígenas, e incluso incrementar o agravar la pena de algunos delitos (contra la vida o la salud, por ejemplo) cuando se aprecien motivaciones étnicas o raciales en su perpetración. En segundo lugar, determinados elementos del delito, como el error (de tipo o de prohibición: en este último caso el error culturalmente condicionado45) Adviértase que la mayor parte de los países americanos que han ratificado esta Convención no han establecido una regulación nacional al respecto (Así, por ejemplo, Argentina, Costa Rica, República Dominicana, Guatemala, Honduras, México etc.). 45 En Perú la modificación del artículo 15 del Código Penal exonera de responsabilidad criminal a quien “por su cultura o costumbres comete un hecho penal sin poder comprender el carácter delictivo de su acto o determinarse de acuerdo con esa comprensión” La intención del legislador fue regular el error de prohi44 Juan Carlos Ferré Olivé • 39 y las causas de justificación (los bienes defendibles en la legítima defensa) tienen que contemplar las particularidades de la cultura indígena46. Por otra parte, debemos tener en cuenta que la Convención 169 de la OIT indica que los jueces penales al basar sus resoluciones deben tomar en consideración las costumbres de los pueblos indígenas, sus características económicas, sociales y culturales, y que deberá darse preferencia a cualquier sanción distinta al encarcelamiento (arts. 9 y 10). Por último, el Principio ne bis in idem exige que una vez impuesta la sanción por parte de su comunidad no pueda volver a imponerse íntegramente una pena estatal47. El Estado debe arbitrar los medios para que de alguna forma la sanción indígena se descuente de la pena o incluso ésta se haga desaparecer por completo, ya que el ciudadano no puede resultar perjudicado por una falta de entendimiento entre el propio Estado y los representantes de la comunidad, quienes se encuentran en puja por la titularidad del ius puniendi. Reiterando las ventajas que supone el recurso al Derecho comunitario indígena, no puedo culminar este trabajo sin hacer una última reflexión. Es a primera vista un sistema positivo para la comunidad, pues permite afianzarla como creadora de normas y como titular de la Administración de Justicia. También beneficia a los propios miembros de la comunidad, que recibirán penas más apropiadas para su rehabilitación. Sin embargo, no está de más recordar que algunas de las sanciones previstas, como las que extienden la pena a la familia (venganza de sangre) suponen sólo una solución atávica o ancestral que ya aplicaban otras culturas hace cientos de años, costumbres que fueron abandonadas con el avance social y el respeto por los Derechos humanos. Lo mismo ha ocurrido recientemente con la desaparición de las penas corporales o la pena de muerte, al menos en buena parte del mundo. Conservar la tradición no puede suponer perpetuar la marginación, el atraso y el olvido. Y el Derecho penal de un Estado social de Derecho tiene que ser sensible a todos estos factores. bición culturalmente condicionado, es decir, la situación de un sujeto normal que se equivoca respecto a la norma penal aplicable por su cultura indígena. Lo regulado es otra cosa: se considera al indígena como un inimputable por motivos culturales, lo que es bastante inapropiado. No está actuando por error, sino en base a pautas culturales diferentes. Cfr. al respecto Hurtado Pozo, El indígena..op. cit. p. 40. Villavicencio, Mecanismos Alternativos, op. cit. p. 125. 46 Villavicencio nos indica que “la situación de escasez de recursos naturales originada en la pobreza del suelo en el que habitan guarda relación con los infanticidios selectivos en grupos amazónicos aislados”. Cfr. Mecanismos alternativos.. op. cit. p.114. 47 Cfr. Zaffaroni, Alagia, Slokar, Derecho Penal, Parte General. Buenos Aires, 2000, p.127. 40 • Doutrina Internacional Doutrina Internacional PERSPECTIVA CRIMINOLÓGICA DE LA CRIMINALIDAD ORGANIZADA: UNA VISIÓN LOCAL DE LA MAFIA RUSA 1 PROF. DR. MIGUEL ÁNGEL NÚÑEZ PAZ Universidad de Huelva 1. Introducción 1.1. Criminalidad organizada Trataremos en principio de acercar algunos términos desde el lenguaje criminológico para más adelante posibilitar el comentario en torno a estos, especialmente en relación la legislación española tratando de aportar –finalmente y desde una orientación criminológica– unas directrices político criminales de lucha contra este tipo de delincuencia. De manera precia, debemos aclarar que los términos delincuencia organizada y delincuencia internacional, junto al de delincuencia extranjera, suelen confundirse en el lenguaje ordinario. Con carácter general, podemos afirmar que no toda delincuencia organizada es internacional, ni que toda la internacional es organizada, siendo también esto válido para el concepto de delincuencia extranjera. Con el término delincuencia organizada se define aquella delincuencia que, con independencia de la nacionalidad de sus integrantes, presenta cierto nivel de organización, tanto en su estructura de composición como en su funcionamiento, sujetándose a unas reglas más o menos rígidas y con un número de componentes variable2. Mi profundo agradecimiento a: D. José Manuel Rufas Simón y Dña. Rebeca Pérez Fuentes, antiguos alumnos de la Universidad de Salamanca -Criminología (CISE)- y miembros de las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado, quienes promovieron -con un excelente trabajo- la labor investigadora y policial. 2 Según el apartado 4 del artículo 282 bis del la Ley procesal-penal española (Ley de Enjuiciamiento Criminal), introducido por la Ley Orgánica 5/1999, de 13 de enero, que incorpora la figura del agente encubierto como medio de investigación, se considerará DELINCUENCIA ORGANIZADA la asociación de tres o más personas para realizar, de forma permanente o reiterada, conductas que tengan como fin cometer alguno o algunos de los delitos siguientes: a) Delito de secuestro de personas previsto en los artículos 164 a 166 del Código Penal. Español (CP). 1 Miguel Ángel Núñez Paz • 41 A su vez, como características generales de la llamada delincuencia organizada se deben destacar: a) Realizar la actividad por medio de un grupo o asociación criminal, es decir, a través de dos o más individuos “confabulados” para delinquir, por lo que no cabe hablar de delincuencia organizada ante comportamientos llevados a cabo por una sola persona física. b) Carácter estructurado, esto es, esta clase de delincuencia ha de realizarse por un grupo “ordenadamente” distribuido con respecto a sus “actores” y “funciones”. c) Carácter permanente y auto renovable, lo que significa que el grupo debe tener vocación de continuidad. d) Carácter jerarquizado, pues las relaciones orgánicas de estos grupos criminales no se mueven en un plano horizontal, sino vertical. Existen “jefes” o “patrones”, “lugartenientes”, miembros de base( llamados de “tropa”), etc. e) Validez de la disciplina y la coacción con los propios miembros, lo que significa que los infractores de las reglas de la organización son severamente castigados y el quebranto de la “ley del silencio” puede acarrear incluso la muerte. f) Utilización de toda clase de medios (legales e ilegales) frente a terceros, sirviéndose de la ley cuando puedan sacarle provecho, e infringiéndola frontalmente cuando se opone a sus propósitos. g) Por último, en cuanto a sus objetivos, por lo general son de tipo económico, aunque en ocasiones cabe la búsqueda de fines de intencionalidad sociopolítica, como en el caso del terrorismo (aunque casi siempre hacen converger los propósitos económicos y sociopolíticos). A su vez, se suelen distinguir dentro de la delincuencia organizada tres formaciones: grupo organizado, banda organizada y organización criminal. Con la denominación grupo organizado se hace referencia a la asociación de delincuentes, en número no determinado, pero más bien pequeño, en los que la unión es esporádica para la comisión de uno o varios hechos delictivos proyectados. Suelen surgir en barriadas de las grandes ciudades o por conocimientos que se hacen en las propias cárceles3. b) Delitos relativos a la prostitución previstos en los artículos 187 a 189 CP. c) Delitos contra el patrimonio y contra el orden socioeconómico – arts. 237, 243, 244, 248 y 301 CP. d) Delitos contra los derechos de los trabajadores previstos en los artículos 312 y 313 CP. e) Delitos de tráfico de especies de flora y fauna amenazada previstos en los artículos 332 y 334 CP. f) Delito de tráfico de material nuclear y radioactivo previsto en el artículo 345 CP. g) Delitos contra la salud pública previstos en los artículos 368 a 373 CP. h) Delito de falsificación de moneda previsto en el artículo 386 CP. i) Delito de tráfico y depósito de armas, municiones o explosivos previsto en los artículos 566 a 568 del CP. j) Delitos de terrorismo previstos en los artículos 571 a 578 del Código Penal. k) Delitos contra el Patrimonio Histórico previstos en el artículo 2.1.e) de la Ley Orgánica 12/1995, de 12 de diciembre, de represión del contrabando. 3 El grupo organizado presenta las siguientes características: a) Escaso nivel de organización. b) Sus integrantes, en general, son jóvenes. 42 • Doutrina Internacional La banda organizada presenta unas características coincidentes en algunos aspectos con el grupo organizado, si bien aparece con niveles más altos de organización, con una estabilidad más marcada en cuanto al tiempo de permanencia de sus miembros en la misma y más cohesión entre ellos4. La banda organizada podría considerarse una organización criminal que integra a varios grupos organizados, con dirección única jerarquizada, que controla sus acciones, a través de los jefes o responsables de estos grupos. Aunque la finalidad delictiva sea única, desarrollan diferentes especialidades delictivas para conseguir sus fines. Así, una banda dedicada a la defraudación a través de medios de pago, puede disponer de grupos que se encargan de las sustracciones de carteras para proveerse de documentos de identidad y tarjetas de crédito, otros encargados de la falsificación, otros de la negociación fraudulenta en Bancos y oficinas de crédito (pasadores), etc. Estos grupos, a veces desconocen quienes componen la dirección de aquélla, dato que sólo es conocido por el jefe del mismo. Por último, la denominación organización criminal, en la que se verían incluidas las organizaciones “mafiosas”, integra a varias bandas organizadas. Dentro de estas organizaciones criminales podemos incluir las “mafias” italianas (la “Camorra”, la “Ndrangheta” y la mafia “siciliana”), las “triadas” o mafias chinas, los “Boryokudan” (japonesas) y, hoy en día, también la mafia Rusa. Sus características son coincidentes con las de la banda organizada, con diferencias en el superior nivel de organización, número de componentes y variedades delictivas5. c) Se trata de una delincuencia muy peligrosa, por falta de preparación ante situaciones difíciles y peligrosas para ellos mismos. d) Empleo de violencia innecesaria, como consecuencia de lo anterior. 4 Sus características son las siguientes: a) Un fin delictivo único, referido a una sola especialidad delictiva, aunque presentan gran capacidad para cambiar a modalidades criminales más propicias. b) El nivel de organización es más definido que en el grupo, requiriéndose un “historial profesional”, conocido a nivel policial o no, para formar parte de ella. c) Sometimiento a códigos de conducta estrictos, para evitar delaciones y traiciones (a veces dan lugar a ajustes de cuentas). d) La estructura suele ser rígida y jerarquizada, tanto a niveles de dirección como de mandos intermedios, y al igual que en el grupo, aparece un jefe o responsable de la misma con plenos poderes. e) Sus miembros son generalmente extranjeros, aunque pueden admitir en su seno a delincuentes españoles. f) Sólo utilizan la violencia cuando sea estrictamente necesaria. 5 Podríamos resumirlas en las siguientes: a) Dirección única jerarquizada, pero con mayor número de responsables intermedios y disciplina rígida. b) El beneficio nunca va a repartirse entre los ejecutores; éstos reciben ayuda económica por su trabajo o pertenencia, ayuda que se extiende a sus familiares en el caso de detención, así como asistencia jurídica. c) Infraestructura capaz de realizar inversiones en negocios legales (lavado de dinero), para lo que cuentan con expertos financieros y hombres libres de toda sospecha delictiva que puedan realizarlas. Miguel Ángel Núñez Paz • 43 Respecto al concepto de Delincuencia internacional, hemos de señalar que este tipo de delincuencia integra delincuentes con capacidad y posibilidad de operar en diferentes países. Por ello pueden ser considerados delincuentes internacionales tanto los nacionales como los extranjeros, aunque son estos últimos los que –en la práctica– tengan esta consideración. Individualmente considerados, estos delincuentes presentan grados de profesionalización superior a la media de la delincuencia española, profesionalización que comprende una eficacia en sus acciones delictivas, un conocimiento de la legalidad vigente que les permite saber hasta donde puede llegar la actuación policial y en ocasiones la utilización de procedimientos refinados y novedosos que incorporan nuevos “modus operandi” a los archivos policiales. Así pues, en definitiva, puede considerarse criminalidad organizada a toda forma de organización criminal con estructura de empresa, que busca fines lucrativos y de poder, cuyos miembros son reclutados por captación, y que recurre a la corrupción, influencia y violencia para lograr el silencio y obediencia de sus miembros y de terceros, alcanzando sus objetivos económicos para garantizar el medio de acción. Suele gozar de una historia propia y una fuerte implantación sociocultural local, aunque sus actividades se extiendan internacionalmente. Los conceptos clave que definen y distinguen esta forma de delincuencia son: Actividad de grupo Autorrenovación: en cuanto que la estructura orgánica se mantiene y evoluciona a pesar de las bajas individuales. Jerarquía Coacción: existen ciertas obligaciones o pautas internas de comportamiento que tienden a fortalecer la solidaridad interna. Estructura: asimilable a cualquier forma de organización empresarial. Medios: utilizan sus particulares métodos, entre los que destaca especialmente la discreción, para evadir la justicia penal. Objetivos: el poder económico y, de forma secundaria pero importante, el poder sociopolítico. 1.2. Líneas de actuación frente la delincuencia organizada Naciones Unidas, en su octavo Congreso para la prevención del delito y tratamiento del delincuente, celebrado en La Habana en 1991, propone las siguientes medidas para combatir el crimen organizado. d) Disponen de personas perteneciente a las grandes esferas del poder, al que corrompen para someterlo a las directrices de la organización. 44 • Doutrina Internacional 1.2.1. A nivel nacional a) Deben establecerse una serie de estrategias preventivas: 1. Sensibilización de la conciencia pública y movilización del apoyo popular.6 2. Desarrollo de las investigaciones sobre la estructura de la delincuencia organizada y la evaluación de la eficacia de las medidas adoptadas para combatirla. 3. Promoción de programas detallados a fin de poner obstáculos a los delincuentes en potencia, reducir las oportunidades de delinquir y hacer más visible el delito, así como crear y dotar organismos que tengan como fin la lucha contra la corrupción7. 4. Aumento de la eficacia de los mecanismos de represión y de la justicia penal, haciendo hincapié en la coordinación entre las distintas agencias implicadas.8 5. Mejora de la capacitación de policías y personal de la Administración de justicia en especial en nuevas tecnologías y nuevos hallazgos sobre el desarrollo de la delincuencia organizada. 6. Reconocimiento y apoyo a los países productores de drogas por sus esfuerzos en la erradicación de la producción y elaboración ilícitas. b) En el ámbito de la legislación penal: 7. Continuar con la promoción de la tipificación legal de nuevos delitos con respecto al blanqueo de dinero y al fraude sistemático, así como el delito de abrir y cerrar cuentas con nombre falso y los delitos informáticos. 8. Desarrollar la figura del decomiso del producto del delito. c) En la esfera de la investigación penal: 9. Concentración de la atención en los nuevos métodos de investigación de delitos, especialmente en las técnicas para seguir el rastro del dinero. 10. La interceptación de telecomunicaciones y uso de métodos de vigilancia electrónicos son importantes y eficaces. 11. Desarrollo de programas para la protección de testigos contra las violencia e intimidación, destacando las medidas destinadas a ocultar la identidad de los testigos a la persona acusada y su abogado, la protección de personal y del alojamiento, los cambios de domicilio y la ayuda monetaria. d) Entre las actividades de represión y administración de la justicia penal: 12. Establecer un organismo interinstitucional expresamente encargado de hacer Estrategia ésta que, si bien es correcta, resulta utópica en tanto que, en determinadas áreas -más desfavorecidas económicamente- la población se beneficia de la riqueza generada por este tipo de actividades. 7 En este caso resultarían evidentes los desequilibrios entre las capacidades de organización de las distintas políticas criminales de los diferentes países a la hora de configurar estas medidas. 8 En este sentido, sería necesario que los países estableciesen sus medidas de forma equilibrada con las de los países del entorno, de modo que la desigualdad de aplicación no origine “paraísos criminales” en aquellos con legislaciones menos severas. 6 Miguel Ángel Núñez Paz • 45 frente a la delincuencia organizada y aumentar las eficacia de los organismos existentes, incluyendo cursos de especialización. 1.2.2. A nivel internacional 13. Desarrollar acuerdos de cooperación e intercambios de información más eficaces 14. Tomar medidas para impedir que el dinero del delito organizado llegue al mercado financiero legal. 15. Mayor control e identificación de vehículos de tierra, mar y aire que puedan usarse en la distribución del tráfico ilícito. 16. Mayor apoyo a las actividades de investigación comparada y de obtención de datos sobre la delincuencia organizada a escala transnacional, sus causas y sus relaciones con la inestabilidad política y con otras formas de delincuencia, así como sobre la prevención y control de este tipo de delincuencia. 2. Antecedentes históricos 2.1. Vorovskoi zakon El significado del término vory v zakone9 podría interpretarse como “los ladrones que obedecen el vorovskoi zakon –código de los ladrones-”. Estos vory v zakone administran su propia justicia, vorovskaia spravedlivost, a través de un jurado interno o corte –skhodka- que resuelve los conflictos en cuanto a la aplicación del citado código. Con respecto a sus orígenes en la Unión Soviética, no se encuentran referencias específicas sobre ellos anteriores a la Revolución Bolchevique, aunque ya en la Rusia de Pedro el Grande (1695-1725) el colectivo de los ladrones era muy numeroso y sólo en Moscú operaban alrededor de 30.000, si bien no estaban organizados como bandas. En este aspecto, se operó un profundo cambio en la segunda mitad del siglo XVIII: los ladrones comenzaron a usar apodos o alias y a comunicarse mediante una jerga, la fenia o fehnay, gestando el nacimiento de una estructura de bandas más o menos organizada. Estas bandas refinaron esa estructura a principios del siglo XX estableciendo una diferenciación y especificación de los liderazgos y roles. Tras la caída del Zarismo propiciada por la Revolución de 1917, los opositores al nuevo régimen establecido intentaron utilizar a los criminales para conseguir sus propósitos. Algunos políticos tomaron el control y la dirección de bandas juveniles -zhigani- y les marcaron una serie de normas, normas que en su conjunto forman el germen de lo que se conoce como vorovskoi zakon. 9 De entre sus componentes un 33% es ruso, un 31% georgiano, un 8% armenio, un 6% azerbaijano y el 22 % restante está formado por uzbecos, ucranianos, kazacos, abkacianos. La mayoría de sus componentes son jóvenes (85.6 % entre 30 y 40 años). 46 • Doutrina Internacional Hallar un compromiso en esta convivencia forzada y de conveniencia entre políticos y delincuentes no era tarea fácil puesto que podían diferenciarse dos actitudes distantes entre los propios criminales: algunos zhigani aspiraban a conseguir un reconocimiento o estatus social, mientras que los ladrones en sí, siempre involucrados en pequeños delitos, no tenían intención de cambiar su naturaleza. En los años treinta, un gran número de ladrones se desmarcó de los zhigani y creó grupos autónomos llamados urki, bajo el liderazgo de otros jefes. A partir de estos conflictos, los zhigani crean el vorovskoi zakon, como elemento de unión y diferenciación, por el que un ladrón está obligado a: 1. Renegar de sus familiares - madre, padre, hermanos, hermanas, 2. No establecer su propia familia –ni mujer, ni hijos-, lo que, sin embargo, no le quita la posibilidad de tener una amante. 3. Nunca, bajo ninguna circunstancia, trabajar -no importa lo difícil que pueda resultar ello-; vivir sólo de lo aportado por el crimen. 4. Ayudar a otros ladrones –con apoyo tanto moral como material-, apoyándose en la comuna de ladrones. 5. Mantener en secreto la información acerca de los paraderos de los cómplices (p.ej., guaridas, barrios, escondrijos, pisos francos, etc.). 6. En situaciones inevitables (p.ej., si un compañero está siendo investigado), asumir la culpabilidad del crimen de otro; eso dará a la otra persona tiempo para poder escapar. 7. Pedir que se convoque una investigación con el propósito de resolver disputas en el caso de un conflicto entre el implicado y otro ladrón o entre otros dos ladrones. 8. Si fuera necesario, participar en las anteriormente citadas investigaciones. 9. Ejecutar el castigo al ladrón trasgresor en el modo que se decida en la asamblea. 10. Nunca resistirse a llevar a cabo la decisión de castigar al ladrón ofensor que sea encontrado culpable, con el castigo determinado por la asamblea.. 11. Dominar la jerga de los ladrones (Fenia/Fehnay). 12. No jugar/apostar sin ser capaz de cubrir las pérdidas. 13. Enseñar el negocio a los jóvenes principiantes. 14. Tener, si es posible, informantes relacionados con el entorno de los ladrones. 15. No perder la capacidad de raciocinio al tomar alcohol. 16. No tener nada que ver con las Autoridades, especialmente con el ITU (Autoridad de Trabajo Correccional), no participar en actividades públicas y no pertenecer a ninguna organización de la comunidad. 17. No tomar armas al servicio de las autoridades; no servir en el Ejército. 18. Respetar las promesas hechas a otros ladrones.10 La situación anteriormente descrita presenta similitudes con lo ocurrido en Italia, donde la Mafia y la Camorra asimilaron los estatutos utilizados por los Francmasones y los Carbonari –miembros de una sociedad secreta patriótica italiana. 10 Cfr. Dantsik Sergeyevich Baldaev, Vladimir Kuz’mich Belko, Igor Mikhailovich Isupov, “Dictionary: Prison, Camp, Blotnoi, Jargon (Speech and Graphic Portraits of Soviet Prisons)”. Miguel Ángel Núñez Paz • 47 Dado que el vorovskoi zakon no permitía alistarse en las filas del ejército, la Segunda Guerra Mundial provocó otro gran conflicto entre los vory v zakone: al ser llamados a las armas, una parte se alistó en el ejército, mientras que otros mantuvieron su promesa de no colaborar con el Estado, por lo que fueron encarcelados. Cuando finalizó la guerra aquellos vori que habían abrazado la causa de Stalin intentaron retornar a su antiguo entorno, pero fueron rechazados por traidores. El choque fue inevitable y llegó a ser conocido como such’ya voina, guerra a los traidores llamados suki, quienes decidieron adoptar un código autónomo y menos estricto que el vorovskoi zakon, que permitía colaborar con las autoridades –el mismo Stalin se valió de los suki para combatir a los enemigos del régimen en los gulags. Hoy en día el vory v zakone constituye un tipo de “aristocracia criminal” con un sistema de reclutamiento similar al usado en los años treinta, que se nutre de las cárceles, y un modo de comportamiento que continúa adheridos a rígidas reglas. No existen “Padrinos” al estilo de la Cosa Nostra, puesto que ningún líder de los clanes aceptaría jamás ningún tipo de subordinación jerárquica; las únicas ocasiones en que las grandes bandas unen sus fuerzas es en el caso de operaciones internacionales11. Para los vory v zakone, el honor constituye un concepto fundamental y una valiosa pertenencia, definida por Anton P. Chéjov al decir que “el honor no puede ser quitado, sólo puede ser perdido”; esto es bien conocido por los ladrones, aunque nunca hayan leído al gran autor ruso. El honor es una cualidad sometida al escrutinio público y su valor se legitima por el grupo al que se pertenece, debido a lo cual, sólo existe cuando es reconocido. En Rusia, al igual que en otros países del mundo, ciertos matices del honor se relacionan con la capacidad sexual: el marido traicionado es el símbolo del deshonor por excelencia. Tanto es así, que la viuda de un miembro no puede volver a casarse, puesto que supondría una deshonra para el fallecido. La masculinidad, como expresión del honor, también se identifica con la capacidad de imponerse sobre los demás, recurriendo a los métodos que sean necesarios, incluida la violencia. Así, el recurrir a las autoridades de la justicia para resolver un conflicto estaría fuera de lugar. Existe una estrecha conexión entre honor, violencia y distribución de roles y recursos en el vorovskoi zakon; aquel que insulta a un vor debe ser castigado y el asesinato de un vor debe ser vengado. Sólo aquellos que poseen esta cualidad, el honor, pueden ser vory v zakone, al igual que ocurre con los miembros de la Mafia italiana.12 En 1992, Praga acogió varias cumbres mafiosas en las que se reunieron representantes de varias organizaciones criminales rusas con representantes de la mafia italiana y cárteles colombianos. 12 Este es el caso de Sasha, un jefe ruso perteneciente a esta elite criminal, que ingresó en prisión a los 16 años por un delito de robo y aumentó su condena por asesinar a otro joven de inferior categoría que le había faltado al respeto. 11 48 • Doutrina Internacional Últimamente, y en especial, tras la disgregación de la Unión Soviética, “honor” ha pasado a ser sinónimo de abundancia, en tanto que la acumulación de capital, independientemente del modo en que haya sido obtenido, sirve para conseguir honor, poder y, consecuentemente, una posición de supremacía. El honor camina íntimamente unido al silencio y en su código ese silencio es grandeza y todo lo demás debilidad; aquel que rompe esta regla paga con la muerte. Los “bajos fondos” de la Rusia prerrevolucionaria exigían a sus nuevos miembros ser hombres de firmes costumbres e inquebrantable carácter, leales al grupo y a sus compañeros, capaces de actuar mirando por sí mismos y sin perjudicar al resto; la referencia a la obediencia ciega y al riguroso silencio es clara. La jerarquía criminal en la extinta Unión Soviética se estructuraba en diversos rangos: -Los vory o pakhany: que tienen la obligación de difundir la ética y moral de los “bajos fondos” y de establecer y mantener estrechas conexiones con los líderes de otras asociaciones criminales. -Los avtoritety: que, siendo similares a los vory, tienen menos influencia. -Los deltcy: elementos marginales dedicados a crímenes fraudulentos y con buenos contactos en los círculos financieros. - Los kataly: que en cosaco significa literalmente “convicto” y que son los encargados de las casas de juego. -Los shesterki: literalmente “los números seis”, expresión que se refiere a su actitud sumisa –reverencial, encorvada- hacia los jefes; realizan tareas de poca importancia en nombre de los avtoritety. Otros términos para determinar lo rangos inferiores son: -Los muziki: hombres. -Los pahany: chicos. -Los obizenneye: literalmente, los ofendidos. -Los opuscennye: literalmente, los desclasificados. Especial atención merecen los smotryaschiy, que son supervisores que mantienen el poder del vor en las distintas ciudades y controlan un “fondo de seguros” –el obshchak u obochek-, que constituye una especie de fondo mutuo utilizado para apoyo a las familias de miembros convictos, para preparación de nuevos crímenes, corrupción de funcionarios y garantizar los préstamos de la usura. Pero incluso entre los distintos vori existen diferencias substanciales y así, los georgianos son totalmente diferentes de los rusos; para los primeros, la sangre familiar es un vínculo esencial, algo que no ocurre con los segundos, cuyo nexo común lo constituye únicamente el trabajo.13 Esta peculiaridad es característica asimismo de la ‘Ndragheta, organización mafiosa de Calabria, cuyas familias han tendido a casar a los hijos con miembros de la misma familia mafiosa, en gran parte debido 13 Miguel Ángel Núñez Paz • 49 Después de la desintegración de la Unión Soviética, se han producido numerosos cambios, por ejemplo, la estancia en prisión, que anteriormente, lejos de considerarse una carga, se consideraba normal e incluso un honor desde el punto de vista de los mas jóvenes, ha pasado a ser valorada como una “pérdida de tiempo”; la prohibición de poseer una vivienda en propiedad de antaño ha evolucionado a la compra de viviendas de lujo en el extranjero,... Hoy en día, muchos vory han fijado su residencia en el extranjero (Estados Unidos, Francia, Alemania, Israel, Chipre,...), viviendo inmersos entre grandes lujos.14 Hace unos años, tuvo lugar una cumbre de la mafia rusa en Viena, a fin de definir las esferas de influencia en la Rusia post-perestroika; a ella asistieron Timofeev desde Rusia, Mihas desde Austria, Yaponchick desde Estados Unidos y Petrik desde Alemania, entre otros. Este proceso de transición ha llevado a la muerte a importantes jefes mafiosos que han vulnerado el vorovski zakon, al coparticipar en iniciativas estatales e intentar establecer negocios en el extranjero, así como por la dura competencia establecida en otros países. Más de 30 vory v zakone importantes han sido asesinados en este proceso: Otari Vitalievich Kvantrishvili (uno de los más importantes jefes de la mafia en Rusia), Seghej Timofeev alias Silvestr, Vjaceslav Vinter alias Bobon, Serghej Sokolov, Sultan Daudov (el único vor reconocido por la mafia chechena) y Mikhailovic Berazde alias Scarface, un georgiano muy influyente en Moscú. Otros elementos característicos de los vory v zakone son la jerga, los tatuajes y los apodos. La jerga criminal o fenia15 consta de cerca de diez mil palabras y expresiones, que al carácter rural y la geografía accidentada de esta región del sur de Italia 14 Algunos miembros del poderoso clan Solntsevo se han establecido en Viena, donde compraron varios restaurantes, hoteles, tiendas y ciertas lujosas casas en el centro de la ciudad. 15 LA “FENIA”: Anasha Hachís Aka Alias Apparat La Administración del Estado, (usado en la era soviética) Apparatchick Miembro de la Administración Avtoritet Líder de uno de los nuevos grupos con orientación comercial de la Mafiya Baklany Rufianes Bandity Palabra de uso común entre los policías para referirse a los matones Bespredel Desorden; literalmente “más allá de los límites” Blat Contactos en el lugar adecuado (viejo término soviético) Blatnoi/blatnye Término comodín usado por los matones para referirse a ellos mismos y a su modo de vida Brat na pont Engañar, timar Bratski krug “Círculo de los hermanos”, principal estructura interna de la mafiya, llamada también bratskaya semyorka (Hermandad de los Siete) 50 • Doutrina Internacional incluyen una parte común a los diversos grupos y una parte que se utiliza en sectores Brodyagi Casta criminal situada inmediatamente por debajo de los vor, son líderes “en prácticas”; literalmente “vagabundos” Byki Guardaespaldas; literalmente “toros” Chainik Matón de cárcel; literalmente “tetera barata”, como las usadas en prisión Choirs Nombre dado a las bandas de San Petersburgo en el siglo XIX Chorniye smoridiny Mote usado para denominar a los caucasianos (o chorniye, “negros”) Dan Tributos, tasas, impuestos,... cobrados por los extorsionadores Fartsovchik Denominación aparecida en los 80 para los tratantes del Mercado Negro, usualmente jóvenes, que operan en puestos montados en las esquinas de las calles Gastralyor Criminal “invitado”, proveniente de otras ciudades Grokhnut Disparar, matar,...; literalmente “hacer bang” Kaif Palabra centroasiática referida al “subidón” (por drogas) Kalol “Pico”, inyección de drogas Kit’ “Pez gordo”, objetivo de un crimen,...; literalmente “ballena” Klichka Apodo, título Krysha Protección por parte de la Mafia; literalmente, “tejado”. Lavit kaif “Colocarse” (con drogas), el verbo kaifu’ se refiere a sentir placer al estar “colocado” Lavrushniki Otro mote para los caucasianos Limoni/tri limona Un millón de rublos/tres millones de rublos Loshadka Metadona; literalmente “pequeño caballo” Lunakhod Coche-patrulla; literalmente “caminante lunar” Mafiya Término genérico usado en la antigua URSS desde los ‘70 para denominar a dirigentes de partidos acusados de corrupción, especuladores del Mercado negro o todos aquellos sectores de la sociedad que no gustasen a quien lo usaba. Desde 1992, adquiere un significado adicional para describir a aquellos grupos de empresarios criminales y funcionarios corruptos que tomaron relevante cariz en la era post-soviética Maslinichnii mak heroína; literalmente “aceite de amapola” Ment Policía Moschenniki Estafadores Mussor Policía; literalmente “basura” Na narakh Entre rejas, en prisión Na svobodye Salido de prisión, en libertad Nayekhat Asaltar, aplicar la presión de la banda, extorsionar; literalmente “encontrarse con, atropellar” Nomenklatura Son los miembros de la elite del sistema del Gobierno soviético, llamados así porque sus nombres aparecían en la Nomenklature o lista de los más leales funcionarios del partido, elegibles para puestos superiores en el país o en el extranjero. Obshchak Ministerio del Interior Opuschiny Personas que han sido violadas en la cárcel; literalmente “ceños fruncidos”. Panama Empresa fantasma Patsani Chicos jóvenes/ guerreros que componen las bandas criminales Pika Cuchillo, palabra usada en toda la Unión Soviética Poblatu Uso de los contactos para obtener un favor o una posición Po ponyatiyam Modo de ofrecer servicios de seguridad, pacto entre caballeros. Podkhod Coronación de un vor; literalmente “propuesta” Posadit’ na piku Matar o herir con un cuchillo; literalmente “empalar en una estaca” Prishit’ Asesinar; literalmente “coser” Prishli mne kapustu Es lo que se dice a alguien que te debe dinero; literalmente “envíame la verdura” Razboiniki Guerreros de una banda Razborka Ajuste de cuentas, juicio Sborschiki Recaudadores que recogen las tasas de los comerciantes en los mercados Miguel Ángel Núñez Paz • 51 específicos como son carteristas, extorsionador, estafadores, malversadores, tratantes de antigüedades, traficantes de droga ... La jerga no sólo se usa como instrumento de reconocimiento o tratamiento o en conversaciones privadas, sino también para seleccionar el círculo de interlocutores. Los tatuajes funcionan para los criminales como un documento acreditativo que les permite identificar con quién se está tratando y cuál es su campo de actuación. De esta manera, presentar tatuajes incorrectos, desautorizados o que no se corresponden con el rango reconocido a esa persona está absolutamente prohibido, llegando a castigarse con la muerte. Uno de los grandes estudiosos del papel de los tatuajes entre los delincuentes rusos es el criminólogo ruso Arkady G. Bronnikov, quien ha estudiado este fenómeno durante treinta años en las cárceles de su país. Este autor ha constatado que, de los treinta y cinco millones de personas que aproximadamente fueron encarceladas desde mediados de los años sesenta, se tatuaron más de veintiocho millones –un 85%-. Bronnikov afirma que los tatuajes representan los galones de cada rango criminal, desde las altas esferas hasta los más bajos niveles, constituyendo una especie de pasaporte, de biografía, de “uniforme engalanado con las medallas ganadas en el campo de batalla”, es decir, del pasado criminal del individuo. Existe una constante presente: el tatuaje aparece siempre después de una frase y se dibuja después de haber cometido el crimen. Una vez descubierta su función, la policía los ha usado para identificar a los delincuentes. Hoy en día, los tatuajes están cayendo en desuso, precisamente por ese motivo y por discreción. Sdelat kozyol Shalit Skhodka Shpana Sidet’ Stakan Strelka Suki Tat Telet chefir Torpedo Tsekhovik Tusovka Ubrat Uryt Vorovskoe blago Vorovskoi mir Vzyat Zamochit Zapodlo Zhoglo 52 Convertirse en una cabra o clase más baja en prisión, esclavo homosexual Hacer daño Asamblea criminal, junta de vori Grupo de matones Estar en prisión; literalmente “estar sentado” Medida de drogas; literalmente “vaso” Reunión o cita, literalmente “pequeña flecha” Chaqueteros, esquiroles, traidores; literalmente “putas” Ladrón Expresión usada en prisión para hacer té fuerte o no tener nada que hacer Asesino a sueldo Propietario de empresas del mercado negro de los bajos fondos “Rebanada”, como la porción de la sociedad ocupada por los adolescentes y jóvenes mafiosos Matar, devastar; literalmente “eliminar” Asesinar; literalmente “enterrar” Bienestar criminal, que todo vor debe defender Mundo de los ladrones Hostigar, robar; literalmente “coger”. En la jerga también significa sobornar Matar de una paliza; literalmente “mearse en” Negocios turbios, comercio de los bajos fondos Cárcel • Doutrina Internacional 3. Génesis 3.1. La caída de la Unión Soviética Las primeras estructuras mafiosas rusas, como tales, surgen en los años ‘80 con la “Perestroika” de Gorbachev, aprovechando el vacío legal de la transición del Comunismo al Capitalismo. Así, las actividades delictivas de todo tipo, incluidas las relativas al crimen organizado, son un fenómeno arraigado en dicho proceso de privatización de la propiedad estatal. Las fuerzas de mercado compiten con el Estado para hacerse con el control de las actividades privadas. Junto con el establecimiento de la liberalización económica, se desarrolla un creciente sector privado sumergido, así como el aumento de participación de las elites burocráticas en dichas actividades ilegales. Las reformas del gobierno Gorbachev conducentes a legalizar el derecho internacional privado tan sólo aumentaron la brecha entre las leyes y la economía real. A pesar de la intensa labor legislativa desarrollada por los reformadores, la gran velocidad de desarrollo de la economía de mercado produjo un inmenso vacío legal. De esta manera, el antiguo principio de actuación soviético de “Algo no permitido, se prohíbe” fue sustituido por el de “Algo no prohibido, se permite”. Un vacío legal puede producirse por ausencia de normas legales, o por su falta de calidad, o por conflictos entre ellas o por su no entrada en vigor debido a un pobremente organizado mecanismo estatal: todas estas características estaban presentes en la Rusia post-soviética. Dicho vacío legal era sumamente útil para el desarrollo de innumerables combinaciones, mediante las cuales convertir los bienes públicos en riqueza privada, que, en muchos de los casos, se transferían al extranjero. En esa emergente inseguridad que producía el vacío legal y que beneficiaba las actividades ilegales de ciertas estructuras delictivas, los hombres de negocios reales llegaron a la conclusión de que necesitaban la protección (krysha) de dichas estructuras para prosperar y competir con el resto: el pago a las mafias constituía un mal menor . Un informe del Ministerio de Asuntos Interiores ruso de 1993 indicaba que más de 5.000 grupos relacionados con el crimen organizado estaban actuando en Rusia, comprendiendo cerca de 100.000 miembros dirigidos por unos 18.000; de esos 5.000, las autoridades rusas estiman que sólo unos 300 tienen una estructura organizada identificable. En 1994, se realizó una encuesta en Rusia tomando como base la cuestión ¿quién controla Rusia?, a la que un 23% respondió la mafia, un 22% dijo nadie, un 19% no lo sabe y sólo el 14% respondió el Presidente Yeltsin. Miguel Ángel Núñez Paz • 53 Posteriormente, en un informe sobre crimen organizado presentado al Presidente Boris Yeltsin por el Centro Ruso de Análisis para las Políticas Sociales y Económicas, se estimaba que un 80% de los bancos y empresas internacionales de las grandes ciudades rusas se veían obligados a pagar entre un 10 y un 20% de sus ingresos al crimen organizado. En último termino, un informe realizado en 1995 por el Consejo de la Federación Rusa reflejó ciertos parámetros indicadores de la situación por entonces preponderante en Rusia: - Respecto a las principales amenazas a la seguridad económica marcó, por orden de importancia, la tasa de corrupción gubernamental, el declive del rendimiento industrial y el crecimiento del crimen organizado. - El coste del fraude debido a la corrupción de funcionarios entre 1993 y 1994 se estimó en más de 100.000 millones de dólares. - El crimen organizado controlaba aproximadamente el 40 % del P.I.B. - Ese tipo de criminalidad implicaba a unas 41.000 entidades económicas, incluyendo 1.500 empresas estatales, 4.000 sociedades, 500 empresas conjuntas y 550 bancos. - Unas 700 instituciones financieras y comerciales legales han sido creadas por organizaciones delictivas con el propósito de blanquear dinero. Es un hecho comprobado que el crimen organizado ruso se está infiltrando, a través del uso de la extorsión, prácticamente en todos los ámbitos comerciales, utilizando métodos que varían desde los secuestros, asesinatos y ataques a las familias hasta la presión continuada sobre los funcionarios del Gobierno (en el período 1993-1994 la presión se centró fundamentalmente sobre banqueros dado que en ese momento la mafia estaba intentando controlar el sistema financiero del país). 3.2. ¿Está el Gobierno ruso al servicio de la mafia? En el aparato gubernamental ruso se ha establecido tal trama de corrupción que, en mayor o menor grado, todo funcionario se ha visto implicado en este tipo de prácticas. La realidad política de la Rusia actual excluye prácticamente cualquier posibilidad de “no adulteración” de los funcionarios gubernamentales: un soborno y/o relación con un grupo de delincuentes organizado poderoso son previo requisito para ocupar todo cargo local o nacional. El corrupto Gobierno ruso tiende a excluir a cualquier funcionario que no esté dispuesto a formar parte de ese entramado, dado que: - un funcionario limpio es visto como un peligro potencial por los colegas y superiores inmersos en la corrupción, puesto que es muy poco probable que testifique sobre determinadas actuaciones un cómplice de las mismas. - reemplazando al funcionario limpio por uno corrupto, la autoridad que lo decide una 54 • Doutrina Internacional importante cantidad de dinero e, incluso, pagos continuados por parte de la persona elegida, quien considera estos pagos como el coste comercial de la posibilidad de extraer una ganancia ilegal. - el sistema mantiene la impunidad de los cargos de corrupción, escogiendo periódicamente algunos funcionarios como víctimas propiciatorias que alivian la tensión social y acallan las voces públicas. Así, los esfuerzos por mantenerse como un solitario funcionario no corrupto en un gobierno que lo es en su mayoría no son frecuentes y mucho menos fructíferos, en tanto que: - supondrían su propia condena - le llevarían a sobrevivir con su sueldo oficial, un sueldo que ronda entre los 100 y los 250 dólares al mes. - en un país en el que setenta años de control comunista han destruido virtualmente todo freno moral y religioso es difícil que alguien se plantee una lucha particular contra el deterioro del sistema. - la mayoría de los burócratas rusos habían tomado parte como funcionarios en el anterior gobierno comunista, en el que la corrupción era ya frecuente. De esta manera, cuando la Mafia está interesada en que se tome una decisión específica, el funcionario se ve obligado a aceptar el soborno o a arriesgarse en un país donde ninguna agencia puede ofrecerle protección contra la poderosa Mafia. Con todo ello, la corrupción no constituye una práctica precisamente forzada en una nación cuya renta media anual ronda los 2.500 dólares y donde aquella es una de las oportunidades más lucrativas de ganarse la vida. Además, la dirección política del país está profundamente interesada en la existencia de la corrupción, dado que la cúpula se embolsa ingentes cantidades de dinero. 3.3. Actividades delictivas de la mafia rusa Fraude en los carburantes (aumento de volumen con aditivos, trucaje de surtidores, engaños en el octanaje, uso de compañías tapadera, impago de impuestos,...) Delitos con tarjetas de crédito y cheques (robo y uso posterior, falsificación, manipulación de cajeros, falsificación de firmas,...) Fraudes en la inmigración (matrimonios con extranjeros para obtener nacionalidad, lavado de dinero, obtención de visados, permisos de trabajo, entrada de inmigrantes con empresas ficticias,...) Fraude en seguros médicos (facturas falsas, accidentes provocados y supuestos para cobrar a empresas de seguros,...) Robo de coches de lujo Extorsión (a comerciantes, emigrantes, empresarios,...) Prostitución y trata de blancas Narcotráfico Miguel Ángel Núñez Paz • 55 Blanqueo de dinero Fraudes en la exportación/importación Especulación monetaria Malversación de la propiedad estatal Asesinato a sueldo Manipulación del sistema bancario Espionaje industrial Sobornos Contrabando de metales preciosos, materias primas, armamento,... Fraude en telecomunicaciones (llamadas en teléfonos móviles duplicados,...) 4. La Mafia Rusa en España El Juez Baltasar Garzón recogió en un informe realizado en 1999 que la presencia de rusos para blanquear dinero en todo el arco mediterráneo crecía año a año, por lo que era urgente adoptar medidas de seguridad en este sentido. Lo cierto es que no existen trabajos sistematizados sobre esta organización fuera de ámbitos oficiales, pero las informaciones sobre detenciones en suelo español de ciudadanos rusos implicados en actividades delictivas en su país hacen plantear cuestiones tales como cuáles son exactamente los negocios ilícitos de los grupos mafiosos rusos en España y en qué zonas se han asentado principalmente. Así, diversas noticias de prensa hacen referencia constante a las actuaciones policiales que comienzan a llevarse a cabo fundamentalmente a partir del año 1996 y que ponen de manifiesto que el rastro de la mafia rusa puede seguirse en el litoral mediterráneo, desde Levante –concretamente en Alicante- hasta Andalucía –donde destaca la zona de Málaga-, así como en las Islas Canarias. 4.1. Málaga y Alicante Las investigaciones desarrolladas por los grupos contra el crimen organizado de la Comisaría de Policía de Málaga han puesto de relieve que jefes de la mafia rusa están dirigiendo sus negocios desde España. Desde aquí supervisan sus cuentas en los casinos de Moscú o trafican con armas con países como Libia y Perú y, a pesar de que no han cometido delitos a gran escala en nuestro país, se ha comprobado que en esta zona, junto con la de Alicante, están realizando inversiones multimillonarias en los sectores hosteleros e inmobiliarios, en grandes operaciones de blanqueo de dinero.16 Actualmente, está demostrado que los capos rusos están adquiriendo en la zona de Málaga, y concretamente en las zonas colindantes de Marbella, hoteles, restaurantes, viviendas de lujo y terrenos. Uno de los ejemplos que sirve para ilustrar esta afirmación es la adquisición de urbanización de lujo en las proximidades de Málaga, construida por financieros árabes que escrituraron cada chalet a nombre de una sociedad distinta, aunque todas con sede en Luxemburgo. Posteriormente, un grupo ruso compró toda la propiedad pagando 6.000 millones de pesetas. 16 56 • Doutrina Internacional Por otro lado, las Fuerzas de Seguridad del Estado también han detectado en estos últimos años un incremento del número de mujeres dedicadas a la prostitución procedentes de los países de la antigua Unión Soviética y han descubierto que existen organizaciones que surten los prostíbulos de España de “empleadas” para sus locales. Durante el año de 1999, la Guardia Civil y el Cuerpo Nacional de Policía detuvieron a más de un centenar de ciudadanas rusas en operaciones realizadas en clubes de alterne.17 Una de las formas principales por las que se introduce a estas mujeres en España se basa en el procedimiento legal: las chicas presentan un visado turístico por un mes, que se consigue en el Consulado español de Moscú. Cada pasaje de ida y vuelta, junto con el visado, cuesta unas 46.000 pts. La parte ilegal es que las chicas no se dirigen al destino turístico, sino que entran en contacto con los encargados de clubes de alterne, desde los que rotarán a diferentes zonas. En este sentido, la prensa habla de que este tipo de locales puede llegar a pagar hasta un millón de pts por mujer. En Alicante, la presencia de colonias rusas, especialmente al Norte y Sur de la provincia, ha estado siempre bajo sospecha. El blanqueo de grandes capitales y la prostitución son, a juicio de las autoridades españolas, sus principales actividades en esta zona. Concretamente, Torrevieja y La Zenia vivieron una efervescencia constructora a partir de las inversiones, en metálico, de grupo rusos. La forma de vida de estos grupos se caracteriza por ser muy poco propensa a la integración. Generalmente, no mantienen contacto con los vecinos, no aprenden el idioma y habitan en casas de lujo provistas de impresionantes medidas de seguridad. Uno de los casos que más escándalo ha suscitado, y que merece la pena destacar por su relevancia, ha sido el de Vladimir Putin. En marzo del año 2000, la revista Novaya Gazeta denunciaba que desde el Ayuntamiento de San Petersburgo Vladimir Putin autorizó, entre 1993 y 1996, una serie de créditos para construir un centro de negocios y restaurar un monasterio, que finalmente fueron utilizados, a través de una compañía denominada “Trust-20”, para adquirir 32 apartamentos en la urbanización La Paloma, en Torrevieja. 4.2. Islas Canarias La historia de la mafia rusa en esta zona se remonta a principios de la década de los setenta. El territorio canario fue el primer territorio español donde se asentaron los representantes de lo que todavía era la Unión Soviética, algo sorprendente, si se tienen en cuenta las muy diferentes ideologías de ambos países y el hecho de que no mantenían ningún tipo de relaciones diplomáticas. El motivo fue un proyecto económico por el que se fundó una empresa mixta llamada Sovhispán, empresa que convirtió a las Islas Canarias en una de las principales bases de la flota pesquera 17 “La mafia del blanqueo y la prostitución”, publicado en El Mundo, viernes, 24 de marzo de 2000. Miguel Ángel Núñez Paz • 57 rusa en el Atlántico. Con ello España obtenía grandes beneficios de los pagos por servicios portuarios y decenas de puestos de trabajo para los isleños. Sin embargo, para los soviéticos, Sovhispán fue la cobertura oficial en España bajo la que subyacía todo un entramado a disposición del servicio de inteligencia militar. Todo el personal ruso de esta empresa, desde las secretarias hasta los directores, pertenecía a los servicios secretos, si bien sólo unos pocos fueron investigados y expulsados del país por parte de las autoridades españolas. Las actividades de la flota rusa se centraban en interceptar las conversaciones de la Armada española y otros países de la OTAN. Por otro lado, la situación de las Islas convertía esta zona en una estratégica base para el tráfico de armas dirigido a guerrillas marxistas y países del continente africano. Con la caída del comunismo soviético este negocio perdió su identidad ideológica, pero pasó a manos de las mafias rusas; actualmente, el negocio ilícito de armas en esta zona se dirige esencialmente a los países africanos en conflicto –Angola, Sierra Leona- y a los mismos grupos mafiosos establecidos en el archipiélago. Los servicios de información de la Policía y de la guardia Civil han detectado una red de tráfico ilegal dirigida por miembros asentados en el Sur de Tenerife que siguen los mismos procedimientos: el armamento llega a Canarias a bordo de pesqueros rusos que faenan en el banco sahariano y que, ocasionalmente recalan en los puertos para operaciones de reparación, suministro y cambio de tripulaciones. El dinero procedente de este tráfico ilícito se invierte, a su vez, en bienes inmobiliarios y complejos turísticos en las islas. Pero, el negocio inmobiliario no es nuevo para la mafia rusa en esta zona: en los años ‘90 fueron los artífices de numerosos fraudes a sus compatriotas, relacionados con el time-share –viviendas compartidas- y compra de viviendas de lujo. Las agencias inmobiliarias desaparecieron a finales de esta década, cuando los clientes denunciaron que los contratos de las casas por los que habían llegado a pagar hasta 100 millones de pesetas no eran sino contratos de alquiler por cinco años. 4.3. Actuación en España contra la criminalidad organizada La legislación española no contempla expresamente la definición de delincuencia organizada, por lo que ha de recurrirse a una definición policial y criminológica, tomando como base el concepto utilizado en el marco de Interpol y del Grupo de Trabajo de Drogas y Delincuencia Organizada del III Pilar de la Unión Europea, que nos permite establecer las diferencias conceptuales necesarias para distinguir a las organizaciones de tipo mafioso de otras estructuras delictivas menos cohesionadas. 58 • Doutrina Internacional En nuestra legislación, a fin de intentar esbozar una posible definición, ha de buscarse una aproximación por vía de la Jurisprudencia, en base a sentencias del Tribunal Supremo (relacionadas fundamentalmente con el delito de tráfico de drogas: SS. de 5-2-88, 20-10-88, 6-7-90, 18-4-91, 12-2-93, 17-3-93,...), la Ley 19/93 sobre medidas de prevención del blanqueo de capitales y su posterior reglamento de 9-6-95, etc... El Código Penal refleja un vacío en cuanto a la especificación concreta del tipo delictivo de la organización criminal, que no queda plenamente cubierto por el artículo 173.1 –“asociación ilícita que tuviera por objeto cometer algún delito o, que después de constituida promueva su comisión”. Las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado actúan sobre la criminalidad organizada de dos formas complementarias: 1. una labor de análisis para diferenciar los delitos susceptibles de ser cometidos por organizaciones criminales de los efectuados por otro tipo de delincuentes. 2. determinada ya la existencia de la organización, su ámbito de actuación y los delitos en que pudiera implicada, la investigación correspondiente y la puesta a disposición judicial de los presuntos delincuentes. Con respecto a esa primera fase de evaluación y análisis, tiene fundamental importancia el denominado “Cuestionario sobre delincuencia organizada”, basado en la definición establecida por el Grupo de Trabajo de drogas y delincuencia organizada de la Unión Europea. Este cuestionario marca once indicadores para establecer los diferentes grados de organización criminal: 1º. Participación de más de dos personas 2º. Reparto de tareas 3º. Actuación por un período de tiempo prolongado o indefinido. 4º. Utilización de alguna forma de disciplina o control 5º. Sospecha racional de la comisión de delitos que, por sí solos o de forma global, sean de importancia considerable. 6º. Operatividad a nivel interprovincial o internacional. 7º. Empleo de la violencia o la intimidación. 8º. Uso de estructuras comerciales o de negocio. 9º. Actividades de lavado de dinero. 10º. Uso de la influencia en la política, los medios de comunicación, las administraciones públicas, las estructuras judiciales y policiales y en la economía. 11º. Búsqueda de beneficios o de poder. Una respuesta afirmativa en todos estos indicadores nos llevaría a establecer que se trata de criminalidad organizada, grado más alto de organización delictiva. Miguel Ángel Núñez Paz • 59 5. Reflexión final El desarrollo de la mafia rusa ha sido meteórico con respecto al de otras mafias. Esto es así, por que los delincuentes que después formarían parte de dichas mafias han tenido la posibilidad de observar el capitalismo desde su sistema antagonista. Así, esta relativa neutralidad les ha permitido escrutar objetiva y “neutralmente” su funcionamiento, ventajas y huecos legales. Si a este hecho añadimos la coyuntura política y el consiguiente deterioro moral y ético que conllevó, el caldo de cultivo para la proliferación de estos grupos estaba servido. Otra cuestión es la dificultad para la lucha legal contra una mafia –o quizá deberíamos hablar de muchas mafias- que supone un ejemplo de perfección en el desarrollo de actividades ilegales sutilmente encuadradas en actividades legales. Lo intrincado del entramado operativo de estas organizaciones hace más que ardua la tarea de las llevar a su cúspide ante los Tribunales y conseguir aplicar la sentencia que se corresponda con la índole de los delitos. Por otro lado, sería muy interesante como materia de estudio, puesto que ya ha quedado señalada la génesis y estructura de los mismos, la posible expansión a nivel mundial de estos grupos. Zonas como EE.UU. y Canadá18 ya han sido tomadas, pero la incursión en países como los latinoamericanos –con su tristemente conocida indefensión legal- podría repetirse en todo el mundo. Quizá esta expansión dependa, en última instancia, del cariz que tomen los acontecimientos políticos y sociales en las naciones resultantes de la escisión de la antigua U.R.R.S. y de si estos les obligarán o no a establecerse en paraísos fiscales. Este podría ser el caso de España, donde las actividades se han centrado esencialmente en los negocios inmobiliarios para el blanqueo de dinero, hasta que determinadas detenciones y hechos delictivos alertaron de su presencia. De todos modos, la falta de estudios sistemáticos no restringidos y las circunstancias que rodean este tipo de delincuencia hacen que cualquier juicio que podamos aventurar sea susceptible de ser rebatido, en tanto que no puede ser demostrado fuera de los ámbitos oficiales. En el caso de Canadá la falta de experiencias en el trato con mafias ha hecho que los grupos rusos, presionados por la creciente persecución de sus actividades en EE.UU. y aprovechando el vacío legal existente respecto a este tema, hayan comenzado a trasladar sus operaciones a este país. 18 60 • Doutrina Internacional 6. Bibliografia básica consultada BRONNIKOV A. G. Special Dictionary of Criminal Jargon. Moscú, 1991. FABIÁN CAPARRÓS, E. El delito de blanqueo de capitales. Cólex: Madrid, 1998. GARRIDO V.; STANGELAND P.; REDONDO S. Principios de Criminología. Tirant lo Blanch: Valencia, 2001. GUTIERREZ-ALVIZ F. La Criminología Universidad de Sevilla-UIMP, 1996. Organizada ante la Justicia. Sevilla: FERRÉ OLIVÉ, J. C.; ANARTE BOLALLOS, E. Delincuencia Organizada: Aspectos Penales, Procesales y Criminológicos. Universidad de Huelva, 1999. FERRÉ OLIVÉ, J. C. y otros. Cooperación policial y judicial en materia de Delitos financieros, Fraude y Corrupción. 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Telltale Tattoos in Russian Prisons, publicado en Natural History Magazine, noviembre de 1993. 62 • Doutrina Internacional Doutrina Nacional ASPECTOS PROCESSUAIS DOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO ANGELO ANSANELLI JÚNIOR Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais RESUMO: Primeiramente, abordamos a competência, discutindo quando os processos dos crimes de lavagem de dinheiro tramitariam perante a Justiça estadual e federal. Em seguida, tecemos considerações a respeito da independência do processo do crime de lavagem de dinheiro em relação ao delito antecedente, bem como da possibilidade de reunião dos processos para julgamento simultâneo. Após, defendemos o teor do parágrafo 1º do art. 2º da Lei 9.613, ou seja, a possibilidade de oferecimento de denúncia com o suporte mínimo probatório da existência do crime antecedente. Defendemos, outrossim, a constitucionalidade da inaplicabilidade do disposto no art. 366 do Código de Processo Penal no que tange aos crimes de lavagem de dinheiro e entendemos que a vedação à liberdade provisória e ao recurso em liberdade não viola o princípio da presunção de inocência. Finalmente, analisamos a questão das medidas assecuratórias, sustentando inexistir a inversão do ônus da prova. PALAVRAS-CHAVE: Lavagem de dinheiro; competência; denúncia; liberdade provisória; medidas assecuratórias. ABSTRACT: First, one deals with competence, discussing when the case of money laundrying would be judged in a federal or state court. Then, one considers the independence of a money laundrying case in relation to the criminal records, as well as the possibility of putting cases together for simultaneous judgement. After, one supports the content of paragraph 1st , of the art. 2nd of the Law 9.613, in other words, the possibility of prosecuting with a minimum evidence support of the existance of criminal records. One defends, likewise, the constitutionality of the inapplicability of the determination in the art. 366 of the penal code regarding money laundrying crimes. One also understands that the prohibition of the release on own rocognizance and of appellating in such a condition does not violate the principle of presumption of innocence. Finally one analyses the warranty remedies, sustaining that the the burden of proof does not exist. Angelo Ansanelli Júnior • 63 KEY WORDS: Money laundry; competence; accusation; release on own recognizance; measure. SUMÁRIO: 1. Competência. 2. Independência do processo pelo crime de lavagem em relação ao crime antecedente. 3. Denúncia. 4. A inaplicabilidade do art. 366 do Código de Processo Penal. Conclusão. 5. Vedação à Liberdade Provisória e ao recurso em liberdade. 6. Medidas assecuratórias e a inversão do ônus da prova. 7. Conclusões. 8. Referências bibliográficas. 1. Competência O art. 2º., em seu inciso III, alíneas “a” e “b” define as hipóteses de competência no que concerne aos crimes de lavagem. Assim reza o dispositivo: “Art. 2º. O processo e julgamento dos crimes previstos nesta lei: III – são de competência da Justiça Federal: a) quando praticado contra o sistema financeiro e a ordem econômicofinanceira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas; b) quando o crime antecedente for de competência da Justiça Federal”. O dispositivo elenca as hipóteses de competência da Justiça Federal (que encontra respaldo no disposto no art. 109 da Constituição), sendo que, por exclusão, os demais processos serão de competência da Justiça Estadual. Luiz Flavio Gomes entende que a Justiça Federal sempre deterá a competência para o processo dos crimes de lavagem de dinheiro. Argumenta o autor: Considerando-se que o bem jurídico tutelado nessa novel incriminação é exatamente a ordem socioeconômica e o sistema financeiro, que é um bem jurídico supra-individual (ou coletivo), conclui-se que todos os delitos de lavagem de capitais afetam tal ordem econômico-financeira. Logo, todos são de competência da Justiça Federal. (GOMES, 1998, p. 10) Contudo, para refutar o argumento de Luiz Flavio Gomes, imperioso se faz demonstrar que o bem jurídico tutelado pela lei em comento não pode ser a ordem socioeconômica, vez que, como ensina Roberto Podval, “o bem jurídico não pode, nem deve ser admitido de forma tão genérica, sob pena de, indiretamente, extinguirse a garantia que o bem jurídico oferece” (PODVAL, 1988, p. 213). Esclarece Ângelo Roberto Ilha da Silva que os crimes contra o sistema financeiro constituem espécies de infrações de competência da Justiça Federal em virtude da previsão da própria lei de lavagem, bem como do disposto no art. 109, inciso VI da Constituição, que fixa a competência da Justiça Federal “nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira”. 64 • Doutrina Nacional Enfatiza o autor que: [...] somente quando a própria lei prevê a competência da Justiça Federal nessas duas últimas hipóteses é que tal se dará. A guisa de exemplo, conclui, podemos referir que os crimes previstos na Lei de Economia Popular, não obstante afrontar a ordem econômica, são de competência da Justiça Estadual (Lei 1.521/51), ao passo que os crimes contra o sistema financeiro ficam sujeitos à jurisdição federal, justamente por haver dispositivo expresso (lei 7.492/86, art. 26, caput). (SILVA, 2001B, p. 307) Como bem colocado, nem todos os crimes que afetarem a ordem sócio-econômica serão de competência da Justiça Federal, vez que, somente quando a própria lei fizer tal previsão é que tal ocorrerá. De outro lado, como consta do dispositivo, a competência será da Justiça Federal, quando o crime antecedente também o for. O delito de tráfico de entorpecentes, por exemplo, é de competência da Justiça Federal quando extravasar o território nacional, consoante o disposto no art. 109, inciso V da Constituição (vez que é delito que o Brasil, por tratado se obrigou a reprimir) e no art. 70 da lei 11.343, de 26 de agosto de 2006 1. Assim, o tráfico internacional de entorpecentes é de competência da Justiça Federal, sendo que o delito de lavagem dos valores obtidos com tal atividade, por conseqüência, também será de competência da mesma justiça. Questão controvertida referente ao delito de tráfico de entorpecentes, concerne à hipótese de desclassificação do referido crime, quando se entender não possuir o mesmo caráter transnacional, vez que tal decisão tem reflexos no que tange à competência do delito de lavagem. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem entendido que, mesmo no caso de desclassificação, em face do estatuído no art. 81 do Código de Processo Penal 2, a competência continuará sendo da Justiça Federal. Em sentido contrário posicionamse o Superior Tribunal de Justiça 3 e o Supremo Tribunal Federal 4, para quem, afastada a internacionalidade do tráfico, deve o processo ser remetido ao juízo estadual. Esse último entendimento é o predominante, e, segundo pensamos, o mais acertado, vez que se trata de hipótese de incompetência absoluta da Justiça Federal. Assim sendo, no caso de tramitarem perante a Justiça Federal, em conexão, os 1 Esse é o teor da Súmula 522 do STF: “salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando então a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados e processo e julgamento dos crimes relativos a entorpecentes”. 2 TRF4, ACR 2003.70.02.010137-8, Oitava Turma, Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, pub. em 22/12/2004. 3 STJ – CC 15.532, Rel. Min. Edson Vidigal, 3ª Seção, DJU 3.6.1996. 4 STF – HC 74.479, Rel. Min. Carlos Veloso, 2ª Turma, DJU 28.2.1997. Angelo Ansanelli Júnior • 65 processos pelos crimes de tráfico de entorpecentes e lavagem de dinheiro, havendo desclassificação quanto àquele para esfera estadual, deverá a competência dos processos ser declinada para a Justiça Estadual. Aliás, é de se salientar que é possível que estejam em trâmite os processos pelo delito antecedente e o de lavagem de dinheiro, sejam praticados pelo mesmo agente ou não. Em face da conexão (material ou teleológica, prevista no art. 76, II do Código de Processo Penal, ou a instrumental, prevista no art. 76, III do mesmo diploma legal), haverá imperiosa necessidade de que os processos sejam reunidos para julgamento simultâneo (simultaneus processus). Ensina Rodolfo Tigre Maia que: [...] existindo, pois, a possibilidade de conexão, entre os crimes de lavagem de dinheiro e os ilícitos que o antecedem, ou ainda, na simples hipótese de o crime anterior ser de competência federal, esta alínea ‘b’ consagra o entendimento predominante na jurisprudência no sentido de que a reunião dos processos dar-se-á no âmbito da Justiça Federal (MAIA, 1999, p. 116)5. O problema que se coloca, porém, é o rito a ser adotado. No que tange ao tráfico de armas (inciso III do art. 1º.), cujos delitos estão previstos nos arts. 17 e 18 da lei 10.826/03, esclarece Marcelo Batlouni Mendroni que: [...] sendo ambas modalidades de tráfico – comercialização ilegal – , entende-se que, enquanto na forma do art. 17 as condutas ocorrem dentro do território nacional, na forma do art. 18, com conduta ‘de’ ou ‘para’ o exterior’. Na primeira, a competência é das Justiças Estaduais, e no segundo caso, da Justiça Federal. (MENDRONI, 2005, p. 44) Quanto à extorsão mediante seqüestro, tem-se que, em princípio, o delito de lavagem dos valores obtidos será de competência da Justiça Estadual, vez que, como ensina Marco Antonio de Barros: [...] sendo o dinheiro lavado proveniente de crime de extorsão mediante seqüestro, cometido no território nacional e que não guarde qualquer vínculo ou interesse internacional, será competente para processar e julgar o crime de lavagem o Juiz da comarca ou local dos fatos ou da apreensão dos bens, direitos e valores que denotem a ocultação da ilicitude do enriquecimento e patrimônio do acusado. (BARROS, 1998, p. 77) Como anota Ângelo Roberto Ilha da Silva, “as infrações penais perpetradas contra a Administração Pública dependerão de esta ser do âmbito da União, caso em que 5 Nesse sentido é a Súmula 52 do extinto TFR, reafirmada pela Súmula 122 do STJ. 66 • Doutrina Nacional a competência será da Justiça Federal, ou se darem em face de Estado-Membro ou Município, o que leva à competência da Justiça Estadual” (SILVA, 2001B, p. 308). Assim, se o agente pratica um delito de peculato contra o patrimônio da União, ou suas autarquias ou empresas públicas, e lava o dinheiro, a competência será da Justiça Federal. Questão interessante, é a que concerne à criação de Varas Especializadas para os crimes de lavagem de dinheiro através de resoluções. O Conselho de Justiça Federal baixou a resolução n. 314, em 12 de maio de 2003, determinando que os Tribunais Regionais Federais criassem as Varas Especializadas. Os Tribunais Federais, por sua vez, baixaram as resoluções, atendendo o comando administrativo do Conselho de Justiça Federal. Roberto Delmanto Junior, com quem concordamos, insurgiu-se contra a criação das Varas Especializadas através das resoluções, sob o argumento de que tal só poderia ocorrer através de lei formal, nos termos do art. 96, II, “d”, art. 105, § único, art. 62, § 1º., I, “b”da Constituição, e não por ato administrativo dos Tribunais. Desta forma, sustenta o autor que as resoluções são inconstitucionais, por violarem os princípios da legalidade, do devido processo legal e do juiz natural (art. 5º XXXVII) (DELMANTO, 2006, p. 568). 2. Independência do processo pelo crime de lavagem em relação ao crime antecedente O art. 2º, inciso II da lei 9613/98, prescreve que “o processo e julgamento dos crimes previstos nesta lei independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país”. A intenção do legislador, como se denota pelo dispositivo transcrito, é a de assegurar a punição do autor do crime de lavagem, de forma independente do resultado do processo do crime antecedente. Em comentários ao dispositivo supra, Guilherme de Souza Nucci afirma: Não há necessidade de se concluir a apuração e eventual punição dos autores do crime antecedente para que se possa processar e julgar o delito de lavagem de dinheiro. O importante é, ao menos, a prova da materialidade (prova da existência) do crime antecedente. Portanto, se o processo pelo crime antecedente estiver em andamento, considera-se uma questão prejudicial homogênea, merecedora de gerar a suspensão do processo pelo delito de lavagem até que outro seja julgado. (NUCCI, 2006, p. 426) Contudo, é de se ver que, conforme escólio de Rodolfo Tigre Maia: [...] fica de fato patente a autonomia processual dos delitos de lavagem, mas de modo algum resta coartada a Angelo Ansanelli Júnior • 67 possibilidade de julgamento simultâneo destes com os crimes antecedentes conexos, na óbvia hipótese em que tal reunião seja objetivamente possível, qual seja, dentre outras situações quando não for aplicável o art. 80 do Código de Processo Penal. (MAIA, 1999, p. 112) Embora a lei sugira a separação dos processos do crime antecedente e o de lavagem, consoante autoriza o art. 80 do Estatuto Processual, é de se ver que não proíbe o julgamento simultâneo dos referidos feitos. Aliás, segundo pensamos, tudo aconselha a reunião dos processos, vez que, via de regra, a prova de um influenciará na do outro, sendo hipótese de conexão instrumental (art. 76, III, do Código de Processo Penal), sendo que a competência será definida pelo crime de maior pena (art. 78, II, “a”, do mesmo diploma legal). De se lembrar que o exemplo mais clássico de reunião de processos por conexão instrumental é justamente os que envolvem os delitos antecedentes contra o patrimônio (furto, roubo, estelionato) e o de receptação (delito ao qual se assemelha o crime de lavagem de dinheiro). Todavia, caso não seja possível a conexão, acreditamos que, dependendo da hipótese, não será necessária a suspensão do feito do delito de lavagem de capitais. Isso porque, conforme texto expresso de lei, é indispensável apenas a prova da materialidade do delito antecedente. Assim, havendo prova no processo pelo crime antecedente de que realmente tal delito ocorreu (tráfico de entorpecentes, extorsão mediante seqüestro, crime contra o sistema financeiro), estando apenas a se discutir a autoria (ou outras questões como a prescrição, exclusão da culpabilidade), não haverá necessidade de suspensão do processo por crime de lavagem, eis que existente a prova da materialidade. Contudo, estando a se discutir a própria existência do crime antecedente, em face da prejudicialidade homogênea, entendemos ser viável a suspensão do processo referente à lavagem de dinheiro, vez que este delito depende do antecedente, e, assim, se evitar sentenças conflitantes e dispêndio de tempo e dinheiro público. No caso de o delito antecedente ter sido praticado em outro país, conforme escólio de Guilherme de Souza Nucci, “deve-se respeitar o princípio da dupla tipicidade (ser crime tanto no Brasil quanto no exterior)” (NUCCI, 2006, p. 426). Várias hipóteses podem ocorrer quanto ao processo pelo crime antecedente, caso este já esteja sentenciado, o que impede, obviamente, a conexão (art. 82 do Código de Processo Penal). Caso tenha ocorrido sentença absolutória no processo pelo crime antecedente, devemos analisar o motivo da absolvição. Consoante esclarece Lino Edmar de 68 • Doutrina Nacional Menezes, não restará afastado o delito de lavagem de dinheiro, caso a absolvição do processo pelo crime antecedente tenha se fulcrado em “falta de provas”, ou de não ter prova de haver “o réu concorrido para o crime”, ou, ainda, por “não ser o réu o autor”. Tal ocorrerá, porém, conforme ensina o autor, se a decisão absolutória estiver fundamentada em “não ter havido o fato” (MENEZES, 2000). Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio Delmanto, contudo, acrescentam mais três hipóteses que, uma vez configuradas, afastariam a possibilidade de condenação pelo crime de lavagem. Segundo os autores, caso haja sentença absolutória fundamentada no inciso III do art. 386 (não constituir o fato infração penal) e (atualmente, em face da entrada em vigor da lei 11.690/08) no inciso VI, primeira parte (existir circunstância que exclua o crime, ou seja, uma das excludentes de ilicitude dos arts. 23, 24 e 25 do CP), ou tiver ocorrido a abolitio criminis do delito antecedente, ou, ainda, a anistia em relação ao seu autor, “obviamente não poderá haver condenação por crime de lavagem, uma vez que o crime antecedente integra o próprio tipo do art. 1º. desta lei” (DELMANTO, 2006, p. 567). Realmente, no caso de a sentença do processo do crime antecedente estiver fundamentada na inexistência do fato, por este não constituir infração penal, ou pela abolitio criminis, logicamente que tal decisão impedirá a propositura de ação penal em face do crime de lavagem de dinheiro. Quanto à excludente de antijuridicidade, como a mesma é um dos requisitos do crime, juntamente com a tipicidade, entendemos que, ausente a ilicitude da conduta do tipo antecedente, afastado está o próprio crime antecedente, o que ilide a possibilidade da condenação pelo delito de lavagem. Lembra Lino Edmar de Menezes, finalmente, que, caso tenha ocorrido a extinção da punibilidade do autor do crime antecedente, pela prescrição ou pela morte, tal não impedirá o oferecimento de denúncia em face de algum beneficiário dos bens ilícitos utilizados na sua atividade econômica ou financeira (MENEZES, 2000, p. 26). 3. Denúncia O § 1º. do art. 2º. determina que “a denúncia será instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime”. O legislador, nesse dispositivo, corrobora sua intenção de que o autor do crime de lavagem seja punido, independentemente do resultado do processo do crime antecedente. O dispositivo é criticado por alguns, que sustentam a impossibilidade de oferecimento da denúncia apenas com indícios suficientes da existência do crime antecedente, havendo necessidade de comprovação da certeza da prática deste delito. Desse sentir é a lição de Fábio Roberto D’Ávila: Angelo Ansanelli Júnior • 69 Considerarmos que meros indícios da ocorrência do crime antecedente, mesmo que atribuindo-lhes a inapreensível característica de sérios, seriam suficientes para justificar uma condenação criminal por crime de lavagem de dinheiro, nos remonta às origens do Direito Penal, do Direito Penal inquisitorial, despótico, autoritário, quando a mera suspeita substituía a verdade no nefasto afã punitivo, seja qual fosse o custo de tal procedimento. (D’ÁVILLA, 1999, p. 4) De outro lado, em posição antagônica, outro setor da doutrina entende que não há necessidade de prévia condenação pelo crime antecedente para a caracterização do crime de lavagem. William Terra de Oliveira, partidário de tal corrente, afirma que “em razão disso, não é exigida prova cabal dos delitos antecedentes (sentença penal condenatória), bastando apenas indícios da prática das figuras mencionadas nos incisos I a VII, para que se complete a tipicidade” (OLIVEIRA, 1998, p. 125). Em que pese o brilhantismo dos que pensam de modo contrário, entendemos que a segunda corrente não está em dissonância com os postulados do Estado Democrático de Direito. De se salientar, primeiramente, que, para oferecimento de denúncia, deve o Ministério Público narrar o fato, com todas as suas circunstâncias, qualificar seus autores, classificar o delito e apresentar o rol de testemunhas (art. 41 do Código de Processo Penal). Além das condições da ação (interesse, legitimidade e possibilidade jurídica), deve estar presente, também, a justa causa, ou seja, “um lastro mínimo de prova que deve fornecer arrimo à acusação”, que deve resultar do inquérito policial ou das peças de informação, que devem acompanhar a acusação penal (JARDIM, 1998, p. 36). Como já visto anteriormente, pode ocorrer que sequer tenha sido instaurado processo pelo crime antecedente, em face da extinção da punibilidade pela prescrição, pela morte do agente; ou tenha sido oferecida denúncia, e o agente absolvido. É possível que, quando do oferecimento da denúncia, o Ministério Público possua indícios da prática do crime antecedente, sendo que, no decorrer da instrução pelo crime de lavagem, caberá ao Parquet o ônus de provar a tipicidade, que engloba a prática do crime antecedente e o de lavagem, a antijuridicidade e a culpabilidade. Como ensina Afrânio Silva Jardim: [...] torna-se necessária ao regular o exercício da ação penal a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária, por isso que lastreada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios de autoria, existência material do fato típico e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade. (JARDIM, 1998, p. 216) Assim, o que o legislador autoriza não é a instauração de um processo destituído de qualquer fundamento. Ele exige a existência de indícios suficientes (leia-se suporte probatório mínimo) da existência do crime antecedente. Tal expediente foi utilizado 70 • Doutrina Nacional pelo legislador nos crimes dolosos contra a vida, vez que o art. 408 do Código de Processo Penal exige, para o juízo de pronúncia, a existência de indícios de autoria e prova da materialidade. Desta forma, o que o legislador autorizou, foi a possibilidade de oferecimento de denúncia com o suporte mínimo probatório da existência do crime antecedente, que se consubstancia na justa causa. Obviamente que, se durante a instrução não restar provada a tipicidade e a antijuridicidade do tipo antecedente (a culpabilidade é dispensável, consoante o dispositivo), o agente, obrigatoriamente, deverá ser absolvido da imputação do crime de lavagem. Mesmo porque, como ensina Rodolfo Tigre Maia: [...] as provas de qualquer natureza (circunstanciais, testemunhais, documentais, periciais, etc.) acerca da materialidade da infração penal, quando colhidas ou certificadas em sede de inquisitiva, submetem-se sempre a um contraditório diferido, sujeitando-se à possibilidade de crítica e refutação pela defesa técnica do acusado na fase da instrução judicial. (MAIA, 1999, p. 120) Outra questão que suscita controvérsias, refere-se ao conceito de “indícios suficientes”, exigido pelo dispositivo para o oferecimento da denúncia. Indício definese, no dizer de Mittermayer, “como um fato que está em relação tão íntima com outro, que o Juiz chega um a outro por meio de uma conclusão muito natural” (apud TOURINHO FILHO, 1995, p. 306). E indícios suficientes, consoante ensinamento de Rodolfo Tigre Maia, “serão aqueles que, independentemente de sua quantidade, quando sopesados à luz dos princípios gerais de apreciação da prova em sede criminal, da experiência jurídica e das especificidades da modalidade de ilícito a que se vinculam, produzem no julgador o convencimento racional, explicitado fundamentadamente, de que determinado crime tenha sido praticado” (MAIA, 1999, p. 120). Destarte, tem-se que a denúncia oferecida pelo Ministério Público deverá conter a exposição fática do crime de lavagem, incluindo os indícios suficientes do crime antecedente, a qualificação dos autores, a classificação do delito e o rol de testemunhas. Uma observação que deve ser feita refere-se ao fato de o legislador dispensar a comprovação da culpabilidade do tipo antecedente. A isenção de pena significa ausência de culpabilidade, ou seja, que o acusado do crime antecedente pode ter sido absolvido com base nas excludentes previstas no art. 21 (erro de proibição), art. 22 (coação moral irresistível, e obediência hierárquica), art. 26 (inimputabilidade) e embriaguez (art. 28) do Código Penal. Isso porque o Angelo Ansanelli Júnior • 71 legislador pátrio adotou a teoria da acessoriedade limitada, que permite a punição do partícipe, desde que o fato praticado pelo autor seja típico e antijurídico, a fim de evitar a impunidade e estímulo para a prática do crime de lavagem. 4. A inaplicabilidade do art. 366 do Código de Processo Penal O § 2º. do art. 2º. da lei determina que “no processo por crime previsto nesta lei, não se aplica o disposto no art. 366 do Código de Processo Penal”. Até a entrada em vigor da lei 9.271, de 14 de abril de 1996, que alterou a redação do art. 366 do Código de Processo Penal, o Código determinava que, quando o réu fosse citado por edital e não encontrado, devia ser-lhe nomeado um defensor e o processo continuava até final sentença. O dispositivo foi modificado, passando a estipular que, caso o réu fosse citado por edital e não encontrado, o processo seria suspenso, com a conseqüente suspensão do prazo prescricional e decretação da prisão preventiva. A lei 9.613, consoante o dispositivo em comento, excepciona a atual regra geral do Código, mantendo a sistemática adotada antes da alteração do estatuto processual promovida pela lei de 9.271/96, suscitando controvérsias a respeito da constitucionalidade da opção legislativa, sendo que vários doutrinadores insurgemse contra a previsão do modelo adotado pelo Código de Processo antes da alteração promovida pela lei. Assim é, que César Antonio da Silva afirma: O dispositivo legal, ao vedar a aplicação do art. 366 do Código de Processo Penal, está viciado pelo signo da inconstitucionalidade, porque suprime ao réu o real conhecimento da acusação que lhe é imputada, violando o princípio do contraditório, ao deixar de suspender o processo quando citado por edital; o que equivale a dizer que o processo segue à revelia, violando, por conseguinte, o disposto no art. 5º. § 2º. da Constituição Federal. (SILVA, 2003A, p. 139) Além disso, Rodolfo Tigre Maia assevera que não houve restauração da revelia, vez que esta foi revogada. Ensina o autor que: [...] na medida em que a revelia não é mais expressamente consignada na lei adjetiva como conseqüência da contumácia do réu, como resulta da nova redação do art. 366 do Código de Processo Penal, não bastava ao legislador pura e simplesmente determinar a inaplicabilidade desse dispositivo legal. Era mister restaurar expressamente a revelia como sanção aplicável ao desatendimento do chamamento ficto nos processos referentes aos crimes estudados. (MAIA, 1999, p. 124) 72 • Doutrina Nacional Assim, como não houve repristinação expressa da revelia, para o autor, o dispositivo seria inaplicável. O terceiro questionamento refere-se à contradição entre o § 2º. do art. 2º., que reza que o art. 366 do Código de Processo Penal não será aplicado, no que tange à citação, e o § 3º. do art. 4º. da lei de lavagem, que determina a aplicação do mesmo art. 366 do estatuto processual concernente à restituição dos bens apreendidos, onde está consignada a necessidade de comparecimento pessoal do acusado para a realização de tal restituição. Luiz Flavio Gomes, um dos críticos da disposição, afirma que se trata de uma contradição autofágica, questionando: “Como pode o legislador dizer no art. 2º. que um tal dispositivo não é aplicável e logo em seguida, dois artigos depois, dizer que esse mesmo preceito é aplicável ?” (GOMES, 1998B, p. 14). Concluindo, acrescenta o autor que deve prevalecer o preceito que mais ampla a liberdade. Em que pesem as críticas formuladas ao § 2º. em comento, entendemos que as mesmas não procedem. Primeiramente, a inaplicabilidade do art. 366 do Código de Processo Penal não está eivado de qualquer inconstitucionalidade. Isso porque, embora o Brasil seja signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, é de se ver que sempre se adotou no direito pátrio, até a entrada em vigor da lei 9.271, de 14 de abril de 1996, o sistema da citação editalícia, sem que fosse declarada sua inconstitucionalidade. Nesse sentido é a lição de Guilherme de Souza Nucci: Lei especial afasta aplicação da lei geral. Foi opção de política criminal nesse caso e deve ser respeitada, não adiantando invocar conflitos e confusões legislativas para se expressar. Note-se que, antes de 1996, por mais que se julgasse importante julgar um réu citado por edital, em homenagem à ampla defesa, tal medida nunca foi adotada. Foi necessária a modificação do art. 366 do CPP para implantação da referida suspensão. (NUCCI, 2006, p. 426) Além disso, é de se ver que os autores dos crimes previstos na presente lei, geralmente, são pessoas abastadas, que facilmente se dirigem para o exterior, impossibilitando a persecução penal. Aduz Marcelo Batlouni Mendroni: “haverá forte suspeita de que poderá enviar o dinheiro para o exterior e para lá viajar e fixar residência – fazendo a justiça passar a depender de demoradas solicitações de cumprimento de cartas rogatórias, fornecimento de dados e pedidos de extradições” (MENDRONI, 2005, p. 117). De se salientar que a intenção do legislador, muito mais do que aplicar a sanção penal, consistente na pena privativa de liberdade, foi a de fazer com que ocorresse o perdimento dos valores, bens ou direitos provenientes da lavagem de dinheiro (art. 7º. inciso I) e interdição do exercício de determinados cargos (art. 7º. inciso Angelo Ansanelli Júnior • 73 II). É muito mais eficaz, para o combate ao crime de lavagem, a apreensão dos bens, do que a aplicação da pena privativa de liberdade. Ocorrendo a suspensão do processo, prevista pelo art. 366 do Código, dificilmente se chegaria à sentença de mérito, com a decretação do perdimento dos valores oriundos da lavagem ilícita, ou da imposição da interdição de direitos. O fato de constar no texto apenas vedação do art. 366 do Código de Processo Penal, sem repristinação de sua redação anterior à Lei 9.271/96, não significa que o dispositivo é inaplicável. Utilizando-se da interpretação lógica, tem-se que, se não aplicado o referido dispositivo, obviamente resta apenas a opção da citação editalícia, nomeação de advogado e prosseguimento do feito até final sentença. Com base na interpretação teleológica, temos que a intenção do legislador foi a que o processo prosseguisse, mesmo ante a ausência do acusado, pois dificilmente será localizado, e, também, a fim de que sejam aplicados os efeitos da sentença, acima mencionados. Finalmente, a contradição entre o § 2º. do art. 2º. com o § 3º. do art. 4º. é muito mais aparente do que real. Isso porque ambas as disposições referem-se a questões distintas. Como explica José Paulo Baltazar Junior: [...] o § 2º. afasta a aplicação do art. 366 em seu conjunto, ou seja, mesmo que o acusado citado por edital não compareça nem constitua advogado, ainda assim o processo não será suspenso, mas prosseguirá mesmo sem a presença do acusado. Já a do § 3º. do art. 4º., ao referir os ‘casos do art. 366’, tem por escopo exigir a apresentação do acusado para que possa pleitear a sua restituição. Nesta linha, os dispositivos mencionados não só são compatíveis como são complementares, na medida em que ambos tem por escopo comprovar a real existência do acusado. (BALTAZAR JÚNIOR, 2000; JARDIM, 1999, p. 216) Da mesma forma, Marcelo Batlouni Mendroni esclarece que “o dispositivo tampouco é contraditório, já que o art. 4º., § 3º. da lei refere-se à segunda parte do 366, caput do Código de Processo Penal, o qual diz respeito especificamente aos bens” (MENDRONI, 2005, p. 118). 5. Vedação à Liberdade Provisória e ao recurso em liberdade O art. 3º. da lei 9.613, torna defeso ao juiz a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança aos autores dos crimes de lavagem, e, ainda, prescreve que o juiz decidirá, fundamentadamente, se o réu poderá apelar em liberdade. Disposição similar constava do § 2º. do art. 2º. da Lei 8072/90 (lei dos crimes hediondos), revogada pela Lei 11.464. A vedação à concessão da liberdade provisória suscita controvérsias, vez que vários doutrinadores entendem que tais disposições são inconstitucionais, sob o argumento 74 • Doutrina Nacional de que o legislador, assim agindo, impede que o juiz avalie as circunstâncias de cada caso concreto. Afirmam ainda, que só se pode impor a segregação provisória aos acusados, quando presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, quais sejam, garantia da ordem pública, assegurar a aplicação da lei penal e a instrução probatória, e, finalmente, a ordem econômica. Aduzem, outrossim, que a proibição da concessão da liberdade provisória, sem motivação, viola os princípios da culpabilidade e presunção de inocência. Desse sentir é o posicionamento de Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio Delmanto: O art. 5º., XLIII, de nossa Lei Maior, ao dispor que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou de anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...] não vedou, nem poderia vedar, em absoluto, a liberdade provisória, posto que isso significaria a volta da prisão obrigatória. Por outro lado, interpretar que seu art. 5º., LXVI, autorizaria, implicitamente, que a lei ordinária pudesse proibir por completo a liberdade provisória, e ainda para todo e qualquer crime (ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança), não condiz com o espírito do art. 5º. [...] que cuida dos Direitos e Garantias Fundamentais [...] há de ser interpretado de forma a ampliar esses direitos e garantias, e não o contrário. Assim, a disposição do art. 3º. mostra-se absolutamente inaceitável em nosso ordenamento, restando violadas as garantias da desconsideração prévia de culpabilidade (CR, art. 5º., LVII) e da presunção de inocência (Pacto de San Jose da Costa Rica, art. 8º., 2)” (DELMANTO et al., 2006, p. 576). Contudo, é de se ver que, de outro lado, inúmeros doutrinadores defendem a opção legislativa, sem acoimá-la de inconstitucionalidade. Primeiramente, cabe salientar que a própria Constituição permite que o legislador faça tal opção, vez que o art. 5º., inciso LXVI reza que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança”. Assim, quando a lei permitir a concessão de liberdade provisória, deve fazê-lo o juiz, se presentes os requisitos legais (art. 310, § único do Código de Processo Penal). A contrario sensu, quando a lei vedar a liberdade provisória, está o legislador se utilizando do comando constitucional para impedir o benefício. Logicamente que existem limites para atuação do legislador, pois, do contrário, o mesmo estaria autorizado a estabelecer a vedação em quaisquer crimes, de forma desnecessária. Assim, há de se fazer interpretação da lei de forma sistemática, para saber se a opção do legislador encontra fundamento. No caso em tela, como já colocamos anteriormente, temos que os autores dos crimes de lavagem são pessoas abastadas, que facilmente se evadem para o exterior, frustrando a aplicação da lei penal. Angelo Ansanelli Júnior • 75 Em face dessa circunstância, e fulcrado no permissivo constitucional, o legislador infraconstitucional vedou a concessão da liberdade provisória, a fim de evitar que os autores dos crimes de lavagem empreendam fuga para outro país, assegurando, desta forma, a aplicação da lei penal. Marcelo Batlouni Mendroni, nesse diapasão, enfatiza que: [...] principalmente por garantia da instrução criminal, não há como se pensar em liberdade provisória, com ou sem fiança a um suposto criminoso milionário fugitivo da justiça. [...] não se pode deixar de consignar que quem se envolve com crimes da natureza daqueles previstos na lei não costuma ter escrúpulos e, abonado que seja ou esteja, faz com que o dinheiro compre pessoas e destrua provas. (MENDRONI, 2005, p. 120) Assevera Rodolfo Tigre Maia que: “não há que se cogitar de qualquer vulneração do estado de inocência, eis que a compatibilização dos dois mandamentos constitucionais envolvidos conduz a que a regra da ‘não-culpabilidade’ não afetou e nem suprimiu a decretabilidade das diversas espécies que assume a prisão cautelar em nosso Direito Positivo” (MAIA, 1999, p. 126). Áureo Rogério Gil Braga, em estudo sobre o tema, argumenta que há necessidade da vedação à liberdade provisória no caso em tela, em face da necessidade de assegurar a ordem econômica, de forma a se combater a macro criminalidade. Afirma que: [...] os envolvidos fomentam a cultura da impunidade e denotam um agir que configura o direcionamento das atividades de suas empresas ao acometimento dos suscitados delitos, criando quadrilhas [...] que agem numa mescla de atividades lícitas e ilícitas, com grave comprometimento da ordem pública e seus desdobramentos”. Concluindo, arremata o autor que “nesta linha de entendimento, com o intuito de dar garantia à ordem econômica, faz-se-, data vênia, imperiosa a segregação provisória” (BRAGA, 2002). No que tange ao recurso em liberdade, o legislador determina que a regra é a de que o acusado seja mantido segregado para poder apelar; excepcionalmente, o juiz poderá, fundamentadamente, conceder o direito de recorrer em liberdade. César Antonio da Silva, embora entenda que o dispositivo represente um avanço em relação ao art. 594 do Código de Processo Penal, enfatiza que o mesmo distante ainda se encontra do ideal, isto é, “da preservação do estado de inocência, expresso no inciso LVII do art. 5º. da Constituição, porque não é por se tratar de uma decisão condenatória, apenas, que pode ser atribuído o status de condenado a alguém” (SILVA, 2001A, p. 146). 76 • Doutrina Nacional Contudo, ensina Rodolfo Tigre Maia: [...] quanto à obrigatoriedade do recolhimento à prisão para apelar, contida neste dispositivo, mais restritivo do que a regra geral do Código de Processo Penal, entendeu o Supremo em exegese do dispositivo análogo da lei de crimes hediondos, que a fundamentação é de ser exigida quanto à decisão que admite a liberdade para recorrer do decisum condenatório (lei 8.072/90, art. 2º., § 2º.), por caracterizar exceção, e não quanto à que decreta a prisão, por consubstanciar a regra. (MAIA, 1999, p. 126) Desta forma, não há impedimento para denegação do direito de recorrer em liberdade, conquanto que o juiz esclareça os motivos que o levam a tomar tal medida. 6. Medidas assecuratórias e a inversão do ônus da prova O legislador estipulou a forma com que deverão ser decretadas as medidas assecuratórias nos delitos de lavagem de dinheiro no art. 4º. e §§. Prescreve o caput do dispositivo: “Art. 4º. O Juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou representação da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro horas), havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão ou o seqüestro de bens, direitos ou valores do acusado, ou existentes em seu nome, objeto dos crimes previstos nesta lei, procedendo-se na forma dos arts. 125 a 144 do Decreto-lei 3689, de 03 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal”. Consoante magistério de Marcellus Polastri Lima: [...] trata-se o seqüestro de verdadeira medida cautelar, sendo cabível quando demonstrado que os bens adquiridos são produtos do crime ou foram adquiridos com o proveito da prática delituosa (fumus boni iuris). [...] para sua caracterização não se indaga se a propriedade dos bens é controvertida, como no processo civil, pois aqui, o que dá especificidade a esses bens é terem sido adquiridos e pagos, com haveres obtidos por meio criminosos. (LIMA, 2006, p. 257) Assim, temos que, tanto o seqüestro quanto a apreensão dos bens são medidas de natureza cautelar, cujo deferimento está sujeito à presença dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora. O primeiro requisito, a fumaça do bom direito, consubstancia-se nos indícios de que os valores, bens ou direitos são provenientes de atividade ilícita, oriundos dos crimes de lavagem. Já o perigo da demora está sempre ínsito na possibilidade de o agente utilizar de artifícios para se desfazer dos bens, direitos e valores, comprometendo a comprovação da materialidade do crime. Angelo Ansanelli Júnior • 77 Preenchidos esses requisitos, o juiz decretará o seqüestro ou a apreensão dos bens, direitos ou valores. Contudo, o legislador, ciente de que se tratam de medidas de certa gravidade, e de forma ponderada, autorizou o levantamento dos referidos bens em duas hipóteses: quando não proposta a ação penal no prazo de 120 (cento e vinte dias), e quando for comprovada a licitude dos bens. Luiz Flavio Gomes acrescenta uma terceira hipótese, que, embora não prevista na lei, decorre da lógica, ou seja, no caso de o acusado ser absolvido ou ter declarada extinta a punibilidade (GOMES, 1998A). O § 1º. do art. 4º., acima transcrito, determina que os bens, direitos ou valores sejam levantados caso não proposta a ação penal no prazo de 120 dias. De outro lado, o próprio caput do art. 4º., reza que serão aplicáveis o disposto nos arts. 125 a 144 do Código de Processo Penal, sendo que o art. 131 deste diploma legal estabelece que o seqüestro será levantado em 60 (sessenta) dias, se não for intentada a ação penal. Em face disso, César Antonio da Silva sustenta: Trata-se, assim, de menor prazo para levantamento do seqüestro, não se harmonizando, por conseguinte, esse dispositivo, nesse aspecto, com o disposto no § 1º. do art. 4º. Por se tratar de medida extremamente violenta, justifica-se o levantamento do seqüestro uma vez findo o prazo previsto no art. 131 do Código de Processo Penal porque mais favorável ao réu. (SILVA, 2001A, p. 141) Com o devido respeito, ousamos discordar da conclusão supra. Embora o prazo previsto no Código de Processo Penal seja menor do que a da lei de lavagem para levantamento do seqüestro dos bens, é de se ver que o legislador, no dispositivo em comento, excepcionou a regra geral do Código. Desta forma, não há como se acolher a argumentação supra, data vênia. As maiores discussões, porém, referem-se ao § 2º. do art. 4º. da lei, que autoriza o levantamento do seqüestro ou apreensão dos bens, direitos ou valores quando o autor comprovar a licitude da procedência dos mesmos. Alguns doutrinadores defendem que há inversão do ônus da prova, o que violaria o princípio da presunção de inocência. Roberto Delmanto et al chegam a afirmar que “ao assim estipular, o legislador inverte o ônus da prova, submetendo o acusado a uma verdadeira probatio diabólica” (DELMANTO et al., 2006, p. 579). Marcelo Batlouni Mendroni, embora entenda que há a inversão do ônus, defende a opção legislativa. Assevera que o princípio do devido processo legal pode não estabelecer a presunção de inocência, o que ocorreria no caso em tela. Afirma o autor: [...] é exatamente entregar ao acusado o ônus de comprovar a licitude dos bens. Quando comprovar, em qualquer momento 78 • Doutrina Nacional processual, desde que compareça pessoalmente (§ 3º.), os bens serão liberados. Se não comprovar, advindo sentença condenatória, como efeito, será declarado o perdimento dos bens em favor da União, nos estritos termos do inciso I, art. 7º. da lei, em consonância com o art. 5º., XLVI, ‘b’ da Constituição Federal (MENDRONI, 2005, p. 121). Luiz Flavio Gomes, no mesmo sentido, afirma que o que o dispositivo quer dizer é que “durante o curso do processo, tendo havido seqüestro ou apreensão de bens, se o acusado, desde logo, já comprovar sua licitude, serão liberados imediatamente, sem necessidade de se esperar a decisão final” (GOMES, 1998A, p. 11). Conforme pensamos, não há violação de qualquer princípio constitucional, sendo legítima a opção legislativa. Entendemos que, como acima colocado, para a decretação das medidas de seqüestro ou apreensão de bens, haverá necessidade de que estejam presentes os requisitos do fumus boni iuris e o periculum in mora, vez se consubstanciam em medidas de natureza cautelar. Destarte, só serão decretadas as medidas referidas se existirem indícios que autorizem a conclusão de que os bens, valores ou direitos são provenientes da prática dos delitos da lei em comento. De outro lado, também como ocorre nas medidas cautelares, cessado um dos requisitos, a cautelar deve ser revogada. Assim, sobrevindo a ausência da fumaça do bom direito ou do perigo da demora, impõe-se a revogação da medida, no caso, o levantamento dos bens. O não oferecimento da denúncia no prazo de 120 dias (§ 1º.) é indicativo da ausência do fumus boni iuris, motivo pelo qual admite-se o levantamento dos bens. Outra hipótese de cessação do fumus boni iuris, é a comprovação de que os bens, valores ou direitos possuem procedência lícita. Desta forma, não há a inversão do ônus da prova, como sustentado: há a necessidade da prova, a cargo do Ministério Público, de que existem indícios de que os bens, valores ou direitos são oriundos dos delitos de lavagem para a decretação do seqüestro; contudo, havendo provas, oferecidas pelo indiciado ou acusado de que os bens são de procedência lícita, comprova-se a ausência do requisito da fumaça do bom direito, e, por conseguinte, a liberação dos bens. Lembra César Antonio da Silva que: [...] também o Código de Processo Penal, em seu art. 120, § 1º. manda o requerente produzir prova para restituição do bem quando for duvidoso seu direito”. Por outro lado, continua o autor, “o art. 130, I, ainda do mesmo diploma legal, estabelece que o seqüestro também poderá ser embargado pelo acusado, sob o fundamento de não terem os bens sido adquiridos com os proventos da infração” (SILVA, 2001A, p. 142). Angelo Ansanelli Júnior • 79 Temos que a sistemática da lei de lavagem, consoante o ensinamento supra, não difere da do Código de Processo Penal. Finalmente, o § 3º. do art. 4º. prescreve que “nenhum pedido de restituição será conhecido sem o comparecimento pessoal do acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores, nos casos do art. 366 do Código de Processo Penal”. Guilherme de Souza Nucci, embora criticando a redação do dispositivo, entende que: [...] se o acusado foi citado por edital e está ausente, querendo seus bens de volta, o mínimo que se espera é seu comparecimento pessoal em juízo para reclamar o que, em tese, legitimamente lhe pertence. No entanto, se não faz questão da devolução imediata, pode aguardar o final de instrução. Se for absolvido, os bens serão automaticamente liberados. Se o quiser antes do término da instrução, deve buscá-los diretamente. (NUCCI, 2006, p. 428) O legislador, ao estipular a necessidade de comparecimento pessoal do acusado para o deferimento da restituição de bens, atendendo ao espírito do art. 2º., § 2º. da lei, compele o mesmo a vir à juízo. Isso porque, como explica José Paulo Baltazar Junior, “a exigência de comparecimento do acusado está ligada à própria natureza do crime em questão, no qual é comum a utilização de laranjas ou testas-de-ferro, bem como dos nomes de pessoas existentes” (BALTAZAR JÚNIOR, 2000). 7. Conclusões Após análise dos institutos processuais da lei, podemos chegar às seguintes conclusões: 1. A competência para os crimes de lavagem de dinheiro é definida em relação aos tipos antecedentes. Serão de competência da justiça federal quando praticados contra a ordem socioeconômica ou sistema financeiro nacional e houver previsão legal a respeito, bem como quando o tipo antecedente também for de competência da referida justiça. 2. O crime de lavagem é independente do tipo antecedente; contudo, no caso de os processos de lavagem e do tipo antecedente estarem tramitando, os mesmos deverão ser reunidos para julgamento conjunto, em face da conexão. A improcedência do pedido da denúncia referente ao crime antecedente não impede a instauração de processo pelo crime de lavagem, desde que o fundamento da sentença absolutória seja a ausência de provas, o reconhecimento de excludente de culpabilidade, ou de não ter prova de haver “o réu concorrido para o crime”, ou, ainda, por “não ser o réu o autor”. 80 • Doutrina Nacional 3. A denúncia deverá ser instruída com indícios suficientes do crime antecedente, sendo que tal previsão não viola qualquer princípio constitucional, vez que, o que está a se exigir, é que exista justa causa a supedanear a prefacial acusatória. 4. A previsão da não incidência do art. 366 do Código de Processo Penal aos crimes de lavagem de dinheiro não viola o princípio constitucional da ampla defesa, vez que trata-se de opção legislativa, em virtude do fato da necessidade da sentença condenatória nos crimes da lei em comento, para aplicação dos efeitos secundários da sentença, como o perdimento dos bens e imposição de vedações. 5. A vedação da liberdade provisória não é inconstitucional, em face do disposto no art. 5º., inciso LVII da Constituição, que admite os benefícios mencionados quando a lei assim o admitir. Além disso, tal vedação justifica-se pelo fato de os autores dos crimes de lavagem serem pessoas abastadas que, em liberdade, facilmente influenciam na instrução probatória. 6. A necessidade de comprovação da licitude dos bens por parte do acusado ou indiciado não viola o princípio da presunção de inocência, vez que as medidas de seqüestro ou apreensão de bens só poderão ser deferidas quando existirem indícios suficientes para adoção de tais medidas. Finalizando, temos que a lei de lavagem de dinheiro, em que pesem as críticas, é diploma legislativo que está em consonância com os postulados da Convenção de Viena, sendo importante instrumento de combate aos crimes nela previstos, bem como aos tipos antecedentes. 8. Referências bibliográficas BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de Dinheiro: implicações penais, processuais e administrativas. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. O comparecimento do ofendido como condição de procedibilidade no pedido de restituição de bens apreendidos na lei de lavagem de dinheiro. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Porto Alegre, a. 1, n. 0, maio/ ago. 2000. BRAGA, Áureo Rogério Gil. 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No mundo medieval europeu, a descentralização política e o conseqüente acúmulo de poder pelos senhores feudais provocaram a quase completa eliminação da divisão, retomada posteriormente com a ascensão da burguesia. O ideário liberal, entronizando o indivíduo, e a propriedade ressuscitaram a summa divisio clássica, consolidando as esferas do público e do particular. Com o Brasil não foi diferente, uma vez que se estabeleceu, desde tempos remotos, a visão da dicotomia entre o Direito público e o Direito privado, tão cara ao Estado Liberal e ao Estado Social. A emergência do Estado Democrático de Direito provocou o debate sobre a permanência de um paradigma incoerente com a contemporaneidade social, política e jurídica. Discussões sobre a constitucionalização do Direito civil tornamse freqüentes e emerge a defesa de uma nova summa divisio constitucionalizada, sustentada e fundamentada pelo Professor Gregório Assagra de Almeida. PALAVRAS-CHAVE: Summa divisio clássica; Direito Público; Direito Privado; Summa divisio constitucionalizada. ABSTRACT: Since the Roman Classical Antiquity Law has been bi-parted in Private Law and Public Law. The horizontal relations, the cooperation ones, were related to the private sphere and the subordination relations were related to the public sphere. During the Middle Ages in Europe, political descentralization and the consequent accumulation of power by the lords provoked the almost complete elimination of division, later thrived with the rise of the bourgeuise. The liberal ideal worshiping the individual and property brought back the classic summa divisio, thus consolidating the public and private spheres. In Brazil it was not different, since there had been stablished the dicotomy between public and private law, a notion so dear to the Liberal State Heli de Souza Maia • 83 and to the Social State. The emergence of the Lawful Democratic State has provoked the debate on the permanence of a paradigm which is incoherent with the social, political and juridical contemporarity. Discussions on the constitutionalization of Civil Law have become more frequent and, therefore, the defense of a new constitutional summa divisio arises according to the model proposed by Prof. Gregório Assagra de Almeida. KEY WORDS: Classic Summa divisio; Public Law; Private Law; Constitutional Summa divisio. SUMÁRIO: 1. Considerações sobre direitos e interesses. 2. A summa divisio clássica: origem, desenvolvimento e superação. 3. Critérios doutrinários sobre a summa divisio. 4. Summa divisio constitucionalizada. 5. Considerações gerais. 6. Referências bibliográficas. 1. Considerações sobre direitos e interesses As palavras “interesse” e “direito” são plurívocas, permitindo inúmeras conceituações. Na concepção de Ihering, o Direito compunha-se de um elemento substancial, que é o fim prático do Direito, e de um elemento formal, que é a proteção pela via da Justiça, sendo para ele, o Direito, um interesse juridicamente protegido1. Rodolfo de Camargo Mancuso procura distingui-las, esclarecendo que: Apresenta, ainda, [...] os interesses legítimos são mais do que interesses simples, mas menos do que direitos subjetivos. Os interesses simples referem-se aos anseios, aspirações. Os direitos subjetivos compreenderiam posições de vantagens, de prerrogativas que, integrados à esfera patrimonial do indivíduo, recebem do Estado tutela especial, inclusive no plano jurisdicional. Por outro lado, os interesses legítimos, diversamente dos direitos subjetivos, que recebem proteção máxima, receberiam uma proteção limitada e, assim, não podem ser ignorados ou preteridos. [...] uma ordem escalonada de interesses no plano do Direito: a) interesses individuais, suscetíveis de captação e fruição pelo indivíduo isoladamente considerado; b) interesses sociais como interesses pessoais de grupos concebidos na condição de pessoa jurídica; c) interesses coletivos, os Tércio Sampaio Ferraz Jr. assim se manifesta sobre o posicionamento de Ihering: “O convívio humano revela conflitos de interesses. Alguns desses tornam-se juridicamente protegidos pelo ordenamento. O interesse juridicamente protegido constitui o direito subjetivo. A teoria cobre os casos em que as outras tinham dificuldade: loucos, crianças e nascituros têm interesses que antecedem ao próprio ordenamento, o qual, para permitir a convivência da liberdade de um com a de outro, os harmoniza. [...] A concepção, no entanto, é demasiado privatista, isto é, vê o problema apenas do ângulo do direito privado em que rege o princípio da autonomia da vontade.” (FERRAZ JÚNIOR, 1998, 142). 1 84 • Doutrina Nacional quais ultrapassariam as escalas anteriores, mas se limitam a valores referentes a grupos sociais ou categorias definidas; d) interesses gerais ou interesses públicos, na condição de interesses pertinentes à coletividade representada pelo Estado, os quais se exteriorizam em determinados padrões estabelecidos (bem comum, segurança pública, etc.) e e) em um grau mais elevado e mais abrangente do que interesses públicos ou gerais estariam os interesses difusos, que são interesses de conteúdo fluído, como a qualidade de vida” (MANCUSO apud ALMEIDA, 2008, p. 370-371). Para José Luis Bolzan Morais, O interesse que revela ao mundo jurídico é aquele qualificado pela assimilação normativa, ao passo que os demais permanecem no plano fático, como vantagens almejadas por alguém. Estes, por serem alheios ao plano jurídico-normativo, não têm a possibilidade de serem exigidos pelo pretendente à sua titularidade. (MORAIS apud ALMEIDA, 2008, p. 368-369). 2. A summa divisio clássica: origem, desenvolvimento e superação As origens da summa divisio clássica devem ser buscadas na civilização romana antiga2, pois lá está o marco inicial da divisão entre o Direito privado e o Direito público, embora não se possa querer que se tenha na atualidade a mesma conotação semântica atribuída aos dois vocábulos. Sua base é uma passagem do Digesto (533 d.C), publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singolorum utilitatem (Direito público é aquele que diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas; privado, às utilidades dos particulares). Na lição de Tércio Ferraz Sampaio Junior, A esfera privada compreendia o reino da necessidade, a atividade humana cujo objetivo era atender às exigências da condição animal no homem: alimentar-se, repousar, procriar etc. A necessidade coage o homem e obriga a exercer um tipo de atividade para sobreviver. Esta atividade é o labor. O labor distinguia-se do trabalho. Labor tinha a ver com o processo ininterrupto de produção de bens de consumo (alimento, por exemplo), isto é, aqueles bens que eram integrados no corpo após sua produção e que não tinham uma permanência no mundo: eram bens que pereciam. A produção destes bens exigia instrumentos que se confundiam com o próprio corpo [...] O lugar do labor era a casa [...] e a atividade correspondente Segundo Joaquim Carlos Salgado, “No Estado Romano, a igualdade é completa somente no direito privado em que tem sua existência, pois o direito privado é aquele em que a pessoa vale pela realidade que ela se dá, a propriedade. O mundo do direito é assim um mundo contraditório entre o uno e a multiplicidade, entre a igualdade dos particulares no plano do direito privado e a sua desigualdade no plano do direito público ou político.” (SALGADO, 1996, p. 184). 2 Heli de Souza Maia • 85 constituía a economia [...]. A casa era a sede da família e as relações familiares eram baseadas nas diferenças: relação de comando e de obediência, donde a idéia do pater famílias, do pais, senhor de sua mulher, de seus filhos e de seus escravos. Isto constituía a esfera privada. A palavra privado tinha aqui o sentido de privus, do que é próprio, daquele âmbito em que o homem, submetido às necessidades da natureza, buscava sua utilidade no sentido de meios de sobrevivência. Neste espaço não havia liberdade, pois todos, inclusive o senhor, estavam sob a coação da necessidade. Libertar-se desta condição era privilégio de alguns: os cidadãos (cives). [...] O cidadão exercia sua atividade num outro âmbito: a polis, a cidade. Aí ele se encontrava entre os seus iguais. Sua atividade própria era a ação. [...] o terreno da ação era o do encontro dos homens livres, que se governam. Daí a idéia de ação política, dominada pela palavra, pelo discurso, pela busca dos critérios do bem governar, das normas do direito. A vida política constituía a esfera pública. Sendo das atividades, a mais característica do ser humano, a ação permitiu a idéia de animal político. (FERRAZ JÚNIOR, 1998, p. 127-128). Considera-se, dessa forma, que o marco inicial de tal dicotomia – Direito público, Direito privado – tenha raízes fincadas no Direito Romano, pois o Corpus Iuris Civilis consagrava os termos ius publicum e ius privatum, bem como lex publica e lex privata. Irineu de Souza Oliveira teceu os seguintes comentários sobre a divisão romana do Direito: Preocuparam-se também os romanos em dividir o direito. A primeira classificação foi apresentada pelo jurisconsulto Ulpiano, que o separou em dois grandes ramos diferenciados pelo critério finalístico ou teleológico, isto é, pelo fim a que se destinam as normas de uma e de outra espécie. Ensina Ulpiano: ‘Neste estudo, duas são as posições: a do público e a do privado. O direito público é o que diz respeito à organização do Estado romano; o privado é o que interessa aos particulares’. [...] Essa definição resultou dicotômica, também por influência de uma corrente filosófica grega, defendida por Heráclito e Próculo, segundo a qual tudo poderia ser explicado pelo princípio dos pares opostos em que se decompunha o absoluto, ou seja: se percebemos o frio, podemos conhecer o calor; se temos idéia do que é o mal, saberemos avaliar o bem; se obtivermos a noção do justo, poderemos identificar a justiça; e assim sucessivamente. De tal modo, dividindo-se o direito em duas partes contrárias, ficará mais fácil entendê-lo e conceituá-lo, pois, em oposição, uma das partes levará naturalmente ao conhecimento da outra. (OLIVEIRA, 1998, p. 14). 86 • Doutrina Nacional Sobre a clássica divisão, ensina Miguel Reale que: [...] a primeira divisão que encontramos na história da Ciência do Direito é a feita pelos romanos, entre Direito Público e Privado, segundo o critério da utilidade pública ou particular da relação: o primeiro diria respeito às coisas do Estado (publicum jus est quod ad statum rei romanae speciat), enquanto que o segundo seria pertinente ao interesse de cada um (privatum, quod ad singulorum utilitatem spectat). (REALE, 2002, p. 339). Como se sabe, o Império Romano do Ocidente começou a ruir já nos primeiros séculos da Era Cristã, mas o ano de 476 é considerado o marco cronológico entre a Idade Antiga e a Idade Média, afiançando o fato de que sua queda foi extremamente significativa. Deixando de existir o Império Romano, a sociedade medieval vai se moldando e se organizando em feudos, onde o direito consuetudinário e localizado garantia proteção a uns e poder a outros poucos, tudo através de uma teia de compromissos e pactos. Vale recordar que a sociedade feudal era rigidamente hierarquizada, estamental, e baseada em laços de vassalagem e servidão, com um poder político central esfacelado e, portanto, residindo na pessoa do senhor feudal. Em decorrência da descentralização territorial da vida social, econômica e política não existia uma esfera pública propriamente dita, estando assim o interesse público submetido, dependente das relações privadas. Na baixa Idade Média, profundas alterações3 começam a afetar a sociedade, inclusive o surgimento dos primeiros embriões de Estados Nacionais, que adotaram a forma de Estados Absolutistas, onde o monarca incorporava e detinha em suas mãos todos os poderes. Assim, a esfera pública autônoma passou a inexistir, residindo nela o poder soberano, uno, absoluto e indiviso (ZAINAGHI, 2000, p. 132). O público estava atrelado ao privado, ou seja, estava na dependência das relações privadas. Eugênia Sales Wagner, distingue as relações público-privadas da Idade Antiga das estabelecidas durante a Idade Média. Na opinião da autora, O abismo que os antigos precisavam atravessar, ao transitarem do espaço privado para o espaço público, e que era uma passagem das trevas privadas para o esplendor público, esteve presente, também, na Idade Média, ainda que um tal abismo não fosse, aí, uma passagem da esfera familiar para a esfera política [...] As atividades componentes da vita activa estavam restritas, na Idade Média, à esfera privada, que apresentava aspectos Dentre tantas alterações significativas, merecem destaque o renascimento comercial, o renascimento urbano e o início do processo de fortalecimento do poder na figura do rei. Não é objetivo deste trabalho voltar-se à análise histórica deste momento, embora ele seja relevante – pois nele se alteram as relações sociais, econômicas e políticas, o que acabará por refletir na divisão entre o direito público e privado. 3 Heli de Souza Maia • 87 distintos da esfera privada dos antigos. A justiça, diferentemente daquela que era estabelecida pelo chefe de família, era administrada na forma de leis pelo senhor feudal e as relações humanas, por sua vez, encontravam-se ajustadas ao molde familiar. (WAGNER, 2000, p. 162) Simultaneamente ao processo de mudança política e social, a economia vai se ancorando cada vez mais em uma nova forma de produzir, voltada para o mercado e para a conseqüente geração de excedentes que possam atender a este mercado em fase de expansão4. Nascia o capitalismo, como nova modalidade de organização produtiva, ou, em uma leitura marxista, um novo modo de produção. Não dissociado deste processo assiste-se também a uma relativa polarização de classes sociais, tendo de um lado a burguesia e de outro o proletariado. O Estado nascente consolidou os interesses e anseios dessa primeira classe social, ou seja, da burguesia. A burguesia fortalecida a partir dos séculos precedentes encontra motivos para atacar o Estado Absolutista, tendo o iluminismo dado o sustentáculo ideológico para isso. As monarquias absolutistas, confundidas com o próprio Estado, passam a ser vistas como inimigas das liberdades individuais, pois qualquer restrição ao individual em favor do coletivo era tida como ilegítima (ZAINAGHI, 2000, p. 132). Neste contexto histórico, movimentos pela afirmação da burguesia, pelas liberdades individuais, pelo fim do mercantilismo, pela deposição das monarquias absolutas e pela independência das colônias ganham força no cenário europeu e mundial. Surge, também, a produção de inúmeros documentos que consagram esta nova concepção, sendo exemplos contundentes a Declaração de Direitos da Virgínia, Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Ganham vida, ainda no final do século XVIII, as primeiras Constituições ditas liberais e que tutelavam, primordialmente, os direitos fundamentais de primeira geração. Sobre os direitos de primeira geração, afirmou Paulo Bonavides: Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzemse como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. [...] São por igual direitos que valorizam primeiro o homem4 Vale ressaltar que, entre a Baixa Idade Média e o início da Idade Moderna, há um período de transição, em que ocorrem mudanças em torno da vida social, econômica, política e jurídica. Na avaliação de Michele Costa da Silveira, “Durante o séc. XIII até o séc. XVIII, a distinção entre direito público e direito privado se esvanece, em razão de que a discussão que então predomina no Direito é a precedência do direito natural em relação ao direito positivo, quando a comunhão até então existente entre indivíduo e Estado é rompida, e são reconhecidos ao homem direitos naturais, inerentes e privados, inderrogáveis pelo direito positivo ou pela autoridade civil.” (SILVEIRA, 2002, p. 26). 88 • Doutrina Nacional singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual. (BONAVIDES, 2003, p. 563-564) Os direitos de primeira geração são os concernentes à liberdade e vistos como direitos negativos (não agir). Estão relacionados com os direitos civis e políticos, com a liberdade de expressão religiosa e comercial. Acima de tudo, são direitos individuais e frutos de um Estado Liberal. Sobre tais direitos, Edson Passeti e Salete Oliveira assim se manifestaram: O sentido do conceito de tolerância foi construído no início da Modernidade a partir da consciência da diversidade humana. Seu valor central é a liberdade de pensamento e expressão e dele decorre uma idéia de igualdade restrita à esfera dos direitos civis. Sobre este fundamento axiológico, foi redigido o conjunto dos direitos humanos contidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, de 1789. Em seu primeiro artigo, os valores da liberdade e da igualdade civil já estão claramente expressos: ‘Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos [...]’. E o segundo artigo define como direitos naturais a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão, e os identifica como direitos civis e políticos. São justamente aqueles que garantiam a cidadania e o poder à classe burguesa. [...] Como frisamos, o valor igualdade, de que fala a Declaração de 1789, restringe-se à igualdade jurídica e civil, sem estendela à realidade sócio-econômica dos cidadãos. Esta idéia de igualdade decorre do fato de os direitos humanos serem concebidos a partir do valor liberdade e restrito a três domínios: a liberdade de consciência, a liberdade de autodeterminação e associação entre os indivíduos. Historicamente, direitos civis e políticos ficaram conhecidos como direitos humanos de primeira geração, ou simplesmente direitos de liberdade. (PASSET; OLIVEIRA, 2005, p. 49). Alcança relevo o movimento codificatório, objetivando assegurar o maior espaço possível para a autonomia dos indivíduos, sobretudo na seara econômica, uma vez que a dimensão econômica do homem é destacada na sociedade marcada pelo liberalismo. E o Direito privado alcança o maior realce, com fortes cores positivistas, norteado pelo rigor das formas e excessivo apego às normas escritas. Confiavase ao Direito privado a tarefa hercúlea de prever todas as possibilidades fáticas em enunciados normativos reduzidos a uma codificação.5 Bom exemplo é o Código 5 “O século XIX foi o século das grandes codificações. Os modelos implantados nesta época, denominados códigos oitocentistas eram rígidos, fechados, estáticos e totalizantes. Constituíam-se de sistemas impermeáveis às modificações econômicas e sociais que eram resultado do positivismo neutralizante, liberal-individualista e do racionalismo que reinavam na época.” (ALMEIDA, 2007, p.2). Heli de Souza Maia • 89 Napoleônico6, advindo com a crescente influência da burguesia e do espírito liberal, sendo, portanto, fruto das doutrinas individualistas e voluntaristas. Nele o Direito civil foi identificado com o próprio Código Civil. A dicotomia entre Direito privado e Direito público era visível e palpável, pois ao primeiro se entregava a regulação das relações estabelecidas entre os indivíduos e os assuntos referentes à capacidade, à família e à propriedade, com fito de garantir o desenvolvimento das atividades econômicas. Assumiu, assim, papel preponderante no ordenamento jurídico. Já ao segundo, ao Direito público, ficava destinada a tutela dos interesses gerais e, mesmo assim, se os efeitos de tais atos fossem uma exigência dos próprios indivíduos. Considera-se modernidade7, ou tempos modernos, o período histórico que sucede ao medieval e apresenta marcantes acontecimentos. A reforma protestante, por exemplo, foi extremamente significativa, uma vez que pôs fim ao monopólio católico do cristianismo e, além disso, foi o grande símbolo da liberdade.8 Outro fato histórico marcante dessa fase da história é o iluminismo, também conhecido como Século das Luzes e Ilustração. Em linhas gerais, duas idéias básicas foram comuns a todos os pensadores iluministas: a razão, como único guia infalível para se chegar ao conhecimento e à sabedoria e a crença de que o universo não é submetido a interferências e vontades divinas, mas que é uma máquina comandada pelas leis físicas que podem ser determinadas e estudadas. Dentre tantos pensadores 6 “Como se sabe, os códigos oitocentistas foram fruto de transformações revolucionárias e se antepunham aos costumes e aos preconceitos que caracterizaram suas épocas e que justificaram as revoluções. Assim se deu, também, com o mais famoso de todos eles, o Código Francês de 1804, de inspiração racionalista, que pretendeu aprisionar, imutavelmente, normas completas, claras, de interpretação linear, e que não admitia a existência de lacunas ou de episódios não previstos, exatamente porque a sistematização abrangia – ou pretendeu abranger – todos os problemas jurídicos que pudessem ser suscitados. Daí a sua pretensa eternização.” (HIRONAKA, 2003, p.97). 7 Segundo Liszt Vieira (1997, p. 21-22) “A dicotomia universal-particular expressa no conflito Estado x indivíduo do período moderno encontra suas raízes na filosofia medieval. De um lado, a escolástica de Tomás de Aquino retoma a tradição aristotélica ao subordinar o particular ao universal concebido idealmente como um todo. De outro, a concepção nominalista de Guilherme de Occan substitui a preocupação aristotélica com o geral pelas substâncias individuais. Só são reais os seres singulares designados por nomes próprios. Os universais não tem existência real, pois o mundo não é um cosmo ordenado, mas um agregado de individualidades isoladas que são a base da realidade. O individualismo e o pragmatismo da cultura anglo-saxã derivariam da tradição nominalista, enquanto nos países latinos, sobretudo na cultura ibérica, teria prevalecido a tradição neo-escolástica que suavizou o individualismo moderno, temperando-o com ênfase no público, no Estado, no todo, em lugar do privado, do individuo, do particular.” 8 A liberdade religiosa deve ser relativizada, pois em diversos reinos, os súditos deviam seguir a religião de seus monarcas. Afora isso, a inquisição impedia manifestações religiosas diferentes da católica em diversos países, tendo encontrado maior influência em Portugal e Espanha. 90 • Doutrina Nacional iluministas sobressaem Diderot9, Montesquieu10, Voltaire11, Rousseau12 e Adam Smith13. Importante também foi a Revolução Francesa e seus desdobramentos. Pondo fim ao absolutismo e ao mercantilismo, ela sepultou o Antigo Regime e inaugurou para o mundo uma nova era, a era do Estado de Direito. As idéias dominantes da razão iluminista são a ciência e a racionalidade, as liberdades individuais, os direitos do cidadão, o jusracionalismo, a racionalização e a sistematização do Direito, a primeira onda de codificação, o individualismo (a grande razão de ser do Direito seria o próprio indivíduo), a concepção unitária e abstrata do sujeito de direito. Denis Diderot era racionalista, defendia o liberalismo político e mostrava-se teísta. Foi atribuída a ele a famosa frase: “Os homens só serão livres quando o último rei for enforcado com nas tripas do último padre”, em uma clara condenação do absolutismo e da tentativa de domínio do pensamento pela Igreja. “Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros. A liberdade é um presente do céu, e cada indivíduo da mesma espécie tem o direito de gozar dela logo que goze da razão... Todo outra autoridade (que a paterna) vem duma outra origem, que não é a da natureza. Examinando-a bem, sempre se fará remontar a uma destas duas fontes: ou a força e a violência daquele que dela se apoderou; ou o consentimento daqueles que lhe são submetidos, por contrato celebrado ou suposto entre eles e a quem deferiram a autoridade. O poder que se adquire pela violência não é mais que uma usurpação e não dura senão pelo tempo por que a força daquele que comanda prevalece sobre a daqueles que obedecem [...]. O poder que vem do consentimento dos povos supõe necessariamente condições que tornem o seu uso legítimo útil à sociedade, vantajoso para a República, e que o fixem e restrinjam entre limites; pois o homem não pode nem deve dar-se inteiramente e sem reserva a outro homem.” (DIDEROT, 1997, p.22-23). 10 Montesquieu tornou-se conhecido principalmente por sua obra O espírito das leis, onde desenvolveu a teoria da separação dos Poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário. 11 Foi um árduo defensor das liberdades individuais (“Posso não concordar com uma só palavra do que disseres, mas me baterei a vida toda pelo direito que tens de dizê-las.”) e contrário ao absolutismo e à tirania da Igreja (“Se Deus criou o homem, o homem pagou-lhe na mesma moeda.”). 12 “Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é, em certo sentido, difícil de ser enquadrado entre os filósofos iluministas. Naturalista, criticava aqueles que elevavam a razão à categoria de uma verdadeira deusa. Enquanto Voltaire e Montesquieu expressavam os ideais da burguesia francesa, Rousseau representou o pensamento das camadas populares da época. Exigia uma República e afirmava que a fonte de poder era o próprio povo. Em seu livro Da origem da desigualdade entre os homens, Rousseau afirmava: ‘O primeiro que concebeu a idéia de cercar uma parcela de terra e de dizer ‘isto é meu’, e que encontrou gente suficientemente ingênua que lhe desse crédito, este foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos delitos, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a o gênero humano aquele que, arrancando as estacas e enchendo os sulcos divisórios, gritasse: ‘cuidado, não dai crédito a esse trapaceiro, perecereis se esqueceres que a terra pertence a todos’. Rousseau, entretanto, apesar de considerar a aparição da propriedade privada um mal, reconhecia-a como inevitável. A solução que propunha era a limitação da propriedade. ‘Para melhorar o estado social, é preciso que todos tenham o suficiente e que ninguém tenha demasiado’. Suas teorias teriam larga aceitação entre a pequena burguesia (artesãos e camponeses) e as camadas de trabalhadores mais miseráveis que sonhavam com um mundo onde todos fossem pequenos proprietários. A principal obra de Rousseau foi O Contrato Social, onde advogava que a sociedade e o Estado nascem segundo convênio entre as diversas pessoas, em benefício de seus interesses comuns. O poder, ou soberano, é o próprio povo. Rousseau assumia, dessa forma, o papel de crítico da ordem burguesa, antes mesmo que ela se estruturasse definitivamente na França.” (MELLO, 1993, p.87-88). 13 Adam Smith é considerado o pai do liberalismo econômico. Em sua obra A riqueza das nações, defendeu a teoria de que a economia funcionava sozinha, sem intervenção do Estado, através de uma “mão invisível”. Seu pensamento exerceu profunda influência nas doutrinas econômicas do século XX. 9 Heli de Souza Maia • 91 Na lição de Francisco Amaral: Os postulados do Estado Moderno, ou de Direito são os mesmos do direito privado, donde a conveniência de se focalizar, agora, o Estado Liberal de Direito. Suas principais características seriam: a) o primado da lei, no sentido de que todos os poderes derivam da lei, que é a realização da vontade popular. Todos os poderes dela derivam porque a lei prevê e regula comportamentos abstratos e gerais, válidos e obrigatórios para todos, sem distinção, e perante a lei, todos seriam iguais (igualdade formal); b) divisão de poderes, legislativo, executivo e judiciário, correspondentes a três momentos diversos do processo normativo: formação, aplicação e execução das leis. Tal separação representaria o resultado histórico da luta contra o absolutismo dos reis, em nome dos direitos do povo, de modo que só a vontade geral poderia produzir regras vinculantes para todos, por meio do Parlamento. Os juízes, não tendo investidura popular, não seriam representantes do povo, não teriam assim, poder legislativo. Seriam, apenas, a boca da lei e a sua decisão seria meramente silogística. E a própria administração pública, o Estado em si, não pode agir senão de modo conforme às leis. É o princípio da legalidade. c) Generalidade e abstração das regras jurídicas.A condição de aplicação das normas jurídicas compreenderia todas as pessoas da comunidade (generalidade), não apenas determinadas categorias sociais, e referir-se-ia a uma classe infinita de ações (abstração), adequadas à hipótese de aplicação, a chamada fattispecie; d) Distinção entre direito público e direito privado, entendendose aquele como ‘o conjunto de normas com as quais o Estado determina a própria estrutura organizativa e regula as relações com os cidadãos’, as normas de direito privado teriam a sua aplicação deixada à iniciativa individual, tendo assim o particular a disponibilidade do processo, o que é hoje o princípio dispositivo do processo civil. Além disso, as normas de direito privado destinar-se-iam à tutela dos interesses particulares, e não aos da coletividade; seriam dispositivas, no sentido de que permitiriam ao particular dispor como lhe aprouvesse, só se aplicando na falta de ‘expressa vontade contrária dos interesses privados’. Seriam, também, derrogáveis. (AMARAL, 2003, p. 70-71). Ao lado do Estado Liberal de Direito, ergue-se o Estado Social de Direito. Aquele fora marcado pelo primado da lei, pela divisão de poderes, pela generalidade e abstração das regras jurídicas, pela distinção entre Direito privado e Direito público, pela racionalização da vida jurídica e pela subjetividade jurídica. Este outro, o Estado Social de Direito, apresenta outras características, tais como: a) intervencionismo 92 • Doutrina Nacional estatal na ordem social, ofertando serviços sociais, principalmente na área da educação, saúde e previdência, através de uma bem-sucedida rede de proteção social; b) respeito integral às liberdades fundamentais, como o direito de greve, de locomoção e de expressão; c) direitos fundamentais ampliados para os campos econômico, social e cultural; d) consecução do bem-estar social; e) igualdade substancial e não meramente formal; f) solidariedade. Enfim, um Estado marcado pela implementação dos direitos de terceira geração14 (incorporando, obviamente, as outras duas gerações), sem abandonar a dicotomia Direito privado e Direito público. Na contemporaneidade, com tantas modificações, tantas transformações, com tamanha complexidade e diversidade, é pacífico o entendimento sobre a insuficiência da possibilidade de os modelos jurídicos tradicionais oferecerem respostas e servirem de remédio aos males que afligem esta nova sociedade, mundializada, globalizada, numa demonstração inequívoca de superação da summa divisio tradicional, como demonstra Maria Celina B. Moraes: Defronte de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão. A divisão do direito, então, não pode permanecer ancorada àqueles antigos conceitos e, de substancial – isto é, expressão de duas realidades herméticas e opostas traduzidas pelo binômio autoridade – liberdade – se transforma em distinção meramente 'quantitativa': há institutos onde é prevalente o interesse dos indivíduos, estando presente, contudo, o interesse da coletividade; e institutos em que prevalece, em termos quantitativos, o interesse da sociedade, embora sempre funcionalizado, em sua essência, à realização dos interesses individuais e existenciais dos cidadãos. Mais: no Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição de 1988, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, de modo que tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito. (MORAES, 1991, p. 4). Sobre os direitos de terceira geração: “Na segunda metade do nosso século (XX), surgiram os chamados ‘direitos de terceira geração’. Trata-se dos direitos que tem como titular não o indivíduo, mas grupos humanos como o povo, a nação, coletividades étnicas ou a própria humanidade. É o caso da autodeterminação dos povos, direito ao desenvolvimento, direito a paz, direito ao meio ambiente, etc. Na perspectiva dos ‘novos movimentos sociais’, direitos de terceira geração seriam os relativos aos interesses difusos, como direito ao meio ambiente e direito do consumidor, além dos direitos das mulheres, das crianças, das minorias étnicas, dos jovens, anciãos etc.” (VIEIRA, 1997, p.23). 14 Heli de Souza Maia • 93 Dentre os aspectos relevantes, sobressaem: a) a incapacidade de dar respostas a questões fundamentais como justiça social e o bem-comum; b) retorno ao irracionalismo, no sentido de oposição à razão totalizadora; c) passagem do individualismo ao solidarismo; d) pluralismo das fontes de Direito; e) individualização e concretude das normas; f) sociedade de risco;15 g) superação do formalismo jurídico; h) constitucionalização do Direito privado;16 i) descodificação do Direito civil;17 j) relativização da dicotomia Estado x sociedade e Direito público x Direito privado; l) ampliação, consolidação e reconhecimento do terceiro setor;18 m) superação da Para o Professor Pierpaolo Cruz Bottini, “A sociedade de risco é fruto do desenvolvimento do modelo econômico que surge na Revolução Industrial, que organiza a produção de bens por meio de um sistema de livre concorrência mercadológica. Este modelo econômico exige dos agentes produtores a busca por inovações tecnológicas que permitam a produção e a distribuição de insumos em larga escala, sob pena de perecimento por obsolescência. [...] A criação de novas técnicas de produção não é seguida pelo desenvolvimento de instrumentos de avaliação e medição dos potenciais resultados de sua aplicação. Do descompasso entre surgimento de inovações científicas e o conhecimento das conseqüências de seu uso surge a incerteza, a insegurança, que obrigam o ser humano a lidar com o risco sob uma nova perspectiva. O risco, fator indispensável ao desenvolvimento econômico de livre mercado, passa a ocupar papel central no modelo de organização social. O risco torna-se figura crucial para a organização coletiva, passa a compor o núcleo da atividade social, passa a ser sua essência. Surge a sociedade de riscos.” (BOTTINI, 2007; p. 33-34). 16 Segundo o Professor Luis Roberto Barroso a expressão constitucionalização do direito privado está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico, pois os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. (BARROSO, 2007). 17 Neste sentido, o Professor Gregório Assagra de Almeida ensina que “Em razão da grave crise resultante da inadequação dos sistemas jurídicos implantados nos códigos civis clássicos e, pela mesma simetria, nos códigos de processos civis como seus correspondentes naturais, houve a necessidade de criação dos denominados microssistemas (polissistemas ou plurissistemas) ou estatutos especiais, também conhecidos como códigos setorizados. Os sistemas de direito civil e de direito processual civil até então implantados, pela generalidade, pela abstração e impermeabilidade às mudanças sociais, não respondiam bem aos anseios da sociedade massificada. Questões relacionadas não só ao consumidor, mas também à criança e ao adolescente, ao ambiente, aos portadores de necessidades especiais, aos idosos etc., ficavam à margem da tutela jurídica adequada como garantia constitucional fundamental de um sistema jurídico justo e democrático. 15 [...] Os sistemas auto-suficientes, impermeáveis às mudanças sociais, começam a ser abalados com a criação cada vez mais incessante dos microssistemas como a expressão do particularismo jurídico necessário para atender a peculiaridades de muitos direitos materiais, especialmente de cunho social. A própria idéia clássica de legislação geral e abstrata teve de ser abandonada para uma concepção mais particularizada.” (ALMEIDA, 2007, p. 29-30). 18 “O Terceiro Setor tem sido identificado com o conceito de sociedade civil. É formado pelas entidades jurídicas não governamentais, sem finalidade lucrativa, objetivando o bem da coletividade. A natureza jurídica deste setor ainda está em construção, havendo, por conseguinte, diversos conceitos para defini-lo, uns o descrevem como sendo o setor solidário, outros como sendo setor coletivo, independente. Há quem o classifique como integrante do Direito Social. Importa destacar o objetivo perseguido pelo Terceiro Setor, composto por organizações ou instituições dotadas de autonomia, que apresentam como função e objeto principal a atuação voluntária junto à sociedade civil, visando o seu aperfeiçoamento. Inquieta-se, essencialmente, com os homens e a propagação da justiça social entre eles. Preocupa-se com o desenvolvimento humano e maior equilíbrio social. As entidades que integram o Terceiro Setor originaram-se a 94 • Doutrina Nacional divisão de poderes na criação e aplicação do direito; n) superação da idéia de que o Direito é um sistema de normas hierárquicas e axiomáticas; o) personalização do Direito civil19. 3. Critérios doutrinários sobre a summa divisio O Professor Gregório Assagra de Almeida apresenta criticamente os seguintes critérios teóricos sobre a summa divisio clássica, como segue: [...] a summa divisio encontra fundamentação nos interesses em jogo, ou seja, se o interesse for público, o direito é público, e no lado oposto, se prevalecer o interesse privado, tratar-se-á de direito privado20; (b) quanto à natureza jurídica das relações estabelecidas pelos sujeitos, será público se houver uma relação de autoridade (Estado) e de subordinação (cidadão) e, ao contrário, a natureza jurídica será de direito privado, se as relações forem horizontais;21 (c) a análise, segundo o critério subjetivo, levará em conta o fato de que o direito público é o que atua quando nas relações jurídicas está o Estado e no direito privado, quando nas relações não está presente o Estado; (d) quanto ao modo de proteção das normas de direito público e de direito privado deve-se considerar que no primeiro cabe ao Estado a função de garantir a reintegração da norma se seu interesse for violada e no segundo cabe ao indivíduo a atualização e defesa de seus interesses, se violados. (ALMEIDA, 2007, p. 389). partir dos movimentos sociais, que funcionam como interlocutores, e transformaram-se em importantes instrumentos para a consecução de uma nova dinâmica social e democrática, em que as relações são orientadas pelos laços de solidariedade entre os indivíduos, espírito voluntariado, consenso e anseio do bem comum.” (SOUZA, 2008). 19 O Professor Francisco Amaral (1998, p. 147) explica: “Personalização do direito civil, no sentido de crescente importância da vida e da dignidade da pessoa humana, elevadas à categoria de direitos e de princípio fundamental da Constituição Federal. O princípio da subjetividade jurídica do direito moderno, expresso na figura do sujeito de direito como centro de atribuição de direitos e deveres, evolui para o princípio do personalismo ético, da época contemporânea, segundo o qual todo ser humano é pessoa, individual e concreta. O homem, porque é pessoa em sentido ético, é um valor em si mesmo”. 20 Analisando-se os critérios apresentados, não há como discordar das críticas devidamente fundamentadas e expressas pelo autor, que, em síntese, assim se manifesta: “Nota-se que todos os critérios apresentados são falhos e impedem uma tutela jurídica ampla, integral e irrestrita, própria do Estado Democrático de Direito. Eles fundamentam-se no dualismo que separa Estado da Sociedade, hoje incompatível com o novo paradigma do Estado Democrático de Direito e inconciliável com uma teoria dos direitos fundamentais integral, democrática e transformadora, como a inserida na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Nenhum dos critérios volta-se para a conjugação entre os planos da titularidade e da proteção e efetivação dos direitos. Atualmente, o plano da efetivação dos direitos é o campo mais farto e próprio para uma ciência jurídica, direcionada para a construção de uma dogmática crítica e transformadora.” (ALMEIDA, 2007, p. 389). 21 Nas palavras do Professor Luis Fernando Coelho, “A esta corrente filia-se uma plêiade de renomados juristas, entre os quais Radbruch, Thon, Jellinek, [...] As relações de coordenação, cujos sujeitos estão em pé de igualdade, são estabelecidas pelo direito privado; as de subordinação, em que um dos sujeitos aparece revestido de autoridade ou imperium, constituem o âmbito do direito público.” (COELHO, 2004, p. 92-93). Heli de Souza Maia • 95 Já o Professor Luiz Fernando Coelho analisa a teoria do interesse (e tece críticas a ela), conforme se vê: A primeira (teoria do interesse) é derivada da distinção romana. Seu fundamento é a contraposição real entre o interesse geral, identificado com o do Estado, e o particular, considerados, necessariamente opostos entre si, reflexo da oposição entre o indivíduo e a coletividade. [...] Ora, saber, em determinada relação jurídica, se está em jogo o interesse coletivo ou se é o individual que deve ser tutelado depende muito mais do intérprete, do ponto de vista pessoal, do que do conteúdo das normas e relações jurídicas. Acresce que hoje em dia já não se identifica o interesse da sociedade com o do Estado, pois ocorrem interesses coletivos e difusos que muitas vezes são e devem ser exercidos contra o interesse do Estado, ao menos de seus representantes. [...] Savigny e Sthal identificaram, no critério teleológico, a prevalência das finalidades das regras de direito. O direito público tem como fim o Estado e, no privado, o Estado é apenas um meio para atingir o seu fim, os indivíduos; estes, em relação ao direito público, são considerados, secundariamente, como membros da organização social, ao contrário do privado, que os considera individualmente.[...] [...] alguns autores têm procurado estabelecer como critério distintivo o tipo de conduta normativamente conceptualizada. [...] Ora, em termos extremados, a existência interpessoal é o reino do direito privado, que objetiva a relação de interdependência dos sujeitos; a existência transpessoal é o reino do direito público, com o fito de integrar o indivíduo na sociedade. (COELHO, 2004, p. 90-91)22 Há ainda a corrente negativista cujo maior expoente foi Hans Kelsen, partindo-se da premissa de que o sistema jurídico é inquebrantável, filiando-se desta forma a uma concepção normativa finalista. A corrente do Direito misto assegura que não há sustentação para a summa divisio clássica, asseverando que, entre o Direito privado e o Direito público, está o Direito misto, tutelando o interesse coletivo. Decerto que não representa alteração substancial da tradicional classificação, não rompendo com suas amarras autoritárias e liberalistas. A obra continua a analisar as demais teorias citadas. A formalista está centrada em critérios baseados na forma assumida pelas relações jurídicas, sendo o primeiro deles a natureza das relações jurídicas e o segundo, o modo como as normas jurídicas se fazem valer. 22 96 • Doutrina Nacional 4. Summa divisio constitucionalizada A sociedade brasileira conviveu durante longo período com a divisão entre o Direito público e o Direito privado, seguindo tradição mundial e demonstra estar em seus estertores finais. Já não se consegue imaginar o Direito bipartido nos moldes tradicionais. O Direito tem sua gênese a partir de regras e princípios que, em última análise, buscam a realização dos anseios da sociedade, ou seja, é um fenômeno histórico em permanente evolução. Sob a égide do Estado Liberal ou do Estado Social, aceitava-se a permanência da summa divisio clássica, estabelecendo duas esferas, a do Direito público e a do Direito privado. Com o Estado Democrático de Direito, ela não encontra mais condições de permanecer no ordenamento. De acordo com Maria Celina B. de Moraes, [...] a separação do direito em público e privado, nos termos em que era posta pela doutrina tradicional, há de ser abandonada. A partição, que sobrevive desde os romanos, não mais traduz a realidade econômico-social, nem corresponde à lógica do sistema, tendo chegado o momento de empreender a sua reavaliação. (MORAIS, 1993, p. 25). No Brasil, inequivocamente, a Constituição Federal de 1988 rompeu com a summa divisio clássica ao dispor, no Capítulo I, Título II, sobre Os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Os fundamentos constitucionais que sustentam a tese são do Professor Gregório Assagra de Almeida (2008, p. 380). Ei-los, apresentados de forma sucinta: 1. Há expressamente a previsão de ação popular e esta deve ser vista sob o prisma de garantia constitucional fundamental, sendo inserida no rol dos direitos coletivos fundamentais. Nas palavras de Paulo de Tarso Brandão, [...] a ação popular é instrumento processual de cunho constitucional, sendo, ao mesmo tempo, garantia constitucional do cidadão. Salvo, portanto, alguns aspectos de procedimento – não de processo -, não guarda qualquer identidade com o Processo Civil. Instrumento de defesa das liberdades públicas, eis a comprovação do que foi dito anteriormente, ou seja, que se trata de instrumento vocacionado à tutela de ‘novo’ direito. Instrumento de patamar constitucional, eis a sua diferença para o Processo Civil. Processo Constitucional, portanto. Seu exercício, de outro prisma, constitui um direito fundamental. (BRANDÃO, 2008, p. 376). 2. Funções institucionais do Ministério Público: promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Heli de Souza Maia • 97 3. Em um Estado Democrático de Direito, não se separam os direitos do próprio Estado de um lado e os direitos individuais e coletivos do outro. O dualismo próprio do Estado Liberal não se coaduna com o atual modelo de Estado. A dicotomia Estado e sociedade restou superada, relegando ao abandono, por sua vez, a divisão tradicional entre Direito público e Direito privado. Indubitavelmente este fundamento é basilar, próprio do modelo de Estado edificado pela Constituição da República e adequado ao momento atual. 4. É imprescindível a aferição do Direito no plano da titularidade e da forma de sua proteção e efetivação material, não se atendo à análise da natureza da norma jurídica ou da relação jurídica ou da sua utilidade. 5. Considerações gerais Procurou-se demonstrar, nas páginas anteriores, que a divisão entre Direito público e Direito privado remonta, no mínimo, à civilização romana antiga, pois, para os jurisconsultos romanos, o Direito público versava sobre o modo de ser do Estado romano, enquanto o Direito privado versava sobre os interesses dos particulares. O mundo medieval, com sua organização feudal marcada pela descentralização política e uma forma peculiar de organização social, viu ficar adormecida a tradicional summa divisio, pois os senhores feudais tomaram para si o que poderia ser o Direito público, confundindo-o com o Direito privado. As lentas modificações operadas no feudalismo, a partir do século XII, erigiram a sociedade chamada de moderna, que cronologicamente vai de 1453 a 1789. Denominada de Antigo Regime, estava alicerçada no Absolutismo e no Mercantilismo23. O monarca centralizava e controlava todos os poderes e, com isso, possibilitou a criação de uma esfera autônoma do poder público. Na aurora do liberalismo anunciada pelas revoluções burguesas, o poder público passou a ser visto como inimigo e as declarações de direito e cartas constitucionais delas derivadas registraram e consagraram os ideais liberais, os direitos de primeira geração e os limites da ação do Estado, ampliando e resguardando a autonomia dos indivíduos e os princípios da legalidade e da segurança jurídica. Ganham contornos importantes os movimentos em prol da codificação que influenciam sobremaneira o Direito privado. A divisão entre Direito público e Direito privado tornou-se consistente e consolidouse, mesmo sob a égide do Estado Democrático de Direito, que sucedeu ao Estado Liberal e ao Estado Social. A influência do mercantilismo foi tão intensa que se fez sentir nos séculos posteriores, como se depreende do fragmento: “O mercantilismo, segundo grande ciclo ideológico, a partir de 1450, consagraria a nova ideologia. O comércio sem fronteiras criou os princípios que iriam formatar a nova ideologia dominante. Os três séculos que se seguiram, ainda que pagando os tributos de transição ao romperem com o aparato ideológico medieval, permitiram a renovação dos costumes, das artes e da ciência.Caíam as barreiras da intolerância, ou pelo menos se abrandavam, favorecendo a eclosão de novos ideários, formulações filosóficas, métodos científicos ainda que sob forte condicionamento religioso.O comércio se internacionalizou em escala mundial, diferenciando dois grandes empreendimentos: o estatuto da conquista, e com ele o estabelecimento do sistema colonial, e uma nova estrutura para as relações comerciais. O mercantilismo estabeleceu a era do comércio, do enriquecimento de nações e pessoas pela exploração colonial e pelas trocas comerciais.” (VIEIRA; VIEIRA, 2004, p. 44-45). 23 98 • Doutrina Nacional Entretanto, os dias atuais não comportam a divisão clássica, sendo oportuno acatar a tese defendida pelo Professor Gregório Assagra de Almeida, no sentido de aceitar a existência da nova summa divisio constitucionalizada: Direito coletivo e Direito individual. O Texto Constitucional, como restou demonstrado alhures, expressamente a recepcionou, abandonando de vez a dicotomia tradicional entre Direito público e Direito privado. Inegavelmente a nova divisão é coerente com o Estado Democrático de Direito, pois o dualismo Estado e sociedade está ultrapassado. A obra norteadora e inspiradora deste trabalho – Direito material coletivo: superação da summa divisio Direito público e Direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada – propicia o entendimento e a confirmação de que no constitucionalismo democrático pós-positivista, os direitos e garantias constitucionais fundamentais contêm valores que devem irradiar todo o sistema jurídico, de tal forma que possibilite a vinculação e orientação da atuação do legislador, seja constitucional ou infraconstitucional, do administrador, de magistrados e de particulares. Por fim, “A nova summa divisio leva em conta não só o plano da titularidade dos direitos, mas também e especialmente o plano da proteção e da efetivação, que constitui o cenário capaz de fazer do Direito instrumento de transformação com justiça da realidade social.” (ALMEIDA, 2008, p. 418). 6. Referências bibliográficas ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do Direito Processual Coletivo Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. AMARAL, Francisco. O Direito Civil na pós-modernidade. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em: <www.direitodoestado.com.br/readae.asp>. Acesso em: 18 fev. 2009. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Heli de Souza Maia • 99 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ação Popular na Constituição de 1988: uma ação típica do Estado Contemporâneo, limitado pela incompreensão. In: CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk; GARCIA, Marcos Leite. (Org.). Reflexões sobre política e direito. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. COELHO, Luiz Fernando. Aulas de introdução ao direito. Barueri, SP: Manole, 2004. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1998. DIDEROT. Denis. Autoridade Política. In: FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de história. Lisboa: Plátano, 1997. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências do Direito Civil no Século XXI. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; FIÚZA, César; SÀ, Maria de Fátima Freire de. Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 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SOUZA, Celso Jerônimo de. O Ministério Público e o Terceiro Setor. Disponível em: <http://www.ac.gov.br/mp/4/files/tese>. Acesso em: 12 dez. 2008. 100 • Doutrina Nacional VIEIRA, Eurípedes; VIEIRA, Marcelo Milano Falcão. A dialética da pós-modernidade a sociedade em transformação. Rio de Janeiro: FGV, 2004. VIEIRA, Litsz. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 1997. WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt e Karl Marx: o mundo do trabalho. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2000. ZAINAGHI, Diana Helena de Cássia Guedes Mármora. O princípio da subsidiariedade. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 8, n.33, p.125-149, out/dez, 2000. Heli de Souza Maia • 101 Doutrina Nacional CONCURSO DE PESSOAS NO INFANTICÍDIO: POR UMA MELHOR COMPREENSÃO A PARTIR DO CONCEITO FINALISTA DE AÇÃO DE HANS WELZEL JORGE PATRÍCIO DE MEDEIROS ALMEIDA FILHO Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. RESUMO: É notória e declarada a lacuna doutrinária atual em face do estranhamento teórico/dogmático no concurso de pessoas, decorrente mais especificamente da aplicação/compreensão meramente textual do artigo 30 do Código Penal brasileiro. O adormecimento da doutrina penal, no que tange uma melhor compreensão da comunicabilidade de circunstâncias pessoais elementares do tipo, foi avaliado dentro de uma digressão sobre o delito de infanticídio e sobre o conceito finalista de ação, fornecendo tanto uma resposta ao concurso de pessoas no delito de infanticídio quanto, ao fundo, uma nova compreensão do artigo 30 do Código Penal (CP). PALAVRAS-CHAVE: Infanticídio; concurso de agente; comunicabilidade de circunstâncias pessoais; conceito finalítico de ação. ABSTRACT: The current doctrinary gap concerning the theoretical/dogmatic approaches in concerted action is notorious. It is due to the merely textual enforcement/ understanding of the article 30 of the Brazilian Penal Code. This gap of the criminal doctrine regarding a better understanding of the community of elementary personal circumstances of the type of offense was evaluated in a digression about infanticide and about the final concept of action, thus providing an answer to both concerted action in infanticide and to the new understanding of the article 30 of the Penal Code. KEY WORDS: Infanticide; concerted action; community of personal circumstances; final concept of action. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O infanticídio por uma perspectiva dogmática. 3. Homicídio e infanticídio: uma questão de tipicidade. 4. Autoria, co-autoria e participação. 5. Concurso de pessoas e infanticídio. 6. O artigo 30 do Código Penal brasileiro e o 102 • Doutrina Nacional infanticídio: a proposta de Cezar Roberto Bitencort como incompreensão do próprio conceito de concurso de pessoas. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas. 1. Introdução A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter” (DWORKIN, 2000, p. 492). O texto a seguir desenvolve-se por meio de um discurso digressivo básico para que possa chegar tranquilamente ao entendimento de acadêmicos avançados, profissionais do Judiciário e também de alunos que iniciam o estudo do Direito Penal. Escrevo para estudantes, o que não diz respeito a um vínculo institucional, mas, muito antes, a uma postura de abrir-se ao entendimento. A estética do escrito fornecerá, contudo, opinião inovadora no quadro doutrinário pátrio, servindo de provocação a futuros estudos em um nível mais avançado. Dedico estes escritos aos meus bons alunos da Fundação Novos Horizontes, porque demonstram ser boas pessoas e, assim, potencialmente bons profissionais do Direito, defensores responsáveis de um projeto inacabado de liberdade, igualdade e fraternidade, ainda que tardia, que ruma à mira da igual consideração e respeito por todos no marco de um Estado Democrático de Direito. 1. O infanticídio por uma perspectiva dogmática Dentro da disposição positiva penal brasileira, o infanticídio é tipificado como “Matar, sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. (BRASIL, 2007, p.53). Dentre os elementos que integram o referido tipo penal, um assume posição de destaque e centralidade dentro da sistemática da dogmática do Direito Penal: o estado puerperal. Assim o é pelo fato de que o legislador de 1940 elegeu o referido estado como distintivo entre infanticídio e homicídio, que se nota expresso na exposição dos motivos do código de 1940: O infanticídio é considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influência de estado puerperal. Esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 103 averiguado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra a honóris causa (considerada pela lei vigente como razão de especial abrandamento da pena), a pena aplicável é a de homicídio. (BRASIL, 2007, p.17) Como visto, o que distingue o infanticídio do homicídio é basicamente, mas não simplesmente, o estado puerperal. Sem ainda adentrar muito nas variações, lingüísticas apenas, do estado puerperal, vale ressaltar que, como elementar do delito de infanticídio este estado que afeta a parturiente, em regra, pode ser visto segundo dois critérios: psicológico ou fisiopsíquico. O primeiro, historicamente ligado às gestações ilegítimas recebe também o nome auto-explicativo de causa honoris, ou seja, causa de honra. Assim, encontrava-se em estado puerperal, segundo este critério psicológico, a parturiente que se motivava pelo ímpeto de resguardar o pudor ante a inevitável reprovação social que seria a ela endereçada por causa do nascituro. Tendo como resultado de tal circunstância angústia e extremo conflito íntimo sobre ética, moral e honra, a parturiente que, em ato descompensado, desse cabo à vida do próprio filho, estaria sob o diagnóstico de estado puerperal (PRADO, 2002a, p. 79). A seguir, temos a definição de Beccaria como precedente contextualizado no séc. XVII: O infanticídio é, ainda, o efeito quase inevitável da terrível alternativa em que se encontra uma desgraçada, que apenas cedeu por fraqueza, ou que sucumbiu aos esforços da violência. De um lado a infâmia, de outro a morte de um ente incapaz de avaliar a perda da existência: como não haveria de preferir essa última alternativa, que a subtrai à vergonha, à miséria, juntamente com o infeliz filhinho. (BECCARIA, 2002, p. 92). O segundo critério, fisiopsíquico, abandona a causa honoris e firma-se na instabilidade fisiopsíquica da parturiente. Ou seja, as questões referentes à ilegitimidade da gestação não mais são determinantes, ou nem sequer relevantes, na tipificação do infanticídio como delictum exceptum1. Analisando a referida instabilidade (puerpério), agora fisiopsíquica, Roberson Guimarães chega à seguinte conclusão: Delictum exceptum: trata-se de delito autônomo; delito privilegiado (em relação ao delito de homicídio). 1 104 • Doutrina Nacional A Associação Americana de Psiquiatria, em seu manual DSMIV (13), estabelece os critérios diagnósticos para uma entidade nosológica denominada Transtorno de Estresse Agudo (TEA). A característica essencial do TEA é o desenvolvimento de uma ansiedade característica, sintomas dissociativos e outros, que ocorrem dentro de até um mês após a exposição a um agente estressor externo. Enquanto vivencia o evento traumático ou logo após, o indivíduo tem pelo menos três dos seguintes sintomas dissociativos: um sentimento subjetivo de anestesia; distanciamento ou ausência de resposta emocional; redução da consciência sobre aquilo que o cerca; desrealização; despersonalização ou amnésia dissociativa. A perturbação dura pelo menos dois dias e não persiste além de quatro semanas após o evento traumático. (GUIMARÃES, 2008, p. 2). Uma questão merece toda atenção: não configurado o referido estado puerperal, não haverá que se falar em infanticídio e sim homicídio, como se nota da exposição de motivos do Código Penal de 1940: “Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra a honóris causa (considerada pela lei vigente como razão de especial abrandamento da pena), a pena aplicável é a de homicídio”. (BRASIL, 2007, p. 17). O legislador pátrio adotou como elementar do delito de infanticídio o critério fisiopsíquico, mas não de forma absoluta e ilimitada. “Esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique averigüado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente”. Assim segue a jurisprudência do STJ: Homicídio e não infanticídio – TJSP: “Se não se verificar que a mãe tirou a vida do filho nascente ou recém-nascido sob a influência do estado puerperal, a morte praticada se enquadrará na figura típica de homicídio” (RT 491/293). Em última instância, pode-se dizer que o estado puerperal tipificará o delictum exceptum de infanticídio quando gerar um quadro de pertubação fisiopsicológico capaz de justificar um menor juízo de reprovabilidade da conduta do sujeito ativo do delito, ficando a causa honoris entendida como apenas uma possível peculiaridade do estado puerperal.2 Em decorrência da adoção do critério fisiopsicológico, a doutrina nacional vai acabar por classificar o crime de infanticídio como crime próprio por apenas poder ser praticado pela mãe contra o próprio filho. “Sujeito ativo do delito de infanticídio é a mãe, que mata o próprio filho durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal. Trata-se, portanto, de crime próprio”. (PRADO, 2002b, p. 80). 2 Seria o caso em que a parturiente, em decorrência do estado puerperal, crie aversão de cunho social à própria cria. Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 105 Quanto ao tempo do delito, cumpre ainda ressaltar que sua determinação é fundamental na configuração do delito em tela. Quando falamos, em regra, de morte, falamos de morte intra-uterina, nascente (imediatamente e imediatamente após o nascimento) ou extra-uterina. Nesse sentido vai a dogmática penal determinando que, quando se tratar de morte provocada de vida intra-uterina, estaremos diante das possibilidades do delito de aborto (artigos 124 a 128 do CP); quando se tratar de morte provocada de vida extrauterina, estaremos diante das possibilidades do delito de homicídio (artigo 121, ou até mesmo, excepcionalmente, lesão corporal seguida de morte – art.129, §3º, CP) e quando se tratar de morte provocada de vida nascente – iniciado o trabalho de parto e logo após sua realização – vamos ter 1º) se houver estado puerperal: infanticídio e 2º) se não houver estado puerperal: homicídio, ou, como já referido, lesão corporal seguida de morte, a depender da reconstrução probatória dos elementos subjetivos necessários e indispensáveis ao juízo de tipicidade. Portanto, o delito de infanticídio poderá ocorrer desde o início do trabalho de parto. Com efeito, como salienta a melhor doutrina “[...] o nascimento normal começa, medicamente, com o chamado período da dilatação (Eröffnungsperiode), continua com o período de expulsão e, finalmente, termina com período pós-parto”. (PRADO, 2002b, p. 84). Se o início do nascimento começa pelo período de dilatação, como exposto acima, o término se dará com os atos pós-parto de separação da cria e aquietação da parturiente. Assim, podemos notar que o estado puerperal poderá em tese durar mais tempo que o período de nascimento de sua cria, mas, segundo a legislação brasileira, apenas justificará o delictum exceptum o atentado contra vida nascente, ou seja, durante ou logo após o parto. Como conseqüência poderá haver a possibilidade, em tese de, mesmo sob o efeito de estado puerperal, uma mãe matar seu filho e responder por homicídio, desde que o tenha praticado tempos depois do parto realizado e as circunstâncias objetivas da situação aquietadas. Mais uma vez, recorremos às lições de Luiz Régis Prado (2002b, p. 84): É possível que o fenômeno do parto – com suas dores, com a perda de sangue e o esforço muscular que o acompanha – produza na parturiente um estado de perturbação da consciência. De conformidade com a orientação adotada pela legislação penal brasileira, é esse estado puerperal que fundamenta o infanticídio enquanto homicídio privilegiado. 106 • Doutrina Nacional Assim, concluímos que o núcleo do tipo é matar; o sujeito ativo é a parturiente em estado puerperal; o sujeito passivo é o próprio filho e o tempo do delito é aquele durante ou logo após o parto. Nesse sentido, não parece mais nebulosa a interpretação do tipo do artigo 123 do Código Penal brasileiro quando descreve a conduta de infanticídio: “Infanticídio: Art. 123. Matar, sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos” (BRASIL, 2007, p. 53). 2. Homicídio e infanticídio: uma questão de tipicidade “Art. 121. Matar alguém. Pena seis a vinte anos – Tipo simples.” Algumas condutas aparentemente são objeto de mais de um tipo penal. Um típico exemplo é a semelhança entre as condutas descritas nos artigos 121 e 123 do Código Penal brasileiro que têm como núcleo de tipo a conduta matar. Assim, formalmente, a mãe infanticida também pratica o disposto no artigo 121, ou seja, ela mata alguém. Mas tal coincidência de tipos é meramente aparente e, por isso mesmo, recebe tratamento teórico-penal sob o título de conflito aparente de leis ou, no caso específico, conflito aparente de tipos (PRADO, 2002a, p. 185). Antes da objetiva distinção entre os referidos tipos, cabem algumas considerações sobre o tipo de homicídio. Como observa Luiz Regis Prado (2002b, p. 43) “[...] o homicídio consiste na destruição da vida humana alheia por outrem”. Dispõe o Texto Constitucional que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 2007, p. 9), e assim sendo não há nem poderá haver nenhum tipo de valoração em relação a tipos de vida, o que implica uma co-significação indiferente a qualquer diferença. Assim, o mesmo desvalor que existe na morte de uma pessoa da zona sul existe na morte de uma pessoa moribunda, paciente final ou monstruosa (PRADO, 2002b, p. 44). O que delimita a capacidade de ser sujeito passivo do delito de homicídio é o fato de a vida em questão não mais estar dentro do útero, ou seja, ser pessoa nascente ou nascida. Isso porque, se tratando de vida intra-uterina, em regra teremos o delito de aborto, ao passo que, iniciadas as contrações que marcam o nascimento de uma pessoa, iniciado será também o tempo do crime de homicídio. O fim do tempo do delito de homicídio é, por conseguinte, a morte, tendo em vista que não se mata alguém que já está morto, o que ensejaria a hipótese de crime impossível não punível pelo Direito Penal. Isso porque o próprio Código disse que “[...] não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime” (BRASIL, 2007, p. 37). Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 107 Quanto aos demais elementos do tipo de homicídio, cumprem ressaltar os subjetivos. Os objetivos “matar” e “alguém” já foram, para o presente, suficientemente vistos. Matar: destruir vida alheia; alguém: qualquer pessoa nascente ou nascida. O principal elemento subjetivo do delito de homicídio é o dolo. Luiz Regis Prado (2002b, p. 46) assim observa: O tipo subjetivo é composto pelo dolo (direto ou eventual), entendido como a consciência e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo de injusto doloso (tipo de objetivo). [...] o dolo é a vontade de realização e neste caso, vontade de realização da morte de outrem, com base no conhecimento dos elementos do tipo concorrentes no momento da prática da ação e na previsão da realização dos demais elementos do tipo, entre eles a relação de causalidade entre ação e resultado. O dolo, enquanto elemento subjetivo do tipo de homicídio, representa o desejo final de realização, e aqui a redundância é necessária, do tipo desejado, ou seja, homicídio e não lesão, dano, infanticídio ou qualquer outro tipo penal. Voltando ao início deste capítulo, existem condutas que podem se adequar a mais de um tipo, o que enseja o conflito aparente de normas. Assim sendo, quando é que matar alguém será homicídio e quando é que matar alguém será infanticídio? Antes, algumas considerações sobre o conflito aparente de leis, ou no caso, de tipos penais. O concurso de leis ou tipo se dá quando mais de uma norma tem incidência sobre uma conduta, contudo, não se trata verdadeiramente de um conflito de normas, tendo em vista que apenas uma delas será aplicável, o que quer dizer que o concurso ou conflito é meramente aparente, porque na realidade apenas uma norma será aplicada ao caso concreto posto em tela. Existem alguns critérios para a resolução do problema. São eles: “[...] especialidade, subsidiariedade e consunção” (PRADO, 2002a, p. 187). O presente trabalho utilizarse-á apenas do primeiro critério. O referido doutrinador explana sobre o primeiro dos critérios no sentido de que haverá uma derrogação no caso concreto da regra geral pela especial, isso graças às “especializantes” (PRADO, 2002a, p. 188), que descrevem de forma mais detalhada a conduta concreta que se pretende tipificar. Todo elemento agregado à normatividade básica ensejará uma especialidade na tipificação, isso se dá, por exemplo, nos delitos qualificados ou privilegiados ou mesmo entre tipos distintos como homicídio e infanticídio (PRADO, 2002a, p. 188). 108 • Doutrina Nacional Acima foi feita a seguinte indagação: “Assim sendo, quando é que matar alguém será homicídio e quando é que matar alguém será infanticídio?” Muito embora tanto o homicídio quanto o infanticídio tenham como núcleo matar (matar alguém), resta a averiguação das já referidas “especializantes”. Aí estará a diferença na prática de cada um destes delitos. Pode-se então concluir que, no caso em tela, matar alguém será sempre homicídio, salvo quando forem constatadas as seguintes especializantes: sujeito ativo mãe, influência de estado puerperal, durante ou logo após o parto. Se estas especificantes forem detectadas na conduta do sujeito que mata alguém, estar-se-á, portanto, diante da incidência do tipo do artigo 123 e não 121 do Código Penal brasileiro. Do mesmo modo, a falta de qualquer uma das especificantes acarretaria falta de tipicidade em relação ao tipo do artigo 123 e provavelmente a tipificação do artigo 121, no caso, tipo geral da prática de matar alguém. Nesse sentido, cola-se discussão, de caso concreto, exemplificativa de tentativa de desqualificação (troca de tipificação da conduta praticada) do crime de homicídio para infanticídio. O próprio Relator esclarece em seu minucioso voto: que Ângela Maria de Miranda, grávida, e prestes a dar a luz, no dia 05 de junho de 2.003, na comunidade denominada Vieiras, Município de Candeias, encontrava-se trabalhando na colheita de café, naquela localidade, atividade que exercia junto com a sua mãe, quando começou a sentir cólicas, dizendo ser cólicas nos rins, sendo levada para casa e permanecendo lá sozinha até às 16:00 horas, quando a sua mãe chegou. Neste momento, a denunciada disse à mãe que iria à casinha do quintal alimentar os coelhos, local em que deu a luz a uma criança do sexo masculino. Em seguida, cortou o cordão umbilical da criança, com uma faca colocando-a em uma pequena caixa ali existente, e arremessando o corpo da criança em um talude de mais ou menos cinco (05) metros de altura, que serve como depósito de lixo. Mais adiante, define o culto Relator: Lado outro, a tese da desclassificação para o delito do artigo 123, do Código Penal, não se apresenta de modo convincente nos autos, isto porque a conduta da agente embora tenha ocorrido logo após o parto, não há prova de que tenha agido sob perturbação psíquica, cujos sintomas se manifestassem a ponto de diminuir a capacidade de entendimento ou de auto- inibição da parturiente, circunstância também exigida no tipo de infanticídio. Assim o eminente Relator não reconhece o infanticídio tãosomente porque, apesar de reconhecer ter o fato ocorrido logo após o parto, ou seja, durante o estado puerperal, não visualiza Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 109 prova de ter a recorrente agido sob perturbação psíquica, cujos sintomas se manifestam a ponto de diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente.3 Não é objeto desta reprodução analisar a questão de prova, e sim constatar, também pela jurisprudência, que, não sendo verificados os elementos especializantes do delito de infanticídio tipificado, estará o delito de homicídio, tendo em vista que são exatamente estes elementos especializantes objetivos e subjetivos que determinam e resolvem o aparente conflito de normas penais incriminadoras. 3. Autoria, co-autoria e participação “Dono do fato é quem o executa em forma finalista, sobre a base de sua decisão de vontade” (Hans Welzel). No que tange à autoria do delito, o Código Penal brasileiro de 1940, quando tratou do concurso de pessoas4, adotou a teoria unitária nos termos da qual “[...] autor é todo aquele que contribui de modo causal para a realização do fato punível” (PRADO, 2002A, p. 1395). Ou seja, todo aquele de atua na relação causal é autor. Contudo, este critério não parece perceber que pode haver graduações na realização de um delito que é praticado por mais de uma pessoa. Não necessariamente todos que atuam em um delito têm o mesmo grau de culpabilidade e não merecem o mesmo grau de reprovação pela conduta realizada. Por isso mesmo o legislador ateve-se às críticas doutrinárias e, mesmo optando pela teoria unitária, fez um tempero graduando a responsabilidade penal pelo delito segundo a medida de culpabilidade. Assim, muito embora haja um único delito em tela, a valoração negativa recairá de forma individualizada, seguindo os preceitos constitucionais de individualização da pena e também de proporcionalidade penal lato sensu. 3 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA ESTADO DE MINAS GERAIS. Número do processo: 1.0120.03.9000217/002(1). Relator: Paulo Cézar Dias. Data do Julgamento: 17/05/2005. Data da Publicação: 02/08/2005. 4 TÍTULO IV DO CONCURSO DE PESSOAS Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. § 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave. Circunstâncias incomunicáveis Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. Casos de impunibilidade. Art. 31 - O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado. Brasil. Código e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38 - 39. 110 • Doutrina Nacional Vale transcrever o discurso do legislador penal de 1940, quando diz: Ao reformular o título IV, adotou-se a denominação ‘Do concurso de Pessoas’ decerto mais abrangente, já que a coautoria não esgota as hipóteses do concursus delinquentium. O Código de 1940 rompeu a tradição originária do Código Criminal do Império, e adotou neste particular a teoria unitária ou monística do Código penal italiano, como corolário da teoria da equivalência das causas [...]. Sem completo retorno á experiência passada, curva-se, contudo, o projeto aos críticos dessa teoria, ao optar, na parte final do artigo 29, e em seus dois parágrafos, por regras precisas que distinguem a autoria da participação. Distinção, aliás, reclamada com eloqüência pela doutrina, em face de decisões reconhecidamente injustas. (BRASIL, 2007, p. 7). Cabe conceituar agora, precisamente, a figura do autor. Seguindo a doutrina de Luiz Régis Prado, “Tem-se como autor aquele que domina finalmente a realização do tipo de injusto. Co-autor aquele que, de acordo com um plano delitivo, presta contribuição independente, essencial à prática do delito - não obrigatoriamente em sua execução. Na co-autoria, o domínio do fato é comum a várias pessoas. Assim, todo co-autor (que é também autor) deve possuir o codomínio do fato – princípio da divisão do trabalho”. (PRADO, 2002a, p. 397). Determinada a autoria5 e a co-autoria (enquanto autoria comum a mais de uma pessoa), a participação pode ser então concebida como uma contribuição na prática do delito sem que o participante tenha domínio final sobre a realização do delito. “Entende-se por participação stricto sensu colaboração dolosa em um fato alheio. É a contribuição dolosa – sem domínio do fato – em fato punível doloso de outrem” (PRADO, 2002a, p. 399). No que tange ao concurso de pessoas, tem-se identificado, em regra, os seguintes requisitos entre os concorrentes: a) pluralidade de pessoas e de condutas; b) relevância causal de cada conduta; c) liame subjetivo ou psicológico; d) identidade do ilícito penal. Maior relevância merece, neste exato momento, o conceito de conduta, já que o concurso pressupõe uma pluralidade de condutas praticadas por uma pluralidade de pessoas; neste momento será, por opção teórica, tomada como base a concepção finalista de ação. Hans Welzel parte do pressuposto de que toda a vida social é estruturada pelo Aqui vale lembrar as lições de Hans Welzel: “A característica geral de autor: o domínio finalista do fato. Dono do fato é quem o executa em forma finalista, sobre a base de sua decisão de vontade”. (WELZEL, 2003, p.158). 5 Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 111 comportamento dos integrantes de uma dada comunidade (WELZEL, 2003, p. 76). Esses entes poderiam então estipular fins e direcionar seu comportamento rumo ao sucesso de sua ação finalisticamente orientada. O ato de colocar em movimento uma relação causal segundo uma finalidade (WELZEL, 2003, p. 76) não apenas é o que promove a funcionabilidade social como também é o primeiro elemento de uma ação penalmente reprimida (WELZEL, 2003, p. 76). Da mesma forma que as ações finalísticas movem positivamente as relações sociais elas – ações finalísticas – lesam os valores ou os bens da comunidade. Mas o homem não é apenas um ser que se dirige finalisticamente segundo sua possibilidade de imaginar o futuro e desejá-lo. O homem também é, em segundo sentido, um ser moral, ou seja, “[...] um ente moralmente responsável por suas ações” (WELZEL, 2003, p. 77). Assim dirá Welzel: “O homem é pessoa no duplo sentido quando é um ser que atua com finalidade, e quando é moralmente responsável por suas ações” (WELZEL, 2003, p. 77). O resultado naturalístico de um dado comportamento é cego se não se presta à investigação do elemento final. Assim, quando “A” mata “B”, não podemos, pelo simples fato de aquele ter causado a morte deste, atribuir a “A” o delito de homicídio. Isso porque uma ação penalmente relevante não é apenas uma ação causal e sim uma exteriorização de finalidades e meios eleitos pelo homem para obtenção de um resultado causado pelo seu agir exterior. Vale muito ler as lições de Welzel: A ação humana é o exercício da atividade finalista. A ação é, portanto, um acontecer ‘finalista’ e não somente ‘causal’. ‘A finalidade’ ou atividade finalística da ação se baseia em que o homem, sobre a base de seu conhecimento causal, pode prever em determinada escala as conseqüências possíveis de uma atividade com vistas ao futuro, propor-se a objetivos de índole diversa e dirigir sua atividade segundo um plano tendente à obtenção desses objetivos. Sobre a base de seu conhecimento causal prévio está em condições de administrar os distintos atos de sua atividade, de tal forma que dirige o acontecer causal exterior até o objetivo, portanto, uma sobredeterminação de modo finalista. A finalidade é um atuar dirigido conscientemente desde o objetivo, mas que é a resultante dos componentes causais circunstancialmente concorrentes. Por isso, graficamente falando, a finalidade é ‘vidente’; a causalidade é ‘cega’. (WELZEL, 2003, p. 79). Dessa concepção finalista de Welzel, advêm algumas conseqüências fundamentais (PRADO, 2002a, p. 252): 112 • Doutrina Nacional a) A inclusão do dolo (sem a consciência da ilicitude) e da culpa nos tipos de injusto (dolos/culposo). Ou seja, dolo e culpa são elementos subjetivos do tipo penal. b) O conceito pessoal de injusto. O juízo de reprovação da conduta é tomado na perspectiva da intenção do sujeito ativo do delito e em um segundo momento na valoração do resultado alcançado. c) A culpabilidade em sentido meramente normativo. Ou seja, restrita à exigibilidade de conduta adversa e potencial conhecimento da ilicitude do fato. Interessa neste momento tratar o dolo e a culpa como elementos do tipo penal. Se alguém tem a intenção de matar outrem (finalidade), seja lá qual for o resultado alcançado estaremos a falar do delito de homicídio, porque o dolo de matar do agente é elementar do tipo de homicídio e não de outro delito. Assim, nessa mesma hipótese, se este sujeito ativo apenas causa um corte na região do tórax da vítima, por exemplo, não há que se falar em lesão corporal, porque faltaria à configuração desta o elemento subjetivo do tipo, dolo de ofender a integridade física de outrem. Outro exemplo se dará com o sujeito que, com o dolo de lesar, acaba por causar a morte de outrem. Neste caso não responderá por homicídio, tendo em vista que este não tinha o dolo de matar e sim o dolo específico de lesar a integridade física de outrem, fato este que determina qual tipo de delito lhe será imputado. No caso, pela especificidade do dolo pertencente ao tipo de lesão corporal, o sujeito ativo responderia por lesão corporal seguida de morte. Com estes exemplos, pretende-se mostrar que o dolo enquanto elemento do tipo penal determina, em regra, qual será a tipificação da conduta em análise. Volta-se então aos requisitos do concurso de pessoas: a) Pluralidade de pessoas e de condutas (logicamente só há concurso se há mais de uma pessoa, tanto em coautoria ou participação); b) Relevância causal de cada conduta (toda conduta deve influir ou contribuir na relação causal ou para o seu sucesso); c) Liame subjetivo ou psicológico (consciência da pluralidade de sujeitos que concorrem para uma mesma execução de delito); d) Identidade do ilícito penal (todos os participantes do delito têm que seguir o mesmo iter criminis, ou seja, têm de caminhar para o mesmo delito, seguindo seus elementos objetivos e subjetivos). (PRADO, 2002a, p. 394). 4. Concurso de agentes e infanticídio Como já fora visto na exposição dogmática do tipo de infanticídio, o sujeito ativo do delito referido é a mãe parturiente em estado puerperal, e este especializante funciona como divisor de águas entre o infanticídio e o homicídio; questão que poderá ficar um pouco complicada ao se tratar de concurso de pessoas. Mas isso será visto um pouco mais à frente. Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 113 Este capítulo tem o intuito de indagar sobre as possíveis formas de concurso de pessoas na prática do delito de infanticídio. Serão examinadas três hipóteses:6 a) a mãe e o terceiro realizam dolosamente o núcleo do tipo – matar; b) a mãe mata o nascente ou recém-nascido e é ajudada pelo terceiro – partícipe; c) o terceiro mata a criança, com a participação da mãe. Questão “a” – primeiro caso Numa pacata cidade do interior de Minas Gerais, Brenda e seu namorado Peter, insatisfeitos com a gravidez daquela, planejam dar cabo à vida do nascente logo após o parto. O casal da pequena cidade do interior de Minas Gerais pretendia com isso poder continuar a vida sem o peso que a responsabilidade de criação de uma criança acarretaria. Questão “a” – segundo caso Numa pacata cidade do interior de Minas Gerais, Peter, indignado com o nascimento de seu filho, desabafa com um amigo que irá matar a referida cria assim que esta nascer. Peter não só confessa suas intenções como a reafirma várias vezes dizendo estar determinado a colocar sua finalidade em prática. Ao chegar em casa de noite, percebe que sua esposa acabara de dar à luz e também que esta se encontra insana e descompensada afogando o recém-nascido na banheira. De imediato Peter aproveita-se da situação e empreende na realização de seu plano apertando o pescoço do próprio filho que vem rapidamente a falecer. Como pode ser observado, em ambos os exemplos é praticada a hipótese “a”: a mãe e o terceiro realizam dolosamente o núcleo do tipo – matar. Contudo, há de se observar que o primeiro e o segundo casos são distintos no que se refere aos elementos subjetivos da conduta punível. No primeiro caso, a conduta objetiva realizada foi “matar alguém”. Não havia os elementos especializantes capazes de tipificar o delito de infanticídio, ou seja, em momento nenhum foi cogitada ou provada a ocorrência do estado puerperal, o que indica a tipificação do delito de homicídio. Não bastasse a tipificação do delito de homicídio, ambos agentes – Brenda e Peter – atuaram diretamente na causa do resultado morte. Para as conclusões, vale lembrar o conceito de autor que fora adotado neste trabalho: Tem-se como autor aquele que domina finalmente a realização do tipo de injusto. Coautor aquele que, de acordo com um plano delitivo, presta contribuição independente, 6 Estas mesmas hipóteses foram levantadas por Luiz Regis Prado (2002b, p. 81). 114 • Doutrina Nacional essencial à prática do delito - não obrigatoriamente em sua execução. Na co-autoria, o domínio do fato é comum a várias pessoas. Assim, todo co-autor (que é também autor) deve possuir o co-domínio do fato – princípio da divisão do trabalho. (PRADO, 2002a, p. 394). Dessa maneira, na questão “a” – primeiro caso –, como ambos os sujeitos foram autores do delito, há co-autoria no delito de homicídio. A conduta praticada é matar alguém, os sujeitos ativos são Brenda e Peter e, por fim, o sujeito passivo é o filho do casal. No segundo caso, parece claro que Brenda estava sob a influência do estado puerperal7, enquanto Peter aproveitou-se da situação para realizar o plano pessoal8 de não ter filhos. Nesse difícil caso, há um resultado objetivo comum, mas existem especializantes e elementos objetivos diversos. Levando em conta que dolo e culpa são elementos do tipo penal, resta perguntar: Quem mata dolosamente, com a finalidade de manter a vida sem muitas responsabilidades, realiza qual delito? Quem mata sob a influência de estado puerperal realiza qual delito? A primeira pergunta tem a lógica resposta homicídio e a segunda pergunta a lógica resposta infanticídio, repisando conclusão alcançada em capítulo anterior deste mesmo trabalho: Pode-se então concluir que, no caso em tela, matar alguém será sempre homicídio, salvo quando forem constatadas as seguintes especializantes: sujeito ativo mãe, influência de estado puerperal, durante ou logo após o parto. Se estas especificantes forem detectadas na conduta do sujeito que mata alguém estar-se-á, portanto, diante da incidência do tipo do artigo 123 e não 121 do Código Penal brasileiro. Do mesmo modo a falta de qualquer uma das especificantes acarretaria falta de tipicidade em relação ao tipo do artigo 123 e provavelmente a tipificação do artigo 121, no caso tipo geral da prática de matar alguém. Neste sentido, não parece haver dificuldade em concluir que na Questão “a” – segundo caso, Brenda pratica infanticídio e Peter pratica homicídio. Contudo, neste ponto incide a questão mais problemática do tema: a comunicabilidade das circunstâncias pessoais elementares do tipo. Assim diz o Código Penal brasileiro: “[...] Brenda, durante e logo após o próprio parto, em decorrência da perda de sangue, da força realizada e do abalo psicológico que a totalidade da circunstância lhe causara [...]”. 8 “[...] realizando a pretensão de continuar sem filhos, acaba por junto com aquela colocar o recémnascido em um saco plástico e joga-lo em um riacho [...]”. 7 Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 115 “Circunstâncias incomunicáveis Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.” Tal dispositivo penal levaria a uma resposta diversa da previamente indicada. O estado puerperal indiscutivelmente é elementar do tipo de infanticídio,9 já que integra a estrutura objetiva do tipo. Assim sendo, haveria comunicação entre as condutas dos co-autores da questão “a” – segundo caso. Neste caso, os terceiros que praticassem infanticídio ou dele participassem indiretamente responderiam por este tipo de delito se comprovada a condição necessária em relação à mãe. Se ela responder por infanticídio, os demais responderão por co-autoria ou participação em infanticídio. Caso não fique comprovada a instabilidade puerperal em relação à mãe e esta responder por homicídio, os demais responderão por co-autoria ou participação em homicídio. Esta é a resposta dada á questão pela legislação penal, especificamente nos artigos 29, 30 e 31 do Código Penal brasileiro. É forçoso reconhecer, tomando em conta os dispositivos penais acima referidos, e junto com Luiz Régis Prado (2002a, p. 81) que, “[...] em face da legislação penal pátria, responde pelo delito de infanticídio - e não pelo delito de homicídio – o terceiro que executa o crime atendendo a pedido da mãe ou a ajuda a matar o próprio filho”. Neste prisma, no caso, questão “a” - segundo caso, a doutrina tem-se limitado à literalidade do disposto no artigo 30 do Código Penal. Assim, a doutrina tomada como referência daria à questão “a” – segundo caso, resposta diversa da que será aqui prescrita. Cada sujeito é indivíduo e, por isso, pratica delitos separados, salvo quando há liame psicológico objetivo e subjetivo. Ou seja, têm os agentes em concurso de cumprirem os elementos objetivos e subjetivos do delito em tela (matar, filho próprio, estado puerperal, durante ou logo após o parto, dolo de praticar infanticídio10). Além disso, deverá haver os requisitos do concurso de pessoas (requisitos entre os concorrentes: a) pluralidade de pessoas e de condutas; b) relevância causal de cada conduta; c) liame subjetivo ou psicológico; d) identidade do ilícito penal). Ora, só pode haver liame subjetivo (uma perfeita ligação psicológica) entre os agentes e, sobretudo, uma identidade do delito praticado, se houver identidade material nos “Matar, sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. Poderia ser alegado que não existe dolo de praticar infanticídio e sim de matar. Contudo, no infanticídio, o dolo, que é de matar, é formatado pela incidência do estado puerperal. Essa formatação faz toda a diferença, tanto que justificou uma tipificação própria. 9 10 116 • Doutrina Nacional elementos objetivos e subjetivos da conduta praticada. Só o cumprimento dessas duas questões configurará a unidade de delito. Assim, quando duas pessoas subtraem para si ou para outrem coisa alheia móvel com o dolo específico do delito, poderá se falar que houve uma sincronia psicológica e conseqüentemente, por aderirem (a)os mesmos elementos objetivos e subjetivos, uma identidade no delito praticado.11 Na questão “a” – segundo caso, não há que se falar em identidade de delito, porque não há identidade dos elementos objetivos e subjetivos do delito, portanto, também não há um perfeito liame psicológico direcionado ao mesmo tipo penal. Brenda queria praticar infanticídio (dolo viciado pelo estado puerperal), Peter queria realizar homicídio (plano particular, preexistente, autônomo de não ter filho e apenas se aproveitou da situação). Não se visualiza, nesse caso, uma co-autoria perfeita, e sim uma espécie de autoria colateral imprópria.12 Atente-se para o fato de que caso diferente seria se o segundo autor, digamos, comprasse a idéia do primeiro autor e atuasse movido pelos interesses subjetivos do primeiro autor, ou seja, tomasse como próprio o estado do co-autor. Seria o caso de Brenda pedir apoio a Peter que, ao participar da execução delitiva, assim o fizesse com o interesse exclusivo de consumar a pretensão de Brenda e não a pretensão própria (o que configuraria elemento subjetivo de delito distinto). Depois de tanto falar sobre as hipóteses em que a mãe e o terceiro executam o delito, cabe averiguar a segunda questão levantada: “A mãe mata o nascente ou recém-nascido e é ajudada pelo terceiro – partícipe”. Questão “b” – primeiro caso: Brenda, sob a influência de estado puerperal, mata o próprio filho. Para a garantia de tal ato precisou que Peter, seu namorado, após a prática, jogasse o produto do crime em um riacho que passava naquelas imediações. Questão “b” – segundo caso: Brenda, movida por vaidades fúteis e questões de honra, mata o próprio filho. Para a garantia de tal ato, precisou que Peter, seu namorado, após a prática, jogasse o produto do crime em um riacho que passava naquelas imediações. Na questão “b”, primeiro caso, as considerações são um pouco diferentes. O sujeito contribui para a prática delitiva de um autor principal e sua conduta, mesmo que O artigo 29, §2º, do Código Penal, comporta lógica idêntica. Diz-se que na autoria colateral haveria contribuição para a prática de mesmo delito, contudo, sem haver liame psicológico. Tratar-se-ia de falta de atuação conjunta; não há nessa hipótese atuação conjunta consciente. Não é exatamente a possibilidade defendida no texto. O texto defende uma espécie de falso consentimento, ou consentimento irreal. 11 12 Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 117 preencha os requisitos do concurso, é acessória. Não há poder final sobre a ocorrência e resultado do delito. Assim, Peter responderá pela participação em infanticídio por dois motivos. Primeiro, porque não executa o delito e, segundo, porque a imputação de sua conduta segue a principal (art. 30, CP). E se Peter tivesse dolo de homicídio? Peter nem sequer iniciou a execução de sua intimidade delinqüente. Abstém-se o Direito Penal. Na questão “b”, segundo caso, Brenda não pratica infanticídio, e sim homicídio. Como a participação de Peter é entendida como acessória, esta seguirá a imputação principal de Brenda, e, portanto, responderá por participação no delito de homicídio e Brenda responderá por homicídio. Por último, cabe avaliar a seguinte questão: “O terceiro mata a criança, com a participação da mãe”. Questão “c”: Brenda, sob a influência do estado puerperal, pede ao seu namorado, Peter, que mate o próprio filho que acabara de nascer e Peter atende a tal pedido enquanto Brenda apenas o assessora sem realizar a conduta típica. Nesse caso, quem está em estado puerperal e possui a circunstância que gera toda a dificuldade de análise na matéria (estado puerperal), não a executa nem tem domínio final sobre a conduta típica, ou seja, não é autora. Já é entendimento firmado neste caso que a conduta acessória segue a principal, não sendo admissível o contrário. Assim, a conduta principal é a do autor que, nesse caso, pratica o homicídio, não podendo ser beneficiado pela comunicação das circunstâncias pessoais do seu mero partícipe, sob pena de inverter a ordem de determinação da unidade do acontecer delitivo. Quer dizer então que, neste caso, pelo princípio da unidade do delito, a partícipe que se encontra em estado puerperal será partícipe no delito de homicídio? De modo nenhum. Para esta circunstância acredita-se ser adequado o disposto no artigo 29, §2º, do CP quando diz: “Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.” Contudo, é importante ressaltar que estamos falando de gestante partícipe, possibilidade dificílima de ocorrer. Em regra, acredita-se mais provável a configuração de autoria mediata, ou seja, situações onde a puérpera, mesmo sem executar a ação delitiva, continua tendo domínio final sobre o fato, o que permitiria a comunicação da elementar do infanticídio. 118 • Doutrina Nacional 5. O artigo 30 do Código Penal brasileiro e o infanticídio: a proposta de Cezar Roberto Bitencourt como incompreensão do próprio conceito de concurso de pessoas Duas respeitáveis correntes marcam a discussão sobre a aplicação do art. 30 do CP ao infanticídio. De um lado, Roberto Lyra, Magalhães Noronha, Frederico Marques, Basileu Garcia, Bento de Faria e Damásio de Jesus defendem a comunicabilidade da influência do estado puerperal. De outro lado, Nélson Hungria, Heleno Cláudio Fragoso, Galdino Siqueira, Aníbal Bruno e Salgado Martins defendem a não comunicabilidade da referida influência. Esta última corrente “liderada” por Hungria baseou-se a classificação do estado puerperal como sendo “personalíssima”, pretendendo assim afastar a incidência do art. 30 do CP (à época, artigo 26). Competente proposta veio oferecer o Professor Doutor Cezar Roberto Bitencourt, trazendo novo fôlego aos debates. O professor inicia dizendo que a comunicabilidade não é algo que possa estar em questão, tendo em vista a clara e taxativa redação do art. 30: “Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.” Acrescenta Bitencourt ainda que o estado puerperal é elemento do tipo e seria estéril defender o contrário, ou seja, sua não comunicabilidade (BITENCOURT, 2008, p.127). Bitencourt diz que a justiça ou injustiça do tratamento jurídico correto não justifica a negação da posição tomada e firmada pelo Código penal ao determinar a teoria monística da ação prescrita no art. 29 do CP: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas [...]”. Assim o nobre professor conclui pela comunicabilidade do estado puerperal, abrindo, contudo, uma luminosa ressalva: “Isso não quer dizer, contudo, que o terceiro interveniente no ato da mãe de matar o próprio filho não possa concorrer, eventualmente, para o crime de homicídio”. (BITENCOURT, 2008, p. 127). De modo parecido com o que foi defendido neste texto, o professor conseguiu identificar a hipótese em que um terceiro realiza, ainda que juntamente com a infanticida, um plano próprio, ou seja, move-se por elementos anímicos próprios do delito de homicídio não aderindo ou motivando-se pelos interesses ou estado da infanticida, o que acarretaria a este sujeito uma imputação adequada aos seus próprios e particulares desígnios, não compartilhados pela infanticida, ou seja, a tipificação, para este terceiro, do delito de homicídio. Ora, nesse caso, o terceiro age com dolo de matar alguém, age com dolo de homicídio, que diríamos, é um dolo qualificado, pois tinha a finalidade adicional de utilizar a puerpera como Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 119 instrumento para a obtenção do resultado efetivamente pretendido, que era dar a morte ao nascente ou recém-nascido. (BITENCOURT, 2008, p.128). Em conseqüência desta acertada constatação, Bitencourt vai concluir que, para manutenção da teoria monística da ação, a mãe teria sua conduta tipificada como homicídio. Contudo, o estado puerperal no qual encontrava-se a mãe valeria como “[...] causa especialíssima de redução de pena” firmada pelo parágrafo único do art. 26 do CP: “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Essa redução de pena (de um a dois terços) que a mãe receberia por ter praticado homicídio sob a influência de estado puerperal seria uma medida de justiça no trato dado à questão, aplicando, para fechamento dessa, o art. 29, §2º, primeira parte, do CP, por reconhecer na hipótese um desvio subjetivo de conduta. A doutrina do eminente professor Bitencourt representa um avanço, entretanto acredita-se ter passado despercebida de questão fundamental capaz de fornecer uma melhor compreensão e tratamento da matéria. Primeiramente, insta ressaltar que a proposta oferecida pelo professor só consegue êxito à custa de um manejamento inconcebível na dogmática penal: o véu da “justiça”, que falseia o juízo de tipicidade. O juízo de tipicidade não pode ser manipulado à inspiração de respostas estranhas à dogmática penal. No caso em tela, em que a mãe mata o próprio filho sob a influência de estado puerperal durante ou logo após o parto, nunca poderá tipificarse o homicídio, porque a conduta já se adequou ao tipo de infanticídio em seus elementos objetivos e subjetivos. Essa discussão é estéril. A alteração de tipicidade é fraude contra a separação dos poderes. A legislação criou os elementos para o tratamento da hipótese fática delitiva determinando sua classificação e trato como infanticídio; isso não é negociável. Quer dizer, então, que não poderá haver a possibilidade de duas pessoas que matam alguém nascente ou recém-nascido responderem uma por homicídio e outra por infanticídio? Isso não violaria a tão citada teoria da unidade da ação insculpida no artigo 29 do CP? Sim para a primeira pergunta e não para a segunda, contudo a discussão passa ao largo da manipulação do juízo de tipicidade. Defende-se um tratamento capaz de respeitar o adequado juízo de tipicidade bem como a proporcionalidade no trato penal individualizado dos sujeitos do delito e o princípio da unidade da ação. 120 • Doutrina Nacional Onde estaria a resposta? Ora, na própria compreensão do que efetivamente é o concurso de pessoas. Observe-se o seguinte caso: Numa pacata cidade do interior de Minas Gerais, Peter, indignado com o nascimento de seu filho, desabafa com um amigo que irá matar a referida cria assim que esta nascer. Peter não só confessa suas intenções como a reafirma várias vezes dizendo estar determinado a colocar sua finalidade em prática. Ao chegar em casa de noite, percebe que sua esposa acabara de dar à luz e também que esta encontrase insana e descompensada afogando o recém-nascido na banheira. De imediato Peter aproveita-se da situação e empreende na realização de seu plano, apertando o pescoço do próprio filho que vem rapidamente a falecer. Fica claro que Peter tem desígnios próprios, típicos do homicídio. Fica também claro que sua esposa mata filho próprio logo após o parto, movida pela influência do estado puerperal justificante da tipificação infanticídio. Neste caso, ela (mãe) responderá por infanticídio e ele por homicídio sem violar a unidade da ação justamente porque não há a incidência de concurso de pessoas na hipótese, não havendo, portanto, que se falar na incidência do princípio da unidade da ação. Unidade da ação é regra aplicável ao concurso de pessoas em sua forma pura. Tal princípio só obstou a avaliação do professor Bitencourt porque este despercebeu, certamente por um piscar de olhos tendo em vista sua notória competência, que o concurso de pessoas é formado também por elementos subjetivos indispensáveis a sua configuração. Para falarmos em concurso de pessoas, deveremos ter: a) pluralidade de pessoas e de condutas; b) relevância causal de cada conduta; c) liame subjetivo ou psicológico; d) identidade do ilícito penal. As letras “c” e ”d” levam à conseqüência de que a pluralidade de agentes deve ter uma comunhão de finalidade delitiva (identidade entre os elementos subjetivos do tipo praticado). A ausência de tal compartilhamento de subjetividade impede em definitivo a configuração do concurso. Há um concurso perfeito, mesmo com partícipes, quando autores e partícipes querem furtar um banco e repartir o dinheiro depois. Independente da posição que ocupam, todos têm os elementos subjetivos do mesmo tipo penal. Todos trabalham para subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel (o elemento subjetivo do mesmo tipo está presente em todos os participantes). Isso é concurso de pessoas. A teoria unitária da ação refere-se a casos como estes onde, efetivamente, mesmo com a pluralidade de pessoas e ações diferentes, a soma das relações causais e dos elementos subjetivos forma ação única fragmentada apenas por questões pragmáticas. Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 121 Havendo diversidade de elementos subjetivos, haverá diversidade delitiva, não havendo que se falar em concurso ou em princípio da unidade da ação. Como diria o mestre alemão Welzel, causalidade sem finalidade é causalidade cega. O professor Bitencourt (2008) sabe da importância dos elementos subjetivos do fato e que eles determinam a tipificação da conduta, e assevera ser fundamental, no entanto, a análise do elemento subjetivo que orientou a conduta do terceiro. O professor também viu em exemplo de mesma ordem a divergência entre os elementos subjetivos dos agentes. Nesse caso, o terceiro age com dolo de matar alguém, age com dolo de homicídio, que diríamos, é um dolo qualificado, pois tinha a finalidade adicional de utilizar a puerpera como instrumento para a obtenção do resultado efetivamente pretendido, que era dar a morte ao nascente ou recémnascido (BITENCOURT, 2008). Contudo, não fora notado que tal fator excluiria a incidência do concurso de pessoas e, conseqüentemente, das regras a ele referentes. Assim, parece completamente adequada à dogmática penal a possibilidade de, no caso em tela, aceitar a responsabilização de Peter por homicídio e de sua esposa por infanticídio, tendo em vista a desconfiguração do concurso de pessoas, evitando, assim, toda indevida manipulação típica sugerida pelo nobre professor Bitencourt. Neste caso parece mais adequada a configuração de autoria colateral que, pela peculiaridade da questão poderia ser entendida como uma autoria colateral imprópria. 6. Conclusão Temos como dogma do Direito Penal brasileiro a comunicabilidade de circunstâncias pessoais quando elementares do tipo, como expresso no art. 30 do CP: “Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.” Trata-se de regra inerente ao concurso de pessoas e só neste caso aplicável. Algumas situações geram uma estranheza típica (de justiça?), como ocorre com o pai ou terceiro que, juntamente com a infanticida, mata alguém. Este terceiro mesmo não estando sob a influência do estado puerperal poderia se beneficiar das disposições do art. 30 do CP? Sim, quando houver concurso de pessoas e não, quando não houver concurso de pessoas. Havendo autoria colateral, ou seja, tratando-se de situação onde há pluralidade de agentes, mas não há a configuração de um concurso perfeito não haverá a incidência do art. 30 do CP. Isso se aplica não só ao infanticídio, mas a todas as potenciais incidências do referido art. 30. 122 • Doutrina Nacional Não havendo unidade subjetiva na prática do delito (identidade entre os elementos subjetivos da conduta dos agentes em relação à figura típica desejada), não haverá concurso e, conseqüentemente, não haverá aplicação do art. 30 do CP, sendo, então, possível a responsabilização individualizada de agentes atuantes em um mesmo fato sem que isso viole o princípio da unidade da ação. O art. 30 só incide quando houver uma adesão do(s) terceiro(s) ao plano e nos termos do plano psicológico do sujeito portador das condições pessoais previstas no tipo penal a ser aplicado. 7. Referências bibliográficas BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: dos crimes contra a pessoa. Parte especial. v.2. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. BRASIL. Código e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2007. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. GUIMARÃES, Roberson. O crime de infanticídio e a perícia médico-legal: uma análise crítica. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4066>. Acesso em: 02 set. 2008. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002a. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002b. WELZEL, Hans. Direito Penal. Tradução Afonso Celso Rezende. Campinas: Romana, 2003. Jorge Patrício de Medeiros Almeida Filho • 123 Palestra IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E LESÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL MARIA ELMIRA EVANGELINA DO AMARAL DICK Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais 1. Improbidade administrativa. Conceito. Noções básicas. O tema apresentado no IV Encontro Nacional do Patrimônio Cultural, em Ouro Preto, em 13 de março de 2009, refere-se à Improbidade Administrativa e Lesão ao Patrimônio Cultural. A expressão improbidade administrativa está inserida em nosso texto constitucional nos artigos 15, inciso V, que estabelece que a perda ou suspensão dos direitos políticos somente pode ocorrer, dentre outros casos, na hipótese de improbidade administrativa, nos termos do artigo 37, § 4º, do mesmo diploma normativo. E o artigo 37, § 4º, de nossa Carta Magna dispõe que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. A improbidade administrativa pode ser entendida como equivalente jurídico de corrupção e malversação administrativas, demonstrando “[...] o exercício da função pública por seu agente com desconsideração aos princípios constitucionais expressos e implícitos que regem a administração pública” (PAZZAGLINI FILHO, 2005, p. 17), com desrespeito, em resumo, aos princípios essenciais da legalidade e da moralidade. A concretização dessas condutas proibidas reflete a completa inversão das finalidades administrativas pelo uso ilegal e imoral do poder público ou pela omissão indevida de atuação funcional, com inobservância dolosa ou culposa das normas legais. A improbidade administrativa dependerá da presença dos elementos subjetivos consistentes no dolo e na culpa, configurando a desonestidade e a incompetência no desempenho das atividades funcionais do agente público em qualquer esfera estatal. 124 • Palestra Ademais, como corolário da cidadania, exigem-se dos agentes políticos e públicos não somente qualidades morais, impostas pela natureza do cargo, mas também capacitação técnica e profissional para o desempenho de suas nobres e relevantes funções, para o melhor servir a população destinatária desses serviços públicos. Sabe-se que atualmente a corrupção é a maior mazela da sociedade brasileira e a improbidade administrativa é vista como o ilícito civil, a face administrativa do ilícito penal mencionado, retratando ilegalidades consubstanciadas em enriquecimento ilícito e lesão ao erário. É também o verso civil do mau emprego do dinheiro público desviado, o que caracteriza a lavagem de dinheiro dela decorrente, ou seja, advinda da corrupção (artigo 1º, inciso V, da Lei nº 9.613/98).1 E, por isso, o combate à improbidade administrativa, com a indisponibilidade de bens do agente quando necessário, representa, enfim, o combate à própria corrupção e à impunidade. Na obra acima citada, retiramos a definição de improbidade administrativa dada por Wallace Paiva Martins Júnior (2001, p. 113): Improbidade administrativa, em linhas gerais, significa servirse da função pública para angariar ou distribuir, em proveito pessoal ou para outrem, vantagem ilegal ou imoral, de qualquer natureza, e por qualquer modo, com violação aos princípios e regras presidentes das atividades na Administração Pública, menosprezando os valores do cargo e a relevância dos bens, direitos, interesses e valores confiados à sua guarda, inclusive por omissão, com ou sem prejuízo patrimonial. A partir desse comportamento, desejado ou fruto de incúria, desprezo, falta de precaução ou cuidado, revelam-se a nulidade do ato por infringência aos princípios e regras, explícitos ou implícitos, de boa administração e o desvio ético do agente público e do beneficiário ou partícipe, demonstrando a inabilitação moral do primeiro para o exercício de função pública. Com vistas a normatizar o modelo constitucional de improbidade administrativa, surgiu a lei da improbidade administrativa – Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992 –, tornando-se verdadeiro documento de defesa da probidade administrativa, definindo o que se entende por ato de improbidade administrativa, quais seriam seus sujeitos ativos e passivos, além de regulamentar a forma de punição de condutas, apresentando rol de sanções que devem ser aplicadas aos autores dos atos de improbidade administrativa. Os sujeitos dos atos de improbidade administrativa estão elencados nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei nº 8.429/92. O artigo 1º enumera os órgãos ou entidades que podem ser prejudicados por ato de improbidade administrativa praticado por agentes públicos, servidores ou empregados que integram seu quadro de pessoal, devendo-se basicamente concluir que responderá por improbidade administrativa todo agente público, servidor ou não, que exerce, ainda que transitoriamente e sem 1 Ver: (DICK et al., 2006). Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick • 125 remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas nos dispositivos da lei, além dos administradores, empregados e contratados por entidades privadas que tenham recebido verbas públicas diretamente ou sob a forma de incentivos fiscais. Deve-se ainda mencionar o terceiro, mesmo não sendo agente público, que induz ou concorre para a prática de ato de improbidade administrativa ou dele se beneficie de qualquer forma, com a comprovação de ter usufruído da conduta espúria, que deverá ser também responsabilizado, ficando sujeito a todas as sanções previstas na Lei nº 8.429/92, menos, é óbvio, à perda da função pública caso não seja também agente público2. Logo, há incidência da Lei nº 8.429/92 a todos aqueles que, mesmo não sendo rigorosamente agentes públicos estejam em contato com o dinheiro público ou se beneficiem, direta ou indiretamente, dos efeitos da improbidade administrativa, culposa ou dolosamente3. As normas dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92 contemplam as modalidades de improbidade administrativa, apresentando uma relação meramente exemplificativa do que se deve entender por essa conduta ilícita. O artigo 9º enumera os atos que importam em enriquecimento ilícito consistente em qualquer tipo de vantagem patrimonial obtida indevidamente em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no artigo 1º da Lei nº 8.429/92. A lei registra o comportamento imoral do agente público ao desempenhar as atribuições relacionadas à sua função pública, auferindo dolosamente vantagem patrimonial ilícita e, assim, enriquecendo-se. Vê-se essa hipótese na utilização de bens públicos para fins privados bem como na utilização de sua condição de agente público ou político, com a negociação das tarefas que são inerentes ao cargo, para obtenção de vantagem indevida. Poderíamos imaginar a exigência de propina para facilitar a aprovação de um projeto na área cultural ou mesmo a ocorrência dessa aprovação, quando imprópria. A essência desta normalização reside no enriquecimento ilícito do agente público ou político, enriquecimento esse que ocorre em virtude do exercício funcional. O artigo 10 relaciona os atos que importam dano ao erário, constituídos de qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que ensejam perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no artigo 1º da Lei. Não há obtenção de vantagem patrimonial indevida para o próprio agente, que na realidade atua para lesar o patrimônio público financeiro ou facilitar a obtenção de ganho patrimonial indevido a terceiro. Há lesão ao erário, que é o conteúdo econômico financeiro do patrimônio público. 2 3 Ver: (PAZZAGLINI FILHO, 2005. p. 26). Ver: (OSÓRIO, 1997. p. 74). 126 • Palestra Toda e qualquer despesa dissociada do interesse público causa lesão ao erário. Essa hipótese existe, por exemplo, no caso do agente público que dispensa indevidamente uma licitação para permitir o restauro de um bem cultural por uma empresa privada que não possui notória especialização. Outros exemplos de lesão ao erário seriam a contratação de um escritório para a elaboração de inventário com vistas a tombamento sem a devida licitação e a nomeação de funcionários para exercerem função em área cultural sem o prévio concurso público. Nos casos de ausência tanto do enriquecimento ilícito do agente quanto de lesão ao erário, há a incidência do artigo 11, que enumera os atos que importam violação aos princípios da administração pública, consistentes em qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, sendo certo que o preceito compreende a violação ou a lesão aos demais princípios constitucionais expressos na Carta Magna. Não se exige aqui dolo ou culpa na conduta do agente, bastando a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar configurado o ato de improbidade (STJ – Resp 826.678/GO (2006/0031998-7) – 2ª T. – Rel. Min. Castro Meira – DJU 23.10.2006) ou prejuízo ao patrimônio moral da administração pública decorrente da ofensa aos princípios que regem os atos administrativos, segundo artigo 21, inciso I, da Lei de Improbidade (TRF 4ª R. – AC 2002.71.10.010039-0- 3ª T. - Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – DJU 03.10.2007). Entretanto, há autores que entendem necessária a presença do dolo, da má-fé na ação ou omissão funcional. O atendimento por agente público aos interesses privados de um colecionador de obra de arte, ou a inserção de dados falsos, equivocados, em laudo técnico com vistas a favorecer particular em detrimento do interesse público buscado em uma ação civil pública que geram afronta aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, lealdade, finalidade e eficácia. Diante desse cenário, vê-se que as autoridades públicas devem se conduzir de modo a garantir a preservação dos bens culturais materiais e imateriais existentes nos locais onde atuam, garantia essa que requer não somente a integralidade do bem em si como também a correta aplicação do dinheiro público e a observância dos princípios constitucionais e administrativos que regem a matéria. 2. Bem cultural material Logo, quanto ao bem cultural material, não se tem a possibilidade de realizar obras que alterem significativamente o aspecto do bem protegido sem as prévias e necessárias autorizações dos órgãos administrativos competentes em âmbito federal, estadual e municipal, que seriam em Minas Gerais o IPHAN (artigos 17 e 18 do Decreto-Lei nº 25/37), o IEPHA (artigo 7º, inciso V, da Lei nº 11.726/94) e os Conselhos Municipais do Patrimônio Cultural. Em Belo Horizonte, a Deliberação nº 106/2003. Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick • 127 E, dependendo do caso, há de se realizar audiência pública com as comunidades que suportarão a obra, bem como há de se providenciar o estudo de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do poder público municipal, segundo os artigos 36 e seguintes da Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade. O artigo 37 dispõe em seu inciso VII que o EIV deverá contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento quanto à paisagem urbana e patrimônio natural e cultural e, conforme artigo 38, não substituirá a elaboração e a aprovação de estudo prévio de impacto ambiental. Como exemplo, pode-se citar a necessidade de propositura de ação civil pública de responsabilização por ato de improbidade administrativa perante Vara Federal da Seção Judiciária ou Vara da Fazenda Pública Estadual ou Municipal quando ocorresse a realização de obras em área protegida por seu valor histórico e cultural em desconformidade com as normas de proteção específicas. A edificação em área tombada deve estrita obediência à fiscalização do IPHAN, em nível federal, a do IEPHA/MG, em nível estadual, e a do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte/MG, em sede municipal. O empreendimento em conjunto ou local protegido por tombamentos em qualquer esfera sem a prévia aprovação dos respectivos projetos arquitetônicos pelos órgãos de defesa do patrimônio histórico, em níveis federal, estadual e/ou municipal, configura a improbidade administrativa em virtude da imprescindível concordância desses institutos para quaisquer intervenções pretendidas no entorno do local protegido. Se, ademais, não se acatar recomendação ministerial para paralisação das obras, cabe ao Ministério Público ingressar com a competente ação por improbidade administrativa em face da violação do princípio da legalidade, nos termos do artigo 11, caput, da Lei nº 8.429/92, e, por ferir também as normas concernentes às alterações em bens tombados, em detrimento do patrimônio cultural brasileiro, com pedido liminar de suspensão da realização da obra e pedido definitivo de demolição da construção com retorno da edificação ao seu volume original, quando possível. A falta de observância por desobediência à recomendação caracteriza a ocorrência de dolo, ensejando providências por parte do Ministério Público. Vê-se igualmente a ocorrência da deslealdade e da desonestidade em relação ao órgão da administração pública que representa o requerido autorizador da obra indevida. Em palestra proferida em 14 de junho de 2007, durante a Semana do Meio Ambiente, promovida pelo Ministério Público de Minas Gerais, intitulada “Elaboração de Planos Diretores em Cidades de Interesse Turístico e Improbidade Administrativa”, discorremos sobre a imprescindibilidade de elaboração de plano diretor, nos termos do artigo 41 do Estatuto da Cidade, que representará o fundamental instrumento legal de política urbana. O plano diretor será obrigatório para cidades integrantes de área de especial interesse turístico (artigo 41, inciso IV, da Lei Federal nº 10.257/2001) e conterá 128 • Palestra as delimitações das áreas nas quais poderão ser impostas as obrigações de parcelamento e edificações compulsórias. Assim, o plano diretor é ato-condição para que o município exerça o seu direito de impor as referidas obrigações urbanísticas, que, ao serem observadas, revelarão o cumprimento da função social da propriedade urbana, nos termos do artigo 182, § 2º, da Constituição Federal. A lei municipal que veiculará o plano diretor deverá estar harmonizada com a lei federal que traçou as diretrizes e normas gerais da política urbana. E, quanto ao interesse turístico, há de se compatibilizar as condicionantes previstas no plano diretor, obtidas basicamente pela garantia da participação popular, publicidade e garantia de acesso, com as disposições já previstas em legislação urbanística complementar, que fundamentarão as ações municipais de sustentabilidade da área cultural. O artigo 52 do Estatuto da Cidade contempla as hipóteses de improbidade administrativa do prefeito e de outros agentes públicos envolvidos, que não configuram, por si sós, condutas de improbidade administrativa, sendo necessária a presença dos demais requisitos previstos na Lei nº 8.429/92 – requisitos básicos – para a caracterização de ato de improbidade administrativa, por se amoldarem ao seu conceito, importando em enriquecimento ilícito (artigo 9º), em prejuízo ao erário (artigo 10) ou em violação aos princípios (artigo 11). Outra hipótese de improbidade administrativa, em nosso entender, seria a não observância do processo e dos efeitos do tombamento. Tombar é inventariar, arrolar, registrar, colocando o bem móvel ou imóvel sob a guarda, proteção e conservação do Estado (sem a transferência da propriedade), haja vista a presença do interesse público, em virtude de sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, ou existência de excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artísticocultural (artigo 1º, caput e § 2º, do Decreto-Lei nº 25/37). Impõem-se limitações ao exercício de propriedade para a ocorrência da preservação do bem tombado. Trata-se, pois, de ato declaratório (por declarar o anterior valor cultural de um bem) e constitutivo (por criar as obrigações/condicionantes, em caráter erga omnes), configurando ato soberano. Após a identificação do valor cultural do bem, em processo de tombamento, com a devida caracterização, tem-se a sua inscrição no livro de tombo respectivo (artigo 4º do Decreto-Lei nº 25/37), cumprindo-se as formalidades legais, bem como a inscrição no registro imobiliário do ato de tombamento, necessária para a eficácia com relação a terceiros. Logo, com o tombamento efetivado por um órgão colegiado composto de especialistas na área do patrimônio cultural, entendemos que o cancelamento não pode ocorrer por ato unilateral e discricionário, motivado por propósitos políticos do agente, estranhos aos méritos culturais. O interesse público para a preservação do nosso patrimônio cultural prevalece sobre interesses outros de natureza privada ou partidária, não podendo ocorrer o desfazimento por um ato individual, segundo Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick • 129 disposição prevista no artigo único do Decreto-Lei nº 3.866/41, que possibilita ao Presidente da República cancelar o tombamento, e principalmente pelo fato de o bem, com o tombamento, passar a apresentar uma finalidade difusa e coletiva, em razão do reconhecimento do valor cultural a ele agregado. Entende-se que esse Decreto-Lei nº 3.866/41 tornou-se inconstitucional em face da atual Carta Magna, não só por não estar mencionada a atribuição de cancelamento de tombamento entre as previstas para o Presidente da República mas também porque tal cancelamento deveria ocorrer apenas por lei, cumprida a regularidade de seu aspecto material e formal, a fim de tornar mais segura a proteção. O cancelamento deve ser precedido, em nosso entender, de procedimento consistente em estudo prévio acerca da comprovação da anterior inexistência da carga histórica do aludido bem, o que tornaria ilegal o tombamento realizado. Deve-se também instaurar outro procedimento administrativo para chamar os interessados/beneficiados com o tombamento nesta discussão. Mais do que pensar em anulação deste ato de cancelamento via ação civil pública (artigo 5º, inciso II, da Lei nº 7.347/85) ou ação popular (artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal), existe na espécie um ato que decorre da transgressão de princípio constitucional, notadamente, dos princípios da preservação e proteção ao patrimônio cultural; da função sociocultural da propriedade e da fruição coletiva (artigo 216 da Constituição Federal)4. Sabe-se que a proteção ao patrimônio cultural é obrigação imposta ao poder público, artigo 216, § 1º, e artigo 23, incisos II e III, da Constituição Federal, determinando todos os entes federativos a esse cumprimento para segurar a integridade de bens culturais, bens comuns do povo. É a comunidade a detentora dos direitos sobre o patrimônio cultural, havendo, assim, a legitimidade do Ministério Público para ingressar com ações que visem à preservação desse patrimônio. Assim, a observânica das condicionantes dispostas em lei e no plano diretor trará à baila o cumprimento da função sociocultural, (artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal) desse patrimônio específico, com o objetivo de protegê-lo para a presente e as futuras gerações5. Nessa linha de pensamento, e com base no artigo 215, caput, da Constituição Federal, deve-se garantir o conhecimento dos bens culturais à coletividade, consistentes em visitas, informações e integralidade desses bens. Diante dessas considerações, vê-se que o cancelamento unilateral de um tombamento, com propósitos políticos e sem buscar a prevalência do interesse público-cultural, gera a inobservância do artigo 216, § 1º, da Constituição Federal, caracterizando o desamparo ao patrimônio cultural brasileiro. Pode ensejar a responsabilização por ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/92 por transgressão a princípios constitucionais, ocasionando danos culturais: 4 5 Segundo relação principiológica de: (MIRANDA, 2006, p. 24-32). Ver: (DICK, 2006). 130 • Palestra DIREITO ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PREFEITO – CONDUTAS QUE OCASIONARAM DANOS AMBIENTAIS – INOBSERVÂNCIA DO ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – CARACTERIZAÇÃO DE ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – APLICAÇÃO DA LEI 8.429/92 (TJMG – Apelação Cível nº 1.0107.06.999989-7/001 – comarca de Cambuquira – Órgão julgador: 4ª Cam. Cív. – Rel. Audebert Delage – julgado em: 05/10/2006). O procedimento de tombamento desenvolvido por um órgão colegiado, com conhecimento específico na área cultural, não pode ser desfeito por um ato unilateral, com base em conduta discricionária e arbitrária, em desrespeito absoluto aos princípios constitucionais de proteção ao patrimônio cultural. Desse modo, exemplificando, o desfazimento de um tombamento de uma via férrea por um prefeito municipal, por decreto, para construção de uma estrada, muito embora possa ser invocado o interesse público na construção da via rodoviária, não pode ser considerado um ato legal por ter ocorrido a destruição de um patrimônio com carga valorativa histórico-cultural, já proclamada em inventário e tombamento anterior. A ausência de um procedimento que pudesse respaldar tal cancelamento, e a ausência de discussão do tema em audiência pública com a participação da comunidade envolvida, configura a lesividade do ato, que, como dito, deveria ser efetivado pela via legal. A retirada de todos os trilhos e dormentes originais agrediu de maneira irreparável a própria cultura, não só pelo dano material causado como também pela destruição dos valores coletivos concernentes ao desenvolvimento daquela comunidade, com a exploração da ferrovia e advento de melhorias históricas e econômicas trazidas pelo trem. Surge o dever de indenizar pelo fato danoso irreversível, configurando o dano moral coletivo. Se o procedimento de tombamento foi elaborado por um colegiado, entendemos que o prefeito municipal, ao decretar o seu desfazimento, também é parte incompetente, por haver a necessidade de se discutir com a comunidade qualquer alteração ou suprimento no traçado da via férrea anteriormente protegida. Não caberia apenas a anulação deste cancelamento do ato de tombamento, por lesivo ao patrimônio cultural, mediante ação civil pública ou por ação popular, mas também a responsabilização do agente político por ato de improbidade administrativa em face do desrespeito de princípios constitucionais de preservação do patrimônio cultural, com a conseqüente nulidade absoluta do ato administrativo e produção de efeitos ex tunc. Registre-se, por oportuno, que a Lei Federal nº 11.483/2007 que dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário, em seu artigo 2º, inciso II, determina que “os bens imóveis da extinta RFFSA ficam transferidos para a União, ressalvado o disposto nos incisos I e IV do caput do art. 8º desta lei”. Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick • 131 artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção, na qualidade de gestor do patrimônio ferroviário. Da mesma maneira, deve-se refletir na responsabilização dos membros do Conselho do Patrimônio Cultural. Os Conselhos podem ser consultivos (com responsabilidade de julgar determinado assunto que lhes for apresentado), normativos (que tanto reinterpretam as normas vigentes como também as criam), deliberativos (aos quais compete o caráter decisório sobre as suas funções) e propositivos (que propõem ações ao Poder Executivo). Segundo o Decreto nº 5.531/86, que aprovou o Regimento Interno do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, dispõe em seu artigo 2º, com alteração da Lei nº 7.430/98, a composição do Conselho, cujos membros serão indicados pelos órgãos e entidades ali relacionados, tomando posse perante o Prefeito Municipal. Dessa forma, poder-se-ia entender que há designação do membro do Conselho do Patrimônio e, mesmo que não haja remuneração específica, há exercício de função pública, devendo referido membro atuar e posicionar-se em prol do patrimônio cultural e do interesse público, segundo artigo 216 da Constituição da República. Não caberá atitude do membro para dar respaldo político-partidário a ações de agentes hierarquicamente superiores ou com vistas a beneficiar terceiro, sob pena de responsabilização por ato de improbidade administrativa. No mínimo, ocorrerá violação a princípios constitucionais e administrativos. Destacamos também o julgamento do processo nº 1.0461.04.016183-2/004(1), relator Des. Wander Marotta, em 27/05/2008, que apresenta a seguinte ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – OFENSA A COISA JULGADA E AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE – NECESSIDADE DA COMPROVAÇÃO, PELO AUTOR, DO DOLO E DE CULPA, PRESSUPOSTO AQUI ATENDIDO. – A Lei nº 8.429/92 é aplicável tanto aos funcionários públicos quanto aos agentes políticos. – Os atos de improbidade que violem os princípios da Administração independem da efetiva constatação de dano ao patrimônio público. – Presente a demonstração da má-fé por ato do agente administrativo é procedente a sua condenação por improbidade administrativa. – A coisa julgada material afigura-se como lei entre as partes, porque já definitivamente analisada e julgada. Sua violação, pelo agente político, caracteriza má-fé e a culpa ou dolo na conduta narrada na inicial. No caso em tela, a requerida, então prefeita municipal de Ouro Preto, autorizou a concessão de alvarás e instalação de aparelhagem de som em desconformidade com a sentença proferida nos autos da Ação Civil nº 461.00.000019-4, editando o Decreto nº 41, que dispôs sobre a regulamentação do carnaval de 2004 na cidade de Ouro Preto/MG. Contudo, na sentença acima mencionada, o magistrado julgou parcialmente procedente o pedido da ação civil pública proposta pelo Ministério Público, que 132 • Palestra argumentava acerca da condenação da realização da festa de carnaval e o tráfico indiscriminado no centro histórico, por colocar em risco o patrimônio histórico e urbano. O magistrado determinou ao Município de Ouro Preto, então, que se abstivesse de promover, cooperar, patrocinar, colocar ou autorizar a colocação de aparelhagem de sons mecânicos dirigidos – tão-somente – para a realização das festas carnavalescas em locais determinados; que se abstivesse de conceder alvarás para funcionamento de comércio no período carnavalesco, com sonorização mecânica externa, além, dentre outras ações, de manter livres e desimpedidas pelo menos duas vias de acesso ao hospital municipal. Viu-se que a prefeita desrespeitou decisão judicial transitada em julgado, tendo deixado de observar o comando da sentença nos autos nº 0461.00.00019-4 e o Decreto-Lei nº 25/37, agindo negligentemente, com culpa e desamparando bens que fazem parte do patrimônio histórico e cultural do país, violando os princípios da administração, que se enquadram no artigo 11 da Lei de Improbidade e independem da efetiva comprovação de dano ao patrimônio público, desrespeitando também os artigos 17, 18 e 20 do Decreto-Lei 25/37. Houve condenação da ré ao pagamento de multa civil de 30 vezes o valor da remuneração por ela recebida à época da conduta, proibição de contratação com o poder público e/ou receber benefícios fiscais ou creditícios e suspensão de direitos políticos pelo prazo de 4 anos. 3. Bem cultural imaterial: topônimo Dick (1990b p. 22) leciona que “[...] se a Toponímia situa-se como crônica de um povo, gravando presente para o conhecimento das gerações futuras, o topônimo é o instrumento desta projeção temporal [...]”. Dentro desse estudo, apresenta-se como tópico analítico de bem cultural imaterial a contextualização do topônimo inserido em seu seio social. Segundo Dick (1990a, p. 1), “[...] desde os mais remotos tempos, o homem sempre deu nome aos lugares. E o sentido desses denominativos é o ponto de partida para investigações no campo da lingüística, geografia, antropologia, psicossociologia, enfim, da cultura em geral [...]”. A Toponímia, que é uma disciplina científica da ciência Onomástica, como estudo lingüístico e histórico da origem dos topônimos (nomes próprios de lugar), visa também à análise da estrutura do topônimo, revelando o registro da cultura e dos valores dos lugares. Ao designar tradicionalmente o nome próprio de lugar, o topônimo, em sua formalização na nomenclatura onomástica, liga-se ao acidente geográfico que identifica, com ele constituindo um conjunto ou uma relação binômica, que se pode seccionar para melhor se distinguirem os seus termos formadores. (DICK, 1990a, p. 10). Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick • 133 [...] através das camadas onomásticas, revelam-se, numa perspectiva globalizante, as feições características do local, sejam as de ordem física quanto socioculturais. De tal modo, esses aspectos se corporificam nos topônimos que se podem mesmo, muitas vezes, estabelecer a correlação entre o nome dos acidentes e o ambiente em que ele se acha inscrito. (DICK, 1990a, p. 35). Considerando o topônimo como um patrimônio cultural imaterial, torna-se necessário revelar o significado do que vem a ser o nome6. Existem duas maneiras práticas de identificá-lo: a) É constituição ou formação fonêmica, ou seja, a palavra é formada como outra qualquer da língua, constituída de vogais e consoantes emitidas pelo aparelho fonador e transmitidas ao cérebro por audição. Essa seria uma característica fonético-fonológica, sem consideração significativa. b) Para que ocorra comunicação interpessoal, porém, é necessário que os falantes usem o mesmo código lingüístico, ou seja, tenham a mesma língua, para que conheçam o significado das formas lingüísticas ou palavras emitidas. A interação entre significante (expressão oral) e significado (sentido da forma emitida) configura a semântica das línguas, permitindo o completar da comunicação entre os indivíduos. Os nomes ainda exercem, sem sombra de dúvida, um fascínio inexplicável sobre as pessoas, trazendo em si a reminiscência da mística que sempre envolve a nomeação, desde os primeiros tempos da Antiguidade Clássica. Como está escrito no Evangelho de São João (1,1), “No princípio, era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. No início era o Verbo, o Verbo habitou entre nós e a Palavra foi formada. Os antigos não revelavam o nome a estranhos para que seu portador não sofresse danos irreparáveis, como “perda da alma”, que passava, daí em diante, a pertencer àquele que conheceu o segredo do nome. Este pensamento também estava instalado entre os Tupinambás do litoral brasileiro. Do antigo Egito vinha a crença, perpassando por várias regiões até chegar a nós, de que o nome revelado a estranhos era um caso perdido, pois com ele ia também a própria personalidade. Isso porque, na prática, acreditavam que o homem era formado de três elementos: corpo, alma (ou espírito) e nome. O nome era, assim, uma entidade que caminhava por forças mágicas paralelamente ao corpo. Da palavra comum da língua forma-se o nome das coisas, dos objetos, das pessoas, 6 DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral, aulas ministradas no Curso de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 134 • Palestra dos lugares. E esse nome específico torna-se a marca identitária ou a identificação personalíssima desse objeto que não pode mais ser alterado. Segundo Dick, se há mudança ou trocas, permitindo-se a alteração, instala-se o caos social e a comunicação ou o traço identificador das coisas e seres não existe mais. O nome pessoal que antecede o de família – prenome – é imutável, conforme artigo 58 da Lei nº 6.015/73, e não pode ser trocado a partir do momento em que for inscrito no registro público, a não ser na hipótese de causar problemas ao seu portador por apresentar semelhança a formas pejorativas e deprimentes, resultar em cacofonia ou gerar dubiedade de identificação sexual. Em outras palavras, o prenome pode ser mudado quando for evidente o seu erro gráfico ou quando ocorrer exposição do seu portador ao ridículo, nos termos do parágrafo único do artigo 58 da Lei nº 6.015/73. Com os estrangeirismos pode ocorrer esse fenômeno, pois o usuário emprega o nome muitas vezes por um gosto pessoal ou porque o som da palavra é diferente, denotando sua origem não nacional. Há quem prefira essa forma de nomear distante de nossas matrizes, mostrando preferências pelo uso do que vem de fora. Ao escolher o nome de um filho, entre outros critérios, passa-se pelo critério de nomes geracionais, que visam à conservação do nome de família; nomes da moda, que são cíclicos, e nomes perenes, como os nomes bíblicos. Em razão da força que o nome possui, pode-se querer transmitir ao homenageado as intenções das características físicas do seu primeiro portador, ou as características psíquicas, morais, de valores e condutas da personalidade envolvida. Evidentemente, que a esta motivação inicial agregar-se-ão todos os valores, comportamentos e condutas perseguidos e adotados vida a fora pela própria pessoa, que poderá confirmar ou se distanciar do propósito inicial. De qualquer forma, o nome será sempre a assinatura da pessoa e pertencerá ao seu patrimônio identitário, à sua própria personalidade. O mesmo ocorre com os nomes de lugares e logradouros públicos. À motivação original, agregar-se-á o desenrolar da história que consolida e consagra a denominação, fornecendo valores culturais a esta entidade onomástica. Desse modo, impõe-se aos governantes a preservação dos topônimos consagrados, que fazem parte do patrimônio coletivo daquela comunidade. Torna-se, assim, imperioso combater o despreparo ou o oportunismo de prefeitos, vereadores, agentes que destinam suas atividades à alteração de nomes de ruas e logradouros, concedendo títulos à sua clientela7 e aos seus eleitores. A Toponímia configura, portanto, valioso documento científico para resgatar a história dos espaços urbanos e dos nomes dos acidentes geográficos. O referencial pode ser maior que o próprio nome oficial. Em São Paulo, por exemplo, o nome “Ponte Cidade Jardim” é o nome referencial, forte, conhecido e que, por ligar dois bairros – Jardim Europa e Cidade Jardim – por cima do Rio Pinheiros, torna sem utilização 7 Ver: (TOLEDO, 2009, p. H 16). Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick • 135 popular, cotidiana, o posterior nome do homenageado “Engenheiro Roberto Rossi Zúccolo”. Logo, a toponímia espontânea deve prevalecer sobre as denominações concedidas por agentes públicos, à revelia da participação popular. Em São Paulo, por iniciativa do então Vereador Arnaldo Madeira, houve a inclusão da Toponímia na Lei Orgânica Municipal, relacionada com a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade, para ser preservada pelo município, em razão de seu valor histórico-cultural, nos termos do artigo 192, parágrafo único, inciso VI, da referida lei, datada de 06 de abril de 1990. No intuito de melhor disciplinar a matéria, temos ainda como exemplo as Leis nº 7.133/96 e 6.916/95, do Município de Belo Horizonte, que regulamentam a denominação dos próprios públicos, determinando a sua ocorrência por lei (artigo 1º da Lei nº 7.133/96 e artigo 6º da Lei nº 6.916/95). O projeto de lei que visar a alteração deverá estar instruído com abaixo-assinado firmado por pelo menos sessenta por cento dos moradores da via a ser renominada (artigo 5º da Lei nº 7.133/96 e artigo 14, da Lei nº 6.916/95). Há ainda a Lei nº 14.454/2007, do Município de São Paulo, que veda a denominação de via ou logradouro público com nome de pessoa viva (artigo 2º), vedando também a alteração de denominação de próprios e obras de arte municipais, cuja denominação já se consagrou tradicionalmente e se incorporou na cultura da cidade (artigo 9º), mesmo que o nome não tenha sido objeto de ato de autoridade competente (artigo 4º). Vêem-se, assim, as buscas municipais para regulamentar as denominações e possíveis alterações de nomenclatura de ruas e logradouros públicos, que se juntam à Lei Federal nº 6.454/77. 4. Conclusão Entende-se que não há a possibilidade de alterar ou mesmo nomear a denominação pública a não ser que haja discussão com as bases, em audiência pública, consultando-se a população diretamente interessada, na forma de plebiscito, em razão da relevância sociocultural da matéria envolvida, que, assim, manifestará a sua opinião, a ser expressa em lei posterior, se for o caso. Tudo a impedir que ocorram alterações com propósitos político-partidários e para fins de homenagens a apadrinhados políticos. O mesmo deve ser dito no tocante à escolha do primeiro nome do lugar. A alteração unilateral por agente político, sem discussão com as bases, não representa a prevalência da vontade popular – detentora desse patrimônio onomástico – que muitas vezes reage com placas, passeatas e discussões para manutenção ou retorno do nome tradicional. Como exemplo, pode ser citado o caso de “Calambau”, que foi substituído por Presidente Bernardes, distrito do Município de Piranga/MG. Desse modo, caberá ao Ministério Público a propositura de ação civil pública para se anular o nome arbitrário, sem origens históricas e sem respaldo comunitário, 136 • Palestra para conservação do nome que retrate o referencial e o tradicional, presente no coração do povo. Ora, havendo alteração para fins políticos, manobras populistas e homenagens indevidas ter-se-á violação aos princípios administrativos da moralidade e da impessoalidade, com lesão ao artigo 216 da Constituição Federal, tornando-se pertinente a responsabilização por ato de improbidade administrativa dos agentes envolvidos, nos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/92, em razão do prejuízo moral vivenciado pela coletividade, detentora desse patrimônio onomástico. E, no caso de comprovação de gastos ilícitos ao erário, amoldar-se-á a conduta ao disposto no artigo 10 da Lei nº 8.429/92. Em sites sobre a cidade de Ouro Preto, obteve-se a informação da existência de uma denominação oficial paralela a uma denominação tradicional quanto à denominação de ruas, mantendo-se no coração do povo o nome ditado pela tradição. Essa divergência se dá uma vez que a troca dos nomes ocorre sem a prévia consulta ao povo, que é o principal interessado na manutenção ou alteração do nome do logradouro e também no próprio batismo inicial. Como exemplo, podemos apresentar a seguinte relação, alcançadas em endereços eletrônicos: Denominação Oficial a) Rua Conde de Bobadela b) Rua Senador Rocha Lagoa c) Praça Reinaldo Alves de Brito d) Praça Silviano Brandão e) Rua Alvarenga f) Rua Cláudio de Lima g) Rua Randolfo Bretãs h) Rua Antônio de Albuquerque i) Praça Barão do Rio Branco j) Rua Conselheiro Quintiliano k) Rua Cláudio Manoel l) Rua Coronel Alves m) Rua Henri Gorceix n) Rua Salvador Trópia o) Rua Carlos Tomaz p) Rua Henrique Adeodato q) Praça Cesário Alvim r) Rua Dom Silvério s) Rua Teixeira Amaral t) Rua Donato da Fonseca u) Rua Pandiá Calógeras Denominação Tradicional Rua Direita Rua das Flores Praça do Cinema Largo da Alegria Ruas das Cabeças Beco dos Bois Rua das Escadinhas Rua da Glória Praça do Circo Lages Rua do Ouvidor Rua do Carmo Rua Nova Beco da Ferraria Rua do Gibu Cruz das Almas Praça da Estação Palácio Velho Ladeira São José Ponte Seca Ladeira do Gambá Acredita-se no impedimento da alteração dos nomes de centros históricos tombados, já consagrados na cultura popular, como tutela ao meio ambiente cultural, não havendo possibilidade de exame no caso concreto de conveniência política, sob pena de se ferir princípios científicos acerca do tema, ligados à historicidade do topônimo. Maria Elmira Evangelina do Amaral Dick • 137 Desse modo, o resgate e a preservação da Toponímia, assim como dos bens culturais materiais, constituem uma observância do exercício da cidadania, que, segundo artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal, fundamenta o Estado Democrático de Direito, em clara conservação da cultura, da memória e da identidade dos povos, conforme artigo 216 do mesmo diploma normativo. E o desrespeito a esses bens pode ensejar a responsabilização por ato de improbidade administrativa, nos termos anotados neste estudo. Ouro Preto, 13 de março de 2009. 5. Referências bibliográficas DICK, Maria Elmira Evangelina do Amaral e outro. Crime de Lavagem de Dinheiro. Belo Horizonte: CEAF/MPMG, 2006a. DICK, Maria Elmira Evangelina do Amaral; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. I Exposição de inclusão sociocultural promovida pela coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico de Minas Gerais. Revista MPMG Jurídico. Belo Horizonte, Ano 1, n. 4, p. 70-71, fev./mar. 2006b. DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Toponímia e Antroponímia no Brasil. Coletânea de Estudos. 2. ed. São Paulo: São Paulo, 1990a. ______. A motivação Toponímica e a Realidade Brasileira. São Paulo: Arquivo do Estado, 1990b. MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa. Porto Alegre: Síntese, 1997. PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. TOLEDO, Benedito Lima de. Desorientando São Paulo. In: São Paulo 455 anos de O Estado de S. Paulo. São Paulo, 25 de janeiro de 2009. p. H 16. 138 • Palestra Diálogo Multidisciplinar VALORES ORGANIZACIONAIS E CONFIGURAÇÕES DE PODER: AS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS MINEIRAS EM FOCO ROSÂNIA RODRIGUES DE SOUSA Pesquisadora da Fundação João Pinheiro/MG MARIA DAS GRAÇAS TORRES DA PAZ Professora colaboradora da Universidade de Brasília/PSTO RESUMO: O estudo das características culturais das organizações policiais contribui para um maior conhecimento do funcionamento desse tipo de instituição. Assim, o objetivo deste artigo é analisar o perfil cultural das organizações policiais em Minas Gerais, quais sejam a Polícia Militar e a Polícia Civil, caracterizando-as a partir do estudo de seus valores organizacionais e de suas configurações de poder. Para isso, foram aplicadas escalas validadas a 300 policiais militares e a 190 policiais civis da 1ª Região Integrada de Segurança Pública em Belo Horizonte. Os resultados revelaram que o valor organizacional preponderante nas duas instituições é o valor Conformidade. Por sua vez, a configuração de poder que mais caracteriza a Polícia Civil, bem como a Militar, é a configuração Autocracia. Resultados da análise de regressão múltipla hierárquica revelaram que 25% da configuração Arena Política, na Polícia Civil é explicada pelo modelo formado pelos valores Preocupação com a coletividade, Domínio, Autonomia/Autodeterminação, Tradição e Conformidade. Os resultados foram discutidos e comparados entre as duas organizações policiais mineiras. Sugestões para novas pesquisas foram propostas. PALAVRAS-CHAVE: cultura organizacional; valores organizacionais; configurações de poder; organizações policiais. ABSTRACT: The study of the characteristics of the culture of police organizations helps a better understanding of how this kind of organizations work. Therefore, the main aim of this article is to analyse the cultural profile of the police organizations in the State of Minas Gerais, Brazil, the Military Police and Civil Police, and to characterize them by using their organizational values and their power configurations. Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 139 In order to characterize them, validated scales were used with 300 military police officers and 190 civil police agents of the 1st Integrated Public Security Region in Belo Horizonte, Minas Gerais. The results revealed that the ruling organizational value in both organizations is the conformity value. Besides, the power configuration that better characterizes the Military and Civil Polices is the configuration Autocracy. The results of the analysis of the hierarchical multiple regression revealed that 25% of the configuration Political Arena in Civil Police is explained by the model composed of the values Concern about the society, Domain, Autonomy/autodetermination, Tradition and Conformity. The results of both organizations were discussed and compared and sugestions for further research were made. KEY WORDS: organizational culture; organizational values; power configurations; police organizations. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Método. 3. Resultados e discussão. 3.1. O perfil cultural das polícias civil e militar. 3.2. Relação entre valores organizacionais e configurações de poder. 3.3. Impacto dos valores organizacionais nas configurações de poder. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas. 1. Introdução O estudo da cultura das organizações é considerado uma preocupação ainda recente, quando comparado a outros fenômenos mais investigados no mundo organizacional. Talvez por isso há uma variedade de conceitos que tentam representar de forma adequada os diferentes componentes da cultura bem como a interação entre eles. Destacam-se Hosfstede (1980, p. 21), que define a cultura como “[...] a programação coletiva da mente que diferencia os membros de um grupo humano de outros”; Trompennars (1994, p.145), para o qual cultura é “[...] um sistema comum de significados, que nos mostra a que devemos prestar atenção, como devemos agir e o que devemos valorizar [...]”, e Schein (1990), um dos estudiosos mais conhecidos e citados quando o tema é “cultura organizacional”, que define a cultura organizacional como: O conjunto de pressupostos básicos que um grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os problemas de adaptação externa e integração interna e que funcionaram bem o suficiente para serem considerados válidos e ensinados a novos membros como forma correta de perceber, pensar e sentir em relação a esses problemas. (SCHEIN, 1990, p.109). O modelo conceitual de cultura organizacional proposto por Schein (1990) é dinâmico, podendo essa cultura ser apreendida por meio de diferentes níveis: 1 – os artefatos visíveis, que são facilmente obtidos, mas difíceis de serem interpretados; 2 – os valores dizem muito sobre a cultura, já que orientam a vida da organização 140 • Diálogo Multidisciplinar e direcionam o comportamento de seus membros e 3 – os pressupostos básicos que estão localizados no nível mais profundo e de difícil acesso e tendem a ser inconscientes. Mais recentemente, Paz e Tamayo (2004) propuseram um modelo de análise do perfil cultural das organizações, concebendo a cultura como formas de sentir, pensar e agir compartilhadas nas organizações. O modelo tem como variáveis componentes os valores organizacionais, as configurações de poder, os estilos de funcionamento organizacional e os princípios de justiça como variáveis do núcleo da cultura e os mitos, ritos e jogos de poder como variável no nível das práticas culturais. Para os autores, traçar o perfil cultural de uma organização consiste em identificar aquelas características que mais representam a sua identidade cultural. Considerando a necessidade de demandas das organizações para a identificação desse perfil de uma forma mais ágil, mas sem comprometer a qualidade da análise, o modelo se baseia na abordagem quantitativa, com a aplicação de questionários em amostras representativas da organização, construídos a partir de entrevistas e suporte teórico, embora a identificação de mitos e ritos utilize a abordagem qualitativa de análise. Os autores salientam que o perfil cultural da instituição pode ser levantado a partir da análise de todas as variáveis propostas no modelo ou a partir de algumas delas, caso desta pesquisa, que utilizou o modelo de Paz e Tamayo (2004) para traçar o perfil cultural das organizações policiais mineiras. No Brasil, em linhas gerais, o ciclo policial é realizado pelas polícias militar e civil. As funções de patrulhamento ostensivo uniformizado e controle do trânsito são atribuídas às polícias militares, enquanto às polícias civis atribuem-se as atividades de investigação criminal e o exercício de polícia judiciária, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal. Nesse sentido, em Minas Gerais, o policiamento ostensivo é de responsabilidade da Polícia Militar enquanto a polícia judiciária e investigativa fica a cargo da Polícia Civil. Se, por um lado, as polícias civis brasileiras se caracterizam por uma cultura jurídica, por outro, as polícias militares, consideradas forças reservas do Exército brasileiro, encaixam-se na cultura militar. Essas organizações estão passando por um processo de integração em Belo Horizonte. A identificação dos seus perfis culturais pode subsidiar a gestão da nova forma de organização do sistema de defesa, visando à adoção de estratégias e procedimentos compatíveis com os padrões culturais mais fundamentais das duas instituições. Assim, no presente artigo, tem-se como primeiro objetivo analisar o perfil cultural das organizações policiais em Minas Gerais, quais sejam a Polícia Militar e a Polícia Civil, caracterizando-as a partir do modelo proposto por Paz e Tamayo (2004), dando ênfase à identificação de seus valores organizacionais e de suas configurações de poder. O segundo objetivo consiste em relacionar os valores organizacionais com as configurações de poder. Para tanto, a seguir, faremos uma breve revisão de literatura sobre valores organizacionais e configurações de poder que subsidiarão a análise empírica. Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 141 Os valores organizacionais – Os valores nas organizações funcionam como “guias” que orientam a vida da instituição e o comportamento de seus empregados (PAZ e TAMAYO, 2004). Os valores compartilhados entre os membros de uma organização, segundo Tamayo (1998, p.58), têm como uma de suas das funções criar nessas pessoas “[...] modelos mentais semelhantes relativos ao funcionamento e à missão da organização”. Essa função, de acordo com o autor, visa impedir que percepções da empresa, do comportamento organizacional e das tarefas a serem realizadas afetem negativamente a organização. De acordo com Freitas (1991), os valores constituem o coração da cultura, pois estabelecem os padrões que devem ser alcançados na organização oferecendo uma orientação diária ao comportamento dos empregados. Essa autora afirma, também, que os valores são resistentes ao tempo e por isto mesmo são sempre enfatizados. Neste sentido, pode-se dizer que os valores referem-se àquilo que é importante para atingir o sucesso e que compõem a construção da identidade social da organização, já que determinam, de forma parcial, o que ela é e a forma como ela se percebe. Paz e Tamayo (2004) afirmam que os valores organizacionais, além de guiarem o comportamento dos integrantes de uma organização, determinam como os comportamentos serão julgados/avaliados, bem como os eventos da organização. Eles são abordados através de oito valores: Realização; Conformidade; Domínio; Bem-estar do empregado; Tradição; Competência; Autonomia e Ética Organizacional, que se distribuem em três dimensões, expressas por eixos. Assim, o valor Bemestar organizacional avalia, segundo Tamayo (2005, p.203), “[...] a preocupação da organização em construir um ambiente de trabalho prazeroso, com alta qualidade de vida, bem-estar e satisfação do trabalhador”. O valor Prestígio está ligado à imagem da organização perante a sociedade bem como à necessidade de ser conhecida e admirada por todos. Já o valor Domínio está relacionado à preocupação com a obtenção de lucros e com o domínio de mercado. O valor Autonomia expressa as práticas da organização, voltadas para o estímulo da criatividade, do desafio e da inovação no ambiente de trabalho. O valor Preocupação com a coletividade avalia, por sua vez, a preocupação da organização em oferecer um ambiente de trabalho justo, igualitário, sincero e honesto a seus funcionários. O valor Realização tem como foco a valorização da competência do funcionário, enquanto o valor Conformidade valoriza o respeito às normas da organização, a cortesia e as boas maneiras do funcionário. Já o valor Tradição tem como objetivo manter a tradição e os costumes na organização. A partir desses valores são traçadas as prioridades axiológicas das organizações. O modelo de análise dos valores organizacionais se fundamentam em Schwartz (1999), que propôs a teoria dos valores humanos, entendidos como fatores motivacionais, os quais são dispostos em quatro eixos: “abertura a mudança” (estimulação, autodeterminação, hedonismo) versus “conservadorismo” (Conformidade e Tradição) e “autotranscendência” (universalismo e benevolência) versus “autopromoção” (poder e realização), tendo sido desenvolvidos vários estudos a partir de então. Pode-se dizer, enfim, que os valores organizacionais permitem 142 • Diálogo Multidisciplinar predizer o funcionamento da instituição e o comportamento de seus empregados e gestores. Por este motivo, são tão valiosos para as organizações. No Brasil a ênfase sobre valores organizacionais se inicia com os estudos de Álvaro Tamayo, proponente do construto valores organizacionais a partir da teoria de Schwartz. Dentre esses estudos, destacam-se: o estudo de Gondim e Tamayo (1996), que teve como objetivo identificar a hierarquia de valores da instituição CNPq, de acordo com a percepção de seus funcionários; o de Tamayo (1998), que verificou a relação entre comprometimento afetivo com valores organizacionais, satisfação no trabalho e comportamento de cidadania organizacional; o de Mendes e Tamayo (2001), que visou identificar as relações entre valores organizacionais e as vivências de prazer-sofrimento no trabalho; o de Borges, Argolo e outros (2002), que analisou a relação entre valores organizacionais e os níveis da síndrome de burnout em três hospitais universitários do Rio Grande do Norte; o de Miguel e Teixeira (2009), que objetivou verificar a relação entre valores organizacionais e a criação do conhecimento; o de Mendonça e Tamayo (2005), que investigou relações entre valores e retaliação organizacional. Como uma das relações ainda não estabelecida é a relação entre valor organizacional e configurações de poder – segundo objetivo deste trabalho – será explorada, a seguir, a literatura sobre poder organizacional. O poder nas organizações – É inegável a permanente atualidade dos estudos sobre o poder nas organizações. Considerando apenas a última década do século XX e a primeira do século XXI, constata-se a diversidade de abordagens sobre o tema. A título de exemplo, salientam-se, dentre outros, os seguintes estudiosos: Dwyer (1991), que investigou como o humor se reflete nas relações e na distribuição de poder nas organizações; Cotton (1994), que pesquisou o comportamento organizacional, tendo a variável classe social como preditora do poder nas organizações; Clemente, que relacionou os papéis da liderança com cultura e poder organizacional; McNulty (1995), o qual identificou que o poder da administração é proporcionado por fatores contextuais e culturais; Paz (1997), que relacionou estruturas de poder com avaliação de desempenho nas organizações; Vargas (1998), que realizou um estudo que identificou quais são os tipos de configurações que melhor representavam as relações de poder presentes na Embrapa; Paz (1999), que investigou poder e justiça organizacional; Bruins, Ellemers e De Gilder (1999), que investigaram a influência do uso do poder e das competências dos superiores nas respostas avaliativas e comportamentais dos subordinados. No século XXI, esse interesse se mantém. Paz (2004) aborda poder e saúde organizacional; Enns e Mc Farlin (2005) estudaram a influência, a fim de compreender os processos mais usados pelos executivos para ganhar o apoio dos seus pares na implantação de inovações; Zhang (2006) centrou-se no estudo da liderança localizada na cúpula de uma empresa; Colarezzi, Spranger e Hechanova (2006) estudaram as diferenças sexuais no poder e tentaram explicar a assimetria entre homens e mulheres na ocupação de cargos de alta gerência; Spranger, Hechanova e Schlegelmilch (2007) utilizaram abordagens políticas e contingenciais para investigar os mecanismos de controle usados por multinacionais para gerir suas Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 143 sedes no estrangeiro, dentre outras. Não há como negar que um autor de destaque no estudo do poder nas organizações é Mintzberg (1983, 1992), que constrói uma teoria robusta de poder organizacional, definindo-o como a capacidade de afetar o comportamento organizacional. De acordo com Paz (2004), o foco da Teoria do Poder Organizacional de Mintzberg é analizar o poder dentro e em torno das organizações, sendo que as configurações por ele propostas podem ser empiricamente comprovadas. Para Paz e Tamayo (2004), a teoria de Mintzberg parte da premissa de que o comportamento organizacional é um jogo de poder em que vários jogadores, considerados influenciadores, procuram controlar as ações organizacionais através da utilização das bases de poder e de habilidades pessoais e vontade para investir energia na organização. Mintzberg (1983) propõe uma tipologia das configurações de poder que é resultante da interação entre: 1 – coalizões externas e internas da organização; 2 – os sistemas de influência (autoridade, ideológico, especialista e político) e 3 – o sistema de metas (sobrevivência, controle, eficiência, crescimento e metas ideológicas formais e pessoais compartilhadas). Os elementos básicos do poder, segundo esse mesmo autor, são os jogadores que podem pertencer ou não à estrutura da organização, mas que tem a intenção de exercer influência nos resultados organizacionais. Esses influenciadores utilizam como meio de controle das decisões organizacionais a autoridade, a ideologia, a especialidade ou perícia e a política. Ainda segundo o autor, pode haver relação entre o sistema de poder interno da organização e o ambiente externo através dos influenciadores que constituem coalizões que interagem, com o objetivo de adquirir poder em relação à organização, formando, assim, a coalizão externa (CE) e a coalizão interna (CI). Compõem a coalizão externa (CE) diferentes grupos, tais como: proprietários, associados, associações e públicos. Já a coalizão interna é formada pelos membros da organização, que vivenciam seu cotidiano e são distribuídos em diferentes níveis hierárquicos. Neste artigo serão consideradas as configurações de poder propostas por Mintzberg (1983). A partir das configurações de poder, é possível identificar as culturas organizacionais autocráticas, instrumentais, missionárias, meritocráticas, autônomas e arenas políticas: - Autocracia: aqui, o poder é concentrado no mais alto chefe da organização, que define e maximiza as metas a serem atingidas. - Instrumento: as organizações que têm esse tipo de configuração servem de instrumento para o alcance de objetivos claramente estabelecidos por um indivíduo ou um grupo de fora da instituição. - Missionária: o grande influenciador neste tipo de configuração é a ideologia, que mantém a coalizão passiva e favorece a forte identificação dos seus membros com as metas e os objetivos ideológicos. - Meritocracia: os especialistas têm o poder com base nas habilidades e no domínio 144 • Diálogo Multidisciplinar de conhecimento e constituem os mais fortes influenciadores internos. - Sistema Fechado: os próprios membros da organização, especialmente seus administradores, são os grandes controladores das decisões organizacionais. - Arena Política: essa configuração é típica de organizações em crise. Há o aumento da atividade política e a diminuição das forças de integração. No Brasil, alguns estudos sobre a dinâmica do poder nas organizações têm sido desenvolvidos. Podemos citar: Paz (1997), que estabeleceu relações entre estruturas de poder e avaliação de desempenho; Vargas (1998), que realizou um estudo em que identificou quais são os tipos de configurações que melhor representavam as relações de poder presentes na Embrapa; Martins e Paz (2000), que desenvolveram uma pesquisa sobre as interações entre configurações de poder e comprometimento; Paz, Mendes e Gabriel (2001), que relacionaram configurações de poder com estilos de caráter nas organizações; Flausino e outros (2001), que construíram e validaram um instrumento de bases de poder; Neiva e Paz (2004), Guimarães e Martins (2008), que investigaram a relação existente entre a interação do trabalhador com seu meio e com seus colegas de trabalho e como essa interação reflete no seu comprometimento com a organização e com sua equipe de trabalho; Paz (2008), que relacionou configurações com estresse nas organizações. A investigação das variáveis valores organizacionais e das configurações de poder no exterior e no Brasil têm-se intensificado, de forma que é justificável caracterizar o perfil cultural das organizações policiais mineiras a partir delas e identificar o impacto dos valores nas configurações de poder. 2. Método Para atingir os objetivos propostos, foi realizada uma pesquisa com abordagem quantitativa. Dois instrumentos foram utilizados para a coleta de dados. O primeiro deles, o inventário de Perfil dos Valores Organizacionais (IPVO), construído e validado por Oliveira e Tamayo (2004), composto de quarenta e oito itens que descrevem características de organizações que servem como referentes para a identificação dos valores e possibilitam o reconhecimento das prioridades axiológicas. Tratase de uma escala de seis níveis, que varia de um (é muito parecida com a minha organização) até seis (não se parece com minha organização). Os itens medem os oito valores já descritos: Realização, Conformidade, Domínio, Bem-estar do empregado, Tradição, Realização, Autonomia e Preocupação com a coletividade, todos com índices de precisão e confiabilidade satisfatórios, com alphas de cronbach acima de 0,70. O segundo instrumento de medida utilizado foi a Escala de Configuração de Poder Organizacional, construída e validada por Paz & Neiva (2005), composta de cinqüenta itens. É uma escala de cinco pontos, que varia de zero (não se aplica) até quatro (totalmente aplicável). Os itens dessa escala avaliam seis configurações que correspondem às configurações de poder de Mintzberg (1983). São elas: Autocracia, Instrumento, Missionária, Meritocracia, Sistema Autônomo e Arena Política, todos também com alphas de cronbach acima de 0,70. As escalas foram entregues aos respondentes e preenchidas individualmente. Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 145 A população pesquisada corresponde aos policiais civis e militares, integrantes das unidades operacionais de Belo Horizonte. Estas unidades (Companhias de Polícia Militar e Delegacias de Polícia Civil) compõem as vinte e quatro Áreas Integradas de Segurança Pública, que, por seu turno, compõem a 1ª Região Integrada de Segurança Pública, na capital. Cerca de 3.000 policiais militares compõem o universo da pesquisa, enquanto na Polícia Civil, são 1.000 policiais. A amostra estratificada selecionada foi constituída de 300 policiais militares, entre oficiais e praças, bem como 190 policiais civis, dentre delegados, escrivães e agentes de polícia que responderam aos instrumentos da pesquisa. Com relação aos participantes, verificou-se que a idade média dos policiais militares é de 36 anos, enquanto a dos policiais civis é de 38 anos. O tempo médio de serviço nas duas organizações é de 14 anos. Entre os participantes, na polícia militar, dezessete (17) são do sexo feminino e duzentos e noventa e seis (296) são do sexo masculino, sendo que quatro participantes não informaram o sexo. Na polícia civil, do total de participantes, cinqüenta e cinco (55) são do sexo feminino e cento e trinta (130) são do sexo masculino, cinco (5) não informaram o sexo. Dentre os participantes, noventa e três (93) policiais militares ocupam cargo de chefia e cento e noventa e oito (198) não ocupam. Na PM, nove (9) participantes não deram essa informação. Na Polícia Civil, trinta e sete (37) participantes ocupam cargo de chefia e cento e trinta e oito (138) não ocupam, sendo que quinze participantes não informaram. 3. Resultados e discussão 3.1. O perfil cultural das polícias civil e militar As respostas obtidas na aplicação dos dois instrumentos foram submetidas à análise do SPSS (Statistical Package of Social Science, versão 14.0). Uma primeira análise foi realizada no banco de dados, com o objetivo de verificar a existência de dados faltosos, que foram substituídos por valores médios em função do pequeno número de casos. Não foram identificados outliers. Também foi feita a inversão da escala de valores e realizadas análises descritivas (freqüências, médias, desvio-padrão) e correlações de Pearson. Para avaliar o impacto dos valores sobre as configurações de poder, foram realizadas regressões lineares hierárquicas a partir das quais os resultados foram interpretados. As médias e os desvios-padrão obtidos com as respostas dos polícias civis e militares ao instrumento de perfil dos valores organizacionais são apresentados na tabela 1. 146 • Diálogo Multidisciplinar Tabela 1: Médias e desvio-padrão das amostras para os fatores relativos aos valores organizacionais (PMMG/PCMG) Fatores Médias Desvio-padrão PMMG PCMG PMMG PCMG Realização 4,198 (5º) 3,130(5º) 1,03451 1,29644 Conformidade 5,005(1º) 4,253(1º) 0,77779 1,19203 Domínio 2,863(8º) 2,180(7º) 1,12390 0,97601 Bem-estar do empregado 3,145(7º) 2,061(8º) 1,22637 1,10479 Tradição 4,508(3º) 3,746(2º) 0,79956 1,22167 Prestígio 4,645(2º) 3,483(3º) 1,03547 1,31406 Autonomia 3,628(6º) 2,633(6º) 1,03494 1,26019 3,156(4º) 1,02519 1,35221 Preocupação com 4,287(4º) a Coletividade Fonte: dados da pesquisa As prioridades axiológicas das duas organizações são semelhantes. A análise das médias dos fatores relativos aos valores organizacionais aponta que o valor Conformidade obteve a maior média para ambas as organizações. O 2º valor no ranking da PM é Prestígio, seguido de Tradição, ocorrendo a ordem inversa na PC. O 4º, 5º, e 6º valor no ranking das duas instituições são os mesmos, respectivamente: Preocupação com a coletividade, Realização e Autonomia; O 7º valor da PM é Bemestar e o 8º, Domínio, ocorrendo a ordem inversa na PC em relação a esses dois últimos valores do ranking. Esses dados apontam que tanto na Polícia Militar quanto na Polícia Civil os respondentes percebem como valor máximo da organização a Conformidade, que enfatiza a obediência às regras do trabalho bem como aos superiores hierárquicos. Porém, considerando que a escala de valores organizacionais é de 6 pontos (1 a 6 ) e que o ponto médio da escala é 3,5, podemos admitir que a percepção desse valor é mais forte na PM que na PC. Não só em relação ao valor Conformidade mas também em relação aos demais a força da percepção dos valores organizacionais é maior na Polícia Militar que na Polícia Civil. O teste de diferença entre as médias dos valores (Teste t pareado) foi calculado para cada uma das organizações, encontrandose diferenças significativas entre as médias de todos os valores. Pode-se então considerar que as culturas organizacionais das Polícias Civil e Militar priorizam a Conformidade. O comportamento organizacional é dinamizado por esse valor, que Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 147 é compartilhado pelos que fazem a organização, induzindo formas de sentir, pensar e agir compatíveis com esse princípio orientador do comportamento organizacional. No entanto, é importante destacar que, além da média do valor Conformidade na PM ser maior que a da PC, também o desvio-padrão referente à média do valor Conformidade na PM é menor que na PC. Dessa forma, pode-se assumir que há maior força e maior homogeneidade de percepção desse valor na PM. Considerando as prioridades axiológicas das duas polícias, poder-se-ia até admitir que elas se assemelham, se o foco fosse apenas o ranking dos valores. Entretanto, a diferença maior se deve ao nível de compartilhamento das percepções dos respondentes. O desvio padrão das médias, indicador de compartilhamento das percepções, que deve ter como valor máximo aceitável 20% da escala (DP = 1,20), é ultrapassado apenas na média do valor Bem-estar do empregado na PM, ou seja, há menor compartilhamento na percepção desse valor, retratando não ser um traço característico dessa cultura organizacional, o que é reforçado também pela média (3, 14), que fica abaixo do ponto médio da escala (3,50). Considerando as médias acima do ponto médio da escala e os desvios-padrão das médias de no máximo 1,20, podese admitir que o comportamento organizacional da PM é orientado por princípios de Conformidade, Prestígio, Tradição, Preocupação com a coletividade, Realização e Autodeterminação, com as prioridades axiológicas na ordem apresentada. O valor Conformidade, no entanto, é o mais importante princípio orientador do comportamento organizacional, o principal traço cultural da organização baseado em valores. Com base no mesmo critério de um desvio-padrão da média de no máximo 1,20, na PC o compartilhamento das percepções dos respondentes é menor. Com exceção das médias dos valores organizacionais de Conformidade, Domínio e Bem-estar do empregado, todas as demais médias ficaram com o desvio-padrão acima de 1,20. Esses dados revelam que os valores de Tradição, Realização, Prestígio, Autodeterminação e Preocupação com a coletividade não constituem traços tão marcantes da cultura da PC, o que também é confirmado pelas médias situadas abaixo do ponto médio da escala para os valores anteriormente citados, com exceção do valor Tradição, cuja média foi 3,74, numa escala de 6 pontos. Assim sendo, pode-se considerar que o valor característico da cultura organizacional da PC é o valor Conformidade, quando considerados o desvio-padrão e a média de todos os valores. A menor homogeneidade de percepção dos membros da PC em relação aos valores pode ser melhor compreendida com os resultados obtidos sobre as configurações de poder organizacional, cujas médias e respectivos desvios-padrão são apresentados na tabela 2. 148 • Diálogo Multidisciplinar Tabela 2: Médias e desvio-padrão da amostra para fatores relativos às Configurações de Poder (PMMG/PCMG) Fatores Médias e classificação Desvio-padrão PMMG PCMG PMMG PCMG Autocracia (1º) 2,744 (1º) 2,585 0,60008 0,62198 Instrumento (4º) 2,002 (5º) 2,187 0,73439 0,92097 Missionária (2º) 2,477 (3º) 2,227 0,52303 0,76808 Meritocracia (5º) 2,085 (4º) 2,202 0,59496 0,68404 Sistema Autônomo (3º) 2,112 (6º) 1,826 0,54756 0,77555 Arena Política (6º) 1,973 (2º) 2,272 0,67283 0,87066 Fonte: dados da pesquisa Os dados da tabela 2 revelam que a configuração de poder predominante na PM e na PC é a Autocracia. Considerando que o ponto médio da escala é 2, uma vez que a escala de cinco pontos vai de 0 a 4, constata-se que essa configuração de poder é muito percebida como característica da cultura organizacional na PM e razoavelmente percebida como traço cultural da PC. A configuração de poder nos indica como o poder se estrutura na organização para afetar o comportamento organizacional. No caso das culturas autocráticas, o poder é centralizado na cúpula da organização, que tem toda a autoridade formal, define e prioriza metas assim como o suporte físico e psicossocial, enfim, controla todas as funções críticas e centraliza os fluxos de informação. Além de se revelar uma cultura autocrática, a PM também apresenta traços de uma cultura missionária, tendo em vista que se volta para uma missão ideológica que influencia a dinâmica organizacional, a de servir à comunidade. As médias e os seus respectivos desvios-padrão, que, no caso da escala de cinco pontos, não deve ultrapassar 1,0, são indicadores de que as duas configurações traçam o perfil cultural da PM, mas, de fato, a característica cultural predominante é a Autocracia. Como houve diferença significativa entre as médias das duas configurações ao nível de 0,05, é possível fazer essa consideração. Por seu turno, na Polícia Civil, a segunda configuração mais percebida foi Arena Política. Esta configuração é representada por uma atividade política máxima, em que predomina o conflito e prevalece a tentativa constante de satisfazer objetivos individuais não atendidos e organizacionais, neste último caso quando há a percepção de que os objetivos organizacionais estão sendo desviados. Essa configuração tem, geralmente, um caráter temporário, podendo surgir em momentos de transição ou como uma tentativa de realinhamento do poder. Talvez o reconhecimento dessa Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 149 configuração na organização se justifique, principalmente, a partir de 2003, quando a coordenação das organizações policiais passa a ser incumbência da Secretaria de Defesa Social, o que acarreta profundas mudanças no sistema de defesa do Estado, especialmente na Polícia Civil. Na realidade, a Arena Política não pode ser considerada um traço cultural, mas um momento de crise, que pode redundar em mudança em certas características culturais das organizações. Talvez, em função dessa crise, que nem é tão profunda, pois a média da configuração é 2,27, portanto uma característica apenas razoavelmente percebida pelos respondentes, é que há pouca homogeneidade e baixa intensidade nas percepções relativas a alguns dos valores organizacionais. Em situação de crise nem sempre há clareza em relação a determinados processos e procedimentos que marcam o contexto de trabalho, especialmente se eles estão em transição. O teste de diferença entre médias (teste t pareado) revelou diferenças significativas ao nível de 0,05 entre as médias de Autocracia e Arena política na PC, o que nos leva a crer que podemos considerar que essa organização tem uma cultura autocrática, mas que se encontra em crise. Neste caso, é importante atentar para a terceira configuração percebida pelos polícias civis que participaram da amostra, que é a configuração Missionária. É possível que a Arena Política presente na PC esteja revelando que a configuração Missionária pode estar se fortalecendo em detrimento da configuração autocrática (ou o contrário pode ocorrer, um fortalecimento ainda maior da Autocracia). Como é claramente percebido nos resultados apresentados na tabela 2, todas as configurações são identificadas nas duas organizações. Esse é um resultado possível segundo a Mintzberg (1992), mas uma configuração normalmente é a prevalente. Assim, pode-se considerar que as duas polícias são também culturas autocráticas. Enfim, com base nos valores e nas configurações de poder organizacionais, é adequado afirmar que o perfil cultural das organizações policiais de BH tem como traços mais marcantes de suas identidades a Conformidade e a Autocracia, embora se diferenciem em relação à força do compartilhamento dos valores e das configurações de poder. 3.2. Relação entre valores organizacionais e configurações de poder Além de caracterizar o perfil cultural das organizações policiais mineiras, um segundo objetivo do artigo foi o de correlacionar as configurações de poder organizacional com os valores organizacionais, o que ainda não havia sido feito nas pesquisas publicadas, conforme retratado no levantamento de literatura. Para verificar a existência de correlação entre a percepção de valores organizacionais e as configurações de poder nas organizações pesquisadas, utilizou-se a correlação bivariada de Pearson. Na tabela 3 são apresentadas as correlações entre os oito valores e as seis configurações de poder que integram as respectivas escalas. Na tabela, encontra-se indicado o nível de significância das correlações (p). 150 • Diálogo Multidisciplinar Tabela 3: Correlações entre as configurações de poder e os valores organizacionais Realização Conformidade Domínio Autocracia Instrumento Missionária Meritocracia Sistema Autônomo Arena Política 0,022 -0,332** 0,424** -0,097* 0,387** -0,406** 0,122** - 0,283** 0,313** -0,195** 0,097* -0,333** 0,060 0,021 0,132** 0,137** 0,257** -0,028 Bem-estar do empregado - 0,056 -0,230** 0,341** -0,056 0,417** -0,290** Tradição 0,261** -0,023 0,137** -0,010 0,035 Prestígio 0,035 -0,300** 0,375** -0,127** 0,270** -0,343** Autonomia (Autodeterminação) - 0,035 -0,314** 0,429** -0,067 0,460** -0,383** Preocupação com a coletividade - 0,011 -0,391** 0,438** -0,157** 0,372** -0,424** *p< 0,05 -0,041 **p< 0,01 De acordo com a tabela 3, o valor organizacional de Realização tem sua correlação mais alta (positiva) com a configuração de poder Missionária, seguida do Sistema Autônomo, revelando que os policiais que percebem a sua organização como missionária ou Sistema Autônomo são os que mais consideram que a organização valoriza a competência do empregado. O valor Domínio tem sua correlação positiva mais forte, embora baixa, com a configuração Sistema Autônomo, indicando que os policiais que percebem a sua organização com essa configuração são os que também a percebem como valorizadora do controle do ambiente externo, evitando que pessoas desse contexto interfiram em suas decisões e ações. O valor Bemestar tem sua correlação mais alta (positiva) com a configuração Sistema Autônomo, demonstrando que é nesta configuração de poder que o bem-estar dos empregados é mais valorizado, conforme a percepção dos respondentes. O valor Tradição está mais positivamente relacionado à configuração Autocracia, revelando que os que mais vêem sua organização como autocracias também a percebem como mantenedora dos costumes já arraigados e de suas tradições. O valor Autonomia é mais percebido por aqueles que reconhecem a configuração de poder da sua organização como uma configuração autônoma. Assim sendo, os que consideram que a sua organização valoriza a criatividade, o desafio e a inovação no ambiente de trabalho também consideram que sua organização evita o exercício de influência de pessoas externas no seu contexto interno. Por fim, o valor Preocupação com a coletividade teve sua correlação mais alta (positiva) com a configuração Missionária, retratando que aqueles que percebem a sua organização valorizando a manutenção de ambiente justo, igualitário, sincero e honesto para seus funcionários também a percebem como ideologicamente comprometida com a missão de servir a comunidade. Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 151 É interessante observar que todos os valores organizacionais se correlacionaram positiva e significativamente com a configuração de poder Missionária e todos se correlacionaram negativamente com a configuração Arena política. Tal resultado talvez indique que a configuração Missionária é mais aberta à vivência de práticas decorrentes de todos os tipos de valores organizacionais, enquanto na configuração Arena Política ocorreria o contrário. A análise das correlações entre valores e configurações de poder organizacionais, a partir da percepção dos policiais civis e militares que compuseram as amostras da PC e da PM de Belo Horizonte, reflete que as configurações com valores mais consistentes e que orientam a vida organizacional são as configurações percebidas como autocrática, missionária e autônoma. A configuração Autocracia é mais orientada por valores de Conformidade; a configuração Missionária, por valores de Preocupação com a coletividade e a configuração Sistema Autônomo, por valores de Autonomia. As demais configurações retrataram correlações negativas com os valores organizacionais. 3.3. Impacto dos valores organizacionais nas configurações de poder Para testar o modelo dos valores organizacionais como variável preditiva das configurações de poder, realizou-se a análise de regressão múltipla, utilizando-se o método hierárquico. Não sendo identificada a ocorrência de multicolinearidade, todos os valores e configurações de poder permaneceram como variáveis do modelo de regressão. As variáveis demográficas entraram no primeiro bloco como variáveis controladas e os valores, no segundo bloco. Foram feitas regressões para cada uma das configurações de poder. As análises revelaram que a variável preditora de Autocracia é o valor Tradição (R²=.0,105 e Beta = 0,27). Tal resultado indica o baixo poder de predição dos valores em relação à configuração autocrática, mas aponta que a Autocracia é mais percebida por aqueles que consideraram a Tradição um princípio orientador do comportamento da sua organização. A configuração Instrumento tem como preditores os valores Preocupação com a coletividade, Domínio, Tradição e Prestígio, sendo o poder de explicação do modelo correspondente a R2=0,20. Neste modelo, o valor que melhor explica a configuração Instrumento é Preocupação com a coletividade (Beta= - .38), seguido dos valores Domínio (Beta= 0,20), Prestígio (Beta = -0,16) e Tradição(Beta= 0,13). Como o beta dos valores Preocupação com a coletividade e Prestígio são negativos, concluise que, quanto mais os policiais vêem a sua organização com uma configuração Instrumento, menos eles percebem os valores Preocupação com a coletividade e Prestígio e mais percebem que a sua organização é orientada por valores de Domínio e Tradição. 152 • Diálogo Multidisciplinar Por sua vez, a percepção da configuração Missionária é explicada pelos valores Preocupação com a coletividade (Beta= 0,26 e Autonomia (beta= 0,21) com R² = 0,20), indicando que quanto mais se percebe a configuração Missionária, mais se percebem os valores Preocupação com a coletividade e Autonomia. Com relação à configuração Meritocracia, o modelo que tenta explicar a sua percepção tem um poder preditivo muito baixo e é composto dos valores Domínio e Conformidade, este último numa relação negativa (R2= 0,07). A configuração Sistema Autônomo é explicada por um modelo composto dos valores Autonomia, Conformidade (R2=0,19), com beta = 0,23 e -0,22, respectivamente. Podese concluir que, quanto mais os polícias percebem a sua organização como um sistema autônomo, mais eles consideram que o valor Autonomia orienta o comportamento da sua organização, ocorrendo o inverso com o valor Conformidade. Por fim, a configuração Arena Política é explicada pelo modelo composto dos valores Domínio (beta= 0,19), Autonomia (beta= 0,20) e Tradição (beta= 0,20), sendo o R² = 0,23. Entende-se que quando a Arena Política é percebida como configuração de poder da organização, menos se percebe o valor organizacional de Autonomia e mais se considera a força de valores de Domínio e Tradição, talvez revelando o conflito entre os que querem mudança e os que querem manter a sua organização sem muitas transformações, evitando influências do contexto e tentando controlá-lo. 4. Conclusão O presente estudo procurou caracterizar o perfil cultural das Polícias Civil e Militar a partir dos valores e das configurações de poder organizacional e estabelecer relações entre essas duas variáveis do núcleo da cultura das organizações. Os resultados apontam que as organizações policiais têm em sua cultura como valor principal a Conformidade, na percepção dos policiais civis e militares, apontando que o comportamento organizacional é regido por regras e ações que impõem a aceitação e sujeição dos indivíduos aos comandos organizacionais, incluindo os dos superiores. Outro ponto já destacado refere-se àquilo que caracteriza uma organização policial, quais sejam seus pilares básicos, que são a hierarquia e a disciplina. Nas organizações policiais em geral há uma ênfase na obediência às regras de trabalho bem como ao superior hierárquico. Na PMMG, além do valor Conformidade, destacam-se também nessas culturas os valores Prestígio, Tradição e Preocupação com a coletividade, nessa ordem, enquanto na PCMG foram percebidos os mesmos valores, apenas invertendo a ordem de prioridade, isto é, Tradição, Prestígio e Preocupação com a coletividade. Esses Valores apontam para questões importantes nas organizações pesquisadas. Se, por um lado, os policiais militares se sentem pertencentes a uma organização de prestígio, por outro, os policiais civis se percebem numa organização mais tradicionalista. Já o valor Preocupação com a coletividade, que também é percebido pelas organizações policiais, traz em seu bojo questões afetas à honestidade e ao tratamento igualitário Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 153 para todos. Pode-se dizer que este valor tem uma importância especial em se tratando de uma organização policial, seja ela civil ou militar. A razão de existir desse tipo de organização está relacionada com a possibilidade de proporcionar um ambiente seguro na sua área de atuação, no caso específico de ambas as organizações, o Estado de Minas Gerais. Assim, dentre outras coisas, espera-se que esse profissional seja um cidadão justo, cortês e honesto, pois ele detém o uso exclusivo da força, que lhe é dado pelo Estado, que é por eles representado. Esse tratamento justo deve ser também o tratamento recebido pelo profissional no seu local de trabalho. Com relação aos resultados verificados nos valores organizacionais que mais caracterizam as polícias mineiras, pode-se destacar que, com relação à Polícia Civil, apenas o valor Conformidade pode ser considerado muito estabelecido, já que se encontra bem acima do ponto médio da escala. Por sua vez, o valor Tradição, que também está localizado acima do ponto médio da escala, indica ser um valor estabelecido na organização. Já na Polícia Militar, verificamos que apenas dois valores encontram-se abaixo do ponto médio da escala e, dos que se encontram acima, apenas um está estabelecido na média (Autonomia/Autodeterminação). Os demais, pode-se dizer, estão completamente estabelecidos. A configuração de poder que melhor caracteriza as culturas das Polícias Civil e Militar, na percepção dos respondentes, é a configuração Autocracia. Destaca-se que, embora em ambas as organizações os respondentes tenham percebido a presença da configuração Autocracia, essa percepção se dá de forma mais homogênea na PMMG (DP= 0,600) do que na Polícia Civil (DP= 0,622). Enquanto na PMMG a segunda configuração mais percebida foi a configuração Missionária, na Polícia Civil foi a configuração Arena Política. Essas diferenças de percepção em termos de preponderância das configurações de poder talvez expressem os momentos diferentes por que passam ambas as organizações policiais no Estado. Na Polícia Militar, a presença da configuração Missionária talvez esteja relacionada a uma forte identificação de seus membros com as metas e os objetivos estabelecidos pela polícia de resultados. Por sua vez, na Polícia Civil, a percepção da configuração Arena Política talvez seja reflexo do momento de mudanças substantivas por que passa a organização em decorrência do processo de Integração da Gestão de Segurança Pública no Estado. Essas mudanças acabam por impactar mais a Polícia Civil do que a Polícia Militar trazendo, assim – é a nossa impressão – um aumento considerável da atividade política (disputas entre diferentes forças internas da organização) resultando na predominância do conflito e, conseqüentemente, na diminuição das forças de integração. Outra questão pode estar ligada ao fato de que nos últimos anos essas organizações vêm passando por modificações consideráveis, seja em termos de estrutura de trabalho como também na forma de trabalhar, considerando aí o processo de integração por que passam as organizações do sistema de defesa social do Estado o que, certamente impacta a maneira de se perceber a organização. Assim, embora os dados obtidos possibilitem uma maior compreensão da cultura das organizações policiais no Estado de Minas Gerais, levando a um maior conhecimento deste tipo de organização, considera-se válido que outros trabalhos sejam desenvolvidos para que 154 • Diálogo Multidisciplinar possam suprir as limitações de um modelo de análise de perfil cultural com abordagem apenas quantitativa. Quanto às correlações detectadas entre os valores organizacionais e as configurações de poder, os resultados apresentaram-se lógicos do ponto vista teórico e também refletem a realidade das organizações. Tomando como base as correlações mais altas, pode-se dizer que houve correlações positivas entre configuração Autocracia e o valor Tradição, Missionária e Preocupação com a coletividade, Sistema autônomo e Autonomia, Meritocracia e Domínio; correlações negativas entre configuração Instrumento e o valor Preocupação com a coletividade, Arena política e Preocupação com a coletividade (esta configuração teve correlações negativas com todos os valores). As configurações Missionária e Sistema autônomo parecem ser as culturas que mais viabilizam a prática de todos os valores, conforme a percepção dessa amostra. Conforme já foi demonstrado, os valores organizacionais não são fortes preditores das configurações de poder. Embora concebidos como princípios orientadores do comportamento organizacional, os valores não se caracterizaram mais acentuadamente como tal em relação às configurações de poder. Talvez esse resultado esteja retratando que os valores são abstrações difíceis de serem concretizadas num instrumento de medida quantitativo. Mas também é adequado considerar que outros tipos de valor, como o da cultura onde as organizações estão inseridas, ou os valores típicos da profissão ou do trabalho, ou mesmo os valores pessoais e características de personalidade comuns dos membros das organizações, tenham mais impacto nas configurações de poder. Ainda é necessário considerar que, em sendo as duas variáveis do mesmo nível organizacional, impactos de peso não podem ocorrer. Dessa forma, mais estudos precisam ser desenvolvidos com outros fenômenos do mundo organizacional como preditores das configurações. Por fim, é importante ressaltar que os resultados obtidos com esta pesquisa não podem ser generalizados, o que implicaria, em relação ao segundo objetivo da pesquisa de estabelecer relações entre as configurações de poder e os valores organizacionais, uma amostra composta por um número bem maior de organizações. Mas pode-se dizer que, mesmo assim, este trabalho tenta preencher uma lacuna existente nos estudos de valores e poder organizacional, já que até a presente data não se tem conhecimento de trabalhos semelhantes na literatura científica. 5. Referências bibliográficas BORGES, L. O. et al. A síndrome de burnout e os valores organizacionais: um estudo comparativo entre hospitais universitários. Psicologia: Reflexão e Crítica,15(1), 189-200, 2002. BRUINS, J., ELLEMERS, N., DE GILDER, D. Power use and differential competence as determinants of subordinates’ evaluative and behavioural responses in simulated organizations. European Journal of Social Psychology, v. 29, p.843-70, 1999. 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Rosânia Rodrigues de Sousa • Maria das Graças Torres da Paz 157 2 Artigo • 161 Jurisprudência • 186 Comentário à Jurisprudência • 189 Direito Penal 2 Artigo A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA – A PESSOA JURÍDICA PODE DELINQÜIR? ADIRSON ANTÔNIO GLÓRIO DE RAMOS Major da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais RESUMO: A responsabilidade penal da pessoa jurídica está ganhando novos contornos, fazendo com que haja uma reconstrução da dogmática tradicional onde as noções de ação e de culpabilidade foram construídas em torno da pessoa natural tendo como ponto de partida o homem, excluindo-se a pessoa jurídica. Nesse contexto, se destacam a corrente romano-germânica e a dos países filiados ao Common Law, cujo antagonismo ou dualismo jurídico-criminal é relativizado a partir da interação e auto-influência dos sistemas, fazendo com que o direito caminhe para a plenificação da responsabilidade penal do ente coletivo, principalmente em face da nova criminalidade, com destaque para os crimes econômicos e ambientais. Faz-se mister operar uma verdadeira reconstrução do ponto de partida da dogmática atual, tradicional, centrada no homem, para conceitos de ação e de culpabilidade ponto de partida a sociedade e, não, o homem. PALAVRAS-CHAVE: responsabilidade penal; Common Law; corrente romanogermânica. ABSTRACT: The criminal liability of the legal entity is gaining new contours, and thus re-building the traditional dogma in which the culpability and action notions were based on the natural person (the legal entity is excluded). In this context, the RomanGermanic branch and the Common Law, whose antagonism or legal-criminal dualism is relativized by means of the interaction and auto-influence of the systems, are quite dettached from each other. Thus, Law steps towards thoroughness of criminal liability of the collective entity, due to the new criminality, especially the economic and environmental crimes. It is of the utmost importance to operate a real shift in the current, traditional dogma, from its center in the man to the culpability and action concepts centered in the society. KEY WORDS: criminal liability; Common Law; Roman-Germanic branch. Adirson Antônio Glório de Ramos • 161 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Antecedentes históricos. 2.1. Babilônia. 2.2. Índia. 2.3. Direito hebreu. 2.4. Direito romano. 2.5. Os glosadores. 2.6. Os canonistas. 2.7. Os pós-glosadores. 2.8. Direito muçulmano. 2.9. Direito francês. 2.10. Direito português e brasileiro. 2.11. Contornos atuais. 3. Teorias da ficção, da realidade e do status. 3.1. Teoria da ficção. 3.2. Teoria da realidade. 3.3. Teoria do status. 4. A dogmática jurídico-penal. 4.1. Argumentos contrários à responsabilidade penal das pessoas jurídicas. 4.2. Argumentos favoráveis à responsabilidade penal das pessoas jurídicas. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas. 1. Introdução A máxima expressada por meio do brocardo latino societas delinquere non potest (a sociedade não pode delinqüir) prevaleceu soberana e majoritária por um longo tempo. Entretanto, o pensamento humano evoluiu e com ele o Direito. Esse brocardo latino foi assumido como um princípio na interpretação do direito penal, significando para a tradição germânica que não se pode ou não se poderia responsabilizar penalmente uma pessoa jurídica, uma vez que o juízo penal de condenação somente é afeto ao indivíduo como pessoa física, o que foi reforçado com a distinção entre pessoa física e pessoa jurídica (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 34). Atualmente, o entendimento de que à sociedade era inaceitável a sua punibilidade a título penal está ganhando novos contornos e juristas consagrados passam a admitir a responsabilidade penal da pessoa jurídica, antes reservada às searas do direito administrativo e do direito civil fazendo surgir um forte movimento com vistas à responsabilização penal da pessoa jurídica, principalmente no âmbito dos delitos econômicos e ecológicos. O tema é atual, bastando reportar à legislação estrangeira, em especial a entrada em vigor do novo Código Penal francês, a partir de 1994, quando se viu uma verdadeira responsabilidade das pessoas jurídicas ou morais. Cabe ressaltar ainda o anteprojeto suíço, as propostas de lei belga e canadenses em 1993 e a Recomendação 18 do Conselho Europeu ,de 1988. No Brasil, tem-se o disposto no art. 173, § 5º, da Constituição Federal. Na Alemanha, doutrinariamente foram publicadas, no período de 1993 a 1994, cinco monografias abordando o tema, além do crescente número de artigos publicados em revistas jurídicas (TIEDEMANN, 1999, p. 25). Sendo de ampla discussão na atualidade, a possibilidade de aplicação de sanções penais às pessoas jurídicas encontra duas correntes antagônicas. Os países de cultura jurídica romano-germânica, dentre os quais Alemanha, Itália, Espanha, Bélgica, Grécia, Suécia e Suíça, em que o princípio societas delinquere non potest, encontra-se fortemente sedimentado na doutrina, admite-se a punibilidade das pessoas jurídicas apenas administrativa ou civilmente, apesar do amplo debate que se tem travado em torno do assunto. Por outro lado, países como a França, Inglaterra, Irlanda, Estados Unidos e Austrália, em suma, nos países de origem anglo-saxônica em que vigora o Common Law, admite-se a punibilidade ou responsabilidade penal da pessoa jurídica. Nesses países tem-se o princípio societas delinquere potest. 162 • Direito Penal No entanto, esse antagonismo ou dualismo jurídico-criminal, é relativizado a partir do momento em que os sistemas se interagem ou se auto-influenciam. A título de exemplo, países de tradição romano-germânica como a Holanda, a França, a Finlândia e Dinamarca vêm admitindo a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sendo relevante mencionar que alguns países europeus têm previsão legal para tal tipo de responsabilidade. Portanto, são duas as correntes que discutem a possibilidade de aplicar ou não sanções penais às pessoas jurídicas. Nos países filiados ao sistema jurídico romano-germânico, por sinal a maioria, vige o princípio de que a sociedade não pode delinqüir, sendo inadmissível a sua punibilidade na seara penal, admitindo que ao ente coletivo cabe a aplicação de sanção somente de cunho administrativo ou civil. Por outro lado, nos países anglo-saxões e naqueles que receberam suas influências vige o princípio do Common Law, admite-se a responsabilização penal da pessoa jurídica (BITENCOURT,1999, p. 51). No Brasil a discussão teve início praticamente com o advento da Constituição de 1988 (art. 173, § 5º, e art. 225, § 3º) e da lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, as quais diante de muita controvérsia possibilitam responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas, o que em tese vai de encontro ao Direito alemão e italiano, os quais influenciaram a legislação penal brasileira. Observa-se que no Direito brasileiro a discussão em torno do tema também é divergente. Autores consagrados, verdadeiros destaques revelados pela doutrina brasileira sustentam com veemência a inconstitucionalidade da disposição contida no art. 3º da Lei nº 9.605/98, “[...] contestando que a Lei Fundamental de 1988, em seus artigos 173, § 5º, e 255, § 6º, tenha autorizado a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, e enfatizam que as pessoas morais (como gostam de designar os franceses) só se sujeitam a sanções administrativas” (SOUZA, 2004, p. 26), dentre os quais elenca-se René Ariel Dotti, Luiz Vicente Cernicchiaro, Miguel Reale Júnior,Luiz Réges Prado e José Cretella Júnor. Em oposição à tese pode-se relacionar publicistas de estirpe, dentre os quais José Afonso da Silva, Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, Pinto Ferreira e ambientalistas como Paulo Afonso Leme Machado e Vladimir Passos de Freitas (SOUZA, 2004, p. 26). O art. 173, § 5º, da Constituição preconiza que “[...] a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com a sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia em particular”, abrindo espaço para uma nova interpretação dogmática. Assim, a corrente que contesta a tese de que a atual Constituição consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica baseada no dispositivo constitucional conclui que não há que se confundir a responsabilidade da pessoa jurídica com a responsabilidade pessoal de seus dirigentes, tendo a Constituição somente condicionado a responsabilidade do ente coletivo à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza. Assim, a responsabilidade penal continua a ser pessoal, nos termos do art 5º, inciso XLV, da CF/88 (BITENCOURT, 1998, p. 68). Adirson Antônio Glório de Ramos • 163 Sobre os sistemas penais, nos países cujos sistemas se baseiam nos princípios do direito continental europeu está sedimentado o princípio societas delinquere non potest sendo, portanto, inaceitável a responsabilização penal da pessoa jurídica, admitindo-se somente a aplicação de sanções administrativas ou civis. Esse é o sistema adotado pela maioria dos países da Europa e da América Latina. Ao contrário, os países anglo-saxões e aqueles que receberam a influência do sistema admitem a responsabilização das pessoas jurídicas na seara penal. As questões pertinentes ao sujeito e à norma jurídica constituem o grande entrave para se admitir de forma plena a responsabilização do ente coletivo, fazendo com que a corrente doutrinária que se posiciona contrariamente ao instituto busque guarida na assertiva de que segundo a atual dogmática penal, a ação e a culpabilidade, bem como a função e a essência da pena são incompatíveis com a pessoa jurídica (BACIGALUPO,1998, p. 29-30). Nesse sentido, o tema adquire maior conflituosidade a partir do momento em que enxergamos como princípio basilar do direito penal a culpabilidade, centrada na imputabilidade, consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa, argumento daqueles que se posicionam de forma contrária à responsabilidade penal do ente coletivo, desprovido de vontade no sentido psicológico (SOUZA, 2004). Assim, os argumentos “[...] para não se admitir a responsabilidade penal das pessoas jurídicas resumem-se, basicamente, na incompatibilidade das pessoas jurídicas com os institutos dogmáticos da ação, da culpabilidade e da função e natureza da própria sanção penal” (BITENCOURT, 199, p. 52). A sociedade moderna vive uma escalada crescente da criminalidade em que a complexidade de formas e meios para se praticar um ato delituoso, seja no campo ambiental, industrial, tráfico internacional de drogas, crimes econômicos e lavagem ou branqueamento de dinheiro, conduz à dificuldade de se individualizar, para fins de responsabilização penal, a pessoa física que praticou o ato com a devida consciência da ilicitude do fato, levando-nos a crer que um novo direito penal, direcionado à responsabilização penal da pessoa jurídica, possa ser uma das soluções para o enfrentamento dessas modalidades criminosas. Nesse sentido, a sociologia nos ensina que a pessoa jurídica ou moral faz com que se crie um ambiente favorável, o qual incita as pessoas físicas ou materiais a praticarem delitos em benefício do ente coletivo. Assim, surge a idéia de não sancionar apenas a pessoa física, as quais podem ser trocadas ou substituídas por outras, mas também a pessoa jurídica utilizada ou beneficiada com a prática do ilícito, principalmente, num momento em que os delitos empresariais, ecológicos, contra o consumidor e aqueles envolvendo o crime organizado adquirem relevo. E não é por casualidade que o legislador europeu tem admitido, nos últimos 20 anos do século passado, algumas exceções ao dogma societas delinquere non potest, sobretudo em matéria fiscal e aduaneira. A realidade atual demonstra que a maior parte dos delitos da empresa ou socioeconômicos são cometidos com a ajuda de uma pessoa jurídica (TIEDEMANN, 1998, p. 27). Na prática jurídica, pode-se elencar 164 • Direito Penal como relevantes, no que concerne à responsabilização penal da pessoa jurídica, os delitos econômicos com destaque para os relacionados ao meio ambiente, perigos do produto ou do serviço e perigo do transportador (terrestre, aéreo e marítimo), bem como os delitos praticados no âmbito da empresa, relacionados à administração desleal, contra a segurança coletiva, contra a propriedade intelectual e o delito fiscal (BACIGALUPO, 1998, p. 27-28). Assim, nota-se que o direito penal tradicional, em face dos delineamentos da modernidade, mostra-se insuficiente perante as condutas ilícitas da pessoa jurídica. Entretanto, não se pode responsabilizar penalmente a pessoa jurídica de forma ampla e irrestrita, devendo-se ater a casos específicos e, nas situações em que o ilícito for praticado por pessoas ligadas à empresa (empregados ou prepostos) em benefício ou no interesse do ente coletivo e, por conseguinte, numa área perimetral da sua atividade, valendo-se, principalmente, do poderio econômico da pessoa jurídica, tendo como vítima a sociedade (SHECAIRA, 1998, p. 99-100). 2. Antecedentes históricos Numa breve visão histórica, verifica-se que da Idade Antiga à Idade Média predominaram as sanções coletivas impostas às tribos, comunas, cidades, vilas, famílias, etc., havendo, contudo, uma certa oscilação, ora tendente ao individualismo, ora ao coletivo. Num delineamento histórico do tema, cabe ressaltar que a maioria dos ordenamentos jurídicos antigos e o Direito romano, principalmente, não conheciam, a princípio, a figura da pessoa jurídica (BACIGALUPO, 1998, p. 42-43). Observa-se que a evolução do pensamento, seja no campo social seja no filosófico, reflete nos conceitos dogmáticos do Direito e, no direito penal, essa evolução acarretou no reconhecimento da responsabilidade individual, ou seja da pessoa física em detrimento da responsabilidade penal do ente coletivo (BITENCOURT, 1999, p. 52), sendo os conceitos construídos em torno do homem, pessoa natural, como sujeito de direito. 2.1. Babilônia O Direito da antiguidade adotou a forma de responsabilização coletiva em que cada cidade ou vila tinha o seu próprio mundo ou regras jurídicas, caracterizando-se pelo localismo (SHECAIRA, 1998). O Código de Hamurabi, escrito por volta de 1780 a.C. preconizava em suas leis: 21 – Se alguém arrombar uma casa, ele deverá ser condenado à morte na frente do local do arrombamento e ser enterrado; 22 – Se estiver cometendo um roubo e for pego em flagrante, então ele deverá ser condenado à morte; 23 – se o ladrão não for pego, então aquele que foi roubado deve jurar a quantia de sua perda; então a comunidade em cuja terra e em cujo domínio [for praticado o roubo] deve compensá-lo pelos bens roubados; Adirson Antônio Glório de Ramos • 165 24 se várias pessoas forem roubadas, então a comunidade deverá pagar uma mina de prata a seus parentes. Assim, nessa responsabilização coletiva, tem-se que a pena aplicada passava da pessoa do condenado atingindo uma coletividade de pessoas (SHECAIRA, 1998), ou seja, toda a comunidade, a qual deveria efetivar a indenização, uma vez que, não sendo identificado o autor do roubo, há que se presumir que qualquer integrante da comunidade possa ser o autor, advindo-se daí o entendimento da responsabilização de toda a coletividade. 2.2. Índia As legislações antigas tinham como características a influência da religião sobre as leis, chegando até mesmo à confusão. Na Índia, destaca-se o Código de Manu, o qual consagrava a aplicação da pena para além do condenado (SHECAIRA, 1998). Nota-se que a pena de morte era prevista para os crimes de falso testemunho, entretanto os seus efeitos ultrapassavam a pessoa do criminoso, atingindo toda a sua família, inclusive a geração futura (o nascituro). 2.3. Direito hebreu A lei hebraica estabelecia tratamento absolutamente igualitário aos culpados pela prática do delito, independentemente da condição social, política ou religiosa, observando-se, contudo, que tinha características baseadas no sagrado, no religioso. Tem-se que a primeira punição coletiva surgiu com Adão e Eva em razão da prática do pecado originário no Jardim do Éden (Gênesis, cap. 3, versículos 16-24). O dilúvio, forma punitiva destinada àqueles que não cumpriram os mandamentos de Deus é outra forma de punição coletiva (Gênesis, cap. 6, versículos 5-7). Havia penas que atingiam até a quarta geração do condenado (Êxodo, cap. 34, versículo 7). Sodoma e Gomorra também são exemplo de penas coletivas na lei hebraica (SHECAIRA, 1998, p. 61-62). 2.4. Direito romano Mesmo reconhecendo alguns direitos subjetivos a alguns determinados agrupamentos de pessoas, a pessoa jurídica dotada de personalidade, como é atualmente concebida, não era conhecida no Direito romano. No entanto, já se distinguiam direitos e obrigações desse agrupamento ou conjunto de pessoas (corporações – universitas) e dos seus membros (singuli). O município era considerado a universitas de maior importância, tendo Ulpiano afirmado que o ato do coletor de impostos, ludibriando os munícipes ou contribuintes, locupletando-se às custas do alheio por meio de cobranças indevidas (desvio ou excesso de exação) poderia acarretar na responsabilização do município por meio da actio de dolus malus. Assim, observa-se que no Direito romano, lato sensu, teve início a formação do entendimento da responsabilidade delitiva da corporação, 166 • Direito Penal considerada pura ficção, contudo ainda não se falava em responsabilidade penal. Assim, em razão da sua natureza ficta, as pessoas coletivas não podiam ser responsabilizadas criminalmente (SHECAIRA, p. 29, 1998). 2.5. Os glosadores Os avanços econômicos, sociais e políticos do início da Idade Média fizeram com que as corporações adquirissem maior importância, fomentando, por parte dos glosadores, “[...] primeiros comentaristas do direito romano na Idade Média” (SHECAIRA, p. 31, 1998), o debate inicial sobre o tema. Nessa época os Estados começam a ser demandados em face dos excessos que cometiam contra a ordem social. Mesmo conhecendo a figura da corporação como sendo a união de pessoas titulares de direitos, os glosadores não formaram um conceito de pessoa jurídica, entretanto admitiam a sua capacidade delitiva, quando por meio do conjunto de seus membros praticava um ilícito. Assim, os glosadores admitiam a responsabilidade civil e penal dessas corporações ou universitas. Para os glosadores, a universitas não se constituía numa entidade distinta dos seus integrantes, considerando-a ou identificando-a como sendo a totalidade de seus membros. Os atos e vontade de seus membros eram coincidentes aos atos e vontade da entidade e os ilícitos praticados pelos seus integrantes, quando agiam em seu nome, eram considerados como infrações das coletividades (SHECAIRA, 1998, p. 31), passando a ser admitida a possibilidade de se responsabilizar penal e criminalmente as pessoas coletivas. Conforme assevera Shecaira (p. 31, 1998): “Essa conclusão aflorou não só devido à distorcida interpretação dos textos romanos, mas também em face de, nesse período, serem numerosas as punições coletivas aos municípios, ou cidades, a quem eram retirados os privilégios, destruídas as fortificações, etc.”. Na Idade Média, os glosadores limitaram-se a reconhecer à pessoa jurídica certos direitos e a admitir sua capacidade delitiva em face da prática de uma ação delituosa pela maioria de seus membros, acarretando assim, num delito próprio da corporação (BACIGALUPO, 1998, p. 46). Para os glosadores, a universitas respondia por seus atos nas searas cível e penal, sendo portanto, responsabilizada quando a ação era tomada por decisão da totalidade de seus integrantes. 2.6. Os canonistas Os canonistas, no período medieval, admitiram a responsabilização penal do ente coletivo, entretanto, observa-se que o entendimento expressava o pensamento da Igreja Católica e afirmavam que os direitos não pertenciam à pessoa física ou fiéis, mas sim a Deus. A inspiração para tal afirmativa parece ter por base o trecho bíblico de Romanos 13:1: “[...] todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas”. Assim, os canonistas elaboraram uma teoria que atendesse aos interesses da Igreja, sustentando que os integrantes ou membros da entidade Adirson Antônio Glório de Ramos • 167 religiosa não são os detentores de direitos, mas Deus, por meio de seu representante na terra, surgindo nesse ponto a figura do Papa. Os canonistas aceitam a capacidade jurídica da universitas elegendo a Igreja como sendo a corporação de maior importância, contudo elaboram uma teoria com o escopo de resguardar os interesses da Entidade e passam “[...] a sustentar que os titulares dos direitos eclesiásticos não são os membros da comunidade religiosa, mas Deus, na figura de seu representante terrestre” (BITENCOURT, 1999, p. 54), o que veio “[...] cristalizar o conceito de instituição eclesiástica, distinto do conceito de corporação adotado pelos glosadores, concebendo-a como pessoa sujeito de direitos” (BITENCOURT, 1999, p. 54), por ficção, dotada de capacidade jurídica. Essa corrente de pensamento não foi unânime, haja vista que encontrou no Papa Inocêncio IV o principal opositor, ao preconizar que “[...] a pessoa jurídica era uma entidade incorpórea, abstrata, não passando de uma ficção e, sendo assim, incapaz por si mesma de querer e atuar” (SHECAIRA, 1998, p. 33), desprovida, portanto, de capacidade delitiva criminal e que por ser sem alma, não poderia ser excomungada. A “[...] concepção de pessoa ficta foi adotada pelos decretos papais seguintes, consagrada no Concílio de Lyon (1245) e na coleção de decretos de Jorge IX” (BITENCOURT, 1999, p. 55), sendo os canonistas os “[...] pais espirituais da moderna concepção de corporação”, cuja teoria carrega consigo a origem do dogma societas delinquere non potest. A partir dos canonistas, “[...] a pessoa jurídica passa a ser considerada uma pessoa ficta, cujo entendimento chega até nossos dias” (BITENCOURT, 1999, p. 55), assemelhando a teoria elaborada pelos canonistas à teoria da ficção do século XIX, concebida por Savigny. Como os glosadores, os canonistas admitiam a prática de um delito por parte da corporação desde que existisse uma ação conjunta de todos os seus membros. Contudo, foram os canonistas os primeiros a distinguir claramente a universitas de seus membros, diferenciando a responsabilidade do ente coletivo e das pessoas físicas que a integram (BACIGALUPO, 1998, p. 51). Mas o entendimento no sentido de permitir ou aceitar a responsabilização do ente coletivo volta a ganhar notoriedade com “[...] a necessidade de punir certas corporações religiosas, cujo poderio se tornara inquietante” (SHECAIRA, 1998, p. 33). O pensamento canonista prevaleceu até fins do século XVIII, apesar dos pós-glosadores admitirem a capacidade delitiva da pessoa ficta. 2.7. Pós-glosadores Assim como os canonistas, os pós-glosadores admitiram a universitas como sendo uma pessoa fictícia, contudo, entenderam ser ela capaz de praticar crimes. A interpretação atribuída aos primeiros glosadores não foi interrompida, haja vista que os pós-glosadores sofreram forte influência do direito canônico na concepção que tinham da universitas. “Bártolo, o mais importante autor para esse estudo, passou a dar um fundamento racional para a imputação às entidades coletivas do cometimento 168 • Direito Penal de um crime. Para ele, se a entidade coletiva, filosoficamente, é uma ficção, ela é uma realidade jurídica” (SHECAIRA, 1998, p. 32), sendo, portanto, capaz de querer e atuar, tornando-se possível, juridicamente, imputar-lhe criminalmente uma conduta ilícita. Assim, as associações seriam penalizadas como cúmplices ou como autoras principais dos atos delituosos, podendo a pena ser de natureza pecuniária, confisco, perda de privilégios e direitos de associação e, para os delitos de maior gravidade, poder-se-ia chegar à pena de dissolução, semelhante à pena de morte (SHECAIRA, 1998, p. 32). O delito praticado pela corporação seria considerado próprio quando a ação estivesse relacionada (stricto sensu) com a atividade ou deveres do ente coletivo, caso em que a corporação seria responsabilizada. No entanto, sendo o delito impróprio, ou seja, naquele em que a ação somente pudesse ser concretizada por meio de um representante, o responsável seria a pessoa física, desobrigando a universitas de qualquer responsabilidade (BITENCOURT, 1999, p. 55). No fim da Idade Média, em face da corrente iluminista e influência dos jusnaturalistas (Direito natural), o autoritarismo do Estado e o poder de influência das corporações, forçados pelos ideais de liberdade e conquistas democráticas da Revolução Francesa, sofreram uma queda considerável, acarretando a modificação do pensamento, ou seja, uma nova concepção filosófica do indivíduo, do Estado e da sociedade, passandose à aceitação somente da responsabilidade individual, tornando incompatível a responsabilidade do ente coletivo. Nesse sentido, Bitencourt (1999, p. 55) afirma que “[...] a responsabilidade coletiva é incompatível com a nova realidade de liberdade e de autodeterminação do indivíduo e que representam conquistas democráticas da Revolução Francesa”. Observa-se que a consagração do princípio societas delinquere non potest teve um cunho mais político do que jurídico, haja vista que a monarquia absoluta teve necessidade de extirpar todo o poder político e os direitos daqueles que poderiam competir com o Estado, bem como o Iluminismo, que admitia, segundo determinados critérios, a limitação das liberdades do indivíduo pelo Estado, ensejando que fosse desnecessária a responsabilização penal das corporações (BITENCOURT, 1999, p. 57). 2.8. Direito muçulmano No direito muçulmano, também de tradição religiosa, a responsabilidade não poderia ser considerada como sendo coletiva, haja vista que considerava a pessoa física como sendo o principal responsável pela conduta delituosa e, portanto, quem deveria ser punido, apesar da sua família contribuir de forma solidária para atenuar a pena. Diante da prática de um crime de homicídio, por exemplo, a comunidade não respondia com a imediata prisão do criminoso, haja vista que o patriarca da família recebia a responsabilidade de procurar a família da vítima para realizar uma espécie de composição. Por intermédio dessa composição, a família do autor indenizaria a família da vítima, o que atenuava ou abrandava a reprovação prisional. O mesmo Adirson Antônio Glório de Ramos • 169 ocorria quanto à prática de homicídios não intencionais ou culposos em que as indenizações eram “[...] pagas pelo clã do causador da morte” (SHECAIRA, 1998, p. 34). Observa-se, portanto, que o cerceamento da liberdade não é a razão primeira da pena, mas a busca pela indenização, sendo que a sanção ultrapassava o autor do delito, haja vista que a família, uma espécie de instituição coletiva, por meio da indenização à família da vítima poderia minimizar a reprimenda social e, até mesmo, impedir a prisão do criminoso. 2.9. Direito francês Na França, aplicavam-se penas coletivas para os crimes cometidos por comunidades. Nota-se que o sistema vigorou até a Revolução Francesa, oportunidade em que a responsabilidade passou a ser individual (SHECAIRA, 1998, p. 36). Tradicionalmente, o Direito francês não admitia a responsabilidade penal da pessoa jurídica, entretanto, com o advento do novo Código Penal francês, em 1º de março de 1994, passou-se a admitir a sanção penal do ente coletivo, cabendo ressaltar que a Constituição do País não coloca nenhum impedimento à aplicação de tal instituto. Assim, o ordenamento jurídico francês permite a responsabilização penal das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, exceto o Estado e as pessoas jurídicas que se encontram em fase de liquidação, uma vez que a sanção penal se extingue com a liquidação da empresa. 2.10. Direito português e brasileiro No Direito português, apesar de admitir a aplicação de sanções às pessoas jurídicas, não havia uma lei regulamentadora da responsabilidade penal dos entes coletivos. Somente “[...] no século XVIII, por ocasião do Projeto de Código Criminal de 1789, de autoria de Pascoal de Melo Freire” (SHECAIRA, 1998, p. 36) estabeleceu-se a capacidade para delinqüir dos colégios, corporações e cidades e atribuiu a prática do delito à universitas quando todos ou a maior parte de seus representantes o cometerem, bem como “[...] ao falar das sedições ou tumultos, manda imputá-los à cidade, sempre que esses crimes forem cometidos pela totalidade ou maioria de seus cidadãos” (SHECAIRA, p. 37, 1998) penalizando-a com a privação de honras e privilégios, além de sujeitá-la ou subordiná-la à cidade ou vila vizinha. Com a Revolução Francesa e o pensamento iluminista, bem como com a Constituição portuguesa de 1822, a pena no Direito português passa a ter o caráter pessoal, ou seja, proporcional ao delito e não passando da pessoa do delinqüente, tornando inaceitável a responsabilização penal da pessoa jurídica. “Na América do Sul, antes do descobrimento, chegou-se a adotar a responsabilidade coletiva entre os povos indígenas” (SHECAIRA, p. 37, 1998) dentre os quais o índio brasileiro, movido ou impulsionado pela responsabilização coletiva da família, aldeia, clã ou tribo em face da organização social existente. O Brasil, tendo sido descoberto pelos portugueses, adota o direito penal das Ordenações e, assim como em Portugal, não havia que se 170 • Direito Penal falar em responsabilização do ente coletivo. Shecaira (p. 39, 1998) afirma que: Assim, pensamos que até 1988 não se pode falar em responsabilidade da pessoa jurídica no direito brasileiro. Tal conclusão decorre não só de um estudo sistemático das normas penais em vigor no Brasil, mas da própria análise contextual do sistema de produção aqui predominante, a partir da segunda metade do século XIX, que consagrava o individualismo e as idéias libertárias trazidas ao mundo de forma mais enfática pela Revolução Francesa de 1789. Somente em 1988, por meio do art. 173, § 5º, e art. 225, § 3º, da Constituição Federal e da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, é que vamos encontrar a possibilidade de responsabilização penal do ente coletivo. O artigo 173, § 5º, e art. 225, § 3º, da Constituição Federal preconizam: Art. 173 - Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. [...] § 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. [...] § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, em seu art. 3º define que: Art. 3º - As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único: a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato. Adirson Antônio Glório de Ramos • 171 Salienta-se que a nova lei ambiental estabeleceu em seu artigo 21 que as pessoas jurídicas somente podem sofrer cumulativa ou alternativamente as penas de multa, restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade. As penas restritivas de direito são a suspensão parcial ou total das atividades, interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, proibição de contratar com o poder público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (art. 22). Para as penas de prestação de serviços à comunidade, o legislador estabeleceu como sendo aplicáveis o custeio de programas e de projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas, manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas (art. 23). Segundo a corrente doutrinária seguida por Robaldo (1999, p. 96), tais dispositivos “[...] são de conteúdo administrativo e não penal, posto que não se compatibilizam com a dogmática penal, em especial, quanto à culpabilidade, aos fins da pena e ao direito penal mínimo, isto é, ao direito penal da ultima ratio”. Nesse sentido, principalmente se levado em consideração o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal, a sua adoção não acarretará uma maior efetividade em termos práticos, haja vista que os bens jurídicos a se proteger já estão devidamente tutelados pelo direito civil e administrativo “[...] mais eficazes e de aplicabilidade menos burocráticas, enquanto a responsabilidade física dos responsáveis pelas pessoas fictícias já existe no sistema penal pátrio” (ROBALDO,1999, p. 96). Observa-se que o advento da Constituição de 1988 e da Lei nº 9.605/98 não pacificou o assunto na prática jurídica, haja vista que, na esteira do argumento de que os mencionados dispositivos são de conteúdo administrativo e civil, não se compatibilizando com os princípios da atual dogmática jurídico-penal, não autorizam a responsabilização penal do ente coletivo. Assim, estabelece-se uma tensão entre os que admitem que, a partir da Carta Magna de 1988 e da mencionada lei, cristalizouse no ordenamento jurídico pátrio a responsabilização penal do ente coletivo e os que não admitem tal possibilidade, em face da dogmática penal, a qual foi construída para a pessoa natural, dotada de vontade psicológica. Abordando o assunto no campo prático, tem-se o exemplo de uma madeireira envolvida num inquérito policial versando sobre a aquisição e transporte irregular de toras de madeira, que, em tese, constitui o delito tipificado no art. 46 da Lei nº 9.605/98, cuja pena é de detenção cumulativa com a multa. Nesse caso como efetivar a sanção? Aplica-se a detenção e em seguida a substitui pela pena restritiva de direitos ou multa? (ROBALDO, 1999, p. 102). Robaldo (p. 102, 1999) “[...] entende que esta solução é inaplicável à espécie, posto que afronta o princípio da legalidade. Em se tratando de responsabilidade física, tal não encontra nenhum óbice.” 2.11. Contornos atuais Efetuada uma visão histórica do instituto da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, é relevante abordar a situação em que se encontra a discussão do 172 • Direito Penal tema, uma vez que, tudo demonstra, o Direito caminha no sentido de plenificar a responsabilidade penal do ente coletivo. No final do século XIX e início do do século XX, a humanidade vivenciou um intenso desenvolvimento da economia e, por conseguinte, do direito penal econômico, fazendo com os juristas viessem a refletir com maior ênfase em torno da responsabilização penal do ente coletivo. Essa reflexão, até de certa forma mais urgente, veio com a crescente criminalidade moderna em que a utilização das pessoas jurídicas, muitas criadas para encobrir condutas ilícitas, levando à necessidade de se penalizar tais condutas. Essa necessidade de penalizar a conduta criminosa da pessoa jurídica fortaleceu-se após a Primeira Grande Guerra, uma vez que o Estado tornou-se mais intervencionista, agindo diretamente na economia, regulando a produção e circulação de produtos e de serviços, bem como prevendo sanções mais graves nos casos de violações das regras impostas e, em contrapartida, as empresas passaram a ser as grandes violadoras das normas ou determinações estatais. Assim, “[...] o reconhecimento da responsabilidade da pessoa jurídica passa a ter atenção dos juristas continentais, não mais se circunscrevendo ao pensamento do Common Law” (SHECAIRA, 1998, p. 42). Numa rápida visão do mundo na atualidade, tem-se que a Inglaterra, anteriormente sob a forte influência da teoria de Savigny não admitia a responsabilidade criminal das pessoas jurídicas. Entretanto, atualmente o direito inglês admite a punição das pessoas jurídicas com penas pecuniárias, dissolução, apreensão e limitação de atividades, constituindo-se num dos modelos mais antigos de responsabilidade penal das pessoas jurídicas, sendo firme a idéia da empresa como sujeito de direito penal (BACIGALUPO, 1998, p. 330). Nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Escócia e países do Common Law vige o princípio societas delinquere potest. Na Holanda a legislação permite a responsabilidade penal tanto da pessoa física quanto da pessoa jurídica, podendose aplicar as penas de multa, confisco de objetos, publicidade da decisão judiciária, retirada de certos objetos de circulação, paralisação total ou parcial das atividades da empresa por um ano, o seqüestro de bens, a privação das vantagens obtidas com a infração, a perda de incentivos e o pagamento de uma caução. Na Dinamarca não há previsão legal para a responsabilização da pessoa jurídica, contudo leis esparsas permitem a aplicação do instituto, sendo o Ministério Público o responsável (titular) pelo início do processo (SHECAIRA, 1998, p. 42-65). Em Portugal, a doutrina inclina-se com vistas a não admitir a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, contudo a jurisprudência tem admitido o instituto, desde que haja prévia cominação legal. Na Áustria e no Japão aplica-se o instituto. Na China, como nos demais países socialistas, a doutrina baseia-se no fato de que as pessoas jurídicas têm uma natureza socialista cujos interesses são os mesmos do Estado, motivo pelo qual não há que se imaginar a prática de um crime contra o interesse comum, mas ocorrendo essa violação do interesse comum, a legislação aceita a responsabilização do ente coletivo. (SHECAIRA, 1998, p. 42-65). Adirson Antônio Glório de Ramos • 173 Na América Latina a regra é o princípio societas delinquere non potest, exceto Cuba e México. O direito alemão não admite a responsabilização da pessoa jurídica, firmando a doutrina no entendimento de que inexiste reprovação éticosocial de uma coletividade. Na Suíça a responsabilidade, sustentada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, é pessoal, admitindo sancionar o ente coletivo apenas no plano do direito penal administrativo. Na Itália, por força de dispositivo constitucional, a responsabilidade criminal é individual. Na Bélgica e na Espanha vige a irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica (SHECAIRA, 1998, p. 42-65), excluindo-se, portanto, qualquer possibilidade de sanção penal às pessoas jurídicas, apesar de admitir-se a responsabilização do ente coletivo na seara administrativa. O direito penal espanhol segue ancorado no princípio tradicional de que somente as pessoas físicas podem cometer delitos e de que somente elas podem ser sancionadas em sentido estrito (MIR PUIG,2004, p. 6). Na Bélgica, apesar da intensa discussão do tema na doutrina jurídico-penal sobre a possibilidade de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, a doutrina tradicional segue firme no sentido de negar tal responsabilidade, sob o argumento de que a pessoa jurídica é incapaz de manifestar o elemento moral da infração (dolo ou culpa), sendo desprovida de capacidade de culpabilidade. Na atualidade, os legisladores e a jurisprudência têm utilizado três modelos diferentes para resolver a questão da responsabilização penal das pessoas jurídicas. O modelo seguido pelos países do Common Law e que tem recebido a adesão de países do Civil Law reconhece a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Um outro modelo nega a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, o qual é seguido pela maioria dos países da Europa continental. Uma terceira via ou modelo é o dominante na Alemanha e outros países, os quais adotam uma posição intermediária, admitindo que as pessoas jurídicas possam sofrer sanções na seara do chamado direito penal administrativo, a qual consiste numa multa administrativa e, não penal. 3. Teorias da ficção, da realidade e do status Dentre as teorias que tratam da natureza da pessoa jurídica, elenca-se as teorias da ficção, da realidade e do status, por considerar-se serem as de maior relevo no que concerne ao tema em estudo. 3.1 Teoria da ficção Segundo a teoria da ficção, concebida por Savigny, só o homem é sujeito de direitos, uma vez que sendo as pessoas jurídicas de existência fictícia, irreal e abstrata, desprovida de vontade e de ação, são incapazes de delinqüir, impondo assim, a concepção romanista e canônica. A idéia central da argumentação funcionalista-utilitarista de Savigny é a de que só o homem é capaz de ser sujeito de direitos. Contudo, o ordenamento jurídico modificou 174 • Direito Penal esse princípio, seja para retirar essa capacidade, seja para ampliar tal capacidade a entes fictícios, incapazes de vontade e que são representados como também são representados os incapazes. A pessoa jurídica é uma criação artificial da lei para exercer direitos patrimoniais, sendo tão somente sujeitos capazes a possuir por serem ficticiamente criadas para o alcance de fins especiais. Savigny coloca a pessoa.jurídica não como pessoa, mas como meios para certos fins jurídicos. A existência ou o surgimento de uma pessoa jurídica está sujeito à autorização do poder estatal, seja expresso ou tácito, o qual sob a afirmativa de que há um melhor caminho para se chegar a um determinado fim poderia destruí-la por razões políticas ou econômicas (interpretação funcional-utilitarista), mesmo que não tenha cometido nenhum delito, mas em razão do interesse da coletividade.(CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 120-122). Savigny, discordando da corrente de Zacharie e Feuerbach, “[...] segundo a qual uma vez que a existência da pessoa jurídica se deve a um privilégio concedido pelo Estado, tal concessão se deu para um fim ‘justo’ e, uma vez cometido um delito, a pessoa jurídica perderia sua personalidade e, desde este fato, não poderia ser enquanto tal castigada” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 122), parte para explicar a distinção entre o Direito Penal e o Direito Civil. O Direito Penal considera “[...] o homem enquanto ser livre, ao contrário da pessoa jurídica que seria um ser abstrato tão-somente capaz de possuir e que teria como fundamento as determinações de um número de representantes que, de uma ficção, consideramos como sendo suas próprias determinações” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 122), gerando efeitos voluntaristas somente no campo do direito civil. Savigny nega qualquer reconhecimento de uma capacidade delitual às pessoas jurídicas, primeiro por um argumento teleológico – de que as pessoas jurídicas são constituídas em face de certas finalidades –, bem como pelo fato de ser-lhes reconhecida uma capacidade de direito restrita o que, para ele, não implica, em momento algum, no reconhecimento de uma capacidade de agir: afinal, quem age são os homens e individualmente devem responder pelos crimes praticados – ainda que com reflexos cíveis no patrimônio da pessoa jurídica. 3.2 Teoria da realidade A teoria da realidade, concebida por Gierke, baseia-se em entendimento antagônico a Savigny, uma vez que considera a pessoa jurídica não como um ser artificial, criado pelo Estado, mas um ente dotado de personalidade real, independente daqueles que a integram. Assim, para Gierke a pessoa coletiva é dotada de vontade própria, capacidade de ação e, portanto, possui capacidade delitiva. Seria uma realidade própria de uma pessoa jurídica, diferente da pessoa natural, constituindo uma nova fundamentação dogmática. A teoria da realidade objetiva de Gierke também chamada orgânica ou da vontade real, parte de base diametralmente oposta à da ficção. Pessoa não é somente o homem, mas todos os entes dotados de existência real. Os seguidores da teoria Adirson Antônio Glório de Ramos • 175 sustentam que as pessoas jurídicas são pessoas reais, dotadas de uma real vontade coletiva, devendo ser equiparáveis, como seres sociais que são, às pessoas físicas .(CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 123-125), sendo, portanto, dotadas de corpo e alma, podendo expressar a sua vontade. 3.3 Teoria do status Segundo Jellinek a personalidade, “[...] ultrapassando qualquer leitura moral, seria um status, uma relação do indivíduo com o Estado – em face do Estado – por este concebida” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 125). “Como membro do Estado, o homem, para Jellinek, ‘em geral’ seria sujeito de direito, seria pessoa, porque dotado de capacidade para participar na tutela jurídica” .(CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 126). O Estado cria a personalidade. “Enquanto Savigny compreende a personalidade do indivíduo a partir de uma liberdade moral, Jellinek radicaliza o argumento positivista e reduz sua verificação à concessão estatal” (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 126). Como exemplo, o escravo, homem não dotado de personalidade, pois não é sujeito de direitos, mas um sujeito de dever. A personalidade é um status que pode ser ampliado ou diminuído conforme as leis ou atos que modifiquem o Direito. E isso levaria a personalidades mais amplas entre os indivíduos, sem que seja ferido o princípio constitucional da igualdade. Haveria desigualdade somente se, frente às mesmas condições objetivas e subjetivas, um indivíduo tivesse sua personalidade reconhecida como mais vasta que a de outrem .(CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 126). Numa leitura de Jellinek, Chamon Júnior (2006, p. 127) afirma que: Não somente os indivíduos podem ser sujeitos de direito, enfim, dotados de personalidade enquanto capacidade de poder ser titular de direitos (capacidade jurídica). Partindo da noção de que cada sujeito de direitos deve possuir uma vontade, e que o ordenamento jurídico pode também criar organizações juridicamente reguladas, aprofunda no sentido de que a vontade emanada de uma pluralidade de indivíduos não se trataria de um “vínculo fictício”, mas formaria uma unidade intrínseca. Segundo o autor, Gierke é retrabalhado no sentido de interpretar o Estado tanto como organismo quanto como pessoa, reconhecendo-se a sua personalidade no mesmo momento em que “[...] o reconhecêssemos como dotado de uma vontade unitária diversa das individuais que se refeririam aos súditos que constituiriam o próprio Estado. Assim, o Estado, ao criar seu próprio ordenamento, se afirmaria enquanto sujeito de direito”(destaques do autor) (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 127). 4. A dogmática jurídico-penal Inicialmente cabe ressaltar que a grande resistência ou dificuldade para admitir de forma pacífica, ou pelo menos com maior amplitude ou adesão, a responsabilização penal da pessoa jurídica encontra-se nos conceitos de culpabilidade, centrada na 176 • Direito Penal imputabilidade, consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa, em suma, no próprio conceito de ação. Portanto, o argumento daqueles que se posicionam de forma contrária à responsabilidade penal do ente coletivo, por sinal, a maioria, é a assertiva de que somente o ser humano ou pessoa natural é dotado de capacidade de ação e vontade no sentido psicológico e que a culpabilidade está centrada numa reprovação éticomoral, que não pode ocorrer em relação às pessoas jurídicas e que o ente coletivo não pode ser destinatário da sanção penal, em face da sua finalidade: preventiva e retributiva. Nessa linha doutrinária, as dificuldades da dogmática penal tradicional para acolher a responsabilidade penal das pessoas jurídicas reside no conteúdo das noções fundamentais da doutrina penal: ação, culpabilidade e capacidade penal. Tem-se que a ação sempre estará ligada ou relacionada a um comportamento humano e a culpabilidade ou culpa, adquire o significado de uma reprovação ética ou moral, incompatível com a pessoa jurídica, as quais não podem ser destinatárias ou sujeitos passivos de penas criminais, em face da sua finalidade preventiva e retributiva (TIEDEMANN,1999, p. 36). O primeiro ponto dogmático levantado por Tieldemann (1999, p. 36) é a capacidade de agir criminosamente da pessoa jurídica. Argumenta o autor no sentido de que se uma pessoa jurídica tem capacidade para contratar, torna-se sujeito de obrigações e, assim, é ela quem pode violar as regras obrigacionais estabelecidas no contrato, podendo, portanto agir criminosamente. Outro aspecto comentado pelo autor é o fato de no direito econômico existirem ilícitos cuja prática é exclusiva da pessoa jurídica, por exemplo, os crimes contra a livre concorrência. Os opositores da responsabilidade penal do ente coletivo contra argumentam no sentido de que não se pode imputar a ação de uma pessoa natural a pessoa moral, uma vez que a punibilidade do agente somente pode recair sobre aquele que pratica a ação delituosa, segundo características pessoais previstas no tipo legal. Contudo, há ordenamentos jurídicos em que, inclusive o brasileiro, inserido na teoria do concurso de agentes está o princípio da comunicabilidade das circunstâncias, o qual estabelece uma solidariedade penal entre o agente pessoa física e a pessoa jurídica beneficiada com a prática do crime. Assim, a pessoa jurídica tem vontade e capacidade de agir e reagir por seus órgãos, sendo suas ações e omissões atos da pessoa jurídica, possuidora de vontade própria, que na maioria das vezes, independe da vontade dos seus dirigentes (política de empresa). Assim, as pessoas jurídicas têm capacidade de vontade e de ação (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 90-91). O segundo ponto é a capacidade de culpa da pessoa jurídica. Dissertando sobre o assunto, Araújo Júnior (1999, p. 91 – 92) acentua que: A admissão da capacidade de agir conduz, necessariamente, à da capacidade de culpa. Podemos entretanto agregar que a teoria do risco da empresa, conseqüente da culpa na própria organização e atuação legitima a responsabilidade penal da Adirson Antônio Glório de Ramos • 177 pessoa jurídica e justifica a atribuição a ela, cumulativa ou isoladamente, do crime cometido por seus representantes em proveito da empresa. É esta a teoria da vantagem econômica, que fundamenta o juízo de reprovação pelo crime. A corrente oposicionista baseia-se no fundamento moral da reprovabilidade, afirmando que a pessoa moral não tem capacidade de responsabilidade moral e que o juízo de reprovação sobre suas ações seria fundado em algo que o Direito Penal tradicional não reconhece, ou seja, imputar a uma pessoa jurídica a culpa de uma pessoa física. Nesse caso, a solução seria dada pelas teorias da co-participação e da comunicabilidade das circunstâncias (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 93). Os opositores ainda apresentam o argumento de que as pessoas jurídicas não têm capacidade para serem sujeitos passivos ou destinatárias de penas criminais, uma vez que não são intimidáveis, por serem desprovidas de consciência e, portanto, incapazes de sentir as conseqüências da pena, bastando, tão somente, penas de caráter patrimonial ou pecuniário. Cabe salientar ainda que o ente coletivo não é reeducável ou ressocializável, não havendo como proporcionar-lhe a integração social. Araújo Júnior (1999, p. 93) argumenta no sentido de que esta “[...] é uma estrutura de pensamento antiga, que gerou uma dogmática clássica, dedutivo-ontológica, absoluta, ahistórica, de caráter metafísico, alheia às realidades socioculturais do crime”, sendo que o caráter retributivo e intimidativo da pena já não prospera perante o direito penal moderno, o qual adotou um conceito funcional de prevenção geral e especial positiva. Na atualidade, a concepção teórica do direito penal mudou, o qual não tem mais por missão fazer justiça, compensando a culpa com a pena, num caráter meramente metafísico ou teleológico. O direito penal atual tem por finalidade o funcionamento da sociedade, por meio da adoção de um conceito funcional de prevenção geral e especial positiva, abandonando a idéia de que o autor do delito precisa sofrer para emendar-se ou arrepender-se. O direito penal tem por missão “[...] reforçar no âmbito da cidadania a idéia de vigência, utilidade e importância, para a convivência social, da norma violada pelo criminoso” (ARAÚJO JÚNIOR,1999, p. 94) e, para a consecução de tal objetivo, pouco interessa se o violador da norma é uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica. O direito penal se baseia na culpabilidade que, por sua vez, é centrada na imputabilidade, na consciência da ilicitude do fato e inexigibilidade de conduta diversa. Nesse sentido, no que pertine à dogmática jurídico-penal, tem-se argumentos contrários e a favor da responsabilização penal das pessoas jurídicas. É evidente que uma pessoa jurídica não pode realizar propriamente nenhum dos elementos que exige a dogmática da teoria geral do delito, da forma consagrada nos países do Civil Law, haja vista que esta teoria vê o delito como sendo uma conduta humana e a pessoa jurídica não pode realizar nenhuma conduta humana, sequer pode atuar por si mesma. Sendo assim, a pessoa jurídica não pode agir com voluntariedade e dolo. A teoria do delito, elaborada segundo os atuais contornos da 178 • Direito Penal dogmática penal não é a única possível sob o um ponto de vista lógico. Do mesmo modo que temos desenvolvido um conceito do delito como obra do homem ou da pessoa física, podemos construir dentro de uma lógica possível, outro conceito de delito recepcionando ou permitindo a imputação penal aos entes coletivos em razão da atuação de determinadas pessoas físicas (MIR PUIG, 2004, p. 8). É evidente que uma pessoa jurídica é uma criação do direito, sendo, portanto, incapaz de atuar e agir por si mesma, uma vez que é desprovida de consciência e de senso de responsabilidade, necessitando de uma pessoa física que aja e pense em seu nome (MIR PUIG, 2004, p. 9 - 10). É o que ocorre com o recém-nascido e com o absolutamente incapaz, por exemplo, legalmente representados, têm capacidade jurídica sendo, portanto, detentores de direitos e de obrigações. 4.1 Argumentos contrários à responsabilidade penal das pessoas jurídicas O estudo da função do direito penal é um dos fortes argumentos daqueles que se opõem à responsabilização penal do ente coletivo. O direito penal tem função éticosocial, uma vez que visa a tutela dos valores ou bens jurídicos vitais da sociedade e do indivíduo e preventiva, na medida em que protege o comportamento humano daqueles que buscam a construção positiva da vida em sociedade, garantindo segurança e estabilidade ético-social e, reage, valendo-se da pena, contra o rompimento da ordem ou violação do ordenamento jurídico, o que na realidade, vai limitar a liberdade do indivíduo na vida comunitária (BITENCOURT, 1999, p 57 – 58). Forte argumento contrário reside no fato da pessoa jurídica não ter capacidade de ação, sendo que todos os seus atos ou atividades, lícitas ou ilícitas, são realizadas por intermédio de uma pessoa natural ou física, ou seja, para o direito penal somente o homem é dotado de capacidade de ação. Tem-se que a doutrina penal adota a teoria finalista da ação, a qual tem como principal criador Welzel e, conforme acentua Jesus (1995, p. 205): A ação é uma atividade final humana. Partindo disso, Welzel afirma que a ação humana é o exercício da atividade finalista. É, portanto, um acontecimento finalista não somente causal. A finalidade, diz ele, ou atividade finalista da ação, se baseia em que o homem, consciente dos efeitos causais do acontecimento, pode prever as conseqüências de sua conduta, propondo, dessa forma, objetivos de distinta índole. Conhecendo a teoria da causa e efeito, tem condições de dirigir sua atividade no sentido de produzir determinados efeitos. A causalidade, pelo contrário, não se encontra ordenada dessa maneira. Ela é cega, enquanto a finalidade é vidente. Assim, a ação é o comportamento voluntário, de conteúdo psicológico, com vistas à produção de determinado fim, o qual abrange o objetivo ou fim que se pretende alcançar, a escolha dos meios a serem empregados e as conseqüências secundárias. Adirson Antônio Glório de Ramos • 179 Nesse sentido, Bitencourt (1999, p. 60) indaga como é possível sustentar que a pessoa jurídica, um ente abstrato, fictício, desprovido de sentimentos, emoções ou impulsos, possa ter vontade e consciência a ponto de antecipar mentalmente o resultado pretendido, escolher os meios a serem empregados e aferir as conseqüências secundárias de sua ação. Prossegue o autor afirmando que o crime é uma ação humana, cuja autoria somente pode ser imputada ao ser vivo, nascido de uma mulher, “[...] embora em tempos remotos tenham sido condenados, como autores de crimes, animais, cadáveres e até estátuas.” Assim, “a capacidade de ação e de culpabilidade exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter” (BITENCOURT, 1999, p. 60, grifo nosso). Consciência e vontade são elementos exclusivos da pessoa natural e, tecnicamente, é praticamente impossível excluí-los quando se fala em ação, primeiro elemento estrutural do crime, salvo se a pretensão for assumir deliberadamente a responsabilidade objetiva, suprimindo o conceito de “Direito Penal como meio de controle social formalizado” (BITENCOURT, 1999, p. 62). Conforme a teoria normativa pura, a culpabilidade tem como elementos a imputabilidade, a possibilidade de conhecimento do injusto ou potencial consciência da ilicitude, a exigibilidade de conduta diversa, todos juízos puro de valor (JESUS, 1995, p. 403), excluindo-se assim o fator psicológico. A consciência da ilicitude é excluída do dolo e incluída na culpabilidade. A partir do entendimento de que culpabilidade é a reprovabilidade do fato antijurídico individual, Bitencourt (1999, p. 64) indaga “[...] como se poderá exigir que empresa comercial ou industrial [uma pessoa jurídica] possa formar a ‘consciência da ilicitude’ da atividade que, através de seus diretores ou prepostos, desenvolverá” e que “[...] nessas circunstâncias não seria razoável formular-se um juízo de reprovabilidade em razão da ‘conduta’ de referida empresa que, por exemplo, contrarie a ordem jurídica”. Assim, ausentes a imputabilidade e a consciência da ilicitude, não há que se falar em exigibilidade de conduta obediente ou em conformidade ao direito e, a ausência de um dos elementos impede que se configure a culpabilidade e sem culpabilidade não se admitirá, na seara do Direito Penal, a aplicação de pena, posto que nullum crimen nulla poena sine culpabilidade (BITENCOURT, 1999, p. 64,). Assim, não há como imaginar a aplicação da pena sem levar em consideração ou mensurar a culpabilidade do agente em face das circunstâncias que o levaram a cometer o delito, evidentemente, um ser humano ou pessoa natural, o qual manifesta a sua vontade por meio de uma conduta ou comportamento positivo ou negativo (DELMANTO, 2002, p. 29). Delmanto (p.29, 2002) afirma: Pessoa jurídica não comete crime; os seus administradores, sócios-proprietários ou não, é que, através de e em seu nome, podem perpetrar crimes contra o meio ambiente. Por outro lado, além da violação do inafastavél e elementar primado da 180 • Direito Penal culpabilidade ou reprovabilidade da conduta do ser humano que é punido, há outro intransponível obstáculo à efetivação da intenção do legislador constituinte: a ofensa ao principio da responsabilidade pessoal, através do qual a pena não pode passar da pessoa do condenado (CR/88, art. 5º, XLV). Finalmente, os opositores argumentam que as penas privativas de liberdade são inaplicáveis às pessoas jurídicas, por sinal, a mais elementar sanção aplicada pelo direito penal às pessoas físicas. 4.2 Argumentos favoráveis à responsabilidade penal das pessoas jurídicas A corrente dos doutrinadores que admitem a responsabilização penal da pessoa jurídica afirma que o Código Penal brasileiro, em sua parte geral apresenta como formas de punição as penas privativas de liberdade, as restritivas de direitos e multa e que, nenhuma delas, aplicadas, deixa de atingir, direta ou indiretamente, terceiros. Como exemplo, com a condenação a uma pena privativa de liberdade de um chefe de família, sua mulher e filhos ficam privados do esteio do lar. Também seria atingida a família de um motorista profissional que tivesse suspensa a autorização ou habilitação para dirigir veículo. As penas pecuniárias atingiriam diretamente o patrimônio do casal, o que não deixa de ser uma forma de atingir a esposa (SHECAIRA, 1998, p. 90). Contra o argumento daqueles que afirmam que a pena de prisão é inaplicável às pessoas jurídicas, tem-se que num Estado Democrático de Direito é função do direito penal rever, de forma constante a função punitiva, criando critérios restritivos da necessidade ou não de punir, pregando-se a desnecessidade da pena privativa de liberdade, haja vista que a pena de prisão deve ser a ultima ratio, reservada para os crimes de maior gravidade. Por outro lado, na seara do direito econômico e do direito ecológico, âmbito em se defende a responsabilização do ente coletivo, a pena de prisão é desnecessária e descabida, caso em que a pena de multa criminal, dissolução, a perda de bens e proveitos ilicitamente obtidos, a injunção judiciária, o fechamento da empresa, a publicação da sentença a expensas da condenada, adquirem importância, uma vez que têm sido instrumento de repressão às pessoas jurídicas (SHECAIRA, 1998, p. 91 - 92). Nesse sentido, Shecaira (1998, p. 91) afirma que: O tipo particular de agente que comete crimes econômicos, que a criminologia moderna, a partir de Sutherland, batizou de ‘crimes do colarinho branco’, não precisa de qualquer ‘ressocialização’, por se tratar de pessoa altamente socializada, integrada ao corpo social e de boas qualificações profissionais. No que tange ao fato da pessoa jurídica ser incapaz de arrepender-se e de ser intimidada, emendada ou reeducada por meio da pena, levanta-se o argumento de que uma das principais funções ou objetivos da pena é reprovar a conduta ilícita, Adirson Antônio Glório de Ramos • 181 validando o conceito de bem jurídico para o grupo social, tendo portanto, relevância pública e não objetivos morais. Assim, é um contra-senso impor objetivos morais a uma pessoa jurídica numa época em que já não se deve aplicar às pessoas físicas. Argumenta ainda, que ao cometer um crime, o indivíduo deixa a sua condição pessoal e passa a agir no interesse exclusivo do ente coletivo (SHECAIRA, 1998, p. 92 - 93). O argumento de que não há responsabilidade sem culpa e que a vontade é inerente somente à pessoa física é rebatido pelo fato de se punir nas searas cível e administrativa uma pessoa jurídica, que não tem consciência e nem vontade, por exemplo, pela prática de um crime ecológico e não operacionalizar uma reprovação na seara do direito penal. Assim, tem-se que a vontade da empresa é diferente da vontade do ser humano, uma vez que resulta de sua própria formação surgida no seio da sociedade que a legitima, contexto em que se reconhece “[...] que a empresa tem vontade, uma vontade pragmática, que desloca a discussão do problema da vontade individual para o plano metafísico” (SHECAIRA, 1998, p. 94), podendo-se “[...] afirmar que a vontade da pessoa jurídica, executada por seres individuais, é uma realidade, não uma ficção” (SHECAIRA, 1998, p. 95). 5. Conclusão O Direito Penal, segundo a dogmática tradicional, traz conceitos incompatíveis com a responsabilização penal da pessoa jurídica, haja vista que as noções de ação ou conduta e de culpabilidade foram construídas de acordo com a pessoa natural, pessoa humana ou física, excluindo-se a pessoa jurídica. A dogmática jurídicopenal concebeu o direito penal sob os seguintes paradigmas: o homem, o Direito, a sociedade e a pena, sendo que os conceitos de ação e culpabilidade e a pena foram construídos somente para o homem como sujeito de direito. Portanto, o ponto de partida da dogmática atual é o homem. A discussão em torno da responsabilidade penal das pessoas jurídicas continua centrada nas questões de política criminal, na capacidade de ação, na capacidade de culpabilidade, no problema da personalização das penas e nas penas que seriam aplicadas ao entes coletivos (BACIGALUPO, 1998, p. 147), sendo que a resposta ou solução deve ser buscada na configuração de um novo sujeito de direito e não na função da pena do direito penal. Em face da nova criminalidade que aflora no seio social, com destaque para o Direito Econômico e Ambiental, tem-se forçado a adequação do sistema penal com vistas a apresentar novas soluções diante dessa nova realidade. Nesse sentido, o Direito Penal clássico deve ser reestruturado com o intuito de explicar ou solucionar os delitos penais praticados pelas pessoas jurídicas, devendo-se ampliar o âmbito da imputabilidade no intuito de buscar respostas para esses novos conflitos sociais. No que tange à capacidade de ação, esta nova dogmática deve ser construída no sentido de afastar o seu cunho psicológico, pois caso contrário não haverá 182 • Direito Penal outra resposta, ou seja, da incapacidade de ação da pessoa jurídica. Em torno da culpabilidade da pessoa jurídica duas linhas de pensamento se destacam. A primeira delas tem optado por preservar o conceito tradicional e, ao mesmo tempo, busca elaborar um conceito exclusivamente para as pessoas jurídicas. A outra linha de pensamento busca elaborar um novo conceito de culpabilidade válido tanto para as pessoas físicas quanto para as pessoas jurídicas. Na realidade não se trata de simplesmente reformular os conceitos atuais, mas de substituir os pressupostos fundantes do direito penal, ampliando o seu âmbito de atuação de forma a bifurcá-lo em dois braços diferenciados. Um deles pertinente às pessoas individuais ou naturais, conforme a atual dogmática e o outro, aplicável às corporações ou pessoas jurídicas, construído segundo princípios distintos, alheios à atual dogmática, rompendo com dogmas tradicionais, principalmente no que tange ao conceito de pessoa, de modo que “[...] não existe um único conceito válido de ação e um único conceito válido e verdadeiro de culpabilidade” (SANTOS, 1999, p. 112). Assim, operar-se-ia uma verdadeira re-interpretação da legitimidade argumentativa a partir da superação da compreensão do Direito e do conceito de ação, com vistas a uma compreensão deontológica de imputação, reconhecendo o Direito como um sistema de ação e saber aberto ao mundo da vida em que argumentos jurídicos assumem um papel diferencial e determinante num discurso de aplicação do Direito, ao contrário de argumentos éticos, morais e pragmáticos, os quais não são legítimos para determinar uma decisão jurídica (CHAMON JÚNIOR, 2006, p. 153 – 182). Não basta interpretar, estudar e decompor o texto legal, atendo-se às palavras e ao sentido respectivo, é preciso ir além. Deve-se examinar as normas jurídicas em seu conjunto e em relação à ciência deduzindo, assim, uma obra sistemática, um todo orgânico, com o objetivo principal de descobrir e revelar o Direito, construindo, recompondo e reconstruindo , compreendendo-a, “[...] achando o direito positivo, lógico, aplicável à vida real” (MAXIMILIANO, 1981, p. 45), haja vista que não há verdade absoluta, objetiva e indubitável, mas verdade relativa, reconstruída segundo o sujeito que recompõe e aplica o Direito. Uma reconstrução de forma a entender como sujeito de direito penal não quem causou ou provocou o resultado, mas quem é competente para decidir, quem tem o dever de (BACIGALUPO, 1998, p. 35), elaborando conceitos de ação e de culpabilidade para a pessoa jurídica como sujeito de direito, tomando como ponto de partida não o homem, mas a sociedade. Adirson Antônio Glório de Ramos • 183 6. Referências bibliográficas ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Societas delinquere potest – revisão da legislação comparada e estado atual da doutrina. In: GOMES, Luís Flávio. (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. BACIGALUPO, Silvina. La responsabilidad penal de las personas jurídicas. Barcelona: Bosch, 1998. BÍBLIA. Português, A Bíblia Sagrada. Tradução por José Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. BITENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: GOMES, Luís Flávio (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2006. CRETELLA JÚNIOR. 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Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 184 • Direito Penal SHECAIRA, Sérgio Salomão. A responsabilidade penal da pessoa jurídica e nossa recente legislação. In: GOMES, Luís Flávio (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. SOUZA, Carlos Fernando Mathias de. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Revista de informação legislativa, Brasília a. 41 n. 162, p. 23 – 30, abr./ jun. 2004. TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas em el derecho comparado. In: GOMES, Luís Flávio (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. Adirson Antônio Glório de Ramos • 185 Jurisprudência Informativo 412 do Superior Tribunal de Justiça. Crime. Prefeito. Princípio. Insignificância. Não aplicabilidade. A Turma, por maioria, denegou a ordem de habeas corpus por entender que a conduta do prefeito que emitiu ordem de fornecimento de combustível (20 litros) a ser pago pelo município para pessoa que não era funcionário público, nem estava realizando qualquer serviço público e, ainda, conduzia veículo privado estaria tipificada no art. 1º, I, do DL n. 201/1967. O Min. Nilson Naves concedeu a ordem aplicando, ao caso, o princípio da insignificância. Contudo o Relator entendeu que não se aplica tal princípio quando há crime contra a Administração Pública, pois o que se busca resguardar não é somente o ajuste patrimonial, mas a moral administrativa. HC 132.021-PB, Rel. Min. Celso Limongi, julgado em 20/10/2009. Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça - Inconstitucionalidade. Tráfico. Previsão que veda a substituição da pena. A Sexta Turma do STJ suscitou a inconstitucionalidade da vedação à conversão das penas privativas de liberdade em restritivas de direito prevista nos arts. 33, § 4º, e 44 da Lei n. 11.343/2006, referente aos crimes descritos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 dessa mesma lei, Para tanto, alegava-se maltrato à dignidade humana (art. 1º, III, da CF/1988) e ao princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, do mesmo diploma), sem esquecer que o ponto central da pena é corrigir, reabilitar. Porém, a Corte Especial, por maioria, rejeitou a declaração de inconstitucionalidade. Quanto à dignidade humana, vê-se que os princípios constitucionais podem ser ponderados, e o da defesa social, representado pela pena, justifica plenamente a privação temporária da liberdade, porque é o instrumento de que se vale o Estado para garantir a própria convivência social. É certo que o modo pelo qual a pena é cumprida (presídios precários) pode afetar a dignidade humana, mas aí não se está mais no âmbito legislativo, o único a interessar à arguição. Quanto ao princípio da individualização, o referido art. 44 veda a conversão das penas, mas também explicita que aqueles crimes são inafiançáveis e insusceptíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, tudo a revelar os valores que a lei visa preservar. Anote-se que o art. 5º, XLIII, da CF/1988 guarda estreita relação com aquela norma e a lógica nisso está na relação entre a inafiançabilidade do tráfico e a vedação à conversibilidade da pena, pois não há como justificar a necessidade de prisão antes da condenação judicial, para, depois dela, substituí-la pela pena restritiva de direitos. Peca pelo 186 • Direito Penal excesso o argumento de que, sem a substituição, haveria uma padronização da pena. Se a lei permitisse ao juiz o arbítrio para substituir a pena nos casos de tráfico de entorpecentes, o próprio art. 44 do CP seria inconstitucional ao excluir do regime os crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa. Aquele artigo, ao elencar as hipóteses excludentes do regime de substituição, tem suporte unicamente no critério do legislador ordinário, porém a não conversibilidade das penas lastreiase na vontade do constituinte, que destacou a importância da repressão a esse crime no art. 5º, XLIII e LI (esse último autoriza a extradição de brasileiro naturalizado comprovadamente envolvido no tráfico de drogas). Assim, conclui-se que a adoção da pena privativa de liberdade para a punição do crime de tráfico de entorpecente não implica, ipso facto, o descumprimento da individualização da pena, pois só tolhe uma de suas manifestações, visto que o juízo considerará outros fatores para individualizá-la (conduta social, personalidade do agente, motivos, consequências do crime etc.). Precedente citado do STF: HC 97.820-MG, DJe 1º/7/2009. Arguição de Inconstitucionalidade no HC 120.353-SP, Rel. originário Min. Og Fernandes, Rel. para acórdão Min. Ari Pargendler, julgada em 4/11/2009. Informativo 552 do Supremo Tribunal Federal. Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substituição de Pena Privativa de Liberdade por Restritiva de Direitos. Crime praticado antes da Lei n.º 11.343/06. Necessidade de analisa dos requisitos para a substituição. A Turma indeferiu habeas corpus em que condenado por tráfico de drogas (Lei 6.368/76, art. 12, caput) pleiteava a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, bem como o cumprimento da pena em regime aberto. Entendeuse que a norma contida no art. 44, caput, da Lei 11.343/2006, ao expressamente estabelecer a proibição da conversão almejada, apenas explicitou regra que era implícita no sistema jurídico brasileiro quanto à incompatibilidade do regime legal de tratamento em matéria de crimes hediondos e a eles equiparados com o regime pertinente aos outros delitos. Salientou-se que a Lei 9.714/98 modificou a redação do aludido art. 44 do CP — e assim ampliou os casos de substituição da pena corporal por penas restritivas de direitos — mas não incidiu no âmbito do tratamento legislativo referente aos crimes hediondos e a eles assemelhados, inclusive em virtude da redação original contida no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, que contemplava o regime integralmente fechado para o cumprimento da reprimenda corporal. Desse modo, considerou-se não haver aplicação retroativa da regra contida no art. 44, caput, da Lei 11.343/2006, à espécie, uma vez que o sistema jurídico anterior ao seu advento já não permitia a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito em relação aos delitos hediondos e equiparados. Concluiu-se pela impossibilidade dessa substituição, mesmo no período anterior à edição da Lei 11.343/2006. Mencionou-se que, ainda que se admitisse a referida conversão nos crimes de tráfico de entorpecentes praticados na vigência da Lei 6.368/76, na situação dos autos estaria ausente o requisito subjetivo (CP, art. 44, III), haja vista serem desfavoráveis as circunstâncias judiciais do paciente, conforme afirmado Jurisprudência • 187 pelas demais instâncias. Diante disso, reputou-se incabível também o acolhimento da fixação do regime aberto para o cumprimento da pena. HC 97843/SP, rel. Min. Ellen Gracie, 23.6.2009. (HC-97843) Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal – Prescrição da pretensão punitiva em perspectiva. O Tribunal, após reconhecer a existência de repercussão geral no tema objeto de recurso extraordinário interposto contra acórdão de Turma Recursal Criminal do Estado do Rio Grande do Sul, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da inadmissibilidade de extinção da punibilidade em virtude da decretação da prescrição da pretensão punitiva em perspectiva e deu provimento ao apelo extremo do Ministério Público. Asseverou-se que tal orientação fora consolidada, de regra, sob o fundamento de ausência de previsão legal da figura. Alguns precedentes citados: RHC 98741/MA (DJE de 7.8.2009); AI 728423 AgR/SP (DJE de 19.6.2009); Inq 2728/BA (DJE de 23.3.2009); HC 94338/PR (DJE de 17.4.2009); RHC 94757/SP (DJE de 31.10.2008); RHC 88291/GO (DJE de 22.8.2008). RE 602527 QO/RS, rel. Min. Cezar Peluso, 19.11.2009. (RE-602527) 188 • Direito Penal Comentário à Jurisprudência PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIA DA ORDEM ECONÔMICA LEONARDO SICA Advogado Professor convidado da Especialização em Direito Penal Econômico da FGV/SP (GVlaw) A inclusão da garantia da ordem econômica entre as hipóteses autorizadoras de prisão preventiva trouxe diversos problemas, próprios da legislação casuística e emergencial que marcou fortemente a última década do século XX, especialmente no campo dos chamados “crimes econômicos”, área de notado avanço da intervenção penal naquele período. Entre os problemas dessa “inovação”, podemos listar: (i) o aumento das possibilidades de utilização da medida excepcional de força, tendendo a descaracterizá-la como exceção e aproximá-la da “normalidade”; (ii) a utilização de elemento contido nos próprios tipos penais para justificar medida cautelar, tornando quase inevitável a antecipação da discussão de mérito, com indevido prejulgamento; (iii) dificuldade em delimitar com precisão o significado da expressão “garantia de ordem econômica”, permitindo a proliferação de decretos de prisão cautelar apoiados em termos vagos e fórmulas genéricas e, logo, ilegais. Portanto, garantia da ordem econômica, como fundamento de prisão preventiva, é questão delicada ante a sua inevitável vinculação com o mérito do processo e a falta de conceito inequívoco para o termo. Considerando que a garantia da ordem econômica foi inserida no artigo 312 do CPP pela Lei nº 8.884/94, cujos tipos cuidaram de indicar as condutas ofensivas à ordem econômica – repetidas ou assemelhadas aos tipos penais inscritos no Capítulo II da Lei nº 8.137/90 –, a definição conceitual da expressão deveria ser extraída precipuamente da objetividade jurídica de ambas as leis (8.884/94 e Capítulo II da 8.137/90). Vale dizer: a necessidade concreta da prisão preventiva para garantia da ordem econômica deve ser obtida por meio de raciocínio silogístico, que tem como premissa maior – e essencial – a imputação de condutas ofensivas à ordem econômica (por imperativo lógico). Como premissa secundária, tem-se que só podem ser consideradas como ofensivas à ordem econômica as condutas assim classificadas pela lei. Leonardo Sica • 189 Para reforçar essa definição, recorremos à lição de Eros Grau (1990, p. 68-72): “A ordem econômica deve ser considerada como parcela da ordem jurídica”. Logo, atos praticados contra a ordem econômica são atos praticados contra a ordem jurídica, nos exatos termos das categorias contidas e descritas pelas leis que a compõem. Leis que devem ser rigorosamente aplicadas, especialmente quando os fatos estão sendo tratados no campo jurídico-penal, no qual não se admitem interpretações extensivas, por força de regra fundamental do Estado de Direito: as leis penais só admitem interpretação taxativa e restritiva. Contudo, essa orientação não tem sido observada nos tribunais, ao reverso, tem sido frontalmente desprezada. Em prol da ampliação indiscriminada das possibilidades de uso da medida extrema de força, alguns tribunais vêm recorrendo à manifesta interpretação extensiva da categoria legal “crime contra a ordem econômica”. Vejamos, por exemplo, decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região em que, explicitamente, afastou-se a relação entre a tutela cautelar da ordem econômica e a imputação de crimes contra a ordem econômica para manter-se a prisão preventiva de acusados por crime de descaminho e formação de quadrilha: [...] Com efeito, mostra-se, data venia, bastante pobre a interpretação de que a prisão preventiva fundada na garantia da ordem econômica só seria possível nos crimes expressamente designados pela lei como ofensivos à ordem econômica. Repita-se, porém, que mesmo aqueles que assim pensam, certamente não hesitarão em admitir que os delitos de que tratam os autos são capazes de ofender a ordem pública. Dito isso, perde relevo a alegação de que não haveria risco sistêmico à ordem econômica [...]. (Proc. 2007.03.00.097655-0, HC 29865). Pelos termos da decisão acima, a disciplina da prisão processual não estaria submetida ao regime de estrita legalidade (!), pois, por meio de interpretação judicial estaria a se admitir como ofensivos à ordem econômica crimes que a lei, expressamente, não considera como tal. De certa forma, a mensagem contida nesse entendimento despreza o princípio da reserva legal, ignora a atividade legislativa e também a função delimitadora do bem jurídico, tudo por meio de raciocínio obtuso: mesmo que o legislador não tenha classificado determinada conduta como ofensiva à ordem econômica, o juiz poderia assim classificá-la com base em opinião pessoal ou referência abstrata, tal como aquelas resumidas acima. Prevalecendo essa orientação, poderíamos considerar desnecessário o artigo 170 da Constituição Federal, que traz a definição de ordem econômica: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humana e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos 190 • Direito Penal existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades sociais e regionais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as Leis brasiLeiras e que tenham sua sede e administração no país. Portanto, os valores em que se funda a ordem econômica estão na Carta Magna: livre iniciativa, controle do abuso econômico (redução das desigualdades) e valorização do trabalho e da economia popular – conjunto axiológico do qual o legislador ordinário deduziu os bens jurídicos dignos de tutela penal para criminalizar as condutas lesivas àqueles, classificando-as de maneira taxativa e determinada, cumprindo, assim, as exigências do princípio da legalidade. Nesse sentido, a leitura do art. 170 evidencia que crimes como sonegação fiscal, descaminho, corrupção e fraude à licitação, por exemplo, não podem ser tidos como ofensivos àquela ordem. Noutra oportunidade, a mesma Corte Federal ampliou o significado da expressão, apartando-a do seu conteúdo legal para permitir manutenção de prisão cautelar decretada sob divagações acerca da necessidade de proteção da ordem econômica, tudo isso em processo que tratava de crimes contra a administração pública: PROCESSUAL PENAL: HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS LEGAIS PREVISTOS NO ARTIGO 312 DO CPP. DECISÃO SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADA. CUSTÓDIA CAUTELAR NECESSÁRIA PARA A GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E ECONÔMICA E [...] MAGNITUDE DA LESÃO SOFRIDA PELOS COFRES PÚBLICOS. QUANTIA SUPERIOR A R$ 30 MILHÕES DE REAIS. [...] II – Presentes os pressupostos exigidos, e estando suficientemente fundamentada a decisão que expressamente reconheceu a necessidade da prisão preventiva, para a garantia da ordem pública, da ordem econômica e para assegurar a aplicação da lei penal, nenhuma relevância tem as condições pessoais do Paciente. III – Não se justifica o tratamento diferenciado conferido ao co-réu, cujo pedido liminar foi indeferido em virtude da complexidade da organização criminosa, a grande magnitude da lesão causada (montante superior a R$ 30 milhões) e o ‘desvalor’ da conduta, eis que o desfalque lesionou toda a coletividade, aplicando o princípio in dúbio pro societate, sendo Leonardo Sica • 191 necessária a manutenção da custódia cautelar a fim de evitar a possibilidade de fuga [...] IV – A segregação cautelar do Paciente se justifica como garantia da ordem econômica, da ordem pública (HC 2003.03.0067497-6) Além de recorrer ao (indevido) uso genérico da garantia da ordem econômica, a decisão acima incorreu em outro vício comum: embaralhou os conceitos ordem pública e ordem econômica. Seguindo o raciocínio ilustrado nos dois precedentes acima, desvio de verbas públicas, sonegação de impostos, descaminho, corrupção e outras situações têm sido, indistintamente, relacionadas à necessidade de proteção da ordem econômica, mercê do equívoco contido na idéia (extraída do senso comum) de que o risco à ordem econômica derivaria da capacidade financeira do imputado, da magnitude do suposto prejuízo financeiro ou do vulto dos valores financeiros envolvidos na persecução criminal. Esse entendimento nega a constitucionalização do processo penal e ignora o marco constitucional das leis penais. Ao reverso, como mencionado no início, as hipóteses de efetivo risco à ordem econômica derivam tão-somente de crimes específicos previstos nas Leis nº 8.137/90 (Capítulo II), nº 1.521/51 e nº 7.492/86, pois o Título VII da Constituição estabelece o tratamento conjunto de ordem econômica e financeira. Fora dessas hipóteses, não há como cogitar de prisão preventiva por garantia da ordem econômica, mesmo que o caso concreto envolva grave lesão ao patrimônio público ou particular. Portanto, prisão preventiva fundada nesse requisito e que não inclua as condutas previstas no Capítulo II da Lei nº 8.137/90 ou nas Leis nº 1.521/52 e nº 7.492/86 é manifestamente ilegal, pois a tutela da ordem econômica está normativamente circunscrita ao âmbito de incidência destas. Nesse sentido é o entendimento de Mirabete: [...] O art. 312 do CPP – no que diz respeito à garantia da ordem econômica – só pode ser aplicado na prática de crime que possa causar perturbação à ordem econômica, citandose, especificamente, os definidos na Lei n° 8.137, de 27-1290, entre os quais o de ‘elevar sem justa causa o preço de bem ou serviço, valendo-se de posição dominante no mercado’ (art. 4°, VII, com redação dada pelo art. 85 da Lei nº 8.884), na Lei nº 7.492, de 16-6-1986, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e dá outras providências, e na Lei nº 1.521, de 26-12-1952, que prevê crimes contra a economia popular [...]. (MIRABETE, 2000, p. 694). Ainda, considerando que a lesão ou ameaça à ordem econômica é elemento ínsito de muitos daqueles tipos penais, há que se aplicar redobrado comedimento na utilização da prisão cautelar para garantia da ordem econômica, pois, nessas 192 • Direito Penal hipóteses, sempre haverá antecipação do mérito da causa, por mais lacônico que seja o magistrado. Por isso, este breve estudo procura estabelecer critérios seguros e objetivos, apoiados na dogmática penal e em precedentes jurisprudenciais paradigmáticos sobre o tema. Ao julgar habeas corpus referente à prisão preventiva decretada durante a célebre Operação Farol da Colina, uma das maiores operações realizadas pela Polícia Federal, o Pretório Excelso começou a delinear o sentido da garantia da ordem econômica inscrita no art. 312 do CPP. É importante relembrar que naquele caso os pacientes foram denunciados por crimes contra o sistema financeiro (evasão de divisas e gestão fraudulenta), lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, apurando-se movimentação de valores de mais de um bilhão de dólares (US$ 1,233.205.433.80, conforme consta do v. acórdão), por meio de centenas de operações em contas em nome de off shores. Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal revogou ordem de prisão preventiva, sob os seguintes fundamentos: [...] O vulto da lesão estimada, por si só, não constitui fundamento cautelar válido (cf. HC 82.909, Marco Aurélio, DJ 17.10.03); no entanto, é pertinente conjugar a magnitude da lesão e a habitualidade criminosa, desde que ligadas a fatos concretos que demonstrem ‘risco sistêmico’ à ordem pública ou econômica [...]1. Essa conclusão foi lançada com base em diversos precedentes da Corte Suprema, principalmente o HC 80.717, julgado no Pleno e relatado pela Ministra Ellen Gracie, cujos termos foram lembrados pelo Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, ao reiterar enfaticamente que a garantia da ordem econômica, na leitura processual penal, só se viabiliza quando a situação concreta implique risco à própria ordem pública: [...] Se cuida de estabelecer uma presunção absoluta de abalo da ordem pública pela só magnitude da lesão patrimonial alegadamente resultante do crime, a sua inconstitucionalidade é chapada. Com efeito. Uma tal presunção teria por pressuposto lógico a afirmação de responsabilidade do acusado pela lesão acarretada, o que obviamente é repelido pela consagração constitucional da garantia de que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória’ [...]. idem. Portanto, a inexistência de risco sistêmico à ordem econômica extraído de elementos concretos contidos nos autos deslegitima qualquer decreto de prisão cautelar apoiado nesse requisito. Sempre reiterando que para se chegar a tal conclusão é muito difícil não avançar sobre a presunção de inocência, pois, no caso concreto, é possível 1 HC 86.758-8/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 02.05.2006, DJ 01.09.2006. Leonardo Sica • 193 que a constatação do risco passe pela afirmação da ocorrência de condutas que, adiante, deverão ser julgadas perante o mesmo Juízo. No mesmo julgamento, o Ministro Cezar Peluso reforçou esse entendimento: [...] em relação à magnitude da lesão como motivo autônomo para decreto da prisão preventiva. De fato, Vossa Excelência demonstrou bem que isso só seria lícito a partir do pressuposto de que se presume ter havido lesão criminosa antes de julgada a causa, em afronta direta, portanto, à garantia constitucional, que não permite impor ao réu, enquanto pendente a causa penal, nenhuma conseqüência danosa fundada ou vinculada diretamente a um juízo definitivo de culpabilidade [...]. idem Ainda naquele emblemático julgamento, o Ministro Marco Aurélio consignou outra conclusão extremamente útil, ao analisar argumento idêntico àquele constante dos precedentes do TRF da 3ª Região copiados ao início: [...] Peço vênia ... para utilizar a mesma premissa de não respaldar a magnitude da lesão, no tocante à custódia preventiva, para utilizar esse mesmo argumento quanto ao cometimento de outros crimes. A prática de outros delitos deve ser questionada em processo próprio, sob pena de terse mesclagem, a meu ver, incompatível com a ordem jurídica, sob pena de, tendo em vista atos de constrição que estão em patamares diversos – da preventiva e possível condenação definitiva –, chegar-se a sobreposição contrária ao próprio Direito Penal. Entendo que o fato de se ter levado em conta, não sei objetivamente em qual época ou unidade de tempo, outras práticas delituosas, sob pena de contrariar-se o princípio da não-culpabilidade – creio que não havia, sequer, persecução criminal quanto a eles – está a merecer glosa [...]. idem. Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal enfrentou a mesma questão, sendo que os pacientes estavam incursos em crime contra o sistema financeiro (gestão fraudulenta) e contra a ordem tributária, de lavagem de dinheiro e de formação de quadrilha em face de desvios estimados em US$ 200,000.000.00 (duzentos milhões de dólares). Também restou revogada prisão preventiva determinada sob aqueles fundamentos indevidos: [...] A ordem econômica (item ‘ii’), por sua vez, também já foi objeto de discussão no Plenário desta Corte como requisito da prisão preventiva. No julgamento do HC nº 80.717-SP (relatora para o acórdão Min. Ellen Gracie, DJ de 05.03.2004), o Tribunal estabeleceu que o fundamento da ordem econômica deveria se revestir de requisitos similares aos da garantia da ordem pública. 194 • Direito Penal Com relação à garantia da ordem econômica, observa-se que, diferentemente do entendimento firmado por este Tribunal no precedente referido, a magnitude da lesão provocada foi invocada no decreto prisional como elemento autônomo para a custódia cautelar. Assim, de igual modo, não vislumbro fundamentação idônea da decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem econômica [...]2. (grifo nosso). Em outro acórdão, lavrado pelo Ministro Eros Grau, também professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP, o Supremo Tribunal reafirmou que a lesividade econômica da conduta, “[...] sendo própria do tipo penal, não pode respaldar a prisão preventiva para garantia da ordem econômica (Precedente)”3. Neste ponto, surge então outro limitador ao uso indiscriminado do requisito sob estudo, pois: HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA FUNDAMENTADA EM FATOS LIGADOS INTRINSECAMENTE AO MÉRITO DAS INVESTIGAÇÕES. IMPRESCINDIBILIDADE DA PRISÃO DEMONSTRADA. AUSENTES OS REQUISITOS DO ART. 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. [...] O decreto de prisão preventiva apóia-se em fatos ligados intrinsecamente ao mérito das investigações, a ser apurado em processo criminal sob rito ordinário, e não especificamente a fatos que demonstrem a necessidade de prisão preventiva, que, por natureza, é acauteladora e excepcional: configurado constrangimento ilegal a ser sanado nesta ação de habeas corpus. Embora muito bem explicitada a decisão que decretou a prisão cautelar, narrando o contexto em que a ordem se deu e os fatos imputados às Pacientes, que, aliás, são de extrema gravidade, é forçoso reconhecer que não parecem idôneos e suficientes para justificar a segregação cautelar das mesmas. Assim, considero comprovado o bom direito legalmente estatuído a fundamentar a concessão da ordem pleiteada, razão jurídica pela qual confirmo a liminar antes deferida e concedo a ordem de habeas corpus especificamente para anular o decreto de prisão preventiva relativamente às Pacientes expedido no curso do Inquérito n. [...]4. HC 85.615-2/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 03.03.06. HC 85.519-9/PR, Rel. Min. Eros Grau, DJ 17.03.2006. 4 STF, HC 89.970/RO; 1ª T.; Rel. Min. Cármen Lúcia; j. 05.06.2007. 2 3 Leonardo Sica • 195 Frise-se que foi revogada a prisão preventiva de pacientes acusados de formação de quadrilha, crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, em face de centenas de remessas para o exterior, realizadas por meio das famosas contas CC-5 durante o período ininterrupto de três anos. O abalo da ordem econômica é condição que só pode ser bem avaliada sob a ótica constitucional e a partir de um ponto de vista nacional, republicano. E, para isso, a mais alta corte do País é o locus privilegiado para dirimirem-se as inquietudes que a inclusão da expressão no artigo 312 do CPP trouxe aos operadores do Direito Penal. A análise dos precedentes do STF permite outra conclusão: a liberdade de diversas pessoas acusadas de crimes graves e suspeitas de movimentar valores altíssimos não trouxe nenhuma instabilidade à ordem econômica do País. Se, nos casos acima mencionados, a liberdade dos acusados não acarretou nenhum abalo à economia nacional, pode-se deduzir, com segurança, que em outros casos similares ou menos graves não haverá como se utilizar da prisão preventiva sob essa motivação. A conclusão é lógica: a segregação provisória de um cidadão, raramente, poderá ser relacionada como medida essencial para assegurar a higidez da economia nacional. Essa afirmação, embora pareça surpreendente, nada mais faz do que reafirmar o caráter excepcional e extremo da prisão cautelar. Portanto: (i) a prisão preventiva para garantia da ordem econômica tem como pressuposto lógico e necessário a imputação da prática de crime contra a ordem econômica, que, na nossa legislação, são somente aqueles previstos no Capítulo II da Lei nº 8.137/90, na Lei nº 1.521/51 e na Lei nº 7.496/86; (ii) o critério acima deve ser sucedido da constatação da possibilidade de a liberdade do agente causar risco sistêmico à ordem econômico-financeira, extraída de elementos concretos trazidos aos autos, jamais de suposições ou conjecturas nesse sentido; (iii) a magnitude de valores desviados, apropriados ou sonegados não é elemento idôneo para caracterizar o perigo à ordem econômica, além de ser questão cuja análise deve ser reservada para o momento da verificação da culpabilidade. 196 • Direito Penal Referências bibliográficas: GRAU, Eros Roberto Contribuição para a interpretação crítica da ordem econômica na Constituição de 1998. São Paulo: ed. USP, 1990. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2000. Leonardo Sica • 197 3 Artigo • 201 Jurisprudência • 214 Comentário à Jurisprudência • 216 Técnica • 227 Direito Processual Penal 3 Artigo TRANSAÇÃO PENAL E SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO EX OFFICIO: IMPOSSIBILIDADE LUCIANA KÉLLEN SANTOS PEREIRA GUEDES Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais “O órgão do Ministério Público é independente no exercício de suas funções, não ficando sujeito às ordens de quem quer que seja, somente devendo prestar contas de seus atos à Constituição, às Leis e à sua consciência”. (RTJ 147/142). RESUMO: Analisar a impossibilidade de aplicação da transação penal e da suspensão condicional do processo pelo Magistrado ex officio, diante da dissensão entre este e o Promotor de Justiça. PALAVRAS-CHAVE: Transação penal ex officio; suspensão condicional do processo ex officio; discricionariedade regrada; Direito público subjetivo; titularidade da ação penal pública. ABSTRACT: The present paper aims at analyzing the impossibility of the application of criminal transaction and of the ex officio stay of proceedings by the magistrate, when there is disagreement between the Magistrate and the Prosecutor. KEY WORDS: Ex officio criminal transaction; ex officio stay of proceedings; regulated discretionbaity; subjective public Law; incumbent of the prosecution. SUMÁRIO: 1. bibliográficas. Introdução. 2. Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes • Discussão. 3. Conclusões. 4. Referências 201 1. Introdução Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal sofreram mitigação com a regra introduzida no art. 98, inciso I, da Constituição da República e pelas Leis 9.099/95 e 10.259/2001. Nas infrações penais de menor potencial ofensivo, presentes os requisitos legais, poderá o Ministério Público propor transação penal ao autor do fato para aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa, a ser especificada na proposta. A possibilidade de transação penal regulamentada pelo art. 76 da Lei 9.099/95 substitui, nesses delitos, o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública pelo da discricionariedade regrada. O princípio da indisponibilidade da ação penal pública não se aplica aos delitos de médio potencial ofensivo, uma vez que o artigo 89 da Lei 9.099/95 concede ao Ministério Público, ao oferecer a denúncia, desde que presentes os requisitos legais, propor a suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, cuja fluência acarretará a extinção da punibilidade do agente, nos termos do art. 89, §5º, do diploma legal supracitado. Como órgão que pertence à administração pública, o Ministério Público não tem disponibilidade sobre os interesses públicos que defende, não podendo dispor da persecução penal, salvo nos delitos regidos pela Lei 9.099/95. No entanto, a polêmica surge quando o Promotor de Justiça não propõe ao autor da infração, quando presentes os requisitos legais, a proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo. Cabe, nesse caso, ao Juiz, de ofício, propor a transação penal ou a suspensão condicional do processo? Trata-se de direito público subjetivo do autor da infração? Trata-se de poder discricionário do Ministério Público? O presente artigo tem a finalidade de reforçar os princípios constitucionais da independência funcional do Ministério Público e da exclusividade da iniciativa da ação penal pública pelo Parquet e, principalmente, o perfil institucional e processual desse órgão, garantindo, sobretudo, ao autor do fato ou acusado os benefícios legais. 2. Discussão Alguns admitem a possibilidade de o Magistrado aplicar de ofício as propostas alternativas à condenação previstas nos arts. 76 e 89 da Lei 9.099/95, quando do silêncio ou da recusa do Promotor de Justiça, por se tratar de direito público subjetivo do autor da infração, desde que satisfeitos os requisitos estabelecidos na lei, para não cercear ao acusado os benefícios legais. Argumentam que o só fato de o legislador dar ao Ministério Público a iniciativa da proposta, e de usar o verbo poder, não altera a natureza do instituto, deixando de aplicar ao autor da infração qualquer dispositivo penal benéfico de uma infração. 202 • Direito Processual Penal Nesse sentido, Fernando da Costa Tourinho Filho (2007, p. 104) salienta que: [...] não havendo apresentação da proposta, por mera obstinação do Ministério Público, parece-nos que poderá fazê-la o próprio Magistrado, porquanto o autor do fato tem um direito público subjetivo no sentido de que se formule a proposta, cabendo ao Juiz o dever de atendê-lo, por ser indeclinável o exercício da atividade jurisdicional. Continua, argumentando que: [...] o Processo Penal, no nosso ordenamento, não é eminentemente acusatório. A pedra de toque do processo acusatório está na separação das funções do Acusador e do Julgador. Desse modo o Juiz não poderia determinar, ex officio, a produção de provas (vejam-se, a propósito, no CPP, dentre outros, os arts. 156, 176, 209, 234, 241, 276, 407, 425). O que deveria ser tarefa própria das partes foi permitido também ao Juiz. Se nosso processo fosse eminentemente acusatório, o Juiz não poderia conceder habeas corpus de ofício (visto tratar-se de ação penal popular), não poderia decretar a prisão preventiva sem provocação da parte acusadora (por tratar-se de ação penal cautelar), não poderia requisitar instauração de inquérito e tampouco ser destinatário de representação, não poderia, de ofício, decretar o seqüestro de bens do indiciado ou réu (arts. 126 e 132 do CPP), não poderia proceder de ofício à verificação de falsidade documental (art. 147 do CPP). (TOURINHO FILHO, 2007, p. 106). Segundo Giacomolli citado por Tourinho Neto e Figueira Júnior (2002, p. 599), “[...] na ausência do Ministério Público, desde que devidamente intimado, ou se presente e não formular proposta, o juiz poderá propor a transação criminal, sob pena de haver negativa de adequada jurisdição e negativa de um direito do acusado”. Para Batista e Fux (2001, p. 321), a transação penal “[...] constitui direito subjetivo do autor da infração, desde que satisfeitos os requisitos estabelecidos em lei. O só fato do legislador dar ao Ministério Público a iniciativa da proposta, e de usar o verbo poder, não altera a natureza do instituto”. A Comissão Nacional de Interpretação da Lei 9.099/95, sob coordenação da Escola Nacional da Magistratura, apesar de concluir que o Juiz não poderia substituir-se à vontade do Ministério Público, por não existir processo e que a homologação da transação nos termos do art. 76 da legislação referida representaria instauração de processo penal ex officio, entende ser possível ao Magistrado aplicar de ofício a suspensão condicional do processo.1 “Se o Ministério Público não oferecer proposta de transação penal e suspensão condicional do processo nos termos do art. 79 e 89, poderá o juiz fazê-lo” (conclusão décima terceira). 1 Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes • 203 Os Coordenadores dos Juizados Especiais Criminais também têm mantido firme o posicionamento de que, ante a recusa infundada do Ministério Público, a proposta deve ser feita pelo Juiz.2 Ocorre que tal posicionamento viola o Texto Constitucional e a legislação infraconstitucional. As propostas de transação penal e de suspensão condicional do processo não são direitos públicos subjetivos do infrator e sim sucedâneos da titularidade da ação penal. Promover, privativamente, a ação penal pública na forma da lei é uma das funções institucionais do Ministério Público, prevista no inciso I do art. 129 da Constituição da República, bem como no art. 100, §1º, do Código Penal e no art. 24 do Código de Processo Penal. E, para que isso efetivamente ocorra, a Constituição estabeleceu prerrogativas institucionais (CF, art. 127). A transação penal e a suspensão condicional do processo apenas mitigam os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública, respectivamente, ao adotar a Lei 9.099/95 o princípio da discricionariedade regrada. As propostas da transação penal e da suspensão condicional do processo são atos privativos do Ministério Público, de acordo com os artigos 76 e 89 da referida Lei, não podendo, assim, obrigar o Ministério Público a fazer as propostas, assim como não se pode obrigá-lo a propor a ação penal. A transação consiste em um acordo de vontades e esse acordo, é óbvio, deve se dar entre as partes, ou seja, entre o dominus litis da ação penal e o autor do fato. Deve o Juiz atuar como mediador, tendo em vista que o processo não existe ainda. Não pode o Juiz desempenhar um papel próprio do Ministério Público, pois, se assim o fizer, estará usurpando uma função exclusiva. Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 386) afirma ser totalmente inadequada a substituição do membro do Ministério Público pelo Magistrado, quando aquele se recusa a oferecer a proposta, fazendo-o em seu lugar e homologando o que ele mesmo, Magistrado, propôs ao autor do fato. A transação é um acordo entre as partes – acusação e autor do fato –, sendo imprescindível, assim, a sua participação, não podendo nenhuma delas ser alijada desse processo de convergência de vontades por quem quer que seja, especialmente pelo Magistrado. Do mesmo modo, não se pode obrigar o autor do fato a aceitar a proposta, ainda que pareça ao Juiz mais favorável a ele do que a propositura de ação penal (NUCCI, 2006, p. 387). A aplicação, de ofício, da suspensão condicional da pena não pode ser equiparada com a suspensão condicional do processo, como querem alguns autores (LOPES apud NOGUEIRA, 1996, p. 88), por razões lógicas. Naquela, o Magistrado, ao aplicála, não está usurpando a função legal ao Ministério Público, porque a lei previu sua aplicabilidade pelo Magistrado, nem dispondo da ação penal pública, cujo titular 2 Enunciado n. 6 do XVIII Encontro de Coordenadores de Juizados. 204 • Direito Processual Penal exclusivo é o Parquet, porque terminada está a persecução penal. Na suspensão condicional do processo não há condenação, não há sequer instrução, não podendo o Juiz, que não é o titular da ação penal de ofício, concedê-la, retirando do Ministério Público o exercício do direito de ação. Mesmo porque o direito de ação não se esgota no impulso inicial, mas compreende o exercício de todos os direitos, poderes, faculdades e ônus assegurados às partes ao longo de todo o processo.3 O Juiz pode, de ofício, determinar a produção de provas, a requisição de instauração de inquérito policial e ser destinatário de representação, entre outros, como argumentado por Tourinho Filho. Isso, porém, não significa que o Juiz pode fazer as vezes do Promotor de Justiça, propondo de ofício a suspensão condicional do processo ou a transação penal contra a vontade do Ministério Público, retirando deste o exercício do direito de ação, de que é titular exclusivo, segundo disposição constitucional. Senão, vejamos: o poder de agir de ofício do Magistrado, previsto em vários dispositivos do ordenamento jurídico, deve-se ao princípio da verdade real, princípio informador do processo penal, que diz ter o Juiz o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante dos autos. Nenhum dos textos legais que confere ao Magistrado o agir de ofício confronta com o princípio constitucional da iniciativa do Ministério Público de promover, privativamente, a ação penal pública. A transação penal e a suspensão condicional do processo são sucedâneas da ação penal e a propositura de tais institutos equivale a dispor da ação penal pública, cujo titular exclusivo é o Ministério Público. Na fase da denúncia, vigora o princípio in dubio pro societate. E, por fim, o texto legal não prevê a possibilidade de o Juiz, de ofício, propor a suspensão condicional do processo, não podendo, assim, se a lei não distinguiu, o interprete fazê-lo. Ademais, “[...] as funções do Ministério Público só poderão ser exercidas por integrantes da carreira [...]” (CF, art. 129, §2º). Grinover et al (2005, p. 154) salientam que entendimento contrário “[...] faz tábula rasa do princípio da aplicação consensual da pena e violenta a autonomia da vontade do acusador”. Continuam dizendo que, como a sentença homologatória da transação penal é resposta jurisdicional, se o Juiz aplicar de ofício tal benefício, haveria exercício de jurisdição sem ação, estaria atribuindo-se ao Juiz “[...] poderes equivalentes aos da movimentação ex officio da jurisdição, hoje proibida em nível constitucional para ação penal pública (art. 129, I, CF) e banida pela própria Lei 9.099/95, que quis 3 Sobre conceito analítico de ação, ver: Cintra, Grinover e Dinamarco, Teoria Geral do Processo, cit. 254/255, n.156 apud (GRINOVER et al. 2005, p. 156). Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes • 205 revogar expressamente a Lei 4.611, de 02.04.1995” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES; GOMES, 2005, p. 154). Afirmam ainda que “[...] mesmo para a transação posterior ao oferecimento da denúncia, permitir que o juiz homologue uma transação, que elimina ou suspende o processo, contra a vontade do Ministério Público, significa retirar deste o exercício do direito de ação, de que é titular exclusivo, em termos constitucionais.” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES; GOMES, 2005, p. 154). Dessa forma, diante do silêncio ou da recusa do Promotor de Justiça, deve o Juiz, segundo entendimento majoritário, enviar os autos ao Procurador-Geral de Justiça, aplicando analogicamente o art. 28 do Código de Processo Penal,4 cabendo ao Chefe da Instituição decidir por concordar com o Juiz e, então propor a transação ou a suspensão condicional do processo, designar outro órgão do Ministério Público para fazê-la ou insistir em não formulá-las. Essa solução se coaduna, segundo Grinover et al (2005), com os princípios constitucionais do processo e com a preservação da autonomia de vontade. Nesse sentido: Transação penal homologada em audiência realizada sem a presença do Ministério Público. Nulidade. Violação do art. 129, I, da Constituição Federal. É da jurisprudência do Supremo Tribunal – que a fundamentação do leading case da Súmula 696 evidencia: HC 75.343, 12-11-97, Pertence, RTJ 177/1293 –, que a imprescindibilidade do assentimento do Ministério Público, quer à suspensão condicional do processo, quer à transação penal, está conectada estreitamente à titularidade da ação penal pública, que a Constituição lhe confiou privativamente (CF, art. 129, I). Daí que a transação penal – bem como a suspensão condicional do processo – pressupõe o acordo entre as partes, cuja iniciativa da proposta, na ação penal pública, é do Ministério Público. (STF - RE 468.161, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 14-3-06, DJ de 313-06). Suspensão condicional do processo – Recusa do representante do Ministério Público em fazer a proposta – Aplicação do art. 28 do CPP – Necessidade – “No caso de recusa, aplicandose analogicamente o art. 28 do CPP, é de se colher a palavra definitiva da Chefia da Instituição, que, discordando de seu representante, deverá nomear outro membro para a iniciativa 4 Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender. 206 • Direito Processual Penal da proposta” (STJ – RHC 5.720 – Rel. Anselmo Santiago – RJTACrim 36/571). No mesmo sentido: STJ – REsp. 190.592 – Rel. Félix Fischer – DJU 22.11.1999; STJ – HC 76.437/1 – Rel. Octávio Gallotti – DJU 160-E:04, 04.08.1998; STJ – REsp 155.426 – Rel. Félix Fischer – RSTJ 109/300. Juizado Especial Criminal – Suspensão do processo – Oferecimento da proposta exclusivamente pelo Ministério Público – Necessidade – “Em se tratando da Lei 9.099/95, no que tange à suspensão condicional do processo, em obediência aos princípios da discricionariedade regrada, cabe exclusivamente ao Ministério Público a escolha da opção da via relativa do direito, não cabendo a imposição de medidas previstas pela nova lei sem a participação explícita do titular da ação penal” (TACRIM-SP – AC 1035713 – Rel. Junqueira Sangirardi). Esse entendimento consolidou-se no Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 696: Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal. Apesar de esta súmula tratar somente da suspensão condicional do processo, indica também essa posição para a transação penal. “Ora, se já existindo ação penal em andamento, não pode o Magistrado substituir-se ao promotor, a fim de propor a suspensão condicional do processo, devendo valer-se do disposto no art. 28 do CPP, é mais do que lógico não poder fazê-lo no âmbito da transação, quando a ação penal inexiste” (NUCCI, 2006, p. 387). Caso insista o Procurador-Geral em não formular a proposta de transação penal, “[...] nada mais resta a fazer do que designar a audiência prevista na lei para o rito sumaríssimo (art. 77 e ss.), o que também ocorrerá se se tratar de queixa-crime e não quiser o querelante oferecer proposta de acordo penal” (GRINOVER et al., 2005, p. 156). Maria Lúcia Karam (2004) entende que uma objeção a tal posicionamento diz respeito à impropriedade da aplicação analógica da regra do art. 28 do CPP neste caso. No entanto, contradiz-se na própria fundamentação dizendo que esse dispositivo legal “[...] institui um mecanismo de fiscalização e controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal condenatória de iniciativa do Ministério Público, assim visando assegurar o efetivo exercício do poder do Estado de punir” (GRINOVER et al., 2005, p. 171). Continua dizendo que “[...] já a recusa do Ministério Público em propor a suspensão condicional do processo tem feição totalmente diversa, passando-se dentro do processo, repercutindo sobre a situação jurídica do réu e, ao contrário Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes • 207 da hipótese tratada na invocada regra do art. 28 do CPP, envolvendo limitação ao exercício do poder do Estado de punir” (GRINOVER et al., 2005, p. 172). Ora, se a transação penal e a suspensão condicional do processo, mitigadores do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, são sucedâneos da ação penal, diante da recusa do Promotor de Justiça em apresentar a proposta, é necessário que o Juiz aplique também, nesse caso, a regra do art. 28 do CPP, como mecanismo de fiscalização e controle acima referido, visando assegurar também o efetivo exercício do poder do Estado de punir. É nítida a semelhança entre a hipótese prevista no dispositivo referido (dissenso entre o Promotor de Justiça e o Magistrado quanto ao arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação) e o dissenso entre o Promotor de Justiça e o Magistrado em aplicar os institutos descarcerizadores previstos na Lei 9.099/95, pois em ambos casos tratam de dispor ou de desistir da propositura da ação penal pública, cujo titular exclusivo é o Ministério Público, segundo disposição constitucional. Além do mais, a transação penal, assim como o arquivamento do inquérito policial ou peças de informação não se enquadra na área de processo penal, caindo por terra, assim, a alegação de Fernando da Costa Tourinho Filho de ser indeclinável a atividade jurisdicional. A aplicação, de ofício, da transação penal equivaleria ao exercício da jurisdição sem ação. Aplicar o Magistrado, de ofício, propostas alternativas à condenação previstas nos artigos 76 e 89 da Lei 9.099/95 equivale a retirar do Ministério Público o exercício da ação penal. Não é razoável ao Magistrado fazer as vezes do Ministério Público, aplicando ex officio tais institutos contra a vontade do Parquet, diante de sua recusa ou de seu silêncio, por ser este o titular da ação penal pública. Neste sentido, é o entendimento de Júlio Fabbrini Mirabete (2002, p. 131): Ao contrário do que se já tem afirmado, entendemos não ser a transação penal prevista no art. 76 um direito público subjetivo do autor do fato, de modo a possibilitar que seja apresentada contra a vontade do Ministério Público, quer por iniciativa do juiz, quer por requerimento do interessado. Tratase, aqui, do eventual exercício da pretensão punitiva, cabendo exclusivamente ao Promotor de Justiça a titularidade do jus persequendi in judicio, nos expressos termos do art. 129, I, da Constituição Federal. A discricionariedade é a atribuição ao agente público de uma margem de escolha, configurada por uma pluralidade de soluções, todas válidas por estarem adequadas ao ordenamento jurídico. Assim, o Poder Judiciário só pode verificar a presença de condições legais que permitem a opção por parte do Ministério Público, mas não fiscalizar a oportunidade, o mérito da opção formulada pelo titular. 208 • Direito Processual Penal Afirma ainda que: [...] cabe somente ao Ministério Público a parcela da soberania do Estado de promover a persecução criminal, verificando se existem as condições necessárias para o início do devido processo legal, vedando-se ao Poder Judiciário, fora dos limites legais, discutir o mérito do ato discricionário do Parquet, violando o princípio do devido processo legal (art. 5º, LIII, da Constituição Federal). (MIRABETE, 2002, p. 132). Ademais, não é função do Ministério Público buscar condenação a qualquer custo, nem privar de benefícios legais o acusado. Não é esse o compromisso a que está obrigado como dominus litits da ação penal pública. Seu compromisso é com a Justiça. A respeito do assunto, escreveu Eugênio Pacelli de Oliveira (2004, p. 101): Com efeito, o Ministério Público somente pode ser qualificado como parte no processo penal do ponto de vista estritamente formal ou processual. Parte, portanto, apenas e enquanto ocupar a posição de autor, a sustentar pedido condenatório em face de alguém. Mas, a partir daí, do oferecimento da denúncia, a posição do Ministério Público, no que respeita ao pedido, não é parcial, isto é, não se encontra vinculada à pretensão punitiva. Muito ao contrário, e uma vez que seja instaurado o contraditório e exercida a ampla defesa – inexistentes na fase pré-processual, de formação da convicção do parquet – o Ministério Público submete-se unicamente ao Direito, podendo e devendo produzir prova inclusive no interesse da defesa, se convencido da improcedência da pretensão então deduzida ou mesmo se estiver em dúvida quanto a ela. Nesse sentido, como visto, a sua atuação é totalmente independente e, fundamentalmente, de custos legis. É por isso que se pode afirmar que, quanto ao direito material, o órgão estatal responsável pelo juízo acusatório é imparcial; no plano processual, ele ocupará a posição de parte, enquanto no exercício das faculdades e (no desincumbir-se dos) ônus processuais atribuídos aos litigantes em qualquer processo judicial. Parte, por fim, apenas quando definida como aquele que demanda em seu próprio nome (ou em cujo nome é demandada) a atuação duma vontade da lei e aquele em face de quem essa atuação é demandada, na clássica lição de Giuseppe Chiovenda. Como órgão pertencente à administração, exerce atividade pública, devendo pautar-se pelo princípio da legalidade. A intervenção penal do Ministério Público, tanto no âmbito de sua função institucional como no plano processual, é a de órgão imparcial. Sua posição é absolutamente imparcial, porque deve obediência somente Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes • 209 à Constituição e à legislação infraconstitucional. Tal posição advém das prerrogativas e garantias institucionais que lhe foram atribuídas (CF, art.127), sobretudo a da independência funcional. Assim como no arquivamento do inquérito policial ou peças de informação, o controle de atuação do Ministério Público, quando há dissenso entre o Promotor de Justiça e o Magistrado quanto à propositura da transação penal ou suspensão condicional do processo, num primeiro momento, será feito pelo Poder Judiciário que, discordando, deverá submeter a questão ao Procurador-Geral, órgão de revisão. Em face do princípio da independência funcional, da legalidade e da exclusividade da iniciativa da ação penal pública, não pode o Magistrado substituir a vontade do Promotor de Justiça diante da recusa deste em apresentar a proposta. Nem mesmo diante do seu silêncio, como no caso de não comparecimento na audiência preliminar, apesar de devidamente intimado ou no de oferecer a denúncia e silenciar sobre a propositura da suspensão condicional do processo. Mas é claro que a discricionariedade do titular da ação penal não pode ficar adstrita ao subjetivismo de cada órgão de execução, devendo-se aplicar então, analogicamente, a regra prevista no art. 28 do CPP, impondo-se, assim, o princípio constitucional da unidade do Ministério Público para orientação de política criminal. Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, no HC 75.343-MG, julgado em 12.11.1997, conforme mencionado no seguinte acórdão: Suspensão condicional do processo – Artigo 89 da Lei 9.099/95 – Faculdade exclusiva do Ministério Público, a quem não pode o Juiz substituir-se – Retroatividade – Encaminhamento dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça – Provimento do apelo – É entendimento já consagrado em decisões jurisprudenciais que a iniciativa de propor a suspensão condicional do processo, na forma do art. 89 da Lei 9.099/95, é faculdade exclusiva do Ministério Público, a quem compete privativamente promover a ação penal pública (CF, art. 129, I), sendo vedado ao Juiz da causa substituir-se aquele órgão. Assim, conforme já decidido, inclusive no STF, em Sessão Plena, no HC 75.343-MG, ‘não cabe ao Magistrado, ante recusa fundamentada do Ministério Público, a requerimento de suspensão condicional do processo, o exercício de tal faculdade, visto que não se trata de direito subjetivo do réu, mas de ato discricionário do parquet’. Decidiu, também, o Supremo, no mesmo julgamento, que, ‘na hipótese do Promotor de Justiça recusar-se a fazer a proposta, o Juiz, verificando presentes os requisitos objetivos para a suspensão do processo, deverá, encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça para que este se pronuncie sobre o oferecimento, ou não, da proposta’, pois, ‘tendo o referido artigo a finalidade de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal para efeito de política criminal, impõe-se o princípio constitucional 210 • Direito Processual Penal da unidade do Ministério Público para orientação de tal política (CF, art. 127, §1º), não devendo essa discricionariedade ser transferida ao subjetivismo de cada Promotor’ (TJRJ – AC 789/96 – Rel. Des. Índio B. Rocha). 3. Conclusões As propostas de transação penal e de suspensão condicional do processo constituem, nos termos da Lei 9.099/95, atos privativos do Ministério Público, pois são sucedâneos da iniciativa em promover, privativamente, a ação penal pública (CF, art. 129, inciso I). Ambos os institutos tratam de atos consensuais, o que torna indispensável a manifestação de ambas as partes, ou seja, o dominus litis da ação penal e o autor do fato ou réu, sendo impossível a substituição deles pelo Magistrado, que, no caso da transação penal, deve atuar como mediador. A transação penal e a suspensão condicional do processo mitigam os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública, ao adotar a Lei 9.099/95 o princípio da discricionariedade regrada. As propostas da transação penal e da suspensão condicional do processo são atos privativos do Ministério Público, de acordo com os artigos 76 e 89 da referida Lei, não se podendo obrigar, assim, o Ministério Público a fazer essas propostas ou a oferecer a ação penal. O texto legal não previu a possibilidade de o Juiz, de ofício, propor a transação penal ou a suspensão condicional do processo. Assim, não pode o intérprete, onde a lei não distinguiu, fazê-lo. No sistema adotado, as propostas da transação penal e da suspensão condicional do processo cabem ao Ministério Público, não sendo admitida ao defensor, ou ao Juiz, sua proposição, caso o Parquet assim não faça. É totalmente desarrazoado o Magistrado substituir o membro do Ministério Público quando este se recusa a oferecer a proposta, fazendo-o em seu lugar e homologando o que ele mesmo, Magistrado, propôs ao autor do fato. Conforme previsão constitucional, as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira (CF, art. 129, §2º). Diante do silêncio ou da recusa do Promotor de Justiça, deve o Juiz, segundo entendimento majoritário, enviar o termo circunstanciado de ocorrência ao Procurador-Geral de Justiça, aplicando analogicamente o art. 28 do Código de Processo Penal, cabendo ao Chefe da Instituição decidir-se por concordar ou não com o Juiz, propondo a transação ou a suspensão condicional do processo, designando outro órgão do Ministério Público para fazê-lo ou, ainda, insistir em não formular essas propostas. Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes • 211 Entendimento contrário violaria a autonomia de vontade do titular da ação penal, o princípio da independência funcional do Ministério Público e princípios constitucionais processuais, como o da iniciativa de promover, privativamente, a ação penal pública. O Ministério Público na intervenção penal, tanto no âmbito de sua função institucional quanto no plano processual, é órgão imparcial, pertencente à administração e suas ações devem pautar-se pelo princípio da legalidade. Em face dos princípios da legalidade e da independência funcional, deve o Ministério Público obediência à Constituição e às leis, não podendo o Magistrado substituir sua vontade, diante de sua recusa em propor os institutos descarcerizadores, introduzidos no ordenamento jurídico pela Lei 9.099/95, por ser do Ministério Público a exclusividade da titularidade da ação penal pública. Em caso de dissenso entre Promotor de Justiça e Magistrado deve-se aplicar analogicamente a regra do art. 28 do CPP, impondo, assim, o princípio constitucional da unidade do Ministério Público para orientação de política criminal. Assim, a discricionariedade do titular da ação penal não ficará adstrita ao subjetivismo de cada Promotor de Justiça. 212 • Direito Processual Penal 4. Referências bibliográficas BATISTA, Weber M.; FUX, Luiz. Juizados Especiais Cíveis e Criminais e Suspensão Condicional do Processo: a Lei 9.099/95 e a doutrina mais recente. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial. 7. ed. v. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. 10. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. MACHADO, Agapito. Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal. São Paulo: Saraiva, 2001. MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2002. NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. São Paulo: Saraiva, 1996. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Luciana Kéllen Santos Pereira Guedes • 213 Jurisprudência Informativo 402 do STJ, Competência. Contravenção. Lei Maria da Penha. Não aplica a lei 9099/95. No caso, o autor desferiu socos e tapas no rosto da declarante, porém sem deixar lesões. Os juízos suscitante e suscitado enquadraram a conduta no art. 21 da Lei de Contravenções Penais (vias de fato). Diante disso, a Seção conheceu do conflito para declarar competente o juízo de Direito da Vara Criminal, e não o do Juizado Especial, por entender ser inaplicável a Lei n. 9.099/1995 aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda que se trate de contravenção penal. Precedentes citados: CC 104.128-MG, DJe 5/6/2009; CC 105.632-MG, DJe 30/6/2009, e CC 96.522-MG, DJe 19/12/2008. CC 104.020-MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/8/2009. Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal - Descumprimento de cláusula de transação penal. Seguimento da ação penal. O Tribunal, após reconhecer a existência de repercussão geral no tema objeto de recurso extraordinário interposto contra acórdão da Turma Recursal do Estado do Rio Grande do Sul, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da possibilidade de propositura de ação penal quando descumpridas as cláusulas estabelecidas em transação penal (Lei 9.099/95, art. 76) e negou provimento ao apelo extremo. Aduziu-se que a homologação da transação penal não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retorna-se ao status quo ante, viabilizando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal. Precedentes citados: HC 88785/SP (DJU de 4.8.2006); HC 84976/SP (DJU de 23.3.2007) HC 79572/GO (DJU de 22.2.2002); RE 581201/RS (DJE de 20.8.2008); RE 473041/RO (DJU de 16.5.2006); HC 86694 MC/SP (DJU de 11.10.2005); HC 86573/SP (DJU de 5.9.2005); RE 268319/PR (DJU de 27.10.2000). RE 602072 QO/RS, rel. Min. Cezar Peluso, 19.11.2009. (RE-602072) Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal – Gravação ambiental por um dos interlocutores, prova lícita e admissível. O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral no tema objeto de recurso extraordinário interposto contra acórdão de Turma Recursal dos Juizados 214 • Direito Processual Penal Especiais Cíveis e Criminais de Comarca do Estado do Rio de Janeiro, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da admissibilidade do uso, como meio de prova, de gravação ambiental realizada por um dos interlocutores, e deu provimento ao apelo extremo da Defensoria Pública, para anular o processo desde o indeferimento da prova admissível e ora admitida. Vencido o Min. Marco Aurélio que desprovia o recurso, ao fundamento de que essa gravação, que seria camuflada, não se coadunaria com os ares constitucionais, considerada a prova e também a boa-fé que deveria haver nas relações humanas. Alguns precedentes citados: RE 402717/ PR (DJE de 13.2.2009); AI 578858 AgR/RS (DJE de 28.8.2009); AP 447/RS (DJE de 28.5.2009); AI 503617 AgR/PR (DJU de 4.3.2005); HC 75338/RJ (DJU de 25.9.98); Inq 657/DF (DJU de 19.11.93); RE 212081/RO (DJU de 27.3.98). RE 583937 QO/RJ, rel. Min. Cezar Peluso, 19.11.2009. (RE-583937) Jurisprudência • 215 Comentário à Jurisprudência BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA REPRESSÃO AO TRÁFICO DE DROGAS JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais A justificativa para este breve estudo, registra-se prefacialmente, é a de fornecer subsídios, tão despretensiosos quanto meramente ilustrativos, para todos aqueles que, por dever de ofício, vêem-se às voltas com a repressão (termo adequado, salvo melhor entendimento, para referir-se à missão estatal corolária do jus puniendi) ao tráfico de drogas, máxime no que toca ao momento específico da fixação das reprimendas corporal e pecuniária, haja vista a amplitude de gradação entre os limites mínimo e máximo das penas abstratamento cominadas ao delito em questão, bem assim as causas especiais de aumento e de diminuição de pena, estipuladas na vigente legislação antidrogas. Em segundo lugar, mister se faz consignar que o histórico acadêmico deste autor assim como a experiência profissional por ele acumulada – possui formação em Biologia (nível superior), sendo oriundo da Polícia Civil de São Paulo (escrivão e delegado de polícia, somados quase sete anos de atuação) e, no campo do Direito Penal, realiza trabalho especializado na área de tóxicos há praticamente uma década, sempre em nome do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (v.g., recursos ordinários e extraordinários, lato sensu), na qualidade de procurador de justiça perante a 2ª Câmara Criminal do TJMG – constituem fatores que, sem embargo de não o tornarem, de forma alguma, um expert no assunto, em linhas gerais o credenciam a tal função. A chamada Nova Lei de Drogas, a L.F. nº 11.343/06, que entrou em vigor em 8 de outubro de 2006, expressamente revogou (art. 75) as antigas Lei de Entorpecentes (L.F. nº 6.368/76) e Nova Lei de Tóxicos (L.F. nº 10.409/02), as quais possuíram vigência conjunta entre as datas de 28 de fevereiro de 2002 até a entrada em vigor da Nova Lei de Drogas (08.10.06). De fato, a L.F nº 10.409/02, mercê de veto presidencial – que não foi derrubado – ao capítulo que tratava das infrações penais, limitou-se a trazer para o mundo jurídico, entre outras disposições, estas de cunho administrativo, novas regras, sob 216 • Direito Processual Penal pena de nulidade, para o rito (instrução criminal) a ser imprimido nos processos dos delitos referentes a tóxicos, estes, por sua vez, estipulados pela L.F. nº 6.368/76, a qual também possuía eficácia quanto ao procedimento relativo à fase inquisitiva (autuação do indiciado em flagrante delito, investigação, apreensões, perícias etc.). A novel legislação, portanto, extinguiu a simbiose até então existente, instituindo o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), prescrevendo medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelecendo normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito, bem como definindo crimes (art. 1º). Para os objetivos da Nova Lei de Drogas, consideram-se como tais as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados legalmente ou relacionados em listas periodicamente atualizadas pelo Poder Executivo da União (norma penal em branco). Malgrado não cuidar este trabalho dos usuários e nem dos dependentes de drogas (os experimentadores ou consumidores eventuais não se tornam, necessariamente, dependentes, como é de sabença geral), algumas considerações sobre o uso e a dependência serão feitas, porém sempre visando à pessoa do traficante e ao crime de tráfico, mormente na específica fase da dosimetria das penas, pois aqueles são, como é curial, os consumidores das drogas adquiridas, guardadas, mantidas em depósito, vendidas, produzidas, importadas, exportadas, remetidas, fabricadas, preparadas, expostas à venda, oferecidas, transportadas, prescritas, ministradas, entregues a consumo, trazidas consigo ou fornecidas pelos traficantes, ainda que gratuitamente, mas sempre sem autorização legal ou em desacordo com as determinações legais ou regulamentares (art. 33, caput). Referidas condutas, em tais condições de irregularidade, também constituem tráfico ilícito quando dizem respeito a matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, assim como o semeio, o cultivo ou a colheita de plantas que constituam matéria-prima para o preparo de drogas (art. 33, § 1º, incisos I e II). Idem quando se utiliza, para daquela forma se conduzir, local ou bem de qualquer natureza de que se tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou, ainda, consente-se que outrem dele se utilize, onerosa ou gratuitamente (art. 33, § 1º, item III). Por tráfico ilícito de drogas, portanto, não se faz mister o especial fim de agir do comércio, bastando, para configurar o delito, que não se trate de aquisição ou posse (guarda, depósito, transporte ou porte) para consumo pessoal (art. 28, caput). O nomem juris tráfico, no entanto, não deixa de dar ensejo, principalmente intencional – não desprovida a intenção, necessariamente, de alguma dose de má-fé –, a interpretações que, a uma primeira e descurada análise, sugerem a necessidade da figura de um comprador, de um adquirente, de um consumidor, já que por José Fernando Marreiros Sarabando • 217 este vocábulo se tem, no léxico, a definição de mercancia, de trato mercantil, de comércio. Por tráfico ilícito de drogas se há de entender, todavia, segundo o conceito legal, qualquer das condutas, perpetrada isolada ou cumulativamente, especificadas no art. 33 da Nova Lei de Drogas, visto que alimentam, de alguma forma, o ciclo produtor e disponibilizador das substâncias ou produtos capazes de causar dependência e, ainda, que se vejam especificadas em lei ou em listas publicadas pelo Executivo da União. No momento exato da estipulação da resposta penal a ser aplicada em desfavor do réu, finalmente, haverá a autoridade judiciária de levar na devida conta, dado o gradiente das reprimendas disponíveis (cinco a quinze anos de reclusão, mais multa de quinhentos a um mil e quinhentos dias-multa), assim como levadas em conta as majorantes e minorantes, algo que é de suma importância para a melhor prestação jurisdicional possível, em casos dessa natureza: o grau de nocividade da droga apreendida, este a ser aquilatado em função das prováveis conseqüências fisiológicas derivadas do seu consumo (alterações comportamentais instantâneas ou posteriores, maior ou menor suscetibilidade de dependência física ou psíquica e, por fim, viabilização de atos de violência, contra si ou contra terceiros, ocasionados pelo próprio consumo ou pela abstinência). Não se poderá ter no mesmo prato da balança, portanto, a maconha e o crack, a cocaína comum, a heroína, o LSD (dietilamida do ácido lisérgico), as anfetaminas etc., substâncias essas de efeitos imediatos e futuros muito diferentes, atingindo, primeiramente, o indivíduo e, ato contínuo, os que com ele convivem e as demais pessoas que venham a manter com ele contato, acidental ou proposital. Assunto, portanto, o tráfico de drogas, sem qualquer sombra de dúvida, de interesse máximo da sociedade – daí porque configurado crime contra a saúde pública –, porquanto é atingido não só o indivíduo consumidor, mas também, principalmente, toda a coletividade que com ele tenha contato, ainda que não diretamente. Ao Judiciário cabe, portanto, sopesar e fixar a reprimenda criminal disponível, levandose em conta as majorantes e as minorantes, as atenuantes e as agravantes, tudo entre os seus respectivos patamares mínimos e máximos, justamente atendendo às variantes de cada caso concreto, impondo pena maior às hipóteses de mais grave lesividade ao bem jurídico tutelado – saúde pública – e, sob a mesma ótica, sancionando menos rigorosamente as condutas de menor potencialidade ofensiva. Na hipótese da cocaína tradicional, a pulverizada (pó), ou a petrificada (crack), esta de efeitos físicos e psíquicos ainda mais deletérios, o recrudescimento das penas corporal e pecuniária se impõe. Com efeito, citando-se ensinamento jurisprudencial, que deve ser largamente 218 • Direito Processual Penal difundido: [...] a alta nocividade da cocaína está a exigir especial rigor no combate ao seu tráfico, impondo-se, em conseqüência, a aplicação aos traficantes de reprimendas penais de severidade correspondente ao elevado risco que a nefanda mercancia acarreta à saúde pública. (RJTJRS, vol. nº 130/154) Já a maconha, por seu turno, também chamada de “droga social”, peculiariza-se por se tratar da substância de menor poder entorpecente e causador de dependência psíquica que existe, inferior, mesmo, à nicotina e ao álcool, estas de consumo e comércio permitidos, ainda que dotado, este, de alguma restrição legal e regulamentar (propaganda e venda a menores de 18 anos de idade). A maconha, como é sabido, mercê de seus compostos canabinóides (canabinol, canabidiol e tetrahidrocanabinol), também não causa dependência física (ao contrário do álcool), mas apenas psíquica, como acima registrado, e, além disso, acarreta apenas distúrbios leves de comportamento (muito diferente do que se dá com a cocaína, por exemplo, especialmente em sua forma sólida, o temível crack, o benzoil-metil-ecgonina, alcalóide que se obtém a partir do processamento de folhas da Erytrhoxylon coca, planta de origem andina da qual se extrai a base para a fabricação da cocaína), limitadas tais distorções a um efeito quase sempre calmante, por vezes hilariante e estimulante do apetite por alimentos ricos em carboidratos (gula por doces, a popular “larica”, no vocabulário dos seus incautos usuários). Salvo melhor juízo não se tem registro, a propósito, de crimes graves cometidos sob o efeito de maconha, ao contrário do álcool, da cocaína, da heroína (diacetilmorfina, droga opióide natural ou sintética) etc. A razão por que a maconha (melhor dizendo, os compostos canabinóides nela freqüentemente presentes – mas não sempre, daí a importância fundamental do laudo toxicológico definitivo para detecção desses compostos) continua figurando no rol de substâncias de consumo e mercancia proibidos (substância proscrita) não é o fato de causar dependência psíquica severa ou acarretar algum nível preocupante de alteração comportamental no seu consumidor, pois, se simples assim fosse, o álcool e a nicotina também teriam sido incluídos naquele rol (para pânico dos alcoólatras e nicotinômanos). Acontece, porém, que os usuários, geralmente jovens deprimidos, frustrados e problemáticos (v.g., crises agudas ou crônicas de insatisfação psíquica), costumam revelar-se ávidos por novas e mais estimulantes “experiências”, em termos de intensidade ou de duração, acabando por se valerem da maconha como mera servidão de passagem para drogas de potencial entorpecente maior (mais intensos e mais duradouros efeitos), em sua ânsia de fuga virtual (de cunho meramente psíquico) das por vezes invariavelmente incontornáveis adversidades da vida, para as quais não possuem resistência suficiente, pelas mais diversas razões, mas, em José Fernando Marreiros Sarabando • 219 suma, por conta de sua pouca experiência de vida. É justamente esse uso da maconha, principalmente pelos adolescentes e jovens adultos, como mera fase de transição para substâncias tóxicas de maior potencialidade lesiva à saúde pública (cocaína, LSD etc.), em especial quando apreendida em grande quantidade, que deve exigir de tantos quantos têm, por dever profissional, de lidar com a repressão das drogas grande rigor e exemplar atuação que sirva tanto para castigar quanto para desestimular o seu consumo, a título de prevenção geral e especial. É sabido, outrossim, que os efeitos da maconha são breves e pouco intensos, e que, além disso, tendem a diminuir com o uso mais ou menos freqüente, razão adicional por que os jovens partem, em seguida, em busca de drogas mais potentes. Por outro lado, eis que o complexo fenômeno da abstinência também importa mesmo que se trate tão-somente de maconha, pois, como se sabe, seus usuários podem tanto entristecer-se como enfurecer-se, frustrar-se ou apenas mergulhar em depressão, nada obstante a mencionada fúria ser, de fato, o efeito colateral menos comum, menos intenso e menos duradouro. Interessante, a esta altura, muito embora relativamente estranho a este trabalho, a inserção de um enfático protesto contra toda e qualquer pretensão, de lege ferenda, acerca da descriminalização, pura e simples, do uso de drogas, de forma que, a par de alimentar financeiramente o tráfico, as conseqüências nefastas do mero consumo de forma nenhuma que se limitam, singelamente, ao indivíduo consumidor, mas atingem toda a sociedade em que ele se vê inserido, em especial a família, os vizinhos, o círculo de amizades, e, da mesma forma, eventualmente também pessoas a ele estranhas, as quais podem, por infortúnio, ser vítimas de atos de violência, quase sempre derivados do desespero ou da ânsia naturais ao fenômeno fisiológico da abstinência. Deve sempre a resposta criminal, a propósito, na memorável lição do mui eminente desembargador do TJMG, José Arthur de Carvalho Pereira, de saudosa memória, situar-se na região de exato equilíbrio entre o máximo de satisfação para a sociedade e o mínimo de aflição para o acusado, revelando-se, destarte, nada mais do que suficiente aos fins preconizados pelo sancionamento penal (repressão do delito e sua profilaxia, esta com alcance tanto individual, para o agente, como social). A autoridade judiciária deve, então, a partir das circunstâncias presentes em cada caso concreto, aplicar a pena definitiva que melhor reprima e previna o tráfico, especialmente como medida de profilaxia, mas, sempre, reservando maior rigor à lida com o crack, a cocaína em pó, o LSD, a heroína e as anfetaminas em geral (o ecstasy, por exemplo, a droga tão em voga, hoje em dia, nas boates, principalmente nos grandes centros urbanos), por sinal, nessa ordem. Quanto à maconha, por sua vez, apenas a apreensão de grandes quantidades é que 220 • Direito Processual Penal deve merecer o mesmo rigor, exatamente por figurar, como registrado anteriormente, como a droga de menor potencial ofensivo, tanto à saúde individual como à saúde pública. Olvida-se, muitas vezes, de que se há de ter por norte, em resumo, nas decisões judiciais, o grau de periculosidade não só do agente, mas, principalmente, da espécie da droga envolvida, para o meio ambiente social, bem assim de sua quantidade, a teor da claríssima dicção do dispositivo de número 42 da Nova Lei de Drogas, o qual às expressas afirma, inclusive, que deverá predominar sobre o disposto, também sobre fixação das reprimendas, no art. 59 do Código Penal. Eis o disposto no art. 42 da L.F. nº 11.343/06: “O juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente.” De fato, muito comum, na rotina forense e dos tribunais, é a fixação das penas em seus respectivos patamares mínimos legais levando-se em conta somente os favoráveis aspectos objetivos e subjetivos relacionados à pessoa do acusado, principalmente a primariedade, relegando-se a um plano secundário, ou mesmo esquecendo-se por completo, a natureza da substância entorpecente apreendida. Equipara-se, em casos que tais, o traficante de maconha com o de cocaína, malgrado a diversidade de perigo envolvido num e noutro agir.Não se pode permitir, todavia, a reiteração de erros crassos como esse. Há de se reservar a estipulação da reprimenda no seu menor limite legal (pena mínima + decote máximo a título da minorante do art. 33, § 4º, da Nova Lei de Drogas, vale dizer, um ano e oito meses de reclusão) apenas aos casos em que todas as circunstâncias legais e judiciais sejam, sim, favoráveis ao réu, entretanto, sendo indispensável, ainda, que a espécie da droga envolvida seja apenas a maconha e, mesmo assim, em não expressiva quantidade, plenamente atendendo-se, dessa forma, às finalidades maiores do sancionamento criminal. Isso significa, em outras palavras, que o tráfico de cocaína, em pó ou em sua forma mais temível, a petrificada (crack), não pode conduzir, jamais, ao apenamento do réu no patamar mínimo legal, ainda que seja pequena a quantidade apreendida em seu poder, pois são colocados em risco especialmente severo tanto o usuário como a sociedade. Em casos dessa natureza, portanto, há o magistrado de recusar-se à aplicação da pena mínima (cinco anos de reclusão), bem assim em casos de configuração da mencionada causa especial de redução de pena, à fixação de seu limite maior (dois terços), reprimindo com maior rigor, pois, conduta que mais oferece perigo à saúde José Fernando Marreiros Sarabando • 221 do usuário e põe em maior risco a segurança da coletividade. Ainda a respeito da minorante do art. 33, § 4º, da N.L.D., há algumas considerações incidentais a se fazer, porquanto muito importantes. Em primeiro lugar, não há que se falar, no caso, em tipo penal autônomo, verdadeira “figura privilegiada”, como preconizam alguns estudiosos do assunto, fenômeno jurídico que somente ocorre com o § 3º do dispositivo em tela (chamado “tráfico de drogas privilegiado” ou “tráfico entre amigos”), quando o imputável, sem objetivo de lucro financeiro, oferece droga a pessoa amiga ou conhecida, para uso em conjunto da substância (pena de detenção, de seis meses a um ano, mais multa surpreendentemente elevada, tudo sem prejuízo das sanções previstas no art. 28, que trata da aquisição ou posse para consumo próprio). O art. 33, § 4º, da N.L.D., portanto, disciplina, exclusivamente, uma causa especial de diminuição de pena, antiga aspiração, aliás, dos juristas pátrios, que sempre defenderam a separação, clara e evidente, entre os traficantes iniciantes e os profissionais quando da imposição das respostas penais. Em segundo lugar, tendo em vista que a dicção da minorante é extremamente falha, pois, para merecer o valioso benefício da redução de sua pena entre um sexto e dois terços, o agente deve ser primário, possuir bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas e nem integrar organização criminosa. Ora, esses quatro requisitos não se completam, ao contrário, excluem-se mutuamente, ambos os primeiros e ambos os últimos, nada obstante o que realmente pretendeu o legislador, que foi o máximo rigor para com a reincidência e o crime organizado. Exigindo o dispositivo mencionado, portanto, que, para o deferimento da minorante, além da primariedade e dos bons antecedentes, não se dedique o réu às atividades criminosas e nem integre organização criminosa, o que fez o legislador foi cunhar uma “cláusula legal suicida”, vale dizer, uma norma que contém dois pressupostos os quais, pela lógica mais do que pelo bom senso, revelam incompatibilidade visceral com os outros pressupostos inseridos, anteriormente, no mesmo dispositivo, tornando-se, por isso, os últimos requisitos, absolutamente desprezíveis. Ora, se o acusado ostenta primariedade e bons antecedentes, de rigor que seja beneficiado, automaticamente, com a causa especial de diminuição de pena em questão, porquanto atendidos todos os seus requisitos realmente dotados de efetividade jurídica. De fato, se o réu é primário e de bons antecedentes, como poderá, então, dedicar-se a atividades criminosas ou integrar organização criminosa? Ainda que o próprio acusado admita, que confesse em detalhes absolutamente verossímeis, ser integrante de uma feroz quadrilha, o tão-só fato de ostentar 222 • Direito Processual Penal primariedade e bons antecedentes o dispensa, ipso facto et jure, dos dois requisitos seguintes, todos contidos no art. 33, § 4º, da atual legislação antidrogas. Demais disso, o princípio constitucional da presunção do estado de inocência veda que seja o réu considerado integrante de organização criminosa ou dedicado a atividades criminosas apenas com base em possibilidades ou probabilidades, ainda que altas essas probabilidades e mesmo que diante de sua própria confissão. Mesmo raciocínio se aplica na hipótese de constar contra o réu condenações criminais, mas encontrando-se as sentenças ainda pendentes de recursos, porquanto ainda existente e válida, em sua plenitude, a vantagem legal da primariedade. Sobre bons antecedentes, vale consignar en passant que a melhor doutrina e a mais abalizada jurisprudência entendem, simplesmente, toda e qualquer situação contrária à ostentação de “maus antecedentes”, esses significando apenas a existência de eventuais sentenças penais condenatórias transitadas em julgado, contudo alcançadas pelo lapso temporal depurador do art. 64, I, do Código Penal. Quaisquer outras circunstâncias, a saber, anotações desabonadoras, inquéritos em andamento, processos em andamento, boletins de ocorrência etc., não têm o condão de constituir maus antecedentes, sob pena de se ferir, mortalmente, o princípio constitucional da presunção do estado de inocência. Há de se desprezar, pura e simplesmente, portanto, as duas exigências últimas do dispositivo em questão, o § 4ª do art. 33 da N.L.D. (não dedicação às atividades criminosas e a não integração em organização criminosa), pré-requisitos absolutamente inócuos, valendo, para fins de se aferir a configuração, ou não, da minorante, apenas os dois primeiros requisitos, isto é, primariedade e boa antecedência. Nessa esteira, em se tratando de incidência de causa especial de aumento de pena (art. 40, Nova Lei de Drogas), por seu turno, a lida tão-só com a maconha deverá fazer tender o juiz, desde que, obviamente, presentes todas as circunstâncias legais e judiciais favoráveis ao réu, à estipulação do seu grau mínimo (um sexto), exceto apenas se se tratar de expressiva quantidade apreendida, e, contrario sensu, não se poderá fixar tal quantum nas hipóteses de drogas diversas. Vale lembrar, por oportuno, que a Nova Lei de Drogas em duas oportunidades veda a substituição da pena corporal por meras restrições de direitos, a chamada “pena substitutiva” (vide arts. 33, § 4º, e 44). Nas hipóteses, todavia, de réus que cometeram tráfico de drogas na vigência ainda da legislação anterior, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vêm entendendo, agora já pacificamente, que têm eles direito à substituição, desde que atendidos, casuisticamente, os critérios objetivos e subjetivos da atual redação do art. 44 do Código Penal (muito embora sempre tenhamos defendido a tese de José Fernando Marreiros Sarabando • 223 que os traficantes de drogas jamais ultrapassam o óbice do inciso III do dispositivo em questão, que exige, em resumo, que haja indicações no sentido da suficiência da pena substitutiva aos fins do sancionamento criminal, quais sejam a prevenção geral e especial). Quanto ao regime prisional, outrossim, recomenda-se o inicial fechado, dada a especial periculosidade dos traficantes de droga para o meio ambiente social, máxime porque, como é curial, não configura direito subjetivo do réu, exclusivamente por conta da quantidade da pena privativa de liberdade, a imposição dos regimes aberto ou semi-aberto de cumprimento (art. 33, CP). A atuação do Parquet nas ações penais envolvendo o tráfico de drogas assume relevância e exige zelo especial, porquanto instituição destinada, pela Carta Magna, à defesa dos mais importantes interesses da sociedade, em linhas gerais, aqueles indisponíveis. Deverá o membro do Ministério Público, portanto, velar pela melhor prestação jurisdicional possível, em cada caso concreto, lançando mão, sempre que necessário ou conveniente, dos recursos processuais à sua disposição, para que ao final prevaleça, sempre, o interesse da coletividade sobre o do indivíduo. O problema todo, na realidade, concentra-se na elasticidade exagerada – somada a uma generosidade que só seria compreensível em locais paradisíacos como Shangri-lá – que alguns juristas procuram dar a determinados rigores introduzidos na legislação penal, a qual já se destaca mundialmente, aliás, pela brandura excessiva, como se não fôssemos uma sociedade permeada pela violência extrema, pela certeza quase que total da impunidade, onde uma parcela tão ínfima dos crimes é efetivamente reprimida via punição de seus autores, o que permite a conclusão de que no Brasil o crime compensa e compensa muito. Com efeito, incumbe a todos que militam na questão da repressão às drogas, bem assim aos crimes hediondos em geral, um especial rigor, mormente no que tange à interpretação da norma legal. Não se há de permitir, via de exegese benevolente em demasia e à guisa de política criminal, verdadeiro exercício de jus dare, missão constitucional do Poder Legislativo, ao Judiciário, ao qual é cometido, por seu turno, tão-somente o jus discere. Postar-se indiferente à interpretação literal e teleológica da Lei dos Crimes Hediondos, a Lei Federal nº 8.072/90, buscando minúcias e filigranas nada razoáveis, é no mínimo concorrer para a inviabilização do combate ao narcotráfico, frustrando a intenção evidente que norteou o processo legislativo de 1976 e 1990, assim como aos outros delitos especialmente graves ali discriminados. Não se há mesmo de premiar os réus, registre-se, com benefícios fora dos limites do razoável, valendo como bússola certa a especial gravidade de sua conduta delituosa, 224 • Direito Processual Penal como ocorre, principalmente, com o tráfico de drogas. É a excessiva liberalidade de alguns renomados juristas, não obstante a convicção honesta destes em seus ideais libertários, que se presta a, se não estimular, no mínimo contribuir de modo importante para a continuidade escancarada das terríveis e maléficas ações do tráfico, que há tempos não mais vê, na resposta judiciária, uma repressão suficiente para nem sequer abalar a ousadia e a arrogância de seus truculentos integrantes. Basta uma simples consulta às notícias veiculadas em jornais e revistas semanais para ter uma idéia marcadamente pessimista acerca do temor – praticamente nulo – que os traficantes nutrem pelo Poder Judiciário, quando deveriam, isto sim, ter pelos juízes e tribunais não só respeito, mas também uma boa dose de temor reverencial. À Polícia não se pode atribuir maiores responsabilidades, numa análise isenta dessa situação de quase total descontrole do Estado sobre as ações do tráfico, porquanto bem, mal ou pessimamente, como seja, vem ela realizando prisões e mais prisões, diuturnamente. O Ministério Público, idem, muito embora também nele haja aqueles – e não são poucos – que, românticos incuráveis por natureza, simplesmente não conseguem enxergar na atuação criminal a missão que mais importa para a sociedade, preferindo, ao invés, remanejar material humano e estrutura consideráveis para setores menos vitais, pelo menos a curto prazo, como se dá com a defesa dos interesses difusos. Estão no Judiciário, porém, reconheça-se, a maior parte dos intérpretes mais liberais, em especial nas mais altas cortes de Justiça do País; estes, via exegese repleta de romantismo e com inoportuna inspiração espiritualista, vêm acarretando modificações estruturais naquilo que era intenção do legislador em recrudescer a resposta estatal ao famigerado tráfico de drogas, a ponto de fazerem esses intérpretes letra morta dos dispositivos penais verdadeiramente rigorosos. Interpretações outras, por mais honestas e intimamente enraizadas que sejam, encerram em si um pecado de proporções gigantescas: colocam a sociedade como um todo em um plano absolutamente secundário, privilegiando-se o especial sobre o geral, o indivíduo sobre o conjunto, o infrator penal em detrimento de inúmeras pessoas lesadas em seu tão precioso bem jurídico, a saúde pública. É chegada a hora de retroceder esse quadro de inversão de valores, máxime porque os dados estatísticos não apontam para um recuo, ainda que tímido, do tráfico, mas, ao contrário, deixam claro que os traficantes já possuem um poder de fogo e de organização invejáveis a muito agrupamento guerrilheiro. Ocorre, ainda, que o dinamismo que peculiariza o Direito não se coaduna com o mero conformismo ou a confortável acomodação, sendo, ao contrário, o repercutir José Fernando Marreiros Sarabando • 225 incessante das teses nos tribunais, principalmente nas cortes superiores, o fator que exatamente dá ensejo à modificação dos entendimentos, ainda que esses até há pouco estivessem solidamente enraizados nas mentes dos julgadores. Em outras palavras é a persistência das teorias que traz as mudanças na bela e constante evolução dos conceitos jurídicos, pari passu com as necessidades sociais maiores. Assim é que tantas tendências foram superadas, tantos entendimentos foram modificados. Interpretar, por exemplo, no sentido de ser a vedação da pena substitutiva para os condenados por crimes hediondos ou equiparados, uma violação ao preceito constitucional que veda a imposição de penas cruéis, data vênia, constitui uma elasticidade de raciocínio que exige nova reflexão sobre a matéria, tendo em vista que francamente milita em desfavor exatamente de quem merece a maior consideração, que é a sociedade. A atuação no crime é a gênese do Ministério Público e, subseqüentemente, a razão principal de sua esplendorosa evolução histórica, servindo de modelo, inclusive, para outros países. O tráfico de drogas, lado outro, é um dos maiores flagelos da humanidade, a cada ano vencendo mais batalhas e ceifando mais vidas. Incumbe aos membros do MP, portanto, um rigor absoluto no combate aos traficantes, instrumentalizando o Judiciário com vistas a uma punição vigorosa, exemplar, ainda que para isso tenha de se valer de todos os meios recursais disponíveis. Somente se e quando as polícias, o MP e o Judiciário atuarem com energia e com sinergia, é que a altamente lucrativa atividade do comércio ilegal das drogas começará a sofrer revezes, duros e irreversíveis, os quais, a partir do momento em que se tornarem constantes, submeterá o tráfico e os traficantes à autoridade efetiva do Estado, até a sua tão sonhada extinção definitiva. 226 • Direito Processual Penal Técnica PROPOSTA DE ARQUIVAMENTO JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO CRIMINAL nº XX/XX - PJCCAP INCIDÊNCIA PENAL: art. 1º, VII, do Dec.-Lei nº 201/67 COMARCA: Uberaba-MG INVESTIGADO: XXXXXXXXX, prefeito municipal XXXXX Eminente Desembargador Relator, O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por intermédio de seu chefe, o Exmº Sr. Procurador-Geral de Justiça, mediante delegação expressa de poderes ao procurador de justiça signatário desta peça, ex vi dos artigos 29, inciso IX, da Lei Federal nº 8.625/93, e 69, XIII, da Lei Complementar-MG nº 34/94, conforme ato de designação e delegação publicado no “Minas Gerais” / Caderno II / Diário da Justiça, edição de 14.01.2009, vem à ilustre presença de V. Exª, no bojo dos autos do P.I.C. nº XX/XX, narrar e ao final propor, conforme se segue: 1 – segundo chegou ao conhecimento do Grupo Especial de Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Municipais, que gozam de foro especial por prerrogativa de função (criado pela Res. PGJ-MG nº 37/00), o prefeito municipal XXXX, XXXX, não teria encaminhado ao Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, dentro do prazo regulamentar (31.07.2007), a prestação de contas referente às aplicações dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB –, o que caracterizaria, em princípio, o crime do art. 1º, inciso VII, do Dec.-Lei nº 201/67 (vide documentação de fls. 02-C/07-verso); 2 – instaurado o procedimento investigatório criminal em questão, por portaria (fls. 02-A/02-B), providenciou-se, para ilustração do feito, anexação de cópias da LF nº 11.494/07, regulamentadora do FUNDEB (art. 60 do ADCT), e da Instrução Normativa nº 03/2007, a qual, no entanto, valeu por pouco tempo, tendo sido sucessivamente José Fernando Marreiros Sarabando • 227 alterada, encontrando-se vigente, atualmente, a Instrução Normativa TCMG nº 13/2008, a qual complementa o tipo penal em referência (norma penal em branco); 3 – instado a manifestar-se, o alcaide investigado prestou prontos esclarecimentos (fls. 24/40), informando que, não obstante o atraso, que teria sido totalmente involuntário, as contas foram devidamente prestadas ao órgão do controle externo, via SIDE, que é o meio eletrônico adequado para tal medida; 4 – mais documentação relativa aos fatos encontram-se às fls. 44/48 e 53/78; 5 – a Diretoria da Secretaria-Geral do TCMG confirmou, às fls. 82/84 do feito, que as prestações de contas do município de Delta foram enviadas, realmente, à eg. Corte de Contas, embora com registro de considerável atraso; 6 – foi imposta multa pessoal ao investigado, na forma regulamentar, tendo sido por ele recolhida, devidamente (fls. 75 e 76); 7 – diante, pois, das informações e dos documentos apresentados, verifica-se que não houve qualquer conduta, por parte do prefeito do município de XXX, que constituísse uma irregularidade punível na esfera criminal, inexistindo nos autos elementos aptos a ensejar o oferecimento de denúncia, portanto; 8 – isso porque, de uma forma ou de outra, as contas do exercício de 2007 acabaram sendo, efetivamente, prestadas pelo investigado, embora com atraso, ao TCMG, o que restou comprovado quantum satis nos autos, tendo o referido justificado a extemporaneidade em razão de questões técnico-administrativas; 9 – é certo que o dispositivo penal em perspectiva, o art. 1º, item VII, do Dec.-Lei nº 201/67, prevê, como crime omissivo, a ausência de prestação de contas nos prazos regulamentares, estes atualmente estipulados na Instrução Normativa TCMG nº 13/2008, tratando-se, pois, de uma norma penal em branco; 10 – ocorre, porém, que, talqualmente se dá com todos os chamados “crimes de responsabilidade” (nomenclatura inexata, porém, registre-se, já que, conforme várias vezes enunciado pelo STF, tratam-se os tipos penais do art. 1º do Dec.-Lei nº 201/67 de crimes comuns, de competência, para conhecimento e julgamento, do Poder Judiciário), para a caracterização da conduta em tela, mister se faz a demonstração do dolo, vale dizer, prestadas as contas tardiamente, mas sem que tal (intempestividade) se mostre fruto de intenção deliberada, por parte do chefe do Executivo, de atrasar, de burlar a regulamentação expedida pelo órgão de controle externo, descaracterizado está, ipso facto, o crime, restando, tão-somente, a irregularidade sob o aspecto administrativo, sujeita, essa, à imposição de multa pessoal (o que se deu in casu, aliás); 11 – vale consignar, a respeito do tema: 228 • Direito Processual Penal Submeter o administrador às agruras e aos percalços de um processo criminal por atos e fatos que mais se circunscrevem à órbita administrativa, como deslizes e lapsos funcionais decorrentes de atraso na remessa de balancetes à Câmara Municipal, ainda que concitado pelo órgão ministerial, não é medida justa e salutar de política judiciária. (TJMT - Cs. Reuns. - AP - Rel. Des. Atahide Monteiro da Silva – in RT 692/ 299). A propósito, tem-se que a colenda 2ª Câmara Criminal do eg. TJMG teve oportunidade de firmar o mesmo posicionamento, em decisão datada de 13/06/2002, proferida por unanimidade de votos, por sinal, no processo crime de competência originária PCOCr nº 132.511-7, através da qual foi rejeitada denúncia, oferecida em caso análogo, cuja ementa encontra-se redigida com o seguinte teor: PROCESSO-CRIME DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA PREFEITO MUNICIPAL - ATRASO NA APRESENTAÇÃO DE CONTAS - AUSÊNCIA DE DOLO - REJEIÇÃO DA DENÚNCIA O mero atraso na apresentação de contas, devidamente justificado, não dá ensejo à instauração de ação penal sob a alegação de descumprimento de preceito previsto em lei municipal, porque se extrai, com facilidade, ante a regularidade das contas reconhecida pelo próprio Tribunal de Contas, que o alcaide não agira com dolo. (TJMG - 2ª Câmara Criminal - PCO nº 132.511-7 - Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro – in RT 806/609). 12 – Suporte jurisprudencial complementar, além do doutrinário de escol, pode ser encontrado in RT 785/645, 798/660 etc. Pelo exposto, apesar da tipicidade, a priori, da conduta omissiva do sr. XXX, prefeito municipal de XX e embora seja a questão do dolo matéria de prova a dever ser apreciada somente durante a instrução criminal, diante da decisão local supra, que adentrou diretamente na prova dos autos, inócuo ou temerário se tornaria o oferecimento de denúncia no caso concreto, uma vez que a ação penal provavelmente seria obstada antes mesmo de seu início, a par de, ademais, não haver sequer mínimos elementos, nos autos, que indiquem qualquer vestígio de atitude intencional, por parte do mencionado alcaide. No entanto, vale o registro de que aqui não se cogita de hipótese de proposta de arquivamento por verificada atipicidade da conduta do investigado, tampouco extinção da punibilidade do mesmo ou reconhecimento de qualquer causa justificadora, situações em que configurada estaria, na decisão judicial que ora se propõe, a coisa julgada material, ocasiões em que o mérito da ação é analisado. Nessa linha pontificou o eminente ministro do Pretório Excelso, Cezar Peluso: [...] a eficácia preclusiva da decisão de arquivamento de inquérito policial depende da razão jurídica que, fundamentando-a, não José Fernando Marreiros Sarabando • 229 admita desarquivamento nem pesquisa de novos elementos de informação, o que se dá quando reconhecida atipicidade da conduta ou pronunciada extinção da punibilidade. É que, nesses casos, o ato de arquivamento do inquérito se reveste da autoridade de coisa julgada material, donde a necessidade de ser objeto de decisão do órgão judicial competente. (Pet. N.º 3.297/MG, Pleno, rel. min. Cezar Peluso, j. 19.12.05, v.u., in D.J.U. de 17.02.06). Assim, a V. Exª propõe o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por intermédio de seu chefe, o Procurador-Geral de Justiça, mediante delegação de poderes ao procurador infra assinado, o arquivamento do presente feito, forte nos arts. 3º, inciso I, da LF nº 8.038/90, e 28 do CPP, decisão judicial que se espera, dados os seus peculiares contornos, valha tão-só rebus sic stantibus, na esteira exata do art. 18 do Código de Processo Penal, fazendo coisa julgada exclusivamente formal, porquanto não imutável, em seus efeitos. Belo Horizonte, 30 de novembro de 2006. JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO Procurador de Justiça (atuação por delegação do Procurador-Geral de Justiça) 230 • Direito Processual Penal José Fernando Marreiros Sarabando • 231 4 Artigo • 235 Jurisprudência • 259 Comentário à Jurisprudência • 261 Direito Civil 4 Artigo A GUARDA COMPARTILHADA E A LEI Nº 11.698/08 “Quem ama cuida; cuida de si mesmo, da família, da comunidade, do país – pode ser difícil, mas é de uma assustadora simplicidade e não vejo outro caminho”. (Lya Luft) LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais RESUMO: Em síntese, o presente artigo pretende avaliar se o tratamento conferido pela recente Lei nº 11.698/08 à guarda compartilhada atende ao princípio do melhor interesse do menor. PALAVRAS-CHAVE: Guarda compartilhada; melhor interesse do menor. ABSTRACT: In summary, this article aims to evaluate whether the recent Law nº 11.698/08 effectively considers the principle of best interest of the child, regarding shared custody. KEY WORDS: Shared custody; best interest of the child. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A guarda unilateral e a síndrome da alienação parental. 3. A guarda compartilhada e o melhor interesse do menor. 4. A guarda compartilhada e a necessidade da prática da mediação. 5. A guarda compartilhada e a Lei nº 11.698/08. 6. Considerações finais. 7. Referências bibliográficas. 1. Introdução A Lei nº 11.698/08, de 13 de junho de 2008, veio a consagrar expressamente no Código Civil brasileiro o tão elogiado instituto da guarda compartilhada. Não obstante ele já fosse amplamente aceito pela doutrina e aplicado na prática pela jurisprudência, certo é que o reconhecimento legislativo, como sói ocorrer, pacificou, em definitivo, as discussões acerca da existência tal instituto. Leonardo Barreto Moreira Alves • 235 Desse modo, a partir desse momento, as atenções da comunidade jurídica nacional se voltam para a análise dos aspectos positivos e negativos do regramento dado pela lei à guarda compartilhada. Nesse sentido, pode-se afirmar que, de um modo geral, a nova lei vem sendo vista com bons olhos pelos operadores do Direito. Destarte, parcela da doutrina civilista vem apontando graves falhas da novel legislação, as quais implicariam a inviabilidade do uso dessa medida. Nesse cenário, verifica-se que o ponto fulcral das críticas dirigidas à Lei nº 11.698/08 concentra-se no teor do atual artigo 1.584, § 2º, do Código Civil, segundo o qual “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”. No entender de alguns autores, esse dispositivo, ao estabelecer a guarda compartilhada como regra preferencial, quase obrigatória do exercício do poder familiar após a dissolução do casamento/união estável na hipótese de não haver acordo entre os genitores implicaria um franco retrocesso no que tange à regra geral da guarda unilateral concedida a quem relevar possuir melhores condições, outrora encontrada no antigo art. 1.584, parágrafo único, do Codex, pois o litígio vivenciado pelos pais impossibilitaria por completo o sucesso daquela modalidade de guarda. O presente trabalho, indo em direção contrária ao posicionamento acima referido, pretende demonstrar que o advento da Lei nº 11.698/08 deve ser efusivamente comemorado. Não há que se olvidar que a legislação contém falhas, conforme será apreciado ao longo deste texto, mas elas não comprometem o êxito da aplicação da guarda compartilhada, que, sem dúvida alguma, é a forma de guarda que melhor resguarda o interesse do menor, evitando-se os efeitos nefastos da guarda unilateral, tais como a diminuição do contato do filho com o genitor não guardião e, principalmente, o conhecido Fenômeno da Alienação Parental e a conseqüente Síndrome da Alienação Parental. Por isso, defende-se que a mudança da regra da guarda unilateral a quem relevar possuir melhores condições (antigo art. 1.584, parágrafo único) para a da guarda compartilhada (atual art. 1.584, § 2º) é altamente positiva, sendo o problema do litígio entre os genitores do menor alhures apontado absolutamente contornável através da prévia prática da mediação interdisciplinar, a qual se encontra expressamente prevista no recente art. 1.584, § 3º, como ficará mais claro no desenvolvimento dos próximos capítulos. 2. A guarda unilateral e a síndrome da alienação parental Ab initio, cumpre fazer importante distinção entre os dois modelos de guarda existentes no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a guarda prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90) e aquela disciplinada no Código Civil. A primeira é considerada como uma das espécies de colocação em família substituta, ao lado da tutela e da adoção, pressupondo, portanto, a perda do poder familiar, e deve ser aplicada como medida específica de proteção ao menor (art. 236 • Direito Civil 101, VIII, do ECA), estando disciplinada nos artigos 33 a 35 do ECA. Já a segunda decorre de separação (judicial ou de corpos), divórcio ou dissolução da união estável dos genitores do menor, integrando o poder familiar como especialização do seu exercício, tendo o seu regramento nos artigos 1.583 a 1.590 do Código Civil, no Capítulo da Proteção da Pessoa dos Filhos. No que tange à guarda prevista no Código Civil, objeto deste trabalho e que, por isso mesmo, passamos a centrar nossa atenção, ela deve ser entendida como a atribuição conferida a um dos pais separados, divorciados ou ex-conviventes de união estável ou a ambos “dos encargos de cuidado, proteção, zelo e custódia do filho” (LÔBO, 2008, p. 169). Essa modalidade de guarda compreende duas outras espécies, a saber, a guarda unilateral ou exclusiva ou uniparental e a guarda compartilhada (espécie esta a ser trabalhada no capítulo seguinte), o que ficou muito claro na novel redação do caput do art. 1.583, dada pela Lei nº 11.698/08, segundo a qual “[...] a guarda será unilateral ou compartilhada”. A guarda unilateral, como regra geral, é aquela exercida exclusivamente por um dos genitores, decorrente de acordo estabelecido entre eles ou por determinação judicial, se não for recomendável o exercício da guarda compartilhada. Excepcionalmente, porém, a guarda unilateral pode ser atribuída a terceiros (levando-se em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade e afetividade), em atenção ao princípio do melhor interesse do menor, quando os pais não demonstrem condições para o exercício dessa vertente do poder familiar, a exemplo de “[...] pais viciados em drogas, sem ocupação regular, com práticas de violência contra os filhos” (LÔBO, 2008, p. 173). Nesse contexto, a Lei nº 11.698/08 inseriu no Código Civil importantes conceitos a respeito da guarda unilateral. A partir dela, por exemplo, encontra-se no novel art. 1.583, § 1º, a regra de que “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) [...]”. O recém-criado art. 1.583, § 2º, passou a estatuir que “A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II – saúde e segurança; III – educação”. Sobre esse dispositivo, desde já é preciso ponderar que, para uma eficaz proteção ao menor, somente é possível compreender os incisos nele referidos como meramente exemplificativos, não havendo ainda qualquer tipo de ordem de preferência entre eles. Dando continuidade, o art. 1.583, § 3º, determina que “A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos”. Já o art. 1.584, § 5º, estipula que “Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade Leonardo Barreto Moreira Alves • 237 com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade”. Ainda em atenção ao princípio do melhor interesse do menor, para que não haja a nefasta perda do contato dos filhos com o pai (gênero) não guardião, resguarda-se a este último o direito (muito mais um dever, poder-dever, a chamada potestà do direito italiano) de visitas e de convivência com o filho, direito este que deve ser fixado, por acordo, pelos pais ou, na impossibilidade, por decisão judicial (art. 1.589 do Código Civil). Dissertando sobre o direito de visita, o brilhante Professor Paulo Luiz Netto Lôbo leciona: O direito de visita, interpretado em conformidade com a Constituição (art. 227), é direito recíproco de pais e dos filhos à convivência, de assegurar a companhia de uns com os outros, independentemente da separação. Por isso, é mais correto dizer direito à convivência, ou à companhia, ou ao contato (permanente) do que direito de visita (episódica). O direito de visita não se restringe a visitar o filho na residência do guardião ou no local que este designe. Abrange o de ter o filho ‘em sua companhia’ e o de fiscalizar sua manutenção e educação, como prevê o art. 1.589 do Código Civil. O direito de ter o filho em sua companhia é expressão do direito à convivência familiar, que não pode ser restringido em regulamentação de visita. Uma coisa é a visita, outra a companhia ou convivência. O direito de visita, entendido como direito à companhia, é relação de reciprocidade, não podendo ser imposto quando o filho não o deseja, ou o repele [...]. (LÔBO, 2008, p. 174). Nos dias de hoje, como é cediço, o critério norteador da fixação da guarda unilateral (e também da guarda compartilhada, conforme será visto no capítulo seguinte) é o melhor interesse do menor, já que a medida deve ser aplicada sempre em seu benefício, por quem quer que seja. Destarte, em uma análise histórica da matéria, verifica-se que nem sempre foi assim. Nesse sentido, o Código Civil de 1916, como modo de valorizar a única forma de família, a família matrimonial, impunha freios, desestímulos aos cônjuges quanto à separação judicial, notadamente na separação-sanção, ao estabelecer graves sanções ao tido como culpado pelo fim do relacionamento conjugal, dentre elas a perda automática da guarda judicial dos filhos, dispondo no seu artigo 326 que “[...] sendo desquite judicial, ficarão os filhos menores com o cônjuge inocente”. Além disso, na hipótese de culpa de ambos os cônjuges, o art. 321 do Codex determinava que a guarda seria exercida por terceira pessoa. Desse modo, a legislação civil da época acabava estipulando uma verdadeira sanção aos filhos do casal, pois aquele genitor em tese com melhores condições para o exercício da guarda poderia ser dela privado se fosse tido como culpado pela 238 • Direito Civil separação judicial e, o que é pior, se ambos os pais fossem considerados culpados, os menores seriam privados da convivência diária com eles, ficando na companhia de terceiros. O Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62) tentou consertar essa distorção e alterou a redação do Código Civil de 1916, que passou a regular a matéria da seguinte forma: se ambos os cônjuges fossem culpados, ficariam em poder da mãe os filhos menores, salvo se o juiz verificasse que de tal solução pudesse advir prejuízo de ordem moral para eles (art. 326, parágrafo 1o); se fosse verificado que não deveriam os filhos permanecer em poder da mãe nem do pai, o juiz deferiria a sua guarda a pessoa notoriamente idônea da família de qualquer dos cônjuges, ainda que não mantivesse relações sociais com os pais, a quem, entretanto, seria assegurado o direito de visita (art. 326, parágrafo 2o); se houvesse motivos graves, poderia o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira diferente das anteriores a situação deles para com os pais (art. 327, caput). Apesar da tentativa, a legislação não extirpou a culpa da discussão da guarda judicial na ação de separação judicial, o que prejudicava, sem dúvida alguma, os próprios cônjuges enquanto pais e, principalmente, os seus filhos menores. A Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77), por sua vez, insistiu em manter in totum o critério da culpa como definidor da guarda judicial dos filhos menores, ex vi da redação do seu artigo 10, caput e parágrafos 1º e 2º. Com efeito, hodiernamente, o Código Civil de 2002, em respeito à doutrina do melhor interesse da criança (the best interest of the child), com muito acerto, afastou por completo qualquer tipo de influência da culpa no direito de guarda judicial dos filhos, pois, no seu art. 1.584, caput, com a redação anterior à edição da Lei nº 11.698/08, consagrou a regra geral segundo a qual “Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la”. Com relação ao citado dispositivo, embora a Lei nº 11.698/08 tenha modificado o seu teor, especialmente pelo que consta no atual art. 1.584, § 2º (“Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”), o qual será detidamente apreciado no capítulo 3 deste trabalho, certo é que a leitura dos artigos 1.583 e 1.584 continua a evidenciar que a intenção do legislador é de atender à doutrina do melhor interesse da criança, ex vi do 1.583, parágrafos 2º e 5º, já transcritos alhures. Outro dispositivo que reforça a aplicação dessa doutrina na atualidade é o art. 1.586 do Código, o qual estatui que “Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais”. Leonardo Barreto Moreira Alves • 239 Complementando esse cenário, registre-se que a Lei nº 11.112/05, alterando o art. 1.121, II, do Código de Processo Civil, exigiu como requisito da petição inicial da ação de separação consensual “[...] o acordo relativo à guarda dos filhos menores e ao regime de visitas”. Como visto, não há que se olvidar que, no exercício da guarda unilateral por um dos genitores e, por conseqüência, do próprio direito de visita, a todo tempo deve ser privilegiado o melhor interesse do menor, sob pena de alteração de tais medidas, inclusive com a possibilidade de concessão da guarda em favor de terceiros. Não obstante, há de se ressaltar que, no âmbito da guarda unilateral e do direito de visita, há muito mais espaço para que um dos genitores, geralmente a mãe, utilize-se dos seus próprios filhos como “arma”, instrumento de vingança e chantagem contra o seu antigo consorte, atitude passional decorrente das inúmeras frustrações advindas do fim do relacionamento amoroso, o que é altamente prejudicial à situação dos menores, que acabam se distanciando deste segundo genitor, em virtude de uma concepção distorcida acerca dele, a qual é fomentada, de inúmeras formas, pelo primeiro, proporcionando graves abalos na formação psíquica de pessoas de tão tenra idade, fenômeno que já foi alcunhado como Fenômeno da Alienação Parental, responsável pela Síndrome da Alienação Parental (SAP ou PAS). Discorrendo sobre esses temas com maestria, a Professora Giselle Câmara Groeninga leciona: Segundo Gardner: ‘A Síndrome da Alienação Parental é uma das doenças que emerge quase que exclusivamente no contexto das disputas pela guarda. Nesta doença, um dos genitores (o alienador, o genitor alienante, o genitor PASindutor) empreende um programa de denegrir o outro genitor (o genitor alienado, a vítima, o genitor denegrido). No entanto, este não é simplesmente uma questão de ‘lavagem cerebral’ ou ‘programação’ na qual a criança contribui com seus próprios elementos na campanha de denegrir. É esta combinação de fatores que justificadamente garantem a designação de PAS [...]. Na PAS, os pólos dos impasses judiciais seriam compostos por um genitor alienador e um genitor alienado. Como apontado no início deste texto, seria fundamental considerar as contribuições do contexto judicial para a instalação de dita síndrome, ou Fenômeno de Alienação Parental, como se defende aqui ser mais apropriado denominar [...]. O genitor alienante seria, em geral, a mãe que costuma deter a guarda, e que a exerceria de forma tirânica. Inegável é a grande influência que a mãe exerce nos filhos pequenos, dada a natural seqüência de um vínculo biológico para o psíquico e afetivo. O que se observa é que há mães que utilizam sim de forma abusiva, consciente e inconscientemente, o vínculo de dependência não só física, mas, sobretudo, psíquica que a criança tem para com ela [...]. (GROENINGA, 2008, p. 122-123). 240 • Direito Civil Acrescente-se que o Projeto de Lei nº 4.053/2008, de autoria do Deputado Federal Régis de Oliveira (PSC/SP), que tramita no Congresso Nacional, dispondo sobre a alienação parental, conceitua tal fenômeno, em seu art. 1º, caput, como “[...] a interferência promovida por um dos genitores na formação psicológica da criança para que repudie o outro, bem como atos que causem prejuízos ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este”, enquanto que, no parágrafo único desse mesmo dispositivo, apresenta um rol meramente exemplificativo de hipóteses que indicam a prática dessa conduta, a saber: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício do poder familiar; III - dificultar contato da criança com o outro genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de visita; V - omitir deliberadamente ao outro genitor informações pessoais relevantes sobre a criança, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI - apresentar falsa denúncia contra o outro genitor para obstar ou dificultar seu convívio com a criança; VII - mudar de domicilio para locais distantes, sem justificativa, visando dificultar a convivência do outro genitor. Ademais, não há dúvidas também de que o (pouco) contato dos menores com o genitor não guardião através apenas de esporádicas visitas (geralmente semanais ou quinzenais, nos finais de semana) não é medida recomendável para o desenvolvimento da personalidade deles, sendo imperiosa uma maior participação do genitor na educação e formação dos filhos. Considerando esses empecilhos da guarda unilateral é que a doutrina civilista, há tempos, em proteção ao melhor interesse do menor, já advogava a necessidade de substituição de tal medida pela guarda compartilhada, tema a ser debatido no capítulo vindouro. 3. A guarda compartilhada e o melhor interesse do menor O instituto da guarda compartilhada, até bem pouco tempo, não era previsto expressamente pelo ordenamento jurídico nacional, o que não impossibilitava a sua aplicação na prática, a uma com base nas experiências do Direito Comparado (principalmente na França – Código Civil francês, art. 373-2, na Espanha – Código Civil espanhol, arts. 156, 159 e 160, em Portugal – Código Civil português, art. 1905º, em Cuba – Código de Família de Cuba, arts. 57 e 58 e no Uruguai – Código Civil uruguaio, arts. 252 e 257) e, a duas, com fulcro em dispositivos já existentes no ordenamento jurídico, especialmente no art. 229 da Constituição Federal (“Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores [...]”) e nos artigos 1.579 (“O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos”), 1.632 (“A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não Leonardo Barreto Moreira Alves • 241 alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”) e 1.690, parágrafo único (“Os pais devem decidir em comum as questões relativas aos filhos e a seus bens; havendo divergência, poderá qualquer deles recorrer ao juiz para a solução necessária”) do Código Civil brasileiro. Aliás, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 1967, já teve a oportunidade de se pronunciar, em termos genéricos, sobre a importância da guarda compartilhada, ex vi do seguinte julgado: O juiz, ao dirimir divergência entre pai e mãe, não se deve restringir a regular visitas, estabelecendo limitados horários em dia determinado da semana, o que representa medida mínima. Preocupação do juiz, nesta ordenação, será propiciar a manutenção das relações dos pais com os filhos. É preciso fixar regras que não permitam que se desfaça a relação afetiva entre pais e filho, entre mãe e filho. Em relação à guarda dos filhos, em qualquer momento, o juiz pode ser chamado a revisar a decisão, atento ao sistema legal. O que prepondera é o interesse dos filhos, e não a pretensão do pai ou da mãe. (RE 60.265-RJ). Mais recentemente, em 2006, o enunciado nº 335 da IV Jornada de Direito Civil veio a estatuir: “A guarda compartilhada deve ser estimulada, utilizando-se, sempre que possível, da mediação e da orientação da equipe multidisciplinar”. Apesar disso, não há que se olvidar que a recente Lei nº 11.698/08 é muito bemvinda, pois colocou por terra qualquer discussão sobre a possibilidade de aplicação da guarda compartilhada, ao inserir expressamente tal instituto no ordenamento jurídico pátrio, motivo pelo qual será apreciada com vagar em tópico próprio (capítulo 4). A guarda compartilhada implica exercício conjunto, simultâneo e pleno do poder familiar, afastando-se, portanto, a dicotomia entre guarda exclusiva, de um lado, e direito de visita, do outro. A partir dessa medida, fixa-se o domicílio do menor na residência preferencial de um dos genitores, mas ao outro é atribuído o dever de continuar cumprindo intensamente o poder familiar, através da participação cotidiana nas questões fundamentais da vida do seu filho, tais como estudo, saúde, esporte e lazer, o que vem a descaracterizar a figura do “pai/mãe de fim-de-semana”. É certo que a guarda compartilhada não elimina, por exemplo, a clássica obrigação de pagamento de pensão alimentícia a ser assumida por um dos genitores. Não obstante, ela visa essencialmente ampliar os horizontes da responsabilidade dos pais, fomentando, em verdade, uma co-responsabilidade, uma pluralidade de responsabilidades na educação do filho, enfim, uma colaboração igualitária na condução dos destinos do menor. 242 • Direito Civil Analisando com precisão cirúrgica esse fenômeno, a Professora Maria Berenice Dias leciona: Guarda conjunta ou compartilhada significa mais prerrogativas aos pais, fazendo com que estejam presentes de forma mais intensa na vida dos filhos. A participação no processo de desenvolvimento integral dos filhos leva à pluralização de responsabilidades, estabelecendo verdadeira democratização de sentimentos. A proposta é manter os laços de afetividade, minorando os efeitos que a separação sempre acarreta nos filhos e conferindo aos pais o exercício da função parental de forma igualitária. A finalidade é consagrar o direito da criança e de seus dois genitores, colocando um freio na irresponsabilidade provocada pela guarda individual [...]. (DIAS, 2006, p. 361-362). Idêntico raciocínio possui a destacada Professora Ana Carolina Brochado Teixeira, como se vê do trecho abaixo transcrito: O que se constata é a presença marcante, no conceito ora esboçado, da possibilidade do exercício conjunto da autoridade parental, como aspecto definidor da guarda compartilhada, pois que possibilita que os genitores compartilhem as decisões mais relevantes da vida dos filhos [...]. A sagrada relação parental é desatrelada da definição dos rumos da conjugalidade dos pais, garantindo aos filhos a vinculação do laço afetivo com ambos os genitores, mesmo após o esfacelamento da vida em comum. Em verdade, o real mérito da guarda compartilhada tem sido popularizar a discussão da co-participação parental na vida dos filhos [...]. (TEIXEIRA, 2005, p. 110). Como é cediço, inúmeros são os efeitos traumáticos provocados pela dissolução do casamento/união estável no desenvolvimento psíquico dos filhos menores e um deles, notadamente, é a perda de contato freqüente com um dos seus genitores. Nesse sentido, verifica-se que a guarda compartilhada pretende evitar esse indesejado distanciamento, incentivando, ao máximo, a manutenção dos laços afetivos entre os envolvidos acima referidos, afinal de contas pai (gênero) não perde essa condição após o fim do relacionamento amoroso mantido com o outro genitor (gênero) do seu filho, nos termos do art. 1.632 do Código Civil. Nesse contexto, impende esclarecer que a guarda compartilhada não pode jamais ser confundida com a chamada guarda alternada: esta, não recomendável, tendo em vista que tutela apenas os interesses dos pais, implica exercício unilateral do poder familiar por período determinado, promovendo uma verdadeira divisão do menor, que convive, por exemplo, quinze dias unicamente com o pai e outros quinze dias unicamente com a mãe; aquela, por sua vez, altamente recomendável, pois tutela os interesses do menor, consiste no exercício simultâneo do poder familiar, incentivando a manutenção do vínculo afetivo do menor com o genitor com quem ele não reside. Leonardo Barreto Moreira Alves • 243 Sobre a minoração dos efeitos da dissolução do casamento/união estável dos pais com sua maior participação na vida dos filhos através da guarda compartilhada, assevera Paulo Lôbo: A guarda compartilhada é caracterizada pela manutenção responsável e solidária dos direitos-deveres inerentes ao poder familiar, minimizando-se os efeitos da separação dos pais. Assim, preferencialmente, os pais permanecem com as mesmas divisões de tarefas que mantinham quando conviviam, acompanhando conjuntamente a formação e o desenvolvimento do filho. Nesse sentido, na medida das possibilidades de cada um, devem participar das atividades de estudos, de esporte e de lazer do filho. O ponto mais importante é a convivência compartilhada, pois o filho deve sentir-se ‘em casa’ tanto na residência de um quanto na do outro. Em algumas experiências bem-sucedidas de guarda compartilhada, mantêm-se quartos e objetos pessoais do filho em ambas as residências, ainda quando seus pais tenham constituído novas famílias. (LÔBO, 2008, p. 176). De outro lado, a guarda compartilhada também tem o importante efeito de impedir a ocorrência do Fenômeno da Alienação Parental e a conseqüente Síndrome da Alienação Parental (capítulo 1), já que, em sendo o poder familiar exercido conjuntamente, não há que se falar em utilização do menor por um dos genitores como instrumento de chantagem e vingança contra o genitor que não convive com o filho, situação típica da guarda unilateral ou exclusiva. Com efeito, essas são justamente as duas grandes vantagens da guarda compartilhada: o incremento da convivência do menor com ambos os genitores, não obstante o fim do relacionamento amoroso entre aqueles, e a diminuição dos riscos de ocorrência da Alienação Parental. Desse modo, constata-se que, em verdade, a guarda compartilhada tem como objetivo final a concretização do princípio do melhor interesse do menor (princípio garantidor da efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, tratando-se de uma franca materialização da teoria da proteção integral – art. 227 da Constituição Federal e art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente), pois é medida que deve ser aplicada sempre e exclusivamente em benefício do filho menor. Comentando sobre o princípio do melhor interesse do menor como finalidade precípua da guarda compartilhada, Rodrigo da Cunha Pereira pondera: É comum vermos os filhos se tornam ‘moeda de troca’ dos pais no processo judicial. A ordem jurídica começou a perceber a necessidade de separar a figura conjugal da figura parental [...]. Muito pertinente, por isso, a discussão acerca do cabimento da guarda compartilhada no ordenamento jurídico pátrio. Este novo arranjo familiar atenderia aos Princípios do Melhor 244 • Direito Civil Interesse do Menor? A guarda compartilhada é um modelo novo, cuja proposta é a tomada conjunta de decisões mais importantes em relação à vida do filho, mesmo após o término da sociedade conjugal [...]. O que se garante é a continuidade da convivência familiar, que é um direito fundamental da criança e, por seu turno, um dever fundamental dos pais. A convivência, neste ínterim, não assume apenas a faceta do conviver e da coexistência, mas vai muito mais além, ou seja, participar, interferir, limitar, educar. Estes deveres não se rompem com o fim da conjugalidade, por força do art. 1.632 do Código Civil de 2002, por ser atributo inerente ao poder familiar, que apenas se extingue com a maioridade ou a emancipação do filho. Zelar pelo melhor interesse do menor, portanto, é garantir que ele conviva o máximo possível com ambos os genitores – desde que a convivência entre eles seja saudável, ou seja, que não exista nada que os desabone [...]. (PEREIRA, 2006, p. 134-135). Registre-se ainda que a guarda compartilhada, em atendendo ao princípio do melhor interesse do menor, também atenderá a outro princípio deste decorrente, qual seja, o princípio do direito à convivência familiar, insculpido no art. 227 da Carta Magna Federal e nos artigos 4º e 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Acrescente-se que a guarda compartilhada vai também ao encontro de outros princípios constitucionais essenciais, a saber, a igualdade entre cônjuges/ companheiros (art. 226, § 5º, c/c art. 226, § 3º), a paternidade responsável (art. 226, § 7º) e o planejamento familiar (art. 226, § 7º), este último fruto do princípio da autonomia privada, o qual está consubstanciado no princípio da liberdade (art. 5º, caput). Como se vê, portanto, pelos benefícios por ela proporcionados e pela realização de princípios constitucionais que ela promove, notadamente o princípio do melhor interesse do menor, a guarda compartilhada deve ser tida como a regra geral na fixação do exercício do poder familiar com a dissolução do casamento/união estável, em prevalência sobre a guarda exclusiva ou unilateral. Nesse trilhar, é bem verdade que não há sérias dificuldades na aplicação do instituto quando há acordo entre os cônjuges/companheiros a esse respeito, o que é mais comum na dissolução consensual do casamento/união estável. O problema que atormenta parcela da doutrina civilista reside na aplicação da guarda compartilhada quando não há acordo entre os pais sobre ela (fixação judicial, portanto), situação freqüente nas ações litigiosas de dissolução do casamento/união estável, pois, nesse caso, o conflito entre os genitores persistiria após tal ação de dissolução, o que prejudicaria sobremaneira o exercício sadio da responsabilidade conjunta do poder familiar. A nosso ver, porém, esse problema é apenas aparente, sendo contornável pelo incentivo da prática da mediação familiar, conforme será visto no capítulo seguinte. Leonardo Barreto Moreira Alves • 245 4. A guarda compartilhada e a necessidade da prática da mediação Em linhas gerais, a mediação, como uma das espécies de equivalentes jurisdicionais, pode ser definida como a solução de conflitos não-estatal, onde um terceiro, o mediador, profissional devidamente preparado, se coloca entre as partes e fomenta uma solução autocomposta em que ambas saiam ganhando. Na mediação, portanto, há uma solução do conflito apresentado sem a participação do ente estatal, mas sim com a intervenção de um terceiro imparcial, o mediador, que visa essencialmente promover um entendimento entre as partes envolvidas para que elas, por si próprias, através da linguagem e do diálogo, construam uma real e efetiva resposta ao problema vivenciado por elas. Nas palavras do Professor mineiro Walsir Edson Rodrigues Júnior, a mediação é: [...] o processo dinâmico que visa ao entendimento, buscando desarmar as partes envolvidas no conflito. O mediador, terceiro neutro e imparcial, tem a atribuição de mover as partes da posição em que se encontram, fazendo-as chegar a uma solução aceitável. A decisão é das partes, tão-somente delas, pois o mediador não tem poder decisório nem influencia diretamente na decisão das partes por meio de sugestões, opiniões ou conselhos. (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 75). Ressalte-se que a mediação não se confunde com outros equivalentes jurisdicionais correlatos, quais sejam, a conciliação ou autocomposição e a arbitragem, já que naquela o acordo de resolução da lide é obtido pelas partes, que não constroem juntas uma solução para o conflito, apenas fazem concessões recíprocas para que haja o término do embate, contando para isso com a interferência direta e constante de um terceiro, o conciliador, e, nesta, a solução do conflito é promovida por um terceiro eleito pelas partes, o árbitro, enquanto que na mediação tem-se a decisão da causa a partir de um ajuste engendrado pelas próprias partes, embora ocorra a participação de um terceiro, o mediador, que, diferente do conciliador, não sugere, interfere, aconselha, mas tão-somente facilita a comunicação entre os envolvidos, sem induzir as partes ao acordo. Desse modo, um dos pontos fulcrais de distinção entre a mediação, a conciliação e a arbitragem é justamente “[...] o grau de interferência do terceiro [...] na elaboração do acordo” (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 74). Como já afirmado alhures, o mediador “[...] tem a atribuição de mover as partes da posição em que se encontram, fazendo-as chegar a uma solução aceitável” (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 75). O conciliador, por sua vez, “[...] apesar de não decidir, influencia diretamente na decisão das partes por intermédio de uma intervenção mais direta e objetiva. Para alcançar o objetivo final, ou seja, o acordo, o conciliador induz, dá palpites e sugestões” (RODRIGUES JÚNIOR, 2007, p. 75). O árbitro, de outro lado, é o terceiro que é eleito pelas partes para que resolva o litígio relacionado a elas. Além disso, outra marca de distinção entre a mediação, a conciliação e a arbitragem 246 • Direito Civil é a responsabilidade das partes envolvidas. Esclarecendo com brilhantismo esse critério, a Professora Águida Arruda Barbosa salienta: A conciliação é um equivalente jurisdicional de alta tradição no direito brasileiro, que pode ser definida como uma reorganização lógica, no tocante aos direitos que cada parte acredita ter, polarizando-os, eliminando os pontos incontroversos, para delimitar o conflito e, com técnicas adequadas, em que o conciliador visa corrigir as percepções recíprocas, aproxima as partes em um espaço concreto. Neste equivalente jurisdicional, o conciliador intervém com sugestões, alerta sobre as possibilidades de perdas recíprocas das partes, sempre conduzidas pelo jargão popular sistematizado pela expressão ‘melhor um mau acordo que uma boa demanda’. Em suma, submetidas à conciliação, as partes admitem perder menos num acordo, que num suposto sentenciamento desfavorável, fundamentado na relação ganhador-perdedor. Na conciliação, há negação do conflito, pois o objetivo a que se propõem as partes é a celebração do acordo como uma forma de liberação daquele constrangimento oriundo da litigiosidade, e, para tanto, assumem compromisso mútuo, resultando em um consenso, orientado pelo princípio da autonomia da vontade dos litigantes. O que caracteriza esse equivalente jurisdicional é a celebração de acordo. Já a mediação tem linguagem própria, que representa o avesso da linguagem da conciliação e da arbitragem, impondo-se estabelecer uma exata discriminação para alcançar a compreensão do conceito destas importantes alternativas de acesso à justiça [...]. Na mediação, o acordo não é obrigatório como medida do sucesso ao acesso à justiça, podendo ser uma atividade preventiva, portanto, anterior ao conflito. Ademais, os mediandos podem perceber que, com a recuperação da capacidade de se responsabilizar pelas próprias escolhas, dêem outro significado à relação, transformando o conflito ou impasse em que se encontram envolvidos. Resta, assim, conceituar a arbitragem, na qual o elemento de solução de conflito é externo às partes, que, no exercício da autonomia da vontade, elegem uma terceira pessoa, neutra e imparcial – o árbitro –, autorizando-o a tomar uma decisão que obrigará os envolvidos no conflito. Em síntese, as partes submetem-se, por vontade própria, à vontade de um terceiro, que exercerá a função de juiz. (BARBOSA, 2004, p. 32-34). De fato, na mediação há a prevalência da participação das partes na discussão do caso prático, as quais, aliadas entre si e com o auxílio do mediador, constroem uma solução do litígio que atende aos interesses de ambos os envolvidos, ou seja, sem perdas, apenas há ganhos, o que é feito através da linguagem, da comunicação, do diálogo, consagrando-se a dinâmica da intersubjetividade e ampliando-se a humanização do acesso à Justiça, em atendimento à Teoria do Agir Comunicativo de Habermas. Leonardo Barreto Moreira Alves • 247 A esse respeito, novamente a Professora Águida Arruda Barbosa leciona: A mediação, examinada sob a ótica da teoria da comunicação, é um método fundamentado, teórica e tecnicamente, por meio do qual uma terceira pessoa, neutra e especialmente treinada, ensina os mediandos a despertar seus recursos pessoais para que consigam transformar o conflito. Essa transformação constitui oportunidade de construção de outras alternativas para o enfrentamento ou a prevenção de conflitos. (BARBOSA, 2004, p. 33). Nesse sentido, registre-se que a mediação funda-se em uma linguagem ternária, a linguagem do diálogo, da pluralidade, da complexidade, de múltiplas possibilidades, do reconhecimento da situação peculiar de cada parte envolvida, na qual prevalece, portanto, a conjunção aditiva e ao revés da conjunção alternativa ou, típica da linguagem binária, linguagem do sim ou não, do tudo ou nada, do culpado ou inocente, do procedente ou improcedente, enfim, da imposição. Nas palavras da Professora Águida Arruda Barbosa, O pensamento ternário é próprio do mundo oriental, por influência da cultura, da religião, dos usos e costumes. Admite a criatividade humana, que é infinita, portanto, abre-se a possibilidade de muitas alternativas, para uma determinada situação, de acordo com os recursos pessoais dos protagonistas. A superioridade do pensamento ternário é evidente, pois muito mais afeito à natureza humana. Portanto, seu exercício humaniza o homem [...]. O pensamento ternário, ao incluir o terceiro, abre o tempo-espaço que contempla a discussão, fundamentando-a no reconhecimento do valor do outro, que se encontrava encoberto pela ausência do diálogo. (BARBOSA, 2004, p. 35). A mediação, noutro giro, implica a sugestão de uma pluralidade de soluções para resolução do caso concreto (todas variáveis de acordo com a condição financeira das partes e do mediador), haja vista a existência de um constante diálogo entre os envolvidos. Em virtude deste método muito mais humanitário proposto pela mediação, alcança-se uma maior aceitação da solução da lide encontrada pelas partes, essencial para uma real pacificação do conflito, garantindo-se, portanto, que o litígio não será mais retomado. Nesse cenário, deve-se ressaltar que nas causas de família a mediação ganha especial relevo, tendo em vista que nelas há uma maior dificuldade de se impor uma solução, já que as relações familiares são sempre permeadas pelo desejo, aspecto subjetivo que qualifica o litígio. Comentando sobre esse fenômeno, o genial Rodrigo da Cunha Pereira pondera: 248 • Direito Civil [...] Nas relações do Direito de Família o elo determinante é o amor, o afeto, que está vinculado ao desejo, ao sujeito do inconsciente [...]. Consumir objetos de desejo não significa satisfazer o desejo, até porque sua fisiologia é querer sempre mais. Daí a definição de Lacan: desejo é desejo de desejo. A necessidade pode e deve ser satisfeita. A vontade, às vezes. O desejo nunca. É que é impossível satisfazê-lo. Ele sempre demandará outra satisfação [...]. A ilusão da completude nos move em direção à realização dos desejos e à procura de objetos que preencham o que falta em nós. O outro pode significar apenas um objeto da nossa ilusão, de tamponamento da incompletude. Quando o amor acaba, e esses restos vão parar na Justiça, o litígio judicial muitas vezes significa apenas uma maneira, ou uma dificuldade de não se deparar com o desamparo. Assim, uma demanda judicial é também um não querer deparar-se com o real do desamparo estrutural. Essas noções trazidas pela Psicanálise emprestam ao campo jurídico, particularmente ao Direito de Família, uma ampliação e compreensão da estrutura do litígio e do funcionamento dos atores e personagens da cena jurídica e judicial [...]. Nas relações jurídicas e judiciais o desejo, a vontade e a necessidade se entrelaçam, confundem-se e podem provocar injustiças. Por exemplo, em um pedido de pensão alimentícia a discussão objetiva é entre a necessidade de quem vai receber e a possibilidade de quem vai pagar. Entretanto, quando a relação entre os sujeitos ali envolvidos está malresolvida, a objetividade se desvirtua a partir de elementos e registros inconscientes. Quem paga, sempre acha que está pagando muito e quem recebe sempre acha que está recebendo pouco. Se a necessidade é x, pensa-se que é x+y, como se o y fosse um ‘mais’ para pagar um abandono, um desamor ou uma traição. Paga-se ‘menos’ que a necessidade como se esse menos fosse uma punição pelo fim da conjugalidade. Vê-se aí que o desejo, o inconsciente interferem no direito, no ‘dever-ser’, ao relativizar a necessidade, ou escamotear a possibilidade, alterando assim o curso de uma discussão que deveria ser apenas no campo da objetividade. O Judiciário e os advogados tornam-se instrumentos da busca da realização de um desejo inconsciente, cujo processo vem travestindo uma outra cena, que é da ordem da subjetividade. Compreender essa outra cena é não permitir ser instrumento de ilusão de satisfação do desejo oculto, é barrar o gozo, o excesso [...]. (PEREIRA, 2006, p. 55-57). Corroborando esse posicionamento, os Professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald assim dispõem: Sem qualquer dúvida, a mediação é instrumento indicado para os conflitos de Direito de Família, servindo para arrefecer os ânimos das partes e, ao mesmo tempo, auxiliar à deliberação Leonardo Barreto Moreira Alves • 249 de decisões mais justas e consentâneas com os valores personalíssimos de cada um dos interessados [...]. Outrossim, a variada carga de conflitos humanos (afetivos, sexuais, emocionais...) que marca, particularmente, o Direito de Família e, ao mesmo tempo, a proteção constitucional da privacidade de cada uma das pessoas envolvidas, são argumentos fortes para o uso da mediação familiar. Em determinados conflitos (como relativos à guarda e visitação de filhos, v.g), a mediação familiar se apresenta com resultados amplamente favoráveis às partes e ao Judiciário, uma vez que ao indicar um perito para ter contato com as partes o magistrado sairá da rigidez da ciência jurídica e considerará ‘as partes como seres em conflito, esvaziando a disputa inesgotável do perde/ganha. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 23-24). Arrematando, a Professora Fernanda Maria Dias de Araújo Lima afirma que: A mediação se traduz na reconstrução de relações que se desgastaram ao longo do tempo por discórdias e divergências de opiniões, refazimento de laços, fomentação e amadurecimento do diálogo entre as partes, valorização das partes envolvidas no conflito, transformação de pontos divergentes em um ponto comum, valorização do instituto da família, tutela de menores normalmente colocados como objeto de disputa num conflito entre pais. (LIMA, 2007, p. 27). No que tange ao objeto específico deste trabalho, pode-se afirmar que, nas causas envolvendo a guarda judicial, é sintomática a presença do desejo, sendo os filhos geralmente utilizados por um dos genitores como instrumentos de chantagem, revolta e vingança contra o outro, o que é altamente prejudicial aos menores, muitas vezes vítimas do Fenômeno da Alienação Parental, conforme visto no capítulo 2. Nessa linha de intelecção, Rodrigo da Cunha Pereira afirma que “[...] o litígio judicial é uma história de degradação do outro. Mas, como isto é inconsciente, as partes, na maioria das vezes, não percebem o mal que estão fazendo a si mesmas e principalmente aos filhos” (PEREIRA, 2006, p. 57-58). Arrefecendo o desejo, a mediação permite a construção de uma efetiva solução racional para o litígio, evitando-se o ressurgimento da lide e o oferecimento de nova demanda ao Poder Judiciário. Dada esta sua importância, exige-se que ela seja bem feita, o que impõe a necessidade da capacitação do mediador, além da realização dos trabalhos através da interdisciplinaridade, principalmente com as áreas da Psicologia, da Psicanálise, do Serviço Social, da Sociologia etc. Ultimadas essas considerações, é preciso destacar que a prática da mediação se faz absolutamente necessária para um eficaz exercício da guarda compartilhada, 250 • Direito Civil precipuamente quando não há acordo entre pais sobre ela, cabendo a decisão ao magistrado. Ora, em sendo exigida na guarda compartilhada uma participação conjunta e simultânea dos pais na educação dos filhos menores, a permanência do conflito entre eles após a dissolução do relacionamento amoroso poderia, em tese, prejudicar sobremaneira o sucesso desse instituto, violando, assim, o princípio do melhor interesse do menor. De fato, a priori, apresenta-se extremamente improvável a missão de promover o compartilhamento do exercício do poder familiar entre pessoas que continuam em conflito, sendo o convívio entre elas fonte de incremento desse mesmo conflito, o que constitui um terreno fértil para o desenvolvimento do Fenômeno da Alienação Parental, gerando a indesejada Síndrome da Alienação Parental. Diante disso, o incentivo da guarda compartilhada, nessas condições, acabaria funcionando como um meio de se promover a violação ao princípio do melhor interesse do menor. Destarte, essa situação é contornável a partir da prática da mediação. O conflito existente entre os pais, caso trabalhado pela mediação, pode não ser transferido para os filhos, aliás, mais do que isso, pode ser definitivamente solucionado, harmonizando o convívio familiar e proporcionando um saudável desenvolvimento psíquico dos menores. Assim, não obstante o passional conflito vivenciado pelos genitores, a mediação deve despertar o diálogo, o respeito, a humanização, a solidariedade e a cooperação entre eles, o que viabilizará o sucesso da guarda compartilhada. Em outras palavras, pode-se afirmar que, em havendo litígio entre os pais dos menores, a mediação deve ser encarada como uma etapa prévia necessária e obrigatória para a aplicação da guarda compartilhada. Por conseqüência, somente na hipótese de insucesso da mediação é que se deve evitar o uso da guarda compartilhada, apelando-se para a via excepcional da guarda exclusiva ou unilateral, tudo, reitere-se, visando ao melhor interesse da criança. Em resumo, pelos benefícios por ela proporcionados, a guarda compartilhada deve ser a regra geral do exercício do poder familiar após a dissolução do casamento/união estável, mas, em não havendo acordo entre os pais acerca da guarda dos filhos por força do prévio litígio de direito material existente entre eles, tal espécie de guarda, para que seja viável e efetivamente atenda ao melhor interesse do menor, deve vir precedida da prática da mediação familiar. Uma vez frustrada a mediação é que se recomenda a fixação da guarda exclusiva, como medida, portanto, excepcional. Como forma de aumentar as chances de êxito da mediação para a aplicação da guarda compartilhada, repita-se, é preciso que a prática daquele instituto se dê de forma multidisciplinar, recorrendo-se a conhecimentos extrajurídicos, notadamente da Psicologia, da Psicanálise, do Serviço Social, da Sociologia etc., afinal o operador do Direito (in casu, o magistrado) não possui conhecimentos técnicos suficientes para Leonardo Barreto Moreira Alves • 251 a resolução de conflitos familiares tão passionais como o que aqui se comenta. Corroborando todo o raciocínio esposado neste capítulo, Paulo Lôbo sintetiza: Para o sucesso da guarda compartilhada é necessário o trabalho conjunto do juiz e das equipes multidisciplinares das Varas de Família, para o convencimento dos pais e para a superação de seus conflitos. Sem um mínimo de entendimento a guarda compartilhada pode não contemplar o melhor interesse do filho [...]. O uso da mediação é valioso para o bom resultado da guarda compartilhada, como tem demonstrado sua aplicação no Brasil e no estrangeiro. Na mediação familiar exitosa os pais, em sessões sucessivas com o mediador, alcançam um grau satisfatório de consenso acerca do modo como exercitarão em conjunto a guarda. O mediador nada decide, pois não lhe compete julgar nem definir os direitos de cada um, o que contribui para a solidez da transação concluída pelos pais, com sua contribuição. Sob o ponto de vista dos princípios constitucionais do melhor interesse da criança e da convivência familiar, a guarda compartilhada é indiscutivelmente a modalidade que melhor os realiza. (LÔBO, 2008, p. 177). Registre-se novamente que o Enunciado nº 335 da IV Jornada de Direito Civil, em 2006, já consagrava expressamente esse entendimento, ao estipular que: “A guarda compartilhada deve ser estimulada, utilizando-se, sempre que possível, da mediação e da orientação de equipe interdisciplinar”. É nesses termos que se defende neste trabalho que o advento da Lei nº 11.698/08 deve ser calorosamente comemorado pela comunidade jurídica nacional, conforme será apreciado no capítulo seguinte. 5. A guarda compartilhada e a Lei Nº 11.698/08 Como já mencionado em trechos esparsos deste trabalho, a recente Lei nº 11.698/08 instituiu expressamente no ordenamento jurídico pátrio o instituto da guarda compartilhada. Embora sancionada em 13 de junho de 2008 e publicada no Diário Oficial da União em 16 de junho do mesmo ano, a referida lei somente entrou em vigor no País 60 (sessenta) dias após a citada publicação, por força da vacatio legis instituída no seu artigo 2º. Neste capítulo, pretende-se analisar os dispositivos do Código Civil alterados por esta lei para demonstrar que ela, embora contenha algumas falhas, deve ser muito bem recebida pela comunidade jurídica nacional. Primeiramente, a lei acrescenta o § 1º ao art. 1.583 do Codex, trazendo no seu bojo o conceito de guarda compartilhada, nestes termos: “Compreende-se por [...] guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. 252 • Direito Civil Nota-se que o conceito alhures transcrito, praticamente em sua íntegra, vai de encontro com o conceito já apresentado neste trabalho no capítulo 2. Não obstante, o conceito legal possui uma falha que merece ser apontada, ainda que de passagem: ele restringe o exercício da guarda compartilhada aos pais, vedando a utilização deste instituto por outras pessoas que eventualmente venham a cuidar dos menores, vedação esta que se distancia do conceito moderno de família, onde os vínculos de parentesco são muito menos jurídicos, muito mais afetivos (parentesco sócioafetivo). Nesse sentido, registre-se que o Professor Sérgio de Magalhães Filho (2008), em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), noticia interessante caso julgado pela Justiça paulista antes do advento da lei em que se permitiu o exercício compartilhado da guarda entre a mãe e o tio materno e padrinho de um menor. Nesse mesmo artigo, o autor registra a tendência da jurisprudência pátria de permitir que a guarda compartilhada seja exercida também por terceiros, como se vê do aresto a seguir reprisado: GUARDA DE MENOR. PEDIDO FORMULADO PELO PAI. MENOR COM 5 ANOS DE IDADE, QUE VIVE SOB A GUARDA DE FATO DE UMA TIA. Interdição da mãe do menor, por deficiência mental. Curadoria exercida pela irmã, guardiã de fato do menor. Concessão da guarda do pai não recomendada. Manutenção do menor junto à guardiã e à mãe. Solução que melhor atende, no momento, aos interesses do menor. Ação julgada procedente. Recurso provido. (TJSP, Apelação Cível 111.249-4, Relª. Zélia Maria Antunes Alves, j. 21.02.00). A nosso sentir, para que não seja afastada a possibilidade de guarda compartilhada ora em apreciação, não deve ser feita uma interpretação restritiva ou taxativa do art. 1.583, § 1º, do Código Civil, mas sim extensiva; permitindo-se, portanto, a participação de terceiros nesta modalidade de guarda, conforme já consagrado pela jurisprudência. Com esse fim, o dispositivo em questão deve ser lido ao lado do teor do art. 1.584, § 5º (antigo art. 1.584, parágrafo único), segundo o qual “Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade”. Prosseguindo na análise da novel legislação, verifica-se que o art. 1.584 do Código foi profundamente alterado por ela. Em um primeiro momento, afirma-se que a guarda compartilhada (ou unilateral também) pode ser decretada por requerimento consensual dos pais ou de qualquer deles (inciso I: “requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar”) ou ainda judicialmente (inciso Leonardo Barreto Moreira Alves • 253 II: “decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe”). Como já referido no capítulo 3, não há que se olvidar que a tarefa de aplicação da guarda compartilhada torna-se muito mais fácil quando há consenso entre os pais a respeito deste instituto. Para tanto, eles devem estar completamente cientes das responsabilidades que irão cumular e, principalmente, dos benefícios que a medida trará aos filhos menores. Atento a tudo isso, o art. 1.584, § 1º, passa a estatuir que “Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas”. O ponto nevrálgico da guarda compartilhada, pelo menos para parte da doutrina civilista, diz respeito à aplicação da medida justamente quando não ocorrer o consenso acima mencionado. Nesse trilhar, diante da existência prévia de litígio entre os pais dos menores, não seria recomendável a fixação desta espécie de guarda, sob pena não só de frustração da medida, mas, sobretudo, de violação do melhor interesse dos filhos. É com esse fundamento que parcela da doutrina vem criticando o teor do art. 1.584, § 2º, do Código Civil, que assim dispõe: “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”. No entender dessa corrente, tal dispositivo, ao estabelecer como regra geral a guarda compartilhada na hipótese de inexistência de acordo entre os pais (por determinação judicial, portanto), implicaria um franco retrocesso, pois o art. 1.584, em seu caput, antes da alteração feita pela lei, determinava que, nesse caso, a guarda dos filhos seria “[...] atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la”, o que resguardaria com mais eficiência o melhor interesse do menor. Em resumo, seria um grave erro impor a guarda compartilhada como regra geral em não havendo acordo entre os pais sobre ela, pois seria enorme o risco de frustração dessa medida nessa hipótese, motivo pelo qual deveria ser mantida a regra geral anterior, mais condizente com o princípio do melhor interesse do menor. Destarte, o problema apontado por essa parcela da doutrina é apenas aparente. De fato, a redação do art. 1.584, § 2º, do Código Civil é, sem dúvida nenhuma, a maior inovação trazida pela Lei nº 11.698/08. Em verdade, tal dispositivo pretendeu afastar a guarda unilateral (mesmo aquela exercida por “quem revelar melhores condições”, como afirmava o antigo art. 1.584, parágrafo único) como regra geral, substituindo-a pela guarda compartilhada. Essa mudança da regra geral de estipulação da guarda judicial deve ser intensamente comemorada, pois, como já visto ao longo deste trabalho, a guarda compartilhada, 254 • Direito Civil por diversos motivos, é aquela medida que mais se coaduna com o princípio do melhor interesse do menor. A existência de litígio entre os pais não prejudicará o sucesso da guarda compartilhada. Isso porque, conforme trabalhado no capítulo 3, para a aplicação desta medida na referida hipótese, exige-se previamente a realização da mediação interdisciplinar, meio altamente eficaz para resolução de conflitos familiares. Apenas e tão-somente no caso de insucesso da mediação, algo que, na prática, se verifica pouco provável, é que se recorrerá à medida excepcional da guarda unilateral, desde que com os parâmetros definidos no art. 1.584, § 5º (será atribuída a quem revelar compatibilidade com a natureza da medida), tudo em proteção ao melhor interesse do menor. É com esse raciocínio que deve ser lida a expressão “sempre que possível”, indicada no art. 1.584, § 2º, ou seja, em caso de inexistência de acordo entre os pais sobre a guarda do filho, valerá a regra geral da guarda compartilhada, sempre que a mediação previamente feita conseguir semear terreno fértil para a sua consecução, conseguir que o conflito existente entre os genitores, se não for solucionado, pelo menos não interfira no cumprimento conjunto do poder familiar; em não acontecendo tal êxito, aí sim a guarda compartilhada não será possível, devendo ser aplicada a medida excepcional da guarda unilateral, com os ditames estipulados pelo já citado § 5º do art. 1.584. Nesse sentido, vale a pena noticiar que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, recentemente, já sob a égide da Lei nº 11.698/08, entendendo não haver harmonia suficiente entre os pais que permitisse o sucesso da guarda compartilhada, exarou a seguinte decisão: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL LITIGIOSA. PEDIDO DE GUARDA COMPARTILHADA. DESCABIMENTO. AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES PARA DECRETAÇÃO. A guarda compartilha está prevista nos arts. 1583 e 1584 do Código Civil, com a redação dada pela Lei 11.698/08, não podendo ser impositiva na ausência de condições cabalmente demonstradas nos autos sobre sua conveniência em prol dos interesses do menor. Exige harmonia entre o casal, mesmo na separação, condições favoráveis de atenção e apoio na formação da criança e, sobremaneira, real disposição dos pais em compartilhar a guarda como medida eficaz e necessária à formação do filho, com vista a sua adaptação à separação dos pais, com o mínimo de prejuízos ao filho. Ausente tal demonstração nos autos, inviável sua decretação pelo Juízo. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (TJRS - Agravo de Instrumento nº 70025244955, Sétima Câmara Cível, Relator: Andvré Luiz Planella Villarinho, Julgado em 24/09/2008, Publicado em 01/10/2008). Leonardo Barreto Moreira Alves • 255 Retomando o raciocínio, constata-se que, com a finalidade de reforçar o posicionamento ora exposto, o art. 1.584, § 3º, assevera que “Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar”. Assim, na hipótese do art. 1.584, § 2º, antes da aplicação da guarda compartilhada, deve ser realizada necessariamente a mediação interdisciplinar. A nosso ver, quando o dispositivo afirma que o juiz poderá, na verdade, está a criar um poder-dever para ele, ou seja, desde que imprescindível (caso do art. 1.584, § 2º), o magistrado tem o dever de determinar a prática da mediação interdisciplinar, tanto assim que é possível a sua atuação de ofício, sem qualquer tipo de violação ao princípio da inércia. Aliás, por faltarem conhecimentos técnicos ao juiz para resolução de conflitos deste jaez, não poderia ser outra a alternativa proposta pela lei a não ser impor a prática da mediação interdisciplinar como etapa prévia da aplicação da guarda compartilhada quando não houver acordo entre os pais sobre esta matéria. Em síntese, é positiva a modificação patrocinada pela Lei nº 11.698/08 ao substituir a regra geral da guarda unilateral a quem revelar melhores condições para exercê-la (antigo art. 1.584, parágrafo único) pela guarda compartilhada (atual art. 1.584, § 2º), por ser essa medida a que mais atende ao princípio do melhor interesse do menor. Na hipótese de não haver acordo entre os pais sobre tal medida, ela será aplicada “sempre que possível”, ou seja, sempre que for proveitosa a mediação interdisciplinar, a qual deverá ser determinada pelo magistrado. Entretanto, se não houver sucesso na mediação, será aplicada a medida excepcional da guarda unilateral, obviamente a quem relevar compatibilidade com a natureza desta medida, nos termos do art. 1.584, § 5º, tudo em atenção ao melhor interesse do menor. Embora a lei em análise deva ser comemorada pela comunidade jurídica nacional, ela comete um grave erro ao determinar que o art. 1.584, § 4º, tenha a seguinte redação: “A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho”. Ora, esse dispositivo fere de morte o princípio do melhor interesse do menor, pois se preocupa muito mais em punir uma conduta irregular dos pais do menor, ignorando que essa punição, na verdade, prejudicará sensivelmente o desenvolvimento do filho, que perderá tempo precioso de convívio com seus genitores. Concluindo, não obstante suas falhas, as quais devem ser apontadas para aprimoramento da sua aplicação, a Lei nº 11.698/08, por tudo quanto discutido neste trabalho, deve ser bem recebida pela comunidade jurídica nacional. 6. Considerações finais Em resumo, não há motivos para se temer o advento da Lei nº 11.698/08, muito antes pelo contrário, o reconhecimento expresso da guarda compartilhada pelo 256 • Direito Civil ordenamento jurídico nacional vem a ampliar os esforços para a efetivação do princípio do melhor interesse do menor, haja vista os seus naturais benefícios. Nesse sentido, o risco de insucesso do uso deste instituto no caso de não existir acordo entre os pais do menor a respeito dessa medida é apenas aparente, sendo absolutamente contornável pela prévia prática da mediação interdisciplinar, conforme permitido pelo recente art. 1.584, § 3º, do Código Civil. Por conseqüência, é salutar que o art. 1.584, § 2º, estipule a guarda compartilhada como regra geral, inclusive quando não houver acordo entre os pais do menor acerca da guarda, sendo ela aplicável “sempre que possível”, ou seja, sempre que frutífera a mediação familiar anteriormente realizada. Não havendo sucesso na mediação, hipótese pouco provável, como vem se constatando empiricamente, é que se deve recorrer à excepcional guarda unilateral. Por ora, as preocupações dos operadores do Direito não devem mais se voltar à disciplina legal da guarda compartilhada, mas sim à sua efetivação na prática, sendo imprescindível, para esse fim, o aprimoramento do instituto da mediação familiar, daí porque cresce a importância da aprovação do Projeto de Lei nº 505/07, apresentado ao Congresso Nacional pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT/ BA) por sugestão do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que visa implementá-lo, acrescentando um parágrafo 3º ao art. 1.571 do Código Civil, o qual determinará que “na separação e no divórcio deverá o juiz incentivar a prática de mediação familiar”. 7. Referências bibliográficas ALVES, Leonardo Barreto Moreira Alves. O reconhecimento legal do conceito moderno de família: o art. 5o, II e parágrafo único, da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 8, n. 39, p. 131153, dez./jan. 2007a. ______. O fim da culpa na separação judicial: uma perspectiva histórico-jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2007b. ______. Reformas legislativas necessárias nos Direitos de Família e das Sucessões estão por vir. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 9, n. 42, p. 131-152, jun./jul. 2007c. BARBOSA, Águida Arruda. Mediação Familiar: instrumento para a reforma do judiciário. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 29-39. Leonardo Barreto Moreira Alves • 257 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o Direito Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6. ed. ampl., rev. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2006. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. LIMA, Fernanda Maria Dias de Araújo; FAGUNDES, Rosane Maria Vaz; PINTO, Vânia Maria Vaz Leite (Org.). Manual de Mediação: teoria e prática. Belo Horizonte: New Hampton Press, 2007. LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. MAGALHÃES FILHO, Sérgio de. Guarda Compartilhada Entre Mãe e Tio do Menor. Revista Brasileira de Direito das Famílias, Porto Alegre, v. 4, p. 50-62, jun./jul. 2008. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Familia. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. A Prática da Mediação e o Acesso à Justiça. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 258 • Direito Civil Jurisprudência Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça. Possibilidade de penhorar bem de família para sanar dívida alimentícia. In casu, os recorrentes foram condenados a pagar indenização por danos materiais a ser apurada em liquidação e por danos morais, além de pensão de um salário mínimo, tudo em decorrência das lesões sofridas em acidente de trânsito ocasionado por menor. É cediço que a pensão alimentícia está prevista expressamente no art. 3º, III, da Lei n. 8.009/1990 como hipótese de exceção à impenhorabilidade do bem de família, e a jurisprudência deste Superior Tribunal preconiza a irrelevância da origem dessa prestação se decorrente de relação familiar ou de ato ilícito. Dessa forma, explica o Min. Relator que não configura exceção o crédito decorrente de indenização por danos morais e materiais, desses valores não cuida o inciso III do art. 3º da Lei n. 8.009/1990, que apenas se refere à pensão alimentícia, e o inciso VI do mesmo dispositivo se restringe apenas à reparação como efeito da condenação penal, e não cível. Na linha dos precedentes deste Superior Tribunal, a lei quis distinguir o ilícito penal e o civil e só em relação ao primeiro cuidou de estabelecer a exceção. Também aponta ter a proteção da impenhorabilidade do bem de família quanto ao crédito decorrente de honorários advocatícios de sucumbência, pois não consta do rol das exceções. Assim, concluiu que o único crédito que pode penhorar o bem de família, no caso, é o decorrente da pensão mensal fixada na ação de indenização. Logo restringiu a penhora do bem ao adimplemento do débito decorrente da pensão mensal. Com esse entendimento, a Turma deu parcial provimento ao recurso para julgar parcialmente procedentes os embargos do devedor e determinar a penhora do imóvel sub judice ao montante correspondente às pensões mensais inadimplidas. Precedentes citados: REsp 605.641-RS, DJ 29/11/2004; REsp 64.342PR, DJ 9/3/1998, e REsp 90.145-PR, DJ 26/8/1996. REsp 1.036.376-MG, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 10/11/2009. Informativo 415 do Superior Tribunal de Justiça - Registro Civil. Retificação. Mudança. Sexo. A questão posta no REsp cinge-se à discussão sobre a possibilidade de retificar registro civil no que concerne a prenome e a sexo, tendo em vista a realização de cirurgia de transgenitalização. A Turma entendeu que, no caso, o transexual operado, conforme laudo médico anexado aos autos, convicto de pertencer ao sexo feminino, portando-se e vestindo-se como tal, fica exposto a situações vexatórias ao ser chamado em público pelo nome masculino, visto que a intervenção cirúrgica, por Jurisprudência • 259 si só, não é capaz de evitar constrangimentos. Assim, acentuou que a interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei de Registros Públicos confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização judicial a fim de alterar seu prenome, substituindo-o pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive, ou seja, o pretendido nome feminino. Ressaltou-se que não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial, como fez o Tribunal a quo, significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. Afirmou-se que se deter o julgador a uma codificação generalista, padronizada, implica retirar-lhe a possibilidade de dirimir a controvérsia de forma satisfatória e justa, condicionando-a a uma atuação judicante que não se apresenta como correta para promover a solução do caso concreto, quando indubitável que, mesmo inexistente um expresso preceito legal sobre ele, há que suprir as lacunas por meio dos processos de integração normativa, pois, atuando o juiz supplendi causa, deve adotar a decisão que melhor se coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das pessoas. Nesse contexto, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais expressos da Constituição de 1988, especialmente os princípios da personalidade e da dignidade da pessoa humana, e levando-se em consideração o disposto nos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, decidiu-se autorizar a mudança de sexo de masculino para feminino, que consta do registro de nascimento, adequando-se documentos, logo facilitando a inserção social e profissional. Destacou-se que os documentos públicos devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve haver segurança nos registros públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de prenome e de sexo do requerente, deve ficar averbado que as modificações feitas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil. Todavia, tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar, nas certidões do registro público competente, nenhuma referência de que a aludida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco de que ocorreu por motivo de cirurgia de mudança de sexo, evitando, assim, a exposição do recorrente a situações constrangedoras e discriminatórias. REsp 737.993-MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/11/2009 (ver Informativo n. 411). 260 • Direito Civil Comentário à Jurisprudência A RESPONSABILIDADE CIVIL À LUZ DO ESTATUTO DO TORCEDOR: CLUBE PUNIDO POR DANO A TORCEDOR DURANTE COMEMORAÇÃO DE GOL GUSTAVO LOPES PIRES DE SOUZA Advogado licenciado em razão de função pública no TJMG Professor de matérias jurídicas no Megaconcursos, Faminas e Analdo Jansen 1. Introdução Filosófica e psicologicamente, o esporte é fator de extrema relevância para a fuga das inquietudes da rotina de todo ser humano. Desde as mais antigas civilizações, especialmente na Grécia, o desporto é utilizado como forma de demonstrar a destreza e a força física dos competidores bem como o maior ou menor poder de uma nação ou etnia. Simultaneamente, evoluíram também as formas de disputas e organizações esportivas. Esses acontecimentos no âmbito do desporto foram acompanhados pela evolução de outros aspectos da vida humana – como as artes, as ciências e as indústrias – e também pelo Direito. O crescimento esportivo trouxe novidades e imensas modificações nas relações entre competidores, entidades organizadoras e seus espectadores. E quando há um inter-relacionamento entre diversos agentes, faz-se necessária a regulamentação pelo ordenamento jurídico. A legislação pátria acompanhou a evolução do esporte, regulamentando a proteção dos direitos do torcedor. Nesse esteio, em 15 de maio de 2003, foi promulgada a Lei nº 10.671, denominada Estatuto do Torcedor, que disciplina os direitos e os deveres de uma determinada categoria de consumidor. Quando se fala em desporto no Brasil, naturalmente remonta-se, de forma imediata, ao futebol, haja vista ser o esporte mais difundido no país e a este já ter “dado” cinco Copas do Mundo (evento de maior visibilidade) e uma infinidade de outros títulos. Gustavo Lopes Pires de Souza • 261 Não obstante, o Estatuto do Torcedor é aplicável a todo desporto profissional, especialmente agora, quando o Rio de Janeiro foi escolhido para ser a sede das Olimpíadas de 2016 e outras modalidades começaram a se tornar conhecidas e populares. Assim, o Estatuto do Torcedor traz importantíssimas normas e regulamentações ao Direito Pátrio, uma vez que responde aos anseios dos desportistas e torcedores brasileiros que desejam a prevalência da ética, da moralidade e da transparência no desporto profissional, especialmente o futebol. Ademais disso, cada vez mais cresce a apreciação e a prática de diversos outros esportes, como o vôlei, a natação, o basquete, o tênis e vários outros ainda menos difundidos, mas já muito apreciados. O estatuto tem conteúdo moralizador e, desde sua entrada em vigor, foi severamente criticado por alguns dirigentes esportivos. A responsabilidade pela implementação do estatuto cabe às entidades que administram o esporte (confederações, federações, ligas esportivas), aos clubes, ao poder público e aos torcedores. Quanto aos clubes de futebol, é desejável que se organizem como fizeram as empresas quando da promulgação do Código de Defesa do Consumidor. Muitas delas (os bons fornecedores) deram demonstração de civilidade e boa visão de mercado, pois investiram no treinamento de funcionários, na melhoria de procedimentos e qualidade de produtos e serviços, capacitaram-se para um melhor diálogo com os consumidores e os seus órgãos e entidades representativas. Ainda que algumas empresas deixem muito a desejar quanto aos direitos dos consumidores, não ousam negar a importância do Código de Defesa do Consumidor, tampouco se recusam a adotar iniciativas para sua implementação. Espera-se que o mesmo ocorra não somente com os principais times de futebol mas também com todos os Clubes e Entidades Organizadoras de Atividades Esportivas. È importante que a imprensa e os próprios torcedores desafiem os clubes a se pronunciarem sobre o dever ético, e agora também jurídico, de respeitar o consumidor/torcedor. O Estatuto do Torcedor trata, portanto, de lei que, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor, estende sua tutela protetora a uma grande parcela da sociedade. O reconhecimento da relevância social de eventos públicos de caráter esportivo tem gerado o surgimento de leis reguladoras em vários países do mundo. Todos somos consumidores e não seria de se considerar inverossímil a assertiva de que, no Brasil, todos somos torcedores. O costume de ir ao estádio torcer pelo time 262 • Direito Civil de sua simpatia está, há muito, presente na vida do brasileiro: do mais rico ao mais humilde. Por esse motivo, a Lei nº 10.671/2003 confere oportunidade de conciliar a paixão do torcedor brasileiro com o sentimento de cidadania, tão execrado nas décadas de ditadura militar. Como resposta aos clamores sociais, tivemos, há mais de quatro anos, a promulgação da Lei nº 10.671/03, o ‘Estatuto de Defesa do Torcedor – EDT’, uma espécie de Direito do Consumidor aplicado aos eventos esportivos, permitindo a qualquer pessoa reclamar indenização e punição aos responsáveis por eventual lesão de direitos surgida em decorrência de eventos esportivos, cuja origem pode estar não só na falta de assentos numerados, banheiros impróprios, assaltos nas imediações dos estádios e atos de vandalismo, mas também na falta de organização na partida e na facilitação de um resultado pelo árbitro. (CABEZÓN, 2006). Pelo país afora os cidadãos começaram a conhecer o Estatuto do Torcedor e pleitear judicialmente seus direitos e, em um desses casos, um torcedor gaúcho obteve o direito a receber indenização em razão de lesões sofridas durante a comemoração de um gol, durante uma partida de futebol. 2. Responsabilidade civil no Estatuto do Torcedor O Estatuto do Torcedor regulamenta uma relação de consumo específica entre o consumidor de atividade esportiva e seu fornecedor. Nesse esteio, o artigo 3º do Estatuto do Torcedor define como fornecedores a Entidade Organizadora e o Clube Mandante. É importante diferenciar “clube com mando de jogo” e “clube/entidade responsável pelo estádio”. O clube com mando de jogo é aquele que, pelas regras da competição, deve receber o time adversário e organizar a partida (vender ingressos, captar a renda), conforme define o art. 15. Por exemplo, em partida de futebol entre Cruzeiro e Mamoré pelo campeonato Mineiro, com mando do primeiro, os responsáveis seriam a Federação Mineira de Futebol (organizadora) e o Cruzeiro. Ressalte-se que sempre haverá um mandante. Ainda que o Cruzeiro jogue em Ipatinga, se na tabela da competição constar que o jogo é de seu mando, ou seja, sendo de sua competência organizar a partida, será desta agremiação a responsabilidade. No Capítulo IV, o Estatuto do Torcedor dispõe acerca da responsabilidade por danos sofridos pelo torcedor nos eventos esportivos. Ademais, o art. 14 do Estatuto Gustavo Lopes Pires de Souza • 263 determina que são responsáveis pela segurança do torcedor os clubes mandantes e seus dirigentes. Nesse ponto, a lei traz valiosas inovações, na medida em que desconsidera a personalidade jurídica das Entidades Esportivas e das Federações ao conferir responsabilidade solidária aos dirigentes. Como se sabe, a desconsideração da pessoa jurídica tem sido já há algum tempo aplicada no Brasil. No entanto, até então somente ocorria em hipóteses excepcionais, como prevê o art. 50 do Código Civil de 2002. Desconsideração automática da personalidade jurídica, portanto, foi algo que, a princípio, não cogitou a lei civil. No entanto, no âmbito do Estatuto do Torcedor, como exposto, é possível desconsiderar a Entidade e responsabilizar seus dirigentes, cuja definição é fornecida pelo art. 37, § 1º, do Estatuto1. Por seu turno, o artigo 19 é claro e responsabiliza, solidária e objetivamente, o clube com mando de jogo e a entidade responsável pela organização da competição pelos danos ao torcedor ocorridos no estádio, desde que decorrentes de falha de segurança ou da inobservância dos deveres previstos no Capítulo IV da Lei. Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo. Por responsabilidade objetiva entende-se que o fornecedor é responsável (com ou sem culpa) pela reparação de quaisquer danos causados aos torcedores por defeitos decorrentes do fornecimento dos serviços, bem como pela ineficiência ou inadequação de informações sobre o modo de usá-los, servi-los ou fruí-los. Assim, independentemente de quem for responsável por “falhas de segurança” (do clube, da entidade responsável pela organização da competição ou da polícia), ocorrerá responsabilidade solidária (ambos respondem conjuntamente) e objetiva do clube e da entidade responsável pela organização da competição. Só assim se dará maior garantia de ressarcimento ao torcedor lesado, que, além de poder acionar o Estado (caso a falha tenha sido da polícia), poderá acionar clube e entidade responsável pela organização da competição. Dessa forma, antes ou após o evento esportivo no local de sua realização, independente se há relação com deveres do Mandante (art. 14) ou da Entidade 1 Presidente do Clube ou quem lhe faça as vezes. 264 • Direito Civil Organizadora (art. 16), havendo dano e nexo de causalidade (vínculo entre o dano e a realização do evento), a responsabilidade é do Mandante e a Entidade Organizadora de maneira solidária (ambos respondem igualmente) e objetiva (independe de culpa). Apesar de ser dever do Estado tratar da Segurança Pública e da Responsável pelo Estádio ou Ginásio cuidar de sua manutenção, segundo o Estatuto do Torcedor, os responsáveis por danos sofridos pelo Torcedor são o Mandante, a Entidade Organizadora e seus dirigentes. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste ou a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Portanto, em uma partida entre América/MG e Botafogo/RJ, no Mineirão, pelo Campeonato Brasileiro, com mando do primeiro, a responsabilidade é do América/ MG e da CBF e não do Estado de Minas Gerais ou da ADEMG (autarquia responsável pela administração do Mineirão). A responsabilização solidária dos dirigentes traduz desconsideração da personalidade jurídica dos clubes e das entidades, na esteira do que já prescreve a legislação consumerista, não se tratando, portanto, necessariamente, de responsabilidade criminal, o que não é afastado, sendo que, neste caso, deve ser comprovada a culpa. Assim, um bom exemplo de aplicação do Estatuto do Torcedor e de seu artigo 19 se deu em razão de desabamento de parte do Estádio da Fonte Nova, em 25 de novembro de 2007, na última partida do Bahia pela Série “C” do Campeonato Brasileiro, quando nove pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. Acertadamente, a Justiça Desportiva (STJD) aplicou a pena de perda de mando de campo e, no âmbito da Justiça Comum, o Presidente do Bahia, além de afastado do cargo, foi indiciado por homicídio culposo. Talvez a mais evidente falha dessa natureza seja a superlotação, que ocorre quando se disponibilizam mais ingressos do que seria permitido, tendo em vista a capacidade máxima do estádio, ou quando, muito embora se disponibilizem ingressos respeitando aquele limite, permita-se a entrada clandestina de mais pessoas no ambiente. Tal prática enseja a aplicação da sanção da perda do mando de jogo por no mínimo seis meses (art. 23, § 2º). A referida situação ocorreu na final do Brasileiro de 2000 entre Vasco e São Caetano, em São Januário, quando, aos 23 minutos do primeiro tempo, a superlotação causou a queda do alambrado. O saldo foi de 200 feridos. O então presidente do Vasco, Eurico Miranda, tentou reiniciar a partida, mas o Governador do Rio de Janeiro, na época Anthony Garotinho, determinou o cancelamento do jogo, que foi remarcado para 18 de janeiro de 2001, no Maracanã. Gustavo Lopes Pires de Souza • 265 Pior do que o incidente de São Januário foi o que ocorreu no Maracanã, na final do Campeonato Brasileiro de 1992, entre Flamengo e Botafogo. Eram mais de 120 mil pessoas e a grade de proteção da arquibancada cedeu. Muitos torcedores despencaram deixando quatro mortos e 101 feridos. Realizadas as considerações acima, passa-se ao estudo do caso. 3. Jurisprudência em comento A Primeira Turma Recursal do Juizado Especial de Porto Alegre, nos autos nº 71001592872, julgou ação movida contra o Grêmio de Foot-baal Porto Alegrense em razão de lesões corporais sofridas durante tradicional comemoração da Torcida do Grêmio, denominada “avalanche”, que consiste na descida rápida de degraus (arquibancada), por parte de torcedores gremistas, em direção à mureta de segurança do estádio, quando há efetivação de gols por parte do time. Assim, estabeleceu-se o aresto. Recurso Inominado: Primeira Turma Recursal Cível Nº 71001592872 Comarca de Porto Alegre GREMIO FOOT-BALL PORTO ALEGRENSE: RECORRENTE RAFAEL PACHECO RIBEIRO: RECORRIDO MARIANA GAMBIM: RECORRIDO LESÃO EM TORCEDORES. RESPONSABILIDADE DO CLUBE DEMANDADO. CDC. TORCEDORes que sofrem lesões corporais no interior de estádio de futebol EM MOMENTO DE EUFORIA DA TORCIDA, EM AÇÃO denominada “avalanche” (procedimento de descida rápida de degraus da arquibancada em direção a mureta de segurança no momento de concretização de gols). CONDUTA DO CLUBE QUE EVIDENCIA ADESÃO E ANUÊNCIA COM TAL PROCEDER. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. 1. É responsável o Clube pela segurança dos torcedores que, mediante pagamento de ingresso, deslocam-se ao estádio para assistir a partida de futebol. Tal responsabilidade, tratando-se de prejuízos causados pela falha na segurança, é objetiva, nos moldes preceituados nos arts. 13, 14 e 17 do Estatuto de Defesa do Torcedor, que diz com a responsabilidade da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes. 2. Clube de futebol que incentiva tal prática, denominada ‘avalanche’, inclusive ao divulgar estar destinando espaço físico em novo estádio a ser construído pelo clube (ARENA). 266 • Direito Civil Informação extraída do site oficial do clube em entrevista concedida pelo vice-presidente da entidade, onde denomina a ‘avalanche’ como espetáculo a ser mantido. Em assim procedendo a instituição futebolística não só adere a tal proceder, mas acima de tudo o incentiva, de modo que deve responder pela conduta lesiva ocasionada a seus torcedores no momento da realização da referida comemoração. Dever de reparar. 3. Acidente descrito na inicial e suas conseqüências (queda nas arquibancadas com pisoteamento, e conseqüentes escoriações) que restaram devidamente comprovadas nos autos pelas prova testemunhal, documental e fotográfica acostadas, não vingando a tese do demandado que a torcida organizada está sempre localizada no mesmo local sendo sua identificação de fácil percepção pelos autores. Prova testemunhal carreada aos autos a demonstrar que os autores não eram freqüentadores assíduos do estádio de futebol, não podendo previamente identificar a localização das torcidas organizadas. Autores desavisados e que foram surpreendidos pelo proceder (avalanche) da torcida. 4. Danos morais, no caso concreto, que restaram comprovados. Manutenção do quantum indenizatório que restou fixado em R$ 6.000,00. Valor que atenta para a condição econômica de ambas as partes e para o caráter pedagógico/punitivo da medida. SENTENÇA MANTIDA. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. No caso em tela, conforme estabelece o Estatuto do Torcedor, tem-se uma relação de consumo entre o torcedor e os fornecedores: Grêmio (Clube Mandante) e a Entidade Organizadora. Ademais, conforme determina o art. 19 do Estatuto do Torcedor, os dirigentes respondem solidariamente. Tratando-se de responsabilidade solidária, o Torcedor optou por propor ação somente contra o Clube Mandante. A Colenda Turma, acertadamente, manteve a decisão de 1ª instância e condenou o Grêmio a indenizar o torcedor em razão das lesões corporais que sofreu. No entanto, apesar disso, o d. acórdão merece algumas considerações, pois inobserva algumas determinações do Estatuto do Torcedor. Primeiramente, menciona que “É responsável o Clube pela segurança dos torcedores que, mediante pagamento de ingresso, se deslocam ao estádio para assistir a partida de futebol.” No entanto, conforme estabelece o artigo 2º,2 o fornecedor não é responsável apenas 2 Art. 2º Torcedor é toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva Gustavo Lopes Pires de Souza • 267 pela segurança de quem pague ingresso, mas pela de qualquer pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática esportiva do País e acompanhe a prática da modalidade esportiva. Outro ponto que inobserva o Estatuto do Torcedor é o “item 2” do v. aresto, pois fundamenta a decisão conferindo ao clube culpa pelo dano ao torcedor, uma vez que incentiva a comemoração “avalanche”. Ora, conforme já exposto, a responsabilidade independe de culpa, bastando se comprovar o nexo de causalidade e o dano. Percebe-se, portanto, que decidiu acertadamente a c. Primeira Turma Recursal de Porto Alegre/RS. Entretanto, ela o fez sem aplicar acertadamente a Lei nº 10.671/2003, tendo em vista que não considerou o que dispõem os artigos 2º e 19 do citado Estatuto. 4. Conclusão O Estatuto do Torcedor trouxe imensas inovações e novo paradigma para o desporto Nacional, mas a aplicabilidade de uma lei depende da defesa de direitos reiterada pelo cidadão. Por esse motivo, ainda há muito a ser implementado, muito a ser melhorado. Os organizadores de eventos esportivos e as entidades competidoras ainda não atinaram na importância do torcedor e o conseqüente respeito por seus direitos. E por isso ainda não foi atingida a situação ideal: que seja dado tudo que os torcedores e esportistas necessitam. No entanto, a promulgação do Estatuto do Torcedor trouxe imensa evolução, tal como o direito à reparação do dano, como conquistado pelo torcedor no caso em comento. Entretanto, ainda é preciso mais, é indispensável que os responsáveis pelo desporto nacional criem serviços de atendimento ao torcedor, nos moldes das grandes empresas, e que os estágios, ginásios ou autódromos possuam mais segurança. Precursor neste aspecto, o Internacional de Porto Alegre possui estruturado serviço de atendimento ao torcedor. Não é por acaso que se tornou o time de futebol brasileiro com maior número de sócios torcedores. Em Minas Gerais, espetacular exemplo é o Minas Tênis Clube, conhecido nacionalmente por suas equipes de vôlei, basquete, natação e futsal, que possui do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva. Parágrafo único. Salvo prova em contrário, presumem-se a apreciação, o apoio ou o acompanhamento de que trata o caput deste artigo. 268 • Direito Civil uma ouvidoria para o torcedor não sócio, atitude que demonstra zelo para com o torcedor, o que não foi ainda implementado pelos três grandes times de futebol da capital mineira (América, Atlético e Cruzeiro). Portanto, o Estatuto do Torcedor confere instrumentos hábeis a assegurar uma série de direitos e proteções, cabendo à sociedade civil acionar o Judiciário e os órgãos administrativos responsáveis no intuito de se efetivar a sua aplicabilidade. 5. Referências bibliográficas BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. BONAVIDES, Davi de Oliveira Paiva. Uma análise sobre o estatuto do torcedor. In verbis, n. 15, p. 116-125, jan./jun. 2003. BRASIL. 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Gustavo Lopes Pires de Souza • 271 5 Artigo • 275 Jurisprudência • 292 Comentário à Jurisprudência • 295 Técnica • 301 Direito Processual Civil 5 Artigo UMA ANÁLISE ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 285-A DO CPC EM FACE DOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DO CONTRADITÓRIO FÁDUA MARIA DRUMOND CHEQUER MAGNO Servidora do TJMG na comarca de Almenara RESUMO: Considerando-se que a constitucionalidade ou não do art. 285-A do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei n° 11.277/2006, ocasiona a aplicação ou não desse dispositivo no mundo jurídico, defendem-se aqui os argumentos da corrente doutrinária que pugna pela sua inconstitucionalidade em face dos princípios constitucionais e fundamentais do devido processo legal e do contraditório, na medida em que restou demonstrado, no presente trabalho, a ofensa a tais princípios através dos incontestáveis prejuízos processuais acarretados às partes envolvidas na questão sub judice, em virtude desse julgamento in limine de ações repetitivas, desde que improcedentes, em que a citação é dispensada quando tais ações tratam de matéria de direito. PALAVRAS-CHAVE: Artigo 285-A do CPC; julgamento in limine de ações repetitivas; inconstitucionalidade; princípio do devido processo legal; princípio do contraditório. ABSTRACT: The constitutionality or unconstitutionality of article 285-A of the Civil Procedure Code, which became part of the code by virtue of law n.11277 of 2006, may result in its validity or invalidality. This essay upholds the arguments put forward by those who view the above mentioned article as unconstitutional based on the fundamental and constitutional principles of the due process of law and of the adversary system. The offence to such principles is demonstrated by undeniable procedural losses to the parties involved in the sub judice matter, by virtue of in limine judgments in repetitive claims which are dismissed and in which summons are not required when such claims deal with matters of (substantial) law. KEY WORDS: Article 285-A of the Civil Procedure Code. In limine judgment of repetitive claims. Unconstitutionality. Due process of law principle. Adversary system principle. Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 275 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do julgamento in limine de ações repetitivas. 3. Argumentos que sustentam a constitucionalidade do Art. 285-A do Código de Processo Civil. 4. Da inconstitucionalidade do julgamento in limine de ações repetitivas. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas. 1. Introdução O presente artigo se destina a analisar a constitucionalidade do art. 285-A do Código de Processo Civil à luz dos princípios fundamentais do devido processo legal e do contraditório, dispositivo este advindo da última das fases reformistas do direito processual que buscam maior celeridade e efetividade da prestação jurisdicional. Através da linha metodológica dogmática – haja vista que será enfocado o tema da constitucionalidade ou não do art. 285-A do CPC bem como as questões práticas sobre o tema – e do raciocínio indutivo-dedutivo, buscar-se-á apontar os argumentos de ambas as correntes doutrinárias e demonstrar a inconstitucionalidade do artigo em questão. 2. Do julgamento in limine de ações repetitivas O pacote de reformas do Código de Processo Civil ocorrido nos últimos tempos, e que ainda não se esgotou, visa buscar a efetividade do processo, ou seja, propiciar uma prestação jurisdicional capaz de satisfazer os anseios da coletividade de maneira rápida, eficaz e justa, rompendo figuras e praxes atualmente incondizentes com a garantia fundamental do devido processo legal em sua contemporânea concepção de processo justo, efetivo e célere. Ocorre, porém, que, dentre as mencionadas reformas, a última grande onda renovatória do Direito Processual Civil trouxe consigo uma controvertida inovação (controvertida em virtude do questionamento da constitucionalidade deste dispositivo), qual seja, a introduzida pela Lei n° 11.277, de 7 de fevereiro de 2006, que acrescentou ao Código de Processo Civil o art. 285-A. Antes de se adentrar no objeto do presente estudo, necessária se faz a transcrição do dispositivo legal em questão para uma melhor análise: Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. § 1°. Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação. § 2°. Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso. 276 • Direito Processual Civil Tal inovação autoriza o juiz de primeiro grau, em “casos idênticos” e cuja matéria controvertida seja “unicamente de direito”, a julgar liminarmente as ações improcedentes, conforme sentença anteriormente proferida pelo juízo, sem a citação do réu, que somente ocorrerá no segundo grau de jurisdição se houver a interposição do recurso de apelação pelo autor. Institui-se, assim, a “improcedência liminar” (ZABIN, 2007) ou a “sentença vinculativa ou vinculante” (LIMA FILHO, 2006) ou a “sentença emprestada” (MEDINA, 2006) ou a “sentença de improcedência prima facie” (SANTOS, 2006) ou o “julgamento superantecipado da lide” (BUENO, 2006) ou o “julgamento antecipado da lide inaudita altera parte” (ALVIM; CABRAL, 2008) ou o “julgamento das ações repetitivas” (MARINONI; ARENHART, 2007) ou, ainda, o “julgamento prima facie de improcedência das demandas seriadas” (THEODORO JÚNIOR, 2007), etc. Apesar das várias impropriedades da técnica legislativa como, por exemplo, a inadequada localização do artigo, o emprego das imprecisas expressões “casos idênticos” e “matéria controvertida”, o art. 285-A do Código de Processo Civil surgiu, segundo Ernane Fidélis dos Santos (2006, p. 146), para facilitar o julgamento de casos idênticos (entenda-se com “simples parecença”), em primeira instância, sem ociosas repetições. E embora, dessa forma, detenha o escopo de racionalizar e tornar a prestação jurisdicional mais célere (em aparente consonância com o inciso LXXVIII da Constituição da República1), questiona-se a constitucionalidade de tal dispositivo sob diversos aspectos, principalmente no que tange ao princípio do contraditório e do devido processo legal, que são os focos do presente trabalho. 3. Argumentos que sustentam a constitucionalidade do art. 285-A do Código de Processo Civil Na defesa da constitucionalidade do art. 285-A do Código de Processo Civil, encontram-se renomados juristas deste País como Humberto Theodoro Júnior, Luiz Fux, Ernane Fidélis dos Santos, J. E. Carreira Alvim, Luiz Guilherme Marinoni, Vicente Greco Filho e Ada Pellegrini Grinover. Primeiramente, trazem-se os argumentos de Humberto Theodoro Júnior (2007, p.18) que diz que “[...] o julgamento liminar, nos moldes traçados pelo art. 285-A, não agride o devido processo legal, no tocante às exigências do contraditório e ampla defesa”, haja vista que: A previsão de um juízo de retratação e do recurso de apelação assegura ao autor, com a necessária adequação, um contraditório suficiente para o amplo debate em torno da LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 1 Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 277 questão de direito enfrentada e solucionada in limine litis. Do lado do réu, também, não se depara com restrições que possam se considerar incompatíveis com o contraditório e ampla defesa. Se o pedido do autor é rejeitado liminarmente e o decisório transita em julgado, nenhum prejuízo terá suportado o demandado, diante da proclamação judicial de inexistência do direito subjetivo que contra este pretendeu exercitar o demandante. Somente como vantajosa deve ser vista, para o réu, a definitiva declaração de certeza negativa pronunciada contra o autor. Se o juiz retratar sua decisão liminar, o feito terá curso normal e o réu usará livremente do direito de contestar a ação e produzir elementos de defesa de que dispuser, dentro do procedimento completo por que tramitará a causa. Se a hipótese for de manutenção da sentença ao réu será assegurada a participação no contraditório por meio das contra-razões da apelação. (THEODORO JÚNIOR, 2007, p. 18). Assim, segundo Humberto Theodoro Júnior (2007, p. 19), “[...] ambas as partes disporão de condições para exercer o contraditório, mesmo tendo sido a causa submetida a uma sentença prolatada antes da citação do demandado”. Nesse sentido, Ernane Fidélis dos Santos preceitua que: [...] o dispositivo é perfeitamente aplicável, estando em consonância com os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, já que se trata de mera antecipação de julgamento, de influência, na relação processual, de imediato, sobre o autor, mas a ele permitindo-se o prosseguimento do feito através de recurso. Para o réu, por outro lado, a improcedência só lhe traz benefício, e o contraditório e a amplitude de sua defesa, no caso de recurso, ficam resguardados, sem nenhum prejuízo processual. (SANTOS, 2006, p. 145). Na mesma direção, porém com outros argumentos, Luiz Fux (2008, p. 26) prega que “[...] à luz da ratio essendi da bilateralidade da ação e do processo, inspirados num processo cooperativo, mister concluir-se que a alteração conspira em favor de todos os princípios ora assentados”, quais sejam, o do contraditório como consectário do devido processo legal e o do prejuízo no tocante às nulidades. Em consonância com Luiz Fux, Anderson Ricardo Fogaça também justifica a defesa da constitucionalidade do artigo em questão com base no princípio do prejuízo no tocante às nulidades, declarando que: Não se poderá alegar eventual inconstitucionalidade do dispositivo em comento por ofensa ao princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, na medida em que o processo civil brasileiro é norteado pelo princípio do prejuízo no tocante às nulidades, não as declarando se o ato 278 • Direito Processual Civil não sacrificou o fim último do processo, que é a prestação da tutela jurisdicional a quem tem o melhor direito, autor ou réu. Como apenas será julgado in limine o processo no caso de improcedência, não há que se falar em prejuízo ao requerido, tampouco ao autor, o qual não terá que arcar com os custos do processo, como a condenação nos honorários sucumbenciais. (FOGAÇA, 2006, p. 4). De forma bem concisa, J. E. Carreira Alvim e Luciana G. Carreira Alvim Cabral (2008, p. 156) afirmam que a dispensa de citação “[...] só não infringe o princípio da ampla defesa (CF, art. 5°, LV), porque o julgamento antecipado da lide, inaudita altera parte, beneficia justamente aquele que deveria ser citado”. Por outro lado, preconizam a adoção de um instituto semelhante, qual seja, a “sentença por afinidade”, que se distingue da “sentença emprestada” (MEDINA, 2006) do art. 285-A do CPC, por se aplicar às hipóteses de procedência e improcedência da ação bem como às questões de direito e fáticas com prova pré-constituída, exigindo-se apenas a identidade de pedido e da causa de pedir. Marinoni e Arenhart também pouco argumentaram sobre a defendida posição da constitucionalidade do art. 285-A do CPC. Afirmaram, contudo, que: [...] é lamentável que se chegue a pensar na inconstitucionalidade do art. 285-A. Somente muita desatenção pode permitir imaginar que esta norma fere o direito de defesa. Por isto mesmo, parece que afirmação de inconstitucionalidade do art. 285-A tem mais a ver com a intenção de garantir alguma reserva de mercado, já que é sabidamente interessante, do ponto de vista financeiro, reproduzir, através de máquinas, petições e recursos absolutamente iguais. (MARINONI; ARENHART, 2007, p. 96). Merece ainda especial destaque o argumento, trazido por Vicente Greco Filho, que se refere à compatibilidade ou convivência dos princípios constitucionais: Nenhuma norma ou princípio constitucional é absoluto, já que deve compatibilizar-se com os demais. O contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal devem conviver com a efetiva prestação jurisdicional, seriamente comprometida pela multiplicação de demandas com a mesma tese jurídica e que poderiam ser decididas rapidamente com o desafogo evidente da Justiça. (GRECO FILHO, 2006, p. 81-82). Para Nelson Nery Júnior (apud RIBEIRO, 2006), só haveria inconstitucionalidade se o art. 285-A tivesse previsto a sua aplicação para julgamentos procedentes. Cristiano Simão Miller complementa a presente exposição ao trazer à tona, dentre outros pontos, a questão do contraditório a posteriori, também chamado de “contraditório diferido”: Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 279 [...] não deve ser olvidado que o contraditório, na questão em apreço, não foi desprezado. Como pode ser facilmente constatado pela redação dos §§ 1º e 2º do art. 285-A, continua garantida ao autor a interposição do recurso de apelação, ocasião em que poderá o juiz retratar-se, determinando a imediata citação do réu. E, ainda que a sentença seja mantida, o réu será igualmente citado para responder ao recurso interposto pelo autor, mantendo-se assim a possibilidade de se travar o diálogo e a cooperação, em perfeita atenção ao princípio do contraditório. Ter-se-á, com isso, a garantia do debate no processo, com ambas as partes podendo influenciar na formação do convencimento final do julgador – ainda que tal debate se dê num momento posterior ao que normalmente ocorre. (BATISTA apud MILLER, 2007, p.43). E, por último, coadunando com o argumento de Miller, Ada Pellegrini Grinover sustenta que: [...] a nova disposição não infringe nem o devido processo legal nem o contraditório, sendo este apenas diferido para o momento posterior à prolação da sentença antecipada, quando o autor pode recorrer e até o juiz pode rever sua decisão. Quanto ao réu, ele é beneficiado pela decisão e poderá contraarrazoar o recurso e, se não houver recurso, será normalmente cientificado da decisão favorável. (GRINOVER apud RIBEIRO, 2006). Esses são alguns relevantes posicionamentos que defendem a não ofensa aos princípios do devido processo legal e do contraditório e, portanto, a constitucionalidade do dispositivo em tela, haja vista, entre outros argumentos, a ausência de prejuízos às partes e o contraditório a posteriori ou “contraditório diferido” (BATISTA apud MILLER, 2007). 4. Da inconstitucionalidade do julgamento in limine de ações repetitivas Todavia, a despeito dos fundamentos apresentados pelos importantes doutrinadores supracitados, identifica-se, com efeito, a inconstitucionalidade do art. 285-A fundada na ofensa ao devido processo legal, tendo em vista que nem sequer há a instauração de uma relação jurídica processual e, ainda, que se suprime uma série de atos e fases processuais indispensáveis à formação do livre convencimento do juiz, havendo, por conseguinte, a supressão de instância. Segundo Ernane Fidélis dos Santos (2007, p. 31), “[...] a relação processual é triangular, já que ela se forma, se desenvolve e se esgota, unindo os sujeitos do processo entre si”. Sendo triangular a relação processual e sendo ela um ponto de união entre sujeitos do processo, não se pode admitir a dispensa de citação do réu no primeiro grau de jurisdição, sob pena de inexistência da própria relação processual, um dos requisitos para um devido processo legal. 280 • Direito Processual Civil Sendo assim, “[...] tem-se uma relação processual apenas na fase recursal, por não ter havido citação na fase de cognição, e sido a sentença proferida inaudita altera parte”. (ALVIM; CABRAL, 2008). Ademais, se não houver a citação do réu, se não houver uma resistência à pretensão do autor, não há que se falar em lide, em matéria controvertida. Sobre a supressão dessa dialética processual e, conseqüentemente, dos princípios fundamentais do devido processo legal e do contraditório, Daniel Francisco Mitidiero expõe: Tal dispositivo tem por desiderato racionalizar o serviço judiciário, tornando-o mais eficiente. Não nos parece, contudo, que o art. 285-A, CPC, participe da ‘efetividade virtuosa’, a que a Constituição expressamente empresta guarida. Parece-nos, antes, que esse expediente de sumarização instrumental guarda relação justamente com a outra face da efetividade, identificada outrora por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira como ‘efetividade perniciosa’, que se encontra em aberto conflito com os direitos fundamentais encartados em nosso formalismo processual. Com efeito, a pretexto de agilizar o andamento dos feitos, pretende o legislador sufocar o caráter dialético do processo, em que o diálogo judiciário, pautado pelos direitos fundamentais, propicia ambiente de excelência para reconstrução da ordem jurídica e conseguinte obtenção de decisões justas. Aniquila-se o contraditório, subtraindo-se das partes o poder de convencer o órgão jurisdicional do acerto de seus argumentos. Substitui-se, em suma, a acertada combinação de uma legitimação material e processual das decisões judiciais por uma questionável legitimação pela eficiência do aparato judiciário, que, de seu turno, pode facilmente desembocar na supressão do caráter axiológico e ético do processo e de sua vocação para ponto de confluência de direitos fundamentais. (MITIDIERO, 2006, p. 173). Na esteira do pensamento de Mitidiero, Helena Abdo diz que: [...] a pretexto de conferir maior agilidade e efetividade à tramitação dos processos em primeiro grau de jurisdição, esse novo ‘esquema’ aniquila por completo o caráter dualista do processo, consagrado pela Constituição Federal por meio das garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. (ABDO apud RIBEIRO, 2006). Outrossim, quando o autor expõe a sua pretensão ao Estado-juiz, ele espera, com base na garantia constitucional do devido processo legal e do contraditório, uma completa análise da questão posta em juízo, com todos os seus argumentos e contra-argumentos, e não apenas uma cognição sumária do direito. Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 281 Nesse sentido, acrescenta ainda Daniel Francisco Mitidiero: É lugar-comum observar a multifuncionalidade dos direitos fundamentais. Dessa comezinha, mas extraordinária impostação ressai que o direito fundamental ao contraditório não se cinge mais a garantir tão-somente a bilateralidade da instância, antes conferindo direito, tanto ao demandante como ao demandado, de envidar argumentos para influenciar na conformação da decisão judicial. É o que vem se consagrando na doutrina, paulatinamente, como a dimensão ativa do direito fundamental ao contraditório, consagrada à vista do caráter fortemente problemático do direito contemporâneo, constatação hoje igualmente corrente, e da complexidade do ordenamento jurídico atual. Nessa perspectiva, o contraditório deixa de ser um direito fundamental que se cifra à esfera jurídica do demandado, logrando pertinência a ambas as partes, abarcando, portanto e evidentemente, inclusive, o demandante. A nosso juízo, o art. 285-A, CPC, está a ferir, justamente, o contraditório do autor, e não o do réu. (MITIDIERO, 2007, p. 37). Sob a ótica dos princípios do devido processo legal e do contraditório, há também, nos trâmites ditados pelo art. 285-A do CPC, conforme já mencionado, uma supressão de instância na hipótese de apelação da sentença, na medida em que se lança a questão posta em juízo para a segunda instância sem que todos meios de defesa tenham-se esgotado (de argumentos e provas), aliás, com somente uma exposição inicial e unilateral de argumentos, não havendo, portanto, o adequado atendimento do duplo grau de jurisdição e, conseqüentemente, dos referidos princípios. A Ordem dos Advogados do Brasil, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 3.695 interposta contra a Lei n° 11.277/2006, que acresce o artigo em questão ao Código de Processo Civil, sustenta, dentre outros argumentos, que o art. 285-A “[...] institui entre nós uma sentença vinculante, impeditiva do curso do processo em primeiro grau”.2 Sustenta, ainda, citando o parecer de Paulo Medina, que “[...] o devido processo é conspurcado, quando o feito tem seu curso abreviado com fundamento em sentença, cuja publicidade é inexistente, que acaba por dar fim ao processo sem examinar as alegações do autor, sem as rebater”.3 A referida ADI traz também, em seu corpo, o seguinte argumento: LUIZ GUILHERME MARINONI, advertindo para a circunstância de que o processo jurisdicional ‘deve refletir o Estado Democrático de Direito’, de que é uma espécie de ‘microcosmos’, assevera que a ‘idéia básica do processo deve ser a de garantir aos interessados uma participação efetiva no Trecho extraído da petição inicial da Ação de Direta de Inconstitucionalidade n° 3.695, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. 3 Ibidem. 2 282 • Direito Processual Civil procedimento que vai levar à edição do ato de poder, ou seja, à decisão.’ ‘Participação, porém – acrescenta –, pressupõe informação.’ Por isso, o devido processo legal requer a conjugação dos princípios constitucionais do contraditório, da publicidade e da motivação. ‘Tais princípios – conclui o professor paranaense –, por óbvio, adquirem um roupagem política, querendo dar ênfase à necessidade de uma efetiva participação no processo.’ Ora, corresponde a esse modelo o processo que dá ao autor a sensação de haver empreendido um vôo cego, quando ajuíza uma ação deduzindo pretensão que o Juízo já estaria deliberado a repetir, com apoio em decisão anterior que a parte ignorava ou a que não pôde ter acesso. Terá faltado, nesse contexto, ao autor, a indispensável informação; negou-se-lhe, ademais, qualquer possibilidade de participação, no sentido de poder influir sobre a sentença e a motivação dessa não refletiu de nenhum modo as alegações expostas na petição inicial.4 Com relação, especificamente, ao contraditório, a ADI n° 3.695 traz consigo o trecho abaixo retirado do parecer do jurista Paulo Medina: A extinção prematura e precipitada do processo nas condições admitidas pelo art. 285-A do Código de Processo Civil, sacrifica, ainda, outro princípio constitucional – o princípio do contraditório (Constituição, art. 5°, LV). Segundo esse princípio, em sua acepção hodierna, não basta que às partes se assegure bilateralidade de audiência ou ciência recíproca dos atos que um e outro dos litigantes pratique no curso do procedimento. O contraditório, como acentua JOSÉ LEBRE DE FREITAS, implica fundamentalmente ‘uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.5 Englobando ambos os princípios, o do contraditório e o do devido processo legal, Francisco das C. Lima Filho acertadamente assevera: Em primeiro lugar, nos termos do que imperativamente disposto no art. 5°, inciso LIV, do Texto Maior ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, ou seja, um processo em que se garanta às partes o direito de defesa entendido no mais amplo sentido que inclui não apenas o réu, mas também o autor oportunidades para demonstrarem de forma concreta a procedência de suas pretensões, vale dizer: uma defesa efetiva e não apenas formal ou em outras 4 5 Ibidem. Ibidem. Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 283 palavras, um devido processo legal material. Assim, muito mais do que uma garantia, o devido processo legal é um super princípio norteador do ordenamento jurídico, que visa albergar entre seus objetivos ensejar a qualquer pessoa, litigante ou acusada, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa, bem como os meios e recursos a ela inerentes (art. 5°, LV, CF). (LIMA FILHO, 2006). Sobreleva destacar, nos pensamentos de Mitidiero, de Lima Filho e de José de Lebre de Freitas anteriormente expostos, a questão referente ao conceito amplo do direito de defesa, de contraditório, assegurado tanto ao réu como também ao autor, enfim, às partes. E, ao se dispensar a citação do réu e julgar o caso concreto nos moldes do art. 285-A do CPC, estar-se-á cerceando o direito de defesa de ambas as partes ainda que a sentença seja favorável ao réu, haja vista que não lhes serão concedidas “[...] as oportunidades de expor argumentos e produzir provas a fim de poderem vir a influenciar a formação do convencimento do juiz.” (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007). Diante dessa amplitude do princípio do contraditório, Alberto Nogueira Júnior demonstra, de forma bastante acertada, os incontestáveis prejuízos sofridos pelo réu com relação à ofensa a tal princípio pelo artigo em tela: Apelando o autor, e sendo mantida a sentença, apenas então o réu será citado para impugnar a apelação, e, então, o recurso subirá ao Tribunal. Ora, ao julgar a apelação, o Tribunal poderá entender que não havia a total improcedência apontada pelo juízo de primeira instância, mas sim, parcial improcedência. Sem que o apelado – que apenas tornou-se réu depois de sentenciada a causa e intimado da respectiva apelação – tenha podido exercer qualquer atividade processual, no sentido de poder vir a influenciar na formação do convencimento do órgão jurisdicional de primeira instância. E o reconhecimento da parcial improcedência já será apto a adquirir eficácia de coisa julgada material [...]. Mas poderá se dar, também, que o Tribunal entenda que a ausência, total ou parcial, de improcedência, dependa de dilação probatória – que, naturalmente, ainda não pôde ser realizada. E nesta hipótese, não poderá o Tribunal instaurar e presidir essa atividade instrutória, ali mesmo, em segundo grau, em que pese o disposto no art. 560, parágrafo único do CPC, sendo evidente que o contrário implicaria em supressão de instância. Os autos deverão retornar, assim, à Vara de origem, podendo até limitar-se ao Juízo de primeiro grau que proceda à atividade instrutória, na forma de diligência. E o réu se veria na mais completa impossibilidade de exercer plenamente seu direito ao contraditório e à ampla defesa, visto que não poderia contra-atacar, reconvindo; tampouco, diante daquele âmbito restrito de cognição objetiva a ser 284 • Direito Processual Civil exercida, teria oportunidade para opor quaisquer exceções ou objeções. Voltando os autos ao Tribunal – agora, com a atividade probatória desenvolvida, a título de diligência, pelo Juízo monocrático, o Tribunal poderá concluir, então, que realmente o caso era de total improcedência; ou que era de parcial procedência, ou de parcial improcedência, daria no mesmo; ou de total procedência. (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007). Fundamentado nas hipóteses acima, Nogueira Júnior (2007) sustenta que o réu/ apelado será juridicamente afetado, sem que tenha exercido plenamente a sua defesa, na medida em que não poderá: ampliar a matéria objeto da decisão, reconvir, oferecer pedido contraposto, alegar alguma das hipóteses do art. 269, inciso IV, do CPC, excepcionar o juízo, nem aumentar a profundidade da cognição exercida, através de uma atividade probatória delimitada pelas margens fixadas em sua defesa, pois tal atividade se dará conforme os limites estabelecidos pelo Tribunal. Em seguida, Nogueira Júnior continua a relatar os possíveis passos dessa ação julgada nos moldes do art. 285-A do CPC e a analisá-los: Mas os autos poderão também baixar para que o Juízo de primeira instância proceda com o regular desenvolvimento do processo. Poderá se ter por contestada a ação, tendo-se em foco as contra-razões de apelação oferecidas pelo réu-apelado, tomando-se a resposta do réu, dada sob a forma daquelas contra-razões, como se contestação fora? Acredito que não, e não só porque há várias formas de o réu responder ao pedido do autor, mas, principalmente, porque quando daquela espécie de resposta que foram as contrarazões de apelado, o réu não poderia ter se manifestado sobre coisa alguma além daquilo que consistiu no objeto da apelação, o mérito, tal como circunscrito pelo autor e pela sentença. (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007). Para reforçar a série de prejuízos impostos ao réu, Alberto Nogueira Júnior acrescenta: Disse que o Tribunal, se entender que ainda não haveria a total ou parcial improcedência, por falta de dilação probatória suficiente, não poderia proceder a essa dilação, sob pena de supressão de instância. Com isto, o réu, que teve contra si julgado o mérito, acabará em situação mais danosa do que o réu que, tendo sido citado e tendo participado, ou não, do processo, teve proferida sentença terminativa. Isto porque, quanto às sentenças terminativas, o Tribunal poderá passar ao julgamento do mérito propriamente dito, se a causa encontrar-se ‘madura’, na forma do que dispõe o art. Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 285 557, § 1º, do CPC. Como justificar, então, que quando o juízo de primeiro grau haja prolatado sentença terminativa, possa o Tribunal adentrar o mérito, contudo, se o juízo monocrático houver proferido sentença de mérito, então o Tribunal não poderia fazê-lo, por supressão de instância ??? Que lógica há nisso? (NOGUEIRA JÚNIOR, 2007). Nogueira Júnior (2007) compara também o art. 285-A com o art. 557, caput e § 1°, ambos do CPC, ao dizer que, no procedimento recursal ali estatuído, já existe a figura do réu, o que não se dá na hipótese prevista do art. 285-A, fazendo, portanto, “toda a diferença do mundo”. Adverte ainda o autor sobre o fato de que a decisão preceituada pelo art. 285-A trata do mérito propriamente dito, na medida em que declara a total improcedência da ação, fazendo, por conseguinte, coisa julgada material. Corroborando a defesa da inconstitucionalidade, Roberto B. Dias da Silva assevera que “[...] o novo artigo 285-A é inconstitucional e fere o princípio da ampla defesa e do devido processo legal, ainda que a sentença seja favorável ao réu”. (SILVA apud SILVEIRA, 2006). Para o autor, a situação é ainda pior, pois ele tem seu pedido sumariamente analisado e julgado com base em sentença de outro caso análogo, não “idêntico”, sendo impedido de exaurir toda a sua argumentação e, conseqüentemente, de influir na decisão da sua questão, bem como sendo privado de uma completa análise do caso e até mesmo da possibilidade de uma anuência por parte do réu. Nesse diapasão, destaca Francisco das C. Lima Filho: É claro que a parte autora tem o direito de vê a parte acionada citada, pois esta sendo chamada ao processo além de poder até mesmo concordar com o pedido, tem também o direito constitucional de deduzir sua defesa e vê suas alegações ouvidas e analisadas pelo Judiciário, até mesmo para o autor possa se convencer da justiça e do acerto da decisão a ser proferida, ainda que contrária aos seus interesses e eventualmente baseada em outra sentença, o que não se pode é subtrair das partes em nome da celeridade a garantia constitucional do devido processo legal. (LIMA FILHO, 2006). Reforçando tal pensamento, Andirá Cristina Cassoli Zabin (2007) diz que “[...] em face da improcedência liminar, perde o autor tal direito, pois o Juiz sem citar o réu, sem, portanto, conhecer de sua possível vontade de reconhecer o direito do autor, nega de imediato”. Ademais, [...] nada mais incompatível com o contraditório do que a possibilidade de o litígio resolver-se por meio de sentença transladada de outro processo, em que o autor não interveio. 286 • Direito Processual Civil Porque, dessa forma, a lide estará sendo composta sem que a parte prejudicada tenha podido discutir, previamente, os elementos que influíram na motivação da sentença. Esta, no caso, terá sido para o autor (e também para a parte contrária em relação à qual o pedido fora formulado) res inter alios acta. (MEDINA, 2006, p. 156). Ressalte-se, outrossim, um dos argumentos do mestre Gregório Assagra de Almeida (2008), retirado das suas preciosas lições em sala de aula, no tocante ao art. 285-A do CPC: Apesar da ‘matéria de direito’ ser, em tese, idêntica a outras já julgadas, direito também é problema, é argumentação. Cada caso concreto precisa ser analisado diante dos seus elementos constitutivos. Os argumentos entre as demandas, as julgadas e as não julgadas, poderão não ser os mesmos. Não há somente um argumento jurídico, ainda mais em um sistema democrático. (ALMEIDA, 2008). E convém ainda apontar as valorosas contribuições de Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier sobre este tema. Iniciam seus comentários dizendo que “[...] resultam de reflexão desapaixonada a respeito desse dispositivo que cria mais uma possibilidade, no sistema, de que o juiz decida liminarmente o mérito, sem contraditório”. (WAMBIER, Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p.1). E complementam afirmando que a escolha desse caminho pelo legislador (no sentido de optar pela aceleração dos julgamentos a qualquer custo) esconde o péssimo vício de tentar corrigir defeitos graves, estruturais, de causas profundas e históricas, com expedientes paliativos e pontuais. Sobre a relação entre a efetividade e o direito ao contraditório assim pensam e questionam: Evidentemente, todos nós concordamos com a existência do princípio da efetividade da atividade do Estado. É consensual, também, que esse princípio se aplica à prestação da tutela jurisdicional. O que se põe em debate, neste momento, é o custo de sua incidência. É de se perguntar: deve incidir a qualquer custo? Ainda que isso significa afastar o direito ao contraditório?? (WAMBIER, Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p. 9). Com relação ao princípio do contraditório, corretamente, acrescentam e também questionam: O contraditório não pode ser visto como o princípio que pura e simplesmente gera a necessidade de que haja resposta – de que, se uma das partes se manifesta, a outra tem que ter a chance de responder. Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 287 Hoje se entende que o princípio do contraditório é mais do que isso. Por exemplo, envolve o juiz. E o que significa dizer-se que o contraditório envolve o juiz? Significa dizer que o diálogo havido entre as partes há que se refletir na sentença. O juiz deve necessariamente fazer referência aos argumentos das partes! Não fosse assim, para que serviria a garantia do contraditório, stricto sensu considerada? As partes têm o direito à ampla defesa, mas não existe o correlato dever de o juiz apreciar a argumentação das partes? Evidentemente, a possibilidade de as partes agirem em contraditório só tem sentido se houver um observador imparcial. O processo deve ser visto como um microcosmo, em que a sociedade está representada pelo autor e pelo réu. No processo, portanto, deve ser criado um ambiente democrático e cooperativo. O juiz deve se nutrir dos argumentos das partes, sempre! Neste caso, até para reforçar sua opinião. (WAMBIER, Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p. 9-10). Indagam ainda se valeria a pena impingir ao processo do século XXI um modelo superado, enfraquecido pelo comprometimento de garantias fundamentais, se não seria o art. 285-A mais uma demonstração eloqüente e lamentável da tentativa de resolver os grandes problemas estruturais do País (inclusive do processo) pela via negativa de fruição de garantias constitucionais e, ainda, se é justificável essa furiosa investida do legislador de tornar o processo mais célere a qualquer custo. E concluem suas anotações da seguinte forma: Mas nem tudo pode ser encolhido no tempo, sem prejuízo. O processo, por exemplo, não pode. Há procedimentos que devem ser sim, respeitados, sob pena de fissura no tecido constitucional, o que é ruim para todos, em qualquer circunstância. Romper a ordem constitucional custa caro para a Nação, e os reflexos dessa conduta desbordam para diversas áreas da vida social. Para encerrar estas anotações que visam a estimular o debate em torno do art. 285 A, convém fazer referência, ainda que breve, ao pensamento de Eduardo Couture, para quem ‘O tempo se vinga de tudo o que é feito sem a sua colaboração’. (WAMBIER, Luiz; WAMBIER, Teresa, 2007, p. 11). Por último, não se pode deixar de enfatizar os célebres ensinamentos do mestre Canotilho no tocante à essa questão da aceleração da Justiça: A protecção jurídica através dos tribunais implica a garantia de uma proteção eficaz e temporalmente adequada. Neste sentido, ela engloba a exigência de uma apreciação, pelo juiz, da matéria de facto e de direito, objecto do litígio ou da pretensão 288 • Direito Processual Civil do particular, e a respectiva ‘resposta’ plasmada numa decisão judicial vinculativa (em termos a regular pelas leis de processo). O controlo judicial deve, pelo menos, em sede de primeira instância, fixar as chamadas ‘matérias ou questões de facto’, não se devendo configurar como um ‘tribunal de revista’ limitado à apreciação das ‘questões’ e ‘vícios de direito’. Além disso, ao demandante de uma protecção jurídica deve ser reconhecida a possibilidade de, em tempo útil (‘adequação temporal’, ‘justiça temporalmente adequada’), obter uma sentença executória com força de caso julgado – ‘a justiça tardia eqüivale a uma denegação da justiça’. Note-se que a exigência de um processo sem dilações indevidas, ou seja, de uma prestação judicial em tempo adequado, não significa necessariamente ‘justiça acelerada’. A ‘aceleração’ da protecção jurídica que se traduza em diminuição de garantias processuais e materiais (prazos de recurso, supressão de instâncias) pode conduzir a uma justiça pronta, mas materialmente injusta. (CANOTILHO, 1999, p. 466-467). Sendo assim, finaliza-se o presente trabalho através do importantíssimo alerta de Canotilho e dos Wambier para o perigo da aceleração da proteção jurídica com a supressão de garantias processuais (e materiais), que é o que, verdadeiramente, se observa no art. 285-A do Código de Processo Civil brasileiro, principalmente com relação aos princípios do devido processo legal e do contraditório. 5. Conclusão Constata-se, portanto, que o novel art. 285-A do Código de Processo Civil brasileiro não desfruta da constitucionalidade imprescindível para sua existência, aplicação e permanência no sistema jurídico, haja vista que fere, entre outras coisas, o princípio do devido processo legal e o do contraditório ao causar, conforme demonstrado, irrefutáveis prejuízos às partes (especialmente com relação à ampla defesa dos seus argumentos), ao processo (suprimindo fases e instância) e a uma efetiva realização da justiça, pelo que deve ser declarado inconstitucional e expurgado da práxis processual. A busca de uma razoável duração do processo, de uma efetividade e celeridade processual, não pode, como ocorreu com o art. 285-A do Código de Processo Civil, sacrificar princípios constitucionais e fundamentais como o do devido processo legal e o do contraditório. Urge, assim, para uma prestação jurisdicional efetivamente justa, harmonizar a necessidade de celeridade processual com todos os princípios constitucionais. Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 289 6. Referências bibliográficas ALMEIDA, Gregório Assagra de. Hermenêutica Crítica: disciplina do mestrado em Direito da Universidade de Itaúna, ago./dez. 2008. Notas de aula. ALVIM, J. E. Carreira; CABRAL, Luciana Gontijo Carreira Alvim. Código de Processo Civil Reformado. Curitiba: Juruá, 2008. BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do código de processo civil. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2006. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1999. 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Acesso em: 15 nov. 2008. Fádua Maria Drumond Chequer Magno • 291 Jurisprudência Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça. Ministério Público. Requisição. Informação diretamente. Banco. Relação de consumo. É lícito ao MP requisitar da instituição financeira documentos e dados que não estão protegidos pelo sigilo bancário e referentes a contrato de adesão, pois se está na defesa dos usuários dos serviços e produtos por ela ofertados. Ressalte-se que esses serviços e produtos são do gênero consumo. Precedentes citados: REsp 209.259DF, DJ 5/3/2001; REsp 207.310-DF, DJ 20/11/2000, e HC 5.287-DF, DJ 5/5/1997. REsp 1.094.770-DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 1º/9/2009. Informativo 414 do Superior Tribunal de Justiça. ACP. Meio Ambiente. Discussão sobre Litisconsórcio entre as pessoas que ocuparam a área irregularmente e o ente público que tem a propriedade do terreno. O MP estadual propôs ação civil pública (ACP) contra o município, em busca da recuperação do meio ambiente danificado pela ocupação irregular da área. Busca, também, a condenação de agente público municipal por ato de improbidade. A municipalidade, por sua vez, alega a existência de litisconsórcio necessário com os proprietários da área (a União e outros). Sucede que a ACP tem por único objetivo obrigar o município a executar uma série de providências pelas quais é responsável, não em razão de eventual propriedade, mas sim por suas atribuições constitucionais. Assim, é irrelevante a discussão a respeito da propriedade da área, pois descabida a alegação de que a sentença atingirá a esfera jurídica da União ou de qualquer entidade autárquica federal. Daí não se verificarem os requisitos para a formação do litisconsórcio (art. 46 e 47 do CPC), que deve considerar a natureza da relação jurídica material. REsp 1.132.744-RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 3/11/2009. Informativo 557 do Supremo Tribunal Federal. Possibilidade de Reclamação do Superior Tribunal de Justiça em virtude de decisão dos Juizados Especiais Estaduais que contrariam decisões do Superior Tribunal de Justiça. Não obstante salientando a inexistência de omissão a suprir, o Tribunal 292 • Direito Processual Civil acolheu embargos de declaração opostos de acórdão do Plenário para prestar esclarecimentos e determinar a comunicação à Presidência do STJ. Na espécie, o acórdão embargado confirmara a jurisprudência fixada sobre a discriminação nas contas telefônicas dos pulsos além da franquia, no sentido de se tratar de questão infraconstitucional, e assentara a competência do Juizado Especial para processar e julgar ação movida por usuário do serviço de telefonia móvel, dada a ausência tanto de manifestação expressa de interesse jurídico ou econômico pela agência reguladora (ANATEL) quanto de complexidade probatória. Asseverou-se, inicialmente, que, após o julgamento do presente recurso extraordinário, e em decorrência de nova regulamentação realizada pela ANATEL, na qual fora determinado o detalhamento gratuito de todas as ligações, o STJ revogara o Enunciado 357 de sua Súmula (“a pedido do assinante, que responderá pelos custos, é obrigatória, a partir de 1º de janeiro de 2006, a discriminação de pulsos excedentes e ligações de telefone fixo para celular.”). Explicou-se que, embora tivesse revogado a Súmula, ante a previsão do ônus ao assinante, o STJ mantivera o entendimento em relação à obrigatoriedade da discriminação de pulsos excedentes. Afirmou-se, no que tange à extensão da aplicação da Súmula 357 do STJ, que o Supremo já se manifestou sobre o importante papel exercido pelo STJ no exame da legislação infraconstitucional, qual seja, a de uniformizar a interpretação das normas federais infraconstitucionais. Registrou-se, em seguida, que, embora seja responsável pelo exame da legislação infraconstitucional, o STJ não aprecia recurso especial contra decisão prolatada no âmbito dos Juizados Especiais, sendo as querelas de pequeno valor submetidas às Turmas Recursais, instância revisora. RE 571572 QO-ED/BA, rel. Min. Ellen Gracie, 26.8.2009. (RE-571572) Ressaltou-se que, já no âmbito da Justiça Federal, a uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional foi preservada com a criação da Turma de Uniformização pela Lei 10.259/2001, a qual pode ser provocada quando a decisão proferida pela Turma Recursal contrarie a jurisprudência dominante no STJ. Caso a decisão da Turma de Uniformização afronte essa jurisprudência, caberá, ainda, a provocação daquela Corte (Lei 10.259/2001, art. 14, § 1º). Observou-se, entretanto, não existir previsão legal de órgão uniformizador da interpretação da legislação federal para os Juizados Especiais Estaduais, fato que poderia ocasionar a perpetuação de decisões divergentes da jurisprudência do STJ. Aduziu-se que tal lacuna poderá ser suprida com a criação da Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência, prevista no Projeto de Lei 16/2007, de iniciativa da Câmara dos Deputados, o qual se encontra em trâmite no Senado Federal, mas que, enquanto isso não ocorrer, a manutenção de decisões divergentes a respeito da interpretação da legislação infraconstitucional federal, além de provocar insegurança jurídica, promoverá uma prestação jurisdicional incompleta, por não haver outro meio eficaz de sanar a situação. Tendo isso em conta, decidiu-se que, até que seja criado o órgão que possa estender e fazer prevalecer a aplicação da jurisprudência do STJ, em razão de sua função constitucional, da segurança jurídica e da devida prestação jurisdicional, a lógica da organização do sistema judiciário nacional recomendaria Jurisprudência • 293 fosse dada à reclamação prevista no art. 105, I, f, da CF amplitude suficiente à solução desse impasse. Dessa forma, ante a ausência de outro órgão que possa fazê-lo, o próprio STJ afastará a divergência com a sua jurisprudência, quando a decisão vier a ser proferida no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto que desproviam os embargos declaratórios. Precedentes citado: AI 155684 AgR/SP (DJU de 29.4.94). RE 571572 QO-ED/BA, rel. Min. Ellen Gracie, 26.8.2009. (RE-571572) 294 • Direito Processual Civil Comentário à Jurisprudência INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS AÇÕES EXPROPRIATÓRIAS SILVIA FONSECA SILVA Advogada Pós-graduanda em Processo Civil na Universidade Anhanguera-Uniderp 1. Acórdão Recurso Especial nº 857.942 - SP (2006/0064213-4) Relator: Ministro Herman Benjamin Recorrente: Companhia Comercial e Agrícola São Venâncio S/A Advogado: Rosana Malatesta Pereira Recorrido: Furnas Centrais Elétricas S/A Advogado: Iycurgo Leite Neto e outro(s) Ementa: PROCESSUAL CIVIL. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERVENÇÃO. INTERESSE PÚBLICO. ART. 82, III, DO CPC. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. NÃO-COMPROVAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REVISÃO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que o interesse patrimonial da Fazenda Pública, por si só, não se identifica com o interesse público para fins de intervenção do Ministério Público no processo, nos termos do art. 82, III, do CPC. 2. A divergência jurisprudencial deve ser comprovada, cabendo a quem recorre demonstrar as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, com indicação da similitude fática e jurídica entre eles. Indispensável a transcrição de trechos do relatório e do voto dos acórdãos recorrido e paradigma, realizando-se o cotejo analítico entre ambos, com o intuito de bem caracterizar a interpretação legal divergente. O desrespeito a esses requisitos legais e regimentais (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI/ STJ) impede o conhecimento do Recurso Especial, com base no art. 105, III, alínea “c”, da Constituição Federal. 3. A revisão da verba honorária implica, como regra, reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado em Recurso Especial (Súmula 7/STJ). Excepciona-se apenas a hipótese de valor irrisório ou exorbitante, o que não se configura neste caso. 4. Recurso Especial não conhecido. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: Silvia Fonseca Silva • 295 “A Turma, por unanimidade, não conheceu do recurso, nos termos do voto do (a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon, Castro Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator. Data do julgamento: 15 de outubro de 2009. 2. Apresentação do caso Inconformada com os termos do acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a Companhia Comercial e Agrícola São Venâncio S/A, ora recorrente, interpôs, perante o STJ, Recurso Especial em desfavor da Empresa Pública Federal, Furnas Centrais Elétricas S/A, com fundamento no art.105, III, alíneas “a” e “c” da Constituição Federal. Em breve síntese, o STJ, no recurso especial, discute a incidência ou não dos juros moratórios sobre os compensatórios nas ações expropriatórias (Súmula 102, STJ). Segundo a recorrente, há divergência jurisprudencial quanto à aplicação da Súmula 102 do STJ. Para ela, a não-incidência de juros moratórios sobre os juros compensatórios nas ações expropriatórias fere o princípio constitucional da dupla indenização. O STJ, contudo, apesar dos argumentos apresentados pela recorrente, não conheceu do Recurso Especial, sob o fundamento de que ela não atendeu os requisitos legais e regimentais necessários à comprovação da divergência jurisprudencial (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI/STJ). A recorrente, embora tenha alegado divergência jurisprudencial quanto à aplicação da Súmula 102 do STJ, não a comprovou. Além do mais, entendeu o STJ que não pode a recorrente alegar direito decorrente do teor da Súmula 102, uma vez que a adoção dessa súmula pelo STJ (30 de maio de 1994) foi posterior à prolação da sentença (2 de março de 1994). Incidentalmente, no julgamento deste Recurso Especial, o STJ discutiu ainda se, na demanda expropriatória em questão, havia ou não interesse público para fins de intervenção obrigatória no processo do Ministério Público. A respeito disso, o STJ entendeu que, embora o caso dos autos trate de questão patrimonial da Fazenda Pública (Furnas Centrais Elétricas S/A), não há interesse público a justificar a intervenção obrigatória do Ministério Público no processo. É pacífico, segundo o STJ, o entendimento de que o interesse patrimonial da Fazenda Pública, por si só, não se identifica com o interesse público para fins de intervenção do Ministério Público, nos termos do art. 82, inciso III, do CPC. 3. Comentários O artigo 82 do CPC prevê hipóteses em que é obrigatória a intervenção do Ministério Público no processo. Dentre as hipóteses previstas nesse artigo, estabelece o inciso 296 • Direito Processual Civil III que é obrigatória a intervenção do Ministério Público quando estiver presente na causa interesse público evidenciado pela natureza da lide ou pela qualidade da parte. É certo que a intervenção do Ministério Público no processo é obrigatória quando a causa envolver interesse público. O problema está em definir corretamente o que é interesse público que justifique a intervenção obrigatória do Ministério Público. O termo interesse público é bastante amplo e sua aplicação gera graves equívocos. Erroneamente, muitos entendem que interesse público é qualquer interesse do Estado. Na tentativa de delimitar o termo interesse público, a doutrina, bem como a jurisprudência, divide o interesse público em primário e secundário. Interesse público primário, também denominado interesse público propriamente dito, é o interesse do todo, de cada indivíduo como partícipe da sociedade. Nessa mesma linha, entende Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 58): “O interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade pelo simples fato de o serem.” Logo, não há como dissociar o interesse público (primário ou propriamente dito) do interesse das partes. Ao contrário do que muitos pensam, o interesse público (primário ou propriamente dito) não é uma idéia autônoma, desvinculada do interesse de cada uma das partes que compõe o todo social. O interesse público (primário ou propriamente dito) é uma forma de manifestação do interesse das partes. Pode-se afirmar, inclusive, que o interesse público (primário ou propriamente dito), conjunto de interesses dos indivíduos como membros da coletividade, nem sempre coincide com o interesse do Estado e das demais pessoas de direito público. O Estado como pessoa jurídica possui interesses que não são exclusivamente públicos, são os interesses públicos secundários. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 63): Além de subjetivar interesses públicos, o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas concebidos em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Silvia Fonseca Silva • 297 O Estado, porém, só poderá exercer seus interesses individuais (interesses públicos secundários) se não ofender os interesses públicos primários. O Estado foi concebido precipuamente para a realização de interesses públicos e não pode afrontá-los. Assim, os interesses públicos secundários só poderão ser perseguidos pelo Estado quando não violarem o interesse público. Conforme preceitua Celso Antonio Bandeira de Mello, ao definir o que é interesse público primário e secundário, deve também o aplicador do direito averiguar qual a qualificação de determinado interesse trazido pela Constituição Federal e/ou pelas normas infraconstitucionais. Saber o que é interesse público não é suficiente. É também necessário saber qual delineamento dá o sistema normativo a determinado interesse. Não basta que algumas pessoas, levando apenas em consideração a definição do que é interesse público, considerem algo como tal, se a própria Constituição Federal ou norma infraconstitucional assim não o fazem. A parte só terá liberdade de definir o que configura ou não interesse público – baseando-se na sua definição – quando a Constituição Federal bem como a norma infraconstitucional forem omissas a respeito. Definido os contornos do que seja interesse público, é importante perquirir o seguinte: o termo interesse público utilizado na redação do inciso III do art. 82, que justifica a intervenção obrigatória do Ministério Público no processo, tem qual significado? Diz respeito ao interesse público primário ou também engloba interesse público secundário? É pacífico o entendimento segundo o qual o art. 82, inciso III, do CPC refere-se tão-somente ao interesse público propriamente dito (primário). O Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, conforme prevê a Constituição Federal, tem como finalidade, entre outras, a proteção dos interesses sociais. E assim atua quando intervém, como fiscal da lei, nos processos que envolvem tais interesses. No caso do julgamento em questão, de ação expropriatória restrita à discussão do quantum indenizatório, é evidenciado interesse público primário que implique a intervenção obrigatória do Ministério Público, conforme prevê o art. 82, inciso III, do CPC? Não há consenso na doutrina nem na jurisprudência, já que nem a Constituição Federal nem as normas infraconstitucionais expressamente se manifestam a respeito. Há, porém, a Lei Complementar nº 76/93 – que dispõe sobre o procedimento especial de rito sumário para o processo de desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária – que estabelece, no art. 18, § 2º: “O Ministério Público Federal intervirá, obrigatoriamente, após a manifestação das partes, antes de cada decisão manifestada no processo, em qualquer instância”. (grifo nosso). Excepcionadas as ações de desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária em que a lei expressamente diz que a intervenção do Ministério Público é 298 • Direito Processual Civil obrigatória, o STJ entende que, nas demais ações expropriatórias que se restringem à discussão do valor indenizatório, como é o caso do presente acórdão, em que não há previsão legal se é ou não obrigatória a intervenção do Ministério Público, não há interesse público a justificar a intervenção desse órgão. Logo, não há incidência do art. 82, inciso III, do CPC. No entanto, há doutrinadores (e também decisões jurisdicionais) que discordam desse entendimento. Para eles, é obrigatória a intervenção do Ministério Público nessas ações expropriatórias, mesmo que estas não sejam para fins de reforma agrária. Aqueles que entendem que nas ações expropriatórias restritas ao quantum indenizatório há interesse público, entre eles o ilustre administrativista José dos Santos Carvalho Filho, utilizam como fundamento o fato de a desapropriação acarretar perda da propriedade, garantia constitucional. Na linha de entendimento do STJ, quando atestada a responsabilidade do Estado, e este se revela tendente ao adimplemento da respectiva indenização, fica na posição de atendimento ao interesse público propriamente dito. Ao contrário, porém, quando o Estado visa a evadir-se de sua obrigação a fim de minimizar os seus prejuízos patrimoniais, persegue nítido interesse secundário, com o intuito de subtrair-se de despesas. Ao demonstrar interesse em pagar valor ínfimo nas desapropriações, o Estado está resguardando o seu patrimônio, defendendo seus interesses individuais (secundários), como qualquer outra pessoa jurídica assim o faria. Não se trata aqui de interesse público primário do Estado. Não podemos afirmar que nas ações expropriatórias restritivas ao quantum indenizatório, como no caso em questão, há interesse público. O Estado, ao tentar reduzir o valor da indenização, age perseguindo seus interesses individuais. A intervenção do Ministério Público, portanto, não é obrigatória. Além do mais, o Estado possui um corpo próprio de profissionais da advocacia da União habilitados a empreender a defesa dos seus interesses públicos secundários. Ademais, é atribuída ao Ministério Público, pela Constituição Federal, a proteção de diversos direitos além do interesse público, entre eles, direitos individuais indisponíveis, a ordem jurídica, o regime democrático etc. E entender ser obrigatória a intervenção do Ministério Público em casos que há somente interesses individuais da administração (interesse público secundário), como se afigura no caso em questão, seria onerá-lo por demais em detrimento dos outros interesses cuja defesa é constitucionalmente a ele incumbida. Silvia Fonseca Silva • 299 4. Considerações finais O art. 82, inciso III, quando prevê a intervenção obrigatória do Ministério Público, refere-se a interesses públicos propriamente ditos, evidenciados pela natureza da lide ou pela qualidade da parte. Causas que envolvem apenas interesses públicos secundários não justificam a intervenção do Ministério Público. Entender o contrário seria prejudicar as demais atribuições constitucionais da Instituição para prestigiar interesses individuais do Estado (interesse público secundário) como pessoa jurídica. Além do mais, o Estado possui profissionais da advocacia próprios para a defesa desses interesses. Entendeu o STJ, apesar das controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, que, nas ações expropriatórias que versem sobre o quantum indenizatório, ressalvadas as ações de desapropriação para fins de reforma agrária, não há interesse público a justificar a intervenção obrigatória do Ministério Público. Logo, não há aplicação do art. 82, inciso III, do CPC. Pretender a administração pagar valor inferior ao que requerido pelo expropriado significa agir no interesse do Estado como pessoa jurídica. Não é, portanto, verdadeira a afirmação que sempre haverá interesse público quando a causa envolver patrimônio da Fazenda Pública. Existem interesses perseguidos pelo Estado que estão além do interesse público propriamente dito. E quando isso ocorrer, como no caso das ações expropriatórias limitadas a discussão do quantum indenizatório, a intervenção do Ministério Público não será obrigatória. 5. Referências bibliográficas CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. 1. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007. FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. JUNIOR, Fredie Didier. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 11. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. MARINONI, Luiz Guilherme. Manual de Processo de Conhecimento. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. 300 • Direito Processual Civil Técnica RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: ILEGITIMIDADE PASSIVA DO MINSITÉRIO PÚBLICO ESTADUAL ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS BENJAMIN Ministro do Superior Tribunal de Justiça RECURSO ESPECIAL Nº XX - AP (XXX) RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN RECORRENTE: ESTADO DO AMAPÁ PROCURADOR: ORLANDO TEIXEIRA DE CAMPOS E OUTRO(S) RECORRIDO: XXXXX ADVOGADO: XXXXX EMENTA PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. DANO MORAL RECONHECIDO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. Os Ministérios Públicos Estaduais não possuem personalidade jurídica própria, sendo sua capacidade processual adstrita à defesa de prerrogativas institucionais, concernentes à sua estrutura orgânica e funcionamento. São, portanto, partes ilegítimas para figurar no pólo passivo de ação indenizatória. 2. O Tribunal de origem, com base no acervo probatório dos autos, reconheceu a ocorrência de dano moral passível de indenização. A revisão desse entendimento implica reexame de matéria fático-probatória, vedado pela Súmula 7/STJ. 3. Recurso Especial não provido. Herman Benjamin • 301 ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon, Castro Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília, 25 de agosto de 2009(data do julgamento). MINISTRO HERMAN BENJAMIN Relator RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator): Trata-se de Recurso Especial com fundamento no art. 105, III, “a” e “c”, da Constituição da República, contra acórdão assim ementado (fls. 62-63, grifo no original): CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - Ação de indenização - Danos materiais - Matéria decidida em outro processo -Coisa julgada material - Configuração - Procurador de Estado - Investidura sem concurso público - Irregularidade administrativa Existência de procuração nos autos - Validade das postulações - Ministério Público Estadual - Ausência de personalidade jurídica - Legitimação passiva do estado-membro - Aprovado em concurso público - Certidão criminal de conteúdo proibido - Indeferimento da nomeação - Equívocos dos agentes estatais - Dano moral configurado - Reparação devida Responsabilidade da Administração - Verba indenizatória Quantum reparatório elevado - Mitigação - Vencidos autor e réu - Sucumbência mínima inocorrente - Aplicação do art. 21, caput, CPC - Honorários advocatícios - Arbitramento que não reflete a realidade do feito e a atuação profissional - Majoração - Beneficiário da justiça gratuita - Sucumbimento parcial Verbas sucumbenciais devidas - Compensação no recebimento da verba indenizatória - 1) Se o pleito de reparação por danos materiais já fora repelido em outra ação que, embora mais ampla, também o continha e fundado na mesma causa de pedir, cuja sentença já transitara em julgado, sua apreciação meritória encontra obstáculo intransponível no instituto da coisa julgada material - 2) A investidura no cargo de Procurador do Estado sem prévia aprovação em concurso público, embora afronte a lei, constitui irregularidade administrativa que não invalida os atos por ele praticados e não caracteriza ausência de capacidade postulatória, se regularmente constituídos nos 302 • Direito Processual Civil autos para tal fim - 3) Salvo para defesa de seus interesses institucionais - normalmente exercitada em sede de mandado de segurança -, os Ministérios Públicos estaduais não dispõem de personalidade jurídica e de capacidade processual, de sorte que não ostentam legitimidade para residir em qualquer dos pólos de ações ordinárias, nas quais deverão figurar sempre os respectivos Estados-membros - 4) O fornecimento de certidão criminal de conteúdo proibido, aliado à decisão administrativa que, escorada no seu conteúdo, indefere nomeação de aprovado em concurso público, são equívocos dos agentes estatais aptos a provocar dissabores e abalo psicológico no prejudicado e, conseqüentemente, dano moral, por cuja reparação responde a Administração Pública, ex vi do art. 37, § 6º c/c o art. 5º, inc. X, ambos da Constituição Federal - 5) Arbitrada indenização por dano moral em valor desproporcional, impõe-se sua redução para adequá-la à realidade do processo - 6) Segundo o comando do art. 21, caput, do Código de Processo Civil, no caso de sucumbimento recíproco, as partes respondem pelo encargos encargos, na medida do possível, nos percentuais em que ficaram vencidas, aplicando-se a regra do parágrafo único do mesmo artigo, somente na hipótese de sucumbência mínima de uma delas 7) Impõe-se a reforma da sentença, para majorar os honorários de sucumbência, quando arbitrados em valor que não reflete a realidade da causa e a atuação dos advogados no processo, cuja remuneração, nos limites da lei, deve mostrar-se condigna - 8) A parte que, embora beneficiária de gratuidade de justiça, é aquinhoada com razoável verba indenizatória, deve arcar, de imediato, com as despesas do processo e com os honorários advocatícios de sua parcial sucumbência, descontando tais verbas da indenização, considerando que esse desembolso, em tal circunstância, não acarreta prejuízo a seu sustento ou de sua família. Os Embargos de Declaração foram acolhidos para fins de prequestionamento (fls. 81-86). O recorrente alega que houve, além de divergência jurisprudencial, violação dos seguintes dispositivos legais (fls.89-100): a) art. 47 do Código de Processo Civil, uma vez que a natureza da causa exige a inclusão no pólo passivo do Ministério Público do Estado do Amapá, tratando-se de hipótese de litisconsórcio passivo necessário; b) art. 19, § 2º, da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que estabelece que o Ministério Público Estadual responde pelas despesas com pessoal decorrentes de sentença judicial; e c) art. 186 do Código Civil Brasileiro, uma vez que inexiste fato gerador de dano moral. Foram apresentadas as contra-razões (fls. 121-134). O Tribunal de origem negou seguimento ao Recurso Especial (fls. 135-140), tendo Herman Benjamin • 303 a parte recorrente interposto Agravo de Instrumento, ao qual dei provimento, determinando sua conversão em Recurso Especial (fl. 164). O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 161-162). É o relatório. VOTO O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator): Cuida-se, originalmente, de Ação de Indenização movida por XXXX contra o Estado do Amapá, pretendendo pagamento a título de danos materiais e morais, tudo em conseqüência da emissão de certidão negativa criminal onde constou o benefício do sursis. Afirma o autor que, a despeito de haver sido aprovado em concurso público para o cargo de Auxiliar Administrativo do Ministério Público Estadual e convocado em 24.9.1999, para apresentar documentos necessários à nomeação, este ato não se efetivou em razão de a Procuradoria Geral de Justiça haver levado em consideração uma certidão criminal, fornecida pelo Setor de Distribuição da Justiça Estadual, em cujo teor constou a existência de processo no qual lhe fora concedido sursis processual. O Juízo de 1º grau, ao sentenciar (fl. 45-48), acolheu preliminar de coisa julgada no tocante à reparação por danos materiais e rejeitou a de chamamento do Ministério Público para integrar a lide como litisconsorte necessário e a de incapacidade postulatória dos patronos do Estado. Quanto ao mérito, julgou o pedido parcialmente procedente, condenando o réu ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), acrescidos de juros moratórios incidentes desde a data do evento. Em face da sucumbência recíproca, condenou as partes a arcarem com 50% (cinqüenta por cento) das custas processuais e com os honorários advocatícios, fixados em R$ 400,00 (quatrocentos reais) para cada causídico. Ambas as partes apelaram ao Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, que assim decidiu (fl. 74): Ex positis, julgando prejudicado prejudicado o apelo do réu, provejo parcialmente a remessa ex officio, improvejo a apelação do autos e dou provimento à irresignação de sua advogada, para, reformando a sentença: a) reduzir o valor da indenização por dano moral, para R$ 15.000,00 (quinze mil reais), acrescidos de juros moratórios e atualizados monetariamente nos termos definidos na sentença; b) majorar os honorários advocatícios de sucumbência dos patronos do autor e do réu para R$ 2.000,00 (dois mil reais), a atualizados monetariamente e acrescidos de juros moratórios de um por cento (1%) ao mês a partir da sentença; c) determinar que o autor pague os cinqüenta por cento das custas e despesas do processo que lhe cabem, assim como os honorários dos procuradores do réu ora arbitrados, com os devidos acréscimos, 304 • Direito Processual Civil ao receber a indenização, cujos valores deverão ser desta descontados e destinados aos respectivos pagamentos; e d) isentar o réu do pagamento que lhe fora imposto de parcela das custas processuais. Irresignado, o Estado do Amapá interpôs o presente Recurso Especial, no qual sustenta existir dissídio jurisprudencial e violação do art. 47 do Código de Processo Civil; do art. 19, § 2º, da Lei Complementar 101/2000; e do art. 186 do Código Civil Brasileiro. Inicialmente, cinge-se a controvérsia ao reconhecimento da legitimidade do Ministério Público do Estado do Amapá para figurar no pólo passivo de Ação de Indenização ajuizada em desfavor do referido Estado. Em relação aos arts. 47 do CPC e 19, § 2º, da Lei Complementar 101/2000 argumenta-se basicamente que, como a causa gera despesas de pessoal decorrente de sentença judicial, se faz necessária a inclusão do Ministério Público do Estado do Amapá no pólo passivo da demanda, constituindo-se hipótese de litisconsórcio passivo necessário. A tese defendida pelo recorrente não encontra amparo na jurisprudência desta Corte. Conforme bem consignado no acórdão recorrido, o STJ firmou o entendimento de que os entes dotados apenas de personalidade juridiciária possuem legitimidade jurídica para figurar na relação processual tão-somente na defesa de seus direitos institucionais, concernentes à sua organização e funcionamento. Nas demais hipóteses, a atuação em juízo desses órgãos é imputada às pessoas jurídicas de Direito Público que eles integram. À propósito, confiram-se os seguintes precedentes: PROCESSUAL CIVIL. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. LITISCONSÓRCIO. PÓLO PASSIVO. AÇÃO DE COBRANÇA. ILEGITIMIDADE. PRECEDENTES. ÔNUS DA PROVA. ART. 333, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SÚMULA N.º 07 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REEXAME DE PROVAS. PRESCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA N.os 282 e 356 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que a Assembléia Legislativa Estadual tem legitimidade passiva tão-somente para a defesa de seus direitos institucionais, assim entendidos sua organização e funcionamento. Tratando os autos de ação ordinária de cobrança, patente a ilegitimidade passiva da Assembléia Legislativa, sendo que, na espécie, a legitimidade é apenas da Unidade Federativa, não ocorrendo formação de litisconsórcio. 2. No que tange ao ônus da prova, a inversão do decidido, como propugnado pelo Agravante, demandaria o reexame Herman Benjamin • 305 do conjunto fático-probatório, providência sabidamente incompatível com a via estreita do recurso especial. Incidência da Súmula 07 desta Corte Superior de Justiça. 3. O entendimento pacificado nesta Egrégia Corte Superior é no sentido de que a prescrição, mesmo se tratando de questão de ordem pública, deve ser apreciada pela Corte a quo, para que se configure o indispensável prequestionamento, viabilizador do acesso à instância extraordinária. Incidência das Súmulas n.os 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal. 4. Inexistindo qualquer fundamento apto a afastar as razões consideradas no julgado ora agravado, deve ser a decisão mantida por seus próprios fundamentos. 5. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 798218/AP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 21/11/2006, DJ 05/02/2007 p. 347) AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA DE PARCELAS REMUNERATÓRIAS DEVIDAS POR SERVIÇOS PRESTADOS À ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. PÓLO PASSIVO. LEGITIMIDADE DO ESTADO DO AMAPÁ. ILEGITIMIDADE DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA LOCAL. PRECEDENTES. IMPROVIMENTO. 1. Esta Corte Superior de Justiça registra já o entendimento no sentido de que a Assembléia Legislativa Estadual tem legitimidade para figurar no pólo passivo de relação processual tão-somente na defesa de seus direitos institucionais, concernentes à sua organização e funcionamento. 2. Em se tratando de ação destinada à cobrança de parcelas remuneratórias, devidas ao autor, por serviços prestados à Assembléia Legislativa, resta afastada a sua legitimidade passiva, atraindo, em conseqüência, a do Estado-membro. 3. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 4. Agravo regimental improvido. (AgRg no Ag 388114/AP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 04/10/2001, DJ 18/02/2002 p. 545) Os Ministérios Públicos Estaduais não possuem personalidade jurídica própria, sendo sua capacidade processual adstrita à defesa de interesses relativos à sua estrutura orgânica. In casu, cuida-se de ação indenizatória ajuizada contra o Estado do Amapá objetivando reparação por danos morais e materiais. Assim, como a presente lide extrapola a mera defesa das prerrogativas institucionais do órgão ministerial, patente a ilegitimidade passiva do Ministério Público Estadual. Na espécie, apenas a Unidade Federativa é legítima, não ocorrendo formação de litisconsórcio. Outro não foi o entendimento do acórdão recorrido. Tem incidência, assim, o enunciado 83 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça, verbis: “Não se conhece 306 • Direito Processual Civil do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”. Por fim, verifico que a tese de violação do art. 186 do Código Civil Brasileiro não enseja conhecimento. O recorrente afirma ser incabível indenização por dano moral pelo fato de constar o benefício do sursis na certidão de antecedentes criminais, exigida pelo Ministério Público para nomeação ao cargo para o qual o recorrido foi aprovado em concurso público, uma vez que o episódio causou-lhe apenas meros incômodos e aborrecimentos. Por sua vez, o Tribunal a quo consignou: No pertinente ao mérito, impõe-se realçar, desde logo, o acerto da sentença na parcela em que concluiu pela obrigação do réu de indenizar o autor pelos danos morais sofridos em razão dos equívocos praticados pela Administração Pública Estadual. [...] É verdade que o autor, realmente, poderia ter perseguido a retificação da certidão criminal antes de entregá-la ao Setor Administrativo do Ministério Público. Todavia, essa particularidade não exime a administração Pública de se responsabilizar pelo equivocado proceder de seus agentes, cujas condutas foram de indiscutível eficiência na provocação de abalo psicológico à pessoa do autor. Primeiro, em razão do evidente constrangimento decorrente do fato da certidão criminal haver tornado pública informação que, a despeito de verdadeira, deveria permanecer em sigilo, conforme expressa previsão legal. Segundo, pelas agruras e transtornos experimentados pelo mesmo nos quase cinco anos em que buscou ver reconhecido seu sagrado e inconteste direito de ser nomeado e empossado no cargo para o qual fora aprovado em certame público. Por isso, repiso, tenho como incensurável a sentença na parte em que concluiu pela obrigação do réu em reparar o dano moral sofrido pelo autor, inclusive no tocante à análise das circunstâncias e dos fatores influenciáveis no arbitramento da reparação, onde o ilustre subscritor da sentença se esmerou, conforme se extrai dos seguintes trechos de sua fundamentação, que a seguir destaco, aproveitando como parte da motivação deste voto [...]. Desse modo, é inviável analisar a tese defendida no Recurso Especial, a qual busca afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo acórdão recorrido. Aplicação da Súmula 7/STJ. Com essas considerações, nego provimento ao Recurso Especial. É como voto. Herman Benjamin • 307 6 Artigo • 311 Jurisprudência • 333 Comentário à Jurisprudência • 335 Direito Coletivo 6 Artigo A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS DE TELEFONIA MÓVEL E FIXA E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL PLÍNIO LACERDA MARTINS Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais RESUMO: O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) afiança como direito do consumidor a obtenção de serviços públicos com qualidade. As concessionárias, operadoras do serviço de telefonia, como fornecedoras do serviço público, são obrigadas a prestar um serviço de excelência ao consumidor, de forma adequada e eficiente, buscando atender as necessidades dos consumidores, respeitando a sua dignidade, sob pena de infringir o CDC. O presente artigo jurídico retrata a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos serviços de telefonia, destacando as reclamações do consumidor em razão das inúmeras práticas abusivas desenvolvidas no mercado de telefonia, relacionados ao serviço de telefonia móvel (SMP), fixa (STFC) e inclusive de TV a cabo. Este texto destaca que o desafio do presente século está relacionado à qualidade do serviço de telefonia, abordando a interpretação dos tribunais em relação ao Direito do consumidor através de demandas submetidas ao Poder Judiciário. PALAVRAS-CHAVE: Serviços de telefonia; aplicação CDC; práticas abusivas no serviço de telefonia; reclamações de consumidores; Resolução Anatel e CDC. ABSTRACT: The Brazilian Consumer Code disposes that it is a right of the consumer to have the rendering of high quality public services. The grantees and the network operators, as providers of public services have the duty of rendering high quality service that meet the need of their consumers, in an adequate, efficient way. The present juridical article deals with the enforcement of the Consumers Code concerning telephone services, by pointing out the complaints of consumers due to the many abusive practices developed in the telephone service market and related to the rendering of cell phone services (SMP), fixed telephone services (STFC) and cable TV services. The article emphasizes that the challenge of the present century is related to the quality of the telephone service rendered and it analyses the interpretation of Brazilian courts. Plínio Lacerda Martins • 311 KEY WORDS: Telephone services; enforcement of the Consumer Code; abusive practices in the rendering of telephone services; complaints of consumers; Resolution of the Brazilian National Agency of Telecommunications (Anatel); Consumer Code. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve histórico. 3.Conceito. 4. Reclamações do serviço de telefonia. 5. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao serviço de telefonia. 6. Práticas abusivas no serviço de telefonia fixa. 7. Práticas abusivas no serviço de telefonia móvel (SMP). 8. Práticas abusivas no serviço de tv a cabo. 9. Referências bibliográficas. 1. Introdução A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informa que o Brasil já conta com mais de 125 milhões de assinantes no serviço celular, denominado serviço móvel pessoal (SMP), sendo que 80% são pré-pagos. Nos últimos meses, o Brasil ganhou cerca de 24 milhões de novos assinantes, representando 23% de crescimento; no entanto, esse crescimento não foi acompanhado de estrutura suficiente. A cada minuto, verifica-se que os direitos do consumidor são desrespeitados nos vários setores do mercado. Não obstante a tecnologia de ponta implementada pelas operadoras do serviço telefônico, o consumidor continua sendo mal atendido, inclusive nos chamados SACs – Serviços de Atendimento ao Consumidor pelo telefone. O grande desafio do presente século está relacionado à qualidade do serviço de telefonia móvel e fixo. Nesse sentido, foi editado o Decreto Federal nº 6.523/2008,1 conhecido como “lei do SAC”, traçando normas relativas ao atendimento do consumidor, em atenção à teoria da qualidade prevista na norma consumerista. É cediço que o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) erigiu de comando constitucional, em busca do equilíbrio contratual entre fornecedor e consumidor, com a missão de combater os inúmeros abusos praticados no mercado de consumo. Ressalta-se que a lei do consumidor prevê que a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos, entre outros princípios, a melhoria dos serviços públicos.2 Decreto nº 6.523 da Presidência da República, de 31 de julho de 2008, que entrou em vigor em 1º de dezembro de 2008, complementado pela Portaria nº 2.014 do Ministério da Justiça, de 13 de outubro de 2008 , estabelecendo o tempo máximo de atendimento. Ver nesse sentido também a Portaria 49 da Secretaria de Direito Econômico, de 12 de março de 2009, que considera abusiva a recusa da entrega da gravação das chamadas efetuadas para o serviço de atendimento ao consumidor. 2 Lei nº 8.078/90, art. 4º, VII – racionalização e melhoria dos serviços públicos; 1 312 • Direito Coletivo Em modo consoante, dispõe o art. 6º, X, do CDC como direito básico do consumidor: “Art. 6º São direitos do consumidor: [...] X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”. Registra-se, ainda, que o CDC, no art. 22, estabelece que “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.” (grifo nosso). Assim, resta estampada a conclusão de que as concessionárias, operadoras do serviço de telefonia móvel ou fixo, como fornecedoras do serviço público, são obrigadas a prestar um serviço de excelência ao consumidor, vale dizer, possuem um dever jurídico imposto pela lei do consumidor; mutatis mutandis, o consumidor possui o direito subjetivo de obter a qualidade do serviço de telefonia, como um serviço público essencial no mercado de consumo, devendo ser prestado de forma adequada, eficiente, que busque atender as necessidades dos consumidores, respeitando à sua dignidade, sob pena de infringir a norma de ordem pública e, ser responsabilizado pelo dano causado ao consumidor. O trabalho desenvolvido é fincado na Lei nº 9.472/97 – Lei Geral de Telecomunicações (LGT) –, na Lei nº 8.977/85 – que regula o serviço de TV a cabo – e nas seguintes resoluções da Anatel: a) Resolução nº 477/2007 (serviço móvel pessoal – SMP); b) Resolução nº 85/98 (alterada pela Resolução nº 426/2005) que regula o serviço de telefonia fixa (STFC); c) Resolução nº 460/2007 (portabilidade); d) Resolução nº 488/2007 (que regula a TV por assinatura). 2. Breve histórico do serviço de telefonia no Brasil Raquel Dias da Silveira leciona que, em 1939, a Companhia Telefônica Brasileira (CTB) vinha conseguindo um atendimento razoável da demanda, “[...] só na cidade do Rio de Janeiro já possuía instalados quase cem mil telefones, atingindo, em média, 5,81 telefones para cada 100 habitantes.” (SILVEIRA, 2003, p. 85), sendo que as ligações interurbanas eram feitas via telefonista, com alto custo para o assinante. A Constituição Federal de 1946 estabeleceu a pluralidade de competências para a exploração da telefonia, dispondo como competência do Município a exploração da telefonia local; do Estado, a telefonia intermunicipal; da União, a telefonia interestadual e internacional. O Código Brasileiro de Telecomunicações foi editado em 1962, surgindo, em 1965, a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel). Plínio Lacerda Martins • 313 No ano de 1967, a Constituição Brasileira atribuiu à União competência exclusiva para exploração dos serviços telefônicos, surgindo os benefícios do serviço de Discagem Direta Internacional (DDI), sem telefonista, através da Telebras em 1972 e, em 1988, a Constituição da República atribuiu à União o monopólio federal da exploração serviço de telefonia. A Emenda Constitucional nº 8, editada em 1995, cessa o regime do monopólio com exclusividade de concessão empresas estatais, estabelecendo a competição para empresas privadas. Em 1997, surge a Lei nº 9.472, denominada Lei Geral de Telecomunicações (GT), com a finalidade de regular o serviço de telefonia fixa e móvel. Com a flexibilização do monopólio estatal em 1998, foi inaugurada a privatização da banda “B” de telefonia celular, oportunidade do lançamento da Resolução nº 85, com tratamento específico para o serviço telefônico fixo comutativo (STFC). No ano 2002, é criada a Resolução nº 316, regulando o serviço de telefonia celular (SMP) e reafirmando a aplicação do CDC. Em 2005, é editada a Resolução nº 426 para STFC, revogando, assim, a Resolução nº 85 e, nos anos seguintes, são editadas a Resolução nº 488 (regulando o serviço de TV por assinatura), a Resolução nº 460, implementando a portabilidade nas prestadoras do STFC e do SMP (ano 2007) e a Resolução nº 477 para SMP, derrogando, assim, a Resolução nº 316 (2008). 3. Conceito O serviço de telefonia está relacionado à definição do que seja telecomunicação. A Lei Geral de Telecomunicações, em seu art. 60, § 1º, define a telecomunicação como sendo a “[...] transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnmético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza” concluindo como conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicações. Floriano Azevedo Marques Neto (2000) leciona que o serviço de telecomunicações consiste em um transporte de coisas não físicas (dados, sinais, imagens, etc.) por alguns meios que dão suporte a esta utilidade (fio, meio eletromagnético, ótico). A definição é aberta e abrangente, devido ao fato de ser impossível fixar o conceito de telecomunicações. No escólio de Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas (2008, p. 43), na definição de telecomunicação, há três elementos distintos: um que trata do conteúdo ou objeto da telecomunicação (símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza); outro que trata do meio, ou forma, pelo qual transita este conteúdo (por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro 314 • Direito Coletivo processo eletromagnmético) e o terceiro que trata da definição do tipo de trânsito (transmissão, emissão ou recepção). Consigna-se que, em sede doutrinária, o tratamento jurídico do serviço de telefonia é definido como sendo um espectro de radiodifusão, reconhecido como um bem público administrado pela Agência Nacional de Telefonia (Anatel). É de conhecimento notório que o Código Civil divide os bens públicos em bem dominical (que constitui o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público), bem de uso comum do povo (como os rios, estradas, ruas, praças) e bem de uso especial, que são aqueles destinados a serviço da União, enquadrando o espectro de radiofreqüência com bem de uso especial destinado à prestação do serviço de telecomunicações de titularidade da União (vide art. 99 do Código Civil). 4. Reclamações do serviço de telefonia Na sociedade de consumo, o serviço de telefonia tem sido campeão de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor. Com acerto, é possível afirmar que também nos juizados especiais cíveis do nosso país os serviços de telefonia dominam as demandas de ações propostas contras as operadoras do serviço telefônico. São inúmeras as reclamações formuladas pelos consumidores, importando vício da qualidade do serviço, práticas abusivas e até o vício de informação por parte da operadora. O Procon do Estado de São Paulo chegou até a realizar uma estatística envolvendo as principais reclamações dos consumidores em face do serviço telefônico móvel.3 Destaca a estatística do Procon/SP que os consumidores não foram informados pelas operadoras das novas regras do serviço móvel de telefonia, tomando ciência através do veículo de comunicação, infringindo, assim, o dever de informação ao consumidor, prejudicando as suas expectativas relacionadas ao serviço de telefonia celular. A pesquisa do Procon/SP apurou que 65,4% dos consumidores não tinham ciência das novas regras do serviço de telefonia móvel que entraram em vigor em fevereiro de 2008, sendo que, dentre os que tinham conhecimento delas, 76,98% ficaram sabendo pela imprensa e apenas 5,66% através de comunicado da própria operadora. A pesquisa registra, ainda, que 79,25% dos consumidores responderam que acreditam que as mudanças garantem mais direito ao consumidor; todavia, 81,13% não acreditam que haverá uma fiscalização eficiente nesse sentido. Em relação aos problemas do serviço telefônico, a estatística realça que 54,62% dos consumidores entrevistados confirmam a ocorrência de problemas após 13/02/2008, data em que as novas regras entraram em vigor, revelando os principais problemas: 3 Pesquisa do Procon – São Paulo realizada entre 07/04 a 27/04 de 2008 publicada no site do Procon/SP. Disponível em: <http://www.procon.sp.gov.br/pdf/TEL_MOVEL_2008.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2009. Plínio Lacerda Martins • 315 a) 22,46% – cobrança de desbloqueio do aparelho; b) 17,15% – ausência de resposta da operadora (ou resposta não fundamentada); c) 16,18% – imposição de fidelização e não ressarcimento, na forma e no prazo, de valor cobrado indevidamente. 5. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao serviço de telefonia Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos serviços de telefonia, reconhecendo como autêntica relação de consumo firmada entre a operadora e o consumidor como destinatário final. O Ministro do STJ e doutrinador Herman Benjamin afirma em voto declarado: As concessionárias de telefonia são, para todos os fins, fornecedoras, e as suas prestações de serviço aos assinantesusuários (rectius, consumidores) caracterizam relação jurídica de consumo, nos termos do Código de Defesa do Consumidor - CDC. Os objetivos, princípios, direitos e obrigações previstos no CDC aplicam-se integralmente aos serviços de telefonia, fixa ou não.4 No mesmo sentido, o Ministro Jose Delgado afirma que “Infere-se do disposto nos artigos 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor, que a relação entre a concessionária de serviço público, considerada como fornecedora e seus usuários é indubitavelmente de consumo.”5 O art.5º da Lei Geral de Telecomunicações (LGT) estabelece que “Na disciplina das relações econômicas no setor de telecomunicações observar-se-ão, em especial, os princípios constitucionais da soberania nacional, função social da propriedade, liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualdades regionais e sociais, repressão ao abuso do poder econômico e continuidade do serviço prestado no regime público”. A Resolução nº 426/2005 (STFC) da Anatel, que regula os serviços de telefonia fixa, dispõe a aplicação do CDC: “Art. 78. Aplicam-se ao contrato de prestação de STFC as regras do Código de Defesa do Consumidor, Lei n.º 8.078, de 1990, e suas alterações, salvo hipótese de ser a norma regulamentar mais benéfica ao consumidor”.6 4 O Ministro Herman Benjamin expressou posicionamento diverso do entendimento do STJ em seu voto vencido fundamentando que a “[...] telefonia fixa residencial é típico contrato de consumo, na forma estipulada pelo Código de Defesa do Consumidor: há um consumidor-destinatário final (art. 2°, caput), há um fornecedor (art. 3°, caput) e há um serviço de consumo (art. 3°, § 2°). Recurso Especial nº 1.006.892 – MG (2007/0271242-4), jul. 04.03.2008. 5 STJ. Recurso Especial nº 1.018.719 – MT (2007/0305667-8) Relator – Ministro José Delgado. 6 No mesmo sentido, a Resolução nº 85/98, no art. 51: “Aplicam-se ao contrato de prestação de STFC, no 316 • Direito Coletivo Na mesma linha de pensamento, estabelece a Resolução nº 477/2007, que regula o serviço móvel, estabelecendo a aplicação do CDC nos serviços de telefonia celular: “Art. 9º Os direitos e deveres previstos neste Regulamento não excluem outros previstos na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, na regulamentação aplicável e nos contratos de prestação firmados com os Usuários do SMP”. Mascarenhas (2008, p. 69) ensina que há distinção entre usuário e consumidor do serviço de telecomunicações. Usuário do serviço de telecomunicações é todo aquele que, de qualquer maneira, com ou sem contrato formal com uma operadora, utiliza-se de um serviço de telecomunicações, enquanto consumidor do serviço de telecomunicações é todo o usuário que utiliza os serviços na qualidade de “destinatário final”, nos termos do art. 2º do CDC. Fato curioso conteve o julgamento de uma empresa, provedora de acesso à internet, que reclamava aplicação do Código do Consumidor, em face de uma operadora de serviço telefônico, julgamento no qual era indagado se a empresa poderia ser reconhecida como consumidora (trata-se de consumo ou insumo?). O STJ dirimiu a controvérsia no aresto da lavra do Ministro Jorge Scartezzini, afiançando que a empresa pode ser considerada consumidora, desde que seja destinatária final. Inexiste relação de consumo quando a empresa é “consumidora intermediária”.7 O Código de Defesa do Consumidor vem sendo aplicado amplamente nas demandas entre consumidor e operadoras/comerciantes de telefonia, como, por exemplo, o princípio da vinculação da oferta publicitária nas vendas de aparelhos telefônicos. Registra o Tribunal de Justiça carioca o julgamento de uma oferta denominada “Promoção do Dia dos Pais do ano de 2006”, através de anúncio veiculado em revista que oferece telefone celular no plano pré-pago por determinado preço, quando, na verdade, ocorreu um equívoco no tocante à modalidade do plano, que seria relativa ao pós-pago. O consumidor resta impedido pela operadora de telefonia de adquirir o telefone pelo preço veiculado. O Tribunal de Justiça reconheceu a aplicação dos arts. 30 e 35 do CDC, em decorrência da responsabilidade do risco-proveito do empreendimento.8 Outra questão que impõe a aplicação do CDC é a da multa contratual. O STJ reconheceu a aplicação da multa de 2% em vez de 10%, na forma do art. 52, § 1º, do CDC, aos contratos de telefonia envolvendo o inadimplemento do consumidor, muito embora o contrato não envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento. Consigna o decisum do STJ, in verbis: que couber, as regras do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 1990.” 7 STJ Resp 660026/ RJ (2004/0073295-7) - Relator Ministro Jorge Scartezzini – Quarta Turma jul. 03/05/2005. 8 TJRJ Apelação Cível n.2007.001.66114 - 18ª CC. Des. Cristina Tereza Gaulia – julg..08/01/08. Plínio Lacerda Martins • 317 Aplica-se o disposto no art. 52, § 1º, do CDC (Lei n. 8.078/1990) aos contratos de prestação de serviços de telefonia, uma vez que há relação de consumo, logo incidirá o percentual de 2% em decorrência de atraso no pagamento pela prestação dos serviços telefônicos. A Portaria n. 127/1989 do Ministério das Comunicações, a qual estabeleceu multa de 10% a ser cobrada pelo inadimplemento de contas telefônicas, não pode sobreporse a uma lei ordinária, de interesse público e hierarquicamente superior àquela. Assim, a Turma, ao prosseguir o julgamento, negou provimento ao recurso.9 Finalizando, é direito básico do consumidor o acesso à informação do serviço telefônico em atenção ao princípio da transparência máxima, previsto no art. 6º, III, do CDC, não podendo o usuário estar obrigado ao pagamento do que não lhe foi previamente informado, conforme disposto no art. 46 do CDC: “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.” A Lei nº 9.472/97, Lei Geral das Telecomunicações, estabelece, no art. 3º, incisos IV e IX, que: Art. 3º O usuário de serviços de telecomunicações tem direito: IV - à informação adequada sobre as condições de prestação de serviços, suas tarifas e preços. [...] IX - à reparação dos danos causados pela violação de seus direitos. 6. Práticas abusivas no serviço de telefonia fixa (STFC) São inúmeras as práticas abusivas no mercado de telefonia. Uma das práticas rotineiras envolve a “venda casada”, repelida pela norma consumerista no art. 39, I, do CDC. Assinala o CDC que é vedado ao fornecedor de serviço “[...] condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço [...]”. No mesmo entendimento, a Resolução nº 426/2005 da Anatel, que regula o serviço de telefonia fixa, dispõe no art. 11, inciso XVIII, o direito do usuário de “[...] não ser obrigado ou induzido a consumir serviços ou a adquirir bens ou equipamentos que não sejam de seu interesse, bem como a não ser compelido a se submeter à condição para recebimento do serviço, nos termos deste Regulamento”. A prática da venda casada também é repelida pela Resolução nº 477/2007 que regula o serviço da telefonia móvel (SMP), no art. 6º, XVIII, e art. 29.10 STJ REsp 436.224 - DF. Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julg. em 18/12/2007. Dispõe o art. 6º da Resolução nº 477/2007, no inciso XVIII: “[...] não ser obrigado a consumir serviços 9 10 318 • Direito Coletivo A despeito da vedação, há registro de práticas de venda casada, como por exemplo, a Ação Civil Pública proposta pelo O Ministério Público Federal com o intuito de impedir que a empresa telefônica impusesse, ao usuário final, a contratação de um provedor de acesso.11 A ação civil pública foi motivada pelos resultados de investigações a respeito de venda casada, apurando que a TELESP/Telefônica exigia para se contratar o seu serviço de acesso rápido de transmissão de dados (tecnologia ADSL, instalada na própria linha telefônica do assinante – Speedy – Banda larga), a contratação de serviço de acesso/conexão à internet (PCSI), por meio de um provedor. Na sentença, o juiz impôs à empresa telefônica que não exigisse essa intermediação. O serviço de acesso deveria ser oferecido diretamente por ela ao usuário final.12 Uma das práticas abusivas constatadas no nosso mercado de consumo pelo serviço de telefonia é a ausência da cópia do contrato. Muito embora a Resolução nº 426/2005 da Anatel consagre a cópia do contrato como direito do usuário, esse direito é descumprido por parte das operadoras de telefonia. Dispõe a Resolução nº 426/2005, em seu art.11, inciso XXIII, que é direito do usuário “[...] receber cópia do contrato de prestação de serviço, bem como do plano de serviço contratado, sem qualquer ônus e independentemente de solicitação”. (grifo nosso). Outro direito do consumidor que não é respeitado pelas operadoras de telefonia é o de obter uma resposta eficiente a sua reclamação, fato esse registrado pelos Procons como rotineiro, embora a Resolução nº 426/2005 prescreva como direito do usuário o direito de “[...] de resposta eficiente e pronta às suas reclamações e correspondências, pela Prestadora” (art. 11, inciso XII, Resolução nº 426/2005). O mesmo se dá em relação ao direito do consumidor de obter atendimento pessoal “[...] que lhe permita efetuar interação relativa à prestação do STFC, nos termos da regulamentação, sendo vedada à substituição do atendimento pessoal pelo oferecimento de auto-atendimento por telefone, correio eletrônico ou outras formas similares” (art. 11, inciso XXV, Resolução nº 426/2005). A cobrança da taxa de religação é outra prática considerada abusiva no serviço de telefonia. Parafraseando o Ministro Jose Delgado, a taxa de religação é abusiva, ou a adquirir bens ou equipamentos que não sejam de seu interesse”; O art. 29, da mesma Resolução estabelece: “É vedado à prestadora condicionar a oferta do SMP ao consumo casado de qualquer outro serviço ou facilidade, prestado por seu intermédio ou de suas coligadas, controladas ou controladora, ou oferecer vantagens ao Usuário em virtude da fruição de serviços adicionais ao SMP, ainda que prestados por terceiros.” 11 Nesse sentido, ver ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal perante a Justiça Federal da 3ª Vara de Bauru. Processo 2007.61.08.010584-8. 12 Idem em relação ao tempo do chamado “Plano de Expansão” da Telerj, pois o consumidor pretendia obter a prestação do serviço de telefonia, não a de subscrever ações. Ocorria verdadeira venda casada, prática legalmente vedada pelo superveniente Código de Defesa do Consumidor.TJRJ. Agravo de Instrumento nº. 2008.002.12063 19 CC. Rel. Des. Denise Levy Tredler. Plínio Lacerda Martins • 319 “[...] tendo o usuário os encargos legais para suprir a mora, não pode ser cobrada a taxa de religação, por configurar-se esta como bis in idem contratual, de caráter punitivo”.13 Nesse sentido, foi ajuizada ação civil pública em face da concessionária de outro serviço público também essencial, como o do fornecimento de água e esgoto, pleiteando a suspensão da cobrança da taxa de religação em caso de inadimplemento, obtendo sentença favorável ao pedido, determinando a não cobrança de serviço de religação e “[...] a devolução dos valores pagos, em dobro, pelo período de até cinco anos antes da propositura da ação”.14 É freqüente a inclusão do nome do consumidor nos cadastros de restrição de crédito, por débitos no serviço telefônico. Chegou-se inclusive a editar lei proibindo as empresas prestadoras de serviços públicos de inscrever, nos bancos de dados dos órgãos de proteção ao crédito, os usuários inadimplentes. No entanto, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro declarou a inconstitucionalidade da Lei estadual.15 Todavia, há abusividade no registro de lançamentos indevidos, como na hipótese de falha na entrega da conta no endereço contratado. Esclarece o Ministro Sálvio de Figueiredo que a inclusão do assinante nos cadastros de inadimplentes, que se originou da negligência da prestadora no envio correto da fatura – inclusive em não diligenciar por localizar o devedor, cujo endereço poderia ser obtido até mesmo por telefone – , é uma prática abusiva.16 Também a inclusão indevida do nome do autor nos cadastros restritivos de crédito, sob alegação de débito relativo à multa rescisória por determinado período envolvendo a cláusula de fidelidade é outra prática abusiva.17 A prestadora de serviços de telefonia fixa de longa distância responde pela inclusão indevida do nome do consumidor em órgão restritivo de crédito, por dívida referente STJ Recurso Especial nº 1.018.719 - MT (2007/0305667-8) Relator – Ministro José Delgado. TJ/RJ Apelação Cível 2006.001.39533. Relator Des. Gilberto Rego – 6 CC. Julg: 07/03/2007. 15 Lei nº 3.762/2002 do Estado do Rio de Janeiro, que proibia as empresas prestadoras de serviços públicos de inscrever nos bancos de dados dos órgãos de proteção ao crédito os usuários inadimplentes residentes ou domiciliados no Estado do Rio de Janeiro. O TJRJ. Acolheu o voto do desembargador Sylvio Capanema, que considerou um incentivo à inadimplência a não inclusão do devedor nos órgãos de proteção ao crédito, reconhecendo a competência das Agências Reguladoras para organizar os respectivos sistemas. O fundamento da inconstitucionalidade consiste na subtração dos agentes econômicos a informação sobre inadimplência, confrontando com a garantia constitucional do direito à informação, consubstanciada nos incisos XIV e XXXIII do art. 5º da CF invasão da seara de regulamentação específica das atividades de competência da Agência Reguladora (Anatel), cujas normas admitem, expressamente, o registro das inadimplências de serviços de telefonia nos cadastros de proteção ao crédito e ainda, invasão a competência privativa da União sobre telecomunicações (Lei Federal 9.472/97). 16 STJ. Recurso Especial n° 327.420 – DF (2001/0065017-4) – Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJ: 04/02/2002. 17 Nesse sentido, ver acórdão TJRJ Apelação cível n. 2008.001.09044 – 19 CC. Des. Denise Levy Tredler - Julg: 25/03/2008. 13 14 320 • Direito Coletivo à “má prestação de serviços” da operadora local no repasse das informações à empresa central, alegando suposto uso de serviços telefônicos que o consumidor não solicitou.18 A Resolução nº 426/2005 da Anatel estabelece, no art. 11, inciso XXIV, o direito do usuário “à comunicação prévia da inclusão do nome do assinante em cadastros, bancos de dados, fichas ou registros de inadimplentes, condicionado à manutenção de seu cadastro atualizado junto à prestadora”, descrevendo a Resolução nº 477/2007 (SMP), no art. 51, § 3º, que é “vedada a inclusão de registro de débito do Usuário em sistemas de proteção ao crédito antes da rescisão do Contrato de Prestação do SMP prevista no inciso III deste artigo, podendo a Prestadora, após rescindido o contrato de prestação de serviço, por inadimplência, incluir o registro de débito em sistemas de proteção ao crédito, desde que notifique ao Usuário por escrito com antecedência de 15 (quinze) dias”. A cobrança dos débitos telefônicos pelas operadoras é outra prática rotineira contrária ao ordenamento jurídico. O CDC estabelece que “Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça”. (art. 42 do CDC.). A Resolução nº 426/2005 estabelece o método da cobrança para que o consumidor não seja exposto a qualquer tipo de constrangimento. O art. 93 da resolução em comento afirma que a “prestadora deve apresentar a cobrança ao assinante no prazo máximo de 60 (sessenta), 90 (noventa) e 150 (cento e cinqüenta) dias, para as modalidades local, longa distância nacional e longa distância internacional, respectivamente, contados a partir da efetiva prestação do serviço”, sendo que a “cobrança de serviço prestado após os prazos estabelecidos neste artigo deve ocorrer em fatura separada, sem acréscimo de encargos, e mediante negociação prévia entre a prestadora e o assinante”(§ 1º, grifo nosso). Na negociação, a prestadora deve parcelar os valores, no mínimo, pelo número de meses correspondentes ao período de atraso na apresentação da cobrança (§ 2º), fato esse não obedecido pelas operadoras, considerado como autêntica prática abusiva. Finaliza o art. 93, § 3º, afirmando que a prestadora não pode suspender a prestação do serviço ou impor qualquer restrição ao usuário em virtude de débitos apresentados a ele fora dos prazos estabelecidos neste artigo, fato este também ignorado pelas operadoras de telefonia. Na repetição do indébito, a Resolução nº 426/2005 da Anatel optou pela concepção objetiva ao invés da concepção subjetiva. A nosso ver, agiu com acerto a Resolução da Anatel, atendendo, assim, a interpretação teleológica do CDC, muito embora a jurisprudência vem adotando a concepção subjetiva, com fundamento inclusive na Súmula 159 do STF.19 18 19 Ver aresto - STJ. REsp 790.992-RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/4/2007. Súmula 159 do STF “cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1531 do Plínio Lacerda Martins • 321 O art. 42 do CDC estabelece que “O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro ao que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”. Na lição da doutrinadora gaúcha Cláudia Lima Marques, a interpretação objetiva significa que engano justificável é o fator externo, ou seja, caso fortuito externo, não podendo a empresa se eximir da responsabilidade pela cobrança indevida, alegando ausência da culpa, já que a responsabilidade é objetiva.20 Da leitura da Resolução nº 426/2005, conclui-se que não há hipótese de “engano justificável” a impedir a repetição do indébito a favor do consumidor, não constando na referida resolução essa expressão, em atenção à teoria da qualidade, estabelecendo o art. 98, in verbis: “A devolução de valores cobrados indevidamente, deve ocorrer no próximo documento de cobrança ou outro meio indicado pelo usuário”, assegurando ainda que o “usuário que efetuar pagamento de quantia cobrada indevidamente tem direito à devolução de valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido dos mesmos encargos aplicados pela prestadora aos valores pagos em atraso” (Parágrafo único, grifo nosso). A Resolução nº 477/2007, que regula o serviço móvel pessoal, também consagra a concepção objetiva, ao consignar que a empresa de telefonia que cobra indevidamente o valor deverá devolver em dobro em até 30 dias, após a contestação da cobrança indevida (art. 71), prescrevendo que “os valores cobrados indevidamente devem ser devolvidos em valor igual ao dobro do que foi pago em excesso, acrescidos de correção monetária e juros legais (art.71, parágrafo único, grifo nosso). Entre as inúmeras práticas abusivas do serviço de telefonia, realçamos a questão da assinatura básica. A cobrança mensal de assinatura básica está amparada pelo art. 93, VII, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), desde que prevista no edital e no contrato de concessão. A jurisprudência do STJ afirma que a “[...] tarifa mensal de assinatura básica, incluindo o direito do consumidor a uma franquia de 90 pulsos, além de ser legal e contratual, justifica-se pela necessidade de a concessionária manter disponibilizado, de modo contínuo e ininterrupto, o serviço de telefonia ao assinante, o que lhe exige dispêndios financeiros para garantir sua eficiência”.21 O STJ chegou inclusive a editar a Súmula nº 356, que afiança: “É legítima a cobrança a tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia fixa”. Contudo, sustentamos o entendimento de que a assinatura básica é uma prática abusiva, data venia da inteligência do STJ. Com habitual maestria, Herman Código Civil”. 20 Recomendamos a leitura de Almeida (2005). 21 STJ entende legítima a cobrança de assinatura básica. Resp 911.802-RS, Rel. Min. José Delgado, julg. 24/10/2007. 322 • Direito Coletivo Benjamin assevera que a assinatura básica viola o art. 39, I, do CDC, ao obrigar o usuário a adquirir uma franquia de pulsos (a consumir), independentemente do uso efetivo, condicionando, assim, o fornecimento do serviço, sem justa causa, a limites quantitativos; infringe o CDC, pois constitui vantagem exagerada, uma vez que “ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence” (art. 51, § 1º, I), notadamente os princípios do amplo acesso ao serviço, da garantia de tarifas e preços razoáveis (art. 2º, I, da LGT) e da vedação da discriminação (art. 3º, III, da LGT); mostra-se excessivamente onerosa (art. 51, § 1º, III, do CDC), ao impor o pagamento de quantia considerável (cerca de 10% do salário-mínimo só pela oferta do serviço) ao assinante que utiliza muito pouco o serviço público; importa desequilíbrio na relação contratual (art. 51, § 1º, II, do CDC), já que, ao mesmo tempo em que onera excessivamente o usuário, proporciona arrecadação extraordinária às concessionárias (cerca de treze bilhões de reais por ano, conforme consta da página eletrônica da Anatel).22 7. Práticas abusivas no serviço de telefonia móvel (SMP) A publicidade enganosa é uma rotina comercializada livremente no mercado de telefonia celular. Em Minas Gerais, o Ministério Público Mineiro chegou a ajuizar Ação Coletiva com objetivo de repelir a prática abusiva relacionada a uma empresa que veiculou no em jornal de grande circulação no Estado de Minas Gerais o seguinte anúncio: “Deu a Louca no Ricardão”. O anúncio informava aos leitores que seriam vendidos pela empresa celulares por R$ 29, 90, a saber, os aparelhos Nokia 2160 e 5120, fato esse que não ocorreu.23 Uma das práticas também rotineiras efetivadas pelas operadoras de telefonia celular envolve o envio de mensagens não solicitadas para celulares, pelas quais o consumidor paga quando tem de acessar sua caixa postal para ouvi-las; ou mesmo publicidades veiculadas ao consumidor que aguarda na linha telefônica o atendimento de suas solicitações, sendo vedado pelo art. 33, parágrafo único, do CDC.24 Outra prática abusiva executada pelas operadoras do serviço de telefonia móvel é a exigência de boletim de ocorrência policial para proceder ao bloqueio de extravio do aparelho celular. O consumidor que extraviou o aparelho celular, aflito com a perda do aparelho, busca em sua operadora o pronto serviço do bloqueio, sendo No voto proferido pelo Min. Benjamim, consta ainda que a cobrança da assinatura básica é ilegal, por não estar prevista e autorizada pela LGT, havendo in casu afronta ao princípio da legalidade por parte da Anatel ao prevê-la em resolução, fato este que não concordamos, em razão do art. 93, VII, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), autorizando, desde que prevista no edital e no contrato de concessão. Recurso Especial nº 1.006.892 - MG (2007/0271242-4), jul. 04.03.2008. 23 Ação Civil Coletiva movida pelo Ministério Público do Estado De Minas Gerais contra Ricardo Eletro Divinópolis Ltda, que condenando a empresa a pagar uma indenização de 50 salários mínimos. TJMG. Apelação cível n° 1.0079.01.011207-0/001 – 11 CC. Rel. Des. Fernando Caldeira Brant julg. 07. 06.2006. 24 Estabelece o art.33, parágrafo único, do CDC: “É proibida a publicidade de bens e serviços por telefone, quando a chamada for onerosa ao consumidor que origina”. 22 Plínio Lacerda Martins • 323 surpreendido com a prática da exigência da confecção do boletim de ocorrência policial, sob pena de não ver concretizado o seu pedido de bloqueio. Tal prática é considerada abusiva, motivando o Ministério Público a propor ação civil pública contra operadoras em face da exigência, pois o extravio do aparelho celular não constitui fato que enseja atuação policial a justificar a lavratura de boletim de ocorrência, sendo irrazoável, com onerosidade excessiva para o consumidor, ofendendo inclusive a sua boa-fé. O fato é completamente estranho à atividade policial, tornando impertinente a lavratura de ocorrência na Polícia, caracterizando prática de conduta abusiva, prevista no art. 39, V, do Código de Defesa do Consumidor, mostrando-se excessivamente onerosa ao consumidor. 25 Outro abuso confirmado no mercado de consumo envolve a cláusula de fidelidade prevista no contrato de adesão firmada com o consumidor. Lamentavelmente, a Resolução nº 477/2007, que regula o serviço de telefonia móvel, não extinguiu a “cláusula de fidelidade”, deixando de reconhecer como abuso praticado pelas operadoras, limitando-se apenas a regulamentá-la. A Resolução da Anatel consigna que a prestadora do serviço móvel pessoal “[...] poderá oferecer benefícios aos seus Usuários e, em contrapartida, exigir que os mesmos permaneçam vinculados à prestadora por um prazo mínimo”. Dispõe o art. 40 da Resolução nº 477/2007 que “A prestadora do Serviço Móvel Pessoal poderá oferecer benefícios aos seus Usuários e, em contrapartida, exigir que os mesmos permaneçam vinculados à prestadora por um prazo mínimo”. Os benefícios poderão ser de dois tipos: a) Aquisição de Estação Móvel, em que o preço cobrado pelo aparelho terá um valor abaixo do que é praticado no mercado; ou b) Pecuniário, em que a prestadora oferece vantagens ao Usuário, em forma de preços de público mais acessível, durante todo o prazo de permanência (§ 1º). A jurisprudência vem reconhecendo a legalidade da cláusula de fidelização constante no contrato de telefonia celular em face do princípio da segurança jurídica do contrato, considerada como cláusula penal, em razão da desistência do consumidor. Assevera Letícia Sardas, citando Oswaldo Henrique Freixinho: [...] analisando a natureza jurídica da multa oriunda da cláusula de fidelidade, constante do contrato pactuado entre as partes litigantes, acertadamente concluiu pela inexistência de abusividade a justificar o acolhimento da pretensão deduzida em juízo. É que, como cláusula penal, a referida multa nada Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (Processo 2008.001.014003-1), em face da operadora TIM, pela exigência de apresentação de Boletim de Ocorrência Policial para bloqueio. 25 324 • Direito Coletivo mais é do que a pré-fixação dos danos sofridos pela empresa com, relacionando ao investimento realizado em favor do cliente, sendo, portanto, perfeitamente válida e eficaz.26 Todavia, as reclamações registradas por consumidores decorrem exatamente do inadimplemento das operadoras em relação à qualidade do serviço prestado, configurando quebra de contrato em decorrência do vício de qualidade do serviço, razão da desistência do contrato pelo consumidor, correspondendo à cláusula de fidelidade autêntica prisão ao serviço da telefonia.27 Estabelece o art. 51, IV, do CDC que são nulas de plano direito as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade. Logo, a cláusula contratual que ofende o princípio da boa-fé objetiva é considerada nula, pois o consumidor teve sua expectativa frustrada pelo abuso da confiança por ele depositada. Há contratos celebrados entre as empresas de telefonia e os usuários que possuem previsão de um prazo de carência de 12 a 24 meses, dentro do qual a rescisão fica subordinada ao pagamento de um valor, proporcional ao número de meses faltantes para o seu término, o qual é cobrado mesmo em caso de roubo ou furto do aparelho celular. Tendo havido o furto ou roubo do aparelho, o consumidor, que é a vítima, não contribuiu culposamente para o extravio do aparelho, não sendo justa a cobrança da “cláusula de fidelidade”. Considerando que a cláusula penal varia em até 100% do valor total da obrigação, mostrando-se excessiva para o consumidor, o juiz pode reduzi-la em razão da ofensa aos princípios da razoabilidade e da boa-fé na relação contratual firmada. Nesse sentido, foi ajuizada ação para coibir essa prática abusiva, sendo proferida sentença julgando procedente o pedido, condenando a empresa de telefonia celular a se abster de cobrar qualquer multa, tarifa, taxa ou valor por resolução de contrato decorrente de força maior ou caso fortuito, especialmente em hipóteses de roubo e furto do telefone celular, bem como a reduzir o valor constante da cláusula penal dos seus contratos para equivalente a 3 meses de franquia; “Não há que se falar em sanção contratual se não houve inexecução, mas tão somente esvaziamento material do objeto do contrato, por caso fortuito ou força maior, especialmente no caso de roubo ou furto comprovado por registro de ocorrência, restando a cobrança da multa por rescisão ilegal e indevida”.28 Apelação Cível n.º 2008.001.18871 – TJRJ. Rel. Letícia Sardas. Nesse sentido, ver apelação civil 2008.001.09044, do TJRJ da lavra da Des. Denise Levy Tredler, que reconheceu a não aplicação da clausula de fidelidade por determinado período, havendo defeito no serviço e ausência de culpa do consumidor. Aplicação do artigo 408 do Código Civil. Circunstâncias configuradoras de aborrecimento que ultrapassa a barreira da normalidade, atingindo direito da personalidade do consumidor. 28 TJRJ 15 CC. Apelação cível nº 21.660/07. Rel. Desembargadora Helda Lima Meireles. Também foi 26 27 Plínio Lacerda Martins • 325 A cláusula de fidelidade também é considerada abusiva quando o consumidor requer o cancelamento do contrato por ausência de sinal. Todavia, o reconhecimento da abusividade e o conseqüente cancelamento da cláusula somente ocorrem na Justiça. “Com efeito, revela-se absurda a pretensão das empresas prestadoras de serviços que incluem nos contratos tal tipo de cláusula, impondo ao consumidor a permanência injustificada como assinante durante determinado período de tempo, ainda que o serviço prestado não tenha atendido a contento as expectativas do contratante, como é o caso da presente hipótese”.29 A Resolução nº 477/2007 da Anatel prescreve em relação à desistência do benefício que “O Usuário pode se desvincular a qualquer momento do benefício oferecido pela prestadora”, deixando patente a possibilidade da cobrança da multa rescisória (art. 40, §7º). Contudo, no caso de vício de qualidade do serviço atribuído à própria operadora, a Resolução assegura a impossibilidade da cobrança em razão de descumprimento de obrigação contratual. Entretanto, restam algumas indagações. O ônus da prova em relação ao vício ou defeito no serviço telefonia é destinado ao consumidor ou ao fornecedor? Quem possui o ônus da prova? O ônus é ope judicis ou ope legis? A própria Resolução nº 477/2007, no § 8º do art. 40, assim responde in verbis: No caso de desistência dos benefícios por parte do Usuário antes do prazo final estabelecido no instrumento contratual, poderá existir multa de rescisão, justa e razoável, devendo ser proporcional ao tempo restante para o término desse prazo final, bem como ao valor do benefício oferecido, salvo se a desistência for solicitada em razão de descumprimento de obrigação contratual ou legal por parte da Prestadora cabendo à Prestadora o ônus da prova da não procedência do alegado pelo Usuário. (grifo nosso). A Resolução da Anatel conclui, em relação à cláusula de fidelização, que o tempo máximo para o prazo de permanência é de 12 (doze) meses, devendo a cláusula contratual ser explícita, de maneira clara e inequívoca, no instrumento próprio firmado entre a prestadora e o usuário (art. 40, § 9º e § 10). O oferecimento de produtos por meio de “torpedos” é considerado uma prática abusiva, pois, sempre que recebe um “torpedo”, o consumidor verifica o seu conteúdo para conhecer o comunicado que lhe estão enviando. Se o torpedo contiver promoções e campanhas publicitárias, os consumidores são necessariamente constrangidos a ajuizada ACP para declarar abusiva a multa cobrada. fixação que deve consistir em um mês de franquia do plano contratado pelo consumidor, pro rata, não podendo o valor ultrapassar o menor pagamento mínimo mensal fixado para os planos de serviço pós-pago da tim celular na forma simples, mantidas as demais condenações (TJRJ. 2005.001.31312 - apelação civel - 16 CC. Des. Siro Darlan de Oliveira – julg. 21/03/2006. 29 TJRJ 1ª CC. Apelação nº 33015/2008 Relator: Desembargador Ernani Klausner. 326 • Direito Coletivo conhecê-las, mesmo que nelas não tenha qualquer interesse, razão inclusive de ajuizamento de ação civil pública por parte do Ministério Público.30 Interessante que a própria Resolução da Anatel nº 477/2007 (SMP) estabelece como direito do usuário o “[...] não recebimento de mensagem de cunho publicitário da prestadora em sua Estação Móvel, salvo na hipótese de consentimento prévio.”(art. 6º, inciso XXIV). A dificuldade de cancelamento da linha telefônica é outra prática abusiva apontada pelos consumidores. Na ação proposta pelo Ministério Público Estadual, consta a ocorrência de um consumidor que só conseguiu cancelar o serviço após decorridos 5 (cinco) meses, depois de diversas tentativas, o que retrata a dificuldade inadmissível para o exercício de um direito, mantendo o consumidor vinculado contratualmente à empresa de telefonia e obrigado ao pagamento das tarifas a empresa.31 As lojas das operadoras de telefonia celular, embora tenham autonomia para realizar abertura de contas, mudança e transferência de planos, não possuem poderes para proceder ao cancelamento da linha telefônica, dependendo de autorização da “operadora central”, obrigando o consumidor a continuar pagando por serviço pelo qual já manifestou o seu desinteresse. O mesmo acontece nos sites das operadoras de telefonia celular, que contém ofertas de serviços, inexistindo o ícone de cancelamento automático do serviço telefônico. Apesar disso, a Resolução nº 477/2007, no seu art. 23, § 1º, estabelece que o Contrato de Prestação do SMP pode ser rescindido e “A desativação da Estação Móvel do Usuário, decorrente da rescisão do Contrato de Prestação do SMP deve ser efetivada pela prestadora em até 24 (vinte e quatro) horas, a partir da solicitação, sem ônus para o usuário”, afirmando ainda a Resolução da Anatel, no mesmo artigo, § 3º, que “No caso de rescisão a pedido do usuário, a prestadora deve informar imediatamente número seqüencial de protocolo, com data e hora, que comprove o pedido e efetuar a rescisão em até 24 (vinte e quatro) horas do recebimento do pedido, independentemente da existência de débitos”, fato esse que tem sido ignorado pelas operadoras. Há também a ocorrência, no mercado de telefonia celular, de situações em que o pedido de cancelamento só pode ser aceito após a quitação do débito. Sem embargo, a operadora viola a Resolução da Anatel, que dispõe, no seu art. 23, que o contrato de prestação do SMP pode ser rescindido a pedido do Usuário, a qualquer tempo; sendo que, em seu § 9º, diz que “A prestadora não pode efetuar qualquer cobrança referente a serviços prestados após decorridas 24 (vinte e quatro) horas da 30 Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público em face da TNL PCS S.A (“OI”) TJRJ. Apelação cível nº 2008.001.196194-0. A Lei Estadual do Rio de Janeiro, nº 4.863/06 prevê que as operadoras de telefonia celular facultarão aos seus clientes, por ocasião da contratação, a opção de receber ou não “torpedos” referentes a promoções e campanhas publicitárias. 31 Ação civil publica proposta pelo MPE em face da operadora TIM TJRJ. Apelação civil 2008001128078-0. Plínio Lacerda Martins • 327 solicitação de rescisão, assumindo o ônus de eventuais encargos, inclusive perante as demais prestadoras de serviços de telecomunicações”, considerando como “[...] falta grave, punida nos termos da regulamentação, a retenção de qualquer pedido de rescisão de contrato” (§ 11). Outro fator de reclamação contra o serviço de telefonia móvel está relacionado à questão dos celulares “pré-pagos”, envolvendo a estipulação de prazo de validade para a utilização de créditos na modalidade pré-paga da telefonia celular. A extinção de prazo de validade de cartões pré-pagos de telefonia móvel demonstra um desequilíbrio para o consumidor que carece de auxílio. O Procon chegou a registrar reclamação de consumidores contra prestadoras de telefonia relativa à revalidação dos créditos vencidos quando o usuário inseria novos créditos, nos cartões pré-pagos de telefonia móvel. Hodiernamente, esse fato está superado, em razão da norma da Anatel estabelecendo que os créditos podem estar sujeitos a prazo de validade, no entanto, “Sempre que o Usuário inserir novos créditos a saldo existente, a prestadora deverá revalidar a totalidade do saldo de crédito resultante pelo maior prazo, entre o prazo dos novos créditos inseridos e o prazo restante do crédito anterior”(art. 62, §3º, da Resolução nº 477), prescrevendo ainda que “No caso de inserção de novos créditos, antes do prazo previsto para rescisão do contrato, os créditos não utilizados e com prazo de validade expirado serão revalidados pelo mesmo prazo dos novos créditos adquiridos” (art. 62, § 4º). Nos serviços telefônicos “pós-pagos”, a abusividade consiste em não repassar para os meses subseqüentes os minutos de conversação pagos pelo consumidor e que não foram efetivamente utilizados, como por exemplo, “plano 180 minutos”, sendo que o consumidor utilizou somente 80 minutos. Resta assim configurado o enriquecimento ilícito por parte da operadora de telefonia celular, ao não repassar para os meses subseqüentes os minutos de conversação pagos pelo consumidor e que não foram efetivamente utilizados.32 As práticas abusivas envolvem também os fabricantes de aparelhos celulares e as operadoras de telefonia, consoante inúmeras reclamações sobre aparelhos com suas funcionalidades bloqueadas, sobretudo com relação aos dispositivos que permitem que o celular troque informações com outros celulares, computadores, entre outros aparelhos eletrônicos, mecanismo conhecido como “bluetooth”. A ausência de informação ao consumidor, vez que o bloqueio do “bluetooth” não foi informado na oferta do produto, indica a existência de vício do produto por não atender às legítimas expectativas do consumidor (artigo 18 do CDC).33 32 Foi ajuizada ACP pelo MPE em face da operadora VIVO, sendo pedido julgado procedente, determinando a empresa que cumule os minutos não utilizados pelo consumidor no plano pós-pago, para sua utilização nos meses subseqüentes. Processo: 2008.001.011524-3 - Cartório da 4ª Vara Empresarial Rio de Janeiro. Juíza Fernanda Galliza do Amaral. Jul. 30/01/2009. Ver tb. ação coletiva de consumo TJRJ Apelação civil 2008.001.074012-5 33 Ação proposta contra a operadora VIVO, pelo fato de o fabricante de aparelhos celulares da mar- 328 • Direito Coletivo A Resolução nº 477, no art. 72, indica que o Usuário deve ser informado sobre os aspectos relativos às programações incluídas nas facilidades dos Planos de Serviço e eventuais bloqueios na Estação Móvel ou na Central de Comutação e Controle, antes de qualquer ato que indique adesão ao plano, devendo ainda ser informado sobre a faculdade de alteração da programação das facilidades e dos bloqueios, durante o prazo de carência do Plano de Serviço (§ 1º). Em relação à cobrança do serviço de telefonia celular, a Resolução da Anatel prevê a possibilidade em fatura separada, asseverando no dispositivo previsto no art. 45 que “A Prestadora deve apresentar ao Usuário a cobrança dos valores relativos aos serviços prestados no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da efetiva prestação do serviço”, sendo que a cobrança em prazo superior deve ocorrer em fatura separada, sem acréscimo de encargos, e a forma de pagamento ser objeto de negociação prévia entre a prestadora e o Usuário (§1º), devendo ofertar a possibilidade de parcelamento dos valores pelo número de meses correspondentes ao período de atraso na apresentação da cobrança (§2º), fato este não verificado, razão das inúmeras reclamações nos órgãos de proteção ao consumidor. 8. Práticas abusivas no serviço de TV a cabo O serviço de TV a cabo, conhecido como serviço de TV por assinatura, é um serviço de telecomunicações, ainda que regido pela Lei nº 8.977/95, submete-se à regulação da Agência de Telecomunicação.34 A própria Lei nº 8.977/95, no artigo 2º, define que “O serviço de TV a CABO é o serviço de telecomunicações que consiste na distribuição de sinais de vídeo e/ou áudio, a assinantes, mediante transporte por meios físicos”. A Anatel informa que atualmente existem, no País, quatro serviços diferentes de TV por assinatura, regulamentados em função da tecnologia utilizada em sua operação: Serviço de TV a Cabo, Serviço de Distribuição de Sinais Multiponto Multicanais (MMDS), Serviço de Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio por Assinatura via Satélite (DTH) e o Serviço Especial de TV por Assinatura (TVA).35 Uma das práticas abusivas constatadas no serviço de TV por assinatura envolve a questão do ponto extra. Em Minas Gerais, o Procon estadual chegou a editar a Nota Técnica nº 07/2005, reconhecendo como prática abusiva a cobrança por ponto adicional de TV a cabo na residência do assinante, em virtude do princípio do equilíbrio das relações de consumo.36 ca LG, operadas pela VIVO, encontravam-se com suas funcionalidades bloqueadas. A LG sustenta que o bloqueio foi determinado pela operadora VIVO para restringir o acesso a conteúdos exclusivamente fornecidos por esta, enquanto a VIVO afirma que a prática visa combater a pirataria. O bloqueio do “bluetooth” deveria ser realizado de forma onerosa através da assistência técnica.TJRJ. Apelação civil. Processo 2007.001.244703-4. 34 Conforme ensinamentos de Mascarenhas (2008, p. 47). 35 Disponível em: <http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalInternet.do#>. 36 Nota Técnica nº 07 do Procon Estadual de Minas Gerais traduzindo a ementa: em virtude do princípio Plínio Lacerda Martins • 329 Inicialmente, a Norma Técnica define o que representa a terminologia “ponto extra”, em diferenciação com o que se denomina “ponto escravo”, terminologia esta adotada pelas concessionárias.37 A terminologia “ponto escravo” é empregada para definir um ponto de recepção do sinal de radiodifusão que não seja autônomo, pois não existe possibilidade de se alterar a programação através dele, sendo totalmente dependente do ponto principal. Essa terminologia é utilizada para o ponto advindo do ato de se colocar um “divisor de cabo” (spliter) após o decodificador de sinal, de maneira que sejam conectados dois ou mais aparelhos de televisão.38 Quanto às conexões denominadas “ponto escravo”, as concessionárias não impõem quaisquer restrições, inclusive esclarecem ao consumidor que ele pode conectar aparelhos de TV após o decodificador. Já a terminologia “ponto extra” – ou “ponto adicional” – é empregada para o ponto que se encontra instalado na mesma dependência em que se está o ponto principal, mas o sinal de radiodifusão é recebido de modo autônomo e simultâneo. Dessa maneira, o ponto extra, quando conectado a um segundo aparelho de televisão, na mesma dependência do usuário, permite que se acesse o sinal de radiodifusão de maneira autônoma do ponto principal de modo que seja possível assistir simultaneamente a programações distintas. O “ponto extra” pressupõe o regular acesso do assinante ao serviço de TV a CABO e deve ser instalado dentro da dependência do usuário, para fins iguais ao do ponto principal – lazer, sem finalidades comerciais.39 A norma técnica do Procon conclui que a prestação de serviço de TV a CABO, através de cobrança de valores pelas concessionárias, tendo como fatos geradores a instalação e a utilização de “pontos extras” (pontos adicionais), constitui uma prática ilegal, tendo em vista que a política tarifária prevista na lei que o regulamenta não contempla a possibilidade de que seja remunerado, bem como é prática abusiva, em conformidade com o artigo 39, inciso V, da Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). A referida norma afirma ainda que se houver no contrato de prestação de serviços de TV a CABO cláusula de previsão de possibilidade da cobrança, por parte das operadoras, de valores referentes à utilização pelo assinante de “pontos extras”, ela será considerada cláusula nula de pleno direito, do equilíbrio das relações de consumo, é prática abusiva a cobrança por ponto adicional de TV a CABO na residência do assinante. 37 Conceito extraído da norma técnica do Procon Estadual de Minas Gerais, Norma Técnica nº 07/2005. 38 Dessa maneira, esclarece a nota técnica do procon, “verifica-se que há o ponto principal, no qual se recebe o sinal codificado e se encontra o decodificador, permitindo a troca da programação, e um segundo ponto (ou mais), que é/são denominado(s) “ponto escravo”. Assim, o aparelho de televisão conectado ao “ponto escravo” não irá gerar uma programação que seja independente, ou seja, não se pode acompanhar de maneira simultânea a programação no segundo televisor, mas tão-somente a programação que esteja sendo veiculada no ponto principal. A programação a se assistir será a mesma em todas as conexões e somente no ponto principal se consegue modificá-la. Cf. extraído da Norma Técnica, op cit. 39 Norma Técnica, op cit. 330 • Direito Coletivo pois contempla uma prática abusiva, em conformidade com o artigo 51, inciso IV, da Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). A Resolução nº 488 da Anatel é precisa ao determinar, em seu artigo 29, que o ponto extra – ou o ponto de extensão – é direito do assinante sem nenhum tipo de ônus, “[...] independentemente do Plano de Serviço contratado [...]”. Contudo, o artigo 30 da mesma Resolução dispõe a possibilidade da cobrança afirmando que a prestadora somente poderá cobrar, no que concerne ao ponto extra, a instalação, a ativação e a manutenção de rede interna. Ao nosso juízo, a cobrança pelo ponto extra constitui uma prática abusiva, malgrado o fato de a Resolução da Anatel admitir a possibilidade da cobrança, envolvendo o custo do gerenciamento do negócio ofertado ao consumidor.40 Referências bibliográficas ALMEIDA, João Batista. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. ALMEIDA, Luiz Cláudio Carvalho de. A repetição do indébito em dobro no caso de cobrança indevida de dívida oriunda de relação de consumo como hipótese de aplicação dos punitive damages no Direito Brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, vol. 54, 2005. BRITO, Rodrigo José Meano. Utilização de bem público para instalação de equipamentos de telefonia móvel celular. Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 9, p. 161-175, 2002. CINTRA DO AMARAL, Antônio Carlos. Distinção entre usuário de serviço público e consumidor. Revista eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 6, maio/ jul. 2006. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 04 jun. 2007. 40 Recentemente foi editada a Resolução nº 528 da Anatel, em 17 de abril de 2009, que confirma a proibição, em definitivo, da cobrança de ponto extra. Contudo, ABTA está questionando administrativamente a nulidade da Resolução nº 528. Há uma ação civil pública, proposta pelo Ministério Publico do Rio de Janeiro, que conseguiu restabelecer a liminar anteriormente concedida, considerando o fato superveniente que resulta da edição da Resolução nº 528/2009 da Anatel, considerando a decisão do juízo da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo, que teria suspendido a eficácia do art. 29 da Resolução nº 488/2008, como fundamento a necessidade de conhecer, com exatidão, o alcance da norma contida no art. 30 do mesmo diploma regulamentar. Processo nº 2005.001.161388-7. Plínio Lacerda Martins • 331 COSTA, Guilhermo Ieno. Administração e uso do espectro de radiofreqüências no Brasil. Revista de Direito de Informática e Telecomunicações, Belo Horizonte, v.1 n.1, p. 59-67, jun./dez. 2006. DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: RT, 1994. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. LISBOA, Roberto Senise. Relação de consumo e proteção jurídica do consumidor no direito brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. MASCARENHAS, Rodrigo Tostes de Alencar. Direito das Telecomunicações. Belo Horizonte: Forum, 2008. MARQUES, Cláudia Lima et alii. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2004. MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Direito das Telecomunicações e Anatel. In: SUNFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Adminsitrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. MEIRELLES, Hely Lopes. Serviço público de telefonia. In: MEIRELLES, Hely Lopes (Coord.). Estudos e pareceres de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. MARTINS, Plínio Lacerda. Anotações ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005. NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. SILVEIRA, Raquel Dias da. Regime Jurídico dos Serviços de Telefonia fixa. Belo Horizonte: Forum, 2003. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Agencias reguladoras. Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 4, p. 27-63, 2003. 332 • Direito Coletivo Jurisprudência Informativo 405 do Superior Tribunal de Justiça – Ação Civil Pública. Prefeito. DL. N. 201/1967. Lei N. 8.429/1992. Ex- Prefeito. Foro de prerrogativa de função. Ausência de notificação e demonstração do prejuízo. Cuida-se de ação civil pública (ACP) ajuizada contra ex-prefeito pela falta de prestação de contas no prazo legal referente a recursos repassados pelo Ministério da Previdência e Assistência Social. Nesse panorama, constata-se não haver qualquer antinomia entre o DL n. 201/1967 (crimes de responsabilidade), que conduz o prefeito ou vereador a um julgamento político, e a Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA), que os submete a julgamento pela via judicial pela prática dos mesmos fatos. Note-se não se desconhecer que o STF, ao julgar reclamação, afastou a aplicação da LIA a ministro de Estado, julgamento de efeito inter pars. Mas lá também ficou claro que apenas as poucas autoridades com foro de prerrogativa de função para o processo e julgamento por crime de responsabilidade, elencadas na Carta Magna (arts. 52, I e II; 96, III; 102, I, c; 105, I, a, e 108, I, a, todos da CF/1988), não estão sujeitas a julgamento também na Justiça cível comum pela prática da improbidade administrativa. Assim, o julgamento, por esses atos de improbidade, das autoridades excluídas da hipótese acima descrita, tal qual o prefeito, continua sujeito ao juiz cível de primeira instância. Desinfluente, dessarte, a condenação do ex-prefeito na esfera penal, pois, conforme precedente deste Superior Tribunal, isso não lhe assegura o direito de não responder pelos mesmos fatos nas esferas civil e administrativa. Por último, vê-se da leitura de precedentes que a falta da notificação constante do art. 17, § 7º, da LIA não invalida os atos processuais posteriores, a menos que ocorra efetivo prejuízo. No caso, houve a citação pessoal do réu, que não apresentou contestação, e entendeu o juiz ser prescindível a referida notificação. Portanto, sua falta não impediu o desenvolvimento regular do processo, pois houve oportunidade de o réu apresentar defesa, a qual não foi aproveitada. Precedentes citados do STF: Rcl 2.138-DF, DJe 18/4/2008; Rcl 4.767-CE, DJ 14/11/2006; HC 70.671-PI, DJ 19/5/1995; do STJ: EDcl no REsp 456.649-MG, DJ 20/11/2006; REsp 944.555-SC, DJe 20/4/2009; REsp 680.677-RS, DJ 2/2/2007; REsp 619.946-RS, DJ 2/8/2007, e REsp 799.339-RS, DJ 18/9/2006. REsp 1.034.511-CE, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 1º/9/2009. Informativo 404 do Superior Tribunal de Justiça. Ação Civil Pública. Possibilidade de atingir políticas públicas. Mínimo Existêncial, não pode ser atingido pela reserva do possível. Jurisprudência • 333 Trata-se, na origem, de ação civil pública (ACP) em que o MP pleiteia do Estado o fornecimento de equipamento e materiais faltantes para hospital universitário. A Turma entendeu que os direitos sociais não podem ficar condicionados à mera vontade do administrador, sendo imprescindível que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Haveria uma distorção se se pensasse que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido para garantir os direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como empecilho à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. Uma correta interpretação daquele princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser apenas no sentido de utilizálo quando a Administração atua dentro dos limites concedidos pela lei. Quando a Administração extrapola os limites de sua competência e age sem sentido ou foge da finalidade à qual estava vinculada, não se deve aplicar o referido princípio. Nesse caso, encontra-se o Poder Judiciário autorizado a reconhecer que o Executivo não cumpriu sua obrigação legal quando agrediu direitos difusos e coletivos, bem como a corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada. Assim, a atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas não se faz de forma discriminada, pois violaria o princípio da separação dos poderes. A interferência do Judiciário é legítima quando a Administração Pública, de maneira clara e indubitável, viola direitos fundamentais por meio da execução ou falta injustificada de programa de governo. Quanto ao princípio da reserva do possível, ele não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial. Somente depois de atingido o mínimo existencial é que se pode cogitar da efetivação de outros gastos. Logo, se não há comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário ordene a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político. A omissão injustificada da Administração em efetivar as políticas públicas essenciais para a promoção de dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário, pois esse não é mero departamento do Poder Executivo, mas sim poder que detém parcela de soberania nacional. Assim, a Turma conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negou-lhe provimento. Precedentes citados do STF: MC na ADPF 45-DF, DJ 4/5/2004; AgRg no RE 595.595-SC, DJe 29/5/2009; do STJ: REsp 575.998-MG, DJ 16/11/2004, e REsp 429.570-GO, DJ 22/3/2004. REsp 1.041.197-MS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 25/8/2009. 334 • Direito Coletivo Comentário à Jurisprudência DIREITO À EDUCAÇÃO. A CONCRETIZAÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL EM MATÉRIA DE POLÍTICA PÚBLICA, PELA VIA DA ACP FABIANA REZENDE CARVALHO Advogada 1. Acórdão EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CARÊNCIA DE PROFESSORES. UNIDADES DE ENSINO PÚBLICO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. ARTS. 205, 208, IV E 211, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que ‘[a] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental [...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional’. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento (RE 594018 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-148 DIVULG 06-08-2009 PUBLIC 07-08-2009 EMENT VOL-02368-11 PP-02360) Fabiana Rezende Carvalho • 335 2. Síntese do caso A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reafirmou entendimento no sentido de que educação é direito fundamental e indisponível; é dever do Estado, cuja desídia acarreta afronta a texto expresso da Constituição da República. Reafirmou, ainda, a possibilidade de implementação de políticas públicas, em casos excepcionais, por meio de decisão judicial, sem que haja ofensa à tripartição dos Poderes. Trata-se de ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, a fim de pugnar o preenchimento do deficitário quadro de professores da rede estadual de ensino na cidade de São Gonçalo, garantindo-se, assim, o direito constitucional à educação. A ação foi proposta em desfavor do Estado do Rio de Janeiro, o qual se defendeu alegando, principalmente, violação da harmonia dos Poderes, limitação de recursos orçamentários bem como a observância ao princípio da reserva do possível. Na primeira instância, a ação foi julgada procedente para determinar o preenchimento do quadro de professores, sob pena de multa diária. Em sede de apelação, o Tribunal reverteu a decisão a quo, entendendo haver ingerência do Poder Judiciário na seara de atribuições do Poder Executivo e impossibilidade de revisão do mérito administrativo. Na sequência, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário, tendo sido recebido pelo relator, ministro Eros Grau. O demandado insurgiu-se, via agravo regimental, ensejando a prolação do acórdão em estudo. A decisão exarada, agravo regimental interposto no RE 594018, reconheceu o direito à educação como direito fundamental e suficiente para obrigar a diligência do Estado no sentido de assegurá-la, afastando qualquer premissa de ofensa ao princípio da separação dos Poderes. O julgado em apreço cuidou de matéria constitucional de grande importância e relevo ao desempenho diário das atribuições do Ministério Público, afirmando textualmente o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. A problemática da concretização dos direitos fundamentais e a implementação de políticas públicas, relativamente aos limites traçados pela separação dos Poderes, travam batalhas judiciais fundadas em argumentos do mais alto quilate, em ambas as posições. Todavia, encontrar a tutela adequada a cada caso é tarefa árdua e constantemente enfrentada nos tribunais pelos membros do Parquet. 3. Comentários 3.1. Os direitos fundamentais sociais Os direitos fundamentais, consagrados de forma progressiva e sequencial, promoveram e motivaram evolução do texto constitucional conforme as necessidades do povo, em cada época. 336 • Direito Coletivo Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Estado, antes liberal e abstencionista, vê-se em franca mudança de paradigmas. A sociedade, massificada pela política liberal, passa a necessitar de prestações positivas do Estado, a fim de atenuar as desigualdades e defender direitos mínimos à existência digna dos hipossuficientes. De defensor das liberdades públicas, passa o Estado a protetor e garantidor dos direitos fundamentais. Surgem os direitos sociais e o modelo de Estado Social (Welfare State). Seu caráter intervencionista exerceu forte influência sobre os ditames constitucionais, abrindo espaço para a incorporação de normas de direitos fundamentais concretos (direitos de segunda geração). O rol de direitos civis clássicos foi ampliado (direitos coletivos, sociais, econômicos, direito ao trabalho, à seguridade social, à educação, à cultura, ao lazer e à saúde, entre outros), dando vazão ao desenvolvimento de planos diretivos e programáticos (implementáveis por meio de políticas públicas), aptos a proporcionar o bem-estar social. Na definição de Soares (2000, p. 89), “[...] os direitos fundamentais são, aqui, conjunto de normas e princípios através dos quais o Estado implementa sua função equilibradora e moderadora em face das desigualdades sociais”. Nesse cenário, a Constituição da República de 1988 pode ser classificada como uma Constituição Social (CUNHA, 2004, p. 68). Traduz, além dos aspectos de índole político-institucional, normas consagradoras de direção, finalidades e deveres específicos do Estado, de ordem social e econômica. “A dogmática dos direitos fundamentais, em consonância com tais idéias, assume-se como política dos direitos fundamentais processualmente concretizada ou a se concretizar pelo Estado de prestações”, conforme os dizeres de Canotilho citado por Soares (2000, p.106). Assim, o Estado compromete-se com o postulado da justiça social, com a implementação de políticas públicas, para a efetivação dos direitos fundamentais. A política de direitos fundamentais assume papel prioritário e principiológico. 3.2. A concretização dos direitos fundamentais Na seara dos direitos fundamentais, especialmente os sociais, o apelo à prestação material por parte do Estado determina a efetivação ou não dessas normas. Daí o ponto de tantas discussões jurídicas doutrinárias. Entre elas, destaca-se a indagação sobre qual seria o grau de vinculação dessas políticas públicas na efetivação dos direitos fundamentais e, também, se seria possível a tutela jurisdicional para compelir a concretização desses direitos. A reflexão sobre o tema é recorrente nos tribunais e na doutrina. Diante da complexa estrutura do Estado, haveria vários percalços e dificuldades para a implementação dos direitos fundamentais, seja por falta de meios materiais, seja pela falta de recursos Fabiana Rezende Carvalho • 337 financeiros. Esses são os argumentos mais comumente utilizados pela Fazenda Pública para elidir a prioridade no atendimento de políticas públicas. Para tanto, invoca a chamada cláusula da reserva do possível, que constitui teoria originária da jurisprudência alemã (ALMEIDA, 2007, p. 59). Ocorre que a teoria importada não se coaduna com a realidade fática de nosso país. Lamentavelmente, sequer podemos afirmar que há êxito nas ações que se destinam a suprir as necessidades mais prementes dos indivíduos. De acordo com a “reserva do possível”, os direitos de prestação positiva estariam subordinados à disponibilidade de recursos, inserindo-se a matéria na esfera do mérito administrativo. Todavia, é preciso ter em mente que os direitos fundamentais representam compromissos do Estado, devendo este operar em todas as suas esferas com bom senso e objetividade na busca de seus fins, agindo de maneira prioritária, adequada e tempestiva, o que, infelizmente, nem sempre se constata na prática. A questão afeta contundentemente a concretização dos direitos fundamentais sociais. As políticas públicas estariam à mercê da disponibilidade orçamentária? Não deveria o orçamento ser gasto com as questões mais prementes? Não há orçamento ou não há prioridade orçamentária para as políticas públicas relacionadas aos direitos fundamentais? Parece o melhor entendimento, o que considera não ser dado ao administrador eximir-se do seu legado constitucional sob a alegação de falta de recursos financeiros, especialmente, quando estiver em risco a garantia de direitos fundamentais. Na mesma linha são os ensinamentos do professor Gregório Assagra de Almeida (2007, p. 60): Não concordamos com a exigência da reserva do possível nessa dimensão jurídica pertinente à alegação de previsão orçamentária como condição para a implementação de políticas públicas específicas via Poder Judiciário. Não há na Constituição brasileira fundamento jurídico que impeça a efetivação dos direitos sociais fundamentais com base simplesmente na falta de previsão orçamentária. Ademais, a situação do Brasil, em que a exclusão social é grave, não admite qualquer transferência mecânica de concepção teórica predominantemente na Alemanha ou em qualquer outro país do denominado ‘Primeiro mundo’. Quanto ao mérito administrativo, sustentamos que os atos administrativos discricionários não estariam irrestritamente blindados do controle pelo Poder Judiciário. Em regra, a liberdade existente na produção do ato discricionário (oportunidade e conveniência) vincula-o – ao menos quanto à legalidade – à razoabilidade e aos demais preceitos constitucionais. Ensejaria, pois, o respectivo controle, a presença de vício de competência, legalidade, moralidade, finalidade, desvio de poder ou no caso de omissão, quando esteja viciada a razoabilidade, ainda que nos atos administrativos. 338 • Direito Coletivo Alguns admistrativistas, apesar de admitir o controle judicial dos atos administrativos quanto à legalidade, salientam ser impossível o controle do mérito administrativo – é o caso de Maria Silvia Zanela di Pietro (2008, p. 206-207), Fernanda Marinela (2007, p. 223) e Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 969). Para eles, não haveria propriamente a revisão do mérito administrativo em si, pois a liberdade na decisão do administrador continua preservada, mas sim verdadeiro controle de legalidade, nesse caso, perfeitamente possível ao Poder Judiciário. Nesse compasso é a grande contribuição do prof. Celso Antônio Bandeira de Mello ensinando que: para o agente público não há “abracadabras”, justamente porque o Judiciário pode comparecer sob apelo dos interessados, a fim de confirmar comportamento pretensamente discricionário ao plano da legitimidade e do respeito aos direitos e garantias individuais. Por certo, verifica-se a possibilidade de submissão do ato viciado ao crivo do Judiciário, ainda que concebido pelo regime de oportunidade e conveniência, nas hipóteses citadas. Na mesma linha é a lição do professor Alexandre de Moraes (2009, p. 135-136), nos seguintes termos: Mérito, portanto, do ato administrativo é o juízo de conveniência e oportunidade, dentro da legalidade e moralidade, existente nos atos discricionários. Dessa forma, enquanto o ato administrativo vinculado somente será analisado sob o amplo aspecto de legalidade, o ato administrativo discricionário também deverá ser analisado por seu aspecto meritório. [...] Assim, mesmo o ato administrativo discricionário está vinculado ao império constitucional e legal, pois, como muito bem ressaltado por Chevalier, ‘o objetivo do Estado de Direito é limitar o poder do Estado pelo Direito’. Ultrapassado o argumento de insuficiência orçamentária para escusa de efetivação dos direitos fundamentais, urge enfrentar a questão da viabilização desses direitos por decisão judicial. No intuito de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais, a própria Constituição criou mecanismos para frear a má atuação e a omissão do poder público. Prova disso é a previsão do mandado de injunção, da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e, entre outras, da ação civil pública (ACP). Tais mecanismos exercem o controle da administração pública pela atuação do Poder Judiciário, com soluções aplicáveis, nos termos da lei, a cada deslinde. A adoção de providências para a implementação de políticas públicas, sob essa análise, vincula-se não somente aos Poderes Executivo e Legislativo mas também ao Poder Judiciário, responsável pela aplicação da lei e guarda dos preceitos constitucionais. Nesse sentido, mais uma vez, é a notável referência feita pelo professor Gregório Assagra de Almeida (2007), para dizer que “[...] a principal função Fabiana Rezende Carvalho • 339 do Judiciário, sendo essa especificação funcional, é fazer cumprir a Constituição, especialmente no plano dos direitos fundamentais sociais, em relação aos quais estão intimamente ligados os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”. No mesmo sentido são os esclarecimentos do professor Dirley da Cunha Júnior (2004, p. 331) acerca da efetivação dos direitos fundamentais: No Brasil, sem dúvida alguma, o sistema jurídico autoriza o juiz a efetivar diretamente as normas constitucionais, sobretudo – aqui em particular – as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais, de tal modo que ele pode, em caso eventual lacuna ou omissão inconstitucional do poder público, colmatá-la, supri-la, integrando-a por meio da analogia, dos costumes, dos princípios gerais do direito (LICC, art. 4) e, ainda e principalmente, através de uma interpretação criativa que, no domínio de uma nova hermenêutica, isto é, de uma hermenêutica constitucional, consiste em concretizar os preceitos constitucionais, aplicando-os diretamente à realidade social e vivenciando a Constituição. Assim, a concretização dos direitos fundamentais, especialmente daqueles que exigem uma prestação, será realizada, em regra, pelo Poder Executivo ou Legislativo, observando a competência constitucional prevista. No entanto, a insuficiente atuação do Estado na concretização desses direitos enseja a tutela jurisdicional. Refutam-se as barreiras levantadas em nome da reserva do possível, a priori, como inservível à realidade brasileira e às questões de mérito administrativo controláveis pelo Judiciário quando houver vício de inconstitucionalidade em geral (repisa-se legalidade, razoabilidade e outros). 3.3. O princípio da separação e a efetivação de direitos fundamentais por meio de provimento jurisdicional A clássica doutrina da separação de Poderes, trazida por Montesquieu, tem experimentado uma releitura nos tempos modernos. Inspirado na obra de Aristóteles, Montesquieu desenvolveu sua teoria com base na correspondência entre a divisão funcional e a divisão orgânica dos Poderes. Para Montesquieu “[...] cada órgão exercia somente a função que fosse típica”, atuando independente e autonomamente, como lembra o prof. Pedro Lenza (2006, p. 222). Hoje, a teoria da separação dos Poderes, especialmente na visão adotada pela Constituição brasileira vigente, experimenta um flagrante abrandamento da sua compreensão clássica. Tenderia a apresentar-se de forma relativa, permitindo a interpenetração de atribuições. Para cada Poder, além do desempenho de suas funções típicas, ou seja, predominantes, estaria a responsabilidade também de funções atípicas de predominância de outro Poder, nos limites da Constituição. 340 • Direito Coletivo Assim, a interferência de um Poder em outro é entendida como exercício de atividade atípica nos sistemas de controle recíproco das funções estatais, relativizando a noção original de independência dos Poderes. Nesse terreno instala-se a competência do Poder Judiciário para concretizar as normas de direitos fundamentais (§ 1º do art. 5º da CF/88), cumprir com os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, reduzir as desigualdades sociais (inciso III do art. 3º da CF/88) e exercer o controle judicial (art. 5º, LIV, da CF/88), viabilizando, em parte, a sustentabilidade do sistema dos checks and balances. Na decisão do Recurso Extraordinário nº 436.996, o ministro relator Celso de Mello realçou a viabilidade de se executar políticas públicas por meio da atuação do Poder Judiciário, ainda que de forma excepcional, com o respaldo da Constituição, conforme trecho recortado abaixo: Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento de encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estrutura constitucional. (DJ 03-02-2006, Ementário 2.219). Também do memorável julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF – nº 45 verifica-se a possibilidade de tutela jurisdicional em matéria de políticas públicas, in litteris: Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração [...] –, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional. (RTJ 185/794796, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno). A inocorrência do desenvolvimento e da implementação de políticas públicas, que caberia ao Poder Executivo, desafia, assim, a interferência do Poder Judiciário, como medida compatível com a nova concepção da separação de Poderes, como chama a atenção o ilustre magistrado Dirley da Cunha Júnior: Fabiana Rezende Carvalho • 341 Uma nova leitura sobre o vetusto dogma da separação de poderes, a fim de que ele não produza, com sua força simbólica – como lamentavelmente vem produzindo -, um efeito paralisante às reivindicações da sociedade moderna incomparavelmente mais complexa do que aquela na qual foi originalmente concebido. (CUNHA JR., 2004, p. 329-330). Diante da nova perspectiva da “independência” dos poderes, não se vislumbra óbice ao provimento jurisdicional consiste na implementação de políticas públicas para satisfação de direitos fundamentais caso haja omissão constitucional. 3.4. O direito fundamental à educação Sob a égide da então Constituição Cidadã de 1988, como já referenciado, contata-se a previsão expressa acerca dos direitos sociais e, nesse rol, o direito fundamental à educação. Previsto no artigo 205, o direito à educação destaca-se como um dos mais importantes direitos ao desenvolvimento do país e da democracia, um eficiente meio para a promoção de melhores condições de vida ao indivíduo e, consequentemente, para a promoção da dignidade da pessoa humana. Salutar é a apreciação do entendimento firmado pelo STF, no sentido de destacar o direito à educação como direito fundamental, de caráter necessário e irretocável, nos termos do acórdão, objeto do presente estudo, a saber: “[...] a educação é direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar os meios que viabilizem o seu exercício. A omissão administrativa impede que o Poder Público cumpra integralmente dever a ele imposto pela própria Constituição do Brasil” (RE nº 594.018-7, Rel. Ministro Eros Grau, DJ 03.02.06). No mesmo julgado, o ministro relator Eros Grau fez alusão à decisão proferida no RE nº. 436.996, sob relatoria no ministro Celso de Mello, no sentido de que a “[...] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental”. (DJ. 03.02.2006, Ementário 2.219). Como um direito social, a educação destina-se à melhoria das condições de vida dos indivíduos e realiza-se mediante prestações positivas do Estado. É, portanto, expresso por meio de norma programática que impõe dever de agir ao poder público. Nessa linha, as considerações do professor Kildare Gonçalves Carvalho (2009, p. 727): 342 • Direito Coletivo São direitos de status positivos, já que permitem ao indivíduo exigir determinada atuação ao Estado, com o objetivo de melhorar suas condições de vida, garantindo os pressupostos materiais para o exercício da liberdade. Envolvem a melhoria de vida de vastas categorias da população, mediante a instituição e execução de políticas públicas. Educação é direito fundamental e impostergável e, sobre isso, não há assertiva contrária. Todavia, é preciso ponderar que os direitos fundamentais não são direitos absolutos. Tendo em vista a natureza principiológica dos direitos fundamentais, permite-se certa relativização, viabilizando a própria convivência entre as liberdades públicas. Desse modo, todas as vezes que a implementação de um direito fundamental colidir com a de outro, a análise do caso concreto é a pauta necessária e prudente para a solução do caso, segundo critérios de ponderação. Fabiana Rezende Carvalho • 343 4. Considerações finais A Constituição da República de 1988 traduz um modelo de Constituição moderna, atualizada, agregadora de normas que se alicerçam na proteção da dignidade da pessoa humana. Em seu complexo elenco de normas, sobreleva-se a unidade e não a dissidência entre suas normas, uma vez que uma está a serviço da outra. Os direitos fundamentais foram amplamente abarcados pelo texto constitucional escrito, compreendendo-se até mesmo aqueles direitos que venham a incorporarse no ordenamento jurídico brasileiro por meio de tratados internacionais. Contudo, não basta a norma escrita se não se encontra respaldo fático. Assim, o desafio do constitucionalismo moderno é encampar a missão de tornar efetivas as normas previstas pelo constituinte. Nesse diapasão, verifica-se o provimento jurisdicional como solução válida para a implementação dos direitos fundamentais, devendo ser analisada a cada caso a premência do direito fundamental em conflito com outros direitos e tendo como diretriz o viés valorativo da dignidade da pessoa humana e do princípio democrático. À guisa do controle recíproco, o princípio da separação das Funções/Poderes Estatais permite conferir legitimidade à jurisdição em matéria de políticas públicas, em prol da concretização dos direitos fundamentais sociais. A revisão dos rígidos paradigmas da divisão de Poderes dá lugar a importantes meios de efetividade das normas constitucionais. O Ministério Público, como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, guardião e porta-voz dos interesses sociais, desempenha, no exercício das suas atribuições conferidas pela Constituição de 1988, função indispensável na fiscalização da lei e na defesa dos direitos sociais não implementados. Nesse cenário, é reconhecido seu importante papel no postulado da concretização dos direitos fundamentais. “O progresso da democracia mede-se precisamente pela expansão dos direitos fundamentais e pela sua afirmação em juízo. De modo que, os direitos humanos fundamentais servem de parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade” (SOARES, 2000, p. 141). Nessa linha, baseou-se o julgado ora apresentado sob a perspectiva de democratização dos direitos fundamentais e reconhecimento do meio adequado para a efetivação dos comandos constitucionais. 344 • Direito Coletivo 5. Referências bibliográficas ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito constitucional Positivo. 15. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. CUNHA JUNIOR, Dirley da. Controle Judicial das omissões do poder público. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. LENZA, Pedro. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Método, 2006. MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2007. MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2002. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Método, 2009. SOARES, Mario Lúcio Quintão. Direitos Fundamentais e Direito Comunitário. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. STF, Rel. Min. Celso de Mello, RE 436.996, 2ª T., DJ de 03.02.2006. STF, Rel. Min. Eros Grau, AG REG no RE 594.018-7 /RJ, 2ª T., DJ de 7.12.2000. Fabiana Rezende Carvalho • 345 7 Artigo • 349 Jurisprudência • 368 Comentário à Jurisprudência • 371 Técnica • 381 Direito Processual Coletivo 7 Artigo AÇÃO POPULAR AMBIENTAL E EFETIVIDADE: ANÁLISE DOS PRINCIPAIS ASPECTOS PROCESSUAIS POLIANA CÍNTIA COSTA GUIMARAES Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Pós-Graduada em Direito Processual RESUMO: Todos os cidadãos têm o direito fundamental a um meio ambiente sadio e equilibrado, bem como a obrigação de manter sua qualidade para as futuras gerações. Com base nesta premissa, este trabalho estuda a ação popular como um importante meio de tutela do meio ambiente pelo próprio cidadão, dando ênfase à sua distinção da ação popular de defesa do erário, disciplinada pela Lei nº 4.717/65. São analisados alguns aspectos processuais, importantes para a garantia de efetividade da ação popular ambiental e seu reconhecimento como instituto distinto, dentre eles a legitimidade ativa e passiva, requisitos, competência. Conclui-se que a ação popular ambiental possui, na verdade, natureza jurídica de ação civil pública, na medida em que a aplicação da Lei nº 7.347/85 lhe confere maior eficácia e garante a efetividade da tutela do meio ambiente. PALAVRAS-CHAVE: ação popular ambiental, aspectos processuais, natureza jurídica, legitimidade, efetividade. ABSTRACT: Every citizen has the fundamental right to a healthy and balanced environment, as well as the obligation of keeping its quality to the next generations. Based on this premise, this worksheet article studies the popular action as an important vehicle for the citizen himself or herself to protect the environment, emphasizing its distiction to the popular action in defense of the public treasury, disciplined by the Law 4.717/65. One analyses some procedural aspects important to the guarantee of the effectiveness of the environmental popular action and its acceptance as a distint institution, amongst them, the capacity of standing to sue and the standing to be sued, requirements, jurisdiction. One concludes that the environmental popular action has, in reality, legal nature of class action in the proportion that the application of the Law 7.347/85 gives it greater efficiency and ensures the effectiveness of protection of the environment. Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 349 KEY WORDS: Environmental popular action; procedural aspects; juridical nature; standing to sue capacity; effectiveness. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A efetividade da tutela jurisdicional. 3. A ação popular. 3.1 Origem constitucional. 3.2 Conceito e requisitos. 3.3 Ação popular e ação civil pública. 4. A ação popular ambiental. 4.1 Primeiras abordagens. 4.2 Legitimidade. 4.3 Requisitos – ilegalidade e lesividade. 4.4 Competência. 4.5 Liminar. 4.6 Prescrição. 4.7 Apelação e efeito suspensivo. 5 Da inserção da ação popular no microssistema de tutela coletiva. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas. 1. Introdução O crescimento da potencialidade lesiva da atividade humana e a conhecida incapacidade do Estado em tutelar a biodiversidade, conciliando desenvolvimento econômico e preservação, fazem a sociedade emergir como grande protagonista na possibilidade de uma efetiva tutela do meio ambiente. O legislador constituinte, atento a essa tendência, estabeleceu uma atuação conjunta entre o Poder Público e o povo, in verbis: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (grifo nosso). Assim, cabe à coletividade buscar a proteção jurisdicional dos direitos difusos de ordem ambiental diante de dano ou ameaça de lesão ao meio ambiente, enquanto ao Estado incumbe proporcionar os instrumentos adequados para a atuação dos cidadãos nesta seara, propiciando o efetivo acesso à justiça em matéria ambiental. A propósito, o acesso à justiça em matéria ambiental é objeto de relevante discussão, diante das peculiaridades inerentes aos conflitos ambientais, que incidem sobre interesses e direitos de natureza difusa, o que traz dificuldades no que se refere à sua adequada organização, representação e defesa. Esta discussão passa, necessariamente, pelo instituto da legitimação ativa para a propositura de ações judiciais em defesa do meio ambiente e a necessidade de sua ampliação, para a garantia do efetivo acesso à justiça. A ação popular, um dos meios mais antigos de controle dos atos estatais pelo cidadão, possui grande importância na tutela dos interesses da coletividade, como a moralidade administrativa, o patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Esse instrumento processual se destaca como um dos primeiros colocados à disposição do cidadão para a tutela de bens e interesses comuns a toda a sociedade. No entanto, não vem sendo efetivamente empregado, seja pela inidoneidade das regras processuais da Lei nº 4.717/65, seja pelas barreiras de acesso à justiça. 350 • Direito Processual Coletivo 2. A efetividade da tutela jurisdicional É de conhecimento ordinário que o direito de acesso à justiça, garantido pelo art. 5°, inciso XXXV, da Constituição da República (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), não quer dizer apenas que todos têm direito de ir a juízo, mas também que todos têm direito à adequada tutela jurisdicional ou à tutela jurisdicional efetiva (adequada e tempestiva). Nesse sentido: O direito fundamental à efetividade do processo - que se denomina também, genericamente, direito de acesso à justiça ou direito à ordem jurídica justa compreende, em suma, não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa e com potencial de atuar eficazmente no plano dos fatos. (ZWASCKI apud SILVA, 2005). Como ensina Marinoni (2004), o direito à tutela jurisdicional efetiva exige técnica processual adequada (norma processual), instituição de procedimento capaz de viabilizar a participação (p. ex., ações coletivas) e, por fim, a própria resposta jurisdicional. Oportuno trazer a lição do processualista: Note-se, em primeiro lugar, que o direito à tutela jurisdicional efetiva tem relação com a possibilidade de participação, e por isso pressupõe um direito à participação (o Teilhaberechte dos alemães). Nessa linha, a necessidade de participação fez Canotilho relacionar o procedimento coletivo com o direito a um procedimento justo. Trata-se do procedimento capaz de conferir a possibilidade de participação para a proteção dos direitos fundamentais e para a reivindicação dos direitos sociais. Acontece que essa participação deve ser feita perante um procedimento idôneo à proteção dos direitos, até mesmo porque o direito à proteção não exige somente normas de conteúdo material, mas igualmente normas processuais. Isso quer dizer que o direito à proteção dos direitos fundamentais tem como corolário o direito a pré-ordenação das técnicas adequadas à efetividade da tutela jurisdicional, as quais não são mais do que respostas do Estado ao seu dever de proteção. Porém, o direito à tutela jurisdicional não só requer a consideração dos direitos de participação e de edição de técnicas processuais adequadas, como se dirige à obtenção de uma prestação do juiz. Essa prestação do juiz, assim como a lei, também pode significar, em alguns casos, concretização do dever de proteção do Estado em face dos direitos fundamentais. [...] Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 351 Entretanto, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, quando se dirige contra o juiz, não exige apenas a efetividade da proteção dos direitos fundamentais, mas sim que a tutela jurisdicional seja prestada de maneira efetiva para todos os direitos. Tal direito fundamental, por isso mesmo, não requer apenas técnicas e procedimentos adequados à tutela dos direitos fundamentais, mas sim técnicas processuais idôneas à efetiva tutela de quaisquer direitos. De modo que a resposta do juiz não é apenas uma forma de se dar proteção aos direitos fundamentais, mas sim uma maneira de se dar tutela efetiva a toda e qualquer situação de direito substancial, inclusive aos direitos fundamentais que não requerem proteção, mas somente prestações fáticas do Estado (prestações em sentido estrito ou prestações sociais). Nessa linha de raciocínio, cumpre acrescentar que o jurisdicionado não é obrigado a se contentar com um procedimento inidôneo à efetiva tutela de seu direito, já que este não se resume à possibilidade de acesso a um procedimento legalmente instituído. De fato, o direito à tutela jurisdicional não pode se restringir ao direito de igual acesso ao procedimento estabelecido, ou ao conceito tradicional de acesso à justiça. Assim, se o dever do legislador editar o procedimento idôneo for descumprido, permanece, no caso concreto, o dever do juiz de prestar a tutela efetiva. Dessa forma, tem ele o dever de interpretar a legislação à luz do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional. Portanto, como propõe o mencionado doutrinador, o direito à tutela jurisdicional, ainda que sem perder sua característica de direito de iguais oportunidades de acesso à justiça, deve ser considerado como o direito à efetiva proteção do direito material, do qual são devedores o legislador e o juiz. Marinoni (2004, p. 198) acrescenta, ao tratar da essencialidade das normas processuais para a efetivação de direitos fundamentais, que “[...] isso quer dizer que o direito a proteção dos direitos fundamentais tem como corolário o direito a preordenação das técnicas adequadas à efetividade da tutela jurisdicional, as quais não são mais do que respostas do Estado ao seu dever de proteção”. Tais considerações são pertinentes no presente estudo, tendo em vista que, para a garantia de efetividade da tutela jurisdicional do meio ambiente através da ação popular, é preciso reavaliar alguns aspectos processuais atinentes à ação popular tradicional. Como se pretende demonstrar nas sessões seguintes, o procedimento da Lei nº 4.717/65 mostra-se inidôneo à efetiva tutela do meio ambiente pelo cidadão, através da ação popular. 352 • Direito Processual Coletivo 3. A ação popular 3. 1. Origem constitucional O primeiro tratamento da ação popular no Brasil foi a Constituição do Império de 1824, que previu a sua utilização, por qualquer do povo, com a finalidade de reprimir abusos de poder e prevaricação que juízes de direito e oficiais de justiça cometessem no exercício do cargo. Assim dispunha: “Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles a ação popular, que poderá ser intentada dentro de um ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo, guardada a ordem do processo estabelecido na lei”. Já a Constituição Republicana de 1891 não acolheu o instituto, nem mesmo em seu caráter penal, como a anterior. Cumpre mencionar que o Código Civil de 1916, também, não o previu expressamente. Foi a Constituição de 1934 a primeira a dar guarida à ação popular, no inciso 38 do artigo 113, que previa: “[...] qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou a anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”. No entanto, com a duração efêmera da Constituição de 1934, a ação popular não chegou a ser utilizada em virtude da falta de regulamentação. A Carta de 1937, por sua vez, nem tratou do instituto. Já a Constituição de 1946 restabeleceu o remédio, no artigo 141, § 38, de maneira mais ampla que na Constituição de 1934, uma vez que protegia, além da União, Estados e Municípios, as entidades autárquicas e as sociedades de economia mista. A Constituição de 1967 manteve a ação popular no artigo 150, § 31, com a finalidade específica da proteção patrimonial, mas sem relacionar as entidades cujo patrimônio deveria ser protegido, usando o termo genérico patrimônio das entidades públicas. Essa redação foi mantida pela Emenda Constitucional n.º 01/1969, no art. 153, § 31. Apesar da previsão constitucional, a utilização da ação popular na defesa de direitos difusos da coletividade não era muito constante. Segundo Meirelles (1987, p. 119), em que pese a alusão à defesa do patrimônio, a conceituação era restrita, consistindo na invalidação de atos ou contratos administrativos ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos. Cumpre ressaltar que, ainda sob a égide da Constituição de 1946, a ação popular foi regulamentada. A Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, ampliou sua área de atuação para fora do restrito círculo das lesões meramente pecuniárias. Das alterações realizadas, destaca-se a que foi feita pela Lei n.º 6.513/77, que introduziu a atual redação do § 1º do art. 1º, englobando no conceito de patrimônio público a proteção dos bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 353 O remédio constitucional em análise ganhou nova forma na Constituição de 1988, que ampliou consideravelmente o campo de sua incidência protetiva, passando a alcançar a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. 3.2. Conceito e requisitos Assim dispõe o artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição da República: Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada a má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. Sobre o conceito tradicional de ação popular, é indispensável citar Meirelles (1987, p. 114): Ação popular é o meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos – ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos. (grifo do autor). Assim, a ação popular se apresenta como um remédio constitucional, através do qual qualquer cidadão se investe de legitimidade para exercer um poder de natureza essencialmente política, como manifestação direta da soberania popular (SILVA, 1998, p. 462). Através dessa garantia, o cidadão exercerá diretamente a função fiscalizadora do Poder Público, visando à defesa dos interesses da coletividade. É o que também ensina Moraes (2001, p. 192), ao dizer que a ação popular, assim como o direito de sufrágio, direito de voto em eleições, plebiscitos e referendos, e ainda a iniciativa popular de lei e o direito de organização e participação de partidos políticos, constitui um meio de exercício da soberania popular. É forçoso reconhecer o aspecto político da ação popular, na medida em que o cidadão atua como fiscalizador dos atos do Poder Público. Os requisitos tradicionais da ação popular, sem os quais não se viabiliza, são: 1 – condição de eleitor; 2 – ilegalidade ou ilegitimidade do ato; 3 – lesividade. Faz-se mister apenas mencionar que há divergência na doutrina e na jurisprudência acerca da necessidade da presença do binômio ilegalidade-lesividade, sendo que para alguns basta um desses requisitos para a propositura e procedência da ação popular. Sobre a ação popular de defesa do meio ambiente, neste trabalho denominada ação popular ambiental, esclareça-se, por ora, que possui características singulares, o que enseja a necessidade de uma análise mais detida. 354 • Direito Processual Coletivo 3.3. Ação popular e ação civil pública A Lei nº 7.347 passou a vigorar no Brasil em de 24 de julho de 1985. Mediante seus dispositivos, salvaguardados na íntegra os que já constavam da Lei da Ação Popular, com a qual não conflitua, propõem-se ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, bem como por infração à ordem econômica, à economia popular e à ordem urbanística. Cumpre acrescentar que a ação civil pública ambiental já existia desde a Lei nº 6.938/81, que trata da Política Nacional do Meio Ambiente. Essa lei concedia ao Ministério Público legitimação para a ação de responsabilidade civil contra o poluidor por danos causados ao meio ambiente (art. 14, §1°). Sobre o assunto, Milaré (2001, p. 172) ensina: A Lei 7.347/85 significou, sem dúvida, uma revolução na ordem jurídica brasileira, já que o processo judicial deixou de ser visto como mero instrumento de defesa de interesses individuais para servir de efetivo mecanismo de participação da sociedade na tutela de situações fático-jurídicas de diferente natureza, vale dizer, daqueles conflitos que envolvem interesses supraindividuais – difusos, coletivos e individuais homogêneos. Não pode ser olvidado, ainda, o Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90, inovadora ao prever a tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos e que, ao lado da Lei da Ação Civil Pública e de outros diplomas legais inerentes ao direito coletivo, forma o “[...] microssistema processual coletivo” (DIDIER JUNIOR; ZANETTI JUNIOR, 2007, p. 49). Assim, tanto a ação popular, cujo conceito já foi analisado, quanto a ação civil pública são previstas na Constituição da República como mecanismos de defesa dos interesses públicos. No entanto, distinguem-se em pontos cruciais, a seguir relacionados sucintamente. No que concerne à legitimidade ad causam, na ação popular cabe ao cidadão, unicamente. Já na ação civil pública, são legitimados o Ministério Público, a União, Estados e Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações. Quanto ao objeto, na ação popular, buscase a nulidade ou anulação de ato lesivo ao patrimônio público em sentido lato, à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural, e a recomposição do status quo. Por sua vez, a ação civil pública visa à imposição de dever de fazer ou não-fazer ao autor do dano moral ou patrimonial causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ou à ordem econômica, à economia popular e à ordem urbanística, e a qualquer outro interesse difuso. Sobre o assunto, ensina Almeida (2007, p. 197, grifo do autor): A primeira diferença está na legitimidade para agir, pois somente o cidadão terá legitimidade para a propositura da Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 355 ação popular, com a ressalva do disposto no art. 16 da LAP. A segunda encontra-se no plano do objeto material, que na ação civil pública é amplo (art. 129, III, da CF), ao passo que o art. 5.°, LXXIII, da Constituição Federal estabelece de forma mais restrita o objeto da ação popular (patrimônio público em sua dimensão ambiental, cultural, histórica, moral e econômica). Observa-se, assim, que o texto constitucional não estabelece em relação à ação popular (art. 5.°, LXXIII, da CF), como faz em relação à ação civil pública (art. 129, III, da CF), que ela poderá ser promovida para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Entretanto, não são essas duas ações constitucionais excludentes; ao contrário, são elas concorrentes naquilo que haja identidade quanto ao plano de seus objetos materiais. Essa tese é confirmada pelo próprio art. 1.°, caput, da LACP. É inegável que a ação civil pública é, atualmente, o instrumento mais utilizado na defesa do meio ambiente e por muitos considerada como a melhor forma de defesa dos interesses transindividuais. Contudo, tem o inconveniente de não conceder legitimação ativa ao cidadão individualmente considerado, cabendo-lhe apenas oferecer representação junto ao Ministério Público, órgão mais estruturado para acionar o Judiciário, ou formar uma associação, que tem legitimidade para propor a ação civil pública. A propósito, lembra Dinamarco (1994, p. 171) que são duas as hipóteses de participação popular por meio do Poder Judiciário em demandas coletivas: as ações populares, cuja legitimidade é do cidadão; e as ações civis públicas propostas por associações. 4. A ação popular ambiental 4.1. Primeiras abordagens A atribuição de legitimidade coletiva ao cidadão para a defesa do meio ambiente, que é um interesse difuso, representou um grande avanço na garantia do exercício da cidadania. Leite (2007) explica: Com efeito, o artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil é extremamente aberta (sic), em sentido democrático ambiental, pois exige o exercício da cidadania participativa e com responsabilidade social ambiental. [...] Um dos componentes do Estado Democrático Ambiental é o amplo acesso à justiça, via tutela jurisdicional do meio ambiente. Note-se que os meios judiciais são, de fato, o último recurso contra a ameaça e a degradação ambiental. A sociedade atual exige que as demandas ambientais sejam palco de discussão na via judiciária, pois esta abertura resultará no exercício da cidadania e, como conseqüência maior conscientização. Conforme entendimento da doutrina, a Constituição da República previu, no art. 5°, LXXIII, dois institutos completamente distintos: a ação popular para a defesa do 356 • Direito Processual Coletivo erário, disciplinada pela Lei nº 4.717/65, e a ação popular ambiental, que abrange a proteção do patrimônio histórico e cultural e o meio ambiente (GOMES JUNIOR). No mesmo sentido, Silva (2006, p. 98) esclarece que “[...] a ação popular pode ser utilizada para defesa de bens de natureza diferentes: natureza pública (patrimônio público) e natureza difusa (meio ambiente)”. O reconhecimento da ação popular ambiental como instituto distinto da ação popular tradicional traz conseqüências relevantes. Nesse ponto, é preciso lembrar que os conflitos jurídico-ambientais, por se referirem a interesses difusos e pelas peculiaridades do dano ambiental (difícil reparação e valoração, dentre outros), não podem ser eficazmente solucionados através dos institutos clássicos do direito processual, incluindo a ação popular da Lei nº 4.717/65. É oportuno mencionar o estudo de Mendes e Cavedon (2005) sobre as barreiras à propositura da ação popular ambiental: Grande problema para o efetivo uso da Ação Popular é que sua estrutura não foi alterada, apesar da inclusão da possibilidade de tutela dos interesses difusos de ordem ambiental, o que certamente traz dificuldades na sua utilização por parte do cidadão que pretenda defender o patrimônio ambiental da coletividade através deste instrumento. Outro ponto que dificulta sua utilização são as barreiras de Acesso à Justiça que podem se colocar entre o cidadão e a efetiva propositura da Ação Popular como, por exemplo, arcar sozinho com o ônus econômico, material e psicológico do litígio, na maioria das vezes contra atos do Poder Público, o que certamente lhe trará os inconvenientes da exposição pública; a diferença econômica e informativa do autor popular para com, geralmente, figurando no pólo passivo, o Estado; etc. Às barreiras de acesso à justiça em matéria ambiental acrescente-se a ausência de vantagem pessoal ao titular da ação, em virtude da natureza difusa do direito protegido, o que lhe causa desmotivação e desinteresse. Além disso, há o custo e os riscos do processo, a morosidade da justiça, a dedicação de tempo à causa, dentre outros. Tais apontamentos corroboram a necessidade de diferenciação entre a ação popular ambiental e a tradicional, especialmente quanto a alguns aspectos processuais, como se passa a analisar. 4.2. Legitimidade 4.2.1. Legitimidade ativa O art. 1° da Lei nº 4.717/65 confere legitimidade ativa na ação popular apenas ao cidadão. A Constituição de 1988 assim também dispôs (art. 5°, LXXIII). Sobre o assunto, Silva (1998, p. 463) sustenta que o texto constitucional, quando diz qualquer cidadão, acabou por restringir a legitimidade ativa na ação popular apenas ao nacional no gozo dos direitos políticos, sendo vedada às pessoas jurídicas, aos Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 357 estrangeiros e aos partidos políticos1. Vale citar, no entanto, a posição de Almeida (2007, p. 367), para quem o art. 1°, § 1°, da Lei nº 4.717/65, por estabelecer restrição indevida à condição de cidadão para efeitos de legitimidade para o ajuizamento da ação popular, não foi recepcionado pela Constituição Federal (art. 5°, LXXIII). Explica o doutrinador: A ação popular está dentro das garantias constitucionais fundamentais (art. 5.°, LXXIII da CF), de sorte que, se a Constituição não estabelece qualquer restrição à concepção de cidadão, não é compatível qualquer interpretação restritiva. [...] Destarte, todos os que devem ser respeitados na sua dignidade de pessoa humana têm legitimidade ativa para o ajuizamento de ação popular: o analfabeto que não se alistou; os maiores de 70 (setenta) anos, cujo voto também é facultativo; os que não estejam em dia com o serviço eleitoral; os presos, etc. (grifo do autor). Também é este o entendimento de Fiorillo (2005, p. 375): [...] cidadão em nossa Carta Magna é a pessoa humana no gozo pleno de seus direitos constitucionais e não única e exclusivamente ‘nacional no gozo de seus direitos políticos’. O cidadão brasileiro, portanto, possui igual dignidade social independentemente da sua inserção econômica, social, cultural e obviamente política. Contudo, predomina o entendimento que só é legitimado para a ação popular o cidadão eleitor, devendo o autor comprovar o exercício de seus direitos políticos. Quanto à ação popular ambiental, há uma corrente doutrinária que apregoa a extensão da legitimidade ativa, como estratégia de obter maior acesso à justiça para a defesa do meio ambiente. Para Leite (2007), a cidadania foi ampliada, concedendo até mesmo ao estrangeiro residente no país o direito subjetivo de propor a ação popular ambiental. Fiorillo (2005, p. 375) leciona: Dessa forma, sendo de todos os bens ambientais, nada mais lógico que não só o eleitor quite com a Justiça Eleitoral, mas todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País possam ser rotulados cidadãos para fins de propositura da ação popular ambiental [...]. Com isso denota-se que o destinatário do meio ambiente ecologicamente equilibrado é toda a coletividade – brasileiros e estrangeiros aqui residentes – independentemente da condição de eleitor, de modo que, no tocante à proteção dos bens e valores ambientais, o art. 1°, 3°, da Lei 4.717/65 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Na verdade, seguindo o critério de diferenciação dos institutos, a ação popular da Lei nº 4.717/65 tem natureza política, exigindo do autor o título de eleitor e a prova da 1 Súmula 365 do STF: Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular. 358 • Direito Processual Coletivo regularidade com o serviço eleitoral. Já na ação popular ambiental, pela natureza do bem tutelado, não deve prevalecer essa exigência. É razoável - e atende ao princípio democrático - atribuir legitimidade a qualquer cidadão, assim entendido qualquer integrante da população brasileira, até mesmo o estrangeiro residente no país. 4.2.2. Legitimidade passiva Dispõe o art. 6º da Lei nº 4.717/65 que serão sujeitos passivos da ação popular as pessoas públicas ou privadas em nome das quais o ato a ser anulado foi praticado, inclusive as mencionadas no art. 1°, as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissão, tiverem dado oportunidade à lesão, e os beneficiários diretos dele. Trata-se, portanto, de um litisconsórcio passivo necessário, já que todos os beneficiários do ato impugnado têm que ser citados. A conseqüência disto é que a ausência de citação de parte necessária inquina de vício insanável a demanda, de modo a tornar inexistente a sentença proferida (SILVA, 2006, p. 105). Entretanto, na ação popular ambiental, cuja distinção com a ação popular de defesa do patrimônio público tem se defendido, não há litisconsórcio passivo necessário. Sustenta-se que o litisconsórcio será facultativo, uma vez que a responsabilidade, na hipótese, é solidária, sendo que os efeitos da sentença atingirão igualmente todos os réus. Outro fundamento é o conteúdo do art. 225, § 3°, da Constituição da República, que deve ser interpretado no sentido de que não há obrigação de que a demanda seja proposta contra todos os responsáveis, sob pena de inviabilizar o instituto. Gomes Júnior e Santos Filho (2006, p. 286) explicam: A disciplina prevista na Lei n. 4.717/65 foi elaborada, visando ao processamento de uma Ação Popular cuja finalidade era e é a proteção ao erário, não se justificando a sua incidência quando o objeto perseguido é outro; na hipótese, proteger o meio ambiente. Isso afasta, desde o início, a necessidade de ajuizamento da Ação Popular Ambiental contra todos os responsáveis pelo ato impugnado (art. 6° da Lei n. 4.717/65), já que, em se tratando de dano ambiental a responsabilidade é solidária, autorizando o ajuizamento contra apenas um dos responsáveis, o que facilita tanto a propositura quanto o processamento da demanda, sem os entraves existentes na norma retro apontada. Cumpre acrescentar, ainda, que, na esteira do raciocínio de Fiorillo, Rodrigues e Nery2, podem ser legitimados passivos na ação popular ambiental todos aqueles responsáveis pelo ato lesivo ao patrimônio ambiental, pessoas físicas, jurídicas ou entes despersonalizados, sem os limites do art. 6° da Lei nº 4.717/65, já que sobre estas pode recair o conceito de poluidor estabelecido pela Política Nacional do Meio Ambiente e, ademais, não há vedação do texto constitucional quanto a esse tema. 2 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha; NERY, Rosa Maria de Andrade apud ALMEIDA, 2007, p. 404. Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 359 4.3. Requisitos - ilegalidade e lesividade Já foi examinado que a ação popular é o instrumento constitucional à disposição do cidadão para atacar ato ilegal e lesivo ao patrimônio público. Prevalece o entendimento de que é necessária a presença desses dois elementos – ilegalidade e lesividade – para a propositura dessa ação. Cumpre ressalvar que, a despeito da cumulação dos citados requisitos, já foi superada a idéia de que a lesão deveria ser econômica, ainda mais após a Constituição de 1988, que ampliou o objeto da ação popular, passando a proteger o patrimônio histórico e cultural, o meio ambiente e a moralidade administrativa. De qualquer modo, é imprescindível a conjugação da lesividade, seja comprovada ou presumida (art. 4° da Lei nº 4.717/65) e da ilegalidade, para a propositura da ação popular tradicional. Contudo, mais uma vez a ação popular ambiental se distingue, porque se deve entender que, nessa hipótese, basta a lesividade ao meio ambiente. O ato comissivo ou omissivo não precisa ser ilegal, sendo suficiente a demonstração de que causou dano ambiental (SILVA, 2006, p. 110). Ademais, é preciso considerar que a responsabilidade por danos ao meio ambiente é objetiva, bastando que haja nexo de causalidade entre a conduta e a degradação, não se exigindo a ilegalidade ou ilicitude do ato. Silva (2003, p. 314), ao tratar da natureza da responsabilidade pelo dano ambiental, lembra que “[...] não exonera, pois, o poluidor ou degradador a prova de que sua atividade é normal e lícita”. Nas linhas seguintes, acrescenta: Não libera o responsável nem mesmo a prova de que a atividade foi licenciada de acordo com o respectivo processo legal, já que as autorizações e licenças são outorgadas com a inerente ressalva de direitos de terceiros; nem que exerce a atividade poluidora dentro dos padrões fixados, pois isso não exonera o agente de verificar, por si mesmo, se sua atividade é ou não prejudicial, está ou não causando dano. (grifo do autor) Ora, não há razão para ignorar a regra da responsabilidade objetiva por dano ao meio ambiente na ação popular ambiental, não se admitindo a licitude ou legalidade da conduta ou do ato como excludente da obrigação de reparar a lesão. Como decorrência lógica, a legalidade da conduta que degradou o meio ambiente não pode ensejar o descabimento da ação popular ambiental. 4.4. Competência A Lei da Ação Popular, no art. 5°, determina a competência em vista da origem do ato impugnado. Assim, se uma autoridade federal cometeu ato lesivo ao patrimônio público, será o juízo federal competente para processar e julgar a demanda. Contudo, mais uma vez a Lei nº 4.717/65 não se mostra adequada à ação popular ambiental. Nessa hipótese, deve ser aplicado o art. 2° da Lei da Ação Civil Pública – Lei nº 7.347/85, que atribui a competência ao juízo do local onde ocorreu ou deva ocorrer a 360 • Direito Processual Coletivo lesão. Afinal, conforme já explicado, a Lei nº 4.717/65 foi prevista para a ocorrência de lesão ao erário, bem de natureza pública, mas não metaindividual, como o meio ambiente. Dessa forma, suas regras processuais não se coadunam com a natureza difusa do bem tutelado através da ação popular. É o que sustenta Fiorillo (2005, p. 379): A natureza jurídica do bem tutelado é que define o rito procedimental a ser utilizado. Dessa forma, tratando-se de meio ambiente, as regras de fixação de competência serão orientadas pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor, de maneira que será competente para o julgamento da ação popular o juízo do local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, independente de onde o ato teve sua origem. Gomes Júnior e Santos Filho (2006, p. 287), citando a doutrina de Motauri Ciocchetti de Souza, ensina que: A Ação Popular Ambiental, nos termos do art. 2° da Lei 7.347/85, deverá ser ajuizada perante o órgão jurisdicional do local ‘onde ocorrer o dano’, sendo hipótese de competência funcional, já que ‘[...] possui melhores condições – quando em cotejo com qualquer de seus pares – de exercer a função jurisdicional no caso concreto, mercê de presumido conhecimento dos fatos e maior facilidade na coleta e obtenção das provas necessárias para deslindá-lo. [...] Cabe, ainda, trazer a doutrina de Almeida (2007, p. 363-364) que assim distingue: Caso a ação popular venha a ser ajuizada para a tutela do meio ambiente, do patrimônio histórico ou cultural, entendemos que deverá ser aplicado por analogia o disposto no art. 2° da LACP, passando a competência a ser territorial-funcional (absoluta) do juízo do local do dano, estadual ou federal, conforme estejam presentes as hipóteses fixadoras da competência da justiça federal previstas no art. 109 da CF. Também é este o entendimento de Leite (2007). Destarte, o reconhecimento da competência do local do dano ambiental para a propositura da ação popular é mais um elemento que individualiza esse instrumento processual, contribuindo para a sua diferenciação da ação popular de defesa do patrimônio público em sentido estrito e, por outro lado, para a sua aproximação à ação civil pública. 4.5. Liminar Neste tópico, é relevante mencionar que, quando houver pedido de liminar contra o Poder Público, deve incidir a disposição do art. 2° da Lei nº 8.437/92, que dispõe sobre a concessão de medidas liminares contra atos do poder público e prevê que, Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 361 no mandado de segurança coletivo e na ação civil pública, a liminar será concedida, quando cabível, após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas. A regra geral na ação popular é a não-aplicação do mencionado dispositivo, já que esta ação é ajuizada em favor do ente público, atuando o autor popular em sua defesa e não contra os seus interesses. Entretanto, tem aplicabilidade na ação popular ambiental, por sua semelhança e, por que não dizer, equivalência, à ação civil pública. Pertinente é destacar a seguinte ementa do TJMG, que adotou o entendimento esposado: Agravo. Ação Popular. Alegação de desmatamento de área de preservação permanente. Liminar. Necessidade de se ouvir a Fazenda Pública antes da deliberação. Decisão parcialmente reformada. Mesmo em se tratando de ação popular, ficando o magistrado em estado de perplexidade ante as provas apresentadas com a inicial, deverá se utilizar da faculdade conferida pelo art. 2º da Lei 8.437/92, para só conceder a liminar requerida após audiência do representante legal da Pessoa Jurídica de Direito Público, que terá setenta e duas horas para se manifestar sobre o pedido. 3 4.6. Prescrição A despeito da natureza coletiva da ação popular e da regra de imprescritibilidade dos bens coletivos, o legislador optou por estabelecer prazo para a sua propositura. Assim, o art. 21 da Lei nº 4.717/65 prevê o prazo de cinco anos para a ação popular nela disciplinada. No entanto, deve-se entender que a prescrição não atinge a ação popular ambiental, em função da natureza do bem protegido. É o que ensina Silva (2006, p. 117): Entretanto, considerando que a sistemática processual observada na ação popular em defesa do meio ambiente não está prevista na Lei n. 4.717/65, também não se faz possível aplicá-la em matéria de prescrição, até porque os bens tutelados são imprescritíveis, tamanha sua importância para a sociedade [...] Não é por outra razão que Hugo Nigro Mazzilli leciona: ‘[...] a consciência jurídica indica a inexistência de direito adquirido de degradar a natureza, da mesma forma, tem-se admitido a imprescritibilidade da pretensão reparatória. Não se pode formar direito adquirido de poluir, já que é o meio ambiente patrimônio não só das gerações atuais como futuras’.4 De fato, é imprescritível a ação que visa à reparação do meio ambiente, como entende a jurisprudência, a exemplo do TJMG: “A proteção ao meio ambiente, por se tratar de um direito fundamental para preservação do planeta, pertencente à 3 4 TJMG, Agravo nº 1.0000.00.314437-5/000. No mesmo sentido: (GOMES JÚNIOR; SANTOS FILHO, 2006, p. 289). 362 • Direito Processual Coletivo humanidade e às gerações futuras, constitui matéria imprescritível”5, ou do STJ: “A ação de reparação/recuperação ambiental é imprescritível.”6 4.7. Apelação e efeito suspensivo Assim dispõe o art. 19 da Lei da Ação Popular: “Art. 19. A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação procedente caberá apelação, com efeito suspensivo.” Contudo, em se tratando de ação popular ambiental, face à necessidade de reparação do dano ambiental, sob pena de irreversibilidade, eventual recurso de apelação deverá ter efeito apenas devolutivo. Nessa hipótese, incidirá a aplicação do art. 14 da Lei da Ação Civil Pública, que determina que os recursos deverão ser recebidos somente no efeito devolutivo, ressalvada a hipótese de dano irreparável à parte. Como ensina Almeida (2007, p. 388), a regra do aludido art. 19 deve ser relativizada, uma vez que foi elaborada diante de outro contexto político, jurídico e histórico. Assim expõe o autor: Assim, em sede de ação popular, entendemos que é mais razoável aplicar o disposto no art. 14 da Lei 7.347/85 (LACP), o qual estabelece o que, na ação civil pública, o juiz (leiase também o tribunal) poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte. [...] O referido art. 14 da LACP visa possibilitar a execução provisória das decisões proferidas em sede de ação civil pública e, com isso, garantir maior efetividade e eficácia aos provimentos jurisdicionais nessa espécie de ação coletiva, atendendo, assim, aos interesses magnos da sociedade. Como a ação popular é ação constitucional de interesse social, o mais razoável é aplicar-lhe, por analogia, o disposto no art. 14 da LACP, especialmente quando a ação popular visa a tutelar o meio ambiente ou o patrimônio público ou social. [...] É o que ensina Cláudia Lima Marques ao afirmar que o diálogo das fontes permite e conduz à aplicabilidade simultânea, coerente e coordenada, das plúrimas fontes legislativas convergentes, o que deve ser feito com a finalidade de proteção efetiva. A seguinte ementa corrobora a interpretação ora esposada: Ementa: Meio Ambiente. Danos causados por município, em virtude do depósito de lixo que vem sendo efetuado, na cabeceira de uma floresta de preservação permanente. Ação popular. Procedência. Necessário é o imediato cumprimento do ‘decisum’, sob pena de tornarem-se irreversíveis os danos 5 6 TJMG, Apelação Cível n.º 1.0035.04.032375-6/001. STJ, REsp 647493/SC. Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 363 referidos. Devido é o pagamento de custas e honorários advocatícios, em sede de ação popular, por força do disposto no art. 12, da Lei nº 4.717/65. Apelo provido. (TJMG, Apelação Cível nº 000.232.382-2/00). 5. Da inserção da ação popular no microssistema de tutela coletiva Na medida em que a tradicional visão individualista do processo se tornou insuficiente e deficitária, houve a necessidade de estabelecimento de novas regras para a tutela de determinados direitos. Surgiram, assim, os chamados microssistemas, formados por leis especiais que regulam relações jurídicas específicas. É o que ocorre com a tutela coletiva, que é regida por um microssistema composto por vários diplomas legais - não apenas a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor - que se intercomunicam. Interessa citar o ensinamento de Mazzei (2006, p. 409), que defende a existência, no direito positivo brasileiro, de um microssistema processual coletivo formado por diversas normas: Pensamos, entretanto, que visão mais ampla há de ser empregada, pois, apesar de o Código de Defesa do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública terem, de fato, um status de relevância maior (‘decorrente da natural aferição de possuírem um âmbito de incidência de grade escala’), os demais diplomas que formam o ‘microssistema da tutela de massa’ têm também sua importância para o direito processual coletivo, implantando a inteligência de suas regras naquilo que for útil e pertinente. Neste sentido, inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça7: A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiamse. Considerando que a ação popular compõe o microssistema de tutela coletiva, é preciso deixar consignado que, a despeito da previsão do art. 22 da Lei nº 4.717/65, o Código de Processo Civil somente será aplicado de forma residual, ou seja, se houver omissão a determinada norma, não se aplicará de plano o estatuto processual civil, “[...] uma vez que o intérprete deverá, antecedentemente, aferir se há paradigma legal dentro do conjunto de normas processuais do microssistema coletivo” (MAZZEI, 2006, p. 411). A mesma conclusão se aplica ao se interpretar o art. 19 da Lei da Ação Civil Pública. Assim, como concluíram Didier Junior e Zanetti Júnior (2007, p. 51), os diplomas que tratam da tutela coletiva são intercambiantes entre si, ou seja, “[...] apresentam uma ruptura com os modelos codificados anteriores 7 Recurso Especial n. 510.150-MA. 364 • Direito Processual Coletivo que exigiam completude como requisito mínimo, aderindo a uma intertextualidade intrasistemática”. Essas breves considerações dão suporte aos argumentos sustentados no presente estudo, em especial nas situações em que se defendeu a aplicação de regras da Lei da Ação Civil Pública na ação popular ambiental, que tem natureza eminentemente coletiva. 6. Conclusão O estudo da ação popular ambiental e de alguns de seus principais aspectos processuais levou à conclusão de que esse instituto não tem a mesma natureza da ação popular disciplinada pela Lei nº 4.717/65, devido aos bens jurídicos por elas tutelados. A ação popular é um instrumento que não vem sendo constantemente empregado, em razão das mencionadas barreiras de acesso à justiça. Após a realização de uma pesquisa junto ao site de alguns tribunais brasileiros, também se constatou a escassez de ações populares ambientais, o que não surpreende. Afinal, enquanto se entender que o instituto em tela não se diferencia da ação popular tradicional, e a ele continuarem sendo aplicadas as regras da Lei nº 4.717/65, seu alcance será mesmo ínfimo e não se efetivará a tutela do meio ambiente. É preciso lembrar que a norma constitucional que garante o acesso à justiça o faz tanto em relação aos direitos individuais quanto aos coletivos. Daí Didier Junior e Janetti Junior (2007, p. 27) dizerem que a intenção do art. 5°, XXXV da Constituição pode ser assim traduzida: “[...] a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou afirmação de lesão a direito individual ou coletivo”. Conforme estudado, a ação popular integra o microssistema de tutela coletiva, em função da natureza dos direitos que protege. Dessa forma, é perfeitamente possível, por exemplo, a incidência das regras da Lei da Ação Civil Pública, do Código de Defesa do Consumidor, da Lei de Improbidade Administrativa, quando cabíveis, à ação popular, em função da intercomunicação dos diplomas legais que integram o microssistema coletivo. Tal assertiva se torna ainda mais relevante na ação popular ambiental, cuja natureza tanto se aproxima à da ação civil pública. A aplicação das regras deste último instituto àquele é o reconhecimento da necessidade de se garantir a efetividade da tutela jurisdicional. Em outras palavras, “[...] frente à natureza jurídica da Ação Popular Ambiental, é de se aplicar a sistemática prevista na Lei nº 7.347/85 e não a Lei nº 4.717/65, sob pena de se criarem embaraços indevidos à proteção do meio ambiente” (GOMES JÚNIOR; SANTOS FILHO, 2006, p. 119). Portanto, o tratamento da ação popular ambiental como instituto distinto da ação popular regulada pela Lei nº 4.717/65, e a convicção de que sua natureza corresponde, na verdade, à da ação civil pública, só que de titularidade do cidadão, permitirão o alcance da efetividade da proteção do meio ambiente e o acesso à Justiça. Poliana Cíntia Costa Guimaraes • 365 7. Referências bibliográficas ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das ações constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. COSTA, Susana Henriques da. A participação popular nas escolhas públicas por meio do Poder Judiciário: o papel das ações coletivas. Aula ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Processual: Grandes Transformações da UNAMA – UVB – REDE LFG, 2008. DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETTI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil. v. 4. São Paulo: Jus Podivm, 2007. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. 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Ressaltou que os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade, corolários do princípio da legalidade, são de observância obrigatória na aplicação das medidas punitivas, como soem ser as sanções encartadas na Lei n. 8.429/1992, por isso é da essência do poder sancionatório do Estado a obediência aos referidos princípios. Assim, a sanção de suspensão temporária dos direitos políticos, decorrente da procedência de ação civil de improbidade administrativa ajuizada no juízo cível, estadual ou federal, somente produz seus efeitos, para cancelamento da inscrição eleitoral do agente público, após o trânsito em julgado do decisum, mediante instauração de procedimento administrativo-eleitoral na Justiça Eleitoral. Consectariamente, o termo inicial para a contagem da pena de suspensão de direitos políticos, independente do número de condenações, é o trânsito em julgado da decisão à luz do que dispõe o art. 20 da Lei n. 8.429/1992. Com esses argumentos, entre outros, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, conheceu do recurso, mas lhe negou provimento. No entendimento vencido do Min. Relator originário, tratando-se de sanções decorrentes de processos distintos contra o mesmo agente ímprobo, as reprimendas impostas pelos atos de improbidade devem dar-se de forma cumulativa, tendo como termo inicial a data do mais antigo trânsito em julgado sob pena de diminuir a força decisória das sentenças condenatórias ou de estimular a prática de atos de improbidade administrativa. REsp 993.658-SC, Rel. originário Min. Francisco Falcão, Rel. para o acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 15/10/2009. Ação Civil Pública. Improbidade. Depósito. Lixo. Área irregular. A matéria versa sobre ação civil pública (ACP) de improbidade ajuizada pelo MP estadual em desfavor de ex-prefeito, em razão de ter ordenado que o lixo coletado 368 • Direito Processual Coletivo na cidade fosse depositado em área totalmente inadequada (situada nos fundos de uma escola municipal e de uma fábrica de pescados), de modo que tal ato, por acarretar grandes danos ao meio ambiente e à população das proximidades, reclama a responsabilização do agente público. O Tribunal de origem rejeitou liminarmente a ACP contra o prefeito que, a despeito de desatender a Lei estadual n. 1.117/1994 e o Código Florestal no que se refere ao adequado depósito de lixo urbano, administrativamente age como todos os demais prefeitos em face da insuficiência orçamentária das municipalidades e sob pena de malferir o princípio da razoabilidade. Para o Min. Relator, o simples fato de os prefeitos anteriores ou de outros prefeitos terem iniciado prática danosa ao meio ambiente não elide a responsabilização do recorrido, que adotou, quando de sua gestão (autônoma em relação a todas as outras), a mesma conduta (poluidora). Além disso, a mera alegação de que a verba orçamentária das municipalidades seria insuficiente para viabilizar a adequação do depósito de lixo às normas ambientais não tem o condão de afastar o interesse do MP de propor demanda na qual se objetive a responsabilização do agente da Administração Pública que atuou em desconformidade com a legislação protetora do meio ambiente. O § 1º do art. 14 da Lei n. 6.938/1981 preceitua que, sem obstar a aplicação das penalidades previstas naquele artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade. Dessa forma, o MP da União e os dos estados têm legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao ambiente. REsp 699.287-AC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 13/10/2009. Informativo 412 do Superior Tribunal de Justiça – Legitimidade do Ministério Público ajuizar ação civil pública na defesa de grande lista de clientes de grandes administradoras que tem cláusulas abusivas no contrato de locação. Trata-se de REsp em que o recorrente, MP estadual, pretende a nulidade de cláusulas abusivas constantes de contratos de locação realizados com uma única administradora do ramo imobiliário. Sustenta que o art. 82, I, do CDC, os arts. 1º, II e IV, e 5° da Lei n. 7.347/1985 o legitimam a promover a ação civil pública (ACP), tal como feito na hipótese em questão. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, reafirmou o entendimento de não ser possível o ajuizamento de ACP para postular direito individual que, apesar de indisponível, seja destituído do requisito da homogeneidade, indicativo da dimensão coletiva que deve caracterizar os interesses tutelados por meio de tais ações. Outrossim, segundo a jurisprudência deste Superior Tribunal, o CDC não é aplicável aos contratos locatícios, os quais são regulados por legislação própria. Assim, resta claro que o MP estadual não tem legitimidade para propor ACP nesse caso. Para os votos vencidos, contudo, não há inconveniência na propositura da ACP pelo MP estadual nessa hipótese, visto que se trata de uma ação visando alcançar ao mesmo tempo a pluralidade de locatários potencialmente vítimas de exploração. Ressaltou-se que as grandes administradoras têm uma Jurisprudência • 369 carteira enorme de clientes, o contrato, em geral, é padronizado, basicamente, um contrato de adesão. Portanto, a ACP teria a utilidade de possibilitar o exame em uma única ação para dar lisura ou não às cláusulas postas no contrato. Precedentes citados: REsp 984.430-RS, DJ 22/11/2007; REsp 294.759-RJ, DJe 9/12/2008; AgRg no Ag 590.802-RS, DJ 14/8/2006; REsp 442.822-RS, DJ 13/10/2003; REsp 893.218RS, DJe 9/12/2008, e AgRg no Ag 660.449-MG, DJ 25/2/2008. REsp 605.295-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 20/10/2009. 370 • Direito Processual Coletivo Comentário à Jurisprudência AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL COMO CONDIÇÃO PARA RETIFICAÇÃO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO MATHEUS ADOLFO GOMES QUIRINO Advogado LEANDRO HENRIQUE SIMÕES GOULART Professor do Unicentro Newton Paiva. 1. Acórdão Processo: REsp 831212 / MG RECURSO ESPECIAL 2006/0062192-7 Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI Órgão Julgador: Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça Data do Julgamento: 01/09/2009 Data da Publicação/Fonte: DJe 22/09/2009 Ementa DIREITO AMBIENTAL. PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DE ÁREA DE IMÓVEL, FORMULADO POR PROPRIETÁRIO RURAL. OPOSIÇÃO DO MP, SOB O FUNDAMENTO DE QUE SERIA NECESSÁRIO, ANTES, PROMOVER A AVERBAÇÃO DA ÁREA DE RESERVA FLORESTAL DISCIPLINADA PELA LEI 4.771/65. DISPENSA, PELO TRIBUNAL. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELO MP. PROVIMENTO. - É possível extrair, do art. 16, §8º, do Código Florestal, que a averbação da reserva florestal é condição para a prática de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei 4.771/65. Recurso especial provido. Acórdão Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Vasco Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart 371 Della Giustina e Paulo Furtado votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti. 2. Apresentação do caso O presente acórdão julga Recurso Especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais contra decisão proferida pelo Tribunal Justiça do Estado de Minas Gerais em Ação de Retificação de Registro Público. A Ação de Retificação de Registro Público foi proposta, com a anuência de seis confrontantes do imóvel e requerendo a citação dos demais, sob a principal alegação de que, após terem adquirido propriedade rural, os autores, procedendo à medição do imóvel, constataram que sua área real seria de 347.00 HA (hectares), maior que a constante do registro imobiliário, que informava tão-somente 35.40 HA (trinta e cinco hectares e quatro décimos de hectare). Por esta razão, ingressaram em juízo pleiteando a retificação do registro imobiliário para que dele constasse a área real do imóvel. O Ministério Público do Estado de Minas Gerais exarou parecer, ainda em primeira instância, em que opinava pelo indeferimento do pedido de retificação por dois motivos, quais fossem: primeiro, que a retificação implicaria aumento de quase dez vezes sobre a área anteriormente constante da matrícula; segundo, por ausência de averbação, na matrícula, de reserva florestal equivalente a 20% da área do imóvel. O juízo singular acolheu o pedido de retificação, contrariando a orientação do Ministério Público, que apelou. No Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o representante do MP/MG pugnou pelo provimento do recurso apenas quanto ao segundo fundamento, relativo à necessidade de averbação da reserva legal. No entanto, a decisão publicada no acórdão também negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa: JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA - RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE IMÓVEL - ALTERAÇÃO DE ÁREA - AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA - ADEQUAÇÃO DO REGISTRO À SITUAÇÃO DE FATO PREEXISTENTE ADMISSIBILIDADE - AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL. Comprovada a divergência para maior entre a área real do imóvel e aquela lançada no assento do registro público, aliado ao fato de inexistir impugnação fundamentada pelos confrontantes, tem o proprietário direito à sua retificação, na forma do art. 1.247 do Código Civil, e do artigos 212 e 213 da Lei de Registros Públicos. Descabe a pretensão ministerial no tocante à averbação de reserva legal, com fundamento no Código Florestal (art. 16), visto tratar-se de pedido incompatível 372 • Direito Processual Coletivo com a natureza do procedimento retificatório, de jurisdição voluntária (arts. 213, e §§ da Lei nº 6.015/73). O Ministério Público mineiro interpôs Recurso Especial, cujas razões foram acolhidas, nos termos da seguinte emenda: DIREITO AMBIENTAL. PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DE ÁREA DE IMÓVEL, FORMULADO POR PROPRIETÁRIO RURAL. OPOSIÇÃO DO MP, SOB O FUNDAMENTO DE QUE SERIA NECESSÁRIO, ANTES, PROMOVER A AVERBAÇÃO DA ÁREA DE RESERVA FLORESTAL DISCIPLINADA PELA LEI 4.771/65. DISPENSA, PELO TRIBUNAL. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELO MP. PROVIMENTO. - É possível extrair, do art. 16, §8º, do Código Florestal, que a averbação da reserva florestal é condição para a prática de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei 4.771/65. Recurso especial provido. É sobre esta decisão que passamos a tecer alguns comentários. 3. Comentários ao acórdão A decisão do Superior Tribunal de Justiça, de acolher as razões recursais apresentadas pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais defendidas desde a primeira instância, baseia-se, entre outros aspectos, na aplicação do Código Florestal. Inobstante a discussão atualmente existente sobre a constitucionalidade ou não do Código Florestal – matéria instigante que, entretanto, não é objeto desta análise, o Tribunal Superior Infraconstitucional dá aplicabilidade à letra daquela Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965, nascida sob a égide do estado militar, que expressamente determina: Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo: I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; II - trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na propriedade e quinze por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos do § 7o deste artigo; III - vinte por cento, na propriedade rural situada em área de Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart 373 floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País; e IV - vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País [...] § 8º A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código. No entanto, não é o Código Florestal a única norma que embasa o entendimento do MP no sentido de ser exigida a averbação da área de reserva legal da propriedade rural em registros imobiliários. A própria Lei de Registros Públicos, Lei nº. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, trata desta exigência de averbação da área de reserva legal, senão vejamos: Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. [...] II - a averbação: [...] 22. da reserva legal; E a averbação da reserva legal, como exigido pela Lei de Registros Públicos, é novidade incluída pela Lei 11.284, de 2 de março de 2006 que, dispondo acerca da gestão de florestas públicas para a produção sustentável, institui o Serviço Florestal Brasileiro – SFB, cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal – FNDF e altera legislação. Apesar da novel redação trazida pela Lei da Gestão de Florestas Públicas à Lei de Registros Públicos, e da redação do Código Florestal, tanto o juízo singular quanto o do Tribunal de Justiça mineiro entenderam ser descabida a exigência da averbação, visto que ela seria incompatível com a via eleita de jurisdição voluntária. Os desembargadores do TJMG assim julgaram: No tocante à alegação do Ministério Público quanto à demarcação de reserva legal prevista no § 2º do artigo 16 do Código Florestal, evidencio que o procedimento retificatório não é a via adequada para tal discussão, vez que não se insere nas hipóteses previstas no artigo 213 e §§, da Lei n. 6.015/73. Nesse sentido, vale transcrever julgado do eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE ÁREA – PEDIDO DE AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL DEFERIDO – INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA PARA TAL FIM. 374 • Direito Processual Coletivo Mesmo sendo induvidosa a legitimidade da atuação do representante do Ministério Público nos procedimentos retificatórios de registros públicos, ainda que se de natureza não contenciosa (Código de Processo Civil, artigos 82, III, in fine e 1.105, combinado com o artigo 84; LRP, artigo 213, § 3º), o certo é que a via retificatória indicada pelo artigo 213 e seus parágrafos da lei específica não é adequada para a resolução de debate envolvendo a compulsoriedade, ou não, da averbação da reserva legal a que alude o artigo 16, § 2º do Código Florestal (TJSP, AI 128.699-4, 6ª CDPriv., Rel. Des. ANTONIO CARLOS MARCATO, j. 21.10.1999). NEGO PROVIMENTO AO RECURSO. No entanto, o STJ reformou a decisão do TJMG, por entender que: - É possível extrair, do art. 16, §8º, do Código Florestal, que a averbação da reserva florestal é condição para a prática de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei 4.771/65. Como apontado pela própria Ministra relatora, a discussão da lide cingia-se a “estabelecer se o deferimento de pedido, formulado pelo proprietário, de retificação de área de imóvel rural, pode ser condicionado à prévia averbação, na respectiva matrícula, da reserva florestal estabelecida por lei”. Há relevantes argumentos contrários à manutenção desta exigência, como a falta de regulamentação de prazo para tal averbação, bem como a inexistência, nas palavras da relatora, de “qualquer menção a que seja averbada a reserva como condição para que se autorize a alienação, averbação ou desmembramento do imóvel”. No entanto, conforme admitido no próprio voto, “é necessário interpretar teleologicamente o referido art. 16 do Código Florestal para apurar, com os olhos voltados a todo o sistema de preservação ambiental, se a pretensão formulada pelo MP/MG merece guarida”. A partir desta interpretação teleológica, apontada para a efetivação da proteção ambiental, o julgado garante a proteção de direitos coletivos, ainda que em julgamento de ação de jurisdição voluntária. É patente que a proteção aos direitos metaindividuais deve ser garantida extra e judicialmente, seja em ação de jurisdição voluntária ou não. No entanto, as interpretações no sentido de conferir exigir a averbação de área de reserva legal como condição sine qua non para alterações dos registros de imóveis rurais são recentes, inobstante as alterações no Código Florestal a embasar este requerimento tenham sido nele incluídas ainda em 2001, há quase uma década. Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart 375 Esta exigência legal e esta nova interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça derivam, entre outras razões, da proteção aos Direitos Coletivos alçados ao patamar de fundamentos constitucionais desde 1988. E, neste caso em exame, há a colisão entre dois Direitos Fundamentais, quais sejam o Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado e o Direito à Propriedade, interdependentes como todos os Direitos Fundamentais. E nesta interdependência, a garantia à propriedade privada e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se equivalem, pois, nas palavras de Baracho Jr. (2000, p. 243), “é equivocado considerar a existência de categorias de direitos fundamentais, principalmente se isso tiver como conseqüência a possibilidade de, no plano da validade, se excluir um em benefício do outro”. Ainda na lição de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior (2000, p. 244), [...] as normas constitucionais que disciplinam a preservação, recuperação e melhoria do meio ambiente são normas informadas pelo paradigma do Estado Democrático de Direito, em sua interdependência com outros direitos e garantias a direitos fundamentais, como liberdade, propriedade e o princípio da proteção judiciária. Formam um todo indivisível no plano da validade jurídica. É importante, entretanto, considerar que no paradigma do Estado Democrático de Direito há uma multiplicidade de direitos fundamentais, que são indivisíveis no plano da validade jurídica, mas estão em constante tensão no plano da aplicação. E reconhecer tanto a indivisibilidade dos direitos fundamentais quanto o fato de que eles colidem entre si no plano da aplicação prática nos ajuda-nos a evitar problemas como os da exclusão de uns direitos fundamentais em favor de outros por razões sociais, políticas ou econômicas, ou de prevalência absoluta de alguns argumentos, desconsiderando-se direitos fundamentais individuais ou sociais. Por representarem a essência de uma Constituição, os direitos fundamentais possuem a máxima força principiológica, irradiando orientações para todo ordenamento jurídico, vinculando a atuação e interpretação de todos os operadores do direito e particulares. Para Gregório Assagra de Almeida (2006, p. 323), “as reformas no legislativo, a atuação do executivo, do judiciário e até o comportamento do particular devem obediência e respeito aos direitos fundamentais”. Dentre outras, duas das principais características principiológicas dos direitos fundamentais são a sua interpretação aberta e ampliativa e sua máxima força irradiadora. 376 • Direito Processual Coletivo Para Gregório Assagra de Almeida (2006, p. 323), a interpretação aberta e ampliativa: [...] possui dupla dimensão: uma, no sentido de que cada direito fundamental, em si, merece interpretação aberta e flexível, sempre ampliativa; outra, presente inclusive no § 2º, do art. 5º, da CF/88, confere abertura à própria Constituição como Lei Fundamental, no sentido de que o rol dos direitos fundamentais não é exaustivo, constituindo-se em rol aberto do tipo incorporativo. Prossegue o doutrinador afirmando que (2006, p. 323) [...] outra característica principiológica dos direitos fundamentais, que se constitui como de extrema relevância, é a da máxima força irradiadora e condutora do sistema jurídico e do comportamento dos operadores jurídicos em geral e dos particulares. Desta feita, conclui Gregório Assagra de Almeida que (2006, p. 310) Direitos Fundamentais são todos os direitos, individuais ou coletivos, previstos expressa ou implicitamente em determinada ordem jurídica e que representam os valores maiores nas conquistas históricas dos indivíduos e das coletividades, os quais giram em torno de um núcleo fundante do próprio Estado Democrático de Direito, que é justamente o direito à vida e à sua existência com dignidade. E segue ensinando que (2006, p. 291) [...] é com base na teoria dos direitos constitucionais fundamentais, consagrada expressa ou implicitamente em determinada ordem jurídica, que devem ser construídos os modelos explicativos, vinculatórios da conduta do legislador, do administrador, do juiz e até mesmo do particular, apesar de nesta última hipótese haver discussão doutrinária e jurisprudencial, principalmente no Direito Comparado. Assim, conforme Sampaio (2003, p. 91), Direitos Fundamentais não são apenas direitos no sentido jusprivatista. São vinculações, mandados objetivos referidos a aspirações, necessidades e interesses humanos que se adscrevem ora como nítidos dispositivos de direitos subjetivos, ora como enunciados de princípios e tarefas estatais (e às vezes individuais e sociais) de hierarquia constitucional, Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart 377 e que têm como uma de suas marcadas características a interdependência entre estes direitos fundamentais, pois, conforme Almeida (2006, p. 291), “apesar da autonomia conferida a cada um, há pontos de intersecções entre eles, objetivando o alcance das finalidades para as quais eles existem”. A solução encontrada pelo STJ é a conformação dos direitos fundamentais à propriedade privada e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, aplicandose ao caso uma interpretação biocentrista do direito, ao condicionar o exercício do direito de retificação do registro imobiliário – de cunho individual no caso em tela, de aumento da área lançada no Cartório de Imóveis – ao cumprimento da exigência da averbação da área de reserva legal – de feição notadamente de direito coletivo, pois garante a proteção da área reservada de mata. No entanto, parece-nos que em sua aplicação prática a decisão pode gerar dúvidas, eis que se o registro imobiliário informa que a área é de 35.40 hectares, a medição efetuada pelos autores recorridos atesta que a área real é de 347 hectares. Como, segundo o STJ, a averbação da reserva legal é condição para a retificação do registro, devendo ser realizada antes deste, surge um impasse: se os proprietários averbarem a reserva legal de 20% sobre a área registrada, ela não será mais que 2% (dois por cento) do total real da fazenda; ao contrário, se averbarem a reserva legal – sempre antes de retificarem a área no Cartório de Imóveis, por exigência do decisum – de 20% sobre a área real, a parcela de reserva legal será maior que o total da área registrada, razão pela qual o titular do cartório imobiliário não poderá averbar tal ato. 4. Conclusão Vimos, sem a profundidade que o tema merece, um louvável exemplo de boa compatibilização entre o exercício do direito de propriedade, de cunho mais individual, com o direito ao meio ambiente equilibrado, eminentemente coletivo. A decisão do Superior Tribunal de Justiça, como proferida, não afasta a possibilidade de exercício do direito do proprietário de retificar a área do imóvel no cartório de registro imobiliário, mas sim condiciona o exercício desta prática ao cumprimento prévio de exigências legais que protegem direitos metaindividuais constitucionalmente garantidos. Desta feita, a decisão comentada, de vincular qualquer modificação na matrícula do imóvel à averbação da reserva legal no cartório imobiliário, parece-nos ajustada com a melhor e mais moderna doutrina. No entanto, também nos parece que faltou à decisão aclarar como e em qual tamanho a área de reserva legal deveria ter sido anteriormente averbada para que a retificação do registro imobiliário pudesse ser operada. 378 • Direito Processual Coletivo 5. Referências ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito coletivo brasileiro: autonomia metodológica e superação da summa divisio direito público e direito privado pela summa divisio constitucionalizada e relativizada direito coletivo e direito individual. 2006. 842 f. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ANTUNES, Paulo de Bessa. Poder judiciário e reserva legal: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 21, n. 6, p. 103-131, jan./mar. 2001. ______. Estaria revogado o artigo 2º do Código Florestal? Disponível em <http:// paulobessa.rcambiental.com.br/2009/10/estaria-revogado-o-artigo-2%C2%BA-docodigo-florestal/>. Acesso em 15 nov. 09. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. BENJAMIN, Antônio Herman. Desapropriação, reserva florestal legal e áreas de preservação permanente. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de (Org.). Temas de direito ambiental e urbanístico. São Paulo: IBAP, 1998. BRANDÃO, Júlio Cezar Lima. Aspectos jurídicos das florestas de preservação permanente e das reservas legais: proteção ambiental e propriedade. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 6, n. 22, p. 114-146, abr./jun. 2001. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 25 fev. 2008. ______. Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Institui o novo Código Florestal. Diário Oficial da União, Brasília, 16 set. 1965. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/LEIS/L4771.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009. ______. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6015compilada.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009. ______. Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nos 10.683, de 28 de maio de 2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, 4.771, de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 6.015, de 31 de Matheus Gomes Quirino • Leandro Henrique Goulart 379 dezembro de 1973; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 3 mar. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2006/ Lei/ L11284.htm>. Acesso em: 14 nov. 2009. LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1987. SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e meio ambiente na perspectiva do direito constitucional comparado. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de direito ambiental na dimensão internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 380 • Direito Processual Coletivo Técnica ATENDIMENTO PRIORITÁRIO A IDOSO ALMIR ALVES MOREIRA Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais Recurso n.º 762/2008 Processo Administrativo n.º 253/2004 Comarca de Belo Horizonte Recorrente : Banco Mercantil do Brasil S.A. Recorrido: Procon Estadual R E LAT Ó R I O No dia 3 de setembro de 2004, o PROCON ESTADUAL fiscalizou a agência do BANCO MERCANTIL DO BRASIL S.A. localizada na Rua Rio de Janeiro, n.º 680, Município de Belo Horizonte, e lavrou auto de infração, nele consignando que teriam sido constatadas as seguintes irregularidades: a) o número de telefone da Central de Atendimento ao Público do Banco Central do Brasil, embora informado por meio de cartaz, não vinha acompanhado da observação de que esse número se destinava ao atendimento a denúncias e reclamações, descumprindo-se, destarte, o parágrafo único do artigo 2º da Resolução BACEN n.º 2.878/2001; b) não estava sendo observado o prazo de quinze minutos para o atendimento do consumidor, com afronta ao artigo 1º da Lei Estadual n.º 14.235/2002; c) não se disponibilizavam assentos para os idosos nas proximidades das filas de atendimento, desrespeitando-se o artigo 71, §§ 3º e 4º, da Lei Federal n.º 10.741/2003; d) não estava sendo assegurado ao portador de deficiência física o efetivo acesso às dependências da agência bancária, desrespeitando-se, com isso, o artigo 3º da Lei Estadual n.º 11.666/94; Almir Alves Moreira • 381 e) não se mantinha cadeira de rodas à disposição do portador de deficiência e do idoso, com violação do parágrafo 4º do artigo 3º da Lei Estadual n.º 11.666/94, acrescido pela Lei Estadual n.º 14.924/2003. Instaurado o processo administrativo e assegurados o contraditório e a ampla defesa, sobreveio a Decisão de fls. 62/76, que rejeitou a preliminar de inconstitucionalidade das mencionadas leis estaduais e, no mérito, julgou configuradas as infrações imputadas ao autuado, com exceção da descrita no item “c”, aplicando a ele a pena de multa no valor de R$ 31.292,03 (trinta e um mil duzentos e noventa e dois reais e três centavos). Quanto à infração considerada não comprovada, Sua Excelência assentou: [...] noto que houve um pecadilho do fiscal ao enquadrar como infração a falta de assento nas proximidades da fila, exigência esta que não consta do texto de lei. Com efeito, o § 4º do artigo 71 da Lei 10.741/03 não exige a instalação de assentos para as pessoas idosas que estejam na fila, mas sim o atendimento preferencial destas, com reserva de guichês devidamente identificados para esse fim. Inconformado, o Banco Mercantil do Brasil S.A. recorreu para este Órgão Colegiado, insistindo na tese de que as Leis Estaduais n.ºs 11.666/94 e 14.235/2002 são manifestamente inconstitucionais, porquanto, no seu entender, elas tratam de matéria da competência privativa da União, a quem cabe legislar sobre o funcionamento das instituições financeiras. Alegou, ainda, que, no tocante à lei que fixa tempo para o atendimento, “encontra-se amparado por segurança a ele concedida em processo próprio para ver sustar os efeitos da referida lei”. De outro lado, asseverou: [...] já fora assinado entre a Recorrente e o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, um Termo de Ajustamento de Conduta, datado de 20 de novembro de 2007, dispondo sobre todas estas matérias, especificamente sobre a acessibilidade e tratamento de portadores de deficiência física e regras de atendimento a clientes, inclusive prioritários. Este termo que, como dito, fora assinado em 20 de novembro de 2007, estabelece várias regras e procedimentos que deverão ser adotados pelo Banco Recorrente sob pena de multa, estabelecendo o prazo de 20 meses para a final implementação das providências ali contidas. Portanto, constata-se já existir, em data em muito anterior à prolação da decisão guerreada, causa suspensiva de punibilidade, verdadeira transação realizada entre o Recorrente e o Estado de Minas Gerais através de sua Promotoria, razão pela qual não é cabível a imposição de qualquer sanção sobre os fatos aqui discutidos, a não ser que por descumprimento dos termos constantes do TAC, quando ultrapassado o prazo 382 • Direito Processual Coletivo previsto para cumprimento. Por tal motivo é que fora solicitada a suspensão do presente feito até final assinatura do TAC anteriormente referido, posto que ambos os procedimentos guardam exata correlação de matérias, não sendo admissível, dentro da garantia constitucional do non bis in idem, dois procedimentos punitivos sobre os mesmos fatos. [...] Tais fatos impedem, por conseqüência lógica inafastável, a manutenção da decisão ora guerreada, vez que o Recorrente ainda se encontra dentro do prazo concedido pelo Poder Público para ajustamento de sua conduta e obediências as largas disposições contidas no TAC anteriormente citado. Por fim, afirmou que no interior da agência havia cartaz informando o telefone do Banco Central do Brasil, cumprindo-se, assim, a exigência regulamentar. Com esses argumentos, o recorrente requer a reforma da decisão hostilizada. Eis, em síntese, os fatos. À douta revisão. Belo Horizonte, 10 de agosto de 2009. ALMIR ALVES MOREIRA PROCURADOR DE JUSTIÇA Almir Alves Moreira • 383 Recurso n.º 762/2008 Processo Administrativo n.º 253/2004 Comarca de Belo Horizonte Recorrente : Banco Mercantil do Brasil S.A. Recorrido: Procon Estadual ACÓRDÃO Vistos etc., acorda a Junta Recursal do PROCON Estadual de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, incorporando neste o relatório de fls., à unanimidade de votos, CONFIRMAR A DECISÃO NA PARTE SUBMETIDA A REEXAME E DAR PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO VOLUNTÁRIO, TÃO SOMENTE PARA EXCLUIR A INFRAÇÃO RELACIONADA COM A AUSÊNCIA DE RAMPAS DE ACESSO AO INTERIOR DA AGÊNCIA, RESULTADO QUE NÃO ALTERA A SANÇÃO APLICADA. Belo Horizonte, 19 de agosto de 2009. ALMIR ALVES MOREIRA Procurador de Justiça VOTO Inicialmente, impõe-se salientar que a decisão que considerou não configurada uma das infrações representa, nessa parte, arquivamento do processo administrativo, sujeitando-se, pois, ao reexame necessário, nos termos do artigo 23, parágrafo 5º, da Lei Complementar n.º 61/2001 e do artigo 26 da Resolução PGJ n.º 68/2008. Irrelevante o fato de o Julgador a quo não ter observado essa regra. Nada impede que a Junta Recursal exerça a sua função revisora e, de ofício, aprecie os fundamentos declinados para o arquivamento implícito. Destarte, o decisum será analisado também no âmbito do reexame necessário. REEXAME NECESSÁRIO O item 3.1 do Formulário de Fiscalização n.º 12 tem o seguinte conteúdo: 3.1 O fornecedor proporciona atendimento prioritário ao idoso, assim considerada a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, garantindo o fácil acesso aos assentos e caixas, identificados com a destinação a idosos em local visível e caracteres legíveis? (Lei nº 10.741/03, art. 71, §§ 3º e 4º). Sim ( ) Não ( ) Se negativa a resposta: autuar e descrever a ocorrência no CAMPO 04 do formulário. 384 • Direito Processual Coletivo Ao responder a esse item, o agente do Procon assinalou a opção “não” e, a seguir, no campo 04, consignou: “Proporciona atendimento prioritário ao idoso, mas não disponibiliza assentos nas proximidades da fila dos guichês de caixa”. (fl. 6) Pelo que compreendi do relato feito pelo fiscal, existiam assentos corretamente identificados e destinados ao atendimento prioritário dos idosos, inclusive com as informações necessárias ao fácil acesso, mas espalhados pelo interior da agência, distantes da fila de atendimento. Se estiver correta essa interpretação, há de se reconhecer que a hipótese, embora não recomendasse a autuação – visto que a norma legal não define o local de instalação dos assentos –, merece melhor análise e, quiçá, a edição de recomendação. Explico. O parágrafo 4º do artigo 71 da Lei Federal n.º 10.741/2003 dispõe que, para o atendimento prioritário do idoso, será garantido a ele o fácil acesso aos assentos e caixas, identificados com a destinação a idosos em local visível e caracteres legíveis. Por sua vez, o parágrafo único, inciso I, do seu artigo 3º preceitua que a garantia de prioridade compreende atendimento preferencial imediato e individualizado. Portanto, atendimento prioritário é sinônimo de atendimento preferencial, que garante ao idoso o direito de receber o serviço de forma ágil e fácil, sem se sujeitar a filas comuns, porém com a utilização da mesma estrutura destinada ao atendimento dos demais clientes. Não se exige estrutura específica com funcionários, caixas e assentos exclusivos para tal finalidade. O idoso tem o direito de receber o atendimento na primeira oportunidade, passando na frente dos clientes que não gozam dessa garantia. Pois bem. Se esse direito de preferência fosse efetivamente garantido, evidente que não haveria necessidade de assentos destinados a idosos nas proximidades das filas de atendimento, já que o tempo de espera seria só o necessário para a conclusão dos serviços que estivessem sendo prestados. E o funcionário do caixa que primeiro terminasse o atendimento chamaria o idoso para prestar-lhe os serviços. Entretanto, a Resolução BACEN n.º 2.878/2001 confere algumas alternativas às instituições financeiras como forma de garantir o atendimento prioritário ao idoso, algumas, a meu ver, incompatíveis com a Lei Federal n.º 10.741/2003. São elas: lugar privilegiado em filas, distribuição de senhas com numeração adequada ao atendimento preferencial, guichê de caixa para atendimento exclusivo e implantação de outro serviço de atendimento personalizado (art. 9º, I). Sem adentrar a questão da compatibilidade de tal norma com a Lei Federal n.º 10.741/2003 – o que deverá ser objeto de estudo mais aprofundado –, fica claro que a adoção de algumas dessas alternativas implicaria também o dever de a instituição financeira instalar assentos preferenciais nos locais de atendimento. Afinal, destinar Almir Alves Moreira • 385 guichê exclusivo para o atendimento das pessoas que têm direito de preferência acaba gerando fila entre essas pessoas, obrigando-as a permanecer em pé durante muito tempo, com os desconfortos naturais da espera. De qualquer forma, esse entendimento estaria fundado em interpretação, pois, conforme salientado, as normas que tratam do tema não identificam os locais em que os assentos preferenciais devem ser instalados. Não se pode, portanto, querer punir o autuado apenas porque os assentos foram instalados em outros locais. Diante dessa realidade, confirmo a decisão na parte submetida ao reexame necessário. RECURSO VOLUNTÁRIO Importante ressaltar, de início, que não se confundem o Procon Estadual e a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência e Idosos. Embora ambos sejam da estrutura do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, suas atribuições são distintas; e o fato de a referida Promotoria de Justiça ter instaurado inquérito civil para apurar se o Banco Mercantil do Brasil S.A. cumpria as normas que garantem direitos às pessoas portadoras de deficiência e idosas não significa que o Procon, órgão administrativo detentor de poder de polícia, esteja impedido de realizar fiscalização e de aplicar penalidades. Ressalta-se, ainda, que o recorrente não fez prova da alegação de que celebrou TAC com a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência e Idosos sobre as questões que são tratadas neste processo administrativo. E, ademais, ainda que tal ajuste tenha sido celebrado, essa iniciativa não teria o condão de produzir efeitos retroativos a ponto de impedir o exercício do poder de polícia do Procon em relação às infrações consumadas. Em outras palavras: o termo de ajustamento de conduta eventualmente celebrado com a Promotoria de Justiça tem por objetivo resolver o problema para o futuro, sem prejudicar providências adotadas pelos órgãos de fiscalização e de defesa do consumidor pertinentes a infrações anteriores. De mais a mais, é bem provável que o referido termo de ajustamento – caso tenha sido celebrado – disponha apenas sobre a implantação das obras necessárias à adequação do prédio da agência bancária às normas do artigo 3º da Lei Estadual n.º 11.666/94, sem adentrar a questão referente ao tempo máximo para o atendimento do cliente, porquanto essa é de interesse geral dos consumidores, e não exclusivamente de pessoas portadoras de deficiência e idosas, fugindo, assim, da atribuição daquela Promotoria. 386 • Direito Processual Coletivo Com efeito, ad argumentandum, mesmo que o termo de ajustamento de conduta exista e se admita que ele possa interferir na atuação do Procon, tal obstáculo ficaria restrito ao objeto do ajuste, sem prejudicar o processo administrativo na parte em que aborda as demais irregularidades noticiadas no auto de infração, inclusive porque estas jamais exigiram providências complexas ou demoradas para que pudessem ser sanadas. Outro ponto suscitado pelo recorrente, e que merece abordagem inicial, diz respeito à alegação de que ele estaria protegido por decisão judicial que suspendeu os efeitos da lei estadual que fixa tempo para o atendimento do cliente. Data venia, além de o recorrente não ter feito prova alguma da existência dessa decisão, tudo indica que a alegação não tem pertinência com o caso dos autos. Na peça de defesa juntada às fls. 08/10, ele afirmou que a ação judicial (mandado de segurança) foi proposta contra lei municipal que tratou de tema idêntico, e não contra a lei estadual. De qualquer forma, ainda que seja verídica aquela afirmativa, há de se lembrar que a relação jurídica estabelecida naquele processo se restringiu ao banco impetrante e ao município que editou a lei impugnada, alicerçada em conflito individual, e, consequentemente, a decisão ali proferida produziu efeitos inter parte, sem nenhuma repercussão nas atividades do Procon Estadual. Lembre-se, ademais, que eventual decisão favorável ao banco naquela ação não tem o condão de também inibir a atuação do Procon, pois a discussão ali travada teria por objeto ato normativo diverso daquele que embasou a lavratura do auto de infração. Feitas essas observações, rechaçarei, agora, a tese de inconstitucionalidade das Leis Estaduais n.ºs 11.666/94 e 14.235/2002. Antes, porém, convém esclarecer que os prestadores de serviços bancários se sujeitam às normas consumeristas, tema, aliás, tornado incontroverso com o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (ADIN n.º 2.591-DF). A Excelsa Corte, na sessão realizada no dia 7 de junho de 2006, ao analisar o § 2º do artigo 3º do CDC, considerou-o constitucional e assentou que as instituições financeiras são, todas elas, alcançadas pelas normas do Código de Defesa do Consumidor, salvo no que tange ao custo das operações ativas e à remuneração das operações passivas praticadas na exploração da intermediação de dinheiro na economia. Ou seja, excluídas as operações estritamente financeiras, os demais serviços prestados pelos bancos envolvem relação de consumo, como, por exemplo, acesso às agências bancárias, tempo de espera nas filas, consulta de saldo, obtenção de extrato e outros serviços bancários destinados ao atendimento das necessidades dos clientes e a contemplar o respeito à sua dignidade, saúde e segurança. Almir Alves Moreira • 387 Acrescente-se, outrossim, que também o Superior Tribunal de Justiça tem decidido reiteradamente que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras, o que ensejou a edição da Súmula n.º 297. Consequentemente, as normas de proteção ao consumidor – sejam elas federais, estaduais ou municipais –, desde que não interfiram nas atividades financeiras dos bancos, deverão ser respeitadas por essas instituições, porquanto a competência para legislar sobre produção e consumo, sobre responsabilidade por danos ao consumidor e sobre a proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência e dos idosos foi deferida concorrentemente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (art. 24, V, VIII e XIV; e art. 30, I, da CF). Com efeito, os legisladores estaduais mineiros – quando determinaram que nos edifícios de uso público (aqueles que abrigam atividades que se caracterizam por atendimento ao público) devem ser mantidas cadeiras de rodas para uso gratuito do portador de deficiência e do idoso, com indicação obrigatória do local de sua retirada (Lei n.º 11.666/94, art. 3º, § 4º), e que os clientes das instituições financeiras devem ser atendidos no prazo máximo de quinze minutos, tempo controlado por meio de senha (Lei n.º 14.235/2002, arts. 1º e 2º) – não invadiram matéria de competência exclusiva da União, tampouco matéria afeta à atividade financeira. Apenas estabeleceram normas para facilitar o atendimento geral e o acesso de pessoas com necessidades especiais aos edifícios de uso público, matérias relacionadas com a proteção do consumidor. A propósito, o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais enfrentou a questão e reconheceu a constitucionalidade dessas leis. Confiram-se os seguintes arestos: [...] 2. ART. 3°, § 4º, DA LEI ESTADUAL N° 11.666/94, (MANTER NA AGÊNCIA CADEIRA DE RODAS PARA USO GRATUITO DE PORTADOR DE DEFICIÊNCIA E DE IDOSO, BEM COMO INDICAÇÃO DO LOCAL ONDE ESSA CADEIRA ESTIVER). [...] o Executivo Estadual regulamentou a referida Lei Estadual nº 11.666/1994, por meio do Decreto Estadual nº 43.926/2004. Embora esta regulamentação do Poder Executivo somente tenha entrado em vigor após a fiscalização realizada pelas autoridades reputadas como coatoras, é razoável entender que, nesta situação, não há impedimento a produção de eficácia da norma do parágrafo 4º, do artigo 3º, pois nela não há, expressamente, a norma jurídica que determine a regulamentação. Com efeito, a norma ora impugnada neste mandamus é de plena aplicabilidade por não conter nenhuma situação que impeça sua eficácia jurídica. Além disso, a observância do preceito normativo combatido, em verdade, constitui-se na garantia de direitos fundamentais do indivíduo. É a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento e princípio fundamental da República Federativa 388 • Direito Processual Coletivo do Brasil, de cumprimento obrigatório por todos os entes Federativos, conforme artigo 1º, inciso III, da CR/88. 3. Recurso parcialmente procedente. (Apelação n.º 1.0079.04.175850-3/001, Rel. Des. Brandão, j. 18.04.2006) LEIS ESTADUAIS 11.666/94 e 14.235/02 – ATENDIMENTO AO CLIENTE DE INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS – COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DO ESTADO – FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – CONSTITUCIONALIDADE – AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO PELO EXECUTIVO ESTADUAL – IRRELEVÂNCIA. 1 - Os Estados têm competência suplementar para legislar sobre normas de defesa do consumidor, a fim de atingir a finalidade da Política Nacional da Relação de Consumo, especificadamente no respeito à dignidade do consumidor. 2 – A lei prescinde de regulamentação, quando contém em seu texto todos os elementos necessários à sua correta aplicação, nada havendo a ser minudenciado ou especificado. (Apelação n.º 1.0105.05.147756-7/001, Rel. Des. Manuel Saramago, j. 02.08.2007) DIREITO DO CONSUMIDOR. LEI ESTADUAL 11.666/94. EXIGÊNCIADE CADEIRADE RODAS EM ESTABELECIMENTO BANCÁRIO. CONSTITUCIONALIDADE. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR, DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E DO IDOSO. RESOLUÇÃO BACEN. COMPETÊNCIA FISCALIZATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ORDEM DENEGADA. APELO DESPROVIDO. 1. A Lei Estadual 11.666/94, que impõe aos estabelecimentos de uso do público, entre os quais as agências bancárias, disponibilizarem “cadeira de rodas para uso do portador de deficiência física e do idoso”, não invade competência da União para legislar sobre matéria financeira, vez que a regra ali estabelecida é de proteção ao consumidor bem como ao deficiente físico e idoso. 2. Para justificar a atuação do Ministério Público, um dos órgãos incumbidos da proteção e defesa do consumidor, pouco importa que a regra de proteção ao consumidor tenha sido estabelecida por autarquia federal. O que importa é que se trate de norma inserida no âmbito das relações de consumo entre o impetrante e os usuários de seus serviços. (5ª Câmara Cível, Apelação n.º 1.0317.04.045343-1/001, Rel. Des. Nepomuceno Silva, j. 01.12.2005) MANDADO DE SEGURANÇA – LEIS ESTADUAIS Nº 11.666/94 E Nº 14.235/02 – UNIÃO, ESTADO E MUNICÍPIO – REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIA – USURPAÇÃO – VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 21, XXIV, 22, 25, § 1º., E 192 DA CF, E ARTIGOS 9º, VIII, E 17 DA LEI Nº 4.595/64 E LEI Nº 7.102/83 – INEXISTÊNCIA – AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO – LEGALIDADE DO ATO. Não há falar Almir Alves Moreira • 389 em arbitrariedade do ato impugnado quando este se encontra amparado por lei de competência concorrente e suplementar dos Estados, situação ensejadora da denegação da segurança, vez que inexistente direito líquido e certo a ser protegido. (6ª Câmara Cível, Apelação n.º 1.0071.04.018651-3/001, Rel. Des. Edílson Fernandes, j. 11.12.2007) Da mesma forma, o colendo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao apreciar incidente de inconstitucionalidade de leis municipal e estadual que determinavam a disponibilização de cadeira de rodas para atendimento aos idosos nas agências bancárias, considerou-as constitucionais, enfatizando que os Estados e Municípios têm competência concorrente para legislar sobre assuntos de interesse local, tais como o atendimento a idosos e deficientes nos estabelecimentos bancários, o que não invade a competência da União, que diz respeito aos mercados financeiros (Órgão Especial – Argüição de Inconstitucionalidade n.º 06/2005, Rel. Des. Sylvio Capanema de Souza, j. 10.10.2005). Também não destoam dessa orientação os seguintes precedentes de outros tribunais pátrios: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. LEI MUNICIPAL. REGULAMENTANDO O TEMPO DE ATENDIMENTO AOS CLIENTES NOS ESTABELECIMENTOS BANCÁRIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. INEXISTÊNCIA. DEFESA DO CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA LEGISLAR SOBRE MATÉRIA DE INTERESSE LOCAL. DESPROVIMENTO DO RECURSO. A competência para dispor sobre matéria relativa ao Sistema Financeiro e Econômico pertence à União, mas somente no tocante à atividade fim, exercida pelos bancos. Assim, não ofende direito líquido e certo do Apelante a Lei Municipal que apenas defende os direitos do consumidor, para melhor atendimento, restando, assim, afastada a tese de invasão de competência legislativa federal. (TJPR - Apelação Cível n.º 302.270-6, 17ª Câmara Cível, Rel. Juiz Convocado Francisco Luiz Macedo Junior, j. 19.07.2006) Constitucional. Consumidor. Mandado de Segurança. Ordem concedida. Banco. Lei Municipal estabelecendo tempo máximo para atendimento do público. Constitucionalidade. Precedentes do STF. A jurisprudência do STF orienta-se no sentido da validade de lei municipal, que estabelece prazo máximo para o cliente esperar o atendimento em filas nas agências bancárias. É que “a matéria não se confunde com a atinente às atividades-fim das instituições bancárias”. Recurso provido. (TJRJ, 13ª Câmara Cível, Apelação n.º 2005.001.32323, Rel. Des. Nametala Machado Jorge, j. 19.04.2006) Mandado de segurança – Fila em banco – A competência para legislar sobre filas de espera em agência bancária é do Município. Precedente do Egrégio Supremo Tribunal Federal. Preliminares superadas. Recurso improvido. (TJSP, 2ª Câmara 390 • Direito Processual Coletivo de Direito Público, Apelação n.º 213.332.5/1-00, Rel. Des. Lineu Peinado, j. 07.02.2006) O próprio Supremo Tribunal Federal – a quem compete dirimir, em definitivo, a controvérsia que envolva constitucionalidade de normas – já deliberou a respeito do tema, e reconheceu que o tempo máximo de espera na fila é assunto de interesse local, podendo ser disciplinado, inclusive, em lei municipal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. CONSUMIDOR. INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. ATENDIMENTO AO PÚBLICO. FILA. TEMPO DE ESPERA. LEI MUNICIPAL. NORMA DE INTERESSE LOCAL. LEGITIMIDADE. Lei Municipal n. 4.188/01. Banco. Atendimento ao público e tempo máximo de espera na fila. Matéria que não se confunde com a atinente às atividades-fim das instituições bancárias. Matéria de interesse local e de proteção ao consumidor. Competência legislativa do Município. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE n.º 432.789-SC, Rel. Min. Eros Grau, j. 14.06.2005) RECURSO EXTRAORDINÁRIO – RAZÕES – HARMONIA COM PRECEDENTE DO SUPREMO – EFEITO SUSPENSIVO. A harmonia do inconformismo versado nas razões do recurso com precedente do Supremo conduz ao empréstimo de eficácia suspensiva ao extraordinário interposto. COMPETÊNCIA NORMATIVA – MUNICÍPIO – BANCOS – FILAS – CÓDIGO DO CONSUMIDOR. Tem-se como demonstrada a relevância do pedido formulado e o risco de manter com plena eficácia o quadro impugnado mediante o recurso extraordinário quando sustentada a competência do Município para legislar sobre o tempo de atendimento em agência bancária - precedente: Recurso Extraordinário nº 432.789-9/SC, relatado pelo ministro Eros Grau na Primeira Turma, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 7 de outubro de 2005. (AC-MC n.º 1124-SC, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 09.05.2006) Destaque-se, ainda, que o fato de a Lei Federal n.º 10.098/2000 estabelecer norma geral para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência, assegurando-lhes prioridade de atendimento, não impede que o legislador estadual, no exercício de sua competência concorrente (art. 24, XIV, CF), imponha obrigações compatíveis com tal norma, conforme se infere do § 2º do artigo 24 da Constituição Federal, que preceitua: “Art. 24 [...]. § 2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados”. E, para finalizar essa questão da constitucionalidade, anote-se que as mencionadas leis estaduais guardam também compatibilidade com o princípio da isonomia. Isso porque a Lei n.º 11.666/94, ao exigir a disponibilização de cadeira de rodas, estende-se a todos os edifícios de uso público, não se resumindo àqueles ocupados por instituições financeiras. Almir Alves Moreira • 391 Por sua vez, no que tange à lei que dispõe sobre o tempo de atendimento a clientes em estabelecimento bancário (Lei n.º 14.235/2002), dirigida exclusivamente a tais entidades, justifica-se o tratamento diferenciado. Afinal, não se pode esquecer que algumas das relações jurídicas que envolvem consumidores e instituições financeiras não estão alicerçadas no princípio da oferta e da procura e na liberdade de escolha. São impostas aos consumidores, sem que eles possam optar por outra forma de solução dos seus interesses, como, por exemplo, no caso dos aposentados e pensionistas, que obrigatoriamente devem comparecer a uma já definida agência bancária para retirar seus proventos e pensões, e dos servidores públicos ativos, que também se sujeitam às regras bancárias para receber seus vencimentos. O mesmo ocorre em alguns pagamentos de despesas, quitadas tão somente em agências bancárias, sem que o devedor tenha outra opção. Sendo assim, um mínimo se deve exigir em contrapartida: o usuário do serviço bancário não pode permanecer por horas nas filas de atendimento. E discordar disso seria mais uma forma de prestigiar o poder econômico em prejuízo da população. Como sabido, os que enfrentam filas não têm forças para, isoladamente, influenciar mudanças em certas regras de mercado, mormente por não poderem, em algumas circunstâncias, exercer o direito de opção. Anote-se que o artigo 192 da Constituição Federal, ao dispor que o sistema financeiro nacional deve ser estruturado de forma a servir aos interesses da coletividade, revela que tal atividade não representa simples segmento da ordem econômica, sob a só influência das regras da livre concorrência, liberdade do seu exercício e da oferta e da procura. As instituições financeiras, dada sua importância para o desenvolvimento do país, estão “vinculadas ao cumprimento de função social” (José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. RT, 7ª ed., p. 692). É por isso que o serviço bancário – que é de relevância social – não pode ser comparado com os setores da atividade estritamente privada, na qual a relação entre fornecedor e consumidor é pautada primeiro pelas regras da economia, com absoluta liberdade de escolha. São essas peculiaridades que tornam as instituições financeiras desiguais dos demais prestadores de serviços privados, pois, repita-se, as atividades bancárias são exercidas em um contexto em que o princípio da oferta e da procura se apresenta mitigado, inviabilizando a opção do usuário – mitigação que não se verifica nos demais segmentos econômicos privados. Elas, as instituições financeiras, também se distinguem dos prestadores de serviço público (saúde, seguridade social, justiça etc.) por terem natureza econômica e finalidade lucrativa, o que legitima o tratamento diferenciado. Em caso análogo, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 432.789-9-SC – ocasião em que foi analisada a constitucionalidade de lei que fixou o tempo de permanência do usuário dos serviços bancários na fila –, o Ministro Marco Aurélio assentou: 392 • Direito Processual Coletivo Legislou-se, atentando para a demanda no próprio município, a procura do estabelecimento bancário pelo munícipe, e se observou o princípio da proporcionalidade. Não posso comparar os bancos com a situação do INSS, em que as filas são intermináveis, a pessoa tem de chegar de madrugada para, talvez, naquele dia, de posse de uma senha, ser atendida. Aqui não, aqui estamos no âmbito de uma atividade econômica que os dados apontam como altamente lucrativa, e versou-se o período máximo de permanência na fila, de quinze minutos, devendo o banco precatar-se, colocar, mesmo diante da automação dos serviços, gente para atender aos munícipes. De fato, o princípio da isonomia, para ser tido como violado, reclama a constatação de que houve tratamento desigual para pessoas ou situações iguais, hipótese que não está presente no caso em exame. Em suma, demonstrado que as mencionadas normas estaduais são constitucionais, torna-se inquestionável a conclusão de que o autuado cometeu infração administrativa, já que a agência bancária fiscalizada não atendia os clientes no prazo de quinze minutos e não disponibilizava cadeira de rodas aos portadores de deficiência e idosos. No que tange à infração do parágrafo único do artigo 2º da Resolução BACEN n.º 2.878/2001, melhor sorte não assiste ao recorrente. A mencionada resolução do Banco Central – que dispõe sobre procedimentos a serem observados pelas instituições financeiras na contratação de operações e na prestação de serviços aos clientes e ao público em geral – preceitua: Art. 2º. [...] Parágrafo único. As instituições referidas no caput devem afixar, em suas dependências, em local e formato visíveis, o numero do telefone da Central de Atendimento ao Público do Banco Central do Brasil, acompanhado da observação de que o mesmo se destina ao atendimento a denúncias e reclamações, além do número do telefone relativo ao serviço de mesma natureza, se por elas oferecido. Tal ato normativo obriga as instituições financeiras a afixar em suas dependências, em local e formato visíveis, o número de telefone da Central de Atendimento ao Público do Banco Central do Brasil, acompanhado da observação de que esse número se destina ao atendimento de denúncias e reclamações, obrigação que será respeitada se os usuários dos serviços bancários puderem visualizar a informação e compreenderem a sua finalidade. Não basta apenas divulgar o número do telefone da Central de Atendimento ao Público do Banco Central do Brasil. Esse dado isolado, sem esclarecimento de sua destinação, seria inútil. O usuário do serviço bancário Almir Alves Moreira • 393 tem que saber que aquele telefone é destinado ao atendimento de denúncias e reclamações, justamente para que ele possa exercer a defesa dos seus direitos. Sendo certo que, in casu, o recorrente não cumpria integralmente tal obrigação quando fiscalizado pelo Procon Estadual – fato, aliás, confessado na defesa de fls. 08/10 –, torna-se impossível isentá-lo de responsabilidade. Finalmente, em relação à ausência de rampas de acesso à agência, penso que, nessa parte, a decisão merece ser reformada. Isso porque a Lei Estadual n.º 11.666/94 não estabeleceu prazo para a implementação de medidas que garantissem a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida e, consequentemente, no que tange à execução das obras arquitetônicas de adaptação, não se poderia, com base nela, exigir o imediato cumprimento da obrigação. A omissão foi suprida somente com o advento do Decreto Federal n.º 5.296, de 2 de dezembro de 2004, que regulamentou lei que estabeleceu normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida (Lei Federal n.º 10.098/2000), também aplicável nos âmbitos estadual e municipal. Tal decreto definiu o prazo de trinta meses – contado de sua publicação – para que os edifícios de uso público fizessem adaptações em sua estrutura de modo a garantir a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida (art. 19), prazo que se esgotou no mês de junho de 2007. Ora, no caso em tela, a fiscalização realizada pelo Procon Estadual ocorreu no dia 3 de setembro de 2004, quando nem sequer havia se iniciado o prazo concedido e, portanto, não havia como se atribuir ao fiscalizado a prática de infração. Óbvio, porém, que tal ineficácia da lei estadual se restringe à reforma física dos edifícios de uso público, não abarcando as obrigações inerentes às adaptações dos móveis, porquanto, nesse ponto, como bem salientou o Desembargador mineiro Jarbas Ladeira: [...] o § 4º do art. 3º da lei estadual em comento não foi atingido pelo decreto federal regulamentar, pois este concedeu prazo apenas no que tange à realização de obras para construção e adaptações arquitetônicas nas instalações físicas dos prédios de acesso ao público, para que em tais locais se facilite a locomoção e ingresso dos portadores de deficiência, não havendo que se falar na observância de tal prazo no que tange à colocação de cadeiras de rodas em locais públicos, vez que tais objetos são móveis, de fácil aquisição e disponibilização, não se confundindo com possíveis reformas a serem feitas nos prédios, hipótese que requer dispensa de tempo e recursos 394 • Direito Processual Coletivo razoáveis. Por tal motivo ocorreu a concessão de prazo nesses casos, situação que não se justifica quanto à hipótese de simples manutenção de cadeira de rodas para uso dos clientes do Banco Impetrante. (TJMG – Apelação Cível n.º 1.0611.05.015252-3/001, j. 21.02.2006) A propósito, a ementa desse acórdão foi assim redigida: Apelação cível. Mandado de segurança para impedir autuação, pelo descumprimento de lei estadual. Competência legislativa concorrente. Lei estadual que exige que os bancos disponibilizem cadeira de rodas para uso gratuito do portador de deficiência e do idoso. Conflito inexistente com as Leis Federais nº 10048/2000 e 10098/2000, que outorgam o prazo de 30 meses, para o cumprimento das normas atinentes ao acesso dos portadores de deficiência e dos idosos a prédios e locais abertos ao público. Conclusão Pelo exposto, confirmo a decisão na parte submetida ao reexame necessário e, de outro lado, dou parcial provimento ao recurso voluntário, tão somente para excluir a infração relacionada com a ausência de rampas de acesso ao interior da agência, resultado que não altera a sanção aplicada. Belo Horizonte, 19 de agosto de 2009. ALMIR ALVES MOREIRA Procurador de Justiça Almir Alves Moreira • 395 8 Artigo • 399 Jurisprudência • 421 Comentário à Jurisprudência • 422 Técnica • 432 Direito Público Constitucional 8 Artigo PRINCÍPIOS INSTITUTIVOS E INFORMATIVOS DOS RECURSOS CHARLEY TEIXEIRA CHAVES Mestre pela PUC Minas, Coordenador de pesquisa da FASPI e professor do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil e Processo Civil da FIC RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apontar os princípios basilares interligados aos recursos, bem como reestruturá-los dentro de uma visão constitucional. É feita, assim, uma revisitação de alguns conceitos ainda obscuros por estarem ligados a valores solipsistas. Passa-se pelo esclarecimento da importância dos princípios como normas criadoras de regras comportamentais vinculativas e sua repercussão para estruturalização de um recurso. PALAVRAS-CHAVE: Recursos; princípios recursais. ABSTRACT: This work objectives to point the main principles related to appeals in the Brazilian Law as well as to organize them according to a constitutional point of view. Therefore, one analyses concepts that are still obscure due to the fact that they are related to solipsist values. Furthermore one clarifies the importance of principles as norms that create behavioral binding rules and emphasizes their repercussion in the structuralization of an appeal. KEY WORDS: Appeals; reviewing principles. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípios fundamentais dos recursos. 2.1. Princípio do duplo “grau” de “jurisdição”. 2.2. Princípio da taxatividade. 2.3. Princípio da singularidade, ou unirrecorribilidade, ou unicidade. 2.4. Princípio da fungibilidade. 2.5. Princípio da proibição da reformatio in pejus. 2.6. Princípio da voluntariedade. 2.7. Princípio da lesividade do provimento. 2.8. Princípio da dupla conformidade ou doppio conforme. 2.9. Princípio da consumação. 2.10. Princípio da variabilidade dos recursos. 2.11. Princípio da complementaridade. 2.12. Princípio das decisões juridicamente relevantes. 2.13. Princípio da dialogicidade ou dialeticidade. 2.14. A distribuição dos recursos. 3. Considerações finais. 4. Referências bibliográficas. Charley Teixeira Chaves • 399 1. Introdução A presente pesquisa pretende abordar os princípios institutivos e informativos que fundamentam e regulam a utilização dos recursos. Os princípios serão apresentados como norma jurídica de característica expansiva ou genérica, sem perder de vista os limites condutores de interpretação e aplicação no caso concreto. Os referidos princípios sempre foram compreendidos como elementos irradiadores do ordenamento jurídico; um norteador da interpretação jurídica com finalidades restritivas no campo da integralização da norma ou como função supletiva, no caso de lacuna da lei. Outrora, aponta-se uma certa desvalorização dos princípios abordados como meros auxiliadores da interpretação da norma jurídica. Consta da legislação processual (procedimento) cível, no artigo 126 do Código de Processo Civil (CPC) que em caso de lacuna (nom liquet), o julgador estará autorizado utilizar “[...] a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. Em sentido próximo, encontra-se o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC). Percebe-se que os princípios eram sempre colocados em terceiro lugar. Coube ao pós-positivismo1 o tratamento adequado a todos os princípios, elevandoos à categoria de norma jurídica. Os princípios são espécies do gênero norma. Não deixam de ser norma jurídica por apresentar estrutura diversa das regras. O princípio é a “[...] norma de justificação ou de fundamentação da regra jurídica” (LEAL, 2004, p. 246), pois em “[...] resumo, de um princípio (ou princípios) poderão nascer várias regras jurídicas de múltiplos conteúdos, mas, uma vez transformadas em normas positivas (leis) identificam-se pelo conteúdo específico que as vincula ao ramo do Direito correspondente.” (LEAL, 1995, p. 4) A regra é a formalizadora que projeta e assegura a criação de direitos, isto é, norma legal. Quanto aos princípios, sempre são estabelecidos pela lei, mas têm conteúdo genérico e abrangente. Nas palavras de Rosemiro Pereira Leal (1995, p. 3) “[...] o princípio encontra sua concreção (solidificação) nas regras jurídicas conseqüentes e, estas, a seu turno, são fatores de embasamento do conteúdo da norma jurídica.” Continua a explicação de Leal (1995, p. 3): “[...] o princípio sempre conterá um sentido de validez genérica, sem perder a qualidade de gerar regras nas diversas especialidades da Ciência Jurídica”. Portanto, como explica Chaves (2004, p. 47), [...] “as Normas Constitucionais (leis + princípios) são fontes jurisdicionais do direito e garantia das partes”. Porventura os princípios não têm características secundárias ou terciárias, mas primárias por ser norma jurídica. Ao interpretar uma regra descritiva de um comportamento, o princípio 1 Pós-positivistas, como Friedrich Muller, Dworkin, Alexy, Canotilho e outros. Cf. (LEAL, 2002, p. 37). 400 • Direito Público Constitucional adequado será interpretado em conjunto com a regra específica ou, dependendo do caso, antes da regra em face da hierarquia das normas. Importante é a conceituação dos princípios como institutos, quando são denominados “princípios institutivos”. Leal (2004, p. 220) explica que o instituto refere-se a um “[...] agrupamento de princípios que guardam unidade ou afinidades de conteúdos lógicojurídicos no discurso legal.” E completa que instituição é um “[...] agrupamento de institutos (s) e princípios (s) que guardam unidade ou afinidade de conteúdos lógicojurídicos no discurso legal.” Os princípios chamados de “princípios institutivos”, presentes na Constituição, comportam desdobramentos e “[...] implicações teóricas de conotações enciclopédicas”. (LEAL, 2004, p. 102). Há princípios que são fruto de desdobramento dos princípios institutivos ou da instituição, corolário da expansividade (ANDOLINA; VIGNERA, 1990, p. 14) ou redesdobramento do instituto. Significa dizer que a norma constitucional expande toda sua vinculação ao ordenamento jurídico, pois dela se extrai toda principiologia estruturante do Estado e das suas instituições. Se, por acaso, esse princípio dividirse em outros consectários com afinidade indissociável de conteúdo, será também um princípio institutivo. Em síntese, há princípios (institutos) que exteriorizam diversos outros princípios (subprincípios). Portanto, quando se extraem de um princípio outros subprincípios, estes recebem a característica de institutos. Sendo assim, existem os chamados princípios informativos “[...] como variáveis lógico-jurídicos dos princípios institutivos”. (LEAL, 2004, p. 105).2 Neste contexto, serão abordados alguns princípios como institutos e outros como consectários destes, isto é, princípios informativos ou subprincípios. Para exemplificar essa variação, basta verificar que o princípio da ampla defesa é um princípio institutivo; dele decorrem outros princípios informativos, como o princípio da oralidade e da publicidade. Cabe ressalvar que não é nosso objetivo identificar, neste trabalho, todos os princípios institutivos e informativos, tendo em vista que isso extrapolaria a finalidade deste artigo; ademais, seria necessário um aprofundamento de diversos princípios para seu enquadramento nos princípios institutivos, resultando num trabalho um pouco mais denso e longo. Após os contornos iniciais desenvolvidos, passa-se ao estudo dos princípios ligados ao sistema recursal. 2 Em sentido diverso, Nelson Nery Júnior divide os princípios em informativos e em fundamentais. “Os informativos são considerados quase que como axiomas, pois prescindem de maiores indagações e não necessitam ser demonstrados.” Os princípios fundamentais “são aqueles sobre os quais o sistema jurídico pode fazer opção, considerando aspectos políticos e ideológicos.” (2000, p. 34-35). Charley Teixeira Chaves • 401 2. Princípios fundamentais dos recursos Antes de abordar os princípios fundamentais dos recursos, torna-se importante conceituar recurso. Defende-se recurso como um instituto garantido constitucionalmente, decorrente do art. 5º, incisos XXXV e LV. (ROCHA, 2007, p. 253). Nas palavras de Leal, o “[...] recurso é instituto de garantia revisional exercitável na estrutura procedimental, como forma de alongar ou ampliar o processo pela impugnação das decisões nele proferidas e não meio de dar continuidade ao exercício do direito-deação que se exaure, em cada caso, com a propositura do procedimento”. (LEAL, 2004, p. 192). Em decorrência da base constitucional dos recursos, Rocha explica alguns pontos que se extraem da visão constitucionalista dos recursos: (a) o legislador não pode editar um texto suprimindo genericamente o recurso; (b) o legislador não pode criar obstáculos excessivos, formalistas e desproporcionados, dificultando seu exercício; (c) o acesso aos recursos instituídos só pode ser limitado em face de outros direitos constitucionais, respeitado o princípio da proporcionalidade; (d) os membros do Judiciário devem interpretar e aplicar as normas sobre recursos do modo mais favorável a sua admissão. (ROCHA, 2007, p. 253). Trata-se de limites constitucionais que expandem e condicionam as normas infraconstitucionais que regulamentam as variações de procedimentos recursais. Essa garantia revisional (recurso), porventura, tem amparo constitucional, sendo permitidas às normas infraconstitucionais criarem uma diversidade de procedimentos (variabilidade e expansividade) (ANOLINA; VIGNERA, 1990, p. 14) para implementar a previsão constitucional do direito ao recurso, dentro dos limites contidos na própria Constituição.3 Assim, pode-se falar em Direito ao Recurso como procedimento de impugnação. Ex.: apelação, agravo e embargos declaratórios. Do outro lado, em “[...] Direito de recorrer que é direito material inviolável (constitucional, direito-garantia →incondicional)”. (LEAL, 2004, p. 300). 2.1. Princípio do duplo “grau” de “jurisdição” Antes de abordar as peculiaridades desse princípio, cabe destacar a impropriedade da terminologia empregada. Primeiro, a jurisdição é sempre una, sendo incorreto afirmar que exista um desdobramento dela. A jurisdição é o monopólio estatal para 3 Em sentido próximo defende (ROCHA, 2007, p. 253). 402 • Direito Público Constitucional estabelecer o direito pré-dito, isto é, com base na lei popular, construída através de seus representantes, em observância ao devido processo legislativo. Esse princípio, denominado de duplo grau de jurisdição [sic], remete-nos à idéia de que existe uma jurisdição de primeiro, segundo, terceiro e até quarto graus, o que não é verdade. Nunes esclarece que “[...] essa diversidade não é possível, uma vez que a jurisdição é una, qualquer que seja o conflito a se resolver, mesmo que seus órgãos, seus graus e seus atos sejam plúrimos”. (NUNES, 2003, p. 106). Araken de Assis (2007, p. 69) também alerta sobre a impropriedade terminológica da expressão duplo grau e explica: “[...] entre nós, a jurisdição revela-se imune a graus. O direito brasileiro adotou o princípio da unidade jurisdicional. A separação baseia-se na hierarquia, e não na qualidade intrínseca do corpo julgador”. Importante são os ensinamentos de Rosemiro Pereira Leal (2004, p. 235), os quais apontam que “[...] a Jurisdição é UNA, por isso não é penal, civil, especial, comum – o procedimento é que pode apresentar características variadas como penal, civil, especial e o Processo é único para reger todos os Procedimentos”. Cabe destacar que a jurisdição não é um simples meio do exercício do poder estatal, mas um direito humano fundamental de movimentar o Estado para apreciar as lesões ou ameaças a direitos. Nesse sentido, enfatiza Costa: A consagração e a constitucionalização das instituições processuais instigaram a reflexão jurídica no sentido de não se admitir mais a jurisdição com meio do exercício do poder estatal, mas, sim, como um direito fundamental de movimentar incondicionalmente o Estado na apreciação das pretensões levadas até ele. (COSTA, 2007, p. 44). Outro ponto preocupante desse princípio do duplo grau está na idéia de que a revisibilidade das decisões proferidas passará sempre por um órgão judicacional hierarquicamente superior ao anterior, com julgadores mais experientes, mas nem sempre isso ocorrerá. De acordo com alguns recursos (procedimentos recursais) previstos em nosso ordenamento jurídico, a decisão hostilizada passará por uma nova análise sem ser encaminhada a outro órgão judicacional hierarquicamente superior. Têm-se como exemplos os recursos de embargos de declaração e embargos infringentes que a decisão irresignada passa a ser revista pelo mesmo órgão julgador que proferiu a decisão anterior, sendo que nos embargos infringentes terão uma ampliação do número dos julgadores. Na competência originária de determinados tribunais também não serão encaminhados para outro tribunal hierarquicamente superior, porque não existe mais recurso ou porque o recurso será analisado pelo próprio órgão jurisdicional. Mais uma vez, a impropriedade da expressão duplo grau não se correlaciona aos desdobramentos e vertentes teóricas dos recursos. Assim, uma expressão aparentemente adequada para o princípio do duplo grau de jurisdição seria “duplo Charley Teixeira Chaves • 403 juízo sobre o mérito”, como se referiu Nunes4, citando Luiz Guilherme Marinoni ou, para nós, uma dupla decisão sobre um caminho processual percorrido, ainda que incompleto ou ininteligível, isto é, dupla análise das decisões jurisdicionais exaradas. A necessidade da dupla análise das decisões processuais passa por diversos fundamentos de ordem objetiva, subjetiva, error in judicando e error in procedendo; não serão aqui abordadas, porém, todas elas. Percebe-se que o vício mais grave de uma decisão que justificaria uma nova análise do mérito (dupla análise das decisões jurisdicionais) seria a violação dos princípios constitucionais, tais como ampla defesa, contraditório, isonomia, fundamentação das decisões, princípio da reserva legal e direito a advogado. Os princípios constitucionais institutivos são vinculativos e delimitativos do discurso processual. Deve-se adotar um medium lingüístico para nortear a discursividade procedimental, qual seja, a principiologia do processo para reger o debate sobre a construção das decisões. Os princípios do contraditório e da ampla defesa são faculdades e garantias personalíssimas dos litigantes, tendo os juízes o dever de assegurá-los sem nenhuma restrição. (LEAL, 2007, p. 265). Para Dhenis Cruz Madeira, “[...] o logos decisional do provimento, em especial, da sentença constitutiva, não cria direitos, porque esses só são criados com a observância do devido processo legislativo”. E prossegue: “ [...] o julgador e as partes não devem atuar apesar da lei, mas sim com a lei.” (MADEIRA, 2006, p. 142). Sem a observância desses princípios constitucionais, a decisão se torna incompleta à apreciação da matéria fática, ou porque as questões não foram submetidas ao debate, ou porque foram mal apreciadas, ou porque nem sequer foram observadas pelo julgador na decisão final. Nunes (2003, p. 148) explica que “[...] o instituto do recurso, em face do perigo e da possibilidade de um desenvolvimento incompleto da primeira instância, a permitir uma mácula do contraditório e da ampla defesa, passa a ser indissociável de nosso modelo constitucional de processo”. A dupla análise das decisões jurisdicionais representa sempre uma vantagem, porque não se pode desejar uma decisão rápida feita com o desprezo da principiologia formadora e colaboradora da construção do provimento final, quais sejam, os princípios constitucionais institutivos. 4 “O duplo grau poder-se-ia denominar, assim, como um ‘duplo juízo sobre o mérito’, de forma a permitir que para cada demanda sejam permitidas duas decisões válidas e completas proferidas por juízos diversos”. (NUNES, 2003, p. 106). 404 • Direito Público Constitucional Por outro lado, o certo que esse princípio (dupla análise das decisões jurisdicionais) não se encontra expressamente consignado na CF/88, o que admitiria a possibilidade de o legislador (o povo, através dos seus representantes) suprimir um ou alguns dos seus recursos (procedimentos recursais). A própria CF/88, no seu art. 121, §3º, estabelece que as decisões do TSE são irrecorríveis, com ressalva às matérias constitucionais. Entretanto, o Brasil ratificou (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992) a Convenção Americana dos Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, em seu art. 8, n. 2, h, que assegurou o duplo juízo apenas ao procedimento penal. Lembra Nelson Nery Júnior que “a garantia expressa no tratado parece não alcançar o direito processual como um todo, donde é lícito concluir que o duplo grau de jurisdição, como garantia constitucional absoluta, existe no âmbito do direito processual penal, mas não no do direito processual civil ou do trabalho.” (NERY JUNIOR, 2002 b, p.179). Poder-se-ia socorrer ao princípio da isonomia para estender o efeito daquela norma também às matérias cíveis. Miranda e Pizzol (2006, p. 8) afirmam que “[...] a previsão é implícita e decorre do fato de a Magna Carta ter mencionado a existência de tribunais (art. 92 e seguintes da Constituição Federal)”. Trata-se de uma atividade escalonada com competência recursal prevista na CF/88. Por outro lado, a necessidade da dupla análise das decisões jurisdicionais decorre do devido processo legal (MIRANDA, 2006, p. 7) bem como dos princípios do contraditório e da ampla defesa (LEAL, 2004, p. 191)5 quando não observados na sua completude. Mesmo na falta de recursos próprios pela ausência normativa ou pela supressão de recursos (medida legislativa), restam-nos os denominados sucedâneos recursais6, ações autônomas de impugnações que poderiam alcançar os objetivos análogos ao esperado por um recurso. Basta citar o Mandado de Segurança ação constitucional e o habeas corpus. Sempre que não existir na esfera da infraconstitucionalidade um recurso próprio, o Mandado de Segurança surge como instrumento capaz de se opor ao ato contestado. Gregório Assagra de Almeida ressalta a importância da utilização do mandado de segurança, em face da inexistência de recursos específicos para as decisões interlocutórias, como acontece no processo penal: Não podemos deixar de reconhecer que no campo do direito processual penal a aplicabilidade do mandado de segurança, atualmente, é bem mais ampla do que no direito processual civil, até porque não há, no processo penal, a recorribilidade de No mesmo sentido: NUNES, 2003, p. 149. São requisitos para utilização das ações autônomas: ausência de recurso próprio, não ocorrência da coisa julgada e requisitos próprios da ação utilizada. 5 6 Charley Teixeira Chaves • 405 todas as decisões interlocutórias. Ademais, o sistema recursal nele previsto possui inúmeras deficiências que justificam o alargamento do campo de incidência desse writ. (ALMEIDA, 2007, p. 516). O que não pode existir é uma decisão que viole os próprios elementos que contribuem para a formação da decisão jurisdicional; torna-se incompleta por desrespeitar os princípios constitucionais, elementos de validade de qualquer espécie de decisão democrática. Por fim, apesar da possibilidade de um recurso ser analisado pelo próprio prolator da decisão, o ideal é que a decisão seja analisada por um órgão colegiado e distinto do anterior, por ser mais democrático um tribunal com formação variada, advindo de juízes de carreira, de promotores (representantes do Ministério Público) e de advogados (como acontece na regra do quinto constitucional, art. 94 da CF/88). 2.2. Princípio da taxatividade O princípio da taxatividade está ligado ao princípio da reserva legal. Os recursos são criados por lei, não permitindo que as partes criem ao seu bel-prazer um mecanismo de irresignação (recurso). Também não são recursos os previstos nos regimentos internos dos tribunais por não terem passado pelo devido processo legislativo. Cabe destacar que é a lei que determina as formas de impugnação como recursos. O rol de recursos é sempre legal, construído através do devido processo legislativo, ainda mais que a iniciativa do projeto de lei é privativa da União, conforme art. 22, I, da CF/88, isto é, para quem defende os recursos como matéria processual. Para aqueles que defendem os recursos como procedimento, a competência para a iniciativa do projeto de lei será concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal (art. 24, XI, da CF/88). Outros mecanismos de irresignação são utilizados como se fossem recursos, apesar de não serem legalmente constituídos para esse fim: os denominados sucedâneos dos recursos, que acabam por fazer o papel dos próprios recursos com algumas peculiaridades que os afastam do enquadramento legal dos recursos. O importante é que seja utilizado na ausência de um recurso específico para irresignação da matéria discutida, com exceção do pedido de reconsideração que pode ser manejado antes do recurso próprio ou em conjunto com ele. Destaca-se que o pedido de reconsideração não suspende ou interrompe o prazo para o recurso próprio do ato hostilizado, nesse sentido realça Nery Júnior (2000, p. 69). O artigo 527, parágrafo único, do CPC, redação dada pela Lei n. 11.187, de 2005, permite que o relator reconsidere sua decisão, perceptível que o sistema procedimental Brasileiro adotou a técnica da reconsideração, situação também prevista no art. 523, § 2º do CPC. Por fim, podem-se citar outros exemplos de sucedâneos recursais: mandado de segurança contra ato jurisdicional, habeas corpus e ação rescisória (Cf. NERY JÚNIOR, 2000, p. 56-83). 406 • Direito Público Constitucional 2.3. Princípio da singularidade, ou unirrecorribilidade, ou unicidade Esse princípio tem como objetivo uniformizar os recursos para configurarem um mecanismo de impugnação próprio. Para cada decisão hostilizada, existirá um recurso adequado próprio e sucessivo. Em outras palavras, não se admitem vários recursos interpostos contra um ato decisório específico. Tem-se um recurso próprio para irresignar cada matéria fustigada de forma sucessiva (um de cada vez) e nunca acumulativa. Como bem citado por Assis, o CPC de 1939, no seu art. 809, mesmo quando admitia uma variabilidade de recursos dentro do prazo legal, vetava o uso de mais de um recurso ao mesmo tempo. (ASSIS, 2007, p. 83). O CPC de 1973 não adotou explicitamente esse princípio como o CPC anterior, mas estruturou os atos decisórios no art. 162 separando adequadamente quais são passíveis, por exemplo, de apelação e de agravo. Assim, ficou determinado, pela leitura da norma processual infraconstitucional, que, para cada ato decisório, existe apenas um mecanismo de impugnação; a utilização errônea do recurso acarreta o não preenchimento de um dos requisitos de admissibilidade dos recursos, qual seja, o cabimento. Portanto, os recursos foram bem estruturados legalmente para não admitir mais de um recurso contra cada ato de irresignação. Nesse sentido manifestou o Superior Tribunal de Justiça (STJ): STJ. AgRg no Ag 1013411 / RS AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2008/0029923-0. Ministro MASSAMI UYEDA (1129).-TERCEIRA TURMA. Dj. 01/10/2009. DJe 27/10/2009. Ementa: AGRAVO REGIMENTAL PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE – INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E AGRAVO REGIMENTAL - IMPOSSIBILIDADE - AGRAVO NÃO CONHECIDO. Em nossa opinião, a única exceção a esse princípio seria o próximo princípio abordado. Com a nova redação do art. 498 do CPC dada pela Lei nº 10.352/2001, manteve-se a coerência da unirrecorribilidade dos atos decisórios em relação aos embargos infringentes. No caso, quando o dispositivo do acórdão contiver julgamento por maioria de votos e julgamento unânime, têm-se duas decisões com conteúdos diversos, susceptíveis simultaneamente de mais de dois recursos, recurso extraordinário (RE) e/ou recurso especial (REsp) e embargos infringentes. Porém, o “legislador” suspende o prazo de 15 dias, ou na verdade nem sequer começa a contá-lo, para o RE e REsp, evitando, assim, a cumulação de dois recursos. O prazo para os demais recursos iniciará da intimação da decisão dos embargos infringentes ou quando transitar em julgado a decisão majoritária. A interposição dos embargos Charley Teixeira Chaves • 407 da declaração interrompe o prazo dos demais recursos (art. 538 CPC)7. Mesmo no caso de sucumbência recíproca, podem surgir de uma decisão dois recursos distintos: um de apelação e outro de embargos de declaração. Tampouco há uma exceção ao princípio em tela, pois os recursos atacam conteúdos distintos. Outro ponto que aparenta ser uma exceção ao princípio tratado seria o caso do RE e do REsp, que devem ser interpostos conjuntamente, ou seja, simultaneamente. Na realidade, o princípio da singularidade permanece intacto, pois ainda para cada decisão existe apenas um recurso próprio. No caso, os recursos extraordinário e especial, apesar de serem manejados em conjunto, atacam conteúdos distintos. O primeiro, a matéria constitucional (art. 102, III, CF/88), o segundo, a matéria federal (art. 105, III, CF/88). São salutares os elucidamentos de Theodoro Júnior (2007, p. 643): “[...] na previsão de interposição simultânea de recurso extraordinário e de recurso especial contra o mesmo acórdão (art. 541), há apenas uma aparente quebra do princípio da unirrecorribilidade, haja vista que cada um deles ataca partes distintas do decisório impugnado”. Ademais, quando conhecidos ambos os recursos, não são julgados ao mesmo tempo. Os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Após o julgamento do REsp, os autos serão remetidos ao Supremo Tribunal Federal (STF), se o REsp não estiver prejudicado. No caso de o relator do STJ convencer-se que o RE é prejudicial, a análise do REsp sobrestará o julgamento e remeterá os autos ao STF, em decisão irrecorrível para as partes. No mesmo sentido, o relator do STF poderá devolver os autos para o STJ, caso não considerar prejudicial o julgamento primeiro do RE em face do REsp, obrigando o STJ julgar o REsp em primeiro lugar. É um verdadeiro “vai e vem” dos recursos extraordinários (RE e REsp), conforme se lê no art. 543 do CPC. Por fim, cabe esclarecer que a terminologia utilizada para apresentar os recursos, como recurso ordinário e extraordinário, é empregada no Brasil com conteúdos distintos ao de outros sistemas como o português, o francês, o suíço e outros. “O recurso ordinário é reservado para decisão não transitada em julgado e o extraordinário contra aquela já transitada”. (LEAL, 2004, p. 193). Tecnicamente, todos os recursos são ordinários por impugnarem as decisões ainda não transitadas em julgado. Entretanto, no modelo brasileiro, são denominados de recurso extraordinário aqueles que têm conteúdo de irresignação limitado, admitindo apenas discussões sobre questões de direito e, ao contrário dos modelos estrangeiros citados, não estão acobertados pela coisa julgada – trata-se do RE e do REsp. 2.4. Princípio da fungibilidade Este princípio não se encontra mais previsto no CPC de 1973, porém foi muito utilizado no ordenamento processual de 1939, previsto no art. 810. Admitia-se um recurso 7 No juizado especial (Lei nº 9.0099/95, arts. 50 e 83, §2º) a interposição dos embargos suspende o prazo para o recurso. 408 • Direito Público Constitucional no lugar de outro, sempre que não houvesse má-fé (observar o menor dos prazos dentre os recursos aptos para impugnar a decisão) e não existisse erro grosseiro quando da interposição do recurso. Na época foi necessária a utilização do princípio da fungibilidade, tendo em vista a desorganização e impropriedade (ASSIS, 2007, p. 87) legal para apresentar mecanismos adequados para impugnar as decisões. O atual CPC simplificou os mecanismos de impugnação, estabelecendo um recurso para cada modalidade de resignação, conforme se lê no art. 162 do CPC, facilitando a vida dos operadores do direito. Todavia, as impropriedades terminológicas se perpetuaram no ordenamento, a simplicidade do CPC de 1973 não foi absoluta. Alguns dispositivos legais que se referiam a “sentença” não coadunavam com a definição do art. 162, por tratarem de uma decisão interlocutória, mas que recebeu a denominação de sentença. Por exemplo, o art. 395 CPC, o indeferimento liminar da petição inicial da reconvenção – art. 315 do CPC e art. 17 da Lei nº 1.060/1950. Em face da complexidade de alguns dispositivos legais que se referem a alguns atos como sentença em tese, pelo nome atribuído, o recurso adequado seria o da apelação. No entanto, de acordo com a sistemática do CPC (art. 162 do CPC), o ato seria uma decisão interlocutória passível de agravo. Restou uma dúvida objetiva; houve a necessidade de ressuscitar o princípio da fungibilidade, no processo civil, tendo como sustentáculo o princípio da instrumentalidade das formas (art. 250 do CPC). No processo penal há previsibilidade expressa no art. 579 do CPP. Como bem explica Grinover, Gomes Filho e Fernandes (2001, p. 39), “[...] há, nesse caso, aproveitamento do recurso erroneamente interposto, mediante sua conversão no adequado, em homenagem ao princípio de que o processo não deve sacrificar o fundo pela forma”. O requisito para a admissibilidade da fungibilidade, conforme entendimento doutrinário (NUNES, 2003, p. 90), é a existência de dúvida objetiva que represente uma divergência doutrinária e jurisprudencial sobre admissibilidade de um ou outro recurso. Nery Júnior recepciona o requisito da fungibilidade, qual seja, dúvida objetiva, e explica “com segurança, que configura erro grosseiro a interposição de recurso errado, quando o correto se encontra indicado expressamente no texto de lei.” Sintetizando, “em se tratando de erro grosseiro, não é possível aplicar-se a fungibilidade, pois não seria razoável premiar-se o recorrente desidioso, que age em desconformidade com as regras comezinhas do direito processual. Ao revés, se o erro for escusável, não se caracterizando como grosseiro, a regra tem incidência plena.”(2000, p. 135 e 140). O STJ também reconheceu o requisito da dúvida objetiva para aplicação do Princípio da fungibilidade: Charley Teixeira Chaves • 409 EMENTA: RECURSO ESPECIAL - ALÍNEAS “A” E “C” - PROCESSO CIVIL - AÇÃO DE CONHECIMENTO - EXCLUSÃO DE LITISCONSORTE PASSIVO - INDEFERIMENTO DA INICIAL EM RELAÇÃO A UM DOS RÉUS - EXTINÇÃO DA AÇÃO E NÃO DO PROCESSO - DECISÃO INTERLOCUTÓRIA - RECURSO CABÍVEL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. É firme a orientação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que o ato judicial que exclui litisconsorte passivo não põe termo ao processo, mas somente à ação em relação a um dos réus. Por essa razão, o recurso cabível é o agravo de instrumento, e não apelação (cf. REsp n. 164.729⁄SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 01.06.1998, REsp n. 219.132⁄RJ, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU 01.11.1999 e REsp n. 14.878⁄SP, rel. para o acórdão Min. Eduardo Ribeiro, DJU 16.03.1992, dentre outros). Se inexiste dúvida objetiva acerca do recurso cabível, não se admite a aplicação do princípio da fungibilidade recursal. Recurso especial não conhecido STJ, REsp 427786/RS 2002⁄0043014-5), 2ªT., Rel. Min. Franciulli Netto, j. 15-4-2003. [Grifo nosso] Quanto ao prazo para interposição do recurso, tem-se o entendimento de que deve ser levado em conta o menor prazo dos recursos apontados como duvidosos. De outro lado, entende-se que o prazo que deve ser observado é do recurso utilizado, independentemente de ser menor ou não. “Desta forma, ocorrendo dúvida objetiva, dever-se-á aceitar a aplicação do princípio da fungibilidade, mesmo que haja utilização do prazo do recurso efetivamente interposto, o qual era tido pelo recorrente como o correto”. (NUNES, 2003, p. 91). 2.5. Princípio da proibição da reformatio in pejus O princípio da proibição da reformatio in pejus impede que o julgador profira uma decisão piorando a sua situação já decidida. Caso a parte recorra sozinha, não poderá ver sua situação piorar. Esse princípio está ligado ao fato do pedido que delimita a atuação judicacional (correlação entre a decisão e o pedido); impede-se que o julgador piore a situação daquele que recorre sozinho, recebendo uma decisão pior do que já tinha, isto é, reforma para pior. Logicamente que este princípio não se aplica às matérias de ordem pública que permitem aos julgadores reconhecerem de ofício, a qualquer momento, como os pressupostos processuais, condições da ação e requisitos de admissibilidade dos recursos, denominados de efeito translativo dos recursos. O exemplo extraído da obra Darlan Barroso é bem elucidativo – em se tratando de matéria de ordem pública, a decisão do tribunal pode piorar a situação do recorrente: 410 • Direito Público Constitucional Seria o caso de, em primeira instância, o juiz ter condenado o réu ao pagamento da quantia equivalente a dez salários mínimos. Todavia, inconformado com a procedência parcial, o autor apela da sentença para obter a elevação da condenação, mantendo-se o réu conformado com sua condenação (não recorre). Por sua vez, o tribunal entende que o autor é parte ilegítima para a ação e acaba por extinguir o processo sem o julgamento do mérito (cancelando a condenação que o autor tinha em seu favor). (BARROSO, 2007, p. 15). Esse princípio está ligado ao princípio da disponibilidade, que delimita a atuação da atividade jurisdicional. A exceção ao princípio em análise é a matéria de ordem pública. Como visto supra, não se fala em preclusão; o recurso transfere a análise da matéria (ordem pública) – independentemente da alegação da parte – juntamente com a irresignação da parte interessada, aos tribunais, que verificarão os recursos. Portanto, o princípio ora estudado é abrandado pelo efeito translativo dos recursos. O princípio da proibição da reformatio in pejus não se aplica ao tribunal do júri. Mesmo que a primeira decisão fosse anulada, a soberania do tribunal popular não poderia ser limitada, isto é, os novos julgadores que voltem a julgar a causa (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2001, p. 48). Por fim, a Súmula 45 do STJ estabelece: “No reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública.” 2.6. Princípio da voluntariedade A impugnação feita através do recurso depende da manifestação de vontade das partes. Trata-se da “vontade expressa e motivação de recorrer (induvidosa)” (LEAL, 2004, p. 302). O ordenamento apresenta alguns “recursos” [sic] que não preenchem o requisito da voluntariedade, com a remessa necessária que erroneamente é denominada de “recurso” ex offício. Tecnicamente, a remessa necessária (art. 475 do CPC) não se classifica como um recurso por lhe faltarem os elementos da voluntariedade, da taxatividade e da dialeticidade. Na realidade, trata-se de uma condição de eficácia da sentença, quando for proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município e as respectivas autarquias e fundações de direito público. A decisão proferida pelo juízo monocrático apenas se torna válida após ser confirmada pelo tribunal ou órgão superior. Embora o ato esteja previsto em lei, representa um descaso com a atuação do julgador que apreciou e prolatou a primeira decisão, condicionando a eficácia da sua decisão a ratificação pelo tribunal, como se fosse um mero parecerista. Pior: trata-se de uma proteção unilateral, em nossa opinião, desnecessária e, ainda, violadora do princípio da isonomia. Não há reciprocidade de tratamento, porque não ficaria condicionada, ao contrário do que ocorre com o Estado, à confirmação da decisão quando o condenado fosse um indivíduo (cidadão) que litigasse contra o Estado. Há, dessa forma, uma violação do princípio da isonomia procedimental injustificável. Charley Teixeira Chaves • 411 O fundamento da remessa necessária como condição de eficácia da decisão anteriormente prolatada depende da confirmação do tribunal; representa mais um resquício do princípio inquisitório no nosso ordenamento jurídico. Embora não seja um recurso, através do reexame obrigatório, pode a decisão final ser modificada inteira ou parcialmente (efeito translativo). (NERY JÚNIOR; NERY, 2002, p. 916). Como o manejamento do recurso passa pela voluntariedade, a sua subsistência também decorre desse princípio. Sendo assim, a parte que interpôs um recurso poderá desistir do seu direito de recorrer (fato extintivo), independentemente da aceitação da outra parte, a qualquer tempo, na sustentação oral, desde que seja antes do julgamento do recurso (art. 501 do CPC). Cabe lembrar que, no procedimento penal, o Ministério Público não é obrigado a recorrer; entretanto, se optar por fazê-lo, não poderá desistir do recurso interposto (art. 576 do CPP), tendo em vista o princípio da obrigatoriedade consectário da reserva legal que imprime um dever legal na atuação do Representante Popular Permanente8. 2.7. Princípio da lesividade do provimento Este princípio se conecta a um dos requisitos de admissibilidade dos recursos, qual seja, o do interesse em recorrer que se desdobra no binômio: adequação e necessidade ou utilidade. De fato, o princípio ora estudado encontra-se ligado à utilidade ou necessidade. O interesse de recorrer – “adequação” – está ligado ao requisito de admissibilidade dos recursos, qual seja, o cabimento, e também ao princípio da singularidade. Já o que nos interessa, neste momento, é a necessidade (ou utilidade), que se relaciona com o prejuízo decorrente do fato de a decisão não ter acatado o pedido da parte na sua integralidade ou parcialidade. Denomina-se de sucumbência o prejuízo sofrido pela parte quando a decisão jurisdicional for contrária ao solicitado pela parte ou pelas partes, isto é, for vencido totalmente ou parcialmente. Não é qualquer decisão que se torna passível de ser impugnada pela via do recurso. A parte, caso tenha interesse em recorrer, deve demonstrá-lo. Para tanto, o prejuízo tem de ser visualizado por uma das partes, porventura sucumbente. A decisão jurisdicional deve causar qualquer espécie de lesividade para parte, autorizando, assim, o manejo do respectivo recurso. O recurso deve ser útil e necessário. Nesse sentido Nunes explica três situações decorrentes da sucumbência que podem ocorrer: [...] “sucumbência formal, quando 8 Ver: CHAVES, 2008. 412 • Direito Público Constitucional o dispositivo da decisão diverge do que foi requerido pela parte; sucumbência material, quando a decisão produz efeitos desfavoráveis às partes e/ou terceiros; ou quando não se obtém tudo aquilo que se poderia obter com o processo”. (NUNES, 2003, p. 74). No entanto, as formas de lesividade do provimento para autorizar a impugnação da decisão pelo recurso podem apresentar outras maneiras. Miranda e Pizzol (2006, p. 23) apontam “[...] o caso do embargante que requer a declaração do julgado. Vencedor, na totalidade, poderá embargar em caso de omissão, obscuridade ou contradição, mesmo não tendo, à primeira vista, qualquer prejuízo”. Percebe-se, no caso do Ministério Público, a possibilidade de recorrer sem exigir qualquer prejuízo para ele. Trata-se de uma legitimidade legal, que foge ou abranda o requisito do interesse de recorrer. 2.8. Princípio da dupla conformidade ou doppio conforme Este princípio impede a utilização de outro. Quando houver decisão que se conforme com outra, fica obstaculizada a utilização de um outro recurso ordinário. Um exemplo são os embargos infringentes, que exigem, além de a decisão ser majoritária, de mérito, que a anterior tenha sido reformada. Se a segunda decisão, mesmo majoritária, for pela manutenção ou conforme a primeira decisão, não caberá o recurso de embargos infringentes. Nesse sentido, pronuncia-se Nunes (2003, p. 102): Consiste, numa acepção, na impossibilidade de cabimento de recurso ordinário quando um determinado provimento já tiver sido submetido à apreciação de outro órgão julgador mediante a interposição de recurso que tenha confirmado a decisão, ou seja, duas decisões coincidentes proferidas por órgãos judiciais diversos. Essa é a compreensão que se extrai do art. 530 do CPC: “Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência.” 2.9. Princípio da consumação Este princípio decorre da preclusão, mais especificamente o da preclusão consumativa, que não permite que um ato já realizado seja refeito pela parte. O art. 158 do CPC estabelece: “Os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”. Uma vez praticado o ato, ele se consumou. “Logo, interposto o recurso, extingue-se, Charley Teixeira Chaves • 413 tout court, o direito de impugnar o provimento, não importa se admissível ou não”. (ASSIS, 2007, p. 100). A parte não pode modificar o ato realizado, independentemente se for correto ou não. O ato, uma vez realizado, não pode ser refeito (a fim de ser corrigido ou complementado), mesmo que dentro do prazo. A exceção a este princípio será abordada abaixo, no item 2.11. Nunes (2003, p. 76) visualiza “[...] uma possível exceção à aplicação deste princípio poderia ser vislumbrada na utilização do preceito do art. 500 do CPC de 1973, quanto à interposição do recurso incidental, indevidamente denominado pela lei como recurso adesivo”. Verifica-se que surge a faculdade da utilização do “recurso adesivo” quando a parte sucumbente não interpôs o recurso no prazo adequado, materializando a preclusão temporal, e a outra parte interpôs o seu recurso (sucumbência recíproca). Ao recurso interposto por qualquer um deles poderá aderir o recurso interposto pela outra parte, ficando este subordinado ao recurso principal. O direito precluso da parte pode ser novamente utilizado no prazo das contra-razões recursais, em peça distinta, através do recurso incidental adesivo, sendo aderido ao principal. 2.10. Princípio da variabilidade dos recursos Este princípio não mais existe em nosso ordenamento. O CPC de 1939, em seu artigo 809, pugnava pela prática de vários atos ou recursos, desde que estando dentro do prazo. Hoje predomina o princípio da consumação. 2.11. Princípio da complementaridade Este princípio acaba por mitigar o princípio da consumação, pois se admite que o recurso seja complementado mesmo que seu direito já tenha sido exercitado. Os fundamentos da complementaridade dos recursos encontram-se nos princípios do contraditório e da ampla defesa sempre que houver qualquer modificação na decisão, como no caso de conhecimento e provimento dos embargos de declaração. Quando a outra parte, também sucumbente, houver interposto o recurso de apelação, poderá complementá-lo naquilo que foi modificado (integração da decisão obscura, contraditória ou omissa) pelo julgador por força dos embargos manejados. Ainda sobre a possibilidade de novo recurso, a nosso sentir, incabível. “Não poderá interpor novo recurso, a menos que a decisão modificativa ou integrativa altere a natureza do pronunciamento judicial, o que se nos afigura difícil de ocorrer.” (Cf. NERY JÚNIOR, 2000, p. 155) Como explicam Grinover, Gomes Filho e Fernandes (2001, p. 39), “[...] nesse caso é evidente que a preclusão consumativa não opera, porque os fundamentos da decisão só surgirão, em sua inteireza, com a integração ou complementação a que os embargos de declaração deram margem”. 414 • Direito Público Constitucional No procedimento penal, a situação apontada torna-se difícil de ser visualizada, já que as razões recursais não vêm junto com a peça de interposição do recurso (art. 578 c/c arts. 588 e 600 do CPP), ao contrário do que ocorre no procedimento cível. Pode acontecer de as modificações na decisão por força dos embargos ocorrerem no prazo para apresentar as razões recursais, não se falando, assim, em complementaridade. 2.12. Princípio das decisões juridicamente relevantes Algumas decisões não são passíveis de impugnação por recurso por não serem consideradas juridicamente relevantes: são os denominados despachos (art. 504 do CPC). O artigo 162, § 3º, esclarece que “São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma.” Os despachos são atos que não têm conteúdo decisório. Destaca-se que não é o nome dado ao ato que é importante, mas sim o seu conteúdo. Assim, se um ato praticado pelo juízo receber a titularização de “despacho”, porém com conteúdo decisório, será passível de recurso. Existem outras situações impostas por lei que, por não se tratarem de decisão juridicamente relevante, obstaculizam momentaneamente o recurso. Trata-se das decisões interlocutórias em processo de conhecimento, cautelar, ou embargos à execução, manejadas por agravo de instrumento passível de recurso extraordinário. De outro modo, o recurso especial ficará retido nos autos principais e somente será processado se o reiterar a parte, no prazo para a interposição do recurso contra a decisão final ou para as contra-razões (art. 542, §3º do CPC). O objetivo, pelo que se percebe, é evitar que os tribunais superiores analisem, através do recurso, o conteúdo dos autos de um processo mais de uma vez, ou seja, através de recursos que impugnem as decisões interlocutórias via agravo e o processo principal. Nunes (2003, p. 95) esclarece que “[...] existe, na atualidade, uma orientação doutrinária de limitação dos recursos, com o objetivo de evitar a utilização de recursos intermediários que dilatam o tempo de tramitação procedimental e propiciam expedientes de chicana”. Algumas justificativas dessa limitação são apresentadas como: a) a decisão apenas ficou retida, podendo ser reiterada em momento futuro; b) a decisão interlocutória recorrida poderá não influenciar na decisão final do processo principal, não causando nenhum prejuízo para o recorrente (MONTENEGRO FILHO, 2007, p. 204) quando a sentença lhe seja favorável. O problema é quando, da análise de recurso então retido, demonstra-se a relevância do seu conteúdo, o que pode provocar a cassação do ato impugnado, anulando todos os atos praticados, ou seja, esse dispositivo (art. 542, §3º, do CPC) pode ampliar Charley Teixeira Chaves • 415 ainda mais a morosidade do Judiciário, pois todos os atos serão refeitos, inclusive a própria decisão monocrática prolatada. Trata-se de medida contraproducente. A medida cautelar será o mecanismo processual para tentar destrancar o recurso especial e extraordinário retido (art. 542, §3º, do CPC) mediante demonstração da urgência (periculum in mora e fumus bonis juris) ou dano irreparável que poderia ser provocado pela retenção desses recursos. A jurisprudência do STJ tem reconhecido essa medida (MONTENEGRO FILHO, 2007, p. 204). Muitas das vezes, pode ser prejudicial para as partes ficarem os recursos retidos nos autos aguardando a interposição do recurso contra a decisão final do processo principal, para só assim reiterarem as alegações da impugnação retida, no prazo de interposição do recurso contra a decisão final. Cabe indagar: se o recurso principal não for conhecido, pode o recurso obrigatoriamente retido ser processado independentemente do recurso principal? Entendemos que sim. Não pode existir duplo impedimento. O fato de o recurso principal não ser conhecido não impede o conhecimento do recurso que ficou retido, desde que também apresente os requisitos de admissibilidade comuns a qualquer recurso e também os peculiares ao correspondente recurso (procedimento) utilizado. Outro dispositivo que não se amolda como juridicamente relevante, impedido o seu processamento de forma imediato é o disposto no art. 527, II, do CPC. Esse dispositivo permite ao relator converter o agravo de instrumento em agravo retido, remetendo os autos ao juiz da causa, sempre que não se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida. Antes da Lei nº 11.187/2005, da conversão do agravo de instrumento em retido, cabia um recurso. Agora esse recurso foi suprimido. Dessa decisão não caberá nenhum recurso. Cabe a parte interessada socorrer-se aos sucedâneos recursais, no caso, o mandado de segurança ou pedido de reconsideração. 2.13. Princípio da dialogicidade ou dialeticidade Esse princípio viabiliza a discursividade e a delimitação da transferência da matéria que tenha sido alvo da impugnação pelo recurso. De um lado, o princípio em tela permite a manifestação e insatisfação da decisão guerreada com os motivos demonstrados, do outro, mostra-se encaixado no princípio do contraditório ao possibilitar o conhecimento das razões recursais à outra parte, que poderá apresentar suas contra-razões. Leal (2004, p. 302) explica que a “[...] dialeticidade (impõe): apresentação de elementos claros, inteligíveis para obviar contraditório”. Pode-se interligar esse princípio ao efeito devolutivo, leia-se: transferência da matéria irresignada ao tribunal ou juízo (tantum devolutum quantum appelatum), bem como ao requisito de admissibilidade dos recursos, qual seja, formal quando se pedem os fundamentos de fato e de direito, na peça recursal (art. 514, II, CPC); ao terceiro prejudicado deve demonstrar o nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial (art. 499, 416 • Direito Público Constitucional § 1º, CPC). É perceptível a importância deste princípio também para o juízo, visto que “[...] as razões do recurso e as respectivas contra-razões são, assim, elementos indispensáveis para que o tribunal possa examinar seu mérito. Sua falta acarreta o não conhecimento”. (GRINOVER, 2001, p. 41). 2.14. A distribuição dos recursos Não se trata de um princípio, mas sua finalidade é evitar que determinadas matérias impugnadas sejam escolhidas ao bel-prazer do julgador. Nota-se que o art. 548 do CPC liga a distribuição a três princípios, a saber: publicidade, alternatividade e sorteio. Na realidade a distribuição regida por aqueles princípios visa assegurar a imparcialidade do juízo, não obstante ser também uma garantia das partes interessadas para que sua matéria seja analisada de forma isenta. Impede também que o julgador que conheceu em primeira instância venha novamente realizar o julgamento da matéria (art. 134, III, CPC). Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, foi acrescentado ao art. 93 da CF/88 o inciso XV, que ficou com a seguinte redação: “[...] a distribuição de processos será imediata, em todos os graus de jurisdição.” Assim, objetiva-se eliminar a morosidade na distribuição e evitar qualquer limitação de processo por julgadores, bem como permitir de imediato o conhecimento dos o(s) nome(s) do(s) julgadores(s). 3. Considerações finais Cabe apontar que o recurso é um instituto democrático de testificação das decisões jurisdicionais. A necessidade de rever as decisões liga-se ao próprio modelo democrático que não permite que o conhecimento seja solipsista, mas construído com os destinatários, aqueles que realmente sofrerão os resultados da decisão jurisdicional. Não se pode pensar que o recurso é um obstáculo ao rápido andamento do procedimento, ainda mais quando a estrutura do Judiciário não acompanha o crescimento populacional e, conseqüentemente, o aumento de conflito. Perceptível é a precária falta de material humana (julgadores e funcionários) em face dos litígios existentes. A criação de novas leis nem sempre resolve a questão social e acaba proporcionando o problema da legitimidade das leis. O resultado é uma inflação legislativa com critérios paliativos que não “cidadanizam” o povo, por não incluí-lo nos critérios de sua formação (projeto de lei). Não se pode mais olvidar, pelo princípio democrático, de que a formação do conhecimento seja ainda solitária. Acreditar que todo conhecimento se exaure na experiência pessoal ou interior de um sujeito, como se fosse uma mera reprodução pessoal, é um erro que caminha por desconsiderar o outro como sujeito também de direitos. Nota-se que a construção ou decisão é feita para seres humanos que se voltaram para o mesmo construtor ou decididor que também é um ser humano. Charley Teixeira Chaves • 417 Curial destacar que o conflito resistido representa um problema social de aceitação e cumprimento voluntário das regras de condutas transformadas em leis que, muitas das vezes, não refletem a realidade nem a pluralidade social. É um equívoco criar meios paliativos como a redução ou eliminação de meios de impugnação das decisões proferidas [sic], simplificação do procedimento, e/ou estabelecimento de requisitos mais rigorosos para admitir uma segunda análise do que já foi proferido, como se fosse o único problema a quantidade de processos. Esquece-se de que, por trás da quantidade de processos, existem pessoas (seres humanos) que almejam uma resolução do seu conflito. Na realidade, o caso posto ao julgador representa um direito humano fundamental. O Judiciário é necessário para reestruturar o comportamento desobedecido, desde que isso seja feito democraticamente. Qualquer provimento jurisdicional que não permitir a concretização dos elementos democráticos, base de qualquer formação decisional (contraditório, ampla defesa, isonomia e direito ao advogado), não será vista como democrática. O fato de o legislador eliminar o procedimento recursal como principal causa da morosidade do judiciário [sic] permite que outros mecanismos façam o mesmo, como é o caso dos sucedâneos recursais, já que o recurso tem amparo constitucional decorrente do princípio da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. No entanto, deve-se perguntar se uma decisão jurisdicional que não passou pela principiologia constitucional estaria completa. Com certeza não; essa insuficiência da decisão jurisdicional decorre da não observância dos princípios constitucionais. O julgador, ciente da necessidade da observação das garantias principiológicas constantes da Constituição, ao impulsionar como dever a testificação dos seus julgados pelas partes interessadas, faz com que o processo comece a incluir o destinatário da decisão jurisdicional no contexto da participação da esfera decisional. A participação do afetado que sofrerá o resultado final do provimento jurisdicional, apesar da decisão ser imperiosa, fortalece ou consubstancia sua validade por reconhecer a participação do interessado como colaborador e também como construtor e destinatário daquilo que ajudou a construir. Assim o reconhecimento das decisões jurisdicionais se legitima pelo critério includente da participação. 4. 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No caso, é inaplicável o entendimento consubstanciado em súmula vinculante editada pelo STF, pois, ao tempo do julgamento do especial, ela não possuía eficácia, visto que ainda não publicada (art. 103-A da CF/1988 e art. 2º da Lei n. 11.417/2006). Ademais, ainda que presente a mudança de posição jurisprudencial, conforme precedente, não é possível, em sede de embargos de declaração, conceder efeito modificativo para adaptar a decisão judicial à tese jurídica posteriormente consolidada pelos tribunais. Precedentes citados: EREsp 480.198-MG, DJ 1º/7/2004, e EDcl no REsp 727.894-PE, DJ 8/5/2006. EDcl nos EDcl no REsp 917.745-RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 1º/9/2009. Informativo 568 do Supremo Tribunal Federal – Fixação de subsídio de exgovernador. Equiparação ao subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça. A Turma decidiu remeter ao Plenário julgamento de recurso extraordinário interposto pelo Estado do Piauí contra acórdão do tribunal de justiça local que concedera a segurança para garantir aos ex-governadores daquela unidade federativa a percepção de subsídio mensal e vitalício igual aos vencimentos do cargo de desembargador do tribunal de justiça estadual, com base no art. 11 do ADCT (“Cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta.”). RE 552154/PI, rel. Min. Gilmar Mendes, 17.11.2009. (RE552154) Jurisprudência • 421 Comentário à Jurisprudência ANÁLISE CRÍTICA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE CONSIDERA INCONSTITUCIONAL A VEDAÇÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA PREVISTA NO ART. 44 DA LEI Nº 11.343/2006 ADRIANO NAKASHIMA Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Conforme consta nas notícias do site do Supremo Tribunal Federal, no dia 13 de novembro de 2009, o Ministro Celso de Mello, deste Tribunal, ao analisar o pedido de liminar no Habeas Corpus 101.261, concedeu a referida medida, sob o entendimento de que a vedação da liberdade provisória prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006 ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana. Vejamos o que consta na notícia: Presa preventivamente em Mato Grosso pela acusação de tráfico de drogas, J.M.D. obteve liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) para aguardar em liberdade o julgamento de seu processo. O decano da Corte, ministro Celso de Mello, considerou inconstitucional manter a custódia dela com base no dispositivo da Lei de Tóxicos que proíbe a liberdade provisória nos crimes previstos na norma. De acordo com o ministro, o artigo 44 da Lei nº 11.343/2006, que proíbe ‘de modo abstrato e a priori’, a concessão de liberdade provisória nos crimes de tráfico de entorpecentes, é considerado inconstitucional por diversos ‘eminentes penalistas’. Além disso, ressalta o decano, o STF já declarou a inconstitucionalidade de um dispositivo virtualmente idêntico, o artigo 21 da Lei nº 10.826/2003, que veda a concessão de liberdade provisória para os acusados por porte ilegal de arma de fogo. A proibição ‘apriorística’ de concessão de liberdade provisória não pode ser admitida, sustenta Celso de Mello, uma vez que se revela ‘manifestamente incompatível com a presunção de inocência e a garantia do due process (devido processo 422 • Direito Público Constitucional legal), dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República, independentemente da gravidade objetiva do delito’. Além disso, revela o ministro, no curso de processos penais, o Poder Público não pode agir ‘imoderadamente’, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, ‘acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade’. Natureza O STF tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado, lembra o ministro, alegando ser inadequada a fundamentação da prisão com base no artigo 44 da Lei de Tóxicos. Principalmente, frisa o ministro, depois de editada a Lei nº 11.464/2007, ‘que excluiu, da vedação legal de concessão de liberdade provisória, todos os crimes hediondos e os delitos a eles equiparados, como o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins’. Por fim, diz o ministro Celso de Mello, ‘também não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional de privação cautelar da liberdade individual, a alegação de que a paciente deveria ser mantida presa, ante a imensa repercussão e o evidente clamor público e para acautelar o meio social e a própria credibilidade da Justiça’. O ministro determinou a expedição de alvará de soltura em favor de J.M.D., se ela não estiver presa por outro motivo, para que aguarde, em liberdade, a decisão final do Supremo no Habeas Corpus (HC) 101261, impetrado na Corte pela Defensoria Pública da União (Habeas Corpus (HC) 100362MC/SP)1. Cumpre ressaltar que o Ministro Celso de Mello vem reiteradamente considerando a vedação da concessão da liberdade provisória nos crimes de tráfico de entorpecentes e drogas afins inconstitucional. Ementa: Habeas Corpus. Vedação legal absoluta, imposta em caráter apriorístico, inibitória da concessão de liberdade provisória nos crimes tipificados no art. 33, caput e § 1º, e nos arts. 34 a 37, todos da lei de drogas. Possível inconstitucionalidade da regra legal vedatória (art. 44). Ofensa aos postulados constitucionais da presunção de inocência, do due process of law, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade. O significado do princípio da proporcionalidade, visto sob a 1 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=116058>. Acesso em: 13 nov. 2009. Adriano Nakashima • 423 perspectiva da ‘proibição do excesso’: fator de contenção e conformação da própria atividade normativa do estado. Precedente do supremo tribunal federal: ADI 3.112/DF (Estatuto do Desarmamento, art. 21). Caráter extraordinário da privação cautelar da liberdade individual. Não se decreta prisão cautelar, sem que haja real necessidade de sua efetivação, sob pena de ofensa ao status libertatis daquele que a sofre. Irrelevância, para efeito de controle da legalidade do decreto de prisão cautelar, de eventual reforço de argumentação acrescido por tribunais de jurisdição superior. Precedentes. Medida cautelar deferida. Para uma análise crítica desses julgamentos, é importante destacar a previsão constante no art. 5º, inciso LXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, que prescreve que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Portanto, a contrario sensu, segundo o mandamento constitucional supracitado, a prisão em flagrante, se decretada legalmente, poderá ser mantida quando a lei não admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Impende acrescentar, ainda, que esta Constituição da República também considera como sendo crime inafiançável a prática de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. A propósito: Art. 5º [...] XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; À luz dessas considerações, percebe-se que ficou a cargo da legislação infraconstitucional disciplinar a possibilidade ou não de liberdade provisória sem fiança para a prática de crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Nesse diapasão, o legislador ordinário, na Lei nº 11.343/2006, estabeleceu que “Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”. No caso em tela, a legislação infraconstitucional, fazendo uma pré-ponderação da liberdade dos agentes de crime de tráfico e da segurança pública, optou pela proteção deste último interesse, criando uma regra vedando a liberdade provisória. Sobre a pré-ponderação realizada pelo legislador, vejamos o ensinamento de Virgílio Afonso da Silva: 424 • Direito Público Constitucional O que há é simplesmente o produto de um sopesamento feito pelo legislador, entre dois princípios que garantem direitos fundamentais, e cujo resultado é uma regra de direito ordinário. A relação entre a regra e um dos princípios não é, portanto, uma relação de colisão, mas uma relação de restrição. A regra é a expressão dessa restrição. Essa regra deve, portanto, ser simplesmente aplicada por subsunção. (SILVA, 2009, p. 52). Conforme nos ensina Anderson Schreiber, quando o legislador prevê uma regra de prevalência não é possível ao juiz realizar novamente a ponderação de interesses, mas apenas fazer um controle de validade: O magistrado ou árbitro não há que proceder, nesta hipótese, à ponderação entre os interesses conflitantes, porque a regra de prevalência já vem determinada pelo legislador. Pode-se, isto sim, proceder ao controle de validade da regra e mesmo da adequação de seus resultados ao caso concreto, especialmente quando a regra de prevalência vier estabelecida por norma hierarquicamente inferior às normas que garantem proteção àqueles interesses. (SCHREIBER, 2007, p. 158). Portanto, cumpre neste presente trabalho realizar um controle de validade da regra que prevê a vedação de liberdade provisória para os crimes de tráfico de entorpecente. Para o Ministro Celso de Melo, o legislador, ao proibir, prima face, a liberdade provisória aos presos em flagrante pela suposta prática de crime de tráfico de entorpecente, agiu de forma desarrazoada, sendo, por isso, tal vedação inconstitucional. Acrescentou, ainda, que a tarefa de estabelecer a necessidade de tal prisão cautelar deve ficar a cargo do juiz, mas não do legislador. Daí a advertência de que a interdição legal in abstracto, vedatória da concessão de liberdade provisória, como na hipótese prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento, considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por semelhante regra legal, eis que o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal. O Supremo Tribunal Federal, de outro lado, tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado (Habeas Corpus 100.362-MC/SP). Adriano Nakashima • 425 Todavia, data venia, em que pese ao entendimento adotado pelo Ministro Celso de Mello, não há nenhuma inconstitucionalidade, in abstrato, na vedação legal da concessão de liberdade provisória para os crimes de tráfico de drogas, tendo-se em vista sua conformidade com a Constituição Federal. Não é correto o entendimento de que a análise da necessidade da prisão cautelar é tarefa exclusiva do Judiciário. Conforme já mencionado, a norma constitucional determinou que a prisão em flagrante poderá ser mantida quando a lei não admitir a liberdade provisória. Trata-se, portanto, de uma norma constitucional que prevê a possibilidade de limitação em seu âmbito de proteção, por meio de uma lei infraconstitucional. Sobre as restrições aos direitos fundamentais estabelecidas por lei, vejamos o ensinamento de Canotilho: Quando nos preceitos constitucionais se prevê expressamente a possibilidade de limitação dos direitos, liberdades e garantias através de lei, fala-se em direitos sujeitos a reserva de lei restritiva. Isto significa que a norma constitucional é simultaneamente: (1) uma norma de garantia, porque reconhece e garante um determinado âmbito de proteção ao direito fundamental; (2) uma norma de autorização de restrições, porque autoriza o legislador a estabelecer limites ao âmbito de proteção constitucionalmente garantido. (CANOTILHO, 2003, p. 1279). Portanto, tendo-se em vista que foi o Poder Constituinte Originário quem autorizou a lei infraconstitucional a restringir a liberdade do preso em flagrante, não há que se em falar em inconstitucionalidade na vedação, prima face, da liberdade provisória. Por outro lado, não é possível, no caso em tela, a utilização, por analogia, dos fundamentos constantes na decisão que declarou a inconstitucionalidade da vedação da concessão da liberdade provisória para os presos pela prática do crime de porte de armas de fogo. Afinal, segundo os próprios ditames constitucionais, o crime de tráfico de entorpecentes, ao contrário do delito de porte de arma, constitui enorme gravidade. Com efeito, verifica-se que a repressão ao tráfico de drogas é um dos grandes objetivos da nossa Constituição. Nesse sentido, há na Constituição da República várias normas constitucionais que visam à repressão da prática de tráfico de drogas: Art. 5º. XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os 426 • Direito Público Constitucional mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias. Portanto, verifica-se que o crime de tráfico de entorpecentes foi considerado de enorme gravidade, devendo, por isso, ser reprimido pelo poder público. Cumpre ressaltar, ainda, que o fato de o art. 44 da Lei nº 11.343/2006 ter vedado a concessão da liberdade provisória para os presos pela prática de tráfico de entorpecentes e drogas afins não tem o condão de desconfigurar a cautelaridade da prisão provisória. Com efeito, a lei foi clara ao prescrever que a vedação da liberdade provisória somente alcança os presos em flagrante que possuem uma latente periculosidade para a sociedade. Os presos em flagrante que não representarem nenhum risco para ordem pública podem ser beneficiados com a liberdade provisória. É que, para estes, existe a previsão de uma causa de diminuição de pena (§ 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006), que torna possível a concessão do referido benefício. Dessa forma, inexistindo prova de que o preso em flagrante integra organização criminosa ou de que ele se dedica à atividade criminosa e sendo ele primário e de bons antecedentes, o Ministério Público deve denunciá-lo pela prática do crime de tráfico minorado. Adriano Nakashima • 427 Nesse sentido: Em síntese, quanto às exigências legais para a aplicação da redução da pena, cabe ao Ministério Público provar sua ausência e não ao réu provar sua presença. Se não houver provas de que o agente integra organização criminosa ou que se dedica ao crime, não havendo provas de reincidência nem de maus antecedentes, é porque o agente tem direito à redução. (THUMS , 2008, p. 94). Ao ser denunciado pela prática do crime previsto no art. 33, § 4º, da Lei n.º 11.343/2006, não existirá nenhuma vedação para a concessão da liberdade provisória, conforme dispõe o art. 44 desta lei: “Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”. Por outro lado, em se tratando de réu reincidente e de maus antecedentes, bem como que integra organização criminosa ou se dedica a atividade criminosa, resta insitamente demonstrada sua latente periculosidade, sendo necessária a manutenção da prisão cautelar para garantir a ordem pública. Sobre o assunto, vejamos o ensinamento da doutrina: Aliás, o Supremo Tribunal Federal, apesar de rechaçar a cautelaridade no que diz respeito à ordem pública simplesmente em vista da gravidade do fato ou da violência empregada, tem entendido que pode haver motivação quanto a este requisito, havendo assim cautelaridade, quando esta ‘envolve, em linhas gerais, as seguintes circunstâncias principais: a) necessidade de resguardar a integridade física ou psíquica do paciente ou de terceiros; b) objetivo de impedir a reiteração das práticas criminosas, desde que lastreado em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto de custódia cautelar; e c) para assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial o Poder Judiciário, no sentido da adoção tempestiva de medida adequadas, eficazes e fundamentadas quanto à visibilidade e transparência da implementação das políticas públicas de persecução criminal’. (HC 89238/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 29.5.2007). [...] O que não se justifica é a identificação da garantia da ordem pública com o clamor social e a gravidade do crime, ou mesmo o aumento da criminalidade, que são conceitos estranhos ao processo e ao crime cometido, devendo ser considerada, sim, a possibilidade de cometimento de outros crimes. [...] Aliás, o direito espanhol também permite a prisão para a tutela da paz social, na forma do art. 503, § 2º, da Ley de 428 • Direito Público Constitucional Enjuicimiente Criminal, considerando-se a paz social como ‘alarma social produzido pelo delito ou freqüência com que se tem cometido fatos análogos’, e nem por isso se deixa de reconhecer, naquele país, a natureza cautelar da prisão. (LIMA, 2008, p. 372). No Brasil, a jurisprudência, ao longo desses anos, tem se mostrado ainda um pouco vacilante, embora já dê sinais de ter optado pelo entendimento da noção de ordem pública como risco ponderável da repetição da ação delituosa objeto do processo, acompanhado do exame acerca da gravidade do fato e de sua repercussão. (OLIVEIRA, 2008, p. 435). Outro fator responsável pela repercussão social que a prática de um crime adquire é a periculosidade (probabilidade de tornar a cometer delitos) demonstrada pelo indiciado ou réu e apurada pela análise de seus antecedentes e pela maneira de execução do crime. Assim, é indiscutível que pode ser decretada a prisão preventiva daquele que ostenta, por exemplo, péssimos antecedentes, associando a isso a crueldade particular com que executou o crime. (NUCCI, 2008, p. 606). Farta é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a reiteração criminosa e a participação em organização criminosa são fundamentos idôneos para demonstrar a necessidade da prisão cautelar: EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REITERAÇÃO CRIMINOSA. PRIMARIEDADE E BONS ANTECEDENTES. 1. Prisão preventiva para garantia da ordem pública face à circunstância de o réu ser dado à prática do tráfico de entorpecentes em concurso de pessoas. Real possibilidade de reiteração criminosa, qual retratado pelo Juiz, ao afirmar que o paciente fora preso outras vezes em flagrante delito, voltando a delinqüir quando beneficiado com a liberdade provisória. 2. Primariedade e bons antecedentes não asseguram, por si só, o direito à liberdade provisória quando há fundamento idôneo justificando a custódia cautelar. Ordem indeferida. (HC 95602, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 16/09/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-07 PP-01616). EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. DECISÃO FUNDAMENTADA NA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRESSUPOSTOS DO ART. 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DEMONSTRAÇAO. ORDEM DENEGADA. I - A decretação da prisão preventiva baseada na garantia da ordem pública e na conveniência da instrução criminal está devidamente fundamentada em fatos concretos a justificar a segregação cautelar, em especial diante da reiteração da conduta. II - Habeas corpus denegado. (HC Adriano Nakashima • 429 94598, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 21/10/2008, DJe-211 DIVULG 06-11-2008 PUBLIC 07-11-2008 EMENT VOL-02340-03 PP-00531). DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. ORDEM PÚBLICA. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA ALTAMENTE ESTRUTURADA. TRÁFICO DE ENTORPECENTES E OUTROS CRIMES GRAVES. DENEGAÇÃO. 1. A questão de direito tratada neste writ diz respeito à possível nulidade da decisão que decretou a prisão preventiva do paciente por suposta ausência de fundamentação idônea e adequada. 2. A denúncia imputa ao paciente e aos co-réus terem se associado em quadrilha para a prática do tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, na forma de uma organização criminosa estrutura hierarquicamente com divisão de tarefas e funções de seus membros. 3. No caso concreto, há a noção de periculosidade concreta do paciente, acusado de integrar a facção criminosa intitulada ‘PCC’ (Primeiro Comando de Capital) que seria responsável por ataques violentos ocorridos em maio de 2006 contra civis, unidades prisionais, agências bancárias e veículos, em claro confronto com as forças de segurança pública do Estado de São Paulo. 4. Registro que houve fundamentação idônea à manutenção da prisão processual do paciente. Atentou-se, portanto, para o disposto no art. 93, IX, da Constituição da República. A decisão proferida pelo juiz de direito - que decretou a prisão preventiva observou estritamente o disposto no art. 1°, da Lei n° 9.034/95 e no art. 312, do CPP, eis que há elementos indicativos no sentido de que as atividades criminosas eram realizadas de modo reiterado, organizado e com alta poder ofensivo à ordem pública. 5. A garantia da ordem pública é representada pelo imperativo de se impedir a reiteração das práticas criminosas. 6. A regra do art. 7°, da Lei n° 9.034/95, consoante a qual não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa, com efeito, revela-se coerente com o disposto no art. 312, do CPP. 7. Habeas corpus denegado. (HC 94739, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 07/10/2008, DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT VOL-02341-03 PP-00442). Portanto, não há que se falar em desrespeito ao princípio da proporcionalidade no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, tendo-se em vista que seu objetivo é justamente não conceder liberdade provisória a agentes de crimes reincidentes, de maus antecedentes, que integram organização criminosa ou que se dedicam a atividades criminosas. Enfim, a vedação legal constante no art. 44 da Lei nº 11.343/2006 tem como objetivo impedir a reiteração das práticas criminosas, sendo, por isso, compatível com as regras e os princípios constantes na Constituição da República Federativa do Brasil. 430 • Direito Público Constitucional Referências bibliográficas CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. v. 3. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007. SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova Lei de Drogas: crimes, investigação e processo. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. Adriano Nakashima • 431 Técnica AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE ELAINE MARTINS PARISE Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade RENATO FRANCO DE ALMEIDA Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade MARIA ANGÉLICA SAID Procuradora de Justiça do Estado de Minas Gerais Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade EXCELENTÍSSIMO PRESIDENTE DA CORTE SUPERIOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº XXX/XXX RELATOR: DESEMBARGADOR KILDARE CARVALHO O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por sua Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, vem, perante Vossa Excelência, com fundamento no parágrafo único do artigo 4º da Lei federal n.º 9.868/1999 e dos artigos 333 e 334 do Regimento Interno desse Tribunal de Justiça, interpor AGRAVO contra a v. decisão monocrática que apreciou e indeferiu pedido de liminar, e suspendeu o trâmite da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º XXXX/XXX, ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça, fundamentando-se nas razões de fato e de direito a seguir aduzidas. Belo Horizonte, 12 de agosto de 2009. ELAINE MARTINS PARISE Procuradora de Justiça Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade 432 • Direito Público Constitucional RENATO FRANCO DE ALMEIDA Promotor de Justiça Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade MARIA ANGÉLICA SAID Promotora de Justiça Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º XXX/XXX AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS AGRAVADOS: PREFEITO E CÂMARA MUNICIPAL DE XXXX Egrégio Tribunal de Justiça, Colenda Corte Superior, Eminentes Desembargadores, 1. Exposição da demanda O Procurador-Geral de Justiça ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com pedido liminar em relação ao artigo 4º da Resolução Legislativa n.º 05, de 1º de setembro de 2008, do Município de XXX, que fixa o subsídio dos Vereadores para a legislatura 2009/2012, bem como confere a percepção de décimo terceiro salário a esses agentes políticos eletivos. Argumentando, em síntese, que os agentes políticos eletivos não podem, à luz dos dispositivos constitucionais de regência, perceber quantia a título de décimo terceiro subsídio, o Autor requereu o regular processamento da ADI e a declaração de inconstitucionalidade do artigo 4º da Resolução Legislativa n.º 05, de 1º de setembro de 2008, por ofensa aos artigos 31, caput; 165, § 1º e 179, todos da Constituição do Estado. Inicialmente, o Desembargador-Relator deferiu a cautelar, consoante decisão de fls. 42/43. Notificado, o Prefeito do Município de XXX apresentou pedido de Reconsideração, às fls. 55/63, sob a alegação de ilegitimidade do Requerente e incompetência do Tribunal de Justiça para processar e julgar a ação, uma vez que, entende o Requerido, cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar Ações Diretas de Inconstitucionalidade cujos objetos ofendam dispositivos da Constituição Estadual, de repetição obrigatória da Constituição da República. Elaine Parise • Renato de Almeida • Maria Angélica Said 433 O Presidente da Câmara Municipal, ao prestar suas informações, às fls. 66/76, requer a cassação da liminar e a improcedência do pedido, também sob a alegação de incompetência do Tribunal de Justiça. Após, o Relator determinou, à fl. 80, a retirada dos autos da pauta julgamento da e. Corte Superior desse Tribunal, com o objetivo de analisar o pedido de Reconsideração interposto pelo Município de XXX. Conclusos os autos, o Relator reviu seu posicionamento, revogou a liminar pleiteada e suspendeu o processamento da presente ADI até pronunciamento final do Supremo Tribunal Federal nos autos da Reclamação n.º 7396/MG. (fl. 85/86) Eis parte do teor da decisão monocrática: Após uma nova minuciosa análise dos autos, aliado às recentes manifestações proferidas por este Julgador e pelos demais pares perante a Corte Superior, tenho que o provimento judicial que deferiu o pedido cautelar na presente ação direta, de fato, merece ser revisto. Com efeito, verifiquei o teor da decisão da Reclamação n.º 7.396, da lavra do eminente Ministro Menezes de (sic) Direito, do Supremo Tribunal Federal. Em seu bojo, constata-se que restou suspenso decisum tomado no âmbito deste egrégio Tribunal envolvendo matéria idêntica a de que se trata, ao argumento de que o tema afronta a Constituição Federal, e não a Constituição Estadual e, neste contexto, a norma impugnada estaria fora do alcance dado ao controle concentrado de inconstitucionalidade deste Tribunal de Justiça. [...] Com estas considerações, atento à Reclamação n.º 7.396 do colendo Supremo Tribunal Federal, reconsidero a decisão de fls. 42/43-TJ, suspendendo não só a cautelar anteriormente deferida, mas também o processo em si, até que se julgue a referida ação perante a Instância Superior. Como se demonstrará, a decisão monocrática, na parte em que suspendeu o regular trâmite desta ação, merece ser reformada. Isso porque, data venia, a pretexto de seguir o posicionamento esposado pelo Min. Menezes Direito naquela Reclamação, fundamentou-se em decisão liminar, isolada e provisória, que não reflete o torrencial e pacífico entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre os limites da jurisdição constitucional estadual. 2. Da fundamentação 2.1 Da admissibilidade do agravo O manejo do presente Agravo está revestido dos requisitos necessários ao deferimento de seu processamento, bem como de seu conhecimento, pois se apresenta tempestivo 434 • Direito Público Constitucional e constitui o recurso adequado a desafiar a decisão monocrática proferida, à luz do que dispõe o parágrafo único do artigo 4º da Lei federal n.º 9.868/1999, aplicável, subsidiariamente, à espécie, assim como dos artigos 333 e 334 do Regimento Interno desse Tribunal de Justiça. 2.2 Reclamação proposta junto ao Supremo Tribunal Federal em face de decisão liminar proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais não configura hipótese de suspensão de ADI ajuizada em face de diploma legal de outro município Foi determinada pelo eminente Desembargador-Relator a suspensão da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade até o pronunciamento final do Supremo Tribunal Federal nos autos da Reclamação n.º 7.396MC/MG, que suspendeu os efeitos da liminar concedida por esse Tribunal de Justiça nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º XXX/XXX, ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça em face do § 2º do art. 1º e inciso II do artigo 2º da Lei n.º 9.627, de 09 de outubro de 2008, e dos artigos 3º e 4º da Lei n.º 9.676, de 30 de dezembro de 2008, ambas do Município de Belo Horizonte-MG. Não é demais lembrar que a decisão proferida pelo Ministro Menezes Direito é isolada no âmbito da Suprema Corte e, de qualquer forma, não poderia ser invocada para embasar a suspensão desta ADI, como veremos a seguir. Releva inicialmente afirmar