Opinião do especialista
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Opinião do especialista Esta seção visa trazer ao leitor a arte e a ciência da Medicina intimamente ligadas, porquanto acreditamos que uma não exista sem a outra. Arte, baseada na vivência de um médico reconhecidamente competente por seus pares, e ciência, calcada na melhor evidência contemporânea. Sabemos que as respeitadas verdades de ontem muitas vezes tornam-se divertidas doutrinas sem valor amanhã, mas isso não pode nos afastar do intento de procurar levar ao nosso leitor a melhor verdade de hoje. Constantino José Fernandes Junior Editor da seção Neuroartropatia de Charcot Fábio Batista* *Doutor; Chefe do Grupo de Pé Diabético, Disciplina de Ortopedia, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, São Paulo (SP), Brasil; Núcleo de Programas Estratégicos – Programa Proibido Feridas, Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo – São Paulo (SP), Brasil; Visiting Assistant Professor, University of Texas Health Science Center – San Antonio, EUA. Relevância e breve revisão do tema Descrita em 1868 pelo neurologista francês Jean-Martin Charcot como uma lesão neuroartropática hipertrófica destrutiva que afetava as articulações de indivíduos portadores de sífilis terciária, a artropatia de Charcot teve sua grande expressão científica a partir dos estudos de Eichenholtz, em 1966, quando se demonstraram achados clínicos, laboratoriais e microscópicos que propunham interpretação diagnósticas. Recentemente, em meados dos anos 2000, a American Orthopaedic Foot and Ankle Society referiu-se à artropatia de Charcot como um dos mais importantes e complexos cenários clínicos que requer do cirurgião de tornozelo e pé treinamento e especialização para seu manejo. Atualmente, em 2011, em San Antonio, Texas, em reunião com cirurgiões de pé diabético do mundo todo, definiram-se padrões diagnósticos avançados e modernas técnicas de intervenção terapêutica(1-3). O típico paciente portador da artropatia de Charcot apresenta-se com diabetes mellitus de longa duração, entre a quinta e sétima décadas de vida, geralmente está acima do peso e tem pés insensíveis. Situações clínicas, como a hanseníase, o alcoolismo, as doenças degenerativas do sistema nervoso central, mielodisplasias, lesões de nervos periféricos e outras, embora muito menos frequente que o diabetes, também podem comprometer as articulações e, eventualmente, evoluem para uma degeneração neuroartropática(1,2). O retardo no diagnóstico ou mesmo uma abordagem inapropriada podem favorecer a apresentação da doença em forma bastante avançada, com grave prejuízo funcional, e presença de deformidades, feridas complexas e infecções, levando até a amputação da extremidade, além do aumento exponencial dos custos diretos e indiretos aos pacientes, à sociedade e aos sistemas de saúde, bem como a significativa queda na qualidade de vida do indivíduo com expressiva elevação de sua morbimortalidade(2,3). Fisiopatologia A combinação entre a ausência da sensibilidade protetora dos pés e a perda do controle vasomotor com hiperfluxo, associada à osteoporose hiperêmica e à carga mecânica repetitiva, levaria a fraturas periarticulares e subluxações, bem como ao desenvolvimento de deformidades graves relacionadas a tentativas hipertróficas de consolidação. Fatores associados à expressão gênica, mecanismos de imunossupressão, atividade inflama tória, diminuição do crescimento cartilagíneo e fenômenos relacionados à glicação não enzimática do colágeno poderiam determinar formas de apresentação e evolução clínicas mais ou menos agressivas(1,2). Tratamento O tratamento deve ser individualizado e classicamente pode reunir técnicas conservadoras, seja por meio de ortetização apropriada, controle metabólico do diabetes, uso de neuroimunomoduladores, calcitonina intranasal e bifosfonados sistêmicos, ou por manejo cirúrgico Educ Contin Saúde einstein. 2012;10(2):55-7 56 oportuno e especializado, por meio de reconstrução ou realinhamento articular, utilizando-se placas e parafusos, hastes intramedulares, parafusos canulados ou fixadores externos(2,3). Deformidade óssea progressiva e marcante turnover ósseo (pelo processo inflamatório ativo), associados à neuropatia, têm aumentado o desafio no tratamento ci rúrgico. Técnicas de superconstrução que aumentam o poder de fixação, como a fusão que se estende além da zona afetada e atravessa por articulações não comprometidas, ressecções ósseas bem planejadas que reduzem completamente a deformidade, osteossíntese rígida bem tolerada pelo envelope de partes moles e aparelha mento apropriado para maximizar a função biomecânica do segmento afetado, tem sido cada vez mais discutidas e aplicadas (Fases 2 e 3 de Eichenholtz)(1). Cada vez mais vem ganhando espaço, entre os cirurgiões de pé, a intervenção cirúrgica da artropatia de Charcot aguda (Fase 1 de Eichenholtz), com o propósito de se estabilizar a anatomia óssea, evitando a perda de osso e o processo de luxação e subluxação articular, além de acelerar a resolução do processo inflamatório vigente. Temos dado preferência à fixação externa neutra com instrumental circular, envolvendo o pé, o tornozelo e a perna (Figuras 1 a 4)(3). O período pós-operatório é bastante criterioso. Fre quentemente são utilizados gesso de contato total e órteses do tipo Clamshell ou Crow. São exigidas cumpli cidade, disciplina e interatividade por parte do paciente, dos familiares e do cirurgião. O objetivo do manejo é o realinhamento articular, com a obtenção de um pé plantígrado, estável, funcional, livre de lesões e que possa ser aparelhado, sob molde, de forma satisfatória. Figura 2. Achado radiográfico sugerindo grave destruição e deslocamento osteoarticular Figura 3. Acesso cirúrgico para desbridamento, realinhamento articular e tomada de material profundo para cultura, antibiograma e anatomopatológico Figura 1. Charcot do tornozelo complicado com úlcera crônica e infecção profunda Educ Contin Saúde einstein. 2012;10(2):55-7 Figura 4. Estabilização com fixador externo circular neutro, associado à terapia de pressão negativa sobre a úlcera maleolar 57 Comumente, quando abordado cirurgicamente, opta-se pela não reconstrução anatômica e sim pela reorien tação do pé, enxertia e fixação estável, minimizando lesões adicionais, ainda que exiba alguma deformidade residual(1-3). Considerações finais Existem apresentações clínicas da artropatia de Charcot que parecem estar além do manuseio ortótico. Dessa forma, com a finalidade de manter a extremidade funcional, livre de recidiva de lesões e infecção, bem como manter o pé acomodado funcionalmente em palmilhas e calçados adaptados, devem ser consideradas as opções cirúrgicas, além de diminuir os índices de amputação, juntamente de programas de educação, prevenção e abordagem interdisciplinar integral e comprometida, como os principais critérios de resolutibilidade no manejo da artropatia de Charcot. Como alerta ao médico não especialista, a diferenciação entre infecção, fratura, crise aguda de gota e trombose venosa aguda se faz necessária. É manda tório o rápido encaminhamento desse paciente ao médico treinado. REFERÊNCIAS 1. Batista F, Monteiro AC. Tratamento cirúrgico da neuro-artropatia de Charcot: apresentação de técnicas e resultados preliminares. Diab Clin. 2003;7(5): 358-66. 2. Batista F. Uma abordagem multidisciplinar sobre pé diabético. São Paulo: Andreoli; 2010. 3. Batista F. Diabetic foot management around the world. Expert surgeon’s point of view. São Paulo: Andreoli; 2012. Educ Contin Saúde einstein. 2012;10(2):55-7
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