Rei Lear de Kurosawa - Thaïs Flores Nogueira Diniz
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Rei Lear de Kurosawa - Thaïs Flores Nogueira Diniz
SHAKESPEARE NO CINEMA o Rei Lear de Kurosawa diretor japonês se apropria da tragédia para recriá-la dentro de uma realidade cultural inteiramente outra THAÏS FLORES NOGUEIRA DINIZ * Poucos conhecem as centenas de filmes baseados na obra de Shakespeare desde os tempos do cinema mudo. Juntos constituem um arquivo significativo tanto para os estudiosos de Shakespeare, como para os de cinema ou de História, principalmente quando se trata de estudar os processos de mudança cultural. A tarefa de adaptar Shakespeare vem desafiando o trabalho individual dos artistas, pois cada adaptação passa a ser um local de negociação pessoal artística e cultural, um texto re-lido, repetível e sujeito a múltiplas interpretações. A preocupação com a fidelidade passa, então, para segundo plano e o NO FILME de Kurosawa, a personagem shakespereana vive os conflitos da tradição histórica Japonesa enfoque recai sobre os processos de apropria- cebível que a mulher herdasse propriedades. ro, disparado pelo exército do irmão. Ayabe a esposa do segundo filho, Jiro, segue o prição através dos quais Por isso, o cineasta japonês viu-se compelido torna-se finalmente o substituto de Hidetora. meiro. Submissa, vive de perdão, segundo o as práticas do teatro a transformar as filhas em filhos. já que as forças dos dois outros irmãos são Budismo, que prega o amor ao próximo em elizabetano são remo- No filme, dois senhores de terras vizinhas destruídas e eles morrem na luta. Como em qualquer situação e assim continua até o fim, deladas no meio cine- vêm oferecer as mãos de suas filhas a Sabu- Shakespeare, "a roda já completou seu cír- quando é morta por um emissário de Kaede. O matográfico. ro, o filho mais novo do samurai. 0 ancião culo" (Rei Lear, IV, iii:172). segundo caminho é trilhado por Kaede, que, na Um filme de Shakes- então anuncia a decisão de distribuir suas Entre os muitos aspectos que poderiam ser ânsia do poder, seduz o cunhado, peare deixa de ser uma terras entre os filhos e dar o poder ao mais destacados, nesse filme, avulta a atuação da chantageando-o, após a morte do seu próprio obra hermética com um velho. O caçula discorda do pai, dizendo que mulher dentro da ordem familiar. Este é um marido, em total subversão. Diferentemente de conjunto de significados o legado paterno, fruto de luta e conquista, aspecto que, nas várias culturas e em épocas Cordélia, protagonista de Lear, que introjeta a coerente e específico, para seria perdido, uma vez que, dividida a he- diferentes, vem sendo recuperado. No filme, ordem, e de Sye, o protótipo da submissão e da tomar-se a soma de um rança entre eles, os filhos, transformados em o papel da nora, Lady Kaede, é muito mais aceitação, Kaede não reflete, de modo algum, o número de discursos rivais, acabariam por se destruir mutuamen- importante que o dos genros de Lear. É ela sistema patriarcal. extraídos das várias áreas te. O pai se enfurece e, como Lear, bane o re- que, sozinha, executa a vingança, contrapõe- Ao tentarmos identificar a fonte histórica e/ou de produção. Vejamos o belde. Mas assim como o rei da França, que se ao samurai e destrói o reino da família Hi- cultural, compartilhamos com os críticos menos exemplo do filme "Ran", reconhece a lisura de Cordélia, Ayabe, um chimondi. Paradoxalmente, num país de tra- tradicionais a idéia de que uma adaptação filmi-ca de Akira Kurosawa. 0 dos senhores, admirando a sabedoria de Sa- dição eminentemente patriarcal, é a perso- não se apresenta como um produto hermético. Sua filme apropria-se de buro, segue-o, oferecendo-lhe a filha em ca- nagem feminina que detém a chave da tra- forma e conteúdo são determinados por forças "King Lear" e recria uma história nos samento. Aliam-se e se dirigem para o castelo ma. Não fora ela e o estandarte da família culturais diversas, entre elas a ênfase que se tem moldes japoneses. O rei é substituído por de Ayabe, deixando vazio o que inicial- não seria tirado do samurai e o desenlace dado contemporaneamente, também nos países um guerreiro samurai, Hide-tora mente seria destinado ao filho, e que, mais poderia ter sido alterado. orientais, à questão da mulher. Ichimondi, e as filhas, Cordélia, Goneril tarde, será objeto de disputa entre os irmãos Tudo resultou de um aspecto cultural: a ree Regan, por três filhos, Saburo. Taro e e o próprio Ayabe. Diferentemente de Cordé- pressão imposta à mulher. Kurosawa apre- * Thaïs Flores Nogueira Diniz é doutora em literatura Jiro. Nessa tradução cultural, o reino não lia, que acaba vencida, Saburo termina vito- senta-nos os dois extremos da opção ofereci- comparada, professora da Faculdade de Letras da UFMG e poderia ser deixado em poder de filhas, rioso, mas, como Cordélia, morre com um ti- da à mulher numa sociedade patriarcal. Sue, membro do Centro de Estudos Shakespeareanos como o foi em Shakespeare, pois no Japão seria incon-
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