LA NOCHE BOCA ARRIBA
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LA NOCHE BOCA ARRIBA
Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes JÚLIO CORTÁZAR E O FANTÁSTICO EM “LA NOCHE BOCA ARRIBA” E “CONTINUIDAD DE LOS PARQUES” 1 Mateus Duque Erthal (USP) 2 Introdução J úlio Florencio Cortázar nasceu no dia 26 de Agosto de 1914, em plena primeira guerra mundial, em Bruxelas, Bélgica. Viveu na Argentina, país de seus pais, até retornar à Europa em 1951, definitivamente e em exílio voluntário. Faleceu vítima de leucemia no dia 12 de Fevereiro de 1984, sendo sepultado no célebre cemitério de Montparnasse, Paris. Admirado por notáveis como Borges, Cortázar se tornou mestre contista, em especial do gênero fantástico, “das estórias curtas e de um certo nonsense” (CRUZ, 2008). Sobre seu estilo aparentemente despretensioso, mas extremamente lapidado, Borges dizia que “iludia, parecendo não ser bem cuidado mas, pelo contrário, cada palavra havia sido cuidadosamente escolhida e colocada no seu devido lugar como faz um ourives com suas engrenagens de ouro” (apud CRUZ, 2008). Na presente monografia, pretende-se discutir a presença do fantástico na produção do contista Cortázar, tomando como corpus de análise dois de seus contos mais conhecidos: “La noche boca arriba” e “Continuidad de los parques”, ambos parte de sua coletânea de contos “Final del Juego”. Desenvolvimento Há muita discussão envolvendo a questão do conto (ou novela, de acordo com a concepção aqui adotada) como gênero. Jolles (1976), em seu trabalho “As Formas Simples”, faz um levantamento histórico da terminologia associada à contística, desde suas origens. Indica que o próprio termo “conto” estaria bastante limitado, se empregado como designação de uma forma literária. Tentando delimitar a questão, o autor opõe os conceitos de Forma Simples e Forma Artística. A primeira estaria associada a uma espécie de poesia natural, à criação espontânea, ao apego à generalidade, à mobilidade, à pluralidade e à atemporalidade, também ressaltada por Arnim (apud JOLLES, 1976). Este tipo de narrativa folclórica teria seu interesse justamente na capacidade de atualização. Associa-se à metáfora do ovo de Grimm (apud JOLLES, 1976), em que se defende que o núcleo comum do chamado “conto popular” deve ser mantido intacto, mesmo que seja recontada a história de acordo com a individualidade de quem a conta. Cita-se também neste contexto Propp (1984), que em seus estudos procurou definir a estrutura mínima, ou funções, de um conto maravilhoso 3. A chamada Forma Artística, por sua vez, corresponderia à poesia artístico-autoral, 1 Baseado em monografia original de fim de semestre da disciplina de graduação Teoria Literária I. E-mails: [email protected]; [email protected] 3 Ao conceito de “maravilhoso” em oposição ao de “estranho” e limítrofe ao de “fantástico” (TODOROV, 2007), se fará referência mais tarde, ainda nesta monografia. 2 A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 56 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes exigindo maior grau de elaboração e solidez, focando na peculiaridade, na singularidade. A singularidade, tomada como eixo de elaboração deste tipo de forma, leva a uma característica fundamental de uma novela: deve ser narrado fato ou incidente impressionante, inaudito, digno de relato. F. Schlegel (apud GROJNOWSKI, 2001) define uma novela como “uma história que não pertence à História”. A esta definição acrescenta-se a idéia do “Ponto de Virada”, atribuída a A. Schlegel (apud GROJNOWSKI, 2001), ou seja, a defesa de que a particularidade de uma novela é atingida quando esta está baseada no relato de uma ação única, de um momento singular de crise que represente um ponto de inflexão na vida das personagens. Poe (1999), por sua vez, limita a extensão deste relato, que deve ser pequeno o suficiente para que se “leia em uma só assentada”, garantindo assim a manutenção de sua totalidade. Cortázar (1974) acrescenta que a preocupação de um contista deve ser o recorte preciso de uma situação, acima da percepção de uma personagem. Na obra de Cortázar, observa-se uma predileção clara pela narrativa em cena, focada na ação. O próprio autor dizia se “irritar” com “narrativas onde as personagens têm de ficar como que à margem, enquanto o narrador explica por sua conta [...] detalhes ou passagens de uma situação a outra” (CORTÁZAR, 1974). Vale ressaltar que a caracterização das personagens é importante, mas na constituição do ambiente propício à ocorrência do fato principal. A ambientação adequada traria ao leitor, por exemplo, a impressão de que o fato insólito narrado pode ter efetivamente acontecido. O acontecimento inusitado, inédito, deve estar arraigado no real, para que seja cativante e surpreendente, atingindo o efeito catártico desejado. De certa forma, Cortázar já defendia esta presença de fascinação que deveria estar presente nos grandes contos, desde o início: “o grande conto breve condensa a obsessão do bicho, é uma presença alucinante que se instala desde as primeiras frases para fascinar o leitor, fazê-lo perder contato com a desbotada realidade que o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais intensa e avassaladora” (CORTÁZAR, 1974). Neste sentido, Poe (1999), considerado um dos maiores contistas da literatura mundial, discute a relação entre a novela e o cotidiano, subvertendo-o quando necessário. A preocupação com o realismo cativante, buscando-se a mimeses do real, vem a vincular a novela a um referente claro do ponto de vista histórico, temporal ou geográfico, por exemplo. Esta ancoragem no real é defendida por diversos críticos e autores como traço fundamental da novela e está presente desde obras como o Decameron, de Boccaccio (2005), pioneiro no gênero, e sua descrição minuciosa da Peste Bubônica que assolou a Europa. Em tempo, nas produções associadas à Forma Simples, salta-se de incidente para incidente, sem encerramento de forma definitiva até o arremate final (“E viveram felizes para sempre”). O referencial não está no real, mas no maravilhoso ( JOLLES, 1976). A questão do referencial real não se limita, ressalta-se, à estética especificamente realista. Como indica Ozwald (2000), a criação de um ambiente realista e verossímel, como já defendia Poe (1999), prevê a possibilidade de sua posterior subversão. Este processo de desrealização (na presença ainda de um fato a ser narrado que tenha características de inaudito) encontra, dessa forma, terreno fértil na forma literária das novelas. Além disso, também nãoordinário parece ser ao próprio Cortázar o processo de criação de uma novela, ou seja, entre o autor e a produção em si. O conto (a novela) surge como algo de onírico, como “latências de uma psique profunda” que se manifestam ao autor, cuja função é expressá-las (da melhor maneira possível) em palavras, dar-lhes uma forma. De uma espécie de torpor, de um estado de transe (“no que os franceses chamam de état second”) nasce a novela, invariavelmente tomando A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 57 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes traço marcantemente fantástico. Explica-se desta forma a conexão tão íntima entre este tipo de produção e a literatura fantástica. Todorov (2007) define o fantástico como uma linha tênue entre dois gêneros, estes sim bem-definidos: o estranho e o maravilhoso. De acordo com este autor, três condições mínimas devem ser respeitadas para que uma obra possa ser classificada como pertencente ao gênero fantástico. A primeira delas é que o leitor – seja ele o leitor implícito no texto (“narratário”, de KAYSER, apud ARRIGUCCI, 1998) ou mesmo o leitor real – hesite entre explicações possíveis para o fato inusitado ou insólito que se apresenta, oscilando entre uma explicação natural e uma sobrenatural. Todorov (2007) defende que esta hesitação não pode ser desfeita. Se prevalece a explicação natural, racional, tem-se um exemplo do gênero do estranho. Não há quebra da ordem naturalmente aceita, há sempre uma explicação para o que, até então, era considerado inexplicável. Por outro lado, caso o sobrenatural venha a ser aceito, e os acontecimentos desta natureza passem a não mais surpreender o leitor, tem-se algo pertencente ao gênero do maravilhoso. Neste caso, é estabelecida uma distância tal entre o “real” do leitor e o do que é narrado que o sobrenatural torna-se natural dentro daquele contexto, regido por novas leis. A segunda das características que, segundo Todorov (2007), devem ser atendidas pelo fantástico é o compartilhamento da dúvida entre o leitor e uma das personagens. O papel hesitante do leitor é confiado a uma personagem (representação da hesitação na obra). Finalmente (terceira característica), Todorov (2007) defende que o leitor deve recusar qualquer tipo de interpretação alegórica ou poética do que é narrado. A Paes (1985), a definição do fantástico por Todorov parece por demais restritiva. A questão da hesitação do leitor, com efeito, se mostra presente na grande maioria dos contos rotulados como fantásticos. Porém, em contos de autores como Kafka, Borges e Cortázar, aceita-se o universo ficcional “sem mais se preocupar em cotejá-lo com o universo real”, estando quebrada, portanto, a máxima da hesitação. Sartre (1968) classifica um certo tipo de produção kafkaniana como o “último estado da literatura fantástica”. Existiria apenas um objeto fantástico: o próprio homem. O natural se vê projetado no que é familiar, cotidiano, humano. A subversão das leis naturais oscila entre o universal e o particular. A identificação do leitor com a personagem garante que sejam compartilhados os momentos de descoberta e espanto, mas também “se vê o fantástico de fora, como um espetáculo, como se uma razão desperta contemplasse serenamente as imagens de nossos sonhos” (SARTRE, 1968). Para Caillois (1970), o fantástico não se coloca como uma ruptura do real, mas propõe uma perspectiva diferente, irracional, em relação a ele. Os mundos “mágico” (maravilhoso) e “real” coexistem, se confundem, sem choques ou conflitos. O fantástico, por sua vez, “no es un medio, es una agresión”. O autor propõe que: El intento esencial de lo fantástico es la Aparición, lo que no puede suceder y que a pesar de todo sucede, en un punto y un instante preciso, en medio de un universo perfectamente conocido y donde se creía definitivamente desalojado el mistério. (CAILLOIS, 1970) Paes (1985) defende o fantástico como uma forma de inversão do mundo narrativo, um fato absurdo que é invariavelmente fonte de espanto ou horror. Nos dois contos de Cortázar considerados nesta análise, há a alternância, oscilação, entre duas realidades. Uma delas mais fortemente carregada de referenciais no real contemporâneo e a outra aparentemente A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 58 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes relacionada ao maravilhoso, à fantasia. É nesta duplicidade de realidades, em ambos os contos, que se coloca a força do fantástico. O horror, neste caso, é colocado quando não há mais certeza de qual das possibilidades corresponde ao real. Também segundo Caillois (1970), no prefácio de sua antologia de contos fantásticos de terror, o sentimento de temor deve ser característico de toda obra do gênero. Diz o autor: “el terror debe derivar únicamente de una intervención sobrenatural, y la intervención de lo sobrenatural debe culminar en un efecto de terror” (CALLOIS, 1970). O efeito catártico, colocado já por Aristóteles em sua Poética (1996), é alcançado pelo pathos do medo, em geral do desconhecido, do inexplicável, do imprevisível. Em “Continuidad de los parques”, conta-se a história de um homem de negócios que, após lidar com seus afazeres e de dar ordens a seu mordomo, se vê em seu escritório, pronto a ler o final de uma novela que havia começado dias antes. Instala-se confortavelmente em uma poltrona de encosto alto e se deixa envolver pela história e seus personagens (“Había empezado a leer la novela unos días antes”; “se dejaba interesar lentamente por la trama, por el dibujo de los personajes”). Como referencial temporal que localizaria o narrado em épocas relativamente recentes, cita-se o trem que o levara ao espaço em que se passa a história, ou seja, o escritório na casa da fazenda. Eis que se instaura o não-familiar: em “Continuidad de los parques”, conta-se, alternada à primeira, a história de dois amantes em uma cabana, planejando os detalhes (e discutindo motivações) de um assassinato que deveria ocorrer. Trata-se do que é efetivamente lido pelo homem da primeira história. Em seu livro, seria morto um também homem de negócios. Moura (2009) destaca que “os dois acontecimentos se (con)fundem na sintaxe do relato”. A autora estabelece uma relação entre a estrutura de “Continuidad de los parques” e a obra “Exposição de gravuras” de Escher. Nela, o espectador se vê envolvido no próprio quadro, assim como aquele leitor passa a fazer parte da história que lê. Acrescenta que “quando Escher aponta que se o admirador do quadro observasse o seu entorno perceberia que fazia parte do mesmo, também o leitor do conto de Cortázar, se voltasse sua cabeça, poderia ver o assassino do livro que está lendo, atrás de si” (MOURA, 2009). Os sinais da sobreposição das histórias são claros: “Arrellanado en su sillón favorito, de espaldas a la puerta que lo hubiera molestado como una irritante posibilidade de intrusiones, dejó que su mano izquierda acariciara una y otra vez el terciopelo verde y se puso a leer los últimos capítulos”, ao iniciar-se a novela; “La puerta del salón, y entonces el puñal en la mano, la luz de los ventanales, el alto respaldo de un sillón de terciopelo verde, la cabeza del hombre en el sillón leyendo una novela”, seu final. Escher (1994 apud MOURA, 2009) apontava em seu quadro a existência de uma espécie de fissura que permitisse a interrelação e alternância de realidades. No caso de “Continuidad de los parques”, Moura (2009) observa ser o livro, o ato de leitura, que toma o lugar deste chamado “ponto vélico”, de aproximação-distanciamento entre as realidades. O leitor da novela se identifica com o também leitor da primeira história. Há um distanciamento inicial em relação à segunda narrativa, a dos amantes, “la ilusión novelesca”. O homem de negócios da primeira história parece também usar a leitura para instaurar o desligamento de sua realidade (“Gozaba del placer casi perverso de irse desgajando línea a línea de lo que lo rodeaba [...]”; “Palabra a palabra, absorbido por la sórdida disyuntiva de los héroes, dejándose ir hacia las imágenes que se concertaban y adquirían color y movimiento, fue testigo del último encuentro en la cabaña del monte”). Moura aponta: A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 59 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes No conto o ponto vélico seria o livro, um instrumento que permite uma fissura entre duas ou mais 'realidades'. Também o leitor que está lendo o conto se vê envolvido pelo texto. Espectador e leitor se encontram “dentro” da obra. [...] A vida imita a arte que imita a vida que imita... Esse miniconto possui tal complexidade. (MOURA, 2009) As duas realidades em “Continuidad de los parques” se fundem, surpreendentemente, ao final. Perde-se o referencial, subverte-se o racional, confundem-se as realidades possíveis, movimento notadamente relacionado ao fantástico. A segunda história, que, a princípio, se colocava a um certo distanciamento do leitor por ser apresentada como ficção, salta para o primeiro plano: “La puerta del salón, y entonces el puñal en la mano, la luz de los ventanales, el alto respaldo de un sillón de terciopelo verde, la cabeza del hombre en el sillón leyendo una novela”. Com horror, o leitor se depara com a possibilidade de concretização do assassinato planejado pelos amantes, que afinal pretendiam matar o homem de negócios, com o qual havia sido estabelecida a identificação inicial. O antes leitor, personagem da primeira história, agora faz parte da segunda e se vê próximo do momento de sua morte. O fantástico também se coloca quando se pensa na seguinte questão: tendo lido grande parte da novela, o homem de negócios da primeira história já estaria ciente de seu destino? Alguns elementos de “Continuidad de los parques” parecem dar a entender que sim: “de espaldas a la puerta que lo hubiera molestado como una irritante posibilidade de intrusiones”; “y se sentía que todo está decidido desde siempre”; “la figura de otro cuerpo que era necesario destruir”. Esta novela pode ser interpretada sob esta perspectiva, em que o horror se sustenta não apenas pela eminência de um assassinato, mas pela possível aceitação da vítima de que este ocorra, apenas para que se termine a história de uma novela. “Manifestações absurdas figuram como condutas normais, então o leitor encontrar-se-á de repente no domínio do fantástico” (SARTRE, 1968). Em “La noche boca arriba”, há uma primeira história com referenciais geográficotemporais claramente mais familiares a um leitor contemporaneo. Trata-se da história de um homem que, ao sair de um hotel, toma sua moto e sofre um acidente, tentando evitar o encontro com uma pedestre que, apesar do sinal verde para o tráfego, resolve atravessar a rua. Acidentado, é socorrido por algumas testemunhas e prontamente levado ao hospital, onde é medicado e passa a noite. A moto, o hotel, o semáforo, a ambulância, o hospital, entre outros, são elementos familiares que ajudam a situar a narrativa temporalmente, trazendo-a à contemporaneidade: “A mitad del largo zaguán del hotel pensó que debía ser tarde y se apuró a salir a la calle y sacar la motocicleta del rincón donde el portero de al lado le permitía guardarla”. O referente geográfico (Buenos Aires) é menos direto, mas não deixa de ser claro: “Dejó pasar los ministerios (el rosa, el blanco) y la serie de comercios con brillantes vitrinas de la calle Central”. Porém, mais uma vez o distanciamento pode ser observado na segunda história. Trata-se da luta pela sobrevivência de um moteca, que tenta desesperadamente escapar de seus perseguidores do povo asteca. O termo “guerra florida” faz referência ao conflito entre povos pré-colombianos que habitavam a região da atual América Central. De acordo com certas crenças astecas, o Sol necessitava da energia do sangue para completar com sucesso seu percurso ao longo do céu. Assim, eram feitos sacrifícios de prisioneiros de outras tribos, como a dos motecas, para que estivesse garantida a vida do Sol e, com ele, de toda a civilização asteca. A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 60 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes O nome do conto está relacionado, por sua vez, à posição em que eram colocados os prisioneiros no momento do sacrifício: de rosto para cima, a boca direcionada ao alto. Com tal distanciamento temático, quebra-se o referencial geográfico-temporal que, até então, vinha aproximando o contexto situacional do narrado e o leitor. Apesar disso, há elementos que tentam trazer certa ideia de familiaridade também à segunda história: “Y todo era ta n na tura l , tenía que huír de los aztecas que andaban a caza de hombre, y su única probabilidad era la de esconderse en lo más denso de la selva, cuidando de no apartarse de la estrecha calzada que sólo ellos, los moteca s, conocía n ” 4. A segunda história é aqui apresentada como um sonho do homem da primeira, ou ainda como efeito dos delírios causados por sua febre. Neste caso, o “ponto vélico” de Escher, o ponto de encontro, de alternância entre as duas realidades, poderia ser exatamente este caráter onírico dispensado à história. A ideia de que se trata de um sonho do homem no hospital (ou de alguma forma de manifestação do subconsciente em état second) é recorrente: “Fue como dormirse de golpe”; “cerró los ojos y deseó estar dormido o cloroformado”; “se despegó casi físicamente de la última visión de la pesadilla”; “Es la fiebre”. Cortázar parece querer corroborar esta intenção de distância inserindo na segunda história elementos que estariam normalmente associados ao universo do maravilhoso: “La mano [...] subió como un escorpión de los pantanos hasta su cuello, donde colgaba el amuleto protector”; “la plegaria del maíz que trae las lunas felices”; “la súplica a la Muy Alta, a la dispensadora de los bienes motecas”; “el amuleto que era su verdadero corazón, el centro de su vida”. Porém, a subversão da realidade, do racional, também está presente em “La noche boca arriba”. O final surpreendente, denso e sombrio, praticamente tira o leitor de seu eixo normal ao sugerir que o índio moteca sonhava com o hospital, e não o contrário: Alcanzó a cerrar otra vez los párpados, a unque a hora sa bía que no iba a desperta rse, que esta ba despierto, que el sueño ma ra villoso ha bía sido el otro, a bsurdo como todos los sueños; un sueño en el que había andado por extrañas avenidas de una ciudad asombrosa, con luces verdes y rojas que ardían sin llama ni humo, con un enorme insecto de metal que zumbaba bajo sus piernas. En la mentira infinita de ese sueño también lo habían alzado del suelo, también alguien se le había acercado con un cuchillo en la mano, a él tendido boca arriba, a él boca arriba con los ojos cerrados entre las hogueras. 5 O leitor é convidado a compartilhar o terror com o índio a ser sacrificado, a identificarse com ele e distanciar-se, agora, do homem no hospital. O convite à quebra da realidade e da racionalidade garantem, ao final, o traço marcadamente fantástico de “La noche boca arriba”, já presente na questão onírica que se colocava desde seu início. Em ambas as novelas, curiosamente, o horror que, como discutido, está ligado a seu cunho fantástico, vem associado a uma imagem comum: o punhal. Em “Continuidad de los parques”, é a arma do crime a acontecer. Está, neste caso, associada à morte do homem de negócios, ao fim da história: “El puñal se entibiaba contra su pecho, y debajo latía la libertad agazapada”; “La puerta del salón, y entonces el puñal en la mano”. Já em “La noche boca arriba”, a simbologia do punhal está muito mais fortemente ligada à vida, à possibilidade de 4 5 Grifos meus. Grifo meu. A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 61 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes sobrevivência. Está associado ao amuleto, portanto. O que diferencia o punhal do amuleto é justamente a consciência do índio em relação a seu uso. O punhal é usado instintivamente, sem que se saiba, enquanto as preces à “Muy Alta” e a força do amuleto lhe são conscientes: “tocando instintivamente el puñal de piedra atravesado en su ceñidor de lana tejida”; “La mano que sin saberlo él, aferraba el mango del puñal”. O horror de perdê-los, amuleto e punhal, traz a certeza da morte: “Con el mentón buscó torpemente el contacto con su amuleto, y supo que se lo habían arrancado. Ahora estaba perdido, ninguna plegaria podía salvarlo del final”. A morte dos personagens é não só motivo de terror mas também elemento fundamental na questão da junção das realidades em cada um dos contos. E neste ponto abre-se a possibilidade de discussão de algo interessante. Em seu ensaio sobre a história da morte no ocidente, Ariès (2003) associa a descoberta da individualidade ao momento da morte. Naquele momento único e particular estaria a origem da singularidade, da peculiaridade e, consequentemente, do indivíduo. A morte do “si” (já presente também na descrição pormenorizada da morte em Decameron de Boccaccio, 2005) está atrelada à própria definição do indivíduo. Toda a vida poderia ser resumida em um instante: o em que se morre. A morte surge quase como objetivo, uma meta: “Do ponto de vista da morte, a vida é o processo da produção do cadáver” (BENJAMIN, 1996). E, sendo a morte um momento único, singular e absolutamente solitário, acaba se mostrando particularmente frequente que seja usada como leitmotiv em grande número de contos-novelas. A consciência de si mesmo acaba trazendo a questão do indivíduo bipartido, espelhado. Em “Continuidad de los parques”, o homem de negócios que lê o romance é ao mesmo tempo o homem de negócios personagem da novela, o que será assassinado. Sobre a relação entre as duas personagens principais de “La noche boca arriba” (moteca e o homem do hospital), Carrillo (2009) comenta: El hombre del hospital sabía que el moteca existía en sus pesadillas, quería evitarlo manteniéndose despierto; el moteca, cuando lo llevaban los acólitos al teocalli, luchaba por despertar apretando los párpados, gimiendo por volver al hospital, es decir que él también sabía del otro. El hombre completo era consciente de la dualidad que lo conformaba, estaban en la batalla, pero la muerte del moteca era inminente – aunque en el relato no se consuma –. (CARRILLO, 2009) O mito da duplicidade, do duplo, tem estreita relação com o gênero literário da ficção fantástica, ao qual, conforme já discutido, pertencem os dois contos em análise. A perturbação do cotidiano por um fato ou incidente estranho, inaudito, inesperado, característica da novela, contribui para que se estabeleça a recorrência temática do duplo. Como defende Brunel (2005), a representação literária do mito da duplicidade não é de forma alguma algo recente. Platão (2009), no discurso de Aristófanes em “O Banquete” discute a questão da bipartição da natureza humana, imposta como castigo aos homens, que ousaram desafiar os deuses. Está quebrado, então, o equilíbrio da duplicidade e estabelece-se, a partir daí, a eterna busca do duplo: o ser que busca sua face complementar. Brunel (2005) ainda ressalta que o duplo está fortemente ligado ao problema da morte e à vontade de a ela sobreviver, sendo de certa forma uma personificação da alma imortal. O homem de negócios de “Continuidad de los parques”, ao ler a novela, poderia tomar conhecimento de seu destino e tentar modificá-lo, ou apenas aguardar seu fim. Fica estabelecida a ambivalência do caráter desta duplicidade: ao A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 62 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes mesmo tempo uma possibilidade de fuga, de proteção e de conquista da unicidade perdida, e um sinal da eminência da morte, de ameaça, da incompletude. De acordo com Borges (apud BRUNEL, 2005), a morte sonhada durante a morte verdadeira “é como se dois homens existissem ao mesmo tempo”. O “eu” deixa de ser definido por sua posição no “aqui e agora”, vive o presente como uma ilusão e o imaginário prevalece sobre o real, como em “La noche boca arriba”. O sonho acaba se mostrando mais verdadeiro que a própria realidade, tornando quem sonha “mais próximo daquilo que era antes de ser o que não sabe se é” (CORTÁZAR apud BRUNEL, 2005). O duplo metafísico prevê a existência de mais de um “eu”: “el otro” de Borges e Rimbaud e seu “je est un autre”. Este “eu” bipartido acaba vivendo em um mundo que, em si, também se configura como “uma duplicata: tudo não passa de aparência, a verdadeira realidade está fora; noutro lugar, tudo o que parece ser objetivo é na verdade subjetivo, o mundo não é senão o produto do espírito que dialoga consigo próprio” (BRUNEL, 2005). Dentro da perspectiva freudiana, a busca da verdadeira identidade é, inclusive, o objetivo que orienta as histórias em que o duplo fortemente se mostra. O “discurso do outro”, fornecido pelo duplo, leva ao acesso ao inconsciente. Cortázar, em “La noche boca arriba”, propõe uma ligação entre dois universos separados e, aparentemente, não-relacionados. Esta ligação, porém, se coloca como um encerramento da personagem em si mesma, ou seja, um duplo interiorizado, subconsciente, pessoal e individual. É interessante apontar que a questão da duplicidade pode ser também abordada quando o interesse é explorar o contato entre duas culturas, representadas por dois “eus”, muitas vezes em tempos e espaços distintos (“dualidade espaço-temporal”, BRUNEL, 2005). Em “La noche boca arriba”, Cortázar expõe a cisão do “eu” entre a cultura do colonizador, que, estando subjugado o colonizado, prevalece e se faz presente no homem ocidental contemporâneo, e a do colonizado, ali representado pelo personagem précolombiano que foge do sacrifício que lhe será imposto pelos astecas. Brunel (2005) aponta que muitos autores latino-americanos usam esta expansão do confinamento do “duplo em si mesmo”, com as personagens representantes da duplicidade vivendo em espaços e tempos plurais: Para eles o mito do duplo real imaginário, sonhado, 'fantasmado' é uma forma de abordar sua relação com a história, com a memória, uma forma de criar uma mitologia sincrética que leve em conta a civilização própria (relação com as divindades pré-colombianas) e o que lhes vem da Europa, marcando sua condição de homens dilacerados entre duas culturas e dois mundos [...] (BRUNEL, 2005) Brunel acrescenta que o duplo simboliza a dúvida sobre o real: o “eu, puro discurso, está no cruzamento de uma trama de vozes” (BRUNEL, 2005). A ambiguidade, a incerteza, a indecisibilidade que fazem parte do refinado jogo de troca entre o eu e seu duplo confundem a referência, ao expressarem uma dúvida (construtiva) sobre o real, dúvida graças à qual é cabível imaginar que o individual poderá ser superado [...] Tendo desaparecido aquilo que demonstrava um enraizamento do eu no real, o imaginário prevalece sobre a realidade; já não se sabe quem é o original, quem é o duplo. (BRUNEL, 2005) Esta dúvida, em “Continuidad de los parques” não termina necessariamente desfeita. A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 63 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes Fica a possibilidade de que tudo não passa de uma coincidência, imagens comuns entre a realidade e a ficção. A mesma questão se coloca em “La noche boca arriba”. A duplicidade de realidades (e, consequentemente, de “sonhadores”) poderia ter sido criada pela mente febril de um convalescente: La fiebre lo iba ganando despacio y hubiera podido dormirse otra vez, pero saboreaba el placer de quedarse despierto, entornados los ojos, escuchando el diálogo de los otros enfermos, respondiendo de cuando en cuando a alguna pregunta. Caía la noche, y la fiebre lo iba arrastrando blandamente a un estado donde las cosas tenían un relieve como de gemelos de teatro, eran reales y dulces y a la vez ligeramente repugnantes, como estar viendo una película aburrida y pensar que sin embargo en la calle es peor, y quedarse. Como defende Carrillo (2009): A pesar que el narrador resuelve al final del relato, que en realidad el soñador no era el hombre del hospital sino el indio moteca, la ambivalencia queda abierta, tanto por el carácter del sueño, como por la conciencia de soñador que había tenido el accidentado. Una especie de ida y vuelta soñador-soñado-soñador, lo que importa es que representa una lucha. Podemos decir que el soñador personifica la materia, y el soñado el espíritu [...] Volta-se à questão da hesitação típica do fantástico de Todorov (2007). O leitor oscila entre duas possibilidades, sem necessariamente se decidir por uma delas. Como peculiaridade do conto “La noche boca arriba”, extremamente bem construído, cita-se a marcação desta hesitação por questões sensoriais. A preocupação sensorial permeia suas histórias, a começar pela confusão entre as duas realidades: “Primero fue una confusión, un atraer hacia sí todas las sensaciones por un instante embotadas o confundidas”. Além da aproximação, Cortázar parece desejar marcar com distintas referências aos cinco sentidos o distanciamento (a existência do “ponto vélico”) entre estas duas realidades de “La noche boca arriba”, uma com referenciais no real e outra de caráter, pelo menos a princípio, mais onírico. Na história do homem no hospital, o sentido mais claramente tratado é o da visão: “Abrió los ojos y era de tarde”; “Vio llegar un carrito blanco [...], una enfermera rubia”; “una lámpara violeta”; “como un ojo protector”; “Se puso a mirar”. Em alguns momentos, inclusive, este sentido é usado para marcar a transição entre as realidades: “La luz violeta de la lámpara en lo alto se iba apagando poco a poco”, na passagem entre a história do homem no hospital para a do indígena; “Ya lo rodeaban las luces y los gritos alegres”, voltando do ritual de sacrifício para a sala de recuperação. Além disso, percebe-se a identificação do sentido do paladar com a história do homem acidentado, como em: “Sentía gusto a sal y sangre [...]”; “de una cortadura en la ceja goteaba sangre por toda la cara. Una o dos veces se lamió los labios para beberla”. Também associados ao paladar, são apresentados repetidamente como elementos desta realidade a água, a sede, o líquido: “y alguien con guardapolvo dándole de beber un trago”; “Sintió sed [...], pero no querían darle mucha agua”; “Vino una taza de maravilloso caldo de oro oliendo a puerro, a apio, a perejil”; “Le habían puesto una botella de agua mineral en la mesa de noche. Bebio del gollete, A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 64 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes golosamente”; “En la mesa de noche, la botella de agua tenía algo de burbuja, de imagen traslúcida contra la sombra azulada de los ventanales”. Também aqui a transição entre a realidade bipartida (sonho-real-sonho) é marcada por estes elementos: “al pasarse la lengua por los labios resecos y calientes sintió el sabor del caldo, y suspiró de felicidad, abandonándose”; “Tome agua y va a ver que duerme bien”; “Hizo un último esfuerzo, con la mano sana esbozó un gesto hacia la botella de agua; no llegó a tomarla, sus dedos se cerraron en un vacío otra vez negro, y el pasadizo seguía interminable”. É notável neste último trecho a relação entre o elemento “racional” e o “maravilhoso”, a água e o amuleto (“Con el mentón buscó torpemente el contacto con su amuleto, y supo que se lo habían arrancado”), marcando esta dualidade tão presente nesta novela e característica do gênero fantástico. A associação entre os sentidos e o duplo de “La noche boca arriba” é ainda mais avassaladora quando se observa a recorrência do olfato na história da “guerra florida”: “Primero un olor a pantano [...] Pero el olor cesó, y en cambio vino una fragancia compuesta y oscura como la noche en que se movía huyendo de los aztecas”; “Lo que más lo torturaba era el olor, como si aun en la absoluta aceptación del sueño algo se revelara contra eso que no era habitual, que hasta entonces no había participado del juego. 'Huele a guerra', pensó [...]”; “No se oía nada, pero el miedo seguía alli como el olor, ese incienso dulzón de la guerra florida”; “Entonces sintió una bocanada del olor que más temía, y saltó desesperado hacia adelante”; “El olor a guerra era insoportable”; “el olor a humedad, a piedra rezumante de filtraciones, le cerró la garganta y lo obligó a comprender”; “de repente olería el aire libre lleno de estrellas”. Há passagens que contrapõem as realidades através do duplo visão/olfato: “el olor de las antorchas le llegó antes que la luz”. Nega-se o sentido da visão na história do índio, mas estranha-se a presença tão forte do olfato: “Inútil abrir los ojos y mirar en todas direcciones; lo envolvía una oscuridad absoluta”; “Como sueño era curioso porque estaba lleno de olores y él nunca soñaba olores”. Se insinua aqui a possibilidade do fantástico, a dúvida da questão “sonhado-real”. Também relacionado a estes sentidos, aos instintos primitivos, Cortázar propõe a aproximação homem-animal (KAYSER, 1986), que pode ser considerada traço marcante da caracterização de personagens de cunho fantástico: “Tal vez un animal que escapaba como él del olor a guerra”; “A tientas, agachándose a cada instante para tocar el suelo más duro de la calzada, dio algunos pasos”. Neste caso, os instintos do olfato (“del olor”) e do tato (“para tocar el suelo”) sugerem a animalização do índio, entregue ao terror da morte que se aproxima. Tal fusão, ressalta-se, ocorre não apenas do índio com um animal, mas com a própria natureza ou com o que o cerca: “Sus pies se hundían en un colchón de hojas y barro”; “los tobillos se le estaban hundiendo despacio en el barro”; “las cuerdas que se le hundían en la carne”. Há outras indicações do tato: “Estaba estaqueado en el piso, en un suelo de lajas helado y húmedo. El frio le ganaba la espalda desnuda, las piernas”, “tocando instintivamente el puñal de piedra”; “manos calientes, duras como el brónze”, na história do moteca; “Le palmeó la mejilla e hizo una seña a alguien parado atrás”, marcando a transição entre as duas realidades. Finalmente, há referência ao sentido da audição, extremamente recorrente na história do indígena: “a pesar de la oscuridad y el silencio, se agachó para escuchar”; “Oyó los gritos y se enderezó de un salto, puñal en mano”; “Lejanamente, como filtrándose entre las piedras del calabozo, oyó los atabales de la fiesta”; “chirriar de los cerrojos”. A audição é usada para mais uma vez marcar a cisão do personagem no momento que precede sua morte, conforme citado anteriormente na discussão do duplo: “Oyó gritar, un grito ronco que rebotaba en las paredes. A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 65 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes Otro grito, acabando en un quejido. Era él que gritaba en las tinieblas, gritaba porque estaba vivo [...]”. Em movimento contrário, a confusão dos sentidos aproxima a realidade dupla após a revelação de que a história do hospital havia sido um sonho, trazendo agora à história do sacrifício indígena elementos relacionados à visão (“y en lo alto estaban las hogueras, las rojas columnas de rojo perfumado, y de golpe vio la piedra roja, brillante de sangre que chorreaba”; “y de la altura una luna menguante le cayó en la cara donde los ojos no querían verla, deseparadamente se cerraban y abrían buscando pasar al otro lado, escubrir de nuevo el cielo raso protector de la sala”) ou a alusão ao olfato na sala do hospital: Con una última esperanza apretó los párpados, gimiendo por despertar. Durante un segundo creyó que lo lograría, porque estaba otra vez inmóvil en al cama, a salvo del balanceo cabeza abajo. Pero olía a muerte y cua ndo a brió los ojos vio la figura ensangrentada del sacrificador que venía hacia él con el cuchillo de piedra en la mano. 6 Os olhos (o ver) acabam se tornando uma forma de apego à vida, uma vez relacionados à realidade que permitiria a sobrevivência do homem. O índio tenta desesperada e inutilmente “despertar para o sonho”, certo de que a vigília poderia protegê-lo do terrível destino que se anunciava. Mas justamente a visão da lua minguante, ao final do corredor que o levaria à pedra de sacrifícios, o traz a certeza de que já não era possível escapar. Cada vez que cerraba los ojos las veía formarse instantáneamente, y se enderezaba aterrado pero gozando a la vez del saber que ahora estaba despierto, que la vigilia lo protegía, que pronto iba a amanecer, con el buen sueño profundo que se tiene a esa hora, sin imágenes, sin nada... Le costaba mantener los ojos abiertos, la modorra era más fuerte que él. Hizo un último esfuerzo, con la mano sana esbozó un gesto hacia la botella de agua; no llegó a tomarla, sus dedos se cerraron en un vacío otra vez negro, y el pasadizo seguía interminable, roca tras roca, con súbitas fulguraciones rojizas, y él boca arriba gimió apagadamente porque el techo iba a acabarse, subía, abriéndose como una boca de sombra, y los acólitos se enderezaban y de la altura una luna menguante le cayó en la cara donde los ojos no quería n verla , deseparadamente se cerraban y abrían buscando pasar al otro lado, escubrir de nuevo el cielo raso protector de la sala. 7 Este tipo de recorrência de imagens (como as dos sentidos em “La noche boca arriba”) também ocorre em ambas as histórias de “Continuidad de los parques”, desta vez de elementos silvestres (“los robles”; “lastimada la cara por el chicotazo de una rama”; “un mundo de hojas secas y senderos furtivos”; “parapetándose en los árboles y los setos”), e pode ser encarada como elo de conexão entre as duas realidades. Porém, o duplo nesta novela pode ser melhor representado pela circularidade de sua estrutura narrativa. As duas histórias não apenas se intercalam, mas se fundem de tal maneira que começo e fim, leitor e personagem, o agora e o então da narrativa também passam a se confundir. Brunel (2005) associa a busca pelo eu cindido à circularidade: 6 7 Grifos meus. Grifo meu. A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 66 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes Entretanto, ao mesmo tempo que o mito [do duplo] se lê como um trajeto dirigido à procura de um melhor “eu”, a ambivalência nele presente manifesta-se em sua relação privilegiada com a figura da circularidade (Borges). [...] Mais que o círculo, é a imagem da espiral que viria ao caso, símbolo da morte-renascimento. O próprio Cortázar defende este tipo de estrutura como modelo a ser seguido: “o símbolo, a metáfora do conto perfeito, é a esfera, essa forma da qual não sobra nada, que envolve a si mesma de maneira total, na qual não há diferença de volume, porque nesse caso seria outra coisa, já não seria uma esfera” (CORTÁZAR apud PREGO, 1991). No entanto, o que se observa neste conto é algo não hermeticamente fechado como uma esfera, uma vez que, sim, os lugares narrativos de início e fim do conto são aproximados, mas não iguais. Em 'Continuidad de los parques' o próprio título já dá a definição do que ele apresenta. Nesse caso, uma continuidade, uma continuação de espaços e de histórias. Apresentam-se dois tempos iguais no espaço 'ficcional' e no 'real', da perspectiva da personagem. Além disso pode-se mencionar a coincidência corporal entre o leitor ficcional e o personagem de seu livro (ambos sentados em uma poltrona na sala, de frente a janelões e de costas para a porta). (MOURA, 2009) Como discutido por Arrigucci (1998), cabe aqui citar a oposição entre o agora e o então da narrativa. O discurso, ou fábula, é a organização dos fatos de uma história, que vem a ser a ação em si. Quando o narrador presentifica a narrativa, este “agora” não é verdadeiramente presente, havendo certo grau obrigatório de arbitrariedade e artificialidade em toda construção ficcional. Resumidamente, toda narrativa é uma narração, ou seja, narra algo que já aconteceu, mesmo que o intervalo temporal seja pequeno. Há sempre um intervalo, por menor que seja, entre o enunciado e a enunciação, pressupondo possibilidade de manipulação e interpretação, quase como se opusessem narrador e narrativa, e a verdade dos fatos se comprometesse com a interferência da verdade essencial daquele que narra. O mesmo vale para o distanciamento entre os tempos do leitor e do enunciado. O fato inusitado ao final de “Continuidad de los parques” imprime caráter circular ao tempo da narrativa. Marca-se a aproximação entre o personagem-leitor (o homem de negócios, que durante grande parte do conto se configura como seu “narratário” – ARRIGUCCI, 1998), e a obra-dentro-da-obra. Conseqüentemente, há uma coincidência entre os tempos do enunciado e do ato de ler. Estabelece-se entre as entidades textuais de personagem e leitor uma espécie de transmissão de valores, sendo para isso o conto uma forma de retórica. (KAYSER apud ARRIGUCCI, 1998): “Arrellanado en su sillón favorito, de espaldas a la puerta que lo hubiera molestado como una irritante posibilidade de intrusiones, dejó que su mano izquierda acariciara una y otra vez el terciopelo verde y se puso a leer los últimos capítulos”; “La puerta del salón, y entonces el puñal en la mano, la luz de los ventanales, el alto respaldo de un sillón de terciopelo verde, la cabeza del hombre en el sillón leyendo una novela”. A confusão de tempos e realidades tem, em conclusão, papel fundamental na construção do sentimento do fantástico nesta brilhante novela. Considerações finais A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 56-70, jan./jun. 2009 67 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes Jamais réel et toujours vrai. 8 Mestre dos contos fantásticos, Cortázar prende o leitor em um mundo incompreensível, nebuloso, e ao mesmo tempo altamente identificável. Mas, de fato, um traço irreal pode tornarse verossímil, desde que assim o determine e justifique a estrutura e os valores convencionados pelo autor. Por outro lado, algo absolutamente autêntico, se considerada situação real, pode parecer irreal ou mesmo impossível aos olhos do leitor, caso a coerência estabelecida na narrativa seja quebrada. Em um conto, se as convenções narrativas garantem coerência e verossimilhança, aproxima-se o leitor, seja por dirigir-se diretamente a ele ou por sua proximidade íntima com aquilo que é narrado, por mais distante do realista se julgue estar. Paes (1985), defende o direito do autor a intercambiar ficcional e real a seu bel prazer “[...] a fim de devolver ao homem o sentido do mistério de si mesmo e do mundo, levando-o a ler metaforicamente o texto literário como imagem invertida e substituta da realidade, como porta de ingresso a uma supra-realidade onde sonho e desejo, banalizando um pela decodificação psicanalítica, sufocado o outro pelas crescentes coerções sociais, retomam a plenitude de seus direitos” (PAES, 1985). Concluindo, sobre a terrível sobreposição da forma racional do pensar à possibilidade do fantástico imaginário, Mariátegui, jornalista e um dos maiores expoentes do socialismo latinoamericano, diz: “La experiência racionalista há tenido esta paradójica eficácia de conducir a la humanidad a la desconsolada convicción de que la Razón no puede darle ningún camino. El racionalismo no ha servido sino para desacreditar a la razón” (MARIÁTEGUI, 1974 apud CRUZ, 2008). REFERÊNCIAS: ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. São Paulo: Ediouro, 2003. ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES. Metafísica, ética a Nicômaco, poética. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os pensadores, v. 2) ARRIGUCCI JR., Davi. Teoria da narrativa: posições do narrador. Jornal de psicanálise, São Paulo, v. 31, n. 57, p. 943, set. 1998. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. 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