liberdade e individualismo

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liberdade e individualismo
LIBERDADE E INDIVIDUALISMO
O conceito de liberdade na atualidade pouco liberta os homens, por estar pautado no
egoísmo. Rousseau nos coloca diante da questão na relação com o outro, mostrando
que a verdadeira liberdade também é abdicar de parte dela
Rodrigo dos Santos Manzano
A liberdade é um direito garantido em quase todas as constituições, principalmente
depois da Revolução Francesa, e está sempre presente no desejo humano. Porém, a
ideia de liberdade na atualidade é defendida ao extremo. O culto à liberdade que se faz
hoje acaba causando uma das formas de se autenticar e reforçar uma das características
mais marcantes, e talvez mais deletérias, da pós-modernidade: o individualismo.
Diante disso, podemos questionar: o que há hoje é mesmo liberdade? E ela é positiva?
E para refletir sobre essa “liberdade moderna”, podemos buscar três linhas filosóficas
para nos ajudar a estabelecer uma definição crítica deste conceito: os estóicos
acreditam que a liberdade está na aceitação daquilo que a vida nos proporciona;
Rousseau desenvolveu a definição de “bom selvagem”, que se articulou com o tema da
liberdade e demonstrou como a sociedade organizada, baseada na propriedade,
destruiu a relação entre natureza e liberdade e destacou a importância de se abrir mão
de parte da liberdade individual para a garantia do direito a todos. E, por fim, o
existencialismo de Sartre diz que a liberdade nos leva à responsabilidade e que somos
“condenados a ser livres”.
DE ACORDO COM A NATUREZA
“Definição de fim segundo Zenão: ‘viver de modo coerente’; o que significa viver em
conformidade com uma razão única e concorde, ao passo que aqueles que vivem de
modo contraditório são infelizes.
Dizemos fim um bem perfeito, como dizemos que é fim a coerência; mas dizemos fim
também o escopo, como dizemos que é um fim o viver coerentemente e também
dizemos fim o último dos bens desejáveis, ao qual todos os outros se reportam.
"Fim é a felicidade, para a qual toda coisa se faz, onde ela se faz, sim, mas não para um
escopo estranho a ela; consiste em viver virtuosamente, em viver coerentemente, e
ainda, que é afinal uma coisa só: viver segundo a natureza".
A citação acima nos ajuda a entender a essência do pensamento estóico e a relação que
os filósofos dessa corrente fizeram entre natureza, liberdade e ética. Desta forma, é
importante compreendermos, acima de tudo, o que é para o pensamento estóico viver
de acordo com a natureza.
Para os estóicos, a racionalidade e a indiferença eram chaves para a vida livre. Os
homens, aos apegarem-se às coisas, sempre correm o risco de sofrerem.
O fundador do estoicismo, o filósofo Zenão da cidade de Cício, dizia que, para viver de
acordo com a natureza, o conceito-chave era a ideia de ataraxia. A palavra grega
ataraxia significa “indiferença”. Para os estóicos, a indiferença era a chave para a vida
livre. Os homens, ao apegarem-se às coisas, sempre correm o risco de sofrer. Então,
caberia ao homem saber viver de modo indiferente à realidade que nos cerca, uma vez
que, para eles, há uma racionalidade que guia todos os acontecimentos, o logos. Assim,
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os seres humanos, como parte de uma natureza racional maior, têm de aprender a
aceitar os acontecimentos da vida. O conceito esclarece que o homem é apenas parte da
natureza, uma centelha de algo muito maior. De certa forma, querer voltar-se contra
isso é agir contra a natureza que nos cria, que nos dá a existência, e também voltar-se
contra a nossa própria natureza.
Tendo isto em mente, os estóicos acabavam por defender um estilo de vida austero.
Viver de modo livre não era deixar-se guiar por paixões, ambições, desejos, pois tudo o
que desejamos, o que é externo a nós, não pode nunca nos fazer realmente felizes. Pelo
contrário, colocar nossa felicidade no desejo é ilusório, pois, como já foi dito, a
realidade sensível é fugaz.
“Como tudo passa célere! Os seres no mundo, sua lembrança no tempo! Os objetos
sensíveis que nos seduzem pelas promessas de gozo, que nos aterram pela perspectiva
do sofrimento ou cujo brilho nos deslumbra! Não nos devemos esquecer o quão são vis,
abjetos, putrefatos, mortos! Quem são mesmo aqueles cujas opiniões e palavras
conferem a glória? Que é a morte? Se a considerarmos em si só, se, por uma abstração
mental, a separarmos dos fantasmas que lhe associamos, veremos que não passa de
uma operação da natureza. É infantilidade temer uma operação da natureza. E não é
apenas uma operação banal da natureza, mas, sim, uma operação útil à natureza. Como
pode o homem atingir Deus? Por que parte de si mesmo? Mediante que disposição
dessa parte”.
O que podemos perceber é que, para os estóicos, a verdadeira liberdade está no não se
apegar ao que é externo, uma vez que há uma razão para as coisas deixarem de existir.
Se tudo é fugaz, é bobagem sofrer pelo que se perde, pois a perda é algo inevitável.
Desta forma, a razão se sobrepõe à emoção na busca pela felicidade e pela vida virtuosa.
E para os estóicos, nada mais virtuoso, nada mais ético, do que aprender a viver de
acordo com a natureza, com suas determinações. Desta forma, liberdade, felicidade e
ética se articulam. Livre é aquele que não se escraviza por nada, que não sente a
necessidade de nada, pois ele mesmo tem consciência de ser parte da natureza. Cabe
aceitar. Liberdade para os estóicos é aceitação, conformação à realidade, à natureza.
Quem assim vive, é ético.
Para os estóicos o homem livre é aquele que não se escraviza e não sente necessidade de
nada.
Para nós, tal visão é importante porque nos coloca diante de uma situação importante:
conformar-se à natureza. O estoicismo pode ser muito criticável por colocar a
racionalidade como o único parâmetro para os homens, e a emoção como algo de
segundo plano, um verdadeiro mal. Porém, o que hoje soa como atual é essa relação
entre liberdade e natureza, e, principalmente, a questão dos excessos. Para os estóicos,
jamais seriam vistos como ações livres os gestos que as pessoas têm ao abusar de sua
liberdade. Liberdade é saber aceitar a vida, saber viver com o que se tem, não buscar
cada vez mais, buscar satisfazer todas as vontades, de forma egoísta e hedonista. A
moderação, algo tão cultuado pelo pensamento estóico, é exatamente o que faz falta na
atual noção de liberdade. Essa ideia fará eco no pensamento de Rousseau, pois para o
filósofo, os homens só podem ser livres em sociedade se abrirem mão da liberdade
individual. Em situação egoísta e individualista, a liberdade é, para alguns, ilusória.
O HOMEM NASCEU LIVRE
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Portanto, assim como os estóicos, Jean Jacques Rousseau buscou relacionar natureza e
liberdade. Para o filósofo, os homens no Estado Natural são livres, e esse estado é a
melhor fase, o que de melhor pode haver para o ser humano. O famoso ideal do "bom
selvagem" , que tanto influenciou o Romantismo, como podemos perceber em obras
como o clássico da nossa literatura O Guarani, surge dessa visão rousseauniana,
expressa sinteticamente na famosa máxima “o homem nasce bom, a sociedade é que o
corrompe”. O surgimento da sociedade organizada corrompe os homens, levando- os a
um estado de barbárie. Ironicamente, podemos concluir disso tudo que, para Rousseau,
no estado “selvagem”, ou seja, na natureza, o homem é bom, e na civilização, na
sociedade organizada, o homem se perverte, torna-se mau.
Mas o que realmente leva o homem a se corromper? Qual o fator que, uma vez que a
sociedade organizada surge, os leva às adversidades, disputas e rivalidades? Para
Rousseau, ironicamente – uma vez que o autor é iluminista e o movimento buscou
defender os interesses burgueses – o fator que corrompe os homens é a propriedade. O
surgimento da propriedade privada dividiu a humanidade em dois gêneros: os que têm
e os que não têm. Desta forma, os que têm escravizam, oprimem, se aproveitam dos que
não têm, visando a ter mais. Por outro lado, os que não têm tornam-se cobiçosos,
ambiciosos, voltam-se uns contra os outros, buscando ter o que no estado natural era
de todos. “Por outro lado, o homem, de livre e independente que era antes (no estado
natural), passou a estar, em virtude de uma profusão de necessidades, por assim dizer,
sujeito a toda a natureza, sobretudo aos seus semelhantes, de quem num sentido se
torna escravo, mesmo em se tornando seu senhor; rico, precisa de seus serviços; pobre,
precisa de seu auxílio, e a mediocridade não o coloca em situação de viver sem eles.
Logo, é necessário que incessantemente procure interessá-los em sua sorte e fazê-los
encontrar, real ou aparentemente, proveito em trabalhar para o seu próprio; isso o
torna dissimulado e artificioso com uns, imperioso e duro para com outros e torna-lhe
imprescindível lograr todos aqueles de que necessita, quando não pode fazer-se temer
por eles e não acha de seu interesse servi-los utilmente. En- fim, a ambição devoradora,
a gana de aumentar a sua fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que
para ficar acima dos outros, inspiram a todos os homens uma nefanda inclinação para
se prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para
aplicar seu golpe com maior segurança, frequentemente assume a máscara da
benevolência; em suma, concorrência e rivalidade de um lado, oposição de interesses
do outro e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem; todos esses males
constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade
nascente”
Como se pode perceber, para Rousseau, a liberdade natural dos homens foi diminuída,
e até mesmo eliminada. Assim, somente os homens realmente livres poderiam ter um
comportamento bom. A falta de recursos por parte de alguns e o excesso destes por
parte de outros acabou com a liberdade dos homens. Uns voltaram-se contra os outros,
traíram sua natureza bondosa e solidária, pois a necessidade os levou a isso. Podemos,
assim, concluir que o binômio ética–liberdade no pensamento de Rousseau traz uma
relação muito forte, uma vez que a ação livre era a ação natural. Como resolver esse
impasse? Qual a proposta de Rousseau? Para ele, a situação é irreversível. Os homens
não voltam mais ao estado natural. Porém, para assegurar a liberdade comunitária,
uma volta, pelo menos formal, ao que o estado natural garantia, Rousseau coloca a
necessidade de cada um abrir mão de suas vontades pessoais, individuais, pelo menos
de parte dela, visando ao bem comum. Surge, assim, o conceito mais importante na
filosofia política de Rousseau: a vontade geral.
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“Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e dirigir as que já existem,
o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que
vença a resistência, com um só móvel pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia. (...)
Cada um enfim, dando-se a todos, a ninguém se dá; e como em todo sócio adquiro o
mesmo direito que sobre mim lhe cedi, ganho o equivalente de tudo quanto perco e
mais forças para conservar o que tenho.
Se afastamos pois do pacto social o que não é da sua essência, achá-lo-emos reduzido
aos termos seguintes: cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob
a suprema direção da vontade geral, e recebemos enquanto corpo cada membro como
parte indivisível do todo”.
Rousseau percebeu que o homem perdeu muito ao sair do estado natural, pois perdeu a
liberdade natural que qualquer ser tinha. Porém, a única forma de se retomar pelo
menos parte da liberdade, e findar com a oposição na qual os homens acabaram sendo
jogados, é que os homens abram mão de parte de sua liberdade em vista do bem
comum, ou seja, da realização da vontade geral. Assim, o contrato social proposto por
Rousseau se resume a isso, uma forma de fazer que, de modo geral, a sociedade possa
ter a liberdade garantida, visando aqui a uma forte crítica ao absolutismo ainda vigente
nas nações européias do século XVIII.
Hoje, o louvor à liberdade traz consigo necessariamente a ideia de “passar por cima dos
outros”, agir sem escrúpulos, agir egoisticamente. A liberdade cultuada hoje é
individualista e a que Rousseau defendia era totalmente contrária a essa visão, pois
levava à comunidade. Ironicamente, Rousseau, que foi um dos idealizadores da
sociedade contemporânea, pois influenciou a Revolução Francesa, sendo um dos
referenciais teóricos desta, acabou dando origem a uma sociedade que usa a liberdade e
o discurso em prol desta para justificar o egoísmo. A sociedade que surge do
Iluminismo, principalmente o de Rousseau, que tinha alto teor humanista, racionalista,
acabou se tornando realmente selvagem, pois se pautou no egoísmo tão apregoado
pelos ideais capitalistas liberais.
NIETZSCHE E O AMOR FATI
Nietzsche é um filósofo que exerce grande influência nos comportamentos
difundidos na atualidade. O filósofo exerceu influência até mesmo sobre o
existencialismo. O niilismo apregoado pelo filósofo “caiu no gosto da população” e, de
certa forma, virou moda. Isso porque o filósofo defende que o homem deve muito mais
viver o lado instintivo, irracional, renegando os valores morais, do que se adaptar a
eles. Porém, apesar de Nietzsche defender tais ideias e até criticar os estóicos por sua
racionalização excessiva da vida, Nietzsche retoma uma das ideias centrais deles, o
chamado Amor Fati (“amor ao fado”, “ao destino”). A vida é marcada pelo destino, uma
vez que os fatos são inevitáveis. Cabe aos homens aceitá-los, e mais do que isso, amálos, querer as coisas como elas são. Cabe aos homens saber viver cada dia aproveitando
ao máximo, independentemente do que a realidade os proporciona. Desta forma, os
homens são livres de acordo com o que a natureza proporciona e a aceitação dessa
natureza é o que garante a liberdade. Até mesmo Nietzsche, com toda a sua crítica à
moral, com sua “filosofia do martelo”, ainda acaba por retomar pontos que já foram
defendidos pelos antigos, e que deram base à sociedade ocidental.
A CONDENAÇÃO À LIBERDADE
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“O homem é, inicialmente, um projeto que se vive como sujeito, e não um musgo, um
fungo ou uma couve- … or; nada existe anteriormente a esse projeto; nada existe de
inteligível sob o céu e o homem será, antes de qualquer coisa, o que ele tiver projetado.
Não o que vai querer ser, pois o que entendemos ordinariamente por querer é uma
decisão consciente que, para a maior parte de nós, é posterior ao que fizermos
efetivamente de nós mesmos. (...) Mas se realmente a existência precede a essência, o
homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira decorrência do existencialismo é
colocar todo homem em posse daquilo que é, e fazer repousar sobre ele a
responsabilidade total por sua existência.”
A liberdade como conceito na atualidade é a individualista, egoísta, aquela em que as
vantagens advindas dela têm a ver com o prejuízo do outro
Não podíamos encerrar uma discussão sobre liberdade sem retomar o pensamento do
filósofo francês Jean- Paul Sartre. Para ele, não há nenhuma natureza humana
predeterminada. Nem boa, como defendia Rousseau, nem racional e indiferente, como
defendiam os estóicos. O homem é um projeto, ele se faz, se constrói, é fruto de suas
escolhas e de suas opções. Isso nos coloca diante do verdadeiro peso que tem a
liberdade. Ser livre não é somente fazer o que se quer, mas sim, assumir a
responsabilidade pelo que se fez. Queremos toda a liberdade, o direito de fazer tudo,
sem nunca pensar nos outros, naqueles com quem convivemos, e nem sempre somos
capazes de assumir a responsabilidade das consequências de nossas ações. Ao menor
sinal de problemas e de dificuldades, buscamos culpados a todo o momento, seja o
sistema político que nos rege, seja a estrutura familiar que tivemos (ou muitas vezes
não tivemos), seja a educação que foi falha e não nos proporciona instrumentos para
uma vivência desenvolvida e madura em todos os sentidos, entre tantos outros motivos.
Queremos liberdade, mas não temos a capacidade para assumir os fracassos em nossas
vidas. Como disse no início do artigo, reafirmo agora: a noção de liberdade
desenvolvida hoje é a liberdade individualista. E essa liberdade, ou melhor, a busca por
esse tipo de liberdade, é extremamente deletéria, pois necessariamente voltaremos uns
contra os outros na certeza de que estamos lutando pelos nossos direitos. A liberdade é
um direito de todos, mas ela tem seus limites. Até mesmo na filosofia sartreana,
quando vemos que ele coloca o homem como um ser condenado à liberdade, mas que
essa liberdade traz a responsabilidade, ela nos faz pensar em nossas ações. O
existencialismo, ao jogar toda a responsabilidade de nossas ações sobre nossos próprios
ombros, vê a liberdade da forma mais cruel e desconfortável que existe.
Podemos perceber que a liberdade tornou-se mais um jargão ideológico, alienador, e o
pior, que nos divide, impedindo de fazer que os indivíduos se unam. A liberdade
tornou-se tudo, menos algo que realmente ajude os homens a se libertarem.
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