substituição do administrador e reconveyance completa
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substituição do administrador e reconveyance completa
Lei “Dodd-Frank”: Institucionalização do combate à fraude e a temeridade operacional Fe v e r e i r o 2 0 1 2 Ari Cordeiro Filho Roberto Campos – razão e polêmica Gilberto Paim Número 683 Alienação Fiduciária na custódia e liquidação de títulos Célio Borja Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica Ernane Galvêas Fevereiro 2012 683 Fevereiro 2012 683 Problemas Nacionais Conferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo Sumário Lei “Dodd-Frank”: Institucionalização do combate à fraude e a temeridade operacional ............................. 3 Ari Cordeiro Filho Roberto Campos – razão e polêmica........................ 57 Gilberto Paim Alienação Fiduciária na custódia e liquidação de títulos .............................................. 75 Célio Borja Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica ........................................... 89 Ernane Galvêas São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço. As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente, desde que citada a fonte. A íntegra das duas últimas edições desta publicação estão disponíveis no endereço www.cnc.org.br. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo Fevereiro 2012, n. 683 Brasília SBN Quadra 01 Bloco B no 14, 15o ao 18o andar Edifício CNC CEP 70041-902 PABX (61) 3329-9500 | 3329-9501 [email protected] Rio de Janeiro Avenida General Justo, 307 CEP 20021-130 Rio de Janeiro Tels.: (21) 3804-9241 Fax (21) 2544-9279 [email protected] www.cnc.org.br Publicação Mensal Editor-Responsável: Gilberto Paim Projeto Gráfico: Assessoria de Comunicação/Programação Visual Impressão: Gráfica Ultraset Carta Mensal | Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955104 p. Mensal ISSN 0101-4315 1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico. Lei “Dodd-Frank”: institucionalização do combate à fraude e a temeridade operacional Ari Cordeiro Filho Advogado O mito das leis eficazes A lei não costuma ser um obstáculo intransponível para intentos de fraude, para a temeridade, para a omissão de autoridades. Uma crise financeira também pode originar-se de uma conjugação de fatores fora de controle de vontades isoladas ou de uma camisa de força legal. Crises sistêmicas podem comunicar-se pelos canais de propagação globais entre jurisdições. A lei para preencher lacunas Para dar uma justificativa razoável ao tema desta palestra, é de se recordar que uma das principais causalidades atribuídas à eclosão da crise atual é a desregulação, apontando-se particularmente, nos EUA, a revogação da antiga proibição de holdings de instituições depositá- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 3 rias (bancos, tipicamente) terem atividades integradas no mercado de capitais (Glass-Steagall Act, de 1933, versus Financial Services Modernization Act ou Gram-Leach Billey Act, de 1999). Liberou-se a conectividade entre as instituições bancárias e as do mercado de capitais, mas não se estabeleceram controles adicionais pertinentes de capital, de endividamento e outros, de instituições financeiras e empresas interligadas ou afiliadas interligadas ou afiliadas atuantes no mercado de capitais. Modalidades operacionais antigas (securitização) e novas (derivativos) ensejaram um formidável gravame escalar e por vezes não transparente nos balanços de tais instituições. A nova lei americana não soluciona todos os problemas deixados pela crise, obviamente, por ser retardatária, editada no calor da surpresa com fatos antes inimaginados. Torna contudo mais ásperas as trilhas da fraude; mais vigiados os caminhos para a temeridade. A lei A lei americana Dodd-Frank de 2010 é uma resposta aos clamores generalizados quanto a lacunas institucionais de adequada supervisão e quanto à falta de supervisão coordenada e interativa de instituições financeiras ou de instituições exercendo atividades financeiras, de afiliadas ou interconectadas, nos EUA. Além disto, havia ausência de adequada transparência de riscos de modalidades operacionais, de seus importantes gravames contingentes, nos balanços das instituições. É também uma reação legislativa de repressão à fraude e temeridade, de amplitude e severidade proporcionais às desordens financeiras ocorridas naquela jurisdição, antecedentes causais imediatos da crise global exteriorizada em 2008. 4 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Para aferir o pulso do vigor das novas normas, vejo como representativa a admissibilidade e premiação elevada (15% a 30%) da denúncia anônima, recentemente regulamentada (Section. 922: Whistle Blowers). Indicativas da manus longa do seu alcance são, entre muitas, a punição atual de uma grande instituição bancária pelo Banco Central americano (FED), por “má conduta e negligência”, decorrente de práticas de uma subsidiária de serviços de seleção de créditos imobiliários e administração de hipotecas (Litton Loan Services), assim como os processos movidos pelo governo americano contra importantes instituições do mercado. Interessante de se observar, e acompanhar, é a postura das regulamentações recomendadas pela Lei, muitas das quais relevantes em termos de competitividade dos bancos americanos com os de outras jurisdições, v.g., as referentes a capital mínimo, relação débito/capital (endividamento máximo). Antecedentes Em face da crise em curso, em outubro de 2008 o Senado Americano já tinha aprovado lei autorizando o Programa de Recuperação de Ativos Problemáticos – o Troubled Assets Recovery Program (TARP). No meu entender, este programa foi exitoso em atingir objetivos colimados para combater a crise, naquele momento. Seu objetivo foi desalojar uma séria afetação do sistema financeiro, falências em cadeia de instituições financeiras, seguidas de paralisia do crédito às atividades interbancárias e produtivas, estiolamento da liquidez das instituições financeiras, ameaça iminente aos sistemas de transferências e pagamentos e a nulificação de mercados referenciais para precificação de ativos financeiros. A crise sistêmica iminente foi combatida exitosamente pelas autoridades americanas: as principais instituições estão hoje com uma capitalização quase três vezes suCarta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 5 perior à existente na eclosão da crise. O sistema financeiro se acha funcionando e recuperado da débâcle que se lhe avizinhava. Foi alocado um valor de US$350 bilhões, rotativos, inicialmente, mais uma previsão de US$350 bilhões adicionais, que não foram utilizados. Por ele, o Secretário do Tesouro e o Presidente do FED podiam decidir comprar ativos tóxicos de bancos e outras instituições financeiras, retirando de seus balanços estas fontes de contínuas depreciações e ensejando razoável continuidade aos mercados subjacentes de títulos. Foram também adquiridas ações preferenciais de bancos e de algumas empresas, assim como outros ativos do sistema, propiciando liquidez a segmentos que dissessem respeito à estabilidade financeira dos EUA. A crise deixou ali suas sequelas, como a desvalorização dos imóveis e dos títulos emitidos em decorrência de seu financiamento, mas em muitos casos, apenas se pôs cobro a artificialismos e se corrigiram endividamentos excessivos (alavancagem, leverage). As decisões tomadas no âmbito do TARP blindaram o sistema financeiro dando-lhe tempo para gerar receitas novas e regenerar-se quanto a excessos de depreciação de seus ativos, motivados por liquidações desordenadas, em busca de liquidez. Crises exógenas, como a da Europa, podem advir, mas o sistema tem um arcabouço monitório que dificilmente permitirá uma conectividade devastadora para a estabilidade do mercado financeiro americano. Transparência A causa da grave crise recente não foi a falta de transparência, embora ela estivesse presente e encorajasse a temeridade. Entretanto, para que o 6 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 novo arcabouço institucional preventivo viesse a funcionar, tornou-se essencial dotá-lo de instrumental cognitivo oportuno, pertinente e compreensivo de todos os fatores causais. A Lei Dodd-Frank é forte nesta faina. Informações sobre instituições e modalidades operacionais antes não adequadamente supervisionadas passam a contribuir para um conjunto, em referências cruzadas e se complementando em um quadro de interconectividades. Verbi gratia, no Título IV (Regulation of Advisers of Hedge Funds and Others), a nova regulação retirou a isenção de registro em agências primárias de supervisão de alguns fundos conhecidos como fundos de hedge (e outros), com mais de US$150 milhões de patrimônio. Tais fundos, administrados por assessores (advisers), com carteiras multimercados, deverão registrar-se na SEC, trazendo destarte ao foco do conhecimento das autoridades dados sobre administradores, funcionários, investidores, investimentos, endividamento (leverage), posições e movimentações antes resguardados como se fossem privados, de interesse apenas de seus investidores. Só escritórios familiares de administração continuarão na penumbra. No Título V (Insurance) é criado um Escritório Federal de Seguros (Federal Insurance Office), na estrutura do Departamento de Tesouro, preenchendo uma lacuna oriunda da competência esparsa dos Estados para regular as atividades das empresas de seguros. Suas atribuições incluem monitorar todos os aspectos deste setor e falhas na regulamentação que possam influenciar no risco sistêmico. Poderá, inclusive, apontar uma seguradora ou suas afiliadas ao Conselho de Estabilidade Financeira, como entidades financeiras não bancárias a serem sujeitas a normas especiais de monitoramento, uma espécie de curatela, pelo FED, ou, mesmo, para liquidação. Da mesma forma, no Título VII (Wall Street Transparency and Accountability), agências primárias de supervisão do mercado de swaps poderão coletar quaisquer dados que julguem influentes no risco ao sistema, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 7 e mesmo proibir ou regular estritamente tipos de operações consideradas detrimentais. A regulação, neste Título, tende a tornar swaps (e outros derivativos) substancialmente padronizados, para registro ou negociação por instituições autorizadas, através de contrapartes centrais, com garantias autoliquidáveis, em sistemas compensação ou liquidação (clearings), de tal forma que se tornem conhecidas as partes, os riscos que assumem e as garantias fornecidas. Os derivativos não padronizados ou sob medida (customized), negociados por instituições autorizadas no balcão, ficam mais vigiados, submetidos a normas quanto a registro e informação. É estabelecido um sistema mais acurado de conhecimento, avaliação e testes quanto ao valor de registro contábil de derivativos, para que situações de crise aguda não surpreendam as instituições, com passivos aumentados insuportavelmente. As avaliações baseadas em modelos próprios das instituições ficam sujeitas a testes periódicos de estresse, com resultados informados às autoridades. A transparência também é vista como um sistema de proteção ao consumidor de “produtos” financeiros, no Título X. Nele, a criação do Birô de Proteção Financeira ao Consumidor (Bureau of Consumer Financial Protection) tem por escopo tornar a disponibilidade do crédito ao consumidor honesta e não predatória. O princípio básico é: “Saiba (o que vai fazer) antes de se comprometer” (know before you owe). As normas tendem a conscientizar o cliente quanto aos ônus que vai assumir e tornar aparentes e explícitas, para ambas as partes, as condições objetivas de assumir os compromissos, ao longo do prazo e não apenas no início, pelo atrativo de adocicantes como prestações iniciais pouco gravosas. 8 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Como se sabe, até instituições importantes chegaram a operar com assinaturas falsificadas de mutuários e dando a falsa impressão de que eles tinham condições de se endividar com a aquisição de moradias. (Clientes NINJAS: No Income, No Jobs, No Assets). Multas relevantes foram aplicadas, no particular. As normas são suplementadas, para sua eficiência, por outras regras quanto à concessão de empréstimos hipotecários ou para consumo, encontráveis em outros títulos da Lei, descendo até ao detalhamento de procedimentos de prestadoras de serviços auxiliares. Incidentemente, os empréstimos abusivamente onerosos nos EUA se situam em uma faixa de rejeição legal. Em 1966, um professor meu, da New York University, ao ser apresentado às taxas reais (descontada a inflação) de juros aqui praticadas, para pessoas físicas, no cheque especial e no CDC, exclamou que, nos EUA, seria um típico caso de “shark loan”, uma hipótese de averiguação policial. Arcabouço preventivo de supervisão A Lei Dodd-Frank institucionaliza um novo e mais abrangente sistema preventivo, com um Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira (Financial Stability Oversight Council), onde estão as entidades de supervisão primária das instituições financeiras e assemelhadas. Passa a possuir um poder forte de obter informações convergentes organicamente, seja através das entidades de supervisão primária, seja diretamente pelo Escritório de Pesquisa Financeira (Office of Financial Research), criado pela Lei para dar suporte específico ao Conselho. Passam à supervisão e sujeitam-se ao fornecimento de dados as ativida- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 9 des de holdings bancárias, de instituições financeiras não bancárias e de entidades cujas operações sejam consideradas financeiras e relevantes para a segurança do mercado americano, assim como as de suas afiliadas. Suprido o Conselho pelas informações que já são fornecidas às entidades primárias de supervisão por bancos e outras instituições, e pelas novas informações que alvitre, pode ser outorgado ao Board do FED (administração do Banco Central americano) um poder amplo de supervisão sobre estas novas entidades supervisionadas. Em alguns casos, configura-se uma quase curatela das supervisionadas, com alguns traços do nosso instituto da intervenção. Com este novo arcabouço de supervisão, as autoridades têm bem definido o tipo de atuação de cada uma, coordenadas dentro da estrutura do Conselho. A linha mestra de aperfeiçoar o sistema cognitivo e preventivo é complementada com a outorga de poderes especiais para o FED, quando se alvitre que instituições ou categoria de instituições representem risco para a estabilidade do mercado. Ante ameaça prospectiva, atividades relevantes, em tais casos, passam a sofrer monitoramento, orientação, contenção ou indicação para liquidação. Não revoga, e até aumenta, o montante garantido para depositantes em instituições depositárias, suprível pelo Federal Deposit Insurance Fund, de US$100 mil para US$250 mil , mas, fora disto, é explicita em desencorajar investidores, depositantes e acionistas quanto a pretender que as Autoridades cubram riscos das instituições supervisionadas. Há normas objetivas em suporte. Assim, ao contrário do que podia aparentar, o TARP não redundará em prejuízo aos contribuintes, como foi explanado no material distribuído aos Senhores Conselheiros. 10 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 O detalhamento de formalidades objetivas a serem observadas no dia a dia dos negócios, atadas a registros e informações a serem prestadas às autoridades ou tornadas públicas, por um lado traça um roteiro administrativo, por onde se podem mais claramente desvelar os desvios de conduta e, por outro, possibilita uma atuação corretiva mais expedita, tanto dos administradores quanto das autoridades. Suprindo anteriores lacunas de supervisão, elas passam a atuar dinamicamente em cima da evolução dos fatos, sobre um espectro maior de instituições e empresas influentes, com titularidade e fundamentos de direito sólidos. Passa-se a exigir que os regulamentos prevejam níveis mais apropriados de capital das supervisionadas, inclusive holdings bancárias, de tal sorte que “cresça em tempos de expansão econômica e decresça em tempos de contração econômica, consistentemente com a segurança e bom estado da companhia” (Sec. 616). Fraude e temeridade Desapegando-nos de uma conceituação penal ou civil rígida da fraude, para não gerar uma disputa acadêmica, no âmbito desta despretensiosa palestra, conforta ir aos verbetes latino e vernáculo (fraus, fraudis, Dicionário Latino Saraiva; fraude, Dicionário Houaiss). A fraude é a má-fé, a velhacaria, a trapaça, o dolo, a manha, a astúcia, a arteirice, a esperteza, a falsificação, o logro, o ardil, o engano urdido para lesar outrem ou bem juridicamente protegido, deixando de cumprir um dever jurídico, em benefício próprio ou de terceiro. Nos mercados financeiros e de capitais, em tipologias de ilícitos à parte, pode exteriorizar-se pela omissão de informações vitais para decisões de investimento, falta de transparência obrigatória, por comissão ou omissão, aproveitamento de informações privilegiadas. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 11 A fraude ocorrida entre cidadãos, em suas relações privadas, tem tratamento sempre repressivo nos diplomas penais e previsão indenizatória, nos diplomas civis, tanto aqui quanto nos EUA. No sistema financeiro e no mercado de capitais, em que há interesses difusos e riscos à estabilidade do mercado, militam razões sobrepostas para uma repressão mais gravosa à fraude. A fraude comprovada, escalar, no mercado financeiro fere de morte a confiança de que são depositários os seus agentes. A confiança é o fundamento do sistema. Abalada que seja, coloca em perigo toda uma estrutura de transferências, de pagamentos, de crédito e de precificação de títulos e valores, essenciais ao funcionamento normal de uma economia. De uma forma brutal, os mercados têm experimentado as consequências do abalo à confiança. No momento em que rascunho esta palestra (final de agosto de 2011), os bancos americanos têm empoçados cerca de US$1,5 trilhão, em excesso de reservas, aplicados em títulos federais (treasuries). Parte desta preferência pela liquidez advém da diminuição da confiança e do interesse de empresas e consumidores, fazendo registro morto as tentativas governamentais (duas) de aumentar o volume de crédito disponível para atividades produtivas (quantitative eases 1 e 2). A punição à fraude, nos mercados, sói ser retardatária, incompleta, e nem sempre alcança todos os fraudadores. A reparação financeira existe e pode ocorrer, mas os prejuízos podem ser mais amplos e os lesados ser em grande número, esparsamente. Vemos, nos dias de hoje, instituições, até de grande porte, pagando importâncias consideráveis, de centenas de milhões e até de bilhões de dólares, por vícios informativos e por fraudes a investidores, perpetradas em seus ambientes, em afiliadas ou em prestadoras de serviços. 12 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Temeridade Não é razoável pretender que uma instituição opere sem sinistros de crédito. Mesmo com um objetivo zero de impontualidade e observância de procedimentos adequados neste sentido, todas elas, invariavelmente, têm um índice de inadimplência e de perdas, com flutuações ocasionais. São riscos inarredáveis pela vontade humana, salvo estagnação proposital total dos negócios bancários (preferência completa pela liquidez) ou mudança de objeto social. Operações podem nascer saudáveis, bem selecionadas, mas evoluir desfavoravelmente, por fatores independentes da vontade do administrador. Flutuações ocorrem nos índices de inadimplência, em certa medida aceitáveis e explicáveis pelas mutações das circunstâncias econômicas gerais, setoriais ou de empresas. A estas flutuações normalmente se opõem medidas corretivas apropriadas, que têm possibilidade de saná-las em parte. O que se alcança com o conceito de temeridade é o pouco usual, é fugir ao que acontece comumente (id quod plaerumque accidit), pela ousadia ou fraude conjugada, pela fuga aos parâmetros de boa gestão. Temeridade é adotar condutas que levem, intrinsecamente, por elas mesmas, como causa imediata, à bancarrota ou a prejuízos. É conceder crédito conscientemente, a quem não tenha condições de pagar ou a quem se sabe não ser bom pagador, sem garantias autoliquidáveis. Diferente de sofrer consequências imprevistas de fraudes informacionais de terceiros, de fatores exógenos, sobre os quais a administração não tem controle ou conhecimento antecedente. É não adotar sistemas internos de deferimento de crédito com adequada seleção, ou negligenciá-los. Originariamente, no Latim, temere é um advérbio para o que é feito ao acaso, sem reflexão, desatinadamente, inconsequentemente. Seria o ablativo de um substantivo arcaico em desuso (temus, temeris), usado Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 13 para designar obscuridade, mas que sofreu ampliação de significado. Daí temeritas, ou desatino, despropósito, estouvamento, falta de reflexão, audácia, ousadia, inconsequência (Saraiva). Mais próximo de nós, o vocábulo afinou seu significado para ousadia excessiva, imprudência acentuada (Houaiss). A temeridade de administradores ou operadores no mercado financeiro e de capitais dificilmente poderá pretender-se culposa (stricto sensu) ou seja, por negligência, imperícia ou imprudência. Em relação aos administradores responsáveis por operações, milita a presunção de zelo e capacidade para o exercício das suas funções. Têm plena consciência da resposta compatível dos resultados financeiros em face do grau exagerado de riscos assumidos, comissiva ou omissivamente. Ou admitem “ex ante” o resultado negativo consequente ao risco excessivo assumido em operações. Exercer uma função com alienação e desinteresse quanto aos fundamentos do métier pode caracterizar “dolo eventual” por temeridade. Zelo é atributo que se materializa com o exercício efetivo das funções e não necessariamente deduzido de qualificações profissionais formais. Um médico pode perfeitamente mostrar-se um bom administrador, inclusive um bom Ministro da Fazenda (Joaquim Murtinho, p. ex.). E um administrador profissional pode demonstrar o contrário, até mesmo temeridade. Nosso direito penal penaliza as condutas dolosas não só quando o agente quer o resultado mas igualmente quando assume o risco de produzi-lo (dolo eventual, art. 18 CP). Se há a forma de operar por “temeritas in assentiendo” (em Cícero: leviandade em aprovar), pode ocorrer também uma procura ativa 14 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 de geração de operações, sem os cuidados aconselháveis. Até por motivação concorrencial. Pode-se distinguir teoricamente entre operar levianamente, por incompetência ou inconsequência, e aprovar ou gerar operações sem os procedimentos cautelares apropriados, com objetivo de aumentar volume de negócios em face da concorrência, de auferir resultados, de ter maiores bônus decorrentes da massa de negócios, de obter lucros de curto prazo, inconsistentes ou declarados açodadamente. Em ambos os casos, opera-se temerariamente. A consciência e o objetivo subjacente fazem presente o “dolo direto” ou o “dolo eventual” de ocasionar prejuízos à instituição ou a terceiros. Com cuidado quanto à validade de afirmativas genéricas, no assunto, em matéria penal, em se tratado de conduta temerária, não há grande distanciamento da teoria civil do “risco criado”, na administração de instituições financeiras. A gestão temerária, por si só, cria dolosamente riscos anormais sejam eles de crédito, sejam de liquidez, sejam de taxas, sejam administrativos. O administrador temerário, no sistema financeiro, sabe que não pode operar acima de limites, além da capacidade de controle; que deve observar a boa técnica, no deferimento de crédito, exercendo contínua vigilância quanto à manutenção de sua qualidade; que deve precaver-se, não assumir operações com cujos sinistros não possa arcar a instituição; estabelecer limitações e alçadas operacionais cuidadosas; estar diuturnamente informado da evolução dos números de sua atividade. Age temerariamente o administrador que opera em grande escala, não tendo estrutura apta a lidar com grandes números. Não adota aí Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 15 ou não tem condições objetivas de adotar meios de monitorá-los e de administrar a qualidade dos ativos. Mesmo que os passe adiante, compromete a saúde financeira de outras ou da sua própria instituição. Espalha as insubsistências geradas. Isoladamente, por uma instituição de grande porte, ou no agregado, havendo difusão da temeridade, abala-se a estabilidade do próprio mercado. Hoje já se sedimentou entre as autoridades financeiras globais que a ultrapassagem de certo porte de operações, em termos de fatia de mercado ou em números absolutos é merecedor, por definição, de vigilância especial. A Lei Dodd-Frank adota um ponto de partida de alerta de US$50 bilhões de ativos. Instituições que sejam caracterizadas como operando acima de sua capacidade de controle devem sofrer estrito monitoramento e, por vezes, ser contidas em limites. O Conselho de Estabilidade Financeira pode determinar a desaceleração, redução ou, mesmo, transferência total ou parcial de atividades próprias ou de afiliadas. No caso americano, a temeridade na geração de ativos gerou a contrapartida do excessivo endividamento (leverage) de instituições financeiras, como os bancos de investimento, ou de entidades (fundos e outras) financiadas, administradas ou de propriedade de instituições financeiras. Não se estão aqui adotando teses de que o administrador financeiro deve ter um padrão de cautela exacerbada, prejudicial à instituição, chefiando uma espécie de delegacia de polícia em vez de uma diretoria de operações, invadindo conveniências e violando direitos dos clientes, adotando procedimentos invasivos, fora do comum. Ad impossibilia nemo tenetur. 16 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Pode haver, em tese, ausência de culpa (lato sensu) pela falsidade não facilmente discernível de informações fornecidas por outras instituições ou por clientes com que se opere, ou pelo advento de situações imprevisíveis, pelos instrumentos de aferição disponíveis existentes. Assim, nos EUA, mercados extensos de títulos municipais, estaduais ou de universidades tiveram sua grande liquidez abruptamente suprimida como consequência da crise no mercado de créditos hipotecários (sub-prime). Não se poderia alvitrar de temerário um comprometimento anterior significativo com este mercado, pela razão de que era completamente imprevisível o ressecamento da liquidez, por propagação, a partir de outros mercados, de diferente natureza. Uma solução global eficiente plurijurisdicional Parece ser consenso que as tratativas desenvolvidas no âmbito do Banco de Compensações Internacionais (BIS), para estabelecer níveis mais rigorosos de capital das instituições financeiras e do mercado de capitais (Basileia 3), e regras mais estritas de transparência quanto a níveis de risco em que elas estejam dinamicamente incorrendo, dizem com o âmago da questão de liquidez e solvência das instituições. Procuram as novas regras projetadas não deixar de fora riscos antes homiziados, inclusive os soberanos, e têm o mérito de estabelecer percentuais adicionais de capital para colchão de liquidez e para precaução, nos tempos de bonança, quanto a tempos difíceis. Esta lembrança é feita para não se perder a visão global dos fatos, em que normas sobre fraudes, boa técnica financeira e transparência são complemento de uma situação de solidez de capital próprio do sistema como um todo. O grande desafio é conseguir que sejam adotados novos padrões de capital em todas as jurisdições importantes. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 17 E, igualmente coordenar, no curso dos anos, as exigências de novos padrões de capital, com a faina de limpeza de suas carteiras, a que os bancos deverão proceder. • Foco da lei Ela própria se denomina “Lei Dodd-Frank de Reforma de Wall Street e de Proteção do Consumidor”. Trata-se de um diploma legislativo ambicioso, que, em algumas passagens, teve de atravessar um verdadeiro labirinto legislativo, compatibilizando normas federais com estaduais, e novas normas federais com outras do mesmo jaez, aperfeiçoando ou estabelecendo regramentos adicionais. A tarefa do legislador americano é diferente da aqui vigente. Os Estados têm maior autonomia legislativa; há cuidados especiais quanto a limites de abrangência das normas, limites de atuação de órgãos da administração e quanto a instituições já estabelecidas. Daí porque leis repressivas tendem a ser minudentes e longas. É um trabalho de arte inserir as normas em face de instituições e direitos consolidados naquela jurisdição. – Na leitura da Lei Dodd-Frank por um jurista brasileiro, o texto é um tanto repetitivo ou redundante. O estilo por vezes choca. Por exemplo, na p. 83, há um período de 19 linhas, com o sujeito na 6ª linha e o predicado na 12ª linha. Ou o sujeito na 1ª linha e o predicado na 6ª, em período de 13 linhas (p. 86). Nos EUA, existe sedimentado todo um sistema de crédito capilarizado, acessível aos cidadãos e às suas iniciativas empreendedoras, a custos não escorchantes. Existe uma preocupação legal de inclusão 18 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 financeira de toda a população. É feita uma previsão legal de necessidade de preservar o acesso ao crédito e aos serviços financeiros por minorias e por comunidades carentes. Em certas passagens onde prevê mão forte repressiva, é taxativa no concernente a que a Autoridade implementadora das medidas afira as consequências de sua ação sobre minorias e comunidades carentes, evitando que elas sejam prejudicadas pela ausência de crédito ou privação de serviços financeiros. Não é permitida uma supervisão com mão forte indiferente à exclusão. No Brasil, aparentemente somos um tanto cegos ao fato de que existe um oligopólio no sistema financeiro, com instituições estatais (BB, BNDES, CAIXA) e algumas privadas centralizando decisões de concessão de crédito ou financiamento. O centralismo da União e pouca autonomia dos Estados compõem o quadro de fundo. A Lei Dodd-Frank é extensa e detalhista, justamente porque lida com um assunto que, no meu entender, diz respeito a um fundamento da democracia, qual seja a estabilidade do sistema financeiro, protegendo o direito à acessibilidade e disponibilidade do crédito e serviços financeiros, descentralizadamente. Uma visão geral nos surpreende, à primeira vista, pela sua extensão: a Lei se subdivide em 16 títulos, com títulos resumidos, definições dos termos empregados, alguns subtítulos ou partes. No total, são 1.601 secções, com subseções e seus itens. A compartimentalização em títulos materializa onde os legisladores americanos houveram por bem sedimentar novas instituições e novas regras de procedimentos. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 19 TÍTULOS DO DODD-FRANK ACT (Tradução aproximada dada a divergência de institutos, em relação à nossa legislação) Título I Estabilidade Financeira Título II Autoridade para Liquidação Ordeira Título III Transferência de Poderes para o Comptroller of Currency, para a Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) e para o Board of Governors do Federal Reserve System-FED Título IV Regulamentação dos Assessores para Fundos de Hedge Título V Seguros Título VI Melhoramentos na Regulamentação de Holdings de Bancos, Associações de Poupança e Instituições Depositárias Título VII Transparência e Confiabilidade de Wall Street (Regulação do mercado de Swaps e de mercados de títulos lastreados por swaps) Título VIII Supervisão de pagamentos, compensações e liquidações Título IX Proteção do Investidor e melhorias na regulação dos valores mobiliários Título X Agência de Proteção do Consumidor Financeiro Título XI Autorizações para o Federal Reserve System 20 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Título XII Aumentando o Acesso a produtos de Instituições Financeiras Título XIII Repagamentos (TARP e outros) Título XIV Reforma do Sistema de Hipotecas e Empréstimos Predatórios Título XV Miscelânea Título XVI Alguns Contratos (swaps e outros não referidos anteriormente) Trata-se de uma quantidade formidável de previsões e provisões. A Lei prevê complementação através de vários estudos e de regulamentações suplementares, já hoje editadas ou a serem editadas, sendo de se destacar as relativas a exigências de níveis de capital. Título I – Estabilidade financeira Fica instituído o Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira (Financial Stability Oversight Council). Resolveu-se institucionalizar o enfrentamento de crises, quando ocorrentes, mas sobretudo a prevenção delas. As autoridades agora têm um porto seguro legal para atuar, com discriminação de atribuições. Naquele país, normalmente as autoridades não se sujeitam a ações judiciais irresponsáveis, mesmo que errem em seus diagnósticos, tendo que decidir no fogo dos acontecimentos, quando tomam providências motivadas pelo interesse público de solução da crise ou de problemas. O caprichoso pode resultar custoso. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 21 A Lei americana reuniu no Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira as principais autoridades, sob cuja supervisão estão as instituições potencialmente origem de crises, e conferiu-lhe uma competência abrangente: a) Identificar riscos à estabilidade financeira dos EUA que possam advir de dificuldades financeiras, de falência ou de atividades desenvolvidas por grandes companhias holdings interconectadas de bancos, de instituições financeiras não bancárias, ou que possam advir de fora do mercado de serviços financeiros. b) Promover a disciplina de mercado, eliminando as expectativas de acionistas, credores e contrapartes de tais companhias de que o Governo os protegerá de perdas no caso de falência. c) Reagir a ameaças emergentes à estabilidade do sistema americano. Informação O Conselho tem autoridade para obter ou requisitar quaisquer informações, para o exercício de suas atribuições, das entidades que o constituem, da Agência Federal de Seguros ou do Escritório de Pesquisa Financeira (Office of Financial Research). Este “Escritório” foi criado pela própria Lei, como entidade instituída dentro da estrutura do Departamento do Tesouro, tendo orçamento estabelecido de acordo com o Presidente do Conselho (Secretário do Tesouro). Goza de independência sobre a forma como vai desincumbir-se de suas responsabilidades e exercer sua autoridade. Seu diretor é escolhido pelo Presidente dos EUA, com assistência do Senado. Dará suporte às responsabilidades do Conselho de 22 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Estabilidade Financeira e a seus membros, coletando dados e os fornecendo; padronizando a forma de sua coleta e de seu suprimento; executando pesquisas aplicadas e essenciais, de longo prazo; desenvolvendo instrumentos de mensuração e de monitoração de riscos, assistindo as Agências reguladoras em determinar os tipos e formatos de dados autorizados pela Lei a serem coletados por tais Agências. A negativa contumaz de fornecimento de informações terá o mesmo tratamento dado pelas Cortes à desobediência a ordem judicial. Constituição do Conselho. Tem os seguintes membros votantes (1 voto cada): • o Secretário do Tesouro, que é o seu presidente (Chairperson); • o Presidente do FED (Federal Reserve System), o Banco Central americano, com poderes sobre holdings bancárias e bancos e, pela nova Lei, com amplos poderes previstos sobre instituições financeiras não bancárias, afiliadas e outras que ameacem a estabilidade financeira dos EUA; • o Comptroller of the Currency (literalmente seria “O Controlador da Moeda”): o Office of the Comptroller of the Currency (OCC) é a agência governamental a quem está afeta a normatização e fiscalização direta, administrativa e operacional, dos bancos (pela nova Lei, também de associações de poupança e empréstimo. A nova Lei extinguiu o Office of Thrift Supervision); • o Diretor do Birô de Proteção Financeira do Consumidor, instituído no Título X da mesma Lei; Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 23 • o Presidente da SEC (equivalente à nossa Comissão de Valores Mobiliários); • o Presidente da FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), agência governamental que administra as garantias dadas aos depositantes de bancos e de associações de Poupança e Empréstimo (que são as insured depository institutions). Com visto, a garantia dada aos depositantes foi aumentada de US$100 mil para US$250 mil. A FDIC funciona como síndico de instituições financeiras submetidas ao processo de liquidação (aprox. equivalente ao liquidante em nossas liquidações extrajudiciais); • o Presidente da Comissão de Negociações de Futuros de Commodities (Commodity Futures Trading Commission), com jurisdição de regulamentação e de fiscalização dos mercados de negociação pública de derivativos de commodities, além de negócios futuros de comerciantes de commodities; • o Diretor da Agência Federal de Financiamento a Moradias (FHFA), supervisora do Sistema Federal de Bancos de Empréstimos Habitacionais (Federal Home Loan Banks) e da Empresa Federal de Financiamentos Habitacionais Hipotecários (Federal Home Loan Mortgage Corporation); • o Presidente do Conselho de Administração Nacional das Credit Unions (entidades de crédito aprox. do tipo cooperativo ou de consórcio de crédito); • o Membro independente com expertise em matéria de seguros, indicado pelo Presidente por recomendação e aprovação do Senado. 24 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Obs.(1):São basicamente commodities: • “produtos” de energia, como petróleo, gás; • “produtos” primários (ou processados), como metais (v.g. minério e pellets de ferro, zinco, cobre, titânio, nióbio, ouro e outros); • produtos agrícolas in natura ou processados (soja, cacau, café, açúcar, milho, algodão, suco de laranja e até casulos de seda). Obs.(2): O termo “derivativos” comporta certa abertura conceitual. Gerou discussões teóricas acirradas, sobretudo quanto a negociação no balcão ou em bolsa (padronização, hoje razoavelmente pacificada), sobre jurisdição supervisora, entre a CFTC (commodities), OCC (operações bancárias “sob medida”, no balcão) e SEC (derivativos tendo como subjacentes, no todo ou em parte, valores mobiliários), em face da natureza dos “produtos” subjacentes, tipos de negociação (em Bolsa ou no balcão) e forma de oferta. Até mesmo, a discussão sobre se futuros, swaps e opções de moedas estrangeiras (vistas por alguns como commodity), negociados no balcão, seriam de jurisdição desta ou daquela entidade supervisora primária. Para sua negociabilidade em Bolsas de Mercadorias ou Futuros, são estabelecidos contratos estandardizados, com quantidades ou lotes padronizados como barris, metro cúbico, toneladas, unidades de bushels, fardos unitários, sacas etc. Os contratos de derivativos financeiros, negociados em Bolsas, tendo como subjacentes juros, moedas, índices (swaps, opções, futuros) podem ser padronizados em lotes com números simples, que possibilitem a fácil comparação da evolução das cotações. A cada unidade destes números corresponde um determinado valor subjacente. As entidades de liquidação (e custódia) funcionam como contrapartes centrais, que garantem a liquidação das operações, mediante margens (garantias líquidas) aportadas pelas partes. As liquidações se dão ordinariamente por diferença, diariamente. Os perdedores são debitados e os ganhadores creditados, exigindo-se, conforme o caso, reforço de garantias para as posições mantidas (compradoras ou vendedoras de contratos). Estas margens de garantia podem ser alteradas, em função da situação do mercado. De modo que se trata de um mercado com boas salvaguardas de liquidação, exceto em situações de crise generalizada de mercado, quando a própria execução das garantias “ tout court” pode exacerbar o risco sistêmico. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 25 Além dos membros votantes, participam (exceto se decidido em contrário pelo Presidente, em situações especiais) das reuniões do Conselho membros “não votantes”: • o Diretor do Escritório de Pesquisa Financeira; • o Diretor da Agência Federal de Seguros; • um Comissário de Seguros, representante de comissários estaduais de seguros; • um Supervisor bancário estadual, representante de supervisores bancários estaduais; • um Comissário de Valores Mobiliários, representante de reguladores estaduais de valores mobiliários. Responsabilidades do Conselho Sua tarefa maior é monitorar o mercado de serviços financeiros para identificar e prevenir eventuais ameaças à estabilidade financeira dos EUA. Dirige a Agência de Pesquisa Financeira para coletar informações das companhias holdings bancárias, instituições fi nanceiras não bancárias, companhias que exerçam atividades financeiras, e determinar diretivas para suas pesquisas e análises. Tem autoridade para coletar informações de suas agências-membro, de outras agências regulatórias federais e estaduais. Deve zelar e tomar providências objetivas para a integridade, eficiência, competitividade e estabilidade do mercado financeiro americano. Entre as suas obrigações de aportar recomendações ao Congresso, está a de encaminhar medidas para manter a “confiança” dos investidores. 26 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Poderes mais abrangentes de supervisão Tem poder de determinar supervisão pelo Banco Central (FED) sobre instituições financeiras não bancárias e suas afiliadas, que representem perigo para a estabilidade financeira, em face de dificuldades financeiras, falência ou por causa do tipo de atividades que exerçam. • Deve recomendar ao FED, também, a adoção de padrões prudenciais elevados para companhias financeiras não bancárias, por Ele supervisionadas, e para grandes e interconectadas holdings bancárias no concernente a capital de risco, ao uso de recursos de terceiros (endividamento, leverage), liquidez, capital contingente, informações sobre risco de crédito, limites de concentração de crédito, padrões aperfeiçoados de transparência pública e de administração global de risco. • Tem autoridade para identificar os serviços sistemicamente importantes do mercado financeiro, bem assim regular as atividades de registro, pagamento, liquidação e compensações (clearings), para as quais são estabelecidas regras no Título VIII da Lei. Os serviços respectivos têm-se mostrado uma consideração-chave no ordenamento e transparência do mercado. • Pode efetivar recomendações às agências reguladoras primárias para aplicar novos padrões ou salvaguardas, ou elevar os existentes, para atividades financeiras ou práticas que possam criar ou aumentar riscos de liquidez significativa, de crédito, ou de outros problemas que possam espraiar-se entre companhias holdings bancárias, instituições financeiras não bancárias e mercados dos EUA. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 27 • Em relação à SEC, e a outros organismos que estabeleçam padrões (v.g. FASB), revisar e submeter comentários quanto a princípios contábeis, padrões ou procedimentos existentes ou propostos. O Conselho proverá, igualmente, um foro adequado para discussão das principais iniciativas regulamentares do mercado, inclusive sobre seguro e contabilidade. Promoverá entendimento entre agências reguladoras para evitar justaposição supervisiva e conflitos jurisdicionais. Poderes excepcionais Na Secção 113, está previsto que o Conselho, por votação positiva de 2/3 de seus membros, um deles sendo necessariamente o Presidente, poderá determinar, de forma indelegável, que uma instituição financeira não bancária americana seja supervisionada pelo Banco Central (Board of Governors of the Federal Reserve System) e seja submetida a padrões prudenciais, se alvitrar que sérios embaraços financeiros (distress) de tal instituição ou a natureza, finalidade, tamanho, escala, concentração, interconectividade ou a mescla de suas atividades representem ameaça à estabilidade financeira dos Estados Unidos. Uma instituição financeira não bancária americana é definida como uma companhia organizada sob as leis americanas, que esteja predominantemente engajada, por ela mesma ou por suas subsidiárias, em atividades tidas como financeiras por sua natureza, pela lei americana (Bank Holding Company Act de 1956). 28 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 O Banco Central (FED) precisará, por regulamento, os requisitos para determinar se uma companhia está predominantemente engajada em atividades financeiras, de acordo com a Lei. O Conselho tem jurisdição sobre atividades exercidas nos EUA e sobre subsidiárias de instituições financeiras não bancárias estrangeiras. Quanto às instituições bancárias, há poder de supervisão estabelecido em Lei, tanto para companhias americanas quanto estrangeiras, com atividades nos EUA. No caso de instituições estrangeiras (não bancárias e bancárias), o Conselho, agindo através da Agência de Pesquisa Financeira, procurará obter do regulador estrangeiro as informações apropriadas, e, sempre que possível, basear-se-á em informações que já estejam por ele colhidas, com tradução em inglês. Na definição do engajamento que sujeite uma instituição não bancária aos ditames do Conselho, conforme descritos anteriormente, serão considerados: • a extensão do uso de recursos de terceiros (endividamento, leverage); • a extensão da exposição financeira da empresa fora do seu balanço (cessão de crédito vinculada, p. ex.); • a extensão e natureza dos negócios e relacionamentos com outras significativas instituições financeiras não bancárias e significativas companhias holdings bancárias; • a importância da companhia como fonte de crédito para famílias, para empresas, crédito para governos locais e de Estados, e como fonte de liquidez para o sistema financeiro dos Estados Unidos; Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 29 • importância da companhia para como fonte de crédito para baixa renda, para minorias, para comunidades carentes, e o impacto que a sua falência tem na disponibilidade de crédito para tais comunidades; • a extensão em que a companhia é mais administradora do que proprietária dos ativos e a extensão em que a propriedade dos ativos é difusa; • a natureza, finalidade, tamanho, escala, concentração, interconectividade e a mescla de suas atividades; • o grau em que a companhia é já regulada por uma ou mais agências reguladoras primárias; • o montante e o grau de dependência de exigibilidades da companhia, incluindo a dependência de financiamento (funding) de curto prazo; • quaisquer outros fatores de risco que o Conselho julgue apropriados. Determinado pelo Conselho que uma companhia deva ser supervisionada pela Administração do FED, ela deverá ali registrar-se, preenchendo os formulários e fornecendo as informações que sejam julgadas necessárias. Igualmente em relação a instituições financeiras não bancárias estrangeiras, com atividades nos EUA, o Conselho tem tais poderes, inclusive para evitar que se evadam da supervisão americana, levando ainda em consideração o tamanho de seus ativos e atividades nos EUA a extensão em que tais instituições estão sujeitas a padrões prudenciais em seus países de origem. 30 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Estabelecimento de uma holding intermediária • As companhias que estejam submetidas aos poderes excepcionais retro descritos poderão sujeitar-se a estabelecer uma companhia holding intermediária na qual as atividades financeiras desta companhia e de suas subsidiárias serão conduzidas, com observância dos regulamentos e instruções do Federal Reserve (FED). Padrões prudenciais e de supervisão aumentados • Para prevenir ou mitigar riscos à estabilidade financeira, que possam provir de atividades de grandes instituições financeiras, o Conselho poderá fazer recomendações ao FED de que estabeleça ou refine padrões prudenciais, de informação às autoridades e de transparência das instituições financeiras não bancárias por ele supervisionadas e a grandes e interconectadas holdings bancárias. Tais padrões podem ser mais rigorosos que os usuais. Ao fazê-lo, a administração do FED diferenciará entre as companhias que estarão sujeitas em uma base individual ou por categoria. • Pode recomendar igualmente que se estabeleça um ponto de partida de US$50 bilhões em ativos para sujeitar instituições a padrões mais elevados. • As holdings bancárias com ativos consolidados superiores a US$ 50 bilhões ou companhias financeiras não bancárias supervisionada pelo Conselho, e quaisquer subsidiárias, deverão fornecer informações auditadas para manter o Conselho sigilosamente informado sobre as condições financeiras da companhia, sistemas para monitorar e controlar riscos financeiros, operacionais e outros, bem assim negócios com subsidiária que seja instituição Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 31 depositária e em que medida as atividades e operações da companhia ou de suas subsidiárias podem, em condições adversas, ter potencial para romper os mercados financeiros ou afetar a estabilidade financeira dos EUA. Podem ser-lhes estabelecidos limites e padrões mais rigorosos (v. abaixo) do que os exigidos a outras instituições que não representem perigo para a estabilidade financeira e restrições a diretorias interligadas. Capital adicional de contingência pode ser determinado. À Autoridade é conferido o poder de alvitrar o quantum de capital de contingência suficiente. • 32 Padrões superiores de sujeição das instituições supervisionadas podem referir-se especificamente a: ◦ requisitos de nível de capital próprio de risco; ◦ limites de endividamento; ◦ níveis de liquidez; ◦ plano de ação para solução de emergências financeiras; ◦ relatório sobre nível de risco de crédito; ◦ limites de concentração de risco de crédito; ◦ requisitos quanto a capital para contingências (instituições financeiras não bancárias, holdings bancárias, subsidiárias); ◦ melhor transparência pública; ◦ limites de débito de curto prazo; ◦ requisitos de administração de risco. C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Não poderão adquirir, sem um aviso prévio ao FED, controle (ações com voto) de outras instituições com ativos consolidados superiores a US$10 bilhões. As holdings bancárias sujeitam-se a este aviso, no caso de aquisição de controle de ações votantes de qualquer companhia com ativos superiores a US$50 bilhões ou de instituições financeiras não bancárias supervisionadas pelo FED. Embora não tratado este aviso prévio como um pedido de autorização, o FED levará em consideração se tal aquisição representa perigos maiores ou concentrados para o mercado. Comitê de risco • Instituições com ativos superiores a US$10 bilhões deverão ter um comitê de risco, devendo efetivar testes anuais em pelo menos três simulações de situações: básica, adversa e extremamente adversa (testes de stress). • Abaixo deste limite, o FED poderá, conforme o caso, também exigir tal comitê, e os testes serão semianuais. Este comitê deverá ter um número de diretores independentes, conforme seja determinado pelo FED, e pelo menos um experto em identificação e administração de risco em empresas de porte e complexas. O FED estabelecerá parâmetros de avaliação de risco e de testes de stress, e pode avaliar, em conjunto com a agência primária de supervisão, se a instituição tem um nível geral de capital suficiente para absorver perdas resultantes de uma situação adversa, e também determinar que refaçam seus planos de liquidação como consequência desta avaliação. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 33 Capital para contingências (Em vista, sobretudo, da alegada competitividade com instituições estrangeiras) Quanto a capital para contingências, seu quantum e características, o Conselho conduzirá estudos para avaliar a sua factibilidade, os benefícios, custos e estrutura para as instituições supervisionadas. Bem assim, as circunstâncias em que tal capital de contingência será convertido em capital próprio de risco e as consequências na estrutura e operações de crédito e outros efeitos econômicos de tais requisitos aumentados, inclusive na competitividade das instituições a eles sujeitas. Tal estudo deverá ser relatado ao Congresso americano até dois anos após a edição da lei. Após esta submissão do estudo ao Congresso, o Conselho poderá recomendar ao FED que exija a manutenção de um capital mínimo de contingência. Portanto, no particular, estas providências estão sendo desenvolvidas ao mesmo tempo em que se discute e decide sobre a implementação de novos níveis de capital para os bancos – aí incluso capital de contingência – nas diversas jurisdições (Basileia 3). Não há, contudo, superposição de prazos necessária. Sabe-se que as autoridades dos países-membros da União Europeia têm insistido em uma “liberdade assistida” para a implementação dos novos níveis de capital dos bancos naquele bloco econômico. Tal liberdade assistida abriga preocupações quanto a se poder exigir mais ou, então, menos dos bancos, em face de condições locais, nas diversas jurisdições. Os bancos europeus já enfrentam dois tipos de saneamento de suas carteiras: o dos créditos privados e dos créditos soberanos. 34 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Exposição a risco de crédito O FED determinará limite de exposição a risco de crédito de uma mesma companhia (empréstimos, garantias de recompra, letras de crédito, exposição a derivativos, investimento em títulos e outros) de no máximo 25% do total de capital e reservas da instituição. Restrições a operações (Intervenção branca) Se a administração do FED alvitra que uma holding bancária com ativos superiores US$50 bilhões ou uma instituição financeira não bancária por ele supervisionada representa uma grave ameaça à estabilidade financeira dos EUA, ela pode, após votação do Conselho, com maioria de 2/3 dos seus integrantes: • limitar a capacidade de fusão, aquisição, consolidação com outra companhia ou de outra forma tornar-se afiliada; • restringir a capacidade de oferecer produto ou produtos financeiros; • determinar que cesse uma ou mais atividades; • impor condições quanto à maneira pela qual a companhia conduz uma ou mais atividades; • adicionalmente, em caso de insuficiência das medidas acima, determinar venda ou de outra forma transfira ativos ou itens fora de balanço para entidades não vinculadas a ela. Plano de liquidação Quanto ao pretendido “testamento” (will), que holdings bancárias e instituições financeiras devem apresentar para o caso de real emergência Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 35 financeira ou falência, a Lei prevê que, em tais casos, aquelas que estejam supervisionadas pelo Conselho reportem ao mesmo Conselho, à administração do FED e à FDIC, plano para rápida e ordeira resolução das pendências peculiares a tais estados financeiros (emergência) ou regime (liquidação ou falência). Essas Autoridades têm o prazo de 18 meses, a partir da edição da Lei, para regulamentar este dispositivo. O FED deverá ser provido com informações: • sobre a blindagem protetora de instituições depositárias afiliadas; sobre a completa estrutura do controle, sobre ativos, exigibilidades, e obrigações contratuais; • sobre a identificação de garantias cruzadas ligadas aos diferentes títulos das principais contrapartes, e o processo para determinar a quem as garantias da companhia são fornecidas. • sobre quaisquer outros dados que sejam requeridos pelo FED ou pela FDIC. Deverão ser feitas transparecer as obrigações com outras instituições e destas outras com a instituição. O plano deverá ter atributo de credibilidade e de facilitação de uma liquidação ordeira, sujeito a sofrer os ajustes que sejam ordenados pelas ditas autoridades, que poderão determinar o desinvestimento em certos ativos ou operações. O Conselho pode determinar também que elas enviem relatos periódicos de exposição creditícia com outras instituições da mesma categoria e de exposição destas últimas com elas mesmas. Relação débito/capital A relação débito/capital para holdings bancárias e para instituições financeiras não bancárias submetidas à supervisão do FED, com 36 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 ativos consolidados superiores a US$50 bilhões, será por ele alvitrada em no máximo 15 por 1. Tal relação máxima pode ser considerada extremamente flexível, comparada com os padrões do Acordo de Basileia (já foram 12 por 1, com tendência a diminuição acentuada). A regulamentação prevista pela Lei é que dará o contorno definitivo desta norma, em face do que se considerará como “capital” de referência e capital de risco próprio. Os requisitos de capital mínimo são ou a relação entre o capital próprio (componentes regulamentares do capital – Tier 1) I e os ativos médios totais estabelecidos pela agência reguladora; ou a relação entre o capital próprio e os ativos ponderados por risco, como estabelecido pela agência reguladora federal. Serão estabelecidos para instituições depositárias seguradas, para holdings de instituições depositárias (de bancos e associações de poupança e empréstimo) e para instituições financeiras não bancárias supervisionadas pelo FED. As agências reguladoras federais de instituições depositárias e de suas holdings aplicarão exigências de níveis de capital apropriadas aos riscos que elas podem representar não só para as instituições com o mesmo tipo de atividade como para outros interessados públicos ou privados em caso de performance adversa, ruptura ou falência da instituição ou da atividade. Levarão as agências na devida conta os volumes de atividade em derivativos, produtos securitizados comprados ou vendidos, garantias dadas ou recebidas, títulos tomados emprestado ou emprestados, acordos de recompra ou acordos de recompra reversos. Também será levada em conta a concentração em ativos avaliados no balanço segundo modelos próprios, em vez de avaliação por custo histórico ou por valores de mercados líquidos, e a concenCarta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 37 tração em tipo de mercado que irá afetar significativamente os mercados se a instituição for forçada a cessar suas atividades de forma inesperada. Atividades off-balance-sheet Na determinação do capital necessário, deverão ser incluídas todas as atividades que estejam fora do balanço da instituição (off-balance-sheet), assim conceituadas: • quando o banco transfere o próprio crédito para uma terceira parte, incluindo cartas de crédito stand by; • cartas de crédito irrevogáveis que garantem pagamento de papéis comerciais (comercial papers) ou títulos; • participações de risco em aceites bancários; • acordos de venda e recompra; • venda de ativos com compromisso do vendedor; • swaps de taxas de juros; • contratos de commodities; • contratos para entrega futura (forwads); • contratos com títulos e outros que venham a ser previstos pelo FED. As chamadas operações bancárias “sombra” (com fundos de hedge, com fundos de empréstimo de curto prazo, com sociedades de propósito específico que absorvem títulos produzidos por instituições financeiras) são ainda hoje extraordinariamente vultosas (na casa 38 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 dos trilhões de dólares). Não se tem transparência do montante com que contribuíram e ainda contribuem para a deterioração dos ativos bancários. Ação preventiva do FED (“early remediation”) – Intervenção Quando vislumbre situação de crescente emergência financeira em uma instituição supervisionada, o FED, consultando o Conselho e a FDIC, estabelecerá requisitos preventivos, que não sejam assistência financeira do Governo Federal, para minimizar a probabilidade de que a instituição se torne insolvente e, com esta insolvência, venha a ameaçar a estabilidade financeira dos EUA: • estabelecer medidas para a saúde financeira da instituição, incluindo requisitos mais estritos de capital líquido e outros indicadores financeiros antecipatórios; • limites de distribuição de capital, de aquisições e de crescimento de ativos; • requisitos para restauração ou aumento de capital, negócios com afiliadas, mudanças na administração e vendas de ativos. Por sua vez, a FDIC tem seu campo de competência ampliado, e sua autoridade fortalecida, para conduzir averiguações em instituições depositárias e suas holdings, com base na nova Lei, quando o FED julgar que devam ocorrer para fins de seguro. Acertar-se-á com o FED em termos do plano de liquidação ordeira, evitando duplicidade ou conflito de averiguações ou agir quando a holding da instituição depositária esteja em boa condição e não signifique risco de perda para o Fundo de Seguro de Depósitos. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 39 Coordenação internacional de políticas O Presidente dos EUA ou pessoa por ele designada coordenará, através de canais internacionais de política, as políticas similares às existentes nas leis americanas, relacionadas a limitação do objeto, natureza, tamanho, concentração e conectividade de instituições financeiras, com o objetivo de preservar a estabilidade financeira e a economia global. O Presidente (Chairperson) do Conselho de Estabilidade Financeira dos EUA, mediante consulta aos demais membros do Conselho, manterá tratativas regulares com outras entidades reguladoras financeiras e outras organizações apropriadas de governos estrangeiros ou organizações internacionais sobre assuntos relacionados a risco sistêmico para o sistema financeiro internacional. A Administração do Banco Central Americano e o Secretário de Tesouro dos EUA farão tratativas com contrapartes estrangeiras e através de organizações multilaterais apropriadas para encorajar robusta e abrangente supervisão prudencial e regulamentação para todas as instituições financeiras altamente endividadas e interconectadas. Conclusão Mesmo com esta visão perfunctória, é possível avaliar que o grau de vigilância sobre instituições que possam representar perigo para a estabilidade financeira aumentou dramaticamente. As autoridades têm todo o instrumental para evitar o desenvolvimento operacional indefinido e temerário de instituições. 40 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Citados no limiar desta palestra, os demais títulos da Lei descem a pormenores específicos sobre instituições e operações do sistema financeiro, praticamente não deixando qualquer instituição ou operação influente sem regulação e imune a registro, auditagem e transparência. A trilha para a fraude certamente tornou-se mais áspera. Assim como mais informadas estarão as autoridades sobre o desenvolvimento de operações temerárias, em escala perigosa. SUPLEMENTO: Lei Dodd-Frank – Autoridade para liquidação ordeira Liquidações de companhias financeiras são ali reguladas, com o fito de se processarem de forma ordeira. Em essência, são sequenciados procedimentos típicos de uma liquidação extrajudicial, de forma minudente, com algumas características, que me pareceram elegíveis para efeito de comparação com nossas leis a respeito: Lei 6.024/74 (Intervenção e Liquidações Extrajudiciais de Instituições Financeiras; Decreto-Lei 2.321 de 25/2/1987 (Regime de Administração Especial Temporária) e Lei 9.447, de 14/3/1997 (Responsabilidade de Controladores de Instituições financeiras). Matérias ou critérios objeto de postulações ou reclamações por parte de controladores de empresas em liquidação, no Brasil, são aqui mencionadas. • Acumularam-se na recente crise americana falências em grande número de bancos de pequeno porte e de outras instituições afiliadas. Desde logo chama a atenção o fato de a Lei determinar que sejam realizados estudos separados pelo Administrative Office of The United States Courts e pelo Comptroller General of the United States sobre falência e outros processos de liqui- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 41 dação para companhias financeiras. O Comptroller também deverá fornecer às comissões apropriadas do Senado e da Câmara, em três anos, e a cada cinco anos, sumários sobre os resultados dos estudos realizados. As atividades financeiras nos EUA não são um exercício privilegiado nem se concebe ali um oligopólio prático em decisões de concessão de crédito e prestação de outros serviços financeiros, que não devem ser disponibilizados abusiva ou predatoriamente. A acessibilidade dos diversos segmentos sociais a tais serviços elegeu-se como um direito dos cidadãos. Está presente em vários dispositivos da nova lei, inclusive para que processos de liquidação e falência não venham a dificultar ou impedir o exercício de tal direito. A eliminação de uma instituição deve sempre prover para que não haja descontinuidade nos serviços financeiros às comunidades carentes. Sec. 202 – Submissão necessária a revisão judicial de decisão de liquidação – A pedido da FDIC e do FED, o Secretário do Tesouro dos EUA determina se uma companhia financeira enquadra-se nos requisitos legais para ser liquidada, designando-se a Federal Insurance Deposit Corporation como síndico. Precede tal determinação uma recomendação da Administração do FED (Board) e da FDIC (Board) aprovada por pelo menos 2/3 dos administradores dessas entidades, em exercício. No caso de sociedades corretoras, recomendação partirá da SEC e do FED, com o mesmo quorum administrativo. No caso de seguradoras ou subsidiárias, a iniciativa da recomendação escrita partirá do Diretor do Federal Insurance Office, criado pela Lei, e de pelo menos 2/3 do Board do FED, com consulta à FDIC. A recomendação segue um roteiro informativo para caracterização legal da companhia financeira e para causas de ser recomendada sua liquidação, inclusive uma avaliação de alternativas privadas para 42 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 a liquidação e dos efeitos em relação a credores, contrapartes contratuais, acionistas e outros participantes do mercado. A liquidação, portanto, não é considerada uma solução isolada de suas sequelas. O Secretário do Tesouro pode tomar a iniciativa de liquidação, em consulta com o Presidente, se alvitrar que a sujeição de uma empresa à lei federal de falências ou a leis estaduais de falência colocará em perigo a estabilidade financeira dos EUA. • A administração da companhia designada para liquidação pode concordar, ou não. Se não aquiescer, então, o Secretário do Tesouro submeterá, sigilosa e motivadamente, o conflito à Corte do Distrito de Colúmbia (Washington-USA). Qualquer pessoa que descuidadamente viole tal sigilo será submetida a uma multa de até US$250 mil ou a prisão de até cinco anos. Intimada, sob segredo de Justiça, a parte demandada para contestar, a Corte decidirá, em audiência, se a petição é procedente em termos do enquadramento legal ou se é “arbitrária ou caprichosa”, em 24 horas desde a recepção da petição, sob pena de ser considerada provida, e a liquidação ser imediatamente iniciada. A decisão da Corte é passível de recurso à 2ª Instância e à Suprema Corte em prazos de 30 dias, com recomendação legal de julgamentos expedidos, em face da gravidade da questão. Satisfações ao Congresso e ao público O Secretário do Tesouro, em 24 horas após a materialização da FDIC como síndico, reportará ao Congresso as razões da recomendação e da determinação: ao líder da maioria e da minoria no Senado, ao porta-voz e ao líder da Câmara dos Deputados, ao Comitê de Bancos, Habitação e Negócios Urbanos da Câmara, esclarecendo sobre as fontes de recursos (capital e crédito) que eram disponíveis para a Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 43 companhia financeira liquidanda, atividades que poderiam ter impacto na estabilidade financeira e nos mercados, identificação dos bancos e companhias financeiras que podem fornecer os serviços financeiros providos pela liquidanda, consequências para os consumidores, liquidez de bancos e outras companhias financeiras. Em até 60 dias, a própria FDIC preencherá um relatório, com estes Comitês do Congresso, para tornar públicas as condições financeiras da liquidanda, especificar ativos e passivos, os planos da FDIC para dar uma solução à liquidanda, mencionar as razões de aporte de recursos para a massa (além dos recursos do Fundo de Liquidação Ordeira), estabelecido pela Seção 210 da Lei, com a previsão de custos, as razões de tratamento especial de certos créditos, e os sítios eletrônicos onde estarão disponíveis informações periódicas adicionais. Trinta dias após a produção deste relatório, tanto a FDIC quanto a agência supervisora primária poderão ser convocados pelo Congresso para prestar esclarecimentos. O Comptroller General dos EUA poderá avaliar a decisão de colocar em liquidação e reportar ao Congresso americano as bases da determinação, o objetivo de qualquer atuação (v.g. colocar um grande número de inspetores em um banco), os efeitos em contrapartes, credores e acionistas, inclusive os que sejam detrimentais em face de razoáveis expectativas destes. Aplicabilidade da lei de falências (Bankrupticy Code) Não se aplicará a lei de falências, nos casos em que a FDIC funcionar como síndico por designação do Secretário de Tesouro, e, sim, a Lei Dodd-Frank. Em face do volume de interesses envolvidos e às consequências que poderiam advir para o sistema como um 44 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 todo, esta Lei é bastante extensa e detalhada, além de ter algumas provisões específicas para aplicação subsidiária da lei de falências. As “companhias financeiras” que se sujeitam ao regime especial por ela estabelecido passam a chamar-se covered financial companies, e são holdings bancárias, companhias financeiras não bancárias que sejam consideradas sob a supervisão do FED, companhias que, no entender do FED, estejam predominantemente engajadas em atividades financeiras, e subsidiárias de qualquer uma das companhias anteriores, que sejam tidas como exercendo atividades predominantemente financeiras. Prazo para término das liquidações Estabelecido um prazo de 3 anos para que a FDIC permaneça como síndico. Prazo prorrogável por mais um período de 1 ano, em situações excepcionais, em que tal prorrogação seja necessária para maximizar o valor presente da venda ou de outra disposição dos ativos da entidade liquidanda, ou para minimizar perdas ou para proteger a estabilidade do sistema financeiro. Neste caso, o Presidente da FDIC deverá afirmar e certificar, perante as Comissões apropriadas do Senado e da Câmara, que existe tal necessidade. Mais um período de 1 ano de extensão pode ocorrer, desde que dadas as mesmas satisfações às Comissões do Congresso, pelo presidente da FDIC e pelo próprio Secretário do Tesouro. Qualquer permanência adicional da FDIC como síndico só será possível, por mais 90 dias, se houver litigâncias em que a FDIC Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 45 seja parte, como síndico, e o Conselho de Estabilidade Financeira alvitrar que a permanência se justifica pelos interesses envolvidos, estabelecendo o plano para terminar o(s) litígio(s). Após aprovação do Conselho, em 90 dias será submetido às Comissões apropriadas do Congresso. A própria FDIC fará o plano para terminar o litígio e retirar-se como síndico. Após deixar as funções de síndico, nenhuma responsabilidade terá a FDIC, nem o Fundo de Seguro de Depósitos, por postulações não atendidas. Plano de liquidação A FDIC elaborará um plano de políticas e procedimentos que sejam aceitáveis para o Secretário de Tesouro, relativamente ao uso de recursos disponíveis para a liquidação. A liquidação de companhias seguradoras será conduzida de acordo com a Lei estadual. Responsabilidades em uma liquidação Os credores e os acionistas arcarão com as perdas. O “síndico” (FDIC) não assumirá qualquer posição acionária na liquidanda. O sistema financeiro, como um todo, posderá arcar com excessos não cobertos. Os administradores (membros do conselho de administração, diretores), quaisquer outras pessoas que sejam consideradas como causadoras da condição financeira da liquidanda arcarão com as perdas, em conformidade com suas responsabilidades (responsabilidade subjetiva). Responderão por prejuízos que tenham causa46 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 do. Em tal caso, serão obrigados a restituições e recuperação de compensações recebidas e outros ganhos, compativelmente com suas responsabilidades. A responsabilidade é apurada explicitamente com o apontamento de conduta dolosa, negligência grave, desconsideração com o dever de diligência. Estende-se a responsabilidade a gerentes, empregados, agentes, advogados, contadores ou avaliadores ou quaisquer outras partes que tenham prestado serviços à companhia. Indisponibilidade de bens A FDIC poderá pedir a uma Corte que coloque os bens de determinada pessoa sob controle desta Corte, mostrando que a perda ou dano é imediata e irreparável por outra forma. Diferente do Brasil, onde, como se sabe, a indisponibilidade de bens dos que administraram a companhia nos 12 meses antecedentes à liquidação é objetiva, automática, e se materializa através de um ato administrativo do Banco Central, sem contraditório, sem discussão quanto a responsabilidades. A administração da liquidanda é afastada, mas inexiste responsabilidade objetiva indiscriminada para ex-administradores, podendo o síndico permitir, mesmo, que qualquer membro, acionista ou administrador da liquidanda, exerça uma função por ela determinada (Sec. 210). (C) A FDIC, como síndico, tomará todas as providências judiciais e extrajudiciais necessárias para promover responsabilidades. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 47 Atuação da FDIC como síndico Regida pelo propósito principal de preservar a estabilidade financeira dos EUA, prioritariamente a preservar a companhia liquidanda, a FDIC deve assegurar que os acionistas nada recebam até que todos os outros créditos sejam pagos, privilegiados ou não, inclusive os do Fundo de Liquidações Ordeiras. Como sucessor pro tempore da liquidanda, o síndico “age como uma empresa”, que administra um patrimônio, assumindo, portanto, e gerenciando todos os direitos e ativos da companhia com poderes dos administradores. Deve administrar os ativos da companhia, consistentemente com a maximização de seu valor, podendo contratar assistência para desempenhar tais funções (administração de carteira de empréstimos, leiloeiros, administração de propriedades, serviços jurídicos, serviços de corretagem). Neste sentido, pode continuar com contratos vantajosos, que adicionem valor ou aportem receitas. Pode obter fundos provenientes de empréstimos, emissão de obrigações vinculadas, com pagamento prioritário sobre os demais credores, para arcar com despesas administrativas da liquidação ou para outros atos administrativos ou financeiros. Pode adquirir dívidas próprias ou de subsidiárias, garantir dívidas da companhia ou de subsidiárias, constituir uma ou mais empresas-ponte (inclusive sem capital), para alocar ativos e transferir responsabilidades da companhia de no máximo igual valor, 48 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 independente do consentimento de partes, ou para exercício de funções temporárias. Como obrigação explicitada em Lei, exercendo qualquer direito, a FDIC conduzirá sua conduta de molde a maximizar o retorno da venda de seus ativos, minimizará as perdas na solução de pendências, mitigará quaisquer efeitos potenciais de efeitos adversos no sistema financeiro, assegurará competição tempestiva e apropriada entre competidores pelos ativos da companhia. Esta orientação motiva o comportamento do síndico (liquidante) ante uma compensação de dívida federal com outra dívida de ente federal ou de controlada por ente federal, depreciada por decisão de entidade deste devedor federal. Contrariariam este dispositivo legal alienações desastradas de ativos, como p. ex., know-how de software, abandono de conjuntos residenciais por terminar, exigindo novos aportes de capital; rescisão simples de contratos de locação, ao invés de venda de pontos. Pagamentos ou concessão de crédito A FDIC poderá, como síndico, fazer pagamentos adicionais ou conceder crédito a credores, mediante aprovação do Secretário do Tesouro, se julgar que tais pagamentos ou concessão de crédito são necessários ou apropriados para preservar patrimônio ou minimizar perdas. Assim, p. ex., crédito para terminar a construção de um shopping ou prédio de apartamentos. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 49 Ordem dos pagamentos A ordem de prioridades de pagamento é a seguinte: • Despesas administrativas da liquidação. • Importâncias devidas aos EUA, exceto se os EUA decidirem ceder a vez. • Verbas salariais, até certo limite individual (US$11.725,00). • Contribuições a planos de funcionários (limite acima multiplicado pelo número de funcionários). • Obrigações, segundo suas prioridades legais. • Obrigações subordinadas. • Salários e compensações de ex-administradores. • Obrigações para com acionistas. Em algumas circunstâncias, para maximizar o valor de seus ativos ou minimizar as perdas pela venda de ativos, o síndico poderá deixar de efetivar os pagamentos na ordem supracitada. Blindagem de ativos segregados em contratos financeiros qualificados Exceto se decorrente ou em suporte a fraude, ou destinado a segregar artificialmente bens, a FDIC não poderá obstaculizar a disponibilidade de títulos, dinheiro ou mercadoria segregados ou exigíveis como garantia ou para cumprimento de contratos financei- 50 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 ros qualificados, v. g. contratos de entrega futura, de futuros, swaps, opções nestes contratos, acordos de recompra e outros que a FDIC determine serem elegíveis. Nestes casos, reversamente, não serão válidas cláusulas que desobriguem terceiros em face de a empresa ter entrado em liquidação (walkaway clause). O síndico deverá empenhar-se ao máximo para completar garantias ou atender a outras exigências de Câmaras de Compensação de negócios qualificados, podendo aquelas entidades executar as garantias e liquidar os contratos, se não atendidas. Fundo de Liquidação Ordeira (Orderly Liquidation Fund) • A Lei instituiu, no Tesouro dos EUA, um Fundo de Liquidação Ordeira, com recursos provenientes de taxas (asssesments) especiais vinculadas, recebidas pela FDIC e: ◦ Da venda de obrigações por ela emitidas, juros e outros retornos de investimentos. ◦ De recursos ociosos aplicados em obrigações do Tesouro com vencimento compatível. ◦ E de pagamentos feitos pelas empresas liquidandas. Tem o Fundo como objetivo pagamento de despesas administrativas e outros pagamentos autorizados pela Lei. A emissão de obrigações tem como limite 10% do valor dos ativos, no início da liquidação (30 dias), e 90% do valor dos ativos livres para pagamento, depois, sendo seu pagamento equiparado a despesas administrativas (precede Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 51 a todos os demais pagamentos, inclusive os pagamentos aos EUA, como credor). O Fundo de Liquidação Ordeira não se comunica com o Fundo de Garantia de Depósitos, e os recursos deste último não podem ser usados, de qualquer forma, para assistir uma companhia em liquidação. As importâncias do Fundo de Liquidação Ordeira só estarão disponíveis após aprovação de plano da FDIC pelo Secretário do Tesouro, com todas as previsões de pagamentos, inclusive a terceiras partes. Este plano deverá levar na devida conta os efeitos da liquidação sobre minorias de baixa renda e comunidades carentes, com curso de ação para coordenação com todas as agências reguladoras primárias, para que haja eficácia na sua execução. O plano deverá conter cronograma de pagamento das obrigações que sejam emitidas, sendo reportado aos Comitês apropriados do Senado e da Câmara. Algumas despesas razoáveis de implementação da FDIC como síndico, mas não vinculadas a qualquer liquidação, serão pagas pelo Conselho de Estabilidade Financeira (custos de desenvolvimento de políticas, procedimentos, edição de normas e planejamento). Contribuições em benefício do Fundo de Liquidação Ordeira São fontes de recursos as receitas que sejam necessárias para pagamento de obrigações emitidas pela FDIC e pagáveis ao Tesouro americano, no prazo de 60 dias após sua emissão (prorrogáveis por 52 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 razões sérias que afetem o sistema financeiro). São receitas variáveis (assessments) cobráveis de: • Qualquer credor beneficiado por pagamento recebido acima do valor que lhe seria atribuível pela moeda da massa (percentual de crédito atribuível a cada credor, pelo rateio de todos os ativos disponíveis). Se e as importâncias acima arrecadadas forem insuficientes para pagamento das obrigações emitidas, as taxas serão cobráveis: ◦ de “companhias financeiras elegíveis” e, sucessivamente; ◦ de (quaisquer) companhias financeiras com ativos totais consolidados iguais ou superiores a US$50 bilhões. São “companhias financeiras elegíveis” as holdings bancárias com ativos consolidados iguais ou superiores a US$50 bilhões e qualquer companhia financeira não bancária supervisionada pelo FED (i.e., que ele venha a ter sob sua jurisdição, por suas características, em face da estabilidade financeira dos EUA, exercendo atividades financeiras predominantemente). As taxas serão cobradas escalarmente, segundo uma matriz de risco, e levando em conta períodos de bonança e de estresse, taxas já cobradas da companhia ou de afiliada, como instituição depositária ou, então, taxas já cobradas da empresa: • como abrangida pela Lei de Proteção a Investidores em Valores Mobiliários (Securities Investors Protection Act); • pela Lei de de Credit Union (Federal Credit Unions Act); Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 53 • quando seja uma companhia seguradora, já com taxas estabelecidas em leis estaduais. Nesta avaliação, serão considerados os riscos que o taxado representa para o sistema financeiro, os benefícios que ele receberá da liquidação de uma companhia, a sua fatia de mercado, submissão a súbitas demandas de liquidez em face de riscos da economia sob estresse, outras considerações explicitadas pela lei, inclusive riscos apresentados nos 10 anos precedentes pela companhia, que mantêm nexo de causalidade com a liquidação. Isenção de quaisquer impostos A FDIC é isenta de quaisquer impostos ou taxas federais, estaduais, de condados ou municipais, exceto imposto territorial. Supervisões múltiplas • O Inspetor Geral da FDIC é responsável pela supervisão e coordenará auditorias, com obrigação de Relatório semestral abrangente sobre diversos aspectos das liquidações, inclusive sobre a performance em geral, as ações tomadas, discriminação de vendas, transferências, obrigações, compras, e outras negociações. • O Inspetor Geral do Departamento do Tesouro conduzirá também sua averiguação semestral, versando sobre os itens apropriados relativos à atuação do Secretário do Tesouro, inclusive sobre a adequação da compra de obrigações da FDIC. 54 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 • O Inspetor Geral da Agência Primária de Regulamentação elaborará seu Relatório sobre a supervisão da agência primária ou do FED, opinando sobre a efetividade desta supervisão, sobre atos ou omissões que contribuíram para o estado de quebra ou perigo de quebra da instituição, e sobre ações que poderiam ter sido desenvolvidas para evitar tais situações, bem assim sugestões de legislação preventiva. Seu Relatório será fornecido à Agência primária ou ao FED, e comparecerá perante os Comitês do Congresso, junto com os destinatários, para testemunhar sobre o seu Relatório. As Agências ou o FED, até 90 dias após o recebimento do Relatório, deverão relatar ao Congresso as medidas tomadas em resposta às recomendações ali constantes, descrevendo as eventuais razões pelas quais nenhuma ação foi tomada. O Conselho de Estabilidade Financeira conduzirá um estudo especial, incluindo sua avaliação sobre como uma redução (haircut) nos valores de créditos segurados poderia ser benéfica para o sistema de liquidações. Proteção do contribuinte As Companhias em que a FDIC for síndico serão liquidadas. Como regra geral, nenhum dinheiro do contribuinte será usado para evitar a liquidação das companhias. Todos os recursos despendidos com a liquidação serão provenientes da venda dos ativos da companhia financeira em liquidação ou serão responsabilidade do sistema financeiro, através de taxas (gravames, contribuições). Nenhuma perda será arcada pelos contribuintes. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 55 Senhores Conselheiros, certamente, a grande extensão da Lei Dodd-Frank sobre o tema versado, o grande número de referências cruzadas levaram-me a apenas expor à vol d’oiseau sobre estes dispositivos que me pareceram merecer destaque, em face da legislação brasileira. Palestra pronunciada em 20/9/2011. 56 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 3-56, fev. 2012 Roberto Campos – razão e polêmica Gilberto Paim Jornalista E m 17 de abril de 1917, nascia, em Nossa Senhora do Livramento, então distrito de Cuiabá, Roberto de Oliveira Campos, que se distinguiu como polemista durante toda a sua longa existência. Formado em Filosofia (1934) e em Teologia (1937), nos seminários católicos de Guaxupé e Belo Horizonte, ingressou na carreira diplomática em 1939. Colocado no posto de secretário da Embaixada em Washington, em 1942, aproveitou a oportunidade para estudar economia na George Washington University, onde fez graduação e mestrado. Ainda estava na Embaixada quando foi convidado a integrar a delegação brasileira à Conferência de Bretton Woods, instalada em julho de 1944 e que criou o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. O futuro haveria de colocá-lo no centro dos grandes debates nacionais e internacionais, na antevisão do célebre economista austríaco Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 57 Joseph Schumpeter, que o convidou para fazer o doutorado na Escola de Economia da Universidade de Harvard, “já que estava pronta a sua tese de doutorado”, referindo-se à tese de mestrado que Campos apresentara, em 1947, na George Washington University. O convite não pôde ser aceito, pois foi formulado quando Campos se preparava para chefiar a delegação brasileira junto à Comissão Mista Brasil-Estados, criada em 31 de julho de 1951. Mais tarde Roberto Campos foi proclamado doutor honoris causa pela Universidade de Nova Iorque. Os trabalhos daquela Comissão tiveram muita influência sobre a vida de Roberto Campos. No cenário dessa entidade, onde convivia com técnicos brasileiros e americanos de alto gabarito intelectual, sepultou fragmentos do ideário marxista e fez a adoção plena do liberalismo, tornando-se um defensor coerente da livre iniciativa e das liberdades democráticas. Um dos frutos dessa Comissão foi a criação do Banco Nacional do Desenvolvimento, onde Campos exerceu as funções de Superintendente, ao lado do presidente Ari F. Torres, e lhe foi dada a chance de criar uma equipe de técnicos competentes, inteiramente comprometidos com o progresso industrial. Em julho de 1953, Campos deixa a Superintendência do BNDE, inconformado com a nomeação de José Soares Maciel Filho, amigo pessoal de Vargas e então diretor da SUMOC, para assumir a Presidência da instituição. Na opinião de Campos essa nomeação desfigurava a missão estritamente técnica do Banco. Em setembro de 1953, foi ele nomeado cônsul em Los Angeles, EUA, de onde regressaria em 1955, a instâncias de Eugênio Gudin, então Ministro da Fazenda, para reassumir a Superintendência do BNDE. 58 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 Foi nessa oportunidade que Campos desenvolveu coerente contestação às ideias nacionalistas, que ele definia como um dos fatores subjetivos, que mais impedem ou retardam o desenvolvimento econômico. Inicia essa discussão propondo identificar três falácias: a primeira é a falácia do nacionalismo temperamental; a segunda, a falácia do socialismo munificente; e a terceira, a falácia do mimetismo hedonista. E fundamenta a discussão, perguntando em que consiste a falácia do “nacionalismo temperamental”. “Registre-se, e acrescenta com certo grau de acidez, que as discussões sobre nacionalismo entre nós passaram do plano do discurso lógico para o da eructação sentimental ou religiosa.” Segundo Campos, a ruína imanente de certas formas de “nacionalismo temperamental” – “cuja aceitação e popularidade entre nós é um dos maiores desserviços à causa do desenvolvimento econômico” – poderá ser melhor apreciada à luz do exemplo histórico da política petrolífera. Campos achava divertida uma história (verídica) sobre a Petrobras: Em uma reunião em cidade mineira, onde um ex-deputado liberal, discordando da instituição do monopólio, alegava que um litro de gasolina vinha de matéria-prima que percorria os mares até o local onde estava instalada a refinaria. Dali vinha para o Brasil, que ficava a vários milhares de quilômetros e era aqui vendido pela metade do preço de um litro de água mineral. O auditório guardou instantes de silêncio, até que irrompe o jornalista Gentil Noronha, enviado para a reunião pelo movimento carioca, e proclama: um litro de água mineral tem quatro copos de água enquanto a garrafa coca-cola só tem um copo e meio. A assembleia vibrou com a vitória do “argumento” nacionalista. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 59 Ao iniciar a abordagem do tema – o nacionalismo e a política petrolífera – afirma Campos que é com compreensível hesitação que trata da questão do petróleo. Esclarece que, em primeiro lugar, há quase uma impossibilidade de discussão em um plano racional e objetivo. O diálogo com essa variedade de nacionalista é desde logo transformado em um monólogo acusatório e o tema versado com intolerância religiosa ou com furor maometano. Um é patriota e o outro, entreguista. Prossegue Campos: o segundo motivo é a simplificação bárbara das posições extremas: ou o monopólio caboclo ou o trust gringo. Mas para iniciar a discussão racional do tema, Campos começou fixando posição a respeito da Petrobras. Expõe ele: • Há várias razões por que essa empresa merece o apoio de todos os brasileiros, mesmo daqueles que não são possuídos de qualquer fagulha de jacobinismo. A primeira razão, óbvia e fundamental, afirmou, é que essa empresa se funda em um estatuto votado no âmbito das instituições democráticas, e merecedor, portanto, de respeito. • A segunda é que, mesmo que a lei não houvesse consagrado a existência da Petrobras, valeria a pena criá-la. Valeria a pena embarcarmos em um esforço próprio, ainda que de proporções modestas, dada a importância fundamental do problema e ante a impossibilidade de termos absoluta certeza de que a empresa estrangeira, além da eficiência comercial, que já demonstrou alhures, exiba também compreensão dos nossos desígnios nacionais. Salienta Campos: “Daí, entretanto, a se advogar o monopólio estatal puro e simples, vai uma grande distância...” 60 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 Depois de argumentar que a participação de capitais estrangeiros fortaleceria a Petrobras, Campos insiste na folga cambial produzida pelo ingresso desses capitais, aliviando o peso dos investimentos do monopólio. Os resultados das pesquisas realizadas por companhias estrangeiras trariam consideráveis benefícios para a empresa estatal, que passaria a investir em áreas de comprovada existência de óleo. Campos tratou, a seguir, da questão da urgência da solução, afirmando: do ponto de vista brasileiro, a solução melhor é a mais rápida, seja através de capitais nacionais, seja de estrangeiros. A velocidade da solução, acrescenta, é infinitamente mais importante, no caso, que a nacionalidade do investidor. Bom-senso e lógica econômica se irmanam para nos aconselhar que atraiamos um fluxo máximo de capitais estrangeiros, para a exploração petrolífera, libertando recursos nossos para as inversões em educação, estradas, saneamento etc. O segundo motivo da urgência é a posição do balanço de pagamentos. Esclarece Campos que a realização interna de certas atividades de processamento de petróleo, refinarias, transportes etc. abranda a gravidade do problema, mas a própria instalação de refinarias e o ensejo que oferecem de fabricação de subprodutos, de industrialização derivada e secundária, criam no curto prazo uma nova demanda cambial. A propósito, poderíamos lembrar que o presidente argentino Arturo Frondizi abriu o país, em 1958, aos investimentos estrangeiros na área do petróleo. Quatro anos depois, em 1962, a Argentina anunciava a autossuficiência petrolífera. Naquele ano, em meio a crises política e econômica, as forças armadas derrubaram o seu governo. No caso brasileiro, o País teria tido a oportunidade de ganhar a autossuficiência petrolífera, nos dois decênios após a criação da Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 61 Petrobras, se tivesse havido investimento estrangeiro no setor. Em tal hipótese teria sido diferente o curso da história econômica brasileira, após o primeiro choque do petróleo, em 1973. Em 1979, a partir do segundo choque, o País viveu terrível crise cambial, pois as exportações não eram suficientes para cobrir os gastos com a importação de petróleo. Era pesada e complicada a tarefa do Ministro da Fazenda, de então, aqui presente, que tinha de mobilizar recursos para Itaipu, Tucurui, Terminal de Conteiners de Santos, estrada de ferro de Carajás e inúmeros outros projetos de infraestrutura e de substituição de importações. O Conselheiro Galvêas, que era o titular das Finanças, não teria enfrentado tão variados problemas, se o País já fosse autossuficiente em petróleo. Esse objetivo teria sido alcançado se o nacionalismo truculento e temperamental não tivesse bloqueado a colaboração de empresas petrolíferas estrangeiras. Concluindo o argumento sobre o tema principal, dizia Campos que o balanço do nacionalismo sentimental e de suas implicações para o desenvolvimento econômico lhe parecia, até então, negativo; o nacionalismo não pragmático, o nacionalismo romântico, malcriado e temperamental implica substituir unidades de renda por unidades de orgulho. À luz do persistente desequilíbrio das contas externas, Campos jamais deixou de defender o ingresso de companhias petrolíferas estrangeiras no setor do petróleo do Brasil. Em sua opinião, mesmo na presença de saldos positivos no balanço de pagamentos, seria conveniente a colaboração de empresas estrangeiras, pois a expansão da infraestrutura haveria de absorver quaisquer sobras de recursos. Não se poderia esperar que o nacionalismo raivoso e intolerante jamais pudesse reconhecer a racionalidade do pensamento de Cam62 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 pos, cujas posições sobre o capital estrangeiro o expunham ao ódio e à intransigência do movimento que Monteiro Lobato caracterizava como “o nacionalismo bocó”. Mas seria admissível o reconhecimento do sentimento nacional autêntico de Juarez Távora, um símbolo nacional, como barreira às manifestações irreverentes do nacionalismo truculento contra as propostas de participação do capital estrangeiro no capital da Petrobras, formuladas por ele pouco antes de ser criada, em 1953, a empresa monopolista. Em longo depoimento na Câmara dos Deputados, em 1952, e em dois livros sobre petróleo, publicados em 1955, Juarez argumentava que nenhum país conseguira extrair petróleo em seu território contando apenas com recursos próprios. Tão indispensável era a participação de capitais estrangeiros na pesquisa e lavra, do seu ponto de vista, que as empresas estrangeiras ganhariam ações do capital da Petrobras, até 40%, segundo a escala de seus investimentos, em pesquisa e produção. Campos sempre dedicou atenção à exploração de minérios, inclusive com a colaboração de investidores estrangeiros. Diz que retardamos a conquista de mercados externos para minério de ferro e também a implantação da siderurgia de grande porte, no decênio de 1920 do século passado, quando o Governo Bernardes decidiu levar ao fracasso o Plano Farquhar, um importante plano de investimentos em infraestrutura. Percival Farquhar pretendia exportar quatro milhões de toneladas de minério de ferro e, ao mesmo tempo, instalar uma usina siderúrgica em Vitória. Com esse objetivo criou a Itabira Iron Ore Company. Em 1920, esse projeto teve o apoio do Presidente Epitácio Pessoa, ao mesmo tempo em que Artur Bernardes, ainda Governador de Minas, passou a combatê-lo. Eleito presidente da República, Bernardes praticamente pôs fim ao sonho de Farquhar, cuja empresa, a Itabira Iron Ore Company, foi finalmente encampada para criação da Cia. Vale do Rio Doce, em 1942. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 63 Recorda Campos o argumento nacionalista, segundo o qual a exploração estrangeira de recursos minerais deixaria somente buracos no solo. Essa exploração, intensa, por companhias estrangeiras, levaria à exaustão desses recursos. O futuro iria demonstrar a ingenuidade dessa tese. O importante em uma exportação de US$50 a US$60 milhões (moeda do decênio em 1950), de minério de ferro, argumentava Campos, era o fato de se tratar de uma receita contínua e estável, que poderia ser utilizada como parcela de amortização de empréstimos muito maiores. Seria uma forma de colocar à disposição da economia nacional um volume consideravelmente maior de capital. Prossegue o biografado: “se existe a possibilidade de se estabelecer uma divisão de trabalho entre o capital nacional e o estrangeiro, com vistas a apressar o ritmo de capitalização do País, a atitude racional parece-me ser a de procurarmos o capital estrangeiro para ramos de investimentos: (a) que exigem doses maciças de capital por unidade de produto; (b) que exigem investimentos de longo período de maturação; (c) que envolvem elevados riscos, como a exploração petrolífera, ou comportam rentabilidade direta relativamente baixa, como energia e transportes”. Sob esse aspecto, dizia Campos, nossa política de investimentos estrangeiros pode ser classificada como uma obra-prima de irracionalidade. É que proibimos, em alguns casos, e em outros desestimulamos, a aplicação de capitais estrangeiros naqueles setores para os quais os capitais estrangeiros estariam melhor habilitados que os nacionais. E acrescentava que a resultante dessa política é lançarmos sobre os ombros do setor industrial e do setor agrícola parte da responsabilidade pesada de criar as economias externas, diminuindo-se, assim, a produtividade direta de seu capital. O industrial, obrigado a investir 64 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 em transporte, em compra de vagões ferroviários, em construção de ramais ou em autogeração de energia elétrica, compreende bem a gravidade do problema. Uma das consequências é que o capital estrangeiro deixa de roer o osso da economia para se orientar para as atividades de distribuição e para a indústria de transformação, onde vem competir com o capital nacional. Salientava Campos que, sendo o capital nacional insuficiente para atender os setores de infraestrutura, tem o Governo de assumir a responsabilidade da realização das economias externas. Como é inadequada, em qualidade e quantidade, a ação governamental, criam-se pontos de estrangulamento que dificultam a aplicação de capitais privados. É, pois, negativa a contribuição do nacionalismo temperamental para a industrialização nacional. Nos sucessivos embates com o nacionalismo, Campos sempre esteve convencido da racionalidade de seus argumentos. Jamais deixaria de terçar armas com o adversário, quando via o obscurantismo embaraçar o desenvolvimento econômico brasileiro. Não há dúvida de que, ao qualificar o nacionalismo brasileiro de jansenista, o identificava com o dogmatismo, fanatismo e o radicalismo da doutrina do Bispo Cornélio Otto Jansen, nascido na Holanda e formado na Bélgica (15851638). Mais tarde, na segunda metade do século XVIII, o Marquês de Pombal nos impregnou do ódio à Inglaterra, que se transformou em ódio à língua inglesa, o veículo que transferiu o ódio pombalino aos Estados Unidos, com algumas ressalvas, pois os brasileiros adoram a Coca-Cola e Nova Iorque, cidade onde anualmente gastam bilhões de dólares como prova de amor sem limites. Em uma crítica sensata sobre a questão da ajuda externa à América Latina, dizia Campos que, nos primeiros anos do decênio de 1960, Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 65 havia nos Estados Unidos uma sensação de fadiga e desencanto a respeito da ajuda externa. A fadiga, em sua opinião, resultava de uma superavaliação do ônus real imposto à economia americana pelos programas de ajuda externa a países subdesenvolvidos, em geral, e à América Latina, em particular. Havia, ao mesmo tempo, uma subavaliação da poupança que deflui para o consumidorcontribuinte mediante o declínio, a partir de 1953, dos preços de importação de produtos primários, declínio esse que, no caso dos produtos de exportação da América Latina, tem sido suficientemente grande para frustrar vários efeitos benéficos esperados da assistência financeira externa. Dizia Campos que esse ponto, que tende a ser um tanto esquecido na discussão corrente, mereceu ênfase em discurso pronunciado pelo Sr. Edwin Martin, Secretário de Estado Assistente para Assuntos Latino-Americanos. O seu discurso foi pronunciado no Institute of World Affairs (Instituto de Assuntos Mundiais), da Universidade da Califórnia do Sul. Como afirmou o Sr. Martin: • Entre 1953 e 1960, as exportações latino-americanas, excluído o petróleo, cresceram 30% em volume, mas renderam somente 4% a mais em divisas. Se os preços tivessem permanecido aos níveis de 1953, a renda derivada das exportações latino-americanas teria sido US$ 1,3 bilhão maior do que foram. Podeis compreender a diferença que isso teria feito. • As exportações desses países são representadas, em grande parte, por produtos cujos preços variam largamente, respondendo a pequenas variações de oferta. Em consequência, se esses países tivessem exportado quantidade muito maior desses produtos, é possível que tivessem recebido menos em vez de mais. Em 1961, o preço médio do café e do cacau atingiu somente cerca de 60% 66 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 do nível de 1953. E o das fibras – algodão e lã – cerca de 80%. Esses produtos representaram a quarta parte da renda proveniente das exportações latino-americanas naqule ano. Acrescentou o Subsecretário de Estado que a mencionada receita apenas 4% maior, comparada ao volume exportado 30% superior, foi acompanhada de um acréscimo demográfico de cerca de 20%. É claro que a renda per capita proveniente das exportações decaiu substancialmente. Mais importante ainda, frisava Campos, é que, em termos de bem-estar do consumidor norte-americano, o custo do auxílio tem sido grandemente reduzido pelas poupanças involuntariamente auferidas, através do barateamento dos preços pagos pelos nossos produtos primários de exportação. Examinando a estagnação das exportações brasileiras a partir de 1946, Roberto Campos não podia deixar de se insurgir contra o irrealismo da política de câmbio rígido, imposta pelo Fundo Monetário Internacional, irrealismo que, em parte, fiou submerso na valorização do café, cujos preços externos foram compensadores, até 1952, e já a partir de 1953 entravam em brusco declínio. Recorda-se que a taxa cambial em vigor, no período, estava rigidamente fixada em R$18,40, valor inferior à cotação da moeda estrangeira em 1938. Quinze anos depois, o processo inflacionário reduzira de muito a receita cambial produzida pela exportação de bens primários, pauperizando a agricultura. Os dólares disponíveis tinham de ser racionados, porém os amigos do poder podiam tirar excepcionais vantagens da situação, obtendo, por influência política, licenças de importação. Campos fez chegar ao FMI, por diferentes vias, sem êxito, a sua opinião sobre as consequências dessa política: as exportações de pro- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 67 dutos primários ficavam deprimidas ou estagnadas; o País incorria em déficits no balanço de pagamentos e acabava realizando importações sem possuir recursos próprios. Finalmente, recorria a empréstimos externos para cobrir os atrasados comerciais. Em 1956, inconformado com a rigidez do FMI, que era contrário à desvalorização da nossa moeda, Roberto Campos, então Superintendente do BNDE, decidiu ir a Washington, para conversações com o Fundo. Foi ali recebido pelo Diretor-Geral que, mal tinha começado a reunião, se retirou, deixando o visitante com dois de seus assessores. Enquanto o visitante falava, durante uma hora, os assessores tomavam notas, mas não se manifestavam. A reunião terminou e Campos percebeu que fizera uma viagem perdida. O Brasil vivia um círculo vicioso, em que as exportações estagnadas criavam déficits comerciais, que logo deveriam ser cobertos por empréstimos externos. Sob o pretexto de manter a estabilidade monetária internacional, o FMI praticava uma irracionalidade absurda. Campos chamava a atenção para um descompasso causado pela taxa cambial do FMI. Na evolução da indústria nacional de veículos automotores sempre se observou a dimensão desigual dos mercados de automóveis, de um lado, e, de outro, o de tratores e máquinas agrícolas. Enquanto a renda urbana, amparada no desenvolvimento da indústria de transformação, abria amplo espaço aos automóveis, ônibus e caminhões, o mercado de tratores se caracterizava pela ínfima quantidade de unidades fabricadas. Resultava isso do poder aquisitivo insuficiente da agricultura, submetida à taxa cambial rígida, que empobrecia os que labutavam na economia agrária. Roberto Campos não conseguia entender a resistência emocional e intelectual a um debate do tema do planejamento familiar. Insistia 68 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 em afirmar que os defensores da reprodução irrestrita, para garantir a ocupação da Amazônia, se esqueciam que essa ocupação exige prévio investimento em infraestrutura de estradas, habitação, educação e saneamento; e que a capacidade de investir continuaria pequena se uma grande parte do produto se destinasse simplesmente a atender ao consumo de uma enorme população em idade pré-produtiva. E o pouco que se investia teria de ser devotado em grande parte a investimentos sociais antes que econômicos. Campos analisava alguns equívocos. Em primeiro lugar, afirmava, não tem fundamento a crença ingênua de que uma grande população daria um grande mercado. Bastaria uma simples comparação entre a Suíça, de seis milhões de habitantes de alto poder aquisitivo, e o Paquistão e a Índia, com centenas de milhões de pessoas situadas abaixo da linha da pobreza. Havia quem atribuísse a uma grande população um incremento paralelo da capacidade militar do País. A tese do grande exército nascido de uma grande população era tão infantil quanto perniciosa ao esclarecimento da opinião pública sobre a necessidade de uma redução contínua das elevadas taxas de natalidade. Pois essa tese, dizia Campos, coloca o sentimento nacionalista contra a busca de consenso quanto às vantagens decorrentes da expansão demográfica moderada. Um menor número de nascimentos dará maior eficiência aos recursos disponíveis para aplicação na área social. E o poder das Forças Armadas estará condicionado ao nível de progresso industrial, técnico e científico do País. Se as manifestações constantes da preocupação de Roberto Campos sobre a explosão demográfica tivessem tido a ressonância necessária, produzindo aceitação ampla da sociedade, o País teria chegado ao Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 69 ano 2000 sem favelas humilhantes. Mediante investimento maciço em campanha pró-redução da alta taxa de natalidade, teríamos na virada do milênio menos 35 milhões de habitantes, com reflexos na melhoria da qualidade de vida de toda a população. Entre os “fatos cruéis”, oriundos da expansão populacional imoderada, referidos por Campos, poderíamos incluir as elevadas taxas de homicídios, os gastos públicos e privados com segurança, a falta de saneamento básico e de habitações condignas, a precariedade do ensino e da saúde pública, a calamidade do transporte urbano sobre rodas e a insegurança pública geral que atormenta cidadãos de renda alta, baixa e média. Roberto Campos se destacou durante a segunda metade do século XX pela perseverança com que sustentou a sua luta contra a inflação. Dele ouvi algumas vezes que a estabilidade monetária é o principal instrumento de justiça social, mas a sua voz ficou quase sempre abafada sob a fanfarra dos beneficiários da transferência de renda dos pobres em favor das empresas públicas ou do empresariado privado. Afirmava ele que a transferência de recursos das classes consumidoras para as produtoras só encontra obstáculos quando os assalariados e as classes de renda fixa aprendem a se defender contra a espoliação por meio de greves e de reivindicações salariais antecipatórias da alta do custo de vida. Sobretudo, disse, a inflação provoca desemprego pela paralisia dos investimentos, piora a distribuição de renda em detrimento dos assalariados, provoca ou agrava o estrangulamento cambial e inviabiliza um crescimento econômico sustentável. Advertia o pensador brasileiro que quem procurar combater a alta de preços, cortando apenas o crédito bancário e deixando que se ampliem lascivamente os gastos do governo, estará prejudicando o desenvolvimento 70 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 sem na realidade conter o custo de vida. Quem, ao disciplinar as despesas do Governo, só comprimir as de investimento, sem conter as de custeio, não estará fazendo estabilização nem desenvolvimento. Estará fazendo apenas besteira. É fato comumente observado, salientava Campos, que, à medida que a inflação cresce de intensidade e começa a gerar inquietação social, os governos parecem cair na tentação de conter os preços dos produtos alimentícios básicos. Com frequência, isso não passa de uma tentativa de curar os sintomas, lançando mão dos controles de preços como um substituto de medidas mais difíceis e menos dramáticas para reduzir o excesso global de procura agregada. Considerando o processo inflacionário um mecanismo precário, ineficiente e cruel, Campos salientava que, mesmo quando se realiza a aludida transferência de renda, ocorrem desperdícios, porque a inflação estimula o consumo de luxo e os investimentos especulativos, desencorajando as aplicações em serviços públicos e industriais de base. As tarifas de serviços públicos representaram um dos temas de presença mais constante nos trabalhos de Roberto Campos. Durante a segunda metade do século XX até o fim de seus dias, o pensador brasileiro empregou esforço para demonstrar que tarifas baixas dos serviços públicos são um dos motores da inflação. Concitava ele o Governo ao reexame da noção popular de que a tarifa baixa é um benefício para a economia. Campos combatia também a ideia de que é inflacionária a elevação das tarifas a níveis capazes de cobrir o custo real do serviço, inclusive depreciação e renovação do equipamento. • É lícito inferir que a adoção de um regime tarifário capaz de cobrir o custo de operação dos serviços de infraestrutura e, ainda, de proporcionar recursos para a sua expansão, tem duplo Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 71 efeito favorável sobre o nível de poupança do País. De um lado, a eliminação da carga dos subsídios aumentará a capacidade de poupança do Governo. De outro lado, o fato de ficarem esses setores em condições de financiar, total ou parcialmente, a sua própria expansão, dispensando parte de recursos públicos, liberará fundos para investimentos em outras iniciativas de desenvolvimento econômico. O bonde, um meio de transporte urbano eficiente e barato, foi levado à ruína em consequência dessa política e substituído pelo ônibus, consumidor de combustível líquido, que importávamos sem termos folga no balanço de pagamentos. Os serviços de utilidade pública, principalmente em um contexto inflacionário, são vítimas de um círculo vicioso. Os preços desses serviços são “preços políticos”, que afetam direta e indiretamente o consumidor, afirmava Campos, acrescentando: Nada mais tentador para os governos acovardados no combate às causas da inflação, do que combater-lhe os sintomas, congelando as tarifas dos serviços de utilidade pública, por exemplo. Essa tentação é praticamente irresistível se se trata de empresa estrangeira. Desenha-se, então, o círculo vicioso: paralisação de investimentos, deterioração qualitativa dos serviços, deformação da imagem do investidor externo, maior resistência ao reajustamento de tarifas. O pensador brasileiro é bastante didático quando diz que o Governo oculta custos e os distribui de modo injusto, ao cobrar do usuário apenas uma parcela, por via de tarifas baixas e preços políticos, e descarregando uma parcela sobre o público em geral, através de impostos. Todos sabemos que o sistema ferroviário foi sucateado pela política de conservação inalterada do nível tarifário em fase de inflação. Os trens suburbanos da Rede Ferroviária Federal transportavam, diariamente, em 1964, um milhão 72 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 e quatrocentos mil passageiros, mas quando o serviço foi dado em concessão ao setor privado, o número de passageiros transportados por dia não passava de 200 mil. Na navegação marítima, tínhamos duas empresas: a Companhia Nacional de Navegação Costeira e o Loide Brasileiro, de longo curso. A Costeira faliu nos anos 1960 e o Loide veio se arrastando até desaparecer por completo nos anos 1990. A partir de 1964, na qualidade de Ministro do Planejamento e Coordenação Econômica, no Governo Castello Branco, Roberto Campos, contando com o apoio do Ministro da Fazenda, Octavio Bulhões, criou o Banco Nacional da Habitação (BNH), o salário-educação, o cruzeiro novo, formulou e executou uma reforma fiscal através do novo Código Tributário Nacional, em 1966. Deu nova redação a vários artigos da Lei 4.131 (Lei de Remessa de Lucros) aprovada em 1962, e tornou exequível sobre capitais estrangeiros, na forma em que foi aprovada a Lei 4.390, de agosto de 1964. Criou, também, o Banco Central do Brasil, o FGTS, o Estatuto da Terra. Foi o autor dos artigos econômicos da Constituição de 1967, a qual foi, nas palavras dele, “a constituição menos inflacionista do mundo”, a qual, entre outros dispositivos anti-inflacionários, não permitia que o Congresso Nacional fizesse emendas ao orçamento que aumentassem os gastos públicos da União. Um dos pontos mais importantes do programa reformista foi a restauração do crédito público, através das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional– ORTNs. Recorda-se que ocorreu em 1952 o último lançamento de títulos públicos, com a emissão de títulos para capitalizar o BNDE. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 73 Roberto Campos abriu outra frente de luta ao combater a política nacional de informática, oficialmente lançada em 1975. Em termos práticos essa política veio caracterizando-se pela intolerância, impregnada de fanatismo. Na residência de um ministro do Governo Geisel reuniram-se, em 1976, algumas figuras do primeiro escalão para deliberar a respeito da intenção da IBM de produzir no País um minicomputador que fazia sucesso no mercado externo. Era o IBM-32, que acabou sendo rejeitado pela maioria dos presentes àquele encontro. Em busca de conciliação, a empresa propôs que o computador seria fabricado no Brasil apenas para venda no mercado externo, assumindo o compromisso, por escrito, de que nenhuma de suas unidades seria colocada no País. Nova rejeição, apesar de a proposta render divisas, em uma fase em que enfrentávamos sérios problemas de balanço de pagamentos. Na mesma ocasião, Campos recebeu o presidente internacional da Hewlett-Parker, de quem ouviu que fora rejeitada a sua proposta de fabricar no País o HP-3000, cuja produção foi finalmente transferida para o México, a Coreia do Sul e a China comunista. Estava consagrada a rejeição. Nenhuma das grandes empresas mundiais de informática conseguiu autorização para fabricar aqui micro ou minicomputadores. Estava firmado o grande princípio da autonomia tecnológica, a ser alcançada por meios próprios, inclusive a cópia pura e simples de equipamentos estrangeiros. Com a criação da Secretaria Especial de Informática (SEI), essa política só veio a ser abrandada em 1992, depois de subordinada à área militar a condução dos mais variados assuntos da infinita área da eletrônica. No combate a essa política, inclusive da tribuna do Senado, Campos só fez crescer o número de seus adversários. Chego ao fim, depois de um superficial exame das ideias de Roberto Campos. Uma abordagem mais ampla dessas ideias dependeria de análise mais profunda do conteúdo de seus 19 livros publicados. 74 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 57-74, fev. 2012 Alienação Fiduciária na custódia e liquidação de títulos Célio Borja Professor Aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ministro Aposentado do Supremo Tribunal Federal A Disciplina positiva do negócio fiduciário A alienação fiduciária em garantia está hoje incorporada ao capítulo IX, do Título III do Livro III, do Código Civil, artigos 1.361 a 1.368-A (Art. 1.361 – Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor). Leis especiais instituíram negócio fiduciário específico do mercado de ações e de capitais,1 o qual, não sendo de garantia (cum creditore), tem-se que é cum amico, pois sua causa é a segurança do bem e a implementação do destino que seu proprietário (fiduciante) lhe quer dar. A especificidade dessa modalidade de fidúcia fica patente nas disposições do artigo 66-B da Lei nº 4.728 de 14.7.1965, acrescentado pela Lei nº 10.931 de 2.8.2004.2 Normas regulamentares autorizam a Central de Custódia e Liquidação Financeira de Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 75 Títulos (CETIP) a guardar e cobrar os que lhe tenham sido transferidos em alienação fiduciária, que se assemelha à sua matriz romana, única fonte material do direito brasileiro, anterior e superior à fonte germânica. O negócio jurídico que a norma regulamentar tipificou (MNI. Regulamento de Disposições Especiais, 4,15, Disposições Preliminares) ajusta-se à doutrina de romanistas e civilistas acerca da dupla relação que a alienação fiduciária instaura: uma pessoal, de direito das obrigações, outra, patrimonial, de direito real.3 A primeira concerne ao crédito e, a segunda, ao poder sobre a coisa que o fiduciário exercita em face de terceiros. A relação obrigacional não é desnaturada pela de direito real, que com ela coexiste e autoriza o fiduciário a apresentar-se como titular de certo e limitado poder sobre a coisa que lhe foi confiada para o fim preestabelecido pelo fiduciante.4 Fidúcia Romana – Trust e negócio fiduciário na CIVIL LAW O direito romano distinguia o negócio fiduciário com o credor do pactuado cum amico, como se lê em Gaio; neste caso, poderia servir a diferentes propósitos do fiduciante, como, ex. gr., o de suprir a falta do instituto da representação.5 Ainda que a fidúcia romana tivesse sido seu antecedente histórico, o trust, instituto peculiar dos países anglo-saxões, se desenvolveu autonomamente, desde as origens da Common Law, mas o negócio fiduciário romano apenas tardiamente foi incorporado aos vários sistemas nacionais da Civil Law, acreditando-se tenha sido o direito alemão o primeiro a fazê-lo. Causa fiduciœ Embora a fidúcia (confiança) seja um traço inerente a tipos contratuais regulados nas nossas leis civis, o negócio fiduciário recente76 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 mente incorporado ao direito legislado, foi a alienação em garantia, que corresponde à fidúcia cum creditore. Paralelamente, o contrato de adesão que transfere à CETIP a propriedade (titularidade) do direito de crédito – para a finalidade exclusiva de custodiar os títulos causais, receber e transferir ao banco depositário o bem físico ou o valor que por ele o devedor pagou – esse contrato, repito, tem sido assemelhado, à fiducia cum amico. Romanistas e civilistas ensinam que os distintos negócios fiduciários são identificados pela sua causa (causa fiduciœ) e, esta, na fiducia cum amico – e nas diversas modalidades em que não há escopo de garantia – pode ser a segurança do direito ou do bem e a efetiva implementação do destino que o fiduciante determina no pactum conventum.6 A fiducia cum amico tinha, em Roma, diversidade de causas. Francis de Zulueta, Professor Régio de Direito Civil da Universidade de Oxford, nos comentários às Institutas de Gaio, que verteu para a língua inglesa, sustenta que, não obstante Gaio lhe atribuir somente o escopo de custódia, a fiducia cum amico “poderia ter propósitos vários, como o de suprir a lacuna do instituto da representação (Law of agency), inexistente no direito romano”7. Perozzi assevera que “segundo as nossas fontes, não se conclui que todos os casos de fidúcia que não fossem cum creditore, fossem cum amico, em razão de Gaio apresentar a sua distinção como se ela exaurisse todos os casos de fidúcia”... “Em muitos casos, não se divisa o escopo de melhor tutela da coisa”. Perozzi conclui que “o conceito desta figura de fidúcia se formou durante a pré-história do nosso instituto e que Gaio repete uma distinção, cujo segundo caso havia desaparecido, substituído por múltiplos e variadíssimos casos qualificados por escopo diverso”.8 Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 77 Posse desdobrada e compartilhada No nosso direito civil positivo, a posse é compartilhada entre as partes do negócio fiduciário em garantia: “Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando o devedor possuidor direto da coisa” (Código Civil, artigo 1.361, § 2º). Não é somente na alienação fiduciária em garantia que a posse é desdobrada, mas também naquelas outras em que não há tal escopo, porque seu desdobramento inere ao negócio fiduciário tout court, como se lê em Pontes de Miranda9 e nos romanistas. Não são só os doutos assim pensam, mas também a lei assim dispõe, pois a regra do artigo 1.367-A, do Código Civil,10 manda aplicar às outras espécies de negócio fiduciário as suas disposições sobre a alienação fiduciária em garantia, sempre que compatíveis com as respectivas leis especiais.11 A transferência fiduciária dos títulos de crédito para a CETIP não extingue a obrigação do devedor para com o seu credor. A outorga de poder para custodiar e liquidar o crédito, não atrai outra responsabilidade que não a de receber e transferir-lhe o valor ao seu titular, permanecendo com o devedor a de adimplir por inteiro a sua obrigação. O Manual de Normas e Instruções do Banco Central é taxativo no que concerne às responsabilidades bem delimitadas da CETIP: “(Regulamento e Disposições Especiais – 4; Sistema de Registro e Liquidação Financeira de Títulos – 15; Responsabilidade – 11) a) Liquidar junto ao Sistema sua posição financeira final, conforme definido na seção 4-15-9, não cabendo à CETIP qualquer responsabilidade pelo não pagamento do principal, dos juros e de outros quaisquer rendimentos dos títulos registrados no Sistema” (Grifei). No mesmo capítulo 15, o item 5 define como responsabilidade das instituições bancárias ou financeiras que guardam fisicamente os títulos “liquidar a posição financeira final do participante do Sistema que o elegeu liquidante, desde que o mesmo tenha saldo disponível em sua conta de depósitos à vista, no caso de posição devedora”. Aqui a ressalva final também limita a responsabilidade das instituições 78 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 que financeiramente adimplem as obrigações e exercitam o direito do devedor e do credor, respectivamente. Cuidando-se de títulos de crédito, milita ainda a favor desse entendimento a regra segundo a qual a posse direta (imediata) e subordinada do fiduciário recai sobre o título, não sobre a relação jurídica fundamental que o credor fiduciante não aliena, uma vez que lhe conserva a titularidade originária e a consolida plenamente ao se retirar do sistema.12 Legitimidade processual Assim, também a transferência do direito cartular, nos negócios fiduciários com títulos de crédito, não importa a privação de todo o direito que o fiduciante sobre eles tinha. Tullio Ascarelli, revendo o que antes escrevera,13 afirma que, “... é preciso fazer; em matéria de títulos de crédito uma distinção preliminar a que vai entre direito cartular e direito derivado da relação fundamental. Cada um deles se origina de um negócio diverso e está sujeito a disciplina diferente”. Prossegue: “O título de crédito, originalmente surgido como documento confessório, é, agora, no direito moderno, constitutivo do direito autônomo nele mencionado”. Atento à especificidade dos títulos causais, Ascarelli explica que, “Quando o direito cartular é um direito causal, ele visa, como veremos, à declaração do direito decorrente da relação fundamental e, portanto, ambos os direitos, embora distintos, circulam juntos, pertencendo necessariamente ao mesmo titular ”14 (Grifei). Portanto, consolidadas no credor a propriedade e a posse do crédito e dos títulos causais que o confessam, somente ele tem legitimidade ativa para exigir do devedor os valores que entende lhe serem devidos (legitimatio ad causam). Cândido Rangel Dinamarco corrobora: “Em linguagem processual diz-se que não basta ao autor ter o direito de ação e exercê-lo adequadamente” (...) “ação é somente direito ao meio e não aos resultados do processo (Liebman). Para ob- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 79 ter sentença favorável é preciso que, além da ação, ele tenha o direito alegado (v.g., que seja realmente credor, como alega)”.15 Mas, esclarece Dinamarco, a relação jurídica processual é conceptualmente autônoma em face do direito subjetivo material, tendo sido essa dicotomia o tema central da controvérsia sobre a actio romana entre Windscheid e Muther.16 Nessa relação, “são situações processuais ativas as que permitem realizar atos processuais segundo a deliberação ou o interesse do seu titular, ou exigir de outro sujeito processual a prática de algum ato”. ...“Dizem-se passivas as situações jurídicas processuais que impelem o sujeito a um ato (deveres e ônus) ou lhe impõem a aceitação de um ato alheio”.17 Sem embargo da autonomia do conceito de legitimidade processual, não se há de esquecer que “Para propor ou contestar a ação é necessário ter legitimidade e interesse”(CPC, art. 3º). Legitimatio ad causam Ora, como titular de um direito material (interesse) — direito de crédito — o credor da cártula alienada fiduciariamente é parte legítima para estar em juízo, pois “Ordinariamente, têm essa qualidade apenas os sujeitos da relação material em litígio”.18 Admitindo-se, para argumentar, a legitimação extraordinária da CETIP na vigência da fidúcia mandato, teríamos que ela seria, então, substituto processual do credor, i.e., “pessoa que poderia figurar na relação processual como parte”, embora não fosse “a mesma pessoa titular da relação de direito material deduzida em juízo”.19 Corrobora esta proposição a estipulação do contrato de adesão ao Regulamento que obriga a CETIP a transferir logo o que o devedor paga. Se, alegando ter legitimidade processual extraordinária, CETIP cobrasse judicialmente a dívida não poderia incorporar o produto desse pagamento ao seu patrimônio, porque não é titular do direito de crédito, nos estritos termos do contrato de adesão que ela celebrou com o credor. Embora 80 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 a legitimação processual não resulte somente da participação do autor e do réu na relação jurídica de direito material, no sistema do Código de Processo Civil de 1973, “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei” (CPC, art. 6º). Quitação mediante devolução do título Como fiduciária, a CETIP não detém fisicamente os títulos de crédito que custodia e liquida, mas eles são depositados na instituição financeira escolhida pelo fiduciante, que age por instrução do seu cliente. Se este não a autoriza a entregar as cártulas ao devedor, ela não poderá nem deverá fazê-lo. No que concerne ao direito, é certo também que “a hipótese prevista no caput [do artigo 324 do Código Civil] contém presunção relativa ou juris tantum”... “o seu fundamento reside na consideração de o título constituir a prova da existência da obrigação. Quando essa é extinta pelo adimplemento, o credor restitui o título ao devedor.20 Logo, se o devedor não adimpliu plenamente sua obrigação, os títulos causais que a documentam não lhe deveriam ser entregues. Esta doutrina, que prevalece na interpretação do artigo 324 do Código Civil vigente, era sustentada por Clóvis Beviláqua atinentemente à disposição homóloga do artigo 945, do Código Civil de 1916: “O princípio do artigo estabelece uma presunção juris tantum, em benefício do devedor. O fundamento desta presunção é o seguinte: o título é a prova da existência da obrigação; extinta esta, o credor o restitui ao devedor; consequentemente, se o título se acha nas mãos do devedor, é porque o credor, satisfeito o débito, lhe entregou. Como, entretanto, a entrega do título deve ser feita voluntariamente, pelo credor, no momento de receber o pagamento, e pode acontecer que esse documento vá ter às mãos do devedor por meios ilícitos (violentos ou dolosos), tem o credor o direito de provar que o não entregou, voluntariamente, que não foi solvida a obriga- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 81 ção”.21 Examinando essa questão à luz do artigo 1.237 do Código Civil italiano,22 Pellizzi observa que: “Tal artigo, inclusive na seção referente à remissão do débito, se limita a afirmar que a restituição voluntária do título original do crédito constitui prova da liberação do devedor, não já da ocorrência do pagamento”.23 Pellizzi distingue a situação do credor por título cambiário, “no âmbito das relações de estrita natureza cambiária”, com os seus coobrigados e, de outra parte, a posição do obrigado cambiário “em face do seu credor que, depois de lhe haver restituído o título, age causalmente para conseguir o adimplemento do débito nele compreendido. Aqui, não nos encontramos mais no âmbito de uma ação cambiária, mas no de uma ação causal: e com relação a esta o obrigado possuidor não é mais credor e autor, mas, sim, devedor e réu. Já não se trata mais de saber se o obrigado é portador legítimo, ou seja, titular de uma ação cambiária, mas de determinar o fato do pagamento, e não mais pelo seu valor atributivo de um direito ao possuidor, mas do valor extintivo de um direito alheio”.24 É, pois, de concluir-se que a modalidade de alienação fiduciária de títulos de crédito ou de cártulas de pecúnia ou de bens, para os fins de custódia e liquidação, acolhida hoje pelo direito positivo brasileiro, não importa a perda da propriedade ou titularidade do credor; e que, se porventura, o fiduciário (CETIP), recebe valor insuficiente para o pagamento integral do crédito, entrega o título ao devedor ou dá-lhe quitação presumida, o fiduciante que conservou a propriedade da cártula, retoma-lhe a posse e pode exercitar o direito de ação.25 Notas 1. Lei no 6.404, de 15.12.1976, arts. 41, 66 a 70; Lei no 10.931, 2.8.2004. Na custódia de ações, Lei no 10.303, de 31.10.2001, art. 41, § 2º estende aos demais valores mobiliários a transferência necessária 82 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 da propriedade fiduciária. Ver ainda, Instrução CVM n.o 115, de 11.4.1990, arts. 2º, 3º e 4º. 2. Lei no 4.728, de 14.7.1965, art. 66-B – “É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuído ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.” 3. DERNBURG, Pandette, vol. 1º, parte 1ª (Parte Generale), Torino, Fratelli Bocca Editori, 1906, §§ 100-3, p. 295: “Nei negozi fiduciarii il rapporto esterno è diverso dal rapporto interno: noi diamo in essi al fiduciario esternamente la condizione di proprietário della nostra cosa, o di un creditore di un credito a noi spetante, è li procuriamo con ciò la piena legitimazione a far valere il nostro diritto. Ma al interno il fiduciário rimane un semplice procuratore; la cosa, e rispettivamente il crédito, è per lui estranea in rapporto a chi ha dato la procura.” 4. EMILIO BETTI, Teoria Generale del Negozio Giuridico, Seconda Ristampa, Torino, 1955, p. 307, também adota a opinião segundo a qual a relação obrigacional produz efeitos exclusivamente entre credor e devedor; a patrimonial ou real (de disposição) consiste na outorga de um direito dotado de relevância em face de terceiros: [...] “concorso fra negozi eterogenei, si ha di solito nel negozio fiduciario: ha porre in essere il quale concorrono normalmente, se non necessariamente, due distinti negozi, dei quali l’uno, di disposizione, consiste nel conferimento di un diritto dotato di rilevanza rispetto ai terzi, l’altro, di obbligazione, spiega effetti esclusivamente nei rapporti interni fra le parti e Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 83 crea nel nuovo titolare di quel diritto l’obbligo fiduciario di esercitarlo soltanto nell’orbita di una finalità (causa) determinata col patto di fiducia”. 5. Cfr. The Institutes of Gaius, Text With Critical Notes and Translation by FRANCIS DE ZULUETA, Regius Professor of Civil Law in the University of Oxford, At The Clarendon Press, Livro II, 60: “Sed cum fiducia contrahitur aut cum creditore pignoris iure aut cum amico, quo tutius nostrae res apud eum essent, siquidem cum amico contracta sit fiducia, sane omni modo competit ususreceptio, si uero cum creditore, soluta quidem pecunia omni modo competit, nondum uero soluta ita demum competit, si neque conduxerit eam rem a creditore debitor, neque precario rogauerit ut eam rem possidere liceret; quo casu lucratiua ususcapio competit.” Também, GAIUS, Institutes, Texte Établi et Traduit par JULIEN REINACH, Quatrième Tirage, Paris, Belles Lettres, 1991, 2ª parte, p. 60. 6. Cfr., RUDOLPH SOHM, Institutionen, Geschichte und System des Römischen Privatrechts, 17 Auflage, 1949, Duncker & Humblot, Berlin, p. 60: “Über den Inhalt der Treuverpflichtung gab die Manzipation also keine Auskunft, sondern lediglich das nebenher geschlossene formlose pactum conventum.” Ver, também, BETTI, op. cit., p. 324, atribui a relação pessoal de direito das obrigações, a destinação de servir ao interesse do fiduciante, mas pondera: “al solo rapporto obbligatorio interno qualificato dalla causa fiduciœ è rimessa la funzione di limitare la posizione del fiduciario, e insieme la funzione di assegnarle una causa idonea a giustificarla (giacchè senza questa il fiduciario sarebbe esposto fin dall’inizio a una ripetizione): causa, che può essere garanzia, custódia, amministrazione, Così, infatti, si configura la custodia di tipo romano: essa porta a conferire al fiduciario una posizione giuridica verso i terzi assai più forte di quanto basterebbe per il raggiungimento dello scopo pratico avuto di mira dalle parti e, perciò, di quanto esse parti propriamente intenderebbero”. 7. FRANCIS DE ZULUETA, Gaius Institutes, Text with critical notes, Oxford, At The CLARENDON PRESS, Part II, Commen84 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 tary, §§ 52-G1, n. 2, pg. 73: “Fiducia cum amico was a conveyance to a friend with a trust for reconveyance. It might have various purposes, for example that of making good the lack of a law of agency; Gaius, however, only mentions that of safe keeping. Fiducia cum creditore resembled the English mortgage; it was a giving of security for debt by making the creditor owner. It remained in use throughout the classical period, but in the law of Justinian it has given way to pignus and hypotheca. In f. cum amico reconveyance would be due on demand, in f. cum creditore on satisfaction of the debt. But delicacy in the one case and timidity in the other, or slackness in either, might prevent insistence on the formality of a reserving mancipatio or in iure cessio. However, if the original owner recovered possession, his title was made good by usucapio, here called usureceptio, in spite of his knowing that the thing belonged to another (§ 59). This is readily intelligible since except in one case he would as a matter of equity be on a par with a bonitary owner. The less intelligible case is that f. cum creditore, even if the debt had not been satisfied, usucapion was allowed provided that possession had not been recovered by licence or hire from the creditor. Presumably it was thought that security of which the creditor was careless was likely to be superfluous.” 8. Cfr., SILVIO PEROZZI, Istituzioni di Diritto Romano, vol. II, Seconda Edizione, Atheneum, Roma, MCMXXVIII, p. 248; “Dalle nostre fonti, se risulta un largo impiego della fiducia, non risulta anche se tutti i casi di fiducia, che non fosse cum creditore, fossero anche casi di fiducia cum amico, come si dovrebbe dire considerando che Gaio presenta la sua distinzione come esauriente tutti i casi di fiducia, o se fossero alcuni e non fossero altri, come si dovrebbe dire invece considerando che in molti non si scorge lo scopo accennato di tutela migliore della cosa. Nella seconda ipotesi manca inoltre ogni modo di distinguere i casi compresi nel concetto gaiano di fiducia cum amico dagli altri. Onde riteniamo che il nome e il concetto di questa figura di fiducia si siano formati durante la preistoria del nostro istituto e che Gaio ripeta una distinzione, di cui il secondo caso era scomparso, per essere sostituito da molteplici e veriisimi casi qualificati da scopi diversi”. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 85 9. PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo X, 2ª edição, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, p. 101-103, esp.: “Se o fiduciário recebeu a coisa com a obrigação de, após a transmissão, dar a posse ao fiduciante, o fiduciante imediatiza-se, e mediatiza-se o fiduciário. Não nos esqueçamos que a propriedade é direito absoluto, e há a impossibilidade de se tirar, in abstracto, à propriedade todo o direito à posse, sem regra jurídica especial, como a respeito da compra e venda com reserva de domínio.” 10. Art. 1.368-A. “As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando às disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.” 11. MARCO AURÉLIO S. VIANA, Comentários ao Novo Código Civil, vol. XVI, 3ª edição, Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2007, p. 606-607: “Propriedade Fiduciária e Legislação Especial” – ... “A disciplina do Código Civil incide, em havendo lei especial, somente quando não houver incompatibilidade. Se essa ocorre prevalece a regulamentação da lei especial”... “A regulamentação continua a se fazer pela lei especial, somente se aplicando o diploma civil quando não houver incompatibilidade.” 12. MARTÍN WOLFF, Derecho de Cosas, volumen primero, § 8º, p. 43. In: Tratado de Derecho Civil por LUDWIG ENNECCERUS, THEODOR KIPP Y MARTÍN WOLFF, Tercer tomo, Derecho de Cosas, I, BOSCH, Buenos Aires: “La posesión mediata es la que se tiene por mediación de la posesión de otro: entre el poseedor mediato y la cosa media aquel que (en contraposición al servidor de la posesión) tiene la posesión misma; es el mediador posesorio o subposeedor; el poseedor mediato es poseedor superior. Al que posee sin mediador posesorio, se le llama poseedor immediato. I – La posesión mediata presupone, aparte de una posesión del mediador, una cierta relación entre el poseedor y el subposeedor. 86 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 Este tiene que poseer la cosa “a título de usufructuario, acreedor pignoraticio, arrendatario, depositário o en una relación semejante, en virtud de la cual esté temporalmente facultado u obligado frente a otro a la posesión (§ 868). Es claro que se requiere una relación jurídica que dé al poseedor mediato una pretensión de entrega contra el mediador”. WOLFF, adiante, responde à questão da necessidade de ser o possuidor superior, também o titular da pretensão: “Poseedor mediato es únicamente aquel a quien corresponda la pretensión de entrega. No es menester que su pretensión se dirija a que se le entregue a él mismo”... “No es poseedor mediato el que, sin ser titular de la pretensión de entrega, tenga poder para hacer la pretensión de entrega de otro con eficacia en contra del verdadero titular” (§ 8º, p. 47). 13. TULLIO ASCARELLI, Teoria Geral dos Títulos de Crédito, Servanda Editora, Campinas, 2009, p. 122, nota 65. 14. T. ASCARELLI, op. cit. p. 122. 15. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, Malheiros Editores, 08-2001, p. 105. 16. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, op. cit., vol. II, nº 489, p. 196-197. 17. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, op. cit., vol. II, nº 492, p. 201. 18. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, op. cit., vol. II, nº 520, p. 247. 19. OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Curso de Processo Civil, vol. 1, 4ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 244-245. 20. JUDITH MARTINS COSTA, Comentários ao Código Civil, V. T. I, 2ª edição, Forense, 2006, p. 350. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 87 21. CLÓVIS BEVILÁQUA, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 3o edição, vol. IV, Livraria Francisco Alves, 1930, p. 101-102. 22. CÓDIGO CIVIL DA ITÁLIA, ART. 1.237 – Restituzione volontaria del titolo. La restituzione volontaria del titolo originale del credito, fatta del creditore al debitore, costituisce prova della liberazione anche rispetto ai condebitori in solido. Se il titolo del credito è in forma pubblica, la consegna volontaria della copia spedita in forma esecutiva fa presumere la liberazione, salva la prova contrária. 23. GIOVANNI L. PELLIZZI, Studi sui Titoli di Credito, Padova, CEDAM, 1960, p. 242. 24. GIOVANNI L. PELLIZZI, op. cit., p. 240-241. Ver ainda, GIORGIO CIAN e ALBERTO TRABUCCHI, Commentário Breve al Códice Civile, Padova, Cedam, 1984, p.831. A proposição de PELLIZZI, segundo a qual, na determinação do fato do pagamento extintivo do direito do devedor, não importa “saber se o obrigado é portador legítimo, ou seja, titular de uma ação cambiária”, parece compatível com decisão antiga do Supremo Tribunal Federal que assentou “que somente aquele [emitente da obrigação] pode apresentar defesa”...“nos casos em que a defesa do avalista não é fundada em direito seu, pessoal, contra o portador, mas do direito do emitente resultante de transações suas com o portador” (RF, LXXVI, 449, esp. p. 451). 25. “O custodiante do título executivo não tem legitimidade para estar no polo passivo do processo de execução. Ademais, as notas de venda comprovantes das compras de letras de câmbio custodiadas, não são documentos hábeis para a propositura de processo de execução. Recurso conhecido e provido” (Apelação Cível nº 32.458, S. Francisco do Sul, SC. In: Nelson Eizirik; Instituições Financeiras e Mercado de Capitais, Jurisprudência, vol. II, Renovar, p. 1.094-1.095). 88 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 75-88, fev. 2012 Síntese da Conjuntura Conjuntura econômica Ernane Galvêas Ex-Ministro da Fazenda A economia brasileira em 2011/2012 A evolução da atual crise mundial acabou impactando a economia brasileira, embora com menor intensidade do que em 2009. O IBC-Br (PIB) do Banco Central cresceu apenas 0,02% em setembro e o 3º trimestre, comparado ao 2º, apresentou queda de 0,32%. A previsão de mercado para o crescimento do PIB em 2011 é ligeiramente inferior a 3%. A redução das atividades econômicas está sendo puxada pela retração da indústria, cuja produção vem apresentando nítida tendência de queda desde novembro de 2010. A produção industrial caiu 2,0% outubro, em relação a setembro. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 89 A mesma tendência de desaceleração vem sendo apresentada pelo comércio, cujo volume de vendas cresceu 0,6% em outubro frente a setembro. O comércio cresceu 10% em 2010 e deverá crescer 6% em 2011. O setor agrícola é o que apresentou melhor resultado, em face da forte demanda externa e interna. A produção de grãos na safra 2010/2011 cresceu 6% sobre a safra anterior. As chuvas torrenciais no Sul e no Sudeste podem prejudicar a próxima safra de 2012. Um ponto preocupante é o desempenho fiscal, com o crescimento da carga tributária e da dívida pública, em paralelo com a falta de investimentos em serviços públicos e infraestrutura, em detrimento do setor privado. Entretanto, até agora, esse quadro negativo não prejudicou o mercado de trabalho, cujo nível de desemprego chegou a 5,2% (o mais baixo da história). A nosso ver, ainda não constitui maior preocupação o índice de inflação (IPCA), que deverá chegar a 6,5% em 2011, dentro do limite superior da meta, e cair para 5,5% em 2012. O que está sustentando a situação no Brasil, em grande parte, são as exportações, que vêm mantendo a média mensal de US$ 23 bilhões, desde maio, registrando um aumento de US$ 48,8 bilhões em 12 meses, dos quais grande parte se deve ao aumento das exportações para a China. As previsões para 2012 apontam uma situação ligeiramente inferior a 2011, contrariando a visão otimista do Governo. O PIB de 2012 deverá registrar expansão entre 2% e 3%, ligeiramente menor de que 2011, em face do agravamento da crise europeia, ligeira redução na demanda da China e fraco desempenho do mercado interno. 90 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 Agricultura – Vai ter crescimento possivelmente menor do que em 2011, como consequência das chuvas torrenciais de dezembro, no Sul e Sudeste. Indústria – Crescimento de 1,3% em 2011 e no máximo de 2% em 2012. Comércio – Crescimento de 6%, pouco abaixo da média dos últimos anos. Exportações – Crescimento de 10%, ante 26% em 2011. Governo – A execução orçamentária da União vai ser o ponto crucial na evolução da economia em 2012: Despesa primária: + 15,9% Receita primária: + 12,8% O PIB Brasil Uma surpresa agradável de fim de ano foi a constatação de que o PIB nacional alcançou US$ 2,52 trilhões, ocupando o 6º lugar mundial, acima da Inglaterra com US$ 2,48 trilhões. O resultado decorre não só do crescimento da economia nacional, como também da estagnação econômica da Europa. Nos últimos 10 anos, o PIB brasileiro teve a seguinte evolução: 2002: 2,7%; 2003: 1,1%; 2004: 5,7%; 2005: 3,2%; 2006: 4,0%; 2007: 6,1%; 2008: 5,2%; 2009: -0,6%; 2010: 7,5% e 2011: 2,7%. Em termos de renda per capita, estima-se os Estados Unidos com US$ 48,2 mil, Alemanha, Japão e França com US$ 45 mil, Inglaterra com US$ 39,6 mil, China com US$ 5,2 mil e Brasil com US$ 12,9 mil. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 91 A crise mundial em 2001 A economia mundial, e especialmente a americana, atravessava longo período de prosperidade, quando ocorreu o ataque terrorista às Torres do World Trade Center, em Nova York, em 11/09/2001. O medo e as incertezas promoveram uma forte retração das atividades, a começar pelas viagens aéreas. Em 2 de dezembro, a situação agravou-se, com a quebra inesperada da holding ENRON. Segundo Paulo Guimarães, do Jornal do Commercio, a empresa fora eleita, por seis anos consecutivos, a mais inovadora dos EUA. Em menos de 15 anos, seu valor de mercado subiu de US$ 2 bilhões para US$ 70 bilhões. Com a falência, a cotação de suas ações caiu de US$ 90 para US$ 0,20, uma tragédia que arrastou, também, a Arthur Andersen, uma das maiores empresas de auditoria do mundo. Os principais diretores executivos da ENRON, Kenneth Lay e Joffrey Skilling, tiveram fim trágico: Lay morreu de ataque cardíaco e Skilling encontra-se preso, cumprindo pena de 24 anos. Corrida armamentista A indústria bélica mundial está em festa, faturando tudo que pode com a corrida armamentista que se desenvolve no mundo. O espetáculo maior está sendo realizado no Oriente Médio, em que o Irã gasta bilhões de dólares em mísseis de médio e longo alcance, a título de defesa de seu projeto de construir armas nucleares. De outro lado, Israel, Inglaterra e Estados Unidos, principalmente, exibem gastos colossais em aviões e helicópteros de combate, porta-aviões gigantescos e toda a parafernália da guerra. A China também faz parte dessa corrida irresponsável, assim como a Rússia e outros países europeus. 92 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 Há sinais ostensivos de uma política de guerra nos Estados Unidos, construindo bases militares na Austrália e em vários pontos do leste asiático, uma repetição da Guerra Fria que foi desenvolvida entre os Estados Unidos e a União Soviética, nos anos 1970 e 1980. É evidente que raciocinar em termos de uma terceira guerra mundial parece um absurdo inominável. Mas há evidências de interesses tão fortes que estariam desconsiderando tal absurdo. Algo realmente fantástico e inconcebível contra a Paz mundial, tão decantada desde 1945. O ponto nevrálgico atual é a ameaça do governo do Irã de fechar o Estreito de Ormuz e a anunciada reação violenta dos Estados Unidos. Segundo noticiário da imprensa, os Estados Unidos estão negociando a venda de US$ 46 bilhões de aviões de ataque supersônicos, para os países do Oriente Médio. Isso ajuda a entender os acontecimentos. Uma notícia auspiciosa, ligada ao corte de gastos fiscais, é a anunciada retirada de 15 mil soldados americanos da Europa, onde existe uma força estacionada de quase 100 mil. Inflação e política econômica Quando a soma da demanda agregada (consumo, investimentos, gastos do Governo, exportações menos importações) supera a oferta global de bens e serviços, o resultado tende a ser a inflação. Mas, lógico, não necessariamente, pois é esse desequilíbrio de curto prazo que vai gerar estímulos para que os empresários respondam com mais investimentos e maior produção. As inovações induzem ao aumento do consumo e dos investimentos e o sistema financeiro amplia o crédito, para proporcionar o “transporte financeiro da produção”, com o que aumentam a arrecadação e os gastos do Go- Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 93 verno, ao mesmo tempo em que cresce o comércio exterior. É esse círculo virtuoso – aumento da demanda, expansão do emprego, da renda e dos investimentos – que caracteriza o efeito multiplicador dos investimentos e explica a dinâmica do crescimento econômico. Mas não se pode perder de vista o desequilíbrio ex ante do mercado, que pressupõe um gap inflacionário se a demanda persistir em nível superior à oferta potencial, enquanto não se produz um aumento da produção. Nessas condições, se não houver resposta do lado da oferta, só haverá equilíbrio ex post, através da elevação dos preços. A função principal do Banco Central como controlador da inflação, visando à estabilidade monetária, tem por finalidade assegurar uma elevação sustentável da taxa de desenvolvimento econômico. Não faz sentido colocar o controle da inflação como um fim em si mesmo. Sem dúvida, esse deve ser, também, o objetivo das demais unidades do Governo, apenas com inversão da ordem, ou seja alcançar uma taxa elevada e sustentável de desenvolvimento econômico e de emprego, com a menor inflação possível. Daí a necessidade de coordenação entre a política monetária e a política fiscal, que vão traçar as bases para a política econômica do País. Essa coordenação não existia, até pouco tempo. Parece que está começando a existir. A Selic e a política monetária Parabéns à nova Diretoria do Banco Central, sob o comando de Alexandre Tombini, que está quebrando o tabu do comportamento da taxa de juros, no contexto da política monetária de prevenção das pressões inflacionárias. 94 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 A elevada taxa de juros SELIC, fixada pelo Banco Central, produz dois impactos diretos, de curto prazo: de um lado, aumenta o déficit fiscal do Governo e sobrecarrega os custos da dívida pública; de outro, induz o sistema financeiro a aumentar o rendimento de seus títulos (CDBs etc.) e dos Fundos de Renda Fixa. Por esse processo, a elevação da SELIC encarece o financiamento dos bens de consumo duráveis e eleva os ganhos da poupança, reduzindo a propensão a consumir. E mais, encarece o crédito para as empresas, reduzindo as taxas de retorno e, pois, diminuindo a propensão a investir. Assim sendo, a elevada taxa SELIC reduz o nível da demanda agregada (C+I), aliviando a pressão sobre os preços. Essa é a teoria dos juros. Na prática, a eficácia da política monetária baseada na taxa de juros vai depender da oferta de crédito. São as variações na disponibilidade do crédito que mais influenciam as variações dos preços (inflação). Uma elevação das taxas de juros pode atrair capitais do exterior, que vão expandir a liquidez e aumentar a oferta de crédito, anulando o primeiro impacto da elevação da taxa de juros. É isso, basicamente, o que ocorre no Brasil. A taxa de juros alta estimula o ingresso de capitais e expande o crédito. Para impedir o impacto da expansão do crédito sobre a inflação, o Banco Central entra no mercado vendendo títulos do Tesouro, comprando dólares e acumulando reservas cambiais. Um giro financeiro desordenado, cujos resultados práticos são a sobrecarga fiscal e a desnecessária e onerosa acumulação de reservas. Por outro lado, há uma forte expansão de crédito dos bancos públicos – CEF, BNDES, Banco do Brasil, BNE e BASA – independentemente da política monetária do Banco Central. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 95 No fundo, observa-se uma correlação mínima ou quase nula entre a manipulação da taxa SELIC pelo Banco Central e seus resultados sobre a inflação. Ao fechar o circuito de todos os resultados produzidos, resta a conclusão de que a teoria da taxa de juros, no Brasil, não funciona. Atividades econômicas Quadro do PIB 2012 – Estimativas Em % Crescimento do PIB Indústria Comércio Agricultura Exportações Importações Nível de desemprego Expansão de crédito Juros Selic – 31/dez. Transações correntes Ingresso de IEDs Taxa de câmbio – 31/dez. 3,0% 2,0% 6,0% -2,8% 5,0% 7,0% 5,0% 15,0% 8,5% US$ 68 bilhões US$ 60 bilhões 1,85/US$ No âmbito interno, devem continuar as mesmas preocupações com os reajustes salariais, que puxam a inflação, a falta de recursos fiscais para os investimentos na infraestrutura, o que eleva os custos da produção e reduz o nível de competitividade, e fundamentalmente a menor contribuição das exportações, em face da baixa expectativa de expansão do comércio internacional e dos preços, exceto petróleo. Se o Banco Central tiver juízo, pode continuar baixando a SELIC até 9%. 96 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 Nesse mundo de incertezas, é difícil prever o desfecho da crise Irã/ Estados Unidos, assim com o curso das eleições na Europa. O que menos parece preocupar é a situação da China, que tem meios e recursos suficientes para enfrentar algum ligeiro arrefecimento na expansão das exportações e do PIB. Do ponto de vista externo, vem da China a maior possível influência sobre o Brasil. Assim sendo, para o Brasil, o ano de 2012 não deverá ser muito diferente de 2011, mesmo considerando as variáveis políticas das eleições municipais. Indústria Após crescer 10,5% em 2010, a indústria brasileira cresceu apenas 0,3% em 2011. Dos 27 setores analisados, 12 apresentaram queda. Em novembro e dezembro, a indústria voltou a crescer. A produção de bens de capital subiu 3,3% e equipamentos para transportes 12,4%; a produção de bens duráveis caiu 2%, puxada pela indústria automobilística (-7,8%). Espírito Santo (+6,8%) e Paraná (+7,0%) tiveram forte alta, enquanto Ceará (-11,7%) e Santa Catarina (-5,1%), tiveram fortes quedas. A produção têxtil caiu 14,9% em 2011, sendo -10,1% no Rio e -8,7% em São Paulo. A agroindústria sofreu queda de 2,3%, sendo -1,6% no setor agrícola e -0,6% na pecuária (IBGE). Segundo a CNI, o faturamento real da indústria de transformação cresceu 5,1%, com queda nas horas trabalhadas de 1,2% e aumento de 3% no rendimento médio real. O nível do emprego cresceu 2,2%. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 97 Em janeiro/2012, a produção de veículos caiu 19,2% ante dezembro/2011 e as vendas -23% (Anfavea). As vendas da indústria fluminense subiram 13,3% (Firjan). A produção de petróleo, em 2011, aumentou 2,5% e a de gás natural 4,9%. Mas a venda de gás teve uma redução de 32%, devido ao menor uso das termoelétricas. A indústria consumiu mais 5,64%, o comércio +16,48 e as residências + 13,22% (Abegás). O consumo de energia cresceu 1,8% em dezembro/2011/dezembro/2010. A produtividade industrial (PTF), que deslanchou desde 2006, perdeu fôlego nos últimos trimestres e fechou estável (+0,07%) em dezembro/2011 (FGV). Comércio Segundo a Abrasce, as vendas dos shopping centers, em 2011, tiveram crescimento de 18,6%. As vendas do comércio varejista, em geral, perderam força, em dezembro/2011 e janeiro último, ao mesmo tempo em que se reduziu em 2,3% o índice de confiança dos empresários (ICEC), divulgado pela CNC. A intenção de investir caiu 4,5% e a de contratar mão de obra caiu 10,8%. Pelos dados da Serasa, o varejo caiu 1,6% em janeiro, ante dezembro/2011, mas com alta de 6,4% sobre janeiro/2011. A CDL registrou alta de vendas de 7,8% no Rio de Janeiro em 2011. A PEIC da CNC apurou que o endividamento das famílias com renda inferior a 10 salários-mínimos recuou de 61,3% para 59,5% e dos que ganham mais de 10 salários subiu de 48,9% para 53,4%, nos últimos 12 meses. 98 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 O otimismo dos paulistanos aumentou 0,9% em janeiro segundo a Fecomercio-SP, mas o ICEC caiu 1,7%. Em Goiás, caiu a intenção de contratar, mas o ICEC continua positivo (Fecomercio-GO). No Rio Grande do Sul, ao contrário, o ICEC sofreu queda de 4,1% em janeiro (Fecomercio-RS). Segundo o IPEA, o otimismo das famílias cresceu de 67,2 em dezembro para 69 pontos em janeiro. A inadimplência do consumidor caiu 0,4% em janeiro, ante dezembro/2011, conforme levantamento da Serasa, em face do recuo dos cheques sem fundos e das dívidas com bancos. Para o SPC, entretanto, a inadimplência do consumidor registrou alta de 2,91% em janeiro, sobre janeiro/2011. Agricultura Segundo a Conab, a safra 2012 de grãos deve ficar em 158,4 milhões de toneladas, 2,8% abaixo da anterior. A queda da produção na Região Sul, por causa da seca, será em boa parte compensada pelo aumento no Centro-Oeste. As chuvas continuam em Minas Gerais, onde 230 municípios estão em situação de emergência, com mais de 100 mil pessoas desalojadas. De outro lado, 70% dos municípios gaúchos estão em emergência, por causa da seca. O Governo vai subsidiar a compra de milho pelos pequenos produtores, a R$ 20,00/saco, contra R$ 30,00 no mercado. A estimativa da safra de soja no Brasil caiu de 75,6 bilhões de toneladas para 72 milhões. O índice de preços recebidos pelo agricultor subiu 0,45% em janeiro. Na Bolsa de Chicago, no início do mês, subiram os preços da soja, do milho e do trigo, revertendo em uma breve tendência anterior de queda. O café continua em queda na Bolsa de New York. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 99 Mercado de Trabalho Certamente, o baixo índice de desemprego é o fator mais importante na atual conjuntura econômica do Brasil, com nível recorde de 4,7%, registrado em dezembro último. O emprego na indústria cresceu 0,2% em dezembro, em relação a novembro/2011. Na construção civil, houve contratação de 211 mil vagas (FGV/Sinduscom-SP). O piso salarial subiu cerca de 14% em quase todos os Estados; no Rio de Janeiro, o salário-mínimo do empregado doméstico passou a R$ 729,58. O mercado de trabalho está sofrendo uma revolução: a taxa de expansão do PEA caiu de 2,5% em 2010 para 1,1%, segundo a Fiesp. O número de estrangeiros residindo no Brasil, entre 2010 e 2011, subiu 56%, enquanto 2 milhões de brasileiros retornaram do exterior. Setor Financeiro Sinal amarelo: a inadimplência aumentou 23%, em 2011, e já representa R$ 154 bilhões no ativo das instituições financeiras. Segundo o Banco Central, a inadimplência de 5,7% em 2010 subiu a 7,3% em 2011, em linha com o resultado da PEIC coordenada pela CNC, para famílias com renda acima de 10 salários-mínimos, cuja alta foi de 48,9% para 53,4%. O Banco Central está liberando R$ 30 bilhões para os bancos grandes comprarem ativos dos pequenos. O mercado financeiro brasileiro está em véspera de criar mais uma “jabuticaba”, a securitização do Certificado de Recebíveis Imobiliários 100 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 (CRI), além da liberdade que já existe nesse mercado e nos derivativos da BM&F Bovespa. Parece que a CVM e o Banco Central não conhecem a história do Lehman Brothers. Os economistas de plantão estão tentando vender ao Banco Central a ideia de um juro neutro que, aliado ao PIB potencial, serviria de base para a política monetária. Juro neutro seria o juro real que controla a inflação sem sacrificar o crescimento. O Banco Central continua vivendo à sombra da teoria quantitativa da moeda e achando que é a SELIC que controla a inflação. Segundo a CNSeg, o mercado segurador no Brasil vai de vento em popa, com reservas técnicas de previdência privada de cerca de R$ 300 bilhões. Inflação A inflação de janeiro vai refletir a alta dos alimentos provocada pelo clima muito seco no Sul e muito chuvoso no Sudeste. No atacado, em janeiro, a soja subiu 3,4% (-3,5% em dezembro) e o milho 5,2% (-7,0% em dezembro). Ainda assim, o IGP-M subiu apenas 0,25% e o IGP-DI 0,30%. No varejo, o IPCA subiu 0,56%, reflexo da alta na alimentação, transporte, aluguéis e educação, mantendo-se em torno de 0,5% nos últimos cinco meses. Há uma significativa queda no preço dos bens de consumo duráveis. A diária dos hotéis subiu 20% no 4º trimestre 2011. O índice do Dieese (ICV de São Paulo) subiu 1,32% em janeiro e a cesta básica aumentou em: Brasília (+4,72%), João Pessoa (+3,90%), Florianópolis (+3,51%), Rio de Janeiro (+3,25%), Recife (+3,32%), Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 101 Curitiba (+3,17%) e Aracaju (+3,11%). Houve queda em Vitória (-1,54%) e Porto Alegre (-0,81%). Na cidade de São Paulo, o índice ICV-Fipe subiu 0,51%. Ao fixar a taxa SELIC em 10,5%, o Banco Central continua transmitindo ao mercado a expectativa de que a inflação ainda gira acima de 6,0%. Setor Fiscal O Governo continua trabalhando com a ilusão de que um superávit primário de 3,1% do PIB é suficiente para equilibrar as contas públicas. Não é. O peso dos juros chegou a R$ 236,7 bilhões em 2011, elevando a dívida bruta a 54,3% do PIB. Mas o Governo caminha para substituir as LFTs indexadas à SELIC por títulos prefixados. O Tesouro Nacional autorizou a emissão de R$ 49,2 bilhões de NTN-B, para pagar ao Banco Central o custo de carregamento das reservas internacionais, no 1º semestre 2011. O Governo Federal esperava arrecadar R$ 5,5 bilhões com a concessão dos aeroportos e arrecadou R$ 24,5 bilhões. Os investimentos a que se obrigam os vencedores terão 80% financiados pelo BNDES. Segundo os analistas de Termômetro Tributário, a carga tributária no Brasil chegou a 36,2%, em 2011. Setor Externo Está “secando” a boa temporada das exportações. Pelas estimativas do Governo, em 2012, as exportações devem crescer apenas 5,0% e as importações 7,0% deixando um saldo de US$ 23 bilhões. Para a AEB, as exportações devem diminuir 7% e as importações crescer 3,2%, 102 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 com saldo pouco superior a US$ 3 bilhões (!). Em 2011, o minério de ferro foi negociado a US$ 126/tonelada e, hoje, a US$ 100,00, uma baixa de 20%, e a soja vendida a US$ 430/tonelada, 13,13% abaixo da média de 2010. No cenário internacional, melhoraram as expectativas com a aprovação da proposta da Troika (FMI, BCE e MCE). A Grécia, que já recebeu ajuda de € 110 bilhões, vai receber mais € 130 bilhões, inclusive para pagar € 14,5 bilhões que vencem em março. Vamos aguardar os resultados. Nos Estados Unidos, o Governo fechou um acordo de US$ 26 bilhões com os cinco principais bancos, com o objetivo de subsidiar e solucionar a dívida hipotecária de 2 milhões de mutuários, o que deveria ter sido feito em 2008. Por outro lado, o FDIC estendeu até 31/12/2012 uma cobertura, sem juros, para garantir os depósitos bancários à vista. O Banco Central Europeu está em vias de realizar novo leilão de créditos, além dos € 489 bilhões de 21/12/2011. Também o Banco da Inglaterra planeja operação idêntica, no montante de £ 275 bilhões. Como se sabe, esse aumento de liquidez monetária pode produzir um efeito equivalente à desvalorização cambial. Agora, sim, há uma guerra cambial, entre o dólar e o euro. Um fato que abalou os ânimos na Europa foi a queda de 2,9% na produção da Alemanha, em dezembro/2011. Some-se a isto a terrível onda de frio que se abateu sobre toda a Europa, especialmente no Leste, nos Balcãs, na Áustria e na Itália. Carta Mensal • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012 103 A exportação da China caiu 15,3% em janeiro, mas sua produção industrial cresceu levemente. Em mais um Relatório terrorista, o FMI adverte que o crescimento chinês pode cair à metade, isto é, até cerca de 4%(!). 104 C a r t a M e n s a l • Rio de Janeiro, n. 683, p. 89-104, fev. 2012