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SOBRE O ANIQUILACIONISMO E A IMORTALIDADE DA ALMA Uma Análise Bíblica e Histórica da Ideia Materialista da Existência do Homem à Luz da Concepção Hebraico-Cristã de Vida Eterna Adelmo Medeiros SOBRE O ANIQUILACIONISMO E A IMORTALIDADE DA ALMA Copyright © 2015 Adelmo Medeiros 1ª edição. Distribuição livre e gratuita. Favor indicar a fonte caso cite trechos deste livro. E-mail do autor para contato: [email protected] Disponível em www.adelmomedeiros.com/sobreoaniquilacionismo.htm Há cristãos que costumam afirmar que a punição dos maus será o sofrimento eterno num “inferno de fogo”, e chamam de aniquilacionistas os que repudiam tal ensino e não acreditam na imortalidade da alma. Mas o que a Bíblia realmente ensina sobre esse assunto? O homem tem ou não uma alma imortal? Se ele tem, qual a razão de alguns que professam o Cristianismo acharem que não? O objetivo deste livro é apresentar respostas satisfatórias a tais questões e outras relacionadas, dentro de um enfoque diferenciado, que leva também em consideração aspectos históricos, antropológicos e linguísticos. O ponto de partida dessa interessante análise são determinados comentários publicados por um autor que escreve a favor do aniquilacionismo, cuja definição poderá ser melhor compreendida no capítulo 2. O homem físico não aceita as coisas do espírito de Deus, porque para ele são tolice; e ele não pode chegar a conhecê-las, porque são examinadas espiritualmente. No entanto, o homem espiritual examina deveras todas as coisas. 1 Coríntios 2:14, 15. 2 SUMÁRIO Introdução .......................................................................................................................................... 5 Notas prévias importantes .......................................................................................................... 6 PARTE 1 - ANALISANDO OS ARGUMENTOS DE UM "BEREANO" E SEUS "CONSULTORES" CAPÍTULO 1: Martinho Lutero era aniquilacionista? ............................................................ 9 CAPÍTULO 2: A face oculta do aniquilacionismo .................................................................. 17 CAPÍTULO 3: Sobre a tradução correta de Hebreus 11:16 ................................................31 CAPÍTULO 4: Uso de traduções para mostrar o que a Bíblia "realmente diz" ...........43 CAPÍTULO 5: Apropriação indevida da linguagem bíblica ................................................49 CAPÍTULO 6: A natureza do Seol ..................................................................................................61 CAPÍTULO 7: Efésios 4:8, 9 e a localização do Hades ............................................................69 CAPÍTULO 8: Os homens não podem matar a alma ..............................................................95 CAPÍTULO 9: Sobre a palavra imortalidade ............................................................................99 CAPÍTULO 10: Salvar ou destruir uma alma ........................................................................ 119 CAPÍTULO 11: O que Jó falou sobre a morte ......................................................................... 127 CAPÍTULO 12: Condenar os que não creem na imortalidade da alma? .................... 137 CAPÍTULO 13: A lógica bíblica não percebida ..................................................................... 145 CAPÍTULO 14: As sombras não louvam a Deus ................................................................... 147 CAPÍTULO 15: Os apóstolos acreditavam em fantasmas? .............................................. 163 CAPÍTULO 16: Questões de maior amplitude ...................................................................... 181 PARTE 2 - HISTÓRIAS IMPORTANTES NORMALMENTE IGNORADAS CAPÍTULO 17: O conceito dos primeiros cristãos sobre a alma.................................... 193 CAPÍTULO 18: Manuscritos judaicos pré-cristãos .............................................................. 201 CAPÍTULO 19: Usos da palavra "alma" nas obras gregas da Antiguidade ................ 211 CAPÍTULO 20: A concepção de alma dos antigos hebreus............................................... 219 CAPÍTULO 21: Mais exemplos da "técnica" em distorcer autores patrísticos ........ 245 CAPÍTULO 22: O aparecimento de Samuel à necromante foi verídico?..................... 281 CAPÍTULO 23: Considerações sobre o Jardim do Éden e o fim do mundo ................ 313 CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 331 3 APÊNDICES A1. DAS PROFUNDEZAS DA TERRA TU ME FARÁS SUBIR ................................................................. 335 A2. TEXTOS BÍBLICOS QUE MENCIONAM ALMAS, ANJOS E ESPÍRITOS ............................................. 339 A3. OUTRAS INFORMAÇÃOES BÍBLICAS SOBRE O SEOL ................................................................... 347 A4. COMENTÁRIOS ADICIONAIS SOBRE MATEUS 10:28 ................................................................ 359 A5. COMENTANDO MAIS PONTOS CRITICADOS PELO AUTOR DO MB ............................................. 367 A6. SOBRE O ESFORÇO PARA ENTENDER AS ESCRITURAS SAGRADAS ............................................ 375 A7. QUAL É A TRADUÇÃO CORRETA DE LUCAS 23:43? .................................................................. 389 A8. TEXTOS AMIÚDE MAL APLICADOS PELOS ANIQUILACIONISTAS ................................................ 395 LIVROS E TEXTOS CONSULTADOS ........................................................................................ 409 CRÉDITOS DAS IMAGENS UTILIZADAS ............................................................................... 431 4 Introdução Há algum tempo entrei no website Mentes Bereanas (MB) e me deparei com um artigo que critica um texto que escrevi, que é o apêndice A8 deste livro, onde comentei alguns versículos bíblicos costumeiramente usados em favor do aniquilacionismo. De tom um pouco agressivo e com vários termos pejorativos, a crítica classificou o que publiquei de desonesto. E como uma publicação não existe sem seu autor, naturalmente as acusações recaíram também sobre mim. Por isso publiquei uma página em defesa do meu texto, cujo conteúdo pode ser visto nos apêndices A3 ao A7. Na verdade, há outros artigos no MB com o mesmo objetivo de desqualificar o que já escrevi sobre o aniquilacionismo e temas relacionados. Discorri um pouco sobre alguns deles na presente consideração. Depois que publiquei minha defesa mantive uma comunicação com o autor do MB na esperança de esclarecer melhor para ele o artigo criticado e mostrar que não sou o tipo de pessoa que ele supõe. Naquele momento, pareceu-me que o diálogo tinha sido relativamente bem sucedido, já que o autor me enviou um e-mail informando que havia retirado de sua “refutação” as partes mais ofensivas. Achei uma boa atitude. No entanto, passados vários meses, entrei recentemente no MB e descobri que ele ampliou as críticas com base no que apresentei na minha defesa. Ele usou novamente linguagem ácida, chamando o meu esforço de “fúteis jogos de palavras”, “deturpações”, “desrespeito ao contexto da Bíblia”, “argumentações falaciosas”, dentre outras acusações, diretas ou subentendidas. Em nenhum momento o autor do MB diz onde os textos contra os quais escreve estão publicados. Limita-se apenas a dizer que é “uma publicação que foi encaminhada a alguns colaboradores do Mentes Bereanas e que se encontra nos arquivos do site”. Porém isto é uma meia-verdade. Fui eu mesmo que enviei a mencionada publicação, bem antes dele escrever suas opiniões sobre meus textos. No entanto, ela contém apenas uma parte do meu material que está sendo contestado. Também não fui informado sobre tais críticas do MB, e não tinha como saber, porque passei muito tempo sem acessá-lo. Se eu não tivesse me deparado casualmente com a mencionada crítica jamais saberia da existência dela e não teria como defender os meus artigos. Portanto, em virtude dos novos textos publicados pelo meu crítico “bereano”* com o intuito de repelir o que escrevi, os quais também descobri por acaso, vi necessidade de escrever uma consideração mais abrangente do que aquela que eu havia postado no meu website. Aproveitei para abordar alguns aspectos não explorados antes. Tal como na outra ocasião não é uma consideração exaustiva do que está publicado lá no MB. É apenas exemplificativa, pois comentei apenas os trechos que julguei mais relevantes. Mas creio que é suficiente para induzir às necessárias reflexões. Adelmo Medeiros * Os bereanos eram judeus da cidade de Bereia para os quais o apóstolo Paulo pregou. De acordo com a Bíblia, eles tinham “mentalidade mais nobre do que os de Tessalônica, pois recebiam a palavra com o maior anelo mental, examinando cuidadosamente as Escrituras, cada dia, quanto a se estas coisas eram assim”. Por isso, vários deles se converteram ao Cristianismo. – Atos 17:11. 5 Notas Prévias Importantes Os trechos de artigos do Mentes Bereanas (MB) escolhidos para comentar estão nos quadros amarelos, com exceção do que aparecer nos apêndices A3 ao A7. Embora o que justificou a escrita deste livro tenham sido os referidos textos do MB, o que abordei aqui não se limita a eles. Foram analisados artigos publicados pelas Testemunhas de Jeová e outros que estão alinhados com a “doutrina” aniquilacionista, também conhecida por Materialismo. O conceito de aniquilacionismo que usei aqui é uma definição mais restrita, que se refere apenas à crença de que a pessoa deixa de existir por completo quando morre, não havendo, portanto, uma alma espiritual que sobrevive à morte do corpo físico, ficando a pessoa fiel na dependência de ser recriada por Deus no futuro. O motivo dessa restrição conceitual está explicado no capítulo 21. Salvo outras indicações, a Bíblia que utilizei é a Tradução do Novo Mundo de 1986, publicada pelas Testemunhas de Jeová. A edição de 2015 também foi considerada nas notas explicativas indicadas com asteriscos. Com uma exceção, optei por não usá-la no texto principal porque ela difere muito da versão anterior. E quando escrevi minha defesa inicial ela ainda não tinha sido lançada. Nas citações da Bíblia e de outras obras destaquei determinados trechos ou palavras usando negritos e/ou sublinhados quando julguei necessário. E quando há colchetes azuis nas citações eles são meus, para fins de esclarecimento. Os links das obras que foram consultadas ou adquiridas na Internet estão indicados nas referências finais. Menos nos casos em que eles já foram informados dentro dos capítulos, com algumas exceções. Ao examinar o conteúdo dos links que apresento ao longo do texto, sugiro que copie os respectivos endereços e os “cole” no navegador, ao invés de clicar diretamente neles, pois em alguns casos o link poderá direcionar para uma página secundária do website referenciado e não a intencionada por mim. Visto que o conteúdo do presente trabalho ficou razoavelmente bem detalhado, o recomendo não só para pesquisadores da Bíblia, mas também para estudantes de Teologia. As informações aqui apresentadas resultam de um esforço sério em apresentar o assunto da melhor maneira possível, e com o nível de aprofundamento necessário para se ponderar as questões levantadas. Exceto quando outros tradutores foram indicados, eu mesmo traduzi as citações das obras estrangeiras examinadas, inclusive as da literatura grega. Embora os dois semestres de grego clássico que cursei na faculdade tenham sido úteis, o sucesso desta tarefa deveu-se principalmente aos excelentes recursos existentes na Internet, em especial os do portal Perseus, da Universidade de Chicago, a qual agradeci pela importante ajuda. Vários textos, porém, traduzi das versões em inglês disponíveis, pois não achei necessário traduzi-los diretamente do grego. Mas, com pouquíssimas exceções, consultei no original todas as obras citadas, com o intuito de averiguar como os trechos realmente estão na língua grega. 6 PARTE 1 ANALISANDO OS ARGUMENTOS DE UM "BEREANO" E SEUS “CONSULTORES” 7 (Página em branco) 8 Capítulo 1 MARTINHO LUTERO ERA ANIQUILACIONISTA? “Embora muitos condicionalistas não gostem da palavra ‘aniquilação’, esta palavra descreve com precisão o que eles acreditam que será o destino final dos que não se arrependerem de seus pecados”. – A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva (2015), de John Roller, p. 7, publicação disponível no website Mentes Bereanas (MB). Num dos e-mails que o autor do MB enviou para mim ele reclamou da minha afirmação de que, geralmente, os que não crêem na existência da alma após a morte têm essa opinião por conta de suas formações religiosas. Acho que isto o incomoda porque ele nasceu e cresceu na religião Testemunhas de Jeová, que é o exemplo talvez mais marcante dos que são contra a ideia de que a alma não morre quando o ser humano dá seu último suspiro. Ou seja, o autor não é um dos que chegou a tal opinião sozinho. Ele sempre acreditou nisso. Na tentativa de demonstrar que não foram poucos os cristãos de destaque dos últimos séculos que repudiaram a imortalidade da alma “pautando-se exclusivamente pela evidência bíblica”, o autor do MB inseriu uma longa lista de homens que desde a época da Reforma Protestante teriam supostamente aderido ao aniquilacionismo, ou imortalidade condicional da alma. A inserção é uma tradução adaptada de uma lista que já estava disponível em inglês na Internet, conforme pode ser visto no link abaixo: http://www.truthaccordingtoscripture.com/documents/death/champions-ofconditional-immortality.php#.VZWt3VJ1y1k Dentre os indivíduos mencionados na lista talvez o mais proeminente seja Martinho Lutero. Seus escritos sobreviveram até os nossos dias, foram traduzidos e estão disponíveis para consulta, fazendo dele um ótimo exemplo para se analisar, com baixo risco de descontextualização. Por isso, dos vários nomes apresentados, o escolhi para averiguar se ele era realmente um “condicionalista”. No primeiro link abaixo há uma lista do que Lutero escreveu e no segundo onde adquirir tal acervo: http://therebelgod.com/Luther/ https://www.logos.com/product/15485/luthers-works A seguir, uma das afirmações de Lutero citada no site Mentes Bereanas (MB): Martinho Lutero (1483-1546), reformador alemão e tradutor da Bíblia: “Salomão conclui que os mortos estão dormindo, e nada sentem, em absoluto. Pois os mortos ali jazem, sem contar os dias nem os anos, mas quando forem despertados, terão a impressão de ter dormido apenas um minuto”. (An Exposition of Solomon’s Book, Called Ecclesiastes or the Preacher [Uma Exposição do Livro de Salomão, Chamado Eclesiastes ou O Pregador], traduzido 9 em 1573, fl. 151 v.) …. Lutero postou suas 95 teses no sábado, 31 de outubro de 1517, em Wittenberg. Em sua Defesa de 41 de suas proposições, Lutero citou a declaração do papa sobre a imortalidade, alistando-a entre “essas opiniões monstruosas encontradas no monturo romano dos decretos”. (Artigo “Textos 'Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas'?”) As testemunhas “de” Jeová e os adventistas devem ficar contentes quando leem declarações como essas. Lendo apenas o que aí está poderão chegar à conclusão que Lutero era a favor do ponto de vista que defendem. Mas será mesmo? Se Lutero fosse mesmo aniquilacionista ou “condicionalista”, por que será que a Igreja Luterana não advoga esse ensinamento? Isto por si só é um indício de que é necessária uma investigação adicional. Lutero afixa suas 95 teses na capela de Wittenberg Note a partir daqui o que Lutero realmente pensava sobre o assunto, a começar pela citação abaixo (colchetes acrescentados): “Os filósofos de fato disputaram sobre a imortalidade da alma, mas tão friamente que eles parecem estar estabelecendo meras fábulas. Aristóteles acima de tudo argumentava sobre a alma de tal maneira que ele diligentemente e astutamente evita discutir sua imortalidade em qualquer lugar; não queria 10 nem expressar o que ele pensou sobre isso. Platão relacionou o que ele tinha ouvido ao invés de sua própria opinião. Nem pode sua imortalidade ser provada por qualquer razão humana, pois não é algo ‘debaixo do sol’ acreditar que a alma é imortal. No mundo nem é visto nem entendido como certo que as almas são imortais”. – Luther Works [LW] 15:59. Como pode ser visto, para Lutero a convicção na imortalidade da alma não advém da razão humana. Ao contrário, pela razão o homem é levado a crer que a imortalidade não existe, afinal, “debaixo do sol”, conforme disse Salomão, “não há nenhuma superioridade do homem sobre o animal”. Mas a crença na permanência da alma após a morte do corpo depende da fé e não de aspectos biológicos visíveis. – Eclesiastes 3:20, 21; Compare com Hebreus 11:1. Comentando sobre o que acontece à alma depois da morte, numa carta enviada a Nicholas von Amsdorf, Lutero disse o seguinte: “Concernente às suas ‘almas’, eu não tenho suficiente [conhecimento do problema] para responder. Estou inclinado a concordar com sua opinião que as almas dos justos apenas dormem e que não sabem onde estão até o Dia do Julgamento. Sou levado a esta opinião pela palavra da Escritura. ‘Eles dormem com seus pais’. Os mortos que foram levantados por Cristo e pelos apóstolos testificam este fato, visto que estavam como se tivessem acabado de acordar e não sabiam onde estiveram. A isto podem ser acrescentadas as eufóricas experiências de muitos santos. Eu não tenho nada com o qual eu poderia derrubar esta opinião. Mas eu não me atrevo a afirmar que isto é verdade para todas as almas em geral, por causa do êxtase de Paulo e a ascensão de Elias e de Moisés (que certamente não apareceram como fantasmas no monte Tabor)”. O êxtase mencionado por Lutero foi uma experiência sobrenatural pela qual o apóstolo Paulo passou, que o arrebatou ao terceiro céu, o paraíso de Deus, onde testemunhou alguma coisa da rotina celeste. Paulo disse que não sabia se o que viu tinha sido no corpo ou fora do corpo. Tal relato é um claro indicativo que os cristãos do século I acreditavam numa existência fora do corpo físico da mesma maneira que os cristãos dos séculos seguintes (2 Coríntios 12:1-5). Lutero também não vê problema em acreditar no que a Bíblia menciona sobre o aparecimento de Moisés e Elias para Jesus, durante a transfiguração: “E, enquanto [Jesus] orava, a aparência do seu rosto tornou-se diferente e a sua vestimenta tornou-se resplendentemente branca. Também, eis que dois homens conversavam com ele, sendo eles Moisés e Elias. Estes apareceram com glória e começaram a falar sobre a sua partida, que ele estava destinado a cumprir em Jerusalém”. – Lucas 9:29-31. Os aniquilacionistas costumam afirmar enfaticamente que “se baseiam apenas na Bíblia” e que acreditam somente nela. Mas tal convicção fenece abruptamente quando se deparam com a passagem acima. Vão em busca de interpretações alternativas para “provar” que ali não eram efetivamente Moisés e Elias conversando com Jesus sobre sua morte iminente, mesmo a Bíblia afirmando que foram eles mesmos. 11 Um dos argumentos é que por tratar-se de uma visão o acontecimento não pode ter sido real. Mas esta é uma conclusão insustentável, conforme demonstram diversos textos bíblicos. Uma visão não significa necessariamente que o objeto visionado não existe, ainda mais nos casos em que ela apresenta um diálogo entre pessoas. Por exemplo, sobre os anjos que apareceram defronte o túmulo de Jesus e avisaram certas mulheres que ele fora ressuscitado, um discípulo disse: “Além disso, certas mulheres dentre nós também nos assombraram, porque tinham ido cedo ao túmulo memorial, mas, não achando seu corpo, voltaram dizendo que tiveram também uma visão sobrenatural de anjos, que disseram que ele estava vivo”. – Lucas 24:22, 23; veja mais exemplos no capítulo 15. As Testemunhas de Jeová, por sua vez, dizem que Jesus estava falando sozinho, e que o evento foi uma encenação para reforçar “poderosamente o testemunho dele a respeito do Reino e do seu futuro reinado”. Há quem diga também que eram anjos representando Moisés e Elias. – A Sentinela, 01/04/00, p.13. Lutero continua: “Quem sabe como Deus lida com as almas que partiram? Não poderia [Deus] da mesma maneira fazê-las dormir e acordar (ou enquanto ele deseja [que elas durmam]), assim como ele submete ao sono aqueles que vivem na carne? E novamente, aquela passagem de Lucas 16 [:23 em diante], concernente a Abraão e Lázaro, mesmo que não force o conceito de uma universal [capacidade de sentir, da parte de quem se foi], ainda assim atribui uma capacidade de sentir a Abraão e Lázaro, e é difícil deturpar esta passagem para que ela se refira ao Dia do Julgamento”. Perceba que para Lutero o “partir da alma” não é simplesmente a vida que cessa no corpo biológico, mas sim uma viagem literal da alma para outro lugar. Além disso, mais uma vez, o nível de congruência com as Escrituras que Lutero demonstra no assunto em análise é maior que o geralmente visto em pessoas que atualmente combatem o ensino da existência da alma após a morte. O “sono da alma” em que Lutero acreditava pouco tem a ver com o ponto de vista dos aniquilacionistas. Ao contrário destes, Lutero não vê necessidade de distorcer o relato do rico e Lázaro em busca de uma explicação alternativa. Simplesmente aceita o relato inspirado do jeito que ele é. O motivo dessa atitude é simples: Lutero realmente acreditava na imortalidade da alma, nos moldes ensinados pelo Cristianismo, muito embora achasse que a espera “padrão” da alma fosse ficar dormindo, mas que também poderia ficar acordada em determinadas circunstâncias, da mesma maneira que acontece com os seres humanos, que hora estão acordados, ora estão dormindo. Mais adiante há citações sobre este ponto. Por fim, ele conclui: “Eu penso o mesmo sobre as almas condenadas; algumas podem sentir as punições imediatamente após a morte, mas outras podem ser poupadas das [punições] até aquele Dia [do Julgamento]. Pois o farrista [o rico da parábola] 12 confessa que está sendo torturado; e o Salmo diz: ‘O mal irá se encontrar com o homem injusto quando ele perece’. Você talvez também atribua isto ou ao Dia do Julgamento ou à angústia passageira da morte física. Então, minha opinião seria que isto é incerto. É mais provável, entretanto, que, com algumas exceções, todas [as almas que partiram] dormem sem possuir qualquer capacidade de sentir. Considere agora quem eram os ‘espíritos em prisão’ a quem Cristo pregou, como Pedro escreve: Não poderiam eles também dormir até o Dia [do Julgamento]? E ainda quando Judas diz a respeito dos Sodomitas que eles sofrem a dor do fogo eterno ele está falando de um fogo presente”. – LW 48:360-361.* * Ao dizer “fogo presente”, Lutero está mencionando Judas 7, que apresenta o verbo “sofrer” no presente contínuo em referência aos habitantes de Sodoma e Gomorra, cujas cidades foram castigadas por Deus: “Assim, Sodoma, Gomorra e as cidades circunvizinhas, que se corromperam da mesma maneira e se entregaram ao vício, são apontadas como exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno”. (Missionários Capuchinhos) A Bíblia do Peregrino verte o final assim: “E agora sofrem a pena de um fogo eterno para exemplo de outros”. Nota-se que Lutero não só acreditava que a alma do homem continua existindo depois da morte, como também considerava a antiga crença da punição dos ímpios no “fogo eterno” do Hades. Veja a seguir mais afirmações de Lutero: “Mas agora surge outra questão. Visto que é certo que as almas estão vivas e estão em paz, que tipo de vida ou descanso é este? Bem, esta é uma questão muito elevada e muito difícil para sermos capazes de defini-la, pois Deus não quis que nós soubéssemos sobre isto nesta vida. Assim é suficiente para nós sabermos que as almas não saem de seus corpos para o perigo de torturas e punições do inferno, mas que foi preparado para elas um quarto onde elas podem dormir em paz. “No entanto, há uma diferença entre o sono ou descanso desta vida e aqueles da vida futura. Pois durante a noite uma pessoa que ficou exausta pelo seu dia de trabalho nesta vida entra em seu quarto em paz, como se fosse, para dormir lá; e durante esta noite ele desfruta do descanso e não tem conhecimento sobre qualquer mal causado ou por fogo ou por assassinato. Mas a alma não dorme da mesma maneira. Ela está desperta. Ela experimenta visões e os discursos dos anjos de Deus. Então o sono na vida futura é mais profundo do que nesta vida. Todavia, a alma vive perante Deus. Com esta analogia, que eu tenho do sono de uma pessoa viva, eu estou satisfeito; pois nele há paz e quietude. Ele acha que dormiu somente uma ou duas horas, e ainda assim ele vê que a alma dorme de tal maneira que também está desperta”. – LW 4:313. “… [Q]uando o ímpio morre, se eles partiram há muito tempo, antes da vinda de Cristo, ou hoje, depois que Cristo foi revelado, eles simplesmente vão para a perdição. Mas nós não sabemos se sua perdição começa imediatamente depois da morte; pois está escrito (Rom. 14:10) que todos deverão ficar diante do tribunal, e João 5:29 declara: ‘Aqueles que fizeram o bem irão para a 13 ressurreição da vida, e aqueles que fizeram o mal, para a ressurreição de julgamento’. ”. “Concordemente, devemos nos lembrar que depois de Cristo o seio de Abraão veio a um fim e que todas as promessas sobre a vinda da Semente se cumpriram. Nós temos outras e mais gloriosas promessas que nos foram dadas pelo Filho de Deus, que se encarnou, sofreu e foi levantado de novo. Se não acreditarmos nestas, nós estamos condenados para sempre. Mas eu sou incapaz de dizer positivamente em que estado aqueles que foram condenados no Novo Testamento estão. Não tenho opinião formada sobre isto”. – LW 4:316. Comentando sobre o falecido Urbanus Rhegius, Lutero disse: “Nós devemos saber que ele é abençoado e que ele tem vida eterna e alegria eterna e participação com Cristo na igreja Celestial. Porque agora ele aprendeu, viu com seus próprios olhos, e ouviu aquelas coisas que ele aqui na igreja na terra explicou de acordo com a palavra de Deus”. – WA 53:400; Paul Althaus, The Theology of Martin Luther (Philadelphia: Fortress Press, 1963), p. 415. “É verdade que as almas ouvem, percebem e veem depois da morte; mas como isto acontece, não entendemos... Se nos empenharmos em dar uma explicação de tais coisas segundo as características desta vida, então somos tolos. Cristo nos deu uma boa resposta; pois seus discípulos estavam, sem dúvida, bem curiosos. ‘Aquele que acredita em mim, ainda que morra, viverá’ (João 11:25); de maneira semelhante: ‘Se vivemos ou se morremos, nós somos do Senhor’ (Rom. 14:8)… ‘A alma de Abraão vive com Deus, seu corpo jaz aqui morto’, seria uma distinção que para minha mente é mera podridão! Eu a disputarei. Alguém pode dizer: ‘O Abraão inteiro, o homem completo, vive!’. ”. – Conversas com Lutero, págs. 122 f.; Compend of Luther’s Theology, de Hugh Kerr (Philadelphia: The Westminster Press, 1943), p. 241. A esta altura já deve ter ficado evidente que quando Lutero incluiu em suas teses a “imortalidade da alma” ele não estava se referindo ao que hoje o autor do MB combate. O cerne da questão era a autoridade da Igreja e a maneira que ela estava tratando o assunto. Para Lutero não havia necessidade de um decreto para os cristãos acreditarem na imortalidade da alma, pois isto já estava bem estabelecido pelas Escrituras para os que têm fé. Disse ele: “Quando o último concílio Laterano estava para ser concluído em Roma sob o Papa Leão, dentre outros artigos foi decretado que se devia acreditar que a alma é imortal. Disto se percebe que eles fazem da vida eterna um objeto de brincadeira fútil e desprezo. Desta maneira eles confessam que é uma crença comum dentre eles que não há vida eterna, mas que eles agora desejam proclamar isto por meio de uma bula”. – LW 47:37. Ou seja, para Lutero, um decreto que visasse impor a crença na imortalidade da alma equivaleria a dizer que o público-alvo não acreditava na vida eterna. 14 Na verdade, o que Lutero estava questionando não era a imortalidade da alma, mas outros assuntos. Por exemplo, as mal afamadas indulgências, que alegadamente seriam “atalho” para as almas saírem do “purgatório” e chegarem mais facilmente ao céu. Ele não acreditava em tal processo, porém cria na existência dessas almas. Portanto, é óbvio que Lutero não endossa as conclusões do autor do MB. Pelo contrário, a investigação feita demonstrou que, na ânsia de achar referências importantes em apoio à sua crença particular, ele caiu facilmente na armadilha de citar pessoas do passado completamente fora do contexto. O mesmo costumam fazer os demais aniquilacionistas, incluindo aqueles em quem o autor do MB “pegou carona”. Mas o que dizer dos outros nomes que foram apresentados na “lista de campeões do condicionalismo”? Bem, não duvido que algum deles tenha abraçado verdadeiramente a crença atual do aniquilacionismo. No entanto, se alguém quiser averiguar outro “representante” dessa lista* seria bom “peneirar” primeiro o que foi apresentado, conforme os critérios abaixo: 1) De acordo com os próprios comentários incluídos pelo autor do MB, diversos daqueles cristãos não estavam questionando necessariamente a “imortalidade da alma”, conforme é ensinada há dois milênios pelo Cristianismo. O que eles estavam combatendo era a crença de que os ímpios sofrerão eternamente num “inferno de fogo”. Mesmo hoje, há muitos cristãos que não admitem este entendimento, mas crêem que a alma sobrevive à morte do corpo físico. 2) Conforme será mais bem comentado num capítulo posterior, a “imortalidade condicional” defendida no MB não admite a existência literal da alma de quem morre, para que ela fique realmente dormindo no Seol (ou Hades). O conceito defendido é que a alma desaparece por completo por ocasião da morte e não vai para lugar algum, e só reaparece quando Deus resolve recriá-la por meio da ressurreição. Mas este não era o entendimento de todos os escritores listados. Para alguns deles a alma continua a existir depois da morte, porém dormindo. 3) Também pode ser inferido da lista que alguns dos comentaristas mencionados sofreram influência religiosa de outros antes de “mudarem de opinião”. Portanto, eles não se isolaram do mundo para ler a Bíblia e chegaram a tais conclusões sozinhos. E a quantidade das pessoas mencionadas que passaram por esse processo pode ser bem maior do que se imagina. 4) Finalmente, tal como aconteceu nos primeiros séculos do Cristianismo, provavelmente houve alguns casos em que os comentaristas não estavam questionando o conceito cristão da imortalidade da alma, conforme aceito atualmente, mas estavam escrevendo contra o conceito pagão, que é diferente em vários aspectos. Mais detalhes sobre isso serão considerados no capítulo 17. Logo, com a devida contextualização, a lista não atinge perfeitamente o objetivo pretendido. * Ainda comentarei brevemente sobre outro nome da lista: Oscar Cullmann. Veja também no capítulo 22 o que Franz Delitzsch, outro suposto “condicionalista”, realmente pensava sobre isso. 15 (Página em branco) 16 Capítulo2 A FACE OCULTA DO ANIQUILACIONISMO Antes de apresentar a lista onde Lutero foi incluído, o autor do MB disse o seguinte (negritos acrescentados): NOTA IMPORTANTE: O fato de este Apêndice só apresentar pronunciamentos de eruditos cristãos dos últimos 5 séculos, não quer dizer que não tenha havido pessoas que defendiam o conceito condicionalista antes do século 15. A imprensa só veio a ser inventada pelo alemão Johannes Gutemberg em 1455, e um número considerável de expositores cristãos chegou a publicar livros ou opúsculos sobre a questão da imortalidade humana. Algumas destas obras tiveram ampla distribuição na Europa, e estão preservadas atualmente em formato digitalizado. (Todo o material que foi consultado para a elaboração deste Apêndice integra o arquivo do Mentes Bereanas.) Como é óbvio, é bem mais fácil encontrar pronunciamentos de eruditos posteriores ao século 15, não só pela ampla distribuição que os escritos deles tiveram, como também pelo fato de o domínio quase absoluto da Igreja Católica Romana nos círculos religiosos europeus só ter sido seriamente abalado após a invenção da imprensa. Aos leitores do Mentes Bereanas que tiverem interesse num exame abrangente dos conceitos defendidos pelos apologistas que viveram nos 3 séculos iniciais da Era Cristã (isto é, antes do surgimento da Igreja Católica, como instituição), recomendamos a obra A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva, disponível na seção de Publicações do site. O autor do livro concedeu permissão para distribuição gratuita da versão em português. Como se nota, o autor do MB afirma que restringiu sua amostra de supostos aniquilacionistas a um período mais recente da história, mas que nos primeiros séculos outros cristãos teriam tido opiniões semelhantes, que só não foram muito divulgadas porque ainda não existia a imprensa e o domínio da Igreja Católica aparentemente dificultava a devida disseminação. A teoria acima é bastante deficiente do ponto de vista histórico. Apesar de alguns excessos que a Igreja cometeu em sua trajetória até o nosso tempo, ela não foi a responsável por haver poucas vozes no mundo antigo a favor do aniquilacionismo. Na verdade, muito do que sabemos a respeito dos que eram contrários a determinadas crenças cristãs tradicionais é graças à própria Igreja, como será mais adiante exemplificado. Até mesmo algumas declarações de obras patrísticas que servem de “munição” para os aniquilacionistas de hoje só existem porque a Igreja se encarregou de preservá-las, mediante o trabalho de copistas em antigos mosteiros. E mais recentemente por divulgar esse acervo através de livros, em diversos idiomas. 17 E o mais importante é que o autor do MB jamais conseguirá apresentar uma lista de antigos cristãos para engrossar as fileiras do moderno pensamento aniquilacionista, pois eles nunca existiram. Todos os cristãos primitivos acreditavam que o homem possui uma alma imaterial e que esta sobrevive à morte do corpo. Até mesmo os que são considerados os primeiros aniquilacionistas da história cristã. Por isso que os apóstolos encararam a cena dos falecidos Moisés e Elias conversando com Cristo na transfiguração com absoluta naturalidade, pois sendo judeus jamais acreditaram que a morte significa a inexistência da pessoa. – Lucas 9:28-36. Compare com 1 Samuel 28. Você talvez esteja se perguntando como é que aniquilacionistas podiam acreditar que a alma permanece viva depois da morte. É porque a ortodoxia cristã considera aniquilacionistas todos aqueles que rejeitam o ensino de que as almas dos maus sofrerão eternamente na Geena espiritual, e preferem acreditar que elas serão destruídas. É o que eu chamo de aniquilacionismo em sentido amplo. Este conceito entra em conflito com a ideia vigente nos tempos antigos. Mas ele surgiu logo cedo na história do Cristianismo. O que foi mesmo questionado nos séculos iniciais não é se a alma permanece viva depois da morte, mas sim o que acontece com ela depois do Julgamento Final de Deus. A seita gnóstica dos Valentinianos* provavelmente foi o primeiro grupo de origem cristã que assumiu posição contrária à crença no tormento eterno. Para eles as almas dos iníquos seriam destruídas e não atormentadas. Mas visto que os gnósticos nunca foram considerados verdadeiros cristãos pela Igreja primitiva, devido ao alerta que há em 1 João 4:3, o ponto de vista deles tem sido desconsiderado. * Os Valentinianos surgiram a partir dos ensinamentos de um mestre gnóstico chamado Valentino, que por volta de 137 d.C. começou a lecionar em escolas do Egito e Chipre. Depois se mudou para Roma, onde foi considerado um possível candidato ao cargo de bispo da cidade, que é chamado hoje de “Papa”. Permaneceu lá até 166. Arnóbio de Sica foi o primeiro escritor considerado cristão que apresentou o entendimento de que os ímpios não sofrerão para sempre, mas que serão aniquilados. Sobre a morte e o destino final das almas, aproximadamente em 320 d.C., ele disse: “Mas qual homem não percebe que aquilo que é imortal, o que é [algo] simples [de se notar], não pode ser objeto de nenhuma dor? Que o que sofre dor, ao contrário, não pode ser imortal?... Porque eles são banidos, e sendo aniquilados, falecem inutilmente em uma destruição eterna... Pois aquilo que é visto pelos olhos é somente a separação da alma do corpo, não a aniquilação final: esta, eu digo, é a verdadeira morte do homem, quando as almas que não conhecem a Deus serão consumidas em longo tormento com chamas impetuosas, nas quais determinados seres cruéis e violentos serão banidos, que eram desconhecidos antes de Cristo, e trazidos à luz unicamente por Sua sabedoria”. – Contra os Pagãos, de Arnóbio, Livro II, parágrafo 14. Posteriormente, no processo de “excomunhão” de Orígenes, em 553 d.C., a Igreja se manifestou contra uma opinião também considerada aniquilacionista, ao dizer: 18 “Se alguém disser que depois da ressurreição o corpo do Senhor ficou etéreo, tendo a forma de uma esfera, e assim ficarão os corpos de todos depois da ressurreição; e que após o Senhor mesmo ter rejeitado seu corpo verdadeiro e os outros que se levantarão terem rejeitado os deles, a natureza de seus corpos será aniquilada: que ele seja declarado anátema”. – Segundo Concílio de Constantinopla, Anátema nº 10. Portanto, o aniquilacionismo hoje defendido pelas Testemunhas de Jeová e outros não é o mesmo que surgiu na Antiguidade. Naquele tempo nenhum cristão acreditava que o homem fosse produto apenas do funcionamento de um corpo carnal, que ao morrer ocasionaria a inexistência da pessoa. A palavra mais precisa para se referir ao aniquilacionismo moderno é materialismo*, pois seus proponentes se baseiam apenas no que é material para explicar a natureza do ser humano. Para eles não há espaço no que é físico para uma alma espiritual e nada relacionado a isso. Mas optei por continuar chamando-os de “aniquilacionistas” porque esta é a identificação mais usual em obras teológicas. Além disso, acredito que na mente da maioria das pessoas dizer que alguém é materialista significa quem ama as coisas materiais acima de tudo. O que não deixa de ter alguma relação com os aniquilacionistas, porém não é a isto que o materialismo se refere. * Eusébio de Cesareia relatou no início do século IV um episódio que pode ser considerado a primeira ocorrência do pensamento materialista entre os cristãos. Segundo ele, surgiram na Arábia alguns que defenderam “uma doutrina alheia à verdade”, segundo a qual ‘a alma morre juntamente com o corpo e revive na ressurreição’. (Isso aconteceu por volta do ano 230 d.C.) Formou-se então um concílio árabe para discutir a questão, e Orígenes foi convidado para ajudar. Os discursos que ele proferiu foram tão fortes e convincentes que ‘conduziram aqueles que haviam se desviado a mudarem completamente suas opiniões’ referentes à suposta extinção da alma quando ocorre a morte do corpo. O resultado dessa reunião deliberativa demonstra que esse foi um caso isolado sem nenhuma repercussão no cristianismo histórico. O sucesso de Orígenes em dirimir o problema é uma evidência da profunda inconsistência do materialismo quando analisado sob o ponto de vista bíblico. Os ouvintes dele foram sensíveis a tal fato. – História Eclesiástica (2002), ed. Novo Século, p. 141; Ecclesiastical History (1850), tradução de Christian Frederick Crusé, pp. 253, 254. A Enciclopédia Católica define o materialismo da seguinte maneira: “Conforme o próprio significado da palavra, Materialismo é o sistema filosófico segundo o qual a matéria é a única realidade no mundo, responsável por explicar cada evento no universo como sendo resultado das condições e atividades da matéria, e que assim nega a existência de Deus e da alma. É diametralmente oposto ao Espiritualismo e o Idealismo, os quais, e no que tange a isso eles são unilaterais e exclusivos, declaram que cada coisa no mundo é espiritual, e que o mundo e até a matéria são em si concepções ou ideias no campo do pensamento”. Então, de acordo com esse enfoque, o aniquilacionismo materialista seria uma forma de ateísmo, mesmo que seus defensores não se apercebam disso. De fato, eles costumam se apropriar de determinadas informações científicas, que explicam o funcionamento do corpo humano, e fazem delas o lastro racional para justificar a crença a que se apegam. Note a seguir um exemplo: 19 “Quando o coração cessa de pulsar, o sangue cessa de circular a nutrição e o oxigênio (proveniente da respiração) para as células do corpo. Todavia, as células não perecem de imediato. É por isso que é possível reavivar algumas pessoas cuja respiração e batimentos cardíacos tenham cessado. A morte absoluta advém com o desaparecimento da força de vida, ou espírito de vida, das células corpóreas. — Sal. 104:29”. – Despertai!, 08/09/80, p. 10, revista publicada pelas Testemunhas de Jeová. O Salmo mencionado no final da citação acima fala a respeito dos seres que vivem na Terra, inclusive as criaturas aquáticas, que se alimentam do que o planeta produz e depois morrem. O versículo indicado e o que vem depois dizem o seguinte: “Se escondes a tua face, ficam perturbados. Se lhes tiras o espírito, expiram e retornam ao seu pó. Se envias teu espírito, são criados; e fazes nova a face do solo”. – Salmo 104:29, 30. Como se percebe, os autores da “Despertai!” atribuíram ao espírito mencionado no texto uma concepção materialista, como se ele fosse uma referência à “força de vida” presente nas células corpóreas. Mas esta é uma conclusão não presente nos versículos. O que se pode notar neles é algo de natureza espiritual, pois mencionam um espírito que é tirado e outro que é enviado. Definitivamente esta não é uma linguagem materialista. Note outra afirmação relacionada ao materialismo que aparece na mesma revista: “Coerentemente, a Bíblia fala da morte como sendo o oposto da vida, isto é, a inexistência em contraste com a existência”. – Despertai!, 08/06/94, p. 10. Essa é outra definição não presente na Palavra de Deus. Em nenhum lugar da Bíblia é dito que a morte significa a própria inexistência. Os versículos que são utilizados para tentar justificar esse conceito não presente no texto sagrado são apenas declarações tiradas do seu contexto, que são lidas num ambiente distante do cenário global das Escrituras (algumas delas serão aqui analisadas posteriormente). Pelo contrário, em muitas passagens a morte é retratada como a continuidade da existência da pessoa, não sua aniquilação imediata. Por exemplo, o apóstolo Paulo disse: “Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9. “Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém. O conceito da inexistência após a morte é puramente materialista e não é compatível com o pensamento cristão, conforme demonstram os dois versículos supracitados. É por isso que muitos cientistas são ateus, porque para eles a pessoa é consequência apenas dos sistemas biológicos naturais. E uma vez que o corpo morre e desaparece a 20 pessoa deixa de existir para sempre. Conciliar essa ideia com a Bíblia é algo sem precedentes na história do Cristianismo, e somente nos últimos séculos surgiram tentativas nesse sentido, especialmente depois do movimento chamado Iluminismo e mais fortemente no século 19, quando surgiram os adventistas e russelitas. Outro fator importante é que durante milênios não houve no mundo antigo uma crença religiosa de que a morte resulta na inexistência da pessoa. Essa ideia surgiu num momento tardio e limitada a determinados círculos de pensadores. Sobre isso, a Enciclopédia Britânica diz: “Não obstante a horrível evidência da decomposição física causada pela morte, tem persistido a crença de que algo da pessoa individual sobrevive à tal experiência. Em contraste, a ideia da extinção pessoal devido à morte é um conceito sofisticado que era desconhecido até o 6º século antes de Cristo, quando apareceu no pensamento metafísico do Budismo indiano; ele não encontrou expressão no antigo Mediterrâneo antes de sua exposição pelo filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.)”. – Enciclopédia Britânica (2015), versão on line, verbete death rite. Esta é outra evidência de que a ideia de aniquilação imediata da pessoa após a morte do corpo não surgiu na Bíblia. Tal conceito foi uma inovação trazida por pensadores pagãos e que ganhou alguma projeção no mundo grego a partir do surgimento dos epicureus. Esse fato difere completamente do que sabemos sobre os antigos hebreus e os primeiros cristãos, no que diz respeito à crença que eles tinham sobre a morte. Os aniquilacionistas cometem um grandíssimo equívoco ao concluírem que o antigo povo de Deus tinha mentalidade materialista. Retomaremos este assunto em capítulos posteriores, para esclarecer melhor esse ponto. Mas o que dizer dos chamados Pais da Igreja, que seriam genuínos representantes do Cristianismo em sua fase inicial? O autor do MB diz em sua nota que eles supostamente apoiariam o ponto de vista que sustenta. Mas será isto verdade? Não mesmo! O que ele apresentou em apoio a tal afirmação é ainda pior do que aquilo que foi feito com os escritos de Lutero. Até o final deste livro veremos isso com detalhes. Por enquanto, leia apenas o que um desses cristãos antigos escreveu e compare com os três textos bíblicos citados logo em seguida: “A carne odeia a alma, e guerreia contra ela... A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em [um mundo] corruptível, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus”. – Carta a Diogneto, c. 120 d.C. “Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11. “É justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto estou nesta tenda terrena, sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . . Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, BJ. 21 “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:28. “Dois homens conversavam com ele, sendo eles Moisés e Elias” Para Deus todos estes vivem Mas, que os mortos são levantados, até mesmo Moisés expôs, no relato sobre o espinheiro, quando ele chama Jeová ‘o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’. Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem. Lucas 20:37, 38. E isto deve ser cuidadosamente percebido, pois é verdade divina que Abraão está vivendo, servindo a Deus e reinando com Ele. Martinho Lutero, LW 5:74. Conforme se nota, Lutero não tinha nenhuma dificuldade de compreender as palavras de Jesus, quando disse que Jeová é Deus apenas de vivos, não de mortos. E se Ele continua sendo o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó significa então que eles estão vivos em outro domínio. Diferentemente de Lutero, o autor do MB não entende isso. Note a seguir o que ele disse: 22 Mesmo entre os humanos vivos, esse tipo de colocação é usada sem problemas, e nenhuma pessoa normal tiraria uma conclusão diferente da pretendida. Quando uma pessoa falece, outra pessoa que a queria muito bem pode dizer: 'Para mim ela está viva' ou 'continua viva'. Todos entendem que isso é do ponto de vista dela, e não que aquela pessoa está viva efetivamente. Inversamente, uma pessoa pode causar um grande mal a outra, ao ponto de a pessoa magoada dizer: 'Para mim esse indivíduo morreu' ou 'está morto'. E, mais uma vez, todos entendem que isso é uma questão de ponto de vista de quem falou isso. Não é que aquela pessoa causadora do mal tenha morrido efetivamente. O que os humanos podem fazer é se recordar parcialmente das pessoas que conheceram na vida, e a quem queriam bem, e nada mais do que isso. Deus, por outro lado, não só tem a capacidade de se recordar com perfeição dos seus servos fiéis (a quem Ele muito estima) como pode também restaurar-lhes a vida. A resposta de Jesus foi para defender o ensino da ressurreição dos mortos; nada se falou sobre “imortalidade da alma”, a palavra "alma" não foi sequer mencionada, nem a mínima sugestão foi dada no sentido de que os patriarcas estavam vivos. (Artigo “Textos 'Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas'?”) Bem, o texto bíblico citado pode não ser suficiente para convencer os aniquilacionistas, mas do jeito que está deveria pelo menos ser adequado para dar “uma mínima sugestão” de que os patriarcas continuam vivos. Não acha? Mesmo assim, tal indício foi rapidamente desprezado na conclusão do trecho citado, como se o versículo não apontasse para o sentido rejeitado pelo autor do MB. O livro de Hebreus também deixa subentendido o mesmo conceito de que os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó estão vivos, conforme será analisado no próximo capítulo. A ressurreição de acordo com o aniquilacionismo “cristão” A propósito, você sabe como será a ressurreição dos mortos de acordo com os aniquilacionistas? É mais ou menos assim: 1) Deus vai criar um novo corpo com mente completamente vazia. 2) Em seguida, implantará nessa mente todas as lembranças que o falecido tinha até o momento da morte, incluindo também os traços de personalidade. 3) Fará então o corpo acordar e o ressuscitado terá certeza que é a pessoa que outrora viveu. 23 Mas espere um pouco. Apenas como suposição, o que aconteceria se Deus resolvesse executar esse processo antes mesmo da pessoa original morrer? Imagine que alguém vai dormir e no quarto ao lado Deus faz o que foi descrito acima. O resultado seria que pela manhã a pessoa original acordaria e seria surpreendida com uma cópia perfeita de si mesma, não é mesmo? Como teriam a mesma personalidade e as mesmas lembranças, ambas reivindicariam o lugar que pertence somente a uma delas. O nome disto é paradoxo. Embora talvez seja mais do que mereçamos, será mesmo que é assim que Deus quer que vivamos para sempre? Por outro lado, aceitando-se aquilo que o Cristianismo histórico vem ensinando nos últimos dois milênios sobre a alma, o paradoxo acima desaparece e aquele texto de Mateus 10:28 passa a ser facilmente compreendido, sem ginástica mental: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. Sim, o corpo desaparece, mas a alma subsiste pelo tempo que Deus quiser. “E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Eu o verei com os meus próprios olhos; eu mesmo, e não outro!”. – Jó 19:26, 27, NVI. “Aquele que crê em mim, mesmo que morra, viverá*; e todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais. Crês nisto?”. – João 11: 25, 26, TEB. * A Tradução do Novo Mundo de 1986 acrescenta, entre colchetes, as palavras “outra vez” depois do verbo “viverá”, obviamente para ficar mais de acordo com o conceito aniquilacionista. Diz ela: “Quem exercer fé em mim, ainda que morra, viverá [outra vez]; e todo aquele que vive e exerce fé em mim nunca jamais morrerá. Crês isso?”. A edição de 2015 consolidou essa releitura aniquilacionista, traduzindo o versículo assim: “Quem exercer fé em mim, ainda que morra, voltará a viver”. Uma vez escrevi um artigo onde mencionei um determinado filme que ajuda a visualizar “na prática” o tipo de ressurreição defendido pelos materialistas. (http://adelmomedeiros.com/aniquilacionismo.htm). Mas, ao invés de induzir à necessária reflexão, esse artigo fez o autor do MB intensificar sua agressividade normalmente dispensada ao que escrevo. Ele disse na nota 22 de sua “refutação”: É outro exemplo de como o desejo de impor a teoria da “imortalidade da alma” como algo “baseado na Bíblia” obriga seus defensores a se saírem com esse tipo de “racionalização”. Comparar a ressurreição com uma mera “transferência de endereço” é pior do que comparar um palácio com um casebre. (Embora a semelhança neste caso não vá além do fato de ambos terem paredes e uma porta, pelo menos existe alguma semelhança.) É extraordinário que se possa sequer conceber que Jesus consideraria uma perversão desse nível como uma “boa aplicação” das palavras dele! Outro “argumento” dessa mesma categoria é tentar estabelecer similaridade entre a ressurreição e o procedimento da “clonagem”. Embora o desenvolvimento da clonagem genética tenha ocasionado muita euforia popular (e até mesmo entre a comunidade científica) ela se restringe a isso: manipulação de material genético. A “clonagem de pessoas” e, mais ainda, a 24 possibilidade de uma pessoa coexistir com seu “clone” – a mesma pessoa em corpos diferentes – são ideias bem adequadas para serem exploradas em filmes de ficção científica, cujo único objetivo é o entretenimento popular, dificilmente algo para uma pessoa normal levar a sério. Imaginar – e publicar – que a ressurreição dos mortos bíblica poderia ter algum paralelo com isso, por mínimo que seja, equivale a uma falta de respeito para com esta provisão de Deus ou, na melhor das hipóteses, é uma demonstração de falta de entendimento do conceito de “pessoa” (“alma”) que é apresentado nas Escrituras. (Artigo “Textos 'Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas'?”, negritos acrescentados) Perceba a poderosa influência que tem uma formação religiosa aniquilacionista na mente de um cristão. Eu perdi a conta de quantos termos pejorativos e insinuações de julgamento o autor do MB utilizou para se referir ao que escrevi (e também ao mencionar a maneira que a maioria dos cristãos entende o assunto). O trecho acima é apenas um reflexo dessa maneira rude e inflexível de pensar, que depõe contra seu próprio autor. Ela lembra o tipo de discurso encontrado nas publicações das Testemunhas de Jeová, que lança todo tipo de acusação contra os demais cristãos, como se estes não tivessem sido os verdadeiros depositários do Livro que hoje os aniquilacionistas tentam “reescrever” como bem querem. A impressão que eu tenho é que essa reação do autor do MB nada mais é que uma defesa mental automática, para proteger um conceito que muito preza. Esse comportamento é muito comum naqueles que veem suas crenças religiosas sendo contestadas de maneira sólida e fundamentada. Crenças que, muitas vezes, são entendimentos peculiares que nunca foram recepcionados pelo Cristianismo histórico. Já vi Testemunhas de Jeová se comportarem dessa maneira, em diálogos que tentei manter com algumas delas, coisa que não faço mais hoje em dia, a não ser muito excepcionalmente. Outra conclusão distorcida a que chegou o autor do MB é dizer que eu não respeitei a Bíblia ao explicar de maneira mais clara a ressurreição em que ele acredita. Ele se esquece de que não é a Palavra de Deus que descreve tal “ressurreição”. São os aniquilacionistas! Veja abaixo alguns exemplos extraídos de livros e revistas publicados pelas Testemunhas de Jeová: “Acha difícil de acreditar na ideia duma ressurreição?…. não deve ser difícil para o Deus Todo-sábio reter na memória a impressão detalhada da personalidade e das características de cada humano individual que desejaria recriar. Ele fez isso, e ressuscitará tais mortos para viverem novamente”. – Existe um Deus que se importa?, p. 27. “Na ressurreição será reativado o padrão de vida da pessoa, o qual Deus retém na memória. Ela será restaurada…. tendo a mesma personalidade e recordações que tinha ao morrer”. – A Sentinela, 15/10/96, p. 6. 25 “[Deus] lhe proverá um corpo com as mesmas características de antes. A pessoa ressuscitada terá a mesma memória desenvolvida durante a sua vida e terá plena percepção desta memória”. – É Esta Vida Tudo o Que Há?, p. 171. “A ressurreição dos mortos, por isso, não tem nenhuma relação com o homem, é uma criação completamente nova de Deus. Entre a morte e a ressurreição, há uma lacuna; no melhor dos casos, a pessoa continua sua existência na memória* de Deus”. – A Sentinela, 01/06/77, p. 331. * Na Bíblia oficial das Testemunhas de Jeová, edição de 1986, em alguns textos do Novo Testamento vemos “túmulos memoriais” no lugar de “túmulos”. Essa tradução tem a ver com esse conceito de “ressurreição” que criaram. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 3, pp. 747-748. Então, fica evidente que para os aniquilacionistas a ressurreição consiste basicamente na transferência de informações da mente de Deus para o cérebro do novo corpo que será criado. Chamar a atenção para o paradoxo que seria gerado caso Deus fizesse isso antes da pessoa original morrer nada tem de desrespeitoso, até porque a Bíblia não descreve a ressurreição nesses termos. É apenas uma maneira de estimular o raciocínio do leitor. Portanto, não há o que se falar em “falta de respeito para com esta provisão de Deus”. Eu respeito a ressurreição bíblica tanto quanto qualquer outro cristão. O que deve ter acontecido é que, depois que leu o que escrevi, o autor do MB se deu conta que seu conceito sobre ressurreição tem uma séria implicação sobre a qual ele nunca tinha pensado. Mas ao invés de continuar refletindo sobre o assunto optou por denegrir o que leu. As “ilustrações” da sétima arte O filme que eu citei no meu referido artigo criticado pelo autor do MB retrata uma futura sociedade tecnológica que inventou uma maneira de proporcionar “vida eterna” para as pessoas, pela combinação de dois sistemas: um biológico e outro computacional. Através deles clones adultos são criados e no cérebro vazio deles são inseridas as lembranças de quem morreu, que foram previamente coletadas por um supercomputador. O problema é que eles resolvem fazer isso com uma pessoa que ainda não tinha morrido. Então, a “mesma” pessoa passa a viver em dois corpos diferentes, causando uma tremenda confusão na vida do protagonista. O autor do MB disse que um filme não pode ser usado como forma de visualizar o tipo de ressurreição em que ele acredita (compare com Hebreus 9:8, 9). Até afirmou que ‘uma pessoa normal não pode levar isso a sério’. Mas levando em consideração que o aniquilacionismo é um entendimento puramente materialista e não cristão, na acepção original do termo, o filme é perfeito para demonstrar o que de fato tal “ressurreição” significaria na prática. Ainda há outro caso que ilustra muito bem as implicações da concepção materialista, e que também já foi mostrado no cinema. É algo mais factível e que pode perfeitamente um dia virar realidade. Trata-se da inteligência artificial. No dia que o 26 homem conseguir construir um andróide cujo “cérebro” (eletrônico, positrônico ou semibiológico) possibilitar que ele tenha consciência de si próprio e o permita viver entre os humanos, as pessoas dirão que uma nova forma de vida foi criada. Porém uma vida sem alma, que pode até existir para sempre, mas que se for destruída por acidente ou intencionalmente jamais voltará à existência, a menos que se faça um back up prévio das informações do seu “cérebro” e as transfira para o de outro corpo funcional. No materialismo a criação do homem é algo semelhante a isso. Para quem não tiver a mesma visão radical do autor do MB e quiser refletir sobre esse outro aspecto, recomendo dois filmes: “Inteligência Artificial” e “O Homem Bicentenário”. Eles tratam dessa questão com bastante sensibilidade. Para pensar… “Aquele que crê em mim, mesmo que morra, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais. Crês nisto?”. – João 11: 25, 26, TEB. Visto que aqueles que ouviram as palavras acima de Jesus morreram todos, mesmo os que exerciam fé nele, quem seriam os vivos que jamais morreriam? Sobre a natureza do homem e o mundo invisível Os materialistas não aceitam a ideia de uma alma espiritual dentro do ser humano porque se baseiam apenas nos aspectos orgânicos relacionados ao encontro do espermatozóide com um óvulo. Considerando apenas esse enfoque biológico é assim mesmo. O que a ciência tem demonstrado nas últimas décadas é que seríamos apenas primatas mais evoluídos*, e nem tanto assim, se considerarmos a maldade humana. * Pesquisas indicam que a semelhança do DNA de um chimpanzé em relação ao DNA humano é de 98,7%. Logo, o que nos faria ser gente, de acordo com tal concepção, é apenas essa diferença de 1,3%. Até mesmo a Bíblia parece concordar com tal ponto de vista ao dizer que o homem “é comparável aos animais” (Salmo 49:12) e que “não há nenhuma superioridade do homem sobre o animal”, embora na sequência desta afirmação pergunte: “Quem é que conhece o espírito dos filhos da humanidade, se ele vai para cima; e o espírito do animal, se ele vai para baixo, para a terra?”. O que demonstra que, afinal, existe alguma diferença de natureza espiritual entre o homem e o animal. – Eclesiastes 3: 19-21. Então, para entender o que a Bíblia menciona sobre a constituição do homem é preciso primeiramente deixar a mente em sintonia com aspectos espirituais, conforme o princípio dos dois textos a seguir: “É o espírito que é vivificante; a carne não é de nenhum proveito. As declarações que eu vos tenho feito são espírito e são vida. Mas, há alguns de vós que não crêem”. – João 6:63, 64. 27 “O homem físico não aceita as coisas do espírito de Deus, porque para ele são tolice; e ele não pode chegar a conhecê-las, porque são examinadas espiritualmente. No entanto, o homem espiritual examina deveras todas as coisas”. – 1 Coríntios 2:14, 15. Fiar-se em aspectos carnais tende a conduzir ao ceticismo. Por isso grande parte dos cientistas que decifraram a biologia humana é composta de ateus. Para eles não existe uma realidade espiritual e Deus não é necessário para o funcionamento dos mecanismos biológicos. Além disso, os métodos científicos que eles criaram para desvendar os mistérios da vida física não são aplicáveis para comprovar a vida espiritual. Aceitar que esta existe é uma questão de fé, não de razão humana, conforme descrito na própria Bíblia: “A fé é a expectativa certa de coisas esperadas, a demonstração evidente de realidades, embora não observadas”. – Hebreus 11:1. Entretanto, isso não quer dizer que o mundo espiritual não funcione de acordo com certas leis e parâmetros possivelmente matemáticos. É claro que tanto a alma espiritual quanto o ambiente para onde ela vai seguem alguma ordem previsível criada por Deus. Só não sabemos como isso acontece, por enquanto. Um fator limitante que impede o cristão de compreender esse outro universo é que a Bíblia não explica nada sobre ele, pois não é o objetivo dela. Aliás, nem sobre o nosso ela esclarece muita coisa. Questões importantes formuladas por mentes pensantes ao longo da história não encontraram as respostas que procuravam na Bíblia. Isto porque ela é um livro completo apenas para mostrar ao ser humano o que é necessário para a salvação dele, ou seja, como alcançar a vida feliz e sem fim prometida por Deus. Já em outros assuntos ela é parcial ou completamente omissa.* * Certa vez, ao explicarem o suposto motivo de não haver seres inteligentes em outros planetas, as Testemunhas de Jeová disseram que se eles existissem realmente estariam vivendo em paraísos terrestres onde não houve rebelião contra Deus. Neste caso, não teria sido necessário estigmatizar a humanidade inteira com o pecado de Adão e Eva, pois bastaria chamar algumas pessoas desses mundos habitados para testemunharem a favor de Deus e tudo estaria resolvido. Essa “explicação” exemplifica muito bem que é uma tarefa inútil procurar na Bíblia explicações para assuntos sobre os quais ela não aborda. – Despertai! 08/04/90, p. 10. Embora o objetivo da ciência seja explicar o mundo físico, isto não significa que ela não tem serventia para assuntos espirituais. Se prestarmos atenção ela também terá utilidade para fortalecer a fé das pessoas em Deus. Há situações do nosso universo material que podem nos dar uma ideia daquele espiritual. Naturalmente não são as explicações bíblicas que gostaríamos de ver, mas são informações bem interessantes. Quando estiver parado em uma rua com rede aérea de distribuição elétrica, olhe para cima e observe os cabos de energia. Eles são apenas condutores feitos de cobre ou alguma liga metálica. Ou seja, são simplesmente pedaços de metal. No entanto, dentro deles existe algo invisível aos olhos humanos, mas que realmente existe. Para quem tiver alguma dúvida basta tocar neles. Mas o resultado poderá ser fatal e o 28 incrédulo vir a óbito. Felizmente hoje em dia ninguém precisa fazer esse teste porque o poder da eletricidade já é bem conhecido pelas pessoas em geral. No que diz respeito à existência do homem, há também alguns detalhes descobertos pelos cientistas que quase nos fazem fitar frente a frente o que é espiritual. Você sabia que somos formados por espaços vazios? Se fosse possível reduzir um objeto para o tamanho de um elétron ou menos, mantendo a sua densidade original, ao soltá-lo na mão de uma pessoa ele cairia no chão, passando por entre os referidos espaços.* O que chamamos de corpo é, na realidade, bilhões de minúsculas partículas flutuando, extremamente próximas umas das outras devido a uma força misteriosa que as mantém assim. * Nessa ilustração não se levou em consideração eventuais perturbações físicas que o objeto estranho causaria nas órbitas da estrutura atômica por onde passasse. As próprias células formadas pelas mencionadas partículas possuem eletricidade dentro delas, da ordem de micro-volts ou menos, especialmente as células neuronais e as do sistema nervoso central. É por isso que um choque elétrico causa perturbação no nosso corpo. Qualquer ato que executemos dispara impulsos elétricos dentro do cérebro, e o nosso corpo inteiro trabalha orquestrado por tais forças. De modo que tudo isso ilustra que, na verdade, não somos apenas matéria. Somos também energia imaterial! Tal realidade demonstra que não é absurdo pensar que Deus inseriu uma natureza espiritual dentro de nosso corpo físico. O caso da transferência de Jesus do céu para o ventre de Maria atesta isso. Outro exemplo são os anjos que se materializaram na época de Noé e mantiveram relações sexuais com mulheres que tomaram para si. Como foi possível “falsos” humanos conseguirem produzir espermatozóides verdadeiros para fecundar óvulos reais? Não se sabe. Mas apenas porque não sabemos deveríamos duvidar que isso aconteceu? Portanto, a maneira que um ser humano é gerado não é em si evidência contrária à existência de uma alma dentro de nós. Até porque é a Bíblia que AFIRMA tal fato sem nenhuma margem para outro entendimento, ao dizer em muitos textos que o homem tem alma e espírito, conforme será comentado detalhadamente neste livro. 29 (Página em branco) 30 Capítulo 3 SOBRE A TRADUÇÃO CORRETA DE HEBREUS 11:16 Mas agora desejam uma pátria melhor, isto é, a celestial. Por isso, Deus não se envergonha de ser chamado seu Deus; pois ele lhes preparou uma cidade. Hebreus 11:16, Versão de Lutero. As palavras acima se referem ao anseio dos patriarcas hebreus de serem acolhidos no céu. Eles haviam abandonado o país onde viviam para habitar em tendas nas terras onde seria a futura nação de Israel, composta por seus descendentes. Nessa região surgiu a cidade de Jerusalém e foi construído o templo judaico. Mas os patriarcas não viveram para vê-lo. Eles morreram muitos séculos antes do apóstolo Paulo escrever o que está acima transcrito. Sendo assim, por que o versículo usa o verbo no presente, dizendo “eles agora desejam”? Estaria a tradução de Martinho Lutero errada? Antes de responder, leia o contexto que culminou nessa afirmação de Paulo: “Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu, saindo para um lugar que estava destinado a receber em herança; e ele saiu, embora não soubesse para onde ia. Pela fé residia como forasteiro na terra da promessa, como em terra estrangeira, e morava em tendas, com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesmíssima promessa.... Todos estes morreram em fé, embora não recebessem o cumprimento das promessas, mas viramnas de longe e acolheram-nas, e declararam publicamente que eram estranhos e residentes temporários no país. Pois, os que dizem tais coisas dão evidência de que buscam seriamente um lugar para si próprios. Contudo, se deveras se tivessem lembrado do lugar de que tinham saído, teriam tido a oportunidade de voltar. Mas agora procuram alcançar um lugar melhor, isto é, um pertencente ao céu. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado seu Deus, porque aprontou para eles uma cidade”. – Hebreus 11: 8, 9, 13-16. A conclusão do texto está em perfeito acordo com o que Jesus disse, de que Deus não é Deus de mortos, mas de viventes. (Lucas 20:37, 38) E se Ele é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó significa então que eles continuam vivos, espiritualmente falando. Por isso, o tempo do verbo pode ser usado corretamente no presente. E tem mais. Eles acolherão no céu os que forem contados dignos de também irem para lá, conforme Jesus garantiu: “Mas, eu vos digo que muitos virão das regiões orientais e das regiões ocidentais e se recostarão à mesa junto com Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus”. – Mateus 8:11. Sobre a tradução supracitada de Hebreus 11:16, veja o que disse o autor do MB: QUESTÃO 1: É verdade que “o tempo do verbo [do versículo 16] muda para o presente quando se refere aos anseios daqueles patriarcas, como se eles ainda estivessem vivos”? 31 De modo algum. Esta conclusão – equivocada do ponto de vista gramatical – é decorrente de pesquisa inadequada. Foram citadas – de maneira seletiva – apenas duas versões bíblicas (Vozes e Tradução do Novo Mundo) na qual o verbo “que se refere aos anseios daqueles patriarcas” parece estar no presente. Seguem-se citações de diversas versões bíblicas nas quais a fraseologia usada pelos tradutores apresenta com mais clareza o tempo do verbo em questão: .... (Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”) O autor do MB citou então sete versões que usam o verbo no passado no versículo 16, a exemplo da tradução abaixo: “Se eles estivessem pensando que essa pátria era aquela de onde tinham saído, teriam a possibilidade de voltar para lá. Mas não; eles aspiravam por uma pátria melhor, isto é, a pátria celeste”. – Edição Pastoral. Levando em consideração o que apresentei na minha defesa inicial publicada em meu site, é realmente incrível como alguém pode se sentir tão seguro para afirmar que eu teria feito uma “pesquisa inadequada” e usado seletivamente duas traduções erradas. Naquela ocasião eu demonstrei que no texto grego do Novo Testamento o verbo realmente está no presente, e não no passado. Veja o que eu havia dito, após citar uma tradução da Bíblia: “Mas se eles ficassem pensando na terra de onde vieram, teriam tido oportunidade para retornar. Mas agora eles desejam uma pátria melhor, a celestial. Por isso, Deus não se envergonha de ser chamado Deus deles, e ele preparou uma cidade para eles”. – Hebreus 11:15, 16, New American Bible. Ao lermos o capítulo inteiro, observaremos que Paulo vinha se referindo a acontecimentos de outros tempos, usando verbos no passado. Porém, no destaque em negrito, ele muda abruptamente o verbo para o presente a fim de concordar com a palavra “agora”. Isto indica que Abraão, Isaque e Jacó estavam vivos no momento da escrita de Paulo. Alguns tradutores omitem a palavra “agora” e mudam o verbo para o pretérito (“desejavam”). Talvez façam isto porque estranham a mudança repentina no discurso, e acham que assim estariam “corrigindo” este ponto do relato de Paulo, que vinha se referindo a eventos do passado e não do presente. No entanto, no grego original realmente está conforme a tradução acima: “Mas agora uma [pátria] melhor manifestam estar procurando”. – Concordância Fiel do Novo Testamento, Grego-Português, vol. 1, 1994, p. 632; The Kingdom Interlinear of the Greek Scriptures, 1985, Watch Tower Society. 32 O verbo jamais poderia estar no passado, pois o que se afirma está precedido pelo advérbio “agora” ou “atualmente”.* Então, Paulo estava falando do anseio das pessoas mencionadas no momento da escrita do texto. Por isso, os tradutores que mudam o tempo do verbo para o passado são obrigados a omitir o advérbio precedente, caso contrário teriam que traduzir: “Mas atualmente eles desejavam uma pátria melhor”. * De acordo com dicionário do Novo Testamento Grego de Kurt Aland, Bruce Metzger e outros, o advérbio “agora” também pode ser traduzido por “atualmente” ou por “tempo presente”. A edição de 2015 da Tradução do Novo Mundo excluiu esse advérbio, mas manteve o verbo no presente. Sobre o tempo do verbo nesse versículo, note o que diz a versão on line do Robertson's Word Pictures of the New Testament, disponível no site BibleStudyTools: “Eles desejam (ορεγονται). Presente do indicativo médio de ορεγο, antiga palavra para ‘se esticar por algo’, ‘ansiar por algo’, como em 1 Timóteo 3:1”. O texto mencionado por Robertson da carta a Timóteo, que utiliza o mesmo verbo no tempo presente, diz: “Digna de confiança é esta palavra: se alguém aspira ao episcopado, deseja uma boa tarefa”. – 1 Timóteo 3:1, TEB. Portanto, ao contrário do que afirma o autor do MB, está claro que a pesquisa que fiz foi adequada e corrobora o que eu disse. OBSERVAÇÃO: O meu texto sobre Hebreus 11:16 que o autor do MB citou para contestar não foi aquele1 que justificou sua primeira crítica e nem a minha defesa inicial.2 Foi o artigo “O aniquilacionismo e a ressurreição dos mortos”3, que não contém todos os detalhes considerados na defesa que publiquei. Por isso, ao abordar somente o meu artigo menor, certamente ficou mais fácil o autor o MB evitar de comentar o que eu apresentei na abordagem mais completa. 1 http://www.adelmomedeiros.com/refutandooaniquilacionismo.htm 2 http://www.adelmomedeiros.com/defesadafe.htm 3 http://www.adelmomedeiros.com/problemasaniquilacionismo.htm O autor do MB ainda toca em outro detalhe do texto de Hebreus: QUESTÃO 2: É verdade que o versículo 14 ‘reforça o entendimento’ de que os patriarcas estão vivos (ou pelo menos estavam no momento em que Paulo escreveu a carta aos Hebreus)? 33 De fato, em muitas versões os verbos deste versículo foram colocados no presente. A razão, porém, é que o versículo é realmente um "breve comentário explicativo". Este versículo fala sobre um modo de se expressar que se aplica a qualquer pessoa viva na situação daqueles patriarcas – qualquer que seja a época em que essa pessoa esteja vivendo. O versículo não se aplica apenas aos patriarcas. (Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”) Ele não compreendeu o que eu destaquei. Mas a conclusão a que chegou sobre o versículo 14 está correta, com uma ressalva. No texto grego os verbos deste versículo realmente estão no presente (não foi porque os tradutores quiseram), e sua fraseologia permite entender que ele pode se referir a qualquer pessoa com atitude similar à dos antigos patriarcas. Por essa razão, se todos os tradutores vertessem o versículo 14 de maneira literal, os verbos estariam SEMPRE no presente. Mas, como muitas vezes acontece, eles se sentem livres para mudar o tempo verbal e fazer o versículo 14 se referir apenas aos patriarcas, e não a qualquer pessoa de qualquer época. Mas o ponto focal não é o versículo 14, é o 16, onde o verbo também está no presente, porém associado apenas aos patriarcas antes da época do apóstolo Paulo. O que eu, na verdade, quis destacar sobre o versículo 14 é que ele, por ser um aposto explicativo, não prejudica aquilo que é dito no versículo 16 e que este realmente se refere ao anseio dos patriarcas no momento da escrita da carta, e não a qualquer servo de Deus que demonstre o mesmo desejo, isto é, o de alcançar a pátria celestial. A seguir o texto, deixando entre colchetes azuis o referido aposto: “8 Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu, SAINDO para um lugar que estava destinado a receber em herança; e ele saiu, embora não soubesse para onde ia. 9 Pela fé residia como forasteiro na terra da promessa, como em terra estrangeira, e morava em tendas, com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesmíssima promessa.... 13 Todos estes morreram em fé, embora não recebessem o cumprimento das promessas, mas viram-nas de longe e acolheram-nas, e declararam publicamente que eram estranhos e residentes temporários no país. [14 Pois, os que dizem tais coisas dão evidência de que buscam seriamente um lugar para si próprios]. 15 Contudo, se deveras se tivessem lembrado do lugar de que TINHAM SAÍDO, teriam tido a oportunidade de voltar. 16 Mas agora procuram alcançar um lugar melhor, isto é, um pertencente ao céu. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado seu Deus, porque aprontou para eles uma cidade”. – Hebreus 11: 8, 9, 13-16. Se no texto grego o verbo do versículo 16 está no presente é descabido apresentar uma teoria propondo que ele apenas “parece estar no presente”. Ainda mais que a tradução acima transcrita, e que foi citada no artigo contestado, apresenta realmente o verbo no presente. Também pode ser visto, nas palavras destacadas em vermelho, que o apóstolo Paulo sabia muito bem usar os verbos no passado, quando se referia a histórias do passado. No entanto, além do aposto explicativo, quando chegou o momento dele falar de uma 34 situação do presente, no versículo 16, ele usou o verbo no presente. (“procuram alcançar”, “anseiam”, “desejam”, “aspiram” etc., conforme diversas traduções). Portanto, para uma melhor visualização, a citação pode ser reduzida da seguinte maneira, sem prejuízo ao sentido correto do texto: “Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu, saindo para um lugar que estava destinado a receber em herança; e ele saiu, embora não soubesse para onde ia. Pela fé residia como forasteiro na terra da promessa, como em terra estrangeira, e morava em tendas, com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesmíssima promessa.... Contudo, se deveras se tivessem lembrado do lugar de que tinham saído, teriam tido a oportunidade de voltar. Mas agora procuram alcançar um lugar melhor, isto é, um pertencente ao céu. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado seu Deus, porque aprontou para eles uma cidade”. – Hebreus 11: 8, 9, 15, 16, TNM, colchetes e sublinhado acrescentados. Lembra-se que Jesus disse que o Pai dele é Deus somente de vivos? Este é mais um detalhe presente em Hebreus 11:16 que confirma que Abraão, Isaque e Jacó estão sim espiritualmente vivos. Harmoniza-se também com outras palavras de Jesus, quando disse, por exemplo, que ‘todo aquele que vive e exerce fé nele nunca jamais morrerá’. Você acredita nisto? – Lucas 20:38; João 11:26; Hebreus 11:1. O autor do MB mistura o versículo 14 (“os que dizem tais coisas…”) com o versículo 16, que menciona aqueles homens antigos que não se importaram de deixar seu país para viverem em tendas nas terras “alheias”, mas que “agora [na época de Paulo] procuram alcançar um lugar melhor”. Ao fazer essa misturada, não sei se o autor do MB se confundiu ou apenas “costurou” uma maneira de tentar negar o que está dito no versículo 16. Observe a seguir (os colchetes em negrito foram acrescentados): O versículo [14] não se aplica apenas aos patriarcas. É por isso que quando os tradutores de certas versões tratam especificamente dos patriarcas, eles mudam o tempo do verbo para o pretérito imperfeito [o versículo que trata especificamente dos patriarcas é o 16, não o 14]. Isto é assim porque todos os tradutores bíblicos entenderam perfeitamente que os patriarcas só poderiam falar dessa maneira enquanto estavam vivos. [o versículo 16 não se refere ao que os patriarcas falavam quando estavam na Terra, mas ao forte anseio deles no momento da escrita de Paulo] Seguem-se alguns exemplos de versões que usaram esta redação no versículo 14, refletindo esse entendimento coerente [Daí ele cita três versões que usam o verbo no passado]: (Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”) Conforme visto anteriormente, as traduções que apresentam o verbo no passado são assim por decisão de seus tradutores, mas eles sabem que não é dessa maneira que está no grego. Mas preferem fazer esse “ajuste”. Embora essa alteração no versículo 14 35 não implique em um erro grave, ela não deveria ser feita. O mais recomendável seria deixar o texto conforme o original em grego. Fazer a mesma mudança no versículo 16 é ainda pior, pois impede o leitor de ver por si mesmo a verdade que ele contém. Felizmente, muitas versões não mudam o verbo para o passado, ao contrário do que deu a entender o autor do MB, quando disse que citei ‘de maneira seletiva apenas duas versões bíblicas’ que trazem o verbo no presente. Apresento a seguir mais exemplos: 1. “Mas, neste ponto do tempo, eles estão ansiando por um país melhor, isto é, um celestial”. – Common English Bible. 2. “Mas agora seu desejo é por um país melhor, quer dizer, por um no céu”. – The Bible in Basic English. 3. “Mas agora eles aguardam por uma melhor, isto é, uma celestial”. – Young’s Literal Version. 4. “Mas agora eles desejam um país melhor, isto é, um celestial”. – World English Bible. 5. “Mas agora eles buscam uma melhor, isto é, uma celestial”. – The Darby Translation. 6. “Mas agora eles desejam um país melhor, isto é, um celestial”. – Third Millenium Bible. 7. “Mas agora eles aspiram por uma terra melhor, isto é, uma celestial”. – Lexham English Bible. 8. “Mas agora eles desejam um [país] melhor, isto é, um celestial”. – The Webster Bible. 9. “Mas como acontece, eles desejam um país melhor, isto é, um celestial”. – Revised Standard Version. 10. “Mas agora eles desejam um país melhor, isto é, um celestial”. – King James Version. 11. “Mas agora eles desejam um melhor, isto é, um país celestial”. – New King James Version. 12. “Mas agora eles desejam a um país melhor, isto é, um celestial”. – 21st Century King James Version. 13. “Mas agora eles desejam um melhor, que quer dizer um celestial”. – Wycliffe Version. 14. “Mas agora eles desejam um país melhor, isto é, um celestial”. – Jubilee Bible 2000. 36 15. “Mas agora eles aspiram uma terra melhor - uma celestial”. – Holman Christian Standard Bible. 16. “Mas agora eles desejam um país melhor, isto é, um celestial”. – Hebrew Names Version. 17. “Mas agora eles desejam um melhor, que quer dizer, um país celestial”. – Douay-Rhiems. 18. “Mas agora eles desejam um [país] melhor, isto é, um celestial”. – American Standard Version. 19. “Agora eles desejam um país melhor, isto é, um celestial”. – BRG Bible. 20. “Mas agora eles desejam um melhor, que é um celestial”. – Geneva Bible (1599). 21. “Mas agora eles desejam uma terra natal melhor, uma celestial”. – The New American Bible. 22. “Mas agora eles desejam um melhor, isto é, um país celestial”. – Chronological Study Bible. 23. “Mas agora eles desejam uma melhor que quer dizer uma celestial”. – Tyndale Version. 24. “Mas assim como é, eles aspiram a uma terra natal melhor”. – Disciples’ Literal New Testament. 25. “Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial”. – Almeida Fiel aos Melhores Textos. 26. “Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial”. – Almeida Revista e Corrigida. 27. “Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial”. – Almeida Versão Revisada. 28. “Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, a celestial”. – Almeida Revista e Atualizada no Brasil. 29. “Agora, porém, desejam uma pátria melhor, isto é, a celestial”. – Almeida Edição Contemporânea. 30. “Mas, eles aspiram a uma pátria melhor, isto é, à pátria celeste”. – Comunidade Taizé. 31. “Mas eles aspiram a outra (pátria) melhor, isto é, à celestial”. – Vicente M. Zioni. 32. “Mas agora aspiram a outra melhor, isto é, à celestial”. – João José Pedreira de Castro. 37 33. “Aspiram, então, a uma pátria melhor, isto é, à pátria celeste”. – José Raimundo Vidigal. 34. “Mas agora desejam uma pátria melhor, isto é, a celeste”. – Álvaro Negromonte. 35. “Mas não: eles aspiram por uma pátria melhor, isto é, a celeste”. – Mensagem de Deus. 36. “Mas é uma melhor, isto é, a celeste que eles desejam”. – Matos Soares. 37. “Mas agora aspiram a outra melhor, isto é, à celestial”. – Jacob Penteado. 38. “Mas agora aspiram a outra melhor, isto é, à celestial”. – Antônio Pereira de Figueiredo. 39. “Eles aspiram, com efeito, a uma pátria melhor, isto é, a uma pátria celeste”. – Bíblia de Jerusalém. 40. “Pelo contrário, aspiram a uma melhor, isto é, a uma celeste”. – Bíblia do Peregrino. 41. “Mas, agora, eles desejam uma pátria melhor, isto é, a pátria celeste”. – CNBB. Pela fé, Abraão, Isaque e Jacó residiam em tendas na terra. – Heb. 11 38 Qual o motivo de tradutores mudarem o verbo para o passado? “Todos os tradutores bíblicos entenderam perfeitamente que os patriarcas só poderiam falar dessa maneira enquanto estavam vivos”. – Autor do MB, referindo-se a Hebreus 11:14. Conforme demonstrado nas 41 traduções citadas, a palavra “todos” na afirmação acima não corresponde à realidade. Mas será que esse foi o ponto de vista pelo menos dos tradutores que fizeram as versões citadas pelo autor do MB? Ele citou em apoio à sua conclusão quatro traduções da Bíblia que apresentam o verbo no passado (Nova Bíblia na Linguagem de Hoje, Nova Versão Internacional, Bíblia Viva e Ave-Maria). Estando o verbo no passado, será mesmo uma evidência que os tradutores dessas Bíblias entenderam “perfeitamente” que os patriarcas só poderiam ansiar alguma coisa quando estavam vivos (na Terra)? Não, este não pode ter sido o motivo deles terem alterado o tempo do verbo, porque todos esses tradutores acreditam que aqueles patriarcas continuam vivos, já que eles abraçam a crença de que a alma sobrevive à morte do corpo físico. Isto fica evidente na maneira que traduziram Lucas 23:43, que menciona a promessa de Jesus ao malfeitor arrependido na cruz: 1. “Jesus respondeu: Eu afirmo a você que isto é verdade: hoje você estará comigo no paraíso”. – Nova Bíblia na Linguagem de Hoje. 2. “Jesus lhe respondeu: ‘Eu lhe garanto: Hoje você estará comigo no paraíso”. – Nova Versão Internacional. 3. “E Jesus respondeu: ‘Hoje você estará comigo no Paraíso. Esta é uma promessa”. – A Bíblia Viva. 4. “Jesus respondeu-lhe: Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”. – Bíblia Ave-Maria. As opções de tradução que essas mesmas quatro Bíblias apresentam em outros versículos reforçam esse ponto: 1. “Os mortos tremem de medo nas águas debaixo da terra”. – Jó 26:5, Nova Bíblia na Linguagem de Hoje. 2. “E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Eu o verei com os meus próprios olhos; eu mesmo, e não outro!”. – Jó 19:26, 27, Nova Versão Internacional. 3. “O justo tem esperança de uma vida melhor depois da morte”. – Provérbios 14:32, A Bíblia Viva. 4. “Vos aproximastes da montanha de Sião, da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celestial, das miríades de anjos, da assembléia festiva dos primeiros inscritos no livro dos céus, e de Deus, juiz universal, e das almas dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:22, 23, Ave-Maria. Note também o que diz uma nota ao pé de página sobre o capítulo 11 de Hebreus, que aparece em uma daquelas 41 Bíblias supracitadas: 39 “Mas se é de fé, que todos aqueles santos estão já gozando da vista clara e intuitiva de Deus, como pode dizer o Apóstolo que eles ainda não receberam a recompensa eterna? É porque ainda não a receberam perfeita ou consumadamente…. É certo que logo que Jesus Cristo subiu ao céu, subiram também com eles as almas dos santos Padres, que ele tirara do limbo, para gozarem eternamente da visão beatífica. Mas o complemento total, ou a consumação desta felicidade, está reservada para quando, depois da ressurreição, as almas dos santos já não [estarão] separadas dos corpos, mas os mesmos santos nas suas pessoas, gozarão para sempre da bem-aventurança prometida.... Esta é a interpretação comum dos Padres gregos com S. João Crisóstomo, comentando este lugar, e dos latinos com S. Agostinho”. – Nota de rodapé do capítulo 11 de Hebreus na tradução de Jacob Penteado; colchetes acrescentados. Os “santos padres” a que a nota se refere são os patriarcas do Antigo Testamento e o limbo é um setor do Hades (habitação dos mortos). Ela reflete o conceito comum na tradição cristã de que Abraão, Isaque e Jacó já estão no céu, em espírito. Então, o motivo mais provável de vários tradutores, mesmo “imortalistas”, mudarem o tempo do verbo para o passado é que isto elimina a aparente contradição com o conceito teológico em que creem, e não porque acham que os patriarcas não estejam vivos e tampouco porque o texto grego estaria gramaticalmente assim. Os tradutores não apenas acreditam que Abraão, Isaque e Jacó estão vivos, mas também que eles já estão no céu. Neste caso, eles não estariam mais ansiando pela pátria celeste. Eles fizeram isso no passado. Então, para os referidos tradutores a mudança no tempo verbal foi útil. Veja na última nota da página 383 outro exemplo em que isso acontece. Uma segunda possibilidade que explicaria o motivo dos tradutores mudarem o verbo para o pretérito é porque a narrativa de Paulo vinha se referindo sempre a eventos do passado, porém, quando chega o momento de mencionar o anseio dos patriarcas ele muda o discurso abruptamente para o presente. Não seguir o texto grego e deixar o verbo no passado seria uma maneira de corrigir essa “discrepância”. Portanto, até onde eu sei, não existe nenhuma evidência que sustente a opinião do autor do MB, não importando sob qual aspecto se analise o texto: bíblico, teológico, gramatical ou qualquer outro. Concluindo E, para finalizar este capítulo, observe o que disse o autor do MB: QUESTÃO 3: É verdade que “atualmente, talvez Abraão, Isaque e Jacó já tenham alcançado esse nobre objetivo [ou seja, residir na pátria celestial]”? De maneira alguma. Biblicamente falando, não há a menor possibilidade de isso já ter ocorrido. No momento em que se escreve isso, estes três patriarcas fiéis estão na mesma condição de todos os demais humanos que faleceram: Eles estão no Seol (sepultura, sepulcro, etc.) – inconscientes e inativos – aguardando sua ressurreição. (Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”, negrito acrescentado) 40 Diante do que foi apresentado até agora, o que você acha da afirmação que foi destacada em negrito? (“... não há a menor possibilidade de isso já ter ocorrido”). E se disséssemos que o apóstolo Paulo e outros cristãos antigos também já estão no céu, qual seria a reação do autor do MB? Bem, segundo os primeiros cristãos, não somente os patriarcas já estão no céu, mas também estão todos os apóstolos. Por exemplo, um cristão que nasceu quando os apóstolos ainda estavam vivos e foi discípulo do apóstolo João disse o seguinte: “Exorto-vos pois todos a obedecer e exercitar toda a paciência, a que vistes com vossos olhos não somente nos bem-aventurados Inácio, Rufo e Zózimo, mas também em outros dos vossos, e no próprio Paulo e nos demais apóstolos, persuadidos que não correram em vão, mas na fé e na justiça, e que já estão no lugar que lhes é devido, junto ao Senhor, com a qual padeceram”. – Policarpo de Esmirna (69-155 d.C.), Pol. 9:12.* * http://apologia7biblica.blogspot.com.br/2015/05/clemente-policarpo-e-inacio-vs-doutrina.html O texto acima de Policarpo será comentado no capítulo 9. 41 (Página em branco) 42 Capítulo 4 USO DE TRADUÇÕES PARA MOSTRAR O QUE A BÍBLIA “REALMENTE DIZ” Depois de citar algumas traduções da Bíblia que apresentam o verbo de Hebreus 11:16 no tempo passado, o escritor do Mentes Bereanas afirmou: Portanto, o verbo “que se refere aos anseios daqueles patriarcas” (o do versículo 16) não está no presente. Este verbo está no passado (mais especificamente no pretérito imperfeito). Os patriarcas em questão tinham esses “anseios” no passado, durante o período em que eles estavam vivos. …. (Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”) De fato, nas traduções apresentadas por ele o verbo está no pretérito. No entanto, conforme considerado no capítulo anterior, o Novo Testamento original em grego traz o verbo no presente. E o autor do MB sabe que essa mudança foi feita pelos tradutores que ele citou: …. quando os tradutores de certas versões tratam especificamente dos patriarcas, eles mudam o tempo do verbo para o pretérito imperfeito. Isto é assim porque todos os tradutores bíblicos entenderam perfeitamente que os patriarcas só poderiam falar dessa maneira enquanto estavam vivos. (Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”) Pode até existir algum tradutor que mude o tempo do verbo pela razão mencionada. Mas daí a dizer que “todos os tradutores” pensam isso é no mínimo uma afirmação arriscada, já que há muitos deles que não adotam esse procedimento, conforme ficou evidente no rol de traduções citadas no capítulo precedente. Mas, enfim, o que quero destacar aqui é que traduções bíblicas estão sendo usadas pelo autor do MB como autoridade, ao invés do texto em grego. O que é um risco ainda maior. E tal artifício vem sendo utilizado desde que ele começou a escrever sobre esses assuntos. Veja a seguir mais um exemplo. Conforme explicado no apêndice A3, na Bíblia Hebraica o Seol é retratado como o destino das almas dos que morrem, ao passo que o lugar para onde os corpos físicos vão é a sepultura. No entanto, há tradutores que se sentem à vontade para traduzir “Seol” por “sepultura” (mas nunca o contrário). Valendo-se disto, o autor do MB fez uso dessas traduções livres na intenção de mostrar que corpos físicos também ficam no Seol, e que almas também são postas na sepultura. Ele disse: Mas, por que as versões bíblicas apresentam toda essa variação no modo de traduzir estas palavras? Por uma razão bem simples: os tradutores encararam todas estas palavras como sinônimas do termo hebraico Seol (que corresponde ao termo grego Hades). 43 ….. Na realidade, se existe alguma “tendenciosidade” nessa questão das versões, ela se verifica, não no caso dos tradutores, e sim no caso dos defensores da imortalidade da alma…. Quando não podem apelar para alguma versão bíblica que esteja de acordo com seu “axioma” [almas vão para o Seol e corpos para a sepultura], eles apressam-se em apresentar suas explicações e definições particulares para o que está dito no texto bíblico (naturalmente, sem conseguir negar a associação). …. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”, colchetes em negrito acrescentados) Há tradutores que se acham na liberdade de alterar “seol” para “sepultura” porque os dois conceitos estão ligados entre si, e não pelo que o autor do MB disse. E em alguns casos, essa mudança também pode simplificar a vida do leitor que não conhece a palavra hebraica sheol. Além do mais, todos os tradutores usados como autoridades para “validar” a suposição do autor do MB sabem perfeitamente que essas duas palavras hebraicas não são sinônimas, e dificilmente algum deles acredita no aniquilacionismo. Veja abaixo um exemplo: “Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce à sepultura* nunca torna a subir”. – Jó 7: 9, João Ferreira de Almeida, De Acordo com os Melhores Textos. Veja que depois da palavra “sepultura” há um asterisco. Ele remete a uma nota ao pé de página da edição acima. Observe o que é dito na nota: “ * Heb., sheol, habitação das almas dos mortos”. Portanto, o tradutor verteu sheol por “sepultura”, porém esclareceu que no original a palavra é Seol e que este é o lugar para onde vai à alma de quem morre. Por isso, no versículo abaixo esse mesmo tradutor deixou conforme está no hebraico: “Pois não deixarás a minha alma no Seol, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”. – Salmo 16:10. Se fosse possível entrevistar todos os tradutores que foram utilizados pelo autor do MB, perguntando a eles o que eles entendem por “Seol”, pode estar certo que a esmagadora maioria daria informações semelhantes ao que se vê na nota de rodapé supracitada. E também dificilmente eles concordariam em ver suas traduções sendo usadas como “fiel da balança” nesse assunto, e recomendariam a análise do próprio texto hebraico. Esta é a atitude mais sábia, como está considerado no apêndice A3. 44 Mas para quem não sabe hebraico, basta consultar alguma Bíblia cujos tradutores não aderiram à prática de substituir “seol” por “sepultura” quando acham conveniente. Talvez a melhor tradução em português para fazer essa verificação seja a Tradução do Novo Mundo das Testemunhas de Jeová (edição de 1986)*, pois ela verte sempre sheol por “seol”. Considerando que as TJs são aniquilacionistas, isso não deixa de ser uma ironia, é verdade. * Isto não mais se aplica à edição recentemente lançada, chamada de “Tradução do Novo Mundo da Bíblia” (antes era “Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas”), pois ela é praticamente outra tradução e não segue mais o princípio antes utilizado de versão literal tanto quanto possível. A linguagem pouco natural da edição de 1986 foi substituída por uma mais próxima da realidade das pessoas. Por exemplo, no lugar de dizer “os iníquos” a TNM diz agora “os maus” ou “os perversos”. As palavras “Seol” e “Hades” também foram excluídas e agora se lê simplesmente “sepultura”. Algo semelhante aconteceu com a palavra “alma”, que não aparece mais na maioria dos textos e no lugar dela há termos que denotam vida ou os seres em si. Veja ainda algo interessante que o autor do Mentes Bereanas disse, quando abordou essa questão do Seol x sepultura: Como em todas as outras situações, o procedimento sábio – e humilde – é, em vez de usar toda sorte de artifícios para obrigar a Bíblia a dizer o que nós queremos, deixar que ela própria defina seus contornos. Foi dessa maneira que procederam competentes tradutores. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Desdobrando o que foi dito, temos: 1) É preciso sabedoria e humildade. 2) Não devemos usar de artifícios para fazer a Bíblia dizer o que queremos. 3) É necessário deixar que a própria Bíblia defina os seus contornos. 4) Os tradutores citados seguem os três pontos anteriores. [Os mesmos tradutores que nos informam que Sheol é a habitação das almas dos mortos]. Perfeito! Mas a pergunta é: está o escritor do MB agindo de acordo com o que está acima elencado?* Se você leu tudo até aqui, o que acha? Considere também o exemplo do tópico seguinte. * O autor do MB também se aproveitou de algumas peculiaridades bíblicas para afirmar que almas vão também para a sepultura. Mas a explicação dele é facilmente rebatida. Por favor, queira ler sobre isso no apêndice A3. A pontuação de Lucas 23:43 não é preferência de tradutor Na defesa que eu havia publicado no meu website, escrevi uma seção chamada “Qual é a tradução correta de Lucas 23:43?”, que está agora no apêndice A7 deste livro. O autor do MB não levou em consideração nada do que foi apresentado lá, preferindo não abordar esse ponto nos comentários que acrescentou posteriormente, depois que 45 leu a defesa que fiz do meu texto. Na mencionada seção, comentei sobre a promessa que Jesus fez ao malfeitor na cruz: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso”. – Centro Bíblico Católico. Este é um dos vários textos que deveriam lançar luz na mente dos aniquilacionistas, porém eles preferem ignorá-lo e optam por outro entendimento. Esta escolha leva as Testemunhas de Jeová, por exemplo, a alterar a pontuação do versículo em sua tradução oficial, deixando-o assim: “Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso”. – Tradução do Novo Mundo (TNM). Conforme o trecho a seguir, o autor do MB acha que Jesus ainda não cumpriu a promessa feita ao malfeitor. Neste caso, a TNM conteria a tradução correta do versículo: Nem Cristo nem o malfeitor foram para o “paraíso” naquela sexta-feira. Eles foram para o Hades, e permaneceram inativos. A alma de Cristo só saiu dessa condição 2 dias depois, no domingo, quando Deus o ressurgiu com um corpo espiritual. E a ressurreição do malfeitor que lhe fez esse pedido – que envolverá necessariamente o provimento dum novo corpo – ainda é futura no momento em que se escreve isso. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Mas como o versículo de Lucas está no texto grego? E o que dizem os especialistas? A seção que mencionei acima mostra que a TNM não está de acordo com o texto grego, e que não é mera questão de opção onde deve estar a pontuação. Como foi mencionado, o autor do MB costuma usar várias traduções da Bíblia para “validar” determinados entendimentos que ele tem. Será este o caso de Lucas 23:43? Não, não é. E o motivo é porque não existem traduções facilmente disponíveis que possam ser utilizadas para apoiar o ponto de vista do autor do MB. Afora a TNM*, não há versões da Bíblia que possam ser listadas para “provar” que a promessa de Jesus não seria cumprida no mesmo dia em que foi feita. * A Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB) também pontua de maneira diferente Lucas 23:43, porém não está claro se a intenção dos tradutores era dar o mesmo sentido que há na Tradução do Novo Mundo. Diz a TEB: “Em verdade eu te digo, hoje, estarás comigo no paraíso”. Ao que parece, foi realmente uma leitura ecumênica, que não tomou partido por nenhum dos dois lados dessa questão. Lembre-se que há milhares de traduções contemporâneas da Bíblia espalhadas pelo mundo. Provavelmente nenhuma delas apoia a tradução de Lucas 23:43 preferida pelo autor do MB. Levando em consideração que ele chamou os autores dessas Bíblias de “competentes tradutores”, na discussão sobre o Seol, por que agora esses mesmos especialistas estão sendo ignorados? 46 Para saber qual o artifício que os aniquilacionistas utilizam para rejeitar a tradução correta de Lucas 23:43 sugiro que leia o apêndice A7. E para outras considerações sobre esse tema consulte também o artigo abaixo: http://apologia7biblica.blogspot.com.br/2014/11/uma-breve-resposta-exegeticaao-artigo.html Para refletir… “Um dos malfeitores crucificados o insultava: ‘Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também!’ Mas o outro o repreendeu, dizendo: ‘Tu nem sequer tens o temor de Deus, tu que sofres a mesma pena! Para nós, é justo: nós recebemos o que nossos atos mereceram; mas ele não fez nada de mal’. E dizia: ‘Jesus, lembra-te de mim, quando vieres como rei’.”. – Lucas 23:39-42, TEB. Percebe-se que o malfeitor tinha em mente um momento futuro, quando Jesus poderia se lembrar dele e, quem sabe, ressuscitá-lo dentre os mortos. Talvez fosse esta a expectativa daquele homem, caso tenha tomado conhecimento que Jesus ressuscitara mortos em outras ocasiões. Visto que Jesus afirmou que passaria apenas três dias no Hades e que, numa época futura, voltaria para exercer seu reinado sobre a Terra, caso o bandido também soubesse dessas informações a maneira que ele escolheu para fazer o pedido faz todo sentido: “Lembra-te de mim, quando vieres como rei”. No entanto, para a surpresa daquele condenado, ele ouviu que não seria necessário esperar até Jesus vir na qualidade de rei. Naquele mesmo dia o malfeitor teria sua fé de última hora recompensada: “Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso”. – Lucas 23:43, Vozes. Portanto, a tradução acima é muito mais coerente com o acontecimento narrado do que aquela proposta pelos aniquilacionistas. 47 (Página em branco) 48 Capítulo 5 APROPRIAÇÃO INDEVIDA DA LINGUAGEM BÍBLICA Note abaixo a maneira de se expressar do autor do MB, sobre alguns dos assuntos comentados até agora: Nem Cristo nem o malfeitor foram para o “paraíso” naquela sexta-feira. Eles foram para o Hades... .... Só Deus, não os homens, pode eliminar uma pessoa de maneira irreversível, enviando essa pessoa (alma) morta para a Geena. ..... Nada – absolutamente nada – do que Jesus falou aqui contradisse o que as Escrituras Hebraicas sempre disseram sobre a condição dos que estão mortos no Hades. ..... À alma (pessoa) de Cristo se aplicou, não só o que diz esse texto, como tudo o que as Escrituras Hebraicas dizem sobre os mortos no Seol. Como todas as almas (pessoas) que estão neste domínio, ele ficou inativo e inconsciente. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”, negritos acrescentados) --..... No momento em que se escreve isso, estes três patriarcas fiéis estão na mesma condição de todos os demais humanos que faleceram: Eles estão no Seol (sepultura, sepulcro, etc.)* – inconscientes e inativos – aguardando sua ressurreição. (Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”, negrito e asterisco acrescentados) Perceba que a linguagem utilizada pelo autor do MB parece ser bem bíblica. Ele diz que mortos “estão no Seol” ou “foram para o Hades”, e que as almas “estão neste domínio”. Para alguém que conhece a Bíblia, e está por fora dessa discussão aqui publicada, ao ler tais declarações talvez não veja nenhum problema nelas, pois elas parecem todas corretas. No entanto, vem a grande surpresa... O autor do MB não acredita em nenhuma delas! * No hebraico a palavra Sheol nunca aparece no plural, indicando que é um lugar único compartilhado ao mesmo tempo por várias pessoas. No mundo há muitas sepulturas, mas só existe um Seol. Portanto, ele não é sinônimo de sepultura, conforme até mesmo um artigo publicado 49 recentemente no Mentes Bereanas confirma. Então, esse parêntesis fazendo alusão a sepulcros deveria ser retirado. Além do mais, os sepulcros dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó já desapareceram há muito tempo, de modo que talvez não haja mais nenhum traço dos seus corpos físicos, pois, depois de tantos milênios, já devem ter se decomposto completamente. No entanto, mesmo não havendo mais sepulturas, caso esses patriarcas não estejam no céu, pode-se dizer corretamente que eles estão no Seol. O que demonstra que Seol não é o mesmo que sepultura. Para o autor do MB, depois da morte, a pessoa desaparece completamente, e não sobra nenhuma alma que possa ir para outro domínio. De fato, para ele, um lugar no coração da Terra chamado Seol sequer existe! Ou seja, na forma o autor diz uma coisa, mas na essência acredita em outra. O que leva um cristão a agir dessa maneira? Que mecanismos tornam possível essa camuflagem? É sobre isto que trato a seguir. Alma / Seol / Hades Observe a maneira que a Bíblia retrata o Seol, e a conexão dele com a alma: “Quem dera que me escondesses no Seol”. – Jó 14:13. “Porque não deixarás a minha alma no Seol”. – Salmos 16:10. “O próprio Deus remirá a minha alma da mão do Seol”. – Salmos 49:15. “E livraste a minha alma do Seol, do seu lugar mais baixo”. – Salmos 86:13. “Que varão vigoroso vive que não verá a morte? Pode ele pôr a sua alma a salvo da mão do Seol?”. – Salmos 89:48. “[Deus disse:] Se cavarem até o Seol, de lá os tirará a minha própria mão; e se subirem aos céus, de lá os farei descer”. – Amós 9:2. “Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço”. – Isaías 14:15. Percebe-se que o Seol é descrito como um lugar nas profundezas da terra, onde a alma fica depois da morte. É por isso que Jesus disse que os homens podem matar o corpo, mas não podem matar a alma, pois esta desce para o Seol depois da morte do corpo físico. Disse também que quando ele próprio morresse ficaria no coração da terra (Seol), até ser ressuscitado. Como sabemos, Jesus não foi enterrado, mas teve o corpo depositado em um sepulcro, acima do nível do solo. Entretanto, a alma dele realmente esteve no centro da Terra*, nas profundezas do Seol. – Mateus 10:28; 12:40. * “Centro ou Meio de Algo. Visto que o coração literal é um órgão central do organismo, o termo ‘coração’ é às vezes aplicado ao centro ou meio de alguma coisa, como o ‘coração da terra’ (Mt 12:40), o ‘coração do mar’ (Êx 15:8; Jon 2:3), e o ‘coração da grande árvore’ (2Sa 18:14). Em Deuteronômio 4:11, a expressão ‘o meio do céu’ significa literalmente ‘o coração dos céus’.”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, enciclopédia bíblica das Testemunhas de Jeová, vol. 1, p. 556. Além do mais, se investigarmos as crenças dos judeus e cristãos antigos, entre os séculos II a.C. e o século II d.C., perceberemos que eles, em geral, acreditavam na existência literal de almas no Seol, ou Hades*, palavra grega correspondente a Seol. * O termo grego Hades é “aparentado” da palavra inglesa hidden, que significa “escondido”. Isto denota que o Hades é um lugar fora da vista dos homens, e só Deus enxerga o que acontece por lá. 50 Na verdade, conceitos que hoje causam repulsa nos aniquilacionistas, a exemplo de visões, espíritos, fantasmas, tormento dos ímpios no Hades etc. eram muito comuns na nação judaica durante o século I, e os escritores do Novo Testamento usaram a mesmíssima linguagem utilizada em tais crenças.* No entanto, eles NUNCA fizeram alguma ressalva para explicar à comunidade cristã que estavam usando termos “espiritualistas” com outro sentido, nem escreveram nada para combatê-los. Se tais escritores cristãos realmente discordassem do conceito predominante que os judeus tinham sobre o Hades, dificilmente se furtariam à obrigação de alertar os irmãos daquele tempo. É por isso que Jesus se sentiu muito à vontade para incluir em seu ensino o que disse abaixo: “Havia certo homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e seguia vivendo suntuosamente todos os dias. Mas havia um pedinte de nome Lázaro, cheio de feridas, que se recostava ao seu portão, desejando se alimentar das sobras que caíam da mesa do rico. Além disso, os cães vinham e lambiam suas feridas. Então aconteceu que o mendigo morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O homem rico também morreu e foi enterrado. E, estando em tormentos, no Hades, ele levantou os olhos e viu Abraão de longe, e Lázaro junto a ele”. – Lucas 16:19-23. Compare com Salmos 116:3. * Mais detalhes serão comentados no capítulo 18 (“Manuscritos judaicos pré-cristãos”). Logo, a única maneira de rejeitar o cenário apresentado pela Bíblia, e confirmado pelos registros históricos, é supor que os versículos bíblicos sobre alma no Seol / Hades são apenas alegorias com significados figurativos. É justamente isto o que fazem os aniquilacionistas. Apropriam-se da linguagem bíblica atribuindo a ela sentidos nunca antes concebidos pelos que criaram tal vocabulário, pois não há obras judaicas ou cristãs da antiguidade que sugiram essa “desespiritualização” de conceitos inerentemente espirituais. Note o que os aniquilacionistas dizem sobre a alma de Mateus 10:28 e sobre o Seol: “No entanto, ele [Jesus] admoestou: ‘Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo.’ Jesus deu o exemplo neste respeito. Suportou destemidamente a morte, em vez de transigir na sua lealdade Àquele que tem todo o poder, Jeová Deus. Sim, é Jeová quem não só pode destruir a ‘alma’ da pessoa (neste caso significando as perspectivas futuras dela como alma vivente), mas que pode até mesmo ressuscitar a pessoa para usufruir a vida eterna”. – A Sentinela, 01/08/87, p. 9. “Embora o Seol seja muitas vezes descrito como se fosse um local, seu uso no Antigo Testamento leva à conclusão de que ele se refere mais especificamente à condição humana após a morte. A localização dos mortos (pelo menos daqueles que foram enterrados) é a sepultura. Sua condição é o Seol”. – Artigo publicado no MB.* * www.mentesbereanas.org/seolnoat.html 51 Essa simbolização se torna necessária porque se os termos apresentados na Bíblia forem aceitos literalmente eles não se ajustam ao ponto de vista dos aniquilacionistas. O mesmo acontece com os demais versículos cujo vocabulário é usado por eles de maneira descontextualizada e anacrônica. Veja abaixo mais dois exemplos. O Tártaro para onde anjos rebeldes foram lançados Salvo outra indicação, a versão da Bíblia utilizada neste e no próximo tópico é a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). “Pois Deus não poupou os anjos culpados, mas os precipitou, entregou-os aos antros tenebrosos do Tártaro, guardando-os para o julgamento”. – 2 Pedro 2:4. Explicação dos aniquilacionistas: “O uso que Pedro faz do verbo tar‧ta‧ró‧o, ‘lançar no Tártaro’, não significa que ‘os anjos que pecaram’ tenham sido lançados no mitológico Tártaro pagão, mas que eles foram rebaixados pelo Deus Altíssimo.... a uma condição de mais profunda escuridão mental quanto aos luminosos propósitos de Deus.... Portanto, o Tártaro denota a condição mais inferior de rebaixamento desses anjos rebeldes”. – Apêndice 4D da Tradução do Novo Mundo com Referências e Notas (1986), p. 1515. “Enfatizamos, porém, que a palavra tartaroo é um verbo, e na verdade não denota um lugar, e sim uma ação, a saber, o processo de ser preso, contido, rebaixado, etc. A ideia de se ‘precipitar’ ou lançar alguém ‘para baixo’ (ao Seol [Hades], ou à Geena, por exemplo), tem de ser acrescentada ao grego original; ela não se encontra no texto bíblico.... Não há obrigatoriedade em entendermos que Deus prendeu literalmente tais anjos em algum lugar, seja nas ‘profundezas da Terra’ (como na mitologia antiga) ou em outro lugar específico. A queda dos anjos que pecaram foi duma condição de honra e dignidade (que eles usufruíam antes, como parte da família universal de Deus) para uma condição de desonra e condenação”. – Artigo “Os Anjos 'Lançados no Tártaro'”, publicado no MB. Ou seja, para os aniquilacionistas não existe nenhum Tártaro para o qual Deus poderia lançar anjos rebeldes. A menção do “Tártaro pagão” no apêndice da TNM serve para desestimular o leitor a considerar a possibilidade de um entendimento literal do versículo. Mesmo assim, não deixa de ser também um lembrete que os antigos leitores cristãos já sabiam que havia um conceito popular sobre um lugar espiritual chamado Tártaro, da mesma maneira que existia o Hades. Embora os cristãos rejeitassem a mitologia relacionada a eles, certamente eles não duvidaram do que Pedro falou. E, como sempre acontece, não houve qualquer ressalva da parte do escritor bíblico, alertando que ele estaria usando a expressão com um sentido diferente daquele que qualquer leitor do mundo greco-romano entenderia, ou seja, que o Tártaro é um lugar subterrâneo, próximo ao Hades. Além disso, a Bíblia apresenta sim o cenário de que pessoas espirituais podem ser precipitadas para uma região inferior. Afinal, se o Seol fica nas profundezas da Terra, 52 quando alguém tira a vida de uma pessoa em certo sentido sua alma é “lançada” no Seol (ou Hades). Além de Isaías 14:15, essa noção é apresentada também nos versículos abaixo, que mencionam o poder de Deus sobre a vida e sobre a morte: “O SENHOR faz morrer e faz viver, faz descer ao Sheol e de lá voltar”. – 1 Samuel 2:6. “Fiz tremer as nações com o estrondo de sua queda [a do Faraó], quando o fiz descer ao Sheol com os que descem à cova”. – Ezequiel 31:16, colchetes acrescentados. E, de acordo com a Bíblia, espíritos impuros também podem ser mandados para um lugar inferior, mediante o poder de Deus, conforme se vê abaixo: “Ao [Jesus] descer do barco, veio ao seu encontro, saindo dos túmulos, um homem possuído por um espírito impuro. Ele morava nos túmulos e ninguém podia prendê-lo, nem sequer com uma corrente.... Ele [Jesus] o interrogava: ‘Qual é o teu nome?’ Ele lhe respondeu: ‘Meu nome é Legião, pois somos numerosos’. E ele [o espírito impuro] lhe suplicava com insistência que não o expulsasse da região. Ora, havia ali, a passar pela montanha, uma grande vara de porcos. Os espíritos impuros suplicaram a Jesus, dizendo: ‘Manda-nos para os porcos, a fim de que entremos neles’. Ele permitiu e os espíritos impuros saíram, entraram nos porcos, e a vara precipitou-se do alto da escarpa, no mar; eram cerca de dois mil e se afogavam no mar”. – Marcos 5:2, 3, 9-13. Ao pedir que não fosse ‘expulso da região’, o espírito impuro, na realidade, tinha outra preocupação. Ao relatar o mesmo episódio, o evangelista Lucas narrou de outra maneira a súplica dessa legião de espíritos. Segundo Lucas, eles imploraram a Jesus “que não lhes ordenasse ir para o abismo”. Uma nota ao pé de página da New American Bible, referente a esse versículo, diz: “Abismo: o lugar dos mortos (Rom 10:7) ou a prisão de Satanás (Rev 20:3) ou a subterrânea ‘água de profundeza’ que simboliza o caos antes da ordem imposta pela criação (Gn 1:2)”. Isto está de acordo com o livro de Jó, onde lemos: “Os impotentes na morte continuam a tremer. Debaixo das águas, e os que residem nelas”. – Jó 26:5, TNM; Lucas 8:27-33. O mesmo cenário também é apresentado sobre os anjos que forem infiéis a Deus: “Houve então um combate no céu: Miguel e seus anjos combateram contra o dragão. Também o dragão combateu, junto com seus anjos, mas não conseguiu vencer: e não se encontrou mais lugar para eles no céu. Foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, aquele a quem chamam Diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. Ele foi precipitado à terra, seus anjos com ele”. – Apocalipse 12: 7-9. “Vi então um anjo que descia do céu. Tinha na mão a chave do abismo e uma pesada corrente. Apoderou-se do dragão, da antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e o acorrentou por mil anos. Precipitou-o no abismo, fechando-o e lacrando-o com um selo, para que não seduzisse mais as nações até que se completassem os mil anos. É necessário, depois disto, que ele seja solto por um pouco de tempo”. – Apocalipse 20:13. 53 E sobre os que Deus pune com a morte: “Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço”. – Isaías 14:15, TNM. “Eu te farei descer com os que estão na cova, ao povo de outrora, e te farei habitar a terra das profundezas”. – Ezequiel 26:20. “Sim, no juízo, Tiro e Sídon serão tratadas com o mesmo rigor do que vós. E tu, Cafarnaum, serás tu elevada ao céu? Tu descerás até a morada dos mortos”. – Lucas 10:14, 15. Na verdade, Pedro não mencionou apenas a punição daqueles anjos. Os castigos divinos que ele citou foram três: (1) anjos lançados no Tártaro, (2) o dilúvio da época de Noé e (3) a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. Nada na Bíblia nos leva a crer que a primeira dessas três penas é simbólica, e que somente as outras duas são literais. – 2 Pedro 2:4-6. Outro fator que tem relativa semelhança com o relato de Pedro é que, de acordo com uma conhecida obra grega, o Tártaro era o destino reservado para certos “deuses” e não para espíritos de homens que morreram: “Na Ilíada, do antigo poeta Homero, a palavra tár‧ta‧ros denota uma prisão subterrânea tanto abaixo do Hades, como a terra está abaixo do céu. Os detidos nele não eram almas humanas, mas os deuses inferiores, espíritos, a saber, Cronos e os outros titãs que se haviam rebelado contra Zeus (Júpiter). Era a prisão estabelecida pelos deuses míticos para os espíritos que haviam expulsado das regiões celestiais, e encontrava-se abaixo do Hades, no qual se pensava que as almas humanas eram confinadas na morte”. – Apêndice 4 D da Tradução do Novo Mundo com Notas (1986), p. 1515. Então, quando um cristão conhecedor das Escrituras Hebraicas e da obra de Homero lia na carta de Pedro que espíritos de natureza superior foram lançados no Tártaro imediatamente um paralelo devia emergir em sua mente, fazendo-o lembrar da Ilíada. Por fim, a localização “geográfica” do Tártaro não é o ponto em questão. Mesmo que ele não fique nas vizinhanças do Hades, o fato é que Pedro o apresenta como sendo um lugar. No caso, um local que fica muito abaixo das regiões celestiais. Se não fosse assim Pedro não teria dito que aqueles anjos infiéis foram “tartarizados”.* Semelhantemente, quando se diz que um corpo foi sepultado significa que ele foi posto literalmente em uma sepultura. * Na tentativa de descaracterizar o que Pedro disse, alguns aniquilacionistas mencionam que ele não usou a palavra “Tártaro”, mas um verbo de mesma raiz. Mas isto não representa nenhum problema, pois, neste caso, o sentido que está no grego seria “tartarizar”. Este neologismo demonstra que esse detalhe nada atrapalha a visualização da ideia correta. Qual é a saída encontrada pelo autor do MB para ignorar tantos contornos apresentados pela Bíblia sobre esses assuntos de natureza espiritual? A “solução” de 54 sempre, “desespiritualizar” e simbolizar os relatos bíblicos. E para deixar transparecer que essa releitura materialista é o caminho recomendado para quem quer acreditar “somente no que a Bíblia diz” também é útil desqualificar as motivações dos demais cristãos, aqueles que desde os primeiros séculos são os verdadeiros depositários do Novo Testamento. Diz o autor do MB: Há até quem vá ao ponto de afirmar que Tártaro é uma “transliteração” tartaroo. Isto simplesmente não é verdadeiro. Na realidade, é um exemplo como os eruditos bíblicos podem se tornar tão zelosos das mitologias pagãs ponto de introduzirem forçadamente os conceitos dessas mitologias dentro Bíblia!.... de de ao da .... o ‘lançamento’ de Satanás do céu para baixo, à terra (Apocalipse 12:712) não precisa ser entendido como uma queda literal (como afirmam alguns). .... Muitos dos que creem na ‘imortalidade inerente da alma’ negarão veementemente que acreditam em “filosofia grega”, e ainda assim eles frequentemente expressam sua crença basicamente nos mesmos termos dessa filosofia. Assim, quando falam sobre Seol (Hades), Geena ou Tártaro, eles sempre dão ênfase à ideia de um local específico para o qual as almas “se deslocam” depois da morte. Para muitos defensores dessas ideias, o Tártaro nada mais é que outra palavra para descrever um lugar de “tormento eterno”, segundo o conceito deles. (Trechos do artigo “Os Anjos ‘Lançados no Tártaro’) Leia a seguir sobre alguns conceitos gregos que havia no primeiro século: “Os antigos gregos criam na sobrevivência de uma alma (psy‧khé, a palavra que eles também usavam para a borboleta). Chamavam de Hades o domínio dos mortos e criam que este era dominado por um deus do mesmo nome. Em seu livro Orpheus — A General History of Religions (Orfeu — Uma História Geral das Religiões), o erudito francês Salomon Reinach escreveu a respeito dos gregos: ‘Uma crença amplamente difundida era a de que [a alma] entrava nas regiões infernais após cruzar o rio Estige no barco do velho barqueiro Caronte, que cobrava um óbolo [moeda] pela passagem, que era colocado na boca da pessoa morta. Nas regiões infernais ela comparecia perante os três juízes do lugar. . . ; se fosse condenada pelos seus crimes, teria de sofrer no Tártaro’.”. – A Sentinela, 01/10/89, p. 5. “Segundo Platão, para onde iam estas almas quando o corpo morria? ‘E os que parecem não ter vivido nem bem nem perversamente, vão para o rio Aqueronte, . . . e ali habitam e são purificados de suas más ações, e, tendo sofrido a penalidade pelos erros que cometeram contra outros, são absolvidos’.”. – Despertai!, 22/04/85, p. 9. Praticamente a única coisa em comum entre o entendimento dos primeiros cristãos e a crença dos antigos povos gregos é que ambos acreditavam que após a morte do homem sua alma desce para um lugar no interior da Terra. E também que Hades, 55 Abismo, Tártaro etc. eram literalmente lugares, e não símbolos que representam alguma coisa. Então, achar que os cristãos aprenderam esses conceitos na mitologia e filosofia gregas é uma total distorção da realidade. Mas é sob essa perspectiva que o autor do MB trata o assunto, e de maneira recorrente, conforme visto em outro artigo: O mesmo se aplica a outras palavras gregas que foram usadas para traduzir termos hebraicos, e que constam em muitas versões bíblicas da atualidade. Uma coisa é dizer que os apóstolos de Cristo e outros escritores do Novo Testamento se serviram de várias palavras que já eram de uso comum no mundo grecoromano do primeiro século, palavras tais como “Hades” e “Tártaro”. Outra coisa – totalmente diferente – é sugerir que eles entendiam estas palavras com o mesmo 'sentido que as pessoas davam' a elas. Por exemplo, será que quando os apóstolos ensinaram que Cristo ‘esteve no Hades’, achavam eles que a alma de Cristo atravessou um rio, pagando uma moeda a um barqueiro (Caronte) e chegou a um lugar dominado por um deus com esse mesmo nome (Hades), que tinha a porta vigiada por um cão (Cérbero), e que era dividido em “regiões” de castigos e de bem-aventuranças? (Nota 2 do artigo “Fantasmas Existem?”) Não! É óbvio que os cristãos não achavam que a alma de Cristo pagou pedágio a Caronte para entrar no Hades, mas acreditavam sim que a alma de Jesus esteve literalmente em um lugar chamado Hades, que fica no coração da Terra.* – Mateus 12:40; Atos 2:27. * Sobre a ideia que os gregos tinham do Hades, S. D. F. Salmond disse: “As descrições do lugar naturalmente variam. Ele aparece logo atrás da porção escura chamada de Érebo. Em algumas passagens parece situar-se no distante Ocidente, por detrás da corrente que circunda a terra. Mas a representação usual o situa no coração da terra ou embaixo da terra (ὑπὸ κεύθεσι γαίης)”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), p. 125. O espírito que há no ser humano “Mas ele [Jesus], tomando-a pela mão, chamou-a: ‘Menina, acorda’. O seu espírito voltou e ela se levantou no mesmo instante. E ele ordenou que lhe dessem de comer”. – Lucas 8:54, 55, colchetes acrescentados. Explicação dos aniquilacionistas: “Significa isso que [depois da morte] o espírito literalmente percorre o espaço até a presença de Deus? Nada disso está envolvido. . . ele ‘retorna ao verdadeiro Deus’ no sentido de que qualquer esperança de uma vida futura dessa pessoa depende então inteiramente de Deus”. – A Sentinela 01/04/99, pp. 16, 17, colchetes acrescentados. “Na morte, o espírito do homem, sua força de vida, que é sustentada pela respiração ‘sai’. Deixa de existir”. – Poderá Viver para Sempre no Paraíso na Terra, publicado pelas Testemunhas de Jeová, p. 77. 56 “A personalidade do morto não é perpetuada na força de vida, ou espírito, que pára de funcionar nas células do falecido”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, enciclopédia bíblica das Testemunhas de Jeová, vol. 2, p. 39. Em outras palavras, para os aniquilacionistas depois da morte não sai espírito algum do homem, e ele retorna a Deus apenas em sentido simbólico (Eclesiastes 12:7). Tal “espírito” seriam apenas as propriedades biológicas que mantêm o corpo vivo. Quando o corpo morre, o espírito “sai” porque esses mecanismos param de funcionar. Este é um entendimento típico do materialismo ateu, conforme foi comentado no capítulo 2. Mas essa explicação não serve para todas as circunstâncias mencionadas na Bíblia, especialmente onde a palavra “espírito” tem exatamente o sentido compreendido pela maioria dos cristãos de hoje, conforme demonstram os textos a seguir: “Enquanto assim falavam, Jesus se fez presente no meio deles e lhes disse: ‘A paz esteja convosco’. Espantados e cheios de medo, eles pensaram estar vendo um espírito”. – Lucas 24:37. “Tivemos como educadores nossos pais terrenos e lucramos disso um bom proveito, com mais razão não havemos de nos sujeitar ao pai dos espíritos e receber dele a vida?.... Mas vós vos aproximastes da montanha de Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e das miríades de anjos em reunião festiva, e da assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o juiz de todos e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:9, 22, 23. “Então é que ele [Jesus] foi pregar até aos espíritos que se encontravam na prisão, aos rebeldes de outrora, quando se prolongava a paciência de Deus nos dias em que Noé construía a arca, na qual poucos, isto é, oito pessoas, foram salvos pela água”. – 1 Pedro 3:19, 20, colchetes acrescentados. “Caríssimos, não deis crédito a qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se são de Deus”. – 1 João 4:1. “Disse-me então: Estas palavras são certas e verídicas; o Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, enviou seu anjo, para mostrar a seus servos o que deve acontecer em breve”. – Apocalipse 22:6. Concluindo Em suma, o simbolismo defendido pelos aniquilacionistas é o seguinte: 1. Alma (de Mateus 10:28) = perspectiva de vida futura da pessoa. 2. Espírito que há no corpo = força de vida que desaparece por ocasião da morte. 3. Seol / Hades = representação da inexistência completa da pessoa, após a morte. 4. Tártaro = rebaixamento mental (ou de privilégios) de alguns anjos rebeldes. Se você leu tudo até aqui, desde o começo, deve se lembrar que o autor do MB disse que devemos deixar que a própria Bíblia “defina seus contornos”, para entendermos bem determinados assuntos dela. Com respeito às quatro definições acima, os aniquilacionistas não parecem estar seguindo esse método. Agem como se estivessem 57 de olhos vendados apalpando um dado e, quando alguém pergunta que objeto é, dizem: “Uma bolinha de gude”. O próximo capítulo aborda outro caso em que acontece exatamente o mesmo. “Deus puniu os anjos que pecaram lançando-os no Tártaro” “Também puniu o mundo antigo quando trouxe um dilúvio” 58 “E condenou as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinzas” “Como em todas as outras situações, o procedimento sábio – e humilde – é, em vez de usar toda sorte de artifícios para obrigar a Bíblia a dizer o que nós queremos, deixar que ela própria defina seus contornos”. – Autor do MB. A seguir os contornos da Bíblia relacionados a uma das três punições mencionadas pelo apóstolo Pedro em sua carta: “Naquele tempo o Senhor, lá no alto, examinará a milícia celeste, e os reis do mundo, sobre a terra. Serão amontoados como prisioneiros num calabouço, e, depois de muitos dias, serão castigados”. – Isaías 24:21, 22, Centro Bíblico Católico. “Pois ele pôs abaixo os que habitavam na altura, na vila elevada. Ele a rebaixa, ele a rebaixa até a terra; ele a traz em contato com o pó”. – Isaías 26:5, TNM. “E eu vi descer do céu um anjo com a chave do abismo e uma grande cadeia na mão. E ele se apoderou do dragão, a serpente original, que é o Diabo e Satanás, e o amarrou por mil anos. E lançou-o no abismo, e fechou e selou este sobre ele, para que não mais desencaminhasse as nações até que tivessem terminado os mil anos”. – Apocalipse 20:1-3, TNM. “E os anjos que não conservaram a sua posição original, mas abandonaram a sua própria moradia correta, ele reservou com laços sempiternos, em profunda escuridão, para o julgamento do grande dia. Assim também Sodoma e Gomorra, e as cidades em volta delas, as quais, da mesma maneira como os precedentes [ou seja, os anjos rebeldes], tendo cometido fornicação de modo excessivo e tendo ido após a carne para uso desnatural, são postas diante de nós como exemplo de aviso por sofrerem a punição judicial do fogo eterno”. – Judas 6, 7, TNM, colchetes acrescentados. 59 RECAPITULANDO “(1) Deus não se refreou de punir os anjos que pecaram, mas, lançando-os no Tártaro, entregou-os a covas de profunda escuridão, reservando-os para o julgamento; e (2) ele não se refreou de punir um mundo antigo, mas preservou a Noé, pregador da justiça, junto com mais sete, quando trouxe um dilúvio sobre um mundo de pessoas ímpias; e, (3) reduzindo a cinzas as cidades de Sodoma e Gomorra, ele as condenou, estabelecendo para as pessoas ímpias um modelo das coisas que hão de vir”. – 2 Pedro 2:4-6, TNM. “[Pedro] Apresenta três exemplos de castigo…. O primeiro afeta os seres celestes de Gn 6,2; o abismo escuro pode vir de Is 24,22. O segundo castigo faz uma exceção: um Noé visto como ‘pregador’ (1 Pd 3, 20). Também o terceiro castigo faz uma exceção: um Ló melhorado em relação à tradição bíblica (Gn 19)”. – Nota da Bíblia do Peregrino sobre 2 Pedro 2:4-8. 60 Capitulo 6 A NATUREZA DO SEOL Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão. Jó 10:20-22, NVI. O texto acima demonstra que o Seol não é uma simples sepultura, mas sim um mundo à parte, chamado pelo escritor bíblico de terra tenebrosa onde reina o caos. Caso não tivessem o tipo de mentalidade que possuem, bastaria esse texto para mostrar aos aniquilacionistas o que a Bíblia realmente apresenta sobre o domínio dos mortos. Não sei exatamente quando, mas depois que postei a minha defesa inicial, cujo conteúdo está nos apêndices A3 ao A7 deste livro, o autor do MB publicou um artigo sobre o Seol, chamado “Seol – O Consenso do Antigo Testamento”, que é a tradução de um artigo em inglês de um adventista chamado Jefferson Vann. Perceba abaixo o desenrolar da linha de raciocínio do escritor, a começar pelas suas palavras iniciais: Houve 400 anos de silêncio – uma lacuna entre o momento do fechamento dos escritos dos profetas do Antigo Testamento e a escrita do Novo Testamento. Durante esse tempo, a doutrina do estado intermediário (o estado entre a morte e a ressurreição) foi submetida a uma espécie de evolução. Os judeus foram imersos em comunidades pagãs que sustentavam a doutrina que se tornou popular por causa da filosofia grega: a imortalidade da alma. Certamente, o objetivo principal dessa introdução é informar logo de início o “trunfo” adicional que os aniquilacionistas têm contra o conceito cristão da imortalidade da alma, que é diferente do conceito pagão. É sempre útil a eles dizer que o Cristianismo já em sua infância foi corrompido pelo paganismo. Esta é uma distorção muito comum propagada por eles. Na verdade, o que ambas as vertentes tinham em comum era somente a crença de que o homem possui uma alma que sobrevive à morte e que vai para um lugar subterrâneo nada agradável chamado Hades. Os demais conceitos gregos relacionados a isso eram estranhos ao Cristianismo. Mas o que eu acho interessante mesmo nessas palavras iniciais é que o escritor sabe perfeitamente que quando Jesus inaugurou o Cristianismo, os cristãos já estavam expostos aos conceitos hoje combatidos pelos aniquilacionistas, referentes à alma e ao Hades. No entanto, nunca uma palavra foi dita contra essas ideias, nem por Jesus e nem pelos apóstolos. Pelo contrário, o Novo Testamento concorda com elas ao mencionar, por exemplo, (1) que o homem pode matar o corpo, mas não a alma, (2) o Seio de Abraão e (3) os espíritos dos justos aperfeiçoados. Sendo assim, não foi no 61 alvorecer do século II que tais conceitos começaram a ser trazidos para dentro da comunidade cristã. Eles já estavam lá. – Mateus 10:28; Lucas 16: 19-31; Hebreus 12:9, 22, 23. Depois de acrescentar algumas informações específicas sobre as crenças judaicas, o artigo passa a descrever o que é mencionado no Antigo Testamento sobre o Seol. Dentre outras coisas, o autor diz: Jacó sabia também que, de alguma forma o Seol está lá embaixo. O restante do Antigo Testamento contém diversas referências ao Seol que utilizam a raiz verbal que Jacó usou: yarad – ir para baixo ou descer. Outras raízes verbais usadas em conexão com o Seol refletem a mesma ideia: nachat – ir para baixo, e shafel – ser ou tornar-se inferior. Tanto as pessoas de dentro da comunidade da aliança como as que estavam fora dela iam na mesma direção por ocasião da morte. Alguns sugeriram que todas estas são referências a ser enterrado na sepultura, e que o Seol é simplesmente uma referência ao que ocorre com o corpo. Desse modo, Seol seria entendido como sinônimo de qever – uma sepultura ou túmulo. Porém, Jacó não poderia estar se referindo a um túmulo literal, uma vez que o corpo de José não foi encontrado para ser sepultado. Ademais, nos paralelos poéticos o Seol é normalmente associado com a morte, não com o túmulo. Dentre todas as referências ao Seol no Antigo Testamento, nenhuma estabelece um paralelo dele com qever. Porém, o termo Seol é muitas vezes colocado em paralelo com sinônimos da sepultura, tais como bor, o poço, e abadon, a destruição. Isto leva à conclusão de que o termo Seol tem algo em comum com o túmulo, mas não pode ser equiparado com a própria sepultura em si. .... (Negritos acrescentados) Na minha defesa inicial eu tinha explicado para o autor do MB exatamente o que está acima, que Seol jamais poderá ser sinônimo de sepultura, embora sejam conceitos interconectados. Pelo visto, ele já aprendeu que realmente não são sinônimos, já que resolveu traduzir e publicar esse artigo de Jefferson Vann. Entretanto, ainda há textos do autor do MB que contradizem o que foi mencionado por Vann, como é o caso dos dois trechos abaixo: “ ‘Os que morreram’ não fazem essas coisas no lugar onde estão – a sepultura (ou Seol)”. – Artigo “Textos "Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas"?. “Eles [os patriarcas] estão no Seol (sepultura, sepulcro, etc.) – inconscientes e inativos – aguardando sua ressurreição”. – Artigo “Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?”. 62 Pois bem, diante do que o escritor foi explicando, como que apalpando os “contornos” expostos na Bíblia sobre o tema, parece que para ele o Seol realmente é um lugar, não é mesmo? Só que não... Note a que incrível conclusão Vann chegou: ... Embora o Seol seja muitas vezes descrito como se fosse um local, seu uso no Antigo Testamento leva à conclusão de que ele se refere mais especificamente à condição humana após a morte. A localização dos mortos (pelo menos daqueles que foram enterrados) é a sepultura. Sua condição é o Seol. (Negrito acrescentado) Nem é preciso dizer o motivo de Vann ter inserido a afirmação “como se fosse um local”. É o primeiro e sutil passo para tentar desconstruir o que ele mesmo foi erguendo ao longo do texto até o momento acima citado. O que acha? É ou não é como se fosse uma pessoa vendada apalpando um dado e dizendo aos ouvintes que está diante de uma bola de gude? Francamente, não sei qual o caminho mais incongruente, se o tomado pelas Testemunhas de Jeová ou esse aparentemente escolhido pelo autor do MB. Nessa mesma comparação da pessoa vendada, as Testemunhas confiam no tato delas e admitem que realmente é um “dado”, porém não falam mais no assunto e torcem para ninguém perguntar de novo, pois, na realidade, acreditam também que o “dado” é uma “bolinha de gude”. Dizem elas, contraditoriamente: “Isto indica que o Seol é o lugar (não uma condição) que pede ou exige todos sem distinção, porque recebe em si os mortos da humanidade”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, volume III, p. 575. “A condição dos mortos é tornada clara em Eclesiastes 9:5, 10.... Portanto, a morte é o estado de inexistência”. – A Sentinela, 01/04/99, p. 16. Observação: As publicações das Testemunhas de Jeová não afirmam diretamente que o Seol é uma condição, para não contradizer o conceito “oficial” da religião de que ele é a “sepultura comum da humanidade”, expressão que criaram para se ajustar ao cenário bíblico. Mas, na prática, para as TJs o Seol é apenas uma representação da inexistência. Nada mais que isso. Na sequência, Vann também revela onde aprendeu a não saber distinguir pelo “tato” a diferença entre um “dado” e uma “bolinha de gude” (negrito acrescentado): Esta foi a conclusão de Eric Lewis, cujo exame das 65 referências a Seol no Antigo Testamento o levou à conclusão de que o termo especifica “não o lugar do enterro, nem uma localidade presumida de espíritos de falecidos, e sim a condição de morte, o estado da morte.” Lewis sugeriu que um sinônimo para Seol 63 que enfatiza esta conotação é a palavra inglesa Gravedom. Mas, como é que se pode conciliar a ideia de o Seol ser uma condição com todas estas referências a uma direção (lá para baixo)? Taí uma boa pergunta... Para respondê-la, Vann continua apalpando o “dado” de “olhos vendados”, talvez na esperança dele virar uma “bolinha”. Detalhe: o que ele disse a seguir está sob o tópico “O Seol é de Extrema Profundidade”. O Seol está para baixo assim como o céu está para o alto. Ele não está simplesmente seis palmos abaixo da superfície. Moisés falou do fogo da ira de Deus queimando nas profundezas do Seol. Zofar disse que a sabedoria de Deus é mais alta do que o céu e mais profunda do que o Seol. Davi descreveu o Senhor como livrando a alma das profundezas do Seol. Ao descrever a onipresença de Deus, ele disse: “Se eu subir aos céus, lá tu estás; Se eu fizer a minha cama no Cheol, eis que estás ali” O Senhor se queixou por meio de Isaías que Israel se prostituiu por enviar emissários a todas as terras distantes, enviando-os até mesmo para baixo, ao Seol. (Negrito acrescentado) Será que agora o autor do MB já se convenceu que Jesus esteve realmente nas profundezas da Terra quando foi para o Hades? O capítulo 7 responderá. As palavras dele por meio de Amós descrevem até que ponto Deus estava determinado a ir para trazer punição sobre seu próprio povo desobediente: “Embora cavem até o Cheol, dali os tirará a minha mão; embora subam até o céu, dali os farei descer. Embora se escondam no cume do Carmelo, buscá-los-ei e dali os tirarei; embora estejam escondidos dos meus olhos no fundo do mar, dali darei ordem à serpente, e ela os morderá. Embora vão para o cativeiro diante dos seus inimigos, dali darei ordem à espada, e ela os matará; porei os meus olhos sobre eles para o mal, e não para o bem.” Aqui de novo, o Seol é contrastado com o céu – não porque ele seja um lugar de sofrimento e o céu um lugar de prazer. O céu está listado porque é um lugar alto – assim como o topo do Monte Carmelo. O Seol é mencionado porque é um lugar baixo, assim como o fundo do mar. Talvez os antigos hebreus imaginassem o Seol como um lugar extremamente profundo por causa do mistério em torno dele. Talvez eles pensassem isso porque as pessoas iam para lá e não voltavam. Talvez tenha sido considerado assim porque ele era um mistério – oculto para todos, exceto para o próprio Deus. Independentemente disso, quando os santos do Antigo Testamento falavam sobre o Seol, ele obviamente, não era sinônimo de céu. Era exatamente o contrário. No entanto, este é o lugar onde todas as almas entravam na morte. (Negritos e sublinhado acrescentados) 64 Até aqui Vann ainda não iniciou seus argumentos “bíblicos” para tentar desfazer o conceito de que Seol é um lugar profundo no interior da Terra. Entretanto, ele já começou a preparar o leitor para isso. Este é o objetivo das três suposições dele que destaquei em negrito. Infere-se delas que a ideia da existência literal do Seol seria apenas a opinião dos antigos hebreus, e não algo realmente ensinado na Bíblia. No entanto, conforme pode ser visto nos textos a seguir, o próprio Deus disse que o Seol é um lugar profundo a que nenhum homem tem acesso. Não era um folclore israelita. “[Deus disse:] Você já foi até as nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas?”. – Jó 38:16, 17, NVI, colchetes acrescentados. “E Jeová prosseguiu falando mais a Acaz, dizendo: ‘Pede para ti um sinal da parte de Jeová, teu Deus, fazendo-o tão profundo como o Seol ou fazendo-o tão alto como as regiões superiores’.”. – Isaías 7:10, 11. Nos parágrafos seguintes de seu texto, Vann finalmente começa a tratar de outros aspectos relacionados à morte, no afã de encontrar alguma coisa na Bíblia que demonstre que o Seol é apenas uma representação da inexistência. Ao dizer no final do último trecho citado que as ‘almas é que entram na morte’ ele sinaliza ao leitor que está iniciando uma nova etapa de sua argumentação, onde apresentará a “solução” para o suposto problema. Os tópicos seguintes do artigo de Vann são: (1) “O Seol é silencioso”, (2) “O Seol é escuro”, (3) “O Seol é Sono” e (4) “O Seol é universal”. Nos tópicos 1 e 2 a palavra “lugar” e outros termos relacionados aparecem mais de 20 vezes. Ou seja, mesmo considerando as interpretações que os aniquilacionistas dão ao que foi tratado, esses primeiros dois pontos, no final das contas, apenas reforçam que Seol é um lugar, mesmo que aqueles que lá estão estivessem dormindo. Por exemplo, Vann disse: “Salomão o encarou [o Seol] como um lugar onde os pensamentos são silenciados”. Ou seja, Salomão o encarou como um lugar, ao passo que o autor do artigo o encara como uma condição… Já os ponto 3 e 4 possuem algumas afirmações que devem ser analisadas, e é neles que o autor ignora os “contornos” bíblicos sobre o assunto e afirma que “a coisa mais enfatizada no Antigo Testamento acerca do Seol é que ele é sinônimo da própria morte”, aproveitando-se do fato que é muito comum na Bíblia a morte ser citada juntamente com o Seol. (Isto é assim apenas porque são conceitos interconectados). Note o que mais foi dito: Davi orou ao Senhor: “Considera e responde-me, Jeová, Deus meu. Alumia os meus olhos para que não durma eu o sono da morte.” [Salmo 13:3, SBB] …. Ele antecipou que sua morte o encontraria no Seol…... Ele definiu a existência no Seol como dormir o sono da morte. A frase exata “dormiu com seus pais” é encontrada 36 vezes no Antigo Testamento. Era uma expressão comum que se usava para descrever o fato de que alguém tinha morrido. (Colchetes e negritos acrescentados) 65 Essa tradução “dormir o sono da morte” é interessante, pois parece descrever melhor o que os antigos pensavam sobre esse assunto. É a pessoa humana que passa a “dormir” quando morre, ou seja, é o corpo que fica “dormindo”. Não se trata do sono da alma (quando digo “alma”, me refiro ao conceito amplamente aceito no Cristianismo sobre Mateus 10:28). Mas, voltando ao ponto, o salmista não definiu nada, apenas disse que não queria morrer. O sentido do verbo definir* é bem mais amplo, conforme diz o dicionário Larousse Cultural: “Enunciar os atributos, as características específicas de uma coisa (objeto, ideia, ser) de tal modo que ela não se confunda com outra”. Se a Bíblia tivesse definições sobre alma, Seol e sepultura talvez essa controvérsia nunca tivesse existido na história do Cristianismo. * As Escrituras Sagradas não costumam apresentar definições, pois seus primeiros leitores já sabiam os significados desses termos hoje controversos (devido à releitura dos aniquilacionistas). Uma das poucas definições que podem ser vistas na Bíblia está em Hebreus 11:1, que contém uma definição da palavra fé. Aproveitando que estamos falando de definições, note como o dicionário Caldas Aulete define sepultura e Seol (“inferno”, palavra em latim correspondente do hebraico Sheol e do grego Hades): “SEPULTURA s.f. ação ou efeito de sepultar um cadáver. Cova, lugar onde se sepultam os cadáveres”. “INFERNO (nas religiões antigas) lugar subterrâneo em que habitavam as almas dos mortos”. Vale salientar que, com o tempo, muitos cristãos adotaram um conceito popular de que “inferno” é o lugar para onde vão apenas os maus, associando-o à punição final de Deus. No entanto, a Bíblia retrata o “inferno” como destino temporário tanto dos maus quanto dos bons, conforme diz o versículo sobre a ressurreição de Jesus: “Pois não deixarás a minha alma no inferno”. – Salmos 16:10, Almeida Fiel. Vann afirma ainda no tópico 4: Ana orou: “Jeová é o que tira a vida, e a dá; faz descer ao Cheol, e faz subir.” [1 Samuel 2:6] A teologia da oração dela é impecável: Morrer é descer ao Seol, onde todos os demais mortos estão. Ser resgatado dessa condição é ser trazido de volta à vida, e isso é algo que só o Senhor pode fazer. (Colchetes acrescentados) Certamente a “teologia” das palavras de Ana é impecável, e está de acordo com o que foi visto até aqui. Já o mesmo não pode ser dito das conclusões do autor do artigo. O Seol está visível apenas para Deus! “O Senhor sabe o que acontece até mesmo no mundo dos mortos”. – Provérbios 15:11, Nova Bíblia na Linguagem de Hoje. 66 Para finalizar este capítulo, voltemos um pouco aos textos do autor do MB. No meu artigo originalmente contestado, depois que citei o texto acima transcrito afirmei que apenas Deus pode ver o que transcorre no Seol. Sobre esta aplicação o autor do MB disse: Os termos usados pelos tradutores não dão qualquer ideia de ação ou movimento e sim de transparência. Mesmo a expressão “sabe o que está acontecendo”, usada pelos tradutores da NTLH e na NCV, não prova, em si mesma, a existência de “ação” no lugar em questão (o argumento de que Deus sabe que lá não está acontecendo nada é cabível e, se for levado em conta tudo o que os demais textos bíblicos dizem sobre o Seol, esta é a hipótese mais provável). A ênfase do texto em todas as versões é que nada está escondido dos olhos de Deus e não que alguma coisa “transcorre” no Seol. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”, negritos acrescentados) Não acho que essa interpretação proposta pelo autor do MB ajuda muito aquilo que ele defende. Principalmente se todo o contexto da Bíblia sobre o assunto for levado em consideração, conforme demonstrado até aqui. Lembre-se que a sepultura não é um lugar visível apenas para Deus. Muito provavelmente neste exato momento existe algum ser humano olhando para dentro de uma, por estar enterrando alguém. Por outro lado, homem nenhum consegue ver o que está no Seol. Isto só seria possível mediante uma visão sobrenatural. Aliás, segundo a antiga literatura judaica, o profeta Enoque passou por tal experiência. Sobre isso veja o capítulo 18. De qualquer maneira, a ideia de transparência, ao invés de transcorrência, não atrapalha nada do que eu mencionei sobre esse tema. Ela pode ser perfeitamente incluída no argumento. Por isso alterei essa nota, que aparece agora no apêndice A3. Ela passou a dizer o seguinte: A Bíblia informa que só Deus sabe o que se passa no Seol. Se o homem tivesse essa capacidade, não faria sentido dizer que apenas Deus pode ver o que está lá, conforme disse Jó: “Os impotentes na morte continuam a tremer. Debaixo das águas, e os que residem nelas. O Seol está nu diante dele. E [o lugar de] destruição não tem cobertura”. Ou conforme traduz a Bíblia NVI: “Os mortos estão em grande angústia sob as águas, e com eles sofrem os que nelas vivem. Nu está o Sheol diante de Deus, e nada encobre a Destruição.” – Jó 26:5, 6, negritos acrescentados. A redação original da minha nota era: A Bíblia informa que só Deus sabe o que se passa no Seol. Se lá fosse um local onde não acontecesse absolutamente nada, não faria sentido dizer que Deus possui um conhecimento exclusivo do que transcorre por lá. – Jó 26:6. 67 (Página em branco) 68 Capítulo 7 EFÉSIOS 4:8, 9 E A LOCALIZAÇÃO DO HADES “Se o entendimento dum texto bíblico está sendo pervertido (ou não) [pelos tradutores] é mais bem demonstrado pelo contexto e pelo que diz o restante da Bíblia”. – Autor do MB sobre a tradução de Lucas 23:43, colchetes acrescentados. O assunto em questão agora é o que está em Efésios 4:8, 9, onde o apóstolo Paulo disse: “Por isso que foi dito: ‘Quando ele subiu em triunfo às alturas, levou cativos muitos prisioneiros, e deu dons aos homens’. (Que significa ‘ele subiu’, senão que também havia descido às profundezas da terra?....)”. – Nova Versão Internacional. Note agora que se o mesmo texto for lido na Tradução do Novo Mundo (TNM) o sentido das palavras de Paulo será outro: “Por isso ele diz: ‘Quando ele ascendeu ao alto, levou consigo cativos; deu dádivas em homens.’ Ora, a expressão, ‘ele ascendeu’, o que significa senão que ele também desceu às regiões mais baixas, isto é, à terra?”. De modo que há duas ideias distintas* nas duas versões acima: 1) Jesus desceu às profundezas da Terra (porque morreu e passou 3 dias no Hades). 2) Jesus desceu à Terra (porque seu espírito vivia no céu antes de nascer qual ser humano). * Muito embora a parte inicial do texto tenha exatamente o mesmo sentido nas duas traduções, ou seja, que ao retornar para o céu Cristo levou cativos com ele. Paulo não se refere a um evento futuro, mas a algo que já tinha ocorrido. Antes de analisar o versículo propriamente, é bom que se diga que as duas afirmações acima estão corretas. São duas realidades que a Bíblia realmente apresenta. Nenhuma delas depende desse texto de Efésios, pois estão claramente explicadas em outras partes da Bíblia. A questão é saber a qual das duas situações Paulo estava se referindo. Mas seja qual for delas não anula a verdade da outra. Há quem pense até que o versículo está mencionando as duas situações ao mesmo tempo. No meu texto originalmente criticado pelo autor do MB eu disse sobre Efésios 4:9 que a Tradução do Novo Mundo “não traduz corretamente esse versículo, e ela mesma ‘se entrega’.” Depois de ler a minha afirmação, o autor do MB concluiu (erroneamente) o que teria motivado essa minha opinião. Disse ele: O motivo desta afirmação é que esta versão traduz duma maneira que contradiz a afirmação arbitrária de que ‘o Novo Testamento diz que Jesus desceu às profundezas da Terra e resgatou cativos’. O que não se informa aos leitores é que esta não é a única versão bíblica que faz isso. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) 69 Quando eu disse que o versículo está vertido errado na TNM e ela mesma “se entrega” foi, na verdade, pelos dois motivos abaixo: 1) Ela apresenta uma evidência interna, mediante uma referência cruzada, sobre o que seriam as “regiões mais baixas” para onde Cristo foi antes de subir ao céu. Na coluna de referências da Tradução do Novo Mundo, há uma letra “M” que remete o leitor ao texto de Mateus 12:40*, que diz: “Porque, assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do enorme peixe, assim estará também o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra”. * A nova Tradução do Novo Mundo (de 2015) retirou essa referência e não mais remete o leitor para o texto de Mateus 12:40. 2) Conforme reproduzido abaixo, a edição interlinear da Tradução do Novo Mundo, que tem uma tradução literal palavra por palavra do Novo Testamento em grego, mostra como o versículo realmente está no original: Percebe-se que o grego diz literalmente “ele desceu às partes mais baixas da terra”, e não “desceu às regiões mais baixas, isto é, à terra”. A expressão “isto é” nem aparece no texto grego. Portanto, baseando-se nas duas evidências acima, a versão apresentada na tradução regular da TNM não está correta e ela mesma ‘se entregou’. O sentido do versículo 9 que a TNM deveria ter apresentado é o que está nas duas versões abaixo: “Que quer dizer ‘subiu’? Quer dizer que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra”. – Edição Pastoral. “‘Ele subiu’ que quer dizer isto, senão que Ele também desceu, às regiões inferiores da terra?”. – José Raimundo Vidigal. E quando os tradutores vertem da maneira acima eles não estão querendo dizer que o versículo menciona partes ou regiões inferiores onde, por acaso, a Terra está. (A meu ver, isto nem faria sentido, pois nenhuma região do Universo é “inferior” à outra, em termos de altura). Fazendo alusão ao conceito bíblico sobre Seol, o segundo tradutor acima citado, José Raimundo Vidigal, traz a seguinte nota de rodapé sobre a expressão “regiões inferiores da terra”, que ele utilizou em sua tradução: “Cristo, que tinha descido à terra pela Encarnação, desceu até à região dos mortos, imaginada como subterrânea (1 Pd 3, 9); subindo ao céu pela Ascensão, mandou o 70 Espírito Santo com seus dons, para realizar o crescimento da Igreja”. – José Raimundo Vidigal. Portanto, as “regiões inferiores” é o lugar onde os mortos estão. É por esta razão que a Nova Tradução na Linguagem de Hoje verte Efésios 4:9 assim: “Quer dizer que ele também desceu até os lugares mais baixos da terra, isto é, até o mundo dos mortos”. O texto de Pedro a que Raimundo Vidigal fez referência é o de 1 Pedro 3:19 (não 3:9), que diz: “Com efeito, também Cristo morreu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus. Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão, a saber, aos que foram incrédulos outrora, nos dias de Noé, quando Deus, em sua longanimidade, contemporizava com eles, enquanto Noé construía a arca, na qual poucas pessoas, isto é, oito, foram salvas por meio da água”. – 1 Pedro 3:18, 19, Bíblia de Jerusalém. Uma nota da Bíblia de Jerusalém sobre esse texto de 1 Pedro 3:19 diz: “Alusão provável à descida de Cristo ao Hades (cf. Mt 16,18+), entre sua morte e sua ressurreição (Mt 12,40; At 2,24.31; Rm 10,7; Ef 4,9; Hb 13,20)”. Sendo assim, Cristo realmente desceu ao Hades, nas partes subterrâneas da Terra. E se em tal ocasião ele pregou mesmo aos que lá estavam, é razoável supor que as palavras de Paulo em Efésios 4:9 se referem também a tal episódio. Neste caso, os que foram receptivos às palavras de Jesus poderiam ser os prisioneiros mencionados no texto. “Como dizem as Escrituras Sagradas: ‘Quando ele subiu aos lugares mais altos, levou consigo muitos prisioneiros e deu dons às pessoas.’ O que quer dizer ‘ele subiu’? Quer dizer que ele também desceu até os lugares mais baixos da terra”. – Efésios 4:9, Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Além disso, note que o próprio apóstolo Paulo, em outra carta, associa o verbo “descer” à morte de Cristo: “Mas a justiça resultante da fé fala da seguinte maneira: ‘Não digas no teu coração: “Quem ascenderá ao céu?” isto é, para fazer descer a Cristo; ou: “Quem descerá ao abismo?” isto é, para fazer subir a Cristo dentre os mortos’.”. – Romanos 10:6, 7. Conforme visto antes, o “abismo” é um termo relacionado ao Seol/Hades, frequentemente empregado para se referir aos que estão presos nas regiões inferiores da Terra, às quais nenhum ser humano tem acesso.* Novamente, Paulo contrasta o céu com a região inferior mencionada, o que significa que esta fica muito abaixo ao passo que o lugar celeste fica muito acima. Ou seja, vemos aqui um cenário semelhante ao que está em Efésios 4:9. * Mesmo que fosse possível chegar ao centro da Terra, ninguém seria encontrado lá, pois são as almas espirituais que vão para o Hades, portanto, invisíveis aos olhos humanos. Da mesma maneira 71 que os anjos rebeldes aprisionados no Tártaro e os espíritos impuros que estiverem no Abismo. ............................ Pelos motivos acima, é absolutamente natural que muitos comentaristas bíblicos achem que em Efésios 4:9 Paulo estava mesmo se referindo à descida de Cristo ao Hades. Mesmo diante dessas evidências, o autor do MB disse o seguinte: É honesto apresentar a ideia de que Cristo buscou esses “cativos” nas “profundezas da terra” como sendo o entendimento correto, de maneira que se uma determinada versão bíblica não dá base a essa conclusão é porque ela está necessariamente errada, enquanto se omite dos leitores que a expressão “profundezas da terra” é a menos comum, e que as versões bíblicas em geral traduzem da mesma maneira que a tradução classificada como “errada” (no texto principal ou nas notas)? Será que é um procedimento erudito desconsiderar o trabalho consciencioso de todos os especialistas em grego que, ora traduziram o versículo da mesma maneira “errada”, ora fizeram ressalvas do tipo acima quando optaram por uma tradução diferente? Devemos suprimir toda e qualquer evidência que contradiga nossas teorias só para manter obstinadamente uma ideia que está em franco desacordo com o contexto imediato dos versículos? Nenhum versículo bíblico – em tradução alguma – afirma que “Jesus desceu às profundezas da Terra e resgatou cativos” de lá. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Vamos desmembrar tudo o que foi dito para analisarmos melhor: 1) Não seria honesto dizer que Cristo desceu ao Hades e resgatou cativos de lá, porque há traduções que não vertem Efésios 4:9 de um maneira que se entenda isso. 2) A expressão “profundezas da terra” é a menos comum, e isto foi omitido desonestamente do meu leitor. 3) As traduções bíblicas, em geral, traduzem Efésios 4:9 de uma maneira que apoia a Tradução do Novo Mundo. 4) Quando essas traduções não apoiam a Tradução do Novo Mundo diretamente no texto, o fazem nas notas de rodapé. 5) Não é um procedimento erudito ignorar o trabalho consciencioso de todos os especialistas em grego. 6) Quando os tradutores optaram por uma “tradução diferente” (ou seja, “profundezas da terra”), eles fizeram ressalvas em suas notas sobre a escolha feita. 7) Por fim, que eu teria suprimido todas as evidências contra a suposta “teoria” que defendo, para manter obstinadamente uma ideia que está em desacordo com o contexto do versículo. 72 A seguir uma análise de cada uma das afirmações feitas pelo autor do MB. A descida de Cristo ao Hades e a questão das traduções Realmente a TNM não é a única que apresenta sua leitura de Efésios 4:9. Por exemplo, a Bíblia Vozes traz o mesmo sentido e de maneira ainda mais enfática: “O que significa este ‘subindo’ senão que antes desceu a esta terra?”. Por que os tradutores não são unânimes na tradução desse versículo? Há de se admitir que essa ênfase que está na Bíblia Vozes, reforçando a ideia de que o versículo se refere à própria Terra e não à região do Hades, destoa da fraseologia exata que está no grego. Mas também é preciso reconhecer que esta alternativa de tradução descreve algo que é tão verídico quanto a descida de Jesus ao Hades, ou seja, que Jesus veio do céu para a Terra (mediante seu nascimento) e depois voltou para o céu. Alguns comentaristas também afirmam que a gramática grega permite as duas opções de tradução, e que ambas têm seus defensores. O autor do MB citou um texto do erudito Stewart Salmond que descreve isso com detalhes, que está citado e comentado mais à frente. O livro de onde o autor do MB extraiu a opinião de Salmond pode ser adquirido no link abaixo: https://archive.org/details/ExpositorsGreekTestament.complete2Vols.5Vols..nicoll.19 02.1910 Particularmente, eu acho legítima a decisão de quem opta em acreditar que Efésios 4:9 se refere à Terra. Muito embora haja muitas evidências bíblicas que apontam para o entendimento de que se trata mesmo do Hades (que fica nas profundezas da Terra). Este cenário bíblico é real e não depende de se saber como o versículo está em grego, nem tampouco da gramática envolvida. Um detalhe muito importante sobre o qual também é preciso estar atento é que, em geral, os que optam pelo entendimento de que Efésios 4:9 se refere à Terra não possuem a mesma motivação dos aniquilacionistas ao entenderem o texto assim (para os aniquilacionistas o Hades não existe). Quando um especialista expressa a opinião de que o versículo se refere à Terra, e não ao Hades, isto não anula necessariamente a crença dele de que Cristo realmente desceu ao Hades e que pregou a alguns que estavam presos lá. Por exemplo, veja como as notas da Bíblia Figueiredo tratam o assunto. Uma nota sobre Efésios 4:9, também citada pelo autor do MB, diz o seguinte: “Lugares mais baixos: em oposição a céu e podem ser a própria terra ou uma região subterrânea, como o limbo ou o inferno, mas aqui certamente significa a própria terra”. Percebe-se que o autor da nota, que provavelmente não foi o tradutor, é partidário convicto da conclusão de que o versículo se refere à Terra, e não ao Hades. Mas note 73 que ele admite que a expressão pode ser traduzida de maneira acertada por qualquer um dos dois sentidos. Além disso, observe o que outra nota dessa mesma Bíblia disse sobre o texto a seguir: “Porque também Cristo uma vez morreu pelos nossos pecados, o Justo pelos injustos, para nos oferecer a Deus, sendo sim morto na carne, mas ressuscitado pelo espírito. No qual ele também foi pregar aos espíritos que estavam no cárcere, que noutro tempo tinham sido incrédulos, quando nos dias de Noé esperavam a paciência de Deus, enquanto se fabricava a Arca: na qual poucas pessoas, isto é, somente oito se salvaram no meio da água”. – 1 Pedro 3:18-20, Figueiredo. Nota da Bíblia Figueiredo sobre o versículo acima: “VV. 18-20. Alusão à ida de Jesus ao limbo”. De modo que a Bíblia Figueiredo mesmo não aceitando em uma nota que Efésios 4:9 se refere ao “limbo” (“inferno” / Hades) reconhece em outra que Jesus realmente foi para lá e pregou a alguns de seus habitantes. Ou seja, mesmo se houvesse absoluta certeza de que o versículo supracitado de Efésios se refere apenas à Terra, o entendimento dos tradutores de que Jesus desceu ao mundo subterrâneo é mantido mediante outro texto. Portanto, se o texto original permite duas traduções igualmente aceitáveis de Efésios 4:9, o que poderia ser ponderado para se escolher a tradução com maior probabilidade de ser a correta? O que o autor do MB disse, transcrito no início deste tópico, é um bom caminho. É preciso analisar o contexto imediato e o mediato (o que diz o restante da Bíblia). As profundezas da terra – o domínio dos mortos “E é isso também que os faz inventar suas mais variadas e obscuras definições para o termo Seol, apresentando-o ora como algum ‘lugar nas profundezas da Terra’, de localização indefinida, ora como algum “mundo espiritual” para onde iriam almas que permanecem vivas”. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) É natural que o autor do MB tenha essa visão inflexível, pois ele não acredita que o Hades exista realmente. Acha que é apenas uma linguagem figurada da Bíblia para se referir à condição de inexistência dos que já morreram ou simplesmente a uma sepultura. Então, fundando-se nesse preconceito, ele automaticamente descarta a ideia de que Cristo tenha descido às profundezas da Terra, mesmo o próprio Jesus tendo dito que, de fato, iria para o coração dela. De modo que não é a leitura em si de Efésios 4:9 que faz o autor do MB afirmar que Jesus não desceu às profundezas da Terra, muito menos algum respeito “ao contexto imediato do versículo” ou algum detalhe 74 gramatical do texto grego. Antes do autor do MB ler o texto a decisão de como entendê-lo já foi tomada por ele. Conforme visto com detalhes no capítulo 6 e no apêndice A3, o Seol / Hades realmente é um lugar nas profundezas da Terra, e não uma mera sepultura ou símbolo da inexistência. E é um mundo espiritual porque os que lá estão não são seres humanos. São pessoas invisíveis aos olhos do homem, mas não aos de Deus. “Nu está o Sheol diante de Deus, e nada encobre a Destruição”. – Jó 26:6, TEB. “E Jeová prosseguiu falando mais a Acaz, dizendo: ‘Pede para ti um sinal da parte de Jeová, teu Deus, fazendo-o tão profundo como o Seol ou fazendo-o tão alto como as regiões superiores”. – Isaías 7:10, 11. “Porque, assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do enorme peixe, assim estará também o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra”. – Mateus 12:40. Em certo momento de sua escrita, o autor do MB citou mais de 40 traduções que supostamente evidenciariam que a expressão “profundezas da terra” é inadequada em Efésios 4:9, visto que elas vertem o versículo de outra forma. Neste caso, seria possível concluir também que seus tradutores não acreditam na existência do Hades nas profundezas da Terra e que a ressurreição não consiste em resgatar pessoas de lá. Mas note como o texto de Salmos 71:20 foi traduzido por algumas dessas mesmas Bíblias usadas para “provar” a suposição do autor do MB: “Tu irás nos reviver, e nos fazer subir novamente das profundezas da terra”. – The Darby Translation (DBY). “Tu irás me reviver novamente, e me farás subir dos abismos da terra”. – Webster Bible (WBT). “Mas tu irás me reviver novamente e me farás subir das profundezas da terra”. – The Complete Jewish Bible (CJB). “Mas tu irás me restaurar a vida novamente e me levantarás das profundezas da terra”. – New Living Translation (NLT). “Tu voltarás para dar-me vida. Voltarás para tirar-me dos abismos da terra”. – Bíblia de Jerusalém (BJ). “De novo nos restituirás a vida, e das profundezas da terra nos tornarás a trazer”. – Sociedade Bíblica Britânica (SBB). “Agora voltarás para dar-me a vida, e me farás subir da terra profunda”. – Edição Pastoral (EP). Conforme indicam os versículos 5 e 9 desse mesmo capítulo, o salmista já não era jovem quando escreveu as palavras acima e sabia que se aproximava o dia em que ele estaria literalmente no mundo subterrâneo a que se referiu. Ele refletiu tal crença em seu poema. 75 Para ver o Salmo 71:20 em todas as Bíblias citadas pelo autor do MB consulte o apêndice A1, na página 335. Ao se analisar a lista completa, percebe-se que quase todas as Bíblias mencionadas mantêm o sentido frequentemente apresentado nas Escrituras, de que os que morrem vão para as profundezas da Terra: o Seol (ou Hades). Visto que o autor do MB chamou as pessoas que fizeram tais Bíblias de “tradutores conscienciosos”, será que já não estaria na hora dele considerar o trabalho desses especialistas de maneira completa? O que realmente dizem as notas de rodapé Basicamente, o que as notas marginais das Bíblias mostram é que Efésios 4:9 pode ser traduzido de duas maneiras diferentes, e que ambas são igualmente aceitáveis, e que o tradutor pode tomar partido por uma delas, baseando-se, muitas vezes, em outras informações que não estão explícitas no versículo em si. Há casos também em que as notas não esclarecem os motivos que justificaram as opiniões dos tradutores, ou então, não expressam opinião alguma, mas apenas informam as duas traduções possíveis. Leia a seguir alguns exemplos: “As ‘profundezas’ podem referir-se à terra dos vivos, em comparação com o céu (Is 44,23; cf. ‘debaixo do sol’ Ecl 4,7.15 etc.); neste caso se refere à encarnação. Também pode designar o mundo subterrâneo, abissal, dos mortos (Dt 32,22; Ez 31,14; Sl 63,10), em cujo caso se refere à morte e sepultura”. – Bíblia do Peregrino. “As regiões subterrâneas, onde se situa o reino dos mortos (cf. Nm 16,33+) e onde desceu Cristo antes de ressuscitar e de subir ‘acima de todos os céus’ (cf. 1 Pd 3,19+) Ou, segundo outros, as regiões terrestres qualificadas de ‘inferiores’ em comparação com os céus”. – Bíblia de Jerusalém. “Jesus fez resplandecer sua entrada triunfal nos céus com a companhia dos justos que conduziu do cheol, mas Paulo cita à maneira rabínica, para acentuar dois termos do texto, subiu e distribuiu, nos quais está anunciada a Ascensão de Jesus e a efusão do Espírito Santo”. – Matos Soares. “É este o pensamento: Cristo descendo ao interior da terra pela Sua sepultura (e talvez, também pela Incarnação) tomou posse de toda a criação e submeteu a Si todos os poderes. Constituído pela Sua ressurreição e ascensão Senhor do Universo, distribuiu aos Seus servos carismas conforme Lhe apraz”. – Missionários Capuchinhos. “Isto talvez se refira à encarnação de Cristo, ou Sua descida ao Hades depois de Sua morte”. – Disciples’ Literal New Testament. “Está aqui compreendido de Cristo, ascendendo acima de todos os céus, a cabeça da igreja; através de sua morte redentora, ressurreição, e ascensão ele se tornou a fonte de dons espirituais da igreja. A ‘descida’ de Cristo (vv. 9-10) se refere mais provavelmente à encarnação (cf. Fil 2:6-8) do que à presença de Cristo depois de sua morte no mundo dos mortos (cf. 1 Pe 3:19)”. – The New American Bible. 76 Alternativas de tradução, NÃO expressões sinônimas Assim como as notas não estão dizendo que a expressão “regiões inferiores da terra” significa simplesmente “a terra”, as traduções em si também não estão. O autor do MB, porém, citou diversas traduções como se elas estivessem apresentando sinônimos de “desceu à terra”, ao invés de “desceu às profundezas da terra”. Entretanto, as versões citadas se subdividem nas duas categorias a seguir, que foram mencionadas por Stewart Salmond, e não se referem predominantemente a uma única situação: a) Possessivo genitivo*: significando as profundezas da terra ASV, BBE, CSB, DBY, HNV, JUB, KJV, NAS, NKJV, NRS, OJB, RHE, RSV, TMB, WBT, WEB, WNT, WYC, YLT: “às partes inferiores da terra”. GW, TYN: “às partes mais inferiores da terra”. LEB: “às regiões inferiores da terra”. MSG: “ao vale da terra”. * Salmond também menciona o comparativo genitivo, que contrasta a terra com outro lugar ainda mais inferior (“as partes mais baixas que a própria terra”). b) Aposto genitivo: significando a própria terra CEB, CJB, ESV e NCV: “à terra”. NIV e TNIV: “às regiões inferiores, terrestres”. NIRV: “aos lugares inferiores, terrestres”. NLT: “ao mundo inferior em que vivemos”. (Para saber o significado das abreviaturas, consulte o apêndice A1, na página 335) Das mais de 40 traduções listadas, apenas oito contêm realmente uma fraseologia semelhante ao que está na TNM. As demais, quando utilizam expressões do tipo “as regiões inferiores da terra” não estão querendo dizer “regiões inferiores onde a Terra está”, mas regiões inferiores dela mesma! Por isso é um possessivo genitivo. Tal sentido é mantido usando-se ou não a palavra “profundezas”.* * Lembre-se que Jesus disse que iria para o coração (ou centro) da Terra quando morresse. O que nada mais é do que as profundezas da Terra. – Mateus 12:40. Portanto, a conclusão apresentada abaixo pelo autor do MB está incorreta: Se o problema é “tradução errada”, vale a pena verificar como este versículo de Efésios 4:9 foi redigido em outras versões. Segue-se uma lista de como a frase do versículo foi traduzida em umas 30 versões em inglês: 77 …….. Ou seja, em apenas uma, das mais de 30 versões acima, o tradutor usou a expressão “profundezas da terra”. Em todas as demais o texto foi traduzido de maneira diferente, admitindo o entendimento de que o lugar de onde Jesus resgatou esses “cativos” foi a Terra, não “as profundezas” dela. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Não se deve ignorar o trabalho consciencioso dos especialistas bíblicos Conforme visto anteriormente, os tradutores bíblicos não têm a motivação que o autor do MB provavelmente gostaria que eles tivessem, quando decidiram traduzir Efésios 4:9 de uma maneira que parece apoiar a visão que ele tem sobre o assunto. Algo semelhante acontece com os comentaristas bíblicos que costumam ser citados para “apoiar” conceitos aniquilacionistas. O autor do MB citou dois deles, Albert Barnes e S. D. F. Salmond: Acerca da discussão sobre o significado dessa expressão “as partes mais baixas da terra” que aparece em Efésios 4:9, as duas obras de referência a seguir expressam conclusões similares às que foram apresentadas aqui: …. Nas partes mais baixas da terra – Para a mais baixa condição de humilhação. Este parece ser o significado claro das palavras. O céu está oposto à terra. Um é acima; a outra está abaixo. De um Cristo desceu para o outro; e ele não veio apenas para a terra, mas se curvou à condição mais humilde da humanidade aqui. …. – Notes, Explanatory and Practical on the Epistles of Paul – Ephesians, Phillipians and ColossiansI …, Albert Barnes – 1858, pág. 88. “A localidade ou a extensão da descida está agora definida. A questão é saber se a localidade em vista é este mundo como um cenário de existência mais baixo que o céu, ou o mundo inferior como uma profundidade mais profunda do que a própria terra. Será que a sentença se refere à encarnação de Cristo e à sujeição a que Ele se humilhou na terra até a morte? Ou será que aponta para a descida dele ao Hades? E se este for o caso, em que aspecto e com que significado especial se apresenta a visita dele ao mundo dos mortos? Sobre estas questões, houve e continua a haver grande diversidade de opinião. Ambas as interpretações têm amplo apoio. [Daí, ele alista os grupos que apoiavam cada interpretação na época.] “.... Qual é, então, a interpretação mais razoável? 78 “Deve-se dizer, em primeiro lugar que nem a gramática nem a crítica textual fornecem uma resposta decisiva. A expressão τῆς γῆς pode ser entendida igualmente bem tanto como aposto = “as partes mais baixas que são ou constituem a terra”; como genitivo possessivo = “as partes inferiores pertencentes à terra”, sendo o Hades concebido como parte da terra, mas sua parte inferior; ou como genitivo complementar = “as partes mais baixas do que a terra”…. A palavra κατώτερα pode significar as partes mais baixas que a própria terra, ou seja, o Hades; mas também pode significar as partes mais baixas que o céu, ou seja, a terra. ….. (The Expositor’s Greek Testament [O Testamento Grego do Expositor], A Epístola aos Efésios, S. D. F. Salmond, Londres, 1903, Vol. 3, págs. 326, 327 – Grifos acrescentados) --(Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”, negrito em vermelho acrescentado) É sempre uma tarefa arriscada usar autores “imortalistas” para combater crenças “imortalistas”. Lembra até o que as Testemunhas de Jeová fazem quando citam declarações isoladas* de especialistas no intuito de “provar” que Jerusalém não foi destruída em 587 a.C., quando tais estudiosos defendem justamente essa data! * Veja alguns exemplos neste link: www.adelmomedeiros/respostasdoseruditos587.htm Já vimos que o autor do MB foi mal sucedido ao usar Martinho Lutero como exemplo de alguém que supostamente fazia parte de um rol de pessoas que não acreditava na imortalidade da alma. E o que dizer dos dois eruditos acima citados? Será que eles não acreditavam na existência literal de um lugar nas profundezas da Terra para onde vão as almas dos que morrem? Lendo somente os dois trechos citados pelo autor do MB poder-se-ia concluir que eles não acreditavam nesses conceitos. Mas este realmente não foi o caso. ALBERT BARNES Albert Barnes (1798-1870) foi um teólogo americano, nascido em Rome, New York. Ele se graduou no Hamilton College em 1820 e no Princenton Theological Seminary em 1823.1 Foi ordenado ministro presbiteriano pelo presbitério de Elizabethtown, New Jersey, em 1825. Escreveu diversos comentários sobre os livros da Bíblia, e é conhecido pela obra Barnes New Testament Notes.2 1 http://www.ccel.org/ccel/barnes 2 http://www.ccel.org/ccel/barnes/ntnotes.html Note agora o que Barnes comentou sobre os versículos bíblicos a seguir: 79 “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode acabar com corpo e alma no fogo”. – Mateus 10:28, Bíblia do Peregrino. “Verso 28. Eles que matam o corpo. Isto é, os homens, que não têm nenhum poder para ferir a alma, a parte imaterial. O corpo é a matéria menor, em comparação com a alma. A morte temporária é algo mínimo, comparada à morte eterna, ele os alerta, entretanto, a não se alarmarem diante da perspectiva de uma morte temporária; antes temam a Deus, aquele que pode destruir tanto a alma quanto o corpo para sempre. Esta passagem prova que os corpos dos iníquos serão levantados para serem punidos para sempre”. “E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado. E no inferno, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio”. – Lucas 16: 22, 23, Almeida Fiel. “Verso 22. E foi levado pelos anjos. Os judeus tinham a opinião de que os espíritos dos justos eram carregados pelos anjos ao céu depois da morte. Nosso Salvador falou de acordo com tal opinião; e da mesma maneira que ele afirmou expressamente o fato, parece apropriado que ele deva ser tomado literalmente, tal como quando se diz que o rico morreu e foi enterrado. Os anjos são espíritos que são enviados para ministrar aqueles que herdam a salvação (He 1:14), e não é tão improvável a suposição de que eles atendem os espíritos que partem para o céu, da mesma maneira que os atendem enquanto estão na terra”. “O seio de Abraão. Esta frase é derivada da prática de se reclinar durante uma refeição, onde a cabeça de alguém se aproxima do colo de outro, sendo, portanto, uma frase que denota proximidade e amizade”. “Os judeus não tinham dúvida de que Abraão estava no paraíso. Ao se dizer que Lázaro estava no seu seio era o mesmo, portanto, que dizer que ele fora admitido no céu e ficou feliz lá. Além disso, os judeus se gabavam muito de serem os amigos de Abraão e serem seus descendentes, Mt. 3:9”. “Verso 23. No inferno. A palavra aqui traduzida inferno (Hades) significa literalmente uma escuridão, um lugar obscuro; o lugar para onde os espíritos vão, mas especialmente o lugar para onde os espíritos iníquos vão”. “Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? Isto é, para fazer descer Cristo, ou: Quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos”. – Romanos 10:6, 7, Bíblia de Jerusalém. “Ao lugar mais amplo, (Jó 36:16) e ao abismo antes do mundo ser formado, Gen. 1:2. No Novo Testamento ele não é aplicado ao oceano, exceto na passagem de Lucas 8:31, mas à morada dos espíritos que partiram; e particularmente à escuridão profunda, o poço sem fundo, onde os iníquos moram para sempre. Rev. 9:1, 2, ‘E a ele foi dada a 80 chave do poço sem fundo. E ele abriu o poço sem fundo, Grego, O poço do abismo. Rev. 11:7; 17:8, 20:1, 3’.”. “Nesses lugares o mundo significa as regiões terríveis e profundas do mundo inferior. A palavra se opõe ao céu; tão profundo quanto o céu está acima; tão escuro quanto [o céu] é luz; um é tão vasto quanto o outro. O lugar diante de nós está oposto ao céu; e descer lá a fim de trazer alguém é considerado impossível tanto quanto ascender ao céu para fazer alguém descer de lá. Paulo não afirma que Cristo desceu a tais regiões, mas ele diz que não existe tal dificuldade na religião [cristã] como se fosse preciso alguém descer até essas regiões profundas para chamar de volta um espírito que partiu. Esse trabalho foi de fato feito, quando Jesus foi convocado dos mortos, e agora a obra de salvação ficou fácil. A palavra abismo aqui, portanto, corresponde ao Hades, ou regiões escuras dos espíritos que partiram”. Ao que parece, Barnes cometeu um equívoco aqui, quando disse que o Abismo mencionado em Lucas 8:31 não se refere ao lugar onde espíritos são confinados, mas sim ao oceano. Embora seja verdade que os porcos onde estavam os espíritos impuros despencaram de uma colina e morreram afogados na água, o diálogo desses espíritos com Jesus indica que eles se apavoraram com a possibilidade de irem para o Abismo, a ponto de suplicarem a Jesus que não fossem mandados para lá. Sendo assim, tal abismo não poderia ser simplesmente o lugar mais abaixo para onde os porcos se jogaram, até porque os espíritos ficaram satisfeitos com a opção de se precipitarem morro abaixo. Ou seja, eles permaneceram na Terra e não desceram ao Abismo onde espíritos habitam. Além do mais, o Mar da Galiléia, o lugar do acontecido, não faz parte do oceano. É um grande lago de água doce que fica no interior da Palestina. De qualquer maneira, independentemente do entendimento que tinha de Lucas 8:31, Barnes deixa claro que acreditava na existência de um lugar nas profundezas da Terra onde vivem pessoas espirituais. “Embora o seu corpo estivesse morto, o seu espírito continuou vivendo, e foi no espírito que ele [Cristo] foi e proclamou aos espíritos que agora estão na prisão – os espíritos daqueles que, muito tempo atrás, nos dias de Noé, tinhamse recusado a ouvir a Deus, embora ele esperasse por eles com toda a paciência enquanto Noé estava construindo a arca”. – 1 Pedro 3:18, 19, A Nova Bíblia Viva. “Pedro se refere a eles como estavam no momento da escrita [isto é, na forma de espíritos], e não como eram no momento em que a mensagem foi pregada a eles. A ideia é que tais espíritos que estavam então na prisão, e que viveram antes nos dias de Noé, receberam de fato a mensagem [quando viviam na terra]. Mas o que se quer dizer aqui por prisão?.... A alusão, nessa passagem com a qual nos deparamos, é indubitavelmente algum confinamento ou prisão no mundo invisível, com referência talvez a algum arranjo futuro para os que estão reservados lá – é com este sentido que se usa comumente a palavra prisão”. – Colchetes acrescentados. Nota-se que Barnes tinha a peculiar opinião de que a pregação aos espíritos aprisionados ocorreu antes deles se tornarem espíritos, quando viviam quais seres 81 humanos na época de Noé. Ou seja, não teria sido em sua descida ao Hades que Jesus pregou a tais pessoas. Está aqui a explicação porque ele não vinculou Efésios 4:9 à descida de Cristo ao Hades! Mesmo assim, Barnes afirma que realmente acreditava que existe um lugar nas profundezas da Terra chamado Hades para onde vão os que morrem, e onde estão os espíritos das pessoas desobedientes do mundo pré-diluviano. Logo, ele não nega essa crença, amplamente aceita no Cristianismo desde os seus primórdios. S. D. F. SALMOND O reverendo escocês Stewart Dingwall Fordyce Salmond (1838-1905) foi professor de Teologia Sistemática e Exegese no Free Church College de Aberdeen.1 Foi também editor do The Critical Review of Theological & Philosophical Literature e autor de diversos textos, inclusive do comentário à carta aos Efésios 2 publicado no Expositor's Greek Testament (Novo Testamento do Expositor), de onde foi tirado o trecho citado pelo autor do MB. Também traduziu para o inglês diversas obras do mundo antigo, a exemplo dos textos dos Padres antenicenos. Em 1901, Salmond recebeu da Universidade de Yale o título de Doutor em Divindade.3 1 http://www.theopedia.com/SDF_Salmond 2 https://archive.org/details/ExpositorsGreekTestament.complete2Vols.5Vols..nicoll.1902.1910 3 http://query.nytimes.com/mem/archive-free/pdf?res=9E06E3DD173DE733A25752C2A9629C946497D6CF Salmond tinha alguns diferenciais em relação a outros comentaristas. Ele não aderiu à crença do estado intermediário, da mesma maneira que Barnes, e procurava entender as passagens do Novo Testamento que apontam nessa direção simplesmente como adaptações feitas por Jesus para se ajustarem às crenças de seus ouvintes, no intuito de facilitar a transmissão da mensagem. Além disso, não fazia uso de terminologias teológicas que confundissem o conceito cristão da imortalidade com o conceito pagão. Por isso, ele não usava a expressão “imortalidade da alma”. Mas ele não advogou o aniquilacionismo ou a ideia do “condicionalismo”. No seu livro “A Doutrina Cristã da Imortalidade”* ele dedicou um capítulo inteiro contra tais conceitos (p. 630), e disse que há três categorias de seres vivos: os anjos, os que vivem na terra e os que partiram para o mundo subterrâneo (p. 542). * Baixe o livro aqui: https://archive.org/details/doctrineimmorta00salmuoft (edição de 1896). Considere a seguir alguns trechos extraídos do livro “A Doutrina Cristã da Imortalidade” (pp. 199-206), de Stewart Salmond, onde ele explica o que é a morte, onde fica o Seol – correspondente hebraico de Hades – e quem são os que vão para lá. Durante sua explicação ele menciona em notas ao pé de página os textos bíblicos que corroboram o ponto de vista apresentado, que foram omitidas nas citações abaixo, com uma exceção: “Então, a morte não é o fim do ser, mas a penalidade e redução do ser, que leva a dois resultados distintos – remoção da convivência dos vivos na terra e remoção da 82 convivência de Deus. O homem morto não deixa de existir. Ele passa a uma condição de existência inferior ao que usufruía aqui”. “Mas se a pessoa não deixa de existir integralmente quando morre, onde ela existe e em que condição? A resposta é no mundo subterrâneo e como uma sombra. A ideia de um lugar subterrâneo que reúne os que partiram aparece tanto no Velho Testamento quando entre gregos e babilônios. É descrito com uma variedade de termos. É o poço, as partes inferiores ou mais baixas da terra, Abadon ou Destruição; o poço da destruição; o lugar do silêncio; a terra da escuridão e das sombras da morte. Outras designações poéticas ou ocasionais também são aplicadas a ele. Mas seu nome declarado é Sheol, um termo não confinado a nenhuma parte do Velho Testamento, mas encontrado igualmente no Pentateuco, nos livros poéticos, nos Profetas, e nos escritos da Hochma, expressando provavelmente a ideia de Concavidade*, e diferindo do sentido de sepultura”. * Salmond usou aqui a palavra inglesa hollow, que também poderia ter sido traduzida por “oco” ou “centro” [da terra]. “As ideias de Sheol e de sepultura são tão parecidas que, de fato, elas são facilmente intercambiáveis, e expressões que são apropriadamente aplicadas somente à última são prontamente transferidas para a primeira…. Mas Sheol denota um domínio definido dos mortos, e não é idêntico à sepultura”. “É ao Sheol que Jacó falou que iria, para se juntar ao filho cuja morte ele lamenta, embora nada soubesse sobre seu enterro. É o Sheol que devora Corá e seus seguidores vivos. Que significa uma habitação comum dos mortos, como o Sualu dos babilônios, o Hades dos gregos e o Orco dos romanos, é indicado também pelo fato que as expressões ser ajuntado ao seu povo, ou aos seus pais, ir para seus pais, dormir com seus pais, são usadas em referência a Abraão, Jacó, Aarão, Moisés, Davi e outros, quando seus lugares de descanso temporários ou permanentes já foram removidos há muito tempo de suas sepulturas ancestrais”. [Veja mais detalhes sobre isso no capítulo 20] “Em contraste com o domínio superior de luz e vida, o Sheol é o domínio inferior de trevas e morte. É descrito como nas profundezas da terra, na profunda profundeza, na terra de profundezas, mais baixa que a terra e seus habitantes; É o lugar de desolações, tão abaixo da terra quanto a terra está abaixo do céu. Tal como é o mundo subterrâneo é a terra da escuridão, onde reina o caos, onde até a luz é escuridão”. “Não se diz que o espírito (Ruach) vai para o Sheol, mas que retorna a Deus. Não se diz que a alma (Nephesh) retorna a Deus, e ainda assim o Velho Testamento parece evitar dizer diretamente que ela passa para o Sheol. É a alma, entretanto, que se diz que retornou para a criança a quem Elias restaurou; é a alma que é trazida para cima do Sheol, que é liberada do poço mais baixo, que é resgatada da terra do silêncio. Portanto, o que sobrevive à morte, e desce até o mundo subterrâneo, é a alma ou Nephesh, com a qual a vida pessoal está conectada. Mas está separada do espírito vivificante (Ruach); consequentemente destituída de suas energias volitivas, emocionais e intelectuais, e reduzida a uma sombra”. 83 Essa descrição feita por Salmond, construída a partir de informações fornecidas pela Bíblia, faz lembrar o que Aquiles disse na Ilíada, do escritor grego Homero: “Ora, a certeza que adquiri é que no Hades realmente se encontram as almas e imagens dos vivos, privados, porém, de seu alento”. Ou seja, o corpo fica na terra e a alma vai para o Hades, porém sem o alento (espírito) presente nos seres humanos. – Ilíada 23:103, 104. “Então a pessoa viva se torna no Além uma pessoa morta, retendo uma existência negativa, uma versão enfraquecida do que era antes, com suas faculdades dormentes, sem força, memória, consciência, conhecimento ou a energia de qualquer afeição. A identidade continua; a forma persiste, tanto que ela pode reconhecer e ser reconhecida…. Talvez haja uma continuação ou repetição das circunstâncias e empenhos da terra. Reis podem permanecer reis, e ocupar tronos no Sheol. Mas são sombras de reis em tronos sombrios, numa similitude desprovida de sua anterior dignidade. [nota: Isaías 14:9] A cor se foi em tudo, uma cópia pálida é tudo o que restou. A subsistência vazia, lânguida, gasta e magra, que é tudo o que é possível lá, encontra expressão no nome característico que é dado em Jó, Provérbios e Isaías aos habitantes do Sheol – os Rephaim, as sombras, os habitantes debilitados, flácidos”. “A existência deste Sheol é carregada com dolorosas e frias negações. O conhecimento dos homens na terra, relacionar-se com eles, retornar a eles, tudo se foi para sempre. Os relatos da necromancia devem ser encarados como provas de uma crença de que é possível pelo menos um retorno temporário. Eles devem também servir para mostrar que as pessoas imaginaram que os mortos têm algum conhecimento dos assuntos humanos.... Mas, exceto no caso de Samuel em En-dor (e, mesmo assim, a narrativa é para ser entendida como sendo o próprio homem em sua forma familiar que foi visto lá), o Velho Testamento nada sabe de pessoas que já morreram revisitando a terra, nada de aparições de sombras ou espíritos”. Isto explica porque o rei israelita Saul e seus companheiros (também israelitas) acharam que seria possível um contato excepcional com o falecido profeta Samuel. A lei israelita contra a necromancia apenas proibia tal prática. Nada nela sugeria que a morte é a completa inexistência e que os espíritos que apareciam para os necromantes eram “demônios”, opinião muito comum hoje em dia entre os cristãos (este assunto será discutido no capítulo 22). Quando a necromante “convocou” Samuel e ele “subiu”, vindo do Seol e não da sepultura onde seu corpo estava, Saul realmente acreditou que Samuel se fez presente naquela ocasião. Se Saul achasse que a alma de quem morre não vai para as profundezas da Terra, e que na morte não resta nenhuma alma, ele não teria ido procurar aquela necromante. – 1 Samuel 28:4-7; Deuteronômio 18:11. “Essa existência no mundo das sombras não significa apenas a perda de interesse pela terra e a separação da convivência dos vivos. Significa também a privação das oportunidades de adoração, e a separação do Próprio Deus. No Sheol não há o contentamento das coisas divinas, não há lembrança de Deus, nem adoração de Seu nome. A capacidade e a ação ambas falham nesse domínio de vazio e silêncio. Quem pode dar graças a Deus no Sheol? É a escuridão que pode contar suas maravilhas? A 84 terra é o lugar que Ele tem dado aos filhos dos homens, e quando eles descem ao silêncio do mundo subterrâneo não podem louvá-Lo”. Salmond também traçou um histórico detalhado das crenças judaicas no período intertestamentário que culminou no cenário religioso encontrado por Jesus e seus discípulos. Os judeus do século I continuaram a acreditar que o Seol é o lugar nas profundezas da Terra para onde vão as almas dos que morrem, com o acréscimo de alguns detalhes, a exemplo da existência do seio de Abraão (“o seol dos patriarcas”). Sobre a crença que eles tinham da punição dos ímpios no Seol, Salmond disse: “As palavras em questão devem ser lidas à luz das ideias populares de Sheol. Ou seja, elas significam que os ímpios não têm uma vida real no além, mas não necessariamente que eles não existem. Talvez expressem a crença que os pecadores não são libertados do Sheol; Eles não necessariamente advogam a crença na absoluta extinção dos pecadores”. – p. 363. Como ficou claro nas citações precedentes, Salmond também acreditava na existência de um lugar nas profundezas da Terra onde estão as almas (“sombras”) dos que já morreram. Ele sabia que tal domínio imaterial existe. Mas optou por reter o cenário sombrio sugerido no Velho Testamento sobre o Seol, ou seja, de um lugar onde não se louva a Deus e nem há pregações, onde seus habitantes são versões pálidas e flácidas daquilo que eram quando viviam no mundo dos seres humanos. Por essa razão, Salmond se viu propenso a acreditar que Efésios 4:9 se refere apenas à Terra e não às profundezas dela. Portanto, visto que Salmond afirmou que Efésios 4:9 pode perfeitamente ser traduzido por “partes mais baixas pertencentes à terra”, certamente não foram os detalhes que explicou sobre o texto grego o fator preponderante que justificou sua aparente decisão de preferir a versão “partes mais baixas onde a terra está”. O que ele disse em seu livro “A Doutrina Cristã da Imortalidade” indica o verdadeiro motivo. Os defensores de cada lado no entendimento de Efésios 4:9 A partir da página 530 do seu livro, Salmond apresentou os mesmos argumentos que posteriormente escreveu na obra Expositor's Greek Testament, aquela citada no MB. Sobre os “grupos que apoiavam cada interpretação” das duas possíveis, a maneira como isso foi mencionado pelo autor do MB dá impressão que cada lado teve uma quantidade semelhante de defensores. Mas esta não parece ter sido a conclusão de Salmond, pois ele diz que a maioria dos antigos comentaristas achava que Efésios 4:9 se refere mesmo à descida de Cristo ao Hades. Disse Salmond: “Muitos dos Pais da Igreja, e de fato a maioria dos intérpretes até o tempo de Calvino, entenderam que isto se refere à descida de Cristo ao Hades. A grande maioria dos teólogos luteranos (com algumas notáveis exceções, incluindo Harless) defende o mesmo ponto de vista. Alguns pensam que o relato implica em uma visita de Cristo ao Hades com o intuito de liberar almas”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), p. 530. 85 ‘A cor se foi, no Seol restam cópias pálidas e enfraquecidas’ “Para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão”. – Jó 10:20-22, NVI. “Cercaram-me as cordas da morte e acharam-me as próprias circunstâncias aflitivas do Seol”. – Salmos 116:3. “Sua confiança será arrancada da sua própria tenda e o fará marchar até o rei dos terrores. Na sua tenda residirá algo que não é seu; espalhar-se-á enxofre sobre o seu próprio lugar de permanência. Embaixo se secarão as suas próprias raízes, e em cima, seu ramo murchará.... Empurrá-lo-ão da luz para a escuridão, e afugentá-lo-ão do solo produtivo”. – Jó 18:5-18. “Revelaram-se a ti os portões da morte ou podes ver os portões da sombra tenebrosa? Consideraste inteligentemente os espaços amplos da terra?”. – Jó 38:16-18. 86 Que ideia está em desacordo com o versículo? Da mesma maneira, as palavras que vêm logo em seguida (igualmente apenas dois versículos depois) ao trecho do livro de Efésios que foi mencionado (Efésios 4:8, 9) não foram citadas. O trecho completo diz: “Quando subiu ao alto, levou muitos cativos, cumulou de dons os homens. Ora, que quer dizer ele subiu, senão que antes havia descido a esta terra? Aquele que desceu é também o que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas. A uns ele constituiu apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas, pastores, doutores, para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa à construção do corpo de Cristo.” (Efésios 4:812, CBC) De novo, cabe aqui a pergunta: É a citação de Efésios 4:8, 9 ‘apegar-se estritamente ao que é dito nos textos’ ou isso é isolar versículos para se esquivar de evidência desfavorável? Será que essas palavras de Paulo – lidas no contexto – ‘apontam na direção contrária’ a qualquer outra coisa dita na Bíblia? Quem eram esses “muitos cativos” que Jesus levou quando “subiu ao alto” e a quem “cumulou de dons”? Eram indivíduos que estavam mortos no Hades? Ou eram homens vivos na Terra, que se tornaram parte da congregação que Jesus deixou aqui, e a quem concedeu “dons” para acelerar o progresso de sua Igreja, liderando-os ativamente desde o céu? Existe alguma evidência de que Jesus tenha tirado alguém “das profundezas da Terra” para servir nestas capacidades (apóstolos, profetas, pastores, etc.)? (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”, negrito acrescentado) Acho que aqui está havendo um conflito de entendimento desnecessário. Ao lermos o contexto percebemos que Paulo indica quatro situações distintas: 1) Que Cristo desceu às partes inferiores da Terra. 2) Que depois subiu ao céu, após a ressurreição. 3) Que na sua subida levou cativos com ele. 4) E, em seguida, deu dons aos homens. Por que não encarar literalmente os quatro pontos acima? Não é obrigatório que os itens 3 e 4 se refiram à mesma coisa (neste caso seria preciso dar um sentido figurado ao 3). Podem ser dois momentos distintos do relato. Aceitando-se de maneira literal essas quatro afirmações é possível até acomodar as duas interpretações de Efésios 4:8-10, conforme indicado a seguir: 87 1) Jesus vivia antes no céu. 2) Desceu à Terra pelo nascimento. 3) Foi assassinado e desceu para o Hades. 4) Três dias depois ressuscitou e subiu para a Terra. 5) Depois retornou ao céu levando pessoas antes presas no Hades. 6) De volta ao céu distribuiu dons aos discípulos que ficaram na Terra. 7) Além disso, ascendeu para um lugar ainda mais alto que o próprio céu. Percebe-se que a trajetória descrita nas sete fases acima é bastante ampla, demonstrando que Cristo se fez presente em todos os lugares, duma “extremidade” à outra. O autor do MB citou uma nota da Bíblia do Peregrino que culmina justamente nessa ideia da presença plena de Cristo em todas as partes do Universo, porém o autor do MB omitiu a parte final da nota que menciona isso. A seguir a nota completa: “As ‘profundezas’ podem referir-se à terra dos vivos, em comparação com o céu (Is 44,23; cf. ‘debaixo do sol’ Ecl 4,7.15 etc.); neste caso se refere à encarnação. Também pode designar o mundo subterrâneo, abissal, dos mortos (Dt 32,22; Ez 31,14; Sl 63,10), em cujo caso se refere à morte e sepultura. Ver a viagem cósmica da Sabedoria em Eclo 24,5 e contexto. ‘Todos os céus’ (plural): os três ou sete, segundo diversas representações”. – Nota da Bíblia do Peregrino sobre Efésios 4:7-11. Vejamos o que diz Eclesiástico 24:5, o texto mencionado na nota que descreve a viagem cósmica da Sabedoria*: “A Sabedoria louva a si mesma, gloria-se no meio de seu povo, abre a boca na assembleia do Altíssimo e se gloria diante de suas potestades: Eu saí da boca do Altíssimo e como névoa cobri a terra, habitei no céu, com meu trono sobre coluna de nuvens; somente eu rodeei o arco do céu e passei pela fundura do abismo, regi as ondas do mar e os continentes e todos os povos e nações. Entre todos eles busquei onde descansar e uma herança em que habitar. Então o Criador do universo me ordenou, aquele que me criou estabeleceu minha residência: Reside em Jacó, seja Israel tua herança. Desde o princípio, antes dos séculos me criou, e jamais cessarei. Na santa morada, na presença dele ofereci culto, e em Sião me estabeleci”. – Eclesiástico 24:1-10, Bíblia do Peregrino. * A Sabedoria também é personificada em Provérbios 8:22-36. De acordo com a antiga tradição Cristã, ela representa a pessoa de Cristo, conforme os textos de Mateus 11:19 e 1 Coríntios 1:24. O cenário acima descrito em Eclesiástico se ajusta bem à tradução de Efésios 4:9, 10 que está na Bíblia do Peregrino, por isso seus autores cruzaram entre si os dois relatos: “(Que significa ‘subiu’, senão que desceu às profundezas da terra?) Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima dos céus para plenificar o universo”. 88 “Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima dos céus para plenificar o universo” A gravura acima também faz lembrar o que Paulo disse aos filipenses: “Por esta mesma razão, também, Deus o enalteceu a uma posição superior e lhe deu bondosamente o nome que está acima de todo outro nome, a fim de que, no nome de Jesus, se dobre todo joelho dos no céu, e dos na terra, e dos debaixo do chão, e toda língua reconheça abertamente que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. – Filipenses 2:10, 11. Naturalmente, os aniquilacionistas entendem de maneira literal apenas o que é dito sobre os que estão no céu e na terra. Já a referência aos que estão debaixo do chão (no Hades) é vista em sentido figurado, ou no máximo que diria respeito aos que morreram e serão ressuscitados no futuro para finalmente se submeterem a Cristo. Mas, levando em consideração o conceito correto sobre Hades, tal interpretação não se ajusta ao cenário bíblico. Note o que disse Stewart Salmond sobre o trecho supracitado de Filipenses: “A expressão vertida por ‘dos debaixo do chão’ (καταχθονιίων) ocorre somente nesta passagem, no que se refere ao assunto no Novo Testamento. Mas é usada nos clássicos gregos para se referir aos que moram no Hades, e não é desarrazoado 89 concluir que ela se refere aqui aos mortos no mundo subterrâneo”.* – A Doutrina Cristã da Imortalidade, p. 542. * Nota de Salmond sobre sua conclusão acima: “Conforme [concluíram] Meyer, Alford, Ellicott, Lipsius e a maioria [dos comentaristas]”, colchetes acrescentados. Apesar de ter mantido sua opinião de que Cristo não desceu ao Hades com o intuito pregar uma mensagem de salvação, Salmond deixa claro que os “debaixo do chão” são mesmos os que moram no Hades, como conclui a maioria dos comentaristas bíblicos. E, conforme revela o contexto da obra de Salmond, quando ele disse “moram no Hades” ele não se referiu a algum simbolismo relacionado a corpos que foram sepultados. Ele fez alusão aos que realmente vivem nas profundezas da Terra, ainda que de maneira taciturna, própria de um lugar que não traz contentamento. Portanto, o texto de Efésios pode muito bem comportar todas as etapas referentes à trajetória de Cristo, que se iniciou no Céu, passou pelo Hades e chegou acima de todos os céus. É um quadro perfeitamente possível, ainda mais levando em consideração outras informações da Bíblia, a exemplo da pregação feita aos espíritos em prisão, da existência do seio de Abraão e da acolhida que este daria às pessoas no reino dos céus. – 1 Pedro 3:19; Lucas 16:22; Mateus 8:11. “Somente eu rodeei o arco do céu e passei pela fundura do abismo” O mesmo entendimento por outro caminho Jesus disse: “Ademais, nenhum homem ascendeu ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho do homem. E assim como Moisés ergueu a serpente no ermo, assim tem de ser erguido o Filho do homem, para que todo o que nele crer tenha vida eterna”. – João 3:13-15. “Contudo, eu, quando for erguido da terra, atrairei a mim toda sorte de homens. Dizia isso realmente para indicar de que sorte de morte estava para morrer”. – João 8:31. Tendo em mente o contexto até aqui apresentado, ao combinarmos o que há nos dois textos acima, é possível inferir que: 1) Jesus desceu do céu mediante seu nascimento. 2) Foi para debaixo da terra quando morreu. 3) Em seguida foi erguido de lá. 4) Depois ascendeu ao céu. 90 Sendo assim, na sequência dos eventos, antes de Jesus subir para o céu ele primeiro desceu para o coração da Terra. (Mateus 12:40) De acordo com algumas traduções, o que é dito em Efésios 4:9 coincide perfeitamente com essa realidade: “Que quer dizer ‘subiu’? Quer dizer que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra”. – A Bíblia na Linguagem de Hoje. “Que quer dizer ‘subiu’? Quer dizer que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra”. – Edição Pastoral. “O que quer dizer ‘Ele subiu’, exceto que Ele primeiro desceu às partes mais baixas da terra?”. – The New Testament in the Language of the People, de Charles B. Williams. “O que significa ‘ele subiu’? Significa que primeiro ele desceu para as partes mais profundas da terra”. – Good News Bible. “Agora este ‘Ele ascendeu’ - o que significa a não ser que Ele também primeiro desceu às partes mais baixas da terra?”. – New King James Version. Alguns manuscritos antigos da Bíblia omitem a palavra “primeiro” destacada acima em negrito. É por isso que esse termo não é visto em todas as traduções. Imagine que você fosse um dos discípulos de Jesus que ouviram ele dizendo que (1) passaria três noites no coração da Terra, (2) mas que seria levantado de lá, (3) para depois subir ao céu. Ao se deparar com Efésios 4:9, conforme está nas versões acima, o que viria à sua mente? Que Jesus antes de ir para o céu desceu primeiro à Terra? Ou que desceu primeiro às partes inferiores da Terra antes de subir para o céu? Esta última conclusão parece se encaixar melhor com o relato, pois Jesus já morava na Terra há mais de 30 anos. Sua presença no mundo já era uma realidade e um fato estabelecido. A novidade foi a sua morte (descida ao Hades), seguida por sua ressurreição e ascensão aos céus. – Mateus 12:40. Portanto, nada impede que as palavras de Paulo em Efésios se refiram do item 2 em diante da sequência abaixo: 1) Jesus viveu no mundo mediante seu nascimento. 2) Foi para debaixo da terra quando morreu. 3) Em seguida foi erguido de lá. 4) Depois ascendeu ao céu. O efeito em cadeia de um conceito errado “Ao passo que o apóstolo Pedro mostra que Jesus Cristo pregou a estes ‘espíritos em prisão’, ele também indica que Jesus o fez, não durante os três dias em que se achava sepultado no Hades (Seol), mas depois de ser ressuscitado do Hades”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 3, p. 673, enciclopédia bíblica das Testemunhas de Jeová. 91 Para quem leu tudo o que foi considerado até aqui, não deve haver nenhuma dúvida que o Hades existe de fato, e que a Bíblia informa que ele fica nas profundezas da Terra. De modo que a citação do “Perspicaz” contém um erro que pode passar despercebido para alguns. Ninguém é sepultado no Hades, mas apenas em uma sepultura. No caso de Jesus, em um sepulcro, acima do nível do solo. Além do mais, visto que para as Testemunhas de Jeová (e para o autor do MB) a morte é a própria inexistência, o Hades nada mais é que o símbolo dessa situação. Então, enquanto Jesus estava morto seu espírito não poderia pregar para ninguém, pois não haveria nenhum espírito consciente de Jesus que pudesse fazer isso, embora, de alguma forma, ele realmente existisse antes de Jesus nascer na Terra.* * Será que Deus teria tirado a vida de seu Filho no céu para ressuscitá-lo dentro do ventre de Maria? E o que teria acontecido com o corpo espiritual que possuía na morada celeste? Não é que seja errado achar que Jesus não fez nenhuma pregação no Hades. O problema é a motivação por trás dessa conclusão. Vimos que comentaristas bíblicos, a exemplo de Barnes e Salmond, não acreditavam que tal evento possa ter acontecido, mas essa opinião não foi porque eles negaram a existência literal do Hades nas profundezas da Terra, ou por não acharem que tal lugar é a habitação das almas dos mortos. As razões deles eram de outra ordem. Já os aniquilacionistas chegam à mesma conclusão por não terem compreendido a verdadeira natureza do Hades e por negarem o que o Cristianismo sempre ensinou a respeito desse lugar. Ou seja, o ponto de partida do entendimento deles está errado, causando um “efeito dominó” nos demais conceitos relacionados.* É isto o que explica aquilo que foi afirmado erroneamente na enciclopédia supracitada das Testemunhas de Jeová. * Conforme será visto no capítulo 9, o autor do MB entende de maneira errada o que Paulo disse a respeito de se ausentar do corpo físico para ir viver com Cristo no céu. E a origem do equívoco é exatamente a mesma: o conceito errado de Hades. – 2 Coríntios 5:8, 9; Filipenses 1:21-23. Logo, talvez seja uma perda de tempo conversar com os aniquilacionistas sobre as possibilidades de entendimento de Efésios 4:8-10. Já que eles não entendem (ou não querem entender) o que é o Hades, a questão sobre se Jesus tirou ou não pessoas de lá para viverem no céu torna-se irrelevante. A mente deles travou em uma ideia preconcebida, o que inviabiliza discutir esse detalhe. O mesmo acontece no que é tratado a seguir, para finalizar este capítulo. Quantas noites Jesus passou no Hades? “Porque, assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do enorme peixe, assim estará também o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra”. – Mateus 12:40. Jesus morreu por volta das 15 h de uma sexta-feira e ressuscitou na madrugada do domingo. Sendo assim, seu corpo não passou três noites no sepulcro, conforme indicado na gravura a seguir: 92 O dia judaico começava no início da noite, após o pôr-do-sol. Percebe-se que o período entre a morte e a ressurreição compreendeu a tarde da sexta-feira, o sábado inteiro e as primeiras horas do domingo. Os comentaristas bíblicos costumam dizer que não se deve entender literalmente o que Jesus havia falado de passar “três dias e três noites” no coração da terra, pois essa expressão estaria de acordo com a maneira judaica de computar o tempo. Um pedaço do dia podia ser considerado um dia inteiro. Entendendo-se “dia” como sendo as horas em que há luz do sol, nota-se que o intervalo realmente abrangeu três dias. Entretanto, foram apenas duas noites, conforme indica o desenho. Mas será que existe algo no Novo Testamento que demonstre que foram também “três” noites, assim como foram “três” dias? Uma coisa é certa, o corpo de Jesus realmente passou apenas duas noites no sepulcro, e não há como dizer que foi mais tempo. Mas não foi no sepulcro que Jesus disse que passaria três noites. Ele falou que seria no coração da terra, ou seja, no Hades. O corpo físico de Jesus jamais foi para tal lugar, mas ficou numa câmara mortuária acima do nível do chão. O corpo ficou no sepulcro, mas sua alma foi para o Hades. – Atos 2:22-28. Note agora o que a Bíblia relata sobre o que aconteceu no domingo, após a ressurreição, no dia que precedeu o que seria a terceira noite no Hades: “Ora, enquanto conversavam e palestravam [numa estrada, a caminho de Emaús], aproximou-se o próprio Jesus e começou a andar com eles; mas os olhos deles foram impedidos de reconhecê-lo. Ele lhes disse: ‘Que assuntos são estes que debateis entre vós enquanto estais caminhando?’ E eles ficaram parados de rostos tristes. Em resposta disse-lhe aquele que tinha o nome de Cléopas: ‘Moras sozinho, como forasteiro, em Jerusalém, e não sabes as coisas que ocorreram nela nestes dias?’ E ele lhes disse: ‘Que coisas?’ Disseram-lhe: ‘As coisas a respeito de Jesus, o nazareno, que se tornou profeta poderoso em obras e palavra perante Deus e todo o povo; e como os nossos principais sacerdotes e governantes o entregaram à sentença de morte e o pregaram numa estaca. Mas nós esperávamos que este homem fosse o destinado a 93 livrar Israel; sim, e além de todas estas coisas, este já é o terceiro dia desde que essas coisas ocorreram”. – Lucas 24:13-21. Daí, Jesus passou a explicar para aqueles discípulos as profecias a respeito de si mesmo, a fim de que eles compreendessem que todas aquelas coisas tinham mesmo de ter acontecido. O relato prossegue: “Por fim chegaram perto da aldeia para a qual caminhavam, e ele fez como se fosse caminhar mais para diante. Mas eles exerceram pressão sobre ele, dizendo: ‘Fica conosco, porque já está anoitecendo e o dia já está declinando’. Em vista disso, entrou para ficar com eles. E, ao se recostar com eles à mesa, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e começou a dar-lho. Com isso abriram-se-lhes plenamente os olhos e o reconheceram; e ele desapareceu de diante deles”. – Lucas 24:28-31. Conforme se vê no relato, tão logo a terceira noite começou o ressuscitado Jesus se desmaterializou instantaneamente na frente daqueles discípulos, depois de ter passado a tarde com eles. Sendo assim, já que reassumiu a forma espiritual, o que impediria Jesus de voltar ao Hades naquela mesma noite para continuar a fazer o que talvez tivesse iniciado nas duas noites anteriores? Afinal, no poder do espírito isto seria absolutamente possível. E nem seria preciso ele passar a noite inteira por lá. O tempo que passasse já seria suficiente para cumprir o que ele mesmo dissera, de que passaria três dias e três noites no coração da Terra. Pode ser até que tenha sido nessa terceira e última noite que ele pregou aos espíritos em prisão ou aos anjos confinados no Tártaro. Portanto, as palavras de Jesus em Mateus 12:40 podem ter tido um cumprimento duplo, referente (1) à sua ressurreição e (2) à sua descida ao Hades. 94 Capítulo 8 OS HOMENS NÃO PODEM MATAR A ALMA “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Jesus Cristo, em Mateus 10:28. “[Os homens] não têm nenhum poder para ferir a alma, a parte imaterial. O corpo é a matéria menor, em comparação com a alma”. – Albert Barnes, comentarista bíblico. “Por acaso Jesus afirmou que os homens não podem matar a pessoa (alma)? A resposta é ‘Não’.”. – autor do MB. Visto que essa “conversa” com o autor do MB já vem de muitos meses (na verdade, anos), acho que alguns no meu lugar, ao se depararem com o que ele disse acima, nem teriam mais paciência de prosseguir com essa discussão e entregariam o caso a Deus. Especialmente porque sua confiante afirmação foi escrita depois que eu postei no meu website o que está nos apêndices A3 ao A7, o que demonstra que ele se fechou mais ainda depois que leu o que está lá, recusando-se terminantemente a sair do “círculo” limitante que criou ao redor de si. De qualquer modo, vamos lá! De novo... Para o autor do MB a alma mencionada por Jesus em Mateus 10:28 é simplesmente a pessoa. Então, o texto teria o seguinte sentido: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a pessoa”. E na sequência da citação anterior, o autor do MB prossegue: Assim como Ezequiel, Jesus colocou sim, a possibilidade de os homens matarem uma pessoa.... Por que? Porque Jesus disse claramente que os homens matam o corpo. (Artigo “Textos 'Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas'?”) Consequentemente: Matar o corpo = matar a pessoa Então, o texto poderia ser lido assim: “Não fiqueis temerosos dos que matam a pessoa, mas não podem matar a pessoa”. Ou seja, pela lógica, esse raciocínio leva apenas a um beco sem saída. Mas o autor do MB fez um “buraco” no “muro” para sair da encurralada que ele próprio criou, conforme segue: Se é assim, por que disse Jesus que os homens “não podem matar a alma”? Porque os homens só são capazes de matar o corpo de uma pessoa, mas eles não podem eliminar a própria pessoa para sempre. (Artigo “Mateus 10:28”) 95 Sendo assim, para o autor do MB, o que Jesus queria dizer foi: “Não fiqueis temerosos dos que matam a pessoa, mas não podem eliminar essa pessoa para sempre”. O motivo? Porque Deus irá recriar a pessoa no futuro, através da “ressurreição”. Mas pergunte-se: Se foi mesmo isso o que Jesus queria dizer, por qual motivo ele não usou exatamente tais palavras ou alguma expressão semelhante? Jesus certamente sabia que o conceito predominante dos judeus de sua época (ou seja, seus ouvintes) é que o homem possui uma alma que se separa do corpo por ocasião da morte. Se fosse a alma de um justo ela seria levada ao paradísico Seio de Abraão. Se fosse a de um ímpio iria sofrer duras penas na parte caótica do Hades. Ou seja, quando Jesus usou a fraseologia que está registrada em Mateus 10:28 isso facilmente poderia fazer uma parte de seus ouvintes visualizar a alma indo para um desses dois cenários após a morte. Portanto, para o autor do MB a “alma” mencionada em Mateus 10:28 é tão somente a perspectiva de vida futura de quem morreu, conforme as Testemunhas de Jeová definem em suas publicações: “Sim, é Jeová quem não só pode destruir a ‘alma’ da pessoa (neste caso significando as perspectivas futuras dela como alma vivente), mas que pode até mesmo ressuscitar a pessoa para usufruir a vida eterna”. – A Sentinela, 01/08/87, p. 9. “Fazendo referência à ‘alma’ separadamente, Jesus sublinha aqui que Deus pode destruir todas as perspectivas de vida de uma pessoa; assim, não há esperança de ressurreição para tal pessoa”. – Raciocínios à Base das Escrituras, p. 196. Aliás, fazer “referência à ‘alma’ separadamente” é mais uma evidência que aquilo dito por Jesus não é exatamente o que os aniquilacionistas entendem por “alma”. Essa estrutura chamou a atenção do escritor das Testemunhas de Jeová, que tratou logo de tentar neutralizá-la, apresentando a explicação de sempre (perspectivas de vida futura). Apenas para registrar, outro artigo do MB oferece mais uma possibilidade de tradução para Mateus 10:28. Diz ele: .... Por outro lado, a semelhança de contexto [com Mateus 16:25] sugere que a palavra “alma” em Mateus 10:28 pode perfeitamente ser traduzida como “vida”. (Artigo “Mateus 10:28”, os colchetes em negrito foram acrescentados) Vejamos se a proposta resolve o problema, reescrevendo o versículo: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a vida”. 96 Acho que não ajudou muito, pois um corpo para ser morto precisa antes estar vivo. E quando ele morre às mãos de um assassino a vida chega igualmente ao fim, não é mesmo? Então, quem mata um corpo mata também a vida. Novamente, apenas uma esticada mental faria a palavra “vida” nessa tradução alternativa ter sentido: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a vida futura de quem morreu”.* * Houve um tradutor do século 19 que já tentou importar essa ideia para dentro de Mateus 10:28. Ele publicou um Novo Testamento Interlinear onde verteu esse versículo da seguinte maneira: “Não temam aqueles que matam o corpo, mas não podem destruir a vida [futura]”. (Os colchetes são dele). Essa tradução pode ser adquirida neste link: https://archive.org/details/emphaticdiaglott00wils. Os direitos autorais de sua edição mais recente pertencem à Torre de Vigia, entidade jurídica dirigente das Testemunhas de Jeová. A edição de 2015 da Tradução do Novo Mundo contém uma nota marginal que também induz o leitor à mesma ideia de “vida futura”. Diz a nota: “Ou: ‘vida’, isto é, a perspectiva de vida”. – Emphatic Diaglott (1864), de Benjamin Wilson; Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada (2015). Além do mais, traduzir a palavra alma por “vida” tem outra consequência que complica a vida do autor do MB. Segundo ele, ir para o Seol é sinônimo de ir para a sepultura. Sendo assim, não existiria vida no Seol, mas apenas um corpo morto. Mas note como fica o seguinte texto bíblico numa tradução que trocou “alma” por “vida”: “Não abandonarás minha vida no Xeol”. – Salmos 16:10, Bíblia de Jerusalém. Para quem disse que não devemos usar de artifícios para compreender a Bíblia, o autor do MB deveria repensar o caminho que optou para “anular” o que está em Mateus 10:28, não acha? 97 (Página em branco) 98 Capítulo 9 SOBRE A PALAVRA IMORTALIDADE Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena. Mateus 10:28, Bíblia de Jerusalém (BJ) Sobre o versículo acima, um artigo do MB diz: Estas declarações deveriam ser mais do que suficientes para comprovar que, biblicamente falando, a alma não é indestrutível, portanto ela não pode ser imortal. (Artigo “Mateus 10:28”) Aqui é outro caso que eu considero controvérsia desnecessária, em virtude do que foi visto no capítulo anterior. Para o autor do MB a alma mencionada é apenas o ser humano com seu corpo orgânico, que é indubitavelmente morredouro e destrutível. Esta conclusão, porém, contradiz o próprio versículo, pois Jesus disse claramente que os homens não podem matar a alma. Mas, como já vimos, o autor do MB afirma que Jesus não falou isso e adentra em um raciocínio circular que não leva a lugar algum. Na realidade, a alma a que Jesus se referiu é aquela mesma que a Bíblia informa vez após vez que vai para as profundezas da Terra, após a morte do corpo físico. Portanto, inalcançável para os homens e protegida de qualquer intenção assassina dos seres humanos. Obviamente, ela tem uma natureza imaterial, por isso não pode ser vista, da mesma maneira que os espíritos. Isto fica implícito na parábola do mendigo Lázaro, segundo a qual ele foi levado pelos anjos ao Seio de Abraão.* Se o corpo do mendigo ficou na sepultura, logicamente a sua alma espiritual é que foi acompanhada pelos invisíveis anjos e recepcionada por Abraão. Logo, a alma não morre, mas apenas o corpo. – Salmo 86:13; Lucas 16:22; Atos 2:27. * Há uma consideração no capítulo 20 sobre o motivo da Bíblia não usar a expressão “a alma do mendigo foi para o Seio de Abraão”, mas sim que ele próprio foi para lá. Por outro lado, Deus, por ser Todo-poderoso, tem o poder para eliminar da existência qualquer pessoa de todos os Universos, inclusive as que estão no Hades. É claro que Ele não se apraz dessa possibilidade, pois quer que todas as pessoas vivam para sempre. (2 Pedro 3:9). No entanto, o poder que ele tem de destruir qualquer criatura permanece. Essa ideia é lógica e não se limita às páginas da Bíblia. Por esta razão, uma alma que aguarda a ressurreição no Hades só existirá para sempre se Deus assim quiser. Ela não é imortal em sentido absoluto. Sua existência indefinida necessita da anuência do seu Criador. Nada existe de errado em encarar o assunto dessa maneira. No entanto, o autor do MB resolveu polemizar tal ponto de vista, ao escrever o que está transcrito na página seguinte: 99 Isto se aplica à própria expressão “imortalidade da alma”, que é “capital” na doutrina deles. Conforme qualquer leitor da Bíblia sabe, esta expressão também não existe lá. O termo “imortalidade”, na Bíblia, é aplicado unicamente ao próprio Deus, ou a alguém a quem Ele decida concedê-la, pelo fato de ter absoluta certeza da fidelidade dessa pessoa (como é o caso de seu Filho). Jamais esse termo “imortalidade” é associado à alma humana. Toda pessoa normal sabe também que o termo “imortal” significa “que não morre” ou “que não tem fim”, portanto, “imortalidade” significa “a qualidade daquilo que não morre” ou “que não tem fim”. Esta definição está refletida na seguinte referência: “Guarde este mandamento imaculado, irrepreensível, até a manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo, a qual Deus fará se cumprir no seu devido tempo. Ele [Deus] é o bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que é imortal e habita em luz inacessível, a quem ninguém viu nem pode ver.” (1 Tim. 6:14-16, NVI) …. Quem são os que fazem esforço para alterar a definição de “imortalidade”? Ora, ninguém além dos promotores da “imortalidade da alma”! Segundo eles, é como se devêssemos imaginar que Deus concedeu ao Filho algum tipo de “imortalidade” que pode ser “revogada” a qualquer momento. Isso levanta as questões: Por que Deus faria essa coisa? Tem Ele alguma “dúvida” quanto à lealdade de Cristo? Será que Deus não sabe dizer se Cristo será sempre fiel a Ele no futuro, e por isso optou por conceder-lhe apenas algum tipo de “imortalidade relativa”? Onde é que está a onisciência de Deus e a capacidade dele de predizer o futuro? A motivação dos que fazem isso é sempre a mesma: procurar convencer outros (e talvez a si próprios) de que existem mesmo múltiplas acepções para esta palavra bíblica. Assim, seja por aparentemente terem “esquecido” o significado da palavra imortalidade, seja na ânsia de se esquivarem dos questionamentos gerados pelo conceito da natureza humana que defendem, e como se já não bastassem os demais “sentidos restritos”, os proponentes da “imortalidade da alma” cunharam também a expressão “imortalidade restrita” (seja lá o que isso signifique!). Isso só faz reforçar a impressão que foi mencionada no primeiro parágrafo deste Apêndice [sobre supostas redefinições de termos bíblicos propostas pelos “imortalistas”]. (Artigo “Textos acrescentados) 'Mal Aplicados Pelos 100 Aniquilacionistas'?”, colchetes O autor do MB claramente divagou em suas interpretações*, desviando o foco para argumentos que não têm nenhum impacto na questão. Para quem gosta de fazer alusão à figura do “espantalho” isso me causa alguma admiração. A onisciência de Deus ao conceder a imortalidade não foi questionada. Deus não considera a possibilidade de revogar a imortalidade concedida a Jesus, da mesma maneira que não revogará a dos justos que forem aperfeiçoados. Deus apenas detém tal poder. Não é isto que faz alguém mais ou menos imortal, dentre aqueles que nunca morrem. Então, não há necessidade dessa digressão. * O autor do MB diferiu aqui do entendimento das Testemunhas de Jeová, segundo o qual 1 Timóteo 6:16 se refere a Jesus, não a Deus. Sobre isso, veja o antepenúltimo tópico do apêndice A6. – A Sentinela, 01/09/05, p. 27. Imortalidade absoluta e imortalidade relativa Sim, além de Jesus, há outros que estão vivos neste exato momento que jamais morrerão. Os anjos fiéis fazem parte desse grupo de pessoas. Eles são espíritos poderosos que já estão vivos há muitos milênios e assim estarão por toda a eternidade. Eles não envelhecem, não podem ser assassinados e não correm o risco de perder a vida por algum acidente fatal. Ou seja, eles não têm fim. No entanto, eles também não possuem a imortalidade absoluta, pois Deus tem o poder de destruir qualquer um deles, embora saibamos que Ele não fará isso. Além disso, eles não têm o tipo de imortalidade concedida ao Filho, aquele que tem “vida em si mesmo” e pode concedêla a outros, da mesma maneira que o Pai Celestial pode. – João 5:26; Hebreus 1:7. O mesmo já não acontece com o ser humano, que morre e perece. No entanto, isso não acontece com sua alma. Ela vai para o Hades (ou Seol) e lá fica preservada pelo tempo que Deus determinar, conforme visto com detalhes nos capítulos anteriores. Ela é imortal apenas no sentido de que não desaparece, diferentemente do corpo onde antes estava. Mas ela não é indestrutível, pois Deus poderia destruí-la, se quisesse. – Salmos 49:15; Mateus 10:28. A noção de que nunca morrer não significa necessariamente possuir a imortalidade pode ser ilustrada pela vida que, segundo a Bíblia, Adão e Eva desfrutavam. Se eles não tivessem comido do fruto proibido jamais teriam morrido e permaneceriam vivos para sempre. Entretanto, se algum deles caísse de um penhasco morreria, a menos que Deus o salvasse. Ou seja, a imortalidade que eles usufruiriam seria dependente da proteção de Deus, portanto, relativa ou restrita a tal condição. Mesma situação ocorreria com Jesus, caso não tivesse sido assassinado. Por ter sido totalmente justo e sem pecado ele não envelheceria nem morreria. Mas por habitar em um corpo físico, frágil por natureza, necessitaria da proteção de Deus para continuar vivendo indefinidamente na condição de homem. – Gênesis 3:22; Salmos 37:29; 91:11, Romanos 6:23. Considerando a possibilidade da ciência um dia alcançar um estágio tal que poderia fazer o homem viver por tempo indefinido, o físico e escritor Alan E. Nourse disse: 101 “O conhecimento que adquirimos em tais pesquisas nos fornecerá as armas de que necessitamos para combater o último inimigo - a Morte - em seu próprio campo. Isso colocará a imortalidade relativa a nosso alcance”. – Despertai! 22/04/90, p. 4. Conforme pode ser visto, não são apenas os “proponentes da imortalidade da alma” que conseguem visualizar uma imortalidade relativa, em contraste com uma imortalidade absoluta, ainda que no campo hipotético. Ao menos neste detalhe as Testemunhas de Jeová entenderam o conceito, como pode ser visto a seguir: “Por fim, o pecado que alienara Adão e Eva de Jeová Deus levou à sua morte. Não possuíam a imortalidade. Sua vida dependia de Deus”. – Despertai!, 08/06/72, p. 28. “Anjos são criaturas espirituais, mas não são imortais, porque os que se tornam demônios iníquos serão destruídos”. – Estudo Perspicaz, vol. 3, p. 783. A palavra “imortalidade” não aparece no Antigo Testamento, sendo encontrada somente no capítulo 15 de 1 Coríntios (referente à ressurreição) e no texto citado da carta à Timóteo (referente ao Único que tem imortalidade). A Bíblia também não traz nenhuma definição de imortalidade, de modo que é irrelevante dizer que os “imortalistas” negam o sentido que é aceito por “toda pessoa normal”. É preciso buscar fora da Bíblia conceituações sobre o referido termo. Veja abaixo dois exemplos: “Imortalidade, na filosofia e na religião, a continuidade da existência espiritual do homem, a existência depois da morte do corpo. O conceito de imortalidade é distinto do conceito da ressurreição do corpo”. – Enciclopédia Britânica (2003), vol. 6, p. 268, verberte “imortalidade”. “IMORTALIDADE, s. f. qualidade ou condição do que é imortal, do que não pode perecer: O sistema, além disso, compreende os princípios da educação moral, da ideia de Deus, da imortalidade da alma”. – Dicionário Caldas Aulete. No entanto, existem ideias implícitas nos textos bíblicos sobre a imortalidade, os quais demonstram que apenas Deus possui imortalidade absoluta, em contraste com a imortalidade relativa usufruída pelos anjos e aquela experimentada pelas almas no Hades. Sobre isso, ao comentar 1 Timóteo 6:16, o comentarista Albert Barnes disse: “Verso 16. O único que possui imortalidade. A palavra aqui - ayanasia - significa apropriadamente isenção da morte, e parece se referir a Deus, em sua natureza própria, que desfruta uma perfeita e certa isenção da morte. As criaturas têm somente a imortalidade que deriva dele, e obviamente dele dependem. Ele já a possui por sua própria natureza, não sendo então derivada [de ninguém], e não pode ser privado dela. Ela é um dos atributos essenciais de seu ser, e ele irá sempre existir, e a morte não pode alcançá-lo”. – Barnes New Testament Notes (1949), p. 3570, colchetes acrescentados. Portanto, não há absolutamente nenhum problema em se fazer tal distinção: imortalidade absoluta e imortalidade restrita, pois são realidades implícitas nas palavras da Bíblia, conforme pontuou Barnes. O autor do MB não quer enxergar isso 102 por conta de sua leitura peculiar de Mateus 10:28, aprendida na religião Testemunhas de Jeová. Linguagem teológica, conceitos e redefinições Foi mencionado no artigo do MB que a expressão “imortalidade da alma” não aparece na Bíblia. Isto é verdade, porém a ideia de que a alma não morre por ocasião da morte do corpo está subentendida em vários lugares, como quando Jesus disse que os homens só podem matar o corpo, mas não podem matar a alma. Esta é a leitura natural dessa afirmação de Jesus e é assim que os cristãos a entendem desde os primórdios da Igreja. Conforme visto no capítulo 8, é preciso uma reinterpretação bem forçada para entendê-la de outra maneira. Foi o que fez o autor do MB, e ainda acusou os “imortalistas” de elaborarem novas definições dos termos bíblicos. Como se os especialistas nessa “técnica” não fossem justamente os aniquilacionistas! Exemplos dessas redefinições foram comentados no capítulo 5. Na verdade, a linguagem teológica utilizada para se referir à continuidade da alma após a morte é apenas uma maneira de explicar o assunto. Ela não é necessariamente perfeita. Mas na falta de uma melhor, ela é utilizada. Dizer, por exemplo, que o ser humano é tricotômico é apenas uma forma de explicar que ele é formado por corpo, alma e espírito. Por mais que os aniquilacionistas rejeitem essa ideia, ela é sim uma realidade apresentada pela Bíblia, embora os escritores bíblicos não tenham usado o termo “tricotômico”. Note alguns exemplos: “E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18. Compare com Lucas 8:49-56. “Qual entre todos estes não sabe muito bem que a própria mão de Jeová fez isso, tendo ele na mão a alma de todo o vivente, e o espírito de toda a carne de homem?”. – Jó 12:9, 10. “Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele [no homem], continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 22, colchetes acrescentados. “Almejei-te com a minha alma durante a noite; sim, com o meu espírito dentro de mim estou à procura de ti; porque, quando há julgamentos teus para a terra, os habitantes do solo produtivo certamente aprenderão a justiça”. – Isaías 26:9. “Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. – Mateus 6:25. “Porque não deixarás a minha alma no Hades”. – Atos 2:27. “Estas pessoas prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. Com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto 103 ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:5, 6; compare com 1 Pedro 3:18, 19. “Entregueis tal homem a Satanás, para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor”. – 1 Coríntios 5:5. “Porque a palavra de Deus é viva e exerce poder, e é mais afiada do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e da sua medula”. – Hebreus 4:12 (aqui as ‘juntas e medula’ representam o corpo). “O próprio Deus de paz vos santifique completamente. Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós, dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 5:23. (Naturalmente, a carne mencionada nos textos acima se refere ao corpo físico). Mesmo considerando o conceito que alguns cristãos sustentam de que todas as almas existirão para sempre, no paraíso ou na Geena, isto não elimina o fato de que Deus tem o poder de erradicá-las da existência. Seria sempre uma imortalidade dependente da vontade de Deus. Então, a expressão “imortalidade da alma” realmente não é tão precisa. A natureza da alma seria melhor descrita com outros termos, a exemplo de “imortalidade restrita da alma” ou “ou imortalidade relativa da alma”. Mas as publicações teológicas não costumam fazer tal distinção.* * O autor do MB disse: “Os proponentes da ‘imortalidade da alma’ cunharam também a expressão ‘imortalidade restrita’.”. Na verdade, fui eu mesmo que pensei nessa classificação. Eu não a tirei de nenhum lugar. Nem sei se existe algum comentarista bíblico que a utiliza. De qualquer maneira, para entender o que a Bíblia realmente diz sobre a sobrevivência da alma (e do espírito) após a morte do corpo não é preciso recorrer à linguagem teológica costumeira. Não importa o nome que se dê. Basta compreender que a razão da Bíblia mencionar o corpo, a alma e o espírito separadamente é porque o homem é formado por tais elementos constitutivos. Não aceitar isto é negar a essência dos textos supracitados. Pela mesma razão, a expressão “imortalidade da alma” também não é obrigatória, muito menos “capital” para o Cristianismo histórico. Ela é usada apenas para informar que a alma continua existindo em outro lugar após a morte do corpo. Não usar tal expressão tem até a vantagem de manter o conceito cristão de imortalidade mais distante do conceito de Platão, que realmente advogava que a alma é indestrutível, como informa a Enciclopédia Britânica: “A imortalidade também foi um dos problemas principais do pensamento de Platão. Em apoio à ideia de que a realidade, como tal, é fundamentalmente espiritual, ele tentou provar a imortalidade, sustentando que nada poderia destruir a alma”. – Enciclopédia Britânica, Ibid. Como vimos, tal concepção é errônea, pois Deus tem o poder para destruir a alma. O que demonstra que o conceito cristão de “imortalidade” da alma não era o mesmo de 104 Platão e dos gregos que o seguiram. E ainda havia outras diferenças. Mesmo assim os aniquilacionistas costumam tentar vincular a crença cristã sobre a alma ao pensamento grego. Interessante que houve outra corrente filosófica grega que faz lembrar exatamente o ensino dos aniquilacionistas, de acordo com a mesma enciclopédia: “Os Epicureus, a partir de uma visão materialista, acreditavam que não há consciência depois da morte, e por isso ela não é para ser temida”. – Enciclopédia Britânica, Ibid. Não que o pensamento aniquilacionista de hoje derive da opinião dos epicureus, mas o paralelo não deixa de chamar atenção. Segundo alguns comentaristas*, o apóstolo Paulo tinha em mente os epicureus na conclusão do texto abaixo: “Eu enfrento a morte diariamente. Isto afirmo pela exultação sobre vós, irmãos, a qual tenho em Cristo Jesus, nosso Senhor. Se eu, igual aos homens, tenho lutado com feras em Éfeso, que me aproveita isso? Se os mortos não hão de ser levantados, ‘comamos e bebamos, pois amanhã morreremos’.”. – 1 Coríntios 15:30, 31. * Há também comentaristas que acham que Paulo estava citando Isaías 22:13. Mas pode ser que Paulo tivesse em mente as duas coisas: o trecho de Isaías e o lema dos epicureus. Veja The Expositor’s Greek Testament (1902), vol. 2, p. 932, Barnes New Testament Notes (1949), p. 2769, e Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 1, p. 823. Certa vez, o apóstolo Paulo fez um discurso no Areópago e seus ouvintes eram justamente os epicureus, além dos estóicos e talvez alguns outros. O discurso culminou na informação sobre a ressurreição de Jesus, momento em que a assistência se desfez e alguns começaram a caçoar de Paulo. (Atos 17:16-34). O motivo principal do desdém é que os estóicos e os epicureus não acreditavam na imortalidade da alma. Sobre estes e o episódio no Areópago, Albert Barnes comentou: “Esta seita de filósofos foi assim nomeada por causa de Epicuro, que viveu 300 anos antes da era Cristã. Eles negavam que o mundo foi criado por Deus, e que os deuses exerciam qualquer cuidado ou providência sobre os assuntos humanos, e também a imortalidade da alma. Contra essas posições da seita, Paulo direcionou seu principal argumento, ao sustentar que o mundo foi criado e é governado por Deus”. – Barnes New Testament Notes (1949), p. 1629-1630. Outro argumento que colidiu frontalmente contra um conceito dos epicureus foi a informação de que Deus levantou Jesus dentre os mortos. Os epicureus não acreditavam que a alma continuasse viva após a morte do corpo. Ou seja, não haveria nenhuma alma que pudesse ser trazida do Hades mediante uma ressurreição. Então, eles tinham ainda mais propensão a rejeitar o que Paulo disse do que seus contemporâneos aderentes do platonismo. Estes não viam necessidade de uma ressurreição porque achavam que a alma já passava a desfrutar daquilo reservado a ela logo depois da morte do corpo. Mas se ajustassem seu ponto de vista aceitariam muito mais facilmente o que foi dito a seguir: 105 “Homens de Israel, ouvi estas palavras: ....eliminastes [Jesus, o nazareno]. Mas Deus o ressuscitou por afrouxar as ânsias da morte, porque não era possível que ele continuasse a ser segurado por ela. Pois, Davi diz com respeito a ele: ‘.... não deixarás a minha alma no Hades, nem permitirás que aquele que te é leal veja a corrupção’.”. – Atos 2:22-28, colchetes acrescentados. É claro que os gregos não vinculariam a expressão “alma no Hades” a um corpo na sepultura, mas sim a uma alma nas partes subterrâneas da Terra. Percebe-se que existe uma clara conexão entre a ressurreição e a alma que fica no Hades após a morte. Biblicamente falando (e aqui é biblicamente mesmo!), levantar uma pessoa dentre os mortos significa tirar sua alma definitivamente das profundezas do Hades, fazendo-a voltar para o corpo que tinha ou para um novo corpo. Mas isto só pode ser feito se, de fato, existir uma alma viva no Hades aguardando esse momento. A mesma correlação pode ser vista naquilo que Jesus disse aos saduceus sobre a ressurreição: “Mas, a respeito dos mortos, que eles são levantados, não lestes no livro de Moisés, no relato sobre o espinheiro, que Deus lhe disse: ‘Eu sou o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’? Ele não é Deus de mortos, mas de viventes”. – Marcos 12:26, 27. Conforme indicado na parábola do rico e Lázaro, Abrãao, Isaque e Jacó certamente estão numa situação muito melhor do que os que morreram na iniquidade, pois estes não podem chamar de vida as dificuldades pelas quais passam no mundo dos mortos. (Lucas 16:19-31). Mas, de uma maneira ou de outra, não seria possível trazer do Hades quem realmente não se encontra lá ou se o Hades onde ficam as almas dos falecidos não existisse. Conforme está comentado no último tópico deste capítulo, o verbo “levantar” é utilizado na Bíblia para descrever a atitude compassiva de um pastor ao puxar para cima uma ovelhinha viva que caiu dentro de uma cova. O mesmíssimo verbo é usado para se referir à ressurreição, resultando assim em um paralelo que nos faz visualizar que as almas que “caíram” na cova profunda do Seol estão vivas e podem ser levantadas de lá pelo Filho de Deus. Note agora o seguinte: similarmente aos gregos epicureus, para quem Paulo discursou, os judeus saduceus que ouviram a explicação de Jesus sobre a ressurreição não acreditavam na imortalidade da alma, diferentemente dos fariseus de onde Paulo saiu antes de se tornar cristão. (Estudo Perspicaz, vol. 3, p. 491). Então, quando o Novo Testamento menciona que os saduceus eram aqueles que diziam “não haver ressurreição” é precisamente dentro desse contexto da incredulidade deles em relação à existência da alma após a morte do corpo. Ou seja, por negarem que os mortos estão vivos em algum lugar, mediantes suas almas, os saduceus e epicureus tornavam-se inaptos para aceitar prontamente o que Jesus e Paulo explicaram sobre trazer quem está no mundo dos mortos, o que implica em dizer que há realmente pessoas lá, que serão “puxadas para cima” pelo pastor Maior, Jesus Cristo. 106 O que foi explicado até aqui nos remete inevitavelmente à situação atual dos aniquilacionistas. Como é que eles podem compreender o que é a ressurreição bíblica, se não acreditam que a alma continua existindo depois da morte do corpo? Não, não podem. Aliás, eles não crêem nem na existência do Hades. Ao pregarem a completa inexistência dos que morreram eles se desvinculam completamente do cenário apresentado na Bíblia sobre o assunto. Esta é a consequência do Materialismo. Pelo mesmo motivo os aniquilacionistas não entendem a explicação de Jesus sobre as palavras que Moisés ouviu vindas do espinheiro ardente: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”. (Êxodo 3:6). Se foi dito que Ele não é Deus de mortos, mas de vivos, não há porque duvidar dessas palavras. Mas isto só pode ser aceito compreendendo primeiramente que a alma permanece viva no Hades após a morte do corpo. É claro que existe uma importante diferença dos estóicos, epicureus e saduceus em relação aos aniquilacionistas de hoje. Estes têm a mesma incredulidade com respeito à “imortalidade” da alma, porém, já que também professam o Cristianismo, tentam adaptá-la ao que o Novo Testamento apresenta sobre a ressurreição dos mortos. E essa adaptação nada mais é do que criar redefinições para os termos cujos significados são os mesmos para os cristãos desde o início do Cristianismo. Ninguém lendo apenas a Bíblia chegará à conclusão que Hades é a “sepultura comum da humanidade” (e aqui realmente cabe um “seja lá o que isso signifique”) ou então o símbolo da inexistência. Os cristãos antigos nunca pensaram isso. Desde o início eles acreditam que o Hades é literalmente um lugar no interior da Terra, posteriormente chamado de Inferno quando a Bíblia passou pela língua latina. Somente com o surgimento dos aniquilacionistas materialistas é que tal conceito passou a ser contestado. Portanto, quando o autor do MB critica as terminologias desenvolvidas na Teologia para se referir ao que foi explicado neste capítulo, ele dá as costas ao que realmente devia ser objeto de maior preocupação e reflexão. O anacronismo e a incoerência do aniquilacionismo é tão grande em relação ao cenário apresentado pela Bíblia que qualquer falha detectada na linguagem referente à existência da alma após a morte torna-se insignificante. O autor do MB tem coisas muito mais sérias para se preocupar, caso leia e entenda tudo o que está aqui publicado. Além disso, já está muito claro quem são os verdadeiros experts em redefinições “bíblicas”. Depois do tópico seguinte há um exemplo bem interessante. A existência fora do corpo físico O apóstolo Paulo nunca se retratou da crença na “imortalidade” da alma que aprendeu no tempo que foi fariseu, nem escreveu nada contra tal conceito. Isto é uma evidência que ele manteve esse entendimento, pois, como sabemos, quando alguém se converte a uma religião com ensinos contrários ao que antes acreditava, uma das primeiras coisas que o convertido faz é explicar para as pessoas que suas crenças anteriores estavam erradas. E no caso de Paulo dificilmente ele não faria isso, caso 107 tivesse repudiado completamente o que antes acreditava. A tendência seria ele se retratar ainda mais intensamente, pois foi uma figura proeminente no Cristianismo, conhecido pelo ensino vigoroso e zelo pela verdade de Deus. De qualquer modo, a expressão grega “imortalidade da alma” não deve ter tido nenhuma relevância para Paulo, pois ele e nenhum escritor do Novo Testamento a utilizou. No entanto, ele revelou em seus escritos uma concepção que circunda o conceito de uma existência à parte do corpo biológico. Por exemplo, certa vez ele disse que foi transportado numa visão para o terceiro céu, mas não sabia se isso tinha sido no ‘corpo ou fora do corpo’. Esta linguagem demonstra que ele continuou a acreditar numa existência consciente fora do corpo*, que nada mais é que a parte espiritual do homem. – 2 Coríntios 12:1-4. * Há relatos atuais de pessoas que afirmam que tiveram experiências conscientes fora do corpo, e os que estudam esse assunto dizem que isso acontece conosco durante o sono profundo, mas não nos recordamos depois. Eles também asseveram que durante esse desprendimento não é quebrada a conexão entre a alma e o corpo, pois da nuca da alma haveria um filamento de energia que permanece ligado na testa do corpo. É o que eles chamam de “fio de prata”. O mesmo acontece quando ele menciona sua morte e num sentido ainda mais ampliado do que apenas ir para o Hades. Disse ele: “Minha expectativa e esperança é de que em nada serei confundido, mas com toda ousadia, agora como sempre, Cristo será engrandecido no meu corpo, pela vida ou pela morte. Pois para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se o viver na carne me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem o que escolher. Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém (BJ). Sobre essas palavras de Paulo aos filipenses, Albert Barnes comentou: “(1) Paulo acreditava que a alma do cristão estaria imediatamente com o Salvador depois da morte. Evidentemente sua expectativa foi de que passaria imediatamente para a presença dele, e não que ficaria aguardando em um estado intermediário até um distante momento futuro. (2) A alma não fica dormindo na morte. Paulo esperava estar com Cristo, e consciente do fato - para vê-lo e compartilhar de sua glória”. – Barnes New Testament Notes (1949), p. 3199. O que faz também lembrar algo que Paulo disse aos tessalonincenses: “Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia”. – 1 Tessaloninceses 4:14, BJ. Aos coríntios, o apóstolo Paulo transmite uma mensagem semelhante àquela recebida pelos filipenses: “Temos, portanto, sempre boa coragem e sabemos que, enquanto tivermos o nosso lar no corpo, estamos ausentes do Senhor, pois estamos andando pela fé, não pela 108 vista. Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor. Portanto, tomamos também por nosso alvo que, quer tenhamos o nosso lar com ele, quer estejamos ausentes dele, sejamos aceitáveis para ele”. – 2 Coríntios 5:8, 9. Albert Barnes também comentou esse versículo: “Isto prova que os espíritos dos santos, quando partem, estão com o Redentor; ou seja, que são levados imediatamente para o céu. O que demonstra que: (1) Eles não são aniquilados, (2) Que não estão dormindo.... (3) Que não estão em um estado intermediário.... mas (4) que moram COM Cristo; que estão COM o Senhor (prov ton kurion). Que estão na presença dele; que tomam parte de sua alegria e glória; que recebem permissão para sentar com ele em seu trono. Rev. 3:21. A mesma ideia o Salvador expressou ao ladrão agonizante, quando disse: ‘Hoje estarás comigo no paraíso,” Luc. 23:43”. – Barnes New Testament Notes (1949), pp. 2705, 2706. Note agora como uma mentalidade aniquilacionista tem efeitos devastadores e impede que a pessoa compreenda corretamente esse assunto. O que as palavras do apóstolo Paulo claramente denotam é que o ausentar-se do corpo significa ficar imediatamente na presença de Cristo. No entanto, observe o que disse o autor do MB sobre esse texto: Disse Paulo nesse texto que a alma deixa o “lar no corpo” sem ir para outro “lar”? Demonstra a ‘leitura atenta’ do texto que a alma ‘abandona’ ou ‘se ausenta’ do corpo e pode continuar ativa independentemente? Não. Se Paulo tivesse dito isso, contradiria tudo o que ele escreveu sobre a ressurreição dos mortos – que é o tema abordado aqui. Logo no início deste capítulo 5 de 2 Coríntios, ele diz: Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus. (ARA) De fato, nós sabemos que, quando for destruída esta barraca em que vivemos, que é o nosso corpo aqui na terra, Deus nos dará, para morarmos nela, uma casa no céu. Essa casa não foi feita por mãos humanas; foi Deus quem a fez, e ela durará para sempre. (NTLH) O assunto que estava sendo tratado por Paulo neste capítulo de 2 Coríntios, bem como ao longo desta segunda carta inteira, e na outra carta aos cristãos em Corinto – e em todas as cartas inspiradas que ele enviou a outros grupos de cristãos do primeiro século – era o recorrente tema da esperança da ressurreição dos mortos. Em todas estas considerações, Paulo não disse uma vez sequer que a alma passa a subsistir independentemente após a morte. Não, a “casa terrestre” é substituída pela “casa eterna” (celestial) – e isso só ocorre na ressurreição. Outros textos como o que segue podem ser citados como exemplos de como o corpo entra inescapavelmente na questão: 109 Assim será com a ressurreição dos mortos. O corpo que é semeado é perecível e ressuscita imperecível; é semeado em desonra e ressuscita em glória; é semeado em fraqueza e ressuscita em poder; é semeado um corpo natural e ressuscita um corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. (1 Coríntios 15:42-44, NVI) (Artigo “Textos 'Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas'?”) Na visão dele o cristão só poderá ir para a presença de Jesus quando receber o corpo da ressurreição. Só assim seria possível a pessoa tomar posse do seu “novo lar”. Mas visto que não se sabe quando a ressurreição geral dos mortos acontecerá, significaria então que até hoje nenhum cristão está na corte celestial, contradizendo assim a expectativa mencionada por Paulo em suas cartas. Outro fator completamente ignorado é que no entendimento aniquilacionista a pessoa deixa de existir depois que morre. De modo que não sobra ninguém que possa receber um novo corpo. Certamente Paulo não tinha em mente essa concepção de extinção da pessoa ao mencionar sua iminente mudança de “moradia”. Um erudito bastante citado pelos aniquilacionistas, chamado Oscar Cullmann, que se voltou contra o conceito de imortalidade natural da alma, percebeu que problemas conceituais ocorreriam caso adotasse uma compreensão materialista ao ler 2 Coríntios 5:8, 9. Por isso, a explicação que ele apresentou foi mais criativa do que essa dada pelo autor do MB. Num capítulo mais adiante veremos o que foi proposto por Cullman. O apóstolo Pedro também mencionou algo que se assemelha às declarações supracitadas de Paulo: “Entendo que é justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto estou nesta tenda terrena, sabendo que em breve hei de despojar-me dela, como, aliás, nosso Senhor Jesus Cristo me revelou. Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, BJ. Compare com Jó 18:5, 6. O que Pedro disse demonstra que a existência continuada da pessoa não depende do funcionamento do corpo biológico (“tenda terrena”). A palavra grega traduzida por “partida” é éxodon, que remete à ideia de uma mudança de domicílio conforme aconteceu no Êxodo do Egito. No relato da transfiguração ela foi usada para se referir à partida de Cristo depois da morte: “Em realidade, cerca de oito dias depois destas palavras, tomou consigo a Pedro, e a João, e a Tiago, e subiu ao monte para orar. E, enquanto orava, a aparência do seu rosto tornou-se diferente e a sua vestimenta tornou-se resplendentemente branca. Também, eis que dois homens conversavam com ele, sendo eles Moisés e Elias. Estes apareceram com glória e começaram a falar sobre a sua partida, que ele estava destinado a cumprir em Jerusalém”. – Lucas 9:22-31. Sobre o sentido de éxodon, utilizado pelo apóstolo Pedro, Albert Barnes escreveu: 110 “Depois de minha partida. Meu êxodo, exodon, minha jornada para; minha partida; minha saída da vida. Esta não é uma palavra usual para denotar morte, é mais uma palavra que indica que ele estava saindo deste mundo para uma jornada. Ele não esperava deixar de existir, mas esperava ir em sua viagem para a distante moradia. Esta ideia percorre toda esta linda descrição dos sentimentos de Pedro ao contemplar a morte. Assim ele fala tomando [as figuras] do ‘tabernáculo’ ou tenda, a morada provisória da alma, que seu espírito devia ser removido para outro lugar, (2 Pe 1:13) e, portanto, ele fala de um êxodo da vida presente - uma jornada para outro mundo. Esta é a verdadeira noção de morte”. – Barnes New Testament Notes (1949), p. 4273, colchetes acrescentados. Outras obras de referência trazem a mesma conceituação de éxodon a que Barnes se referiu. Veja, por exemplo, o Expositor's Greek Testament (1910), vol. 5, p. 129 e o dicionário do Novo Testamento Grego de Kurt Aland, Bruce Metzger e outros, da United Bible Societies. Portanto, nem haveria necessidade de debates sobre se o homem tem ou não em sua composição uma alma espiritual que existe à parte do corpo orgânico, que pode ir para junto do Senhor ou simplesmente descer para o Hades. Os textos bíblicos acima citados são muito claros. O principal combustível dessa controvérsia é a insistência dos aniquilacionistas e “condicionalistas” em querer mudar o sentido deles. Considere mais um exemplo a seguir. A quintessência da “arte” em distorcer o que pensavam os cristãos antigos Que os cristãos do primeiro século acreditavam que a morte não tem nada a ver com a inexistência, e sim com a continuidade da vida ficou claro nos versículos bíblicos citados no tópico anterior. Então, quais são os artifícios encontrados pelos aniquilacionistas para tentar desfazer o que há nesses textos bíblicos? Para ilustrar, considere o que um cristão chamado Policarpo de Esmirna disse no ano 109 d.C., ao escrever para os cristãos filipenses: “Inácio, e Zózimo, e Rufo, ... e … o próprio Paulo, e o resto dos apóstolos… estão [agora] na presença do Senhor…”. – Filipenses (de Policarpo) 9:1, 2, tradução do MB. Policarpo nasceu em 69 d.C. e foi discípulo do apóstolo João. Como se vê, ele reproduz um argumento semelhante ao que Paulo mencionou justamente aos filipenses. (Filipenses 1:21-23). O texto acima está citado em uma tese de um adventista chamado John Roller, disponibilizada no site Mentes Bereanas. (A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva, pp. 25, 26). A maneira que ele lida com a afirmação de Policarpo ilustra muito bem até onde chega a releitura dos aniquilacionistas dos textos que apontam na direção que eles não querem aceitar. Veja o que o John Roller disse a respeito do que escreveu Policarpo: “Note-se, porém, que esse trecho não diz absolutamente nada sobre o destino dos incrédulos, que é a questão em litígio entre condicionalistas 111 [aniquilacionistas e defensores do “sono” da alma] e naturalistas [defensores da “imortalidade” da alma].”. – Colchetes acrescentados. Claro que nada é dito, pois Policarpo não estava falando de tal litígio. Na verdade, nem havia essa disputa naquele tempo. Ademais, isso não deveria ser considerado a principal questão entre essas duas correntes de pensamento. Penso que o cerne do problema está em saber se existe uma alma que continua viva após a morte do corpo físico. O que acontecerá com ela na eternidade, depois da segunda vinda de Jesus é, a meu ver, uma questão secundária. Sendo assim, esse primeiro ponto mencionado por Roller nada mais é que um desvio do foco, um “espantalho”, como gosta de dizer o autor do MB. Em seguida, Roller lança mão de argumentos para redirecionar o pensamento de Policarpo para outra ideia não presente em suas palavras. Roller prossegue: “Além disso, note-se que a palavra ‘agora’ está grafada entre colchetes, indicando que o tradutor (o Dr. Cleveland Coxe) os inseriu com base na teoria de que isso está ‘implícito’ no texto grego, embora na verdade não esteja incluído nele”. O autor tenta desqualificar a tradução do texto porque foi inserido nele o advérbio “agora”, como se isso fizesse alguma diferença. Leia o texto sem os colchetes do tradutor: “Inácio, e Zózimo, e Rufo, ... e … o próprio Paulo, e o resto dos apóstolos… estão na presença do Senhor…”. Se os apóstolos já tinham morrido e Policarpo usa o verbo no presente, é óbvio que não há nenhum problema em enxergar um “agora” ou um “atualmente” nas palavras do escritor. Não há motivo para chamar isso de “teoria”. Não é de admirar que os aniquilacionistas não compreendam o texto abaixo, escrito pelo apóstolo Paulo: “Mas agora [os patriarcas hebreus] desejam uma pátria melhor, isto é, a celestial. Por isso, Deus não se envergonha de ser chamado seu Deus; pois ele lhes preparou uma cidade”. – Hebreus 11:16, Versão de Lutero, colchetes acrescentados. E note que o “agora” desse versículo não é um acréscimo de tradução, pois o apóstolo Paulo realmente usou tal advérbio para se referir a pessoas que já tinham morrido há muito tempo, utilizando também o verbo no presente. De fato, a ideia na carta de Hebreus de que Abrãao, Isaque, Jacó e outros patriarcas continuam vivos está subentendida até na conclusão do argumento de Paulo, quando disse: “Visto que temos uma multidão de testemunhas ao nosso redor, [ou seja, todos os homens e mulheres de fé do passado, mencionados nos versículos precedentes] afastemos de nós qualquer coisa que nos atrase, e especialmente aqueles pecados que se enroscam tão fortemente em nossos pés e nos derrubam; e corramos com perseverança a corrida que Deus propôs para nós”. – Hebreus 12:1, A Nova Bíblia Viva, colchetes acrescentados. Paulo usou aqui uma metáfora que faz referência às competições que eram comuns no mundo greco-romano, e que eram vistas por pessoas sentadas em arquibancadas circulares acima do nível do solo. Os espectadores da “corrida cristã” são os que fazem 112 parte da nuvem* de testemunhas mencionada por Paulo. Portanto, eles não foram erradicados da existência e tampouco estão “dormindo” na sepultura. Estão em um “andar” superior, observando lá do alto as atividades dos cristãos na Terra. – Veja Barnes New Testament Notes (1949), p. 3984. * “Portanto, visto que estamos rodeados de uma nuvem tão grande de testemunhas, livremo-nos também de todo peso e do pecado que facilmente nos envolve” (Tradução do Novo Mundo, 2015). A palavra “nuvem” é um indicativo que as testemunhas mencionadas estão no céu. Diz Paulo no mesmo texto aos Hebreus: “Tivemos como educadores nossos pais terrenos e lucramos disso um bom proveito, com mais razão não havemos de nos sujeitar ao pai dos espíritos e receber dele a vida?.... Mas vós vos aproximastes da montanha de Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e das miríades de anjos em reunião festiva, e da assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o juiz de todos e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:9, 22, 23, TEB. Logo, se os espíritos dos justos estão na pátria celestial, eles podem acompanhar com interesse o desempenho dos cristãos na “corrida” inaugurada por Jesus. Por fim, John Roller conclui seu raciocínio: “Finalmente, note-se que Policarpo diz que estes apóstolos falecidos ‘estão [agora]… na presença do Senhor…’, não que eles estão ‘no céu’ – considerando-se que o Senhor é conhecido por ser onipresente, isso realmente não diz muita coisa”. Onde é a habitação natural de Jesus? No céu, é claro! Nos supracitados textos de Paulo aos filipenses, tessalonincenses e coríntios, o foco do que foi dito é morar com o Senhor quando o cristão se ausenta do corpo físico. Para o autor da tese, isso pode não ‘dizer muita coisa’, porém é a própria essência do que Paulo e Policarpo disseram. Estar na presença do Senhor não é uma linguagem figurada resultante da onipresença de Deus. Não é isto o que Policarpo disse, tampouco o apóstolo Paulo. O argumento de Roller é tão inconsistente que é falho em si mesmo. Se fosse como ele pensa não seria necessário morrer para ficar na “presença de Cristo”. Agora mesmo, todas as pessoas e qualquer coisa que existe já estão na “presença” dele, caso se apele para o conceito da onipresença de Deus. Mesmo diante dessa distorção do sentido daquilo que Policarpo escreveu, o autor do MB não demonstrou nenhuma cerimônia para endossar a opinião de Roller e ainda a chamou de um argumento “válido”. Disse ele em uma nota de tradutor: Embora nem todos os cristãos estejam de acordo com esse conceito de ‘onipresença’ de Deus, o argumento apresentado aqui permanece válido, já que ele pode ser apresentado com outra formulação. Não é obrigatório que Deus esteja pessoalmente em algum lugar para estar ‘presente’ lá. Veja, por exemplo, 1 Reis 8:27-30. 113 O texto de 1 Reis citado pelo autor do MB remete à mesma consequência que eu mencionei antes: qualquer pessoa pode estar figurativamente “diante” de Deus ou na “presença” dele, pois Ele observa tudo: “E terás de virar-te para a oração do teu servo e para o seu pedido de favor, ó Jeová, meu Deus, para escutar o clamor suplicante e a oração com que teu servo hoje está orando diante de ti”. – 1 Reis 8:28. Esse é o mesmo argumento das Testemunhas de Jeová* para afirmar que a grande multidão mencionada em Apocalipse não está realmente no céu: “Depois destas coisas eu vi, e, eis uma grande multidão, que nenhum homem podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, trajados de compridas vestes brancas; e havia palmas nas suas mãos. E gritavam com voz alta, dizendo: ‘Devemos a salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro’.”. – Apocalipse 7:9, 10, compare com Apocalipse 19:1, 2. * Vide o livro Revelação - Seu Grandioso Clímax Está Próximo, Capítulo 20, p. 123, §§ 12-14, publicado pelas Testemunhas de Jeová. Sendo bem franco, percebo que não há limites na disposição dos aniquilacionistas em distorcer textos do Novo Testamento e de cristãos dos primeiros séculos para tentar fazê-los dizer o contrário do que estão dizendo! Então, o que importa a Bíblia não conter a expressão “imortalidade da alma”? Não importa nada, absolutamente nada. Se ela se referisse à existência da alma após a morte nesses termos, os aniquilacionistas certamente dariam um jeito de entender de outra maneira. Existe um mecanismo na mente deles preparado para fazer isso, de maneira automática. Veja se não é assim lendo outra aplicação dessa “técnica” adotada por John Roller, ao citar a carta do cristão Matetes* a Diogneto, do início do século II: “Diogneto 6:8 contém a mais antiga referência conhecida ao termo ‘alma imortal’ num escrito cristão: ‘A alma imortal habita num tabernáculo mortal.’ Todavia, não está claro que Matetes acreditava na imortalidade natural! Diversas outras referências levam-me a pensar de outro modo. Por exemplo: Diogneto 4:6 faz referência a qualquer ser humano, em geral, como ‘mortal’.” – A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva, p. 30. * Matetes é um pseudônimo, pois não se sabe ao certo o nome do autor, mas apenas a época aproximada da escrita do texto, estimada em 120 d.C. Veja mais a respeito dessa carta no capítulo 21. Note que Matetes faz a mesma comparação que Pedro fez, ao chamar o corpo onde o cristão vive de tenda (“tabernáculo”), o que denota uma morada provisória que se encerra por ocasião da morte. Ao afirmar que a alma que há na “tenda” é imortal, Matetes quis dizer apenas que quando a “tenda” desaparece a alma permanece. Incrivelmente, num quadro no final de seu trabalho, Roller classifica Matetes como sendo um cristão que não acreditava na imortalidade da alma! – 2 Pedro 1:12-15. A citação brevíssima e parcial que Roller faz de Matetes deixa a impressão que a referência que ele fez à “alma imortal” não passa de uma expressão incidental sem 114 grande repercussão na suposta crença aniquilacionista que ele teria. Mas note o que revela o texto completo de onde foi tirada a parte mencionada: “Para resumir tudo em uma palavra – assim como a alma está no corpo, os cristãos estão no mundo. A alma está dispersa através de todos os membros do corpo, e os cristãos estão espalhados por todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, mesmo assim não é do corpo; e os cristãos moram no mundo, mesmo assim não são do mundo. A alma invisível é guardada pelo corpo visível, e os cristãos são conhecidos por realmente estarem no mundo, mas sua piedade permanece invisível. A carne odeia a alma, e guerreia contra ela [conforme 1 Pedro 2:11*], mas ela mesma não está sofrendo nenhuma injúria, porque está guardada de usufruir deleites; o mundo também odeia os cristãos, mas não é injuriado de volta, porque eles renunciam os deleites [mundanos]. A alma ama a carne que a odeia, e [ama também] os membros; da mesma maneira os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está aprisionada no corpo, mesmo assim preserva o corpo inteiro, e os cristãos estão confinados no mundo como que numa prisão, e mesmo assim eles preservam o mundo. A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em [um mundo] corruptível**, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus. A alma, até quando mal suprida com comida e bebida, se torna melhor; da mesma maneira, os cristãos mesmo sujeitos dia após dia a sofrimentos, crescem em número. Deus os tem encarregado desta posição ilustre, a qual era ilícito a eles abandonar”. – Matetes a Diogneto, capítulo 6. * Diz o texto de Pedro: “Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11. ** Os que mantêm o website “New Advent”, de onde se extraiu esse texto, entenderam que a palavra “corruptível” seria uma referência ao corpo do cristão, porém não enxerguei isso nas palavras do escritor e me parece que ele se referiu ao mundo. Isto mantém a lógica da comparação feita: alma x tenda (corpo) em contraste com cristãos x mundo. Para comparar, embora em 1 Coríntios 15:42 o apóstolo Paulo associe corrupção ao corpo carnal morto, no capítulo 9 verso 25 do mesmo livro ele chama o prêmio que um corredor grego recebia de “coroa corruptível”, ou seja, um objeto externo, em contraste com a coroa incorruptível da vida eterna. Nota-se perfeitamente que Matetes acreditava que o homem possui uma invisível alma imortal dentro do corpo e não tinha a opinião padronizada dos aniquilacionistas atuais, de que alma é simplesmente o ser humano com seu corpo carnal, chamado em algumas partes da Bíblia de “alma vivente”. Sendo assim, o que John Roller concluiu sobre esse cristão antigo não corresponde em absolutamente nada à realidade. Não sei se de maneira consciente, Roller também mistura dois conceitos totalmente distintos, porém relacionados. Todos os seres humanos são indubitavelmente mortais. Seus corpos físicos perecem e desaparecem. São suas almas que subsistem no Hades e não morrem juntamente com os corpos. E, conforme visto, a imortalidade da alma não é absoluta, pois Deus poderia destruí-la se quisesse. Por isso é preciso discernimento ao ler os antigos escritos cristãos. Quando falam de mortalidade eles normalmente estão se referindo à realidade humana, e não necessariamente à alma presente no ser humano. Para mais detalhes considere o capítulo 10, mais adiante. 115 Portanto, não importa quanta evidência seja apresentada, os aniquilacionistas sempre se negarão a aceitar aquilo em que claramente os primitivos cristãos acreditavam e encontrarão uma maneira de fazê-los dizer o que eles realmente não disseram.* O que John Roller apresenta em seu trabalho é um perfeito exemplo disso. O que nos conduz à inevitável conclusão de que a principal utilidade dessa tese que ele escreveu foi proporcionar-lhe o título de “doutor”. Do resto, ela tem pouca serventia para quem quiser empreender um estudo sério e isento sobre os Pais da Igreja. O que aparentemente ainda não é o caso do autor do MB, pois ele não se deu nem ao trabalho de conferir o que Roller dissera e confiou implicitamente em suas teorias. * No capítulo 21 há mais exemplos. A importância do conceito correto sobre o Hades “E ele me fez ascender das profundezas do Seol, e da boca da morte Ele me chamou”. – Odes de Salomão 29:4, obra do século I, cuja origem pode ser judaica, cristã ou gnóstica. Tradução publicada no website Mentes Bereanas. Reproduzo abaixo um trecho do apêndice A6, que fornece informações importantes sobre o conceito bíblico da ressurreição, em conexão com a existência literal do Hades nas profundezas da Terra: “A palavra grega a‧ná‧sta‧sis significa literalmente ‘levantar; erguer’. Esta palavra é usada com freqüência nas Escrituras Gregas Cristãs com referência à ressurreição dos mortos…. [O] emprego nas Escrituras [da palavra Seol], junto com o uso de seu equivalente grego, haí‧des, nas Escrituras Gregas Cristãs, mostra que se refere, não a um túmulo individual, mas à sepultura comum da humanidade, o domínio da sepultura.… Tornar impotente o Seol significa soltar os presos nele, o que subentende o esvaziamento do domínio da sepultura.” – Estudo Perspicaz, volume 3, p. 430, colchetes acrescentados. Sendo assim, “levantar” ou “erguer” uma pessoa do Seol significa soltá-la dessa prisão. O verbo “anastasis” foi usado justamente com esse sentido no versículo abaixo: “Quem é o homem entre vós que, tendo uma só ovelha, e, caindo esta numa cova, no sábado, não a agarra e levanta para fora?.” – Mateus 12:11. Entretanto, o Seol é muito mais profundo que uma “cova” que pode privar uma ovelha da liberdade, e só Deus tem o poder de retirar alguém de lá. Mas quando isto acontece, cumpre-se o texto de Oséias que foi citado pelo apóstolo Paulo, ao explicar a ressurreição: “Da mão do Seol os remirei; da morte os recuperarei. Onde estão os teus aguilhões, ó Morte? Onde está a tua qualidade destrutiva, ó Seol? A própria compaixão ficará escondida dos meus olhos.” – Oséias 13:14; 1 Coríntios 15:50-57. A visão aniquilacionista sobre esse tema é incapaz de vislumbrar o que foi acima explicado. A consequência inevitável disso é o distanciamento do que a Bíblia realmente apresenta sobre o levantamento dos mortos, conforme explicado por Jesus, ao se referir a Abraão, a Isaque e a Jacó. 116 ‘Uma multidão está ao nosso redor, então corramos com perseverança’ “O perverso é destruído por seus próprios pecados, mas o justo tem esperança de uma vida melhor depois da morte”. – Provérbios 14:32, A Bíblia Viva. “Temos, portanto, sempre boa coragem e sabemos que, enquanto tivermos o nosso lar no corpo, estamos ausentes do Senhor, pois estamos andando pela fé, não pela vista. Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor. Portanto, tomamos também por nosso alvo que, quer tenhamos o nosso lar com ele, quer estejamos ausentes dele, sejamos aceitáveis para ele”. – 2 Coríntios 5:8, 9. “Minha expectativa e esperança é de que em nada serei confundido, mas com toda ousadia, agora como sempre, Cristo será engrandecido no meu corpo, pela vida ou pela morte. Pois para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se o viver na carne me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem o que escolher. Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém. “Entendo que é justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto estou nesta tenda terrena, sabendo que em breve hei de despojar-me dela, como, aliás, nosso Senhor Jesus Cristo me revelou. Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, Bíblia de Jerusalém. “Estamos convencidos de que, quando formos removidos da vida atual viveremos outra vida”. – Atenágoras de Atenas, cristão do século II. O que falta, então, para os aniquilacionistas se convencerem disso também? . . . 117 (Página em branco) 118 Capítulo 10 SALVAR OU DESTRUIR UMA ALMA “[Disse Jesus:] É lícito, no sábado, fazer o bem ou causar dano, salvar ou destruir uma alma?” – Lucas 6:9. No meu primeiro texto criticado pelo autor do MB, eu fiz a seguinte afirmação sobre o versículo acima (note o destaque em negrito): Outro exemplo que a palavra “alma” pode ser usada com sentido restrito é o que aconteceu certa vez com Jesus num dia de sábado, quando ele encontrou um homem com a mão ressequida e se compadeceu dele (Mateus 6:6-11; Marcos 3:1-3). Os fariseus ficaram perto quando aquele homem estava prestes a ser curado, a fim de acharem um pretexto para entregar Jesus à morte, por ele estar curando num dia de sábado. Mas antes de fazer o milagre, sabiamente Jesus perguntou aos fariseus: “É lícito, no sábado,…. salvar ou destruir uma alma?” Por “salvar” ele se referiu a curar o doente, e por “destruir” à intenção assassina dos fariseus (ou “matar”, conforme a versão do evangelista Marcos). Mas será que, com base nesse relato, pode-se afirmar que os homens podem tanto matar como destruir a alma de alguém? Claro que não, pois o próprio Jesus disse depois: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28. Sobre essa minha conclusão o autor do MB disse o seguinte: Este é, na verdade, outro exemplo de releitura completamente equivocada. Jesus não se referiu a essas coisas ao usar estes verbos “salvar” e “destruir”. Segue-se o trecho na íntegra na mesma versão citada (do evangelho de Lucas, não do de Mateus.): …. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Antes de comentar a confiante afirmação do autor do MB, é preciso primeiro esclarecer alguns pontos. O entendimento que eu apresentei das palavras de Jesus, estando certo ou errado, não tem nenhuma repercussão no assunto aqui tratado. Conforme demonstrado com detalhes no decorrer de todo este livro, biblicamente falando o aniquilacionismo não repousa sobre uma base sólida. São necessárias várias reinterpretações da Bíblia e da história do Cristianismo para sustentá-lo. O provável motivo que levou o autor do MB a contestar a minha interpretação é que ela entra em choque com o critério que ele adotou para entender Mateus 10:28, aquele 119 texto que menciona que somente Deus tem a capacidade de destruir a alma. Ao contrário do que dizem os comentaristas bíblicos, o autor do MB entende que a palavra “alma” tem apenas uma acepção na Bíblia inteira, que é “pessoa”. Então, com este rígido balizamento*, aceitar que a expressão “destruir a alma” usada por Jesus se refere à intenção assassina dos fariseus, implicaria em dizer que os homens também podem destruir a alma**, e não apenas impor-lhe uma morte temporária. * Se bem refletirmos, tal ponto de vista nem ajuda muito, pois, de acordo com a visão materialista, quem mata uma pessoa causa o seu aniquilamento imediato, o que equivale a uma total destruição, que só poderia ser revertida no futuro, se Deus decidisse recriar a pessoa que foi assassinada. ** A palavra “alma” em Mateus 10:28 e Lucas 6:9 não tem a mesma acepção. Em Mateus ela é a alma que vai para o Hades, e em Lucas se refere à pessoa humana. Mas, conforme visto antes, o autor do MB se viu obrigado a flexibilizar um pouco o critério que adotou de uniformidade de sentido da palavra “alma”, pois em alguns casos o significado “pessoa” não se ajusta e fica melhor substituir por “vida”. (1 Reis 17:20-24; Gênesis 9:3). O que também não é muito útil no caso aqui tratado, pois significaria que os fariseus teriam o poder de destruir a vida. Ou seja, ele aderiu parcialmente ao que muitos comentaristas bíblicos dizem: que a palavra “alma” tem mais de um significado nas Escrituras Sagradas, e muitas vezes não se refere à alma que desce para o Hades por ocasião da morte. É o caso do texto abaixo: “O justo importa-se com a alma do seu animal doméstico”. – Provérbios 12:10. Obviamente, o animal mencionado no texto não é uma pessoa. Até mesmo a antiga literatura grega, que é promotora por excelência da crença na imortalidade da alma, às vezes chama as criaturas terrestres de “almas” que estão sujeitas à morte ou que podem ser salvas de tal destino, além de usar a palavra “alma” com sentidos variados, semelhantes aos vistos na Bíblia. Note abaixo alguns exemplos: Animais chamados de almas: “Embora tenhamos descoberto a arte de lidar com os animais ferozes, através da qual domamos suas almas e incrementamos o seu valor, ainda assim nós mesmos somos impotentes para ajudar a nós mesmos a perseguir essa virtude”. – Discursos 2:12, de Isócrates. “Mas no caso de alguém querer que seu próprio cavalo se torne adequado para um desfile, com uma excelente postura e apresentação, tais qualidades de nenhum modo podem ser achadas em todo cavalo: mas é essencial que ele seja pleno de alma e forte de corpo”. – A Arte da Equitação 11:1, de Xenofonte. Almas que morrem ou se salvam: “As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. – Fragmento 96b = B 136, de Heráclito. 120 “Quanto a mim eu continuei com o pensamento intrigante de qual seria a melhor maneira de salvar minha própria alma e a de meus companheiros”. – Odisseia 9:423, de Homero. Alma como sede dos sentimentos: “Por isso que pelas boas qualidades que possuímos em nossas almas que adquirimos também as outras vantagens das quais necessitamos”. – Da Paz 8:32, de Isócrates. “Ó minha alma, como posso eu calar-me?”. – Íon, v. 859, de Eurípedes. A alma que desce para o Hades: “Gostaria que eu fosse capaz de roubar-te a alma e a vida, e enviar-te para a casa do Hades”. – Odisseia 9:525, Homero. “Ele amarrou uma corda que pendia no alto de uma grande árvore e se enforcou nela, e a alma dele desceu ao Hades”. – As Vidas dos Filósofos Eminentes 8:2, de Diógenes Laércio. --Mais exemplos estão apresentados no capítulo 19 (“Usos da palavra ‘alma’ nas obras gregas da Antiguidade”). Então, quando um grego escrevia que almas morreram em combate, ele não estava expressando uma crença aniquilacionista. Mas apenas fazendo uso de uma linguagem que era comum naquele tempo, que também é muito vista na Bíblia. Bastaria considerar essa variabilidade de acepções para que John Roller, o adventista citado no capítulo 9, passasse a compreender como era possível um cristão do início do século II dizer em um momento que a alma é imortal e em outro afirmar que as pessoas são mortais. Este é um insight que também falta ao autor do MB. No caso da Bíblia, há traduções que nem incluem a palavra “alma” quando esta se refere aos animais. É o caso daquele versículo citado alguns parágrafos atrás, onde Salomão escreveu sobre o interesse no bem-estar deles: “O justo sente as necessidades de seus animais”. – Provérbios 12:10, TEB. E quando o termo “alma” aparece com o sentido de vida, ou significando o ser em si, muitos tradutores também optam por omiti-lo, como acontece nos textos a seguir, conforme aparecem na Tradução do Novo Mundo* e na Bíblia de Jerusalém: * A edição de 1986 da Tradução do Novo Mundo sempre verte néfesh e psykhé por “alma”, de modo que tal tradução é útil para demonstrar o que é dito aqui. Entretanto, o mesmo já não acontece com a edição de 2015, pois esta troca “alma” por outras palavras, a exemplo de “vida” ou “pessoas”, exceto em versículos usados para tentar provar o aniquilacionismo, tal como o texto de Ezequiel 18:4. 121 Gênesis 1:21 “E Deus passou a criar os grandes monstros marinhos e toda alma vivente que se move”. – TNM. “Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam”. – BJ. Salmos 3:2 “Muitos dizem da minha alma: ‘Não há salvação para ele da parte de Deus’.”. – TNM. “Numerosos os que dizem a meu respeito: ‘Onde está sua salvação em Deus?’.”. – BJ. Salmos 16:10 “Porque não deixarás a minha alma no Seol”. – TNM. “Não abandonarás minha vida no Xeol”. – BJ. Atos 27:22 “Ainda assim, recomendo-vos que tenhais bom ânimo, pois nem uma única alma se perderá, mas apenas o barco”. – TNM. “Apesar de tudo, porém, exorto-vos a que tenhais ânimo: não haverá perda de vida alguma dentre vós, a não ser a perda do navio”. – BJ. Hebreus 10:38 “ ‘Mas o meu justo viverá em razão da fé’, e, ‘se ele retroceder, minha alma não terá prazer nele’.”. – TNM. “O meu justo viverá pela fé, mas se esmorecer, nele não encontrarei mais nenhuma satisfação”. – BJ. Na realidade, visualizando-se o contexto global das Escrituras, é possível perceber que o sentido primário da palavra “alma” é justamente aquele combatido pelos aniquilacionistas, ou seja, o de uma essência espiritual que habita no corpo do homem, e que todas as demais acepções derivam de tal significado básico. A verdadeira alma é o que torna possível as demais leituras: vida, ser vivente e emoções humanas. A alma é o âmago identificador e causador do indivíduo, que é preservado mesmo depois da morte do corpo. – Mateus 10:28. Dados os devidos esclarecimentos prévios, voltemos à crítica do autor do MB. Depois que ele chamou o entendimento que eu apresentei de “releitura completamente equivocada”, ele opinou sobre o que significaria “salvar ou destruir uma alma”: A visualização do trecho, com a frase grifada completa, mostra que: quando Jesus falou em “salvar ou destruir uma alma”, a discussão era: o que seria lícito fazer no sábado? E “fazer o bem ou causar dano” também estava incluído na mesma 122 discussão. (Aliás, no caso do homem, o relato nem diz que a doença dele era mortal, de modo que a ação de Jesus de curar o doente se enquadraria em “fazer o bem”, não em “salvar”.) Ademais, Jesus não estava falando apenas daquele homem doente. Ele se referia a 'qualquer alma'. Os escribas e fariseus não tinham "intenção assassina" nesse episódio; eles não estavam planejando “entregar Jesus à morte” naquele dia. O trecho esclarece que o objetivo deles era “achar um modo de acusá-lo”. A intenção primária deles era desmoralizá-lo; apanhá-lo em suas palavras ou ações, para depois fundamentarem acusações de violação da Lei contra ele. (Estes homens só vieram a tomar a decisão de matar Jesus depois da ressurreição de Lázaro [João 11:46-54. O versículo 53 deixa isso claro: "E daquele dia em diante, resolveram tirar-lhe a vida." (NVI)]. Este evento, a ressurreição de Lázaro, ocorreu depois do episódio considerado aqui.) (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) O autor do MB foi rápido em criticar e não teve o cuidado de fazer uma pesquisa mais aprofundada antes de dar o seu peremptório veredicto. Uma discordância veemente necessita de um exame cuidadoso prévio daquilo que é descartado. Veja abaixo alguns comentaristas bíblicos que também apresentaram a mesma explicação “equivocada” sobre o que significa o ‘destruir a alma’ que Jesus mencionou: “Naquele exato momento ele provavelmente viu o plano de matá-lo surgindo em seus corações”. – Wesley's Explanatory Notes, sobre Lucas 6:9. “… ou matar? - aquilo que ele sabia que eles estavam buscando uma oportunidade de fazer”. – Wesley's Explanatory Notes, sobre Marcos 3:4. “Ou destruí-la (η απολεσαι). Neste mesmo dia estes fariseus estavam planejando destruir a Jesus”. – Robertson's Word Pictures of the New Testament, sobre Lucas 6:9. “Nosso Senhor tem uma particular visão dos escribas e fariseus, e a pergunta é lançada direto para suas próprias consciências; cujos corações e pensamentos, planos e opiniões, estão todos abertos para Cristo e que agora estavam tramando fazer o mal a ele, e até destruí-lo e tirar sua vida”. – John Gill's Exposition of the Bible, sobre Marcos 3:4. “Note a crueldade deles; eles se reúnem não para prendê-lo ou bani-lo, mas para destruí-lo, fazer morrer aquele que veio para que tivéssemos vida”. – Mathew Henry Commentary on the Bible, sobre Mateus 12:14.* * Visto que Mateus não menciona a pergunta sobre o que seria lícito fazer no sábado, se salvar ou destruir uma alma, este comentário não é propriamente sobre essa questão, porém, na conclusão do relato, fica claro que os fariseus realmente tinham uma intenção assassina naquele mesmo dia. As duas notas a seguir também trazem ideias semelhantes: 123 “Fazer o bem não se opõe ao descanso; não é descanso deixar de fazer o bem. Seus rivais ficam sem resposta, mas decidem fazer o mal àquele que consideram já um perigo público”. – Nota de rodapé da Bíblia do Peregrino, sobre Mateus 12:9-15. “Jesus mostra que a lei do sábado deve ser interpretada como libertação e vida para o homem. Ao mesmo tempo, partidos que eram inimigos entre si reúnem-se para planejar a morte desse profeta: afinal, ele está destruindo a ideia de religião e sociedade que eles tinham”. – Nota de rodapé da Edição Pastroal, sobre Marcos 3:1-6. Comparemos também, diretamente na Bíblia, os três relatos sobre essa cura no sábado, para ver se realmente seria uma releitura “completamente equivocada” associar o ‘destruir a alma’ às intenções assassinas dos fariseus, e o ‘salvar a alma’ à cura do homem com a mão ressequida: Mateus 12:9-14: “Tendo partido dali, entrou na sinagoga deles; e eis que havia ali um homem com a mão ressequida! De modo que lhe perguntaram: ‘É lícito curar no sábado?’ para que pudessem conseguir uma acusação contra ele. Ele lhes disse: ‘Quem é o homem entre vós que, tendo uma só ovelha, e, caindo esta numa cova, no sábado, não a agarra e levanta para fora? Afinal de contas, quanto mais vale um homem que uma ovelha! Por isso é lícito fazer uma coisa excelente no sábado.’ Disse então ao homem: ‘Estende a tua mão.’ E ele a estendeu, e ela foi restabelecida sã como a outra mão. Mas os fariseus saíram e realizaram uma consulta contra ele, para que o pudessem destruir”. Marcos 3:1-6: “Novamente, ele entrou numa sinagoga, e ali havia um homem com a mão ressequida. Vigiaram-no assim de perto para ver se curaria o homem no sábado, a fim de que pudessem acusá-lo. E ele disse ao homem com a mão ressequida: ‘Levanta-te e vem para o centro.’ A seguir, disse-lhes: ‘É lícito, no sábado, fazer uma boa ação ou fazer uma má ação, salvar ou matar uma alma?’ Mas eles ficaram calados. E, depois de olhar para eles, ao redor, com indignação, estando profundamente contristado com a insensibilidade dos seus corações, disse ao homem: ‘Estende a tua mão.’ E ele a estendeu, e sua mão foi restabelecida. Os fariseus saíram então e começaram imediatamente a entrar em conselho contra ele com os partidários de Herodes, a fim de o destruírem”. Lucas 6:6-11: “No decorrer de outro sábado, entrou na sinagoga... E havia ali um homem cuja mão direita estava ressequida. Os escribas e fariseus observavam-no então de perto para ver se havia de curar no sábado, a fim de acharem um modo de acusá-lo. Ele sabia, porém, dos seus raciocínios; contudo, disse ao homem com a mão ressequida: ‘Levanta-te e fica em pé no centro.’ E ele se levantou e ficou em pé. Jesus disse-lhes então: ‘Eu vos pergunto: É lícito, no sábado, fazer o bem ou causar dano, salvar ou destruir uma alma?’ E, depois de olhar em volta para todos eles, disse ao homem: ‘Estende a tua mão.’ E ele fez isso, e a sua mão foi restabelecida. Mas eles se encheram de insensatez e começaram a falar entre si sobre o que poderiam fazer a Jesus”. 124 O cenário que emerge ao se comparar os três relatos é que a intenção assassina dos fariseus já estava presente no momento em que o homem foi curado. É por isso que há comentaristas que sustentam que o “destruir a alma” se refere ao desejo assassino dos fariseus. Os pensamentos que eles nutriram naquele dia não eram apenas para acusar Jesus ou desmoralizá-lo. Em última instância, o que eles queriam mesmo era reunir “provas” que o levassem a julgamento e à morte, conforme revela a conclusão dos evangelistas Mateus e Marcos. Ou seja, Jesus já estava diante de assassinos em potencial. – Compare com Mateus 5:27, 28. É claro que se tivesse sido possível os fariseus prenderem a Jesus naquele mesmo dia, para entregá-lo à morte, dificilmente ele seria assassinado no próprio sábado, pois, conforme revelaram os eventos posteriores dos dias finais de Jesus na Terra, seria necessário todo um simulacro de julgamento para, por fim, executá-lo. Apesar de que provavelmente eles também não hesitariam em matá-lo no sábado mesmo, se houvesse como, tamanha a maldade que nutriam no coração. Para comparar, judeus participaram em martirizar o cristão Policarpo de Esmirna precisamente num sábado: “O estádio estava lotado de pagãos hostis que desprezavam a Policarpo, de 86 anos de idade, por desencorajar a adoração dos deuses deles, e judeus fanáticos de bom grado ajuntaram a lenha, embora tivessem de fazê-lo num grande sábado”. – A Sentinela, 15/11/93, p. 10. Com relação a ‘salvar uma alma’, esta expressão não significa apenas salvar alguém da morte. Pode se referir também a livrar uma pessoa de um grave padecimento, conforme diz certo comentário: “ ‘Salvar’ é o termo grego sōzō utilizado com duas acepções distintas no Novo Testamento: (1) como liberação de padecimentos físicos, segundo o uso do Antigo Testamento, e (2) para a salvação espiritual”. – Comentário de Bob Utley. Abaixo dois textos bíblicos com a acepção que interessa nesta análise: “Perto está Jeová dos que têm coração quebrantado, e salva os que têm espírito esmagado”. – Salmos 34:18. “Uma mulher que sofria de hemorragias havia doze anos - ela sofrera muito por causa de numerosos médicos e gastara tudo o que possuía sem melhora alguma; pelo contrário, seu estado piorara -, esta mulher, pois, soubera o que se dizia de Jesus. Ela aproximou-se por detrás dele na multidão e tocou-lhe a veste. Ela dizia consigo mesma: ‘Se eu conseguir tocar ao menos suas vestes, serei salva’. Logo estancou-lhe a hemorragia e ela percebeu em seu corpo que estava curada do seu mal…. Ele, porém, lhe disse: ‘Minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz e fica curada do teu mal”. – Marcos 5:25-34, TEB. Portanto, as duas conclusões abaixo são perfeitamente satisfatórias, referente ao episódio envolvendo a cura do homem com a mão atrofiada e os insidiosos fariseus que queriam tirar a vida de Jesus: 1) Salvar uma alma: curar um homem doente. 2) Destruir uma alma: assassinar um homem inocente. 125 Jesus queria curar a quem padecia de uma doença e os fariseus desejavam matá-lo. A primeira intenção prevaleceu. A ocasião não era propícia para os que odiavam a Jesus consumarem o que tinham nos corações, nem a hora dele tinha chegado. Sobre esse contraste, disse outra obra de referência: “Uma exposição lançada aos adversários. Eles estão nutrindo pensamentos assassinos e ele procurando salvar uma vida. Quem então está violando o Sábado?” – People's New Testament, sobre Marcos 3:4. O comentário acima arremata bem o ponto em questão. Logo, a aplicação que fiz nada tem de “releitura completamente equivocada” e está em perfeito acordo com o contexto do relato. Uma segunda possibilidade de entendimento Apenas para registrar, a interpretação do autor do MB nada tem de condenável. O problema é apresentá-la como se fosse a única possível e desclassificar a outra sem o devido exame. Mas há realmente os que entendem o acontecido de uma maneira que se aproxima da opinião do autor do MB. Essa outra leitura está resumida no comentário a seguir: “Fazer o bem ou fazer o mal, estas são as únicas alternativas: se omitir a fazer o bem quando está ao alcance é fazer o mal; não salvar a vida quando se pode é destruí-la”. – Expositor’s Greek Testament (1902), vol. 1, p. 357. Albert Barnes e outros apresentam um argumento similar em suas notas, informando que o acima descrito era uma espécie de lema para os judeus. Novamente, um paralelo com a antiga literatura grega pode ser encontrado, pois nela também existe um sentido figurado da expressão “destruir a alma”, conforme exemplificado a seguir: “Este inesperado fato que se deu comigo destruiu-me a alma. Vou-me e da vida deixo ir a graça e quero morrer, amigas”. – Medeia, de Eurípedes, v. 225, tradução de Jaa Torrano, Editora Hucitec, 1991. Então, por esse ponto de vista, “salvar ou destruir uma alma” se encerraria apenas na cura feita por Jesus, e não teria relação com a intenção assassina dos fariseus. Particularmente, não creio que este seja o entendimento correto, por conta das evidências aqui apresentadas que favorecem a outra opinião, muito embora a tal máxima judaica tenha se materializado no gesto compassivo de Jesus. Pelo menos na parte de fazer o bem, pois se Jesus tivesse decidido não curar naquele sábado ele não poderia ser acusado de ter feito o mal. O que demonstra que essa explicação alternativa é imperfeita. De qualquer modo, mesmo que essa segunda opção fosse a verdadeira, implicaria que estamos também diante de uma aplicação especial da palavra “alma”, no caso, uma alma que seria “destruída” pela negativa de Jesus em curá-la. 126 Capítulo 11 O QUE JÓ FALOU SOBRE A MORTE Lembra-te de que a minha vida é vento; que meu olho não verá mais o que é bom. O olho daquele que me vê não me avistará; teus olhos estarão [fixos] em mim, mas eu não existirei. A nuvem certamente acaba e vai embora; Assim não subirá aquele que desce ao Seol. Não mais retornará à sua casa, e seu lugar não mais o reconhecerá. Jó 7:7-10. Mas o varão vigoroso morre e jaz prostrado; e o homem terreno expira, e onde está ele? As águas deveras desaparecem do mar, e o próprio rio se escoa e seca. O homem também tem de deitar-se e não se levanta. Não acordarão até que não haja mais céu, nem serão despertados do seu sono. Jó 14:10-12. Não acordarão até que não haja mais céu Na minha defesa inicial eu havia dito que se tomássemos ao pé da letra os sentimentos negativos que Jó expressou em suas lamúrias, significaria acreditar que não há nenhuma esperança das pessoas que morrem voltarem a viver na Terra. O que seria uma aparente contradição com o conceito da ressurreição ensinado no Novo Testamento e vislumbrado pelo profeta Daniel: “Não vos maravilheis disso, porque vem a hora em que todos os que estão nos túmulos memoriais ouvirão a sua voz e sairão, os que fizeram boas coisas, para uma ressurreição de vida, os que praticaram coisas ruins, para uma ressurreição de julgamento”. – João 5:28, 29. “E muitos dos adormecidos no solo de pó acordarão, estes para a vida de duração indefinida e aqueles para vitupérios [e] para abominação de duração indefinida”. – Daniel 12:2. Então, de um lado temos Jó dizendo que os mortos não acordarão até que não haja mais céu, o que poderia ser entendido por “eternamente”, e de outro Jesus informando que eles acordarão, mediante a ressurreição. Sobre isso, o autor do MB disse: As palavras que vêm logo em seguida (apenas dois versículos depois) do trecho do livro de Jó que foi mencionado (Jó 14:10, 12) não foram citadas. Estas palavras são: “Quando um homem morre, acaso tornará a viver? Durante todos os dias do meu árduo labor esperarei pela minha dispensa. Chamarás, e eu te responderei; terás anelo pela criatura que as tuas mãos fizeram.” (Jó 14:14, 15) 127 Não é isto uma referência clara à ressurreição, na qual o patriarca Jó e todos os demais servos de Deus na antiguidade acreditavam? Como é que se pode dizer, então, que “apegando-se estritamente ao que é dito nos textos acima, facilmente chegar-se-ia à conclusão de que não há mais esperança para os que morreram e jamais eles serão ressuscitados”? O que é isso que foi feito acima: É ‘apegar-se estritamente ao que é dito nos textos’ ou é fazer citação descontextualizada para esconder evidência desfavorável? … (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) A minha ideia foi confrontar os dois estágios diferentes da fé: o apresentado pelo Novo Testamento e aquele presente no Antigo, do qual o texto de Jó faz parte. Acredito que esse contraste é mais interessante. No entanto, o mesmo argumento poderia ter sido apresentado com relação ao conteúdo interno do livro de Jó. Num momento ele diz que os mortos nunca mais se levantarão e em outro diz que depois de sua morte esperaria até que Deus o chamasse de volta à vida. Ou seja, existe a mesma aparente contradição. Sim, não se pode fugir da realidade apresentada por Jó: depois que o homem morre ele não retorna mais da sepultura, e tudo o que ele era ou tinha desapareceu para sempre. Onde Jó está agora? Em que lugar fica sua casa e família? Por acaso ele teria alguma coisa para reivindicar caso voltasse para a Terra hoje? Não, aquilo que era dele não existe mais. Tudo se foi definitivamente. Isto é tão evidente que vários comentaristas da Bíblia descrevem justamente o que estou afirmando aqui: “Jó não nega a ressurreição final (cf. 19, 23-27). Está preocupado apenas com os acontecimentos deste mundo, e, de fato, uma vez morto, o homem não tornará a esta vida terrena”. – Nota da Bíblia Figueiredo, sobre Jó 14:12. “A perspectiva da ressurreição parece excluída pelo autor. Mas ver 19,25-29”. – Nota da Bíblia Mensagem de Deus, sobre Jó 14:12. “Jó faz abstração da ressurreição, interessando-se somente pela vida terrena: com a morte, toda a atividade cessa na terra”. – Nota da Bíblia Matos Soares, sobre Jó 14:1012. “Estas imagens escatológicas, que afastam até o infinito qualquer possibilidade de despertar, têm aqui a função de realçar que o homem desaparece sem esperança de voltar. A expectativa de ressurreição no fim dos tempos parece ainda fora das perspectivas do autor”. – Nota da Bíblia de Jerusalém, sobre Jó 14:12. “De acordo com a opinião comum, que o autor parece partilhar aqui e em 10,21; 14, 7.22; 16,22 (cf. 2Sm 12,23; Sl 88,11 etc.), é impossível regressar do Xeol (cf. Nm 16,33+).” – Nota da Bíblia de Jerusalém, sobre Jó 7:9. 128 “A morte é definitiva como os elementos cósmicos, lagos, rios, céu. As comparações são violentas por serem usadas ao contrário: a água corrente, imagem da vida, tornase paralela da morte; o céu, paradigma de longevidade, torna-se medida da morte. Só a morte do homem dura, só ela é contemporânea do cosmo”. – Nota da Bíblia do Peregrino, sobre Jó 14:11, 12. Tu chamarás e eu mesmo te responderei Sendo assim, como explicar o que Jó disse a seguir? “Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei. Terás saudades do trabalho das tuas mãos”. – Jó 14:14, 15. Os tradutores da New American Bible respondem: “O lastimável lamento de Jó é que Deus deve ceder na visão da vida limitada dos seres humanos. Os quais, quando comparado à vida de uma planta, que morre, mas pode reviver, a morte dos seres humanos é definitiva. O desejo impetuoso e impensável de Jó nos vv. 13-17 é um lance destemido de imaginação e desejo; se ele ao menos no Sheol ficasse protegido até que Deus se lembrasse dele! Ele viveria novamente (v. 14), as coisas seriam diferentes, mas, ao invés disso, Deus destrói ‘a esperança dos mortais’ (v. 19)”. – Nota da Bíblia New American Bible. Sendo assim, no capítulo 14, Jó não estava pregando a ressurreição. De fato, ele nem sequer tinha uma noção completa sobre esse assunto, tal como foi mais tarde revelado aos cristãos. O que ele tinha era uma esperança de que Deus poderia trazê-lo de volta, semelhante àquela demonstrada por Abraão quando estava prestes a sacrificar Isaque. (Hebreus 11:19). A única coisa que Jó tinha como certa é que neste mundo ‘a vida é como o vento, feito a nuvem que passa e se acaba, para nunca mais voltar’. Quando ele falou isto no capítulo 7 não houve nenhum versículo posterior que mencionasse algo relacionado à sua esperança pessoal, tal como ocorreu no capítulo 14. Ao invés disso, ele reforçou a ideia da partida permanente: “Assim não subirá aquele que desce ao Seol. Não mais retornará à sua casa, e seu lugar não mais o reconhecerá”. – Jó 7:7-10. Portanto, o que eu tratei na minha defesa inicial não foi, nem de longe, “citação descontextualizada para esconder evidência desfavorável”. E isto nem seria possível, pois os versículos omitidos, onde estaria todo o “problema”, estão logo após a citação que eu fiz, conforme bem percebeu o autor do MB. Eu não os citei apenas para destacar a referida realidade descrita por Jó, que não pode ser tirada do texto. Mas é claro que se eu imaginasse que o autor do MB ainda não entendeu o que Jó disse, eu teria mencionado os dois aspectos: (1) o fim definitivo da pessoa humana depois da morte e (2) a esperança que Jó nutriu de voltar a viver na Terra. O que Jó disse talvez nem tivesse relação direta com a futura ressurreição dos mortos. Pode ser que ele achasse apenas que Deus poderia trazê-lo de volta à vida ali mesmo, no mundo onde vivia, e que o tempo que passasse no Seol seria um descanso para o seu padecimento doloroso, atribuído por ele à “ira” de Deus. Jó ficaria então 129 esperando no Seol até que Deus não estivesse mais “zangado” com ele e devolvesse a vida terrena que possuía. Que Jó poderia ter outra expectativa concernente à vida eterna reservada aos justos, não relacionada com uma vida terrena, pode ser inferido do versículo abaixo: “Eu sei que depois que a minha carne for consumida, sem ela estarei na presença de Deus”. – Jó 19:26*, A Nova Bíblia Viva. * Infelizmente, devido a uma má preservação desse versículo nos manuscritos hebraicos, muitas Bíblias o apresentam com outros sentidos, a exemplo deste: “E depois de consumida a minha pele, contudo ainda em minha carne verei a Deus”. (Almeida Fiel). Ou seja, não seria “em espírito” que Jó veria a Deus, mas na própria carne. Tomando ao pé da letra essa versão, me parece uma visão bem bizarra imaginar um ser humano sem pele diante de Deus. Muito já se escreveu sobre qual seria a leitura correta desse texto e há toda uma história por detrás da discussão, relacionada sobre como seria a ressurreição: (1) se em carne ou (2) em espírito. A primeira opção parece que foi a preferida da maioria dos antigos tradutores, desde a época de Jerônimo, e isto se refletiu em suas traduções de Jó 19:26. No entanto, estar na presença de Deus com um corpo físico parece entrar em conflito com outras partes da Bíblia, a exemplo de que “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus” e que o homem é “morto na carne, mas vivificado no espírito”. Para mais detalhes, leia, por exemplo, a nota de rodapé da Bíblia do Peregrino sobre Jó 19:26. – 1 Coríntios 5:5; 15:50; 1 Pedro 3:18; 4:6. O homem dá o último suspiro e deixa de existir Após um tópico chamado “Argumentação falaciosa”, o autor do MB prosseguiu: As palavras que o patriarca Jó de fato disse, a saber, que o Seol é “o lugar do qual não há retorno”, que “o homem morre, e morto permanece; dá o último suspiro e deixa de existir”, foram despercebidas. Nenhuma explicação foi dada sobre elas. O que se fez foi desviar a questão para o assunto da ressurreição (referido como “tema relativamente pacífico”), tentando provocar uma “contradição” interna nas Escrituras, como se Jó nada tivesse falado sobre isso, e tivesse “contradito” o que Jesus e outros disseram! (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Não era o objetivo naquele momento comentar sobre o fato do homem deixar de existir quando dá seu último suspiro. O homem (o ser humano) deixa de existir, mas sua alma desce para o Seol, nas profundezas da Terra. Se este era o “problema” que o autor do MB tinha em mente ao se deter nesse detalhe, está aqui a explicação, que a esta altura já deve ser mais do que óbvia. Por Jó mencionar que o homem “deixa de existir” quando morre, certamente um leitor de mentalidade aniquilacionista pensa imediatamente que Jó acreditava na completa aniquilação após a morte. Entretanto, esta conclusão está errada por conta do contexto global da Bíblia, ao indicar que depois da morte a alma do homem desce 130 ao Seol, que fica nas partes inferiores da Terra. E a alma só pode sair de lá se for chamada por Deus, conforme disse o esperançoso Jó: “Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, Até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei”. – Jó 14:13-15. A própria linguagem de Jó demonstra que a morte não significa a completa inexistência, pois no Seol ele ficaria aguardando, na expectativa de responder ao chamado de Deus. Quem não existe não pode fazer tais coisas. Jeová não é Deus de mortos, mas de vivos. Por isso, a pessoa de Jó não deixou de existir, apesar da “tenda” onde viveu – o corpo físico – ter desaparecido há muito tempo. Sobre tal aspecto, note os comentários abaixo: “De que Jó admitisse uma vida após a morte não se pode duvidar, pelas muitas alusões que faz a ela, cf. o v. seguinte em que fala em esperar no sheol (traduzido por sepulcro) [até que] passe a cólera divina”. – Nota da Bíblia Figueiredo, sobre Jó 14:12, colchetes acrescentados. “A vida [terrena] já não lhe importa, contanto que lhe façam justiça; já aceitou a morte, pensando que lhe farão vingança; a justiça deverá prevalecer, e ele, ainda que morto, terá a satisfação de sabê-lo”. – Nota da Bíblia do Peregrino, sobre Jó 19: 26, colchetes acrescentados. Ao comentar Jó 14:12, Stewart Salmond chegou à mesma conclusão sobre o “deixar de existir” do homem depois da morte, conforme revelam os trechos abaixo: “Será conveniente mencionar em primeiro lugar que certas ideias são estranhas ao Velho Testamento. A ideia de Extinção é uma delas.... Passagens como estas [do livro de Jó], nas quais o Antigo Testamento fala do fim do homem em termos absolutos e estranhos têm induzido alguns a dizer.... que resta a ele [ao homem] simplesmente a inexistência quando morre. Mas tais afirmações incidentais estão longe de justificar tais conclusões. Elas podem ser feitas somente desvinculando-as de sua ocasião imediata e propósito, que é obviamente antimaterialista.... Elas refletem os modos de sentimento, decaimento e flutuações de esperança que às vezes acometem uma mente diante das dolorosas e sombrias coisas da vida. Ou então elas expressam o que a morte aparenta ser sob um olhar simplesmente da natureza [humana], a exemplo da remoção individual dos compromissos, possessões, e atividades da cena familiar terrestre.... Que a ideia de extinção é estranha ao Velho Testamento não há o que se questionar. A menção das artes da necromante, que eram proibidas pela Lei e zombadas pelos profetas, indica o apego à crença de uma pós-existência de algum tipo na mente das pessoas [da nação de Israel]..... O pensamento do aniquilacionismo é inconsistente com a concepção geral de um domínio dos mortos que permeia todo o Velho Testamento, e que é distinto da sepultura”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de S. D. F. Salmond, pp. 166-170, colchetes acrescentados. 131 E sobre Jó 7:8, outro comentário esclarece: “O olho daquele me vê não me avistará mais. Ou ‘o olho da visão’; o olho que vê; assim o Sr. Broughton o verte: ‘o olho rápido’: isto é para ser entendido como ‘depois’ da morte, quando então o olho mais aguçado [que houver] não poderá vê-lo [isto é, ver a Jó], ele estaria fora de alcance, o que deve ser entendido como uma limitação; porque os homens depois da morte são vistos pelos olhos do onisciente Deus, cujas almas estarão no céu ou no inferno, e seus corpos na sepultura; e para os homens bons, a exemplo de Jó, eles estarão imediatamente em sua presença, observando e sendo observados por ele; e serão vistos pelos anjos, os quais cuidam e carregam suas almas imediatamente depois da morte, e as levam para o céu, onde já estão seus companheiros de adoração; e eles são vistos pelos santos glorificados, cuja companhia então compartilham; porque se o homem rico no inferno podia ver Abraão e Lázaro no seu seio, (Lucas 16:23), então mais ainda os santos podem ver uns aos outros: mas o significado é que quando o homem está morto, ele não é mais visto pelos homens da terra, mediante suas relações, amigos e conhecidos; tais coisas são arrancadas na morte, veja (Atos 20:25, Atos 20:38); o estado dos mortos é um estado invisível, e por isso é chamado em grego de ‘Hades’, ‘não visto’; assim os mortos permanecerão, com respeito aos habitantes deste mundo, até a ressurreição, e então eles verão e serão vistos novamente nos mesmos corpos que agora possuem”. – John Gill's Exposition of the Bible, colchetes acrescentados. O texto de Atos a que John Gill fez referência é sobre o que Paulo disse aos irmãos antes de sua partida: “ ‘E agora, eis que sei que todos vós, entre os quais eu estive pregando o reino, não vereis mais o meu rosto’…. estavam especialmente condoídos por causa da palavra que ele falara, de que não mais iam ver o seu rosto”. – Atos 20:25, 38. O que foi dito no comentário também faz lembrar o texto bíblico a seguir: “Jeová — nos céus está o seu trono. Seus próprios olhos observam, seus próprios olhos radiantes examinam os filhos dos homens…. [Ele] fará chover armadilhas, fogo e enxofre sobre os iníquos…. [Mas] os retos são os que observarão a sua face”. – Salmos 11:4-7, colchetes acrescentados. Por fim, como aconteceu em casos anteriores, até mesmo na literatura grega o leitor pode se deparar com afirmações que aparentemente se referem à inexistência após a morte sendo ditas por pessoas que acreditavam na imortalidade da alma. Veja um exemplo abaixo: “Ele demandou do primeiro: ‘Quais se mostraram mais numerosos, os que estão vivos ou os que estão mortos?’ Ele respondeu: ‘Os vivos, porque os mortos não existem mais’.”. – Vidas (sobre Alexandre, o Grande), de Plutarco. Apegar-se ao valor de face de um texto nem sempre é garantia de entendê-lo corretamente, pois poderá haver um contexto mais amplo sobre o que ele trata ou algo 132 implícito que não se percebe num primeiro momento. Para ilustrar, considere a seguir um texto do livro de Eclesiástico: “Quem louvará o Altíssimo na moradia dos mortos, e em lugar dos vivos que lhe rendem graças? Quando um homem morre e cessa de existir, termina a ação de graças: é quando vive e está com saúde, que pode louvar o Senhor. . . A capacidade de tudo fazer não pertence aos homens, pois um filho de homem não é imortal”. – Eclesiástico 17:27, 28, 30, TEB. Se entendêssemos o trecho acima de acordo com o critério adotado pelos aniquilacionistas, chegaríamos à conclusão de que morte significa a própria inexistência, pois, afinal, é o que tal passagem parece dizer. No entanto, dentro do contexto exegético em questão é claro que essa não era a crença do escritor de Eclesiástico, conforme se conclui ao ler um capítulo mais adiante no mesmo livro: “Amado por seu Senhor, Samuel, profeta do Senhor, estabeleceu a realeza, e ungiu governantes sobre o seu povo. . . Mesmo depois de ter adormecido, profetizou ainda e anunciou ao rei o seu fim: do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46: 13, 20, TEB. Esse texto refere-se ao aparecimento do falecido profeta Samuel para a necromante de En-dor, a pedido do rei Saul. Sobre isso a Bíblia diz: “Saul reconheceu então que era Samuel. Inclinou-se com a face por terra e se prostrou. Samuel disse a Saul: ‘Por que me perturbaste, fazendo-me subir?”. – 1 Samuel 28:14, 15, TEB. Conforme se nota, Eclesiástico e 1 Samuel estão em perfeito acordo sobre o mencionado episódio, sendo o livro canônico ainda mais detalhista. Para mais informações sobre esse assunto considere posteriormente o capítulo 22 (“O aparecimento de Samuel à necromante foi verídico?”). Outro exemplo pertinente está no livro de Apocalipse: “Felizes os mortos que morrem em união com o Senhor”. – Apocalipse 14:13. Quem já se encontra morto (do ponto de vista humano) não pode morrer outra vez. Por isso o texto precisa ser entendido de outra maneira.* Os “mortos” mencionados são as pessoas humanas que morrem em união com Cristo, cujas almas vão para a presença dele. Ou dito de outra forma, são os que antes estavam vivos na Terra, mas que agora usufruem do contentamento de estarem com o Senhor. Esse texto demonstra que os mortos do Senhor não estão inconscientes, pois já estão felizes por estar com ele. * Há muitas traduções da Bíblia que omitem a palavra “mortos” nesse versículo. 133 Os exemplos supracitados ilustram que é necessário estar em sintonia com a real intenção dos escritores bíblicos, cuja variação de linguagem tem confundido os leitores aniquilacionistas. O que faz lembrar o texto a seguir: “A vida dos justos está nas mãos de Deus, nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos pareceram mortos; sua partida foi tida como uma desgraça, sua viagem para longe de nós como um aniquilamento, mas eles estão em paz. Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade”. – Sabedoria 3:1-4, Bíblia de Jerusalém. Portanto, é necessário discernimento ao se defrontar com declarações do tipo “não existir mais” depois da morte. É preciso razoabilidade ao buscar um equilíbrio entre o que vários textos na Bíblia mencionam sobre os que morrem. Entender corretamente o significado de Seol é o primeiro passo para entendê-los da mesma maneira que eram compreendidos nos tempos bíblicos. O sono da morte Nem mesmo a comparação que a Bíblia faz da morte com o sono implica na total inexistência de quem morreu, afinal, quem está dormindo continua vivo, ainda que num estado inconsciente. As atividades do homem não cessam completamente quando ele se deita para dormir, conforme indicam as passagens abaixo do livro de Jó: “Em pensamentos inquietantes das visões da noite, quando o sono profundo cai sobre os homens, veio sobre mim um pavor e um tremor, e encheu a multidão dos meus ossos de pavor. E mesmo um espírito passou sobre a minha face; o pêlo da minha carne começou a eriçar-se. Começou a parar, mas não reconheci seu aspecto; havia uma figura diante dos meus olhos; houve uma calmaria e eu ouvi então uma voz: ‘O homem mortal — pode ele ser mais justo do que o próprio Deus? Ou pode o varão vigoroso ser mais puro do que Aquele que o fez?’.”. – Jó 4:13-17. “Porque Deus fala uma vez e duas vezes — embora não se repare nisso — num sonho, numa visão da noite, quando profundo sono cai sobre os homens durante os cochilos sobre a cama”. – Jó 33:14, 15. E tal realidade é descrita em outras partes da Bíblia: “E ele [Jeová] prosseguiu, dizendo: ‘Ouvi as minhas palavras, por favor. Se houvesse um profeta vosso para Jeová, seria numa visão que eu me daria a conhecer a ele. Falarlhe-ia num sonho. Não assim com meu servo Moisés! Ele está sendo incumbido de toda a minha casa. Boca a boca falo com ele, mostrando-lhe assim, e não por enigmas; e a aparência de Jeová é o que ele contempla. Por que, pois, não temestes falar contra meu servo, contra Moisés?” – Números 12:6-8. Compare com Daniel 4:5, colchetes acrescentados. “E Jacó seguiu caminho desde Berseba e dirigiu-se a Harã. Com o tempo atingiu certo lugar e se preparou para pernoitar ali, visto que o sol já se tinha posto. Tomou, pois, uma das pedras do lugar e a pôs como apoio para a sua cabeça, e deitou-se naquele 134 lugar. E começou a sonhar, e eis que havia uma escada posta na terra e seu topo tocava nos céus; e eis que anjos de Deus subiam e desciam por ela. E eis que Jeová estava parado acima dela e passou a dizer: ‘Eu sou Jeová, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaque. A terra em que estás deitado, eu vou dá-la a ti e à tua descendência’.”. – Gênesis 28:10-13. A comparação da morte com o ato de dormir do corpo é absolutamente natural, pois quem morre descansa de suas obras terrenas e, ao vermos um corpo morto, temos a exata impressão de que a pessoa está dormindo. – João 11:11-13; Apocalipse 14:13. Portanto, este é outro ponto que demanda discernimento do leitor da Bíblia e não deve ser entendido à maneira aniquilacionista, pois esta limita a capacidade de compreender o assunto da maneira correta. Quem dorme continua a existir, porém vivendo em outro nível de consciência, que é chamado de “inconsciência” por quem está acordado. Este fato tem passado despercebido dos aniquilacionistas, quando se referem à comparação da morte com o sono no intuito de demonstrar que quem morre não existe mais. Não houve descontextualização, nem deturpação O autor do MB continua: Dando sequência a esse desvio do assunto, apelou-se à suposta existência de “versículos que apontam na direção contrária” no Novo Testamento. Porém, o único “versículo que aponta na direção contrária” citado na exposição (Efésios 4:8, 9) foi descontextualizado e deturpado. Nenhuma palavra dele contradiz o que o resto da Bíblia diz sobre a condição dos que estão no Seol. Nem contradiz o ensino da ressurreição. Assunto já comentado no capítulo 7. E embora isso não transpareça no trecho do quadro analisado aqui, o artigo defendeu um conceito de “ressurreição” que não tem nada que ver com a realidade (Veja a Nota 22 e a análise à qual ela remete). Talvez isso explique o motivo dessa completa falta de atenção à referência clara que o patriarca Jó fez à ressurreição logo em seguida ao trecho que foi citado na exposição acima (Jó 14:10, 12). Todavia, se o problema não se resumiu a uma simples “falta de atenção”, a única explicação possível é que a omissão desta informação foi deliberada. E isto seria muito menos desculpável. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) A respeito da explicação sobre a ressurreição “que não tem nada a ver com a realidade” (que, na verdade, foi imaginada pelos aniquilacionistas, não por mim), já foi comentada no capítulo 2. 135 (Página em branco) 136 Capítulo 12 CONDENAR OS QUE NÃO CREEM NA IMORTALIDADE DA ALMA? Em dado momento de sua crítica, o autor do MB passa a comparar a minha motivação em escrever sobre o que ele publicou com aquela que foi demonstrada por líderes religiosos da Inquisição católica. Ou seja, para ele eu seria o “inquisidor” que condena, e ele o “mártir” cristão que é “queimado” na fogueira. Antes de comentar afirmações específicas do que ele disse, de pronto eu gostaria de garantir que tais sentimentos condenatórios em relação ao autor do MB nunca passaram pela minha cabeça! Isto é fruto apenas da imaginação dele. Para mim, se ele levar uma vida condizente de um seguidor de Cristo, que o aceita qual Senhor e Salvador, não importa sua crença no aniquilacionismo. Ele estará do mesmo jeito entre os justos aperfeiçoados que herdarão a vida eterna no céu. E não compactuo com nenhum tipo de hostilização dispensada aos aniquilacionistas, seja ela física ou intelectual. Por outro lado, eu também não poderia deixar de demonstrar que os aniquilacionistas estão completamente errados no seu ponto de vista, especialmente sob a perspectiva bíblica. Além do mais, o conceito que defendem vai além da ideia de que os mortos estão apenas “dormindo”. Neste livro eu tratei com mais detalhes diversos aspectos não percebidos por eles, sobre os quais eu ainda não havia comentado. Espero que isso possa ajudá-los a ponderar melhor a questão. Não obstante as confiantes afirmações do autor do MB, transcritas a seguir, são os aniquilacionistas que distorcem a Bíblia para adequá-la ao seu entendimento. Tais distorções resultam da leitura de face de certos versículos do Velho Testamento, a exemplo de alguns de Eclesiastes. E, conforme demonstrado nos capítulos precedentes, são os aniquilacionistas e “condicionalistas” que citam tradutores, eruditos e cristãos antigos fora de contexto. E quando digo “contexto” também está incluída a realidade histórica ou de crença pessoal de quem é citado. Pois bem, as mencionadas conclusões do autor do MB estão nos trechos abaixo, sob o tópico chamado: “Aderência às Escrituras ou ‘Mentalidade Aniquilacionista’?”: “Damnamus et reprobamus omnes assertentes animam intellectivam mortalem ess.” ["Condenamos e reprovamos todos os que afirmam que a alma inteligente é mortal." - Frase da bula papal Apostoloici regimis, emitida pelo papa Leão X em 1513, contra a “heresia” dos que rejeitavam o conceito da imortalidade natural da alma humana.] Na longa história do Cristianismo, os conceitos da ‘sobrevivência da alma após a morte’ e o do "tormento eterno" sempre tiveram seus contestadores, mas já vão longe os tempos em que uma autoridade eclesiástica podia se expressar impunemente da maneira acima. 137 Isso não quer dizer, porém, que os questionadores desses conceitos hoje em dia estejam inteiramente livres de julgamentos adversos. Embora o “tribunal do Santo Ofício” tenha fechado as portas há séculos, e ninguém possa mais classificar tais indivíduos como “hereges” (ou “apóstatas”), decretando a ‘condenação eterna’ para eles (como era o caso no século 16), ainda há – mesmo neste século 21 – quem direcione ataques contra tais pessoas, como “último recurso” para depreciar a evidência que elas apresentam – exatamente como faziam os inquisidores. Na verdade, hoje em dia há websites apologéticos e livros que chamam os aniquilacionistas de hereges. Heresia pode ser entendida apenas como uma opinião minoritária contrária ao pensamento da maioria dos cristãos. Numa inversão de papéis, até mesmo os aniquilacionistas poderão achar que outros grupos é que são os verdadeiros hereges. É o que pensam as Testemunhas de Jeová, conforme será visto no capítulo 21. Elas se apegam à teoria de que o Cristianismo se corrompeu poucas décadas após seu surgimento, devido à “grande apostasia”, e só foi “restabelecido” no século 19 por Charles Taze Russell, o fundador das Testemunhas de Jeová, à época chamadas de “Estudantes Internacionais da Bíblia”. Felizmente, ninguém atualmente é condenado à morte por ser um “herege”. Entretanto, talvez haja os que achem que os aniquilacionistas irão para o “inferno” por não acreditarem na imortalidade da alma. Como apenas um exemplo disso, ao criticar o conteúdo deste artigo Textos Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas? um correspondente incluiu as seguintes declarações, em diferentes mensagens encaminhadas ao Mentes Bereanas: “... não foram apenas os textos [bíblicos] sobre Seol que foram entendidos erroneamente, mas o próprio conceito sobre a alma foi alterado, com base em preconceitos adquiridos em sua formação religiosa desde tenra idade (sim, isto explica alguma coisa, embora não tudo), pois ele tem sido o mesmo entre os cristãos desde que Jesus disse aquelas palavras de Mateus 10:28, até que um belo dia surgiram os adventistas e outros...” "Tais traduções livres (e não literais) [da Bíblia] foram feitas por pessoas que acreditam que uma alma vai literalmente para um profundo lugar da Terra chamado Seol depois da morte. Não existe a menor possibilidade de eles acharem que não é assim." “Essa Bíblia “pasteurizada” idealizada por cristãos aniquilacionistas, que não tinha nada que ver com a cultura religiosa daquele tempo, só existe na cabeça de tais cristãos, fomentada por engravatados do século 19 e uns “gatos pingados” de tempos mais antigos.” “Os livros que vieram a fazer parte da Bíblia eram parte de um mesmo coração 138 pulsante que havia naquele tempo... Os cristãos acreditavam exatamente da maneira que lá está escrita. Geena ardente, Hades, tormento consciente, paraíso temporário para os espíritos dos justos (Luc. 23:43) etc. Tudo isso era crido literalmente da maneira que está posto na Bíblia.” “Acho interessante como é forte a influência de um conceito religioso sobre a mente humana. É uma demonstração de que o autoengano não tem relação direta com a falta de formação acadêmica ou baixa cultura... Ao que parece, os defensores mais instruídos do sono da alma ou da aniquilação dela, quando buscam uma formação acadêmica ou autodidata relacionada à exegese, o fazem apenas para apoiar uma ideia preconcebida, adquirida em suas formações religiosas.” [Todos os grifos foram acrescentados.] Note-se que o âmago da argumentação é o mesmo nos dois casos, o antigo e o moderno. No século 16 a "questão" não era se a alma humana é mortal ou imortal. Todo o problema estava nos que afirmavam que ela é mortal. Estas pessoas eram merecedoras de condenação, e, no conceito dos inquisidores, este era o “ponto final” da discussão. ..... Caso você não tenha lido as seções anteriores deste livro e tenha vindo diretamente para este capítulo, sugiro que suspenda a leitura e comece a ler desde o início, até chegar aqui novamente. Assim você perceberá que a declaração acima não se aplica em nada ao que eu escrevi. Verá que me ative somente ao assunto tratado, e de maneira fundamentada, sem nenhuma relação com o desejo de “condenar” os aniquilacionistas. Então, você talvez se pergunte o motivo do autor do MB ter citado e-mails que ele recebeu de um “correspondente” para somar às críticas ao meu artigo. O motivo é que fui eu mesmo que mandei os tais e-mails, em comunicações pessoais. Naturalmente, usei uma linguagem coloquial, da maneira que sempre fiz com ele desde que nos conhecemos. Imagino que ele não revelou isso por dois motivos: (1) porque não encontrou nos meus textos publicados algo que “sustentasse” sua opinião adversa, e (2) para não parecer sem ética ao citar e-mails particulares sem autorização. Não é difícil entender a razão de o modus operandi dos que apelam a esses “argumentos” apresentados no quadro acima ser similar ao daquelas autoridades eclesiásticas: É mais fácil desviar a discussão para a ‘mentalidade aniquilacionista’ de outros, supostamente motivada por “preconceitos adquiridos em sua formação religiosa desde tenra idade”, do que discutir objetivamente as evidências que estas pessoas apresentam contra o conceito da “imortalidade da alma”. 139 O que apresentei foi sim de maneira objetiva e fundamentada. Tratei de diversos aspectos antes desconhecidos ao autor do MB, muitos dos quais não foram comentados na “segunda edição” de sua crítica ao meu artigo. E agora, com a publicação deste livro, esse abismo de silêncio se aprofundou. O que encaro simplesmente como uma indicação de que não há como contestar tudo o que apresentei. O autor do MB concentra-se apenas nos pontos que acha mais promissores discutir e ignora os demais. Com a inclusão dos meus e-mails particulares é o autor do MB quem inaugura um novo enfoque na discussão. Ou seja, ele sai do campo das ideias e passa a investir na suposta índole religiosa da pessoa que escreve. Embora eu mencione ocasionalmente nos meus textos publicados expressões do tipo “mentalidade aniquilacionista”, “formação religiosa”, “vítimas do autoengano” etc., eu não me concentrei nisso e mantive o foco nos pontos abordados pelos aniquilacionistas. Isso que o autor do MB faz demonstra que, às vezes, palavras são meros rótulos e na realidade elas podem significar outra coisa diferente do que dizem. Ele afirma que lanço mãos de argumentações ad hominem, pois o menciono à vontade usando a expressão “o autor do MB”. Ele, por sua vez, não identifica o autor dos textos que critica, nem sequer diz onde eles estão publicados. Num e-mail ele me disse que eu não deveria fazer referência à pessoa dele, pois ‘devemos combater ideias, e não pessoas’. Mas note que na sua crítica publicada ele classifica os meus textos de diversas maneiras pejorativas: falácia, perversão, indecência, desonestidade, etc. Coisas que, até onde me lembro, eu nunca falei dos textos dele. E, para fechar o cenário dantesco, ainda diz que o condeno à semelhança dos antigos inquisidores. Então, na prática, quem é que está lançando julgamentos sobre o autor ao invés de se concentrar no que ele escreveu? Os fatos respondem por si só. Por isso, acho absolutamente irrelevante essa conversa de ad hominem, pois um texto não existe sem seu autor. Se um artigo é acusado de desonesto seu autor também o é. Sendo assim, na forma o autor do MB apresenta uma coisa, mas na essência demonstra outra. Eu preferi o caminho contrário, nominar logo a quem é de direito, mas com o cuidado de não desrespeitá-lo. É bem mais cômodo retratar esses contestadores em termos pejorativos, tais como “engravatados” e “gatos pingados”, que ‘entendem errado a Bíblia’ e ‘ignoram a história do Cristianismo’ do que lidar decentemente com os dados bíblicos e históricos que essas pessoas apresentam. [Os leitores que conhecem as publicações das Testemunhas de Jeová estão cientes de que esta mesma linha de raciocínio foi adotada pelos líderes desta organização religiosa para “descredenciar” seus questionadores. Quando não há como refutar a argumentação, sempre existe a opção de apelidá-los de “apóstatas”, ou de outros termos pejorativos. No conceito dos líderes da organização, isto é “suficiente” para anular a força e a validade de qualquer evidência bíblica ou histórica que estas pessoas possam apresentar contra doutrinas centrais da organização Torre de Vigia.] 140 Como é de costume, ele não me indagou sobre o que eu tinha em mente. Não perguntou o que eu quis dizer com “engravatados” e “gatos pingados”. Explicarei aqui. Na região onde nasci a expressão “gatos pingados” é sinônima de “pouca gente”, em contraste com um grupo maior de pessoas. Eu imagino que ela seja conhecida em todo o Brasil. Mas como nosso país tem dimensões continentais, pode ser que em algum lugar ela não seja conhecida ou tenha outra conotação. Mas, enfim, o que eu quis dizer é que foram poucos os cristãos proeminentes de séculos passados que abraçaram o aniquilacionismo. Tal como é hoje, os aniquilacionistas sempre foram franca minoria. Usar tal linguagem coloquial num e-mail particular para se referir a esse fato não é fazer uso de linguagem pejorativa. Com relação aos “engravatados” a ideia já foi outra, mais abrangente. De acordo com o exposto em todo este livro, os judeus e cristãos antigos viviam uma realidade religiosa que pode ser visualizada nos registros históricos e na própria Bíblia. Conceitos a exemplo de Seol e Tártaro estão indelevelmente descritos em tais fontes, de modo que dar a eles sentidos simbólicos, à maneira aniquilacionista, é um perfeito exemplo de aplicação anacrônica e historicamente descontextualizada. Como isso foi possível? Acrescente alguns séculos desde que tais palavras bíblicas foram escritas até chegar à época da Reforma Protestante. Imagine então alguns cristãos, já com suas traduções da Bíblia em mãos, chegando à conclusão que os mortos estão “inconscientes”, devido ao que viram em alguns versículos. Em seguida escrevem alguma coisa sobre isso, mas sem muita repercussão no Cristianismo. Avance um pouco mais no tempo até o século 19, momento em que a imprensa já está plenamente estabelecida e diversas novas denominações religiosas estão florescendo com seus escritórios e atividades de pregação, especialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, países que exportaram o costume de pessoas sérias usarem paletós e gravatas. Mórmons, adventistas, cristadelfianos, russelitas etc. surgiram nesse cenário. Quais foram as consequências? Essas novas religiões apresentaram versões de cristianismo até então inexistentes. Os russelitas, conhecidos por “Estudantes da Bíblia” e depois por “Testemunhas de Jeová”, se tornaram o grupo aniquilacionista talvez mais proeminente de nosso tempo. E quem conhece a história sabe que no início eles foram muito influenciados pelos adventistas. Numa época já muito distante daquela em que profetas vestidos de linho e cristãos de indumentária greco-romana liam os manuscritos originais da Bíblia, os líderes precursores das TJs passaram por um processo que para eles foi uma espécie de “revelação”. Lendo a Bíblia em suas escrivaninhas e consultando obras de alguns daqueles da época da Reforma chegaram à conclusão que a pessoa deixa de existir depois que morre, e transformaram essa ideia em um dos carros-chefes de sua teologia. – Ezequiel 9:2-4; 1 Coríntios 1:22. Ou seja, num espaço de poucos anos durante o século 19, alguns homens em seus escritórios confortáveis, que viviam num contexto completamente diferente daquele dos antigos judeus e cristãos da Palestina e do Império Romano, passaram a dar outro sentido aos termos bíblicos mencionados e a acreditar que um conceito muito prezado 141 pelos cristãos durante os quase dois mil anos precedentes estava errado, e que essa “apostasia” se deu em algum momento no século II, e foi sedimentada nos dois séculos seguintes. Sim, eles também abraçaram esse costume de apontar o dedo para a crença religiosa dos outros cristãos e chamá-la de “apostasia”, e isso se intensificou ainda mais com o tempo. De modo que ora se apresentam como vítimas da “malvada” Cristandade, palavra que para eles tem conotação pejorativa, ora como acusadores dela. No caso das Testemunhas de Jeová, por se acharem os “únicos” portadores da verdade bíblica, acreditam que só elas serão salvas quando Deus devastar este mundo no Armagedom. E, para completar, ainda excomungam e denigrem a imagem dos seus adeptos que passam a discordar de alguns de seus ensinamentos. (Diante disso, quem são realmente os que têm gravado em seus corações o mórbido sentimento de condenar os demais cristãos? São os “imortalistas” ou os aniquilacionistas? A resposta é mais do que óbvia). Portanto, foi pensando no histórico acima descrito que eu chamei os que inovaram no ensino sobre alma e Seol de “engravatados”. Ou seja, foi apenas para contrastar a época deles com aquela de antigamente, sendo uma descontextualizada da outra. Não foi com uma intenção pejorativa. Eles criaram novas conceituações para esses termos de uma maneira completamente desvinculada do contexto em que foram originalmente utilizados, no tempo em que não havia paletós, muito menos gravatas. Essa discrepância pode ser bem visualizada no que foi mostrado no capítulo 5. Embora os aniquilacionistas se comportem como se tivessem reinventado a roda, típico do sentimento de “povo escolhido” que nutrem, o que eles fizeram, na verdade, foi mudar o sentido que as Escrituras apresentam sobre esse assunto. Talvez não de maneira consciente. O erro pode certamente ter motivações inocentes no início, mas quando se estabelece e cria raízes pode passar para fase seguinte que é o autoengano, quando o entendimento errado é exposto a fatos antes despercebidos por seus promotores. É neste momento que também podem surgir agressividade e linguagem rude por parte dos aniquilacionistas contra seus críticos. O autor do MB continua: Além das falácias recorrentes (tais como a do “espantalho” e da “argumentação ad hominem”), declarações como as citadas acima evidenciam também uma gritante falta de pesquisa adequada. Conforme se verá no levantamento que segue, não há evidência de que ‘preconceito oriundo de formação religiosa’ esteja por trás da rejeição da ideia da ‘sobrevivência da alma após a morte’. Nem há evidência de que o conceito popular sobre a alma humana “tem sido o mesmo entre os cristãos... até que um belo dia surgiram os adventistas”. Uma simples observação do que disseram eruditos de renome (associados com uma série de instituições e de várias nacionalidades) ao longo dos últimos séculos, aponta na direção contrária: foi precisamente o exame que eles fizeram da evidência bíblica que os levou a dizer o que disseram, rompendo com sua própria tradição religiosa de longa data e rejeitando conceitos que eram altamente prezados por seus correligionários e colegas acadêmicos. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) 142 Bem, com respeito à “falta de pesquisa adequada”, se o autor do MB considerar paulatinamente o que está exposto nos capítulos precedentes, ele poderá ser “puxado” pelo “vácuo” de suas próprias palavras. Isto porque tudo o que ele escreveu até agora sobre esse assunto é um monumental exemplo de uma pesquisa que realmente não foi adequada. Percebe-se que ele se esforçou para coletar informações consistentes para a escrita de sua “refutação”. O resultado, porém, foi uma imponente “construção” que seria perfeita não fosse um detalhe: sua fundação está completamente comprometida e o prédio pode desabar a qualquer momento. E, para piorar a situação, ele ainda trouxe para dentro de seu empreendimento diversos textos escritos por adventistas que são exemplos mais-que-perfeitos de como não se deve entender a Bíblia, referente ao assunto aqui tratado. E sobre os “eruditos de renome” que o autor do MB mencionou, eu já comentei sobre eles no capítulo 1, no início deste livro. Não foi uma análise exaustiva, mas serve para ter uma ideia da qualidade da “evidência” apresentada. 143 (Página em branco) 144 Capítulo 13 A LÓGICA BÍBLICA NÃO PERCEBIDA A seca, bem como o calor, arrebatam as águas da neve. Assim faz também o Seol com os que pecaram! Jó 24:19 No meu primeiro texto criticado pelo autor do MB, ao comentar o versículo acima eu disse: “Logicamente, os que não pecaram têm um destino diferente”. Discordando da afirmação, o autor do MB disse: Assim, a frase “logicamente os que não pecaram têm um destino diferente” nada tem de ‘lógica’, e muito menos de bíblica. Todos os descendentes de Adão pecam e o destino de todos após a morte é o Seol. A condição de todos os que estão neste domínio dos mortos é a mesma que o versículo de Jó 24:19 descreve. Não há “destino diferente” para ninguém. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Bem, ele até poderia dizer que a frase nada tem de “bíblica”, de acordo com o que ele entende ser bíblico. No entanto, nada ele poderia falar da parte lógica. Argumento lógico No estudo da lógica, em um argumento a conclusão é considerada válida se suas premissas forem verdadeiras, e essa validade depende apenas da forma das premissas, e não de seu conteúdo. Por exemplo: Premissas - Se um homem é mau, ele é infeliz. - O homem infeliz morre jovem. Conclusão - Logo, os maus morrem jovens. Abaixo outro exemplo, baseado em textos bíblicos: Premissas - Se um homem é justo, ele vive para sempre. (Salmos 37:29) - Ninguém vive para sempre. (1 Coríntios 15:22) Conclusão - Logo, nenhum homem é justo. (Eclesiastes 7:20) 145 Agora a aplicação mencionada do texto de Jó: “A seca, bem como o calor, arrebatam as águas da neve. Assim faz também o Seol com os que pecaram!”. – Jó 24:19. Compare com Lucas 16:22-24. Premissas - Se o homem é pecador, o Seol o “derrete” com calor. - João não foi “derretido” com calor. Conclusão Logo, João não é pecador. Então, pela lógica, o texto informa que aqueles que não pecaram têm um destino diferente dos pecadores, o que faz lembrar os textos abaixo: “O perverso é destruído por seus próprios pecados, mas o justo tem esperança de uma vida melhor depois da morte”. – Provérbios 14:32, A Bíblia Viva. “Será apagada a luz dos iníquos.... A própria luz se há de escurecer na sua tenda, e nela a sua própria lâmpada se apagará.... O primogênito da morte comerá os seus membros. Sua confiança será arrancada da sua própria tenda e o fará marchar até o rei dos terrores. Na sua tenda residirá algo que não é seu; espalhar-se-á enxofre sobre o seu próprio lugar de permanência. Embaixo se secarão as suas próprias raízes, e em cima, seu ramo murchará.... Empurrá-lo-ão da luz para a escuridão, e afugentá-lo-ão do solo produtivo”. – Jó 18:5-18. Compare com Salmos 18:28. Argumento bíblico O que nos leva agora ao aspecto bíblico. É claro que, na realidade, todos os homens são pecadores. Então, depois da morte todos teriam o mesmo destino angustiante no Seol (ou Hades). No entanto, o cristão tem seus pecados perdoados por Jesus, conforme indicado nos textos abaixo: “Tomou também um copo, e, tendo dado graças, deu-lho, dizendo: ‘Bebei dele, todos vós; pois isto significa meu “sangue do pacto”, que há de ser derramado em benefício de muitos, para o perdão de pecados’.”. – Mateus 26:27, 28. “Mediante ele temos o livramento por meio de resgate, por intermédio do sangue desse, sim, o perdão de [nossas] falhas, segundo as riquezas de sua benignidade imerecida”. – Efésios 1:7. “Ele nos livrou da autoridade da escuridão e nos transferiu para o reino do Filho do seu amor, mediante quem temos o nosso livramento por meio de resgate, o perdão dos nossos pecados”. – Colossenses 1:13, 14. Portanto, a afirmação que fiz é tanto lógica, quanto bíblica. Novamente, o motivo do autor do MB não conseguir enxergar o argumento bíblico é devido ao conceito errado que ele tem de Seol (ou Hades). Com relação à lógica que não percebeu, basta que ele consulte o assunto em algum livro de raciocínio lógico. 146 Capítulo 14 AS SOMBRAS NÃO LOUVAM A DEUS No texto inicialmente criticado pelo autor do MB, eu disse: Já os que ficam na Terra podem ser vistos mencionando e elogiando o nome de Deus. Quando o ser humano morre, ele não é mais visto fazendo isso. Mas as almas dos mortos permanecem no mundo delas, aquele que está desnudo diante de Deus. Para que elas louvassem a Deus conforme os seres humanos podem fazer, debaixo do sol, seria necessário que elas voltassem para este mundo. O que não é possível, a menos que Deus os ressuscitasse em novos corpos carnais. Este aspecto é mencionado no texto a seguir: “Farás maravilhas pelos mortos? As sombras se levantarão para te louvar?” – Salmos 88:10, 11, Edição Pastoral. Também mencionei que a Tradução do Novo Mundo troca a palavra “sombras”, que é uma alusão às almas que estão no Seol, por “impotentes na morte”. Depois citei três traduções que seguem o hebraico mais de perto na tradução dessa palavra. Sobre isso, o autor do MB comentou: O salmista não falou sobre “ressurreição”, e muito menos ainda sobre almas “voltarem para este mundo por si próprias”. Ele não fez referência em momento algum a alguém no Seol “voltar para este mundo”. Conforme já visto, este Salmo (e os demais) estão tratando da situação no Seol. O verbo usado em todas as versões bíblicas é “levantar-se” (ou um equivalente) e este verbo não pode ser obrigado a significar outra coisa além disso (tal como ‘voltar para algum lugar’). A citação do Salmo 88:10, 11, é mais um exemplo de citação truncada (numa tentativa de esconder evidência), porque o versículo 11 foi omitido. Segue-se a citação completa, com base em mais 3 versões: Acaso mostras as tuas maravilhas aos mortos? Acaso os mortos se levantam e te louvam? Será que o teu amor é anunciado no túmulo, e a tua fidelidade, no Abismo da Morte? (NVI) Será que fazes milagres em favor dos mortos? Será que eles se levantam e te louvam? Será que no mundo dos mortos se fala do teu amor? Será que naquele lugar de destruição se fala da tua fidelidade? (NTLH) Realizas maravilhas pelos mortos? As sombras se levantam para te louvar? Falam do teu amor nas sepulturas, da tua fidelidade no lugar da perdição? (BJ) (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) 147 Mais uma vez o autor do MB supõe erroneamente quais foram minhas motivações. Ele já é um especialista nisso. Eu não omiti o versículo seguinte com o objetivo de “esconder evidência”. Novamente, isto nem seria possível, pois basta alguém consultar diretamente na Bíblia, da maneira que ele fez. E se ele reparar, eu mencionei o versículo 11, só não o reproduzi na citação. Eu transcrevi apenas o versículo 10 para ficar bem destacado o ponto que mencionei, de que as “sombras” não se levantam para louvar a Deus. Ou seja, também não foi para esconder que as “sombras” estão no Seol. É claro que é lá que elas estão. Ele prossegue: O texto, na íntegra, torna claro que a referência é inteiramente ao Seol. O “levantar-se” é no mundo dos mortos. (sepultura, túmulo, abismo, Seol, etc.). O salmo não disse que “as almas que estão no Seol não podem voltar para este mundo por si próprias” e sim que as almas que estão no Seol não se levantam para louvar a Deus lá, no domínio onde se encontram. .... Estas versões também tornam claro que o local de que se fala é o reino dos mortos. É lá que essas “sombras” dos mortos não se levantam, nem fazem nada relacionado com louvor a Deus. Por mais que se tente mudar o foco do verbo para o sujeito, especulando sobre o significado da palavra “sombras”, este fato permanece inalterável. Não há como obrigar o termo “sombras” a significar algo que está “ativo” e “consciente”. O texto completo, em qualquer versão bíblica, indica o contrário disso. (Artigo “Textos ‘Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas’?”) Juntando tudo o que foi dito, temos então três questões: 1) Quem são as sombras mencionadas. 2) Onde as sombras estão, se na sepultura ou no Seol. 3) Em que lugar elas não podem se levantar para louvar a Deus. Para ajudar na análise cito a seguir outros textos bíblicos que falam das mesmas “sombras” (rephaim, em hebraico),* conforme cada um deles aparece em duas edições diferentes da Bíblia. Tais traduções são bem explicativas e praticamente já esclarecem todo o assunto. * No hebraico, existe uma ligação etimológica entre as palavras rephaim e nefilim. Mais adiante estão indicadas algumas obras que tratam desse ponto. 148 Jó 26:5, 6 Bíblia Mensagem de Deus “Sob a terra, as sombras tremem, as águas e seus habitantes; o Xeol patenteia-se diante dele, e sem véu está o Abadon”. Nota dessa Bíblia sobre as sombras: “Trata-se dos mortos do Xeol”. E outra nota dela diz sobre o Abadom: “Significa lugar de perdição, aqui tomado como sinônimo de Xeol, Ap. 9,11 se serve desse termo”. God’s Word Translation “As almas dos mortos tremem debaixo das águas, e também as criaturas que vivem lá”. O motivo das “sombras” serem retratadas nas profundezas oceânicas se deve ao conceito da localização do Seol, cuja fundura é tão grande que se confunde com a dos próprios oceanos. Provérbios 21:16 Bíblia de Jerusalém “O homem que se desvia do caminho da prudência, na assembleia das sombras repousará”. Bíblia do Peregrino “Quem se extravia do caminho da prudência descansará na assembleia das almas”. Isaías 14:9-11, 14, 15 Bíblia do Peregrino “Nas profundezas, o Abismo estremece por ti, ao sair ao teu encontro: em tua honra despertam as sombras, todos os poderosos da terra, e levantam de seu trono todos os reis das nações e te cantam em coro, dizendo: também tu consumido como nós, abatidos até o Abismo teu fausto e o som de tuas harpas! A esteira que jazes são vermes; teu cobertor, lombrigas.... [Tu dizias:] ‘Escalarei o dorso das nuvens, e me igualarei ao Altíssimo’. Ai, abatido até o Abismo, até o profundo da cova!”. Nota dessa Bíblia sobre versículo 9: “A queda do tirano faz estremecer o senhor do reino das sombras; e o Abismo, com seus poderosos destronados, oferece uma recepção fúnebre ao grande colega.... Na recepção se entoa um novo cântico”. (Esse texto é sobre a morte do rei de Babilônia). Bíblia de Jerusalém “Nas profundezas, o Xeol se agita por causa de ti, para vir ao teu encontro; para receber-te despertou os mortos, todos os potentados da terra, fez erguerem-se dos seus tronos todos os reis das nações. Todos eles te interpelam e te dizem: ‘Então, também tu foste abatido como nós, acabaste igual a nós. O teu fausto foi precipitado no Xeol, juntamente com a música das tuas harpas. Sob o teu corpo os vermes formam um 149 colchão, os bichos te cobrem como um cobertor.... [Tu dizias:] ‘Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo’. E, contudo, foste precipitado ao Xeol, nas profundezas do abismo”. Isaías 26:19 Bíblia de Jerusalém “Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, porque teu orvalho será orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras”. Lexham English Bible “Teus mortos viverão; seus corpos se levantarão. Acordem e cantem de alegria, moradores do pó, pois teu orvalho é um orvalho celestial, e a terra dará à luz os espíritos dos mortos”. ‘No Seol, os reis das nações ergueram-se dos tronos para recepcionar o rei de Babilônia’ Quem são as sombras “Farás maravilhas para os mortos? Os fantasmas se levantarão para te dar graças? É teu amor fiel proclamado na sepultura, tua fidelidade no mundo subterrâneo?”. – Salmos 88:10, Common English Bible. “Fazes maravilhas para os mortos? Os espíritos que partiram se levantam para te louvar? Será o Teu amor fiel declarado na sepultura, a Tua fidelidade no Abadom?”. – Salmos 88:10, Holman Christian Standard Bible. 150 Ao contrário do que pensa o autor do MB, dizer que as “sombras” são as almas dos mortos que estão no Seol não é especulação. É assim que o termo hebraico rephaim é entendido desde que tais textos foram escritos. Este é um caso típico de exegese aplicada. Certa vez o autor do MB deu a entender que valoriza tal método de estudo. Está aí um ótimo exemplo para ele começar a praticar. Se bem que nem é preciso ler o que os especialistas dizem para desconfiar que as sombras se referem mesmo às almas dos mortos, conforme ficou demonstrado nas Bíblias apresentadas. O leitor só terá dificuldade de chegar a tal conclusão se examinar esses textos em traduções* que não vertem rephaim por “sombras” ou por algo que denote uma existência imaterial (como foi feito nas duas versões transcritas no início deste tópico). * É o caso da Tradução do Novo Mundo, que traduz esse termo por “impotentes na morte”, talvez para ficar mais de acordo com o entendimento aniquilacionista. De qualquer maneira, para confirmar o que eu disse, leia o que alguns especialistas bíblicos disseram sobre isso: “É de notar, que a palavra [ יםִא פְָרrephaim], sendo propriamente aplicada à antiga raça canaanítica de gigantes, é aqui tomada poeticamente pelas gigantescas sombras ou espectros dos mortos: é equivalente ao latim manes, quando significa almas dos mortos”. – Harpa de Israel (1898), de Santos Saraiva, p. 412, colchetes acrescentados. “A palavra [rephaim] vem de uma raiz que expressa o que é fraco e lânguido, e ao mesmo tempo esticado e longo, e que pode concordemente ser empregado para descrever as formas sombrias do mundo dos mortos como também os gigantes e heróis dos tempos antigos”. – Lange's Commentary, de Carl Bernhard Moll, colchetes acrescentados. “Uma consideração atenta parece deixar pouco espaço para dúvida de que os mortos eram chamados de Rephaim (conforme Gesenius também indica) em referência à noção de Sheol como sendo a residência dos espíritos caídos ou dos gigantes que foram enterrados”. – Smith's Dictionary of the Bible, de F. W. Farrar. “Talvez haja uma continuação ou repetição das circunstâncias e empenhos da terra. Reis podem permanecer reis, e ocupar tronos no Sheol. Mas são sombras de reis em tronos sombrios, numa similitude desprovida de sua anterior dignidade. A cor se foi em tudo, uma cópia pálida é tudo o que restou. A subsistência vazia, lânguida, gasta e magra, que é tudo o que é possível lá, encontra expressão no nome característico que é dado em Jó, Provérbios e Isaías aos habitantes do Sheol – os Rephaim, as sombras, os habitantes debilitados, flácidos”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de S. D. F. Salmond, pp. 203, 204. Na Bíblia, o termo rephaim é uma variante de nefilim, palavra que se refere aos gigantes da Antiguidade, especialmente aqueles gerados entre a união de anjos 151 materializados e mulheres da Terra (Gênesis 6:1-3). Sobre isso, note o seguinte comentário: “Nefilim literalmente significa ‘os caídos’, sendo um eufemismo comum para ‘os mortos’, em hebraico (por exemplo, Jeremias 6:15 diz: ‘eles cairão entre os que caem [em hebraico, nopelim]’.”). – Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto (1993), de Hershel Shanks, Imago, p. 183. Além do texto de Jeremias 6:15 acima indicado, a mesma ideia pode ser vista no texto abaixo: “E [os de Meseque e Tubal] não se deitarão com os poderosos, caindo dentre os incircuncisos, que desceram ao Seol com as suas armas de guerra?”. – Ezequiel 32:2628, colchetes acrescentados. Para outras informações sobre a relação etimológica entre nefilim e rephaim, queira ver as obras abaixo indicadas, cujos links para sua obtenção estão indicados nas referências finais: 1) History of Israel (1886), de Heinrich Ewald, vol. 1, pp. 227-229. 2) De inferis rebusque post mortem futuris ex Hebraeorum et Graecorcum opinionibus libri duo (1846), de Fridericus Boettcher, p. 98, § 193. 3) Biblische Eschatologie (1870), de Albert Kahle, pp. 108 e 109. 4) Theologie des Alten Testaments (1878), de Gustav Friedrich Oehler, pp. 260, 261. 5) Alttestamentliche Theologie (1889), de Hermann Schultz, p. 702. Considere também o elo que a própria Bíblia apresenta entre “alma” e “sombra”, no que se refere à morte do homem: “O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra e não permanece em existência.... Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 22. Sobre o texto acima, uma nota da Bíblia de Jerusalém diz: “Ou o autor pretende dizer que esta sombra só pensa e sente pena por ela própria; ou então, que se lembra com saudade da sua existência carnal”. Não eram somente os hebreus que chamavam as almas dos mortos de “sombras”. Esta linguagem estava presente nas nações semíticas, sendo o povo hebreu uma delas. Por exemplo, na parte final do mito mesopotâmico conhecido como “Epopeia de Gilgamesh” narra-se o retorno temporário de Enkidu, um falecido amigo do protagonista da história, por quem ele tinha grande estima. Sobre esse reencontro o relato diz: 152 Ele [Nergal*] libertou Enkidu para falar [mais] uma vez com seus parentes e mostrou a Gilgamesh como descer a meio caminho do mundo dos mortos, [que fica] nas entranhas da terra. E a sombra de Enkidu levantou-se lentamente em direção dos vivos** e de seus irmãos. Fraca e emocionada tentou abraçá-los, tentou falar, tentou e falhou ao tentar tudo, mas soluçou. “Fale comigo, meu irmão”, sussurrou Gilgamesh. “Conte-me da morte e onde você está”. “Não estou disposto para falar da morte”, respondeu Enkidu numa vagarosa resposta. “Mas se você desejar sentar um pouco, eu descreverei o lugar onde estou”. Épico de Gilgamesh, Tabuleta XII, linha 80 em diante. * Nergal era o deus babilônio do mundo subterrâneo dos mortos, cujo domínio era exercido juntamente com sua consorte Eresquigal. ** Literalmente: “Ele fez a sombra de Enkidu subir do mundo dos mortos feito um fantasma” (ú- tuk-ku sa Enkidu ki zaqiqi ultu erseti ustela). – The Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago (2010), vol. 20, p. 341. Na realidade, o cenário geral que o Antigo Testamento apresenta sobre a morte e o mundo das almas pode ser visto também na literatura babilônica, desconsiderando, é claro, os personagens mitológicos e histórias associadas. Isso demonstra que o povo hebreu, assim como todas as outras nações semíticas, não acreditava na extinção de quem morre, como pensam erroneamente os aniquilacionistas. Veja a seguir alguns exemplos, apresentados no Dicionário Assírio do Instituto Oriental da Universidade de Chicago: “Quando o destino tiver me carregado eu descansarei nesta tumba”. – Era IV 101. “Quando PN morrer eles o enterrarão onde quer que ele indicar, e então descansará no lugar de sua preferência”. – ADD 647, r. 23. “Você não terá nenhuma paz, sem descanso, seus ossos não ficarão juntos”. – Wiseman Treaties 640. Sobre o mundo dos mortos: “Casa de descanso, tumba do repouso, morada eterna”. – OIP 2 151, nº 14:1. Nota-se acima a típica linguagem “aniquilacionista” que os materialistas gostam de mencionar em favor de suas conclusões equivocadas. Mas é óbvio que, considerando o contexto histórico de tais palavras, elas não denotam o que os aniquilacionistas desejam. Isto é assim tanto na literatura babilônica, quanto na Bíblia. Sono ou descanso no modo de se expressar daqueles antigos povos não era evidência de que eles acreditavam na inexistência imediata de quem morre, conforme fica evidente nos textos seguintes: “Seu espírito não está em descanso no mundo inferior”. – Gilg. XII, 152. 153 “Aquele que morreu em batalha descansa em uma cama e bebe água limpa”. – Gilg. XII, 147. “Vocês, espíritos da minha família, todos vocês descansam no mundo inferior”. – LKA 89, r. 5. Textos citados em The Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago (2010), vol. 16, pp. 67, 69. Algo semelhante acontece ao traçarmos um paralelo da linguagem bíblica com a literatura grega, conforme foi visto no capítulo 10 e será considerado com mais detalhes no capítulo 19. Note mais dois exemplos abaixo: “Com estas últimas palavras ao morrer, Enkidu orou e disse ao seu estimado companheiro: ‘Nos sonhos da última noite os céus e a terra se derramaram em grandes gemidos enquanto eu sozinho encarei a devastação. Algumas criaturas de semblantes ferozes e assustadores voaram até mim e me empurraram com suas garras para a casa cheia de horrores da morte, onde Irkala [Eresquigal], rainha das sombras, está no comando. Lá existe uma escuridão na qual nenhuma pessoa verá a luz do dia novamente. Há uma estrada que leva embora o brilho e o viver a vida. Lá os habitantes comem o pó seco e não há água refrescante para saciar sua terrível sede. Fiquei parado e vi aqueles que já tinham morrido, até mesmo os reis estavam dentre as almas escurecidas que não possuem mais nada de sua anterior e remota glória’.”. – Épico de Gilgamesh, tabuleta VII, coluna IV, linha 33 em diante. “Neti, o porteiro-chefe do mundo subterrâneo, perguntou a Inana: ‘Quem é você?’. ‘Eu sou Inana* indo para o oriente [leste]’. ‘Se você é Inana indo para o Oriente, por que viajou até a terra da qual não há retorno?** Por que apontou o seu coração para a estrada onde os viajantes nunca voltam?’.”. – A Descida de Inana ao Mundo Inferior, 78-84. * Inana era a deusa sumeriana da fertilidade, chamada de Istar em Babilônia. Era irmã de Eresquigal, a deusa que cuidava do mundo subterrâneo. Ao chegar lá, Inana passou por sete portões onde teve que se despojar gradualmente de tudo o que levava, até ficar completamente despida. Sem poderes e humilhada, foi morta por Eresquigal e pendurada em um gancho, condenada a nunca mais sair do mundo das sombras. Mas depois de três dias reviveu e saiu de lá, com ajuda de um deus do mundo externo chamado Enki. No entanto, foi exigido alguém em troca e foi-lhes entregue Dumuzi. ** Note que Jó fez uso de uma expressão semelhante ao se referir ao Seol: “Que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno”. – Jó 10:20-22. Até se examinarmos a etimologia das palavras normalmente utilizadas nas obras mesopotâmicas, para se referir aos que estão no mundo subterrâneo, encontraremos alusões a essa ideia de almas penumbrais. Por exemplo, naquele trecho da epopeia de Gilgamesh que descreveu o retorno de Enkidu, a palavra traduzida por “sombra” é útuk-ku, termo que denota um ser espiritual escuro, de aparência estranha e de alta 154 estatura.* E, conforme já visto, a palavra hebraica rephaim (“sombras”) também faz alusão a espectros escurecidos de alta estatura que foram rebaixados às regiões inferiores. De modo que não é coincidência que as palavras hebraicas traduzidas por “caídos” e “gigantes” têm a mesma origem etimológica de “sombras”. – The Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago (2010), vol. 20, p. 374. * O uso do termo ú-tuk-ku para se referir ao fantasma de Enkidu é porque havia um demônio na mitologia mesopotâmica chamado Utukku que tinha exatamente tais características. Considere também a etimologia de outra palavra que significa “fantasma” ou “espírito” na língua sumeriana: gidim. Ela resulta da combinação de gi (preto) + dim (aproximar), o que denota uma figura escura se aproximando. Essa mesma palavra também é usada para se referir ao fenômeno de “escurecer” ou “eclipsar”. – Sumerian Lexicon, de John A. Halloran, p. 56. Se observarmos bem, chamar as almas dos mortos de “sombras” é uma consequência direta da maneira que aqueles antigos povos descreviam a morada dos mortos (Seol), a exemplo daquelas palavras de lamento do combalido Jó: “Quão poucos são os meus dias! Que Deus termine e se afaste de mim, e terei um instante de alegria, antes de partir, sem retorno, para o país de trevas e sombras, para a terra escura e opaca, de confusão e negrume, onde a própria claridade é sombra”. – Jó 10:20-22, Bíblia do Peregrino. O Seol é um lugar de escuridão, embora não de absoluta escuridão, pois lá existe alguma “luz”, porém trêmula e enegrecida, como se fosse uma lamparina no ambiente noturno de uma casa do sertão onde ainda não há energia elétrica. Desse modo, na visão semítica, os mortos possuem essas mesmas características próprias da escuridão, conforme descrito metaforicamente no livro intertestamentário da Sabedoria, que culmina no contraste entre o mundo das trevas e o nosso mundo: “Teus julgamentos são grandiosos e inexplicáveis, por isso as almas indóceis se extraviaram. . . Durante aquela noite deveras impotente, saída das profundezas do impotente abismo, enquanto dormiam o mesmo sono, ou os perseguiam monstruosos espectros, ou ao dar-se por vencidos ficavam paralisados, pois os invadiu repentino e inesperado medo. Assim, todo aquele que aí caía, quem quer que fosse, ficava encarcerado, recluso na masmorra sem barras. . . O mundo inteiro, iluminado por uma luz radiante, se entregava sem travas a suas tarefas; somente sobre eles [os habitantes da escuridão] se estendia uma noite pesada, imagem das trevas que iam recebê-los. Para si mesmos, eram mais pesados que as trevas”. – Sabedoria 17:1, 14, 15, 17, 20, 21, Bíblia do Peregrino, colchetes acrescentados. É exatamente dentro do contexto acima comentado que os versículos bíblicos abaixo devem ser compreendidos: “Porque na morte não há menção de ti; no Seol, quem te elogiará?”. – Salmos 6:5. “Que lucro há no meu sangue quando desço à cova? Acaso te elogiará o pó? Acaso contará ele a tua veracidade?”. – Salmos 30:10. 155 “Acaso farás uma maravilha para os que estão mortos? Ou levantar-se-ão os que estão impotentes na morte, elogiar-te-ão eles?”. – Salmo 88:10, 11. “Os mortos não louvam ao SENHOR, nem os que descem ao silêncio. Mas nós bendiremos ao SENHOR”. – Salmos 115:17, 18, Almeida Fiel. “Pois não é o Seol que te pode elogiar; a própria morte não te pode louvar. Os que descem ao poço não podem olhar esperançosamente para a tua veracidade. O vivente, o vivente, é ele quem te pode elogiar. Assim como eu posso neste dia”. – Isaías 38:18, 19. Os escritores bíblicos jamais conceberam a ideia de extinção ou aniquilamento após a morte. O que eles acreditavam é que as pessoas depois que morrem eram rebaixadas para o profundo mundo das sombras, do qual não haveria retorno, e sem perspectivas de contentamento, salvo no caso de intervenção divina, conforme nos faz pensar a poesia do esperançoso salmista: “Jeová é o meu Pastor, nada me faltará. Ele me faz deitar em pastagens relvosas; conduz-me junto a lugares de descanso bem regados. Refrigera a minha alma. Guia-me nos trilhos da justiça por causa do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra tenebrosa, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; tua vara e teu bastão são as coisas que me consolam”. – Salmos 23:1-4; leia também Isaías 58:9-12. Naturalmente, o autor do MB não estará apto para compreender esse assunto enquanto ele achar que a alma de Mateus 10:28 é apenas o ser humano (orgânico e material) e o Seol uma simples sepultura. É por isso que eu sempre menciono que a origem de todo o problema é o entendimento errado de Seol sustentado pelos aniquilacionistas. Há mais considerações sobre isso no capítulo 20. Onde as sombras estão Não é necessário falar muito sobre isso, pois a exposição precedente deixou claro que o Seol é onde moram as sombras dos mortos, e não a sepultura, onde seus corpos se decompõem. O Abismo, que representa bem a profundeza desse lugar, é outra referência relacionada a tal habitação das almas, conforme aludido pelo apóstolo Paulo: “Não digas no teu coração: ‘Quem ascenderá ao céu?’ isto é, para fazer descer a Cristo; ou: ‘Quem descerá ao abismo?’ isto é, para fazer subir a Cristo dentre os mortos’.”. – Romanos 10:6, 7 A palavra “sepultura” aparece no Salmo 88:10, texto em que as “sombras” também são mencionadas, porque ela tem íntima relação com o Seol, conforme demonstram outros textos bíblicos. A sepultura é a “boca” do Seol, sua “porta de entrada”.* – Salmos 141:7. * Esta correlação pode ser vista também nas obras gregas. Por exemplo: “Com toda a pressa sepulta-me, para que no Hades eu ingresse.” – Ilíada 23:72, de Homero, tradução de Carlos Alberto Nunes (2015), Editora Nova Fronteira. 156 Em que lugar as sombras não podem levantar-se Neste ponto não há razão para polemizar o sentido que atribuí ao texto, ou seja, de que o não levantamento das sombras se refere à impossibilidade delas voltarem para o nosso mundo e louvar a Deus. Na Bíblia, a leitura natural do verbo “levantar” quando é associado aos mortos é eles retornarem para o mundo dos seres humanos, conforme visto nos versículos a seguir: “Os teus mortos viverão. Um cadáver meu — eles se levantarão”. – Isaías 26:19. “Ele disse então: ‘Não assim, pai Abraão, mas, se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão.’ Mas ele lhe disse: ‘Se não escutam Moisés e os Profetas, tampouco serão persuadidos se alguém se levantar dentre os mortos.’ ”. – Lucas 16:30, 31. “E eis que a cortina do santuário se rasgou em duas*, de alto a baixo, e a terra tremeu, e as rochas se fenderam. E abriram-se os túmulos memoriais e muitos corpos dos santos que tinham adormecido foram levantados”. – Mateus 27:51, 52. * No lugar de “duas”, a TNM grafou erroneamente “dois”, fazendo esta palavra concordar com santuário ao invés de cortina. A não ser que eles intencionassem dizer “se rasgou em dois [pedaços]”. Eu corrigi aqui. A edição de 2015 não tem mais esse erro e diz “se rasgou em duas”. O sentido do salmo 88:10 também é o mesmo. Leia-o em traduções que omitiram a palavra “sombras” para que se visualize melhor isso: “Tu fazes milagres para os mortos? Eles se levantarão para te louvar?”. – Good News Translation. “Fareis portentos em favor dos mortos? Ou os defuntos sairão dos túmulos para louvar-Vos?”. – Gaspar Kruz. “Será, talvez, para os mortos que fareis prodígios? Ressurgirão, acaso, os defuntos para Vos louvar?”. – Figueiredo. “Tu mostras maravilhas aos mortos? Eles se levantam e te louvam?”. – Hebrew Names Version. As sombras dos mortos não podem se levantar por si próprias, pois estão confinadas no Seol. Elas precisam ser liberadas de lá mediante a ressurreição, para que recebam corpos físicos necessários para viver em nosso mundo, de acordo com a linguagem apresentada pelo salmista. Se elas voltassem sem passar por tal processo seriam meros “fantasmas” entre nós. Os comentaristas a seguir expressam tal ponto de vista: “Os mortos continuam existindo como sombras ou manes ou ‘almas’, incapazes de voltar à vida, porque Deus mesmo executou uma sentença definitiva”. – Luís Alonso Schökel, em nota da Bíblia do Peregrino, sobre Isaías 26:19. “O autor do salmo sugere que em pouco tempo ele poderia estar entre os mortos, a menos que recebesse ajuda rapidamente e fosse liberado de seus problemas; o que não é feito às sombras, mas somente aos vivos; pois elas comumente não se levantam novamente para este estado mortal [ou seja, a vida humana], para louvar ao Senhor nele [ou seja, no estado mortal]”. – John Gill's Exposition of the Bible, sobre Salmos 88:10, colchetes acrescentados. 157 “As almas que partiram talvez saibam mesmo das maravilhas de Deus e declaram sua fidelidade, justiça e misericórdia; mas os seus corpos mortos não podem; nem podem eles receber os favores de Deus para se confortarem nem voltar a louvá-lo”. – Matthew Henry Commentary on the Whole Bible, sobre Salmos 88:10. O máximo que se poderia concluir do texto é que as sombras dos mortos não podem louvar a Deus nem no mundo delas nem no nosso. Observe: “Porventura farás milagres em favor dos mortos? Porventura os mortos ressuscitarão, para que te louvem? Acaso publicará alguém a tua misericórdia na sepultura, e a tua verdade no túmulo?”. – Salmos 88:10, Matos Soares. “Farás maravilhas pelos mortos? As sombras se levantarão para te louvar? Falarão do teu amor nas sepulturas, e da tua fidelidade no reino da morte?”. – Salmos 88:10, Edição Pastoral.* * Uma nota da Edição Pastoral diz o seguinte sobre esse versículo: “O salmista já se sente no mundo dos mortos. Para o israelita, esse fato significa ficar longe da história, onde Deus está presente e age e, portanto, estar à margem do povo de Deus, longe do culto, da salvação, completamente esquecido”. Não há como afirmar que o salmista não tinha em mente o sentido usual do verbo “levantar” em conexão com os mortos, quando perguntou: “Podem as sombras levantar-se para te louvar?”. É por isso que Matos Soares traduziu esse verbo por “ressuscitar”. Portanto, mais uma vez o autor do MB criticou o que não conhece, o que demanda uma revisão urgente de seus conceitos aniquilacionistas. Só assim ele poderia entender corretamente os textos bíblicos relacionados ao assunto, a exemplo daquele sobre a promessa de Jesus ao malfeitor arrependido na cruz. – Lucas 23:43. “As sombras se levantarão para te louvar?” 158 O mundo sombrio dos mortos na versão egípcia Sabe-se que os egípcios acreditavam na vida no Além, e tinham esperança de ir para o paraíso, chamado por eles de “campo dos juncos”. No entanto, tal lugar não era alcançado imediatamente após a morte. Primeiro a pessoa devia passar por um mundo sombrio cheio de provações e depois ser avaliada pelos deuses na Sala do Julgamento. Somente se seu coração fosse considerado digno pela deusa Maat é que a pessoa seria enviada ao paraíso, para desfrutar da vida eterna. Mas se o coração fosse reprovado seria devorada por um monstro chamado Ahmit, sofrendo então a aniquilação final.* * Embora haja textos que descrevam a extinção final dos maus, os estudiosos não são unânimes na opinião de que os egípcios realmente acreditavam nisso, porque há outros escritos que mostram o contrário, ou seja, que aqueles que morrem jamais terão um fim. – Salmond, p. 64. Embora os egípcios acreditassem na continuidade da vida, eles também chegaram a fazer descrições sombrias a respeito do mundo dos mortos*, de uma maneira que lembra bastante os escritos semíticos. Por exemplo, determinado texto diz: “O Oeste é uma terra de sono e densas sombras, um lugar onde os habitantes uma vez instalados, cochilam em suas formas mumificadas, nunca mais acordarão para ver seus irmãos; nunca mais reconhecerão seus pais e suas mães, esqueceram em seus corações das suas esposas e filhos. A água da vida, que a terra dá a todos que nela moram, é para mim [, que já morri,] estagnada e morta; a água flui para todos os que moram na terra, enquanto que para mim é apenas um líquido putrefato, esta é a minha água. Desde quando eu vim para esse vale de mortos eu não sei onde estou nem quem eu sou. Dê-me água corrente para beber. . . Deixe-me ficar na beirada da água com meu rosto para o Norte, que a brisa me afague e meu coração seja revigorado [e afastado] de sua dor”. – History of Egypt, Chaldea, Syria, Babylonia and Assyria (1901-1906), vol. 1, de Angelo S. Rappoport, Gaston Maspero e outros, pp. 158, 159, palavras da falecida esposa de Pasherenptah, chamada Taimhotep; veja também Salmond, pp. 67-69. * As palavras para descrevê-lo também eram semelhantes: “Salão da profundidade”, “Amigo do Silêncio”, “Corretivo do Descanso” etc. – Salmond, p. 57. No capítulo 20 há uma consideração adicional sobre textos egípcios relacionados à morte. Lá será visto que os egípcios, na realidade, não possuíam uma ideia de alma separada do corpo.* Para eles a recompensa ou punição do morto seriam dispensadas à sua pessoa por inteiro. De modo que as descrições acima não se referem a espectros fantasmagóricos, mas têm estreita relação com a existência física antes usufruída. * Os egípcios concebiam características separadas, como se fossem vários tipos de “almas”, dentre elas a xaib ou sombra, que podia se separar do homem depois da morte, a Ba que representa a necessidade de bebida ou comida, a Sâhu que talvez signifique o corpo natural e a Kâ que está relacionada ao corpo espiritual. – Salmond, p. 55. A teoria de Oscar Cullmann e o conceito judaico sobre o mundo das sombras Conforme visto no decorrer deste capítulo, é óbvio que os escritores hebreus não eram aniquilacionistas. A concepção que eles tinham do mundo dos mortos e seus habitantes, chamados de “sombras”, demonstram isso (veja mais informações 159 relacionadas no capítulo 20). Um estudo realmente sério e isento do texto sagrado jamais ignorará tal fato. Este é um dos motivos porque os adeptos do aniquilacionismo praticamente não encontram em obras especializadas apoio ao conceito que defendem. Uma exceção que tem sido muito usada pelos aniquilacionistas é o escritor Oscar Cullmann*, que aparentemente aderiu ao aniquilacionismo. Ele publicou vários trabalhos teológicos, dentre os quais um artigo intitulado “Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?”, que tem despertado especial interesse dos aniquilacionistas, mesmo sendo um texto pouco expressivo, quando comparado a outros que foram escritos por Cullmann. * Oscar Cullman (1902-1999) foi um teólogo luterano que defendeu o Ecumenismo, pois achava que é importante um entendimento mínimo entre as diversas denominações cristãs. Devido a isso, foi recebido por papas e convidado para ser ouvinte no II Concílio do Vaticano. Devido ao seu currículo, é de se esperar que Cullmann soubesse que os antigos hebreus não eram materialistas, não obstante as “evidências” contrárias apresentadas pelos aniquilacionistas. Se Cullmann e uns poucos acadêmicos realmente resolveram aderir à crença no aniquilacionismo (ou algo próximo a isto) naturalmente eles não poderiam se valer das explicações simplistas e descontextualizadas de pessoas sem formação teológica, pois o público leitor deles é mais exigente. Qual foi então a estratégia que tais eruditos adotaram? A obra de referência a seguir nos explica: “Defensores desta visão não tradicional [, que é o aniquilacionismo,] oferecem frequentemente uma mistura de conceitos bíblicos, teológicos e filosóficos, especialmente Cullmann em 1964 e Pinnock em 1994. Kvanvig em 1993 difere dos outros dois por ser mais estritamente filosófico, e incluir não uma defesa de um tipo de visão aniquilacionista, mas uma completa discussão do espaço lógico concernente às dificuldades apresentadas pela doutrina do inferno e as opções disponíveis para responder, juntamente com críticas extensivas de outros pontos de vista sobre o inferno”. – Heaven and Hell: Oxford Bibliographies Online Research Guide, Oxford University Press, p. 10, colchetes acrescentados. Cullmann seguiu precisamente esse caminho: misturar conceitos bíblicos com argumentos puramente filosóficos e especulativos. Por exemplo, ele propôs um sistema chamado “tempo linear” que explicaria a linguagem não aniquilacionista de determinados versículos do Novo Testamento, a exemplo daqueles em que Paulo disse que esperava se ausentar do corpo para ir viver com Cristo (2 Coríntios 5:8, 9; Filipenses 1:21-23). Cullmann faz uma comparação com as expressões “dia V” e “dia D”, sendo esta última uma referência ao ataque decisivo dos Aliados na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial, que pôde ser considerado o motivo da vitória (“dia V”), embora a guerra tenha perdurado por mais algum tempo. Da mesma maneira seria o cristão depois da morte. Ele pode ser considerado como estando vivo na presença do Senhor, pois o “dia D” já aconteceu com a morte de Jesus. Além de tais especulações, Oscar Cullmann também não acreditava na infalibilidade total da Bíblia. Achava que algumas passagens bíblicas eram meros reflexos das 160 opiniões pessoais dos escritores, de acordo com o contexto histórico em que viviam. Tudo isso junto fez com que ele escrevesse o seguinte: “Então, um homem que não tem o corpo carnal está ainda mais próximo de Cristo do que antes, se ele tem o Espírito Santo. É a carne, ligada ao nosso corpo terreno, que ao longo da nossa vida dificulta o pleno desenvolvimento do Espírito Santo. A morte nos liberta desde obstáculo, embora seja um estado imperfeito na medida em que fica faltando o corpo da ressurreição. Nem neste trecho [de Filipenses 1:23], nem em parte alguma se encontra qualquer informação mais detalhada sobre este estado intermediário no qual o homem interior, despojado realmente de seu corpo carnal, mas ainda privado do corpo espiritual, existe com o Espírito Santo. O apóstolo se limita a garantir-nos que esta condição, a qual antecipa o destino que é nosso já que recebemos o Espírito Santo, aproxima-se da ressurreição final. “Encontramos aqui o medo de uma condição imaterial associado com a firme confiança de que, mesmo nessa condição intermediária e transitória não ocorre qualquer separação de Cristo (entre os poderes que não podem nos separar do amor de Deus em Cristo está a morte – Romanos 8:38). Este medo e esta confiança estão lado a lado em 2 Coríntios 5, e isso confirma o fato de que até mesmo os mortos compartilham da tensão do momento presente. Porém, a confiança predomina, pois a ação foi realmente tomada. A morte está subjugada. O homem interior, despojado do corpo, não está mais sozinho, ele não leva a existência sombria que os judeus esperavam e que não pode ser descrita como vida. O homem interior, despojado do corpo, já foi transformado pelo Espírito Santo em seu período de vida, já está soerguido pela ressurreição (Romanos 6:3 em diante; João 3:3 em diante), se como pessoa viva, ele já tinha sido renovado pelo Espírito Santo. Embora ele ainda ‘durma’ e ainda aguarde a ressurreição do corpo, a qual, por si só, dará a ele a vida plena, o cristão falecido tem o Espírito Santo. Assim, mesmo nesta condição, a morte perdeu o seu horror, embora ela ainda exista. E é dessa maneira que os que morrem no Senhor podem realmente ser abençoados ‘desde agora’, conforme diz o autor do Apocalipse (Apocalipse 14:13). O que se diz em 1 Coríntios 15:54, 55 aplica-se também aos mortos: ‘A morte foi destruída pela vitória. Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?’ Assim, o apóstolo escreve em Romanos 14: ‘Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor.’ (versículo 8) Por esta razão Cristo morreu e voltou a viver, ‘para ser Senhor de vivos e de mortos.’ (versículo 9).” – Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?, pp. 33, 34, tradução do Mentes Bereanas, negritos e sublinhados acrescentados. O texto de Apocalipse mencionado por Cullmann é aquele que já foi anteriormente comentado: “Felizes os mortos que morrem em união com o Senhor, deste tempo em diante. Sim, diz o espírito, descansem eles dos seus labores, porque as coisas que fizeram os acompanham”. – Apocalipse 14:13. Como se percebe, Cullmann sabia perfeitamente que o conceito dos judeus é que a morte não implicava na aniquilação da pessoa, mas sim numa existência sombria que 161 não poderia ser apropriadamente chamada de vida, conforme o cenário apresentado na Bíblia Hebraica sobre as “sombras”. Do mesmo modo percebeu que os escritos cristãos não advogam a inexistência depois da morte. Mas ignorou tudo isso em favor de sua teoria. Na prática, o resultado foi a mesma coisa que os aniquilacionistas em geral costumam fazer: dar um sentido simbólico a determinados trechos bíblicos “inconvenientes”. O único diferencial é que Cullmann apresentou essa incongruência de uma maneira mais elegante, típica de sua formação erudita. Embora Cullmann tenha feito um bom nome em sua trajetória acadêmica, certamente lastreada em trabalhos sérios, o que ele escreveu sobre o “condicionalismo” pode ser considerado uma mancha no conjunto de sua obra, pois as explicações que ele deu sobre a expectativa dos primeiros cristãos sobre o que acontece depois da morte estão claramente erradas. Elas são inerentemente confusas e parecem ter surgido de um conflito interior sobre o que realmente acreditar. Note que no trecho supracitado Cullmann diz que “os mortos compartilham a tensão do momento presente”, que “o cristão falecido tem o Espírito Santo”, que a morte é um “estado intermediário” no ‘qual o homem interior continua existindo’, e que aqueles que estão nessa situação já são “abençoados ‘desde agora’ ”. E chega ao ponto de dizer que o homem sem corpo carnal está mais próximo de Cristo! Tais afirmações contradizem frontalmente o conceito aniquilacionista sobre a morte, segundo o qual tais coisas se aplicam apenas aos que estão vivos neste mundo. Na visão materialista, quando o corpo carnal morre e desaparece o homem deixa de existir. Ele não vai para lugar algum, mesmo que tenha sido uma pessoa fiel. O que Oscar Cullmann fez com tais colocações foi flertar conceitualmente o que a Bíblia informa sobre a continuidade da existência, com o possível intuito de evitar que a ideia apresentada fosse enquadrada na categoria do aniquilacionismo materialista, que prega a própria inexistência daquele que morre, sendo ele cristão ou não. Talvez tenha sido a forma que Cullmann encontrou de aplacar sua consciência ao optar por um entendimento notoriamente contrário ao pensamento judaico-cristão apresentado nas Escrituras Sagradas. A única “válvula de escape” que apresentou para amenizar o problema gerado por sua teoria foi dizer que o Novo Testamento não dá detalhes de tal suposto “estado intermediário”... (Note aqui que ele se valeu de uma expressão comumente usada por cristãos imortalistas). Cullmann tinha aversão ao conceito platônico da imortalidade da alma e o achava incompatível com a Bíblia. Ao que parece este foi o principal motivo que o fez se enveredar pelo arriscado caminho acima mencionado. Mas isso era totalmente desnecessário, pois é possível rejeitar o conceito grego de alma sem aderir ao aniquilacionismo. O erudito S. D. F. Salmond, citado no capítulo 7 deste livro, é um perfeito exemplo que confirma isso. Ele também foi um teólogo de alto nível que rejeitou o Platonismo, mas sem abrir mão da crença na existência contínua da pessoa, mesmo depois da morte. O que Salmond escreveu sobre o assunto é muito mais coerente do que aquilo proposto por Cullmann, pois não rejeita a essência dos textos bíblicos que estão sendo aqui analisados. 162 Capítulo 15 OS APÓSTOLOS ACREDITAVAM EM FANTASMAS? Quando os discípulos estavam em um barco à noite, e viram na escuridão a figura de um homem andando sobre as águas, vindo na direção deles, sem saberem que era Jesus, tiveram a seguinte reação: “E os discípulos, vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: ‘É um fantasma! E gritaram com medo”. – Mateus 14:26, Almeida. E depois que Jesus morreu e foi ressuscitado, numa determinada ocasião os discípulos estavam numa sala fechada e, de repente, Jesus se materializou na frente deles. A Bíblia também informa a maneira que eles reagiram: “Mas, visto que estavam apavorados e tinham ficado amedrontados, imaginavam ver um espírito”. – Lucas 24:37. Certa vez eu mencionei os dois acontecimentos acima no artigo do link abaixo: www.adelmomedeiros.com/aniquilacionismo.htm Nele afirmei que o comportamento dos discípulos diante das duas situações é uma evidência de que, à semelhança de muitos cristãos atuais, eles criam em fantasmas, ou seja, em espíritos com aspecto humano que poderiam ser do mundo dos mortos. Em seguida disse que a palavra grega traduzida por “fantasma” é justamente phantasma, semelhante ao termo em português. Sobre as minhas conclusões o autor do MB escreveu o seguinte: Num escrito (encaminhado aos responsáveis pelo Mentes Bereanas) destinado a defender o conceito da “imortalidade da alma” apareceu o seguinte trecho: . . . [Daí ele passa a citar o que eu disse acima] É claro que o sentido que se dá comumente à palavra “fantasma” é esse, até mesmo entre grande número de pessoas associadas com muitas igrejas cristãs. Contudo, insinuar que, pelo fato de essa palavra constar em um ou dois versículos bíblicos e seu sentido popular ser este comprova que “os cristãos do primeiro século” também tinham um conceito assim (outra maneira de dizer que “a Bíblia ensina” isso) é que já não está nada claro! (Artigo “Fantasmas Existem?”) Na realidade, eu não afirmei que isso comprova o que eu disse. É apenas uma evidência que se soma a outros fatos já apresentados. Por exemplo, como foi visto no capítulo anterior, desde antes da época dos apóstolos os hebreus já tinham a concepção básica do que hoje é chamado de “fantasmas”, quando usaram uma figura de linguagem para se referir às almas dos mortos: Rephaim, as sombras. É tanto que no hebraico moderno “fantasma” é ruach refaim (“espírito das sombras”). 163 Os dois versículos sobre a materialização repentina de Jesus e ele andar sobre as águas não foram escritos com o intuito de provar a existência dos espíritos dos mortos. Eles apenas refletem essa crença. No entanto, mesmo sendo um aspecto complementar, há fatores importantes sobre isso que foram ignorados pelo autor do MB. Os comentarei a partir daqui. Ele prossegue: Qualquer um pode fazer esta afirmação, mas ela não passa disso: uma afirmação. Apesar da completa falta de evidência dessa premissa, porém, ela é o ponto de partida da argumentação acima, daí a razão de isso poder ser apropriadamente classificado como um “raciocínio circular”. Não, o ponto de partida do meu argumento é o quadro visual que a cena proporciona e a reação dos apóstolos. Mas, “coincidentemente”, as pessoas de hoje teriam o mesmo comportamento e se expressariam de forma semelhante, sendo isto um indicativo que tanto atualmente quanto no passado o conceito é praticamente o mesmo. Os comentários do autor do MB resultam daquele velho problema que acomete a maioria dos aniquilacionistas: imaginar que a Bíblia existe de maneira completamente independente do contexto histórico no qual ela surgiu, o qual está bem documentado em outras fontes. Na sua essência, o entendimento predominante na comunidade judaica do primeiro século sobre espíritos e fantasmas era semelhante ao de hoje. E tanto Cristo quanto os apóstolos pertenciam a ela!* Sobre tal contexto, considere adicionalmente o que está nos capítulos 18 e 22, e no apêndice A2. * Para os judeus, a ideia de assombrações noturnas não se limitavam apenas às almas dos mortos, mas incluíam outros personagens do imaginário popular, a exemplo de demônios específicos. Até fadas e duendes vieram a fazer parte desse folclore. E talvez os discípulos tenham retido algumas dessas crenças, ao menos naquele momento. Mas, ao contrário de seus seguidores, é claro que Jesus compreendia perfeitamente a realidade do mundo espiritual e sabia distinguir o que é verdadeiro daquilo que é só fantasia, e nada dessas coisas o assustava. – Veja os verbetes “Folk-Lore” e “FolkTale” da Enciclopédia Judaica (volume 5), cujo link de obtenção está nas referências finais. Note agora como uma versão do Novo Testamento direcionada para judeus traduziu a passagem de quando Jesus andou sobre as águas durante a noite: “Ao vê-lo andando sobre o lago, ficaram tremendo terrivelmente, dizendo: ‘É um ruach refaim (uma aparição)!’ Daí então começaram a gritar”. – Mateus 14:26, Orthodox Jewish Bible. Chamar a aparição de “espírito de sombras” (ruach refaim) é uma alusão à alma de quem morreu, ou “sombra”, conforme a descrição poética do Antigo Testamento. De modo que há forte possibilidade dos discípulos terem tido mesmo esse pensamento quando se assustaram ao ver Jesus andando por cima das águas, no meio da escuridão. E ainda existe outra evidência que pode auxiliar no entendimento deste assunto. O livro de Atos relata que certa vez o apóstolo Pedro foi preso e sua execução já era considerada como certa, de modo que os irmãos se mobilizaram em oração por ele. 164 Então, milagrosamente um anjo o libertou da prisão sem que nenhum dos guardas percebesse (Atos 2:6-11). Em seguida Pedro se dirigiu a uma casa onde alguns discípulos estavam reunidos, orando. Sobre isso a Bíblia relata: “Quando bateu na porta do portão de entrada, uma serva de nome Rode veio atender à chamada, e, ao reconhecer a voz de Pedro, ela, cheia de alegria, não abriu o portão, mas correu para dentro e relatou que Pedro estava em pé diante do portão de entrada. Disseram-lhe: ‘Estás louca.’ Mas ela persistia em asseverar fortemente que era assim. Eles começaram a dizer: ‘É o seu anjo’.”. – Atos 12:13-15. Mas que crença era essa? Quem seria “o anjo de Pedro” que eles mencionaram? A maior parte dos comentaristas dá a seguinte explicação: “A resposta expressa a crença num anjo pessoal que pode ocupar o lugar do indivíduo ausente, tomando sua figura ou voz”. – Nota de rodapé da Bíblia do Peregrino. Seria o que as pessoas chamam hoje de “anjo da guarda”. Segundo consta, os judeus não só achavam que todos têm seus próprios anjos, mas que eles representam as pessoas que morrem em determinadas situações. A aparição (phantasma) de tais anjos para as pessoas também podia ocorrer se houvesse necessidade. Mas por qual razão, afinal, um anjo se faria passar por alguém que já morreu? Qual seria o propósito desse inusitado papel? Teorizando sobre isso, ao opinar sobre o episódio de En-dor, o comentarista e editor de uma versão bíblica, chamado Russell Philip Shedd, propôs o seguinte entendimento: “São dois, os ‘secretários’ (senão mais) que nos acompanham durante a vida toda; um bom e outro mau. Anotam tudo e sabem tudo a nosso respeito. Depois da morte, o anjo bom leva o nosso livro-relatório, diante de Deus, pelo qual seremos julgados (Ap 20.12). Por sua vez, o anjo mau assume a nossa identidade e representa-nos no mundo, através dos médiuns. Onde revela o nosso relatório com acerto e ‘autoridade’. É por isso que Paulo fala da luta que temos contra ‘as forças espirituais do mal’ (Ef 6.12). E é pela mesma razão que Deus proíbe consultas aos ‘mortos’ (ls 8.19,20), porque estes são falsos (Dt 18.10-14). Caso fossem espíritos humanos, provavelmente, Deus não proibiria a sua consulta, apenas regulamentaria o assunto para evitar abusos. Deus, porém, proíbe o que é dissimulação e falsidade”. – Nota da Bíblia Shedd sobre o aparecimento de Samuel à necromante. Das explicações dadas para “demonizar” a história da conversa de Samuel com Saul, mediado por uma necromante, certamente a descrita acima é uma das mais criativas. (Leia o capítulo 22 para ver outras). Embora Shedd não tenha mencionado nessa nota as antigas crenças judaicas como sendo sua fonte de referência, pelo visto este foi o caso. Se o entendimento dos discípulos era realmente esse, então eles estariam considerando a possibilidade de que Pedro já teria sido executado. Neste caso, será que foi o anjo mau que bateu na porta deles? Visto que o anjo do bem já poderia estar 165 a caminho do céu para entregar seu relatório sobre Pedro a Deus? Tal cenário não me parece satisfatório. Mas haveria outra possibilidade? Há, sim. E ela possui um lastro nas Escrituras bem melhor que a explicação anjológica.* * Sobre os anjos pessoais mencionados na cultura judaica, um comentário diz: “Não existe base bíblica para esta crença. Este desenvolvimento da Angeologia pode ter-se derivado do conceito de fravashi no Zoroastrismo. A maior parte da Angeologia rabínica pode ter tido influência persa. Existem algumas evidências nas Escrituras sobre anjos da guarda para os novos crentes (veja Mateus 18:10). Os anjos são servos dos redimidos (veja Hebreus 1:4)”. – Comentário bíblico de Bob Utley. Certa vez, ao mencionar Atos 12:15, a revista “A Sentinela” fez a seguinte pergunta: “Será que os discípulos acreditavam que Pedro havia sido morto e que seu espírito estava à porta?” (01/06/05, p. 31). Sim, a palavra “anjo” pode ter sido tomada com o sentido de “espírito”, pois os anjos também são espíritos (Hebreus 1:14). Então, o que os discípulos poderiam estar dizendo foi: “É o seu espírito”. Os dois comentários abaixo apresentam tal alternativa de entendimento: “Eles supõem que Rode [a criada] tivesse visto uma aparição de Pedro voltando dos mortos; cf. 10,2+”. – Nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, colchetes acrescentados. “Então eles disseram: É o seu anjo – seu espírito desencarnado, seu fantasma; de fato, qualquer outra coisa, ao invés dele próprio”. – Commentary Critical and Explanatory on the Whole Bible, de Jamielson Fausset Brown. Isso estaria em perfeito acordo com a crença predominante da nação judaica, que pode ser percebida na linguagem de Jesus ao aparecer para os discípulos depois que morreu e foi ressuscitado: “Por que estais aflitos e por que é que se levantam dúvidas nos vossos corações? Vede minhas mãos e meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e vede, porque um espírito não tem carne e ossos assim como observais que eu tenho.” – Mateus 24:38, 39. Certamente, ao se referir a “um espírito”, Cristo não tinha em mente o “espírito” figurativo imaginado pelos aniquilacionistas, que representa a força de vida dos seres carnais, nem tampouco seria um “demônio”, pois, apesar do temor natural dos discípulos, nenhum deles se expressou dando a entender isso. E eles também não achavam que estavam diante de um anjo, que é um tipo específico de espírito. Quando a Bíblia informa que eles pensavam estar vendo um espírito, usando o termo de modo genérico, é um forte indicativo que a visão deles era semelhante a da maioria dos cristãos de hoje, caso se deparassem com alguém que já morreu (o medo de quem passasse por isso também não seria muito diferente). Os discípulos acharam que estavam vendo uma pessoa em forma de espírito que se fez visível, não alguém carnal. Ou seja, concluíram que estavam diante do espírito de Jesus. 166 Existe outra informação na Bíblia que reforça o ponto de vista que a expressão ‘anjo de Pedro’, de Atos 12:15, pode ter o sentido de ‘espírito de Pedro’. É a maneira que Samuel foi descrito pela necromante de En-dor: “Mas o rei lhe disse: ‘Não tenhas medo; mas o que vês?’ E a mulher prosseguiu, dizendo a Saul: ‘Vejo um deus subir da terra’.”. – 1 Samuel 28:13. A palavra “deus” que aparece no texto massorético é Elohim, um plural majestático normalmente traduzido por “Deus”, no singular. Mas em alguns contextos pode ser vertida de maneiras diferentes, quando é utilizada em referência a outras pessoas além de Deus. É por isso que algumas versões da Bíblia não trazem a palavra “deus” nesse versículo que menciona o aparecimento de Samuel. Segundo elas, a resposta da mulher foi: “Eu vejo um ser divino subindo da terra”. – International Standard Version. “Eu vejo alguém com aspecto de deus subindo da terra!”. – New English Translation. “Eu vejo um espírito elevando-se da terra”. – Contemporary English Version. “Eu vi um anjo do Senhor”. – Targum*; ver John Gill's Exposition of the Bible. Portanto, quando os discípulos disseram “é o seu anjo” pode ter sido uma maneira peculiar de dizer “é o seu espírito”**, pois imaginaram que Pedro havia morrido. Sobre essa possível acepção, leia adicionalmente a última consideração deste capítulo. De modo que esta é outra evidência de que eles consideravam sim a possibilidade do espírito de alguém aparecer ocasionalmente para pessoas de carne e osso. * Os Targuns são versões aramaicas da Bíblia Hebraica, escritas em forma de paráfrases. ** Essa linguagem talvez fosse uma forma de evitar dizer diretamente que as almas dos mortos transitam em nosso mundo, uma vez que a Bíblia informa que as “sombras” ficam confinadas no Seol e não se “levantam” de lá para louvar a Deus, embora seja possível concluir que na ida da alma para o Seol há um período de transição em que ela ainda se encontra por aqui. – Salmos 88:10. Depois de citar várias traduções da Bíblia que demonstram que a maioria delas realmente traduz φάντασμα por “fantasma”, em Mateus 14:46, e não fazer nenhuma observação quanto a isto, o autor do MB continuou: O escrito que está sendo comentado chamou atenção para a semelhança entre o termo em português (fantasma) e o termo original em grego (φάντασμα, phantasma). Este fato, em si mesmo, nada diz quanto ao sentido do termo, nem prova coisa alguma em favor da “imortalidade inerente da alma”. Mais à frente eu comento sobre o uso dessa palavra grega, que é outra evidência de que os apóstolos realmente acreditavam na existência de fantasmas. 167 Eu tinha dito que a tradução das Testemunhas de Jeová talvez tenha vertido por “aparição” ao invés de “fantasma” para amenizar o impacto no leitor, e evitar que ele fosse induzido a entender o versículo conforme o sentido popular dado à palavra fantasma. Mas o autor do MB saiu em defesa do tradutor da Bíblia das Testemunhas de Jeová e disse: Assim, até mesmo a sugestão de algum erudito “talvez” ter tentado deliberadamente “amenizar o sentido da palavra”, pelo simples fato de não ter traduzido o original em grego por “fantasma” em Mateus 14:26 é uma hipótese questionável. Como se nota, foi uma defesa velada, pois ele evitou defender a versão da TNM diretamente. Para isso ampliou a minha hipótese como se ela se aplicasse a qualquer tradutor bíblico. Mas não foi isso o que eu disse. Eu me referia apenas à Tradução do Novo Mundo. De fato, uma minoria de tradutores também verte por “aparição”, mas dificilmente a motivação deles é a mesma dos “eruditos” das Testemunhas de Jeová. Conhecendo os antecedentes dos escritos da Torre de Vigia, conforme o autor do MB conhece muito bem, pois expõe suas inúmeras falhas nos artigos do MB, a minha suposição tem grande chance de estar correta. De qualquer maneira, não interessa se φάντασμα é traduzido por “fantasma” ou por “aparição”. No contexto do versículo, o sentido de ambas as palavras é o mesmo. Significa um espectro com forma humana que aparece do nada e assombra as pessoas, as quais normalmente concluem que foram interpeladas por um espírito que veio do mundo dos mortos e se faz visível, mas que não pode ser tocado devido a sua intangibilidade. Tal concepção não é algo novo, existe desde os tempos antigos. E ela está presente também na Bíblia, conforme diz certa obra de referência: “O aparecimento de fantasmas dos falecidos, mesmo os de entes queridos, raramente foi considerado uma experiência bem-vinda. Supõe-se que os mortos permaneçam no seu próprio mundo e não se espera que eles ultrapassem a barreira do mundo dos vivos. Quando tal evento acontecia, certamente era um sinal de algo terrivelmente errado, e aqueles que experimentavam um encontro espiritual queriam dar atenção ao problema a fim de que o fantasma retornasse ao seu lugar apropriado. Este entendimento foi tão prevalecente que histórias de fantasmas podem ser encontradas, com temas muito similares, nas antigas culturas da Mesopotâmia, Grécia, Roma, China e Índia, bem como em regiões da Mesoamérica e nas terras célticas da Irlanda e Escócia. Fantasmas também são descritos na Bíblia de uma maneira muito semelhante à descrição feita nos antigos escritos romanos”. – Ancient History Encyclopedia, Ghosts in the Ancient World (2014), de Joshua J. Mark. 168 Na verdade, na sequência do que ele disse, o próprio autor do MB conseguiu chegar à conclusão de que para os tradutores “fantasma” e “aparição” possuem o mesmo significado nos textos mencionados: É muito mais fácil deduzir que os tradutores em geral não fizeram qualquer distinção entre as palavras “fantasma”, “espírito” e “aparição”. No caso do “sentido que as pessoas dão” também não há a menor distinção: seja “fantasma”, “espírito”, “aparição”, “espectro” ou qualquer outra palavra desse gênero, muitos entendem que todas elas querem dizer “alguém que voltou do mundo dos mortos”. No entanto, não há como dizer que tais ideias não estão presentes naqueles dois versículos citados do Novo Testamento, os quais foram escritos em grego. Eles claramente refletem crenças que eram familiares até mesmo aos apóstolos. Isto fica evidente tanto pela reação de pavor deles, que seria a mesma da maioria das pessoas de hoje ou mesmo dos gregos de seu tempo, quanto pela etimologia da palavra phantasma e seu uso nas antigas obras gregas. Note a seguir alguns exemplos: “Eu saí do ossuário e dos portões das trevas, onde Hades habita longe dos deuses, eu Polidoro, filho de Hécuba. . . Eu implorei das forças abaixo, para encontrar uma tumba e cair nas mãos de minha mãe. Então eu terei [realizado] o desejo do meu coração; mas agora eu sairei do caminho da idosa Hécuba, porque aqui ela passa adiante do caminho dela, da proteção da tenda de Agamenon, aterrorizado pelo meu espectro [phantasma]”. – Hécuba 35:50, de Eurípedes. O texto acima reproduz a fala do espírito de Polidoro, que apareceu em frente à tenda de Agamenon. “E isto me deixou com muito medo; por cima de sua tumba apareceu o fantasma de Aquiles”. – Hécuba 94, de Eurípedes. Já nesse texto soa bem melhor traduzir por “apareceu o fantasma” do que por “apareceu a aparição”, o que demonstra que fantasma é a melhor tradução nesse caso. “Não é sua morte, minha senhora, que o fantasma de Aquiles exigiu dos aqueus, mas a dela”. – Hécuba 390, de Eurípedes. “Sim, as maldições de Édipo fizeram ferver em fúria. Muito verdadeiros foram os fantasmas em minhas visões do sono, prevendo a divisão da riqueza de nosso pai!”. – Sete contra Tebas, v. 710, de Ésquilo. E quando se referiu ao anjo que apareceu para a mãe de Sansão, o historiador Flávio Josefo, que escrevia em grego, disse: “Quando sua esposa estava sozinha, uma aparição [phantasma] foi vista por ela: era um anjo de Deus que tinha aparência de um jovem alto e bonito, e ele trouxe para ela a boa notícia de que teria um filho, nascido pela providência de Deus”. – Antiguidades Judaicas 5:276, de Flávio Josefo; compare com Lucas 24:22-24. 169 Como se nota nos textos citados, a palavra phantasma é utilizada para se referir a espíritos com feições humanas que aparecem de forma sobrenatural para as pessoas, sejam eles almas dos mortos ou anjos do céu. E se os discípulos se apavoraram diante do que estavam vendo, à semelhança de quem viu o fantasma de Aquiles, é sinal de que eles não achavam que fosse um anjo. Devem ter se assustado porque concluíram que era o espírito de alguém que havia morrido, da mesma maneira que a necromante de En-dor, que gritou de medo quando viu o espírito de Samuel. – 1 Samuel 28:12. É por isso que os dicionários informam que um dos significados de phantasma é precisamente “fantasma” em nosso idioma*: “Φάντασμα, ατος, (φαίηο) s.n. || visão, sonho, aparição || fantasma, espectro || aparência”. – Dicionário Grego-Português (1990), Livraria Apostolado da Imprensa, de Isidro Pereira. “Φάντασμα, τό, (Φαντάζω) = Φάσμα, uma aparição, fantasma. . . também uma visão, sonho”. – Greek-English Lexicon (1883), de Liddell e Scott. “Uma aparição (Φαντασμα), ou "fantasma," ou "espectro" de Φανταζω e que vem de Φαινω”. – Robertson's Word Pictures of the New Testament. * Já em inglês há pelo menos três palavras para “fantasma”: phantasm, phantom e ghost, sendo esta última a mais comum. Sua etimologia é de origem anglo-saxônica, e não é herança da língua grega. Segundo determinado dicionário, ghost veio do inglês antigo gast, que significa espírito bom ou ruim, anjo ou demônio. Pode ainda significar pessoa, homem e ser humano. No contexto bíblico é usada com o sentido de alma, espírito e vida. Por isso há traduções da Bíblia em inglês que vertem “Espírito Santo” por Holy Ghost ao invés de Holy Spirit. – www.etymonline.com/index.php?term=ghost Gostaria também de fazer uma observação sobre o título do artigo do MB: “Fantasmas existem?”. Essa pergunta demanda uma resposta bem mais abrangente do que aquilo que poderia advir do que eu comentei no meu artigo. O ponto essencial a ser discutido com base no que eu escrevi é se os primitivos cristãos acreditavam na existência de fantasmas. Entendendo-se por fantasmas o aparecimento de espíritos errantes desencarnados que gostam de assombrar as pessoas, geralmente à noite (que foi o horário em que Jesus andou sobre a água). De uma maneira geral, é óbvio que os apóstolos acreditavam em espíritos. Logo, se fantasmas existem ou não já é outra questão.* A Bíblia não tem elementos suficientes para responder tudo o que se poderia questionar sobre esse assunto. Não só este, mas também vários outros. O próximo capítulo trata dessa problemática. * É claro que muitas vezes o aparecimento de “fantasmas” não passa de produto da imaginação de quem os vê, e podem ser explicados de maneira satisfatória. Mas em outros casos não é assim, pois há relatos que dão conta de situações inexplicáveis presenciadas por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Excluindo a possibilidade de fraudes causadas por terceiros, tais eventos não poderiam ser encarados como alucinações coletivas. E atribuir tudo o que é desconhecido a “demônios” é no mínimo irracional, especialmente na época em que vivemos. Depois de considerar tudo o que foi até aqui comentado, cabe perguntar: quais são os argumentos do autor do MB contra todas essas evidências? Bem, somente ele poderia 170 responder. Mas, na crítica ao meu artigo, ele escreveu algumas coisas que podemos analisar. Ele prosseguiu com o seguinte raciocínio (colchetes acrescentados): Há apoio bíblico para isso? [Que o sentido de “fantasma” em Mateus 14:26 significa espírito de um morto?] De maneira alguma! [Se ele tivesse lido o que eu acabei de apresentar será que o autor do MB teria tido a mesma convicção?] Toda a informação apresentada lá conduz diretamente à conclusão de que ninguém ‘volta do mundo dos mortos’ a não ser por meio de ressurreição, um ato divino. Espontaneamente, não! [Na verdade, eu não estava abordando tal questão ao mencionar as referidas passagens. O que destaquei foi uma crença que está refletida na linguagem utilizada pelas pessoas mencionadas] No que se refere a todas as referências bíblicas a “espírito” não há um único caso em que se possa provar conclusivamente que está se falando de “alguém que voltou do mundo dos mortos” (por si mesmo, sem ter sido ressuscitado). Se os promotores do conceito da “imortalidade da alma” desejam afirmar que esta ideia é bíblica, a obrigação primária deles seria apresentar pelo menos um exemplo que comprove isso. Conforme foi visto no capítulo 5, o autor do MB não acredita que existe um mundo dos mortos. Essa linguagem que ele usa é mera apropriação da maneira de outros cristãos se expressarem. Na concepção aniquilacionista ninguém é trazido de lugar nenhum. A pessoa que morreu precisa ser criada novamente, vindo a ser uma nova criatura e não aquela que antes viveu na Terra. É sempre bom relembrar esse “pormenor”... O desafio que ele propõe também não passa de retórica, pois não importa quanta evidência se apresente para os aniquilacionistas, a maioria deles sempre agirá obstinadamente e tentará encontrar explicações alternativas para o que alguns versículos mencionam sobre almas e espíritos. Mais adiante cito alguns exemplos. A Bíblia realmente não possui uma abundância de textos com a linguagem que o autor do MB gostaria de ver, mas o motivo não é porque ela foi escrita desvinculada do contexto do “espiritualismo” judaico. A razão é que a crença dos cristãos antigos nessas coisas era algo corriqueiro. Não havia necessidade de ficar falando sobre isso. De qualquer modo, mais adiante há um tópico onde alguns relatos são listados. No entanto, mesmo não sendo o foco principal da Bíblia, quando ela toca no tema está sempre de acordo com o contexto histórico referente a tais crenças. Obviamente, isto não significa que ela endossa todo e qualquer tipo de tema espiritualista em voga entre os antigos judeus, mas também não é completamente alheia a eles. O autor do MB quer apenas um exemplo? Pois bem, vou apresentar um: “Então a mulher perguntou: – Quem é que você quer que eu faça subir? – Samuel! – respondeu ele. Quando a mulher viu Samuel, deu um grito e disse a Saul: – Por que o senhor me enganou? O senhor é o rei Saul! – Não tenha medo! – respondeu o rei. – O que é que você está vendo? – Estou vendo um espírito subindo da terra! – disse ela. – Como é o jeito dele? – perguntou Saul. – É um velho que está subindo! – respondeu 171 ela. – Ele está todo enrolado numa capa. Aí Saul entendeu que era Samuel: ajoelhou-se e encostou o rosto no chão, em sinal de respeito”. – 1 Samuel 28:11-14, Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Visto que esse acontecimento ocorreu quase mil anos antes da época de Cristo, ele é muito bom para demonstrar que os judeus consideravam a possibilidade de um retorno temporário dos mortos já na época do Antigo Testamento, e que essa ideia não é resultado da influência grega, conforme muitos supõem erroneamente. Naturalmente, o autor do MB alegará vários “problemas” nesse relato de Samuel para desqualificá-lo. Por exemplo, poderá dizer que o texto hebraico não traz nesse versículo a palavra “espírito”. Sim, sabemos disso, conforme já foi anteriormente comentado. Mas veja que a versão acima é uma tradução na linguagem de hoje. É assim que a maior parte dos leitores antigos entendia esse relato, o qual está conectado com conceitos prévios da Bíblia, que uma vez compreendidos corretamente fornecem o suporte necessário para entender o episódio. Sobre isso, considere o capítulo 20, na página 219. Dizer que o espírito de Samuel “subiu” é claramente uma referência ao mundo subterrâneo do Seol, para onde vão as almas espirituais dos que morrem. Os envolvidos na história não estavam postados sobre a sepultura do profeta. Se o corpo de quem morre fosse desintegrado sua alma desceria do mesmo jeito para o Seol. Para mais explicações sobre as polêmicas que existem sobre o relato do aparecimento de Samuel para a necromante, considere adicionalmente os capítulos 16 e 22, e também o apêndice A2, onde foi citado um versículo que pode ser outro exemplo de um espírito que veio do mundo dos mortos. Mas o acontecimento decisivo que deveria ser considerado é a transfiguração de Cristo. Sobre ela a Bíblia informa sem nenhuma margem de dúvida que Jesus conversou sobre sua morte iminente com Moisés e Elias. O relato não menciona a palavra “espírito”, porém a narrativa é tão enfática que dispensa tal critério “exigido” no desafio proposto pelo autor do MB. Mesmo assim ele acredita nela? Resposta: não! O autor do MB também diz em uma nota: ... 5: Há várias evidências de que, em vez de certos conceitos que os apóstolos de Cristo tinham inicialmente serem representativos das crenças dos cristãos do primeiro século, ocorreu o inverso: As orientações do próprio Jesus, bem como o aumento do esclarecimento deles (por meio do espírito santo) os fez mudar de ideia. Eles abandonaram certas ideias com o passar do tempo (incluindo aquelas influenciadas por crendices populares, de seus conterrâneos ou das nações circunvizinhas a Israel). Isso explica o motivo de não existir qualquer ideia ou menção de “fantasmas”, “aparições”, ou qualquer coisa desse gênero nos escritos apostólicos. Estes conceitos nunca foram transmitidos aos cristãos primitivos. De acordo com isso, um erudito bíblico declarou o seguinte em seu comentário sobre este versículo de Mateus 14:26: 172 “Quando os discípulos o viram. Todos eles o viram (Marcos 6:50); e próximo do barco (João 6:19.) É um espírito, uma aparição é a tradução exata. Em Lucas 24:37, 40, ‘espírito’ representa a palavra grega comumente traduzida desse modo. Os discípulos acreditavam em aparições, assim como todos os judeus (exceto os saduceus), e como todas as nações pareciam naturalmente propensas a acreditar. As opiniões dos doze naquela época não têm qualquer autoridade sobre nós, uma vez que eles tinham muitos conceitos errôneos, dos quais só a posterior inspiração do Confortador [o espírito santo] os libertou.” (Comentário ao Evangelho de Mateus, John A. Broadus, 1886, pág. 328 em inglês. Os sublinhados foram acrescentados.). Será que o autor do MB já começou a se convencer que a Bíblia realmente está conectada ao contexto histórico e religioso dos antigos judeus? Pois o erudito que ele cita está dizendo exatamente isso! Porém com a ressalva que os apóstolos podem ter acreditado em fantasmas e assombrações, mas depois abandonaram tais crenças com o avançar do tempo. De modo que a pergunta que dá nome ao título deste capítulo já está acima respondida: “Os apóstolos acreditavam em fantasmas?”. Se eles deixaram de ter esse conceito depois já é outro ponto. E note também o seguinte. Em última instância, o que o autor do MB deseja demonstrar em sua crítica é que espíritos e fantasmas serem mencionados na Bíblia não é reflexo de uma crença na imortalidade da alma. Com tal intuito achou e citou um comentarista que aparentemente está dizendo que a tradução mais acertada de phantasma é “aparição”. Mas tal citação é completamente irrelevante. Isto porque o erudito mencionado acreditava na imortalidade da alma. No mesmíssimo comentário ao livro de Mateus ele escreveu a favor de tal conceito e criticou o aniquilacionismo, conforme pode ser visto nos dois links a seguir: http://www.studylight.org/commentaries/jbm/view.cgi?bk=39&ch=10 http://www.studylight.org/commentaries/jbm/view.cgi?bk=39&ch=25 Ou seja, é aquele velho problema que está sempre vindo à tona. Autores “imortalistas” sendo citados a favor do aniquilacionismo. Essa “técnica de pesquisa” é bastante previsível.* Quando eu li a citação mencionada deduzi isso imediatamente. Quando fui investigar tive minha suspeita confirmada. John Albert Broadus foi um pastor da Igreja Batista do século 19 que escreveu um comentário ao livro de Mateus. No link a seguir há uma biografia sobre ele: http://www.hagnos.com.br/autores.asp?codigo=103 * Com raras exceções, a exemplo da mencionada no capítulo 14, quando não se trata de eruditos sendo citados de maneira indevida, são adventistas que estão alinhados com o mesmo entendimento. Note também que Broadus disse apenas que “aparição” é uma tradução exata. Ele não contestou a conclusão de que os apóstolos acharam que estavam diante de um 173 fantasma, conforme o sentido dado hoje a essa palavra. (E o que ele mencionou depois sobre o abandono de determinadas crenças por parte dos apóstolos reforça isso). O máximo que tal comentarista pode ter concluído é que traduzir phantasma por “aparição” é o mais correto. Se este foi o caso, talvez ele não tenha se debruçado muito sobre o uso dessa palavra na antiga língua grega, conforme foi feito aqui. Já a teoria de que os apóstolos abandonaram as crenças típicas dos judeus sobre espíritos e almas dos mortos não pode ser comprovada. Eles até podem mesmo ter repudiado algumas lendas judaicas, a exemplo de gigantes, fadas e duendes. O que seria absolutamente natural. Mas se o mesmo tivesse acontecido com o entendimento vigente dos judeus sobre alma e morte, que é um assunto sério e importante, é praticamente impossível que eles não diriam nenhuma palavra a respeito. Você conhece algum religioso ou apologista que, ao dar as costas a um conceito antes muito prezado, não saia anunciando aos quatro ventos a nova “verdade”? E sendo uma verdadeira verdade isto se torna até uma obrigação, para que outros não caiam no mesmo erro. No entanto, não existe uma única palavra no Novo Testamento combatendo os conceitos a seguir, defendidos por judeus do primeiro século: “Josefo fornece também pormenores sobre as crenças dos fariseus. Ele observa: ‘Eles crêem que almas têm poder de sobreviver à morte e que há recompensas e punições debaixo da terra para os que levaram uma vida de virtude ou uma de vício: encarceramento eterno é o destino das almas más, ao passo que as almas boas recebem passagem fácil para uma nova vida.’ (Jewish Antiquities, XVIII, 14 [i, 3]) ‘Eles sustentam que toda alma é imperecível, mas que só a alma dos bons passa para outro corpo, ao passo que a alma dos iníquos sofre punição eterna.’.” – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 2, p. 107. Lembre-se que o apóstolo Paulo era fariseu e ele nunca disse nada contra tais conceitos, os quais não advinham de lendas populares, mas da crença de “doutores”. “Filo ensinava que a alma é separada do corpo. Ele falava do homem como ‘tendo corpo e alma’. Será que a alma morre? Note a explicação de Filo: ‘Quando estamos vivos, nosso corpo está vivo embora nossa alma esteja morta e enterrada no corpo como que num túmulo. Mas, se ele [o corpo] morrer, então a nossa alma viverá a sua própria vida, sendo libertada do corpo mau e morto no qual está confinada.’ Para Filo, a morte da alma era simbólica. Ela nunca morre, é imortal”. – A Sentinela, 15/06/05, p. 11. Ter Filo citado o corpo e a alma separadamente, e que a alma não morre, faz lembrar exatamente o que Jesus disse em Mateus 6:25 e 10:28, respectivamente: “Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. Finalmente, também não é correta a afirmação de que não existe nada nos escritos apostólicos que mencionem as crenças que o autor do MB combate. Como visto em 174 outras partes deste livro, os textos abaixo são exemplos que refletem perfeitamente tais entendimentos: “Além disso, tínhamos pais humanos que nos disciplinavam, e nós os respeitávamos. Quanto mais devemos submeter-nos ao Pai dos espíritos, para assim vivermos! . . . Mas vocês chegaram ao monte Sião, à Jerusalém celestial, à cidade do Deus vivo. Chegaram aos milhares de milhares de anjos em alegre reunião, à igreja dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus. Vocês chegaram a Deus, juiz de todos os homens, aos espíritos dos justos aperfeiçoados, a Jesus, mediador de uma nova aliança, e ao sangue aspergido, que fala melhor do que o sangue de Abel”. – Hebreus 9:22-24, NVI. “Quando abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas dos que haviam sido assassinados por causa da palavra de Deus e do testemunho que haviam dado”. – Apocalipse 6:9, Bíblia do Peregrino. “Disse-me então: Estas palavras são certas e verídicas; o Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, enviou seu anjo, para mostrar a seus servos o que deve acontecer em breve”. – Apocalipse 22:6, TEB. Uma nota da Bíblia do Peregrino, diz o seguinte sobre o primeiro versículo acima citado: “As ‘almas’ não são as almas separadas da dicotomia grega, mas o que nossa linguagem popular chama de ‘espíritos’. Em lugar de encontrar-se no Xeol, Deus lhes deu asilo no seu templo (Sl 27,5)*, sob seu altar (tradição rabínica; comparar com Jó 14,13)”. * O Salmo 27:5 diz: “Porque no dia da calamidade ele me ocultará no seu abrigo; esconder-me-á no lugar secreto da sua tenda; ele me porá alto sobre uma rocha”. O que faz lembrar outro: “Ó Jeová, quem será hóspede na tua tenda? Quem residirá no teu santo monte? Aquele que anda sem defeito e pratica a justiça, e fala a verdade no seu coração”. – Salmos 15:1, 2. Portanto, o aparente silêncio dos apóstolos sobre esse assunto é uma evidência que aponta exatamente no sentido contrário do que pensa o autor do MB. Eles não falaram muito porque não havia o que falar. Eles não mudaram de opinião nesse assunto, conforme fica bem demonstrado ao examinar a história primitiva do Cristianismo, conforme será visto nos capítulos 17 e 18. Para finalizar este capítulo, apresento a seguir mais alguns tópicos que podem ser úteis nessa consideração. Outros termos com o mesmo sentido No texto abaixo se usa uma palavra que possui a mesma raiz da palavra phantasma e que tem um significado semelhante: “Outro, passando por um túmulo à noite, e imaginando que viu um fantasma [phantasionteís], correu para ele com lança erguida, e, quando ele a empurrou nele, 175 exclamou: ‘Para onde você está fugindo de mim, você alma que deve morrer duas vezes?’”. – Apophthegmata Laconica (Citações de Lacônia), Provérbios Espartanos, v. 69, de Plutarco. Phantasionteís vem de phantasía, palavra que pode significar aparecimento, aparição ou poder pelo qual um objeto é apresentado (pompa), conforme informam as obras indicadas no link a seguir: http://logeion.uchicago.edu/index.html#%CF%86%CE%B1%CE%BD%CF%84%E1% BC%85%CF%83%CE%B9%CE%B1 Nas obras gregas, phantasía é usada com vários significados, a exemplo de apresentação à consciência (de imediato ou pela memória, verdadeira ou ilusória); imagem visual ou aquela refletida no espelho; e outras acepções que denotam percepções dos sentidos. Tal palavra também aparece no Novo Testamento: “Portanto, no dia seguinte, Agripa e Berenice vieram com muita pompa [phantasías] e entraram na sala de audiências, junto com os comandantes militares e também os homens eminentes da cidade, e, quando Festo deu a ordem, trouxeram Paulo”. – Atos 25:22, 23. E como se nota no conto espartano anteriormente citado, a própria palavra “alma” (psykhé) também é utilizada com o sentido de fantasma. Abaixo outro exemplo: “Então veio o fantasma [psykhé] da minha mãe morta, Anticleia”. – Odisseia 11:81, de Homero. Outro termo utilizado em grego para se referir a fantasmas é εἴδωλον (eídolon), palavra que vem de eidos (forma, figura). Veja um exemplo: “E quando ele estava dormindo pela pira do funeral, como diz o poeta, o fantasma [eídolon] de Pátroclo ficou em pé diante dele”. – Discursos 1:146, de Esquines. Outro sentido da mesma palavra Apenas para exemplificar outra acepção de φάντασμα, veja o trecho a seguir: “Mas o aparecimento [phantasma] circular do corpo [celeste] acontece porque a distância de todo [objeto] nos parece igual”. – As Vidas dos Filósofos Eminentes 10, de Diógenes Laércio. Nesse texto de Laércio são dadas diversas explicações sobre a opinião que se tinha entre os gregos da dinâmica e funcionamento dos corpos celestes, a exemplo da lua. Neste caso, o contexto não permite traduzir φάντασμα por “fantasma”. A libertação de Pedro seria um exemplo de desmaterialização? Não é novidade para os leitores da Bíblia que os espíritos chamados de anjos já se materializaram e se tornaram homens. Tanto em missões temporárias, quanto por tempo mais prolongado, como foi o caso dos anjos rebeldes da época de Noé. (Gênesis 176 6:1, 2). Mas será que seria possível um ser humano se transformar em um espírito sem passar pela morte? Ter seu corpo adaptado para estar entre seres espirituais? Os cristãos que acreditam na doutrina do arrebatamento físico estão convencidos que ocorrerá algo desse tipo, com base em alguns textos bíblicos, a exemplo dos abaixo transcritos: “Eis que eu vos digo um segredo sagrado: Nem todos adormeceremos na morte, mas todos seremos mudados, num momento, num piscar de olhos, durante a última trombeta. Pois a trombeta soará, e os mortos serão levantados incorruptíveis, e nós seremos mudados. Pois isto que é corruptível tem de revestir-se de incorrupção e isto que é mortal tem de revestir-se de imortalidade”. – 1 Coríntios 15:51-53. “Portanto, todos nós, com o rosto descoberto, refletimos a glória que vem do Senhor. Essa glória vai ficando cada vez mais brilhante e vai nos tornando cada vez mais parecidos com o Senhor, que é o Espírito”. – 2 Coríntios 3:18, NTLH. “Depois nós, os vivos, os que estamos ainda na terra, seremos arrebatados juntamente com eles sobre nuvens ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor”. – 1 Tessalonicenses 4:17. Tendo isso em mente, note como a Bíblia descreve a libertação milagrosa de Pedro da prisão, que resultou naquela cena em que os discípulos acharam que seu anjo estava batendo na porta deles: “Então, quando Herodes estava para apresentá-lo, naquela noite Pedro estava dormindo amarrado com duas cadeias, entre dois soldados, e guardas diante da porta estavam guardando a prisão. Mas, eis que o anjo de Jeová se pôs ao lado dele e uma luz brilhou na cela da prisão. Batendo no lado de Pedro, acordou-o, dizendo: ‘Levanta-te depressa!’ E as suas cadeias caíram-lhe das mãos. O anjo disse-lhe: ‘Cingete e amarra as tuas sandálias.’ Ele fez isso. Finalmente, disse-lhe ele: ‘Põe a tua roupa exterior e vem seguir-me.’ E ele saiu e seguia-o, mas não sabia que era real aquilo que estava acontecendo por intermédio do anjo. De fato, supunha que estava tendo uma visão. Passando pela primeira sentinela, e pela segunda, chegaram ao portão de ferro que dava para a cidade, e este se lhes abriu por si mesmo. E, tendo saído, seguiam por uma rua, e, imediatamente, o anjo afastou-se dele. E Pedro, caindo em si, disse: “Agora sei realmente que Jeová enviou o seu anjo e me livrou da mão de Herodes, e de tudo o que o povo dos judeus estava esperando.” – Atos 12:6-11. Como se vê, Pedro estava acorrentado com dois homens o vigiando de perto, além de haver guardas protegendo a prisão. Mas note que não é dito que as sentinelas estavam dormindo, nem que ficaram paralisadas pela presença do anjo, tal como aconteceu com os que vigiaram o túmulo de Jesus (João 28:2-4). Mesmo assim, Pedro e o anjo passaram por todos os vigias sem serem percebidos. Por Pedro achar que estava tendo uma visão e as correntes terem caído instantaneamente de suas mãos, além de ter passado por todos os guardas sem ser notado, creio que há possibilidade dele ter ficado temporariamente no estado 177 espiritual e por isso conseguiu atravessar todas aquelas barreiras físicas. O fato do anjo ter dito que Pedro deveria cingir-se e amarrar as sandálias não seriam elementos impeditivos de tal conclusão, uma vez que no mundo espiritual pode haver uma reprodução aparente das condições da nossa realidade. Na verdade, o nosso mundo é que pode ser uma cópia daquele, como é possível inferir da declaração abaixo de Paulo: “Por isso era necessário que as representações típicas das coisas nos céus fossem purificadas por estes meios, mas, as próprias coisas celestiais, com sacrifícios melhores do que tais sacrifícios. Porque Cristo entrou, não num lugar santo feito por mãos, que é uma cópia da realidade, mas no próprio céu, para aparecer agora por nós perante a pessoa de Deus”. – Hebreus 9:23, 24. Sobre traduzir Elohim por “anjos” Mas o rei lhe disse: “Não tenhas medo; mas o que vês?” E a mulher prosseguiu, dizendo a Saul: “Vejo um deus [“Elohim”] subir da terra”. 1 Samuel 28:13. E o fizeste pouco menos do que um deus [“Elohim”], coroando-o de glória e beleza. Salmo 8:6, BJ Em 1 Samuel 28:13 os tradutores não costumam traduzir Elohim por “um anjo”. Como alternativa a “deuses”, preferem outros termos a exemplo de “um deus” ou “um espírito”. Certamente um dos motivos é porque a narrativa é muito clara em dizer que foi o profeta Samuel quem apareceu. Então não faria muito sentido dizer que era um anjo que subia da terra. Além disso, o Seol é o mundo subterrâneo das almas* e não é o lugar onde os anjos moram. De modo que um anjo viria de cima, não de baixo. * Naquele tempo ainda não se sabia sobre o Seio e Abraão e que as almas dos justos podem ser levadas para o céu, se for da vontade de Deus. – Lucas 16:22; Filipenses 1:21-23; Apocalipse 20:4. De qualquer maneira, a palavra Elohim realmente pode ser vertida por “anjo” ou “anjos”, conforme se nota na versão da Septuaginta grega para o Salmo 8:5, um versículo que compara o homem com Elohim, e que é aplicado profeticamente a Cristo. A seguir uma tradução literal do texto seguida da Versão dos Setenta: “Fizeste-o, contudo, pouco abaixo de Deus, coroaste-o de glória e de honra”. – Harpa de Israel, de Santos Saraiva. “O fizeste um pouco menor que os anjos, de glória e honra o coroaste”. – Septuaginta. O apóstolo Paulo usou a segunda versão acima quando aplicou esse versículo a Jesus. – Hebreus 2:7. Muitas traduções posteriores seguiram a Septuaginta nesse texto e traduzem Elohim por “anjos” (KJV, WYC, NIV, JUB, DBY etc.). Já outras apresentam palavras que apenas 178 denotam a concepção que se tem dos anjos: “seres celestiais” (LEB, NET, ESV, BBE), “um deus” (TEB, PER, BJ), “divino” (CEB, ISV), “deuses” (VER, MSG, LEX) e “semelhantes a Deus” (TNM). Embora a Bíblia de Jerusalém tenha traduzido por “um deus”, uma nota de rodapé diz sobre o versículo: “O autor pensa nos seres misteriosos que formam a corte de Iahweh (Sl 29,1+); os ‘anjos’, no grego e na Vulg. (cf. Sl 45,7+; Tb 5,4+)”. Abaixo um link com algumas das traduções supramencionadas: https://www.biblegateway.com/verse/en/Psalm%208:5 “Espantados e cheios de medo, eles pensaram estar vendo um espírito” “Vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: ‘É um fantasma!” 179 (Página em branco) 180 Capítulo 16 QUESTÕES DE MAIOR AMPLITUDE Não confieis nos nobres, nem no filho do homem terreno, a quem não pertence a salvação. Sai-lhe o espírito, ele volta ao seu solo. Neste dia perecem deveras os seus pensamentos. Salmo 146:3, 4. O texto acima é um dos prediletos das Testemunhas de Jeová no intuito de mostrar que os mortos não possuem pensamentos de nenhum tipo. Afinal, segundo acham, eles foram completamente aniquilados, erradicados da existência, não restando nada deles em nenhuma parte de todos os Universos que possam existir. É claro que as Testemunhas de Jeová normalmente não se dão conta que diversos textos bíblicos contradizem suas conclusões. Um exemplo é aquele em que Jó disse que quando estivesse no Seol aguardaria com expectativa o chamado de Deus para sair de lá e o atenderia prontamente. O que denota que os pensamentos dele não seriam extintos quando estivesse na habitação subterrânea dos mortos. Quem não existe não pode nutrir expectativas. – Gênesis 37:35; Jó 14:14, 15; Isaías 14:9-11, 14, 15; Ezequiel 32:21; Lucas 16:19-31; Apocalipse 20:4. Na realidade, o que o salmista quis expressar está melhor traduzido na fraseologia a seguir: “Não depositeis a segurança nos nobres e nos filhos do homem, que não podem salvar! Exalam o espírito e voltam à terra, e no mesmo dia perecem seus planos!”. – Salmo 146:3, 4, Bíblia de Jerusalém. Sobre essa visão mais refinada do texto e outras questões, o autor do MB disse: Uma última questão pertinente: Se essa aplicação do texto está correta, como é possível harmonizar a afirmação de que “ao morrer os planos [da pessoa], qual ser humano, se acabam ou perecem” com as muitas alegações sobre “espíritos desencarnados” opinando justamente sobre essas coisas? Como é que um “espírito desencarnado” poderia se interessar ou mesmo saber de algum “plano” / “propósito” / “desígnio” / “projeto” que ele tinha enquanto era parte de alguém que vivia “qual ser humano”, se tais coisas ‘se acabaram ou pereceram’ por ocasião da morte? Sendo verdade tudo isso, e tomando-se como base apenas esta frase citada da parábola, surgem as perguntas: Devemos entender, então, que quando uma boa pessoa morre, os anjos do céu são os encarregados de transportá-la para essa “região”? Por que deveriam eles fazer isso? Por que uma “alma espiritual” não poderia fazê-lo por si mesma? Qual seria o impedimento? Porventura os que sabem todas essas coisas sobre a “região do Seio de Abraão” não teriam alguma resposta para estas questões? 181 Quanto ao relato da transfiguração de Cristo, ninguém verá nele alguma palavra sobre o horário em que isso aconteceu. Diferente do infiel Saul, Jesus não achou necessário se disfarçar, nem fazer nada escondido “sob o véu da noite”. Independentemente do horário em que a visão tenha ocorrido, aquilo não era, como apregoam alguns, uma “conversa com mortos”, e Jesus não estava atuando no papel de “médium”, fazendo “contato com profetas desencarnados”, porque ele conhecia a lei Mosaica e a cumpriu melhor do que qualquer um. Sem falar que dificilmente o maior profeta de todos acharia necessário “invocar espíritos” de profetas mortos para saber de alguma coisa. Certamente a Bíblia não fornece respostas para todas as questões que surgirem relacionadas a assuntos espirituais.* Mas para algumas perguntas sobre temas não abordados especificamente ela poderá fornecer algumas pistas. * Quando digo “espirituais” é numa acepção mais ampla da palavra, e não somente a que advém da “espiritualidade” que um aniquilacionista normalmente concebe, relacionada apenas ao interesse por assuntos bíblicos e à maneira de se comportar. Conforme visto, o aniquilacionismo tem uma visão completamente materialista no que diz respeito à imortalidade oferecida ao homem, e seus aderentes “desespiritualizam” uma série de conceitos de natureza espiritual, a exemplo de alma, espírito e Hades, dando a eles conotações figurativas. Por esta razão, as questões levantadas pelo autor do MB é mera retórica, pois ele não crê em nada dessas coisas que mencionou. Mas para quem acredita nelas tais questionamentos ganham relevância, embora não sejam essenciais para a fé cristã. O que apresento abaixo são apenas impressões pessoais e opiniões de comentaristas bíblicos, já que a Bíblia não dá respostas específicas para as referidas perguntas. No entanto, no que é possível, apresento textos bíblicos que dão suporte a determinadas afirmações presentes em cada tópico. Os espíritos desencarnados se interessam pelos assuntos humanos? O rei disse-lhe: — Não temas. O que vês? [A necromante] Respondeu: — Um espírito que sobe do fundo da terra. Saul perguntou-lhe: — Que aspecto tem? Respondeu: — O de um ancião que sobe, envolto num manto. 182 Então Saul compreendeu que era Samuel e inclinou-se com o rosto por terra, prostrando-se. Samuel lhe disse: — Por que me chamaste, perturbando o meu descanso? 1 Samuel 28:13-15, Bíblia do Peregrino. Diferentemente do que alguns cristãos pensam, o espírito que apareceu para Saul não pode ter sido um “demônio” embusteiro, pois a Bíblia não dá essa informação. Concluir isso seria ir além do que está escrito. E o mais importante: o texto é claro em informar que ali era realmente Samuel.* O que induz a reflexões normalmente relegadas ao esquecimento na ortodoxia cristã. – 1 Coríntios 4:6. * A Tradução do Novo Mundo coloca “Samuel” entre aspas para induzir seus leitores a acharem que não era realmente o profeta Samuel, ou a alma dele. Mas isto é irrelevante, da mesma maneira que o esforço de algumas pessoas em buscar falhas no relato a fim de contradizer o seu teor. Os argumentos que já li com esse intuito são quase todos muito inconsistentes. Há uma breve consideração sobre eles no capítulo 22. Além disso, outros testemunhos muito antigos indicam que judeus e cristãos do passado não viam nenhum problema em aceitar a narrativa da maneira que ela é. Para eles quem apareceu foi realmente o profeta Samuel, como atestam o primeiro livro das Crônicas, conforme está na Septuaginta, e o livro de Eclesiástico: “Então Saul morreu por causa de suas transgressões, as quais ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, porque ele não a manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, LXX, versão da tradução de Sir Lancelot Brenton, século III a.C. “Samuel foi amado pelo seu Senhor; profeta do Senhor, ele estabeleceu a realeza e ungiu os chefes estabelecidos sobre seu povo. . . Até depois de morrer profetizou, anunciou ao rei seu fim; do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46:13, 20, Bíblia de Jerusalém, século II a.C. O relato do historiador judeu Flávio Josefo reforça o mesmo ponto de vista: “Tão logo ele [Saul] a convenceu através deste juramento que não havia motivo para temor, ele pediu que ela [a necromante] fizesse subir a alma de Samuel. Ela, mesmo sem saber quem Samuel era, o convocou do Hades. Quando ele apareceu, e a mulher viu que era alguém muito venerável, e com divina forma, ela entrou em desordem. . . E quando ele [Saul] pediu a ela que dissesse qual era a sua aparência, em qual vestimenta apareceu, e que idade tinha, ela disse que era um homem já idoso, de figura gloriosa, e que tinha um manto sacerdotal. Então o rei descobriu por estas visões que era Samuel, e se prostrou em terra, prestando-lhe homenagem. E a alma de Samuel perguntou a ele o motivo de tê-lo perturbado e o feito subir. . .”. – Antiguidades Judaicas 6:327, de Flávio Josefo, século I d.C., colchetes acrescentados. 183 E também escritores cristãos*, a exemplo de Justino (100-165 d.C.): “Quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [que proteja nossas almas, conforme o Salmo 7:2], aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou. E parece também que todas as almas de semelhantes homens justos e profetas estão [potencialmente] sujeitas ao domínio de tais poderes, conforme pode ser inferido de todos os fatos expostos no caso daquela bruxa. Então Deus também nos ensina através do Seu Filho, por causa destas coisas que parece que eram feitas, a sempre nos esforçar sinceramente, e na morte orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes, pois quando Cristo entregou Seu espírito na cruz Ele disse: ‘Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito’.” – Justino, o Mártir, em Diálogo com Trifão, cap. 105, século II d.C., colchetes acrescentados. * Na história primitiva do Cristianismo não houve unanimidade neste ponto. Tal como é hoje, alguns escritores cristãos acreditavam que realmente foi Samuel quem apareceu para Saul, outros não, a exemplo de Tertuliano (120-220 d.C.). Com o avançar do tempo houve uma tendência em desacreditar o relato. Lutero, por exemplo, achava que foi um “demônio” embusteiro que se fez passar por Samuel, mesmo crendo que no episódio da transfiguração eram efetivamente Moisés e Elias. Tal visão desfavorável sobre essa história do aparecimento do espírito de Samuel só começou a ser revista no século 19 por comentaristas ortodoxos. Para mais detalhes consulte o capítulo 22. Logo, tendo esse relato bíblico em mente, do falecido Samuel aparecendo a Saul, e descontando os casos de esquizofrenia, charlatanismo e satanismo, é razoável supor que alguns espíritos que falam através de médiuns podem ser mesmo de pessoas que já viveram na Terra, ou pelo menos não serem demônios. O que se enquadraria na seguinte admoestação do apóstolo João: “Amados, não creiam em qualquer espírito, mas examinem os espíritos para ver se eles procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo”. – 1 João 4:1*, Nova Versão Internacional. * A Tradução do Novo Mundo de 1986 troca a palavra “espírito” por “expressão inspirada”, alterando o sentido original do texto grego, e admite isso em uma nota ao pé de página. O mesmo acontece na edição de 2015, porém “espírito” é agora trocado por “declaração inspirada”. Note que o texto faz alusão a uma comunicação intermediada, com o emissor da mensagem (“espíritos”) e o intermediador dela (“profetas”). A história revela que o motivo de João ter dito essas palavras é que surgiram na comunidade cristã pessoas que diziam que Jesus não tinha sido um ser humano real, que não teria vindo na carne. Os promotores dessa ideia são chamados de gnósticos. João esclarece que os verdadeiros autores desse ensino eram espíritos que não provinham de Deus. Portanto, sendo verídicas as visitas de espíritos desencarnados elas seriam uma evidência adicional de que os mortos realmente não são extintos quando morrem, mas que continuam a nutrir pensamentos onde vivem. O relato bíblico sobre Saul e a 184 necromante ilustra isso. Mas não acho que essa possibilidade anularia a afirmação bíblica de que todos os planos e projetos que eles tinham pereceram quando seus corpos foram para o túmulo. Afinal, pessoas do Seol opinando ocasionalmente sobre assuntos humanos não implicaria necessariamente que elas estariam revivendo o que antes possuíam aqui. Então, a versão da Bíblia de Jerusalém do salmo 146:4 combina mais com esse cenário do que aquela da Tradução do Novo Mundo. Todos os leitores da Bíblia sabem que a Lei Mosaica proibia os israelitas de tentarem se comunicar com os mortos, e essa proibição é frequentemente citada por cristãos atuais para condenar as práticas espíritas de hoje. No entanto, o fator que mais me chama atenção nessa lei é que ela demonstra indiretamente que o antigo povo de Deus não acreditava na completa aniquilação de quem morre. Se para os antigos israelitas as pessoas que morreram deixassem de existir a proibição de consultar necromantes não faria nenhum sentido, pois não se pode tentar contato com quem não existe. A explicação “padrão” proposta por alguns, de que seria uma maneira de evitar comunicações com “demônios”, além de não ser bíblica, entra em conflito com o próprio texto de 1 Samuel 28:13-15. De modo que a explicação mais coerente é aquela mencionada por S. D. F. Salmond: “O homem morto não deixa de existir. Ele passa a uma condição de existência inferior ao que usufruía aqui…. Os relatos da necromancia devem ser encarados como provas de uma crença [entre os israelitas] de que é possível pelo menos um retorno temporário. Eles devem também servir para mostrar que as pessoas imaginaram que os mortos têm algum conhecimento dos assuntos humanos”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de S. D. F. Salmond, pp. 199, 200, 204, colchetes acrescentados. Outro detalhe que muitos ignoram é que Cristo é o fim da lei mosaica e a proibição de consultar os mortos não foi revalidada para os cristãos, embora eles possam, pelo uso de suas consciências, evitar tal prática. Afinal, a necromancia possui elementos claramente questionáveis. Por isso, sou da opinião que não deveríamos condenar os espíritas, nem criticá-los, até porque muitos deles afirmam que também são cristãos. É melhor deixarmos o julgamento para Deus, ao invés de fomentar preconceitos que podem não estar corretos. – Mateus 7:1, 2; Lucas 9:49; Romanos 10:4 As Testemunhas de Jeová poderão contestar a afirmação do parágrafo anterior porque a Tradução do Novo Mundo (TNM) menciona de maneira condenatória as “práticas espíritas” (Gálatas 5:20) e a “prática de espiritismo” (Apocalipse 21:8). No entanto, essas expressões são erros propositais de tradução*, pois no lugar delas o grego original tem “feitiçarias”. Essa mudança é um anacronismo porque na época da escrita do Novo Testamento não existia a palavra “espiritismo”, pois esta foi cunhada pelos kardecistas do século 19. * Na nova edição da TNM (de 2015) esses textos não possuem mais a palavra “espiritismo”. Ao invés dela há agora “ocultismo”. No entanto, os autores opinam em notas de rodapé que verter farmakía por “espiritismo” continua sendo uma tradução válida. O que acaba anulando a “melhoria” que fizeram em tais versículos (o certo mesmo seria traduzir por “feitiçaria”). 185 Outras denominações cristãs não vertem tais versículos dessa maneira, porém tendem a equiparar a necromancia com o espiritismo moderno. Às vezes até apresentam em suas Bíblias a palavra “médium” no lugar de necromante. Por que os anjos levam as almas? Ora, no decorrer do tempo, morreu o mendigo e foi carregado pelos anjos para a posição junto ao seio de Abraão. Lucas 16:22. O texto acima faz parte de uma das parábolas Jesus, e é o que motivou um dos supracitados questionamentos retóricos do autor do MB. É conveniente lembrar que Jesus sempre fez parábolas usando elementos que realmente existem. Não há porque concluir que esta é uma exceção e que as coisas mencionadas nela não são reais, embora o relato possa ser fictício. Tal conclusão errônea é a única saída encontrada pelos aniquilacionistas para dar outro sentido ao que Jesus disse nessa ilustração. Tal cena espiritual de que quando as pessoas boas morrem os anjos as conduzem para o outro mundo já faz parte do próprio imaginário de muitos cristãos. Por isso vez ou outra isso é visto em filmes que passam na televisão e no cinema. Sobre essa função adicional dos anjos, o comentarista Albert Barnes disse o seguinte: “Os judeus tinham a opinião de que os espíritos dos justos eram carregados pelos anjos ao céu depois da morte. Nosso Salvador falou de acordo com tal opinião; e da mesma maneira que ele afirmou expressamente o fato, parece apropriado que ele deva ser tomado literalmente, tal como quando se diz que o rico morreu e foi enterrado. Os anjos são espíritos que são enviados para ministrar aqueles que herdam a salvação (He 1:14), e não é tão improvável a suposição de que eles atendem os espíritos que partem para o céu, da mesma maneira que os atendem enquanto estão na terra”. – Barnes New Testament Notes, sobre Lucas 16:22. E a Bíblia realmente menciona os espíritos dos justos que estão no céu, na carta aos hebreus: “Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontável hostes de anjos, e à universal assembleia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados”. – Hebreus 12:22-24, Almeida. Essa questão me fez lembrar também o que um cristão do século IV, chamado Arnóbio de Sica, disse para determinadas pessoas: “Vocês acham que, assim que se forem, libertos das obrigações de seus membros carnais, vocês encontrarão asas com as quais poderão ascender ao céu… Nós evitamos tal presunção, e não pensamos que isso esteja em nosso poder”. – 2 Disputas 33:3, 4, tradução publicada no Mentes Bereanas. 186 Sim, não é obrigatório que a alma de um cristão tenha “asas” depois que morre e muito menos que saiba exatamente qual caminho seguir. Toda pessoa que vai para um lugar que ainda não conhece necessita da orientação de alguém. Os anjos podem muito bem exercer esse papel. Jesus não estava conversando com mortos? E, enquanto [Jesus] orava, a aparência do seu rosto tornou-se diferente e a sua vestimenta tornou-se resplendentemente branca. Também, eis que dois homens conversavam com ele, sendo eles Moisés e Elias. Estes apareceram com glória e começaram a falar sobre a sua partida, que ele estava destinado a cumprir em Jerusalém. Lucas 9:29-31 Diante do que a Palavra de Deus descreve sobre esse evento, não há nem o que discutir. A conclusão do autor do MB de que ali não eram Moisés e Elias pode ser descartada de imediato! Jesus travou sim um diálogo com Moisés e Elias sobre sua morte iminente. Mas ele não foi procurar uma necromante para que ela os convocasse. Sendo assim, é preciso buscar um entendimento equilibrado entre o que a lei mosaica dizia e a cena de Jesus conversando com dois mortos.* Uma nota da Bíblia do Peregrino aponta em uma direção razoável: “A voz do túmulo. Os magos burlados no Egito, o adivinho Balaão transformado em profeta e a legislação codificada em Dt. 18 nos dão a pista: em Israel não haverá agoureiros nem adivinhos nem magos; basta-lhes a palavra de Deus, para se guiarem pela história, para confundir os magos estrangeiros. E quando a palavra do Senhor emudece, o que fazer? Isaías responde: ‘esperar’ (Is 8,16-20), e zomba dos que consultam os mortos sobre assuntos dos vivos. “A mudez de Deus significa que abandonou realmente Saul, que a última palavra de Deus para Saul foi uma sentença condenatória; e não há mais o que acrescentar. O silêncio já é castigo, começa o castigo final. Mas Saul não o aguenta em vida, e no seu desespero vai escutar a voz da morte que o convoca. Chama, evoca Samuel, o juiz a quem sucedeu, o profeta que o ungiu. Aquele que chorou sua desgraça. O poder do Senhor atinge o reino da morte, e a voz do morto será pela última vez palavra do Senhor: denúncia e condenação”. * Lembre-se que Moisés e Elias estão mortos apenas do ponto de vista dos homens, mas vivos do ponto de vista de Deus, Aquele que não tem adoradores falecidos. (Lucas 20:38; 1 Pedro 4:6). Alguns entendem que Elias não experimentou a morte porque a Bíblia informa que ele foi arrebatado para o céu numa “carruagem de fogo”. No entanto, há outra corrente que pensa que o “céu” a que o texto se refere é aquele onde os pássaros voam, e que Elias foi apenas transportado de um lugar para outro. Este entendimento encontra reforço num texto de Crônicas que informa sobre uma carta que o rei Jeorão, de Judá, recebeu de Elias, aparentemente alguns anos depois do episódio de sua viagem aérea. De modo que aqui optei pelo segundo entendimento e considerei que Elias realmente morreu. O que me parece estar mais de acordo com a Bíblia, pois ela informou tempos depois que nenhum 187 homem jamais viu a Deus e que ninguém havia subido ao céu, exceto o Filho do Homem, Jesus, que descera de lá. – 2 Reis 2:1-13; 2 Crônicas 21:12-15; João 1:18; 3:13; Atos 2:34. Logo, o motivo principal da lei proibir práticas necromantes talvez fosse porque Deus queria que os israelitas fossem esclarecidos apenas por sua Palavra, mediante os livros sagrados, profetas e outros meios autorizados no arranjo de adoração israelita. Isso os manteria afastados das formas de “esclarecimento” pagãos, que muitas vezes estavam envoltas de práticas degradantes que desagradam a Deus. – Deuteronômio 18:9, 10; Ezequiel 21:21-23. As Testemunhas de Jeová acham que Jesus não estava conversando com ninguém, e que esse acontecimento foi apenas uma encenação para reforçar “poderosamente o testemunho dele a respeito do Reino e do seu futuro reinado”. Mas este aspecto não foi mencionado no relato sobre a transfiguração, mas apenas a conversa sobre a partida iminente de Jesus. – A Sentinela, 01/04/00, p.13. Portanto, a leitura mais simples e natural do texto é aceitá-lo exatamente como ele é, e não ficar buscando explicações alternativas. “Por que você me incomodou, fazendo-me subir?” – 1 Sam. 28:15, TNM (2015) 188 Outras questões Em pensamentos inquietantes das visões da noite, quando o sono profundo cai sobre os homens, veio sobre mim um pavor e um tremor…. um espírito passou sobre a minha face; o pêlo da minha carne começou a eriçar-se. Começou a parar, mas não reconheci seu aspecto; havia uma figura diante dos meus olhos. Jó 4:13-17. Porque Deus fala uma vez e duas vezes — embora não se repare nisso — num sonho, numa visão da noite, quando profundo sono cai sobre os homens durante os cochilos sobre a cama. Jó 33:14, 15. Existem outros questionamentos sobre aspectos espirituais* que também podem ser formulados e que não têm respostas dentro da Bíblia, a exemplo dos cinco a seguir: - As almas dos animais também continuam a existir em outro lugar? (Provérbios 12:10) - Depois que o corpo morre a alma da pessoa vai imediatamente para o Hades? - Porque Lázaro não se lembrou do mundo dos mortos quando foi ressuscitado? - O que aconteceu ao corpo espiritual que Jesus tinha no céu antes de nascer na Terra? - Em que momento e de que maneira a alma é inserida no corpo? * E também dúvidas de cunhos variados, desde a clássica pergunta se Adão tinha umbigo até a curiosidade sobre se há vida inteligente em outros planetas. Só mesmo Deus poderia esclarecer essas questões, ou então pessoas associadas a Ele que têm trânsito livre em nosso mundo. As Testemunhas de Jeová descartam completamente esta possibilidade, porque, além de “desespiritualizarem” certos conceitos bíblicos, assim como faz o autor do MB, ainda acham que qualquer tipo de esclarecimento sobrenatural se encerrou no primeiro século. O cristão hoje em dia teria apenas a Bíblia como meio de esclarecimento. Neste caso, é preciso deixar essas perguntas de lado e pensar em outras coisas, pois elas nunca terão respostas. Na verdade, no caso das Testemunhas de Jeová não é bem assim, pois aquilo que seu Corpo Governante publica sobre assuntos não presentes na Bíblia recebe o status de “orientações de Deus” e tem força de lei para as Testemunhas. O que demonstra que, na prática, as pessoas não se satisfazem apenas com o que leem na Bíblia. Elas querem respostas para várias questões. E visto que Deus não as fornece nas páginas da Bíblia a saída são as especulações “oficiais” da liderança religiosa. Naturalmente, entre as 189 Testemunhas de Jeová não surgirão perguntas do tipo daquelas que foram mencionadas pelo autor do MB, pois o ambiente em que elas vivem é “esterilizados” de conceitos “espiritualistas”. Estão “protegidas” sob a redoma do materialismo. Os espiritualistas, em especial os kardecistas, são os que hoje em dia mais se aproximam da antiga noção de que Deus esclarece o homem de maneira sobrenatural ou através de enviados espirituais (“anjos”). Tais religiosos publicam comentários sobre muitos assuntos de natureza espiritual não mencionados na Bíblia. Eles até possuem respostas para as perguntas feitas na página anterior. Mas, por serem mal vistos pelos cristãos tradicionais*, eles não têm a credibilidade necessária para servirem como fontes de esclarecimento. * Na verdade, não é só preconceito que faz a maioria dos cristãos rejeitar o espiritismo. Além de alguns ensinos espíritas serem inconciliáveis com a ortodoxia cristã, há um problema sério que pode surgir em religiões espiritualistas, embora não justifique condenar a todos que aderiram essa forma de religião. Sobre isso, considere este link: www.adelmomedeiros.com/respostasaosleitores.htm . Para concluir, sobre as cinco questões adicionais que eu propus, imagino o seguinte: 1) As almas dos bichos também vão para outro domínio.* Talvez isto até viabilize a reprodução das condições edênicas no paraíso celestial, onde os animais ferozes poderiam viver pacificamente com as pessoas no “monte” de Deus. – Isaías 11:6-9. * O Salmo 49:14 diz que os homens estúpidos são como ovelhas designados para o Seol, que terão a morte qual pastor. Isto pode ser um indicativo que os animais também vão para o Seol. 2) A alma não vai imediatamente para o Hades depois da morte e quem morreu passa um breve período dormindo, até acordar no outro mundo ou na transição para ele. 3) Lázaro não se lembrou para onde foi porque isto não foi permitido a ele, a fim de que o mundo dos mortos continue incógnito para todos os homens. – Provérbios 15:11. 4) Jesus antes de nascer qual ser humano era um espírito, e foi o próprio espírito* de Jesus que Deus transferiu para o útero de Maria quando houve a milagrosa concepção. * A Bíblia relata que outros espíritos do céu assumiram também a forma humana, mas por um processo diferente: a materialização. Em seguida, coabitaram com mulheres da Terra e geraram filhos gigantes chamados nefilins. – Gênesis 6:4; Judas 6; Hebreus 1:13, 14. 5) A alma surge no exato momento da fecundação, e está presente em todas os momentos do desenvolvimento do feto até o nascimento. O que acontece com ela se a gravidez for interrompida já seria outra questão. 190 PARTE 2 HISTÓRIAS IMPORTANTES NORMALMENTE IGNORADAS 191 (Página em branco) 192 Capítulo 17 O CONCEITO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS SOBRE A ALMA Além do Novo Testamento, existe uma vasta literatura cristã que foi escrita do final do primeiro século até o século III que fornece uma “radiografia” bem razoável das crenças dos primeiros cristãos, inclusive sobre o que acontece com a alma depois da morte do corpo. O que eles escreveram pode ser de ajuda para entender aquilo que, certa vez, Jesus Cristo falou, ao alertar os que seriam assassinados por pregarem o Evangelho no mundo. Ele disse: “O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrado, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo. Não se vendem dois pardais por uma moeda de pequeno valor? Contudo, nem mesmo um deles cairá ao chão sem o conhecimento de vosso Pai. Porém, os próprios cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Portanto, não temais; vós valeis mais do que muitos pardais”. – Mateus 10:27-31. O que Jesus quis dizer com as palavras acima? É o que está posto aí mesmo. Não há necessidade de conjecturas ou contorcionismos mentais. A alma continua a existir depois da morte. Ela é a garantia de preservação daqueles que morrem por levarem o nome de Jesus. Somente Deus tem o poder de destruir a alma. O mundo não tem. Sobre isso, um cristão do século II disse: “Mesmo que o fogo destrua toda a minha carne, o mundo recebe a matéria evaporada; se me disperso nos rios e mares, ou sou despedaçado pelas feras, permaneço depositado nos armazéns de um Senhor rico. E mesmo que o pobre e o ateu nada saibam desses depósitos, mesmo assim, Deus, o Soberano, quando quiser restabelecerá a substância que é visível somente a Ele à sua antiga forma”. – Diálogo com os Gregos, cap. 6, de Taciano (c. 120 - 180 d.C.). Usando outra linguagem, Taciano confirma justamente o que Jesus disse, que o mundo pode matar o corpo do cristão (a carne, nas palavras de Taciano), porém sua alma (substância visível apenas para Deus) está preservada no Seol (o depósito do Senhor rico) e poderá ser trazida de volta na ressurreição (restabelecimento). No entanto, para os aniquilacionistas não sobra substância alguma depois da morte. Não existe nada depositado em lugar nenhum. Depois da morte, a alma deixa de existir. Segundo eles, o Seol também não existe de fato, quando muito é a sepultura. Tudo isso seriam simbolismos ou alguma coisa próxima disso. O que Taciano disse faz lembrar um texto bíblico: “[E Abigail disse a Davi:] Quando um homem se levantar para te perseguir e para procurar a tua alma*, a alma do meu senhor certamente mostrará estar embrulhada na bolsa da vida junto a Jeová, teu Deus”. – 1 Samuel 25:29, colchetes acrescentados. * Ou “conspirar contra a tua vida”, Missionários Capuchinhos. 193 Sobre a expressão “bolsa da vida”, uma nota da New American Bible diz que “essa figura de linguagem talvez tenha sido tirada do costume de se guardar itens valiosos num lenço ou numa bolsa visando protegê-los”. Com tais palavras, certamente Abigail queria que Davi fosse protegido ali mesmo. Entretanto, se ele perdesse a vida às mãos de inimigos certamente aconteceria o que ela disse. A alma de Davi estaria preservada na “bolsa da vida”, ou “depósitos de tesouros”, conforme a figura usada por Taciano. Para Taciano e os demais antigos Pais da Igreja a alma continua a existir depois da morte e fica aguardando a ressurreição, momento em que ela é reunida novamente a um corpo carnal*, seguindo o exemplo do que aconteceu com Jesus Cristo, quando retornou do Hades ao ser ressuscitado. Mesmo tendo havido na história do Cristianismo variações no entendimento sobre o que é a ressurreição, não houve alteração na crença de que existe literalmente uma alma que sobrevive à morte do corpo, e que somente pela ressurreição ela pode viver novamente na Terra. * Atualmente, uma explicação dada é que o corpo carnal ressuscitado será adaptado para viver no céu, da mesma maneira que aconteceu com Jesus, segundo dizem os defensores de tal entendimento. Incrivelmente, existem aniquilacionistas que tentam achar na literatura dos Pais da Igreja (Patrística) evidências a favor do conceito que defendem, como se ela não estivesse repleta de referências de que a alma é algo à parte do corpo físico e que continua existindo depois da morte do corpo. Veja abaixo alguns exemplos: “Ó Senhor, Deus Todo-poderoso, o Pai de seu amado e abençoado Filho Jesus Cristo, através de quem recebemos o conhecimento de Ti, o Deus dos anjos e poderes, e de toda criatura, e de toda a raça de justos que vivem diante de ti, eu Te agradeço por me teres contado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre Teus mártires, no copo do teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna tanto da alma quanto do corpo*, através da incorruptibilidade comunicada pelo Espírito Santo”. – Oração de Policarpo (c. 69 - 155 d.C), Martírio de Policarpo, cap. 14. * Note que a maneira desses cristãos se expressarem se assemelha muito ao linguajar de seus contemporâneos, os gregos. Veja um exemplo: “Primeiro de tudo, tenho desfrutado saúde tanto do corpo quanto da alma, não em um grau comum, mas em igual medida com aqueles que se mostraram abençoados nestes aspectos”. – Panatenaico 12:7, de Isócrates. Compare com 3 João 2. “O que é o homem, senão um ser vivo dotado de inteligência, composto por uma alma e um corpo?* …. Ora, foi o homem todo que Deus chamou à vida e à ressurreição; não chamou apenas uma parte dele, chamou todo o homem, ou seja, a alma e o corpo”. – Sobre a ressurreição, cap. 5, Justino (c.100 - 160 d.C) * Esta é também a mesma linguagem presente no Novo Testamento, conforme Mateus 10:28, onde estão registradas as conhecidas palavras de Jesus: “E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. “Mas acreditamos que nossa crença descansa sob uma garantia infalível – o propósito Daquele que nos fez, de que o homem foi feito da união entre uma alma 194 imortal e um corpo”. – A ressurreição dos mortos, cap. 13, Atenágoras (c.133 - 190 d.C.). “Após a exibição, Trifena a recebeu novamente, pois sua filha Falconila, que havia morrido, disse para ela em um sonho: ‘Mãe, deves colocar esta estranha Tecla* em meu lugar, para que ela ore por mim, e eu possa ser transferida para o lugar dos justos’.”. – Atos de Paulo e Tecla (c. 160 d.C.). * Segundo a tradição que havia naquele tempo, conforme indicam documentos da comunidade cristã do século II, Tecla realizou um ministério intenso comparável ao do apóstolo Paulo. “O irmão que o ler por acaso, ore por Abércio. E ninguém erga túmulo sobre o meu”. – Epitáfio da sepultura de Abércio, Bispo de Hierápolis, na Frígia (c. 167 d.C.). Uma das objeções dos atuais cristãos aniquilacionistas a se orar pelos mortos é que estes não estão em lugar algum, por isso não necessitam de orações. Mas, conforme pode ser visto no epitáfio de Abércio, não era isso que os cristãos do segundo século pensavam. E o que está no seu epitáfio concorda com a mensagem que Trifena recebeu de sua filha do mundo dos mortos: “Que ela [Tecla] ore por mim, e eu possa ser transferida para o lugar dos justos”. Não se sabe por quanto tempo Abércio foi Bispo na Frígia, e nem a data de sua conversão. No entanto, ele diz em seu epitáfio que estava com 72 anos quando mandou esculpi-lo. Digamos que ele foi cristão durante 40 anos. Se a lápide é datada em cerca de 167 d.C., significaria que desde o ano 127 d.C. Abércio mantinha as diversas opiniões registradas naquela pedra, que encontram paralelo com certas doutrinas da Igreja Católica, a exemplo da Eucaristia (o que está acima transcrito é apenas um pequeno trecho). Então, veja só. A morte do apóstolo João é datada em cerca de 103 d.C. Neste caso, apenas uns 25 anos separariam o cristão Abércio do último dos apóstolos. Caso João fosse aniquilacionista, como seria possível que num espaço de tempo tão curto tal “verdade” tivesse sido perdida? Além disso, o primeiro cristão acima mencionado, Policarpo, foi discípulo direto do próprio apóstolo João. Policarpo era Bispo da cidade de Esmirna. Ter ele aprendido o Cristianismo diretamente de João demonstra que a ligação discipular entre os cristãos do primeiro e do segundo século não seria rompida tão facilmente. Lembre-se também que Jesus disse que estaria com os discípulos até “o final do sistema de coisas”. Sendo assim, ele não deixou de supervisionar as atividades e as crenças dos cristãos depois que voltou para o céu. – Mateus 28:20. Por isso, quando nos deparamos com os textos bíblicos transcritos a seguir, um deles escrito pelo apóstolo João, deveríamos lê-los exatamente dentro do contexto apresentado pelos cristãos do século II: “E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4. 195 “Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. – Mateus 6:25. “Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós, dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 5:23. Ao tentarem formular uma releitura dos textos acima, de acordo com suas opiniões peculiares, o que os aniquilacionistas fazem, na verdade, é jogar na latrina um contexto histórico que possui um elo coerente que interliga os séculos 1 e 2 d.C. Se isto é assim por conta da “grande apostasia”, a que os aniquilacionistas tanto se referem, então significa que ela já existe desde a última metade do primeiro século e aconteceu debaixo das barbas dos apóstolos, que nada conseguiram fazer para contê-la. Ou seja, o Cristianismo teria sido o mero sonho de um homem de Nazaré, e durou pouco mais de 50 anos. Tal cenário deprimente não parece combinar com aquilo que Jesus disse a Pedro, de que estabeleceria sua Igreja na rocha. – Mateus 16:18. Naturalmente, essa teoria de que a “grande apostasia” teria corrompido o Cristianismo já em sua fase inicial é insustentável, devido aos vários pontos de contato do Novo Testamento com a literatura da época, que compreende um período de 400 anos, de 200 a.C. até 200 d.C. Não há como remover “cirurgicamente” a Bíblia de tal contexto. Talvez os aniquilacionistas sejam os únicos a acreditar nesse absurdo. Epitáfio de Abércio: ‘Ore por mim’ Conforme visto no capítulo 9, as poucas “evidências” que os aniquilacionistas encontram na Patrística “a favor” do aniquilacionismo não passam de entendimentos errôneos sobre o que disseram aqueles antigos cristãos. Por exemplo, mencionam que determinados Pais da Igreja disseram que a vida eterna se dará apenas depois da 196 ressurreição. Isto é totalmente verdadeiro. O tempo que a alma passa no Hades ainda não é a vida eterna prometida por Deus. O foco da questão não é esse. O que importa saber é se a alma continua a existir ou não depois da morte. A ressurreição não está sendo questionada. (No capítulo 21 há uma consideração adicional sobre as aplicações equivocadas que os aniquilacionistas fazem de textos patrísticos). Se os Pais da Igreja realmente tivessem ensinado alguma coisa sobre a alma desaparecer depois da morte do corpo, provavelmente as Testemunhas de Jeová teriam mencionado em suas publicações. Mas, ao invés disso, veja o que disseram: “Considere o ensino da imortalidade da alma, uma crença de que uma parte do homem continua viva depois de o corpo morrer. De novo, os Pais da Igreja foram usados para introduzir esta ideia numa religião que não tinha nenhum ensino de que a alma sobrevive à morte”. – A Sentinela, 15/04/01, p. 20. (O que elas dizem no final do comentário acima é por conta e risco delas...). Em outro artigo, ao mencionar o que pensava o escritor cristão Taciano sobre a alma, a mesma revista trouxe a seguinte questão: “Exatamente o que Taciano queria dizer com essas declarações não é claro. Será que, ao passo que se apegava a certos ensinos bíblicos, ele também procurava agradar os seus contemporâneos, e por isso misturava as verdades bíblicas com filosofias pagãs?”. – A Sentinela, 15/05/03, p. 29. O que motivou essa pergunta que aparece na revista “A Sentinela” foi um comentário de Taciano no qual ele disse que a alma não é imortal, mas também pode não morrer, se conhecer a verdade. O que Taciano quis dizer com isso é que a alma não é imortal em sentido absoluto. Nem os anjos são imortais, embora não morram. Os cristãos antigos não acreditavam que a alma é absolutamente indestrutível, porque Deus tem o poder de destruí-la, como foi dito por Jesus em Mateus 10:28. Mas Ele é o único com essa capacidade. Criam que ela é imortal apenas em sentido relativo. Logo, quando se diz que a alma é imortal significa apenas que ela continua a existir depois da morte do corpo biológico. Ela não é imortal de eternidade a eternidade, nem foi formada na criação do universo, conforme está descrito em obras gregas, a exemplo da Sibila e As Regiões Infernais. Outra misturada que alguns fazem é confundir o conceito platônico de alma com o conceito cristão. Eles não entendem que são ideias distintas (ou fingem não entender). O que Platão ensinou sobre a natureza da alma não era o mesmo que os cristãos primitivos entendiam. Na filosofia platônica, os antigos gregos concebiam a alma como sendo incorpórea, esvoaçando por aí feito uma borboleta. Aliás, este é um dos significados da palavra psykhé, em grego. Esse conceito é completamente alheio à Bíblia e não era aceito pelos cristãos. É óbvio que as almas que estão no Hades possuem um corpo imaterial apropriado para estarem nesse lugar. Se não fosse assim o mendigo da ilustração de Jesus não 197 poderia ter sido acolhido por Abraão depois que morreu. (Lucas 16:19-31). A alma não é uma energia disforme que fica pairando solta no ar. Pelo mesmo motivo as almas dos justos também são retratadas no céu. – Hebreus 12:23; Apocalipse 6:9; 20:4. Os gregos também não acreditavam na conexão entre alma e ressurreição, tanto na vida presente quanto na futura. Desde os tempos homéricos eles não consideravam a possibilidade da alma voltar para um corpo carnal depois da morte*, à maneira das ressurreições registradas na Bíblia. Por exemplo, é dito na Ilíada: “Por conduzi-lo com esforço talvez o gado fique um bom rebanho [para se lidar], mas ainda assim apoiado por cavalos castanhos corredores; mas para que a alma do homem voltasse depois que passou pela porteira de seus dentes, nem um grande esforço nem a velocidade adiantariam”. – Ilíada 9:406-409, de Homero, colchetes acrescentados. * Por isso, não é de admirar que os gregos tenham zombado do apóstolo Paulo depois que ele mencionou no seu discurso na Colina de Ares a ressurreição de Jesus. – Atos 17:30-33. Portanto, as ideias que os gregos tinham sobre alma não eram as mesmas defendidas pelos cristãos. As lendas da mitologia referentes à alma não eram aceitas pela comunidade cristã. Era isso o que os antigos Pais da Igreja combatiam, e não o ensinamento de que a alma do homem vai para o Hades depois da morte e subsiste por lá pelo tempo que Deus determinar. Além disso, quando os mencionados aniquilacionistas se deparam com algum cristão antigo sendo mais claro ao afirmar que a alma é imortal, racionalizam: “Esse aqui não serve, porque já aderiu ao platonismo, ou então seus escritos foram corrompidos por cristãos posteriores”. É o caso de um contemporâneo de Taciano, o cristão Clemente de Alexandria, considerado um dos Pais da Igreja mais importantes da Antiguidade, aquele que asseverou “como ensino direto das Escrituras que nosso Senhor pregou o evangelho aos mortos”. Ele também era da opinião que “as almas dos apóstolos devem ter assumido a mesma tarefa [de pregar no Hades] quando eles morreram”. – The Expositor’s Greek Testament, ed. W. Robertson Nicoll (1897), p. 59, colchetes acrescentados. A opinião adicional de Clemente, mencionada na obra acima, está transcrita a seguir: “Os apóstolos, seguindo o Senhor, evangelizaram também aqueles que se encontravam no Hades; evidentemente era necessário que os melhores discípulos se tornassem imitadores do Mestre também lá”. – Stromateis 6:6. Portanto, está claro que os Pais da Igreja acreditavam que a alma continua a existir depois da morte, e permanece no Hades até ser ressuscitada. Tais homens viveram numa época muito próxima ao tempo dos apóstolos. A linha histórica que é possível traçar daquele período demonstra que a crença sobre a alma dos cristãos do século II era exatamente a mesma daqueles do século I. 198 Por fim, um detalhe que escapa aos que rejeitam o entendimento da existência da alma após a morte, e procuram alguma comprovação disto nos Pais da Igreja, é que a Igreja Católica tem sido a depositária da maior parte desses escritos*, desde os primórdios de sua história. Se houvessem realmente fortes evidências nesse antigo material que viessem a desabonar a crença na imortalidade da alma, os especialistas em Patrologia já teriam percebido isso. Mas, ao invés de ser intimidada por tais obras, a Igreja as tem divulgado amplamente ao redor do mundo, em vários idiomas. * A Igreja Católica não tem a posse de todos os manuscritos existentes. Tal acervo é compartilhado, por exemplo, com a Igreja Ortodoxa, que foi criada depois do grande Cisma do Oriente. Além disso, cópias e fac-símiles foram cedidos para várias bibliotecas do mundo. 199 (Página em branco) 200 Capítulo 18 MANUSCRITOS JUDAICOS PRÉ-CRISTÃOS Neste capítulo os trechos dos livros apócrifos mencionados estão transcritos em negrito, para diferenciar das citações bíblicas. Algumas dessas obras “pré-cristãs” podem ter sido escritas no próprio século I, quando os cristãos surgiram, embora as histórias já circulassem há mais tempo entre os judeus. Até meados do primeiro século não existia ainda os chamados “cânones” das Escrituras Sagradas, termo que se refere à lista de livros religiosos judeus e cristãos que juntos se tornaram o livro que é hoje conhecido pelo nome de Bíblia Sagrada. Os livros que fazem parte dessa lista são considerados inspirados por Deus e de qualidade superior aos demais que foram deixados de fora (note que mesmo o Novo Testamento foi escrito somente por judeus, que aderiram ao Cristianismo). No caso do Novo Testamento foram necessários alguns séculos adicionais para que o cânon das Escrituras Gregas fosse definido pela Igreja Católica. Sendo assim, quando o Cristianismo surgiu seus adeptos consideravam em sua leitura “bíblica” aquilo que era narrado também em antigos livros judaicos que não entraram na Bíblia, vários deles escritos alguns séculos antes da era cristã, e que hoje são chamados de “apócrifos”. Uma dessas obras foi o livro de Enoque. Compare agora quatro opiniões que mencionam o livro de Enoque associado à carta de Judas, que foi incluída no cânon bíblico (colchetes acrescentados): “O ambiente do autor [da carta] se manifestou em estreita conexão com os círculos que, a partir do século II a.C., viram a elaboração da literatura apocalíptica e transmitiram obras como o livro de Henoc, a Assunção de Moisés, os Testamentos dos Doze Apóstolos. O autor [Judas] cita até textualmente uma passagem do livro de Henoc (vv. 14-15)”. – Introdução ao livro de Judas na Bíblia TEB. “Esta curta epístola [de Judas] encontrava-se, já no século II, segundo o testemunho do cânon Muratoriano…. Não faltou, já então, e mais ainda depois, quem pusesse dúvida ou negasse principalmente sua canonicidade, como atesta S. Jerônimo…. por causa da citação do livro apócrifo de Henoc (vv. 14-15)”. – Introdução à carta de Judas na Bíblia de Matos Soares. “A epístola [de Judas] foi aceita como canônica pela maioria das Igrejas somente pelo ano 200, talvez em razão do uso que faz dos apócrifos ‘Assunção de Moisés’ e ‘Henoc’ (v. 7.9.14s)”. – Introdução à carta de Judas na Bíblia Vozes. “Muitos eruditos afirmam que a profecia de Enoque [mencionada em Judas] contra os contemporâneos ímpios é citada diretamente do Livro de Enoque. Seria possível que Judas usasse um duvidoso livro apócrifo como sua fonte? As Escrituras não revelam como Judas sabia da profecia de Enoque. Pode simplesmente ter citado uma fonte comum, uma tradição confiável, passada adiante desde a remota antiguidade”. – 201 A Sentinela, 15/09/01, p. 30, publicada pela Torre de Vigia (entidade dirigente da religião Testemunhas de Jeová). Nota-se que a última fonte citada nega que o escritor judeu-cristão Judas tenha feito uso do livro de Enoque, contrariando a opinião dos eruditos anteriormente mencionados. Para a Torre de Vigia o escritor do livro de Enoque teria apenas se servido da mesma fonte antiga utilizada por Judas. Mas será que foi assim mesmo? Ainda que tivesse sido dessa maneira, há uma consequencia lógica em tal opinião: havia realmente outros escritos (não presentes na Bíblia moderna) que eram usados pelos antigos cristãos como fonte de pesquisa para a escrita do Novo Testamento, fossem o que fossem, pseudepígrafos ou não. Abaixo está a profecia de Enoque e em seguida a citação dela na carta de Judas: “Eis que Ele vem com dezenas de milhares dos Seus santos para executar julgamento sobre os pecadores e destruir o iníquo, e reprovar toda coisa carnal e toda coisa pecaminosa e mundana que foi feita, e cometida contra Ele”. – 1 Enoque 2:1.* “Sim, o sétimo homem na linhagem de Adão, Enoque, profetizou também a respeito deles, dizendo: ‘Eis que Jeová veio com as suas santas miríades, para executar o julgamento contra todos e para declarar todos os ímpios culpados de todas as suas ações ímpias que fizeram de modo ímpio, e de todas as coisas chocantes que os pecadores ímpios falaram contra ele’.”. – Judas 15, 16. * A tradução do livro de Enoque que foi aqui utilizada é de Elson C. Ferreira, de 2003 (Curitiba, Brasil). A diferença na linguagem entre o livro e a carta ocorre porque as traduções foram feitas por pessoas diferentes e os textos não serem absolutamente iguais nas antigas versões manuscritas atualmente disponíveis, talvez porque Judas citou o livro de memória. E sobre a tradução acima de Judas conter o nome “Jeová” ao invés de “Senhor” está explicado na última seção deste capítulo. Portanto, não há dúvida de que Judas cita exatamente o que está no livro de Enoque. O argumento postulado pela Torre de Vigia, de que uma fonte mais antiga estava disponível a ambos os escritores, é apenas uma teoria, que pode estar certa ou não. Mas se o que importa é meramente uma questão de antiguidade, o livro de Enoque pode ter sido a tal fonte mais antiga, pois data de uns 300 anos antes de Judas (alguns defendem que ele é ainda mais antigo, em mais de mil anos!). E a Torre de Vigia amplia ainda mais sua crítica desfavorável sobre o livro de Enoque. No mesmo artigo supracitado ela diz: “O Livro de Enoque é…. uma coleção de extravagantes mitos judaicos, nada históricos, evidentemente o produto de elaborações exegéticas referentes à breve referência a Enoque em Gênesis. Só isso já basta para ser rejeitado pelos que amam a Palavra inspirada de Deus”. – A Sentinela, 15/09/01, p. 30. 202 Tais palavras confiantes podem certamente intimidar os leitores (geralmente as próprias testemunha de Jeová) e desmotivá-los de querer ver com os próprios olhos aquilo que há no livro de Enoque. Afinal, o cenário foi posto numa perspectiva tal que se a pessoa não rejeitar o livro de Enoque ‘não ama’ a Palavra de Deus. Sendo assim, o escritor Judas ‘não amava’ a Palavra de Deus, nem outros cristãos antigos que leram Enoque. Da mesma maneira os teólogos modernos que não rejeitam completamente tal livro. No entanto, existem alguns “pequenos detalhes” que foram omitidos pelo intransigente escritor da Torre de Vigia. Muito se engana quem acha que o Novo Testamento não tem mais nada do livro de Enoque além daquela profecia citada por Judas. O livro de Enoque pode não ser inspirado, pode ter sido escrito por alguém que apenas utilizou o nome de Enoque (aliás, segundo consta, até na Bíblia há casos assim), e pode até conter algumas extravagâncias (compare com Números 22:22-35). Mas uma coisa é certa, entre ele e o Novo Testamento há vários pontos em comum, mesmo não sendo citações diretas. Veja a seguir alguns exemplos, com a referência do livro de Enoque e onde encontrar na Bíblia um relato semelhante, respectivamente: 1) Sete estrelas representando sete anjos (1 Enoque 18:14-16): Apocalipse 1:20. 2) Lugar terrível onde estão presos os anjos que coabitaram com mulheres na Terra e geraram filhos com elas (1 Enoque 10:15, 16; 21:4-6; 105:13): 2 Pedro 2:4 (sobre o Tártaro). 3) Lugar de chamas e sofrimento para onde vão anjos rebeldes e pecadores (1 Enoque 21:5; 103:4, 5): Lucas 16:23, 24; Apocalipse 21:8. 4) Grande tribulação na Terra, coordenada por anjos, sendo os justos poupados (1 Enoque 99:1, 2): Mateus 24:21; Apocalipse 7:14. 5) Anjos rebeldes que desencaminharam a humanidade sendo lançados em um abismo (1 Enoque 21:5): Apocalipse 20:1-3. 6) Rolos “de grande sabedoria” que serão dados aos justos, e nesses livros “eles acreditarão” (1 Enoque 104:10,11): Apocalipse 20:12 7) Uma árvore que Deus preparou para os justos, cujos frutos proporcionarão uma “longa vida” e nesses dias futuros já “não haverá tristeza, angústia, aborrecimento e nem punição” (1 Enoque 24:9, 10): Apocalipse 21:4; 22:1, 2. Etc. 203 Percebe-se que a maior parte dos pontos em comum estão no livro de Apocalipse. Não é de admirar, então, que a carta de Judas tenha sido posta imediatamente antes de tal livro. Existe ainda um motivo adicional para a Torre de Vigia rechaçar completamente o livro de Enoque. Ele está repleto de relatos que descrevem o que acontece com as pessoas depois que morrem. O livro menciona que um anjo tomou Enoque e saiu com ele pelo universo a mostrar, em visões, coisas que existem nos céus e na Terra, inclusive o Seol e o Abismo. Ao que parece, o livro narra aquilo que foi mencionado apenas brevemente na Bíblia: “E Enoque andou com o verdadeiro Deus. Depois não era mais, porque Deus o tomou”. – Gênesis 5:24. “Pela fé Henoc foi trasladado sem ter conhecido a morte e não foi achado porque Deus o arrebatou”. – Hebreus 11:5, Vozes. Veja abaixo alguns exemplos do que o livro de Enoque menciona sobre o mundo espiritual dos mortos: “Onde quer que seus espíritos se apartem de seus corpos; que sua carne, que é perecível, esteja sem julgamento”. – 1 Enoque 16:1. Isto faz lembrar a linguagem utilizada pelos apóstolos Pedro e Paulo (no que tange à crença no espírito que há no corpo do homem): “Entregueis tal homem a Satanás, para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor”. – 1 Coríntios 5:5. “Para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:6. “Ai de vós, pecadores, quando morrerdes em vossos pecados.... em honra eles morrem; nunca em sua vida o julgamento os surpreendeu. Mas, não tem sido mostrado a eles que, quando suas almas descerem ao receptáculo dos mortos*, suas más obras se tornarão seu grande tormento? Em escuridão, em armadilha, e em chama, que queimará até o grande julgamento”. – 1 Enoque 103:4, 5. * O "receptáculo dos mortos" é o que a Bíblia chama de "Seol" ou "Hades", conforme explica o Estudo Perspicaz das Escrituras, publicado pela Torre de Vigia, no volume III, p. 575. “Três separações foram feitas entre os espíritos dos mortos, e assim os espíritos dos justos foram separados.... E da mesma maneira os pecadores são separados quando morrem.... Aqui [no receptáculo dos mortos] suas almas estão separadas.* Além disso, abundante é seu sofrimento até o tempo do grande julgamento”. – 1 Enoque 22:9, colchetes acrescentados. * Nota-se nessas passagens do livro de Enoque que as palavras “espírito” e “alma” são usadas como sinônimas uma da outra, sendo intercambiadas à vontade. 204 Os dois últimos trechos mencionam que os que morrem vão para regiões diferentes do Hades, o que faz lembrar o que Jesus Cristo disse certa vez: “Ora, no decorrer do tempo, morreu o mendigo e foi carregado pelos anjos para a posição junto ao seio de Abraão. Também o rico morreu e foi enterrado. E no Hades, ele ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu Abraão de longe, e Lázaro com ele na posição junto ao seio. Por isso chamou e disse: ‘Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro mergulhe a ponta do seu dedo em água e refresque a minha língua, porque eu estou em angústia neste fogo intenso.’ Mas Abraão disse: ‘Filho, lembra-te de que recebeste plenamente as tuas boas coisas no curso da tua vida, mas Lázaro, correspondentemente, as coisas prejudiciais. Agora, porém, ele está tendo consolo aqui, mas tu estás em angústia. E, além de todas essas coisas, estabeleceu-se um grande precipício entre nós e vós, de modo que os que querem passar daqui para vós não o podem, nem podem pessoas passar de lá para nós’.”. – Lucas 16:22-26. Certamente, o conteúdo apresentado nas citações acima entra em conflito com o conceito que as Testemunhas de Jeová têm a respeito de alma e espírito, porque aderiram ao pensamento aniquilacionista. Para elas, a alma e o espírito só existem enquanto o ser humano está vivo, sendo a “alma” uma figura de linguagem que se refere sempre à própria pessoa, e espírito o fôlego de vida ou força vital (que também está presente nos animais). Alma e espírito seriam, portanto, apenas termos simbólicos referentes ao estado da vida terrena, não existindo literalmente. Mais dois exemplos Oráculos Sibilinos Ao falar sobre certas pessoas que pecaram na época de Noé, o livro conhecido por Oráculos Sibilinos diz: “Eles eram poderosos, de grande estatura, mas apesar disso, eles foram para a pavorosa casa do Tártaro, presos por correntes inquebráveis, para retribuirlhes, a Geena do terrível, altíssimo, eterno fogo.’ (Ora. Sib. I:89-103)”. – Oráculos Sibilinos; Traduzidos por John J. Collins, publicado em The Old Testament Pseudepigrapha (1983), vol. 2, de James H. Charlesworth, tradução em português de Kenner Terra. O Novo Testamento menciona também o “Tártaro”, o “fogo eterno” e a “Geena”: “Certamente, se Deus não se refreou de punir os anjos que pecaram, mas, lançandoos no Tártaro, entregou-os* a covas de profunda escuridão, reservando-os para o julgamento. . .”. – 2 Pedro 2:4. * A edição de 2015 da Tradução do Novo Mundo mudou a fraseologia dessa parte e agora diz: “Mas ele os lançou no Tártaro, acorrentando-os em densa escuridão”. “E os anjos que não conservaram a sua posição original, mas abandonaram a sua própria moradia correta, ele reservou com laços sempiternos, em profunda escuridão, 205 para o julgamento do grande dia. Assim também Sodoma e Gomorra, e as cidades em volta delas, as quais, da mesma maneira como os precedentes, tendo cometido fornicação de modo excessivo e tendo ido após a carne para uso desnatural, são postas diante de nós como exemplo [de aviso] por sofrerem a punição judicial do fogo eterno”. – Judas 6, 7. “Então dirá, por sua vez, aos à sua esquerda: ‘Afastai-vos de mim, vós os que tendes sido amaldiçoados, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos’.”. – Mateus 26:1. “Melhor te é entrares na vida aleijado, do que ires com as duas mãos para a Geena, para o fogo inextinguível”. – Marcos 9:43. Quarto Livro dos Macabeus “Que não haja temor naquele que acha que pode ser morto; pois grande é a provação da alma e perigoso é o tormento eterno que jaz à espera dos que transgridem o mandamento de Deus. Vamos nos armar, mas que seja em abnegação do motivo Divino. Porque se sofrermos [a morte], Abraão, e Isaque, e Jacó nos receberão, e todos os nossos pais nos elogiarão”. – 4 Macabeus 13:1417.* * Publicado em The Old Testament Pseudepigrapha (1983), J. H. Charlesworth, Apêndice, pp. 14, 15, e na Revised Standard Version with Apocrypha. – http://www.biblestudytools.com/rsva/4maccabees/13.html A seguir duas narrativas do Novo Testamento que lembram o que foi dito no quarto livro dos Macabeus: “Mas, eu vos digo que muitos virão das regiões orientais e das regiões ocidentais e se recostarão à mesa junto com Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus”. – Mateus 8:11. “Também o rico morreu e foi enterrado. E no Hades, ele ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu Abraão de longe, e Lázaro com ele na posição junto ao seio. Por isso chamou e disse: ‘Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro mergulhe a ponta do seu dedo em água e refresque a minha língua, porque eu estou em angústia neste fogo intenso’.”. – Lucas 16:22-24. Certa vez, quando estava para ser lançada a obra de onde se extraíram os dois exemplos adicionais aqui citados (Oráculo Sibilinos e 4 Macabeus), a Torre de Vigia publicou o seguinte comentário sobre tal obra: “Um grupo internacional de 40 eruditos está preparando agora a publicação, em inglês, de várias obras nunca aceitas como parte da Bíblia. Chamadas de pseudepígrafes (significando “escritos falsos”), incluem livros tais como ‘A Assunção de Moisés’, ‘O Apocalipse de Esdras’ e o ‘Livro dos Jubileus’. Sendo ao todo 47 obras, estes livros supostamente foram escritos entre 200 A.E.C. e 200 E.C…. Segundo a revista Newsweek, o diretor do projeto, Prof. James H. Charlesworth, da Universidade 206 Duke, acredita que, quando terminar este empreendimento de dez anos, em 1980, ‘o público terá um entendimento dramaticamente novo das origens do cristianismo no judaísmo’…. Tudo isso talvez pareça bastante intrigante. Mas, o verdadeiro cristianismo não foi um desenvolvimento normal do pensamento religioso judaico”. – A Sentinela, 01/05/78, p. 7. Novamente, as Testemunhas de Jeová lançam em descrédito os manuscritos extrabíblicos supracitados e sustentam que a origem do Cristianismo primitivo nada teve a ver com o contexto histórico da época. E, por conseguinte, desprezam o valor do empreendimento liderado por Charlesworth. Lista de livros judaicos existentes no início do Cristianismo Apenas para dar uma ideia sobre quais livros estavam disponíveis na época dos primeiros cristãos (quando a Bíblia ainda não existia), veja a lista a seguir. Não foram incluídos os livros considerados canônicos e deuterocanônicos* que formam atualmente o Antigo Testamento. * Os livros deuterocanônicos estão presentes apenas nas Bíblias católicas, sendo um deles o livro da Sabedoria de Salomão. O termo “deuterocanônicos” se refere aos livros que não foram incluídos na Bíblia pelos primeiros concílios da Igreja, porém em um concílio posterior acabaram sendo acreditados como canônicos. Os livros que hoje são considerados inspirados por Deus nas Bíblias protestantes foram escolhidos por proeminentes líderes judaicos e católicos dos tempos antigos. Escritos Diversos 1. Apocalipse de Adão 2. Apocalipse de Baruc 3. Apocalipse de Moisés 4. Apocalipse de Sidrac 5. As Três Estelas de Seth 6. Ascensão de Isaías 7. Assunção de Moisés 8. Caverna dos Tesouros 9. Epístola de Aristéas 10. Livro dos Jubileus 11. Martírio de Isaías 12. Oráculos Sibilinos 13. Prece de Manassés 14. Primeiro Livro de Adão e Eva 207 15. Primeiro Livro de Enoque 16. Primeiro Livro de Esdras 17. Quarto Livro dos Macabeus 18. Revelação de Esdras 19. Salmo 151 20. Salmos de Salomão (ou Odes de Salomão) 21. Segundo Livro de Adão e Eva 22. Segundo Livro de Enoque (ou Livro dos Segredos de Enoque) 23. Segundo Livro de Esdras (ou Quarto Livro de Esdras) 24. Segundo Tratado do Grande Seth 25. Terceiro Livro dos Macabeus 26. Testamento de Abraão 27. Testamento dos Doze Patriarcas 28. Vida de Adão e Eva 29. Apocalipse de Abraão* Etc. * E outros da Hagadá pré-talmúdica, que continuou sendo compilada depois do século I. Escritos de Qumran (do Mar Morto) 1. A Nova Jerusalém (5Q15) 2. A Sedutora (4Q184) 3. Antologia Messiânica (4Q175) 4. Bênção de Jacó (4QPBl) 5. Bênçãos (1QSb) 6. Cânticos do Sábio (4Q510-4Q511) 7. Cânticos para o Holocausto do Sábado (4Q400-4Q407/11Q5-11Q6) 8. Comentários sobre a Lei (4Q159/4Q513-4Q514) 9. Comentários sobre Habacuc (1QpHab) 10. Comentários sobre Isaías (4Q161-4Q164) 11. Comentários sobre Miquéias (1Q14) 208 12. Comentários sobre Naum (4Q169) 13. Comentários sobre Oséias (4Q166-4Q167) 14. Comentários sobre Salmos (4Q171/4Q173) 15. Consolações (4Q176) 16. Eras da Criação (4Q180) 17. Escritos do Pseudo-Daniel (4QpsDan/4Q246) 18. Exortação para Busca da Sabedoria (4Q185) 19. Gênese Apócrifo (1QapGen) 20. Hinos de Ação de Graças (1QH) 21. Horóscopos (4Q186/4QMessAr) 22. Lamentações (4Q179/4Q501) 23. Maldições de Satanás e seus Partidários (4Q286-4Q287/4Q280-4Q282) 24. Melquisedec, o Príncipe Celeste (11QMelq) 25. O Triunfo da Retidão (1Q27) 26. Oração Litúrgica (1Q34/1Q34bis) 27. Orações Diárias (4Q503) 28. Orações para as Festividades (4Q507-4Q509) 29. Os Iníqüos e os Santos (4Q181) 30. Os Últimos Dias (4Q174) 31. Palavras das Luzes Celestes (4Q504) 32. Palavras de Moisés (1Q22) 33. Pergaminho de Cobre (3Q15) 34. Pergaminho do Templo (11QT) 35. Prece de Nabonidus (4QprNab) 36. Preceito da Guerra (1QM/4QM) 37. Preceito de Damasco (CD) 38. Preceito do Messianismo (1QSa) 39. Regra da Comunidade (1QS) 40. Rito de Purificação (4Q512) 41. Salmos Apócrifos (11QPsa) 209 42. Samuel Apócrifo (4Q160) 43. Testamento de Amran (4QAm) Outros Escritos 1. História do Sábio Ahicar 2. Livro do Pseudo-Filon Fontes da lista acima: Carlos Martins Nabeto (1998) e Universidade da Pensilvânia (1895). “Correções” feitas na Bíblia pela Torre de Vigia A maioria dos cristãos ao ler o Novo Testamento não vai encontrar o nome “Jeová”, pois ele não aparece nos manuscritos antigos atualmente disponíveis. No entanto, se a leitura for feita na Tradução do Novo Mundo, a Bíblia das Testemunhas de Jeová, ao invés de “Senhor”, o leitor verá o nome “Jeová” em 237 versículos. O motivo disso é que os tradutores da referida edição se convenceram que há fortes evidências bíblicas e históricas que justificam essa mudança. Acham que os escritores do Novo Testamento usaram originalmente o nome “Jeová” nos seus relatos, porém os copistas católicos dos séculos seguintes o trocaram por “Senhor”, para que os textos canônicos seguissem o costume judaico de não usar o Nome (costume que já era adotado no primeiro século e nunca recebeu críticas dos cristãos). Até citam descobertas arqueológicas em favor dessa teoria. As explicações sobre esse “restabelecimento”* do nome divino no Novo Testamento estão no Apêndice 1D da Tradução do Novo Mundo com Referências, de 1986, e no apêndice A5 da edição de 2015. * Há um versículo do Novo Testamento onde, dentro da teoria proposta, caberia esse "restabelecimento". É o texto de Hebreus 1:10. Porém os tradutores da Torre de Vigia não o fizeram. O motivo é que esse texto é uma citação do Salmo 102:25 que, originalmente, se referia a Deus, porém em Hebreus foi atribuído a Jesus. O procedimento descrito acima não se limita ao Novo Testamento. Com base na obra “A Massorá”, do erudito C. D. Ginsburg, a Torre de Vigia incluiu o nome “Jeová” em 141 lugares no Antigo Testamento, alegando que era assim que devia estar originalmente, porém os soferins (copistas judaicos) teriam trocado o Nome por “Senhor”, “Deus” ou alguma outra palavra. E na nova Tradução do Novo Mundo, lançada em 2015, o nome “Jeová” foi acrescentado em mais seis lugares: Juízes 19:18; 1 Samuel 2:25; 6:3; 10:26; 23:14, 16. – A Sentinela, 01/08/15, p. 9. Além disso, muitas opções de tradução vistas na Tradução do Novo Mundo (TNM) são apenas paráfrases, pois traduzir o texto literalmente, da maneira como está no original, ou conforme preconizam os melhores critérios de tradução, entraria em conflito com opiniões teológicas dos líderes das testemunhas “de” Jeová. Às vezes, até obras teológicas são citadas para justificar tais escolhas, como é o caso do uso da expressão “estaca de tortura” ao invés de “cruz” (veja o apêndice 5C da TNM com referências, de 1986). 210 Capítulo 19 USOS DA PALAVRA “ALMA” NAS OBRAS GREGAS DA ANTIGUIDADE Veja nas referências finais deste livro onde ler na Internet as obras de onde foram retiradas as citações a seguir. Elas abrangem os dois grandes períodos da literatura grega: o homérico e o platônico, possibilitando uma visão bem abrangente de como os gregos usavam no cotidiano o termo psykhé (ψυχή, “alma”) e seus derivados. A verificação de tais obras é interessante porque elas demonstram que o povo grego, mesmo crendo na imortalidade absoluta da alma, usava uma linguagem semelhante à que está na Bíblia, dentro da qual existem aquelas expressões que os aniquilacionistas gostam de citar para sustentar a opinião que defendem. Almas como sendo as próprias criaturas terrestres (pessoas ou animais) 1. “E que seja assim estabelecida [por lei] a disciplina e a nutrição das almas viventes”. – Leis 9:874d, de Platão, colchetes acrescentados. 2. “Nem a deidade se contentou em apenas cuidar do corpo do homem. O que é ainda de mais elevado é o momento que ele implantou nele o mais nobre tipo de alma. Pois afinal que outras almas viventes se detém na existência dos deuses que puseram ordem no universo, e nas maiores e mais belas coisas? E qual espécie de coisas vivas além do homem adora os deuses?”. – Memorabilia (Ditos Memoráveis) 1:4, de Xenofonte, sobre os ditos e feitos memoráveis de Sócrates. 3. “E que a alma de viventes, isto é, a substância das almas viventes, é a sua essência de acordo com essa descrição, e a forma e a essência de determinado tipo de corpo”. – Metafísica, v. 1035b.15, de Aristóteles. 4. “Vendo, então, que tal cuidado é esbanjado em alimentos do corpo, certamente todo o cuidado deve ser tomado em nome da nossa própria cuidadora e mãe de nossos filhos, em quem está implantada a semente da qual brota uma alma vivente”. – Economia 3:2, de Aristóteles. 5. “Conforme eu já falei antes, a Índia fica numa das partes mais distantes do mundo no limite oriental, e na Índia todas as almas viventes quadrúpedes e voadoras são muito maiores que as das outras terras”. – Histórias 3:106, de Heródoto. 6. “Os trácios que atacaram Mícale saquearam as casas e os templos, e massacraram os habitantes, não poupando nem os jovens nem os idosos, mas matando a todos que caíam diante deles, um após o outro, crianças e mulheres, e até mesmo animais de carga, e quaisquer almas viventes que vissem”. – A Guerra do Peloponeso 7:29, de Tucídides. Sobre a expressão “alma vivente” dos textos acima, leia o tópico final deste capítulo. 211 Alma das pessoas 1. “Que tipo de alma você acha que era a dele, quando ele poderia ser rebaixado ao pior conceito por dar informação contra seus próprios amigos, com tão pouca perspectiva de libertação?”. – Contra Andócides 6:23, de Lísias. 2. “Estou determinada a fugir deste casamento que ofende a minha alma, conduzindo o meu destino pelas estrelas”. – As Mulheres Suplicantes, v. 392, de Esquines. 3. “Mas eu penso que é porque a coroa é o presente dos estrangeiros de que a dedicação é feita, para qualquer um que atribua um alto valor sobre a gratidão de um estado estrangeiro do que a de seu próprio país, e tornam assim suas almas corruptas.... O quinto, ele se tornará um homem de alma corajosa, que em perigos e riscos não abandonará o povo”. – Contra Ctesifonte 3:46, 170, de Esquines. 4. “Não cause dano à sua alma por se consumir em preocupações”. – De liberis educandis (Da Educação dos Filhos), v. 17, de Plutarco. 5. “Pois não é, presumo, pela correção ou incorreção de suas opiniões que alguns deles se opõem a aparentes perigos com bravura e impetuosidade enquanto outros têm temores e tremores desamparados em suas almas”. – De virtute morali (A Virtude Moral), v. 11, de Plutarco. 6. “Por isso aliviará meus sentimentos ao dizer-lhe como sua alma* é má”. – Medeia, v. 474, de Eurípedes. * Ao invés de “como sua alma é má”, os tradutores costumam verter por: “como você é mau”. Alma dos animais 1. “Embora tenhamos descoberto a arte de lidar com os animais ferozes, através da qual domamos suas almas e incrementamos o seu valor, ainda assim nós mesmos somos impotentes para ajudar a nós mesmos a perseguir essa virtude”. – Discursos 2:12, de Isócrates. 2. “Mas no caso de alguém querer que seu próprio cavalo se torne adequado para um desfile, com uma excelente postura e apresentação, tais qualidades de nenhum modo podem ser achadas em todo cavalo: mas é essencial que ele seja pleno de alma e forte de corpo”. – A Arte da Equitação 11:1, de Xenofonte. 3. “É possível até para um cavalo ruim se tornar um bom, se a natureza tiver lhe dado uma boa alma”. – Economia 11:6, de Xenofonte. 4. “Neste momento, então, você está admitindo o ponto que a alma dos animais tem uma maior capacidade natural e perfeição para a geração de força”. – Bruta animalia ratione uti (Os Animais Usam a Razão), v. 3, de Plutarco. 5. “Mas os animais têm almas completamente inacessíveis e fechadas para essas paixões adventícias e vivem suas vidas como que livres de ilusões vazias, como se morassem muito longe do mar”. – Bruta animalia ratione uti (Os Animais Usam a Razão), v. 6, de Plutarco. 212 6. “Você decidiria possuir um cavalo de alma* tal que resultasse em uma má montaria voluntariamente ou involuntariamente?”. – Hípias Menor, v. 375a, de Platão. * “Alma” aqui tem o sentido de “temperamento”, porém verti conforme está no original. Almas que morrem ou se salvam 1. “As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. –Fragmento 96b = B 136, de Heráclito. 2. “Quanto a mim eu continuei com o pensamento intrigante de qual seria a melhor maneira de salvar minha própria alma e a de meus companheiros”. – Odisseia 9:423, de Homero. 3. “Brilhante foi o escudo que o guerreiro Saian levantou, mas que, acidentalmente, eu joguei no mato.... então salvei minha alma”*. – Paz, vv. 1299, 1300, de Aristófanes. 4. “Sim, ele nasceu de minha própria alma e se afastou de mim, da sua mãe que o concebeu e se refugiou em terras estrangeiras!.... Nenhuma alma generosa quererá depois de si um nome vil, por ter vivido vida indígena, manchando a boa fama apenas para não morrer”. – Electra, v. 785, de Sófocles**. * Neste verso os tradutores costumam traduzir o acusativo psykhén por “vida”, ao invés de “alma”, da mesma maneira que fazem em 1 João 3:16 (http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/eieol/grkol3-X.html). ** Tradução em português de Mário da Gama Kury, publicada em “Uma tragédia grega, Electra, Sófocles”, Expresso Zahar, 2013, 1ª edição. 5. “Não estou falando sobre bens materiais; se você salvar minha alma, você salvará o meu bem mais prezado”. – Orestes, v. 640, de Eurípides. 6. “Agora eu vejo o objetivo da vida aqui do meu lugar…. eu me lançarei desta rocha com um salto para o fogo lá embaixo, para misturar as minhas cinzas com as de meu marido nas chamas escarlates, para estar deitada ao lado dele, do divã de Perséfone, pois eu nunca irei, para salvar minha alma, provar a você não ser verdade onde você se deita em seu túmulo”. – As Suplicantes 10:12, de Eurípides. 7. “Outro, passando por um túmulo à noite, e imaginando que viu um fantasma, correu para ele com lança erguida, e, quando ele a empurrou nele, exclamou: ‘Para onde você está fugindo de mim, você alma que deve morrer duas vezes?’.”. – Apophthegmata Laconica (Citações de Lacônia), Provérbios Espartanos, v. 69, de Plutarco. 8. “Tais foram os males pelos quais passei, conduzidos pelos deuses, que penso: a alma de meu pai, se ela voltasse a viver, não iria me contradizer”. – Édipo em Colono, v. 995, de Sófocles. 9. “Um sorriso efêmero iluminou seus lábios, e logo em seguida sua alma renunciou à vida”. – Píramo e Tisbe, mitologia grega. 213 Alma como sede dos sentimentos 1. “Ó minha alma, tu tens sido mais afortunada do que as palavras podem expressar”. – Ifigênia em Tauris, v. 835, de Eurípedes. 2 “Que eu seja apto para afastar da minha cabeça a covardia amarga e esmagar os impulsos enganadores da minha alma”. – Hinos Homéricos 8:10, a Ares. 3. “Por isso que pelas boas qualidades que possuímos em nossas almas que adquirimos também as outras vantagens das quais necessitamos”. – Da Paz 8:32, de Isócrates. 4. “Ó minha alma, como posso eu calar-me?”. – Íon, v. 859, de Eurípedes. 5. “No meu caso, entretanto, este golpe súbito me surpreendeu e destruiu minha alma. Estou arrasada e renunciarei toda a alegria da vida. Eu quero morrer”. – Medeia, v. 225, de Eurípedes. 6. “Por que você está tão ansioso, criança? Não deixe que a luxúria louca pela batalha encha sua alma e te leve para longe. Rejeite essa paixão do mal enquanto você ainda é jovem”. – Sete contra Tebas, v. 686, de Ésquilo. 7. “A alma dela ficou absorta nos infortúnios dele”. – Vidas (sobre Antonio), de Plutarco. 8. “Quando Orfeu recebeu a terrível notícia, sua alma cobriu-se de luto”. – Orfeu e Eurídice, mitologia grega. 9. “Hécuba querida — disse o rei à sua esposa —, alegre sua alma, pois parece que já não tarda o nascimento de nosso segundo filho”. – O Nascimento de Páris, mitologia grega. Alma que vai para o Hades 1. “Então, assim que eles pegaram um homem derrubado ou recém-ferido, um deles iria fincar suas grandes garras sobre ele, e sua alma iria para baixo ao Hades para esfriar o Tártaro”. – Escudo de Héracles, v. 245, de Hesíodo. 2. “Gostaria que eu fosse capaz de roubar-te a alma e a vida, e enviar-te para a casa do Hades”. – Odisseia 9:525, de Homero. 3. “Cante, deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles, a ira destrutiva que trouxe incontáveis desgraças sobre os aqueus, e que enviou para o Hades muitas almas valentes de heróis, e fez de todos eles chão* para cães e todo tipo de pássaro”. – Ilíada 1:1, de Homero. * Aqui é uma alusão aos corpos físicos dos que caíram mortos e que, com o tempo, se misturaram com o solo, sobre o qual bichos caminhavam. Sentido semelhante há em um salmo bíblico: “Eis o destino dos que confiam cegamente em si, o futuro dos que se comprazem nos seus discursos: estão encurralados no Sheol como ovelhas, a Morte os leva a pastar. No dia seguinte, homens retos os calcam aos pés, seus traços apagam-se no Sheol, estão longe dos seus palácios”. – Salmos 49:14, 15, TEB. 214 4. “Ele amarrou uma corda que pendia no alto de uma grande árvore e se enforcou nela, e a alma dele desceu ao Hades”. – As Vidas dos Filósofos Eminentes 8:2, de Diógenes Laércio. 5. “Mas se alguém esconde tesouros em casa, e ataca outros com zombaria, ele falha ao considerar que está renunciando sua alma para o Hades sem glória”. – Ístmico 1:65, de Pindar. 6. “Seus joelhos fraquejaram pela última vez, e sentiu que sua alma começava a descer ao Hades sombrio para ir fazer companhia aos companheiros mortos”. – A morte de Aquiles, mitologia grega. Veja outras acepções da palavra “alma” no Greek-English Lexicon, de Liddell & Scott, indicado no link abaixo: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057 %3Aalphabetic+letter%3D*y%3Aentry+group%3D13%3Aentry%3Dyuxh%2F Ao clicar no link ele deverá remeter ao verbete psykhé (ψυχή). Caso esteja lendo este PDF na tela do computador, se o verbete não aparecer “cole” o endereço diretamente no navegador e aperte enter. Sobre a expressão “alma vivente” e outras aplicações Dentre as várias ocorrências da palavra “alma” na Bíblia, uma delas é na expressão “almas viventes”, para se referir às criaturas terrestres. Isto acontece especialmente no Antigo Testamento. Mas nem todos os tradutores vertem dessa maneira e preferem outras expressões tais como “seres vivos”, que está mais de acordo com a linguagem de hoje. Nem a palavra “alma” sozinha é sempre apresentada nas traduções bíblicas, pois seus autores costumam omiti-la, substituindo-a por outras palavras. O mesmo fazem os que traduzem as obras gregas, exceto quando o texto se refere à alma que vai para o Hades. Mas nas citações deste capítulo eu procurei manter a palavra “alma” em todos os casos, a fim de demonstrar a maneira que os gregos a utilizavam. Quando a Bíblia hebraica foi traduzida para o grego* a descrição “almas viventes” foi vertida por ψυχὴν ζῴων (psykhén zoíon), conforme está em Gênesis 1:21, que significa literalmente “alma de viventes”. E em 1 Coríntios 15:45 o apóstolo Paulo usou ψυχὴν ζῶσαν (psykhén zósan) para se referir ao primeiro homem Adão. Sobre os termos zó·san e zóion**, utilizados juntamente com psy·khén, sugiro a leitura das considerações da página do link abaixo: http://biblehub.com/greek/2198.htm * A Septuaginta grega foi a primeira tradução do Velho Testamento para o grego, também conhecida por “Versão dos Setenta”, empreendida por cerca de 70 judeus de Alexandria, a partir do século III a.C. É identificada em obras teológicas pelo número romano LXX. ** Zóion resulta da combinação zõõ (viver) + zoé (vida), e normalmente se refere aos animais, porém há textos em que essa palavra é usada para deuses, humanos, corpos celestes e vegetais. 215 Mas não é comum as obras gregas chamarem os seres terrestres de “almas viventes” usando a estrutura composta psykhén zoíon, muito embora tal conceito esteja implícito em muitos textos, a exemplo daqueles que dizem que as “almas” morrem, tanto em referência aos animais quanto aos humanos. O que significa então que antes delas serem almas mortas elas são almas viventes, na Terra. Quando os gregos queriam se referir a uma “alma vivente” eles usavam ἔμψυχα (émpsykha). Os dicionários informam que seu significado é “o que tem vida” ou “vivente”1, podendo se referir aos animais ou aos seres humanos, embora existam termos mais específicos2 para se referir a um ser vivo, como ζῷα e ζῶσαν. Mas, por conter dentro dela a palavra “alma” (ἔμψυχα), émpsykha pode ser vertida de outras maneiras, a exemplo de: “com a alma nele”3, “espírito vivente”4, “alma do todo”5, “‘almado’ ”6 , “alma”7 etc. Por isso, nas citações 5 e 6 do primeiro tópico deste capítulo eu verti émpsykha por “alma vivente”*, ao invés das traduções mais usuais “criatura vivente” ou “ser vivo”. 1 logeion.uchicago.edu/index.html#%E1%BC%94%CE%BC%CF%88%CF%85%CF%87%CE%B1 2 logeion.uchicago.edu/index.html#%CE%B6%E1%BF%B4%CF%89%CE%BD 3 www.loebclassics.com/view/aristotle-parts_animals/1937/pb_LCL323.35.xml 4 perseus.uchicago.edu/perseus-cgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=1&query=Pl.%20Epin.%20982e 5 http://dhspriory.org/thomas/DeAnima.htm 6 muse.jhu.edu/journals/american_journal_of_philology/v131/131.4.squire.html 7 http://diposit.ub.edu/dspace/bitstream/2445/12095/8/Fil%C3%B3%20eng%2012095.pdf (p. 7) * No grego moderno, a expressão bíblica “almas viventes” costuma ser vertida justamente por émpsykha, o que demonstra que tal palavra é um equivalente de psykhén zoíon. A ideia oposta está em ἄψυχα (ápsykha), que significa “o que não tem alma”, ou seja, coisas inanimadas. Um texto que utiliza em uma mesma sentença os dois conceitos está em Políticas 1:29, de Aristóteles, onde ele contrasta quem tem alma com o que não tem: “. . . τὰ μὲν ἄψυχα τὰ δὲ ἔμψυχα”. De qualquer maneira, há textos na literatura grega que também fazem uso conjunto de psykhé e zóion, com suas variantes. É o caso dos exemplos abaixo, que foram citados no começo do capítulo, com exceção do primeiro a seguir. Em Epínomis 984c e 984d Platão usou a mesma combinação psykhén zoíon (ψυχὴν ζῴων), de Gênesis 1:21, mas com outro sentido, referindo-se à alma que habita nos diversos tipos de seres, de acordo com o entendimento que ele tinha sobre a criação do universo, segundo o qual tudo teria surgido pela atuação do deus Demiúrgo. Abaixo está o texto, com uma tradução literal interlinear seguida de uma versão de melhor entendimento: “E tendo produzido todas [essas criaturas], essa alma de viventes ao que parece enche o céu inteiro”.* – colchetes acrescentados, baseando-se no contexto. * Há um detalhe interessante nessa obra de Platão. Ele afirma que as estrelas, embora pareçam apenas “pontinhos” no céu, na realidade possuem tamanhos descomunais. Considerando os mitos em que ele acreditava, tal opinião foi bem correta e apenas em nosso tempo foi confirmada pela Ciência. 216 Os textos que foram citados na parte inicial que utilizam a referida combinação com o mesmo sentido bíblico estão transcritos a seguir: “E que seja assim estabelecida [por lei] a disciplina e a nutrição das almas viventes [ζώσης ψυχῆς]”. – Leis 9:874d, de Platão. “Que outras almas viventes [ζῴου ψυχὴ] se detém na existência dos deuses que puseram ordem no universo, e nas maiores e mais belas coisas?”. – Memorabilia 1:4.13, de Xenofonte. “Certamente todo o cuidado deve ser tomado em nome da nossa própria cuidadora e mãe de nossos filhos, em quem está implantada a semente da qual brota uma alma vivente”. – Economia 3:2, de Aristóteles. “E que a alma de viventes [ζῴων ψυχή], isto é, a substância das almas viventes [ἐμψύχου], é a sua essência de acordo com essa descrição, e a forma e a essência de determinado tipo de corpo”. – Metafísica, v. 1035b.15, de Aristóteles. Nota-se que o segundo texto de Aristóteles acima citado utiliza as duas versões de “almas viventes” que foram explicadas na página anterior. Além de émpsykha, outro exemplo de uma palavra que tem embutido nela o nome “alma”, e as traduções normalmente não evidenciam isso, pode ser visto abaixo: “Enumerando uma a uma, as seguintes coisas devem ser necessariamente boas. . . Justiça, coragem, autodomínio, magnanimidade, magnificência e todos os outros estados de espírito, porque são virtudes da alma. Saúde, beleza e assim por diante, porque são virtudes do corpo e proporcionam muitas vantagens”. – Retórica 1:6, de Aristóteles. A palavra magnanimidade* é a tradução de μεγαλοψυχία (megalopsykhía), que significa literalmente “grandeza de alma”, conforme pode ser visto no portal Perseus, indicado nos dois links a seguir: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Arist.%20Rh.%201362b&getid=0 http://logeion.uchicago.edu/index.html#μεγαλοψυχία * O dicionário Caldas Aulete define magnanimidade como “grandeza de ânimo, qualidade que nos impele para tudo que é grandioso... Generosidade, bizarria, ação de homem generoso”. O mencionado portal pertence à Universidade de Chicago. Ele é muito útil para auxiliar na tarefa de tradução ou simplesmente para verificar quais palavras foram usadas no texto original. Ao se consultar qualquer obra grega no portal, para saber o significado de qualquer palavra que aparece no texto basta clicar no termo escolhido que aparecerá um quadro com uma tradução dele, geralmente literal, além de 217 informações complementares. No texto supracitado de Aristóteles, ao dar um click em μεγαλοψυχία aparecerá o significado que mencionei (“grandeza de alma”). Considere também o trecho a seguir, que é uma versão da tradução que se encontra no Perseus: “A maioria dos pontos debatidos e as dificuldades que surgiram serão esclarecidas se for satisfatoriamente determinada qual é a concepção apropriada de felicidade – se ela consiste meramente em uma pessoa possuir alguma qualidade particular de espírito”. – Ética a Eudemo 1:1215a, de Aristóteles. Ao invés de “espírito”, a palavra utilizada no texto grego original é ψυχή (“alma”). Para justificar a escolha de tradução que fizeram, os autores disseram em uma nota: “A palavra ψυχή, usualmente vertida por ‘alma’, que não possui nenhum termo exatamente correspondente em inglês, ao passo que denota toda a vitalidade da criatura vivente, com seus fatores inconscientes de nutrição e desenvolvimento também representa os sentimentos conscientes ou as emoções e pensamentos”. 218 Capítulo 20 A CONCEPÇÃO DE ALMA DOS ANTIGOS HEBREUS E Jeová Deus passou a formar o homem do pó do solo e a soprar nas suas narinas o fôlego de vida, e o homem veio a ser uma alma vivente. Gênesis 2:7. Esta é outra passagem usada com o propósito de “provar” que o homem não possui uma alma, mas que ele é uma alma. O que implicaria em dizer que quando ele morre a alma também morre. O objetivo de citar esse versículo aqui é que ele pode ser considerado o ponto de partida da divergência aniquilacionista que surgiu nos últimos séculos. Seria a “evidência” mais antiga mencionada a favor do Materialismo. Considerando tudo o que foi visto até aqui, talvez você esteja pensando que esse deve ser outro caso de um texto que parece dizer uma coisa, mas na realidade diz outra. Sob certo ponto de vista é sim. Mas analisando-se de outra maneira, não. Por que digo isso? Se considerarmos o que o Cristianismo histórico ensina sobre o assunto nos últimos dois milênios, pode-se dizer corretamente que o homem é uma alma vivente, quer dizer, uma alma que vive na Terra dentro do corpo físico. Se o corpo morre a pessoa humana deixa de existir e a alma se ausenta deste mundo, indo para o lugar reservado a ela, que é o Seol. Torna-se uma alma falecida do ponto de vista dos que ficam. Mas continua existindo no mundo dos mortos. Mas retornando ao valor de face do texto, literalmente ele não estaria realmente dizendo que a alma só passa a existir depois que o fôlego de vida entra no corpo físico? E, neste caso, os aniquilacionistas estariam certos na leitura que fazem do versículo? Se realmente é assim, por qual razão os autores a seguir diriam o que está abaixo transcrito? “[Materialismo é] a doutrina que sustenta que o princípio de pensamento no homem, ou a alma imaterial e imortal com a qual Deus se agradou de revestir Adão em sua criação, resulta da mera matéria, ou em uma faculdade decorrente de sua organização”. – A Biblical and Theological Dictionary (1833), de Richard Watson, p. 626, colchetes acrescentados. “Além disso, Moisés, após o sétimo dia foi mais além e começa a falar filosoficamente; e, com respeito à formação do homem, diz então que Deus tomou pó da terra, e formou o homem, e inseriu nele um espírito e uma alma. Este homem era chamado Adão, que na língua hebraica significa aquele que é vermelho, porque ele foi formado a partir de terra vermelha, combinados juntos”. – Flávio Josefo, século I, em Antiguidades Judaicas 1:34. A primeira opinião é de um erudito cristão do século 19, e a segunda de um judeu do primeiro século. Nesse intervalo de quase dois mil anos eles expressaram 219 praticamente a mesma opinião, a de que Deus implantou uma alma no corpo que acabara de formar do pó da terra, mais especificamente da argila, conforme a tradição semítica. Quase ninguém se opôs a essa opinião até o século 16, época em que os aniquilacionistas materialistas começaram a surgir.* Como seria possível estes últimos estarem corretos e todos os demais dos séculos anteriores errados? * Mas ele só vieram a ter mais evidência no século 19. A explicação padrão dos aniquilacionistas que é os judeus e cristãos foram corrompidos pela filosofia grega e distorceram os textos bíblicos referentes à alma. Tal opinião, além de ser muito cômoda, porque fecha os olhos à historiografia em questão, não considera a possibilidade de haver outros textos dentro da própria Bíblia que leve a um entendimento menos óbvio de Gênesis 2:7. É claro que para dirimir esse aparente problema teremos que verificar mais de perto o que os antigos textos hebraicos informam sobre a alma, quer direta ou indiretamente. Como será visto, os contornos que eles apresentam são inconfundíveis, e se somarão a tudo o que foi exposto até aqui neste livro. O que acontece em Gênesis 2:7 se assemelha ao tratamento que a Bíblia dispensa à questão da morte. Em um momento os mortos são apresentados como inertes no Seol, como se estivessem dormindo, e em outro eles são descritos em movimento e conscientes de suas ações (isto ficará mais claro em outro tópico mais adiante). Por que isso acontece? Embora certamente devamos creditar ao Espírito de Deus qualquer entendimento correto que venhamos a ter de sua Palavra, há pontos na Bíblia que nossa massa cinzenta é suficiente para entendê-los.* O que não deixaria de ser algo vindo do Espírito, pois somos criação dele. Para isso basta que estejamos sintonizados com o espírito do texto a ser analisado e tenhamos seguido previamente o caminho correto. À medida que as peças vão se encaixando corretamente uma indelével imagem começa a se apresentar diante de nossos olhos. * Um caso em que isso não se aplica muito é no livro de Apocalipse. Nem toda a inteligência do mundo seria capaz de decifrar completamente tal livro, não obstante as muitas pistas fornecidas em Daniel. No caso dos mortos não é difícil de concluir a razão (ou razões) deles serem associados à inatividade. Retome o conceito que comentamos sobre o Seol. O que você se lembra? Na visão do Antigo Testamento trata-se de um lugar sombrio “onde até mesmo a luz é escuridão”. Não há cores. É um mundo em preto e branco. Há partes caóticas, mas em geral predomina o silêncio. Que alma não ficaria sonolenta ao ir para um ambiente assim? Sem falar que, na visão dos que ficam, quem morre parece estar apenas dormindo. E no caso de Gênesis 2:7? Bem, ao passo que ele informa que o homem passou a ser uma alma vivente, outros textos dizem que o homem possui uma alma nele. Comece considerando este primeiro exemplo: 220 “O homem, nascido de mulher é de vida curta e está empanturrado de agitação. . . Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. – Jó 14:1, 22. Num momento de grande criatividade, os escritores das Testemunhas de Jeová deram a seguinte explicação para esse versículo: “Ou: ‘Apenas a sua própria parentela (parentes carnais) continuará a penar por ele, e seus próprios escravos (almas adquiridas) continuarão a pranteá-lo.’ Para contrastar ‘parentes carnais’ com ‘almas adquiridas’, compare Gên 37:27 e Is 58:7 com Gên (12:5; 14:21; 36:6); Ez 27:13; Re 18:13 n.: ‘almas humanas’.”. – Nota da TNM com referências. Por que eles não apresentaram a explicação corriqueira de que “alma”, nesse caso, significa apenas “vida”? (Entendimento que em si demonstra que a palavra alma na Bíblia não significa apenas a alma-homem). Talvez tenha sido devido ao contexto do capítulo inteiro, que claramente apresenta um discurso não materialista, mesmo usando palavras aparentemente aniquilacionistas. Note a seguir: “Como a flor, ele [o homem] brota e é cortado e foge como a sombra e não permanece em existência” (versículo 2). Note que o deixar de existir do ser humano é equiparado à fuga de uma sombra. Conforme foi considerado no capítulo 14, “sombras” se referem poeticamente às almas dos mortos. “Se os seus dias estiverem determinados, há contigo o número dos seus meses; fizeste para ele um decreto para que não vá além. Deixa de atentar nele para que descanse, até que ache prazer, como o trabalhador contratado no seu dia” (versículos 5 e 6). Comparar à morte ao descanso do sono é uma evidência que demonstra justamente o contrário do que os aniquilacionistas pensam. A sensação do descanso é para quem está vivo, e não para quem não existe. E no estado da morte chega um momento em que o “trabalhador” (quem morreu) achará prazer resultante do seu anterior trabalho (possível alusão à ressurreição ou ao que veio a ser chamado depois de “Seio de Abraão”). “Mas o varão vigoroso morre e jaz prostrado; e o homem terreno expira, e onde está ele?” (versículo 10). Se obviamente o corpo de quem morreu vai para uma sepultura, por qual motivo se pergunta para onde vai o homem depois que morre? Ao invés de ser um recurso estilístico típico das poesias, pode se referir à partida da alma para o Seol. O que estaria de acordo com o versículo 2, que mencionou a fuga da “sombra”. “Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! . . . Tu 221 chamarás e eu mesmo te responderei. Terás saudades do trabalho das tuas mãos” (versículos 13 e 15). Quem não existe não pode ficar aguardando escondido o chamado de seu Senhor. Quem morreu precisa existir em algum outro lugar para que possa nutrir tal expectativa. “Seus filhos [do homem morto] adquirem honras, mas não o chegará a saber; caem em desonra, mas ele não o percebe” (versículo 21, BJ, colchetes acrescidos). Uma vez no Seol, o “morto” ignora o que sucede com seus descendentes no mundo dos vivos. Se lhes acontece uma desgraça não terá como saber, a não ser que seja permitido por Deus. Não porque foi extinto, mas porque os filhos estão longe de seus olhos. A conclusão do capítulo arremata todo esse discurso: “Apenas a sua própria carne [do homem que morrerá], enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. – Jó 14:22, colchetes acrescentados. Portanto, a alma mencionada acima não se refere ao ser humano em si, mas à alma que ele possui. A explicação alternativa dada pela Torre de Vigia, de que a “carne” é a parentela e a “alma” os escravos trabalhadores, é um entendimento bastante forçado, para dizer o mínimo. Da mesma maneira que o homem (a pessoa que Deus criou) tem uma carne, ou seja, o corpo físico que torna possível que ele viva na Terra, ele também possui uma alma, que possibilita que ele continue existindo no Seol, conforme aludido no texto abaixo: “E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18, sobre a morte da esposa de Jacó durante o parto. Neste caso, os aniquilacionistas dizem sem titubear que a “alma” significa apenas a vida. Certamente, a verdadeira alma que habita no corpo está relacionada com a vida nele.* Mas não é a isso que o texto se refere. Ele também está mencionando a alma espiritual, do mesmo jeito que o texto anterior de Jó. * Não seria o espírito o que dá vida ao corpo? Isto será comentado daqui apouco. Considere a seguir outros textos que trazem a mesma ideia de uma alma que habita o corpo do homem: “Estavam famintos, também sedentos; sua própria alma neles começou a debilitarse”. – Salmo 107:5. “Então tens de dar o dinheiro por tudo o que a tua alma almeje em matéria de gado vacum, e de ovelhas e de cabras, e de vinho, e de bebida inebriante, e por qualquer coisa que a tua alma te peça; e tens de comer ali perante Jeová, teu Deus, e tens de alegrar-te, tu e os de tua casa”. – Deuteronômio 14:26. 222 Como se nota, o corpo físico que está vivo é comandado pela alma que há dentro dele, apesar dos dois nem sempre se entenderem, como será considerado no capítulo 21. Mas o corpo vivo em si não é a própria alma. E a questão do espírito que há no homem? Não é ele que dá vida? (Tiago 2:26) Sem explicar o motivo, a Bíblia intercambia os dois conceitos, o de alma e espírito. O que indica que eles estão intimamente relacionados. Os comentaristas costumam dizer que a palavra “espírito” tem várias acepções, do mesmo que jeito que “alma”. Em alguns casos significa a vida que há no corpo e em outros as faculdades cognitivas do cérebro.* * Alguns entenderam, a exemplo de S. D. F. Salmond, que essa é a razão da Bíblia dizer que depois da morte o espírito retorna para Deus, pois a alma que vai para o Seol vira um ser indigente em um mundo sombrio, desprovido de suas faculdades mentais plenas, relativas à vida humana que possuía. Deus só devolverá isso a ela no momento da ressurreição. Embora essa interpretação seja realmente possível, no apêndice A6 eu propus outra possibilidade de entendimento. Um exemplo dessa relação que há entre espírito e alma pode ser visto no texto a seguir: “Almejei-te com a minha alma durante a noite; sim, com o meu espírito dentro de mim estou à procura de ti; porque, quando há julgamentos teus para a terra, os habitantes do solo produtivo certamente aprenderão a justiça”. – Isaías 26:9. Ser a alma e o espírito equiparados é certamente uma evidência da origem espiritual e divina de ambos. São faces de uma mesma moeda que foi depositada em um alforje (o corpo). Ao considerar tal vínculo abre-se uma possibilidade de entender melhor o motivo de Flávio Josefo, ao citar Gênesis 2:7, ter dito que Deus implantou em Adão uma alma e um espírito, ao invés de dizer que ele se tornou uma alma vivente devido ao fôlego de vida que recebeu. O ponto de vista de Josefo pode ter sido o que equipara o espírito à alma. Neste caso, o “fôlego” da respiração deveria ser tomado com o sentido de “espírito”, conforme outro judeu certa vez disse, de acordo com várias traduções: “Assim como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras está morta”. – Tiago 2:26, conforme KJ, NAB, NTLH, BV, NVI, Vozes, Almeida Fiel etc. Tal equivalência de significados também é utilizada nas traduções bíblicas abaixo, ao verterem esse mesmo texto de Tiago. Mas ao invés de traduzirem “fôlego” por “espírito”, optaram justamente por “alma”: “Assim como o corpo sem alma é morto, assim também a fé sem obras é morta”. – Missionários Capuchinhos e Centro Bíblico Católico. “Como o corpo sem a alma está morto, assim também a fé sem as obras é morta”. – José Raimundo Vidigal. “Assim como o corpo sem alma é morto, também a fé sem obras é morta”. – Mensagem de Deus. 223 Se levarmos em consideração o que foi visto neste livro até aqui, não é desarrazoado supor que o entendimento de Josefo é o sentido correto de Gênesis 3:7. O “fôlego” ali mencionado é uma referência indireta à alma do homem, o qual se tornou uma alma vivente na Terra. De qualquer maneira, conforme visto no capítulo 14, existem textos bíblicos que falam explicitamente das almas dos homens quais habitantes de outro mundo. Tais passagens são inconciliáveis com a visão aniquilacionista. Refiro-me aos versículos que chamam as almas de “sombras”, ou rephaim, em hebraico, a exemplo dos dois textos a seguir: “A sua casa [isto é, a casa da mulher estranha] se inclina para a Morte, os seus trilhos para as Sombras; os que ali entram não retornam, não alcançam as sendas da vida”. – Provérbios 2:18, BJ, colchetes acrescentados. “Dona Insensatez é agitada, é toda ignorância e não sabe nada. Senta-se à porta de sua casa, numa cadeira, no alto da cidade para interpelar os transeuntes que seguem o seu caminho. ‘Há algum inexperiente? Que venham aqui!’ Ao carente de juízo ela diz: ‘São doces as águas furtivas e a comida clandestina, uma delícia!’ E ele [o que escuta a Insensatez] não sabe que ali estão as Sombras, e os seus convidados, no fundo do Sheol!”. – Provérbios 9:13-18, TEB, colchetes acrescentados. A conclusão “fundo do Seol” é vertida em outras traduções por “funduras do Seol” (TNM), “profundezas do inferno” (Almeida Fiel), “profundezas do abismo” (New American Bible), “profundezas da sepultura” (NVI) etc. Lembre-se que a sepultura é a porta de entrada do Seol, conforme o Salmo 141:7. E há Bíblias que já traduzem rephaim diretamente por “espíritos”, “almas” ou “fantasmas”, a exemplo das três versões a seguir. “Os espíritos dos mortos tremem nas águas debaixo da terra”. – Jó 26:5, Good News Translation. “Quem se extravia do caminho da prudência descansará na assembleia das almas”. – Provérbios 21:16, Bíblia do Peregrino.* * Nota desta Bíblia sobre o versículo: “No contexto, ‘descansar’ tem sentido irônico, quase sarcástico, porque ‘as almas’ são os mortos no Hades”. “Farás maravilhas para os mortos? Os fantasmas se levantarão para te dar graças? É teu amor fiel proclamado na sepultura, tua fidelidade no mundo subterrâneo?”. – Salmos 88:10, Common English Bible. A informação primordial para entender o conceito hebreu sobre a alma Existem muitos textos na Bíblia que não mencionam a palavra alma, porém são fundamentais para entender o que realmente ela é. Considere-os a partir de agora. Como venho afirmando ao longo deste trabalho, a chave para entender o que significa a alma ensinada na Bíblia é compreender primeiramente o que é o Seol. 224 Conforme já foi apropriadamente demonstrado, ele é o lugar para onde vai a alma do homem. Não é o mesmo que sepultura, pois para ela vai apenas o corpo de quem morre. É por essa razão que Seol nunca aparece no plural, pois se refere ao lugar único para onde vão as almas dos mortos. Os textos que serão a seguir citados reforçam indubitavelmente as evidências até agora apresentadas. Ao lê-los notaremos outra linguagem presente na Bíblia, que é o “deitar-se” e o “levantar-se” referentes à morte e à ressurreição das pessoas, respectivamente. Diferentemente do que alguns podem pensar, essa maneira de se expressar é apenas para dizer o seguinte: 1. Deitar = adormecer = ida temporária para o Seol (morte) 2. Levantar = acordar = saída definitiva do Seol (ressurreição) Não se trata de dormir e acordar literalmente. Tenha isto em mente ao ler os textos bíblicos que estão transcritos a seguir, os quais tratam das características do Seol e mencionam os que vão para lá, ao morrerem. O Seol fica num lugar profundo, tão difícil de alcançar quanto o céu “Se eu subisse ao céu, lá estarias tu; e se eu fizesse meu leito no Seol, eis que [lá estarias] tu!”. – Salmos 139:8. “[Disse Deus:] Se cavarem até o Seol, de lá os tirará a minha própria mão; e se subirem aos céus, de lá os farei descer”. – Amós 9:2, colchetes acrescentados. “Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço”. – Isaías 14:15-19, sobre a morte do rei de Babilônia. “Pois, na minha ira acendeu-se um fogo, e ele arderá até o Seol, o lugar mais baixo, e consumirá a terra e a sua produção, e incendiará os alicerces dos montes”. – Deuteronômio 32:22. O Seol é taciturno, mas não é lugar de absoluta inatividade “Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço. Os que te virem te fitarão; examinar-te-ão de perto, [dizendo:] ‘É este o homem que agitava a terra, que fazia tremer os reinos, que fez o solo produtivo como o ermo, que lhe derrubou as próprias cidades, que nem aos seus prisioneiros abriu o caminho para casa?’. ”. – Isaías 14:15-19. “Eu disse: “Não verei a Jah, sim, Jah, na terra dos viventes. Não mais olharei para a humanidade — com os habitantes da terra de cessação.’ ”. – Isaías 38:11.* * Nota da Bíblia do Peregrino sobre esse texto: “A existência depois da morte não conhece culto religioso nem vida social. O Abismo se opõe à ‘terra dos vivos’, terra criada para que o homem habite nela”. 225 “Ali [no Seol] os próprios iníquos deixaram da agitação, e ali descansam os cansados de poder. Juntos, os próprios prisioneiros estão despreocupados; realmente não ouvem a voz de alguém os compelindo a trabalhar”. – Jó 3:17, 18, colchetes acrescentados. “Gritai de júbilo, ó céus, pois Jeová tomou ação! Bradai em triunfo, partes mais baixas da terra! Ficai animados, ó montes, com clamor jubilante, ó floresta e todas as árvores nela! Porque Jeová resgatou a Jacó e mostra a sua beleza em Israel”. – Isaías 44:23, compare com Filipenses 2:10, 11. “Mas a própria sabedoria — donde vem, e onde, então, é o lugar da compreensão? Foi ocultada mesmo dos olhos de qualquer vivente e foi escondida das criaturas voadoras dos céus. A destruição e a morte é que disseram: ‘Com os nossos ouvidos ouvimos notícias dela.’ Deus é quem entendeu os seus caminhos, e ele mesmo sabia seu lugar”. – Jó 28:20-30. “Embora seus filhos e filhas tentassem consolá-lo, ele [Jacó] se recusava a ser consolado, e dizia: ‘Não, eu descerei pranteando para o meu filho no Seol’. E assim seu pai continuava a chorar por ele”. – Gênesis 37:35, New American Bible, colchetes acrescentados. Alguém já viu um cadáver chorando à medida que vai descendo para dentro de uma sepultura? Portanto, a situação que Jacó mencionou não se referia a seu enterro. “Fez-me sentar em lugares escuros quais homens mortos há muito tempo”. – Lamentações 3:6. “Porque o inimigo tem perseguido a minha alma; esmigalhou a minha vida na própria terra. Fez que eu morasse em lugares escuros, como os que estão mortos por tempo indefinido”. – Salmos 143:3. “Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, porque teu orvalho será orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras”. – Isaías 26:19, Bíblia de Jerusalém. “Até mesmo o Seol, embaixo, ficou agitado por tua causa, para encontrar-se contigo ao entrares. Por ti tem despertado os impotentes na morte, todos os líderes caprinos da terra. Fez que todos os reis das nações [que estão no Seol] se levantassem dos seus tronos”. – Isaías 14:9, colchetes acrescentados. “Os principais homens dos poderosos falarão do meio do Seol até mesmo a ele, com os seus ajudantes”. – Ezequiel 32:21, 22. “Por que não passei a morrer desde a madre? Por que não saí do próprio ventre, expirando então?.... Pois agora eu já estaria deitado para ter sossego; então dormiria; estaria descansando com reis e conselheiros da terra, os que constroem para si lugares desolados, ou com príncipes que têm ouro, os que enchem as suas casas de prata”. – Jó 3:11, 13-15. 226 “Assim disse Jeová: ‘Ouve-se uma voz em Ramá, lamentação e choro amargo; Raquel chorando por seus filhos. Negou-se a ser consolada por causa dos seus filhos, porque eles já não existem.’* Assim disse Jeová [a Raquel]: ‘Retém a tua voz do choro e teus olhos das lágrimas, pois há uma recompensa pela tua atividade’, é a pronunciação de Jeová, ‘e certamente retornarão da terra do inimigo’. ‘E existe esperança para o teu futuro’, é a pronunciação de Jeová”. – Jeremias 31:15-17, colchetes acrescentados. * Ou: “Já não vivem” (Bíblia do Peregrino); “eles estão mortos” (CEV); “porque pereceram” (ReinaValera); “eles não estão aí” (TEB); “pois todos estão mortos” (NTLH). O último texto acima se refere aos judeus descendentes de Raquel, esposa do patriarca Jacó, que estavam sendo mortos e deportados para o cativeiro. O evangelista Mateus ampliou o contexto original e o aplicou profeticamente ao decreto de Herodes ordenando a morte de todas as crianças abaixo de dois anos (Mateus 2:18). Embora muitos enxerguem nessa passagem uma descrição figurativa, pois Raquel já tinha morrido, as citações bíblicas precedentes demonstram que era perfeitamente possível Raquel ter chorado desde o Seol caso tenha vindo a saber do que estava acontecendo com seus descendentes no mundo dos vivos. A consideração a seguir reforça tal ponto de vista. O Seol é dividido em setores Em cada nação, as pessoas que morrem descem juntas para o Seol, conforme aludido pelo patriarca árabe Jó: “Elas [as duas esperanças antes mencionadas] descerão às barras do Seol, quando juntos tivermos de descer ao próprio pó”. – Jó 17:16, colchetes acrescentados. Por exemplo, conforme menciona o comentarista S. D. F Salmond, Ezequiel 32:18-32 indica que os homens que morreram estão distribuídos no Seol de acordo com suas famílias e nações. Esse texto bíblico menciona a ida de várias nações para o Seol, a exemplo do Egito, Assíria, Elão e outras. – A Doutrina Cristã da Imortalidade, p. 207. No caso dos hebreus, mesmo que alguns deles estivessem em uma nação estrangeira, ao morrerem e serem enterrados lá, invariavelmente ‘se deitavam com seus antepassados’. O que demonstra que realmente cada nação ou grupo familiar têm um lugar específico reservado no Seol. Os textos a seguir fazem alusão a esse entendimento. REGIÃO DOS HEBREUS “[Deus disse a Abrão em um sonho:] Quanto a ti, irás em paz para os teus antepassados; serás enterrado numa boa velhice”. – Gênesis 15:15, colchetes acrescentados. “Abraão expirou então e morreu numa boa velhice, idoso e satisfeito, e foi ajuntado ao seu povo.... E estes são os anos de vida de Ismael, cento e trinta e sete anos. Então expirou e morreu, e foi ajuntado ao seu povo”. – Gênesis 25:8, 17. 227 “Assim Jacó terminou de dar ordens aos seus filhos. Recolheu então os seus pés ao leito e expirou, e foi ajuntado ao seu povo”. – Gênesis 49:33. Lembre-se que os patriarcas e seus descendentes estavam em constante deslocamento e habitaram em várias regiões diferentes, a exemplo do Egito. Mesmo assim, quando morriam se ajuntavam ao seu povo. “Arão será ajuntado ao seu povo, pois não entrará na terra que hei de dar aos filhos de Israel, visto que vós vos rebelastes contra a minha ordem referente às águas de Meribá. . . Moisés despiu então Arão de suas vestes e vestiu com elas Eleazar, seu filho, morrendo depois Arão ali no cume do monte. E Moisés e Eleazar desceram do monte.”. – Números 20:24, 28. Certamente o povo a que o texto acima se refere não estava no cume do monte onde o corpo de Arão foi enterrado. “Jeová falou então a Moisés, dizendo: ‘Toma vingança dos midianitas pelos filhos de Israel. Depois serás ajuntado ao teu povo’.”. – Números 31:1, 2. O povo mencionado não é o povo com que Moisés já estava, mas aquele com quem ele iria ficar depois da morte. “E Jeová passou a falar a Moisés naquele mesmo dia, dizendo: Sobe a este monte de Abarim, o monte Nebo, que está na terra de Moabe, defrontando com Jericó, e vê a terra de Canaã que dou como propriedade aos filhos de Israel. Morre então lá no monte ao qual sobes e sê ajuntado ao teu povo, assim como Arão, teu irmão, morreu no monte Hor e foi ajuntado ao seu povo”. – Deuteronômio 32:48-50. Mesmo tendo morrido num monte diferente daquele em que o corpo de Arão fora enterrado, Moisés foi para junto do mesmo povo, na região reservada aos hebreus no Seol. Conforme todos os leitores da Bíblia sabem, Moisés sequer foi enterrado pelos que ficaram na Terra, de modo que o texto não se refere a uma sepultura coletiva, ou cemitério. O próprio Deus se encarregou de dar uma destinação ao corpo de Moisés: “Depois, Moisés, o servo de Jeová, morreu ali na terra de Moabe, por ordem de Jeová. E ele passou a enterrá-lo no vale da terra de Moabe defronte de Bete-Peor, e até o dia de hoje ninguém soube do seu sepulcro”. – Deuteronômio 34: 5, 6; veja também Judas 9. REGIÃO DOS EGÍPCIOS “Estes são os que Faraó verá e ele certamente será consolado quanto a toda a sua massa de gente”. – Ezequiel 32:31. REGIÃO DA ASSÍRIA “Os principais homens dos poderosos falarão do meio do Seol. . . É ali que estão a Assíria e toda a sua congregação”. – Ezequiel 32:21, 22. 228 REGIÃO DE TIRO “Pois assim disse o Soberano Senhor Jeová: ‘Quando eu fizer de ti uma cidade devastada, igual às cidades que realmente não são habitadas, quando [eu] fizer subir sobre ti a água de profundeza e tiveres sido coberta por vastas águas, também vou fazer-te descer com os que descem ao poço, ao povo de há muito tempo, e vou fazer-te morar na terra mais baixa*”. – Ezequiel 26:19, 20. * Tão profunda que fica abaixo dos próprios oceanos, justificando assim a linguagem apresentada no texto. Sobre isso, considere adicionalmente o apêndice A3. REGIÕES DE MESEQUE E TUBAL “E não se deitarão com os poderosos, caindo dentre os incircuncisos, que desceram ao Seol com as suas armas de guerra?”. – Ezequiel 32:26-28. REGIÕES DE OUTROS POVOS “Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço. Os que te virem te fitarão; examinar-te-ão de perto, [dizendo:] ‘É este o homem que agitava a terra, que fazia tremer os reinos, que fez o solo produtivo como o ermo, que lhe derrubou as próprias cidades, que nem aos seus prisioneiros abriu o caminho para casa?’ Todos os outros reis das nações, sim, todos eles, deitaram-se em glória, cada um na sua própria casa. Mas, no que se refere a ti, foste lançado fora sem sepultura para ti, qual rebentão detestado, revestido de homens mortos, traspassados com a espada, que descem às pedras de um poço, como um cadáver calcado”. – Isaías 14:15-19. O texto acima menciona a morte do rei de Babilônia. Ao que parece ele foi privado de se juntar a seus antepassados, como forma de punição, e sua humilhante descida foi assistida por outros reis que já estavam no Seol. O Seol é um lugar de provações para os ímpios “Também será apagada a luz dos iníquos, e não resplandecerá a faísca do seu fogo. A própria luz se há de escurecer na sua tenda, e nela a sua própria lâmpada se apagará.... O primogênito da morte comerá os seus membros. Sua confiança será arrancada da sua própria tenda e o fará marchar até o rei dos terrores. Na sua tenda residirá algo que não é seu; espalhar-se-á enxofre sobre o seu próprio lugar de permanência. Embaixo se secarão as suas próprias raízes, e em cima, seu ramo murchará.... Empurrá-lo-ão da luz para a escuridão, e afugentá-lo-ão do solo produtivo”. – Jó 18:518. “Em Sião, os pecadores ficaram apavorados; o tremor apoderou-se dos apóstatas: ‘Quem de nós pode residir qualquer tempo com um fogo devorador? Quem de nós pode residir qualquer tempo com incêndios de longa duração?”. – Isaías 33:14; compare com Marcos 9:47, 48. 229 Os justos são poupados das provações do Seol “A seca, bem como o calor, arrebatam as águas da neve. Assim faz também o Seol com os que pecaram!”. – Jó 24:19.* * Versículo comentado no capítulo 13 deste livro, devido a uma crítica infundada do autor do MB. “A vereda da vida vai para cima para aquele que age com perspicácia, a fim de desviar do Seol lá embaixo”. – Provérbios 15:24. “Porque a tua benevolência é grande para comigo e livraste a minha alma do Seol, do seu lugar mais baixo”. – Salmos 86:13. “A vida dos justos [que morreram] está nas mãos de Deus, nenhum tormento os atingirá”. – Sabedoria 3:1-4, Bíblia de Jerusalém, colchetes acrescentados. Se em outros momentos a Bíblia informa que tanto justos quanto iníquos vão para o Seol, significaria que os justos ficam num nível mais elevado? É o que a poesia dos textos acima parece aludir. E isto combina perfeitamente com o que foi dito em uma passagem do Novo Testamento: “Também o rico morreu e foi enterrado. E no Hades, ele ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu Abraão de longe, e Lázaro com ele na posição junto ao seio”. – Lucas 16:22, 23. Por ter sido necessário o rico agonizante erguer os olhos significa que ele estava em um patamar inferior em relação ao do justo Abraão. “O ímpio será derrubado* por sua maldade, mas o justo terá onde refugiar-se quando morrer”. – Provérbios 14:32, Vozes; compare com Lucas 16:23, 24. * Ou “lançado para baixo” (conf. TNM, Tanakh, ASV, CJB etc.). “Ele [Deus] me faz deitar em pastagens relvosas; conduz-me junto a lugares de descanso bem regados. Refrigera a minha alma... Ainda que eu ande pelo vale da sombra tenebrosa, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; tua vara e teu bastão são as coisas que me consolam”. – Salmo 23:1-4, colchetes acrescentados. Ao passo que no Seol os ímpios passam por apuros nas “chamas” da punição divina, os justos que estão lá são “refrigerados”. O texto acima é bastante lembrado em velórios, e não é sem razão. Sua linguagem remete inevitavelmente ao cenário que a Bíblia apresenta sobre a morte, ao mencionar o “deitar-se” e o “vale da sombra”, expressões associadas ao enterro de alguém e ao mundo dos mortos, conforme explicado nos capítulos 9 e 14 deste livro. “Eles [os iníquos] estão mortos; não viverão. Impotentes na morte*, não se levantarão. Por isso voltaste a tua atenção para os aniquilares e para destruíres toda menção deles”. – Isaías 26:10, 14, colchetes acrescentados. * Na realidade, aqui o texto hebraico diz: “As sombras não se levantarão”. Mas na TNM rephaim não é traduzido dessa maneira. Ela verte sempre por “impotentes na morte”. 230 Eis aí mais um texto que a lógica poderá auxiliar no entendimento sobre ele (Isaías 26:10, 14). Será que desta vez o autor do MB conseguirá entender, caso leia este trecho do meu trabalho? Recapitulando alguns pontos Como ficou evidente nas considerações precedentes, em especial nos capítulos 17 e 18, os judeus da época de Jesus não eram aniquilacionistas, nem tampouco os discípulos dele e os cristãos do século II em diante. Vários textos bíblicos e evidências históricas foram apresentados para corroborar tal conclusão. Tendo em mente tudo o que foi apresentado é que se entende o real sentido dos textos abaixo: “Morra minha alma a morte dos retos, e seja meu fim posteriormente igual ao deles”. – Números 23:10. “A alma que pecar — ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4. Vimos que essa é uma linguagem típica dos tempos antigos, não somente entre os hebreus. Até os gregos a utilizavam, mesmo crendo na imortalidade absoluta da alma: “As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. –Fragmento 96b = B 136, de Heráclito. “Tais foram os males pelos quais passei, conduzidos pelos deuses, que penso: a alma de meu pai, se ela voltasse a viver, não iria me contradizer”. – Édipo em Colono, v. 995, de Sófocles. Dizer que as almas morrem significa simplesmente a morte das pessoas humanas mencionadas, como se quem estivesse vivo neste mundo dissesse: “Morra eu a morte dos retos” (Números 23:10). De fato, é exatamente assim que esse versículo é traduzido em muitas versões da Bíblia. E o que dizer de outra “pedra angular” do entendimento aniquilacionista, o livro de Eclesiastes? Em certo ponto ele diz: “Pois os viventes estão cônscios de que morrerão; os mortos, porém, não estão cônscios de absolutamente nada”. – Eclesiastes 9:5. Essa passagem é frequentemente citada pelos aniquilacionistas para tentar demonstrar que os mortos estão “dormindo”. Mas como foi mencionado em outra ocasião, tal aplicação é bastante imperfeita, pois, na realidade, os aniquilacionistas não acreditam que os mortos estejam dormindo. Para eles quem morre desaparece completamente, é extinto. E alguém dormindo não significa que não existe. Se os que se apegam a tal versículo prestassem mais atenção ao que o próprio autor escreveu em outro momento, perceberiam indícios do que realmente ele pensava. Note a seguir: 231 “E congratulei os mortos que já tinham morrido, em vez de os vivos que ainda viviam. Portanto, melhor do que ambos [os vivos e os mortos] é aquele que ainda não veio a existir, que não viu o trabalho calamitoso que se faz debaixo do sol”. – Eclesiastes 4:2, 3, colchetes acrescentados. Como se pode congratular quem não existe mais? Não se pode. Ainda que tal congratulação se faça de maneira figurativa, já que certamente o autor não desceu até o Seol com esse objetivo. O que indica que tanto os vivos quanto os mortos existem. Cada um deles em seu próprio mundo, conforme aprendemos em outros textos. Só não existe quem de fato nunca existiu. Ou seja, quem ainda não foi criado por Deus. Sendo assim, Eclesiastes, esse livro tão importante para os aniquilacionistas, na verdade não está dizendo o que eles querem (sobre isto, considere adicionalmente o tópico seguinte). A quem Deus agraciou com a existência não desaparece por completo ao morrer. A morte é mera questão de ponto de vista. Quem morreu está morto apenas para os que ficam neste mundo. Mas suas almas continuam existindo lá no Seol. E no caso dos que Deus considera justos tal existência é ainda muito melhor do que a vida que se teve na Terra, ao passo que os injustos passam por provações no Seol. – Lucas 20:37, 38. O que realmente Eclesiastes nos diz? “Com efeito, os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem mais nada; para eles não há mais recompensa, porque sua lembrança está esquecida. Amor, ódio, tudo já pereceu; não terão mais parte alguma, para o futuro, no que se faz debaixo do sol”. – Eclesiastes 9:5, 6, Centro Bíblico Católico. “Tudo o que a tua mão possa fazer, faze-o com todas as tuas faculdades, porque não região dos mortos para onde vais, não há nem trabalho, nem ciência, nem inteligência, nem sabedoria”. – Eclesiastes 9:10, Missionários Capuchinhos. O que está explicado neste capítulo reforça um entendimento que eu propus no primeiro artigo criticado pelo autor do MB, para entendermos a mensagem do capítulo 9 de Eclesiates. Reproduzo a seguir o que eu disse lá: Se essas passagens de Eclesiastes fossem entendidas de maneira absolutamente literal, então o próprio ser humano não teria qualquer esperança, pois o texto afirma que aqueles que morrem ‘não têm mais recompensa’ para o futuro no que diz respeito à vida terrena. No entanto, outras partes da Bíblia afirmam que há sim esperança para os mortos: “[Deus] dará a cada um segundo as suas obras: vida eterna aos que estão buscando glória, e honra e incorruptibilidade, pela perseverança na obra que é boa [enquanto se está vivo neste mundo]; no entanto, para os que são briguentos e que desobedecem à verdade, mas que obedecem à injustiça, haverá furor e ira”. – Romanos 2:6-8, colchetes acrescentados. 232 “Vem a hora em que todos os que estão nos túmulos memoriais ouvirão a sua voz e sairão, os que fizeram boas coisas, para uma ressurreição de vida, os que praticaram coisas ruins, para uma ressurreição de julgamento”. – João 5: 28, 29. “E muitos dos adormecidos no solo de pó acordarão, estes para a vida de duração indefinida e aqueles para vitupérios e para abominação de duração indefinida”. – Daniel 12:2. Conforme se vê, a recompensa dos mortos está vinculada às suas ações enquanto estavam vivos quais seres humanos. Sendo assim, o trecho de Eclesiastes onde se diz que não há recompensa para os mortos deve ser entendido de outra maneira, a fim de dirimir essa aparente contradição interna da Bíblia. Perceba que ele mesmo oferece recurso para melhor compreendê-lo, pois tudo o que é dito no capítulo 9 de Eclesiastes se refere às atividades humanas. E quando uma pessoa morre, tudo o que ela fazia e gostava fica para trás. A sua inteira rotina de ser humano passa a ser apenas uma lembrança e não será readquirida. Ou seja, tudo o que fazia debaixo do sol desapareceu para sempre. Portanto, é sob o ponto de vista dos habitantes da Terra que Eclesiastes deve ser compreendido, conforme está sugerido nos colchetes abaixo: “Com efeito, os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem mais nada [no que diz respeito à vida e expectativas do ser humano]; para eles não há mais recompensa [neste mundo, algo que os humanos sempre buscam por seus esforços], porque sua lembrança está esquecida [pois forçosamente chega o dia quando quem morreu não é mais lembrado por ninguém aqui na Terra]. Amor, ódio, ciúme [relacionados à vida humana que tiveram], tudo já pereceu; não terão mais parte alguma, para o futuro, no que se faz debaixo do sol [ou seja, no planeta Terra]”. – Eclesiastes 9:5, 6, Centro Bíblico Católico. Da mesmíssima maneira pode ser entendida a passagem mais adiante de Eclesiastes: “Tudo o que a tua mão possa fazer, faze-o com todas as tuas faculdades, porque não região dos mortos para onde vais, não há nem trabalho [humano], nem ciência [humana], nem inteligência [humana], nem sabedoria [humana]”. – Eclesiastes 9:10, Missionários Capuchinhos, colchetes acrescentados. No meu primeiro artigo criticado pelo autor do MB, que está no apêndice A8, eu sugeri a interpretação acima. Porém meu crítico “bereano” se opôs fortemente à inclusão desses colchetes azuis. Aparentemente ele não prestou atenção na parte que eu disse que eram apenas sugestões, comentários intercalares. Mas é muito provável que se eu tivesse demonstrado naquele artigo a quantidade colossal de evidências que existem contra o aniquilacionismo, tal como foi feito aqui, talvez ele tivesse ponderado melhor as opiniões que escreveu sobre meu texto. 233 Reflexos da concepção hebraica no Novo Testamento Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem Ao considerarmos a concepção hebraica sobre a existência no Seol depois da morte, é que passamos a entender melhor afirmações a exemplo da acima transcrita, dita por Jesus e que está registrada em Lucas 20:38. Ela é apenas um reflexo de que o entendimento dos hebreus jamais foi aniquilacionista. Para eles a morte não significava a extinção da pessoa, mas apenas um rebaixamento, que poderia ser temporário para os justos. – Salmos 16:10; 71:20. Conforme visto nos capítulos 7 e 14, e mais atrás neste capítulo, o Seol é um lugar tanto caótico quanto de densas trevas, onde seus habitantes são chamados de “sombras”, porque são seres que vivem na escuridão, lânguidos e sonolentos. Ou seja, é um lugar indesejado, cheio de provações. Por isso, não é de admirar que já no Antigo Testamento haja indícios de que os justos poderiam ser poupados desse cenário tenebroso e assustador. – Salmos 86:13; Provérbios 15:24 À medida que a revelação divina avançou, ficou mais clara a verdadeira amplitude desse livramento concedido aos justos. Já vimos no capítulo 11 que a comparação da morte com o sono, que às vezes é vista na Bíblia, não significa o aniquilamento ou inexistência da pessoa. Pelo contrário, é também uma evidência que quem morre não deixa de existir, mas passa para um estado diferente de existência, relacionada ao Seol, o lugar profundo e escuro. Com tudo isso em mente compreende-se muito melhor o que Paulo certa vez disse sobre a morte, aos irmãos da cidade de Tessalônica: “Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem [ou seja, que morreram], para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará, mediante Jesus e com ele, aqueles que nele dormiram. . . Vocês mesmos sabem perfeitamente que o dia do Senhor virá como ladrão à noite. . . Mas vocês, irmãos, não estão nas trevas, para que esse dia os surpreenda como ladrão. Vocês todos são filhos da luz, filhos do dia. Não somos da noite nem das trevas. Portanto, não durmamos como os demais, mas estejamos atentos e sejamos sóbrios; pois os que dormem, dormem de noite, e os que se embriagam, embriagam-se de noite. Nós, porém, que somos do dia, sejamos sóbrios, vestindo a couraça da fé e do amor e o capacete da esperança da salvação. Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para recebermos a salvação por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele morreu por nós para que, quer estejamos acordados quer dormindo, vivamos unidos a ele. Por isso, exortem-se e edifiquem-se uns aos outros, como de fato vocês estão fazendo”. – 1 Tesalonincenses 4:13, 14, 5:1-11, Nova Versão Internacional. Como se percebe claramente, o sono da morte significa para o cristão a continuação da vida. Na verdade, uma vida ainda melhor e que pouco se assemelha à existência no Seol / Hades, conforme aludido pelo apóstolo Paulo: “Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9. 234 “Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém. Então, ao passo que os demais dormem nas trevas após a morte, numa existência sombria semelhante a ébrios, os que “dormem” em Cristo estão num ambiente de luz e contentamento. De modo que os cristãos vivem unidos com o Senhor, estando eles acordados ou “dormindo” (alusão à morte física). É isto o que o apóstolo explicou. Sendo assim, o entendimento correto dos textos abaixo nada tem a ver com aquilo que os aniquilacionistas imaginam: “Depois disso [Jesus] apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais permanece até o presente, mas alguns já adormeceram [na morte]”. – 1Coríntios 15:6 . “Desde o dia em que os nossos antepassados adormeceram [na morte], todas as coisas estão continuando exatamente como desde o princípio da criação”. – 2 Pedro 3:4. E dentre os antepassados aludidos por Pedro, estão os patriarcas mencionados por Jesus e Paulo, em sua carta aos hebreus. Note a linguagem que o próprio Deus utilizou ao se referir a eles: “Disse-me, porém, o SENHOR: Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, meu coração não se inclinaria para este povo; lança-os de diante de mim, e saiam. – Jeremias 15:1, Almeida revista e atualizada. “A palavra de Iahweh me foi dirigida nestes termos: Filho do homem, se uma terra pecar contra mim, agindo com infidelidade, e eu estender a minha mão contra ela para destruir a sua reserva de pão, trazendo sobre ela a fome e exterminando dela homens e animais, ainda que estejam ali estes três homens, a saber, Noé, Danel* e Jó, eles, em virtude de sua justiça, salvarão [apenas] as suas almas”. – Ezequiel 14:12-14, Bíblia de Jerusalém, colchetes acrescentados. * Embora as Bíblias costumem trazer “Daniel”, ao invés de “Danel”, essa pessoa não é o profeta Daniel. É um personagem da literatura cananeia, conforme explica a Bíblia de Jerusalém: “Danel, desconhecido da Bíblia (exceto Ez 28,3), mas cuja sabedoria e justiça eram celebradas pelos poemas de Ras-Shamra”. O que confirma aquilo dito certa vez por Pedro: “Deus não é parcial, mas, em cada nação, o homem que o teme e que faz a justiça lhe é aceitável”. – Atos 10:34, 35. Note que homens de épocas diferentes são retratados juntos na situação mencionada. Deus não se refere a eles como se não existissem, mas sim como se estivessem vivos e em algum lugar. E, de fato, estão! Uma comparação com versículos que apresentam uma linguagem semelhante demonstra isso: “Também eu poderia muito bem falar como vós fazeis. Se tão-somente as vossas almas estivessem onde a minha alma está, seria eu brilhante em palavras contra vós, e menearia a minha cabeça contra vós?”. - Jó 16:4. 235 “Se Cristo estivesse na terra, nem sequer seria sacerdote, por estar esse posto ocupado por aqueles que oferecem os dons de conformidade com a lei”. – Hebreus 8:4, TEB. “Se tão-somente meu senhor estivesse diante do profeta que está em Samaria! Neste caso o restabeleceria de sua lepra”. – 2 Reis 5:3. De modo que a dimensão das palavras de Jesus sobre o Pai celestial não ser Deus de mortos, mas de vivos, transcende em muito aquilo imaginado pelos materialistas. Existe uma marca em alto relevo na Bíblia e na história do povo de Deus que apresenta a crença de que a morte não significa a inexistência. A verdade acima apresentada existe de uma maneira completamente desvinculada da linguagem platônica e sem utilizar expressões do tipo “imortalidade da alma”. De uma maneira mais discreta a Bíblia “disse sem dizer” o que os aniquilacionistas polemizam sem necessidade. E, geralmente, são estes os que se acham detentores de um conhecimento mais puro, profundo e refinado da Palavra de Deus. Quão longe isso está da realidade! Note mais um exemplo referente à crença dos antigos hebreus, num momento de transição entre o Velho e o Novo Testamento: “Tendo, pois, armado cada um deles, menos com a segurança dos escudos e das lanças do que com o conforto das boas palavras, referiu-lhes ainda um sonho digno de fé, uma espécie de visão, que os alegrou a todos. Ora, este foi o espetáculo que lhe coube apreciar: Onias, que tinha sido sumo sacerdote, homem honesto e bom, modesto no trato e de caráter manso, expressando-se convenientemente no falar, e desde a infância exercitando em todas as práticas da virtude, estava com as mãos estendidas, intercedendo por toda a comunidade dos judeus. Apareceu a seguir, da mesma forma, um homem notável pelos cabelos brancos e pela dignidade, sendo maravilhosa e majestosíssima a superioridade que o circundava. Tomando então a palavra, disse Onias: ‘Este é o amigo dos seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo e por toda a cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus.’ Estendendo, por sua vez, a mão direita, Jeremias entregou a Judas uma espada de ouro, pronunciando estas palavras enquanto a entregava: ‘Recebe esta espada santa, presente de Deus, por meio da qual esmagarás teus adversários!’ ”. – 2 Macabeus 15:11-16, Bíblia de Jerusalém. Onias e Jeremias já tinham falecido quando essa intercessão deles pelo povo judeu foi descrita. O sonho que Judas teve e a recepção das pessoas quando ele o relatou demonstram o de sempre: o antigo povo de Deus não achava que a morte significa a inexistência de quem morre, especialmente aqueles que morreram em fé. Por isso o apóstolo Paulo disse sobre estes: “Mas agora procuram alcançar um lugar melhor, isto é, um pertencente ao céu. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado seu Deus, porque aprontou para eles uma cidade”. – Hebreus 11:16. 236 E a tão falada influência grega? Conforme foi considerado no capítulo 14, os escritos sagrados dos povos semíticos, incluindo os hebreus, apresentavam a pós-morte como sendo uma existência rebaixada, comparável a um mundo de “sombras”. Isso demonstra que o Antigo Testamento não possui uma temática aniquilacionista. E o que foi visto até agora neste capítulo comprova tal entendimento. De modo que está bastante claro que a Bíblia Hebraica não necessitou do pensamento grego para apresentar esse cenário de existência continuada depois da morte. Então seria correto afirmar que o Helenismo não exerceu nenhuma influência sobre o antigo povo de Deus? Na verdade, não. É praticamente impossível povos diferentes interagirem entre si durante séculos e não se influenciarem mutuamente. Entretanto, a contribuição grega no conceito judaico-cristão sobre a morte se limitou mais à forma do que à essência. Isto fica bem evidente ao se comparar a linguagem do Antigo Testamento com escritos judaicos do século I. Note a seguir a maneira que um mesmo acontecimento bíblico foi descrito em diferentes épocas: SÉCULO 10 A.C. “[Saul] disse-lhe então: ‘Que aparência tem ele?’ Ela [a necromante] respondeu: ‘É um velho que vem subindo. Está envolto num manto. Saul reconheceu então que era Samuel. Inclinou-se com a face por terra e se prostrou. Samuel disse a Saul: ‘Por que me perturbaste, fazendo-me subir?”. – 1 Samuel 28:14, 15, TEB, colchetes acrescentados. SÉCULO 3 A.C. “Então Saul morreu por causa de suas transgressões, as quais ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, porque ele não a manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, Septuaginta Grega. SÉCULO 2 A.C. “Amado por seu Senhor, Samuel, profeta do Senhor, estabeleceu a realeza, e ungiu governantes sobre o seu povo. . . Mesmo depois de ter adormecido, profetizou ainda e anunciou ao rei o seu fim: do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46: 13, 20, TEB. FINAL DO SÉCULO 1 D.C. “Tão logo ele [Saul] a convenceu através deste juramento que não havia motivo para temor, ele pediu que ela [a necromante] fizesse subir a alma de Samuel. Ela, mesmo sem saber quem Samuel era, o convocou do Hades”. – Antiguidades Judaicas 6:327, de Flávio Josefo, colchetes acrescentados. 237 A principal diferença entre os relatos supracitados está na expressão “a alma de Samuel” utilizada por Josefo, que não consta na Bíblia, onde não se diz que foi a alma de Samuel que a necromante viu, mas sim ele próprio. O mesmo ocorre no relato da transfiguração, sobre o diálogo de Moisés e Elias com Jesus. Não é dito que foram as almas deles que apareceram, mas eles mesmos. – Mateus 17:3; Lucas. 9:30, 31. A influência grega foi o provável motivo do modo de Flávio Josefo se expressar, porém ela não foi decisiva na crença que os antigos judeus tinham de que Samuel voltara do mundo dos mortos para repreender Saul, pois os hebreus não acreditavam que a morte significa a inexistência completa da pessoa. Mesmo não sendo algo natural e corriqueiro, certamente achavam que tal manifestação sobrenatural era potencialmente possível, não obstante a proibição da Lei Mosaica. A prática recorrente da necromancia na nação de Israel atesta isso. Outra possível influência do Helenismo foi na motivação para escrever e saber mais a respeito do mundo dos mortos. É notório o comedimento dos primeiros hebreus ao falar sobre o Seol. Embora o Antigo Testamento informasse que é um lugar nas profundezas da Terra onde moram as almas dos mortos, não se falava muito sobre tal domínio. Mas à medida que o tempo foi avançando isso começou a mudar. Quando chegou a época de Jesus havia uma profusão de escritos religiosos descrevendo detalhes sobre a habitação dos que partiram. Um desses detalhamentos é a ideia de que o Seol/Hades tem duas divisões principais, uma de provações e outra de contentamento chamada “Seio de Abraão”. Quando Jesus incluiu tal cenário na sua pregação demonstrou que ele é uma realidade e não apenas um mito judaico. De fato, se nos recordarmos que o Velho Testamento já indicava que o Seol é distribuído em regiões de acordo com famílias e nações, e que nem todos os que vão para lá são pessoas do mal, é bastante coerente que Deus não sujeitaria todos os mortos ao mesmo destino de provações. Isso estaria de acordo com Sua Justiça. – Lucas 16:19-31; Salmos 23:1-6. Seguindo a mesma linha de raciocínio, é possível identificar outra influência sobre os antigos hebreus: o Egito. Foi lá onde a nação israelita nasceu, quando Moisés conduziu seu povo, os descendentes de Jacó (Israel), para fora daquela terra onde moravam, em cumprimento da profecia bíblica. Depois desse evento, o que hoje conhecemos pelo nome de Bíblia começou a ser escrita pelas mãos do próprio Moisés. Ele foi o primeiro escritor bíblico. A autoria do livro de Gênesis é atribuída a ele. Sabemos que Moisés foi criado desde bebê pela filha do Faraó, e por isso ele é costumeiramente descrito como tendo sido um príncipe do Egito. Ele assim permaneceu até os 40 anos, quando abandonou a alta posição que ocupava. E depois de um tempo se juntou à sua parentela. Qual seria a possibilidade de Moisés ter vivido por décadas na corte do Egito e não ter sido influenciado de alguma maneira pela religião egípcia? Certamente, bem pequena. Sobre isso o Novo Testamento relata: “Foi recolhido pela filha de Faraó e ela o criou como seu próprio filho. Em conseqüência disso, Moisés foi instruído em toda a sabedoria dos egípcios. De fato, era poderoso nas suas palavras e ações”. – Atos 7:21, 22. 238 Naturalmente, Deus se encarregou de garantir que nada dos conceitos religiosos errôneos dos egípcios migrassem para dentro dos escritos sagrados dos israelitas. No entanto, nada impede que aquilo de correto que houvesse na religião egípcia fosse aproveitado na Lei Mosaica. Alguns estudiosos acham até que parte dos Dez Mandamentos foi baseada nas confissões negativas de pecados descritas no Livro dos Mortos egípcio. O problema desta conclusão é que a Bíblia informa que tais mandamentos foram talhados diretamente pelo dedo de Deus, ou seja, seu poder. Não foi uma iniciativa de Moisés. No entanto, há outro tipo de influência que é mais viável ter acontecido e é a que mais interessa aqui. Tal como aconteceu no período helenístico, uma possível contribuição do Egito se deu na linguagem bíblica. Diferentemente dos gregos, os egípcios não achavam que a existência eterna se daria na forma de espírito imaterial ou incorpóreo. Para eles, os que fossem julgados favoravelmente viveriam em um lugar agradável e bem regado chamado “Campo de Juncos”, onde usufruiriam dos mesmos prazeres da vida física. Sobre esse conceito egípcio, disse o erudito S. D. F. Salmond: “Vemos que esta vida futura era tão substancial para o egípcio que ele sempre pensava ser, de certa forma, uma vida material. A ideia de uma existência pura e desencarnada, ou de uma alma imaterial de acordo com nosso entendimento, era estranha para ele. O homem que morria partia com seu corpo, não se tornava um espírito puro. . . Ao passo que as outras nações distinguiam a Existência continuada do ambiente físico, e abraçaram a ideia de uma personalidade abstrata, os egípcios por sua vez concebiam uma personalidade concreta – uma Existência substancial que continua numa forma material. A alma teria o seu próprio corpo apropriado. Toda sombra da existência do homem estava vinculada à alguma coisa substancial”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade, de S. D. F. Salmond, pp. 54, 55. Embora eles tenham depois desenvolvido uma sistematização sobre a parte espiritual do homem, no início os egípcios não usavam a palavra “alma” para se referir aos mortos, pois não acreditavam que somente uma parte da pessoa herdaria a vida eterna, mas sim a pessoa inteira. Daí a obsessão que tinham em preservar os corpos na mumificação. Eles imaginavam que era possível o espírito do morto utilizar seu corpo físico de alguma maneira, lá no Além. Tal concepção se refletiu nos escritos egípcios, conforme é possível perceber nos exemplos a seguir: “Se esse discurso é aprendido sobre a terra, ou está escrito em cima do caixão, ele (o falecido) pode vir adiante em cima todos os dias que lhe apraz e novamente entrar em sua casa sem impedimento. E não deve ser dado a ele pão e cerveja e carne de carne na tábua de Ra: ele deve receber loteamento nos Campos de Aaru* [os Campos Elíseos da mitologia egípcia], e não deve ser dado a ele trigo e cevada, porque ele estará florescendo como quando estava na terra”. – O Livro Egípcio dos Mortos (1904), de Renouf e Naville, “Invocação a Osiris”, p. 10. * Ou “Campo de Juncos” (Sekhet-Aaru). Note que não é dito que a alma do falecido poderia entrar novamente em sua residência, mas que ele próprio entraria. A mesma linguagem está em todo o texto. 239 “Você foi trazido aqui para a Cidade da Eternidade, sem que tenha nutrido nenhuma raiva contra mim. (Mas) deve ser o caso que esses ferimentos foram causados com o seu conhecimento (então) eis que: embora a casa esteja na posse dos seus filhos, a privação (na casa) surge novamente e novamente. Mas se for feito como algo que você abomina, então que seu pai seja grande na necrópole. Se houver uma reprovação em seu coração, esqueça-a pelo bem de seus filhos. Seja misericordioso, seja misericordioso, (então) todos os deuses do nomo Thinite serão misericordiosos para com você”. – Carta aos Mortos (Berlin Bowl). Novamente não se diz que a alma do morto foi levada para a Cidade da Eternidade, mas sim que a própria pessoa a quem a carta é dirigida é que tinha ido para lá. “Como você está? Será que a Grande (a deusa do Ocidente) cuida de você de acordo com o seu desejo? Eis que eu sou a pessoa que você amava na terra. Esforce-se em meu nome e fale por meu nome. Eu não distorci qualquer pronunciamento diante de você, (mas) eu preservei o seu nome na terra. Mantenha a doença longe de meus membros. Oh, seja você glorioso (Ax) para mim (e) diante de mim para que eu possa ver no meu sonho como você está exercendo-se em meu nome”. – Carta aos Mortos (de Mer-irtief para Nebet-itief). Outra vez o mesmo padrão de linguagem. O remetente da carta pergunta se a pessoa que morreu está bem, se é bem cuidada pela deusa do mundo dos mortos. Não há referência à alma da pessoa que faleceu. “Eis que eu estou na tua presença, ó Deus de Amentet (o Ocidente). Não há pecado em meu corpo. Eu não falei o que não é verdadeiro conhecimento de causa, nem fiz qualquer coisa com um coração falso. Que tu me concedas ser semelhante a esses favorecidos que estão contigo, e que eu possa ser um Osíris grandemente favorecido do bonito deus, e amado do Senhor das Duas Terras, eu que sou um verdadeiro escriba real que te ama, [eu,] Ani, cuja palavra é verdade diante do deus Osíris”. – Livro dos Mortos, papiro com o discurso de Ani.* * O Livro dos Mortos é uma coletânea de textos mais ou menos padronizada, escrita em papiro, que era colocada junto ao defunto para guiá-lo na fase de provações no mundo dos mortos. Não era qualquer egípcio que podia pagar por esse “benefício”, pois o preço que cobravam por um exemplar era elevado, equivalente ao salário de seis meses de um escriba. Dentre as muitas versões desse texto que já foram descobertas, a mais conhecida e bem preservada é o papiro do escriba Ani. O fato do Antigo Testamento não usar a expressão “alma de” no relato sobre o aparecimento do falecido Samuel pode ser apenas reflexo da maneira egípcia de encarar e descrever a realidade dos que partiram, em que os justos são preservados por inteiro e não apenas suas almas. Conforme já mencionado, uma linguagem semelhante é vista no relato da transfiguração, quando Jesus conversou com os falecidos Moisés e Elias.* O mesmo ocorre na parábola do mendigo Lázaro, onde é dito que ele foi para o Seio de Abraão, e não a alma dele. – Lucas 9:30; 16:22-26. * Alguns entendem que Elias não experimentou a morte porque a Bíblia informa que ele foi arrebatado para o céu numa “carruagem de fogo”. No entanto, há outra corrente que pensa que o 240 “céu” a que o texto se refere é aquele onde os pássaros voam, e que Elias foi apenas transportado de um lugar para outro. Este entendimento encontra reforço num texto de Crônicas que informa sobre uma carta que o rei Jeorão, de Judá, recebeu de Elias, aparentemente alguns anos depois do episódio de sua viagem aérea. De modo que aqui optei por este segundo entendimento e considerei que Elias realmente morreu. O que me parece estar mais de acordo com a Bíblia, pois ela informou tempos depois que nenhum homem jamais viu a Deus e que ninguém havia subido ao céu, exceto o Filho do Homem, Jesus, que descera de lá. – 2 Reis 2:1-13; 2 Crônicas 21:12-15; João 1:18; 3:13; Atos 2:34. Os três textos em negrito a seguir, atribuídos a Moisés, apresentam o mesmo linguajar presente nos papiros egípcios supracitados: “A nuvem certamente acaba e vai embora; assim não subirá aquele que desce ao Seol”. – Jó 7:9. Note que não se diz que é a alma que desce ao Seol, mas sim a própria pessoa. “Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão”. – Jó 10:20-22, NVI. Veja que Jó disse que ele mesmo iria para o mundo dos mortos, e não a sua alma. O mesmo expressou o patriarca Jacó, quando achou que tinha perdido seu filho José para a morte: “Quero descer de luto ao Xeol, para junto do meu filho”. – Gênesis 37:35, Mensagem de Deus. E tal estilo de escrita* está presente em passagens bíblicas de outros autores, ao se referir aos que vão para o Seol ou já estão lá, a exemplo dos textos abaixo: “Agora voltarás para dar-me a vida, e me farás subir da terra profunda”. – Salmo 71:20, Edição Pastoral. “E terás de fazer os seus cabelos grisalhos descer com sangue ao Seol”. – 1 Reis 2:9. “No meio dos meus dias vou descer aos portões do Seol. Terei de ser privado do resto dos meus anos”. – Isaías 38:10. * Conforme visto na Parte 1, o autor do MB se valeu de uma consequência dessa particularidade no intuito de provar que corpos físicos também vão para o Seol. Ele não se deu conta que após a morte o que sobra é um corpo morto, e não a própria pessoa. De modo que quando alguém dizia que desceria com seus cabelos brancos ao Seol é apenas uma referência à ideia de que seu próprio ser iria para lá. Não é uma alusão ao corpo sem vida que seria enterrado. Um cadáver é apenas um volume inerte de matéria e não uma pessoa. Portanto, a educação egípcia que Moisés recebeu pode ter contribuído para esse modelo de escrita, que ignora o uso do termo “alma”. Obviamente, esta não é uma linguagem única e exclusiva da Bíblia, pois em outras partes ela não é utilizada, a exemplo das quatro a seguir: 241 “E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18. “Porque não deixarás a minha alma no Seol. Não permitirás que aquele que te é leal veja a cova”. – Salmos 16:10. “Vos aproximastes da montanha de Sião, da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celestial, das miríades de anjos, da assembléia festiva dos primeiros inscritos no livro dos céus, e de Deus, juiz universal, e das almas dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:22, 23, Ave-Maria. “Quando abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas dos que haviam sido assassinados por causa da palavra de Deus e do testemunho que haviam dado”. – Apocalipse 6:9, Bíblia do Peregrino. É claro que se sairmos dos limites da Bíblia perceberemos que a influência grega sobre os judeus foi mais abrangente, e não afetou somente a maneira deles se expressarem. Sobre o que Josefo disse em referência aos essênios, na obra “Guerras Judaicas”, Stewart Salmond observou: “Opiniões similares são descritas por Josefo com respeito aos essênios. Ele relata que eles não só ensinaram isso, que a alma é imortal, em contraste com o corpo perecível, mas também que as almas existem originalmente no sutil [ar do éter] e que desceram dele. Puxadas por um tipo de anseio natural elas se tornam unidas com os corpos quais prisões; e que quando se livram dos grilhões da carne, elas se alegram e bramem acima como se tivessem sido libertas de um longo cárcere”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade, p. 183, colchetes acrescentados. A descrição acima tem feições claramente gregas, que não foram recepcionadas pela Bíblia Sagrada. No capítulo 21 há uma consideração adicional sobre esse conceito grego de que a alma tem aversão ao corpo onde vive. Sendo assim, já que Josefo era judeu será que ele também não teria sido influenciado conceitualmente pela filosofia grega, ao dizer que o homem lá no Éden recebeu uma alma, ao invés de ter se tornado uma alma? Até certo ponto poderíamos dizer que sim, porém já vimos que há um contexto bíblico que justificaria isso. Conforme comentado num tópico anterior, a Bíblia intercambia as palavras “alma” e “espírito”, como se ambas tivessem o mesmo sentido. Devido a isso, propus que quando Gênesis 2:7 diz que Deus formou o homem do pó da terra e implantou nele o “fôlego de vida”, tal expressão pode ser, na verdade, uma referência ao que hoje chamaríamos de “alma” ou “espírito”. O que justificaria então a linguagem de Josefo: “Deus tomou pó da terra, e formou o homem, e inseriu nele um espírito e uma alma. Este homem era chamado Adão”. – Antiguidades Judaicas 1:34. 242 É interessante notar que a conceituação que os gregos davam de “alma” lembra exatamente o que está descrito em Gênesis, conforme explicado no texto a seguir: “A ψυχή [alma] é considerada como um sopro de vida.* Por ter esta conotação, a ψυχή transmite a ideia de fôlego, respiração, que o homem exala pela boca ou pelas narinas e deixa de exalar quando morre (caso muito parecido ocorre com o homem desmaiado, embora ainda não esteja morto, Ilíada, 467). Ainda por esta conotação, a ψυχή assemelha-se a uma sombra (σκιά) do homem morto, dado que tanto ψυχή quanto σκιά não tem forma, parecem uma fumaça, como fantasmas (φάντασμαι). Por assemelhar-se a uma sombra, a ψυχή pode ainda transmitir a ideia de imagem (εἴδωλον; εἰκών). Com estas características a ψυχή é imaterial e não tem energia, só pode se comunicar com os vivos nos sonhos (que são, por sua própria constituição, semelhantes à ψυχή) ou quando nutridas com sangue (αἷμα) quente”. – A Honra, a Glória e a Morte na Ilíada e na Odisséia (2009), de Antônio Pádua Pacheco, Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, pp. 92, 93. * Nota do autor: “Confira Anatole Bailly, Le grand dictionnaire grec français, Paris, Hachette, 2000, p. 2176 (primeira e segunda colunas). Anteriormente, a opção de tradução foi por alma. No entanto, as duas idéias transmitidas pelas traduções não se excluem. Assim, há os significados seguintes: sopro de vida; alento; alma; vida; ser vivo; pessoa; alma humana; entre outras”. Abaixo um texto grego que exemplifica o que foi acima explicado: “Por conduzi-lo com esforço talvez o gado fique um bom rebanho [para se lidar], mas ainda assim apoiado por cavalos castanhos corredores; mas para que a alma do homem voltasse depois que passou pela porteira de seus dentes, nem um grande esforço nem a velocidade adiantariam”. – Ilíada 9:406-409, de Homero. Nota-se nesse trecho da Ilíada que o último fôlego ou suspiro dado por um ser humano é chamado de “alma”, que sai pela boca por ocasião da morte. Portanto, se Josefo se apropriou um pouco da visão grega sobre o assunto, ele o fez porque viu nela uma similaridade com o que já tinha aprendido em sua formação hebraica. E visto que seus interlocutores eram, em geral, pessoas do mundo grecoromano lançar mão dessa intertextualidade certamente lhe foi útil. 243 (Página em branco) 244 Capítulo 21 MAIS EXEMPLOS DA “TÉCNICA” EM DISTORCER AUTORES PATRÍSTICOS Na revista “A Sentinela” (15/01/82, p. 10), publicada pelas Testemunhas de Jeová, apareceu a seguinte notícia: “ ‘Então, somos todos hereges?” perguntou uma carta recente publicada no jornal Daily Telegraph de Londres. O escritor havia trazido à atenção um ‘enigma teológico’ criado pelas palavras dum antigo clérigo cristão, Justino, o Mártir: ‘Se vos tiverdes associado com alguns que se chamam cristãos . . . que dizem que suas almas, quando morrem, são levadas para o céu, NÃO IMAGINEIS QUE ELES SEJAM CRISTÃOS.’ ” Citando um teólogo chamado John Dunnett, do Newbold College, a revista prossegue: “De modo que não apenas Justino, o Mártir, e Irineu, mas também Inácio Policarpo, Lactancio e outros dos primitivos Padres não podiam sustentar que as almas cristãs fossem levadas para o céu por ocasião da morte”. Perceba que Dunnett não está afirmando que a alma desaparece por ocasião da morte, mas apenas expressando a opinião de que os antigos cristãos não acreditavam que ela vai imediatamente para o céu quando a pessoa morre. O que significa, nas entrelinhas, que esse teólogo afirmou que existe uma alma que sobrevive à morte do corpo. Provavelmente a opinião dele é a mesma expressa por muitos cristãos, ou seja, de que a alma desce para o Hades depois da morte. Em seguida, o escritor das Testemunhas de Jeová pergunta: “Então, como foi que este ensino não-bíblico se introduziu na Igreja?”. Novamente, a matéria se apropria das palavras do teólogo mencionado e responde: “Foi sob a influência da filosofia platônica . . . que o conceito da imortalidade da alma veio na maior parte permear a Igreja Cristã e tornar aceitável a ideia de que as almas vão para o céu por ocasião da morte; mas esta continua a ser uma crença não bíblica”. Por fim, a revista conclui: “Portanto, pode-se dizer que a maioria dos chamados cristãos, hoje, são ‘hereges’.”. Além do velho recurso de chamar a atenção à filosofia platônica, que supostamente teria influenciado a crença dos primeiros cristãos sobre a alma, a revista também citou aquela comparação que a Bíblia faz da morte com o sono. Tais argumentos já estão comentados em capítulos precedentes. O foco aqui é outro. Visto que a citação está truncada e sem as referências que permitiriam uma eventual consulta, não há como saber ao certo o contexto das palavras de John Dunnett. Mas visto que os escritores das Testemunhas de Jeová são muito bons em citar os outros fora de contexto*, é bem possível que Dunnett não concordaria com a maneira que foi citado. * Por exemplo, veja no link a seguir o que disseram alguns eruditos que foram citados pela Torre de Vigia em determinado artigo: www.adelmomedeiros/respostasdoseruditos587.htm A propósito, 245 em certa publicação, o autor do MB se utilizou de informações deste meu artigo indicado no link sem dar crédito à fonte, que é o meu website: http://www.mentesbereanas.org/607ou587_parte3.html. Para disfarçar, ele não usou a tradução que fiz dos e-mails que recebi de certos especialistas para os quais escrevi. Ele fez sua própria tradução dos e-mails originais que eu também disponibilizei (www.adelmomedeiros/respostasdoseruditos5872.htm). Não acho que esse seja um procedimento adequado. As referências bibliográficas sempre são bem-vindas para reforçar a seriedade de uma obra. Por exemplo, recentemente recebi um e-mail de um escritor dos Estados Unidos pedindo para reproduzir em um livro dele a mesma comunicação que recebi dos mencionados eruditos. Naturalmente, o autor americano disse que faria a devida referência à fonte. Imagino que o autor do MB não faz o mesmo porque não quer que seus leitores vejam o que já escrevi sobre o aniquilacionismo, evitando assim expor as inconsistências do que ele já escreveu sobre o assunto. De qualquer modo, o ponto mais importante é que Justino, o Mártir, foi citado de uma maneira que parece corroborar a opinião aniquilacionista. Sim, aquele mesmo Justino sobre o qual falamos no capítulo 16, que mencionou o caso de Saul e a necromante para mostrar que a alma de quem morre permanece viva. Leia novamente: “Quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [que proteja nossas almas, conforme o Salmo 7:2].... E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou.... Então Deus também nos ensina através do Seu Filho, por causa destas coisas que parece que eram feitas, a sempre nos esforçar sinceramente, e na morte orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes....”. – Justino, o Mártir, em “Diálogo com Trifão”, cap. 106, colchetes acrescentados. Como se viu, a técnica é semelhante àquela utilizada por John Roller, o adventista citado no capítulo 9. Lançar mão de um conceito expresso por um cristão antigo e misturá-lo com outra ideia que não faz parte daquilo que motivou o comentário dele. No caso, (1) que a pessoa não vai diretamente para o céu quando morre, e (2) que ela fica “dormindo” depois da morte (conforme a explicação aniquilacionista). Mas isto não foi mencionado por Justino, nem tampouco que a alma do cristão deixa de existir depois da morte. Como se vê acima, nem de longe Justino acreditava na inexistência de quem morreu. É claro que sempre existe a possibilidade dessa misturada toda acontecer devido a uma pesquisa deficiente e incompleta. Se este foi o caso de quem escreveu a referida matéria da “Sentinela”* a desonestidade dá lugar ao descuido, o que também compromete a seriedade do que foi publicado. O mesmo se aplica aos adventistas que costumam cometer o mesmo tipo de erro.** * Não foi a única vez que as Testemunhas de Jeová citaram Justino em apoio ao que elas consideram “cristianismo verdadeiro”. Elas escreveram em outro artigo: “O próprio Justino tinha certo conhecimento de uma ressurreição a ocorrer no Milênio. E quão fortalecedora da fé é a verdadeira esperança bíblica da ressurreição!.... Portanto, Justino procurou a verdade e rejeitou a filosofia grega”. . . (risos) – A Sentinela, 15/03/92, pp. 30, 31. ** Como é o caso de John Roller, o reforço adventista do autor do MB. Parece até brincadeira, mas numa tabela comparativa no final de sua tese, Roller classifica Justino como sendo aniquilacionista! – www.mentesbereanas.org/imortalidadenaigrejaprimitiva.html#respondendoaquestao. 246 Para demonstrar com solidez o que há na literatura patrística é necessário um estudo abrangente que não tenha por objetivo somente buscar evidências que visem apoiar opiniões particulares. Se os aniquilacionistas já fazem isto com o livro que dizem ser seu “único” parâmetro de fé, a Bíblia, imagine com os escritos com os quais eles não têm a menor intimidade. Portanto, ao contrário do que a revista “A Sentinela” induz seu leitor a pensar, Justino acreditava na imortalidade da alma, da mesma maneira que todos os antigos cristãos, indo ela ou não imediatamente para o céu após a morte do corpo. – Mateus 10:28; Salmos 16:10, 71:20. Os Pais da Igreja Contra a Imortalidade da Alma? Um estudante de teologia chamado Lucas Banzoli publicou um livro intitulado “A Lenda da Imortalidade da Alma”, onde escreve a favor do aniquilacionismo. Ele diz ser evangélico e que nunca recebeu influência religiosa de Testemunhas de Jeová e Adventistas, embora tenha estudado quatro anos em um colégio adventista e ouvido “várias pregações deles”. Também é um daqueles que procuram nos escritos patrísticos provas de que os antigos cristãos eram aniquilacionistas e que a crença na imortalidade da alma teria se infiltrado na Igreja devido à conversão de homens proeminentes que vieram da escola filosófica de Platão. Banzoli não somente diz que há na literatura patrística evidências que sustentam o que ele pensa, mas também que elas são “esmagadoras”. No livro supramencionado ele já havia tratado desse assunto. Mas, sob a justificativa de que era necessária uma investigação mais completa, ele acabou de lançar outro livro chamado “Os Pais da Igreja contra a Imortalidade da Alma”. Nesse novo livro ele diz até que mudou certos pontos de vista depois da nova pesquisa que fez, que fora motivada por um debate que manteve com um apologista católico. Aparentemente, por ter encontrado “detalhes” que antes não tinha percebido ele agora lança mão de teorias para explicar a razão de haver entre os Pais da Igreja referências à crença em uma alma que habita no corpo do homem e que sobrevive à morte dele. Por exemplo, sobre Justino, o Mártir, Banzoli diz o seguinte: “Em outras palavras, Justino era um ferrenho defensor da doutrina da imortalidade da alma antes de se converter, e é essa a razão pela qual ainda vemos alguns vestígios desta doutrina em seu primeiro trabalho como cristão (a 1ª Apologia), quando ele ainda não tinha toda a maturidade e conhecimento de todas as doutrinas cristãs, mas ainda conservava alguns dos seus conceitos platônicos que tinha antes. . . “A 2ª Apologia e o Diálogo com Trifão, em especial, estão cheios de citações sobre a dissolução da alma entre a morte e a ressurreição, sobre a vida eterna ser apenas após a ressurreição e sobre o aniquilacionismo final dos ímpios, e é com estas obras que trabalharemos aqui”. Outra vez Justino... É fácil testar essa teoria e ver se ela tem fundamento. Banzoli sustenta que a terceira obra mencionada, Diálogo com Trifão, é a que seria mais 247 representativa do pensamento de Justino, pois foi produzida quando ele já tinha alcançado a plena maturidade cristã. Sendo assim, aquela opinião de Justino sobre o aparecimento de Samuel para a necromante foi expressa já na sua fase de melhor entendimento da Palavra de Deus. Considere-a novamente: “Quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [que proteja nossas almas, conforme o Salmo 7:2], aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou. E parece também que todas as almas de semelhantes homens justos e profetas estão [potencialmente] sujeitas ao domínio de tais poderes, conforme pode ser inferido de todos os fatos expostos no caso daquela bruxa. Então Deus também nos ensina através do Seu Filho, por causa destas coisas que parece que eram feitas, a sempre nos esforçar sinceramente, e na morte orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes, pois quando Cristo entregou Seu espírito na cruz Ele disse: ‘Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito’.”. – Diálogo com Trifão, capítulo 105, colchetes acrescentados. Como se nota, o que Justino disse é muito mais que apenas “vestígios” da crença de que a alma permanece viva depois da morte do corpo. Ele acreditava piamente nisso e em nenhum momento suas obras revelam que ele mudou de opinião. O que Banzoli pensou que viu nos livros de Justino que ele escolheu para “trabalhar” é, como sempre, resultado da mistura de conceitos que são independentes entre si, porém relacionados. Então, temos aqui mais um exemplo de alguém querendo mudar o que disseram antigos autores cristãos. E Banzoli foi muito mais afoito que as Testemunhas de Jeová ao tentar fazer isso. O resultado é o que foi acima exemplificado, só para começar. Está óbvio que Banzoli não leu a obra inteira de Justino, e talvez tenha se pautado majoritariamente no que outros aniquilacionistas disseram. É tanto que John Roller, o adventista mencionado no capítulo 9, é uma de suas referências. Isso foi um erro fatal. Para quem se propõe a reinterpretar tudo o que já foi escrito sobre a alma na literatura patrística é indispensável uma leitura completa, além de considerar minuciosamente o que os especialistas dizem sobre isso. Naturalmente, seria um trabalho que demandaria anos de estudo. Só assim seria uma pesquisa séria. Se um dia Banzoli cair em si e se convencer que tais obras não servem para o que ele deseja, talvez ele não tenha outra opção senão dizer que elas foram corrompidas pela Igreja e não são confiáveis para determinar o antigo pensamento cristão. Naturalmente, se ele fizer isso, será também outra teoria insustentável, porque se fosse verdadeira a Igreja teria aproveitado para retirar os trechos usados “a favor” do aniquilacionismo, que na realidade são declarações dos Pais da Igreja mal compreendidas pelos que defendem o Materialismo. Por isso, se eu fosse ele, mudaria o preâmbulo que há na página onde o novo livro dele está sendo oferecido, na qual se mencionam as “evidências esmagadoras” nos Pais 248 da Igreja contra a imortalidade da alma. Ele devia ser mais moderado e dizer apenas que encontrou algumas evidências a favor do que defende. Quando os que realmente entendem de Patrística começarem a ler esse livro recém lançado dele o resultado para o Banzoli não será outro senão o vexame... A carta de Matetes a Diogneto “Belíssima carta”, “gema de enorme brilho”, “jóia da literatura cristã primitiva”, “linda apologia”. Estes são alguns dos elogios costumeiramente feitos ao manuscrito conhecido por “carta a Diogneto”, considerado um dos documentos cristãos mais antigos atualmente disponíveis. Não se sabe ao certo quem a escreveu, pois o autor não se identificou. Os especialistas, porém, são quase unânimes em dizer que ela foi escrita no século II por um apologista proeminente que chamou a si mesmo apenas de “discípulo dos apóstolos”. Daí o nome “Matetes”, que significa “discípulo” em grego. Lucas Banzoli escreveu uma “análise crítica” sobre a carta de Matetes e, conforme visto adiante, chegou a uma conclusão bem diferente do que dizem as autoridades em Patrística. Mas, pelo menos no que tange a um ponto da carta, Banzoli se saiu melhor do que John Roller,* pois percebeu o óbvio: que ela apresenta de maneira cristalina a crença em uma alma imortal que vive provisoriamente no corpo físico. * Este caso também é interessante para comparar o enfoque escolhido por dois aniquilacionistas que escolheram posições opostas ao avaliar a mesma obra, porém com o objetivo de sustentar a mesmíssima teoria materialista. Ambos se saíram muito mal em cada extremo escolhido, mas cada um à sua maneira. A seguir a transcrição da crítica que Banzoli apresenta sobre a referida carta. Para visualizar os “métodos” utilizados por ele, considere esta legenda: |||||||||| Frase de efeito com o intuito de impressionar o leitor. |||||||||| Suposição sem real evidência apresentada que a corrobore. |||||||||| Mistura de contextos diferentes que têm pouca ou nenhuma relação entre si. Logo após comentarei os pontos mais relevantes do que Banzoli escreveu. Disse ele: “Outro escritor eclesiástico do final do segundo século citado pelos imortalistas é o autor da Carta a Diogneto, conhecido apenas como “Mathetes” (que significa “discípulo”), que sequer é nome próprio. Mais uma vez, estamos lidando aqui com um escritor desconhecido, que era tão pouco considerado na Igreja que sequer sabemos seu nome, o qual também não exercia aparentemente nenhum cargo eclesiástico, pois também não aparece na lista de bispos de igreja nenhuma. “Eusébio também não o cita nenhuma vez em sua ‘História Eclesiástica’, o que novamente demonstra que este autor tinha bem pouca importância na igreja primitiva. Embora alguns o coloquem descaradamente na lista de “Pais Apostólicos”, os estudiosos sérios afirmam que todas as evidências apontam que a obra não foi escrita senão no final do século II, ou seja, depois do próprio Atenágoras. O que se sabe é que o ‘Diogneto’ (destinatário da carta) foi procurador de Alexandria na virada do 249 século II para o III, o que indica que a carta foi provavelmente escrita em fins do século II ou início do século III. “De qualquer forma, o que podemos ter certeza é que Mathetes não foi um ‘Pai Apostólico’, não chegou a ouvir a doutrina de um apóstolo e nem foi discipulado por um sucessor de um apóstolo, mas é um autor relativamente tardio do qual não sabemos praticamente nada, e pode ter sido mais um daqueles recém-convertidos do platonismo, que tentavam juntar ambas as doutrinas. Pelo menos, sabemos que tanto seu autor quanto seu destinatário eram gregos, o que não é de se surpreender. A “alma imortal” em um autor tão obscuro assim, do qual quase nada se sabe e de quem também não era famoso nem proeminente na Igreja, não é muita surpresa. “Em sua obra há uma citação bastante dualista, que parece ter sido tirada direto de um livro de Platão, e que em absolutamente nada condiz com a Bíblia ou com os autores cristãos primitivos: “ ‘Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a impede de gozar dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos, o mundo os odeia, porque estes se opõem aos prazeres. A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam’. “A quantidade de platonismo presente neste único capítulo supera a de todos os outros cristãos primitivos juntos, até mesmo incluindo Atenágoras! O tanto de asneiras tiradas da filosofia grega é realmente chocante, assustador. Além de dizer que a alma é um elemento invisível que está ‘espalhada por todas as partes do corpo’ (?), ainda há um flagrante absurdo do dualismo platônico entre o corpo e a alma, onde o corpo é ‘mau’, e a alma é ‘boa’. Para Mathetes, ‘a carne combate a alma’ e ‘a odeia’. Este dualismo burlesco jamais foi aceito na Bíblia, onde o contraste nunca era entre corpo e alma, mas sim entre carne e espírito (ou seja, entre nossos desejos naturais e nossos desejos espirituais), e em nada tinha a ver com a filosofia pagã de Platão, na qual Mathetes estava mergulhado. “Mas a coisa piora ainda mais quando Mathetes chama explicitamente o corpo de prisão (!) da alma, conceito este tão flagrantemente pagão, platônico e antibíblico que nem os próprios imortalistas nos dias de hoje admitem isso! O corpo biblicamente não é nenhuma ‘prisão’, mas o santuário do Espírito Santo (1Co.6:19). E para acabar com 250 tudo de uma vez, ele diz que a alma se torna melhor quando é maltratada em comidas e bebidas(!), que é mais um conceito pagão, comprado dos filósofos antigos que pensavam que podemos ‘zoar’ com o corpo o quanto quisermos (inclusive se envolvendo em bebedeiras e tudo mais que faz mal ao corpo), que a única coisa que importa é a ‘preservação da alma’. Paulo deu um hadouken* nessa filosofia decadente quando disse que os cristãos devem preservar incorruptível corpo, alma e espírito (1Ts. 5:23), e não apenas a alma e o espírito. O corpo, para Paulo, tinha a mesma importância da alma – algo muito diferente do dualismo absurdo presente na Carta a Diogneto. * Hadouken é um ataque especial utilizado por determinados personagens de um jogo eletrônico chamado Street Fighter [“lutador das ruas”] (www.significados.com.br/hadouken/). Pelo jeito Banzoli equipara opiniões contrárias a um combate entre inimigos, pois é comum ver em seus textos um linguajar relacionado a ataques físicos de uma briga. Por exemplo, em referência a uma pessoa com quem debateu ele disse: “Depois de tanto apanhar, ele preferiu ir embora”. E sobre uma dissertação de faculdade que escreveu contra certo autor lamentou: “Pelo fato de ser um trabalho acadêmico, eu não pude bater tanto quanto gostaria, nem escrever tanto como gostaria”. Além disso, um método recorrente dele é já nas considerações iniciais denegrir os textos contra os quais escreve, antes mesmo de apresentar qualquer argumento que justifique uma avaliação desfavorável. “A única coisa que podemos concluir é que Mathetes estava muito longe de ser um legítimo ‘cristão ortodoxo’. Ele era descaradamente um filósofo platônico tentando introduzir no Cristianismo todo o dualismo grego sobre corpo e alma que foi severamente rejeitado até então. Seu platonismo era tão evidente e manifesto que nem os imortalistas atuais creem em todas as coisas que ele afirmava sobre a alma. Embora pudesse ser um cristão sincero, era claramente mais um amante da filosofia de Platão, buscando convergir a ‘filosofia cristã’ com a filosofia grega, em uma coisa só. “Ironicamente, em Mathetes encontramos também um verso que parece contradizer a doutrina do tormento eterno, que é quando ele diz que o tormento dos ímpios terá um ‘fim’: “ ‘Condenarás o engano e o erro do mundo, quando realmente conheceres a vida no céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte e temeres a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues’. “Ele não diz que o fogo do inferno atormentará os pecadores ‘para sempre’, mas sim ‘até o fim’. Se tem um fim, presume-se que não é infinito. Eu não me surpreenderia em nada se Mathetes fosse um imortalista típico (como os imortalistas atuais, só que mais ‘platônico’ ainda), mas mesmo assim parece que, conquanto fosse fortemente dualista (o que é absolutamente incontestável), ele não cria na imortalidade inerente ou incondicional da alma (senão ele creria no tormento eterno também). Isso mostra que até mesmo nos primeiros introdutores da heresia da imortalidade da alma não havia um consenso como há nos dias de hoje. Defender o dualismo e o estado intermediário não implicava em crer no ‘tormento eterno’, como ainda hoje há muitas pessoas que creem na sobrevivência da alma mas não no inferno eterno. O desvio foi gradual, mas certamente Mathetes foi responsável por parte disso”. 251 Pelo visto Banzoli não tinha muito o que escrever sobre a carta a Diogneto e recheou sua crítica com todas as inconsistências acima indicadas. São tantas que esse foi o motivo de eu ter optado por apresentar uma legenda de cores. Se tais argumentos triviais forem retirados praticamente as únicas coisas relevantes que sobram do comentário dele é a transcrição de um trecho da carta e a conclusão a que chegou de que Matetes não acreditava que o tormento na Geena será eterno (sobre isto leia a última consideração deste capítulo). Realmente não se sabe muito sobre a origem da carta de Matetes. Além disso, há duas interrupções abruptas* no encadeamento das ideias apresentadas nela. Há quem enxergue nisso evidência de acréscimos posteriores, chamados de “homilia”. Porém o motivo mais provável é que a carta está incompleta, conforme demonstrou Paul Andriessen. Embora haja estudos especializados que tentam suprir tais lacunas, Banzoli teve o cuidado de não mencioná-los, se é que ele os leu, e trouxe para sua “análise” apenas aspectos negativos, reais ou imaginários. * A primeira quebra no texto está depois do capítulo 5, pois o que é apresentado nos dois capítulos seguintes não parece ter relação com o que vinha sendo dito. A outra está depois do capítulo 10. Quem quiser se inteirar mais sobre o assunto, sugiro os links que estão indicados nas referências finais deste livro, cujo conteúdo complementará os meus comentários que estão logo a seguir. 1) A data da carta A maioria das datas atribuídas ao momento da escrita de antigas obras cristãs são aproximadas, inclusive as do Novo Testamento. Elas se baseiam em evidências internas dos textos que às vezes recebem ajuda de fontes externas. No caso da carta a Diogneto há três datas consideradas as mais prováveis, de acordo com a linha de investigação adotada. São elas: 120-140 d.C., 150-160 d.C e 190-200 d.C.* Banzoli mencionou apenas a data mais tardia, e ainda afirmou que aqueles que acham que a carta foi escrita antes ‘não são estudiosos sérios’. Mas isto simplesmente não é verdade. * Datas posteriores chegaram a ser sugeridas, mas não encontraram aceitação. O estilo da carta é característico de escritos cristãos do século II. Além disso, o cenário mencionado nela, de perseguição e martírio dos cristãos, desapareceu a partir do século III com a conversão de Constantino. Esses dois fatores impossibilitam situar a carta numa época posterior ao século II. Conforme demonstra a bibliografia indicada nas referências finais, a data 120 d.C. é bastante favorecida por uma linha de investigação tão séria quanto a preferida por Banzoli. Por esta razão, muitos livros apresentam tal data. E já houve até quem propusesse uma estimativa ainda mais antiga: 60-70 d.C. Nem mesmo esta seria um absurdo considerá-la factível, e os que a defenderam certamente tiveram suas razões. Na verdade, há indícios internos na própria carta a favor de tal possibilidade, como será depois comentado. Um deles é o que disse o autor: “Eu não falo de coisas estranhas para mim, nem atinjo algo inconsistente sem a razão certa; mas tendo sido discípulo dos apóstolos, eu me tornei um mestre dos gentios”. – Carta de Matetes a Diogneto, Capítulo 11. 252 Se dermos um voto de confiança para Matetes e acreditarmos* no que ele disse, as palavras dele são bastante claras em indicar o quão antiga é a carta. * Há críticos que partem do pressuposto que os antigos autores cristãos não foram totalmente honestos, e que até mesmo os copistas contribuíram para isso, inclusive os do Novo Testamento. É tanto que já foi apresentada uma hipótese, hoje completamente rejeitada, que a carta de Matetes teria sido forjada por Estienne, tipógrafo e teólogo francês do século 16. Embora não devamos ser ingênuos ao estudar qualquer assunto, tal visão desfavorável não leva em consideração o que se espera dos cristãos em qualquer época, que é primar sempre pela verdade. Se os primeiros cristãos não tivessem sido honestos no que escreveram, o Cristianismo seria uma fraude. Alguns chegam a esta conclusão, depois que leem o que os céticos dizem, e sabotam sua fé em Deus, pondo em risco o próprio futuro eterno. Felizmente, há muitas evidências a favor do Novo Testamento e existe um fundamento seguro para os que têm fé. Mesmo que a estimativa correta da carta de Matetes fosse 190-200 d.C. continuaria sendo um problema para os aniquilacionistas, pois ainda seria uma data suficientemente antiga para demonstrar que os cristãos primitivos acreditavam que o homem possui uma alma que sobrevive à morte do corpo. Banzoli tenta eliminar esse inconveniente com suposições não comprovadas. 2) A identificação do autor e a tentativa de desqualificá-lo Além de usar expressões tais como “escritor desconhecido”, “pouco considerado na Igreja” e que “não era famoso”, Banzoli afirma que Matetes ‘com certeza não foi um pai apostólico, não ouviu a doutrina de um apóstolo e nem foi discipulado por um sucessor de um apóstolo’. Mas a realidade é que ele tem sido incluído entre os Pais Apostólicos por autoridades no assunto, a exemplo de Philip Schaff, conforme se vê neste link: http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf01.toc.html#P625_107576. Há “certezas” em demasia nessas declarações de Banzoli. Se “Matetes” não assinou sua carta e não se sabe realmente quem ele era, como seria possível saber o nível de “fama” dele na Igreja primitiva? Ao dizer que Matetes foi uma figura irrelevante no Cristianismo primitivo, Banzoli ignora o fato de que estudiosos sérios pensam exatamente o contrário e dizem que Matetes foi um cristão proeminente e hábil apologista, talvez o mais antigo que se tem notícia. Matetes pode muito bem ter sido um daqueles antigos escritores cristãos que são hoje conhecidos. É tanto que quando seu manuscrito foi redescoberto ele estava no meio das obras de Justino, e este foi considerado inicialmente o autor da carta. Mas depois, devido à linguagem diferenciada dela, chegaram à conclusão que foi um erro de catalogação e ela não pertencia a Justino.* E assim começou o mistério. Desde então vários nomes já foram sugeridos: Apolo (o “concorrente” do apóstolo Paulo), Clemente de Roma, Melito de Sardes, Inácio de Antioquia, Irineu etc. * Para comparar, considere o exemplo da carta de Hebreus. Ela não foi assinada e o estilo de escrita difere muito das outras cartas de Paulo. Mesmo assim considera-se que ele foi o autor, mas apenas com base na tradição cristã. É por isso que há críticos que acreditam fortemente que ele realmente não a escreveu, mas apenas recebeu o crédito. Se isto for verdade, o autor talvez tenha aprendido o assunto sobre o qual tratou diretamente do apóstolo Paulo. Então, baseando-se nesse exemplo, pode ser até que Justino tenha sido mesmo o autor da carta a Diogneto. Neste caso, segundo os especialistas, ele precisaria ter se superado em qualidade e estilo. 253 Existem fortes evidências de que Matetes pode ter sido um bispo chamado Quadrato, que aproximadamente no ano 120 havia enviado uma carta-apologia para o arconte de Atenas, Adriano, que depois se tornou imperador. Essa carta de Quadrato foi dada como perdida e o que se sabe sobre ela é apenas um fragmento citado por Eusébio, que se encaixa muito bem em uma das lacunas da carta a Diogneto, pois o estilo e o assunto tratado são semelhantes. Sobre isso, disse adicionalmente a seguinte obra de referência: “Além de nome próprio, ‘Diogneto’ é, também, título honorífico dos príncipes e ficava muito bem aplicado a Adriano por seu caráter, seu estilo de vida, viajor, iniciado nos mistérios de Elêusis, elevado, portanto, à raça dos deuses (cf. Diogneto 10,5-6). O nome ocorria com freqüência em Atenas entre os arcontes: Adriano era ali arconte desde 112 d.C. Não só Quadrato, também Marco Aurélio titula Adriano de Diogneto a quem deveu sua formação (educatus est ia Adriani gremio), diz o biógrafo de M. Aurélio M. A. Capitolino em Vita M. Antonini, IV, 1. ‘A Diogneto (i. e., Adriano) devo a aversão pela vanglória, o não dar fé aos contos dos obreiros de prodígios e os charlatães sobre os encantos, sobre a evocação dos espíritos e outras superstições (...)’, diz M. Aurélio no livro I de seus Pensamentos. A carta/apologia faz freqüentes referências à iniciação mistérica de seu destinatário. Esta começava pela purificação. Na carta/apologia 2,1 se diz: ‘Comecemos. Purificado de todos os preconceitos que se amontoaram em tua mente; despojado do teu hábito enganador, e tornado, pela raiz, homem novo...’. As referências a um destinatário iniciado nos mistérios de Elêusis* se encontram também, nos caps. 4, 6; 5,3; 7,1,2; 8,9-10; 10,7. O ataque ao judaísmo, à circuncisão como mutilação da carne (4,4) pode ser compreendido recordando que Adriano proibiu a circuncisão precisamente por ser uma mutilação do corpo (Iudaei vetabuntur mutilare genitalia, Spartianus, Vita Hadriani, XIV). Portanto, podemos concluir que o destinatário da Carta /Apologia a Diogneto seja mesmo o imperador Adriano”. – Padres Apologistas (2014), Ed. Paulus, pp. 9, 10. * Ritual grego relacionado à agricultura que fazia alusão à vida depois da morte: www.puc- rio.br/pibic/relatorio_resumo2013/resumos_pdf/ccs/HIS/Gabriella%20Alves%20dos%20Santos% 20e%20Santos.pdf Portanto, o conteúdo da carta de “Matetes” se ajusta muitíssimo ao que sabemos sobre Quadrato, pois (1) ele escrevia em estilo clássico, (2) é considerado o mais antigo dos apologistas cristãos, (3) discorria contra o Judaísmo e o paganismo, (3) era conhecido por ser um dos discípulos dos apóstolos e, como já dito, (4) escreveu uma carta apologética para o imperador Adriano, cujo perfil combina com as informações fornecidas por Matetes. Portanto, é muito provável que tal apologia seja a carta a Diogneto e Quadrato o seu autor. Outro nome promissor que poderia ser o autor da carta é o bispo Policarpo, de Esmirna. Além dele ter sido discípulo de um dos apóstolos, sabe-se que uma de suas obras se perdeu no século II. Nos dias de Policarpo também havia um arconte na cidade de Esmirna, e, como visto acima, os arcontes eram tratados por “Diogneto”, título dirigido a pessoas de alta honra e que significa “herdeiro de Zeus”. 254 3) Realidades bíblicas e não filosofia grega O que Banzoli chamou de ‘chocantes e assustadoras asneiras tiradas da filosofia grega’ na verdade são ensinos presentes na Bíblia. Considere a seguir. O COMBATE ENTRE A CARNE E A ALMA Sobre algumas afirmações de Matetes, Lucas Banzoli disse: “Para Mathetes, ‘a carne combate a alma’ e ‘a odeia’. Este dualismo burlesco jamais foi aceito na Bíblia, onde o contraste nunca era entre corpo e alma, mas sim entre carne e espírito (ou seja, entre nossos desejos naturais e nossos desejos espirituais), e em nada tinha a ver com a filosofia pagã de Platão, na qual Mathetes estava mergulhado”. Além das triviais frases de efeito, existem alguns problemas nessas afirmações de Banzoli. O primeiro mais evidente é que, ao contrário do que ele pensa, o combate da carne contra a alma é uma realidade claramente apresentada na Bíblia e não se trata de um “dualismo burlesco”. Sobre tal luta diária do cristão, o apóstolo Pedro disse: “Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11. Obviamente, os desejos carnais pertencem à carne, sendo esta o corpo físico, conforme se infere dos textos a seguir: “Certamente [o Faraó] te pendurará num madeiro; e as aves hão de comer a tua carne de cima de ti”. – Gênesis 40:19. “Os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos”. – Gálatas 5:24, Bíblia de Jerusalém. “Eu quero que vos deis conta de quão grande é a peleja que tenho a favor de vós e dos de Laodicéia, e de todos os que não viram o meu rosto na carne. . . Pois, embora eu esteja ausente na carne, assim mesmo estou convosco no espírito”. – Colossenses 2:1, 5. “Eu, da minha parte, embora ausente em corpo, mas presente em espírito, certamente, como se estivesse presente, já tenho julgado o homem que agiu de tal modo”. – 1 Coríntios 5:3. O apóstolo Paulo em sua carta aos romanos também menciona a mesma luta entre a carne e a alma: “Pois eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não mora nada bom; porque a capacidade de querer está presente em mim, mas a capacidade de produzir o que é excelente não está presente. Pois o bem que quero, não faço, mas o mal que não quero, este é o que pratico. . . Eu realmente me deleito na lei de Deus segundo o homem que sou no íntimo, mas observo em meus membros outra lei guerreando contra 255 a lei da minha mente e levando-me cativo à lei do pecado que está nos meus membros”. – Romanos 7:18, 19, 22, 23. Paulo tinha consciência do homem que ele era no íntimo, ou seja, sua alma*. No entanto, por mais que ele quisesse fazer somente o que é bom, a carne, isto é, o seu corpo, o empurrava para fazer o que é mau. Assim é a luta diária do cristão. Um combate permanente entre o corpo e a alma. * “A minha própria alma se desespera no meu íntimo”. – Salmo 42:6; veja também o 43:5. O contraste bíblico a que Banzoli se referiu entre carne e espírito, sobre o qual concluiu erroneamente que seria o único presente na Bíblia, deve ser o que ela apresenta em textos a exemplo do versículo abaixo: “Pois a carne, em seus desejos, opõe-se ao Espírito e o Espírito à carne; entre eles há antagonismo; por isso não fazeis o que quereis”. – Gálatas 5:17, TEB. O entendimento vigente é que o Espírito mencionado acima não é o espírito que todo homem possui no íntimo, mas sim o Espírito Santo. Então esse versículo está mencionando outra situação, embora relacionada, pois o espírito do cristão deve se deixar guiar pelo Espírito de Deus, rejeitando assim aquilo de errado que a carne o força a fazer. De qualquer maneira, mesmo que seja possível concluir que o “espírito” mencionado em alguns desses textos se refere ao espírito do homem, ainda haveria possibilidade de entender tal “espírito” como sendo a “alma”, pois antigamente estes dois termos às vezes eram usados como sinônimos, e a Bíblia reflete esse costume em alguns textos. Mais adiante há uma consideração sobre isso. AS MORADAS TEMPORÁRIAS DO CRISTÃO Matetes comparou a alma que está no corpo à presença temporária dos cristãos no mundo, chamando-os de residentes forasteiros nas nações: “A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em [um mundo] corruptível, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus”. – Carta a Diogneto, capítulo 6. Pedro também apresentou para os irmãos o mesmo ponto de vista e mencionou a esperança da morada incorruptível nos céus: “Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11. “Segundo a sua grande misericórdia, ele nos deu um novo nascimento para uma esperança viva por intermédio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, e imaculada, e imarcescível. Ela está reservada nos céus para vós”. – 1 Pedro 1:3, 4. 256 Ideia semelhante apresentou o apóstolo Paulo: “Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9. “Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém. Quanto à questão do aprisionamento da alma no corpo, considerado por Banzoli uma comparação ‘flagrantemente pagã, platônica e antibíblica’, é preciso considerar alguns fatores. O mais notório é o contexto imediato da passagem mencionada. Quando falamos em cárcere ou prisão a primeira coisa que pode vir à mente é um lugar que nos priva da liberdade e que é bastante desagradável. No entanto, imediatamente antes do trecho criticado, Matetes disse: “A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam”. Como se percebe a alma encontra contentamento por estar no corpo e o ama (Eclesiastes 2:24; Atos 14:17). O contrário é que não acontece. Devido ao pecado, o corpo carnal tem características antagônicas em relação à alma, que é a parte imaterial do homem. Por isso, ao dizermos que a alma está “presa” no corpo é apenas no sentido de que está encerrada nele e dele faz parte. Não é referência a um aprisionamento punitivo. De fato, se examinarmos o texto grego de Matetes chegaremos a essa mesmíssima conclusão. Para tanto, vejamos primeiramente a tradução de uma versão disponível na Internet: “A alma está aprisionada no corpo, mesmo assim preserva todo o corpo; e os cristãos estão confinados no mundo como numa prisão, e mesmo assim eles preservam o mundo”. – New Advent. Agora analisemos o texto em grego da citação acima: Ἐγκέκλεισται μὲν ἡ ψυχὴ τῷ σώματι, συνέχει δὲ αὐτὴ τὸ σῶμα· καὶ Χριστιανοὶ κατέχονται μὲν ὡς ἐν φρουρᾷ τῷ κόσμῳ, αὐτοὶ δὲ συνέχουσι τὸν κόσμον. A palavra grega que foi traduzida por “aprisionada” é ἐγκέκλεισται, e a que foi vertida por “prisão” é φρουρᾷ. Note agora como elas são utilizadas em duas obras gregas: “Além disso, o Egito, que possui um dos solos mais escuros, eles dão o mesmo nome da parte escura do olho, khemían, e o comparam ao coração porque também é quente e úmido, e está cercado (ἐγκέκλεισται) pela porção [sul e sudoeste]* do mundo e adjacente a ela, tal como o coração do homem, que fica do lado esquerdo”. – De Iside et Osiride 364 c, de Plutarco. * Eu incluí esses colchetes porque se olharmos um mapa-múndi é possível visualizar essa comparação mencionada por Plutarco. O Egito fica do lado “esquerdo” no norte da África (e direito 257 de quem vê o mapa), e os países que fazem fronteira com ele estão todos ao sul e a sudoeste. Ao norte encontra-se apenas o Mar Mediterrâneo e ao leste o Mar Vermelho. “Estejam certos, caros cidadãos, que na democracia são as leis que protegem as pessoas e a constituição do estado, ao passo que o déspota e a oligarquia encontram sua proteção na suspeita e em guardas (φρουρά) armados”. – Discursos 1:5, de Esquines. Conforme se nota, ἐγκέκλεισται é usado para descrever a localização geográfica do Egito em relação ao resto mundo, e φρουρά para se referir a guardas que ficam de prontidão, protegendo determinadas pessoas. Sendo assim, baseando-se nos dois exemplos supracitados, percebe-se o sentido intencionado por Matetes ao comparar a presença da alma no corpo com a estada do cristão no mundo. É uma referência à constituição interdependente dos elementos mencionados, os quais estão unidos por sua própria natureza. O corpo dentro do qual a alma está precisa dela para sobreviver. Da mesma maneira o mundo no qual o cristão vive necessita dele para se manter. O trecho de Matetes poderia então ser traduzido das seguintes maneiras: “A alma está cercada pelo corpo, e ainda o sustenta; também os cristãos estão sob custódia do mundo como que vigiados por ele, e mesmo assim mantêm o mundo”. “A alma está contida no corpo, e ainda o sustenta; também os cristãos estão retidos do mundo sem conseguirem sair, e mesmo assim mantêm o mundo”. “A alma está limitada no corpo, e ainda o sustenta; também os cristãos estão restritos do mundo e sem liberdade, mas mesmo assim mantêm o mundo”. AS LIÇÕES DO SOFRIMENTO INVOLUNTÁRIO “Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam”. – tradução citada por Banzoli. Outro ponto que Banzoli entendeu erroneamente foi o que Matetes disse sobre o aperfeiçoamento da alma devido à questão alimentar. O “mal tratar” mencionado por ele não se refere ao excesso de comida e bebida, mas sim à sua carência!* É o que Paulo mencionou em algumas de suas cartas, citadas a seguir: * Certamente haverá quem concluiu dessas palavras que Matetes estava se referindo à carência forçada dos jejuns, típicos do ascetismo religioso que existiu nos tempos antigos e que ocasionalmente ainda se vê. Porém o contexto da carta não permite tal conclusão, pois, na comparação feita, é claro que nenhum cristão se apresentou voluntariamente para ser punido por alguma autoridade do mundo. Então, ninguém também passaria fome de propósito. “Até a hora atual, continuamos a ter fome e também sede, e a estar precariamente vestidos, e a ser surrados, e a estar ao desabrigo, e a labutar, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando injuriados, abençoamos; quando perseguidos, suportamos isso; quando difamados, suplicamos; temo-nos tornado como o refugo do mundo, a escória de todas as coisas, até agora”. – 1 Coríntios 4:11-13. 258 “[Estive] em labor e labuta, muitas vezes em noites sem dormir, em fome e sede, muitas vezes em abstinência de comida, em frio e nudez”. – 2 Coríntios 11:27. “Sei viver modestamente, e sei também como haver-me na abundância; estou acostumado com toda e qualquer situação: viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece”. – Efésios 4:12, 13. Tudo bem que a tradução utilizada por Banzoli não ajudou muito, mas se ele tivesse verificado melhor o assunto teria percebido o real sentido do que Matetes disse. A seguir três versões melhores, disponíveis na Internet: “Provada pela fome e pela sede, a alma vai-se melhorando; também os cristãos, fustigados dia-a-dia, mais se vão multiplicando”. – A Diogneto, Edição Bilíngue (2001), ed. Alcalá. “A alma até quando mal provida com comida e bebida, se torna melhor; da mesma maneira, os cristãos quando submetidos a punições no dia a dia, crescem mais em número”. – New Advent. “Tendo sido privada de comidas e bebidas a alma melhora; e os cristãos sendo punidos diariamente estão crescendo mais”. – Epistle to Diognetus, Interlinear English, de G.T. Emery. A palavra traduzida por “mal provida com” é κακουργουμένη, que também poderia ser vertida por “mal suprida com”, “mal conservada com” ou “mortificada com”. “Adoece” ou “se prejudica” também são traduções possíveis, mas neste caso é preciso deixar subentendido que é pela carência de comida, não pelo seu excesso: “A alma até quando adoece por (falta de) comida e bebida, se torna melhor”. E novamente o próprio contexto esclarece também esse ponto. Matetes deixou claro que os nobres objetivos da alma são sempre interpelados pela carne pecadora, ou seja, os desejos físicos errados. Então, como é que ele, um cristão conhecedor da Palavra de Deus, de repente passaria a dizer para seus interlocutores que se empanturrar de comida e bebida seria algo bom para a alma? É claro que ele não recomendaria isso, pois tal comportamento faz parte das obras da carne: “As obras da carne são [dentre outras:]. . . invejas, bebedeiras, festanças e coisas semelhantes a estas. Quanto a tais coisas, aviso-vos de antemão, do mesmo modo como já vos avisei de antemão, de que os que praticam tais coisas não herdarão o reino de Deus”. – Gálatas 5:19, 21, colchetes acrescentados. O que está de acordo com outro texto: “Não venhas a ficar entre os beberrões de vinho, entre os que são comilões de carne. Porque o beberrão e o glutão ficarão pobres, e a sonolência vestirá a pessoa de meros trapos”. – Provérbios 23:20, 21. Portanto, Matetes não iria incentivar algo que contradiz frontalmente a essência do que ele vinha dizendo na carta e que também não está de acordo com o comportamento cristão delineado no Novo Testamento. 259 SOBRE O SUPOSTO DUALISMO PLATÔNICO DE MATETES A discussão em torno da dualidade alma-corpo se assemelha ao uso que se faz da expressão “imortalidade da alma”. Embora os cristãos desde muito tempo tenham se apropriado dessa linguagem, ela é apenas isto, uma linguagem. Se for feita uma análise do Platonismo, ainda que superficial, perceberemos diferenças significativas em relação ao que foi dito por Matetes em sua carta. Para os platônicos a imortalidade da alma não era exatamente o que os cristãos concebiam sobre a imortalidade. O único ponto seguramente comum é que ambos entendiam que a morte não significa a aniquilação da pessoa, pois a alma intangível continua viva. Na visão platônica a imortalidade da alma tem algumas características que não encontram respaldo na primitiva perspectiva cristã: 1) A alma humana é eterna e existiu antes da vida física. A Bíblia não ensina a pré-existência da alma, embora alguns enxerguem nela traços desse conceito. A alma tem um início e a pessoa só passa a existir depois do nascimento. – Eclesiastes 4:3. 2) Devido à sua natureza eterna, a alma jamais será destruída. Jesus informou que, embora não desapareça com a morte do corpo físico, a alma pode ser destruída na Geena. – Mateus 10:28. 3) Depois da morte a alma retorna ao seu estado pré-existente de felicidade. Não existe tal ensinamento na Bíblia. A vida eterna de contentamento está inteiramente condicionada à concessão de Deus, sendo uma retribuição pela fé da pessoa em Cristo. Tal vida não vem automaticamente com a morte das pessoas em geral. – João 3:16. 4) No Além, a alma é incorpórea e disforme, esvoaçando feito uma borboleta (houve também quem propusesse que a alma tem a forma de uma esfera). A alma não possui corpo físico, porém tem um corpo imaterial apropriado para estar no lugar para onde for, possibilitando assim a interação com outras pessoas e as sensações que caracterizam sua existência. Em termos visuais, provavelmente ela tem a aparência que a pessoa tinha antes de morrer. – 1 Samuel 28:14; Mateus 17:3, 4; Lucas 16:22, 23. Existem também dois conceitos no dualismo platônico que não são cristãos: 1) O corpo é intrinsecamente mau e não apresenta nada de bom. Pela ação do Espírito Santo o corpo é melhorado a cada dia, sendo também um meio de externar adoração a Deus. Foi feito por Ele e dá contentamento à existência do homem. – 1 Coríntios 6:15-20; Eclesiastes 2:24; Atos 14:17. 2) O corpo é uma prisão que a alma odeia e dela deseja libertar-se. A Bíblia não apresenta tal cenário, por conta do que foi dito no item anterior. E, como visto antes, para Matetes a realidade é o contrário da visão platônica: o corpo é 260 que odeia a alma. Esta, por sua vez, ama o corpo e o sustenta, o que demonstra que ela gosta de estar nele, enquanto não vai para a morada eterna. Embora seja verdade que cristãos ao longo dos séculos tenham se aproximado do Platonismo mais do que talvez deveriam, e existam graus de aderência diferenciados de acordo com a denominação religiosa, é mais ou menos consenso que a sistematização da teologia cristã que levou em consideração a obra de Platão só começou a acontecer entre os séculos IV e V, e mesmo assim com reservas. Desde o início da Igreja houve um esforço para deixar claro que a crença na imortalidade não depende de Platão. Não ser aniquilacionista jamais significou aceitação do Platonismo. Por exemplo, conforme foi visto no capítulo 20, Platão passou longe dos antigos hebreus e mesmo assim eles não foram aniquilacionistas. Obviamente, por a Bíblia mostrar que o homem não é apenas um ser material, mas que ele possui uma alma invisível, poderíamos nos referir a essa realidade como sendo um tipo de “dualismo”. É por esta razão que foi bastante natural que antigos cristãos proeminentes decidiram adentrar nessa seara e discutir o assunto nesses termos.* No entanto, é preciso lembrar que o “dualismo” cristão não nasceu com Platão. Houve um contexto bíblico prévio que justificou tais sistematizações teológicas. O escopo presente no dualismo platônico vai muito além do que se vê na Bíblia, e trata de conceitos que estão somente no campo da Filosofia, a exemplo das conceituações sobre o mundo sensível e o mundo inteligível. * Os que criticam ferozmente a incursão de antigos cristãos na Filosofia parece que não perceberam que essa foi uma das razões que possibilitaram a disseminação do Cristianismo, e contribuiu para a preservação dos escritos cristãos e, por consequência, o fácil acesso que temos hoje aos livros do Novo Testamento. Não fosse a presença de espírito daqueles homens antigos em buscar um diálogo com os de fora, talvez não estivéssemos hoje discutindo esses assuntos. Não é objetivo aqui tratar dessa questão do dualismo de Platão. Mas acredito que os comentários feitos até agora são suficientes para demonstrar que Banzoli traz para dentro de sua crítica à carta de Matetes referências ao Platonismo de maneira descontextualizada e arbitrária. A consequência disso é uma conclusão diametralmente oposta ao que está na carta a Diogneto. Na realidade, o que Matetes escreveu pode ser entendido como uma negação do dualismo platônico: “O texto [do capítulo 6 de Matetes] reflete uma real unidade entre o corpo e a alma. Quebra-se, ou, ao menos, dilui-se uma concepção dualista do homem em que a alma, realidade transcendente, se oporia ao corpo”. – Revista Eletrônica Espaço Teológico, vol. 5, nº 7, jan/jun, 2011, pp. 08-14, colchetes acrescentados. Isto se percebe quando lemos aquele trecho sobre o aprimoramento da alma quando o corpo passa fome e sede: “A alma até quando adoece por (falta de) comida e bebida, se torna melhor”. Perceba que, embora o alimento seja algo destinado ao corpo, tal situação se reflete na alma, o que demonstra sua integração com o corpo. O que faz lembrar certa ilustração de Jesus, que apresentou a situação oposta de fartura: 261 “De modo que ele disse: ‘Farei o seguinte: Derrubarei os meus celeiros e construirei maiores, e ali ajuntarei todos os meus cereais e todas as minhas coisas boas; e direi à minha alma*: “Alma, tens muitas coisas boas acumuladas para muitos anos; folga, come, bebe, regala-te.” ’ Mas Deus disse-lhe: ‘Desarrazoado, esta noite te reclamarão a tua alma. Quem terá então as coisas que armazenaste?’ Assim é com o homem que acumula para si tesouro, mas não é rico para com Deus”. – Lucas 12:18-21. * Há tradutores que não vertem literalmente essa parte e traduzem: “direi a mim mesmo”. Com certeza se as palavras acima estivessem em alguma obra patrística, e não no Novo Testamento, apareceria algum aniquilacionista dizendo que o autor do texto foi influenciado por Platão, ao usar essa linguagem dicotômica, muito embora ela já venha desde muito tempo antes de Jesus, como se nota no livro de Jó: “E agora se derramou a minha alma dentro de mim; apoderam-se de mim dias de tribulação”. – Jó 30:16. O que os aniquilacionistas entendem por “alma vivente” é o “mim” do versículo acima, ou seja, a pessoa de corpo físico que articulou com sua língua tais palavras. Então, partindo desse pressuposto, conclui-se que dentro da “alma vivente” existe outra alma, que é justamente aquela mencionada por Jesus: “E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:28. No entanto, a alma não é indiferente ao corpo e nem fica contando os dias para se libertar dele, como pensavam os platônicos. Corpo e alma vivem em uma permanente cumplicidade, que é própria da unidade que usufruem. São duas coisas, e ao mesmo tempo uma só. Assim é a natureza do ser humano: “Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. – Mateus 6:25. Sendo assim, não surpreende que alma e pessoa humana (corpo físico vivo) se confundissem na linguagem dos antigos: “A alma que pecar — ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4. “Minha alma está profundamente contristada, até à morte”. – Marcos 14:34. “Este inesperado fato que se deu comigo destruiu-me a alma. Vou-me e da vida deixo ir a graça e quero morrer, amigas”. – Medeia 225, de Eurípedes. “Nenhuma alma generosa quererá depois de si um nome vil, por ter vivido vida indígena, manchando a boa fama apenas para não morrer”. – Electra 785, de Sófocles. Para evitar a mistura de entendimentos vista no texto de Banzoli, é recomendável se inteirar do que Platão realmente ensinava. Há muitas fontes na Internet que podem ser consultadas, de preferência as especializadas no assunto. Para quem quiser se aprofundar nesse tema, sugiro o trabalho do link abaixo: http://www.uvanet.br/rhet/artigos_setembro_2009/dualismo_platonico.pdf 262 4) A qualidade do texto de Matetes Ao longo dos 12 “capítulos”* de sua carta, Matetes fez várias declarações cujo teor pode ser encontrado em diversos textos bíblicos. Considere algumas delas a partir de agora. Para diferenciar dos versículos da Bíblia os trechos da carta estão em itálico e negrito. Os colchetes que aparecem foram acrescentados. A tradução da carta a Diogneto utilizada a seguir foi a de Luiz Fernando Karps Pasquotto. * Devido à brevidade de cada uma das seções, a designação mais apropriada é que a carta está subdividida em parágrafos. CAPÍTULO 1 - Introdução Excelentíssimo Diogneto, Vejo que te interessas em aprender a religião dos cristãos. . . [e] que tipo de amor é esse que eles têm uns para com os outros. “Por meio disso saberão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor entre vós”. – João 13:35 “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto que vos ameis uns aos outros”. – Romanos 13:8. “Santificai o Cristo como Senhor nos vossos corações, sempre prontos para fazer uma defesa perante todo aquele que reclamar de vós uma razão para a esperança que há em vós”. – 1 Pedro 3:15. “Amados, se é assim que Deus nos amou, então nós mesmos temos a obrigação de nos amarmos uns aos outros. . . Se continuarmos a amar uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor é aperfeiçoado em nós”. – 1 João 4:11. CAPÍTULO 2 – A Idolatria das Nações E, ao contrário, esses que adorais, não poderiam transformar-se, por mãos de homens, em utensílios semelhantes aos demais? Essas coisas todas não são surdas, cegas, inanimadas, insensíveis, imóveis?. . . essas coisas chamais de deuses, as servis, as adorais, e terminais sendo semelhante a elas. Depois, odiais os cristãos, porque estes não os consideram deuses. “Visto, pois, que somos progênie de Deus, não devemos imaginar que o Ser Divino seja semelhante a ouro, ou prata, ou pedra, semelhante a algo esculpido pela arte e inventividade do homem. É verdade que Deus não tem tomado em conta os tempos de tal ignorância, no entanto, agora ele está dizendo à humanidade que todos, em toda a parte, se arrependam”. – Atos 17:29, 30. 263 “Embora asseverassem ser sábios, tornaram-se tolos e transformaram a glória do Deus incorruptível em algo semelhante à imagem do homem corruptível”. – Romanos 1:22. Conforme o Salmo 115:4-8, que diz: “Os ídolos deles são prata e ouro, trabalho das mãos do homem terreno. Têm boca, mas não podem falar, têm olhos, mas não podem ver. . . Iguais a eles se tornarão os que os fazem, todos os que neles confiam”. CAPÍTULO 3 – O Culto Judaico Os judeus têm razão quando rejeitam a idolatria, de que falamos antes, e prestam culto a um só Deus, considerando-o Senhor do universo. Contudo, erram quando lhe prestam um culto semelhante ao dos pagãos. . . Aqueles que crêem oferecer-lhe sacrifícios com sangue, gordura e holocaustos, e que o enaltecem com esses atos, não me parecem diferentes daqueles que tributam reverência a ídolos surdos, que não podem participar do culto. Os outros imaginam estar dando algo a quem de nada precisa. “ ‘Não quiseste nem aprovaste sacrifícios, e ofertas, e holocaustos, e ofertas pelo pecado’ — sacrifícios que se oferecem segundo a Lei”. – Hebreus 10:8. “A Lei tem uma sombra das boas coisas vindouras, mas não a própria substância das coisas, os homens nunca podem, com os mesmos sacrifícios que oferecem continuamente, de ano em ano, aperfeiçoar os que se aproximam”. – Hebreus 10:1 CAPÍTULO 4 – O Ritualismo Judaico Não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados. . . Não é digno de zombaria orgulhar-se da mutilação do corpo como sinal de eleição, acreditando com isso ser particularmente amados por Deus? E o fato de estar em perpétua vigilância diante dos astros e da lua, para calcular os meses e os dias. . . os cristãos estão certos em se abster da vaidade e do engano, assim como das complicadas observâncias e das vanglórias dos judeus. “Portanto, nenhum homem vos julgue pelo comer ou pelo beber, ou com respeito a uma festividade ou à observância da lua nova ou dum sábado; pois estas coisas são sombra das coisas vindouras, mas a realidade pertence ao Cristo”. – Colossenses 2:16, 17. “Acautelai-vos dos cães, acautelai-vos dos obreiros do dano, acautelai-vos dos que mutilam a carne. Pois nós somos os que temos a verdadeira circuncisão, os que prestamos serviço sagrado pelo espírito de Deus e temos a nossa jactância em Cristo Jesus, e não temos a nossa confiança na carne”. – Filipenses 3:2, 3. 264 “Acolhei o homem que tem fraquezas na sua fé, mas não para fazer decisões sobre questões subjetivas. Um homem tem fé para comer de tudo, mas o homem que é fraco come hortaliças”. – Romanos 14:1, 2. CAPÍTULO 5 – O Comportamento dos Cristãos [Os cristãos] vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, a cada pátria é estrangeira. “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos residentes temporários espalhados por Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia, aos escolhidos segundo a presciência de Deus, o Pai, com santificação pelo espírito, com o objetivo de que sejam obedientes e sejam aspergidos com o sangue de Jesus Cristo”. – 1 Pedro 1:1, 2. “Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11. “Todos estes morreram em fé, embora não recebessem o cumprimento das promessas, mas viram-nas de longe e acolheram-nas, e declararam publicamente que eram estranhos e residentes temporários no país. Pois, os que dizem tais coisas dão evidência de que buscam seriamente um lugar para si próprios”. – Hebreus 11:13, 14. [Os cristãos] estão na carne, mas não vivem segundo a carne. “Pois, embora andemos na carne, não travamos combate segundo o que somos na carne”. – 2 Coríntios 10:3. “Os que estão de acordo com a carne fixam as suas mentes nas coisas da carne, mas os que estão de acordo com o espírito, nas coisas do espírito”. – Romanos 8:5. [Os cristãos] moram na terra, mas têm sua cidadania no céu. “Quanto a nós, a nossa cidadania existe nos céus”. – Filipenses 3:20. [Os cristãos] obedecem as leis estabelecidas. “Pagai de volta a César as coisas de César, mas a Deus as coisas de Deus”. – Mateus 22:21 “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores, pois não há autoridade exceto por Deus; as autoridades existentes acham-se colocadas por Deus nas suas posições relativas”. – Romanos 13:1. “Pela causa do Senhor, sujeitai-vos a toda criação humana: quer a um rei, como sendo superior, quer a governadores, como enviados por ele para infligir punição a malfeitores, mas para louvar os que fazem o bem”. – 1 Pedro 2:13, 14. 265 [Os cristãos] amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e tem abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. “Ainda que o homem que somos por fora se definhe, certamente o homem que somos por dentro está sendo renovado de dia em dia. Pois, embora a tribulação seja momentânea e leve, produz para nós uma glória de peso que ultrapassa mais e mais, e que é eterna, ao passo que fixamos os olhos, não nas coisas vistas, mas nas coisas não vistas. Porque as coisas vistas são temporárias, mas as coisas não vistas são eternas”. – 2 Coríntios 4:16-18. “Recomendamo-nos de todo modo como ministros de Deus, na perseverança em muito, em tribulações, em necessidades, em dificuldades. . . por intermédio de glória e de desonra, através de relatos maus e de relatos bons; como enganadores, e ainda assim verazes, como desconhecidos, e ainda assim reconhecidos, como morrendo, e ainda assim, eis que vivemos, como disciplinados, e ainda assim não entregues à morte, como pesarosos, mas sempre alegres, como pobres, mas enriquecendo a muitos, como não tendo nada, e ainda assim possuindo todas as coisas”. - 2 Coríntios 6:4, 8-10. CAPÍTULO 6 – A Alma do Corpo A carne odeia e combate a alma. “Amados, exorto-vos, como a estrangeiros e viajantes neste mundo, a que vos abstenhais dos desejos carnais que promovem guerra contra a alma”. – 1 Pedro 2:11, Bíblia de Jerusalém. “Pois eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não mora nada bom. . . Pois o bem que quero, não faço, mas o mal que não quero, este é o que pratico. . . observo em meus membros outra lei guerreando contra a lei da minha mente e levando-me cativo à lei do pecado que está nos meus membros”. – Romanos 7:18-23. A alma está contida no corpo... A alma imortal habita em uma tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus “Pois, nós sabemos que, se a nossa casa terrestre, esta tenda, se dissolver, havemos de ter um edifício da parte de Deus, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus”. – 2 Coríntios 5:1. 266 “Entendo que é justo despertar-vos com as minhas admoestações enquanto estou nesta tenda terrena*, sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . . Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:1315, Bíblia de Jerusalém. “E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:28. * A Tradução do Novo Mundo de 1986 havia trocado a palavra “tenda” por “habitação”, porém a edição de 2015 seguiu o original grego e agora diz “tenda”, além de dar o seguinte esclarecimento em uma nota de rodapé: “Ou: ‘neste tabernáculo’, isto é, o corpo terrestre dele”. CAPÍTULO 7 – A Origem Divina do Cristianismo Ao contrario, aquele que é verdadeiramente senhor e criador de tudo, o Deus invisível, ele próprio fez descer do céu, para o meio dos homens, a verdade, a palavra santa e incompreensível, e a colocou em seus corações. “Porque desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. – João 6:38. “O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam, é nosso tema: a Palavra da vida. A vida se manifestou: nós a vimos, damos testemunho e vos anunciamos a Vida que estava junto do Pai e se manifestou a nós”. – 1 João 1:1, 2, Bíblia do Peregrino. [Deus enviou] o próprio artífice e criador do universo; aquele por meio do qual ele criou os céus e através do qual encerrou o mar em seus limites. “Mas, com referência ao Filho [ele diz]:. . . ‘Tu, ó Senhor, lançaste no princípio os alicerces da própria terra, e os céus são obras das tuas mãos’.”. – Hebreus 1:8, 10. “Ele é a imagem do Deus invisível, primogênito de toda criação, pois tudo foi por ele criado, no céu e na terra: o visível e o invisível, majestades, dominações, autoridades e potestades. Tudo foi criado por ele e para ele, ele é anterior a tudo, e nele tudo tem a própria consistência”. – Colossenses 1:15-17, Bíblia do Peregrino. Talvez, como alguém poderia pensar, será que o enviou para que existisse uma tirania ou para infundir-nos medo e prostração? De modo algum. Ao contrário, enviou-o com clemência e mansidão, como um rei que envia seu filho. Deus o enviou, e o enviou como homem para os homens; enviou-o para nos salvar, para persuadir. “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, pois sou de temperamento brando e humilde de coração, e achareis revigoramento para as vossas almas. Pois o meu jugo é benévolo e minha carga é leve”. – Mateus 11:29, 30. 267 “Jesus, porém, chamando-os a si, disse: ‘Sabeis que os governantes das nações dominam sobre elas e que os grandes homens exercem autoridade sobre elas. Não é assim entre vós; mas, quem quiser tornar-se grande entre vós tem de ser o vosso ministro, e quem quiser ser o primeiro entre vós tem de ser o vosso escravo. Assim como o Filho do homem não veio para que se lhe ministrasse, mas para ministrar e dar a sua alma como resgate em troca de muitos”. – Mateus 20:25-28. Conforme Isaías 53:11, que diz: “Por causa da desgraça da sua alma, ele verá, ficará satisfeito. Por meio do seu conhecimento, o justo, meu servo, trará uma posição justa a muita gente; e ele mesmo levará os erros deles”. Enviou-o para chamar, e não para castigar; enviou-o, finalmente, para amar, e não para julgar. Ele o enviará para julgar, e quem poderá suportar sua presença? “Porque Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, a fim de que todo aquele que nele exercer fé não seja destruído, mas tenha vida eterna. Pois, Deus enviou seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por intermédio dele”. – João 3:16, 17. “Mas, se alguém ouvir as minhas declarações e não as guardar, eu não o julgo; pois não vim julgar o mundo, mas salvar o mundo”. – João 12:47. “Por meio disso é que se manifestou o amor de Deus em nosso caso, porque Deus enviou o seu Filho unigênito ao mundo, para que ganhássemos a vida por intermédio dele. O amor é neste sentido, não que nós tenhamos amado a Deus, mas que ele nos amou e enviou seu Filho como sacrifício propiciatório pelos nossos pecados”. – 1 João 4:9, 10. “Portanto, mantende-vos despertos, fazendo todo o tempo súplica para que sejais bem sucedidos em escapar de todas estas coisas que estão destinadas a ocorrer, e em ficar em pé diante do Filho do homem”. – Lucas 21:36. O que lembra aquilo dito em Malaquias: “Mas quem agüentará o dia da sua vinda e quem se manterá de pé quando ele aparecer? Pois ele será como o fogo do refinador e como a barrela dos lavadeiros”. – Malaquias 3:2. Não vês como os cristãos são jogados às feras, para que reneguem o Senhor, e não se deixam vencer? Não vês como quanto mais são castigados com a morte, tanto mais outros se multiplicam? Isso não parece obra humana. Isso pertence ao poder de Deus e prova a sua presença. “ ‘E assim, na atual situação, digo-vos: Não vos metais com estes homens, mas deixaios em paz; (porque, se este desígnio ou esta obra for de homens, será derrubada; mas, se for de Deus, não podereis derrubá-los;) senão podereis talvez ser realmente achados como lutadores contra Deus.’ Em vista disso, atenderam-no e mandaram 268 chamar os apóstolos, chibatearam-nos e ordenaram-lhes que parassem de falar à base do nome de Jesus, e soltaram-nos”. – Atos 5:38-40. “Eu enfrento a morte diariamente. Isto afirmo pela exultação sobre vós, irmãos, a qual tenho em Cristo Jesus, nosso Senhor. Se eu, igual aos homens, tenho lutado com feras em Éfeso, que me aproveita isso?”. – 1 Coríntios 15:31, 32. CAPÍTULO 8 – o Deus que se fez carne Quem de todos os homens sabia o que é Deus, antes que ele próprio viesse?. . . Nenhum homem viu, nem conheceu a Deus, mas ele próprio se revelou a nós. “Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido”. – João 1:18, NVI. “[Jesus disse-lhe:] Quem me vê, vê o Pai”. – João 14:9, BJ. Conforme Malaquias 3:1, que diz: “Eis que envio o meu mensageiro e ele terá de desobstruir o caminho diante de mim. E repentinamente virá ao Seu templo o verdadeiro Senhor, a quem procurais, e o mensageiro do pacto, em quem vos agradais”. Somente ele é bom. Tendo concebido grande e inefável projeto, ele o comunicou somente ao Filho. Enquanto o mantinha no mistério e guardava sua sábia vontade, parecia que não cuidava de nós, não pensava em nós. “Ele lhe disse: ‘Por que me perguntas sobre o que é bom? Há um que é bom. Se queres, porém, entrar na vida, observa continuamente os mandamentos’.”. – Mateus 19:17. “Jesus disse-lhe: “Por que me chamas de bom? Ninguém é bom, exceto um só, Deus”. – Marcos 10:18. “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai, e quem o Filho é, ninguém sabe, exceto o Pai; e quem o Pai é, ninguém sabe exceto o Filho, e aquele a quem o Filho estiver disposto a revelá-lo”. – Lucas 10:22. “Esta ele fez abundar para conosco em toda a sabedoria e bom senso, por nos fazer saber o segredo sagrado de sua vontade. É segundo o seu beneplácito, que ele se propôs em si mesmo, para uma administração no pleno limite dos tempos designados, a saber, ajuntar novamente todas as coisas no Cristo, as coisas nos céus e as coisas na terra”. – Efésios 1:8-10. CAPÍTULO 9 – O Propósito Divino No tempo passado, ele permitiu que nós, conforme a nossa vontade, nos deixássemos arrastar por nossos impulsos desordenados, levados por prazeres e 269 concupiscências. . . Éramos indignos da vida, e agora, só pela bondade de Deus, somos dignos dela. Também para que ficasse claro que por nossas forças era impossível entrar no Reino de Deus. “[Deus] decretou os tempos designados e os limites fixos da morada dos homens, para buscarem a Deus, se tateassem por ele e realmente o achassem, embora, de fato, não esteja longe de cada um de nós. . . É verdade que Deus não tem tomado em conta os tempos de tal ignorância, no entanto, agora ele está dizendo à humanidade que todos, em toda a parte, se arrependam”. – Atos 17:26, 27, 30. “Mas, quando chegou o pleno limite do tempo, Deus enviou o seu Filho, que veio a proceder duma mulher e que veio a estar debaixo de lei, para livrar por meio duma compra os debaixo de lei, para que nós, da nossa parte, recebêssemos a adoção como filhos”. – Gálatas 4:4, 5. “Portanto, visto que Cristo sofreu na carne, armai-vos também da mesma disposição mental; porque aquele que tem sofrido na carne tem desistido dos pecados, com o fim de viver o resto do seu tempo na carne, não mais para os desejos dos homens, mas para a vontade de Deus. Porque já basta o tempo decorrido para terdes feito a vontade das nações, quando procedestes em ações de conduta desenfreada, em concupiscências, em excessos com vinho, em festanças, em competições no beber e em idolatrias ilegais”. – 1 Pedro 4:-3. Com, misericórdia tomou para si os nossos pecados e enviou o seu Filho para nos resgatar: o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. “Assim como o Filho do homem não veio para que se lhe ministrasse, mas para ministrar e dar a sua alma como resgate em troca de muitos”. – Mateus 20:28. “Cristo, enquanto ainda éramos fracos, morreu por homens ímpios, no tempo designado”. – Romanos 5:6. “Ora, até mesmo Cristo morreu uma vez para sempre quanto aos pecados, um justo pelos injustos, a fim de conduzir-vos a Deus, sendo morto na carne, mas vivificado no espírito”. – 1 Pedro 3:18. A injustiça de muitos é reparada por um só justo, e a justiça de um só torna justos muitos outros. “Assim, pois, como por intermédio de uma só falha resultou a condenação para homens de toda sorte, do mesmo modo também por um só ato de justificação resulta para homens de toda sorte serem declarados justos para a vida”. – Romanos 5:18. “Observamos a Jesus, que havia sido feito um pouco menor que os anjos, coroado de glória e de honra por ter sofrido a morte, para que, pela benignidade imerecida de Deus, provasse a morte por todo homem”. – Hebreus 2:9. 270 Ele quis que confiássemos na sua bondade. . . sem preocupações com a roupa e o alimento. “Por esta razão eu vos digo: Parai de estar ansiosos pelas vossas almas, quanto a que haveis de comer ou quanto a que haveis de beber, ou pelos vossos corpos, quanto a que haveis de vestir. Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. – Mateus 6:25. “Não estejais ansiosos de coisa alguma, mas em tudo, por oração e súplica, junto com agradecimento, fazei conhecer as vossas petições a Deus”. – Filipenses 4:6. CAPÍTULO 10 – A Essência do Cristianismo Não te maravilhes de que um homem possa se tornar imitador de Deus. “Portanto, tornai-vos imitadores de Deus, como filhos amados, e prossegui andando em amor, assim como também o Cristo vos amou e se entregou por vós como oferta e sacrifício a Deus para ser cheiro fragrante”. – Efésios 5:1, 2. A felicidade não está em oprimir o próximo, ou em querer estar pro cima dos mais fracos, ou enriquecer-se e praticar violência contra os inferiores. “Sede vigilantes, porém, para que esta autoridade vossa não se torne de algum modo uma pedra de tropeço para os que são fracos”. – 1 Coríntios 8:9. “Sede pacíficos uns com os outros. Por outro lado, exortamo-vos, irmãos: admoestai os desordeiros, falai consoladoramente às almas deprimidas, amparai os fracos, sede longânimes para com todos. Vede que ninguém pague a outro dano por dano, mas, empenhai-vos sempre pelo que é bom de uns para com os outros e para com todos os demais”. – 1 Tessalonincenses 5:13-15. “Pastoreai o rebanho de Deus, que está aos vossos cuidados, não sob compulsão, mas espontaneamente; nem por amor de ganho desonesto, mas com anelo; nem como que dominando sobre os que são a herança de Deus, mas tornando-vos exemplos para o rebanho”. – 1 Pedro 5:2, 3. CAPÍTULO 11 – O Cristo de Deus [Cristo foi] desprezado pelo povo, foi anunciado pelos apóstolos e acreditado pelos pagãos. “Deveras, o segredo sagrado desta devoção piedosa é admitidamente grande: Ele foi manifestado em carne, foi declarado justo em espírito, apareceu a anjos, foi pregado entre nações, foi crido no mundo, foi recebido acima em glória”. – 1 Timóteo 3:16. CAPÍTULO 12 – O Mais Importante O Apóstolo [Paulo] diz: “A ciência incha; o amor, porém, edifica”. “A ciência incha, mas o amor edifica”. – 1 Coríntios 8:1, Almeida Fiel. 271 Ou como diz a Tradução do Novo Mundo, edição de 2015: “O conhecimento enche a pessoa de orgulho, mas o amor edifica”. Vemos que Matetes fez uma citação direta de uma carta do apóstolo Paulo. Já houve quem sugerisse que Matetes foi discípulo do próprio Paulo, o “apóstolo das nações”. No capítulo 11 Matetes diz que também ‘se tornou um mestre entre as nações’ depois de ter sido “discípulo dos apóstolos”. Neste caso, se ele realmente foi instruído por Paulo, o aluno seguiu o exemplo do mestre ao empreender um ministério junto aos gentios pagãos. Conclusão Como é típico dos aniquilacionistas, nota-se que a “pesquisa” de Banzoli foi incompleta e o tratamento que ele dispensou à carta de Matetes parcial e preconceituoso. Não há nada que leve à conclusão de que Matetes tenha sido promotor de ‘asneiras chocantes e assustadoras’. E o mais importante é que o texto dele está consoante à Bíblia, especialmente no Novo Testamento. A possível maior antiguidade da carta Embora o período 120-140 d.C. pareça ser a datação preferida da maioria dos especialistas em Patrística, particularmente eu acredito que há evidências internas que apontam para uma antiguidade ainda maior da carta a Diogneto, conforme alguns já defenderam no passado. Quais seriam tais indícios? É o que foi visto no tópico anterior. A carta a Diogneto está repleta de referências bíblicas diretas ou indiretas, em especial as cartas apostólicas. Embora seja coerente concluir que a razão disso é que Matetes aprendeu parte do que sabia na leitura que fez dos manuscritos cristãos que vieram a compor o Novo Testamento, quem garante que o verdadeiro motivo não foi ele ter sido contemporâneo dos apóstolos? Visto que os escritos mais recentes do Novo Testamento são datados em 90-100 d.C., poderíamos pensar que a carta de Matetes obrigatoriamente tem de ser posterior a essa data. No entanto, é preciso lembrar que muitas informações que há nos Evangelhos e nas cartas dos apóstolos já deviam ser conhecidas da comunidade cristã antes de serem assentadas por escrito. Por exemplo, estima-se que a declaração de Jesus sobre o amor que identificaria os cristãos foi registrada por João em 98 d.C., aproximadamente. Mas é óbvio que os cristãos não vieram a aprender isso somente nessa data. É tanto que décadas antes Paulo já tinha mencionado tal obrigação cristã. – João 13:35; Romanos 13:8. Portanto, o que Matetes mencionou que remete a declarações do apóstolo João, escritas na última década do século I, pode ter sido resultado do conhecimento que era comum à maioria dos cristãos daquele tempo, e não necessariamente porque leu nos escritos de João. E se bem notarmos, existem apenas algumas declarações semelhantes entre Matetes e João. Não são transcrições literais, a exemplo daquela que Matetes fez no último capítulo da carta a Diogneto, ao citar 1 Coríntios 8:1. Se houvesse uma 272 citação direta de Apocalipse*, digamos, aí sim não restaria dúvida que a carta de Matetes deveria ser datada no século II. * O livro The Ante-Nicene Fathers, Translations of the Writings of the Fathers down to A.D. 325 sugere que a expressão “a Páscoa do Senhor se adianta”, que está no capítulo 12 de Matetes, pode ser uma referência a Apocalipse 5:9, que menciona o Cordeiro que foi morto e com o seu sangue compra pessoas para Deus. Porém, isto é uma conjectura. Como foi visto anteriormente, as alusões de Matetes a determinadas passagens da Bíblia são bem mais explícitas do que isso. Além do mais, antes da escrita de Apocalipse a ideia do sacríficio de Jesus qual cordeiro pascoal já estava presente em outros livros do Novo Testamento. – 1 Coríntios 5:7; 1 Pedro 1:19. Naturalmente, se a carta for datada entre 60 e 70 d.c. surgem alguns problemas igualmente sem solução conclusiva. Por exemplo, a quem ela se destinaria? E como lidar com as evidências que apontam para o século II? A carta poderia ter sido adaptada depois por algum cristão posterior para ser enviada ao destinatário eminente. Isto explicaria em parte os gaps vistos na carta, bem como sua linguagem clássica, típica de escritos cristãos do século II. Infelizmente, não há informações suficientes que poderiam dirimir todas as questões que surgiriam. Há também um detalhe que reforça a hipótese acima. Embora de início a carta claramente seja direcionada a Diogneto, quando chega perto do final a linguagem dela muda e parece se dirigir a uma coletividade, e não somente a uma pessoa: “Celebra-se então o temor da lei, reconhecesse a graça dos profetas, conserva-se a fé dos evangelhos, guarda-se a tradição dos apóstolos e a graça da Igreja exulta. Não contristando essa graça, saberás o que o Verbo diz por meio dos que ele quer e quando quer. Com efeito, quantas coisas fomos levados a vos explicar com zelo pela vontade do Verbo que no-las inspira! Nós vos comunicamos por amor essas mesmas coisas que nos foram reveladas”. – Carta a Diogneto, capítulo 11. Embora alguém possa explicar essas palavras como sendo apenas uma linguagem respeitosa ou típica das apologias, acho muito pouco provável que elas seriam dirigidas a quem não conhecesse os escritos bíblicos e estava querendo saber mais sobre os cristãos. A conclusão do texto parece mais uma carta apostólica direcionada à comunidade cristã, onde as pessoas já tinham algum conhecimento dos assuntos mencionados. E a conclusão da carta é ainda mais característica nesse respeito: “Atendendo e ouvindo com cuidado, conhecereis que coisas Deus prepara para os que o amam com lealdade. . . A salvação é mostrada, os apóstolos são compreendidos, a Páscoa do Senhor se adianta, os círios se reúnem, harmoniza-se com o mundo e, instruindo os santos, o Verbo se alegra, pelo qual o Pai é glorificado. A ele, a glória pelos séculos. Amém”. – Carta a Diogneto, capítulo 12. Portanto, essa peculiaridade da carta de Matetes pode ser uma evidência de que ela é uma adaptação de uma obra mais antiga, escrita na era apostólica. É tanto que já houve quem defendesse a opinião de que ela pode ter sido escrita por um dos apóstolos, que foi o caso de Tillemont, no século 17. O que seria algo perfeitamente possível, não fosse a afirmação de Matetes de que ele fora apenas discípulo dos apóstolos e não um deles. 273 A sinonímia no uso das palavras “alma” e “espírito” Conforme foi exemplificado no capítulo 18, na época em que o Cristianismo surgiu a palavra “espírito” era usada com o sentido de “alma”, e vice-versa (até hoje em dia isso acontece). A própria Bíblia apresenta essa peculiaridade: “Almejei-te com a minha alma durante a noite; sim, com o meu espírito dentro de mim estou à procura de ti”. – Isaías 26:9. “Somente comportai-vos da maneira digna das boas novas acerca do Cristo, a fim de que, quer eu vá e vos veja, quer esteja ausente, eu ouça falar das coisas que se referem a vós, de que vos mantendes firmes em um só espírito, com uma só alma esforçando-vos lado a lado pela fé das boas novas”. – Filipenses 1:27. É por isso que vemos em Apocalipse almas retratadas como estando no céu, embora a Bíblia informe que após morte do corpo a alma desce para o Seol e o espírito é que sobe para Deus: “Quando abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas dos que haviam sido assassinados por causa da palavra de Deus e do testemunho que haviam dado”. – Apocalipse 6:9, Bíblia do Peregrino. Uma nota da tradução acima diz: “As ‘almas’ não são as almas separadas da dicotomia grega, mas o que nossa linguagem popular chama de ‘espíritos’. Em lugar de encontrar-se no Xeol, Deus lhes deu asilo no seu templo”. Mas quando o apóstolo Paulo se referiu a determinados justos no céu, ele usou a linguagem que era de se esperar: “Vós, ao contrário, vos aproximastes. . . dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:22, 23, Bíblia do Peregrino. De modo que ao ler, por exemplo, Mateus 26:41, não haveria nenhum problema em enxergar “alma” no lugar de “espírito”: “O espírito, naturalmente, está ansioso, mas a carne é fraca”. “A alma, naturalmente, está ansiosa, mas a carne é fraca”. Ideia semelhante perpassa os textos abaixo, quando comparados: “Por que está triste o teu espírito e não comes pão?”. – 1 Reis 21:5. “Minha alma está triste até a morte”. – Mateus 26:38, BJ. “Meu espírito estava aflito dentro de mim por causa disso”. – Daniel 7:15. “Minha alma está aflita agora, e que hei de dizer?”. – João 12:28. 274 Há ou não consenso entre os imortalistas? Lucas Banzoli disse: “Ele [Matetes] não cria na imortalidade inerente ou incondicional da alma (senão ele creria no tormento eterno também). Isso mostra que até mesmo nos primeiros introdutores da heresia da imortalidade da alma não havia um consenso como há nos dias de hoje. Defender o dualismo e o estado intermediário não implicava em crer no ‘tormento eterno’, como ainda hoje há muitas pessoas que creem na sobrevivência da alma mas não no inferno eterno. O desvio foi gradual, mas certamente Mathetes foi responsável por parte disso”. Ao que parece Banzoli se atrapalhou na argumentação acima. Ele diz que hoje há um consenso entre os “hereges imortalistas”, mas na época de Matetes não era assim, pois aqueles cristãos não foram unânimes sobre se a alma dos maus seria destruída ou sofreria no inferno eterno, após o Julgamento Final. Só que em seguida ele menciona que mesmo hoje não há consenso entre os “imortalistas”, pois há os que creem na imortalidade da alma, mas não no tormento eterno. O aparente silêncio da Bíblia sobre a natureza espiritual do homem Lucas Banzoli também consultou algumas obras extrabíblicas da época dos primeiros cristãos. Levando em consideração o que ele escreveu sobre Patrística, não deve ter sido uma leitura completa, mas já é um começo. Talvez a maioria dos escritores aniquilacionistas despreze essa linha de investigação. Mas Banzoli errou ao propor outra teoria, depois que viu o que está nessa literatura religiosa. Ele demonstra, citando várias obras judaicas e cristãs, que as pessoas daquele tempo acreditavam em tudo o que hoje os aniquilacionistas combatem, e eram muito explícitas ao mencionarem a crença numa alma que sobrevive à morte, além de outros temas relacionados. Porém a conclusão a que Banzoli chega diante de toda essa evidência é onde reside o seu maior erro nesse ponto de partida inicial do seu livro “Os Pais da Igreja contra a Imortalidade da Alma”. Ele diz que o suposto silêncio dos escritores do Novo Testamento sobre tais assuntos é uma evidência de que a Igreja Primitiva não acreditava nessas coisas. Mas é justamente o contrário! Não terem os escritores cristãos se detido nessa temática é um forte indicativo de que eles mantiveram a crença predominante de que a morte não significa a extinção imediata da pessoa, pois quem abandona ensinos nos quais acreditava normalmente divulga a nova crença com entusiasmo. Eles não fizeram isso. Mesmo o principal escritor do Novo Testamento tendo sido fariseu (o apóstolo Paulo), ele nunca combateu o que antes acreditava, nem se retratou. Pelo contrário, há indícios em suas cartas que ele jamais aderiu ao aniquilacionismo, nem mesmo à maneira dos saduceus. Por exemplo, quando ele disse que tinha sido arrebatado ao terceiro céu ele falou que não sabia se essa experiência tinha sido no corpo ou fora do corpo. Nenhum aniquilacionista faz uso dessa linguagem, mas apenas os que acreditam na possibilidade de sair do corpo e voltar. O que, evidentemente, não implicaria na morte do corpo, mesmo a alma se ausentando temporariamente dele. 275 Uma situação físico-biológica que pode ajudar a entender isso é quando uma equipe médica atesta a morte cerebral de um paciente, cujo corpo continua vivo e funcionando, porém sem a “alma”. – 2 Coríntios 12:1-5. O objetivo do Novo Testamento não foi doutrinar seus leitores na crença de que uma alma espiritual sobrevive à morte do corpo físico. Não havia necessidade disso, pois todos naquela época já estavam familiarizados com esse conceito, o qual já vinha desde a época dos primeiros hebreus, conforme foi visto no capítulo 20 e na consideração sobre o suposto dualismo platônico de Matetes. Por isso não existe uma grande quantidade de versículos bíblicos abordando esse tema, embora haja uma abundância de textos com as palavras “espírito” e “alma”. No entanto, quando passagens bíblicas tocam nesse assunto elas sempre estão de acordo com o entendimento vigente da época. Para recapitular, reveja alguns exemplos: “E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28. “A tua filha já está morta, não incomodes o Mestre. Jesus, porém, ouvindo-o, respondeu-lhe, dizendo: Não temas; crê somente, e será salva. . . pondo-os todos fora, e pegando-lhe na mão, clamou, dizendo: Levanta-te, menina. E o seu espírito voltou, e ela logo se levantou; e Jesus mandou que lhe dessem de comer”. – Lucas 9:49, 50, 54, 55, Almeida Fiel. “Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9. “Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém. “Porque a palavra de Deus é viva e exerce poder, e é mais afiada do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e da sua medula”. – Hebreus 4:12. “O próprio Deus de paz vos santifique completamente. Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós, dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 5:23. “Além do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos?. . . Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; a universal assembleia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados;”. – Hebreus 12:9, 22-24, Almeida Fiel. “Estas pessoas prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. Com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:5, 6. 276 “Entregueis tal homem a Satanás, para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor”. – 1 Coríntios 5:5. “Disse-me então: Estas palavras são certas e verídicas; o Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, enviou seu anjo, para mostrar a seus servos o que deve acontecer em breve”. – Apocalipse 22:6, TEB. “E quando abriu o quinto selo, vi por baixo do altar as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa da obra de testemunho que costumavam ter”. – Apocalipse 6:9. “E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus, e os que não tinham adorado nem a fera nem a imagem dela, e que não tinham recebido a marca na sua testa e na sua mão. E passaram a viver e reinaram com o Cristo por mil anos”. – Apocalipse 20:4. Como se percebe, os escritores cristãos não ficaram em absoluto silêncio. Mas do que adianta o Novo Testamento possuir todos esses textos se os aniquilacionistas sempre darão um sentido diferente daquele intencionado por seus escritores? A Torre de Vigia, por exemplo, diz em uma nota da nova Tradução do Novo Mundo que a menção de almas naqueles versículos de Apocalipse “pelo visto se refere ao sangue sustentador de vida derramado junto ao altar”. . . É, pelo visto o que menos importa para os aniquilacionistas é a leitura natural desses textos. O importante é sempre acomodá-los ao que eles querem que a Bíblia diga. Rompendo com a concepção que se tinha na Antiguidade, almas não são mais almas. Seriam apenas representações simbólicas de outra realidade. Lucas Banzoli, em seu livro “A Lenda da Imortalidade da Alma”, também adere à tese do simbolismo para explicar essas duas passagens da Revelação dada a João. Para quem quiser conhecer algumas explicações “bíblicas” dadas por Banzoli para apoiar o aniquilacionismo, sugiro o artigo que está no link abaixo: www.adelmomedeiros.com/pseudobiblicas.htm Sobre o tormento eterno dos iníquos Pessoalmente, eu não vejo problema no conceito de aniquilação futura dos ímpios, após o Julgamento Final. Creio que faz mais sentido Deus erradicar da existência quem não quer viver de acordo com Sua vontade, ao invés de fazer o pecador sofrer eternamente. O único ser que certamente não liga para o sofrimento dos maus é o homem. No entanto, reconheço que os cristãos antigos realmente acreditavam que os ímpios sofrerão eternamente no fogo da Geena espiritual. A literatura da época não deixa dúvida sobre isso e tal conceito está presente na Bíblia, conforme exemplificado nos textos a seguir: “Em Sião, os pecadores ficaram apavorados; o tremor apoderou-se dos apóstatas: ‘Quem de nós pode residir qualquer tempo com um fogo devorador? Quem de nós pode residir qualquer tempo com incêndios de longa duração?”. – Isaías 33:14. 277 “‘E há de acontecer que de lua nova a lua nova e de sábado a sábado chegará a mim toda a carne para se curvar diante de mim’, disse Jeová. ‘E realmente sairão e olharão para os cadáveres dos homens que transgrediram contra mim; pois os próprios vermes sobre eles não morrerão e o próprio fogo deles não se apagará, e terão de tornar-se algo repulsivo para toda a carne’.”. – Isaías 66:23, 24. “E, se o teu olho te fizer tropeçar, lança-o fora; melhor te é entrares com um olho no reino de Deus, do que seres com os dois olhos lançado na Geena, onde o seu gusano não morre e o fogo não se extingue”. – Marcos 9:47, 48. “E o Diabo que os desencaminhava foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde já estavam tanto a fera como o falso profeta; e serão atormentados dia e noite, para todo o sempre”. – Apocalipse 20:10. No entanto, visto que a Bíblia normalmente não possui comentários explicativos sobre o que ela mesma apresenta, acredito que há possibilidade de Deus ter apenas permitido a disseminação dessa ideia do sofrimento eterno, e que a realidade espiritual dessa punição é um pouco diferente do que os primitivos judeus e cristãos pensavam. E convenhamos, da maneira que está posta não deixa de ser um estímulo a mais para que “se ande na linha”. Afinal, quem gostaria de ser queimado para sempre em um lugar pior que um filme de terror? Claro que esta não seria uma motivação muito nobre, porque deve ser o amor a Deus o que nos motiva, mas não deixa de ter alguma efetividade. Portanto, nesse ponto sobre o destino final das almas, minha concepção diverge um pouco do entendimento considerado ortodoxo. Prefiro uma leitura mais literal das palavras a seguir de Jesus: “E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28. Sim, o homem não pode matar a alma de outro homem, pois ela vai para o Seol/Hades com a morte do corpo, conforme já foi bem considerado antes e está exemplificado nos versículos abaixo: “No meio dos meus dias vou descer aos portões do Seol. Terei de ser privado do resto dos meus anos”. – Isaías 38:10. “E tu, Cafarnaum, serás por acaso enaltecida ao céu? Até o Hades descerás”. – Mateus 11:23. “Porque não deixarás a minha alma no Hades”.* – Atos 2:27. * Este é um dos textos que demonstram que a alma não é apenas o ser humano. De acordo com a visão aniquilacionista quando o homem morre a alma deixa de existir. Então, como seria possível uma alma (alguém vivo) ser deixada no Hades? Ainda mais levando em consideração que para os que acham que a alma morre o Hades nada mais é que uma sepultura. Você já viu alguém vivo dentro de uma cova para defunto? Os únicos seres vivos que se encontram nas sepulturas são os vermes e decompositores. 278 Mas Deus não só tem o poder de matar um ser humano, como pode destruir sua alma para sempre. Para mim está muito evidente que é exatamente isto o que Mateus 10:28 está dizendo. E tal concepção realmente pode ser encontrada em alguns autores patrísticos, a exemplo de Taciano e Arnóbio: “A alma em si mesma não é imortal, ó gregos, mas é mortal. No entanto, é possível que ela não morra. Deveras, se ela não souber a verdade, morrerá, e será dissolvida junto com o corpo”. – Diálogo com os gregos, citado em “A Sentinela”, 15/05/03, p. 29. “Mas qual homem não percebe que aquilo que é imortal, o que é [algo] simples [de notar], não pode ser objeto de nenhuma dor? Que o que sofre dor, ao contrário, não pode ser imortal?... Porque eles são banidos, e sendo aniquilados, falecem inutilmente em uma destruição eterna... Pois aquilo que é visto pelos olhos é somente a separação da alma do corpo, não a aniquilação final: esta, eu digo, é a verdadeira morte do homem...”. – Contra os Pagãos, de Arnóbio, Livro II, parágrafo 14. Os que são contra essa ideia do aniquilacionismo final dos pecadores costumam dizer que o verbo “destruir” usado por Jesus não significa aniquilação, mas sim inutilização. Isto porque o Novo Testamento usa a mesma palavra para se referir a vasos que foram quebrados: “Tampouco se põe vinho novo em odres velhos; mas, caso o façam, então os odres rebentarão e o vinho se derramará, e os odres ficarão arruinados”. – Mateus 9:17. O verbo grego traduzido por “arruinar” na citação acima é o mesmo utilizado para se referir ao poder que Deus tem de destruir a alma de alguém. Ele foi traduzido de maneira diferente porque se refere a vasos e não a pessoas. Então, com base nesse fato, os defensores do tormento eterno dizem que a destruição mencionada em Mateus 10:28 não pode significar aniquilação, porque os cacos do vaso que foi quebrado não desaparecem, continuam existindo. Bem, tal informação sem dúvida é pertinente e deve ser considerada. Mas se bem refletirmos, depois que um vaso é quebrado e inutilizado ele deixa de existir. Sobram apenas pedaços do que antes foi um vaso. A função de vaso é o que poderíamos chamar de “alma” nessa comparação. De maneira semelhante, depois que Deus destruísse as almas dos pecadores impenitentes restariam apenas sobras energéticas delas, as quais poderiam, quem sabe, ser aproveitadas por Deus para manter as chamas eternas da Geena. De qualquer maneira, embora a proposta de entendimento que apresentei acima me pareça bem satisfatória ela não importa muito, pois, conforme visto, a Bíblia possui textos claros sobre o tormento eterno. Se eles devem ser entendidos de maneira simbólica* não podemos ter certeza absoluta. Ainda mais porque os antigos não entendiam assim, pelo menos não a maioria deles. * Mas há evidências nesse sentido. Por exemplo: “Então, a morte e o Hades foram precipitados no lago de fogo. . . e o mar já não existe”. (Apocalipse 20:14, 21:1, TEB). A morte não é alguém que possa ser lançado em algum lugar, e Isaías 57:20 diz que “os ímpios são como um mar agitado que não pode acalmar-se” (BJ). De modo que dizer que o Hades será lançado no lago de fogo pode significar apenas 279 que ele deixará de existir, da mesma maneira que o desaparecimento do mar poderia ser apenas uma maneira figurativa de dizer que os maus não mais existirão. Portanto, eles não sofreriam eternamente. O fogo dessa punição é que seria eterno e existiria de fato, a exemplo do que lemos em Miquéias: “Quem é Deus como tu, perdoando o erro e passando por alto a transgressão do restante da sua herança? Certamente não se aferrará à sua ira para todo o sempre, pois se agrada na benevolência. Ele novamente mostrará misericórdia para conosco; subjugará os nossos erros. E a todos os seus pecados lançarás nas profundezas do mar”. O pecado não é algo material que possa ser atirado nas águas, porém o mar realmente existe fisicamente. – Miquéias 7:18, 19. Se tal sofrimento eterno dos maus realmente vier a acontecer eu não terei nenhum problema em aceitar isso. Afinal, o mesmo sol que dá vida nos destruiria se chegássemos perto dele. O que pode ser bom ou ruim para o ser humano brotam da mesma fonte. Assim são as coisas que Deus criou. A opinião que sustento se baseia na minha leitura pessoal da Bíblia e naquilo que eu considero ser mais coerente e justo. No entanto, o que realmente importa é a decisão da Autoridade máxima do Universo, e não nossas opiniões pessoais. 280 Capítulo 22 O APARECIMENTO DE SAMUEL À NECROMANTE FOI VERÍDICO? O primeiro tópico abaixo é a tradução de um comentário que está em uma obra sobre o Antigo Testamento que foi publicada em vários volumes, escrita por Carl F. Keil e Franz Delitzsch, dois renomados eruditos bíblicos. Sobre a transcrição apresentada ressalto o seguinte: 1) O que está transcrito é apenas um trecho do comentário. Sugiro a leitura das demais considerações diretamente no livro. 2) Os colchetes intercalares em azul são meus, a fim de deixar a tradução mais clara. 3) Todas as notas explicativas da citação são minhas, com exceção das duas que foram indicadas com o número “1”. Estas são do autor do texto. 4) O que está apresentado a seguir foi escrito no livro em apenas dois parágrafos. Mas, para tornar a leitura mais agradável, achei melhor aumentar essa quantidade, deixando-os menores. Comentário bíblico sobre 1 Samuel 28:15-22 Biblical Commentary on the Books of Samuel (1876), de Carl Friedrich Keil e Franz Delitzsch, pp. 265-269. Esta narrativa, quando lida sem preconceito, faz lembrar de imediato a impressão transmitida pela Septuaginta em 1 Crônicas 10:13*: ἐπηρώτησε Σαοὺλ ἐν τῷ ἐγγατριμύθῳ του ξητῆσαι, και ἀπεκρίνατο αὐτῷ Σαμουὴλ ὁ προφήτης; e ainda mais claramente em Eclesiástico 46:20, onde se diz de Samuel: “Até depois de sua morte profetizou, e mostrou ao rei seu fim; e levantou sua voz da terra ao profetizar, para apagar a iniquidade do povo”. Entretanto, os pais [da Igreja], os reformadores e os primitivos teólogos cristãos, com muito poucas exceções, assumiram que não foi uma real aparição de Samuel, mas apenas uma imaginária. De acordo com a explicação dada por Efraém, o Sírio, uma imagem aparente de Samuel foi apresentada ao olho de Saul através de artes demoníacas. Lutero e Calvino adotaram a mesma visão, e os mais antigos teólogos protestantes os seguiram em considerar o aparecimento como não sendo nada mais do que um espectro diabólico, um fantasma, ou um espectro diabólico na forma de Samuel, e o anúncio de Samuel como sendo uma revelação diabólica feita com permissão divina, na qual a verdade está misturada com a falsidade.1 * O texto mencionado de Crônicas diz: “Então Saul morreu por causa de suas transgressões, que ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, que ele não manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, Septuaginta Grega (LXX), versão da tradução de Sir Lancelot Brenton. 1 Assim diz Lutero (na sua obra sobre os abusos da Missa, 1522): “O levantamento de Samuel por uma vaticinadora ou bruxa, em 1 Samuel 28:11, 12, certamente foi meramente um espectro do diabo; não somente porque as Escrituras declaram que foi algo feito por uma mulher que estava cheia de 281 diabos (pois, quem acreditaria que as almas dos crentes, que estão na mão de Deus, Eclesiástico 3:1#, e no seio de Abraão, Lucas 16:32, estaria sob o poder do diabo, e de simples homens?), mas também porque evidentemente era contrário à ordem de Deus Saul e a mulher inquirirem os mortos. O Espírito Santo por si mesmo não pode fazer nada contra isto, nem pode Ele ajudar os que agem em oposição a ele.” Calvino também considera a aparição apenas como um espectro (Hom. 100(a) em 1 Sam.): “Isto é certo”, diz ele, “que não foi realmente Samuel, porque Deus nunca teria permitido que Seus profetas fossem sujeitos a tal conjura diabólica. Porque aqui uma feiticeira convoca o falecido da sepultura. Alguém imaginaria que Deus desejou que Seu profeta fosse exposto a tal ignomínia; como se o diabo tivesse poder sobre os corpos e as almas dos santos guardados por Ele? É dito que as almas dos santos estão repousando e vivem em Deus, aguardando a sua feliz ressurreição. Além disso, deveríamos acreditar que Samuel levou consigo a sua capa à sepultura? Por todas estas razões, parece evidente que a aparição não era nada mais que um espectro, e que os sentidos da própria mulher foram assim enganados, a ponto dela pensar que via a Samuel, quando na realidade não era ele”. Os antigos teólogos ortodoxos também disputaram a realidade da aparição do falecido Samuel tão somente pelos mesmos motivos; exs. Seb. Schmidt (Comm.); Aug. Pfeiffer; Sal. Deyling; and Buddeus, Hist. Eccl. V. T. ii p. 243, e muitos mais. # Na verdade, o texto a que Lutero se refere é o de Sabedoria 3:1, e não Eclesiástico 3:1. (a) http://www.ccel.org/c/calvin/opera/opera30/ (pp. 649-660). Foi somente no século XVII que essa opinião sem qualquer fundamento real foi expressa novamente, de que a aparição de Samuel tinha sido meramente uma ilusão produzida pela bruxa. Após Reginald Scotus(a) e Balth. Becker(b) terem se manifestado por tal ideia, ela recebeu um tratamento mais elaborado por Ant. van Dale, em sua dissert. divinatipnihus idololatricis sub VT(c). No assim chamado Iluminismo tal opinião era a prevalecente, de modo que Thenius ainda considera como um fato estabelecido não só que a mulher era uma impostora, mas que o próprio narrador considerava a coisa toda como um embuste. Atualmente não há necessidade de refutar esta opinião. Até mesmo Fr. Boettcher(d) (de inferis, pp. 111 em diante), que considera o episódio como uma impostura, admite que quem primeiro registrou o ocorrido realmente “acreditava que Samuel apareceu e profetizou, contrário à expectativa da bruxa”, e que o autor dos livros de Samuel estava convencido de que o profeta foi levantado e profetizou, de modo que mesmo depois de sua morte, ele provou ser o verdadeiro profeta de Jeová, mesmo que através da intervenção de artes ímpias (cf. Ez. 14: 7, 9*). (a) http://history.hanover.edu/courses/excerpts/260scot.html (b) https://en.wikipedia.org/wiki/Balthasar_Bekker (c) Dissertationes . . . . (1696): De vera ac falsa prophetia; uti et de divinationibus idololatricis judaeorum (1696), de Antonius van. Dale: https://www.prbm.com/interest/17c-d-g.php (d) books.google.com.br/books/about/De_inferis_rebusque_post_mortem_futuris.html?id=sONhAAAAcAAJ&redir_esc=y * O texto mencionado de Ezequiel diz: “Quando um israelita ou um estrangeiro que mora em Israel se afastar de mim, e for tentado a adorar ídolos e deixar que eles o façam pecar, e então for consultar um profeta – eu, o SENHOR, é que lhe darei a resposta! . . . Se um profeta for enganado e der uma resposta falsa, fui eu, o SENHOR, quem o enganou. Eu o tirarei do meio do povo de Israel”. – Nova Bíblia na Linguagem de Hoje. Mas o ponto de vista sustentado pela igreja primitiva não faz justiça à narrativa bíblica; e, portanto, os mais modernos comentaristas ortodoxos são unânimes na 282 opinião de que o profeta realmente apareceu e anunciou a destruição de Saul, não, contudo, em consequência das artes mágicas da bruxa, mas através de um milagre operado pela onipotência de Deus. Isto é mais decididamente favorecido pelo fato da maneira que o narrador profético fala sobre a aparição, dizendo que não era um fantasma, mas o próprio Samuel.* Ele faz isso não somente no ver. 12, “Quando a mulher viu Samuel, ela gritou em voz alta”, mas também nos vers. 14, 15, 16 e 20. * Conforme visto no capítulo 20, tal linguagem é muito presente em toda a Bíblia, e Moisés foi o primeiro escritor bíblico a utilizá-la, seguindo assim a maneira egípcia de se referir aos mortos. É também informado no episódio que ela não apenas reproduz as palavras de Samuel para Saul, nos vers. 16-19, criando a impressão de que é o próprio Samuel quem está falando, como também seu anúncio contem de maneira bem nítida uma profecia sobre a morte de Saul e de seus filhos, que é impossível imaginar que tenha se originado da boca de uma impostora, ou que tenha sido uma inspiração de Satanás. Por outro lado, a observação de Calvino, sobre o entendimento de que “Deus às vezes dá aos diabos o poder de revelar segredos para nós, os quais aprenderam do Senhor”, poderia ser considerada como uma objeção válida, desde que a narrativa nos desse algum indício de que a aparição e a fala foram nada mais que uma ilusão diabólica. Mas ela não faz nada disso. É verdade, a opinião de que a bruxa conjurou o profeta Samuel foi muito apropriadamente debatida pelos primeiros teólogos, e rejeitada por Teodoreto como “profana, e até mesmo ímpia”, mas o texto da Escritura indica de modo suficientemente claro que o caso foi exatamente o oposto, pois se observa que a própria bruxa ficou apavorada com a aparição de Samuel (ver. 12). Shöbel* está, portanto, bastante correto ao dizer: “Não foi pelo chamado do rei idólatra que Samuel veio, nem pelo comando da bruxa, nem do de ninguém que tinha o poder de trazê-lo para cima, ou nem mesmo o de fazê-lo ouvir suas vozes na sepultura de descanso; nem foi sua vinda meramente pela ‘permissão’ divina, que é o mínimo que se poderia dizer. Não, ao invés disso foi pela ordem de Deus que ele deixou a sepultura (?), tal como um servo fiel a quem seu mestre desperta à meia-noite, para deixar entrar um morador da casa que se reteve fora até tarde, e está batendo na porta. ‘Por que você perturba o meu sono?’ seria sempre a pergunta feita ao indesejado que chegou, embora não fosse por seu barulho que o servo se levantou, mas sim pela autoridade de seu mestre. Samuel fez a mesma pergunta”. * Provável referência ao teólogo indicado neste link: http://archive.thetablet.co.uk/article/7thaugust-1915/28/obituary, que é coautor de um livro sobre Patrística chamado “Manual de Patrologia”, o qual pode ser adquirido aqui: archive.org/details/manualofpatrolog00schmuoft. A proibição da bruxaria e da necromancia. (Deut. 28:11; Isa. 8:9), cujos os textos são citados por antigos escritores contra tal conclusão, não exclui a possibilidade de Deus, por Suas próprias razões especiais, ter feito Samuel aparecer. Pelo contrário, o aparecimento em si foi de uma maneira tal que não falharia em mostrar à bruxa e ao rei que Deus não permite que Suas proibições sejam infringidas impunemente. Exatamente a mesma coisa aconteceu quando Deus ameaçou idólatras por intermédio 283 de Ezequiel (ch. 14:4, 7, 8): “Se eles vêm para o profeta, vou respondê-los à minha maneira”. Muito menos ainda existe alguma força [humana em ação] no apelo registrado em Lucas 16:27, quando Abraão se recusa a atender o pedido do homem rico no Hades, para que ele enviasse Lázaro para a casa de seu pai, a fim de pregar o arrependimento a seus irmãos que ainda estavam vivos, dizendo: “Eles têm Moisés e os profetas, ouçam-nos. Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que alguém se levante dentre os mortos”. Por isso não se pode afirmar que o aparecimento em si de um homem morto é algo impossível, pois a descrição feita retrata apenas algo inútil e ineficaz, tanto quanto a preocupação de converter os ímpios. A realidade da aparição de Samuel vindo do reino dos mortos não pode, portanto, ser posta em questão, especialmente porque ela tem um correspondente análogo que é o aparecimento de Moisés e Elias na transfiguração de Cristo (Mat. 17:3; Luc. 9:30, 31); exceto por uma diferença que não deve ser esquecida, que Moisés e Elias apareceram “em glória”, ou seja, em uma forma glorificada, enquanto Samuel apareceu na corporalidade terrena com o manto de profeta que ele usara na terra. Visto que a transfiguração de Cristo foi uma antecipação fenomenal de Sua futura glória celestial, na qual Ele iria entrar após a Sua ressurreição e ascensão, então podemos pensar da aparição de Moisés e Elias “em glória” sobre o monte da transfiguração como uma antecipação da transfiguração celeste deles na vida eterna com Deus. Foi diferente com Samuel, a quem Deus fez subir do Hades por um ato de Sua onipotência. Este aparecimento não é para ser considerado como a aparência de alguém que tinha subido em um corpo glorificado, embora tivesse alguma característica de espírito em sua manifestação externa, de modo que era visível apenas para a bruxa, e não a Saul. Era meramente uma aparência da alma de Samuel, que tinha ido repousar no Hades, [que se apresentou] com as roupas da corporalidade terrena e vestido qual profeta, que foram reassumidas com o objetivo de torná-las visíveis [para a bruxa]. Neste respeito, a aparição de Samuel não se assemelhou às aparições de anjos [que mesmo sendo materialmente] incorpóreos [apareceram] na forma humana e com vestimenta, tais como os três anjos que vieram a Abraão no bosque em Mamre (Gen. 18), e o anjo que apareceu a Manoá (Juíz. 13); ao invés disso, Samuel apareceu com a forma espiritual dos habitantes do Hades, ao invés daquela exceção dos anjos terem se manifestado com aparência humana, os quais se mostraram visíveis aos olhos físicos [ou seja, se materializaram]. Em todos esses casos, a forma corporal e o vestuário foram apenas um arranjo escolhido para a alma ou o espírito, e destinava-se a facilitar a percepção, de modo que tais aparições não fornecem nenhuma prova de que as almas dos homens que partiram possuem uma corporalidade* imaterial.1 * O que o autor talvez quis dizer foi: “Tais aparições não fornecem nenhuma prova de que as almas dos homens que partiram possuem uma corporalidade [de aspecto humano] imaterial”. Isto porque há quem opine que os seres espirituais podem não ter uma aparência humana, e que a Bíblia os 284 apresenta assim porque faz uso de uma linguagem antropomórfica. Compare com o comentário de Keil e Delitzsch sobre Jó 4:12-17: http://biblehub.com/commentaries/kad/job/4.htm. 1 Delitzsch (bibl. Psychol, pp. 427 em diante) tem muito apropriadamente rejeitado não só a opinião de que Samuel# e Moisés foram levantados dentre os mortos, com o objetivo de terem uma aparência transitória, e depois morreram novamente, mas também a ideia de que eles apareceram em seus corpos materiais, uma noção sobre a qual Calvino baseia seu argumento [utilizado] contra a realidade do aparecimento de Samuel. Mas quando menciona sua opinião sobre os anjos que apareceram em forma humana (que ele acha terem assumido esta forma devido aos seus próprios poderes, visto que podem se fazer visíveis para quem quiserem, e infere ainda mais disso, “que a forma externa em que Samuel# e Moisés apareceram {o que corresponde à forma deles quando estavam deste lado da sepultura} foi a produção imaterial de suas naturezas espiritual e psíquica”), ele ignora o fato de que não só Samuel, mas também os anjos, nos casos mencionados, apareceram em roupas de homens, o que não pode ser considerado como uma produção de sua natureza espiritual e psíquica. A vestimenta terrena não é indispensável para a existência de um homem. Adão e Eva não tinham roupas antes da Queda, e não haverá nenhuma roupa material no reino da glória; porque o “linho fino, puro e branco”, com o qual se adorna a noiva para a ceia do casamento do Cordeiro, é “a justiça dos santos”. (Apoc. 19:8). # Aparentemente houve um erro aqui, pois não foi Samuel que apareceu juntamente com Moisés na transfiguração. Foi Elias. Estas duas menções de Samuel podem ser resultado de um equívoco de João Calvino ou do autor do texto. Em apoio a esta minha conclusão há o fato de que Calvino não acreditava na veracidade do relato bíblico de que Samuel aparecera realmente para a necromante, pois ele não se fez visível para todos os presentes, da maneira que fizeram anjos materializados, e teriam feito Moisés e Elias. (Ainda há outra possibilidade no caso destes últimos. Veja 2 Reis 6:15-17). Eu não localizei a obra que traz a mencionada declaração de Calvino, de modo que não pude averiguar esse pormenor, para confirmar ou não a minha suposição. (Fim da transcrição) --Sobre os autores: Carl Friedrich Keil Karl Fredreich Keil (1807-1888) foi um exegeta protestante alemão. Muitos anos depois que terminou seus estudos teológicos em Dorpat e Berlin, aceitou o convite da faculdade de teologia de Dorpat, onde trabalhou por 25 anos nas funções de palestrante e professor de exegese do Antigo e do Novo Testamento e de línguas orientais. Em 1859 se estabeleceu em Leipsic, onde se devotou a obras literárias e assuntos práticos da Igreja Luterana. Em 1887 mudou-se para Rodlitz, onde prosseguiu com suas atividades literárias até sua morte. Ele se manteve estritamente ligado à escola conservadora e ortodoxa de Hengstenberg. Ignorando quase que completamente o criticismo moderno, todos os seus escritos representam a visão de que os livros do Antigo e Novo Testamentos são para ser aceitos como a palavra revelada de Deus. Ele considerava o desenvolvimento da ciência teológica alemã como um erro de fase passageira. 285 O carro-chefe de sua obra é o comentário sobre o Antigo Testamento (1866), que escreveu em parceria com Franz Delitzsch. Ele contribuiu para ela com os comentários de todos os livros de Gênesis até Ester, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os profetas menores. Franz Delitzsch Franz Delitzsch (1813-1890) foi um luterano de Leipsic. De origem judia, estudou em Leipsic onde se tornou professor particular em 1842. Assumiu a posição de professor universitário em Rostock no ano de 1846, depois em Erlangen em 1850, e em seguida Leipsic novamente, em 1867. Sua atividade exegética começou seriamente em Erlangen, onde ele preparou de maneira independente e em parceria com Karl Keil um dos dos melhores comentários sobre o Antigo Testamento (Jó, Salmos, Provérbios, Cânticos de Salomão, Eclesiastes e Isaías, em 1866) que foi produzido na Alemanha. Logo em seguida eles foram traduzidos para o inglês e publicados em Edimburgo. Delitzsch se opunha à ideia “da teologia cercar-se da Fórmula de Concórdia*”. Numa introdução ao comentário sobre Gênesis, publicado em 1887, ele deixou claro que a Bíblia, como literatura da revelação divina, não pode se permitir ser ameaçada por falta de veracidade ou se furtar de sua base histórica. Em 1886 ele fundou um seminário em Leipsic no qual os candidatos de teologia eram preparados para atividade missionária direcionada aos judeus. Em homenagem a ele é hoje chamado de Institutum Judaicum Delitzschianum.** * A Fórmula de Concórdia (1577) é uma obra que foi escrita com o objetivo de definir “ainda mais a posição luterana em referência a controvérsias dentro e fora de suas fileiras”. Ela e mais cinco outras obras formaram o que ficou conhecido por “Livro da Concórdia”, o qual apresenta as confissões de fé da Igreja Luterana, com referências aos antigos credos do Cristianismo, a exemplo do credo niceno. É basicamente uma coleção de padrões doutrinais que servem de parâmetro para as Igrejas Luteranas de todo o mundo. – http://global.britannica.com/topic/creed#ref537810 ** Delitzsch também traduziu o Novo Testamento para o hebraico, e sua versão é considerada uma das melhores já feitas. Para adquiri-la entre aqui: archive.org/details/hebrewnewtestam00deli. A Enciclopédia Judaica contesta a informação que Delitzsch tenha vindo de uma família judia, e informa que ele apenas nutria simpatia pelo povo judeu e teve uma formação voltada para o judaísmo porque o padrinho dele era judeu. Biografias publicadas em: http://www.studylight.org/commentaries/kdo/ As duas notas acima são minhas e não estão originalmente nessa biografia conjunta. O link acima possui uma versão online de todos os volumes dos comentários de Keil e Delitzsch sobre o Antigo Testamento. 286 Argumentações apresentadas contra a legitimidade do relato “Uma coisa é muito clara: não foi o profeta Samuel quem apareceu a Saul” “Razões Bíblicas que nos mostram que a Sessão de En-Dor foi forjada por Satanás” “Não podemos defender que seja verdadeiro e vindo de Deus uma ação vinda do inferno e pela eficácia de satanás” As declarações acima são apenas alguns exemplos do que muitos cristãos, geralmente evangélicos, costumam concluir sobre a narrativa do aparecimento de Samuel para a necromante. Como se nota, são opiniões muito fortes e de tom condenatório. Os que se expressam dessa maneira certamente devem se sentir muito seguros quanto à base bíblica para tais opiniões. O objetivo aqui é comentar brevemente qual seria esse fundamento. Antes de fazer isso, porém, releia a essência do relato: “Então a mulher perguntou: – Quem é que você quer que eu faça subir? – Samuel! – respondeu ele. Quando a mulher viu Samuel, deu um grito e disse a Saul: – Por que o senhor me enganou? O senhor é o rei Saul! – Não tenha medo! – respondeu o rei. – O que é que você está vendo? – Estou vendo um espírito subindo da terra! – disse ela. – Como é o jeito dele? – perguntou Saul. – É um velho que está subindo! – respondeu ela. – Ele está todo enrolado numa capa. Aí Saul entendeu que era Samuel: ajoelhou-se e encostou o rosto no chão, em sinal de respeito”. – 1 Samuel 28:11-14, Nova Tradução na Linguagem de Hoje. A primeira conclusão que se tira é que quem escreveu o texto acima realmente acreditava que ali era Samuel. Devido a isto, como alguém se sentiria à vontade para dizer que foi o aparecimento de um demônio, ao passo que o autor do texto informa que foi Samuel? Certamente ninguém. Pelo menos não alguém que diga acreditar na Bíblia qual Palavra inspirada de Deus. Então, qual foi a “solução” encontrada para esse problema? Veja a seguir as argumentações normalmente apresentadas. 1. O registro foi feito por uma testemunha ocular infiel Alguns dizem que o séquito que acompanhou Saul era composto de israelitas que não ligavam muito para as leis de Jeová, sendo geralmente de famílias de origem estrangeira que introduziram furtivamente conceitos das nações pagãs nos lares israelitas. Por isso a necromancia seria uma prática aceitável para muitos israelitas. A Bíblia informa que o próprio Saul tomou medidas para que essa prática fosse banida da nação. Ironicamente, ele mesmo acabou recorrendo à necromancia quando se viu desesperado. Mas qual seria a evidência bíblica para essa suposição do testemunho ocular infiel? Um dos textos citado em favor dela é aquele que menciona um dos interlocutores de Jó, que expressou opiniões erradas registradas na Bíblia e foi repreendido por Deus. Diz o relato: “E sucedeu que, depois de Jeová ter falado estas palavras a Jó, Jeová passou a dizer a Elifaz, o temanita: ‘Minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois companheiros, 287 pois não falastes a verdade a meu respeito assim como fez meu servo Jó. E agora, tomai para vós sete novilhos e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e tereis de oferecer um sacrifício queimado em vosso próprio favor; e o próprio Jó, meu servo, orará por vós. Somente aceitarei a face dele, para não cometer uma ignominiosa insensatez convosco, pois não falastes a verdade a meu respeito assim como fez meu servo Jó.’ Por conseguinte, Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita, foram e fizeram assim como Jeová lhes falara; e, assim, Jeová aceitou a face de Jó”. – Jó 42:7-9. Não é difícil concluir que as duas situações não têm relação entre si, ainda mais levando em consideração os comentários que se seguirão. As opiniões de Elifaz, Bildade e Zofar eram, como o próprio nome diz, apenas opiniões. Nenhum deles foi o narrador da história de Jó. O que é contado em 1 Samuel já é um caso bem diferente. O que lá está expresso saiu das mãos de quem escreveu o relato. Além disso, a própria Bíblia esclarece que as opiniões dos três falsos amigos de Jó estavam erradas. O que já não acontece sobre o que foi dito sobre o episódio em En-dor. Logo, considerando o princípio bíblico de que ‘não se deve ir além do que está escrito’ (1 Coríntios 4:6), esse primeiro argumento dos que se opõem ao relato não passa de uma opinião sem nenhuma garantia de estar correta. 2. A identificação foi só uma maneira de dizer Outra explicação que formularam é que o espírito foi chamado de “Samuel” porque seria uma peculiaridade bíblica, como se fosse um recurso estilístico. Citam como exemplo dessa teoria os anjos materializados que apareceram para humanos. Eles foram chamados de “homens” apenas porque se pareciam com homens. Era a impressão visual que se tinha deles. A única “vantagem” dessa explicação é que ela elimina a desconfortável conclusão que Deus teria inspirado seu escritor registrar uma mentira que fez os antigos judeus acreditarem naquele retorno temporário de Samuel. O que explicaria a maneira que 1 Crônicas 10:13 foi traduzido na Septuaginta e o que foi dito em Eclesiástico 46:13, 20. A desvantagem é que esse argumento é bastante forçado e, novamente, sem fundamentação bíblica segura, já que o livro de Samuel não tem tal esclarecimento ou algo que sugira esse ponto de vista. Se apenas citar exemplos de textos que tratam de outras situações envolvendo seres espirituais é um critério válido, aquele de Atos 12:13-15 serve para demonstrar precisamente o entendimento contrário. Quando a serva Rode disse que achava que Pedro estava do lado de fora, ela nem tinha aberto a porta ainda. Ela o reconheceu por sua voz. E quando os discípulos que estavam dentro da casa chegaram à conclusão que era o anjo de Pedro, eles não tinham visto ninguém. Eles apenas expressaram uma crença que tinham, que não dependia de qualquer impressão visual. Sendo assim, qual é a melhor opção? Acreditar na Bíblia ou em teorias propostas por quem quer “demonizar” o relato? Muitos escolhem a segunda opção porque é a única maneira do caminho ficar livre para as demais críticas, que serão agora comentadas. 288 3. Uma seguidora de demônios não teria poder sobre um profeta de Deus Conforme visto na obra de Keil e Delitzsch é um equívoco achar que Samuel veio do Seol pela ordem da necromante. Embora ela não tivesse noção disso, quem supõe ter algum tipo de poder, na verdade não tem. O verdadeiro detentor de poderes é Deus, conforme se pode concluir do diálogo de Jesus com Pilatos: “Pilatos lhe disse então: ‘É comigo que te recusas a falar? Não sabes que eu tenho o poder de te soltar como tenho poder de te crucificar? Mas Jesus lhe respondeu: ‘Não terias poder algum sobre mim se não te houvesse sido dado do alto’.”. – João 19:10, 11, TEB. E no caso específico do aparecimento de Samuel se aplica o texto abaixo, que se encontra precisamente no mesmo livro que nos conta a história de En-dor: “Jeová é Quem faz morrer e Quem preserva a vida, quem faz descer ao Seol, e Ele faz subir”. – 1 Samuel 2:6, 7. Note que o texto não diz “levantar”, que seria uma alusão mais específica à ressurreição, mas sim “subir”, o mesmo verbo utilizado na pergunta da necromante ao rei: “Quem é que você quer que eu faça subir?”. Além disso, não é dito que Deus “pode” fazer subir, mas sim que ele faz subir. Certamente não é coincidência haver esse esclarecimento no próprio livro de Samuel. Coisa que não acontece com nenhuma das teorias propostas pelos que não creem no relato. Os que defendem a “demonização” desse registro bíblico deveriam ficar bastante preocupados por terem aderido a essa opinião, pois é muito sério atribuir ao Diabo o que é de Deus. Isto se nota quando Jesus comentou o pensamento dos fariseus, segundo os quais Jesus expulsava demônios por meio de Satanás: “Ouvindo isso, os fariseus disseram: ‘Este não expulsa os demônios senão por meio de Belzebu, o governante dos demônios.’ Conhecendo os pensamentos deles, [Jesus] disse-lhes: ‘Todo reino dividido contra si mesmo cai em desolação, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não permanece. . . Por esta razão, eu vos digo: Toda sorte de pecado e blasfêmia será perdoada aos homens, mas a blasfêmia contra o espírito não será perdoada’.”. – Mateus 12:24-31, colchetes acrescentados. 4. Deus se recusou a responder a Saul Se Deus não quis esclarecer a Saul pelos meios autorizados, por qual motivo ele permitiria que Samuel fizesse isso depois de morto? Neste caso, se aplica o princípio do texto abaixo: “Não te precipites, para que não saias de diante dele. Não fiques de pé numa coisa má. Pois fará tudo o que se agradar de fazer, porque a palavra do rei é o poder do controle; e quem lhe pode dizer: ‘Que estás fazendo?’. ”. – Eclesiastes 8:3, 4; compare com Malaquias 1:14. 289 Sim, Deus é o grande Rei do universo, e o que ele decide fazer ele faz, e ninguém pode contestar. Ele é incapaz apenas de mentir (Hebreus 6:18). Ele executa o que quiser, por suas próprias razões e à sua própria maneira, conforme nos lembrou Carl F. Keil ao citar o texto a seguir: “Assim diz o SENHOR Deus: Se alguém da casa de Israel instalar ídolos no coração, colocar diante de si o tropeço que o faz pecar e depois se dirigir a um profeta, eu, o SENHOR, lhe darei a resposta por causa da multidão de seus ídolos. . . Voltarei minha face contra tal pessoa e farei dela um exemplo proverbial, exterminando-a do meio do meu povo. Assim sabereis que eu sou o SENHOR. . . Quanto ao profeta que se deixar seduzir e pronunciar um oráculo, fui eu quem o seduziu. Estenderei a mão contra ele e o exterminarei do meio do meu povo Israel. Ambos serão culpados; a culpa do consulente será idêntica à do profeta consultado”. – Ezequiel 14:4, 8, 9, 10, CNBB. O que aconteceu no relato sobre Saul foi exatamente isso. Deus respondeu a ele no meio de “ídolos” (necromancia), porém o eliminou no meio do povo, como forma de exemplo e de punição por seus pecados, inclusive o de ter consultado uma necromante (“profeta”).* * De acordo com várias referências, o objetivo primário da necromancia nos tempos antigos era convocar espíritos para que eles previssem o futuro do interessado. Era a arte do vaticínio. Então, os vaticinadores eram vistos como se fossem oráculos ou “profetas”. É interessante que nem sempre os profetas de Deus foram chamados assim. A Bíblia diz: “Antigamente, em Israel, era assim que o homem falava ao ir buscar a Deus: ‘Vinde e vamos ao vidente.’ Pois o profeta de hoje costumava ser chamado outrora de vidente”. A mudança na linguagem talvez tenha sido para diferenciar os que profetizavam em nome de Deus daqueles que previam em nome de qualquer espírito. – 1 Samuel 9:9. Sobre esse ponto, sugiro ainda que leia novamente a nota da Bíblia do Peregrino que está transcrita no capítulo 16, na página 187. 5. Saul não pode ter ido para o mesmo lugar de Samuel De acordo com o texto bíblico, Samuel disse para Saul: “Amanhã tu e teus filhos estarão comigo”. – 1 Samuel 28:18. Alguns raciocinam que Saul jamais poderia ir para onde Samuel estava, pois Samuel estaria no céu e Saul teria que obrigatoriamente ir para o inferno porque se matou. É opinião muito comum nas religiões que o lugar de todos os suicidas é no inferno*. Mas tais conclusões se baseiam mais em concepções religiosas atuais do que propriamente na Bíblia, pois não existe nela essa regra de que todos que se matam vão para o “inferno” e todos os bons vão para o céu. * Particularmente, eu não acho que isso estaria de acordo com a justiça de Deus. Sabemos que muitos que chegam ao ponto de tirar a própria vida estão mentalmente perturbados, mergulhados em tristezas e com forte depressão. Então, não bastasse esse sofrimento em vida ainda teriam que sofrer terrivelmente debaixo da terra e para sempre? Pessoas em seu estado normal não se matam. O que Saul fez é uma exceção. E há registros de outros que preferiram o suicídio ao invés de se entregar aos inimigos. Foi o caso, segundo dizem, de Adolf Hitler, quando viu que a guerra estava perdida para ele. 290 Outra argumentação semelhante, porém mais de acordo com o que a Bíblia informa, é que Samuel estava no Seio de Abraão, e não seria de se esperar que Saul fosse para lá também. E isto é verdade. No entanto, de acordo com a Bíblia, tanto os justos quanto os ímpios vão para o Seol. Então, a conclusão mais natural é que Samuel se referiu ao Seol de uma maneira geral. Ele não devia ter em mente esse detalhe da divisão do Seol em vários setores, conforme explicado no livro apócrifo de Enoque e em outras fontes judaicas. Sim, diferentemente do que pensam alguns, o Seio de Abraão não fica no céu, pelo menos não o céu onde Deus está.* Pela concepção judaica, o mundo de bemaventurança e o de sofrimento ficavam ambos debaixo da Terra, conforme explicou o historiador judeu Flávio Josefo: “Eles crêem que almas têm poder de sobreviver à morte e que há recompensas e punições debaixo da terra para os que levaram uma vida de virtude ou uma de vício: encarceramento eterno é o destino das almas más, ao passo que as almas boas recebem passagem fácil para uma nova vida”. – Jewish Antiquities, XVIII, 14 [i, 3], tradução da Torre de Vigia, que aparece no Estudo Perspicaz, vol. 2, p. 107. * Com base em Efésios 4:8, 9, há teólogos que sugerem que o Seio de Abraão foi transferido para o céu depois que Cristo foi ressuscitado e voltou para lá. É uma forte possibilidade, conforme visto no capítulo 7 deste livro. Portanto, Saul foi para o mesmo lugar que qualquer pessoa iria ao morrer: o Seol, ou Hades. 6. O verdadeiro Samuel não teria aceitado a reverência de Saul Outra coisa que dizem é que Samuel não fez nenhuma objeção ao gesto de Saul em se prostrar, em reverência ao profeta. Um verdadeiro profeta de Deus recusaria tal homenagem porque só Deus pode ser saudado dessa maneira, pois é o único que merece adoração. Sobre essa questão do que viria a ser um verdadeiro ato de adoração seria necessário no mínimo um artigo para analisar o assunto. Há evidências que indicam uma visão um pouco diferente sobre o ato de adorar, e que este não é exatamente o que muitas pessoas supõem. Mas tratar desse ponto não é o objetivo aqui. Confesso que fico admirado em pessoas postularem esse argumento da inércia de Samuel por não dizer nada contra a atitude de Saul. Será que elas não se lembram que era um ato comum nos tempos antigos se curvar diante de reis e autoridades? Não vejo na atitude de Samuel nada mais do aceitar tal costume. E há vários textos na Bíblia que podem ser usados como exemplo. Note um deles: “Então o próprio Rei Nabucodonosor lançou-se com o rosto por terra e prestou homenagem a Daniel, e ele disse que se lhe oferecessem um presente e incenso. O rei respondeu a Daniel e disse: ‘Verdadeiramente, vosso Deus é Deus de deuses e Senhor de reis, e Revelador de segredos, porque pudeste revelar este segredo.’ 291 Conseqüentemente, o rei fez de Daniel alguém grande e deu-lhe muitas dádivas grandes, e o fez governante de todo o distrito jurisdicional de Babilônia e prefeito supremo sobre todos os sábios de Babilônia. E Daniel, da sua parte, fez uma solicitação ao rei e este designou Sadraque, Mesaque e Abednego sobre a administração do distrito jurisdicional de Babilônia, mas Daniel estava na corte do rei”. – Daniel 2:46-49. O relato acima é muito mais amplo do aquele cumprimento de Saul a Samuel. Nota-se que o rei não apenas se curvou diante de Daniel, mas também mandou acender incenso para ele, deu-lhe presentes e lhe conferiu grande poder político no país. Daniel recusou qualquer uma dessas coisas? Evidentemente, não. Mas isso não caracterizou uma postura inadequada da parte dele qual profeta. 7. A Bíblia diz que Saul morreu porque buscou a necromante “Saul pereceu por se ter mostrado infiel para com Iahweh: não seguira a palavra de Iahweh e, além disso, interrogara e consultara um espectro”. – 1 Crônicas 10:13, 14, BJ. Certamente, um dos motivos que o levou à morte foi procurar uma necromante. Mas, como se nota no texto acima, não foi o único. Primariamente, ele pereceu porque se mostrou infiel a Iahweh. Este foi o verdadeiro motivo. É o que revela uma leitura completa de sua história. O que Saul fez claramente foi errado, pois a Lei era muito clara em proibir a prática da necromancia. Mas isto em si não impediria um retorno temporário de Samuel se fosse da vontade de Deus. As duas situações não são mutuamente exclusivas. Elas coexistiram no relato, como se percebe ao considerar todos os pontos deste capítulo. A propósito, de acordo com muitas traduções da Bíblia a parte final do versículo diz que o pecado de Saul foi consultar uma necromante (“médium”), e não consultar um espectro ou espírito. No entanto, mesmo não havendo unanimidade, me parece que a melhor tradução em 1 Crônicas 10:13, 14 é “espírito” mesmo.* * A palavra hebraica heb pode ser traduzida tanto por “espírito” quanto por “necromante” (ou “vaticinadora”). Mas na maioria das vezes se refere a espíritos. – Veja Womens’s Divination in Biblical Literature – Prophecy, Necromancy and other Arts of Knowledge (2015), Universidade de Yale, de Esther J. Hamori, pp. 106-110. E, conforme visto antes, a Septuaginta grega traduz essa passagem assim: “Então Saul morreu por causa de suas transgressões, as quais ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, porque ele não a manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, LXX. Visto que o próprio livro de Samuel diz que foi ele quem apareceu, a parte final da tradução acima está em perfeito acordo com a narrativa, e não deve ser desqualificada. 8. A profecia não foi novidade porque Saul já tinha ouvido o mesmo antes Quando o profeta Samuel estava vivo na terra, ele informou a Saul que Deus o havia rejeitado como rei e iria transferir o reinado para outra pessoa, pois Saul não 292 obedecera a ordem de Deus para destruir Amaleque completamente (1Samuel 15: 1029). Ao retornar do mundo dos mortos, Samuel recapitulou o acontecido: “Iahweh fez por outro como te havia dito por meu intermédio: tirou das tuas mãos a realeza e a entregou a Davi, porque não obedeceste a Iahweh e não executaste o ardor de sua ira contra Amalec. Foi por isso que Iahweh te tratou hoje assim. Como consequência, Iahweh entregará, juntamente contigo, o teu povo Israel nas mãos dos filisteus. Amanhã tu e os teus filhos estareis comigo; e o exército de Israel também: Iahweh o entregará nas mãos dos filisteus”. – 1 Samuel 28:17-19, Bíblia de Jerusalém. Alguns demonizadores da narrativa dizem que as informações apresentadas para Saul não eram nenhuma novidade, mas apenas uma repetição do que o profeta Samuel havia dito antes de morrer. Entretanto, uma simples comparação entre 1 Samuel 28:17-19 e 15:10-29 demonstra que esse argumento é apenas parcialmente verdadeiro. De fato, Samuel recapitulou o que havia falado para Saul. No entanto, algumas coisas ditas em En-dor não tinham sido mencionadas por Samuel quando ele estava vivo, sendo elas: 1) Que Davi foi o rei escolhido para substituir Saul.* * Esta informação também não era novidade, porém, no encontro anterior que Samuel tivera com Saul, ele apenas disse que a realeza seria transferida para outro, mas sem identificar o escolhido. Só depois é que Davi foi escolhido, quando Samuel ainda estava vivo. 2) Que Saul seria entregue aos filisteus e morreria. 3) Que os filhos de Saul morreriam também. 4) E que o exército de Israel sucumbiria às mãos dos filisteus. Note qual foi a reação de Saul ao ouvir essas palavras: “Imediatamente, Saul caiu estendido no chão, terrificado pelas palavras de Samuel, e também enfraquecido por não ter se alimentado todo o dia e toda a noite”. – 1 Samuel 28:20, BJ. Foi bem diferente da maneira que ele se comportou no penúltimo encontro com o profeta. Depois que Samuel comunicou o fim precoce de sua dinastia, Saul disse apenas o seguinte: “Eu pequei, contudo, eu te suplico, honra-me diante dos anciãos do meu povo e diante de Israel e volta comigo para que eu adore a Iahweh teu Deus”. – 1 Samuel 15:30, BJ. Nesse encontro anterior com Samuel, o rei Saul ainda não sabia sobre o seu fim trágico. Ele só foi informado disso quando o profeta apareceu para a necromante. Portanto, como é que alguns podem dizer que não houve nenhuma novidade naquilo que Saul ouviu em En-dor? A meu ver, a única coisa que justifica tal conclusão é o forte 293 desejo de querer, por fim da força, que a Bíblia desqualifique o que ela própria está informando. E sobre as profecias ouvidas por Saul, as quais também são objeto de crítica, comentarei mais adiante. 9. Não foi pelos meios autorizados Que não foi pelos meios autorizados por Deus que Saul soube do seu fim, isto é mais do que óbvio. Ele não recebia mais informações por tais canais. Ele foi à busca da necromante devido a isso, e escutou o que não queria ouvir. O que foi comentado no ponto 4 também se aplica aqui. Deus tem autoridade para usar os meios que quiser para expor suas verdades. O “autorizado” e o “não autorizado” se aplica somente aos que estão sujeitos à sua lei. Desde que ele próprio não decida para si alguma limitação, não se pode alegar determinados aspectos da lei mosaica como justificativa para desqualificar o relato inspirado. Recordemos como se deu a morte do bom rei Josias, que reuniu um exército para lutar contra Neco, o idólatra faraó do Egito. Neco disse que estava com Deus e pediu a Josias que desistisse da batalha. Mas Josias não o escutou e foi mesmo assim. Acabou morrendo no combate. Sobre esse evento, note o que a Bíblia diz: “Josias não virou sua face dele, mas disfarçou-se para lutar contra ele e não escutou as palavras de Neco provenientes da boca de Deus”. – 1 Crônicas 35:22. Quem conhece as crenças dos antigos egípcios sabe muito bem quão idólatras e praticantes de artes mágicas eles eram. O próprio faraó era considerado um deus. Entretanto, a Bíblia informa que Deus fez um pedido a Josias através do faraó Neco. Por não escutá-lo pagou com a vida. Portanto, Deus pode usar excepcionalmente pessoas “no meio de ídolos” para expor sua palavra, conforme Ele mesmo disse em Ezequiel 14:4-9. A propósito, você sabe quais eram os meios autorizados mencionados pelos que desabonam o relato bíblico sobre a visita de Samuel a En-dor? Eram os sonhos, os profetas e uma peça sagrada chamada Urim, que era consultada em caso de necessidade. Num tópico mais à frente há um comentário sobre isso. – 1 Samuel 28:6. 10. Se fosse Samuel ele não teria se poluído em uma sessão espírita Esta conclusão claramente é uma consequência da visão atual que geralmente se tem sobre o assunto. Novamente, é uma tentativa de impor ao texto bíblico uma conclusão de natureza religiosa que não está especificada na Bíblia, pelo menos não nesses termos. A Bíblia não chama aquilo que houve de “sessão espírita”. E nem haveria como, pois tal expressão ainda não existia. Embora essa comparação seja naturalmente inevitável, 294 fiando-se somente no relato bíblico e em obras de referência, chegar-se-á à conclusão que a necromancia era outra coisa. Além disso, cabem aqui os mesmos comentários dos pontos 4 e 9. Deus, por suas próprias razões, pode mudar algumas coisas, de maneira provisória ou permanente. Por exemplo, apenas para comparar, a mesma lei que proibia o vaticínio e a consulta aos mortos, restringia também alguns alimentos para os judeus, a exemplo de carne de porco. Note agora o que aconteceu certa vez com o apóstolo Pedro, que era judeu: “Mas, enquanto preparavam a comida, [Pedro] entrou em êxtase. Viu o céu aberto e algo como um grande pano ser baixado pelas quatro pontas para a terra. Dentro do pano havia toda espécie de quadrúpedes e répteis da terra e de aves do céu. E uma voz lhe disse: ‘Levanta-te, Pedro, mata e come!’ Mas Pedro respondeu: ‘De modo algum, Senhor! Nunca comi coisa profana ou impura. A voz lhe falou pela segunda vez: ‘Não chames de impuro o que Deus tornou puro’. Isso se repetiu por três vezes. Depois, o objeto foi imediatamente recolhido ao céu. “Enquanto Pedro tentava descobrir o significado da visão que acabava de ter, os homens enviados por Cornélio [um pagão], tendo-se informado sobre a casa de Simão, apresentaram-se à porta. Chamaram para perguntar se aí se hospedava Simão, conhecido como Pedro. Pedro estava ainda refletindo sobre a visão, mas o Espírito lhe disse: ‘Estão aqui três homens que te procuram. Levanta-te, desce e vai com eles, sem hesitar, pois fui eu que os mandei’. Pedro desceu ao encontro dos homens e disse: ‘Sou eu a quem estais procurando. Qual é o motivo que vos traz aqui?’ Eles responderam: ‘O centurião Cornélio, homem justo e temente a Deus, estimado por toda a população judaica, recebeu de um anjo santo a ordem de te convidar à sua casa, a fim de ouvir o que podes dizer-lhe’. Pedro então os fez entrar e lhes ofereceu hospedagem. “. . . [Ao entrar na casa de Cornélio] encontrou muitas pessoas reunidas e disse-lhes: “Vós bem sabeis que a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro ou entrar em sua casa. Ora, Deus me mostrou que não se deve dizer que algum homem é profano ou impuro. Por isso, logo que me mandastes chamar, eu vim sem hesitar. Agora pergunto: por que motivo me mandastes chamar?”. – Atos 10:9-23, 27-29, CNBB, colchetes acrescentados. 11. Jeová é Deus dos vivos e não dos mortos “Mas, que os mortos são levantados, até mesmo Moisés expôs, no relato sobre o espinheiro, quando ele chama Jeová ‘o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’. Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem”. – Lucas 20:37, 38. Temos aqui outro exemplo de aplicação forçada de um texto bíblico, segundo a qual Jeová jamais poderia apresentar alguma informação mediante um morto, porque ele é Deus somente de vivos. Quem pensa nesse texto dessa maneira parece se esquecer que os vivos a que os versículos se referem são os mortos do ponto de vista humano. 295 Os “mortos” a quem Jesus se referiu na verdade estão vivos na realidade espiritual de Deus. Então, se Ele desejar que algum deles se apresente para olhos humanos assim acontecerá. De fato, foi o que ocorreu também na transfiguração de Cristo. Por que não fazer a mesma aplicação do texto de Lucas 20:38 à transfiguração? Afinal, temos ali também dois “mortos” conversando com Jesus. Se tanto no relato da transfiguração quanto no de En-dor o narrador informa quem eram os personagens, por que aceitar um e rejeitar o outro? – Compare com Filipenses 2:10, 11. 12. A necromante apresentou três descrições conflitantes do que viu Segundo o capítulo 28, a necromante teria dito que viu primeiramente Samuel (v. 12), depois deuses (v. 13) e em seguida um velho com uma capa (v. 14). Então, isso seria uma evidência da falta de coesão do que foi informado. Há uma clara distorção na maneira que essas informações foram colocadas. Basta ler o relato para perceber. Será que os que dão esse tipo de explicação acham que o leitor não irá verificar diretamente na Bíblia o que foi dito? Primeiro, a mulher não disse que viu Samuel. O que a Bíblia informa é que quando Samuel apareceu, ela soltou um grito terrível. Certamente porque se deparou com uma figura que não esperava ver.* Ao ser indagada sobre quem estava vendo, ela disse que era um “deus” subindo da terra. Ela não disse que estava vendo Samuel subindo da terra, até porque ela nem deve tê-lo conhecido quando estava na Terra. * Isto é outra evidência que aquilo ocorrido em En-dor não equivale ao que se poderia chamar de “sessão espírita”, pois atualmente os médiuns “incorporam” o espírito e este passa a comandar a fala e os movimentos do incorporado. Embora eu nunca tenha visto uma sessão mediúnica, até onde eu sei os médiuns kardecistas não enxergam ninguém diante deles, e nem ficam repetindo aquilo que ouvem para os interessados, o que parece ter acontecido em En-dor. Afirmar que a mulher disse que estava vendo “deuses”, ao invés de “um deus”, só é uma leitura possível porque no hebraico realmente consta o plural Elohim. No entanto, quem conhece esse termo sabe que ele é traduzido para os outros idiomas no singular, quando é usado em referência a Deus. Ele normalmente só é vertido no plural quando claramente se aplica a mais de uma pessoa, como é o caso do Salmo 8:5, onde Elohim se refere aos anjos. Mas não é o caso do que aconteceu em En-dor, mesmo considerando que originalmente o verbo foi colocado no plural também. Embora algumas traduções tenham “deuses” em 1 Samuel 28:13, esta não é a tradução mais acertada, se consideramos o contexto. Sem dúvida alguma a narrativa se refere apenas a um indivíduo: o profeta Samuel. A necromante não variou a quantidade do que estava vendo. Era sempre uma só pessoa, do início ao fim. Quando ela se referiu a Samuel como sendo um deus, certamente foi porque ele se fez visível para ela de uma maneira que chamou muito sua atenção, talvez algo que lembrasse um pouco a maneira que Moisés e Elias apareceram para os apóstolos, durante a transfiguração de Cristo. Pela reação dela, aquela mulher nunca tinha visto nada igual. O judeu Flávio Josefo, do primeiro século, disse que quando Samuel 296 “apareceu, e a mulher viu que era alguém muito venerável, e com divina forma, ela entrou em desordem”. Foi assim que os antigos entenderam o relato. Depois que o rei pediu para ela não ter medo, ela se recompôs e deu maiores detalhes da visão. Disse que o ser a quem estava vendo era um homem idoso vestindo um manto. Com esse detalhamento foi Saul quem concluiu que era Samuel. E o diálogo que se seguiu, além dos eventos subsequentes, comprovou isso. Portanto, não houve contradição alguma na sequência de eventos relatada. Basta que se leia o texto sem preconceitos em mente para visualizá-lo da maneira correta. 13. Samuel não poderia ter reclamado caso Deus o tivesse enviado Sim, acredite. Isto também é alegado... Como sabemos, a primeira coisa que Samuel disse ao chegar foi perguntar o motivo de Saul tê-lo incomodado. Sendo um profeta consagrado de Deus, Samuel jamais reclamaria de uma missão, caso realmente tivesse sido enviado por Ele. Será que as pessoas que pensaram nisso não se lembraram das queixas de Jonas e de outros profetas? – Jonas 1:3; 4:1; Jeremias 12:1. De qualquer maneira, Samuel fez uma simples pergunta: “Por que me inquietaste, fazendo-me subir?”. Por que ela denotaria má vontade do profeta? É muito melhor entender essas palavras de acordo com a ilustração que foi apresentada na obra de Keil e Delitzsch, citada na página 283. 14. Quem sobe vem do inferno e não do céu Ou seja, se tivesse sido Samuel ele tinha descido e não subido. Aqui é outra confusão que se faz devido à crença comum que se tem hoje em dia de que os justos estão no céu e os ímpios e demônios estão no “inferno de fogo”. Mas, como foi visto no ponto 5, o subir de Samuel é uma referência ao Seol bíblico, para onde vão as almas de quem morre. E se alguém sair temporariamente de lá, sem ser mediante a ressurreição, é pelo poder de Deus, Aquele que faz descer e subir do Seol. – 1 Samuel 2:6, 7. Samuel e outros profetas até podem estar no céu atualmente, mas não existe nada na Bíblia que nos leve a crer que eles estavam lá no tempo de Saul. O lugar de onde qualquer um deles viria seria lá de baixo, do Seol. 15. As profecias não se cumpriram de maneira perfeita Falas e profecias de Samuel: “Samuel disse a Saul: ‘Por que perturbas o meu descanso evocando-me?’ Saul respondeu: ‘É que estou em grande angústia. Os filisteus guerreiam contra mim. Deus se afastou de mim, não me responde mais, nem pelos profetas, nem por sonhos. Respondeu Samuel: ‘Por que me consultas, se Iahweh se afastou de ti e se tornou teu adversário? Iahweh fez por outro como te havia dito por meu intermédio: tirou das tuas mãos a realeza e a entregou a Davi, porque não obedeceste a Iahweh e 297 não executaste o ardor de sua ira contra Amalec. Foi por isso que Iahweh te tratou hoje assim. Como consequência, Iahweh entregará, juntamente contigo, o teu povo Israel nas mãos dos filisteus. Amanhã tu e os teus filhos estareis comigo; e o exército de Israel também: Iahweh o entregará nas mãos dos filisteus”. – 1 Samuel 28:17-19, Bíblia de Jerusalém.”. – 1 Samuel 28:15-19, BJ. Cumprimento das profecias: “Os filisteus estavam lutando contra Israel e os homens de Israel puseram-se em fuga diante dos filisteus, e caíam mortos no monte Gilboa. E os filisteus seguiam de perto a Saul e a seus filhos; e os filisteus, por fim, golpearam a Jonatã, e a Abinadabe, e a Malquisua, filhos de Saul. E a luta ficou muito intensa contra Saul, e os atiradores, os arqueiros, por fim o acharam, e ele foi seriamente ferido pelos atiradores . . . Saul tomou, pois, a espada e lançou-se sobre ela. Quando seu escudeiro viu que Saul tinha morrido, lançou-se também sobre a sua própria espada e morreu junto com ele. Assim vieram a morrer juntos naquele dia Saul e seus três filhos, e seu escudeiro, sim, todos os seus homens”. – 1 Samuel 31:1-7. “Problemas” encontrados pelos críticos do relato: 1 - Saul não foi entregue nas mãos dos filisteus, mas se matou. Note no registro bíblico que Saul foi atingido seriamente pelos arqueiros do exército filisteu. Se ele não tivesse se matado provavelmente teria morrido pouco tempo depois. É tanto que uma referência a tal acontecimento que se encontra no segundo livro de Samuel informa que “os filisteus golpearam a Saul em Gilboa”. (2 Samuel 21:12). De qualquer maneira, para Saul era o fim da linha. Sua morte foi consequência direta da ação dos filisteus, que foram os vencedores ao derrotar completamente os homens de Israel. Então, não há nenhuma dúvida que aconteceu exatamente o que foi previsto pelo profeta. Mas os que fincam o pé em dizer que não, devido ao suicídio de Saul, e atribuem o ‘ser entregue nas mãos dos filisteus’ uma referência obrigatória a que os filisteus deveriam ter não só golpeado a Saul, mas também se certificado de sua morte, poderiam refletir em um detalhe mencionado mais adiante. Os corpos de Saul, seus filhos e outros foram encontrados no dia seguinte pelos filisteus. De modo que as palavras de Samuel acabaram se cumprindo de uma maneira mais literal: todos eles foram parar nas mãos dos filisteus. – 1 Samuel 31:8. 2 - Saul tinha pelo menos 8 filhos. Mas morreram três filhos, e não todos. E quando foi que Samuel disse que morreriam todos os filhos de Saul? Ele não disse isso. Ele falou “tu e os teus filhos”. Somente os filhos que estavam na batalha é que morreram. Foi nesse contexto da guerra que as palavras do profeta ressoaram. Naturalmente, os filhos de Saul que estiveram longe do calor da batalha e protegidos em algum lugar distante não viram a morte naquele momento.* * A expressão “toda a sua casa”, ou “toda a sua família”, em 1 Crônicas 10:6, é entendida por alguns como se referindo aos filhos de Saul que ele teve com sua primeira esposa, os quais morreram todos na luta com os filisteus. – 1 Samuel 14:49; 31:12. 298 Mesmo que a palavra “todos” tivesse sido usada na profecia, poderia significar apenas que todos os filhos dele que estivessem em combate é que morreriam. Seria uma linguagem possível, à semelhança daquilo que Deus disse a Noé: “Para mim chegou o fim de toda carne! Pois, por causa dos homens, a terra está repleta de violência e eu vou destruí-los junto com a terra”. – Gênesis 6:13, TEB. Como sabemos, o Dilúvio não trouxe o fim de toda a carne, isto é, todos os seres humanos, pois Noé e sua família se salvaram. Mas todos os que estavam fora da arca morreram. Além do mais, a terra não foi destruída. Será então que poderíamos supor que essa profecia feita diretamente por Deus não teve um cumprimento perfeito? Que respondam os que querem desacreditar o relato inspirado de 1 Samuel 28:11-19. 3 - Saul não morreu no dia seguinte. De todas as alegações que são feitas contra a história de Samuel em En-dor esta é a única que oferece alguma dificuldade para ser esclarecida. Há duas possibilidades para entender o que realmente aconteceu. A primeira está bem debaixo de nossos narizes, se a tradução utilizada ajudar. Retorne ao relato e observe que Saul desfiou uma série de queixas para Samuel: que os filisteus o hostilizavam, que Deus o havia abandonado e que não lhe respondia mais. Em seguida Samuel fez um retrospecto dos atos de infidelidade de Saul e disse que eles eram o motivo das dificuldades pelas quais passava. Mas observe a escolha de palavras no esclarecimento dado a Saul: “Foi por isso que Iahweh te tratou hoje assim”. – 1 Samuel 28:18, BJ. Certamente tudo o que Saul descreveu não acontecera naquele único dia. Eram problemas que se arrastavam já há algum tempo. Sendo assim, o “hoje” que aparece no versículo não se refere ao dia em que ele ouviu as palavras do profeta, mas significa “agora” ou “atualmente”. Semelhantemente, o “amanhã” que Samuel menciona logo no versículo seguinte pode significar “futuramente” ou “em breve”. Isto seria uma solução para os que preferem acreditar que a morte de Saul aconteceu somente alguns dias depois do que acontecimento de En-dor. Há passagens na Bíblia que realmente utilizam a palavra “amanhã” com o significado de momento futuro, breve ou distante. É o caso do texto abaixo, que foi citado pelo apóstolo Paulo séculos depois e que também se tornou o lema dos epicureus: “E o Soberano Senhor, Jeová dos exércitos, convocará naquele dia ao choro, e ao lamento, e à calvície, e ao cingimento de serapilheira. Mas, eis que há exultação e alegria, a matança de gado vacum e o abate de ovelhas, o consumo de carne e o beber de vinho: ‘Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos.’ ”. – Isaías 22:12, 13. E a outra possibilidade tem a ver com a sequência narrativa dos acontecimentos. Existem evidências que os eventos dos livros de Samuel não foram postos sempre em ordem cronológica, mas aproximadamente por temas. Por exemplo, muito antes da 299 parte onde aparece o caso de En-dor, os capítulos 13 e 14 apresentam o reinado inteiro de Saul, desde quando começou até o seu fim. De modo que os capítulos seguintes são detalhamentos do que foi mostrado antes apenas de maneira resumida.* Além disso, eventos que são contados em 1 Samuel são recontados em 2 Samuel de outra maneira. – 1 Samuel 31:4; 2 Samuel 1:6-10. * Tal estilo de escrita não é incomum na Bíblia. Por exemplo, o capítulo 1 de Gênesis relata a criação do homem e o capítulo seguinte também. Só que no primeiro é de maneira resumida, e no segundo com mais detalhes. Um reflexo dessas dificuldades é que não existe unanimidade entre os críticos do relato sobre quantos dias exatamente depois do encontro em En-dor Saul morreu. Uns dizem 3 dias, outros 5 dias, e há quem proponha até 18 dias. Os relatos paralelos e sobrepostos a respeito dos mesmos eventos, que estão espalhados em lugares diferentes do livro, dificultam um cálculo preciso. Várias Bíblias comentam em notas de rodapé essas lacunas presentes nesses livros atribuídos a Samuel. Portanto, a constatação de que Saul não morreu no dia seguinte à profecia de Samuel pode estar errada. Os eventos narrados foram postos de tal maneira que inviabiliza uma certeza absoluta de tal conclusão.* É tanto que um escritor chamado Paulo Sérgio de Araújo, ao fazer um exame minucioso dos acontecimentos registrados, concluiu que a morte de Saul foi precisamente no dia seguinte após o aparecimento de Samuel em En-dor: * O historiador Flávio Josefo parece seguir o entendimento de que realmente foi no dia seguinte que Saul morreu. – Antiguidades Judaicas 6:340. O texto de Paulo Sérgio é interessante não só pelos muitos detalhes comentados por ele, mas também pelo fato dele pertencer a uma igreja Batista. No seu livro, ele segue um caminho contrário daquele adotado aparentemente pela maioria dos evangélicos. E por esta razão tem sido criticado pelos próprios irmãos de fé. Mas a verdade é que ele demonstra bastante coerência no que escreveu. Ao invés de ficar esbravejando palavras condenatórias, tais como aquelas vistas no início deste tópico, analisou o assunto de maneira simples e objetiva. Veja a seguir a explicação dele sobre o dia da morte de Saul. Evidências de que Saul morreu no dia seguinte à profecia de Samuel “Quem falou com o rei Saul em En-Dor” (2009), de Paulo Sérgio de Araújo, pp. 60-65. Um argumento muitíssimo apresentado para tentar negar que Samuel apareceu diz que aquele ser espiritual teria errado ao profetizar que Saul morreria no dia seguinte: “amanhã, tu e teus filhos estareis comigo” (28.19). E por quê? Porque Saul teria morrido diversos dias após essas palavras. Algumas pessoas, analisando 1Samuel 28— 31, realizam cálculos e afirmam que Saul morreu três dias após essa profecia; outros cálculos, porém, chegam a elevar esse número de dias para até dezoito. 30 E se aquele ser espiritual errou, então ele não poderia ser Samuel. 30 LOPES, Hernandes Dias. É possível comunicar-se com os mortos?, Ed. Betânia, 1ª edição, 2003, pgs. 51, 52; Bíblia Shedd. Ed. Edições Vida Nova, 1ª edição, 1998, pgs. 431-37. 300 Porém, esse argumento é forçado e seletivo demais, pois os incidentes registrados nos capítulos 28—31 de 1Samuel não aconteceram, necessariamente, na seqüência em que estão dispostos. Alguns deles encontram-se sobrepostos, ou seja, aconteceram simultaneamente, enquanto outros, em dias diferentes. O escritor bíblico não quis ser cronologicamente rigoroso ao registrar os eventos desses quatro capítulos. Essa é uma prática bastante comum nas narrativas bíblicas. A fim de entender perfeitamente os preparativos para a batalha, e a batalha em si, deve ser notado que a narrativa bíblica não se encontra em ordem cronológica exata, mas passa de evento para evento, a fim de manter um registro das atividades de Saul e Davi... A ordem apropriada dos eventos é: os filisteus se reuniram em Afeque na planície de Sarom, como era seu costume quando faziam suas campanhas para o norte (1Sm 29.1); dali os filisteus avançaram para Suném aos pés da colina de Moré [1Sm 28.4a], enquanto Saul dispunha o seu exército em posição oposta à deles no monte Gilboa [1Sm 28.4b], favorecendo a região montanhosa como mais conveniente para seus guerreiros que portavam armas leves. Ele acampou numa fonte perto de Jezreel [1Sm 29.1b]; foi dali que Saul procurou a médium de En-Dor na escuridão da noite [1Sm 28.7-25]. No dia seguinte ele teve a morte de um herói no monte Gilboa [1Sm 31.1-7], junto com três dos seus filhos. 31 (as referências bíblicas entre colchetes foram acrescentadas) Antes de analisar minuciosamente as informações dos capítulos 28—31 de 1Samuel, primeiro seria interessante descrever os acontecimentos registrados nesses capítulos, do jeito que eles se encontram, sem nos preocupar com qualquer ordem cronológica. Assim, acompanhem o panorama geral. No capítulo 28, vemos que, assim que os exércitos dos filisteus e de Israel estavam bem próximos, Saul visitou, à noite, a pitonisa de En-Dor, ouvindo aquela terrível mensagem de Samuel. Após relatar isso, o escritor deixa Saul de lado para, nos dois próximos capítulos, concentrar seu foco narrativo em Davi. No capítulo 29 ele registra o diálogo entre Davi e o rei filisteu Aquis, em que ficou decidido que Davi não poderia participar daquela batalha ao lado dos filisteus. Por isso, ele deveria sair do meio dos filisteus na madrugada do dia seguinte. No capítulo 30 o narrador fala como Davi, três dias após ter saído do meio dos filisteus, chegou à cidade filistéia de Ziclague, encontrando-a destruída e saqueada pelos amalequitas. Em resposta, Davi organizou um contra-ataque e recuperou tudo aquilo que havia sido roubado, repartindo entre o povo os despojos de guerra. E, no capítulo 31, o escritor “finaliza” seu livro voltando a falar de Saul, mostrando como que esse rei veio a morrer na batalha contra os filisteus. Agora, examinemos detalhadamente as informações de 1Samuel 28—31. Para tanto, propomos abaixo uma seqüência cronológica dos acontecimentos relatados nesses capítulos, de tal modo que todos os dados bíblicos sejam harmonizados coerentemente. Naturalmente, essa seqüência cronológica servirá para determinar se Saul morreu ou não no dia seguinte à previsão feita por aquele ser espiritual. 31 AHARONI, Yohanan, et al. Atlas Bíblico, Ed. CPAD, 1ª edição, 1999, pg. 75. 301 Seqüência cronológica dos acontecimentos narrados em 1Samuel 28—31 32 Segunda: 1Sm 28.1, 2; 29.1, 2 Os filisteus, juntamente com Davi, reuniram suas tropas em “Afeque” (1Sm 28.1, 2; 29.1a), enquanto os israelitas acamparamse “junto à fonte que está em Jezreel” (29.1b). Foi de Afeque que os filisteus iniciaram sua marcha rumo a “Jezreel”: “os príncipes dos filisteus se foram para lá [para Jezreel]...” (29.2). Terça: 1Sm 28.4-25; 29.3-10 Vindo de Afeque, os filisteus e Davi chegaram a “Suném” (1Sm 28.4a), acampando-se bem próximos dos israelitas. Estes estavam no monte “Gilboa” (v. 4b), mais especificamente “junto à fonte que está em Jezreel” (cf. 29.1b). A distância entre os acampamentos desses dois exércitos inimigos era tão pequena, que um contato visual mútuo já era possível (“Vendo Saul o acampamento dos filisteus...”, 28.5). Em Suném, ocorreu o diálogo entre os príncipes filisteus e o rei Aquis (1Sm 29.3-5), e entre Aquis e Davi (vs. 6-10), em que ficou decidido que este não poderia participar da batalha. Aquis orienta Davi a passar a noite em Suném e, na madrugada do dia seguinte (“amanhã de madrugada”, v. 10), ele deveria partir. Assim que viu os filisteus acampados em Suném (1Sm 28.5), Saul ficou com muito medo e consultou ao SENHOR em busca de ajuda, porém não obteve resposta alguma (v. 6). Por conta disso, ele resolveu visitar, naquele mesmo dia, à noite, a pitonisa de En-Dor (vs. 7-25). Lá, Samuel disse a Saul que ele (Saul) morreria no dia seguinte (“amanhã, tu e teus filhos estareis comigo”, v. 19), ou seja, na quarta-feira. Após ouvir essa mensagem, Saul retornou ao acampamento israelita “naquela mesma noite” (v. 25). 32 Quarta: 1Sm 29.11; 31.1-7 (1Cr 10.1-7) Sexta: 1Sm 30 Assim que Davi saiu do meio dos filisteus, de madrugada, (1Sm 29.11a), estes imediatamente “subiram a Jezreel” (29.11b); ou seja, foram para o mesmo lugar onde os israelitas estavam (cf. 29.1b), dando início à batalha na qual Saul morreu (31.1-7). Três dias após ter saído do meio dos filisteus (1Sm 30.1a), Davi chegou a Ziclague, encontrando essa cidade arrasada e saqueada pelos amalequitas (vs. 1b-6). Em seguida, vemos a ofensiva liderada por Davi, na qual ele derrotou os amalequitas e tomou de volta tudo que fora roubado (vs. 7-31). A seqüência de dias da semana utilizada nessa tabela tem um caráter puramente didático, a fim de que a ordem cronológica proposta possa ser melhor compreendida pelos leitores. Dessa maneira, é evidente que a visita de Saul à pitonisa de En-Dor, por exemplo, pode não ter ocorrido, na realidade, numa terça-feira, como mostra a tabela, mas talvez numa quarta, quinta, etc. 302 Com esse quadro cronológico sempre em mente, deixamos a seguir três considerações. Em primeiro lugar, é completamente arbitrário e biblicamente insustentável defender que a batalha entre filisteus e israelitas, na qual Saul morreu, começou vários dias após a visita que ele fez à pitonisa de En-Dor. Incorrem em erro aqueles que alegam, com base em 1Samuel 30.1, que essa batalha só tenha começado no dia em que Davi chegou a Ziclague, ou seja, três dias após a saída dele do meio dos filisteus. Eis o que este versículo diz: “Sucedeu, pois, que, chegando Davi e seus homens, ao terceiro dia, a Ziclague...” Esse texto diz, claramente, que Davi demorou três dias para chegar a Ziclague, e não que a batalha entre filisteus e israelitas só tenha começado após esses três dias. É isso o que a expressão “ao terceiro dia” diz objetivamente, de modo que qualquer conclusão diferente dessa pode ser considerada uma conclusão puramente subjetiva e extrabíblica, destituída de qualquer fundamentação textual. Portanto, de forma alguma a expressão “ao terceiro dia” pode ser usada nalgum cálculo para determinar quando começou a batalha na qual Saul morreu. Em segundo lugar, 1Samuel 29.11 deixa subentendido que, no mesmo dia em que Davi saiu do meio dos filisteus, estes foram para o mesmo lugar onde estavam os israelitas: “Então, Davi de madrugada se levantou, ele e os seus homens, para partirem [de Suném] e voltarem à terra dos filisteus [a Ziclague]. Os filisteus, porém, subiram a Jezreel”. E onde estavam os israelitas? Em “Jezreel” (29.1b). Ou seja, no mesmo dia em que Davi partiu, os filisteus foram para Jezreel e começaram a batalha na qual Saul pereceu. Cronologicamente falando, portanto, o início dessa batalha, registrado em 1Samuel 31.1-7, está diretamente ligado ao dia da saída de Davi do meio dos filisteus, relatado em 1Samuel 29.11. Esses dois trechos falam de dois eventos que ocorreram no mesmo dia. Temos aí uma prova de que o escritor bíblico não foi cronologicamente exato em seu relato. Uma seqüência cronológica correta joga os acontecimentos relatados em 1Samuel 30 para depois dos acontecimentos registrados em 1Samuel 31.1-7. Em terceiro lugar, reparem num detalhe que normalmente passa despercebido: na madrugada em que Davi saiu do meio dos filisteus (1Sm 29.11a), ele estava em “Suném” (28.4a), e não em “Afeque” (29.1a). E nem poderia ser diferente, visto que Suném ficava ao lado de Jezreel/Gilboa, o palco onde ocorreu a luta. 33 Ou seja, Davi chegou a Suném e pernoitou nessa cidade, deixando-a só na madrugada do dia seguinte, horas antes de os filisteus irem para Jezreel/Gilboa e deflagrarem o combate no qual Saul pereceu. 33 Qualquer mapa bíblico deixa bem claro que a cidade de “Afeque” (1Sm 29.1a), onde os filisteus juntaram suas tropas e iniciaram sua marcha para irem de encontro aos israelitas, ficava muito mais longe do monte Gilboa do que “Suném” (1Sm 28.4a). Isso explica por que Saul, que reunira suas tropas no monte Gilboa, só conseguiu ver os filisteus quando estes chegaram e acamparam-se em “Suném” (1Sm 28.4, 5). Suném ficava ao lado desse monte, ao passo que Afeque, a muitos quilômetros de distância. Esse detalhe é muito relevante, pois demonstra que o narrador bíblico não quis ser cronologicamente exato em seu relato. Uma simples análise do sentido da marcha dos filisteus rumo ao monte Gilboa já comprova isso: Afeque (1Sm 29.1a, 2) → Suném (1Sm 28.4a) → Jezreel/Monte Gilboa (1Sm 29.11b). A seqüência dessa marcha deixa claro que o texto de 1Samuel 303 29.1a, 2 vem antes de 1Samuel 28.4a, demonstrando que o escritor não organizou sua narrativa em uma seqüência cronológica exata. Para sintetizar tudo aquilo que foi dito nessas três considerações, acompanhem as perguntas e respostas abaixo, que seguem a seqüência de dias da semana empregada no quadro cronológico apresentado anteriormente. 1. Em que dia da semana os filisteus chegaram a Suném? Resposta: chegaram na terça-feira. 2. Davi estava em Suném, junto com os filisteus? Resposta: Sim (1Sm 29.11). 3. Onde os filisteus estavam acampados, quando Saul os viu (28.5)? Resposta: estavam acampados em “Suném” (28.4a). 4. Ao ver os filisteus em Suném, em que dia Saul decidiu visitar a pitonisa de En-Dor? Resposta: Saul visitou a pitonisa na noite do mesmo dia em que os filisteus chegaram a Suném (28.5-8), ou seja, visitou-a na terça-feira. 5. Após ouvir aquela profecia de Samuel, em que dia Saul retornou ao acampamento israelita, que ficava em Jezreel/Gilboa? Resposta: Saul retornou ao acampamento “naquela mesma noite” (28.25) de terça-feira. 6. Para não participar da batalha contra seus irmãos israelitas, em que dia Davi deixou a cidade de Suném, seguindo a recomendação do rei Aquis (29.10)? Resposta: Davi deixou Suném na madrugada da quarta-feira (29.11a). 7. Em que dia os filisteus “subiram a Jezreel” (29.11b), para iniciarem a batalha contra os israelitas (31.1-7)? Resposta: os filisteus foram para Jezreel na quarta-feira, ou seja, no mesmo dia em que Davi saiu do meio deles. Ora, essa seqüência de perguntas e respostas leva-nos a duas constatações: 1. Os itens de 1 a 5 falam de eventos que ocorreram num mesmo dia: uma terça-feira. Ou seja, no mesmo dia em que Davi e os filisteus chegaram a Suném, Saul visitou a pitonisa de En-Dor. 2. Os itens 6 e 7 também falam de eventos que ocorreram num mesmo dia: uma quarta-feira. Ou seja, no mesmo dia em que Davi saiu do meio dos filisteus, estes deram início à batalha que resultou na morte de Saul. Portanto, a profecia de Samuel, concernente à morte de Saul, cumpriu-se perfeitamente. Na terça-feira, à noite, Samuel disse que Saul morreria no dia seguinte: “amanhã [quarta-feira], tu e teus filhos estareis comigo” (1Sm 28.19). E as palavras do falecido profeta não caíram por terra: na quarta-feira, instantes após Davi ter saído do meio dos filisteus (29.11a), estes “subiram a Jezreel” (29.11b) e imediatamente iniciaram o combate no qual Saul morreu (31.1-7). O autor do livro de Eclesiástico tinha toda a razão ao declarar que “mesmo depois de sua morte, ele [Samuel] profetizou, predizendo ao rei [Saul] o seu fim” (Ecl 46.20)! 304 Somente um manuseio seletivo de 1Samuel 28—31, em que a ordem dos acontecimentos registrados nesses capítulos é convenientemente manipulada a fim de apoiar um ponto de vista particular, pode fazer alguém concluir que Saul morreu três, cinco, dez, quinze ou até dezoito dias após as predições de Samuel. A análise aqui apresentada contesta tal interpretação, comprovando que a batalha que resultou no falecimento de Saul ocorreu um dia após a visita que ele fez àquela pitonisa. (Fim da transcrição, que foi autorizada pelo autor) Link do trecho citado (que está nas páginas 29 a 34 do PDF): www.imortalidadedaalma.com/downloads/Saul_pitonisa.pdf --Sobre o autor: “Paulo Sérgio de Araújo estudou Teologia na Faculdade de Teologia Metodista Livre, na cidade de São Paulo, e é membro da Igreja Batista do bairro do Jardim Rincão, nessa mesma cidade. Dentro da Teologia, sua área de especialização é a Imortalidade da Alma. Esse fascinante tema bíblico, pelo qual Paulo Araújo é apaixonado desde sua adolescência, é abordado em seus dois livros: ‘Qual o Destino do Homem? Compreendendo a vida após a morte’, publicado em 2007, e ‘Quem falou com o rei Saul em En-Dor: o falecido profeta Samuel ou um demônio? Compreendendo 1Samuel 28’, lançado em 2009. Além de escritor, revisor e pesquisador na área teológica, Araújo também é pregador, palestrante e sempre atuou na área de ensino cristão. Atualmente, é estudante do curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP)”. Biografia extraída de: www.blogger.com/profile/13648064260200475071 É sábio ficar vasculhando em busca de evidências desfavoráveis? “Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”. – Albert Einstein. Depois de analisadas todas as “evidências” geralmente apresentadas pelos que não querem aceitar o que a Bíblia informa sobre Samuel em En-dor, acredito que ficou bastante claro que elas não passam de tentativas de encontrar a todo custo detalhes que desabonem o relato. Algumas são tão infundadas que nem havia necessidade de serem mencionadas. Mas o que aconteceria se os mesmos critérios adotados pelos que criticam o aparecimento de Samuel fossem aplicados a outras passagens bíblicas acreditadas como autênticas? Note a seguir alguns exemplos. 1. Profecia sobre o destino de Babilônia “E Babilônia, ornato dos reinos, beleza do orgulho dos caldeus, terá de tornar-se como quando Deus derrubou Sodoma e Gomorra. Nunca mais será habitada, nem residirá ela por geração após geração”. – Isaías 13:19, 20. 305 Quando, afinal, tal profecia se cumpriria? Pelo visto não foi nos tempos antigos, pois quando Babilônia caiu ante os persas ela não foi destruída. Quando chegou a época de Jesus ela ainda existia, conforme se nota numa carta do apóstolo Pedro: “Aquela que está em Babilônia, escolhida igual a vós, manda-vos os seus cumprimentos, e assim também Marcos, meu filho”. – 1 Pedro 5:13.* * Há comentaristas que sustentam que “Babilônia” aqui seria uma referência à cidade de Roma. Foram necessários muitos e muitos séculos para que Babilônia virasse uma cidade desabitada. Neste caso, alguém poderia alegar que a profecia foi muito vaga, pois, afinal de contas, muitas cidades gloriosas sobre as quais não se falou nada tiveram o mesmo destino: viraram ruínas.* É um processo que ocorria naturalmente com o passar do tempo. * No caso de Babilônia parece que ela nunca ficou completamente abandonada. Sempre houve pessoas por lá. Havia até um projeto do antigo regime iraquiano para reconstruí-la e virar atração turística. Portanto, Babilônia não foi “riscada do mapa” da mesma maneira que Sodoma e Gomorra. Mas será que tais detalhes são suficientes para se concluir que a profecia falhou? Se houvesse algo semelhante na profecia de Samuel em En-dor, não tenho dúvida que todas essas particularidades seriam utilizadas contra ela. 2. Profecia sobre a cidade de Tiro “Pois assim disse o Soberano Senhor Jeová: ‘Quando eu fizer de ti uma cidade devastada, igual às cidades que realmente não são habitadas, quando eu fizer subir sobre ti a água de profundeza e tiveres sido coberta por vastas águas, também vou fazer-te descer com os que descem ao poço, ao povo de há muito tempo, e vou fazer-te morar na terra mais baixa, igual aos lugares devastados por muito tempo, com os que descem ao poço, para que não sejas habitada; e vou pôr um ornato na terra dos viventes”. – Ezequiel 26:19, 20. A cidade de Tiro não afundou no mar feito a mítica Atlântida.* Mas não é exatamente isso o que esse texto parece estar dizendo? Neste caso, teríamos aqui outro exemplo de uma profecia “imperfeita”? Se utilizássemos os mesmos critérios usados pelos críticos de 1 Samuel 28:8-19 seria possível chegar a tal conclusão. * Sabe-se que Alexandre, o Grande, mandou que “seu exército ajuntasse os escombros da cidade continental e os lançasse no mar”. Mas tal evento não se refere à cidade inteira submergir e ser coberta pelas águas de profundeza. Pode ser apenas o cumprimento de outro pormenor dito na mesma profecia: “E elas [as nações] certamente arruinarão as muralhas de Tiro e derrubarão as suas torres”. (Ezequiel 26:4, colchetes acrescentados). Em seguida Alexandre destruiu a cidade, porém ela foi reconstruída depois. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 3, p. 720. Portanto, a cidade de Tiro não desapareceu. Ela continua no mesmo lugar onde sempre esteve, no atual Líbano, conforme podemos ver na fotografia a seguir, que mostra inclusive as ruínas de suas antigas construções: 306 Então, essa profecia não deve ser compreendida literalmente, a menos que Deus estivesse se referindo à futura submersão pela qual passará muitas cidades litorâneas, devido à constante elevação do nível do mar ou em razão de algum tsunami de proporções gigantescas. Quando se diz que a cidade desceria como quem desce ao poço, até a “terra mais baixa”, é uma referência da descida de seus habitantes ao Seol, lugar descrito como sendo tão profundo debaixo da Terra que se assemelha às profundezas oceânicas: “Tu vais me dar a vida novamente, me erguendo das águas profundas do mundo subterrâneo”. – Salmos 71:20, Bible in Basic English. “[Deus disse:] Você já foi até as nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas?”. – Jó 38:16, 17, NVI, colchetes acrescentados. Embora fisicamente falando a cidade antiga nunca tenha saído de onde estava, espiritualmente ela foi transferida para o reino dos mortos. Sentido semelhante está nas palavras a seguir de Jesus: “Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque se tivessem ocorrido em Tiro e Sídon as obras poderosas que ocorreram em vós, há muito se teriam arrependido em saco e cinzas. Conseqüentemente, eu vos digo: No Dia do Juízo será mais suportável para Tiro e Sídon do que para vós. E tu, Cafarnaum, serás por acaso enaltecida ao céu? Até o 307 Hades descerás; porque, se as obras poderosas que ocorreram em ti tivessem ocorrido em Sodoma, ela teria permanecido até o dia de hoje. Conseqüentemente, eu vos digo: No Dia do Juízo será mais suportável para a terra de Sodoma do que para ti”. – Mateus 11:21-24. Perceba que Jesus se referiu a uma cidade que não existia mais como se ela ainda existisse. Isto é assim porque ele não estava falando literalmente de cidades físicas que virariam ruínas, mas de seus habitantes que aguardariam julgamento no Hades. 3. Profecia sobre a destruição do templo em Jerusalém “Ao sair do templo, um dos seus discípulos disse-lhe: ‘Instrutor, vê que sorte de pedras e que sorte de edifícios! No entanto, Jesus disse-lhe: ‘Observas estes grandes edifícios? De modo algum ficará aqui pedra sobre pedra sem ser derrubada’.”. – Lucas 13:1, 2. Às vezes a expressão “não ficará pedra sobre pedra” é utilizada para se referir à segunda destruição de Jerusalém. Mas nós sabemos que ela não foi completamente destruída. Além disso, restaram algumas pedras sobre pedras daquela construção que motivou os comentários de Jesus e seus discípulos. É o que hoje chamam de “muro das lamentações”, a única coisa que sobrou do antigo templo judaico. Sendo assim a profecia de Jesus não teria se cumprido perfeitamente? 4. Quando Jesus foi secretamente para a Judeia “ ‘Pois, ninguém faz nada em secreto enquanto ele mesmo busca ser conhecido publicamente. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo.’ Seus irmãos, de fato, não estavam exercendo fé nele. Portanto, Jesus disse-lhes: ‘Meu tempo devido ainda não está presente, mas o vosso tempo devido já está aqui. O mundo não tem razão para vos odiar, mas odeia a mim, porque dou testemunho dele de que as suas obras são iníquas. Subi para a festividade; eu ainda não vou a esta festividade, porque o meu tempo devido ainda não veio plenamente.’ Assim, depois de dizer-lhes estas coisas, permaneceu na Galiléia. Mas, quando os seus irmãos tinham subido para a festividade, então ele mesmo subiu também, não abertamente, mas em secreto”. – João 7:4-10. Será que pelo relato acima poderíamos concluir que Jesus não foi honesto com seus irmãos e mentiu para eles? --Naturalmente, os detalhes mencionados nos textos supracitados poderiam ser todos ignorados, ou então melhor explicados à luz de outras passagens bíblicas. O que é absolutamente aceitável, devido à grandeza das passagens mencionadas e seu caráter divino. O objetivo aqui foi apenas demonstrar que “problemas” surgiriam em outras partes da Bíblia se adotássemos sobre elas a mesma visão inflexível dos que desacreditam o episódio de En-dor. Em qualquer um dos casos não é um procedimento sábio ficar buscando defeitos para desqualificar o que é dito claramente na Palavra de Deus. 308 Sobre a peça chamada Urim e as formas autorizadas de esclarecimento O Urim, o objeto que não estava mais dando respostas para Saul, talvez fosse uma peça onde havia em suas faces as palavras “sim” e “não”. Ao ser jogado indicava a resposta de Deus, depois de feita uma pergunta simples que precisasse apenas de um sim ou de um não. – Êxodo 28:30; Levítico 8:8; 1 Samuel 28:6. Há quem pense também que o Urim pode ter sido um artefato que se movia de maneira sobrenatural*, pois a Bíblia informa que Saul não estava mais obtendo respostas dele. Se fosse apenas um tipo de dado, sempre haveria uma resposta, dentre as duas possíveis. Ou seja, seria apenas uma tentativa de adivinhar o que Deus pensava sobre o que foi perguntado. E o Antigo Testamento dizia: “Não pratiqueis a adivinhação”. – Levítico 19:31, TEB. * Se o Urim fosse mesmo alguma coisa que dependesse de uma força inexplicável somente o dono desse poder decidiria se dava a resposta, que não seria, portanto, resultado apenas de uma probabilidade. Mas seja lá o que tenha sido o Urim, talvez na visão da maioria dos cristãos de hoje tais formas de esclarecimento (sonhos, profetas e objetos especiais) lembram mais o espiritismo que o cristianismo. Até mesmo a linguagem que já foi usada pelo antigo povo de Deus é vista com reservas por alguns cristãos de nosso tempo. Note dois exemplos no próprio livro de Samuel: “Em Israel, era assim que o homem falava ao ir buscar a Deus: ‘Vinde e vamos ao vidente’. Pois o profeta de hoje costumava ser chamado outrora de vidente.” – 1 Samuel 9:9. “Davi fugiu e pôs-se a salvo. Foi ter com Samuel, em Ramá, e contou-lhe tudo o que Saul lhe fizera. E foram ambos residir em Naiot. Saul foi informado de que Davi estava em Naiot de Ramá. Então Saul mandou emissários com a ordem de prender Davi. Mas, ao ver a comunidade dos profetas em transe, com Samuel à frente, foram tomados pelo espírito de Deus e começaram também a cair em transe. Quando isto foi relatado a Saul, mandou outros emissários, e também esses caíram em transe. Novamente, enviou um terceiro grupo, os quais também caíram em transe. Foi então pessoalmente a Ramá. Chegou à grande cisterna que está em Soco e perguntou: ‘Onde se encontram Samuel e Davi?’ Disseram-lhe: ‘Estão em Naiot de Ramá’. Foi então para Naiot em Ramá. Sobreveio-lhe o espírito de Deus, e ele começou a caminhar em estado de transe até chegar a Naiot em Ramá. Despiu também suas vestes, estando em transe com os outros, na presença de Samuel; ficou caído por terra, nu, durante todo o dia e toda a noite – de onde o ditado: ‘Também Saul está entre os profetas?’. ”. – 1 Samuel 19:1824, CNBB. Qual seria o seu pensamento caso presenciasse cenas como essas relatadas no segundo texto acima? 309 O que disseram na Igreja Primitiva e a opinião de hoje Apenas para dar uma ideia de como o assunto foi encarado pelos antigos cristãos, listo a seguir alguns exemplos, em ordem cronológica: 1. Justino (100-165 d.C.): Era a favor do relato. Acreditava que realmente foi Samuel que apareceu para a necromante. 2. Tertuliano (120-220 d.C.): Era contra, e achava que foi um espírito maligno que se fez passar por Samuel. 3. Orígenes (???-254 d.C.): Era a favor, tendo a mesma opinião de Justino. 4. Basílio (330-379 d.C.): Era contra e seguiu Tertuliano em sua opinião. 5. Gregório de Nissa (335-394 d.C.): Também era contra, da mesma maneira que Basílio. 6. Ambrósio (340-397 d.C.): Era a favor. Acreditava na veracidade da narrativa. 7. Jerônimo (347-420 d.C.): Era contra, porém, não atribuía a demônios. Achava que foi uma encenação da necromante. 8. Agostinho (354-430 d.C.): No início foi contra e tinha a mesma opinião de Jerônimo, mas depois mudou de ideia e passou a acreditar que Samuel realmente veio do Hades emitir seu último parecer contra Saul. 9. Teodoreto (393-457 d.C.): Era contra, mas achava que foi uma encenação. Porém acreditava que a profecia relatada pela necromante veio de Deus.* * Este ponto de vista também faz lembrar aquele episódio bíblico sobre a morte do rei Josias, citado num tópico anterior, quando Josias foi advertido por Deus pela boca de um idólatra. Sobre a mudança de opinião de Agostinho, a Enciclopédia católica diz: “A última interpretação da realidade da aparição de Samuel é favorecida tanto pelos detalhes da narrativa como por outro texto bíblico, os quais convenceram St. Agostinho: ‘Depois disso, [Samuel] adormeceu e apareceu ao rei, e lhe mostrou seu fim (próximo); levantou a sua voz do seio da terra para profetizar a destruição da impiedade do povo’(Ecclos. xlvi, 23)”. – www.newadvent.org/cathen/10735a.htm 310 E sobre a prática da necromancia acrescenta: “A Igreja não nega que, com uma permissão especial de Deus, as almas dos falecidos possam aparecer para os vivos, e até manifestar coisas desconhecidas para estes últimos. Mas, entendida como a arte ou ciência de evocar os mortos, a necromancia é considerada pelos teólogos como algo proveniente da ação de espíritos malignos, pois os meios utilizados são inadequados para produzir os resultados esperados. Supostas evocações de mortos podem advir de muitas coisas naturalmente explicáveis ou ainda fraude; o quanto é real e o quanto deve ser atribuído à imaginação e ao engano não pode ser determinado, mas os fatos reais da necromancia, com o uso de encantamentos e ritos mágicos, são encarados pelos teólogos, depois de St. Tomás, IIII, xcv Q., aa. III, IV, como modos especiais de adivinhação, devido à intervenção demoníaca, e a adivinhação é em si uma forma de superstição”. A explicação acima é bastante equilibrada e se ajusta melhor ao contexto global das Escrituras Sagradas, pois acomoda os conceitos em seus devidos lugares e não os mistura entre si, evitando as confusões de entendimento tão comuns à maneira aniquilacionista de pensar e, neste caso, a de alguns outros cristãos que insistem em “demonizar” o acontecimento registrado em 1 Samuel. Além disso, é bastante coerente com o contexto histórico dos antigos hebreus até à época dos primeiros cristãos, pois eles aceitavam a versão bíblica da narrativa de En-dor com muita naturalidade, conforme demonstram o livro de Eclesiástico e a Septuaginta grega, a “Bíblia oficial” dos antigos cristãos do mundo greco-romano. Sobre uma citação truncada feita pela Torre de Vigia Os escritores das Testemunhas de Jeová também citam uma parte do comentário de Keil e Delitzsch na enciclopédia bíblica “Estudo Perspicaz das Escrituras” (vol. 2, p. 29, sob o verbete “Espiritismo”), mencionando especificamente as opiniões de Lutero e Calvino sobre o relato de En-dor. Mas note como isto é feito, lendo os trechos conforme estão no “Estudo Perspicaz” e na obra que é citada, respectivamente: OPINIÃO DE LUTERO “Pois, quem acreditaria que as almas dos crentes, que estão na mão de Deus, . . . estavam sob o poder do diabo, e de simples homens?”. – Trecho citado no “Perspicaz”. “Pois, quem acreditaria que as almas dos crentes, que estão na mão de Deus, Eclesiástico 3:1, e no seio de Abraão, Lucas 16:32, estavam sob o poder do diabo, e de simples homens?”. – Trecho na íntegra. Como se vê, os autores esconderam naqueles três pontinhos a menção de um livro que consideram “apócrifo” (opinião que Lutero não tinha) e a referência ao Seio de Abraão, onde as almas dos justos estão, conforme acreditava Lutero e seus associados. 311 OPINIÃO DE CALVINO “Também Calvino considera a aparição apenas como um espectro . . . : ‘Diz-se que as almas dos santos estão repousando . . . em Deus, aguardando a sua feliz ressurreição’.”. – Trecho citado no “Perspicaz”. “Calvino também considera a aparição apenas como um espectro. . . : ‘É dito que as almas dos santos estão repousando e vivem em Deus, aguardando a sua feliz ressurreição’.”. – Trecho na íntegra. Nota-se que a opinião de Calvino também foi mutilada para não contradizer o entendimento materialista das Testemunhas de Jeová de que a morte do corpo significa a morte da alma. Em outras palavras, a própria extinção da pessoa. No início da citação que fazem de Keil e Delitzsch, os escritores do “Perspicaz” dizem o seguinte: “O Commentary apoia o conceito subentendido por estas palavras não inspiradas na Septuaginta [segundo as quais o profeta Samuel realmente apareceu para Saul], mas acrescenta: ...”. Daí passam a citar os trechos desfavoráveis que interessam a eles, que mencionam cristãos ao longo da história contrários ao que a Bíblia informa sobre o aparecimento do falecido Samuel.* Mas nada é dito sobre os cortes que fizeram nas palavras de Lutero e Calvino. – Colchetes acrescentados. Assim são os aniquilacionistas. Ficam buscando referências em fontes “imortalistas”, adaptando-as ao objetivo desejado, além de empreenderem pesquisas deficientes que podem ser facilmente expostas como falhas por quem entende do assunto. Qual é o nome que poderíamos dar para tais práticas recorrentes? Deixo a resposta com você, leitor. * Ao mencionar “palavras não inspiradas na Septuaginta” o escritor da Torre de Vigia tenta desacreditar o que está em tal versão bíblica, ou seja, de que Samuel realmente apareceu para Saul. Mas fazer isso é algo totalmente irrelevante, pois o próprio texto de 1 Samuel 28:15-22, que é unanimemente acreditado como inspirado, afirma claramente que era Samuel. Por isso, os tradutores da Septuaginta não viram nenhum problema em informar tal fato (e pode ser até que o manuscrito hebraico utilizado por eles contivesse realmente o que está na Versão dos Setenta). No entanto, os autores da Bíblia oficial das Testemunhas de Jeová acrescentam aspas no nome do profeta para induzir o leitor a achar que não era realmente ele. Isto demonstra que se o texto massorético tivesse o nome “Samuel” em 1 Crônicas 10:13 os “eruditos” das Testemunhas de Jeová o deixariam também entre aspas e sem nenhuma dor na consciência. É assim o modus operandis de vários aniquilacionistas, conforme visto no capítulo 9. 312 Capítulo 23 CONSIDERAÇÕES SOBRE O JARDIM DO ÉDEN E O FIM DO MUNDO Ora, o SENHOR Deus tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste*, e ali colocou o homem que formara. Então o SENHOR Deus fez nascer do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento. E no meio do jardim estavam a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. . . Ouvindo o homem e sua mulher os passos do SENHOR Deus que andava pelo jardim quando soprava a brisa do dia, esconderam-se da presença do SENHOR Deus entre as árvores do jardim. Gênesis 2:8, 9; 3:8, NVI. * Ou “Oriente” (conforme TNM, BJ, PER, TEB etc.) A primeira impressão que se tem ao ler os capítulos 2 e 3 de Gênesis é que o paraíso criado por Deus, onde os primeiros humanos moravam, ficava aqui mesmo, no planeta em que vivemos. No entanto, quando se fala em paraíso para onde vão os justos que morrem, normalmente os cristãos pensam no céu onde Deus está, com exceção de uma minoria chamada de cristãos milenaristas, a exemplo das Testemunhas de Jeová, que creem que este mundo será transformado em um paraíso no qual não haverá mais doenças, nem velhice, nem morte, por toda a eternidade. Mas não é sem razão que a maioria aguarda o paraíso no próprio céu, pois o livro da Revelação diz: “Àquele que vencer concederei comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus”. – Apocalipse 2:7. Sobre o texto acima, as Testemunhas de Jeová disseram: “O que se diz aqui deve referir-se ao domínio celestial, semelhante a um jardim, herdado por esses vencedores”. – Clímax de Revelação, p. 37, par. 14. Perceba que há paralelos evidentes entre Gênesis e Apocalipse. Em ambos os textos citado podemos concluir o seguinte: 1) Deus vive num paraíso ajardinado. 2) Nesse paraíso existe uma árvore da vida. 3) O homem também pode usufruir dessa morada divina. Então, não é dezarrazoado supor que Moisés e João, os autores dos dois livros bíblicos citados, estavam se referindo ao mesmo lugar. Neste caso, o paraíso de onde o homem foi expulso fica no céu e não seria um domínio terrestre. Que o Éden ainda existe em algum lugar pode-se inferir do texto abaixo: “Porque o SENHOR consolará a Sião; consolará a todos os seus lugares assolados, e fará o seu deserto como o Éden, e a sua solidão como o jardim do SENHOR; gozo e alegria se achará nela, ação de graças, e voz de melodia”. – Isaías 51:3, Almeida Fiel. 313 Note que o escritor não se refere ao Éden como sendo um lugar que não existia mais. A comparação que ele faz na esperança que apresenta é a de uma realidade ainda existente, o jardim do Senhor! E que esse paraíso é um lugar de seres celestiais também se percebe no texto sobre o rei de Tiro, que é atribuído profeticamente* ao anjo rebelde que se tornou o Diabo: “Vieste a estar no Éden, jardim de Deus. Toda pedra preciosa era a tua cobertura: rubi, topázio e jaspe; crisólito, ônix e jade; safira, turquesa e esmeralda; e era de ouro o artesanato dos teus engastes e dos teus encaixes em ti. Foram aprontados no dia em que foste criado. Tu és o querubim ungido que cobre, e eu te constituí. Vieste a estar no monte santo de Deus. No meio de pedras afogueadas andavas. Eras sem defeito nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou injustiça em ti”. – Ezequiel 28:12-15; compare com Salmos 15:1, 2. * Sobre a prática de atribuir profeticamente um texto bíblico a um contexto diferente daquele em que ele foi escrito, queira considerar o apêndice A6. Como sabemos, querubim é uma categoria de anjos, e estes estão no céu (Mateus 18:10; Lucas 1:19). Lembre-se também que quando o primeiro casal foi expulso do Paraíso foram justamente os querubins que se encarregaram de guardar a porta de entrada para ele: “Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida”. – Gênesis 3:24. Portanto, as evidências até aqui consideradas apontam para o cenário que o Éden realmente fica no Céu. Por outro lado, o relato da criação indica que o homem não é uma criatura de origem celestial, mas que foi feito a partir do pó da terra. Além disso, em Gênesis há informações geográficas que dão a entender que o paraíso ficava na Terra. Como lidar com essa aparente problemática? É o que veremos a seguir. O que Gênesis realmente diz Uma leitura mais atenta do capítulo 2 de Gênesis fornece algumas pistas que podem mudar as conclusões do senso comum sobre a história do paraíso edênico. Primeiramente, a partir do versículo 4, há uma clara distinção entre “terra” e “Éden”. O texto informa que antes de nascer no solo da Terra todo o tipo de árvores o jardim do Éden já existia. Observe: “Ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o SENHOR Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo. Todavia brotava água da terra e irrigava toda a superfície do solo. Então o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra. . . Ora, o SENHOR tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara. Então o SENHOR Deus fez nascer do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento. E no meio do jardim estavam a 314 árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. No Éden nascia um rio que irrigava o jardim, e depois se dividia em quatro”. – Gênesis 2:4-10, NVI. Mediante a narrativa, podemos concluir o seguinte sobre o período mencionado: 1) Ainda não nascia nada no solo. 2) Mesmo assim Deus criou o homem. 3) Então o colocou no jardim que Ele já tinha plantado. 4) Em seguida, deu ordem ao solo para que crescessem árvores. 5) Por fim, informa-se que no meio do jardim de Deus havia duas árvores especiais: uma da vida e outra do conhecimento do bem e do mal. Analisando-se a sequência dos eventos percebemos que Deus criou o homem antes que nascessem plantas na Terra. Daí entende-se o motivo dele ter sido levado para o jardim que havia “para os lados do leste”. O homem não poderia sobreviver numa terra onde não havia o que comer. Além disso, árvores não crescem do dia para a noite. Seria necessário esperar bastante tempo até que elas surgissem. Enquanto isso, o homem desfrutaria da companhia de Deus até que o domínio que lhe fora destinado estivesse pronto para recebê-lo. Sendo assim, pelo que vemos, a narrativa está se referindo a duas realidades: uma no Éden e outra na Terra. De modo que é perfeitamente possível concluir que a intenção de Deus era reproduzir na Terra as mesmas condições paradísicas existentes no Céu*, e que o homem tinha livre acesso a esses dois mundos, de uma maneira que lembra as visitas que os anjos costumavam fazer aos patriarcas hebreus. – Gênesis 18. Também é um entendimento prevalecente entre os cristãos que na futura ressurreição dos mortos as almas dos justos receberão corpos físicos glorificados que estarão aptos para viver tanto no Céu quanto na Terra. Tal visão é coerente com o que está sendo aqui comentado. A ressurreição seria então uma reativação do projeto original de Deus. Um verdadeiro retorno à condição de livre acesso ao Éden! * Em sentido simbólico, o arranjo religioso que Deus estabeleceu na antiga nação de Israel também é uma reprodução na Terra de realidades celestiais, conforme explicou o apóstolo Paulo: “Era necessário que as representações típicas das coisas nos céus fossem purificadas por estes meios . . . Porque Cristo entrou, não num lugar santo feito por mãos, que é uma cópia da realidade, mas no próprio céu, para aparecer agora por nós perante a pessoa de Deus”. – Hebreus 9: 23, 24. Partindo do pressuposto acima, não haveria nenhum problema em deduzir que o cultivo de um jardim terrestre já estaria em andamento antes da Queda. Porém ele seria apenas uma extensão do Paraíso de Deus. De modo que, em sentido figurado, o mesmo rio que irrigava o jardim beneficiava o domínio adâmico. O rio se transformar em quatro pode ser uma representação desse amplo alcance que permite o fluxo das bênçãos de Deus diretamente do céu para o solo terrestre. Essa ideia também está presente no livro de Apocalipse: “E ele me mostrou um rio de água da vida, límpido como cristal, correndo desde o trono de Deus e do Cordeiro, pelo meio de sua rua larga. E deste lado do rio e daquele 315 lado havia árvores da vida, produzindo doze safras de frutos, dando os seus frutos cada mês. E as folhas das árvores eram para a cura das nações”. – Apocalipse 22:1, 2. E se voltarmos a Gênesis 2:5 notaremos que o motivo de inicialmente não haver germinado nenhuma planta não era a falta de água, pois o versículo informa que “brotava água da terra e irrigava toda a superfície do solo”. A verdadeira razão foi porque Deus ‘ainda não tinha feito chover sobre a terra’. Por que a água da chuva teria efeitos criadores e a do solo não? A água da chuva vem de cima, do céu. Ou seja, de Deus. De modo que esse pormenor poder ser outro símbolo que indica que o jardim terrestre era produto do Celestial, sendo o rio que saía do Éden a representação dessa ligação entre os dois: “No Éden nascia um rio que irrigava o jardim, e depois se dividia em quatro. O nome do primeiro é Pisom. Ele percorre toda a terra de Havilá, onde existe ouro. O ouro daquela terra é excelente; lá também existem o bdélio e a pedra de ônix. O segundo, que percorre toda a terra de Cuxe, é o Giom. O terceiro, que corre pelo lado leste da Assíria, é o Tigre. E o quarto rio é o Eufrates”. – Gênesis 2:10-14, NVI. Outra evidência de que Gênesis estava se referindo a dois lugares diferentes está no relato da expulsão de Adão e Eva do Paraíso: “Então disse o SENHOR Deus: ‘Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre’. Por isso o SENHOR Deus o mandou embora do jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado”. – Gênesis 3:22, 23. Pelo relato acima é possível concluir que o “solo” do Jardim do Éden não foi a matéria-prima utilizada por Deus para criar o homem, mas sim o solo que estava fora dos limites do Jardim, para o qual o homem foi mandado de volta.* O que demonstra que eram duas terras diferentes e que havia trânsito livre entre elas antes do pecado original. * De acordo com Gênesis, a mulher não foi criada do pó da terra, mas de uma de costela de Adão. Seria então a primeira clonagem da história? – Gênesis 2:21, 22. Naturalmente, para haver chance dessa interpretação que estou propondo aqui estar correta, Moisés teria que ter tido uma intenção “filosófica” ao escrever Gênesis. E não são poucos os estudiosos que acham justamente isso, que o relato sobre o Éden não deve ser entendido literalmente. E existe um testemunho bastante antigo que sugere tal opinião, o do historiador judeu Flávio Josefo, do século I: “Porque todas as coisas têm aqui uma referência à natureza do universo, à medida que nosso legislador [Moisés] diz sabiamente algumas coisas [em Gênesis], porém de maneira enigmática, e outras sob uma apropriada alegoria, mas mesmo assim explica tais coisas conforme é necessário numa explicação direta, clara e expressiva”. – The Works of Josephus (1987), de William Whiston, Hendrickson Publishers, p. 28.* * Veja on line aqui: http://penelope.uchicago.edu/josephus/ant-pref.html 316 Sobre a supracitada opinião de Josefo, William Whiston disse o seguinte em uma nota de sua tradução: “Mas quando ele [Josefo] chega aqui no ver. 4, etc. [de Gênesis cap. 2] ele diz que Moisés, depois que o sétimo dia [da criação] terminou, começa a falar filosoficamente; não é muito improvável que ele entendeu o resto do segundo e terceiro capítulo [de Gênesis] de acordo com algum sentido filosófico, alegórico ou enigmático”. – Colchetes acrescentados. E como vimos, há mesmo indícios no próprio livro de Gênesis que tendem a corroborar o que Flávio Josefo pensava. Com respeito aos aspectos geográficos da narrativa é importante destacar que dos quatro rios mencionados no capítulo 2 de Gênesis apenas dois realmente existem: o Tigre (ou Hídequel) e o Eufrates. O Pison e o Giom jamais foram localizados. Alguns veem nisso uma evidência de que nunca houve realmente paraíso terrestre, e que a história toda aconteceu no Paraíso Celeste, onde realmente haveria esses quatro rios. Neste caso, haver na Mesopotâmia os rios Tigre e Eufrates seria apenas uma coincidência, talvez motivada por uma memória do Paraíso perdido, que fez os antigos nomearem tais rios com os mesmos nomes dos rios que há no Éden.* * As Testemunhas de Jeová acham que os rios Pison e Giom desapareceram devido ao Dilúvio da época de Noé, e sumiram com eles os últimos vestígios do Éden. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 1, p. 751. Levando em consideração as mitologias do Oriente Próximo e do Egito sobre o paraíso, comentadas mais adiante, a conclusão de que a história do Éden é completamente celestial seria viável. No entanto, é preciso também considerar a possibilidade de que os dois rios faltantes tenham desaparecido, devido às mudanças topológicas que ocorreram no decorrer de milhares de anos. O escritor Carl Olof Jonsson fez uma análise interessante sobre isso, que está traduzida no link abaixo: http://www.mentesbereanas.org/antigacivilizacaobiblica.html Não obstante a boa pesquisa apresentada, o artigo de Jonsson menciona algumas incertezas que dificultam identificar com segurança as antigas localizações dos rios Pisom e Giom, e são necessárias conjecturas para viabilizar uma linha coerente de análise. No entanto, se esquecermos um pouco a geografia e a geologia, e nos focarmos no que os povos antigos escreveram sobre o paraíso para onde esperavam ir, os resultados poderão ser mais promissores, no que diz respeito a compreender melhor o que está em Gênesis. O contexto antropológico da antiga crença no Paraíso Por mais que determinados pesquisadores considerem a história do Éden apenas um mito, obviamente para o cristão que acredita na inspiração divina da Bíblia tal ceticismo não é uma opção. O limite máximo a que se pode ir é que o relato de Gênesis possui algumas alegorias e que nem tudo pode ser compreendido literalmente. No entanto, houve sim uma expulsão do Paraíso, resultando no rebaixamento da humanidade. 317 Sendo a Queda do paraíso edênico um fato, é de se esperar que haja uma recordação antropológica sobre esse episódio em várias nações diferentes, da mesma maneira que ocorre com a história do Dilúvio. E realmente isso existe, com graus variados de semelhança em relação à versão bíblica. Um artigo da revista “Despertai!”, das Testemunhas de Jeová, tratou a respeito dessas conexões narrativas. Foram mencionados vários povos que possuem tal memória, a exemplo dos seguintes: “Outro povo que tinha memórias do Éden eram os sumerianos. Sua literatura em tabuinhas de argila mostra que criam num paraíso que se localizava na terra de Dilmun, provavelmente no sudoeste da Pérsia. Utu, o deus-sol, diz-se, recebeu a ordem de regar Dilmun com água potável trazida da terra, água esta que o transformou num jardim luxuriante. Isto sugere o fato, expresso em Gênesis 2:6, de que o solo era regado por uma neblina que subia da terra. Quando Enki, o deus-água, comeu as preciosas plantas deste jardim, afirma a literatura sumeriana, a maldição de morte veio sobre ele. Isto parece remontar a Adão e Eva comerem o fruto proibido. — Gên. 3:6. “Os antigos egípcios, também, possuíam lembranças edênicas, conforme se vê de seu modo de pensar religioso. Uma delas era a crença de que, depois de seu Faraó morrer, havia uma árvore da vida da qual tinha de comer para se sustentar no domínio de seu pai celeste, Ré. Esta é uma idéia muitíssimo incomum para os egípcios. Por quê? Porque seu país se apresenta relativamente sem árvores, as árvores não sendo uma característica proeminente dele. Todavia, apesar disto, a memória daquela árvore da vida no Éden, da qual o homem jamais comeu, parece persistir. — Gên. 2:9”. – Despertai!, 22/10/70, pp. 26-27, artigo “Memórias do Éden”. Sobre o paraíso sumeriano mencionado na revista, uma obra de referência diz: “Dilmun, a terra para a qual Ziusudra, o Noé sumeriano, foi transportado para viver como imortal entre os deuses, é ‘o lugar onde o sol nasce’ [ou seja, o Oriente], e estava então localizado em algum lugar a leste da Suméria. Em outro texto sumeriano, Dilmun é descrito como uma terra próspera e abençoada, dotada de grandes moradias”. – Expedition Magazine (1964), vol. 6, maio, p. 45, “A Civilização do Indo e o Dilmun, o Paraíso Sumeriano”, de Samuel Noah Kramer, colchetes acrescentados. Um desses textos que descrevem o Dilmun diz: “A terra de Dilmun é santa. . . A terra de Dilmun é pura. . . a Terra de Dilmun é brilhante. . . Em Dilmun o corvo não solta o seu piado. . . O leão não mata, o lobo não arrebata o cordeiro, não se conhece cão feroz que faça uma criança se curvar”. – Enki and Ninhursag: A Sumerian Paradise Myth, citado e adaptado de Myths of Enki, The Crafty God (1989), editado por Samual Noah Kramer e John Maier. Um detalhe importante com respeito a tais histórias paralelas sobre o Paraíso é que ele não fica na Terra, porém muitas vezes é descrito como se dela fizesse parte. O que faz lembrar o que foi comentado no tópico anterior. Alguns acham que a razão disso é porque os antigos apenas refletiam em suas crenças sobre o Além o que consideravam ser um paraíso, baseando-se naquilo de bom que experimentavam em suas vidas. Foi esta a opinião de um conhecido egiptólogo: 318 “Já vimos que os Campos Elíseos [dos egípcios] em muito se assemelhavam às terras planas e férteis cortadas por largos canais e riachos de água corrente tais como os que sempre existiram, e que podiam ser vistos em certas partes do Delta [do Nilo]; da distância a ser atravessada pelos mortos antes de alcançarem qualquer coisa do que é dito. Visto que o egípcio criou seu mundo futuro como uma contrapartida do Egito que ele conhecia e amava, então deu a ele correspondentes celestiais de todas as cidades sagradas. Ele teve que conceber a existência de um caminho de água como o Nilo, com tributários e cabeceiras, onde ele poderia navegar e executar sua jornada”. – O Livro dos Mortos (1898), de E. A. Wallis Budge, p. 133. Agora note o seguinte. Mesmo sendo outro mundo, é muito comum a literatura egípcia e mesopotâmica localizar “geograficamente” o paraíso no lado leste, ou Oriente, conforme se viu no mito sumeriano de Dilmun. Até mesmo outros povos fazem isso, a exemplo dos romanos, que achavam que o paraíso, chamado por eles de “Campos Elíseos”, ficava numa ilha paradísica localizada nas distantes correntes orientais (ou seja, no leste) do rio Okeanos e que era governada pelo Rei-Titã Cronos ou Radamantis. A seguir mais um exemplo sumeriano: “Neti, o porteiro-chefe do mundo subterrâneo, perguntou a Inana: ‘Quem é você?’. ‘Eu sou Inana* indo para o Oriente [leste]’. ‘Se você é Inana indo para o Oriente, por que viajou até a terra da qual não há retorno? Por que apontou o seu coração para a estrada onde os viajantes nunca voltam?’.”. – A Descida de Inana ao Mundo Inferior, 78-84. * Inana era a deusa sumeriana da fertilidade e moradora do “Leste”, a habitação celeste dos deuses, porém estava de passagem pelo mundo subterrâneo dos mortos. Segundo a Bíblia, qual era a localização do Éden? Precisamente no “leste”, ou “Oriente”! Leia novamente: “Ora, o SENHOR Deus tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara”. – Gênesis 2:8, NVI. Então, tomando-se como referência essa memória antropológica de outros povos antigos, é razoável supor que o ‘jardim do Éden que ficava no oriente’, mencionado na Bíblia Hebraica, é na verdade uma referência à morada celestial de Deus. Por isso ele tinha o costume de ‘caminhar pelo jardim’ (Gênesis 3:8). Considere outros exemplos correlatos, extraídos do livro supracitado de Wallis Budge: “Uma crença mais tardia concebeu a morada dos mortos como um longo, montanhoso e estreito vale com um rio correndo em paralelo, começando do leste, fazendo seu caminho pelo norte e então tomando uma direção circular de volta ao leste”. – pp. 134, 135.* * Este comentário de Budge deveu-se ao fato de que em dinastias anteriores os egípcios também conceberam o paraíso como estando no “norte”. Mesmo assim era claramente um lugar celestial com aspectos terrestres. “Eles trouxeram a ele quatro Khus que moravam no cabelo de Hórus, que ficava no lado leste do paraíso”. – Textos da Pirâmide, rei Unas (L. 476), Ibid., p. 136. 319 “Ra sai da parte oriente do céu em paz, em paz. . . Este Pepi vem da parte oriental do paraíso onde os deuses nascem”. – Textos da Pirâmide, rei Pepi, p. 157. “Tu estarás a fazer isso deste quando as tempestades se enfurecem nos lados orientais do céu quando Ra se apronta na terra da vida, para prevenir a chegada das nuvens ameaçadoras na quarta parte do oriente do céu”. – pp. 170, 171. “Colocaram-me na parte oriental do paraíso onde Ra se levantou e é exaltado a cada dia; e me levanto ali e viajo adiante, e me torno um corpo espiritual (sap) semelhante a um deus, e eles me aprontam naquele caminho sagrado no qual Tot percorreu quando foi estabelecer a paz entre os dois deuses combatentes (i. e., Hórus e Set)”. – p. 348, papiro de Nu. “Eu, até mesmo eu conheço as Almas divinas do Leste, como se diz, Heru-khuti (Harmakhis) e o Bezerro da deusa Khera, e diariamente a Estrela da Manhã. Uma cidade divina foi construída para mim, eu sei disso, e eu sei o nome dela: Campo de Juncos* é o seu nome”. – p. 386, 387, papiro de Nu. * Campo de Juncos é o nome que os egípcios davam ao Paraíso celeste, onde esperavam morar depois da morte. No Egito, o leste não era o único ponto cardinal que indicava algum lugar do domínio invisível dos deuses. Eles achavam que todas as regiões tinham relação com eles, conforme indica o trecho a seguir: “Os céus estão abertos, a terra está aberta, o Oeste está aberto, o Leste está aberto, a metade meridional [norte] do céu está aberta, a metade setentrional [sul] do céu está aberta, as portas estão abertas, e os portões estão amplamente abertos para Ra à medida que ele vem do horizonte”. – p. 425, papiro de Nu. Provavelmente essa concepção de localizar o paraíso no leste deve-se ao fato de que é ali que o sol nasce e o dia começa. Além de denotar que fica num lugar muito distante. Então, raciocinando-se ao contrário, o mundo dos mortos (“inferno”) para aqueles que não foram julgados favoravelmente ou ainda aguardavam a mudança para o Paraíso era às vezes apresentado como estando no Oeste (Ocidente), onde o sol se põe e começa a escuridão da noite para o observador. Abaixo alguns exemplos: “Como você está? Será que a Grande (a deusa do Ocidente) cuida de você de acordo com o seu desejo? Eis que eu sou a pessoa que você amava na terra. Esforce-se em meu nome e fale por meu nome. Eu não distorci qualquer pronunciamento diante de você, (mas) eu preservei o seu nome na terra. Mantenha a doença longe de meus membros. Oh, seja você glorioso (Ax) para mim (e) diante de mim para que eu possa ver no meu sonho como você está exercendo-se em meu nome”. – Carta aos Mortos (de Mer-irtief para Nebet-itief). “Eis que eu estou na tua presença, ó Deus de Amentet (o Ocidente). Não há pecado em meu corpo. Eu não falei o que não é verdadeiro conhecimento de causa, nem fiz qualquer coisa com um coração falso. Que tu me concedas ser semelhante a esses favorecidos que estão contigo, e que eu possa ser um Osíris grandemente favorecido do bonito deus, e amado do Senhor das Duas Terras, eu que sou um verdadeiro escriba 320 real que te ama, [eu,] Ani, cuja palavra é verdade diante do deus Osíris”. – Livro dos Mortos, papiro de Ani. “O Oeste é uma terra de sono e densas sombras, um lugar onde os habitantes uma vez instalados, cochilam em suas formas mumificadas, nunca mais acordarão para ver seus irmãos; nunca mais reconhecerão seus pais e suas mães, esqueceram em seus corações das suas esposas e filhos. A água da vida, que a terra dá a todos que nela moram, é para mim estagnada e morta; a água flui para todos os que moram na terra, enquanto que para mim é apenas um líquido putrefato, esta é a minha água. Desde quando eu vim para esse vale de mortos eu não sei onde estou nem quem eu sou. Dême água corrente para beber. . . Deixe-me ficar na beirada da água com meu rosto para o Norte, que a brisa me afague e meu coração seja revigorado [e afastado] de sua dor”. – History of Egypt, Chaldea, Syria, Babylonia and Assyria (1901-1906), vol. 1, de Angelo S. Rappoport, Gaston Maspero e outros, pp. 158, 159, palavras da falecida esposa de Pasherenptah; veja também Salmond, pp. 67-69.* * Esse texto pessimista é de um período tardio da história egípcia. Antes da época em que ele foi escrito, os egípcios nutriam esperança que o tempo que passariam no lado sombrio da morada dos mortos seria temporário, sendo apenas uma fase de transição antes de chegar ao agradável Campo de Juncos. “As descrições do lugar [do Hades] naturalmente variam. Ele aparece logo atrás da porção escura chamada de Érebo. Em algumas passagens parece situar-se no distante Ocidente [oeste], por detrás da corrente que circunda a terra. Mas a representação usual o situa no coração da terra ou embaixo da terra (ὑπὸ κεύθεσι γαίης)”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de S. D. F. Salmond, p. 125. Egípcio plantando e colhendo no Campo de Juncos, a morada celeste dos deuses O paraíso celestial é um mundo de “deuses”? Um pormenor que fica bem evidente em determinados relatos não bíblicos sobre o Paraíso é que aqueles que vivem lá normalmente são considerados “deuses”, mesmo que morram ou passem por padecimentos próprios dos seres humanos. É o caso da deusa Inana que foi capturada e morta no Hades e de Enkidu, do Épico de Gilgamesh, que foi para o mundo subterrâneo pelo meio natural da morte. Vimos também que Ziusudra, o “Noé” da versão mesopotâmica do Dilúvio, foi levado pelos deuses ao paraíso para nunca mais morrer. Lemos no papiro de Nu um egípcio 321 esperançoso de que Ra lhe presentearia com um corpo semelhante a um deus, e Ani em sua versão do Livro dos Mortos dizendo a Osíris que esperava tornar-se um “osíris”. E ainda no papiro de Nu foi dito que as almas que estão no Leste são divinas. Fazendo um paralelo com o relato da criação de Gênesis, dentro da proposta aqui apresentada, temos o primeiro homem Adão frequentando livremente o Jardim de Deus, mesmo sendo uma criatura feita do pó. Isto fez dele uma criação única do universo no qual foi criado. Sendo assim, é muito provável que tal cenário foi a razão da Bíblia ter dito o seguinte sobre a criação do homem: “Porque o fizeste apenas pouco menor do que Deus, e o coroaste com glória e honra”. – Salmos 8:5, American Standard Version. Algumas versões evitam traduzir elohim por “Deus” nesse texto, vertendo-o assim: “Também passaste a fazê-lo um pouco menor que os semelhantes a Deus”. – Tradução do Novo Mundo. “Contudo, pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e honra o coroaste”. – Missionários Capuchinhos. “Tu o fizeste pouco menos do que um Deus, e o coroaste de glória e esplendor”. – Ivo Storniolo. “Pouco menor que os anjos o fizeste, de glória e de esplendor o coroaste”. – Mensagem de Deus. Compare com o texto de 1 Coríntios 6:2,3 mais adiante. Então, de certa forma, Adão era um “deus” quando usufruía de sua condição aprovada diante do Criador, sem que isso signifique algum tipo de politeísmo. É apenas uma aplicação especial do termo, tal como é feito no livro dos Salmos, ao se referir a juízes humanos: “Deus se põe de pé na assembléia do Divino; julga no meio dos deuses. . . Eu mesmo disse: ‘Vós sois deuses, e todos vós sois filhos do Altíssimo”. – Salmos 8:1, 6. Isto faz lembrar o que foi dito aos cristãos de Corinto: “Não sabeis que os santos julgarão o mundo? E, se o mundo há de ser julgado por vós, sois vós inaptos para julgar assuntos muito triviais? Não sabeis que havemos de julgar anjos? Por que, então, não assuntos desta vida?”. – 1 Coríntios 6:2, 3. Os que herdam os céus, livres do pecado e da injustiça, esses é que são “deuses” mesmo, significando aqui criaturas investidas de autoridade e poderosas.* Não deuses em oposição ao Pai Celestial. Sobre tais herdeiros da natureza divina também é dito: “Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual, por meio de Cristo, nos abençoou com todo tipo de bençãos espirituais do céu. Por meio dele, antes da criação do mundo, nos escolheu para que pelo amor fôssemos santos e irrepreensíveis em sua presença”. – Efésios 1:3, 4, Bíblia do Peregrino. * É possível que o politeísmo que surgiu entre os povos antigos seja uma visão religiosa distorcida dessa realidade. E interessante que os nomes normalmente atribuídos aos anjos terminam sempre com El, que é “Deus” em hebraico: Miguel, Gabriel, Rafael etc. 322 O engodo da Serpente foi propor a subida de mais um degrau nessa hierarquia, o que é absolutamente impossível para qualquer criatura: “Porque Deus sabe que, no mesmo dia em que comerdes dele [do fruto], forçosamente se abrirão os vossos olhos e forçosamente sereis como Deus, sabendo o que é bom e o que é mau”. – Gênesis 3:5. E com o ato de desobediência consumado, a expulsão do Éden foi inevitável. Mas por qual razão foi preciso guardar o caminho de volta? O homem teria como retornar de onde fora banido? A Bíblia não responde. Talvez os anjos tenham se postado lá somente enquanto o casal estava deixando o lugar e depois não houve mais necessidade de ficarem de prontidão. De qualquer maneira, isso não é um indicativo de que a Árvore da Vida fosse uma árvore literal aqui mesmo na Terra, porque se tivesse sido assim seria muito mais simples Deus arrancá-la do chão e destruí-la. Ou seja, tal “árvore” continua onde sempre esteve, conforme vimos antes: “Aquele que vencer concederei comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus”. – Apocalipse 2:7. Por fim, coincidência ou não, a descrição que fizeram de Samuel quando ele retornou do mundo dos mortos, para emitir suas últimas palavras qual profeta, foi justamente essa: a de um deus. – 1 Samuel 28:12, 13. ‘Quando vejo os teus céus estrelados o que é o homem para que te lembres dele?’ – Sal. 8 323 A ideia de eternidade é compatível com a matéria física? “Temer-te-ão enquanto houver o sol”. – Salmo 72:5. Normalmente se entende o versículo acima como uma referência poética à longa duração da dinastia davídica, pois no hebraico está: “Temam-te com o sol.”* Entretanto, considerando o que é dito mais adiante, pode significar realmente o que expressa a tradução amplamente aceita: “Temam-te enquanto houver o sol”. * Na linguagem poética do escritor, ele quis dizer apenas que os israelitas deveriam temer a Salomão, o filho do rei, enquanto houvesse sol e lua, ou seja, durante toda a vida deles. E, de maneira estendida, o povo deveria continuar tendo essa atitude em relação a todos os reis seguintes. Se esse não fosse o sentido do texto, e tivéssemos de encará-lo literalmente, significaria que essas palavras não se cumpriram, pois as pessoas que deviam temer ao filho do rei nem existem mais, tampouco Salomão e os reis subsequentes. Mas o sol e a lua sobre nossas cabeças continuam até hoje. A leitura do Livro da Natureza avançou muito em relação ao que se sabia em séculos passados. Visto que esse “livro” também é de Deus, podemos beber um pouco da fonte de seus “leitores”, os cientistas. Dispositivos de alta precisão indicam que a Lua está lentamente se afastando da Terra, à razão de 4 cm por ano (4 metros por século). A técnica de monitoramento que revela este fato consiste em emitir um feixe de raio laser sobre espelhos que foram deixados na superfície lunar, a fim de calcular a distância entre a Terra e a Lua. Por isso, à medida que os milênios forem se passando a Lua vai ficar cada vez menor no céu até se desgarrar completamente. É difícil estimar quando isso acontecerá porque a velocidade de afastamento diminui à medida que ela se distancia da Terra. Mas obviamente vai demorar muitos milhões de anos. Portanto, um dia não haverá mais Lua, para a tristeza de casais apaixonados, e certamente este será o menor dos problemas de então. Curiosamente o Salmo 72:7 diz o seguinte: “Nos seus dias florescerá o justo e a abundância de paz até que não haja mais lua”. Novamente, o leitor da Bíblia poderá enxergar nessas palavras apenas um “para sempre” poético. Mas o que garante que a parte final do texto não significa exatamente o que ela está dizendo? Entender assim estaria de acordo com eventos de natureza cosmológica que estão sendo descobertos apenas em nosso tempo. E é bom lembrar que a Bíblia já acertou em assuntos semelhantes, reforçando o caráter divino dela. Por exemplo, na época em que quase todas as pessoas acreditavam que a Terra era plana e apoiada sobre alguma coisa, o Antigo Testamento já dizia que nosso planeta é uma esfera suspensa sobre o nada: “[Deus] estende o norte sobre o vazio, suspende a terra sobre o nada”. – Jó 26:7. “[Deus] mora acima do círculo* da terra”. – Isaías 40:22. * “Círculo” é a tradução do hebraico hhugh, palavra que denota esfericidade, de acordo com obras de referência. Outras traduções transmitem uma ideia similar: “globo da terra” (Pontifício Instituto Bíblico), “redondeza da terra” (Almeida), “cúpula da terra” (Nova Versão Internacional) e “orbe terrestre” (Missionários Capuchinhos). Além disso, somente um objeto esferóide apresenta um formato circular sob qualquer ângulo de observação, indicando que “círculo” aqui significa realmente uma esfera. 324 Tais afirmações foram feitas muito tempo antes do grego Eratóstenes calcular a circunferência da Terra (www.adelmomedeiros.com/eratostenes.htm), e cerca de 3.000 anos antes de Kepler e Newton demonstrarem que a Terra e os demais corpos celestes estão flutuando soltos no espaço, de acordo com as leis da gravitação universal. Os dois versículos supracitados passaram despercebidos dos leitores da Bíblia na Antiguidade. Será que o mesmo não estaria acontecendo hoje com respeito ao texto bíblico abaixo, que parece informar sobre o destino final do sol, da lua e de todo o universo? “Há muito lançaste os alicerces da própria terra e os céus são o trabalho das tuas mãos. Eles é que perecerão, mas tu mesmo continuarás de pé; e todos eles se gastarão como a roupa. Tu os substituirás assim como a uma vestimenta e eles terminarão a sua vez”. – Salmos 102:25, 26; conforme Hebreus 1:10-12. Os “céus” mencionados nesse salmo é o que chamamos hoje de universo ou cosmos. Na parte final do versículo 12 a Septuaginta grega traduz assim: “Tal como uma vestimenta tu os enrolarás, e eles serão mudados”. Um cenário semelhante é apresentado no Novo Testamento: “O sol ficará escurecido, e a lua não dará a sua luz…. e os poderes dos céus serão abalados”. – Mateus 24:29. “Os céus desaparecerão com um terrível estrondo, e os corpos celestes serão consumidos pelo fogo e a terra e tudo quanto está nela serão queimados”. – 2 Pedro 3:10, A Bíblia Viva. Sabe-se atualmente que as estrelas não duram para sempre, embora demorem uns 14 bilhões de anos para deixarem de existir. E o Sol é uma dessas estrelas. Se ele um dia vai desaparecer, logicamente a Terra também deixará de existir. Então, é possível que os versículos acima sejam, na realidade, uma profecia de longuíssimo alcance. Os cientistas também teorizam que no futuro longínquo o universo poderá entrar em colapso devido à influência gravitacional da matéria escura. Dizem até que poderá haver uma força contrária ao do Big Bang, que fará o universo se retrair (Big Crunch), ao invés de se expandir, até que ele volte ao seu estado original: uma singularidade. E há quem pense que pode acontecer novamente uma grande explosão, e tudo começar outra vez, num ciclo eterno e repetitivo de vida e morte. Tal cenário faz lembrar precisamente o que disse o salmista, de que Deus enrolaria os céus como uma vestimenta velha e eles seriam substituídos. Se isto for verdade, certamente seriam eventos assombrosos que nunca passaram pela cabeça da maioria das pessoas. Tais processos da mecânica celeste podem nos induzir ao sentimento de reverência descrito nos textos a seguir: “Quando vejo os teus céus, trabalhos dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste, que é o homem mortal para que te lembres dele, e o filho do homem terreno para que tomes conta dele?”. – Salmo 8:3, 4. 325 “Ó profundidade das riquezas, e da sabedoria, e do conhecimento de Deus! Quão inescrutáveis são os seus julgamentos e além de pesquisa são os seus caminhos!”. – Romanos 11:33. Esse assunto já foi abordado pelas Testemunhas de Jeová em sua revista oficial: “O que dizer das estrelas? Será que elas também estão sujeitas à deterioração natural, como sugere a Bíblia, ou são eternas, como Aristóteles ensinava? No século 16 EC, alguns astrônomos europeus começaram a duvidar da ideia de Aristóteles sobre a eternidade das estrelas. Isso se deu quando observaram pela primeira vez uma supernova, a explosão espetacular de uma estrela. Desde então, os cientistas constataram que as estrelas podem morrer violentamente nessas explosões ou se consumir aos poucos, ou até mesmo implodir”. – A Sentinela, 01/07/11, pp. 27, 28. O artigo da “Sentinela” também menciona o Salmo 102 para defender a ideia de que a Bíblia nunca apoiou o antigo modelo cosmológico de Aristóteles, mas que, ao invés disso, já dizia que os elementos existentes no universo são todos perecíveis e um dia se acabam. Estrelas explodem e implodem, e novas são criadas para também morrerem depois. Sim, a revista concordou com todo esse entendimento. No entanto, mesmo com essa “nova luz”* praticamente implorando para ser acesa, o autor anônimo do artigo concluiu que a Terra vai durar para sempre. Em outras palavras, ela não está sujeita às leis entrópicas do Universo. A afirmação foi feita depois da pergunta abaixo: “Você talvez se pergunte: ‘Será que a Bíblia ensina que a Terra ou os céus estrelados como um todo terão fim um dia ou precisarão ser substituídos?’ ” – página 28, parágrafo 1. * As Testemunhas de Jeová chamam de “nova luz” suas mudanças de opinião em assuntos que consideram importantes, especialmente os relacionados às especulações proféticas que costumam publicar, que têm sido a “marca registrada” dessa religião. Naturalmente, o próprio autor se viu obrigado a formular essa pergunta. A combinação do texto de Salmos com as informações científicas que apresentou nos parágrafos precedentes induziria qualquer leitor a concluir que até mesmo a Terra um dia não mais existirá, daqui a alguns bilhões de anos. Tal implicação está bem descrita em uma nota de rodapé na página 28 da revista: “No século 19, o cientista William Thomson, também conhecido como Lorde Kelvin, descobriu a segunda lei da termodinâmica. Essa lei explica por que, com o tempo, os sistemas naturais tendem a se degenerar e a cessar. Um fator que o levou a chegar a essa conclusão foi o estudo cuidadoso do Salmo 102:25-27”. Com a emersão de tal cenário, era chegado o momento de desfazer o efeito que o artigo poderia estar causando até aquele parágrafo e tranquilizar em especial os leitores que são testemunhas de Jeová, que acham que a vida eterna será na Terra. O que Deus faria então para impedir que as leis que Ele criou se aplicassem ao nosso planeta? A própria revista responde, naquele mesmo parágrafo citado: 326 “Ele não diz como. Mas você não acha lógico que Aquele que criou o Universo teria o poder de preservá-lo? É como um construtor que se preocupa em cuidar da casa que construiu para si mesmo* e sua família”. * Na realidade, Deus não vive em nosso universo físico, embora se faça presente em toda parte. A moradia dele é espiritual, no Paraíso Celeste localizado em outra “dimensão”. É óbvio que esse ponto de vista da eternidade da Terra contradiz totalmente o que a revista mencionou no restante do artigo. Como é que estrelas explodiriam, buracos negros seriam formados e planetas entrariam em colapso sem que a Terra fosse minimamente afetada por esse ritmo frenético de “nascimentos” e “mortes”? Dizer que nosso planeta nunca perecerá é dizer também que a estrela ao redor da qual ele gira, o Sol, também será eterna, enquanto assiste suas “irmãs” desaparecerem por todo o universo. O que Lord Kelvin diria sobre isso? Será que ele acreditava que o sistema solar vai existir por toda a eternidade? Qual foi a conclusão a que chegou depois do “estudo cuidadoso” que fez do Salmo mencionado na revista das Testemunhas de Jeová? Fazendo referência ao livro “Lord Kelvin e a Idade da Terra”, de Joe Burchfield, uma apresentação disponibilizada pela Universidade de São Paulo responde: “Kelvin defendia a ideia de universo decadente, ou seja, em poucos milhões de anos ocorreria a morte do Sol. Kelvin estimou alguns milhões de anos para o Sol, tendo como fim a morte de todos que dependem de sua energia para sobreviver”. Por fim, o autor do artigo cita alguns textos bíblicos para “provar” a suposta exceção às leis do universo que farão a Terra, a Lua e o Sol durarem para sempre. Um deles é o versículo abaixo: “E ele os mantém [os céus] estabelecidos para sempre, por tempo indefinido. Deu um regulamento, e este não passará”. – Salmo 148:6. Como explicado até mesmo pelas Testemunhas de Jeová*, a palavra hebraica traduzida por “tempo indefinido” não significa necessariamente por toda a eternidade. Ela pode se referir apenas a um tempo muito longo. Bilhões de anos, por exemplo. Considerando todas as informações comentadas até agora (bíblicas e científicas), incluir “tempo indefinido” numa afirmação que contém “para sempre” pode ser apenas uma forma de explicar esta última, conforme sugerido nos colchetes a seguir: “E ele mantém os céus estabelecidos para sempre, [isto é] por tempo indefinido. Deu um regulamento, e este não passará”. – Salmo 148:6. * Estudo Perspicaz das Escrituras, volume 3, página 687. Esse entendimento harmoniza textos que poderiam ser vistos como conflitantes entre si, pois, ao passo que o versículo acima parece indicar a permanência eterna do universo, aquele Salmo anteriormente comentado induz exatamente ao entendimento inverso. O regulamento que não passará são as leis de Deus. No caso aqui, as leis astrofísicas que regem o funcionamento do Universo e determinam o início e o fim de seus elementos, e quem sabe dele mesmo, conforme aludido em outro texto: 327 “Levantai os vossos olhos para os próprios céus e olhai para a terra embaixo. Pois os próprios céus terão de ser dispersados em fragmentos como a fumaça, e a própria terra se gastará como uma veste, e seus próprios habitantes morrerão como um mero borrachudo. Mas, quanto à minha salvação, mostrará ser mesmo por tempo indefinido, e a minha própria justiça não será desbaratada”. – Isaías 51:6. Textos como esse acima normalmente têm aplicação em alguma situação restrita ao contexto da nação judaica. No entanto, devido à linguagem utilizada e a recorrente presença desse tipo de profecia na Bíblia, é inevitável concluir que tais palavras terão um cumprimento mais abrangente e literal. Conforme está comentado no apêndice A6, há textos bíblicos que possuem aplicações que vão além do contexto original deles. Outro exemplo de alcance ampliado de textos bíblicos é quando elementos terrestres se referem às realidades espirituais celestes. É o caso da região montanhosa de Basã*, situada entre o Líbano e Israel, que representou a moradia espiritual de Deus na aplicação feita pelo apóstolo Paulo (Salmos 68:14-21; Efésios 4:8, 9). De modo que os textos a seguir podem se referir ao céu de Deus e não à nossa Terra: “Os próprios justos possuirão a terra e residirão sobre ela para todo o sempre”. – Salmos 37:29. “Bendize a Iahweh, ó minha alma! Iahweh, Deus meu, como és grande: vestido de esplendor e majestade, envolto em luz como num manto, estendendo os céus como tenda, construindo sobre as águas tuas moradas; tomando as nuvens como teu carro, caminhando sobre as asas do vento; fazendo dos ventos teus mensageiros, das chamas de fogo teus ministros! Assentastes a terra sobre suas bases, inabalável para sempre e eternamente”. – Salmos 104:1-5, Bíblia de Jerusalém. * Conforme diz o dicionário bíblico das Testemunhas de Jeová, a Bíblia apresenta as árvores das florestas de Basã como símbolo de imponência e durabilidade. Isso pode ser um indicativo de que as árvores mencionadas nos capítulos 2 e 3 de Gênesis são elementos do céu e não da Terra, dentro da possível alegoria narrativa descrita por Moisés. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 1, p. 312. Perceba no segundo texto acima que o discurso que culmina na ideia de eternidade da “terra” tem como foco a moradia de Deus, descrita com aspectos físicos do nosso mundo. O que demonstra que o salmista está se referindo a uma realidade espiritual e não física (Lembre-se do que foi comentado num tópico anterior, que era comum em textos religiosos da Antiguidade a habitação dos deuses ser descrita como se fosse na própria Terra). A prova é tanta que o apóstolo Paulo aplicou aos anjos o trecho que foi destacado em negrito do Salmo 104: “A respeito dos anjos, porém, ele declara: Torna em ventos seus anjos, e em chama de fogo os seus ministros”. – Hebreus 1:7, Bíblia de Jerusalém.* * A palavra “anjo” significa “mensageiro”. Além disso, “vento” e “espírito” é a mesma palavra nos idiomas originais da Bíblia. Isto explica a variabilidade nas traduções desses textos, de acordo com a edição da Bíblia que for consultada. Da mesma maneira que o “vento” presente no texto é uma referência aos anjos, a “terra” mencionada pode se referir ao paraíso espiritual onde Deus mora, que é mais 328 conhecido por “céu”. O contexto histórico e bíblico aqui analisado claramente nos induz a tal entendimento. Estamos diante de duas realidades distintas que se confundem entre si no estilo de escrita adotado na Bíblia e em outras obras religiosas do passado. Por fim, a possibilidade do desaparecimento de tudo o que está diante da nossa vista não é motivo de tristeza, nem deve diminuir a nossa fé nas promessas de Deus. Se tudo o que é físico é inexoravelmente passageiro, isto é apenas mais uma evidência de que a realidade que realmente importa é a espiritual, lá no paraíso de Deus, e reforça o fato de que a visão materialista de vida eterna não encontra respaldo na Bíblia, nem quando analisada sob o enfoque da natureza física das coisas. Então, é preciso confiar na promessa de Jesus registrada em João 14:1-3, feita aos primeiros discípulos: “Não se aflijam os vossos corações. Exercei fé em Deus, exercei fé também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não, eu vos teria dito, porque vou embora para vos preparar um lugar. Também, se eu for embora e vos preparar um lugar, virei novamente e vos acolherei a mim, para que, onde eu estiver, vós também estejais”. E também garantiu: “Céu e terra passarão, mas as minhas palavras de modo algum passarão”. – Mateus 24:34, 35. “Os corpos celestes serão consumidos pelo fogo e a terra e tudo quanto está nela” – 2 Ped. 3:10 329 (Página em branco) 330 Conclusão Um fator que contribui para a diversidade de opiniões entre os cristãos sobre como será a vida eterna é que a Bíblia, em geral, não explica os pontos sobre os quais aborda. Sobre tal problemática o escritor adventista John Roller disse o seguinte: “É a imortalidade natural, ou condicional? Se houvesse uma resposta bíblica simples e clara para esta questão, não teria havido debate sobre ela por mais de dezoito séculos de história cristã. . . Em última análise, só Deus sabe a resposta verdadeira, e só quando o virmos face a face poderemos saber a resposta tanto quanto Ele sabe”. – A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva, p. 86. Embora Roller tenha nos brindado com um ótimo exemplo de como não se deve entender os textos dos cristãos primitivos, sua opinião sobre o mencionado problema é relativamente equilibrada. Digo “relativamente” porque existem informações suficientes na Bíblia para dirimir essa questão. E se for feito um exame exegético, considerando também a história hebraico-cristã, não restará nenhuma dúvida que os antigos criam que o ser humano possui uma alma que sobrevive à morte. Não obstante o autor do website Mentes Bereanas achar que a Bíblia “não tem céu escuro”, é ingenuidade achar que ela apresenta todo o seu conteúdo de maneira simples e cristalina. Não é assim que Deus projetou esse livro. Talvez até em função do que está nos textos abaixo: “Pois, quem dentre os homens sabe as coisas do homem, exceto o espírito de homem que está nele? Assim, também, ninguém veio a saber as coisas de Deus, exceto o espírito de Deus”. – 1 Coríntios 2.11. “Pois a sabedoria deste mundo é tolice perante Deus; porque está escrito: ‘Ele apanha os sábios na sua própria astúcia’.”. – 1 Coríntios 3.19. Mas os aniquilacionistas tendem a não aceitar um nível implícito de complexidade na Palavra de Deus e constroem sua teologia dentro dessa almejada simplicidade, e, como é próprio do pensamento materialista, se utilizam de raciocínios meramente humanos e físicos para explicarem a imortalidade. Ora, se o homem é somente um ser biológico que desaparece depois da morte, a conclusão que pareceria mais coerente é que não existe nada de espiritual nele que sobreviva ao fim do corpo. E, para completar o sistema de rejeição, também desqualificam obras teológicas chamando-as de textos “influenciados por doutrinas pagãs”, cuja linguagem raramente os agrada. Tais dificuldades se repetem em outros assuntos. Por exemplo, muitos aniquilacionistas, a exemplo das Testemunhas de Jeová, dizem que a crença no Deus trino é pagã e não se encontra na Bíblia. Embora seja verdade que a Bíblia não contenha uma definição clara e específica de tal credo, ela possui vários versículos que apontam nessa direção. Por este motivo os que creem na Trindade jamais deveriam ser condenados pelos que rejeitam esse ensino, pois é possível “provar” biblicamente sua veracidade.* * Por exemplo, quando o homem comeu do fruto proibido, lá no Éden, Deus disse: “Eis que o homem se tem tornado como um de nós”. E quando Ele apareceu para Abraão, o livro de Gênesis 331 menciona o acontecido da seguinte maneira: “Jeová apareceu-lhe posteriormente entre as árvores grandes de Manre, enquanto estava sentado à entrada da tenda, por volta do calor do dia. Ao levantar os seus olhos, olhou e eis que havia três homens parados a certa distância dele. Quando [Abraão] os avistou, começou a correr ao encontro deles, desde a entrada da tenda, e passou a curvar-se para a terra. Disse então: ‘Jeová, se eu tiver agora achado favor aos teus olhos, por favor, não passes por teu servo’.”. Além, é claro, dos versículos que trazem as conhecidas “fórmulas trinitárias”, e aqueles que atribuem a Cristo passagens do Antigo Testamento que originalmente se referiam a Deus. – Gênesis 3:22; 18:1-3; Mateus 28:19; Hebreus 1:10, colchetes acrescentados. Conforme visto ao longo deste trabalho, o resultado inevitável do caminho tomado pelos aniquilacionistas é a completa distorção do cenário verdadeiramente apresentado pela Bíblia sobre a questão da natureza do homem, conforme demonstrado nos diversos textos bíblicos apresentados e comentados. E os erros dos aniquilacionistas não se limitam apenas às páginas da Bíblia, mas também ao que cristãos do passado disseram. Apenas para recapitular, vimos: 1) Martinho Lutero ser citado como se fosse um defensor do aniquilacionismo, quando ele, na verdade, acreditava na imortalidade da alma (conforme o sentido cristão, não o pagão). 2) Os comentaristas bíblicos S. D. F. Salmond e Albert Barnes serem citados em apoio à ideia de que não existe um lugar nas profundezas da Terra para onde vão as almas dos mortos, quando eles, de fato, acreditavam que a Bíblia ensina que esse lugar existe. 3) Cristãos do final do século I em diante sendo citados de maneira totalmente descontextualizada, como se tivessem dito alguma coisa em favor do aniquilacionismo, o que revela um entendimento desastroso sobre os autores patrísticos e joga na lona qualquer possibilidade de considerar o que os aniquilacionistas dizem como sendo algo sério. Os fatos acima mencionados foram todos ignorados pelo autor do MB, de maneira consciente ou não. Ainda se sentiu confiante para chamar os meus textos de ‘aplicações que não resistem a um exame contextual’ ou ‘tentativas de se esquivar das evidências’, quando, na realidade, são os textos dele sobre esses temas que possuem problemas insanáveis e que podem corretamente ser chamados de distorções. E, para piorar a situação, ele ainda buscou o reforço de textos adventistas que possuem falhas semelhantes. Como foi também comentado, é claro que toda pessoa é livre para expressar qualquer opinião religiosa e isso não afeta necessariamente o destino final dela, desde que tenha fé em Cristo e viva de uma maneira condizente com o que ele espera de nós. No caso dos aniquilacionistas, o que é questionável mesmo é a postura pouco humilde deles (John Roller já foi um pouco melhor neste ponto). Tal perfil possui algumas características básicas, dentre as quais podemos destacar: 1) Afirmar sem base sólida que os cristãos dos séculos I e II tinham as mesmas opiniões dos aniquilacionistas de hoje sobre alma, Hades e assuntos relacionados, quando realmente não tinham. 332 2) Desqualificar os textos que informam (e provam) justamente o contrário: que no início os cristãos tinham conceitos semelhantes aos de hoje. 3) Desconsiderar o ambiente histórico no qual viviam os escritores bíblicos, e sustentar de maneira obstinada que o conteúdo da Bíblia não tem nada a ver com ele.* 4) E, no caso das Testemunhas de Jeová, achar que as pessoas que não aderirem ao aniquilacionismo vão perder a vida eterna, pois estariam seguindo uma “doutrina pagã” ou “ensino de demônios”. (As críticas do autor do MB tendem a indicar que ele não abandonou completamente tais preconceitos). * A Bíblia é uma coletânea de livros religiosos que foram selecionados dentre muitos que existiam nos tempos antigos. Embora creiamos que Deus guiou os homens que fizeram a referida seleção, vários livros que foram deixados de fora estão indubitavelmente conectados aos assuntos bíblicos. Naturalmente, alguns desses livros têm baixa qualidade, quando comparados aos que foram escolhidos, e jamais alguém cogitou a possibilidade de considerá-los como livros inspirados por Deus. Mas não é o caso de todos. A inclusão dos livros deuterocanônicos na Bíblia católica ilustra isso. O livro “Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto”, que foi traduzido para o português, é muito bom para demonstrar a conexão da Bíblia com o “mundo externo” (livro organizado por Hershel Shanks, editora Imago). Já consideramos algumas coisas sobre esse assunto no capítulo 18. De maneira talvez inconsciente, os aniquilacionistas costumam enxergar nos textos antigos aquilo que eles não dizem realmente. O que o adventista John Roller escreveu a seguir exemplifica muito bem o que estou querendo dizer: “Conforme já citei, Arnóbio de Sica disse: ‘Por um lado, apresentam-se argumentos por uma das partes, pelos quais se verifica que a alma é capaz de sofrer, e perecível; e, por outro lado, não faltam argumentos aos seus oponentes, por meio dos quais se mostra que a alma é divina e imortal.’ (2 Disputas 31:3)”. Note o que Roller faz. Ele cita o mencionado litígio como se fosse o atual debate entre aniquilacionistas e “imortalistas”, quando são discussões completamente distintas. Arnóbio não negou que a alma sobrevive à morte do corpo. Referindo-se à morte ele disse em outra ocasião: “Pois aquilo que é visto pelos olhos é somente a separação da alma do corpo, não a aniquilação* final: esta, eu digo, é a verdadeira morte do homem”. – Contra os Pagãos 2:14. * Conforme visto no capítulo 2, Arnóbio é considerado o primeiro aniquilacionista, mas no sentido amplo dado ao termo, que se refere ao destino final da alma, e não no sentido restrito que utilizei neste livro, que se refere ao conceito que ela é aniquilada imediatamente depois da morte do corpo. Além do mais, rigorosamente falando, nada pode ser dito contra a opinião de que a alma pode sofrer e perecer. Até mesmo os cristãos “imortalistas” dizem isso! O fator realmente importante é que no antigo debate os dois lados acreditavam numa alma depois da morte, só que um lado dizia que ela pode sofrer e perecer (conforme Jesus disse sobre a Geena) e o outro que ela é divina e absolutamente imortal (de acordo com o conceito de Platão). 333 Na verdade, o que Roller e todos os aniquilacionistas fazem é confundir as coisas. Para compreender melhor o que os antigos judeus e cristãos escreveram sobre o assunto basta ter em mente os quatro entendimentos a seguir: 1) Depois da morte, o corpo é enterrado na sepultura, mas sua alma vai para o Seol (ou Hades), onde fica esperando até ser “levantada” ou retirada de lá. 2) A alma não é imortal em sentido absoluto, pois Deus poderia erradicá-la da existência, se quisesse. 3) O existir da alma no Seol ainda não é a vida eterna prometida aos justos, que estará condicionada à obediência a Deus. 4) Na Bíblia e no mundo antigo, o termo “alma” tinha várias acepções e quando ele se referia ao ser humano não havia problema em dizer que as almas morrem, pois todas as pessoas são mortais. Mas isto não anula o que foi dito nos três itens anteriores. (É preciso entender o item 1 acima literalmente e não “desespiritualizá-lo” com o intuito de fazê-lo ter uma conotação simbólica, como insistem os aniquilacionistas). Seriam os quatro entendimentos acima tão desarrazoados que impediriam um cristão de aceitá-los? A meu ver, não. Eles me parecem bem satisfatórios, e o que foi apresentado nas considerações precedentes comprova isso. Conforme visto, há uma base bíblica e histórica bastante sólida para sustentá-los. Se John Roller os tivesse considerado em sua tese, o “placar” que ele apresenta no final de seu trabalho não teria nenhuma pontuação a favor do aniquilacionismo (“condicionalismo”), o que significa que não houve nenhuma divergência sobre esse assunto entre os cristãos nos primeiros séculos de Cristianismo. Portanto, o ponto de vista dos aniquilacionistas não possui verdadeiro apoio da Bíblia, nem tampouco da história cristã. Se o autor do MB resolver considerar o assunto com o nível de aprofundamento necessário, dificilmente ele não chegará à conclusão que subestimou as evidências contrárias ao aniquilacionismo e talvez até admita que cometeu vários erros no que escreveu. Aliás, nem todos eles foram comentados aqui. Alguns foram deixados de fora por uma questão de tempo e espaço. Seria necessário outro livro para considerar todos detalhadamente. Mas o que está aqui é suficiente para o autor do MB meditar por bastante tempo sobre as coisas que abraçou e publicou. O mesmo se aplica aos demais aderentes do aniquilacionismo que vierem a ler este livro. 334 Apêndices A1. Das profundezas da terra Tu me farás subir A seguir o Salmo 71:20 em 45 traduções da Bíblia que foram usadas pelo autor do MB em “apoio” à ideia de que o Seol (ou Hades) não fica nas profundezas da Terra: 1. “Vais nos revivificar outra vez, e novamente nos fará subir das profundezas da terra”. – American Standard Version (ASV) 2. “Tu vais me dar a vida novamente, me erguendo das águas profundas do mundo subterrâneo”. – Bible in Basic English (BBE). 3. “Tu vais me reviver novamente, me farás subir novamente, até mesmo das profundezas da terra”. – Holman Christian Standard Bible (CSB). 4. “Vais nos reviver, e nos fazer subir novamente das profundezas da terra”. – The Darby Translation (DBY). 5. “Tu me deixarás vivo. Tu irás nos fazer subir novamente das profundezas da eretz”. – Hebrew Names Version (HNV). 6. “Vais regressar e me revivificar e me farás subir novamente das profundezas da terra”. – Jubilee Bible 2000 (JUB). 7. “Vais me revivificar outra vez, e me farás subir novamente das profundezas da terra”. – King James Version (KJV). 8. “Tu irás me reviver novamente, e vais me fazer subir novamente das profundezas da terra”. – New American Standard Bible (NAS). 9. “Tu, que me mostraste grandes e severas provações, vais me reviver novamente, e me farás subir novamente das profundezas da terra”. – New King James Version. 10. “Tu me reviverás novamente, das profundezas da terra tu me farás subir novamente”. – New Revised Standard (NRS). 11. “Vais me reviver novamente, e me farás subir novamente do tehomot (abismos) da terra”. – Orthodox Jewish Bible (OJB). 12. “E voltando tu me trouxe à vida, e me trouxe novamente das profundezas da terra”. – Douay-Rheims (RHE). 13. “Tu vais me reviver novamente; das profundezas da terra tu me farás subir novamente”. – Revised Standard Version (RSV). 14. “Vais me revivificar novamente, e vais me fazer subir das profundezas da terra”. – Third Millennium Bible (TMB) 335 15. “Tu vais me reviver novamente, e me farás subir dos abismos da terra”. – Webster Bible (WBT). 16. “Tu vais nos fazer subir novamente dos abismos da terra”. – World English Bible (WEB). 17. “ - - - - - ”. – WNT (Weymouth NT) [É o Novo Testamento] 18. “E então voltaste, tu me concedestes a vida, e me fez subir novamente das profundezas aquáticas da terra”. – Wicliffe Version (WYC). 19. “Tu voltaste - Tu me reviveste, e das profundezas da terra, tu voltaste - fizeste-me subir”. – Young’s Literal Translation (YLT). 20. “Tu me farás viver uma vez mais. Das profundezas da terra, tu me levantarás uma vez mais”. – Common English Bible (CEB). 21. “Mas tu irás me reviver novamente e me farás subir das profundezas da terra”. – The Complete Jewish Bible (CJB). 22. “Vais me reviver novamente; das profundezas da terra me farás subir novamente”. – English Standard Version (ESV). 23. “Mas tu irás me dar a vida novamente. Quando eu estiver quase morto, me manterás vivo”. – New Century Version (NCV). 24. “Tu irás restaurar a minha vida novamente; das profundezas da terra me farás novamente subir”. – New International Version (NIV). 25. “Tu irás restaurar a minha vida novamente; das profundezas da terra me farás novamente subir”. – Today's New International Version (TNIV). 26. “Mas você irá me dar uma nova vida. Mesmo que eu esteja quase na sepultura, você irá me trazer de volta”. – New International Reader's Version (NIRV). 27. “Mas tu irás me restaurar a vida novamente e me levantarás das profundezas da terra”. – New Living Translation (NLT). 28. “Tu me restauras à vida outra vez. Tu me trazes de volta das profundezas da terra”. – Gods’ Word Translation (GW). 29. “ - - - - - ”. – Tyndale Version (TYN) [Tyndale não traduziu esse texto] 30. “Tu vais novamente reviver-me. E das profundezas da terra me farás subir outra vez”. – Lexham English Bible (LEB). 31. “Voltaste-me; Agora me deixas ver a vida na face. Eu fui para o fundo”. – The Message Bible (MSG). 32. “Mas tu restaurarás a minha força; Tu me guardarás da sepultura”. – Good News Translation (GNT). 336 33. “Para, de novo, me fazer viver, e dos abismos da terra novamente me tirar”. – Centro Bíblico Católico (CBC) 34. “Voltarás a deixar-nos viver. Voltarás a arrancar-me dos abismos da terra”. – Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). 35. “Tu... me restaurarás ainda a vida e de novo me tirarás dos abismos da terra”. – Almeida Revista e Atualizada (ARA). 36. “Tu voltarás para dar-me vida. Voltarás para tirar-me dos abismos da terra”. – Bíblia de Jerusalém (BJ). 37. “De novo me farás reviver. Das profundezas da terra, de novo me levantarás”. – A Bíblia do Peregrino (PER). 38. “Mas ainda me devolverá a alegria de viver, tirando-me da cova funda”. – Nova Bíblia Viva (NBV) 39. “Nos davas de novo reviver, dos abismos da terra nos tiravas”. – Bíblia Mensagem de Deus (BMD). 40. “Me darás ainda a vida, e me tirarás dos abismos da terra”. – Bíblia de Referência Thompson (THO). 41. “De novo nos restituirás a vida, e das profundezas da terra nos tornarás a trazer”. – Sociedade Bíblica Britânica (SBB). 42. “Mas me darás forças novamente e me livrarás da sepultura”. – Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). 43. “Agora voltarás para dar-me a vida, e me farás subir da terra profunda”. – Edição Pastoral (EP). 44. “Deste-me novamente a vida e dos abismos da terra outra vez me tiraste”. – Matos Soares (MS). 45. “E de novo me trazeis à vida. E dos abismos da terra de novo me elevais”. – Antonio Pereira Figueiredo (APF). Jeová é Quem faz morrer e Quem preserva a vida, Quem faz descer ao Seol, e Ele faz subir. 1 Samuel 2:6 337 (Página em branco) 338 A2. Textos bíblicos que mencionam almas, anjos e espíritos A coletânea abaixo ajuda a visualizar o cenário espiritual apresentado na Bíblia. Alguns textos que poderiam ter sido citados foram deixados de fora. Mas o que está transcrito é suficiente para demonstrar os contornos que a Palavra de Deus apresenta sobre o que está defendido neste livro. Abaixo de alguns textos foram incluídos comentários com o objetivo de esclarecer alguns detalhes. A morte de Raquel “E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim. Raquel morreu assim e foi enterrada no caminho de Efrate, isto é, Belém. Jacó colocou por isso uma coluna sobre o sepulcro dela. Esta é a coluna do sepulcro de Raquel até o dia de hoje”. – Gênesis 35:18-20. O anjo que interpelou Balaão “E ele estava montado em sua jumenta, e havia com ele dois ajudantes seus. E a jumenta pôde ver o anjo de Jeová parado na estrada, tendo sua espada desembainhada na mão; e a jumenta procurou desviar-se da estrada para entrar no campo, mas Balaão começou a espancar a jumenta para fazê-la voltar à estrada. . . E Jeová passou a desvendar os olhos de Balaão, de modo que viu o anjo de Jeová parado na estrada, tendo sua espada desembainhada na mão. Inclinou-se imediatamente e prostrou-se com o seu rosto em terra. O anjo de Jeová disse-lhe então: ‘Por que espancaste tua jumenta estas três vezes?’. . . Em vista disso, Balaão disse ao anjo de Jeová: ‘Pequei, porque eu não sabia que estavas parado na estrada ao meu encontro’.”. – Número 22:22-34. O anúncio sobre o nascimento de Sansão “O anjo do Senhor apareceu à mulher e lhe disse: ‘És estéril e não tiveste filhos. Mas conceberás e darás à luz um filho’. . . A mulher foi contá-lo a seu marido: ‘Visitou-me um homem de Deus; por seu aspecto terrível, parecia um mensageiro divino’.”. – Juízes 13:3, 6, Bíblia do Peregrino. A ressurreição do filho de uma viúva “E passou a estender-se três vezes sobre o menino e a clamar a Jeová, e a dizer: ‘Ó Jeová, meu Deus, por favor, faze a alma deste menino voltar para dentro dele.’ Jeová escutou finalmente a voz de Elias, de modo que a alma do menino voltou para dentro dele e este reviveu. Elias tomou então o menino e o levou do quarto de terraço para baixo à casa, e o entregou à sua mãe; e Elias disse então: ‘Vê, teu filho está vivo.’ 339 Então a mulher disse a Elias: ‘Agora sei deveras que és homem de Deus e que a palavra de Jeová na tua boca é verdadeira’.”. – 1 Reis 17:21-24. Um espírito mau da parte de Deus “O espírito de Iahweh tinha se retirado de Saul, e um mau espírito procedente de Iahweh o atormentava. Então os servos de Saul disseram: ‘Eis que um mau espírito vindo de Deus te atormenta. Mande nosso senhor, e os servos que te assistem irem buscar um homem que saiba dedilhar a lira e, quando o mau espírito da parte de Deus te atormentar, ele tocará e tu te sentirás melhor’.”. – 1 Samuel 16:14-17, Bíblia de Jerusalém. O aparecimento de Samuel para Saul “Então a mulher viu Samuel e, soltando um grito medonho, disse a Saul: ‘Por que me enganaste? Tu és Saul! Disse-lhe o rei: ‘Não temas! Mas o que vês?’ E a mulher respondeu a Saul: ‘Vejo um deus que sobe da terra.’ ”. – 1 Samuel 28:12,13, Bíblia de Jerusalém. Notas da BJ sobre a tradução “um deus” e o lugar de onde Samuel veio: “Em hebr. um ‘Elohim’, um ser sobre-humano (cf. Gn 3,5, Sl 8,6). Só aqui aplicado aos mortos”. E sobre o lugar de onde Samuel veio: “Ele sobe do Xeol, a morada subterrânea dos mortos (cf. Nm 16,33)”. O espírito que apareceu para Elifaz “Em meio a sonhos perturbadores da noite, quando cai sono profundo sobre os homens, temor e tremor se apoderaram de mim e fizeram estremecer todos os meus ossos. Um espírito roçou o meu rosto, e os pêlos do meu corpo se arrepiaram. Ele parou, mas não pude identificá-lo. Um vulto se pôs diante dos meus olhos, e ouvi uma voz suave, que dizia: ‘Poderá algum mortal ser mais justo que Deus? Poderá algum homem ser mais puro que o seu Criador?’.”. – Jó 4:13-17, Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Muitas versões da Bíblia não têm a palavra “espírito” no texto acima. Ao invés dela há “sopro” ou “vento”. A razão disto é que a palavra hebraica utilizada nessa passagem pode ter qualquer uma dessas acepções. De modo que é o tradutor quem decide qual delas aparecerá em sua versão. Quando a Bíblia relata o aparecimento de espíritos angelicais, normalmente eles são logo identificados como sendo anjos. O que não acontece nesse trecho do livro de Jó. De modo que há uma possibilidade dele ser outro caso de um espírito que veio do mundo dos mortos. Se for, seria o terceiro mencionado na Bíblia.* E note que a figura que falou com Elifaz foi descrita por ele como um vulto irreconhecível, como se fosse uma sombra. Ou seja, a descrição não combina com as 340 características normalmente atribuídas a anjos. Esses detalhes do relato também demonstram que a melhor tradução é “espírito” mesmo, e não “vento”. * Os kardecistas costumam dizer que há outras passagens que também se referem à comunicação de espíritos desencarnados, a exemplo de 1 João 4:1, transcrito mais adiante. No entanto, pela leitura de outros textos bíblicos, o normal e esperado é que tais espíritos fiquem restritos ao mundo deles e que tais comunicações sejam exceções autorizadas por Deus, e não uma prática corriqueira. Outra exceção seria aquela contada no livro apócrifo dos Atos de Tecla, visto no capítulo 17, onde a filha morta de uma cristã chamada Trifena transmitiu em sonho uma mensagem para a mãe pedindo a ela que recebesse Tecla em sua casa. Outro detalhe que, de certa forma, reforça essa possibilidade é que esse espírito apareceu durante a noite. Os dois casos* em que com certeza “mortos” apareceram para humanos foi também nesse horário, sendo eles o aparecimento de Moisés e Elias, na transfiguração, e quando Samuel se fez visível para a necromante de En-dor. E sobre a ligação dos mortos com o nosso mundo, a Bíblia diz: “Por tempo indefinido eles não têm mais parte em nada do que se tem de fazer debaixo do sol”. – Eclesiastes 9:6. Coincidência ou não, terem Moisés, Elias e Samuel aparecido durante o período da noite fez com que o texto acima se cumprisse de uma maneira que provavelmente nem seu escritor imaginava. Até nos casos atuais de mortos que alegadamente aparecem para os vivos, nunca se tem notícia que isso acontece em plena luz do dia.** É quase sempre durante a noite. E quando dizem que foi durante o dia é em ambientes fechados e na penumbra. * O aparecimento de Jesus para Paulo na estrada para Damasco não é um caso de alguém que veio do mundo dos mortos, pois Jesus já tinha sido ressuscitado e glorificado. – Atos 9:3-9. ** O único caso que eu já ouvi falar de alguém que já morreu aparecer sob a luz do sol foi o conhecido aparecimento de Maria para os três pastores de Fátima, em Portugal. Na sua crítica inicial, o autor do MB contestou a minha afirmação de que a transfiguração tenha ocorrido durante a noite. Mas adiante, ao falar sobre esse episódio, eu indico onde a Bíblia dá essa informação. O exército invisível ao redor de Eliseu “No dia seguinte cedinho, o empregado de Eliseu levantou-se e saiu de casa. Aí viu as tropas sírias com os seus cavalos e carros de guerra, cercando a cidade. Então entrou em casa e disse a Eliseu: – Senhor, nós estamos perdidos! O que vamos fazer? Eliseu disse: – Não tenha medo, pois aqueles que estão conosco são mais numerosos do que os que estão com eles. Então orou assim: – Ó SENHOR Deus, abre os olhos do meu empregado e deixa que ele veja! Deus respondeu à oração dele. Aí o empregado de Eliseu olhou para cima e viu que ao redor de Eliseu o morro estava coberto de cavalos e carros de fogo”. – 2 Reis 6:15-17, Nova Tradução na Linguagem de Hoje. O anjo que apareceu para Daniel 341 “No dia vinte e quatro do primeiro mês estava eu perto do grande rio, o Tigre, quando, de repente, dei com os olhos e vi o seguinte: um homem vestido de linho e tendo na cintura um cordão de ouro puro. Seu corpo parecia de pedra preciosa, o rosto era um relâmpago, os olhos, lâmpadas acesas, braços e pernas tinham o brilho do bronze polido. Sua voz parecia o grito de uma multidão. Só eu, Daniel, enxerguei a visão. Os outros que comigo estavam nada viram, mas, mesmo assim, caiu sobre eles um medo tal que fugiram para se esconder”. – Daniel 10:4-7, CNBB. O aparecimento de Moisés e Elias “Uns oito dias depois destas palavras, Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para orar. Enquanto orava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou branca e brilhante. Dois homens conversavam com ele: eram Moisés e Elias. Apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a saída deste mundo que Jesus iria consumar em Jerusalém. Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Quando acordaram, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele. . . No dia seguinte, ao descerem da montanha, uma grande multidão foi ao encontro de Jesus”. – Lucas 9:28-32, 37, CNBB. Conforme se percebe no relato, eles passaram a noite inteira no monte e quando a transfiguração aconteceu os discípulos já estavam dormindo. Sendo assim fica bastante óbvio que esse fenômeno aconteceu durante a noite, deixando-o ainda mais impressionante. Provavelmente foi o brilho de Jesus, Moisés e Elias que despertou os apóstolos. Não era incomum Jesus escolher o período da noite para orar, como é o caso daquela noite em que ele andou sobre as águas: “Por fim, tendo despedido as multidões, subiu sozinho ao monte para orar. Embora ficasse tarde, estava ali sozinho. O barco já estava então a muitas centenas de metros da terra, sendo duramente castigado pelas ondas, porque o vento era contrário. Mas, no período da quarta vigília da noite, foi ter com eles andando sobre o mar”. – Mateus 14:23-25. O mesmo aconteceu quando foi preso: “Jesus disse-lhe: ‘Deveras, eu te digo: Esta noite, antes de cantar o galo, repudiarme-ás três vezes’. . . Jesus chegou então com eles a um lugar chamado Getsêmani e disse aos discípulos: ‘Sentai-vos aqui enquanto eu vou para lá orar.’ E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, principiou a ficar contristado e muito aflito. Disselhes então: ‘Minha alma está profundamente contristada, até à morte. Ficai aqui e mantende-vos vigilantes comigo.’ E, indo um pouco mais adiante, prostrou-se com o rosto em terra, orando. . . E ele veio aos discípulos e achou-os dormindo, e disse a Pedro: ‘Não pudestes vigiar comigo nem mesmo por uma hora?’.”. – Mateus 26:34, 3639. A legião de espíritos expulsa por Jesus 342 “Mas, ao avistar Jesus de certa distância, [um homem sob o poder de um espírito] correu e prestou-lhe homenagem, e, tendo clamado com alta voz, disse: ‘Que tenho eu que ver contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Eu te ponho sob juramento por Deus, que não me atormentes.’ Porque lhe dissera: ‘Sai do homem, ó espírito impuro.’ Mas, começou a perguntar-lhe: ‘Qual é teu nome?’ E ele lhe disse: ‘Meu nome é Legião, porque há muitos de nós.’ E suplicou-lhe muitas vezes que não enviasse os espíritos para fora do país. “Ora, havia uma grande manada de porcos pastando no monte. Por isso lhe suplicaram, dizendo: ‘Manda-nos para os porcos, para que entremos neles.’ E ele lho permitiu. Os espíritos impuros saíram assim e entraram nos porcos; e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo para dentro do mar, cerca de dois mil deles, e afogaram-se um por um no mar”. – Marcos 5:6-13, colchetes acrescentados. A opinião prevalecente sobre relatos como esse é que os “espíritos impuros” ou “demônios” são anjos decaídos que seguiram a Satanás em sua rebeldia. No entanto, ao se considerar apenas o que a Bíblia informa é possível chegar à conclusão de que essa opinião está errada. De acordo com Apocalipse 12:7-14, a expulsão dos anjos rebeldes para a Terra ainda seria um evento futuro. E tais espíritos também não podiam ser os anjos que pecaram na época de Noé, porque as Escrituras informam que eles estão presos no Tártaro (2 Pedro 2:4). Enquanto não acontecesse aquilo previsto em Apocalipse, é razoável supor que a situação de Satanás e sua hoste na época de Cristo ainda era a mesma daquela da época de Jó, sobre a qual lemos: “Em certa ocasião, quando os anjos se reuniram na presença do SENHOR, Satanás estava entre eles. E o SENHOR perguntou a Satanás: ‘De onde você veio?’ Satanás respondeu ao SENHOR: ‘Estive rodeando a terra, passeando por ela’. ‘Você observou bem o meu servo Jó?’, perguntou o SENHOR a Satanás. ‘Não há homem igual a ele em toda terra, tão íntegro e correto, temente a Deus e cuidadoso para não cometer mal algum!’ “ ‘Será que Jó não tem razões para temer a Deus?’, perguntou Satanás. ‘O Senhor deu a ele do bom e do melhor, colocando uma cerca ao redor dele, da sua família e de tudo o que ele tem? O Senhor o tem abençoado em tudo o que ele faz, de maneira que os seus bens se multiplicam na terra. Não é sem razão que Jó obedece! Experimente, porém, tirar todas as riquezas e os bens que o Senhor deu a Jó e ele vai se revoltar e amaldiçoar o Senhor na sua face’. “E o SENHOR respondeu a Satanás: ‘Pois bem. Tudo o que ele possui está em suas mãos; mas não toque nele’. Então Satanás saiu da presença do SENHOR”. – Jó 1:6-12, Nova Bíblia Viva. O anúncio do nascimento de João Batista “Ora, aconteceu que, exercendo ele diante de Deus o sacerdócio na ordem do seu turno, coube-lhe por sorte, segundo o costume sacerdotal, entrar no santuário do Senhor para queimar o incenso; e, durante esse tempo, toda a multidão do povo 343 permanecia da parte de fora, orando. E eis que lhe apareceu um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do incenso. Vendo-o, Zacarias turbou-se, e apoderou-se dele o temor. . . . Mas, saindo ele, não lhes podia falar; então, entenderam que tivera uma visão no santuário. E expressava-se por acenos e permanecia mudo”. – Lucas 1:8-12, 32, Almeida Revista e Atualizada. A ressurreição da filha de Jairo “Enquanto ainda falava, chegou certo representante do presidente da sinagoga, dizendo: ‘A tua filha morreu; não incomodes mais o instrutor.’ Ouvindo isso, Jesus respondeu-lhe: ‘Não temas, apenas exerce fé, e ela será salva.’ Chegando à casa, não deixou ninguém entrar com ele, exceto Pedro, e João, e Tiago, e o pai e a mãe da menina. E todos choravam e se batiam de pesar por ela. De modo que ele disse: ‘Parai de chorar, pois ela não está morta, mas dorme.’ Começaram então a rir-se dele desdenhosamente, porque sabiam que ela havia morrido. Mas ele a tomou pela mão e chamou, dizendo: ‘Menina, levanta-te!’ E voltou-lhe o espírito e ela se levantou instantaneamente, e ele ordenou que se lhe desse algo para comer. Ora, os pais dela estavam fora de si; mas ele lhes ordenou que não dissessem a ninguém o que tinha acontecido”. – Lucas 8:49-56. A comparação que a Bíblia faz da morte com o sono tem sido muito mal interpretada pelos aniquilacionistas. Um corpo sem espírito está morto (Tiago 2:26). O espírito da menina não estava mais nela quando Jesus chegou. Então, ela realmente tinha morrido, conforme atesta o narrador. Sendo assim, quando Jesus disse que ela não estava morta, mas apenas dormia, só pode significar aquilo que os cristãos já sabem desde os tempos antigos, que a morte é apenas do corpo, não da alma ou do espírito. Seria isso algo tão difícil de perceber? – Mateus 10:28. Os anjos em frente ao túmulo de Jesus “No primeiro dia da semana, muito cedo, dirigiram-se ao sepulcro com os aromas que haviam preparado. Acharam a pedra removida longe da abertura do sepulcro. Entraram, mas não encontraram o corpo do Senhor Jesus. Não sabiam elas o que pensar, quando apareceram em frente delas dois personagens com vestes resplandecentes. Como estivessem amedrontadas e voltassem o rosto para o chão, disseram-lhes eles: Por que buscais entre os mortos aquele que está vivo? Não está aqui, mas ressuscitou”. – Lucas 24:1-6, Bíblia Ave-Maria. Sobre a função dos anjos “Não são todos eles espíritos para serviço público, enviados para ministrar aos que hão de herdar a salvação?”. – Hebreus 1:14. Os espíritos dos justos aperfeiçoados “Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontável hostes de anjos, e à universal assembleia e igreja dos primogênitos 344 arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados”. – Hebreus 12:22-24, Almeida. É preciso discernir se os espíritos são de Deus “Caríssimos, não deis crédito a qualquer espírito, mas examinai os espíritos, para ver se são de Deus; pois muitos profetas da mentira espalharam-se pelo mundo. Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é de Deus; e todo o espírito que divide Jesus não é de Deus”. – 1 João 4:1-3. O aparecimento do glorificado Jesus na revelação dada a João “Voltei-me para ver quem falava comigo. Voltando-me, vi sete candelabros de ouro e entre os candelabros alguém ‘semelhante a um filho de homem’, com uma veste que chegava aos seus pés e um cinturão de ouro ao redor do peito. Sua cabeça e seus cabelos eram brancos como a lã, tão brancos quanto a neve, e seus olhos eram como chama de fogo. Seus pés eram como o bronze numa fornalha ardente e sua voz como o som de muitas águas. Tinha em sua mão direita sete estrelas, e da sua boca saía uma espada afiada de dois gumes. Sua face era como o sol quando brilha em todo o seu fulgor. Quando o vi, caí aos seus pés como morto. Então ele colocou sua mão direita sobre mim e disse: Não tenha medo. Eu sou o Primeiro e o Último. Sou Aquele que Vive. Estive morto mas agora estou vivo para todo o sempre! E tenho as chaves da morte e do Hades”. – Apocalipse 1:12-18, Nova Versão Internacional. As descrições que os profetas faziam das visões que tiveram dos seres celestes podem não representar perfeitamente a realidade do que viram. Talvez tenham sido apenas uma maneira de se expressar, tentativas de descrever o que viram usando elementos próprios do nosso mundo. Por exemplo, a “espada” que saía da boca de Jesus podia ser um feixe de energia que saía dela ao falar, e assemelhava-se a uma espada. E os “cascos” do texto abaixo uma referência ao que os anjos da visão calçavam: “As pernas deles eram retas e tinham cascos que eram parecidos com cascos de touro e que brilhavam como bronze polido”. – Ezequiel 1:7, NTLH. As almas dos justos assassinados “E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4. 345 (Página em branco) 346 A3. Outras informações bíblicas sobre o Seol Corpos físicos no Seol? No primeiro artigo onde o autor do MB criticou o que eu escrevi, ele citou três versículos para “provar” que o corpo físico vai para o Seol, e não apenas a alma. Mas note como é fácil demonstrar que eles foram apenas entendidos erroneamente pelo escritor do MB. Considere-os abaixo em negrito: “... se também me tirardes a este, e lhe acontecer algum desastre, fareis descer as minhas cãs com tristeza ao Seol”. – Gênesis 44:29. Quem disse o acima foi o patriarca Jacó. Se a intenção aqui foi demonstrar que ele levaria seus cabelos brancos (“cãs”) para o Seol, ou seja, o próprio corpo, com ele iria também a tristeza que estava sentindo. Isto contradiz o conceito aniquilacionista de que não existem mais sentimentos para os que estão no Seol, devido à suposta inexistência de quem morre. Jacó também falou algo semelhante em Gênesis 37:35, quando achou que tinha perdido seu filho José para a morte.* Leia essa passagem em três versões da Bíblia: “Pois descerei pranteando para meu filho ao Seol!”. – TNM. “É em luto que descerei para onde está meu filho, na morada dos mortos”. – TEB. “Quero descer de luto ao Xeol, para junto do meu filho”. – Mensagem de Deus. * Na verdade, José foi vendido pelos próprios irmãos, que em seguida banharam uma veste dele no sangue de um animal para induzir Jacó a acreditar que seu filho tinha sido dilacerado por uma fera. Na visão materialista, os mortos não têm sentimentos que os façam guardar luto no Seol. Muito menos podem eles descer pranteando na sua viagem rumo ao mundo dos mortos. Certamente, Jacó não quis dizer que demonstraria tal lamento durante seu cortejo fúnebre, onde haveria ali apenas um corpo morto. De qualquer maneira, o paradeiro de José era desconhecido. Não se sabia onde o corpo dele poderia estar. Então, como seria possível a morte de Jacó fazê-lo ficar junto de seu filho? O corpo de José não estava num sepulcro ao lado onde Jacó pudesse ser “enterrado” junto dele. No entanto, Jacó sabia que se morresse iria para o Seol, onde seu filho estaria aguardando, se realmente tivesse morrido. Jacó não esperava se juntar a ele em alguma sepultura. * Lembre-se da expressão bíblica “foi ajuntado ao seu povo”, explicada no capítulo 20. Portanto, não há nenhuma possibilidade do Seol ser o mesmo que sepultura. Conforme já visto, o Seol fica nas regiões mais baixas da Terra. É por isso que nesse versículo usado pelo autor do MB, Jacó disse figurativamente* que seus cabelos brancos desceriam junto com ele até o Seol, pois no entendimento dos hebreus o Seol ficava nos compartimentos inferiores da Terra. Para eles, mesmo quando um morto era colocado em uma “gaveta” de sepulcro, acima do nível do solo, sua alma descia invariavelmente até o Seol. O que demonstra que ele não é um túmulo ou sepultura. * Sob outro ponto de vista, pode até ser que a alma que vai para o Seol possua mesmo uma forma que seja uma autoimpressão do corpo carnal que tinha, e na aparência seja exatamente aquele que viveu no mundo terreno. 347 Tomado de tristeza, Jacó disse: “Quero descer de luto ao Xeol, para junto do meu filho!” Para reforçar, considere o seguinte. Na Bíblia Nova Versão Internacional, em Gênesis 37:35 há “sepultura” ao invés de “Seol”. No entanto, em uma nota de rodapé é dito que no original é sheol e que este termo poderia ter sido traduzido por “profundezas”. Ou seja, é sempre o mesmo cenário, de que o Seol fica no coração da Terra, conforme disse, no Salmo 71:20, o idoso salmista que estava próximo de morrer: “Tu, que me tens feito ver muitos males e angústias, me darás ainda a vida, e me tirará dos abismos da terra”. – Almeida. “Tu, que me fizeste passar muitas e duras tribulações, restaurarás a minha vida, e das profundezas da terra de novo me farás subir”. – NVI. O motivo do verbo “subir” aparecer em textos que mencionam a possibilidade de uma alma ser trazida do Seol é porque tal lugar está muito abaixo da superfície da Terra, tão profundo quanto as regiões abissais do oceano. É sob essa perspectiva que Deus perguntou a Jó: “Você já foi até as nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas? – Jó 38:16, 17, NVI. Não, Jó não poderia perscrutar essas regiões inalcançáveis, sendo o Seol uma delas. Mas Deus pode. A única coisa que Jó sabia é que um dia iria para lá: 348 “Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão”. – Jó 10:20-22, NVI. Até mesmo a linguagem utilizada para se referir ao Seol demonstra que ele não é uma simples sepultura. Note quão vívidas são palavras de Jó ao descrevê-lo. Certamente uma sepultura não é um local agradável para se visitar, mas o que Jó disse sobre o Seol parece ser muito pior. “Assim eles e tudo o que era seu desceram vivos ao Seol; e a terra os cobriu, e pereceram do meio da congregação”. – Números 16:33. Esse relato se refere às pessoas da casa do rebelde Corá e seus apoiadores, que foram tragados pela terra e consumidos pelo fogo. Tendo em mente o que foi explicado sobre o texto anterior, entende-se perfeitamente a razão das palavras acima. Imagine a cena: num momento de gritaria e fortes discussões, se abre uma grande fenda no chão e dezenas de rebeldes despencam num buraco profundo. Em seguida essa abertura se fecha e eles são soterrados completamente. É óbvio que a impressão dos que assistiram a tal cena assustadora foi que aquelas pessoas foram mandadas literalmente para o Seol, mesmo sem terem morrido ainda. Obviamente, minutos depois desse terrível “enterro” já estavam todos mortos. Portanto, o que há nesse versículo resulta apenas do impacto visual que a cena causou em seus observadores. E, ao invés de demonstrar que o Seol é apenas uma sepultura individual, indica que ele é, na verdade, um lugar nas profundezas da Terra para o qual vão muitas pessoas e não apenas uma. Confirma outra vez o que eles achavam ser o Seol, um lugar nas profundezas do solo para onde vão os mortos. “Se subir ao céu, tu aí estás; se fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás também”. – Salmo 139:8. Novamente, o versículo em apreço deveria ser usado como prova de que o Seol não é apenas uma simples sepultura. No entanto, incrivelmente, o autor do MB não conseguiu enxergar isso. Observe as declarações circundantes desse versículo, de acordo com a Tradução do Novo Mundo: “Para onde posso ir do teu espírito, e para onde posso fugir da tua face? Se eu subisse ao céu, lá estarias tu; e se eu fizesse meu leito no Seol, eis que lá estarias tu! Se eu tomasse as asas da alva para residir no mar mais remoto, também ali me guiaria a tua própria mão e me seguraria a tua direita”. Portanto, esse texto nem de longe pode ser usado para demonstrar que corpos físicos vão para o Seol. Na linguagem poética do escritor, ele estava dizendo apenas 349 que não importa quão longínquo e inacessível fosse o lugar onde tentasse se esconder, inclusive o Seol. Deus, em sua onipresença, estaria lá olhando para o salmista. Se o Seol fosse apenas um sepulcro e o salmista se escondesse lá, qualquer pessoa poderia surpreendê-lo e dizer: “Achei você!”. Toda sepultura é um lugar acessível para os humanos. Já a habitação dos mortos fica nas profundezas da Terra, muito distante de nós. Mas não para Deus. Por isso, foi dito em outra parte: “Se o SENHOR sabe o que acontece até mesmo no mundo dos mortos [Seol], como poderá alguém esconder dele os seus pensamentos?”. – Provérbios 15:11, BLH, colchetes acrescentados. O proverbista está claramente fazendo alusão a uma capacidade que somente Deus possui. Caso o Seol fosse somente uma sepultura, Deus não seria o único que poderia ver o que transcorre dentro dele. O episódio de Jonas. Um exemplo que o autor do MB também poderia ter utilizado é a história de Jonas, que foi engolido pelo grande peixe e disse: “Na minha aflição clamei a Jeová e ele passou a responder-me. Do ventre do Seol clamei por ajuda”. (Jonas 2:2) Mas Jonas não esteve no verdadeiro Seol.* No entanto, em sua aflição, comparou a barriga do peixe com tal lugar, quando este nadava nas profundezas das águas. Portanto, o Seol não é uma simples sepultura, mas um lugar profundo que inspira temor. Além disso, Jonas milagrosamente conseguiu escapar e não morreu, pois foi vomitado pela criatura três dias depois. O que aconteceu a Jonas serve também para entender o que Jesus disse: “Porque, assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do enorme peixe, assim estará também o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra”. Jesus nem mesmo foi enterrado, mas o seu corpo ficou em um sepulcro, acima do nível do chão. Portanto, o Hades para onde Jesus desceu depois que morreu não é uma simples sepultura, mas é uma região nas partes inferiores da Terra, ainda mais profunda do que aquela onde Jonas esteve. – Mateus 12:40; Efésios 4:8, 9.** * Se um aniquilacionista achar que aqui se refere literalmente ao Seol, tal raciocínio não lhe seria muito útil, pois é dito no texto que Jonas clamou de dentro do Seol, o que implicaria em ele estar consciente lá. ** A Tradução do Novo Mundo não verte esse versículo corretamente, e ela mesma demonstra isso internamente, conforme foi visto no capítulo 7. Almas na sepultura? Agora um exame dos textos usados pelo autor do MB para “provar” que as almas vão também para a sepultura, e não apenas os corpos mortos. A primeira coisa que notei foi que ele não usa a Tradução do Novo Mundo. A razão ficará logo evidente.* * Evidente, porém não admitida pelo autor do MB. Na ampliação que ele fez de seus comentários, depois que leu minha defesa inicial, ele negou que a razão seja o que facilmente se percebe ao considerar o que está a seguir evidenciado. 350 Nunca é demais relembrar também que, devido à generalização que fazem de Ezequiel 18:4, os aniquilacionistas dizem que a alma é o próprio homem. Então, quando o homem morre, a alma também morre. Se eles pensam assim, como estarão aptos para tentar convencer alguém que almas vão para a sepultura? A não ser que eles estivessem falando de pessoas que moram em jazigos de cemitério. De qualquer maneira, vejamos o que foi apresentado. “Sua alma aproxima-se da sepultura, e sua vida do jazigo dos mortos... para tirar sua alma da sepultura e iluminá-lo com a luz da vida”. – Jó 33:22, 30, Bíblia de Jerusalém. Vejamos primeiro como esses versículos estão na Tradução do Novo Mundo: “Para desviar o homem do seu ato, e para encobrir do varão vigoroso o próprio orgulho. [Deus] Refreia a sua alma de ir à cova, e sua vida de desaparecer por meio duma arma de arremesso…. Sua carne se definha diante da vista, e seus ossos que não se viam certamente ficam expostos, e sua alma se chega à cova, e sua vida aos que infligem a morte…. Eis que todas estas são as coisas que Deus realiza, duas vezes, três vezes, no caso dum varão vigoroso, para fazer a sua alma recuar da cova, para que fique esclarecido com a luz dos viventes”. – Versículos 17, 18, 21, 22, 29, 30. Esse texto tem íntima relação com o intenso sofrimento de Jó, que contraiu uma doença furunculosa que o deixou num estado que parecia conduzi-lo à própria morte. A citação acima é parte do discurso feito por um de seus conhecidos, chamado Eliú, que repreende Jó por este achar que sua sorte se devia a uma punição de Deus. Eliú diz que Deus, na verdade, é aquele que desvia o homem de atos que poderiam levá-lo à morte, ou seja, “refreia a sua alma de ir à cova” (versículo 18). Além disso, aquele que passa pelo padecimento de uma doença debilitante se definha a ponto de achar que está se aproximando da cova (versículo 22), ou seja, que está prestes a morrer. Mas eis que, de repente, Deus o restabelece e faz sua alma recuar da cova (versículo 30), ou seja, impede que o homem morra. Como se vê, os personagens mencionados no discurso não morrem realmente, e nem é dito que suas almas estão na cova, mas apenas que se encaminhavam para ela. Isto quer dizer apenas que eles andaram perto de morrer, mas não morreram. Essa linguagem é um recurso estilístico do escritor. Há traduções da Bíblia onde nem existe a palavra “alma” nesse texto, e nelas é mais fácil entender o que foi narrado. Veja, por exemplo, a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). Portanto, esse versículo não pode ser usado como prova de que a Bíblia menciona “almas” dentro de um túmulo. A linguagem utilizada deve-se apenas à relação que há entre sepultura e Seol, que sempre “andam de mãos dadas”. A pessoa primeiramente morre, depois seu corpo é enterrado, e em seguida sua alma vai para o Seol. A sepultura é a “porta de entrada” do Seol, ou sua “boca”, como se diz no Salmo 141:7. 351 “SENHOR, da cova fizeste subir a minha alma; preservaste-me a vida para que não descesse à sepultura”. – Salmo 30:3, Almeida Revista e Atualizada. Rigorosamente falando, o salmista não teria como ter voltado do Seol porque ele não chegou a morrer de verdade naquele momento. Mas tudo bem.* De qualquer maneira, o início do versículo diz mesmo, de maneira poética, que sua alma retornou da cova. Mas que pena, não é assim que está no hebraico original. O que o salmista disse realmente é que sua alma retornou do Seol: “Ó Jeová, fizeste subir a minha alma do próprio Seol; mantiveste-me vivo, para que eu não descesse ao poço”. – Tradução do Novo Mundo. * No meu texto inicialmente criticado, o autor do MB reclamou por eu ter feito o mesmo com a poesia do Salmo 116:3, para demonstrar o que é realmente o Seol. A poesia hebraica costuma refletir a realidade mencionada, mesmo não tendo sido ainda concretizada. O “poço”* é semelhante à “cova” do texto anterior, e se refere a alguém que ainda estava vivo, quase morrendo, mas Deus impediu que morresse. Ou seja, refreou sua alma de ir para a cova (a primeira etapa do processo que culmina na chegada da alma ao Seol). * Quando a Bíblia menciona “poço” parece ser uma realidade mais próxima de Seol, como se fosse o meio do caminho entre a sepultura e o mundo dos mortos. Lembre-se da visão interna de um poço. Portanto, esse texto também não serve para provar que a alma é retratada na sepultura. “Deus remirá a minha alma do poder da sepultura, pois me receberá”. – Salmo 49:15, Almeida Corrigida e Revisada Fiel. Caso idêntico. Na verdade, o texto em hebraico diz que a alma é remida do Seol e não da sepultura: “No entanto, o próprio Deus remirá a minha alma da mão do Seol, pois ele me receberá”. – Tradução do Novo Mundo. Logo, o texto não pode ser usado para se alegar que a alma fica na sepultura. “Que homem há, que viva e não veja a morte? Ou que livre a sua alma das garras do sepulcro?”. – Salmo 89:48, Almeida Corrigida e Revisada Fiel. Novamente, o texto acima não se refere à sepultura: “Que varão vigoroso vive que não verá a morte? Pode ele pôr a sua alma a salvo da mão do Seol?”. – Tradução do Novo Mundo. Texto da mesma maneira descartado para o propósito pretendido pelo autor do MB. “Tu, porém, amando a minha alma, a livraste da cova da corrupção, porque lançaste para trás das minhas costas todos os meus pecados”. – Isaías 38:17, Sociedade Bíblica Britânica. Outro caso de alguém que não chegou realmente a morrer, pois Deus impediu que isso acontecesse. Livrou-se da cova pela bondade de Deus. Quem falou tais palavras foi 352 o rei Ezequias, que estava doente e suplicou que Deus adiasse a sua morte. Foi atendido e ganhou mais 15 anos de vida. Portanto, também não é um texto que diz que a alma está na cova ou sepultura. Ainda sobre a natureza do Seol O que a Bíblia menciona sobre esse lugar são apenas flashes de uma realidade sobre a qual não conhecemos quase nada. Como foi considerado em capítulos precedentes, ao passo que há textos que relacionam inatividade com o Seol, há outros que fazem justamente o contrário, como é o caso do que Jacó falou sobre descer de luto ao Seol e aquilo que Jesus descreveu na parábola do rico e Lázaro. Veja abaixo outro exemplo, num texto referente ao rei do Egito: “Os heróis poderosos com os seus aliados dirigir-lhe-ão a palavra do fundo do sheol: ‘Quem te ultrapassa em beleza?’” – Ezequiel 32:20, Missionários Capuchinhos. Como seria possível alguém dentro do Seol fazer essa pergunta ao Faraó se os que estão lá estivessem dormindo, como pensam os adventistas?* Ou se não existissem de maneira alguma, conforme dizem as “Testemunha de Jeová”?** * O “sono da morte” mencionado em alguns momentos na Bíblia não parece se referir à alma, mas sim ao corpo, pois esta é a impressão que se tem ao vermos uma pessoa morta. A ilustração do rico e Lázaro é um indicativo de que as almas que estão lá não estão dormindo. – Lucas 16:19-31 ** A Bíblia informa que só Deus sabe o que se passa no Seol. Se o homem tivesse essa capacidade, não faria sentido dizer que apenas Deus pode ver o que está lá, conforme disse Jó: “Os impotentes na morte continuam a tremer. Debaixo das águas, e os que residem nelas. O Seol está nu diante dele. E [o lugar de] destruição não tem cobertura”. Ou conforme traduz a Bíblia NVI: “Os mortos estão em grande angústia sob as águas, e com eles sofrem os que nelas vivem. Nu está o Sheol diante de Deus, e nada encobre a Destruição”. – Jó 26:5, 6, negritos acrescentados. Os que não aceitam os conceitos vigentes de alma e Seol costumam entender de maneira figurada os textos que mencionam atividades no Seol / Hades. Como acontece com a palavra alma, essas terminologias são encaradas como simbolismos que descrevem determinadas situações. As Testemunhas de Jeová, porém, com respeito ao Seol, adotaram uma postura que parece ser um meio-termo entre o que elas acreditam e o cenário descrito na Bíblia, conforme vemos em uma obra que publicaram: “Embora se tenham oferecido diversas derivações da palavra hebraica she’óhl, pelo visto, ela deriva do verbo hebraico sha’ál, que significa ‘pedir; solicitar’. Samuel Peake, em A Compendious Hebrew Lexicon (Léxico Compendioso do Hebraico), declara que [Seol] é ‘o receptáculo comum ou região dos mortos; chamado assim por causa da insaciabilidade da sepultura, a qual como que sempre pede ou quer mais’. (Cambridge, 1811, p. 148). Isto indica que o Seol é o lugar (não uma condição) que pede ou exige todos sem distinção, porque recebe em si os mortos da humanidade”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 3, p. 575, colchetes acrescentados. 353 Perceba que para o teólogo citado nessa obra, Seol não é uma sepultura individual, mas refere-se a um lugar coletivo, que recebe a “todos sem distinção”. As Testemunhas de Jeová acham que esse “receber os que morrem” acontece de maneira simbólica, pois para elas depois da morte não sobra alma nenhuma que possa ir para algum lugar. Mesmo assim citam um teólogo que informa que Seol não é apenas uma condição (que representa a morte), mas um lugar. Permanecem assim num limbo entre dois conceitos, o que é contraditório em si mesmo. E, sem constrangimento, repetem a definição que inventaram em outros lugares, a exemplo da revista “A Sentinela”: “O que é o Seol? É a sepultura comum da humanidade, para onde vão os humanos* que morrem”. – A Sentinela, 15/06/06, p. 5. * Há dois problemas nessa afirmação: (1) as TJs não acreditam que exista uma sepultura coletiva para onde vão literalmente as pessoas que morrem, e, de qualquer maneira, (2) não são os seres humanos que vão para o Seol, mas sim suas almas. Faça um teste. Pergunte a uma “testemunha de Jeová” onde fica tal sepultura coletiva e de que modo os mortos vão para lá. Verá que isso é apenas um jogo de palavras com o intuito de se ajustar minimamente ao cenário bíblico, conforme explicado por teólogos. Considere também o seguinte. Quando os textos bíblicos foram traduzidos pela primeira vez para o grego, os judeus verteram “seol” por “hades”, palavra que para os gregos já tinha o mesmo significado básico mencionado pelos hebreus, ou seja, de um profundo lugar para onde iam as almas dos que morriam. A diferença é que os gregos tinham muitas histórias (baseadas na mitologia) sobre o que acontecia no Hades, ao contrário dos hebreus que quase não tinham informação sobre o mundo dos mortos. Visto que a palavra “hades” foi utilizada também pelos escritores do Novo Testamento, então ela foi definitivamente chancelada como equivalente perfeito de “seol”. Para complementar o que comentei aqui, sugiro a leitura dos dois textos abaixo: http://adelmomedeiros.com/sobreoseol.htm http://adelmomedeiros.com/seolehades.htm Portanto, está muito claro que os corpos mortos vão para a sepultura e as almas vão para o Seol (ou Hades), que fica nas profundezas da Terra. Este é o entendimento desde a época dos antigos hebreus, mesmo que eles acreditassem que as almas ficam “dormindo” por lá.* * Para muitos estudiosos cristãos nem importa se os hebreus acreditavam ou não na inconsciência no Seol, pois quando chegou o tempo de Jesus eles com certeza já não mais pensavam assim (se é que pensaram algum dia), conforme indicado na parábola do rico e Lázaro. Se os aniquilacionistas fossem mais atentos a essa questão perceberiam que o máximo que se pode supor da linha que eles defendem é que os hebreus acreditavam que as almas estavam todas dormindo no Seol, pois nos tempos antigos não se questionava a existência literal delas em tal lugar. O que podia ser discutido é se elas fazem alguma coisa lá. 354 ‘Os aliados do Faraó lhe dirão palavras de dentro do Seol.’ - Ez. 32:21 O que acontece com os justos que estiverem no Seol Ao descrever o lugar para onde iria depois que morresse, Jó disse: “Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão”. – Jó 10:20-22, NVI. Chegando em tal lugar, o que seria de Jó? Estaria ele completamente abandonado até que chegasse a prometida ressurreição? Conforme já mencionado, há um texto na Bíblia que se encaixa perfeitamente nessa situação, mesmo se não houvessem evidências de que foi a intenção do escritor: 355 “Jeová é o meu Pastor. Nada me faltará. Ele me faz deitar em pastagens* relvosas; conduz-me junto a lugares de descanso bem regados. Refrigera a minha alma. Guiame nos trilhos da justiça por causa do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra tenebrosa**, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; tua vara e teu bastão são as coisas que me consolam”. – Salmo 23:1-4; compare com Isaías 58:912. * “A palavra hebraica traduzida ‘pastagens’ pode significar ‘lugar agradável’ ”. – A Sentinela, 01/11/05, p. 17. ** Ou “vale da sombra da morte”, conforme uma nota da Tradução do Novo Mundo. O exegeta cristão F. R. dos Santos Saraiva mencionou no seu comentário ao Saltério que as palavras acima foram escritas pelo salmista já em idade avançada, e que “é fácil de ver” que a maior parte dos termos empregados tem conotação espiritual. Neste caso, se entende porque o escritor mencionou o “vale da sombra da morte”. Ele sabia que dentro de pouco tempo estaria lá. Mesmo assim, mantinha a esperança que Deus continuaria com ele e, que nem um uma ovelha perdida numa região árida, seria encontrado pelo seu Pastor e conduzido para um oásis reconfortante. Uma evidência que outros também enxergam um sentido espiritual neste Salmo é quando ouvimos o mesmo ser recitado em velórios. – Harpa de Israel (1898), Edição de G. W. Chamberlain, pp. 329, 330. Outro comentário* sobre o Salmo 23 diz o seguinte: “Refrigera a minha alma.” A Palestina é de extensão relativamente pequena, entretanto, o seu clima é extremamente variado, dependendo da localidade. Há a zona tropical do baixo Jordão, com altas temperaturas, a região desértica que contrasta com a marítima e vice-versa. E na região da alta Galiléia, que também é tropical, com calor intenso, em determinado horário, o sol é tão escaldante, o clima fica tão abafado, que fica difícil até de seus habitantes se alimentarem. Porém quando o vento do norte sopra mais forte, traz um refrigério, um sopro de frescor que vem do monte Hermom, que fica no norte de Israel e há em seu cume uma grande quantidade de neve, que quando há vento, ajuda a trazer este refrigério, amenizando a temperatura da região. * http://www.rudecruz.com/salmo-23-o-senhor-e-o-meu-pastor-nada-me-faltara-estudo-biblico.php Tendo em mente o acima descrito, é inevitável não relacionar o Salmo 23 com a parábola do rico e Lázaro. (Lucas 16:19-31) Quando o rico chegou ao Hades e se viu no meio das chamas, em angústia clamou por apenas uma gota de água que pudesse, quem sabe, refrescar-lhe a língua. O mendigo, por sua vez, fora acolhido no Seio de Abraão onde desfrutava do refrigério dispensado aos justos, talvez naquele ambiente relvoso descrito pelo salmista. Numa bem-vinda intertextualidade, vemos o mesmo cenário na história judaica que provavelmente Jesus tinha em mente quando contou sobre o destino de Lázaro: 356 “[E o anjo disse a Abraão:] A paz esteja contigo, ó justa alma, amigo do Altíssimo, aquele que recebeu os santos anjos quais convidados, sob seu teto hospitaleiro!.... [E Deus disse aos anjos:] Levem o meu amigo Abraão ao Paraíso, à morada dos meus justos, as residências dos meus santos, onde não há nem trabalho, nem luto, nem pesar, mas sim paz, e alegria, e vida sem fim”. – A Hagadá Pré-Talmúdica, The Jewish Quarterly Review, vol. 7, nº 4 (Jul., 1895), pp. 589, 591, colchetes acrescentados. Por que Deus não encravaria um paraíso no meio do deserto causticante do Seol para acolher os justos que morressem? Estariam assim bem acomodados até serem transferidos para a cidade celestial que foi preparada para eles. Não seria surpresa se um dia descobríssemos que Abraão era o governante desse domínio ajardinado, imitação do Paraíso de Deus. Existe uma referência na literatura cristã do século II que parece indicar uma continuidade desse pensamento judaico entre os cristãos, a respeito dos justos que vão para o Hades ficarem numa região melhor feita apenas para eles. Leia a seguir: “Após a exibição, Trifena a recebeu novamente, pois sua filha Falconila, que havia morrido, disse para ela em um sonho: ‘Mãe, deves colocar esta estranha Tecla em meu lugar, para que ela ore por mim, e eu possa ser transferida para o lugar dos justos’.”. – Atos de Paulo e Tecla, c. 160 d.C. Portanto, não deveríamos duvidar que Jesus tenha dito o seguinte ao ladrão arrependido: “Eu lhe garanto: Hoje você estará comigo no paraíso”. – Lucas 23:43, NVI. Mais uma possibilidade de entendimento. . . “O Senhor é meu pastor e nada me falta…. Por isso, ainda que ande no meio da sombra da morte, não temerei males, porque estás comigo”. – Samos 23:1, 4, Matos Soares. Observe outra possível interconexão entre textos aparentemente díspares. A palavra grega usada pelos escritores do Novo Testamento para se referir à ressurreição é “anastasis”, que significa literalmente “levantar” ou “erguer”. Foi esse mesmo verbo grego que o evangelista usou* referindo-se a quando Jesus disse o seguinte: “Quem é o homem entre vós que, tendo uma só ovelha, e, caindo esta numa cova, no sábado, não a agarra e levanta para fora?”. – Mateus 12:11. * Comentaristas dizem que Mateus foi primeiramente escrito em hebraico e só depois traduzido para o grego. De qualquer modo, o verbo grego mencionado aparece mesmo nesse texto, mesmo que este seja uma tradução do original, atualmente perdido. Temos então o recorte de um retrato que representa a atitude de um pastor com suas ovelhas. Se uma delas cai em uma cova e fica presa, ele não poderá ter outra atitude senão a de tirá-la de lá. De maneira similar, o Pastor Celestial poderá resgatar sua ovelha daquela “cova” bem mais profunda que é o Seol. A isto chamamos de ressurreição! 357 ‘ Na morada dos justos não há trabalho, luto ou pesar, mas apenas paz, alegria e vida sem fim’ 358 A4. Comentários adicionais sobre Mateus 10:28 O texto de Mateus 10:28 tem sido distorcido por aqueles que não aceitam o que ele diz. Ele é claro em si mesmo, especialmente quando considerado o contexto. Leia a seguir quais foram os argumentos de Jesus que culminaram no que ele disse no verso 28: “Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. . . . Guardai-vos dos homens; pois eles vos entregarão aos tribunais locais e vos açoitarão nas suas sinagogas. Ora, sereis arrastados perante governadores e reis, por minha causa, em testemunho para eles e para as nações. . . . Além disso, irmão entregará irmão à morte, e o pai ao seu filho, e os filhos se levantarão contra os pais e os farão matar. . . . Portanto, não os temais; pois não há nada encoberto que não venha a ser descoberto e não há nada secreto que não venha a ser conhecido. O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrado, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo. Não se vendem dois pardais por uma moeda de pequeno valor? Contudo, nem mesmo um deles cairá ao chão sem o conhecimento de vosso Pai. Porém, os próprios cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Portanto, não temais; vós valeis mais do que muitos pardais”. – Mateus 10:16-30. Observação: visto que o autor do MB afirmou que no meu primeiro artigo que foi criticado há textos truncados com objetivos torpes, esclareço que omiti trechos da citação acima apenas para encurtá-la, e não para fazer o leitor acreditar numa coisa que ela não diz. Como se percebe, o entendimento natural de Mateus 10:28 é simples. O que motivou Jesus a dizer o que está lá foi aquilo dito alguns versículos antes, de que alguns seriam assassinados por advogarem o Cristianismo. Quando os discípulos souberam que isso aconteceria, facilmente poderiam se intimidar diante dos seus futuros algozes. Mas Jesus os lembrou que os homens podiam matar somente o corpo, mas nada podiam fazer contra a alma. Ao contrário de Deus, que tem o poder de destruir tanto a alma quanto o corpo, na Geena. É a Ele que eles deveriam realmente temer, pois é o Senhor da vida e da morte. – Deuteronômio 30:17-20; Apocalipse 20:11-15. Primeiramente, é bom lembrar que quando Jesus mencionou “corpo” naturalmente ele estava se referindo a um corpo vivo, a um ser humano que eventualmente poderia ser assassinado. Ou seja, uma pessoa que poderia ser morta às mãos de inimigos. – Compare com Ezequiel 4:14. A explicação que o autor do MB dá sobre Mateus 10:28 é que este deve ser entendido da seguinte maneira: ‘Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a pessoa. Temei antes aquele que pode destruir a pessoa e o corpo na geena’. 359 Mas que espécie de raciocínio é este, afinal? Como é que depois da morte uma pessoa é mantida viva? Se uma turba mata João, significa então que não mataram a pessoa chamada João? Se aos olhos de todos João está morto, ao verem seu corpo estendido, e mesmo assim se diz que ele não morreu, então só há uma explicação: João continua vivo milagrosamente em algum outro lugar. Portanto, ao que parece, a troca acima, ao invés de contradizer o entendimento vigente sobre o versículo, está é apoiando! Leia o texto a seguir: “Vós, irmãos, vos tornastes imitadores das congregações de Deus que estão na Judéia, em união com Cristo Jesus, porque também começastes a sofrer às mãos dos vossos próprios conterrâneos as mesmas coisas que eles também estão sofrendo às mãos dos judeus, que mataram até mesmo o Senhor Jesus e os profetas”. – 1 Tessalonicenses 2:14, 15. Foi o corpo chamado Jesus Cristo que eles mataram? Ou foi a pessoa chamada Jesus Cristo? Claro que foi a pessoa. Logo, os homens têm o poder de matar a alma (pessoa), aceitando-se essa equivalência rígida. O argumento que o autor do MB usou para sustentar essa releitura é que na Bíblia as pessoas são chamadas de almas. E isto é verdade, mas não somente elas. Considere o texto a seguir: “Pois a alma de todo tipo de carne é seu sangue”. – Levítico 17:14. Veja qual é a explicação do autor do MB sobre esse texto: “O que Levítico 17:14 está dizendo é que ‘a alma (vida) de todo tipo de carne’ (humana ou animal) está no sangue, porque o sangue é o elemento essencial na manutenção ou sustentação da alma (vida) de um ser carnal”. A alma está no sangue, e o sangue está no corpo do ser carnal. Portanto, quando um assassino mata um ser carnal, sua alma também perece, de acordo com a visão acima. Então, por outro caminho, chega-se à mesma conclusão: que um assassino pode matar a alma. Na verdade, quando o autor do MB opta por esse entendimento padronizado da palavra “alma” ele faz é se complicar, pois essa tática é “um tiro no próprio pé”. Veja bem. Se tirar a vida de alguém significa não matar a pessoa (alma), então o texto abaixo não deve ser compreendido em seu contexto original: “Eis que todas as almas — a mim me pertencem. Como a alma do pai, assim também a alma do filho — a mim me pertencem. A alma que pecar — ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4. As palavras acima se referem aos israelitas que deviam cumprir os preceitos da lei mosaica, alguns dos quais se não fossem seguidos tinham como punição a morte. 360 Agora imagine um infrator que recebesse a pena capital e fosse apedrejado até morrer. Aplicando-se o entendimento do autor do MB, os executores mataram apenas o corpo do condenado, mas nada podiam fazer contra a alma (pessoa). A alma não pode ser morta pelas mãos do homem. Só Deus tem a capacidade de destruir tanto a alma quanto o corpo na Geena. Portanto, quando o versículo diz ‘a alma que pecar morrerá’, ele só pode estar se referindo a um sentido mais amplo, a uma pena de morte (destruição) que só Deus tem o poder para aplicar. Portanto, esse entendimento, ao invés de contradizer, faz é apoiar o conceito da imortalidade restrita da alma. Ainda sobre a explicação que o autor do MB deu sobre Levítico 17:14, percebe-se que ele trouxe outra acepção da palavra “alma”, que é “vida”. Ela também não ajuda no entendimento aniquilacionista do texto de Mateus se fizermos a mesma substituição: ‘Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a vida. Temei antes aquele que pode destruir a vida e o corpo na geena’. Novamente, se uma turba mata João, como é que João ainda pode possuir a vida? Já deve estar bem evidente que a interpretação proposta pelo autor do MB é um raciocínio circular que remete sempre ao ponto de origem. Isto acontece porque o autor não quer dizer mais claramente o que ele pensa. Na verdade, o que ele tinha em mente quando propôs a “solução” de trocar “alma” por “pessoa” foi o seguinte: ‘Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a (esperança de vida futura da) pessoa. Temei antes aquele que pode destruir [simbolicamente] a (esperança de vida futura da) pessoa e o corpo na geena’. É esta a explicação dada pelas Testemunhas de Jeová. Elas dizem que quando o cristão morre, ele fica na dependência de ser recriado por Deus no futuro. Talvez o autor do MB não tenha optado por tal substituição para o escamoteamento do texto não ficar tão evidente. Além disso, provavelmente ele é um daqueles que aderem ao lema: “Eu me baseio apenas na Bíblia”. Neste caso, seria difícil encontrar onde ela explica o ampliado ponto de vista acima. Lucas Banzoli, o escritor mencionado no capítulo 21, escreveu uma explicação similar, porém com mais requintes e sem encabulamento. Ela está naquele livro onde ele, além de apresentar o que é de costume, também tentou encontrar na literatura cristã do século II algo que indique que os antigos cristãos acreditavam que a alma desaparece por ocasião da morte. É uma estratégia previsível já que não há nada no Novo Testamento que corrobore o que os aniquilacionistas pensam sobre Mateus 10:28. Mais adiante há um breve comentário sobre o que Banzoli disse sobre isso. Levando em consideração as várias acepções da palavra “alma” na Bíblia, se tivéssemos de fazer uma substituição didática no versículo, a mais próxima do sentido correto talvez fosse a seguinte: ‘Não temais os que matam o ser humano, mas não podem matar a alma dele. Temei antes aquele que pode destruir a alma e o ser humano na geena’. 361 Ou então: ‘Não temais os que matam a alma humana, mas não podem matar a alma espiritual. Temei antes aquele que pode destruir a alma espiritual e a alma humana na geena’. Note a seguir algumas acepções da palavra “alma” na Bíblia: 1. A pessoa em si: “Quando a sabedoria entrar no teu coração e o próprio conhecimento se tornar agradável à tua própria alma. . .”. – Provérbios 2:10. 2. As pessoas em geral: “E as almas humanas foram dezesseis mil, e o imposto delas para Jeová foi de trinta e duas almas”. – Números 31:40. 3. O povo: “A alma do povo começou a cansar-se por causa do caminho”. – Números 21:4. 4. O sangue: “Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer”. – Gênesis 9:4. 5. A vida: “E agora, ó Jeová, por favor, tira-me a minha alma, pois é melhor eu morrer do que ficar vivo”. – Jonas 4:3. 6. Os animais: “E Deus passou a criar os grandes monstros marinhos e toda alma vivente que se move, que as águas produziram em enxames segundo as suas espécies, e toda criatura voadora alada segundo a sua espécie”. – Gênesis 1:21. 7. O Seol: “Por isso, o Seol ampliou a sua alma e escancarou a sua boca além de medida; e o que é esplêndido nela [em Jerusalém], também a sua massa de gente*, e seu rebuliço, e o rejubilante, certamente descerão a ele”. – Isaías 5:14. * Ao dizer que uma “massa de gente” desceria ao Seol denota justamente aquilo que já sabemos, que tal lugar não significa uma sepultura individual, mas sim um domínio para onde vão multidões. 8. A alma espiritual: “Porque não deixarás a minha alma no Seol”. – Salmo 16:10. Por que os aniquilacionistas não conseguem enxergar o sentido nº 8 (alma espiritual)? Porque não aceitam o verdadeiro significado da palavra “Seol”. Conforme já visto detalhadamente, Seol não é apenas uma sepultura, mas o lugar para onde a alma vai depois da morte. Na sepultura não se coloca uma alma (pessoa viva), mas o corpo de quem morreu, conforme foi dito em referência ao Senhor Jesus: “Veio um homem rico de Arimatéia, de nome José, que também se tinha tornado discípulo de Jesus. Este homem dirigiu-se a Pilatos e pediu o corpo de Jesus. Pilatos ordenou então que lhe fosse entregue. E José tomou o corpo, enrolou-o em puro linho fino e deitou-o no seu novo túmulo memorial”. – Mateus 27:57-60. Os homens conseguiram matar a Jesus, cujo corpo foi colocado em um sepulcro, mas sua alma ficou preservada no Seol, ou Hades. 362 Por isso, a classificação correta dos textos abaixo não é a de nº 5, como acha o autor do MB, mas a de nº 8: “E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18. “E [Elias] passou a estender-se três vezes sobre o menino e a clamar a Jeová, e a dizer: ‘Ó Jeová, meu Deus, por favor, faze a alma deste menino voltar para dentro dele.’ Jeová escutou finalmente a voz de Elias, de modo que a alma do menino voltou para dentro dele e este reviveu”. – 1 Reis 17:21, 22. As versões de alguns tradutores que trocam “alma” por “vida não eliminam o fato de que no hebraico está exatamente como transcrito acima. “E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma, antes...” Concluindo, o conceito cristão sobre a imortalidade da alma não é imortalidade em sentido absoluto. Se Deus tem o poder de destruí-la, se quisesse, é óbvio que ela não é absolutamente indestrutível. Mas só Deus pode destruir uma alma, ninguém mais. A alma é imortal apenas em sentido relativo, porque continua a existir no Hades depois 363 da morte do corpo físico. Além disso, estar a alma em ensinamento da ressurreição. São dois assuntos que aniquilacionistas costumam misturar os dois conceitos tentativa de invalidar a crença sobre a alma, que existe Cristianismo. tal lugar não elimina o se complementam. Os de maneira errônea na desde os primórdios do Outro entendimento errado de Mateus 10:28 Se quando a pessoa morre a alma também morre, como pensam os aniquilacionistas, significa que o homem tem também o poder de matar a alma, contradizendo assim o que Jesus Cristo falou. Para fugir dessa conclusão lógica, propostas absurdas de entendimento têm sido apresentadas no intuito de fazer Mateus 10:28 dizer o que ele não diz. Por exemplo, o livro de Banzoli anteriormente mencionado, “A Lenda da Imortalidade da Alma”, teoriza que Jesus fez uso de “um sentido ampliado de almapsiquê”, e que ela poderia ser traduzida “corretamente” por “vida eterna”. Ou seja, o que supostamente Jesus teria dito foi: ‘Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a vida eterna’. Será que alguma tradução da Bíblia, dentre as centenas existentes, traduz Mateus 10:28 de tal maneira? De acordo com o contexto do versículo, existe alguma possibilidade de se chegar ao entendimento proposto no livro de Banzoli? Além disso, existe alguma declaração em toda literatura Patrística do século II que indique que os cristãos antigos entendiam esse versículo assim? Esta pergunta é pertinente porque o autor do livro lança mão desse material para tentar encontrar evidências a favor do aniquilacionismo nos cristãos do século II, conforme visto no capítulo 21. O motivo dessa invenção de “sentido ampliado” da alma de Mateus 10:28 é porque o conceito básico dos aniquilacionistas contradiz totalmente o que Jesus falou, conforme fica evidente em outro trecho do mesmo livro de Banzoli: “Em outras palavras, se uma ‘alma vivente’ é simplesmente um ‘ser vivo’, a alma pode ser assim classificada, então, como a própria vida humana”. É justamente a vida humana que os assassinos têm o poder de ceifar. Então, de acordo com o conceito “básico” acima, os homens podem matar tanto a alma quanto o corpo. E a misturada de conceitos não para por aí. O livro diz ainda: “Se o que Jesus queria provar em Mateus 10:28 era a doutrina da imortalidade da alma, por que então a continuação deste mesmo diz que a alma-psiquê é destruída junto com o corpo? Afinal, como disse Cullmann, ‘se a alma é destruída, então ela não é imortal’. . . . Se o que está em jogo em Mateus 10:28 é a alma como um elemento, como creem os imortalistas, isso refutaria a própria tese da imortalidade da alma, pois a continuação lógica de um texto que diz que os homens podem apenas matar o corpo mas não podem matar a alma é que Deus destruirá tanto um como o outro. Não há a 364 menor lógica em dizer que os homens podem matar o corpo e não a alma e Deus também só mata o corpo e não a alma, ou pior: que os homens possam matar o corpo e não a alma e Deus não mata nem um nem outro!”. – A Lenda da Imortalidade da Alma, Lucas Banzoli, pp. 68, 178. Será que Banzoli teria dito para Jesus que não tem lógica o que ele disse? Caso tivesse ouvido diretamente dele o que está em Mateus 10:28? Mas o que chama mesmo atenção é o quanto Banzoli distorce o que Mateus escreveu: 1º) Jesus não estava querendo provar nada para ninguém. 2º) O que motivou Jesus a dizer o que está em Mateus 10:28 foi o fato de que alguns cristãos perderiam a vida por seguirem suas ordens. 3º) O texto não diz que Deus vai destruir o corpo e a alma das pessoas. Apenas enfatiza que Ele tem o poder para fazer isso, se quiser. 4º) Pelo motivo acima, os cristãos que fossem martirizados não deveriam temer os seus executores, mas que temessem antes a Deus. 5º) Consequentemente, Jesus não afirmou que a alma é imortal em sentido absoluto. Este último ponto é outro detalhe que vale a pena ser comentado. As pessoas que não querem aceitar o que está em Mateus 10:28 estão fazendo confusão sobre o que significa a alma ser imortal. Ela é imortal apenas no sentido de que continua a existir no Seol (ou Hades) depois da morte do corpo. No Seol, ela fica aguardando a ressurreição, que é o momento de sua saída definitiva de lá. Mais erros O livro supracitado de Banzoli possui outros erros. Abaixo mais dois exemplos: 1) Ele diz na página 46 que Clemente de Alexandria “em muito seguiu a linha [de raciocínio] de Orígenes”. Na verdade, se um seguiu o entendimento do outro, deve ter sido Orígenes que seguiu a maneira de pensar de Clemente, pois Orígenes era seu discípulo, e não o contrário. 2) Ao comentar Gênesis 37:35, Banzoli parece não conhecer a história de José do Egito, pois disse: “Jacó evidentemente ainda não sabia que na mitologia pagã grega (de imortalidade da alma) o Hades ficava no centro da Terra. Jacó foi cavando até o inferno para enterrar o seu filho José? Não, Jacó sabia muito bem que Sheol era puramente sepultura. Ele sabia disso porque essa era a crença da época, o sentido puro de Sheol. Ademais, Jacó foi enterrar o corpo morto de José e não uma alma ou espírito incorpóreo. . .”. – p. 157. 365 José não estava morto e por isso não foi enterrado! Ele foi vendido pelos próprios irmãos, que fizeram Jacó acreditar que José havia sido dilacerado por uma fera, ao apresentarem uma vestimenta banhada com o sangue de um animal. Portanto, José não estava enterrado em lugar algum. Mesmo assim, por achar que José tinha morrido, Jacó disse: “Quero descer de luto ao Xeol, para junto do meu filho”. – Gênesis 37:35, BMD. Banzoli usa esse texto na tentativa de demonstrar que Seol é a mesma coisa que sepultura. Não percebe que o versículo prova exatamente o contrário! Jacó achava que se morresse iria para o Seol, onde já estaria José, e lá poderia ficar junto do filho. Visto que o corpo de José não estava em nenhum sepulcro no qual o corpo de Jacó pudesse também ser depositado, fica evidente que o Seol fica em outro lugar, e não na sepultura. E se o corpo fica na sepultura e mesmo assim a pessoa vai para o Seol, significa que é sua alma que vai para o Seol, na esperança de que Deus faça o que está no texto abaixo: “Não deixarás a minha alma no Seol”. – Salmo 16:10; Atos 2:31. Outro detalhe que o autor parece desconhecer é que, conforme já considerado, os hebreus tinham uma concepção sobre a “localização geográfica” do Seol muito parecida com a ideia que os gregos tinham do Hades. Achavam que o Seol fica nas profundezas da Terra. O que Banzoli disse possui também alguma medida de anacronismo histórico. A mitologia grega pagã a que ele se refere ainda não estava consolidada na época de Jacó, que viveu próximo do ano 2000 antes de Cristo. Nesse tempo a Grécia ainda nem existia e estava em processo de formação, com a migração de povos indo-europeus, posteriormente conhecidos por aqueus, eólios, jônios e dórios. Ou seja, quando Jacó lamentou a suposta morte de José foi mais de mil anos antes de Homero (c. 700 a.C.) e de Platão (427-347 a.C.), quando praticamente nem havia a cultura grega que se disseminou pelo mundo antigo. 366 A5. Comentando mais pontos criticados pelo autor do MB Quando escrevi o artigo que está no apêndice A8 (“Textos Amiúde Mal Aplicados pelos Aniquilacionistas”), a minha ideia não foi fazer um exame exaustivo das passagens bíblicas pertinentes e expor longos comentários. Foi uma análise rápida onde ofereci algumas possibilidades de entendimento, para harmonizar aqueles versículos ao contexto global das Escrituras, e de maneira condizente com a Teologia predominante. O que está lá me parece bem satisfatório, mesmo passível de melhorias. Embora a Parte 1 seja suficiente para demonstrar que o autor do MB avaliou os meus textos de maneira errada, inclusive o artigo acima mencionado, o objetivo deste apêndice é complementar o que está na primeira parte. O que quis dizer com “textos mal aplicados”? Levando-se em consideração o que a Bíblia ensina sobre alma e Seol torna-se evidente que a maneira que certos versículos são entendidos pelos aniquilacionistas não está correta. Sendo assim, são mal aplicados. Por isso, chamei o meu artigo originalmente criticado pelo autor do MB de “textos amiúde mal aplicados pelos aniquilacionistas”. Ele, porém, achou o título inapropriado. Não entrarei no mérito do que ele explicou sobre qual seria a classificação adequada. Vou apenas exemplificar o que é, para mim, uma má aplicação de um texto. Escolhi um tema relativamente pacífico para ficar bem claro: a ressurreição. Leia novamente aquilo que Jó disse sobre o lugar para onde iria depois da morte: “Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão.... o homem morre, e morto permanece; dá o último suspiro e deixa de existir.... assim o homem se deita e não se levanta até quando os céus já não mais existirem, os homens não acordarão* e não serão despertados do seu sono”. – Jó 10:20-22, 14:10, 12 NVI. * Ou: “Não acordarão até que não haja mais céu”, conforme a Tradução do Novo Mundo. A declaração acima encontra reforço no livro de Eclesiastes, que disse sobre as pessoas que morreram: “Amor, ódio, inveja, para eles tudo se acabou; não terão jamais parte alguma no que acontece debaixo do sol”. – Eclesiastes 9:6, Vozes. Então, apegando-se estritamente ao que é dito nos textos acima, facilmente chegarse-ia à conclusão de que não há mais esperança para os que morreram e jamais eles serão ressuscitados. Entretanto, note o que aconteceu tempos depois e o que Jesus Cristo disse a respeito: “Ide e relatai a João o que vistes e ouvistes: os cegos estão recebendo visão, os coxos estão andando, os leprosos estão sendo purificados e os surdos estão ouvindo, os mortos estão sendo levantados, os pobres são informados das boas novas”. – Lucas 7:22, 23. 367 “Não vos admireis, porque vem a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão sua voz, e os que praticaram o bem, sairão para a ressurreição da vida, e os que praticaram o mal, para a ressurreição do juízo”. – João 5:28, 29, Vozes. Então, temos aqui duas linhas de pensamento aparentemente conflitantes. De um lado Jó e Salomão, e do outro Jesus Cristo. Em qual deles devemos acreditar? Nos três! Na verdade, Moisés e Salomão não contradisseram Jesus. O que eles escreveram é realmente o que está lá, porém deve ser compreendido de acordo com a direção apontada pela Bíblia em seu contexto geral, que funciona tal como uma bússola que orienta o navegante num momento de céu escuro. É tudo uma questão de ponto de vista. Achar que não haveria ressurreição por conta do que está em Jó e Eclesiastes é uma má aplicação daqueles textos, por mais que eles pareçam dizer que ninguém será ressuscitado. Para mim está muito claro que algo semelhante acontece com respeito aos textos do Antigo Testamento que associam “silêncio” e “inatividade” ao Seol / Hades. Os aniquilacionistas se apegam a eles como se não houvessem outros versículos que apontam na direção contrária, especialmente no Novo Testamento, onde foi dito que Jesus desceu às profundezas da Terra e possivelmente resgatou cativos de lá. Sabemos que o corpo dele sequer foi enterrado, pois o colocaram em um sepulcro. – Mateus 12:40; Efésios 4:8, 9.* * A Tradução do Novo Mundo não traduz corretamente esse versículo, e ela mesma “se entrega”, conforme foi visto no capítulo 7. Os pontos de vista dos vivos e dos mortos Uma das minhas argumentações frequentemente atacada pelo autor do MB foi a que eu mencionei sobre “o ponto de vista dos que ficam” na Terra e “o ponto de vista dos que vão” para o Seol. Apresentei isso como possibilidade de entendimento, baseandome em certos versículos da Bíblia e na própria lógica, pois se há almas humanas na Terra e almas espirituais no Hades, é evidente que ambas possuem perspectivas que lhe são próprias. Além disso, o estilo de escrita dos autores da Bíblia parece sugerir que há interconexões entre pontos das Escrituras que não são tão explícitas, exigindo uma atenção maior para serem detectadas. Sobre isto considere o apêndice A6. Sendo assim, todas aquelas explicações gramaticais e frases de efeito que o autor do MB escreveu em sua crítica ao meu artigo de forma alguma eliminam a possibilidade do meu referido entendimento estar correto. Mas para o autor do MB seria preciso que a própria Bíblia explicasse essas coisas minuciosamente para ele acreditar que é verdade. Note um exemplo da visão limitada dele. Leia primeiro o texto abaixo: “Mas, que os mortos são levantados, até mesmo Moisés expôs, no relato sobre o espinheiro, quando ele chama Jeová ‘o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’. Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem”. – Lucas 20:37, 38. 368 Para os que estão vivos em nosso mundo, o que aconteceu com Abraão, Isaque e Jacó? Eles morreram, não foi isso? Ou seja, do ponto de vista dos que estão na Terra eles estão mortos. Entretanto, para Deus é assim? Aquele que sabe até mesmo o que transcorre dentro do Seol? (Jó 26:6) Do ponto de vista Dele os três ainda vivem. Mas veja qual foi a reação do autor do MB a esse meu raciocínio: “Disse Jesus alguma coisa sobre ‘ponto de vista dos homens’ neste texto? Não. Ele só fez referência ao ponto de vista de Deus. Por isso, a frase ‘os personagens mencionados (Abraão, Isaque e Jacó) estão vivos para Deus, mas para os homens eles estão mortos’ é incorreta. O ‘ponto de vista’ dos homens não entrou nessa consideração. Estes patriarcas estão mortos. Esse texto não dá qualquer margem para a sugestão de que alguma parte deles continua viva”. E precisava Jesus ter dito? Por ser algo tão simples de deduzir, não vejo outra razão para essa visão míope do autor que não seja a de proteger a todo custo um conceito que ele pensava estar bem protegido. Mas é claro, quando o assunto é Mateus 10:28, aí a história é outra. Ele pode se permitir ver no texto o que ele não diz: ‘Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a pessoa.’ Disse Jesus alguma coisa de que a alma é a pessoa (que será recriada para a vida eterna)?* Existe alguma tradução da Bíblia no mundo que substitua “alma” por “pessoa” nesse versículo? * Conforme visto no capítulo 8 e no apêndice A4, a única maneira da substituição de “alma” por “pessoa” fazer algum sentido é subentendendo-se o que está aqui entre parêntesis. Sobre os mortos não terem nada mais a fazer debaixo do sol Tudo o que o autor do MB comenta do meu texto parece ser para ele motivo de irritação. Por exemplo, eu mencionei que a Bíblia diz que quem morre não terá mais nada a fazer debaixo do sol. Daí, mencionei que curiosamente os dois casos registrados na Bíblia de mortos não ressuscitados que falaram com humanos sucederam sob o véu da noite. E disse que podia ser coincidência, mas não deixava de ser interessante. Isto foi suficiente para despertar a mesma maneira um tanto agressiva de criticar o que eu comentei. Eu sei perfeitamente que o mais provável é que a expressão “debaixo do sol” significa apenas “na terra”, até menciono isso em outro lugar. No entanto, ele pegou esse comentário despretensioso que fiz apenas com base numa leitura literal do versículo e o transformou num pomo de discórdia, se esquecendo que pode ser apenas uma “curiosidade”. Ele também demonstrou que não sabe onde a Bíblia indica que a transfiguração aconteceu à noite. No apêndice A2 mostrei onde encontrar essa informação. A transfiguração e o pecado de Saul ao consultar uma necromante Ele ainda aproveitou o momento acima descrito para mostrar que os mortos em hipótese alguma podem falar com humanos, pois a Bíblia diz que quem morreu “não têm parte para sempre em coisa alguma que se faz debaixo do sol”, isto é, na Terra. 369 (Eclesiastes 9:5, 6, Almeida). Aceitar essa visão engessada significaria então que os escritores bíblicos mentiram quando informaram que Samuel apareceu para a necromante, e que Moisés e Elias conversaram com Jesus. O autor tem uma visão tão limitada sobre esse ponto que ele diz que Jesus jamais falaria com dois mortos porque a lei de Moisés proibia. Eu, da minha parte, prefiro acreditar no que a Bíblia diz, de que ali eram mesmo Moisés e Elias. Com respeito ao suposto conflito com a lei mosaica (que não vale mais para os cristãos, a não ser nos pontos revalidados), eu opto por achar que Jesus é Senhor não somente do sábado, mas da Lei inteira. Além disso, ele não buscou uma necromante para falar com Moisés e Elias. – Marcos 2:28. O autor do MB também me criticou por eu ter deixado de fora um dos motivos porque Saul morreu, que foi o de ter ido consultar a necromante em En-dor. Como se a omissão desse detalhe afetasse alguma coisa a informação dada pela Bíblia de que ali se tratava realmente de Samuel, cuja alma a médium “fez” subir. (1 Samuel 28:8) Certamente Saul pecou ao procurar a necromante e pagou por isso. Isto não foi discutido, por esta razão não mencionei. No entanto, em outro texto eu já havia comentado sobre esse pecado de Saul. Veja no link abaixo: http://adelmomedeiros.com/aniquilacionismo.htm O que está havendo aqui acho que se assemelha ao mesmo enfoque que o autor do MB deu à transfiguração. Ele se prende à letra da Lei e se esquece que o Legislador dela é Senhor de tudo, da vida e da morte: “Jeová é Quem faz morrer e Quem preserva a vida, quem faz descer ao Seol, e Ele faz subir”. – 1 Samuel 2:6. Se Ele quiser que alguma alma volte do Hades para falar com alguém na Terra (mesmo não sendo ainda a ressurreição) alguém poderá dizer: “O que o Senhor está fazendo?”. Isto faz lembrar aquela pergunta que, certa vez, Pilatos fez a Jesus: “Não sabes que eu tenho o poder de te soltar como tenho poder de te crucificar?”. Jesus respondeu: “Não terias poder algum sobre mim se não te houvesse sido dado do alto”. – João 19:11. Mesmo não tendo anulado o pecado de Saul, por alguma razão, naquele momento foi “dado” àquela necromante o poder de convocar Samuel. Lembre-se que é a própria Bíblia que afirma que se tratava de Samuel, por mais que isso incomode as mentes cristãs mais sensíveis. Portanto, é irrelevante formular teorias baseadas em “inconsistências” do relato, a fim de “provar” que ali não era Samuel, conforme foi visto com detalhes no capítulo 22. 370 A alma que pecar é a que morrerá Em princípio, o comentário do autor sobre a aplicação que eu fiz de Ezequiel 18:4 está correto. Ampliei sua abrangência para além do que há no contexto original. No entanto, meu intuito não foi jogar “cortina de fumaça” alguma na vista do leitor. Até porque qualquer pessoa poderia verificar os versículos circundantes. Visto que tal aplicação incomodou o autor do MB, pode ser que outros leitores também não vejam isso com bons olhos. Por isso, talvez eu faça depois uma modificação no texto, para explicá-lo melhor. Pode ser até que eu decida por remover completamente essa parte. O texto de Ezequiel 18:4 refere-se aos que continuariam vivos por seguirem os preceitos da lei mosaica, em voga naquele tempo. Certos crimes eram punidos com a morte, no espírito da Lei de Talião, do olho por olho, dente por dente, que era praticada nas antigas nações do Oriente Médio, não somente em Israel. Porém, dentro de um subtópico chamado “Outra possibilidade de entendimento”, eu disse o seguinte: É fato que mesmo os que agiram com retidão e foram justos, de acordo com o conselho escrito em Ezequiel 18:4-9, por fim morreram. Mas suas almas continuaram a existir no Seol e um dia receberiam sua plena recompensa (Salmos 16:10; Jó 14:15; 2 João 8). As almas dos injustos, porém, poderiam ter o seguinte destino aludido por Jesus: “Temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28b. Sendo assim, a alma espiritual de cada pessoa realmente vive neste mundo, enquanto estiver dentro do corpo biológico. É uma “alma vivente” na Terra. Mas se o corpo físico morre, essa alma se ausenta do corpo e vai para o Seol, e do ponto de vista dos que ficam é uma “alma falecida”, ou seja, alguém que partiu. (Levítico 19:28; Gênesis 35:18). Mas a alma continua viva no Seol, e só Deus tem o poder de matá-la ou destruí-la. Portanto, a alma que pecar (enquanto viver na Terra) é a que morrerá (quando chegar o julgamento de Deus). Lembre-se que o acima foi posto apenas como uma possibilidade, um sentido ampliado, que pode estar certo ou não. Interessante que o próprio autor do MB, ao propor que a “alma” de Mateus 10:28 deveria ser entendida por “pessoa”, me ajudou a explicar que a visão ampliada de Ezequiel 18:4 não é tão absurda assim, partindo-se da premissa que depois da morte do corpo a alma continua viva, seja no Hades ou no céu. É assim que pensa a maioria dos cristãos. Na nota 35 de sua crítica o autor do MB disse: “Sugere-se ao leitor a consideração do trecho completo, que se encontra em Ezequiel 18:1-20. A simples leitura permite confirmar facilmente que o profeta estava falando da pena de morte que era aplicada imparcial e imediatamente às pessoas (almas) que cometiam um ou mais dos delitos (pecados) prescritos na Lei Mosaica que são mencionados no trecho”. 371 Ou seja, em Mateus 10:28, os homens não podem matar a pessoa (alma), mas em Ezequiel 18:10 eles podem. . . Onde está o entendimento uniforme em toda a Bíblia defendido pelo autor do MB? É claro que ele poderia racionalizar que Jesus estava se referindo aos cristãos fiéis, ao passo que Ezequiel falou dos rebeldes israelitas. Não sei se é isso o que meu crítico “bereano” pensa. Mas se for, tal raciocínio não encontra respaldo nas Escrituras, conforme se nota nas palavras abaixo de Jesus: “Não vos maravilheis disso, porque vem a hora em que todos os que estão nos túmulos memoriais ouvirão a sua voz e sairão, os que fizeram boas coisas, para uma ressurreição de vida, os que praticaram coisas ruins, para uma ressurreição de julgamento”. – João 5:28, 29. Veja que a vida futura após a ressurreição não contempla apenas os bons, mas também os que fizeram coisas ruins. (Estes últimos talvez venham a ser ressuscitados para terem uma oportunidade de se corrigirem). Esse é um bom texto para aplicar o lema “eu me baseio somente na Bíblia”. Chegar a outra conclusão que não seja o que está aí transcrito necessitaria de muitos circunlóquios. Seguindo a minha hipótese, um raciocínio que o autor do MB poderia propor, caso não queira aceitar o que está em João 5:28, 29, é que aqueles que foram apedrejados em Israel foram definitivamente julgados por Deus e não terão mais a vida eterna no futuro. Isto até poderia ser verdade em caso de crimes hediondos. Entretanto, não seria razoável supor que todos os israelitas que fizeram coisas ruins e foram apedrejados até à morte não merecerão uma oportunidade na ressurreição. Por exemplo, a Lei dizia que se o dono de um touro fosse advertido que seu animal estava pondo em risco a vida de alguém, e não tomasse nenhuma providência, caso o boi matasse uma pessoa o animal deveria ser apedrejado e o dono dele também, se não tivesse como pagar uma “indenização” prescrita na Lei. (Êxodo 21:28-32) Então, temos aqui dois cenários possíveis: (1) um criador de gado sair ileso pelo crime descrito acima porque pôde “saldar” a dívida, (2) e outro morrendo a pedradas porque não tinha como pagar o valor estipulado. Será que na segunda situação Deus não daria uma oportunidade para a pessoa na ressurreição dos mortos? Seria justo ela ser condenada para sempre apenas porque não teve dinheiro para salvar a própria vida quando estava na Terra? Portanto, por mais que a pena capital fosse dura para os israelitas, certos crimes cometidos e punidos não parecem ser motivo para a condenação eterna de seus praticantes. Para uma discussão adicional sobre até que ponto um pesquisador da Bíblia pode chegar nas interpretações que faz de sua leitura, queira ver o apêndice seguinte (“Sobre o esforço para entender as Escrituras Sagradas”). Lá eu discorro sobre se podemos, em alguns casos, recorrer a trechos que se referem claramente aos israelitas e aplicá-los a pessoas do mundo inteiro, e retorno também à questão da aplicação que fiz de Ezequiel 18:4 no meu artigo “Textos Amiúde Mal Aplicados pelos Aniquilacionistas”, que agora é o apêndice A8 deste livro. 372 A atitude do autor do MB e minha verdadeira motivação Procure apresentar-se a Deus aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar, que maneja corretamente a palavra da verdade. 2 Timóteo 2:15, NVI. Conforme disse no capítulo 12, eu não acho que aceitar ou rejeitar a crença na imortalidade da alma seja um ponto crucial na vida de um cristão, pois se trata apenas de conhecimento e não de comportamento. No entanto, há pessoas que fazem desse debate uma verdadeira “cruzada” para atingir as pessoas do polo oposto da discussão. Isso tem sido combustível para todo o tipo de discórdia e julgamentos adversos. O ideal seria que cada lado apenas apresentasse seus argumentos e os leitores o avaliassem, somente. No entanto, pessoas são excomungadas, relações de amizade são cortadas, motivações são questionadas e por aí vai. O texto acima transcrito, de 2 Timóteo, foi posto no cabeçalho da conclusão da crítica inicialmente escrita pelo autor do MB contra meu texto. Bastava fazer um passeio por tudo o que ele escreveu em seguida para entender o motivo da escolha desse texto como preâmbulo de sua conclusão. Ele afirmou que meu artigo possuiria diversos recursos sórdidos* no intuito de enganar os leitores e transferir para dentro da Bíblia as minhas opiniões pessoais. Certamente isto seria motivo de vergonha. Se o autor do MB fez uso do referido texto deve ser porque ele acha que não tem nada do que se envergonhar, referente ao que escreveu. Talvez ele mude um pouco de opinião caso venha a ler este meu livro. * Na conclusão ele enumerou quais seriam essas “táticas”. Ao contrário do que talvez pense o autor do MB, durante a escrita do meu artigo, em momento algum eu fiquei maquiavelicamente esfregando as mãos e pensando quais técnicas de engano usaria em cada assunto a fim de ludibriar os leitores. Essa avaliação sombria das minhas motivações é fruto apenas da imaginação dele. Não correspondem nenhum pouco à realidade! O que ele não entendeu é que se uma premissa é considerada válida, no caso a alma que continua a existir literalmente no Seol depois da morte*, é natural que todos os textos relacionados ao assunto sejam vistos com olhos diferentes do enfoque dado pelos aniquilacionistas. Para o autor do MB, porém, tal visão seriam “releituras” inaceitáveis. * E, conforme visto, não se trata apenas de uma simples proposta de entendimento ou teoria. Existe uma base muito sólida dentro da Bíblia para se pensar assim. O que foi apresentado neste livro demonstra isso. 373 Se trunquei citações, acrescentei colchetes (com meras sugestões)* e resumi argumentos foi apenas para deixar o texto o menor possível e clarificar de maneira mais simples o entendimento apresentado, que em grande parte é o mesmo da maioria dos cristãos que amam a Palavra de Deus. Aliás, esta é outra consequência do julgamento que o autor faz. Ele apontou o dedo não somente para mim, mas também para todos os cristãos que acreditam na imortalidade da alma (ampla ou restrita) e procuram defender esse conceito dentro da Bíblia. * É descabida a crítica do autor do MB sobre os colchetes que usei em Eclesiastes 9:10, pois na citação precedente eu tinha dito que eles eram apenas sugestões de entendimento, e não referências internas do versículo. O que deve mesmo tê-lo incomodado é que as dicas que eu dei realmente ajudam a enxergar o versículo com novos olhos. Das coisas que o autor do MB falou uma chamou em especial a minha atenção: a ofensa aos critérios de exegese. De acordo com ele, eu teria incorrido em tal erro no meu artigo. Segundo o dicionário Caldas Aulete, a exegese “aplica-se particularmente à interpretação gramatical e histórica da Bíblia”. Portanto, se o autor do MB realmente valoriza isso, deveria começar a estudar o que os exegetas realmente vêm ensinando nos últimos dois mil anos sobre alma e Seol/Hades. O que está neste livro é uma amostra do que eles explicam, embora a minha crença não dependa deles, pois eu constatei por conta própria o que a Bíblia informa e confrontei com as fontes históricas disponíveis. Tentei apresentar isso da melhor maneira possível nas seções precedentes deste trabalho. Por fim, há dois textos que são bem apropriados para o autor do MB: “Parai de julgar, para que não sejais julgados; pois, com o julgamento com que julgais, vós sereis julgados; e com a medida com que medis, medirão a vós”. – Mateus 7:1, 2. “Chamar o justo de ímpio e o ímpio de justo são atitudes igualmente detestáveis para Deus”. – Provérbios 17:15. Mas ele poderia protestar: “Onde é que chamei você de ímpio?”. De fato, ele não chamou. Entretanto, devido à avaliação errônea que fez da minha pessoa o princípio se aplica. 374 A6. Sobre o esforço para entender as Escrituras Sagradas É certo que existem versículos na Bíblia que não estão muito claros, o que resulta em várias discussões teológicas. Mas isto não desabona a Palavra de Deus, nem tampouco faz os defensores de cada lado dos debates mais ou menos dignos. Pautar a avaliação que se faz de outros cristãos com base em nossas crenças supostamente superiores é um erro, e isto deveria ser evitado. Há também passagens bíblicas cujos significados não são discutidos, pois estão muito evidentes. No entanto, ocasionalmente podem se vincular a outras partes que tratam de outro assunto. Considere um exemplo: “Quando o Todo-poderoso dispersou nela os reis, começou a nevar em Zalmom. A região montanhosa de Basã é um monte de Deus. A região montanhosa de Basã é um monte de picos. Por que estais vigiando com inveja, ó montes de picos, o monte que Deus desejou para si, para morar? Sim, o próprio Jeová residirá ali para sempre. Os carros de guerra de Deus são dezenas de milhares, milhares repetidos vez após vez. O próprio Jeová chegou de Sinai ao lugar santo. Ascendeste ao alto; levaste contigo cativos. Tomaste dádivas em forma de homens, sim, mesmo os obstinados, para residir entre eles, ó Jah, Deus. Bendito seja Jeová, que diariamente carrega o fardo para nós, o verdadeiro Deus de nossa salvação. O verdadeiro Deus é para nós um Deus de atos salvadores; e a Jeová, o Soberano Senhor, pertencem as saídas da morte. Deveras, o próprio Deus rachará a cabeça dos seus inimigos, o cabeludo alto da cabeça de todo aquele que anda na sua culpa”. – Salmo 68:14-21. O que você acha do texto acima? Ele parece ter alguma relação com a comunidade cristã do primeiro século? Formada por judeus, gregos, romanos e outros? Leia o texto novamente antes de responder. ………………………………………………………… ………………………………………………………… Se a sua resposta foi não, é sinal de que você se ateve exatamente ao que foi dito no texto, uma história relacionada aos antigos israelitas. Mas caso tenha respondido sim, significa que você deve conhecer o livro de Efésios, no Novo Testamento, onde o apóstolo Paulo selecionou o trecho destacado em negrito e o aplicou à obra dos primeiros cristãos, que era conduzida por Jesus Cristo. Paulo disse: “Por isso se diz: quando [Jesus] subiu ao alto, levou prisioneiros e distribuiu dons aos homens. Mas o que significa ‘subiu’, senão que também tinha descido aos lugares inferiores* da terra?”. – Efésios 4:8, 9, Mensagem de Deus. Jesus Cristo é aquele que desceu ao Hades para resgatar cativos, depois ascendeu aos céus e deu dons a homens cristãos, conforme um entendimento bastante aceito por vários comentaristas. * Como comentei no capítulo 7, creio que a Tradução do Novo Mundo (TNM) não transmite a ideia correta desse versículo, pois traduz de uma maneira como se os lugares inferiores fossem a própria Terra, e não o que está nas profundezas dela, contradizendo assim uma referência cruzada da 375 própria TNM que remete o leitor ao versículo onde Jesus disse que passaria três dias no “coração da terra”. (Mateus 12:40) O lugar para onde Jesus desceu não poderia ser a própria Terra, pois ele já estava nela. Então o texto de Efésios deve ser uma alusão para onde Jesus foi depois da morte. Quantos leitores da Bíblia perceberiam nesse texto de Salmo alguma conexão com a vida e obra de Jesus na Terra, e seu retorno para o céu mencionado em Efésios? Certamente pouquíssimos, se é que haveria algum. O texto aparentemente não tem nenhuma relação com aquilo que Paulo mencionou. Mas se prestarmos atenção existem algumas “dicas”, a exemplo da que está perto do final do texto, onde é dito que a Deus “pertencem as saídas da morte”. Isto fez esse salmo ganhar uma conotação profética com a ressurreição de Jesus Cristo e seu triunfo sobre o Hades. Esta é outra evidência de que a descida mencionada em Efésios não se refere ao nascimento de Cristo, mas sim à sua morte, que fez sua alma descer para o Hades para depois sair de lá. É claro que Paulo foi inspirado por Deus para fazer essas interligações, e talvez não haja ninguém no mundo que possa contar com essa mesma ajuda. Entretanto, podemos tentar fazer o melhor que for possível, com respeito a outros assuntos. Agora veja outro exemplo. Por gentileza, abra a sua Bíblia e leia o capítulo 2 de Habacuque. Se preferir, leia-o no endereço indicado abaixo: http://biblia.com.br/novaversaointernacional/habacuque/hc-capitulo-2/ ………………………………………………………… ………………………………………………………… Já leu? Pois bem, esse texto se refere a eventos relacionados à nação de Judá, quando ela estava prestes a ser invadida pelos caldeus. Esse acontecimento culminaria na destruição da cidade de Jerusalém e uma deportação em massa de seus habitantes para a cidade de Babilônia, onde lá permaneceriam por cerca de 50 anos. Deus usou o rei de Babilônia como instrumento para punir Judá, devido a pecados praticados de maneira recorrente naquela nação. O capítulo 2 de Habacuque possui um paralelo com Jeremias 22:13-19. Em tal cenário de calamidade iminente, o que seria dos justos que estivessem na nação? Os versículos 3 e 4 do capítulo 2 de Habacuque dizem: “Porque a visão é uma testemunha para o tempo indicado, um testemunho para o fim; não desapontará. Se atrasar, espera por ela, pois certamente virá, não tardará. Vê, o homem precipitado não tem integridade; mas o homem justo, por causa de sua fé*, viverá”. – New American Bible. * O texto hebraico diz “fidelidade” ao invés de “fé”. Entretanto, na Septuaginta grega está assim: “Se ele retroceder minha alma não terá prazer nele: mas o justo viverá pela fé”. Jerônimo fez o mesmo na Vulgata Latina, ao usar “fé” no lugar de “fidelidade”. 376 Para um leitor “de primeira viagem” da Bíblia o cenário descrito por Habacuque nada tem a ver com os futuros cristãos, tanto no contexto do capítulo quanto no histórico. No entanto, o apóstolo Paulo novamente enxergou algo a mais nos trechos destacados em negrito na transcrição do texto. Citando a Septuaginta*, ele disse: “Pois tendes necessidade de perseverança, a fim de que, depois de terdes feito a vontade de Deus, recebais o cumprimento da promessa. Pois, ainda ‘por um pouquinho’, e ‘aquele que vem chegará e não demorará’. ‘Mas o meu justo viverá em razão da fé’, e, ‘se ele retroceder, minha alma não terá prazer nele’. Ora, nós não somos dos que retrocedem para a destruição, mas dos que têm fé para preservar viva a alma”. – Hebreus 10:36-39. * A Septuaginta foi a primeira tradução do Antigo Testamento, feita para o grego, iniciada aproximadamente em 280 a.C. Nela constavam inclusive os livros hoje considerados apócrifos pelos protestantes, mas que aparecem nas Bíblias católicas. Os que receberam essa carta de Paulo eram cristãos de origem judaica (mas ela foi escrita em grego). Portanto, deviam conhecer bem o livro de Habacuque e sua história. Por que Paulo pegou um texto da época dos babilônios relacionado à primeira destruição de Jerusalém, e o aplicou à realidade dos cristãos da Palestina? O primeiro pensamento que pode vir à mente é que Jerusalém estava prestes a ser novamente destruída, desta feita pelos romanos. Essa carta de Paulo é datada em cerca de 10 anos antes dessa tragédia. Então, os cristãos judeus poderiam ser igualmente beneficiados pela mensagem de Habacuque, pois estavam vivendo uma situação, de certa maneira, semelhante. Mas será que Paulo tinha em mente somente à realidade judaica? Se voltarmos ao texto original de Habacuque, veremos algo que sugere que aquilo que lá está tem uma aplicação muito mais ampla. A impiedade que se via em Judá, e que logo seria punida às mãos dos babilônios, trouxe uma consequência para os seus habitantes: “Amontoou junto a si todas as nações, atraiu a si todos os povos”. – Habacuque 2:5, parte final. Sendo assim, o que acontecia naquela nação ia muito além de suas fronteiras geográficas. O mundo inteiro se envolveu numa realidade que aparentemente era apenas dos judeus. Ao voltarmos à carta de Paulo, na continuação de sua escrita, veremos que ele admoestou os irmãos hebreus a cultivarem algo que teria uma abrangência muito maior do que apenas escapar da destruição que estava por vir à Jerusalém, pois, para se salvarem dela, bastaria que fugissem para os montes, conforme Jesus falara alguns anos antes (Mateus 24:15). Mas note o que Paulo disse: “Nós não somos dos que retrocedem para a destruição, mas dos que têm fé para preservar viva a alma”. – Hebreus 10:39. Preservar viva a alma pela fé... Naturalmente isto é algo que interessa a todos, e não somente aos antigos cristãos hebreus. Fé é justamente o que é necessário para se 377 confiar naquelas palavras de Jesus: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:28. Perceba também que Paulo disse que os irmãos não deveriam retroceder para a destruição. Essa linguagem indica que eles já tinham fugido dela. Então, a destruição que o apóstolo tinha em mente refere-se a outra realidade. De fato, no decorrer de seu argumento, Paulo evidencia claramente que aquilo que estava falando não estava circunscrito aos eventos relacionados à cidade que seria destruída pelos romanos. Ele diz: “A fé é a expectativa certa de coisas esperadas, a demonstração evidente de realidades, embora não observadas. Porque, por meio desta, os antigos receberam testemunho. Pela fé percebemos que os sistemas de coisas foram postos em ordem pela palavra de Deus, de modo que aquilo que se observa veio a existir das coisas que não aparecem”. – Hebreus 11:1-3. Em seguida, ele passa a citar nominalmente alguns dos que demonstraram fé nos tempos mais antigos, a exemplo de Abraão, Isaque e Jacó. Depois diz em referência a eles: “Mas se eles ficassem pensando na terra de onde vieram, teriam tido oportunidade para retornar. Mas agora eles desejam uma pátria melhor, a celestial. Por isso, Deus não se envergonha de ser chamado Deus deles, e ele preparou uma cidade para eles”. – Hebreus 11:15, 16, New American Bible. Ao lermos o capítulo inteiro, observaremos que Paulo vinha se referindo a acontecimentos de outros tempos, usando verbos no passado. Porém, no destaque em negrito, ele muda abruptamente o verbo para o presente a fim de concordar com a palavra “agora”. Isto indica que Abraão, Isaque e Jacó estavam vivos no momento da escrita de Paulo. Alguns tradutores omitem a palavra “agora” e mudam o verbo para o pretérito (“desejavam”). Talvez façam isto porque estranham a mudança repentina no discurso, e acham que assim estariam “corrigindo” este ponto do relato de Paulo, que vinha se referindo a eventos do passado e não do presente. No entanto, no grego original realmente está conforme a tradução acima: “Mas agora uma [pátria] melhor manifestam estar procurando”. – Concordância Fiel do Novo Testamento, GregoPortuguês, vol. 1, 1994, p. 632; The Kingdom Interlinear of the Greek Scriptures, 1985, Watch Tower Society. Por que se diz na Bíblia que Jeová é o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque e o Deus de Jacó? Jesus Cristo informou o motivo. Porque “Ele é Deus, não de mortos, mas de 378 viventes, pois, para ele, todos estes vivem”. (Lucas 20:37b, 38). Portanto, Paulo podia apropriadamente se referir a Abraão, Isaque e Jacó como estando vivos. E qual é a cidade que Deus preparou para eles? É a mesma mencionada mais adiante, onde os cristãos também estariam: “Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontável hostes de anjos, e à universal assembleia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados”. – Hebreus 12:22-24, Almeida. Sendo assim, o que deveria interessar mesmo aos cristãos não era a Jerusalém que estava prestes a ser destruída, mas a Jerusalém dos céus. O que está em harmonia com o que Jesus falou certa vez: “Mas, eu vos digo que muitos virão das regiões orientais e das regiões ocidentais e se recostarão à mesa junto com Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus”. – Mateus 8:11. Perceba que essas informações fazem parte de um encadeamento de ideias presente nos capítulos 10, 11 e 12 de Hebreus. Na verdade, essa carta de Paulo está repleta de referências à história antiga dos israelitas que foram ampliadas por ele para além do contexto original. Segundo a explicação do apóstolo, práticas e objetos que existiam em Israel representavam a realidade que foi apresentada aos cristãos. A Lei mosaica era “uma sombra das boas coisas vindouras, mas não a própria substância das coisas”. Tal “substância” certamente afetaria o mundo inteiro, e não apenas os antigos judeus. – Hebreus 10:1. Agora uma pergunta: Será que Paulo esgotou todas as possibilidades de interconexões entre o antigo contexto judaico e a realidade referente à vida espiritual? Eu penso que não. Embora não devamos criar dentro dessa ideia uma escatologia baseada em muitas especulações, conforme as Testemunhas de Jeová costumam fazer, não deixa de ser interessante pensar sobre isso. Uma possibilidade de entendimento. . . Observe agora uma tentativa de fazer uma interconexão entre os dois cenários supracitados. Conforme visto, ao citar Habacuque, Paulo disse que um dos benefícios da fé é preservar viva a alma (Hebreus 10:39). Então, logicamente, os que não têm fé correrão o risco de não alcançarem esse objetivo. Valendo-se de um princípio mencionado por Paulo em outro momento, de que “tudo o que não vem da fé é pecado”, pode-se concluir que quem é praticante do pecado não tem fé (Romanos 14:23). Logo, tal pecador não terá ‘a alma preservada’, devido à ausência de fé. E visto que Jesus nos ensinou que somente Deus tem o poder de destruir uma alma, então, a alma que pecar, enquanto viver na Terra, é a que morrerá, quando chegar o julgamento de Deus. Coincidentemente, a Bíblia informa o seguinte sobre os que pecassem contra a Lei mosaica, no antigo Israel: 379 “Eis que todas as almas — a mim me pertencem. Como a alma do pai, assim também a alma do filho — a mim me pertencem. A alma que pecar — ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4. Quem garante que essa advertência também não é um modelo profético sobre o destino final das almas? Conforme demonstrado acima, percorrendo-se o caminho inverso, de uma realidade abrangente até um contexto específico dos judeus, vemos que a mesma fraseologia pode se aplicar em ambos os casos, partindo-se da premissa que só Deus pode destruir a alma*, selando sua morte definitiva. * A alma a que me refiro aqui é aquela que vai para o Seol / Hades depois da morte. O que está no ínicio do versículo de Ezequiel pode ser uma “dica” para chegarmos a tal conclusão. As almas, de fato, só pertencem a Deus e apenas Ele pode decidir o que fazer com elas. Portanto, ao passo que no contexto original as palavras de Ezequiel se referiam às almas humanas que pecassem, num entendimento ampliado poderiam se referir às almas que vão para o Seol aguardar o julgamento de Deus. Qual é a natureza da ressurreição? Para as Testemunhas de Jeová, quando uma pessoa morre ela desaparece completamente, não sobra nenhuma parte dela. A única esperança que resta é que Deus tem gravado em Sua memória todas as lembranças que a pessoa tinha antes de morrer. Então, se for da vontade de Deus, ele pode criar um novo corpo, similar ao original, e implantar em seu cérebro vazio todas as lembranças da pessoa que outrora viveu. Ao fazer o novo corpo acordar a ressurreição estaria assim concluída. Devido ao conceito acima, talvez seja por isso que as Testemunhas de Jeová não citam muito a literatura Patrística para tentar demonstrar que os cristãos do século II não acreditavam na imortalidade da alma. Isto porque há obras cristãs do século II que demonstram claramente que seus autores acreditavam que a alma sobrevive à morte do corpo. Por outro lado, há certas declarações que parecem dizer o contrário: ou seja, que a alma não é imortal. Alguns apologistas cristãos tentaram mostrar isso para os gregos. No entanto, o que era discutido naquele tempo é se a alma pode ser chamada de imortal em sentido absoluto. Por exemplo, Justino disse o seguinte em seu livro “Diálogo com Trifão”: “Para as coisas que existem depois de Deus, ou em qualquer momento existem, estas têm a natureza de decadência, e podem ser apagadas e deixarem de existir, pois só Deus é ingênito e imortal”. – Diálogo com Trifão, cap. 5. Sobre isso, comenta determinado autor: “A alma, segundo Justino, recebeu a imortalidade como um dom criado de Deus. Só ele é incriado e incorruptível, por isso é Deus”. – Helenização e recriação de sentidos – A Filosofia na época da expansão do Cristianismo – séculos II, III e IV, de Miguel Spinelli, EDIPUCRS, 2002, p. 50. 380 Portanto, de acordo com esse enfoque, nem os anjos poderiam ser chamados de imortais, embora nunca morram, pois foram criados e passaram a existir depois de Deus. A própria Bíblia menciona o conceito de imortalidade absoluta. Depois de Deus, o único que a possui é Jesus Cristo: “Esta manifestação, o feliz e único Potentado mostrará nos seus próprios tempos designados, ele, o Rei dos que reinam e Senhor dos que dominam, o único que tem imortalidade, que mora em luz inacessível, a quem nenhum dos homens tem visto nem pode ver”. – 1 Timóteo 6:15, 16.* “Pois, assim como o Pai tem vida em si mesmo, assim também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo”. – João 5:26. * Há comentaristas que acham que esse texto se refere ao Pai e não ao Filho. Há possibilidade de ser assim. No entanto, alguns pontos do contexto imediato apontam mais para Jesus, que é o rei dos reis e senhor dos senhores. Era dele que Paulo falava antes de dizer o acima. Além disso, também mencionou que Cristo fez uma excelente declaração pública diante de Pôncio Pilatos. Em tal encontro dos dois, lemos Pilatos perguntando: “És tu o rei dos judeus?”. Ao que Jesus respondeu: “Tu mesmo o dizes”. Então, o texto parece mais um contraste do rei Jesus, o único que tem imortalidade, com os reis humanos que são todos mortais. Esta é a interpretação das Testemunhas de Jeová, com a qual concordo mais. De qualquer modo, independente de qual seja o entendimento correto não atrapalha o que está aqui mencionado. – Mateus 27:11; Apocalipse 17:14. Só Deus e Jesus possuem imortalidade absoluta. Sendo assim, nos mencionados debates, os cristãos do século II não estavam dizendo que não existe uma alma que vai para o Hades depois da morte do corpo. O que eles disseram realmente é que ela não é imortal em sentido absoluto. Por isso o cristão Taciano escreveu: “A alma não é em si mesma imortal, ó gregos, mas mortal. No entanto, é possível para ela não morrer. Se, de fato, não conhece a verdade, ela morre, e é dissolvida com o corpo, mas finalmente se levantará novamente no fim do mundo com o corpo, recebendo a morte por castigo na imortalidade”. – Diálogo com os Gregos, cap. 13, de Taciano. Portanto, ao contrário de Deus e Jesus, “a alma em si mesma não é imortal”. No entanto, para os que conhecem a verdade ela poderá subsistir por toda eternidade e nunca morrer. – Mateus 10:28. O que os cristãos do século II acreditavam mesmo é que, depois da morte do corpo, a alma vai para o Seol / Hades e na ressurreição ela é reunida novamente ao corpo. É por esta razão que o cristão Clemente de Alexandria, do mesmíssimo século II, achava que os apóstolos também pregaram no Hades, depois que morreram: “Os apóstolos, seguindo o Senhor, evangelizaram também aqueles que se encontravam no Hades; evidentemente era necessário que os melhores discípulos se tornassem imitadores do Mestre também lá”. – Stromateis 6:6. Então, para os cristãos antigos, a ressurreição nada mais é do que retirar uma alma que está no Hades. Isto pode ser inferido do uso que fizeram da palavra grega 381 anastasis, para se referir a quem será ressuscitado. A conexão entre os dois conceitos (ressurreição / seol) foi explicada na enciclopédia bíblica da Torre de Vigia: “A palavra grega a‧ná‧sta‧sis significa literalmente ‘levantar; erguer’. Esta palavra é usada com freqüência nas Escrituras Gregas Cristãs com referência à ressurreição dos mortos…. [O] emprego nas Escrituras [da palavra Seol], junto com o uso de seu equivalente grego, haí‧des, nas Escrituras Gregas Cristãs, mostra que se refere, não a um túmulo individual, mas à sepultura comum da humanidade, o domínio da sepultura.… Tornar impotente o Seol significa soltar os presos nele, o que subentende o esvaziamento do domínio da sepultura”. – Estudo Perspicaz, vol. 3, p. 430, colchetes acrescentados. Sendo assim, “levantar” ou “erguer” uma pessoa do Seol significa soltá-la dessa prisão. O verbo anastasis foi usado justamente com esse sentido no versículo abaixo: “Quem é o homem entre vós que, tendo uma só ovelha, e, caindo esta numa cova, no sábado, não a agarra e levanta para fora?”. – Mateus 12:11. Entretanto, o Seol é muito mais profundo que uma “cova” que pode privar uma ovelha da liberdade, e só Deus tem o poder de retirar alguém de lá. Mas quando isto acontece, cumpre-se o texto de Oséias que foi citado pelo apóstolo Paulo, ao explicar a ressurreição: “Da mão do Seol os remirei; da morte os recuperarei. Onde estão os teus aguilhões, ó Morte? Onde está a tua qualidade destrutiva, ó Seol? A própria compaixão ficará escondida dos meus olhos”. – Oséias 13:14; 1 Coríntios 15:50-57. Mas em qual corpo haverá tal ressurreição? Cristãos milenaristas ensinam que a ressurreição será em um corpo físico no paraíso terrestre, durante o reinado milenar de Jesus Cristo. Atualmente, as Testemunhas de Jeová são as que mais se destacam nesse ensino. No entanto, há textos na Bíblia que parecem não apoiar esse ponto de vista. Por exemplo, no texto onde Jó exprime a esperança da ressurreição, note o que ele diz bem no início: “O homem também tem de deitar-se e não se levanta. Não acordarão até que não haja mais céu, nem serão despertados do seu sono. Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição.Tu chamarás e eu mesmo te responderei.Terás saudades do trabalho das tuas mãos”. – Jó 14:12-15. Pensamento semelhante ele expressou alguns capítulos antes: “Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão”. – Jó 10:20-22, NVI. 382 Como pode ser isso? Se havia uma esperança de ressurreição como é que Jó disse que iria para um lugar de onde não haveria retorno? A chave para essa questão talvez esteja no que ele mesmo falou posteriormente: “E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Eu o verei com os meus próprios olhos; eu mesmo, e não outro!”. – Jó 19:26, 27, NVI.* Sendo assim, Jó não necessitaria daquele corpo que possuía para que pudesse ver a Deus. Suas palavras também lembram o que Jesus disse certa vez: “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus”. – Mateus 5:8. * Só relembrando o que foi dito no capítulo 11, há uma divergência na tradução desse versículo. Há Bíblias que dizem que seria sem a sua carne que Jó veria a Deus e outras que seria com a carne. Neste caso, é possível deduzir duas coisas: 1) A ressurreição será celestial, e não terrestre. Afinal, é no céu onde Deus está e é lá que se pode observá-Lo. O organismo carnal não é apropriado para fitar a Deus diretamente, conforme ficou ilustrado quando Deus desceu ao monte Sinai e foi dito ao povo que ninguém tocasse no monte, pois quem fizesse isso morreria.* – Êxodo 19:1013. * Os teólogos chamam esse evento de Teofania, que é quando a Divindade visita pessoalmente seus adoradores terrenos. 2) Ao ser ressuscitado em um corpo celestial para ir ao céu, Jó nunca mais seria novamente um ser humano de carne e osso. Então, o que ele falou em seus momentos de lamúria estaria perfeitamente correto. Quem morre não volta mais. De fato, aquele que é enterrado jamais sairá da sepultura onde foi colocado.* O homem chamado Jó deixou de existir para sempre. * Os que foram ressuscitados por Jesus e outros servos de Deus morreram novamente. Então, as afirmações de Jó continuam válidas. E, conforme já comentado no capítulo 23, um entendimento bastante aceito é que na ressurreição o homem receberá um corpo carnal glorificado, capaz de usufruir também a vida espiritual. E isso faz todo o sentido. Certa vez, indagaram a Jesus o que aconteceria depois da ressurreição com um homem que teve mais de uma esposa ao longo da vida, porque a primeira morreu antes dele. De qual esposa o ressuscitado seria marido? Jesus respondeu: “Estais equivocados, porque não conheceis nem as Escrituras, nem o poder de Deus; pois na ressurreição, os homens não se casam, nem são as mulheres dadas em casamento, mas são como os anjos no céu”. – Mateus 22:29-32. Foi nesse mesmo texto que Jesus disse que Abraão, Isaque e Jacó estão vivos para Deus. Certamente aguardando o chamado Dele para sair do Seol*, da mesma maneira que Jó. (Conforme já vimos, há quem pense que isso já aconteceu). * As Testemunhas de Jeová acham que a ressurreição dos justos será neste planeta onde vivemos, e os corpos dos ressuscitados serão físicos e similares aos que possuíam antes de morrerem. Sendo assim, como seria possível que tais pessoas se assemelhassem aos anjos se o que elas voltariam a ser 383 é exatamente o que foram antes, isto é, seres humanos? Não seria uma incoerência estarem na condição humana, mas não lhes ser permitido usufruir daquilo que é próprio dela? Recentemente a liderança das Testemunhas de Jeová sinalizou uma mudança no entendimento que sempre sustentou da mencionada resposta de Jesus. Foi numa seção de resposta aos leitores da revista “A Sentinela”, onde foi dito que as palavras de Cristo talvez se refiram à ressurreição celestial, e não mais terrestre, como antes pensavam. Pelo teor da resposta, nota-se que contribuiu para essa mudança de interpretação a insatisfação dos adeptos da religião com a perspectiva de não mais poderem contrair matrimônio caso venham a morrer atualmente e sejam ressuscitados no aguardado paraíso na Terra. Mas a declaração que talvez chame mais atenção na “explicação” dada é o que os autores disseram sobre os patriarcas hebreus: “Jesus se referiu a Abraão, Isaque e Jacó — patriarcas fiéis que serão ressuscitados para a vida na Terra. — Luc. 20:37, 38”. É realmente incrível como tais palavras são apresentadas com tanta naturalidade quando Jesus, na verdade, disse que os patriarcas iriam para o céu: “Mas, eu vos digo que muitos virão das regiões orientais e das regiões ocidentais e se recostarão à mesa junto com Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus”. E depois o apóstolo Paulo confirmou que eles realmente tinham tal expectativa: “Se eles estivessem pensando que essa pátria era aquela de onde tinham saído, teriam a possibilidade de voltar para lá. Mas não; eles aspiravam por uma pátria melhor, isto é, a pátria celeste”. Sendo assim, a ressurreição aguardada pelos patriarcas era claramente celestial e não terrestre. – A Sentinela, 15/08/14, pp. 29, 30; Mateus 8:11 e Hebreus 11:16 (Edição Pastoral). E para fechar o entendimento, basta retornar ao texto onde Paulo explica a ressurreição. Nele confirmamos que ela é realmente celestial e não terrestre: “Assim também é a ressurreição dos mortos…. Semeia-se corpo físico, é levantado corpo espiritual…. E assim como temos levado a imagem daquele feito de pó, levaremos também a imagem do celestial…. a trombeta soará, e os mortos serão levantados* incorruptíveis, e nós seremos mudados. Pois isto que é corruptível tem de revestir-se de incorrupção e isto que é mortal tem de revestir-se de imortalidade. Mas, quando isto que é mortal se revestir de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita [em Isaías 25:8 e Oséias 13:14]: ‘A morte foi tragada para sempre.’ ‘Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?’. ”. – 1 Coríntios 15:42, 44, 49, 53-56. * No versículo 51 Paulo informa que nem todos os cristãos adormeceriam na morte, mas que seriam mudados “num piscar de olhos, durante a última trombeta”. Este comentário contribuiu para a doutrina do arrebatamento. Segundo ela, quando a trombeta soar para ressuscitar os mortos para o céu, os cristãos que estiverem na Terra serão arrebatados. Outra possibilidade de entendimento é que a ressurreição para o céu poderá ocorrer sem que ninguém perceba e à medida que os cristãos fossem morrendo as almas deles iriam imediatamente para lá sem passar pelo Hades. Acho esta segunda interpretação mais viável. – Veja também 1 Tessalonicenses 4:13-18. A imortalidade sempre foi a esperança das almas justas guardadas no Seol! Conforme indica um texto que só pode ser visto nas Bíblias católicas: “As almas dos justos estão na mão de Deus, e nenhum tormento os tocará. Aparentemente, estão mortos aos olhos dos insensatos, a sua saída deste mundo é considerada uma desgraça, a sua morte como uma destruição: mas eles estão em paz.... sua esperança está cheia de imortalidade.... Mas os ímpios terão o castigo, que merecem os seus pensamentos”. – Sabedoria 3:1-3, 10, Missionários Capuchinhos. 384 No versículo 56 da explicação de Paulo, ele diz que “o aguilhão que produz a morte é o pecado”. Se um dia não haverá mais pecado, e os justos serão purificados, então eles não mais morrerão e também poderão ver a Deus. (Mateus 5:8) Então, não serão mais necessárias advertências do tipo “a alma que pecar é a que morrerá”, pois não haverá mais pecado! Jeová é o meu Pastor. Nada me faltará. Ele me faz deitar em pastagens relvosas; Conduzme junto a lugares de descanso bem regados. Refrigera a minha alma. Guia-me nos trilhos da justiça por causa do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra tenebrosa, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; Tua vara e teu bastão são as coisas que me consolam. Salmos 23:1-4. Apascentá-las-ei num bom pasto e seu lugar de permanência virá a estar nos montes altos de Israel. Ali se deitarão num bom lugar de permanência e pastarão num pasto gordo sobre os montes de Israel. Ezequiel 34:14. ‘E le me deita em pastagens relvosas, em lugares de descanso regados refrigera minha alma’ Uma reflexão pessoal. . . Sobre a inexistência da pessoa humana no “sono” da morte, considere um exemplo. O homem chamado Moisés não existe mais. O que continuou existindo depois de sua 385 morte foi a alma que atende pelo mesmo nome, e que foi guardada no Seol. Essa alma tem uma natureza completamente diferente daquela do antigo corpo biológico que tinha. De fato, aquele Moisés de outrora não terá mais nada a fazer debaixo do sol (ou seja, na Terra; de noite ou de dia). Deus tem outros planos para sua alma. Talvez Moisés já esteja até no céu, conforme acreditam muitos teólogos, e hoje possui um corpo glorioso. Mas quer ele esteja lá, quer não, o importante é saber distinguir a natureza das existências. O que determina a personalidade de cada ser humano é sua alma, aquela que só Deus tem o poder de destruir. Isso é difícil de compreender quando se tem apenas uma visão materialista da realidade (o caso dos aniquilacionistas), mas para quem considera que a única realidade verdadeiramente importante é a espiritual, fica mais fácil compreender essas diferenças. Talvez tenha sido por isso que os cristãos milenaristas do segundo século, que enfatizavam a vida eterna na Terra, tiveram tão pouca aceitação na comunidade cristã. Manter um olhar concentrado na realidade terrena pode lançar uma venda nos olhos do cristão e impedi-lo de ver a grandiosidade da realidade espiritual, tão mencionada por Paulo em seus escritos. Um aniquilacionista que estiver “escondido dentro” da Bíblia, se quiser, basta meter a cabeça para fora por qualquer uma das aberturas que ela tem para o exterior, a exemplo de Mateus 10:28 e Lucas 16:19-31. Ao fazer isso, verá que as pessoas do mundo judaico-cristão estavam envolvidas todo o tempo em assuntos relacionados à realidade espiritual (céu, anjos, visões, espíritos, almas, hades, ressurreição etc.). Foi nesse cenário que o Cristianismo nasceu. “É o espírito que é vivificante; a carne não é de nenhum proveito”. – João 6:63. “O homem físico não aceita as coisas do espírito de Deus, porque para ele são tolice; e ele não pode chegar a conhecê-las, porque são examinadas espiritualmente”. – 1 Coríntios 2:14, 15. Sobre o corpo, a alma e o espírito Certa vez, Jesus Cristo disse: “Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. – Mateus 6:25. Ao falar de duas coisas (alma e corpo), Jesus podia estar se referindo a três. Por que digo isto? Porque é possível inferir do que ele disse duas analogias interconectadas e ampliáveis, quando comparou a alma com o alimento, e o corpo com o vestuário: 1. alma / alimento 2. corpo / vestuário Na segunda analogia temos o seguinte: 386 O que há fora do corpo - - - - - - - o vestuário (não essencial para o corpo) O que há dentro do corpo - - - - - o alimento (essencial para o corpo) Dentro do entendimento amplamente aceito, não há dúvida que para a primeira analogia temos: O que há fora da alma - - - - - - o corpo (não essencial para a alma)* O que há dentro da alma - - - - ? ? ? ? ? (essencial para a alma) * Ou visto de outra maneira: O que há dentro do corpo? A alma. Qual é a natureza essencial da alma? A alma que vai para o Hades após a morte do corpo? É a natureza espiritual, não é isso? Portanto, o espírito é aquilo essencial para a alma, ficando a analogia completa assim: O que há fora da alma - - - - o corpo (não essencial para a alma) O que há dentro da alma - - - - o espírito (essencial para a alma) Tais conclusões podem ser representadas no diagrama abaixo: Certa vez, Paulo fez referência aos três elementos acima, começando do essencial para o não essencial: “Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós, dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 5:23. Mas o que dizer dos textos abaixo? Não seria o espírito algo essencialmente do corpo? “Quando o espírito deles se vai, eles [os homens] voltam ao pó; naquele mesmo dia acabam-se os seus planos”. – Salmo 146:4, NVI, colchetes acrescentados. 387 “Deveras, assim como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras está morta”. – Tiago 2:26. Note no desenho apresentado que a fórmula proposta continua válida para tais versículos, pois o espírito é o centro de tudo e fica dentro do corpo. Quando o espírito deixa o corpo (indo junto também a alma) o que resta é um corpo físico morto. E o que acontece ao espírito? A Bíblia responde: “Então o pó retorna à terra, assim como veio a ser, e o próprio espírito retorna ao verdadeiro Deus que o deu”. – Eclesiastes 12:7. E em que sentido o espírito retorna para Deus? Os textos abaixo fornecem uma pista: “Deus é Espírito, e os que o adoram têm de adorá-lo com espírito e verdade”. – João 4:24. “Além do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos para vivermos?”. – Hebreus 12:9, Almeida Fiel. Deus é o Espírito a quem pertencem todos os demais espíritos. Quando o espírito sai do corpo, ele retorna para a realidade própria de Deus, ou seja, a espiritual. Deve ser por esta mesma razão que a Bíblia informa que Abraão, Isaque e Jacó continuam vivos para Deus. Eles morreram apenas para nós, quando seus corpos físicos deixaram de funcionar e depois desapareceram. – Mateus 22:29-33. Portanto, o homem é formado por corpo, alma e espírito. Os teólogos chamam essa formação de natureza tricotômica. E embora seja óbvio que a alma tem uma natureza espiritual, devido ao contexto bíblico relacionado ao Seol / Hades, a explanação acima ajuda a visualizar este fato. Textos para reflexão: “Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; pois o santuário de Deus, que são vocês, é sagrado”. – 1 Coríntios 3:16, 17, NVI. “Ora, o Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade. E todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito”. – 2 Coríntios 3:17, 18, NVI. “Mas vocês chegaram ao monte Sião, à Jerusalém celestial, à cidade do Deus vivo. Chegaram aos milhares de milhares de anjos em alegre reunião, à igreja dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus. Vocês chegaram a Deus, juiz de todos os homens, aos espíritos dos justos aperfeiçoados*”. – Hebreus 12:22, 23, NVI. * “…. espíritos dos justos, que chegaram à perfeição”. (Bíblia Vozes) 388 A7. Qual é a tradução correta de Lucas 23:43? “Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso”. – Tradução do Novo Mundo. Nenhum dos textos gregos padronizados disponíveis para tradução, a exemplo daquele publicado por Westcott e Hort, texto-base da Tradução do Novo Mundo, possui a estrutura acima. No grego, o versículo está assim: “E disse-lhe Jesus: Deveras eu te digo, hoje comigo estarás no paraíso”. E está desse jeito aí mesmo, com dois pontos depois do nome de Jesus e uma vírgula antes de hoje. Veja abaixo. Os dois pontos no grego são representados por esse pontinho indicado pela seta da esquerda: Deveras eu te digo, hoje comigo estarás no paraíso” – Emphatic Diaglott, Benjamin Wilson “ O texto grego acima é da Emphatic Diaglott, uma tradução interlinear grego-inglês publicada atualmente pela Torre de Vigia. A primeira edição saiu em 1864, e depois o autor doou os direitos para a editora atual. Isto foi bem antes dela publicar sua própria versão Interlinear, chamada Kingdom Interlinear. Em ambas edições, o texto grego está conforme indicado acima. No entanto, na coluna com a tradução não literal, o Novo Testamento de Benjamin Wilson difere da Tradução do Novo Mundo. O texto diz: “E disse a ele: ‘Deveras, eu te digo. Neste dia estarás comigo no paraíso”. – Lucas 23:43, Emphatic Diaglott. Visto que Lucas 23:43 na TNM está em desacordo com o texto-base utilizado e com a Diaglótica Enfática, o que a Torre de Vigia alega para justificar a mudança que faz em sua tradução? Ela diz: “Vírgulas não eram usadas nos manuscritos unciais gregos, por isso, em harmonia com o contexto nós omitimos”. – Kingdom Interlinear, em uma nota de Lucas 23:43. Eles teorizam que se a vírgula já existisse na época de Lucas ele não a teria usado antes do advérbio “hoje”. Mas isto é apenas uma suposição que não pode ser provada, sem contar o fato de que não goza do apoio de especialistas. Por isso, a ausência de vírgulas nos manuscritos unciais é apenas uma desculpa para “harmonizar” o versículo com o “contexto”. E qual seria este? 389 Não há outro “contexto” para as Testemunhas senão o entendimento aniquilacionista que não permite achar que a alma de Jesus e a do criminoso arrependido tenham ido para o Seio de Abraão* naquele mesmo dia. E visto que a ressurreição de Jesus aconteceu somente depois e o paraíso, segundo acham, será na Terra, o ex-malfeitor estaria até hoje “aguardando” o cumprimento da promessa, a ocorrer num momento indeterminado no futuro. E como se não bastasse, Jesus não estará realmente com aquele homem que se arrependeu na cruz. Apenas ficará olhando para ele lá de cima, no céu. * Note que Lucas foi o único escritor bíblico que mencionou o Seio de Abraão, para o qual Lázaro foi levado pelos anjos no dia que morreu. E foi justamente esse evangelista que nos contou sobre a promessa de Jesus: “Hoje estarás comigo no paraíso”. Isto não deve ser coincidência. – Lucas 16:1931. Será que a gramática grega permite mesmo essa mudança do texto proposta na Tradução do Novo Mundo? Os que sabem grego dizem que não. Veja um exemplo abaixo: “Com a flexão do verbo eimi (ser, estar: sou, estou) no modo ese (estará – futuro médio), identifica um período imediatamente posterior à crucificação (hoje) e não incerto, como quer a TNM”. – nota de Lucas 23:43 na Bíblia Apologética, Editora Fiel. Para uma consideração adicional a respeito da gramática grega envolvida no texto de Lucas 23:43 e aspectos históricos sobre este versículo, sugiro os dois artigos abaixo: http://www.e-cristianismo.com.br/pt/apologetica/225-a-pontuacao-de-lucas-2343 http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/santos/720-lucas23-e-a-hora-da-ida-do-ladrao-aos-ceus Mas não é preciso saber grego para perceber que existe alguma coisa estranha nessa versão da TNM. Por que Jesus usaria essa linguagem? Por que ele daria ênfase ao dia da promessa que fez? Não existe nenhum outro versículo onde haja essa mesma estrutura. E houve ocasiões em que Jesus até poderia ter falado dessa maneira, pois nelas há um contraste entre o dia da fala com algum evento bem mais adiante no futuro. Entretanto, de acordo com a escrita dos evangelistas, ele não fez isso. Leia a seguir cinco exemplos, com colchetes onde poderia haver a palavra “hoje”: 1. “Deveras, eu vos digo [ ]: No Dia do Juízo será mais suportável para a terra de Sodoma e Gomorra do que para essa cidade”. – Mateus 10:15. 2. “Conseqüentemente, eu vos digo [ ]: No Dia do Juízo será mais suportável para Tiro e Sídon do que para vós. E tu, Cafarnaum, serás por acaso enaltecida ao céu? Até o Hades descerás”. – Mateus 11:22, 23. 3. “Também, eu te digo [ ]: Tu és Pedro, e sobre esta rocha construirei a minha congregação”. – Mateus 16:18. 390 4. “Deveras, eu vos digo [ ]: De modo algum beberei mais do produto da videira, até o dia em que o beberei novo no reino de Deus”. – Marcos 14:25. 5. “Deveras, eu vos digo [ ]: Esta geração de modo algum passará até que todas estas coisas ocorram”. – Lucas 21:32. Percebe-se, então, que incluir a palavra “hoje” como preâmbulo de uma declaração sobre um evento distante, no futuro, não era um hábito costumeiro. Essa palavra geralmente só aparece quando o evento futuro é muito próximo, de maneira quase imediata, como é o caso do versículo abaixo, sobre Pedro trair Jesus: “Deveras, eu te digo: Hoje, sim, esta noite, antes de o galo cantar duas vezes, até mesmo tu me terás repudiado três vezes”. – Marcos 14:30. Note a similaridade com o texto de Lucas, conforme está em todas as Bíblias, à exceção da TNM (e esporadicamente em mais alguma outra): “Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso”. – Lucas 23:43, Vozes. Veja outro texto escrito por Lucas onde ele também usou o advérbio “hoje”, mas desta feita se referindo a algo que já estava acontecendo: “Chefes do povo e anciãos, ouvi-me: se hoje somos interrogados a respeito do benefício feito a um enfermo….”. – Atos 4:8, 9, Ave Maria. Mesmo em tal versículo a ideia permanece: quando o advérbio “hoje” está próximo de uma afirmação qualquer, ele se refere a ela e não ao dia da fala de quem a proferiu. Além do mais, o evento para o qual o discurso aponta acontece dentro do mesmo dia, e não no futuro a perder de vista. Não obstante o peso das evidências apresentadas, é claro que aqueles que não querem acreditar no que está em Lucas 23:43 tentarão elaborar argumentos para justificar uma releitura do texto. É o caso do pastor adventista Wilson Paroschi que escreveu um artigo onde comenta várias fontes antigas que supostamente autorizariam uma reinterpretação do texto. Mas ele próprio admite que uma parte delas aponta na direção contrária. Sendo assim, elas não podem ser consideradas como fator determinante para uma eventual mudança de entendimento. Então, o que resta é apenas analisar as próprias evidências bíblicas. Veja no link a seguir, dentro do subtópico “A Evidência Bíblica”, o que Paroschi identificou dentro da Bíblia que poderia justificar uma alteração de sentido de Lucas 23:43. O texto abaixo é uma tradução publicada no Mentes Bereanas: http://www.mentesbereanas.org/lucas2343.html Nas explicações dadas por Paroschi, ele não consegue mostrar verdadeira evidência interna no Novo Testamento que poderia autorizar uma mudança da leitura amplamente aceita de Lucas 23:43. Paroschi faz a mesmíssima confusão que é vista em 391 outros escritores adventistas e menciona a ressurreição como “prova” de que Jesus não poderia estar naquele mesmo dia no Paraíso. Ele diz: “Por ‘Paraíso’, não deve haver qualquer dúvida de que Jesus quis dizer céu…. Ele [Paulo] nunca tenta consolar os vivos afirmando que os falecidos já se encontram com Jesus no céu. Pelo contrário, ele tenta trazer a paz aos seus corações, lembrando-os da ressurreição”. – colchetes acrescentados. Paraíso é só no céu? O que aconteceu com o futuro paraíso terrestre, ou aquele lá do Éden, conforme o entendimento mais comum?... Mas, enfim, os dois principais argumentos que ele utiliza são que (1) Jesus não poderia estar naquele mesmo dia no céu, pois foi ressuscitado só depois, e (2) a ressurreição dos fiéis seria no futuro, numa data incerta. Perfeito! Quem é que discordaria disso? Será que temos aqui a figura do “espantalho”? Paroschi comete o mesmo erro de outros ao misturar esses conceitos. E o motivo é sempre o mesmo. Não entender corretamente o que a Bíblia informa sobre Seol / Hades e alma (se bem que neste ponto parece que os adventistas estão mais perto da verdade, ao enfatizarem o sono da alma, ao invés de sua aniquilação). Paroschi também discorre um pouco sobre supostas evidências linguísticas, porém não cita nenhuma autoridade em grego. Portanto, ele não consegue provar coisa alguma, e o que escreveu serve apenas para satisfazer pessoas que pensam parecido com ele. O que foi feito na TNM, em Lucas 23:43, é uma subversão, conforme define o dicionário Caldas Aulete, dentre as várias acepções possíveis da palavra: “Subversão, . . . . revolta contra os princípios estabelecidos”. “Subverter, . . . . confundir, perturbar completamente; transtornar, desordenar”. É justamente o que fizeram na TNM com respeito ao versículo em apreço. Desordenaram o texto e se voltaram contra os princípios estabelecidos referentes às boas práticas de tradução. Portanto, traduzir esse versículo não se trata apenas de mera escolha de pontuação, a ser decidida livremente pelos tradutores. É preciso se ater de maneira consistente a todos os fatores envolvidos, e não apenas a um único detalhe para sustentar uma teoria que contradiz o que especialistas do grego dizem e a própria coerência interna da Bíblia. Mais uma reflexão pessoal. . . Acho interessante como é forte a influência de um conceito religioso sobre a mente humana. É uma demonstração de que o autoengano não tem relação direta com a falta de formação acadêmica ou baixa cultura. Wilson Paroschi é PhD em Teologia do Novo Testamento pela Andrews University, nos EUA. Então, é muito provável que ele saiba do conceito predominante sobre alma e Seol / Hades, e as razões que o justificam. Mesmo assim, isto pouco importa para ele. 392 Outra informação com a qual talvez Paroschi tenha se deparado em seus estudos, é que para os antigos judeus o paraíso não se restringia ao céu. Para eles o Seio de Abraão também é um paraíso, conforme é dito na Hagadá pré-talmúdica. A própria história do Éden demonstra que pode haver vários paraísos no vasto domínio do Criador. Ao que parece, os defensores mais instruídos do sono da alma ou da aniquilação dela, quando buscam uma formação acadêmica ou autodidata relacionada à exegese, o fazem apenas para apoiar uma ideia preconcebida, adquirida em suas formações religiosas. É claro que isto não os desqualifica quais cristãos, pois cada um é livre para escolher seu caminho. Tenho alguns amigos adventistas e testemunhas de Jeová, e para mim eles são pessoas dignas de consideração. Não é o que eles acreditam que me farão pensar mal deles. “Ainda hoje estarás comigo no paraíso” 393 (Página em branco) 394 A8. Textos amiúde mal aplicados pelos aniquilacionistas Este apêndice é a transcrição do meu primeiro artigo criticado pelo autor do Mentes Bereanas (MB), que foi publicado no meu website. A minha ideia é fazer algumas melhorias nele, levando em conta pontos aproveitáveis da mencionada crítica e republicá-lo. Mas não há data prevista para que isso aconteça. Visto que eu ainda poderei fazer os referidos aprimoramentos, acredito que é interessante preservar o texto original neste apêndice. No futuro isso poderá ser útil para visualizá-lo sem os comentários intercalares do autor do MB e compará-lo com o que foi exposto ao longo deste livro, onde refutei de maneira fundamentada vários dos argumentos apresentados pelo meu crítico “bereano”. Existem alguns versículos das Escrituras que são frequentemente citados por aniquilacionistas para tentar provar que o homem desaparece por completo depois da morte. Eles dogmatizam tais passagens e ignoram aquilo que o restante da Bíblia realmente diz sobre o assunto, em conexão com a formação tricotômica do homem, composta por corpo físico, alma e espírito. Essa natureza está subentendida na seguinte declaração do apóstolo Paulo: “O próprio Deus de paz vos santifique completamente. Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós, dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 5:23. Além disso, segundo a Bíblia, depois da morte o corpo vai para a sepultura, porém sua alma vai para o Seol (ou Hades), que é o domínio dos mortos. Para mais informações consulte o apêndice A3. Leia a seguir uma consideração das passagens bíblicas geralmente utilizadas para tentar apoiar o conceito do aniquilacionismo. 1. ALMAS FALECIDAS “Que ponham para fora do acampamento todo leproso…. e todo aquele que se tornou impuro por meio duma alma falecida”. – Números 5:2 e similares. A expressão “alma falecida” significa apenas “pessoa falecida”, como pode ser visto numa ordem similar dada mais adiante em Números: “Quem tocar no cadáver de qualquer alma humana também terá de ser impuro por sete dias”. – Número 19:11. Dizer “cadáver de qualquer alma humana” é o mesmo que dizer “o corpo de qualquer pessoa”. Leia uma explicação adicional nos comentários do ponto 7. 395 2. QUANDO O HOMEM MORRE SEUS PENSAMENTOS PERECEM “Não confieis nos nobres, nem no filho do homem terreno, a quem não pertence a salvação. Sai-lhe o espírito, ele volta ao seu solo. Neste dia perecem deveras os seus pensamentos”. – Salmo 146:3, 4. Ao contrário do que um leitor desavisado poderia concluir, o texto acima se refere aos planos e consecuções do ser humano. Qualquer coisa que o homem pense e planeje perde o sentido quando ele morre, pois depois da morte não há nada mais a fazer “debaixo do sol”, em conexão com a vida que se possuía. – Eclesiastes 9:5, 6. Essa realidade é descrita no livro de Jó: “Mas o varão vigoroso morre e jaz prostrado e o homem terreno expira, e onde está ele?.... Meus próprios dias passaram adiante, romperam-se os meus próprios planos, os desejos do meu coração”. – Jó 14:10; 17:11. Que o sentido de Salmos 146:4 é esse mesmo pode ser percebido em outras traduções da Bíblia. Note como elas traduzem a conclusão do versículo: “Naquele mesmo dia acabam-se os seus planos”. – Nova Versão Internacional. “No mesmo dia seus planos se acabam”. – Vozes. “Naquele dia vão-se seus desígnios”. – Santos Saraiva. Uma nota da Bíblia Apologética informa que a palavra hebraica traduzida em algumas Bíblias por “pensamentos” é estonath, e que ela significa também “planos”, “propósitos” ou “desígnios”, conforme demonstram as traduções acima. Portanto, o texto não significa que ao morrer os pensamentos da pessoa desaparecem completamente, mas sim que os planos dela, qual ser humano, se acabam ou perecem. – Compare com Lucas 12:13-21 e 16:22-31. 3. TODOS VOLTAM PARA O PÓ “Todos vão para um só lugar. Todos eles vieram a ser do pó e todos eles retornam ao pó”. – Eclesiastes 3:20. Esse texto se refere ao corpo biológico quando morre. É ele que vai para o pó do solo, de onde Deus tirou a matéria-prima usada para criá-lo, a fim de que o homem vivesse na Terra, conforme o texto de Gênesis 2:7 descreve. “Javé Deus plasmou o homem, pó da terra, insulflou em suas narinas um sopro de vida, e o homem se tornou um ser vivo”. – Mensagem de Deus. “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou no seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma (pessoa) vivente”. – Matos Soares. 396 Dizer que a pessoa desaparece completamente ao morrer, com base nesse versículo, é dogmatizar o assunto e desconsiderar aquilo que o restante das Escrituras diz sobre o que acontece depois da morte do corpo físico. Leia a seguir alguns exemplos: “E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão”. – Lucas 16:22. “Além disso, irmão entregará irmão à morte, e o pai ao seu filho, e os filhos se levantarão contra os pais e os farão matar. E vós sereis pessoas odiadas por todos, por causa do meu nome.... O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrando, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:27, 28. “E quando abriu o quinto selo, vi por baixo do altar as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa da obra de testemunho que costumavam ter. E [as almas desses que morreram] gritaram com voz alta, dizendo: ...”. – Apocalipse 6:9-10, colchetes acrescentados. “Então o pó retorna à terra, assim como veio a ser, e o próprio espírito retorna ao verdadeiro Deus que o deu”. – Eclesiastes 12:7. “[Quando certa menina morreu, Jesus] a tomou pela mão e chamou, dizendo: 'Menina, levanta-te!' E voltou-lhe o espírito e ela se levantou instantaneamente, e ele ordenou que se lhe desse algo para comer”. – Lucas 8:49-55, colchetes acrescentados. “E Jesus exclamou com voz alta e disse: ‘Pai, às tuas mãos confio o meu espírito.’ Dizendo isso, expirou”. – Lucas 23:46. “No entanto, o próprio Deus remirá a minha alma da mão do Seol, pois ele me receberá”. – Salmo 49:15. Portanto, são os corpos dos que morrem que vão para o pó do solo, e não suas almas ou espíritos. E o lugar onde Deus pode receber quem morre é o mundo espiritual, não o mundo terreno, pois “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus, nem pode a corrupção herdar a incorrupção”. – 1 Coríntios 15:50. 4. OS MORTOS NÃO SABEM NADA E NÃO HÁ ATIVIDADES NO SEOL “Tudo o que a tua mão possa fazer, faze-o com todas as tuas faculdades, porque não região dos mortos para onde vais, não há nem trabalho, nem ciência, nem inteligência, nem sabedoria”. – Eclesiastes 9:10, Missionários Capuchinhos. 397 “Com efeito, os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem mais nada; para eles não há mais recompensa, porque sua lembrança está esquecida. Amor, ódio, tudo já pereceu; não terão mais parte alguma, para o futuro, no que se faz debaixo do sol”. – Eclesiastes 9:5, 6, Centro Bíblico Católico. Se o texto acima tivesse que ser entendido de maneira absolutamente literal, significaria que o ser humano não tem nenhuma esperança, pois é dito que para os que morrem “não há mais recompensa”. Mas não é isso o que outras partes da Bíblia dizem: “[Deus] dará a cada um segundo as suas obras: vida eterna aos que estão buscando glória, e honra e incorruptibilidade, pela perseverança na obra que é boa [enquanto se está vivo neste mundo]; no entanto, para os que são briguentos e que desobedecem à verdade, mas que obedecem à injustiça, haverá furor e ira”. – Romanos 2:6-8, colchetes acrescentados. “Vem a hora em que todos os que estão nos túmulos memoriais ouvirão a sua voz e sairão, os que fizeram boas coisas, para uma ressurreição de vida, os que praticaram coisas ruins, para uma ressurreição de julgamento”. – João 5: 28, 29. “E muitos dos adormecidos no solo de pó acordarão, estes para a vida de duração indefinida e aqueles para vitupérios e para abominação de duração indefinida”. – Daniel 12:2. Conforme se vê, há sim recompensa para os que morrem, de acordo com suas ações enquanto estavam vivos quais seres humanos. De modo que aquilo que está nessa porção do livro de Eclesiastes tem que ser compreendido de outra maneira, para não haver contradição com outras partes das Escrituras. Dogmatizá-la e desconsiderar o resto da Bíblia para tentar apoiar uma ideia preconcebida não é o caminho recomendado. – Filipenses 4:5. O próprio trecho em apreço dá a dica sobre como entendê-lo. Tudo o que ele descreve se refere às atividades que são feitas “debaixo do sol”, ou seja, na Terra. Quando determinada pessoa morre, ela deixa para trás tudo aquilo que prezava e fazia. Tudo da sua outrora rotina, qual ser humano, não lhe pertence mais e nunca mais vai pertencer. Não terá qualquer participação nas atividades às quais se dedicava. Não voltará para os seus negócios, não se preocupará com o dinheiro que tinha, não sairá para se divertir nos lugares que gostava etc. Tudo o que fazia debaixo do sol desapareceu para sempre. Portanto, é sob o ponto de vista dos que ficam na Terra que Eclesiastes 9:5, 6 deve ser compreendido, conforme sugerido nos colchetes abaixo: “Com efeito, os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem mais nada [no que diz respeito à vida e expectativas do ser humano]; para eles não há mais recompensa [neste mundo, algo que os humanos sempre buscam por seus esforços], porque sua lembrança está esquecida [pois forçosamente chega o dia quando quem 398 morreu não é mais lembrado por ninguém aqui na Terra]. Amor, ódio, ciúme [relacionados à vida humana que tiveram], tudo já pereceu; não terão mais parte alguma, para o futuro, no que se faz debaixo do sol [ou seja, no planeta Terra]”. – Eclesiastes 9:5, 6, Tradução do Centro Bíblico Católico (CBC). Da mesmíssima maneira pode ser entendida a passagem mais adiante de Eclesiastes: “Tudo o que a tua mão possa fazer, faze-o com todas as tuas faculdades, porque não região dos mortos para onde vais, não há nem trabalho [humano], nem ciência [humana], nem inteligência [humana], nem sabedoria [humana]”. – Eclesiastes 9:10, Missionários Capuchinhos, colchetes acrescentados. Não terão mais parte alguma, para o futuro, no que se faz debaixo do sol… Curiosamente, os dois casos mencionados na Bíblia de pessoas que voltaram do mundo dos mortos aconteceram sob o véu da noite, e não durante o dia, que foi a aparição de Samuel para Saul e a conversa que Jesus teve com Moisés e Elias, na transfiguração. Talvez isto seja apenas coincidência, mas, de qualquer modo, seguiu exatamente o que Eclesiastes disse, de que ‘os mortos não fazem mais nada debaixo do sol’. – 1 Samuel 28:7, 8; Marcos 9:2-7. 5. OS MORTOS NÃO LOUVAM O SENHOR “Os mortos não louvam ao SENHOR, nem os que descem ao silêncio. Mas nós bendiremos ao SENHOR”. – Salmos 115:17, 18, Almeida Fiel. É preciso considerar o contexto específico do versículo acima. O texto completo (115:1-17) está repleto de palavras que denotam coletividade: “nós”, “vós” “Israel”, “casa de Arão”, “deles” (se referindo às pessoas que adoram deuses falsos) etc. Era justamente em coletividade que Davi e os demais judeus louvavam a Deus: “Vou declarar o teu nome aos meus irmãos; No meio da congregação te louvarei”. – Salmos 22:22. “Vou elogiar-te na grande congregação; Louvar-te-ei entre um povo numeroso”. – Salmos 35:18. Depois que Davi morresse ele não poderia mais louvar a Deus publicamente, conforme está descrito em outra parte dos Salmos: “Louvarei ao SENHOR durante a minha vida; cantarei louvores ao meu Deus enquanto eu viver”. – Salmos 146:2, NVI. Era somente enquanto estivesse vivo na Terra que as pessoas poderiam ver Davi cantando louvores a Deus, diante da congregação de louvadores. Então, dizer que os mortos não louvam a Deus significa que aqueles que morreram não podem mais ser vistos louvando a Deus publicamente. 399 Uma nota da Bíblia Apologética informa que a palavra traduzida por “louvar” é yadah, em hebraico e ela aparece 103 vezes no Antigo Testamento, sendo que em todos os casos denota adoração em coletividade, aquela que era típica da nação de Israel. Sobre essa particularidade, o tradutor Santos Saraiva menciona que a estrutura do capítulo 115 dos Salmos sugere que eram cantados “durante o oferecimento do sacrifício; de sorte que suas diversas partes eram alternadamente entoadas por diferentes pessoas. Assim, as estrofes desde 1 até 8, eram cantadas pela congregação ou povo reunido; desde 9 até 11 alternavam-se os levitas e o coro; de 12 até a 15 competiam ao sacerdote” e a estrofe “de 16 até 18 eram ainda da competência da congregação”. – Harpa de Israel (1898), p. 449, 450. Portanto, a perspectiva correta de textos como esse de Salmos 115:17 é o ponto de vista dos que ficam na Terra, que não vêem mais aqueles que morreram louvando a Deus em coletividade, diante dos homens. Esses textos não anulam o que outras partes das Escrituras dizem sobre a alma e o espírito, que continuam a existir depois da morte. – Eclesiastes 12:7; Mateus 10:28; Lucas 16:22-31; 1 Pedro 3:19, 20. “Depois de morto.... não poderei mostrar aos homens como Tu és fiel”. – Salmos 88:11, A Bíblia Viva. Que a situação em que se encontram as pessoas que vivem na Terra e as que morreram é mera questão de ponto de vista, pode ser percebido nas passagens abaixo: “Mas, que os mortos são levantados, até mesmo Moisés expôs, no relato sobre o espinheiro, quando ele chama Jeová ‘o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’. Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem”. – Lucas 20:37, 38. Os personagens mencionados (Abraão, Isaque e Jacó) estão vivos para Deus, mas para os homens eles estão mortos. Mas se eles fossem trazidos de volta para este mundo, na linguagem bíblica eles estariam “ressuscitados” ou “levantados dentre os mortos”. “Estas pessoas prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. Com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:5, 6; compare com 1 Pedro 3:19. Ressalte-se que o continuar a existir da alma e do espírito não é ainda a vida eterna prometida aos justos, em contraste com a punição que os ímpios receberão quando chegar o julgamento de Deus. Em tal época haverá outro tipo de morte: “Eu darei de graça da fonte de água viva. O vencedor receberá esta herança: eu serei o Deus dele, e ele será o meu filho. Quanto aos covardes, infiéis, corruptos, assassinos, 400 imorais, feiticeiros, idólatras, e todos os mentirosos, o lugar deles é o lago ardente de fogo e enxofre, que é a segunda morte”. – Apocalipse 21:6-8, Edição Pastoral. Os comentários do ponto seguinte fornecem mais esclarecimentos. 6. O SEOL E A SEPULTURA NÃO PODEM ELOGIAR A DEUS “Porque na morte não há menção de ti; no Seol, quem te elogiará?”. – Salmos 6:5. “Que lucro há no meu sangue quando desço à cova? Acaso te elogiará o pó? Acaso contará ele a tua veracidade?”. – Salmos 30:10. “Acaso farás uma maravilha para os que estão mortos? Ou levantar-se-ão os que estão impotentes na morte, elogiar-te-ão eles?”. – Salmo 88:10, 11. “Pois não é o Seol que te pode elogiar; a própria morte não te pode louvar. Os que descem ao poço não podem olhar esperançosamente para a tua veracidade. O vivente, o vivente, é ele quem te pode elogiar. Assim como eu posso neste dia”. – Isaías 38:18, 19. Conforme Provérbios 15:11, Deus é Aquele que pode ver o que transcorre no Seol: “O Sheol e o Abismo estão diante do SENHOR”. – Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). “O Senhor sabe o que acontece até mesmo no mundo dos mortos”. – Nova Bíblia na Linguagem de Hoje. Mas para o homem isto não é possível. Quem desce ao Seol é silenciado, do ponto de vista dos que ficam: “Ó Jeová, não seja eu envergonhado, pois te invoquei. Fiquem envergonhados os iníquos. Fiquem eles quietos no Seol”. – Salmo 31:17. Já os que ficam na Terra podem ser vistos mencionando e elogiando o nome de Deus. Quando o ser humano morre, ele não é mais visto fazendo isso. Mas as almas dos mortos permanecem no mundo delas, aquele que está desnudo diante de Deus. Para que elas louvassem a Deus conforme os seres humanos podem fazer, debaixo do sol, seria necessário que elas voltassem para este mundo. O que não é possível, a menos que Deus as ressuscitasse em novos corpos carnais. Este aspecto é mencionado no texto a seguir: “Acaso farás uma maravilha para os que estão mortos? Ou levantar-se-ão os que estão impotentes na morte, elogiar-te-ão eles?”. – Salmo 88:10, 11. Na verdade, o salmista não enfatizou a ressurreição propriamente dita, mas sim que as almas que estão no Seol não podem voltar para este mundo por si próprias. O texto hebraico desse versículo diz literalmente: “As sombras dos mortos se levantarão e te louvarão?” (Santos Saraiva). A palavra “sombras” (rephaim, em hebraico), trocada por 401 “impotentes” na TNM, se refere às almas que habitam no mundo dos mortos, conforme explica o tradutor Santos Saraiva, ao comentar esse versículo em sua tradução dos Salmos: “É de notar, que a palavra rephaim, sendo propriamente aplicada à antiga raça canaanítica de gigantes, é aqui tomada poeticamente pelas gigantescas sombras ou espectros dos mortos: é equivalente ao latim manes, quando significa almas dos mortos”. – Harpa de Israel (1898), p. 412. Veja outras traduções em edições da Bíblia que seguiram o hebraico mais de perto nesse versículo: “Tu fazes maravilhas aos mortos? Levantam-se as sombras para te louvar?”. – The New American Bible. “Farás maravilhas pelos mortos? As sombras se levantarão para te louvar?”. – Edição Pastoral. “Farás milagres em favor dos mortos? As sombras se erguerão para louvar-te?”. – Mensagem de Deus. “Por acaso, tu mostrarás maravilhas aos mortos, ou irão as sombras levantar-se e te darem graças?”. – The Bible in Living English, de Steven T. Byíngton, publicado pela Torre de Vigia. Etc. Portanto, as ações de Deus que Davi mencionou se referem aos adoradores humanos. São eles que louvam a Deus no modelo de adoração que fora estabelecido em Israel, e não as almas dos mortos (“sombras”). Mas elas continuam a existir no Seol, ainda que presas e sem permissão para estarem entre os humanos louvando a Deus. Sentido semelhante contém Isaías 38:18, que menciona a presença de alguém em contraste com sua ausência devido à morte. Como mostra o contexto, é um agradecimento do rei Ezequias, que estava doente e triste por saber que estava morrendo. Por isso ele suplicou a Deus que prolongasse sua existência na Terra, e foi atendido. Ganhou mais quinze anos de vida. Tomado de agradecimento, ele fez um retrospecto do que lhe aconteceu e concluiu: “Não é o Seol que te pode elogiar; a própria morte não te pode louvar…. O vivente, o vivente, é ele quem te pode elogiar. Assim como eu posso neste dia”. – Isaías 38:18, 19. Em outras palavras, foi como se ele dissesse: “Se eu tivesse morrido eu não poderia te louvar, como estou louvando hoje (diante dos meus irmãos)”. Um exame mais minucioso do Salmo 6:5 também revela um obstáculo adicional para que as almas no Seol façam aquilo que o salmista mencionou. Uma nota da Bíblia TEB informa que no hebraico o trecho “porque na morte não há menção de ti” está literalmente assim: “Não há comemoração de ti entre os mortos”. O Seol (ou Hades) 402 não se apresenta como local adequado para isso, se os textos a seguir forem levados em consideração: “Cercaram-me as cordas da morte e acharam-me as próprias circunstâncias aflitivas do Seol”. – Salmo 116:3. “A seca, bem como o calor, arrebatam as águas da neve. Assim faz também o Seol com os que pecaram!”. – Jó 24:19 (Logicamente, os que não pecaram têm um destino diferente). “Também o rico morreu e foi enterrado. E no Hades, ele ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu Abraão de longe…”. – Lucas 16:22, 23. À exceção do “seio de Abraão”, mencionado em Lucas 16:22, o mundo dos mortos não parece ser o lugar apropriado para comemorações, mesmo estando vivas as almas que moram lá. 7. A ALMA QUE PECAR MORRERÁ “Eis que todas as almas - a mim me pertencem. Como a alma do pai, assim também a alma do filho - a mim me pertencem. A alma que pecar - ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4. Por Gênesis 2:7 dizer que o homem é uma “alma vivente” pode-se chegar à conclusão que a alma morre, pois todo ser humano morre. É por isso que os que pensam assim acham que o texto acima de Ezequiel contraria o conceito da imortalidade da alma, pois diz que a alma que pecar vai morrer. Mas note o seguinte uso da palavra “alma” no livro de Levítico: “Pois a alma de todo tipo de carne é seu sangue”. – Levítico 17:14. Percebe-se que a palavra “alma” está sendo utilizada num sentido restrito, e não se refere à alma descrita nos textos abaixo (o primeiro menciona a morte de Raquel e o segundo a ressurreição de uma criança pelo profeta Elias): “E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18. “E [Elias] passou a estender-se três vezes sobre o menino e a clamar a Jeová, e a dizer: ‘Ó Jeová, meu Deus, por favor, faze a alma deste menino voltar para dentro dele.’ Jeová escutou finalmente a voz de Elias, de modo que a alma do menino voltou para dentro dele e este reviveu”. – 1 Reis 17:21, 22, colchetes acrescentados. Obviamente, não foi o sangue do menino que voltou para dentro dele. A linguagem de ambos os textos também não indica que essa "alma" fosse simplesmente a vida, pois o escritor dá uma ideia de deslocamento da alma, que vai de um lugar para outro. E isto 403 está de acordo com aquilo que demonstram diversos versículos bíblicos, i.e., que depois da morte a alma do ser humano vai para o Seol (ou Hades), mas se for da vontade de Deus ela pode ser trazida de volta por Ele, conforme aludiu o salmista em sua linguagem poética: “Ó Jeová, fizeste subir a minha alma do próprio Seol. Mantiveste-me vivo, para que eu não descesse ao poço”. – Salmos 30:3. “No entanto, o próprio Deus remirá a minha alma da mão do Seol, pois ele me receberá”. – Salmos 49:15. Portanto, a “alma” de Ezequiel 18:4 é também uma aplicação restrita do termo. De modo que, dizer que a ‘alma que pecar é a que morrerá’ significa apenas que a pessoa que pecar é a que morrerá, conforme indica a continuação do texto: “E no que se refere ao homem. . . Se tem andado nos meus estatutos e tem guardado as minhas decisões judiciais para praticar a verdade, ele é justo. Ele positivamente continuará a viver’, é a pronunciação do Soberano Senhor Jeová”. – Ezequiel 18:4-9. A “alma” de Ezequiel 18:4 não se refere à alma que continua a existir depois da morte, e que pode ser trazida de volta se for da vontade de Deus. Em apoio a isto, note as seguintes afirmações categóricas que são encontradas na Bíblia: “Além disso, irmão entregará irmão à morte, e o pai ao seu filho, e os filhos se levantarão contra os pais e os farão matar. E vós sereis pessoas odiadas por todos, por causa do meu nome.... O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrando, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:27, 28. “E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4. Outro exemplo que a palavra “alma” pode ser usada com sentido restrito é o que aconteceu certa vez com Jesus num dia de sábado, quando ele encontrou um homem com a mão ressequida e se compadeceu dele (Mateus 6:6-11; Marcos 3:1-3). Os fariseus ficaram perto quando aquele homem estava prestes a ser curado, a fim de acharem um pretexto para entregar Jesus à morte, por ele estar curando num dia de sábado. Mas antes de fazer o milagre, sabiamente Jesus perguntou aos fariseus: “É lícito, no sábado,…. salvar ou destruir uma alma?”. Por “salvar” ele se referiu a curar o doente, e por “destruir” à intenção assassina dos fariseus (ou “matar”, conforme a versão do evangelista Marcos). Mas será que, com base nesse relato, pode-se afirmar que os homens podem tanto matar como destruir a alma de alguém? Claro que não, pois o próprio Jesus disse depois: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28. 404 É claro que a alma de Jesus não seria destruída se os fariseus tivessem conseguido matá-lo naquele dia, pois ela ficaria bem guardada no Seol e seria trazida de volta na ressurreição, conforme predito nas Escrituras: “Não deixarás a minha alma no Seol”. – Salmo 16:10. Somente Deus pode matar ou destruir a alma de alguém. Mas isto não impediu que Jesus dissesse que os fariseus queriam “matar” ou “destruir” a alma dele. Ele quis dizer com isso apenas que aqueles homens queriam matá-lo. Da mesma maneira, quando Ezequiel diz que a alma que pecar morrerá, significa simplesmente que a pessoa (humana) que pecar é que morrerá. Mas a verdadeira alma vai para o Seol, como dizem diversos textos da Bíblia. – Veja também Atos 3:23, na TNM. Outra aplicação especial que se faz da palavra “alma” pode ser vista em textos como o de Salmos 146:1, que diz: “Louvai a Jah! Louve a Jeová, ó minha alma”. A expressão “que minha alma louve” significa “que eu louve intensamente”, pois a alma, neste caso, representa o desejo mais profundo da pessoa, conforme Jesus Cristo mencionou ao dizer como se deve amar a Deus: “Tens de amar a Jeová, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de toda a tua mente, e de toda a tua força”. – Marcos 12:30. Outra possibilidade de entendimento É fato que mesmo os que agiram com retidão e foram justos, de acordo com o conselho escrito em Ezequiel 18:4-9, por fim morreram. Mas suas almas continuaram a existir no Seol e um dia receberiam sua plena recompensa (Salmos 16:10; Jó 14:15; 2 João 8). As almas dos injustos, porém, poderiam ter o seguinte destino aludido por Jesus: “Temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28b. Sendo assim, a alma espiritual de cada pessoa realmente vive neste mundo, enquanto estiver dentro do corpo biológico. É uma “alma vivente” na Terra. Mas se o corpo físico morre, essa alma se ausenta do corpo e vai para o Seol, e do ponto de vista dos que ficam é uma “alma falecida”, ou seja, alguém que partiu. (Levítico 19:28; Gênesis 35:18). Mas a alma continua viva no Seol, e só Deus tem o poder de matá-la ou destruíla. Portanto, a alma que pecar (enquanto viver na Terra) é a que morrerá (quando chegar o julgamento de Deus). 8. OS QUE DORMEM NA MORTE “Além disso, irmãos, não queremos que sejais ignorantes no que se refere aos que estão dormindo [na morte], para que não estejais pesarosos como os demais que não têm esperança”. – 1 Tessalonicenses 4:13 e similares, colchetes do tradutor. Alguns argumentam que a morte é um estado de completa inatividade porque a Bíblia, às vezes, a compara ao sono e que isto seria uma “prova” de que não existe uma alma que sobrevive à morte. Como entender isso? 405 Primeiramente, há pessoas que acham que essas passagens se referem ao sono da alma, e não do corpo. Por este entendimento, as almas continuam existindo depois da morte, porém ficam dormindo. Embora tal conceito seja melhor que o defendido pelos aniquilacionistas, ele não está completamente de acordo com o que a Bíblia menciona sobre a alma. Leia atentamente o que Paulo falou a respeito da morte: “Enquanto tivermos o nosso lar no corpo, estamos ausentes do Senhor…. Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5: 6, 8; leia também Filipenses 1:21-26. Possuir um corpo físico significa estar vivo na Terra, qual ser humano. Na morte esse “lar” terreno é abandonado, e o que fica aqui é um corpo morto: “O pó volte à terra, de onde veio, e o espírito volte a Deus, que o deu”. – Eclesiastes 12:7, NVI. “O corpo sem espírito está morto”. – Tiago 2:26. Aos olhos dos que ficam o corpo parece estar apenas dormindo. É sob essa perspectiva que Paulo certamente escreveu aos Tessalonicenses, pois foi ele mesmo quem disse que é necessário ficar “ausente do corpo [físico]”, isto é, morrer, para o cristão ir para o seu novo “lar com o Senhor”. A expressão “ausente no corpo” tem uma implicação lógica, que é o fato de que antes desse abandono algo estava “presente no corpo”. É justamente aquilo que a Bíblia ora chama de “alma”, ora chama de “espírito”. Essa parte imaterial do homem é que permanece viva depois da morte do corpo físico. (E dificilmente a descrição de Paulo significa que quem fosse para esse novo lar ficaria dormindo na presença de Cristo). Uma evidência adicional a esse respeito é aquilo que Jesus prometeu na cruz para o malfeitor arrependido: “Então ele [o malfeitor] disse: ‘Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino.’ Jesus lhe respondeu: ‘Eu lhe garanto: Hoje você estará comigo no paraíso”. – Lucas 23: 42, 43, NVI, colchetes acrescentados. (A Tradução do Novo Mundo subverte Lucas 23:43 e coloca os dois pontos depois da palavra “hoje”: “Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso”). “E abriram-se os túmulos memoriais e muitos corpos dos santos que tinham adormecido foram levantados”. – Mateus 27:54. O que adormeceu foram os corpos dos santos, e não as almas deles ou seus espíritos. Quando alguém morre apenas seu corpo fica como que “dormindo”, mas sua alma e seu espírito vão para outro lugar, conforme demonstrado nos episódios a seguir: 406 “E [Elias] passou a estender-se três vezes sobre o menino e a clamar a Jeová, e a dizer: ‘Ó Jeová, meu Deus, por favor, faze a alma deste menino voltar para dentro dele.’ Jeová escutou finalmente a voz de Elias, de modo que a alma do menino voltou para dentro dele e este reviveu”. – 1 Reis 17:21, 22. “Enquanto ainda falava, chegou certo representante do presidente da sinagoga, dizendo: 'A tua filha morreu; não incomodes mais o instrutor.' Ouvindo isso, Jesus respondeu-lhe: 'Não temas, apenas exerce fé, e ela será salva.' Chegando à casa, não deixou ninguém entrar com ele, exceto Pedro, e João, e Tiago, e o pai e a mãe da menina. E todos choravam e se batiam de pesar por ela. De modo que ele disse: 'Parai de chorar, pois ela não está morta, mas dorme.' Começaram então a rir-se dele desdenhosamente, porque sabiam que ela havia morrido. Mas ele a tomou pela mão e chamou, dizendo: 'Menina, levanta-te!' E voltou-lhe o espírito e ela se levantou instantaneamente, e ele ordenou que se lhe desse algo para comer”. – Lucas 8:49-55; compare com Salmos 78:39. O relato de Lucas 8:49-55 está em harmonia com o que Jesus falou em outro momento: “Mas, que os mortos são levantados, até mesmo Moisés expôs, no relato sobre o espinheiro, quando ele chama Jeová ‘o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’. Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem”. (apesar de estarem mortos para os homens). – Lucas 20:37, 38. Portanto, o “adormecer” mencionado algumas vezes no Novo Testamento se refere apenas ao corpo físico e não à alma ou ao espírito. É dessa mesma maneira que se pode entender aquilo que Jesus disse sobre a ressurreição de Lázaro (que não era o mesmo Lázaro da Parábola): “Nosso amigo foi descansar, mas eu viajo para lá para o despertar do sono”. – João 11:11. 407 (Página em branco) 408 Livros e Textos Consultados Obras de Referência 1. Greek-English Lexicon (1883), de Liddell e Scott: https://archive.org/details/greekenglishlex00liddrich 2. The Expositor’s Greek Testament, anos e autores diferentes: Volume 1: https://archive.org/details/expositorsgreekt01nicouoft Volume 2: https://archive.org/details/expositorsgreek02nico Volume 3: https://archive.org/details/expositorsgreekt03nico Volume 4: https://archive.org/details/expositorsgreekt04nico Volume 5: https://archive.org/details/expositorsgreekt05nico 3. A Biblical and Theological Dictionary (1833), de Richard Watson: https://archive.org/details/biblicaltheologi01wats 4. New Greek and English Lexicon (1841), de James Donnegan: https://archive.org/details/newgreekenglishl00donn 5. Comentários sobre textos bíblicos específicos: 5.1. Robertson's Word Pictures of the New Testament (sobre Hebreus 11:16) http://www.biblestudytools.com/commentaries/robertsons-wordpictures/hebrews/hebrews-11-16.html 5.2. Wesley's Explanatory Notes (sobre Lucas 6:9) http://www.biblestudytools.com/commentaries/wesleys-explanatorynotes/luke/luke-6.html 5.3. Wesley's Explanatory Notes (sobre Marcos 3:4) http://www.biblestudytools.com/commentaries/wesleys-explanatorynotes/mark/mark-3.html 5.4. Robertson's Word Pictures of the New Testament (sobre Lucas 6:9) http://www.biblestudytools.com/commentaries/robertsons-wordpictures/luke/luke-6-9.html 5.5. John Gill's Exposition of the Bible (sobre Marcos 3:4) http://www.biblestudytools.com/commentaries/gills-exposition-of-the-bible/mark3-4.html 409 5.6. Mathew Henry Commentary on the Bible (sobre Mateus 12:14) http://www.biblestudytools.com/commentaries/matthew-henrycomplete/matthew/12.html 5.7. Comentário de Bob Utley (sobre o termo grego sōzō em Marcos 3) http://www.biblestudytools.com/commentaries/utley/marcos/marcos3.html 5.8. People's New Testament (sobre Marcos 3:4) http://www.biblestudytools.com/commentaries/peoples-newtestament/mark/3.html 5.9. John Gill's Exposition of the Bible (sobre Jó 7:8) http://www.biblestudytools.com/commentaries/gills-exposition-of-the-bible/job-78.html 5.10. Lange's Commentary e Smith's Dictionary of the Bible (sobre o Salmo 88:10) http://www.biblestudytools.com/commentaries/treasury-of-david/psalms-8810.html 5.11. John Gill's Exposition of the Bible (sobre o Salmo 88:10) http://www.biblestudytools.com/commentaries/gills-exposition-of-thebible/psalms-88/ 5.12. Matthew Henry Commentary on the Whole Bible (sobre o Salmo 88:10) http://www.biblestudytools.com/commentaries/matthew-henrycomplete/psalms/88.html 5.13. Robertson's Word Pictures of the New Testament (sobre Mateus 14:26) http://www.biblestudytools.com/commentaries/robertsons-wordpictures/matthew/matthew-14-26.html 5.14. Comentário de Bob Utley (sobre Atos 12:15 e a Angeologia rabínica) http://www.biblestudytools.com/commentaries/utley/hechos/hechos12.html 5.15. Commentary Critical and Explanatory on the Whole Bible, de Jamielson Fausset Brown (sobre Atos 12:15) http://www.biblestudytools.com/commentaries/jamieson-fausset-brown/acts/acts12.html 6. Baker's Evangelical Dictionary of Biblical Theology, sobre Seol: http://www.biblestudytools.com/dictionary/sheol/ 410 7. International Standard Bible Encyclopedia Online, sobre Seol: http://www.internationalstandardbible.com/S/sheol.html 8. Enciclopédia Católica, sobre a necromancia: http://www.newadvent.org/cathen/10735a.htm 9. Enciclopédia Católica, sobre o inferno e o antigo aniquilacionismo gnóstico: http://www.newadvent.org/cathen/07207a.htm 10. Enciclopédia Católica, sobre o Materialismo: http://www.newadvent.org/cathen/10041b.htm 11. Os Valentinianos e a Ruptura com o Cristianismo Eclesiástico no Século II: http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/141.pdf 12. Enciclopédia Britânica (2015), versão on line, sobre o surgimento da ideia religiosa de extinção da pessoa após a morte: http://www.britannica.com/topic/death-rite 13. Womens’s Divination in Biblical Literature – Prophecy, Necromancy and other Arts of Knowledge (2015), Universidade de Yale, de Esther J. Hamori, pp. 106-110: https://books.google.com.br/books?id=8e5BwAAQBAJ&pg=PA105&lpg=PA105&dq=%22The+character+is+not+a+witch+this+i s+not+simply%22&source=bl&ots=9_tutNu61W&sig=me7Rh3IlK4_84_f2_2f1lm0vIs&hl=ptBR&sa=X&ved=0CBwQ6AEwAGoVChMIj8vv88CIyAIVjJCQCh1FHAtL#v=onepage&q= %22The%20character%20is%20not%20a%20witch%20this%20is%20not%20simpl y%22&f=false 14. Ancient History Encyclopedia, Ghosts in the Ancient World (2014), de Joshua J. Mark. http://www.ancient.eu/ghost/ 15. Enciclopédia Judaica, sobre a necromancia e divinação: http://www.jewishencyclopedia.com/articles/11411-necromancy http://www.jewishencyclopedia.com/articles/5235-divination 16. Enciclopédia Judaica, sobre o “Apocalipse” e o “Testamento” de Abraão: http://www.jewishencyclopedia.com/articles/361abrahamapocalypseof http://www.jewishencyclopedia.com/articles/364abrahamtestamentof 411 17. Enciclopédia Judaica (edição de 1901), obra completa em 12 volumes: https://archive.org/details/1901TheJewishEncyclopediaIAachApocalypticLiterature 18. The Jewish Quarterly Review (1895), vol. 7, nº 4, julho, sobre a Hagadá PréTalmúdica: https://archive.org/details/jstor-1449967 19. The Old Testament Pseudepigrapha (1983), vol. 1, J. H. Charlesworth: http://pt.scribd.com/doc/176511910/Charlesworth-JH-Ed-Old-TestamentPseudepigrapha-Vol-1-Apocalyptic-Literature-Testaments-Doubleday-1983#scribd 20. A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de S. D. F. Salmond: https://archive.org/details/doctrineimmorta00salmuoft 21. Bible Gateway (para conferência de traduções da Bíblia): www.biblegateway.com 22. Endless Misery and Universal Savation (1840), de Alexander Campbell e Dolphus Skinner, sobre a etimologia da palavra Hades, p. 9: https://archive.org/details/adiscussiondoct00skingoog 23. Considerações sobre a palavra rephaim (aspectos etimológicos e outros): 23.1 History of Israel (1886), de Heinrich Ewald, vol. 1, pp. 227-229. https://archive.org/details/historyofisrael01ewaluoft 23.2 De inferis rebusque post mortem futuris ex Hebraeorum et Graecorcum opinionibus libri duo (1846), de Fridericus Boettcher, p. 98, § 193. http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=hvd.ah5iiq;view=1up;seq=98 23.3 Biblische Eschatologie (1870), de Albert Kahle, pp. 108 e 109. https://books.google.tt/books/about/Biblische_Eschatologie.html?id=q35AAAAAYAA J 23.4 Theologie des Alten Testaments (1878), de Gustav Friedrich Oehler, pp. 260, 261. https://archive.org/details/theologiedesalt00oehlgoog As páginas indicadas acima estão nas páginas 277 e 278 do PDF disponível. 23.5 Alttestamentliche Theologie (1889), de Hermann Schultz, p. 702. https://archive.org/details/alttestamentlich00schuuoft 412 24. Dictionary of Untranslatables: A Philosophical Lexicon (2004), de Barbara Cassin e outros, sobre a palavra ζῴoν [“zóion”], p. 34: https://books.google.com.br/books?id=UXP5AQAAQBAJ&pg=PA34&lpg=PA34&dq=% E1%BC%94%CE%BC%CF%88%CF%85%CF%87%CE%B1+living+being&source=bl& ots=yL0-G_COpQ&sig=seJ-CQgMYCjbxG5bl1p6QRh4XlM&hl=ptBR&sa=X&ved=0CCIQ6AEwAWoVChMI5Om_naryxwIVBQqQCh3Y0wG2#v=onepage& q=%E1%BC%94%CE%BC%CF%88%CF%85%CF%87%CE%B1%20living%20being& f=false 25. “Bloodless Sacrifice”: A Note on Greek Cultic Language in the Imperial Era (2014), de Benedikt Eckhardt, sobre a palavra ἄψυχα, p. 263: http://grbs.library.duke.edu/article/download/15011/6305 26. Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de Aristóteles (2007), de Roberto de Andrade Martins e Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, sobre a palavra ἔμψυχα, p. 414 (arquivo PDF): http://www.abfhib.org/FHB/FHB-02/FHB-v02-24-Roberto-Martins_LilianMartins.pdf A página acima indicada está na página 11 do PDF disponível. 27. Aristotle on the Common Sense, de Julia Annas and Lindsay Judson, sobre a palavra ἔμψυχα, p. 19 (arquivo PDF): https://arcaneknowledgeofthedeep.files.wordpress.com/2014/02/aristotleoncommo nsense.pdf 28. A Honra, a Glória e a Morte na Ilíada e na Odisséia (2009), de Antônio Pádua Pacheco, Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, pp. 92, 93: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-19022010-160742/ptbr.php 29. Comentários sobre a carta de Matetes a Diogneto: 29.1 The Epistle to Diognetus, with the fragment of Quadratus (2013), Oxford Apostolic Fathers, de Clayton N. Jefford, pp. 15-29 https://books.google.com.br/books?id=vTRLAAAAQBAJ&pg=PA20&lpg=PA20&dq=Pa ul+Andriessen+Mathetes+Diognetus+Quadratus&source=bl&ots=08YM7rDmfj&sig=5 QDlSd_vjhVmrCcHNbxD4u0XnAU&hl=ptBR&sa=X&ved=0CB8Q6AEwAGoVChMIp9mxxueryAIVAoSQCh3hkQC#v=onepage&q=Paul%20Andriessen%20Mathetes%20Diognetus%20Quadratus&f=fa lse 29.2 The Ante-Nicene Fathers, Translations of the Writings of the Fathers down to A.D. 325 (1903), vol. 1, pp. 23-30 https://archive.org/details/antenicenefathe05menzgoog 413 29.3 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus (1885), de Philip Schaff, p. 43 (p. 83 do PDF) http://www.holybooks.com/wp-content/uploads/Ante-Nicene-Fathers-Vol-1.pdf 29.4 A Synopsis of the Development of Trinitarian Thought from the First Century Church Fathers to the Second Century Apologists (2003), de Mark Carpenter, p. 7 (p. 9 do PDF) http://markcarpenterministries.org/wp-content/uploads/2013/05/Development-ofTrinitarian-Thought-In-The-Ancient-Church.pdf 29.5 Epistle to Diognetus, Catholic Encyclopedia http://www.newadvent.org/cathen/05008b.htm 29.6 Revista Eletrônica Espaço Teológico (2011), vol. 5, nº 7, jan/jun, pp. 8-10 (pp. 2-9 do PDF), “A Contribuição do Laicato para a Santificação do Mundo” http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/view/7694 29.7 Os Gêneros dos Escritos Apologéticos Cristãos Antigos (2011), de Alessandro Arzani e Renata L. 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Far-Out Guide to the Moon (2011), de Mary Kay Carson, p. 5, sobre o afastamento da Lua: http://books.google.com.br/books?hl=ptBR&lr=&id=FiWqFfcneFEC&oi=fnd&pg=PA5&dq=%22the+moon+is+moving+away% 22&ots=8JJ4oyxnYP&sig=oszC1vcHOylNcCamN_LRIXcX1M#v=onepage&q=the%20moon%20is%20moving%20away&f=false 45. The Future of the Universe (2007), de A. J. Meadows, pp. 56, 57, sobre o afastamento da Lua: https://books.google.com.br/books?id=KTajBOBS5UC&pg=PA56&lpg=PA56&dq=%22This+means,+in+turn,+that+the+Moon+is+ moving+away+from+the+Earth+by+about+4+meters+per+century%22&source=bl&o ts=5mzIKQUpOs&sig=90f7llqZjqjQnd0XtIhy6RiIrYk&hl=ptBR&sa=X&ved=0CBsQ6AEwAGoVChMI2oyPuKT6yAIVhYyQCh1J6Qxp#v=onepage&q& f=false 46. “Lord Kelvin e a Idade da Terra” (1975), de Joe Burchfield, mencionado numa apresentação disponível em um portal da Universidade de São Paulo, sobre o fim do sistema solar: https://books.google.com.br/books?id=_6q6j6uAneYC&printsec=frontcover&hl=ptBR#v=onepage&q&f=false moodle.stoa.usp.br/mod/resource/view.php?id=15006 416 47. O Colapso de Tudo (2011), de John Casti, sobre a matéria escura e o fim do universo físico: https://books.google.com.br/books?id=XSMNvVkrvawC&pg=PT149&lpg=PT149&dq= mat%C3%A9ria+escura+big+crunch&source=bl&ots=olHXGONat3&sig=B8YZh_1fxCl4 nnFgLfvhwtZGmCU&hl=ptBR&sa=X&ved=0CFIQ6AEwCWoVChMIytDwg6n6yAIVwpCQCh2l9gUG#v=onepage&q =mat%C3%A9ria%20escura%20big%20crunch&f=false 48. Bagster's Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon (1855), de Benjamin Davidson, p. 355, sobre a palavra hebraica hhugh, de Isaías 40:22, que significa “globo” ou “esfera”: https://archive.org/details/analyticalhebrew00davi Obra Gregas e Outras 1. Discursos 2:12, de Isócrates: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Isoc.%202.12&getid=0 2. Da Paz 8:32, de Isócrates: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Isoc.%208&getid=1 3. Panatenaico 12:7, de Isócrates: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Isoc.%2012&getid=1 4. A Arte da Equitação 11:1, de Xenofonte: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Xen.%20Eq.%2011.1&getid=0 5. Memorabilia (Ditos Memoráveis) 1:4.13, de Xenofonte: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Xen.%20Mem.%201.4&getid=0 6. Fragmento 96b = B 136 [237], de Heráclito (arquivo PDF): http://grbs.library.duke.edu/article/viewFile/9121/4593 The Death of Heraclitus, de Janet Fairweather, p. 235. 7. Electra, v. 785, de Sófocles: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Soph.%20El.%20764&getid=0 417 8. Édipo em Colono, v. 995, de Sófocles: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Soph.%20OC%20960&getid=1 9. Paz, vv. 1299, 1300, de Aristófanes: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Ar.%20Pax%201298&getid=0 10. Contra Ctesifonte 3:46, 170, de Esquines: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Aeschin.%203&getid=0 11. As Mulheres Suplicantes, v. 392, de Esquines: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0016:card=39 2 12. Discursos 1:146, de Esquines: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=1&query=Aeschin.%201 13. Discursos 1:5, de Ésquines. http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Aeschin.%201.5&getid=1 14. Orestes, v. 640, de Eurípides: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Eur.%20Or.%20640&getid=0 15. As Suplicantes 1012, de Eurípides: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?query=Eur.+Supp.+1012&dbname=GreekFeb2011 16. Ifigênia em Tauris, v. 835, de Eurípedes: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Eur.%20IT%20827&getid=1 17. Medeia, v. 225, de Eurípedes: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Eur.%20Med.%20214&getid=1 18. Medeia, v. 474, de Eurípedes. 418 http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?query=Eur.+Med.+446&dbname=GreekFeb2011 19. Íon, v. 859, de Eurípedes: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0110:card=85 9 20. Hécuba 35:50, de Eurípedes: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Eur.%20Hec.%2035&getid=1 21. Hécuba 94, de Eurípedes: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Eur.%20Hec.%2059&getid=1 22. Hécuba 390, de Eurípedes: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Eur.%20Hec.%20382&getid=1 23. Hinos Homéricos 8:10, a Ares: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=HH%208&getid=1 24. Escudo de Héracles, v. 245, de Hesíodo: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Hes.%20Sc.%20245&getid=0 25. Odisseia 9:423, de Homero: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=1&query=Hom.%20Od.%209 26. Odisseia 9:525, de Homero: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Hom.%20Od.%209&getid=2 27. Odisseia 11:81, de Homero: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=1&query=Hom.%20Od.%2011 28. Ilíada 1:1, de Homero: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Hom.%20Il.%201&getid=0 29. Ilíada 9:406-409, de Homero: 419 http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=2&query=Hom.%20Il.%209 30. Ilíada 23:72, de Homero: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=2&query=Hom.%20Il.%2023 31. As Vidas dos Filósofos Eminentes 8:2, de Diógenes Laércio: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Diog.%20Laert.%208.2&getid=1 32. As Vidas dos Filósofos Eminentes 10, de Diógenes Laércio: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Diog.%20Laert.%2010&getid=1 33. Hípias Menor, v. 375a, de Platão: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Pl.%20Hp.%20Mi.%20375a&getid =0 34. Leis 9:874d, de Platão: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=1&query=Pl.%20Leg.%20874d 35. Epínomis, vv. 984c e 984d, de Platão: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Pl.%20Epin.%20984c&getid=0 36. Políticas 1:29 [1253b.30], de Aristóteles: http://www.simply-a-christian.com/texts/Aristotle/Politics.pdf O trecho referido está na página 7 do PDF indicado. Para ver no portal Perseus, da Universidade de Chicago, o link está indicado a seguir: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=0&query=Arist.%20Pol.%201253b 37. Economia 3:2, de Aristóteles: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0048:book=3:s ection=2 38. Retórica 1:6, de Aristóteles: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0060:book=1:c hapter=6 39. Ética a Eudemo 1:1215a, de Aristóteles: 420 http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0050:book=1:s ection=1215a&highlight=not+a+soul%2C 40. Metafísica, v. 1035b.15, de Aristóteles: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Arist.%20Metaph.%201035b&geti d=0 41. Histórias 3:106, de Heródoto: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?query=Hdt.+3.106&dbname=GreekFeb2011 42. A Guerra do Peloponeso 7:29, de Tucídides: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?query=Thuc.+7.29&dbname=GreekFeb2011 43. Sete contra Tebas, v. 686, de Ésquilo: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0014:card=68 6 44. Sete contra Tebas, v. 710, de Ésquilo: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=1&query=Aesch.%20Sept.%20705 45. Contra Andócides 6:23, de Lísias: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Lys.%206&getid=1 46. Ístmico 1:65, de Pindar: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0162:book=I.:p oem=1 47. Bruta animalia ratione uti (Os Animais Usam a Razão), v. 3, de Plutarco: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Plut.+Bruta+3&fromdoc=Perseus%3 Atext%3A2008.01.0373 48. Bruta animalia ratione uti (Os Animais Usam a Razão), v. 6, de Plutarco: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:2008.01.0373:section= 6 49. Apophthegmata Laconica (Citações de Lacônia), v. 69, de Plutarco: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:2008.01.0197:chapter= 69 50. De liberis educandis (Da Educação dos Filhos), v. 17, de Plutarco: 421 http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:2008.01.0137:section= 17 51. De virtute morali (A Virtude Moral), v. 11, de Plutarco: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:2008.01.0259:section= 11 52. De Iside et Osiride (Ísis e Osíris) 364 c, de Plutarco: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2008.01.0238 %3Astephpage%3D364c 53. Vidas, de Plutarco: https://books.google.com.br/books?id=UFROAAAAYAAJ&pg=PA655&dq=%E2%80% 9Chim+her+lord,+her+emperor,+her+husband!%E2%80%9D&hl=ptBR&sa=X&ved=0CCcQ6AEwAWoVChMIop33npW2xwIVx40NCh286ABY#v=onepage& q=%E2%80%9Chim%20her%20lord%2C%20her%20emperor%2C%20her%20husb and!%E2%80%9D&f=false Plutarch’s Lives, Translated from the Original Greek with Notes, Critical and Historical and a Life of Plutarch, de John Langhorne, D.D. e William Langhorne, A.M., New York, Derby & Jackson, 1856: sobre Antônio (p. 655) e sobre Alexandre (p. 491). 54. Orfeu e Eurídice / O Nascimento de Páris / A Morte de Aquiles / Píramo e Tisbe: http://www.unoeste.br/site/enepe/2013/suplementos/area/Humanarum/Linguistic a/Narrativas%20Mitol%C3%B3gicas%20sob%20o%20olhar%20da%20Semi%C3%B 3tica%20Greimasiana.pdf “As 100 Melhores Histórias da Mitologia”, de A. S. Franchini e Carmen Seganfredo, 9ª edição, 2007, p. 155. Arquivo PDF. 55. Mitologia, de Thomas Bulfinch, Revista História Viva (2006?), “As Regiões Infernais e A Sibila”, Ed. Duetto, pp. 42-49. 56. Épico de Gilgamesh, Tabuleta XII, sobre o retorno de Enkidu do mundo dos mortos: 56.1 Original em sumeriano https://www.soas.ac.uk/nme/research/gilgamesh/standard/ 56.2 Tradução em inglês http://www.piney.com/Gil12.html 57. Mito mesopotâmico sobre a descida de Inana ao mundo dos mortos: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section1/tr141.htm 422 58. Cartas egípcias aos mortos: http://www.reshafim.org.il/ad/egypt/texts/letters_to_the_dead.htm 59. O Livro dos Mortos (trecho do papiro de Ani): http://www.reshafim.org.il/ad/egypt/funerary_practices/judgment.htm Obras de Flávio Josefo 1. Antiguidades Judaicas 1:34, sobre a criação do homem descrita em Gênesis: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0146:book=1:s ection=34&highlight=not+a+soul%2C 2. Antiguidades Judaicas 5:276-277, sobre o anúncio do nascimento de Sansão: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&query=Joseph.%20AJ%205.276&getid=0 3. Antiguidades Judaicas 6:327, sobre o aparecimento de Samuel à necromante: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0146:book=6:s ection=327 4. Antiguidades Judaicas 6:340, sobre a morte de Saul após sua ida a En-dor: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0146 %3Abook%3D6%3Asection%3D340 5. Guerras Judaicas 2:154, sobre a crença dos essênios na imortalidade da alma: http://perseus.uchicago.edu/perseuscgi/citequery3.pl?dbname=GreekFeb2011&getid=1&query=Joseph.%20BJ%202.154 Antigas Obras Judaicas e Cristãs 1. O Apocalipse de Abraão e outros (arquivo PDF): http://www.markfoster.net/rn/apocalypse_of_abraham-other.pdf 2. Quarto Livro dos Macabeus 13:14-17, sobre Abraão recepcionar quem morre: http://www.biblestudytools.com/nrsa/4maccabees/passage/?q=4+maccabees+13:14-17 Conforme The Old Testament Pseudepigrapha, 1983, de J. H. Charlesworth. 3. Oráculos Sibilinos, traduzido por Kenner Terra (arquivo PDF): 423 http://tede.biblioteca.ufpb.br/bitstream/tede/4176/1/arquivototal.pdf Citados em uma defesa de mestrado. 4. Livro de Enoque, traduzido por Elson C. Ferreira (arquivo PDF): http://www.buscandoluz.org/estudos/133_O%20Livro%20de%20Enoque.pdf 5. Diálogo com os Gregos, de Taciano: http://www.newadvent.org/fathers/0202.htm 6. Martírio de Policarpo, cap. 14: http://www.newadvent.org/fathers/0102.htm 7. Sobre a ressurreição, cap. 5, de Justino: http://ecclesia.com.br/biblioteca/sophia/?p=1784 8. Diálogo com Trifão, cap. 105, de Justino: http://www.newadvent.org/fathers/01287.htm 9. A ressurreição dos mortos, cap. 13, de Atenágoras: http://www.newadvent.org/fathers/0206.htm 10. Stromateis 6:6, de Clemente de Alexandria: http://www.newadvent.org/fathers/02106.htm 11. Contra os Pagãos, de Arnóbio, Livro II, parágrafo 14: http://www.newadvent.org/fathers/06312.htm 12. Segundo Concílio de Constantinopla, Anátema nº 10: http://www.newadvent.org/fathers/3812.htm 13. Carta de Matetes a Diogneto: 13. 1 Versão em inglês http://www.newadvent.org/fathers/0101.htm 13.2 Versão em português (só capítulos 5 a 7): www.snpcultura.org/carta_a_diogneto_evangelizacao_contemporanea_a_partir_cristia nismo_origens.html 13.3 Original em grego: http://www.ccel.org/l/lake/fathers/diognetus.htm 13.4 Versão interlinear grego-inglês: 424 http://www.embarl.force9.co.uk/Other/ToDiognetus.pdf 14. História Eclesiástica, de Eusébio: https://archive.org/details/ecclesiasticalhi1850euse Na obra acima há uma referência a Quadrato, provável autor da carta a Diogneto. Veja Livro IV, capítulo III, na página 129 do PDF. Artigos em websites apologéticos e outros 1. Série sobre Martinho Lutero: The Seventh Day Adventist Luther: Soul Sleep and the Immortality of the Soul Parte 1: http://beggarsallreformation.blogspot.com.br/2006/04/seventh-dayadventist-luther-soul.html Parte 2: http://beggarsallreformation.blogspot.com.br/2006/04/seventh-dayadventist-luther-part-two.html Parte 3: http://beggarsallreformation.blogspot.com.br/2006/04/luthersunderstanding-of-soul-sleep.html 2. Lista de antigas obras judaicas (compilada por Carlos Martins Nabeto): http://www.apologeticacatolica.com.br/agnusdei/ap12.htm 3. Refutação a um artigo de Lucas Banzoli: http://apologia7biblica.blogspot.com.br/2014/11/uma-breve-resposta-exegetica-aoartigo.html 4. Clemente, Policarpo e Inácio refutam o argumento de Lucas Banzoli: http://apologia7biblica.blogspot.com.br/2015/05/clemente-policarpo-e-inacio-vsdoutrina.html 5. Prefácios de Jerônimo aos Salmos: http://earlychurchtexts.com/public/jerome_prefaces_to_the_psalms.htm 6. Gênesis 1:20 no Novo Testamento em grego moderno, com versão de John Nelson Darby: http://etabetapi.com/cmp/dby/grk/Gen/1 7. Conceito Cristão de História, de Oscar Cullmann: http://www.monergismo.com/textos/historia/conceito_cristao.htm 425 8. “Os Dez Mandamentos são cópias do Livro dos Mortos egípcio?”, LOGOS Apologética Cristã: http://logosapologetica.com/os-dez-mandamentos-sao-copias-livro-dos-mortosegipcio/ 9. Sobre Oscar Cullmann: 9.1 Heaven and Hell: Oxford Bibliographies Online Research Guide, Oxford University Press (2010), p. 10 https://books.google.com.br/books?id=bpjP_cWsRW4C&pg=PA10&lpg=PA10&dq=os car+cullmann+annihilationism&source=bl&ots=8DMLaWsKaZ&sig=Ei7IP_UhgpfQKDX AfrE923DLDBI&hl=ptBR&sa=X&ved=0CDUQ6AEwA2oVChMImP7cxaDZyAIVwoSQCh2t8wmP#v=onepage& q=oscar%20cullmann%20annihilationism&f=false 9.2 Oscar Cullmann: In the Service of Biblical Theology and Ecumenism (2012) http://www.ecumenical-institute.org/wpcontent/uploads/2012/11/ActuelCullmannJerusalem2012English.pdf 9.3 Dr. Oscar Cullman: Famous European Theologian was a conditionalist http://www.afterlife.co.nz/2010/theology/conditional-immortality/dr-oscarcullman-famous-european-theologian-was-a-conditionalist-by-rev-christian-bultinck/ 9.4 A Pilgrim's Theology, artigo que menciona a relação de Cullmann com o conceito de que a Bíblia não é a Palavra de Deus https://theologiainvia.wordpress.com/tag/oscar-cullman/ 9.5 Theology as History and Hermeneutics (2005), de Laurence W. Wood, p. 36, sobre o posicionamento de Cullmann em relação à inspiração divina da Bíblia https://books.google.com.br/books?id=WpGtPaOsqkC&pg=PA36&lpg=PA36&dq=Oscar+Cullmann+inspiration+Bible&source=bl&ots= U0ihCiMkJv&sig=Cd2Q5H4jl94uTruyfU5RhuIxsJ0&hl=ptBR&sa=X&ved=0CB8Q6AEwAGoVChMIo8vfmIzryAIVgxCQCh2INwH#v=onepage&q=Oscar%20Cullmann%20inspiration%20Bible&f=false 9.6 Revista Igreja Luterana (2003), junho, vol. 61, nº 1, artigo “Cristologia do Novo Testamento”, p. 146, que menciona a crença de Cullmann de que algumas falas atribuídas a Jesus no Novo Testamento não são autênticas http://www.seminarioconcordia.com.br/seminario/documentos/il/118/IL20021.pdf 9.7 Heilsgeschichte, artigo da Escola Teológica Charles Spurgeon, que menciona a crença de Cullmann de que Adão não foi um personagem histórico, mas que ele é fruto de alguns mitos presentes na Bíblia http://www.escolacharlesspurgeon.com.br/nav/pregacoes/texto.cshtml?categoria=te ologicas&id=33 426 9.8 Obituário de Oscar Cullmann http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/obituary-oscar-cullmann1077098.html 10. Considerações sobre o Paraíso do Éden: 10.1 A Civilização Mais Antiga e a Bíblia, de Carl Olof Jonsson http://www.mentesbereanas.org/antigacivilizacaobiblica.html 10.2 Onde Fica o Paraíso?, de Hélio de Menezes Silva http://solascriptura-tt.org/EscatologiaEDispensacoes/OndeFicaOParaiso-Helio.htm 10.3 Onde Está o Éden? http://intellectus-site.com/site1/artigos/eden.html 10.4 Comparação entre o Campo de Juncos egípcio e o Céu Paradísico Cristão http://www.aldokkan.com/religion/field.htm 11. A Morada de Elíseos (o paraíso dos romanos), sobre sua localização: http://www.theoi.com/Kosmos/Elysion.html 12. Revista Super Interessante, sobre o fim do universo: http://super.abril.com.br/blogs/supernovas/2015/03/25/universo-esta-a-caminhoda-autodestruicao-diz-estudo/ 13. A energia escura e o destino do Universo: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/a-energia-escura-e-o-destino-douniverso/ 14. Sobre a Isaías 40:22 (“o globo da terra”): - http://biblehub.com/hebrew/1754.htm - http://www.crivoice.org/circle.html 15. Antigo Testamento interlinear hebraico-inglês: http://www.scripture4all.org/OnlineInterlinear/Hebrew_Index.htm 16. Novo Testamento interlinear grego-inglês: http://www.scripture4all.org/OnlineInterlinear/Greek_Index.htm 427 Artigos e publicações a favor do aniquilacionismo 1. Mentes Bereanas: 1.1 Textos “Mal Aplicados Pelos Aniquilacionistas”? http://www.mentesbereanas.org/masaplicacoesdetextos.html 1.2 Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu? http://www.mentesbereanas.org/hebreus1113a16.html 1.3 Fantasmas Existem? http://www.mentesbereanas.org/phantasmas.html 1.4 Seol – O Consenso do Antigo Testamento http://www.mentesbereanas.org/seolnoat.html 1.5 A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva http://www.mentesbereanas.org/imortalidadenaigrejaprimitiva.html 1.6 Mateus 10:28 http://www.mentesbereanas.org/mateus1028.html 1.7 Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? (tradução e versão em inglês) http://www.mentesbereanas.org/imortalouressurre_capitulo04.html http://www.truthaccordingtoscripture.com/documents/death/immortalityresurrection/cullmann_immort-res.pdf 2. Diversos: 2.1 Textos de Lucas Banzoli - Autobiografia: http://desvendandoalenda.blogspot.com.br/2012/12/sobre-minha-crenca-namortalidade-da.html - A lenda da imortalidade da alma http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2013/09/livro-lenda-da-imortalidade-daalma-e.html 428 http://files.comunidades.net/lucasbanzoli/A_Lenda_da_Imortalidade_da_Alma.pdf - Os Pais da Igreja contra a imortalidade da alma http://www.apologiacrista.com/os-pais-da-igreja-contra-a-imortalidade-da-alma - Estudo completo sobre Lucas 23:43 http://desvendandoalenda.blogspot.com.br/2013/07/estudo-completo-sobre-lucas2343-hoje.html - Desmascarando Itard e sua ridícula interpretação de Lucas 23:43 http://desvendandoalenda.blogspot.com.br/2015/05/desmascarando-itard-e-suaridicula.html - Refutando o argumento espírita de Paulo Sérgio de Araújo http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2015/06/refutando-o-argumento-espiritade-paulo.html 2.2 Biblioteca on line da Torre de Vigia: - Sobre o termo né·fesh (nota de Gênesis 2:7, TNM com referências, de 1986) http://wol.jw.org/pt/wol/fn/r5/lp-t/1001060004/30 - Sobre os ressuscitados que não se casarão (A Sentinela, 15/08/14, pp. 29, 30) http://www.jw.org/pt/publicacoes/revistas/w20140815/jesus-saduceus-casamentoapos-ressurreicao/ 429 (Página em branco) 430 Créditos das Imagens Utilizadas - Lutero afixando suas teses: http://www.thegospelcoalition.org/blogs/justintaylor/2012/10/31/what-wasluther-doing-when-he-nailed-his-95-theses-to-the-wittenberg-door/ - Cena da transfiguração: http://wp.patheos.com.s3.amazonaws.com/blogs/filmchat/files/2013/03/livingchris t-transfiguration.jpg - Abraão e família em tendas: http://www.withoutend.org/sodom/ - Anjos no Tártaro: http://www.tate.org.uk/art/artworks/martin-the-fallen-angels-enteringpandemonium-from-paradise-lost-book-1-n05435 - Dilúvio da época de Noé: http://livrespensadores.net/o-diluvio-acabou/ - Aniquilação de Sodoma e Gomorra: http://americaslastdays.blogspot.com.br/2015/07/america-is-now-sodom-andgomorrah-and.html - Seol: o mundo sombrio (por Doré): http://www.danshort.com/dc/page1.php?p=105 - Multidão vendo competição: http://threeminutebiblestudy.blogspot.com.br/ - Rei de Babilônia chegando ao Seol: https://isaiahsbookclub.files.wordpress.com/2011/11/isaiah14_king-of-babylon-inhell.jpg - Sombras em pé na terra: http://dawningcreates.com/2012/08/18/movie-goodness-horrorthe-ghost-list/ - Jesus ressuscitado aparecendo aos discípulos: https://ihgomes.wordpress.com/2012/04/08/a-pascoa-das-almas/ 431 - Jesus andando sobre as águas: A Bíblia em Quadros (1987), Editora Mundo Cristão. - Samuel aparecendo para a necromante: http://pathoftorah.com/2014/02/02/what-is-sheol/ - Epitáfio de Abércio: http://en.wikipedia.org/wiki/Inscription_of_Abercius - Keil e Delitzsch: http://www.studylight.org/commentaries/kdo/ - Cidade de Tiro, no Líbano: http://www.panoramio.com/photo/27730680 - O egípcio Ani no Campo de Juncos (o paraíso egípcio): Museus Britânico Nº 10.470, folha 35, reproduzido em “O Livro dos Mortos” (1898), de E. A. Wallis Budge. - Imagem do universo, com estrelas e galáxias: http://olhardigital.uol.com.br/noticia/telescopio-pode-ter-encontrado-evidencias-deum-universo-paralelo/52710 - Ilustração do fim do universo físico: http://www.sopapeldeparede.com.br/fim-do-mundo-papel-deparede/11706explosao/ - Jacó chorando suposta morte de José: https://domonte.wordpress.com/2013/04/19/jose-do-egito-ou-os-misteriososcaminhos-de-deus/ - Visão de Ezequiel do Seol, por Doré: Bíblia Vozes (1995). - Casa no paraíso: https://fulltomanage.wordpress.com/2014/01/30/p/ - Jesus ensinando as pessoas: http://amigodaverdade.org/noticia_1262 432 - Lugar de relvas junto a rio: http://infinityfineart.com/AbrahamHunterartgallery.php - Jesus crucificado e o criminoso arrependido: https://sublimesilence.wordpress.com/tag/lent/ 433